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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

ELAINE RIBEIRO DA SILVA DOS SANTOS

Barganhando sobrevivências: os trabalhadores centro-africanos da


expedição de Henrique de Carvalho à Lunda (1884-1888)

SÃO PAULO
2010

1
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

Barganhando sobrevivências: os trabalhadores centro-africanos da


expedição de Henrique de Carvalho à Lunda (1884-1888)

Elaine Ribeiro da Silva dos Santos

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em História Social do
Departamento de História da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para a
obtenção do título de Mestre em História.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Cristina Cortez Wissenbach

SÃO PAULO
2010

Versão Corrigida

2
CARVALHO, Henrique Dias. Expedição Portuguesa ao
Muatiânvua 1884-1888: Descrição da Viagem à Mussumba do
Muatiânvua. Lisboa: Typographia do Jornal As Colônias
Portuguesas, vol. III, 1893, p. 746.
3
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS
DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

4
Agradecimentos

Agradeço especialmente a Cristina Wissenbach por todos esses anos. Minha orientadora
desde o início da graduação, compartilhou comigo o seu conhecimento, incentivou-me e
presenteou-me com sua amizade.

Aos meus companheiros de mestrado Elisangela Mendes Queiroz e Pedro Figueiredo


Alves da Cunha, a minha gratidão pelo apoio, pelos incentivos e pela importante ajuda
nos momentos de aflição da escrita, durante as fases de produção do relatório de
qualificação e do texto final da dissertação. Com vocês compartilho esta importante fase
de minha vida.

Também ao grupo de orientados da Cristina, pela convivência intelectual. Neste mesmo


sentido, aos professores e alunos que participaram das reuniões da linha de pós-
graduação de História Atlântica e do Núcleo de Evangelização e Colonização do projeto
temático Fapesp Dimensões do império português. Reputo a estes debates
historiográficos parte substancial de minha formação.

Ao professor Carlos Serrano, que muito me ajudou desde a graduação a refletir sobre as
temáticas africanas e fez considerações precisas e instigantes no exame de qualificação.

À professora Lucilene Reginaldo pela leitura atenta de meu relatório de qualificação e


pelas sugestões preciosas que me ofereceu.

À professora Mariza de Carvalho Soares da UFF, por me proporcionar a pesquisa em


tão importante acervo digitalizado do Arquivo Histórico de Angola.

À professora Regina Wanderley do IHGB e seus alunos-bolsistas, Lívia, Nayara e


„Djay‟, que me receberam em sua sala de trabalho e compartilharam comigo seus
conhecimentos.

À Eliane, bibliotecária da Casa de Portugal, obrigada pelo conhecimento e pelos livros.

5
Aos funcionários da biblioteca Florestan Fernandes da FFLCH-USP, do IEB-USP, da
Biblioteca Nacional e IHGB, pela ajuda atenciosa.

A amiga de ofício Gabriela Aparecida dos Santos, minha profunda admiração por você
e por seu trabalho.

Aos amigos que não vejo mais como eu gostaria Núbia, Evelyn, Thays, Gabriel, André
e Andreia.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp pelo importante


apoio financeiro que permitiu que este trabalho se realizasse com mais tranquilidade.

Aos meus avós Ana e Sebastião (in memorian), minha saudosa gratidão.

E de maneira muito especial ao Marcio, meu companheiro de todas as horas, e a minha


mãe, Santina. A verdade é que muito pouco eu faria sem os incentivos e a ajuda
incondicional de vocês. Por tudo isso, ofereço aos dois este trabalho.

6
Resumo
Entre os anos de 1884 e 1888, o militar português Henrique Augusto Dias de Carvalho
realizou uma grande expedição que partiu de Luanda e atingiu a mussumba (capital) da
Lunda, governada pelo muatiânvua. Levava consigo vários objetivos, em parte
determinados pelos interesses dos poderes governamentais de Lisboa, em parte por suas
aspirações de saber científico. A esta expedição agregaram-se diferentes grupos de
africanos, trabalhadores atraídos ou arregimentados que se revelaram responsáveis, em
grande parte, pelo andamento da viagem. Tendo como referência a narrativa desta
expedição, produzida por Henrique de Carvalho, a presente pesquisa é uma tentativa de
reconstituir a história de vida desses homens e mulheres, dimensionando suas
experiências a partir do pressuposto de que não foram marginais à organização e êxito
do empreendimento português.

Inserida a problemática no contexto mais amplo de processos históricos relacionados ao


advento da política imperialista na segunda metade do século XIX, a atuação destes
trabalhadores africanos foi analisada nos termos em que se rearticularam as formas de
exploração do trabalho, acarretadas pelas abolições do tráfico de escravizados e da
própria escravidão em regiões africanas. Importou-nos verificar não só as formas de
participação de carregadores, guias e intérpretes na expedição de Henrique Carvalho,
como também as respostas dadas por parte dos diferentes grupos africanos às formas de
trabalho às quais se encontravam submetidos. Sob tal perspectiva, a investigação sobre
a vivência destes trabalhadores, tal como registrada na obra do militar português, foi
uma proposta de perscrutar resistências por meio do entendimento das suas noções de
direitos e de deveres, formas de organização de tarefas, práticas cotidianas, estratégias
no trato com as autoridades africanas e com o comando da expedição.

Palavras-chave
Lunda - Angola – Trabalhadores/carregadores - Pós-abolições do tráfico e da escravidão
- Henrique de Carvalho

7
Abstract

Between the years 1884 and 1888, the Portuguese military Henrique Augusto Dias de
Carvalho made a great expedition from Luanda and reached mussumba (capital) of
Lunda, governed by Muatianvua. He took with him several objectives, determined in
part by the interests of the governmental powers of Lisbon, in part because their
aspirations for scientific knowledge. In this expedition were added to different groups of
Africans, lured or recruited workers who have proved responsible in large part by the
progress of the trip. With reference to the narrative of this expedition, produced by
Henrique de Carvalho, the present research is an attempt to reconstruct the life story of
these men and women, measuring their experiences from the assumption that there were
not marginal to the organization and success of the enterprise Portuguese.

Set on the issue in the broader context of historical processes related to the advent of the
imperialist policy in the second half of the nineteenth century, the role of African
workers was analyzed in terms of what is rearticulate forms of exploitation of labor,
brought about by the abolition of the slave trade and of slavery itself in African regions.
Matters to us verify not only the forms of participation of porters, guides and
interpreters in the expedition of Henrique de Carvalho, as well as the answers given by
the various African groups the types of work for which they were submitted. From this
perspective, the research about the experience of these workers, as recorded in the work
of the Portuguese military, was a proposal for analyzing resistance through
understanding of their notions of rights and duties, organizational tasks, daily practices,
strategies in dealing with the African authorities and the command of the expedition.

Keywords
Lunda - Angola – Workers/porters - Post-abolition of the slave trade and slavery -
Henrique de Carvalho

8
Sumário

Introdução – Trabalho e Identidades p.12

Os carregadores da África centro-ocidental p. 18


Relatos de viagem como fonte historiográfica p.28

I - Controle da mão de obra africana e administração colonial:


faces convergentes da política portuguesa oitocentista p.37

A adoção pelos homens políticos portugueses do vocabulário dos direitos e deveres


de senhores e escravizados, bem como dos carregadores p.56

II - Interstícios imperiais na obra de Henrique de Carvalho p. 70

Discursos imperiais no Portugal da segunda metade do XIX p.71


As singularidades do pensamento colonial do português Henrique de Carvalho p.83

III - Os caminhos da Expedição Portuguesa à Mussumba do Muatiânvua p.103

“Mas o território não é o mapa” p.118

IV - Os trabalhadores da Expedição Portuguesa à Mussumba do Muatiânvua p. 146

A resistência dos trabalhadores libertos de Angola às persistências


da escravização e do trabalho forçado p.147
Os „contratados de Loanda‟ p.156
O sentido social da mukanda p.183
Os loandas e a devoção a Nossa Senhora da Muxima p.189
Muxima ... p.193

Consideração Final p.198

Fontes e Bibliografia p. 202

9
“a memória social de suas vidas [foi-se] perdendo antes
por um esquecimento ideológico do que por efetiva ausência dos documentos.
É verdade que as informações se escondem, ralas e fragmentadas, nas entrelinhas dos
documentos, onde pairam fora do corpus central do conteúdo explicito.
Trata-se de reunir dados muito dispersos e de esmiuçar o implícito [...]
É uma história do implícito resgatada das entrelinhas dos documentos,
beirando o impossível, de uma história sem fontes ...”
definição de história à contrapelo
na história social. - Maria Odila Leite da Silva Dias

10
Itinerário da viagem de Henrique de Carvalho à Mussumba do Muatiânvua.
Adaptado de BASTIN, Marie-Louise. Art décoratif Tshokwe. Lisboa: Cia dos Diamantes de Angola, 1961.

11
Introdução: Trabalho e Identidades

12
“...dizíamos-lhes que o pagamento só eles podiam vê-lo quando levantassem com as
cargas para seguirem viagem e marcassem bem as pousadas que se deviam fazer. A
resposta porém era sempre a mesma: - Ainda não vimos nada!
Se lhes perguntávamos o que queriam? Respondiam: - rações e três peças.
- Mas que peças?
- Fazendas, pólvoras e armas.
- Sabem quanto vale uma arma?
- Quatro peças.
- E quanto um barril de pólvora?
- Duas peças.
- Então se sabem isto, lhe retorquíamos, como podemos dar nas três peças uma
arma?
Um riso aparvalhado era a resposta!
Era preciso muita resignação e por isso continuávamos a interrogá-los.
- Onde vamos?
- A Muári Calumbo, no Cuengo.
- Quantas jornadas são d‟aqui até lá?
– Nove. – Então querem uma peça por três jornadas e ainda por cima rações?

- Muene Puto é muito grande, tem muitas cousas, pode pagar muito bem.” 1

Desde o século XVI, quando dos primeiros acordos entre portugueses e as populações
instaladas nas regiões próximas ao litoral angolano, as respostas africanas para as
tratados de solicitações europeias se traduziram, por parte das elites, em contratos formais – os
vassalagem chamados tratados de vassalagem. Enquanto estes tratados significavam para os
portugueses a conquista sobre territórios e populações, já para os sobas, os undamentos
ou juramentos realizados na presença das autoridades portuguesas de Luanda tinham o
efeito de reconhecimento e legitimação de seu poder, pois expressavam uma aliança
contra possíveis ameaças internas e/ou externas às suas posições de dirigentes políticos.
Há muito que a historiografia vem destacando este encontro de interesses, que permitiu
a ascensão de novas elites políticas africanas e a integração de novos conjuntos de poder
ao sistema comercial do atlântico. 2

1
Diálogo da negociação entre o expedicionário Henrique de Carvalho e os carregadores de Muxaela em:
CARVALHO, Henrique A. Dias de. Expedição Portuguesa ao Muatiânvua 1884-1888: Descrição da
Viagem à Mussumba do Muatiânvua. Lisboa: Imprensa Nacional, 1892, vol. II (Do Cuango ao
Chicapa), p. 198-199.
2
Para a análise de algumas destas alianças ver os trabalhos de Joseph Miller e Catarina Madeira Santos,
que tratam da relação dos portugueses, respectivamente, com os imbangalas e com os ndembus, em:
MILLER, Joseph. C. Poder político e parentesco. Os antigos estados Mbundu em Angola. Luanda:
Arquivo Histórico Nacional; Ministério da Cultura, 1995 e SANTOS, Catarina Madeira. “Escrever o
poder. Os autos de vassalagem e a vulgarização da escrita entre os africanos: o caso dos Ndembu em
Angola (séculos XVII – XIX). International Symposium Angola on the Move: Transport Routes,
Communication, and History. Berlim, 24-26 sept. 2003. Disponível em:
http://www.zmo.de/angola/Papers/Santos. Acesso em: julho de 2008.

13
Sobre estas relações, Isabel de Castro Henriques ressaltou a autonomia e o dinamismo
africanos face às necessidades europeias. Tratou-se, segundo a historiadora portuguesa,
modernidade de um esforço das sociedades centro-africanas de identificar os meios para solucionar
em angola.
problemas e organizar-se em favor das relações atlânticas. Na complexidade histórica,
esta disposição significou um processo de transformação das estruturas sociais e de
reorganização política e econômica dos territórios africanos, inclusa a reformulação das
regras de produção e trabalho.

Deste modo, ao longo do tempo, imbangalas e chokwes, estabelecidos nas margens


esquerda e direita, respectivamente, do rio Kwango, desempenharam um papel essencial
como intermediários comerciais. Suas lideranças políticas, que tudo fizeram para ganhar
autonomia frente ao poder da Lunda, com quem eram aparentados historicamente,
constituíram alianças com portugueses e demais europeus do trato atlântico. O estudo
destas sociedades africanas por Henriques permitiu „pôr em evidência as
particularidades das respostas africanas, quanto à influência exterior como às
solicitações internas, resultantes das novas articulações políticas‟.3

Durante toda a fase do comércio de escravizados, a proeminência foi dos imbangalas de


Kasanje que controlaram por quase duzentos anos (c.XVII - c.XIX) as relações do
litoral com o interior além do rio Kwango. A partir da década de 1840, este importante
papel de intermediário passou aos chokwes, sobretudo, no comércio de marfim e
borracha, uma vez que dominavam as técnicas de caça aos elefantes e residiam na área
de incidência da planta rasteira landolphia, da qual extraíam a borracha. 4

Também sob o prisma das relações atlânticas, Beatrix Heintze tratou da emergência de
grupos sociais a partir dos contatos históricos entre africanos e portugueses. Neste
beatrix processo, enfatizou a agência de africanos e luso-africanos, em especial dos
heintze
ambaquistas que se destacaram nas relações comerciais e nos serviços de secretariado
junto aos titulares políticos africanos. Este termo identitário, derivado do presídio
português de Ambaca, mais do que se remeter a atributos físicos, já que a maioria dos

3
HENRIQUES, Isabel Castro. Percursos da Modernidade em Angola: Dinâmicas Comerciais e
Transformações Sociais no Século XIX. Lisboa, IICT, 1997, p. 16-17.
4
HENRIQUES, Isabel Castro. Percursos da Modernidade..., p. 16-17.

14
ambaquistas eram homens negros que se autodenominavam brancos, ligava-se mais a
características culturais.

os ambaquis- De acordo com a historiadora alemã, na segunda metade do século XIX, fase de
tas para aprofundamento europeu nos territórios africanos, foram estes homens os pioneiros por
heintze.
excelência na África centro-ocidental, divulgadores „da língua portuguesa oral e
escrita, além da sua língua materna, o kimbundu, de novas plantas de cultura e de
novas técnicas culturais‟. Estes foram os conhecimentos que lhes possibilitaram o
exercício dos ofícios de sapateiro, alfaiate, carpinteiro e das funções de intérprete e
escriba junto aos dirigentes africanos. 5

Igualmente persistindo no estudo das configurações identitárias evoluídas a partir da


interação atlântica, Jill Dias, além dos ambaquistas, estudou os canoeiros vilis da costa
do Loango, ao norte do rio Congo e os caravaneiros zombos das regiões a leste de
Mbanza Kongo (São Salvador). Estas também foram coletividades que ao se engajarem
no tráfico atlântico de escravizados acabaram por constituir grupos de força que
influenciaram nas transformações sociais de suas regiões de origem.

Para além das estabilidades comerciais e políticas destes grupos, a historiadora inglesa
revelou a importância de se prestar atenção àquilo que chamou de sentido subjetivo da
símbolos de
status social diferença: adornos corporais, objetos portados e práticas costumeiras, que por vezes
entre os afri foram imperceptíveis ou incompreensíveis ao olhar estrangeiro, mas que entre os
canos.
grupos africanos fizeram toda a diferença em termos de identificação social – algo que
no caso dos vilis significou o registro da riqueza através do uso privilegiado de formas
de vestuário, em especial determinados tecidos e peles, e do direito ao transporte numa
tipoia. 6

5
Tal como Lourenço Bezerra Correio Pinto, também conhecido como Lufuma, um ambaquista que nos
anos de 1860 estabeleceu uma colônia na mussumba de Chimane do muatiânvua Muteba (Muteb a
Chicomb, 1857-1873/74). Nesta colônia ambaquista, os seus agregados cultivaram couves, cebolas,
feijão, tomate, mandioca, tabaco e arroz etc., fabricaram sapatos com solas de madeira, esteiras, cestos,
chapéus, machados e enxadas de ferros e criaram ainda algum gado bovino. Sendo Lufuma o líder da
comunidade, foi a ele concedido pelo muatiânvua o direito de comerciar marfim. Sobre Lufuma ver:
HEINTZE, Beatrix. Pioneiros Africanos. Caravanas de carregadores na África Centro-ocidental (entre
1850 e 1890). Lisboa: Editorial Caminho, 2004, p. 17, 59-61 e 84-89.
6
Cf.: DIAS, Jill. “Novas identidades africanas em Angola no contexto do comércio atlântico”. In:
BASTOS, Cristina; ALMEIDA, Miguel Vale de; FELDMAN-BIANCO, Bela (org.) Trânsitos
Coloniais. Diálogos críticos luso-brasileiros. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 317 e 319.

15
Por fim, foi na época complexa do tráfico ilegal de escravizados e de produtos ditos
„legítimos‟ que a interiorização das redes de produção e comércio ensejou também a
ascensão de grupos sociais estabelecidos nas regiões costeiras, destacando-se entre eles
indivíduos como a comerciante angolana D. Ana Joaquina dos Santos Silva, também
conhecida como Andembo-iá-Lala, figura de destaque na documentação da época e
resgatada posteriormente pela historiografia. 7

A importância do tema das configurações identitárias emergidas a partir da relação


atlântica também foi tratada em nossa pesquisa anterior, na qual focalizamos
movimentos similares ocorridos na costa ocidental africana, por meio da documentação
europeia do trato atlântico, principalmente dos relatos de viagens produzidos pelos
ingleses.

Neste trabalho, que foi um esforço investigativo sobre a prática profissional da


objeto: cano-
eiros africa- canoagem marítima, conseguimos visualizar a atuação de grupos de remadores que
nos.
devido sua perícia de navegação receberam a designação kru relacionada ao sentido de
bom marinheiro e tiveram importante papel nos movimentos atlânticos. Além disso,
constantado que kru também foi um termo generalizante dado por estrangeiros a uma
série de comunidades costeiras estabelecidas entre o Cabo Mesurado e o Cabo Lahou,
regiões das atuais Costa do Marfim, a pesquisa nos permitiu vislumbrar estratégias de
sobrevivência de grupo em contextos de opressão aos africanos.

Neste sentido, ao desenvolverem seu trabalho junto aos navios do trato atlântico – e em
especial junto aos esquadrões ingleses de combate ao tráfico – estes homens acabaram
por assumir tal denominação, em favor de interesses próprios. Deste modo, mais que
uma identidade étnica referida à língua falada ou aos ritos praticados, no processo
histórico do Atlântico ela significou a aceitação desta qualificação por homens com

7
Sobre D. Ana Joaquina, entre outros, ver: WHEELER, Douglas L. “Angolan Woman of Means: Dona
Ana Joaquina dos Santos Silva Mid-Nineteen Century Luso-African Merchant Capitalist of Luanda”.
Santa Bárbara Portuguese Studies, 3, 1996, p. 284-297; MILLER, J. C. Way of Death. Merchant
Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830, Madison, University of Wisconsin Press, 1988.
Nas pesquisas que vem realizando a historiadora Maria Cristina Cortez Wissenbach busca nos relatos
de viagem as informações sobre outros agentes comerciais que emergiram neste mesmo contexto. Para
tanto, ver: Entre caravanas de marfim, mercadorias europeias e o tráfico de escravos: Georg Tams e
os centros do comércio atlântico e sertanejo em Angola (década de 1840). Ensaio apresentado como
relatório final da bolsa da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (PNAP), 2009.

16
tradição de trabalho no mar, em favor de uma coesão social que previa, além da sua não
escravização, a sobrevivência material de suas comunidades. 8

Tendo isto posto, importante é o reconhecimento destas emergências identitárias


africanas – em parte, possíveis devido as suas relações com os europeus do trato
atlântico – de modo a enfatizar a sua agência histórica. Porém igualmente relevante
nesta questão é não ignorar que elas também podem estar configuradas em virtude do
discurso do poder, seja ele europeu ou das elites africanas, presente nas diferentes fontes
escritas e orais. De outra parte, ao se tornarem visíveis aos olhos estrangeiros, por causa
das atividades que desempenharam e das alianças que engendraram, estas coletividades
conquistaram ao longo do tempo a condição de disputar o controle político de suas
regiões.

Assim, partindo da premissa da importância de se tentar refletir sobre identidades


históricas sob uma perspectiva menos elitista – ou seja, aquela que preconiza a atenção
exclusiva sobre os grandes movimentos e os grandes personagens – é que este estudo se
propôs a investigar grupos de trabalhadores da África centro-ocidental, na segunda
metade do século XIX, a fim de perceber, por meio de práticas, crenças e valores, a
agência cotidiana de homens alijados das decisões de poder, mas que, na longa duração,
tomaram um importante papel nas complexidades históricas africanas.

Desta maneira delineada a questão mais significativa para nós (e também em


decorrência dela), este trabalho partiu da análise crítica do relato de viagem do
explorador português Henrique Augusto Dias de Carvalho. Apoiada numa bibliografia
que esclareceu a importância desta fonte para o entendimento de movimentações
históricas essenciais e relativas ao espaço que hoje é Angola, pretendemos demonstrar

8
A pesquisa referida foi realizada como iniciação científica, sob a orientação da profª. drª. Maria
Cristina Cortez Wissenbach e com incentivo financeiro da Fapesp. Nela estudamos grupos de
trabalhadores atuantes na região do Golfo do Benim, entendidos a priori como intermediários na
dinâmica das relações entre europeus e africanos no contexto do tráfico atlântico de escravizados, entre
os anos de 1720 e 1858. O objetivo central foi identificar, na documentação disponível, a menção a tais
grupos, acompanhando referências sobre suas trajetórias ao longo do período apontado. Desta
documentação destacaram-se os relatos de agentes europeus como missionários, administradores,
expedicionários, mercadores, entre outros, que observaram de forma particularizada os aspectos do
trato negreiro e das populações nele envolvidas. Parte dos resultados desta nossa pesquisa encontra-se
em: SANTOS, Elaine R. S. Nas engrenagens do tráfico: grupos canoeiros e sua atuação nos portos do
Golfo do Benim. In: Anais do XIX Encontro Regional de História. Poder, violência e exclusão. São
Paulo: Anpuh, 2008 [cd-rom].

17
ao longo deste estudo que seu deslindamento poderá trazer contribuições efetivas na
compreensão das configurações identitárias de diferentes grupos de trabalhadores
africanos. 9

Os carregadores da África centro-ocidental

A historicidade das intenções portuguesas no controle da mão de obra africana foi


argutamente destacada por Alfredo Margarido em um estudo realizado no final da
década de 1970. Nele, o estudioso português tratou em detalhes da política de
arregimentação dos carregadores centro-africanos, bem como do espaço que esta
problemática ocupou na documentação administrativa portuguesa. 10

Já nos primeiros tratados de vassalagem realizados entre sobas e autoridades lusas no


século XVI a questão da arregimentação de trabalho aparece entre as cláusulas que
previam a obrigação dos dirigentes políticos africanos em fornecer mão de obra para
suprir os serviços de carregamento de produtos comercializados, de um ponto a outro do
território.11 Também desde o século XVII, a mesma problemática faz parte dos

9
Entre os trabalhos que analisou a obra de Henrique de Carvalho podemos citar um dos últimos estudos
pesquisa de produzidos por Beatrix Heintze que sumariza a importância desta fonte para além do entendimento
dela ser „um mero conjunto de informações isoladas, de entre as quais podemos escolher as que mais
beatrix heintze nos convêm‟. Conforme a historiadora, a qualidade do relato de Carvalho “deve-se principalmente à
sua concepção do Homem, que não colocava à partida os africanos e luso-africanos numa categoria
diferente da dos europeus, como era habitual na sua época. Isto torna-se evidente, se compararmos os
seus relatos com os de outros exploradores em Angola, não só portugueses, mas também alemães [...]
Deste modo, encontram-se repetidamente nas descrições daquele explorador indivíduos que se
destacam da massa geralmente anónima de empregados africanos de outros relatos, que tentavam, de
diversas maneiras, vencer as dificuldades da vida que Carvalho nos permite acompanhar em algumas
das suas fases. Graças às invulgares fotografias da expedição, conhecemos os seus rostos,
imaginamos alguns dos seus sentimentos íntimos e aprendemos, através dos dados biográficos
fornecidos por Carvalho que os antigos escravos não viviam necessariamente uma vida obtusa, que
eram curiosos e tinham uma grande vontade de saber, que utilizavam as suas capacidades especiais e
que, de vez em quando, também sentiam prazer no seu trabalho. Carvalho apresenta-nos de modo
semelhante muitos dos seus interlocutores africanos com que se cruzou pelo caminho, por palavras e
imagens.” Cf.: HEINTZE, Beatrix. Um tesouro para a investigação científica: os relatos de Henrique
Dias de Carvalho sobre a sua „Expedição ao Muatiânvua‟ na Lunda/Angola (1884-1888). Texto
apresentado na Academia das Ciências de Lisboa aos 28 de maio de 2009 no Acto da admissão como
Acadêmica Correspondente Estrangeira da Academia.
10
É importante notar que a questão da dependência em relação ao serviço dos carregadores centro-
africanos deve ser considerada vis-à-vis a incidência da mosca tsé-tsé em algumas dessas regiões e a
dificuldade imposta pelos terrenos acidentados ao transporte de mercadorias e pessoas por animais de
carga. Cf.: MARGARIDO, Alfredo. “Les porteurs: forme de domination et agents de changement em
Angola (XVII-XIXe. Siècles)”. Revue Française d´Histoire d´Outre-mer. Tomo LXV, 1978, 240, p.
377-400.
11
Importantes reflexões sobre os tratados de vassalagem em momentos e espaços diferenciados da
relação dos africanos com os portugueses encontram-se em HEINTZE, Beatrix. O contrato de

18
regimentos governamentais: nas instruções dadas aos governadores de Luanda, previa-
se a interdição do serviço de transporte gratuito prestado pelos carregadores aos
comerciantes em geral. Tratava-se, na visão de Margarido, de proposições em nada
filantrópicas, mas intervenções feitas no sentido de coibir as atuações fraudulentas dos
capitães-mores, mantendo o fornecimento de homens sob o controle da administração
portuguesa, uma vez que estes trabalhadores eram indispensáveis, na época do tráfico,
no transporte de bens necessários para obtenção de escravizados.

Devido à inquietude que provocava face às consequências negativas de um


recrutamento contínuo e violento dos carregadores que implicavam desde a deserção ao
trabalho forçado até o despovoamento de regiões inteiras, os problemas advindos desta
situação também são verificados na documentação do governo „ilustrado‟ em Angola,
na época do marquês de Pombal. 12 Por exemplo, em um ofício de 30 de julho de 1767,
o governador-geral Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho alegava a importância „de se
colocar um ponto final no abuso infame e injusto de fazer trabalhar os negros sem
pagamento, o que destroe províncias inteiras‟.13 Todavia, as circunstâncias continuaram
as mesmas, conforme escreveu, pouco tempo depois, por volta da década de 1790, o
militar Elias Alexandre da Silva Correa:

“A sujeição dos Sobas ao seu Capitão mor lhe põem nas maons a
dependência do expediente. Os volumes de fasendas seccas, e molhadas, q.
girão o Conthinente se depozitão nos hombros dos nascionaes, para os
transportar. Cada certanejo exige o numero dos precizos carregadores. O
Capitão mor em benefício do comércio he obrigado a fornecellos; mas a
ambição tem chegado ao excesso de os vender debaixo de hua aparência
honesta: quero dizer: sobre a falta de carregadores recebe antecipados
prêmios, para os apromptar, sem cujas dádivas, prezistirião as fazendas
empatadas, sem se conduzirem às Feiras destinadas”. 14

vassalagem afro-português em Angola no século XVII. Angola nos séculos XVI e XVII. Estudo sobre
fontes, métodos e história. Luanda: Kilombelombe, 2007, p.387-436 e em SANTOS, Gabriela
Aparecida. Reino de Gaza: o desafio português na ocupação do sul de Moçambique (1821-1897). São
Paulo, Alameda, 2010. Tanto no trabalho de Heintze sobre a parte ocidental africana, quanto no de
Gabriela Santos, sobre o lado oriental, aparecem nos tratados analisados as cláusulas da
arregimentação de trabalhadores.
12
Cf.: MARGARIDO, Alfredo. Les porteurs..., p. 378.
13
Apud MARGARIDO, Alfredo. Les porteurs..., p. 379.
14
Cf.: CORREA, Elias Alexandre da Silva. História de Angola. Lisboa: Agência Geral das Colônias,
1937, p. 37.

19
Há ainda notícias de recrutamentos violentos na primeira metade do XIX. Em 1810, D.
João de Almeida de Melo e Castro, o 5º. Conde das Galveias, sobre as dificuldades do
comércio no interior da África centro-ocidental anotou que os negros espancados pelos
certanejos, fugiam e desapareciam ao ponto que se achava quase impedida o tráfico
por falta de carregadores.15

No ofício de 1839 enviado a Sá da Bandeira pelo coronel Fortunato de Melo podemos


verificar que os carregadores eram frequentemente libambados para não fugirem – ou
seja, presos do mesmo modo que os escravizados – e eram dados pelos capitães-mores
aos feirantes e aos aviadados ou pombeiros.16 Em decorrência destas denúncias, o
ministro português decretou em seguida a abolição do transporte obrigatório de
mercadorias, medida que apesar de mal recebida pelos mercadores de Luanda, assim
mesmo foi determinada pelas autoridades locais.

Porém, esta situação tendeu a se agravar, porque junto ao vagaroso findar do tráfico
atlântico de escravizados, o desenvolvimento de áreas de produção do tipo plantation
nas regiões angolanas, voltadas para a exportação em larga escala de artigos locais, fez
com que aumentasse o recrutamento forçado de trabalhadores centro-africanos.

Em uma pesquisa sobre a região do Cazengo, a historiadora Jill Dias conseguiu


visualizar na documentação da época a incidência, a partir dos anos de 1840, de
plantações de café de propriedade de europeus e de sobas, como João Guilherme Pereira
Barboza e Kalulu Kamuinsa, que necessitavam de braços africanos para levarem adiante
o novo empreendimento. 17

À luz destes registros, podemos entender que assim como o decreto imposto ao término
do trato atlântico de escravizados (1836) não significou o final da escravidão em
Angola, as medidas que exigiram o fim do recrutamento forçado de carregadores (1839

15
Cf.: Minuta de João de Almeida de Melo e Castro, 5º. Conde das Galveias, secretario de Estado da
Marinha e Conquistas sobre as dificuldades do tráfico no interior da África, devido à falta de
carregadores. 22 de junho de 1810. Col. IHGB DL82, 05.14.
16
Apud MARGARIDO, Alfredo. Les porteurs..., p. 384.
17
Para tanto, ver: DIAS, Jill. “O Kabuku Kambilu (c. 1850-1900): uma identidade política ambígua”.
In: Actas do Seminário Encontro de povos e culturas em Angola. Lisboa: Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, p. 24-25 e 28.

20
e 1856) também não se revelaram eficazes, uma vez que escravizados que vinham do
interior e aqueles que eram recrutados nas adjacências costeiras foram paulatinamente
levados para regiões como a de Cazengo, onde deveriam não só tocar a produção de
matérias-primas, de forma compulsória, como também transportá-las aos portos da
costa para serem embarcadas para o hemisfério norte.

Em suma, durante grande parte do século XIX, a escravização e o recrutamento forçado,


como processos violentos que caminharam pari passu, obrigaram as autoridades
portuguesas, devido às pressões da era abolicionista, a repensarem o estatuto do trabalho
em África, no que concerne à busca de novas formas de submetê-lo. Não obstante todas
as medidas restritivas decretadas por alguns homens políticos portugueses, a coação do
serviço de carregador às sociedades africanas não só persistiu, mas marcou, em geral,
uma das intenções ou desejos do colonialismo português, no dizer de Alfredo
Margarido. 18

Na segunda metade do XIX, à questão do controle da força de trabalho adicionam-se


outros aspectos. Como vimos, embora a arregimentação de carregadores continuasse a
ser um negócio acordado entre autoridades e grandes comerciantes, a expansão
mercantil de produtos ditos „legítimos‟ e a política portuguesa relacionada a este
comércio – como, por exemplo, a abolição de monopólios no caso do marfim (1834) –
provocaram um afluxo populacional em torno dos diferentes empreendimentos de
iniciativa europeia na África centro-ocidental. As redes africanas, por sua vez, ao se
adaptarem ao novo quadro comercial, permitiam o engajamento espontâneo e cada vez
maior de grupos de homens e mulheres às diferentes caravanas que passavam por suas
regiões. 19

Nesta perspectiva, as expedições europeias de fim de século foram empresas que no


contexto da interiorização espacial do continente atraíram e mobilizaram uma imensa

18
Por isso, segundo Alfredo Margarido, „estabelecer o inventário dos carregadores significa desenhar
(ou indicar) o verdadeiro retrato do modo de pilhagem português em Angola‟. Cf.: MARGARIDO,
Alfredo. Les porteurs..., p. 397.
19
No final do século XIX, a partir do cálculo de alguns produtos de exportação, Alfredo Margarido
chegou ao número de 200.000 carregadores envolvidos anualmente com as atividades comerciais.
MARGARIDO, Alfredo. Les porteurs..., p. 397.

21
energia africana, já que tudo no terreno da viagem passava pelo trabalho e saberes
africanos.

Assim, para os itinerários, os europeus precisavam das informações das populações


locais; para as marchas em terra e as travessias dos rios, necessitavam de carregadores e
canoeiros, tanto para si mesmos como para as suas imensas cargas; para sua
alimentação, precisavam de cozinheiros para preparar os alimentos produzidos nas
regiões pelas quais passavam e caçadores para obter carne:

“Quando à tarde montávamos o acampamento na mata, os carregadores


chegavam a fazer grandes excursões pelas imediações para encontrar uma
aldeia habitada ou uma colônia abandonada com alguma plantação de
mandioca. Por vezes, quando conseguia encontrar alguns tubérculos de
mandioca numa remota aldeia abandonada, a minha gente dava provas do
seu caráter generoso ao cuidar, com uma dedicação comovente, do seu
patrão em primeiro lugar, aguardando calma e pacientemente a sua vez de
matar a fome”. 20

para a cura de suas febres, quando não havia mais o quinino, demandavam os
„remédios‟ preparados pelos ngangas:

“A prática das rezas ao fim da tarde, inicialmente dirigidas contra o feitiço


mau, virava-se agora contra mim. Logo que escurecia e todos jaziam
agrupados em redor da fogueira, ouviam-se discursos rebeldes no mato
silencioso até cerca de meia-noite, que, a ajuizar pelo tom arrebatado, não
eram nada maus e os oradores eram recompensados com grandes aplausos.
No meio deste inferno estava eu próprio, solitário e abandonado, sacudido
pela febre e cheio de desespero. Agora sinto vontade de rir, quando penso
nesses tempos em que muitas vezes cheguei a amaldiçoar a África inteira e
toda a exploração de África e em que considerei perdida toda a expedição.
Naquela altura eu ainda não sabia que o clamor e os gritos dos meus 120
negros eram muito menos perigosos do que pareciam e, na confusão do
momento, não me apercebi de que no fundo tinham razão.”21

para a sua segurança, de homens que se dispusessem a defendê-los; para o entendimento


com as autoridades africanas, um intérprete que traduzisse os seus propósitos ...

20
Cf.: Paul Pogge, Im Reiche des Muata-Jamvo, 1880, apud HEINTZE, Beatrix. Pioneiros africanos...,
p.40.
21
Cf.: Max Buchners, Reise nach Zentralafrika, 1878-1882, apud HEINTZE, Beatrix. Pioneiros
africanos..., p. 43.

22
Por outro lado, a situação de dependência dos europeus em relação aos africanos
também se traduziu em um cotidiano de tensões e resistências.

Conforme visto na epígrafe do presente texto, o diálogo entre o expedicionário


Henrique de Carvalho e os porta-vozes dos quarenta carregadores da Muxaela é um
testemunho exemplar neste sentido, porque pode fornecer não só uma ideia de como se
davam às contratações de trabalhadores – quanto à negociação de bens materiais
arrolados como remuneração ou das rotas a serem trilhadas – mas também informar
sobre os receios e as expectativas de ambas as partes.

Enfrentando um problema muito comum às diversas expedições que percorriam a


África centro-ocidental – a desistência de alguns grupos de carregadores de
prosseguirem viagem – o chefe da expedição ao muatiânvua se viu obrigado a parar no
caminho e enviar o seu guia a outras regiões para tentar substituí-los.

Após dias de espera, em uma manhã chegaram ao acampamento „quarenta e não vinte
rapazes que diziam pertencer à povoação de Muxaela, a mais longínqua a que fora o
ajudante‟. Sendo, nesta época, frequente as pessoas se engajarem por conta própria nas
expedições – já que apareceram mais trabalhadores do que era previsto pelo chefe –
vinham elas com a intenção de transportar as cargas até Camaxilo, isto é, até um certo
ponto da viagem e não por toda a viagem até a mussumba do Kalani, „porque não lhes
era possível afastarem-se nesta epocha, por muitos dias, das suas casas‟; bem como o
desejo de comerciar os seus produtos com os membros da expedição, já que os
muxaelas „andaram até perto das três horas da tarde pelo acampamento a vender as
provisões que traziam, e só depois vieram dizer [a Henrique de Carvalho] que o senhor
capitão os mandara para transportarem cargas‟.22

Nestas negociações havia de ambas as partes o receio do contrato acordado não ser
cumprido. Do mesmo modo que não era difícil grupos de carregadores se negarem a
continuar a jornada, sem antes conseguir melhor remuneração ou condições de trabalho,
igualmente possível era estes homens não serem devidamente pagos pelos chefes das
expedições ou das caravanas.

22
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. II, p. 197.

23
Por outro lado, e tomando ainda como referência a epígrafe, o diálogo entre os
trabalhadores e Henrique de Carvalho se dá entre pessoas que demonstraram ter uma
prévia noção umas das outras. Na visão de Carvalho, sendo os africanos
„aparvalhados‟, nada escandaloso que não soubessem contar, por isso a confusão com a
remuneração exigida e a necessidade de se ter muita „resignação‟ no trato com eles. Já
para os muxaelas, sendo o chefe da expedição um „filho‟ de Muene Puto (rei de Portugal
ou autoridade portuguesa em Luanda), provável era que pudesse pagar bem, por isso a
barganha para receber mais.

Ao fim de tudo, as negociações não foram bem sucedidas, os quarenta rapazes de


muxaela não aceitaram a remuneração oferecida e nem a rota estabelecida para a
viagem e voltaram para suas casas deixando Henrique de Carvalho aturdido no
acampamento, que só teve como saída „rogar com ameaças‟ a ajuda do cacuata Tâmbu,
para quem enviou, a fim de conseguir carregadores, um intérprete e dois rapazes lundas.
Estes levaram o seguinte recado, caso o dirigente lunda recusasse ajuda: de „dizer a
Muene Puto que não mandasse mais filhos seus visitar o muatiânvua e tampouco
consentisse que de suas terras saísse mais negócio para as d‟elle‟. 23

As exigências impostas pelos muxaelas são exemplares por demonstrar o poder de


barganha que os grupos de carregadores detinham, dada à dependência dos estrangeiros
em relação ao seu trabalho. Embora, não tenham conseguido que fossem aceitas suas
prerrogativas, porque dessa vez o chefe da expedição teve com quem se salvar, o
cacuata Tambu, para os muxaelas a não permanência significava que, da mesma forma
que Henrique de Carvalho, também tinham outras opções, visto que „não lhes era
possível afastarem-se nesta epocha, por muitos dias, das suas casas‟.

Em muitos casos os carregadores eram pequenos produtores que acorriam às caravanas


comerciais e às expedições europeias em busca de pequenas transações e trabalho
temporário para compor o ganho de sua sobrevivência. Como bem lembrou a
historiadora Jill Dias, dificilmente identificado nas fontes coloniais, carregador era uma
denominação genérica que abarcava toda a população negra da África centro-ocidental,

23
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. II, p. 200.

24
que „não passava de uma reserva de mão de obra‟, entre a qual não se distinguia
nenhuma categoria social, reconhecendo-se somente os patrões, isto é, „os chefes
linhageiros das aldeias, responsáveis pelo fornecimento aos agentes coloniais, a seu
pedido, daqueles carregadores‟.24

Em decorrência dessa situação, o entendimento do processo violento do controle da


força de trabalho africana necessita ser realizado do ponto de vista da sua resistência
cotidiana face às imposições, tanto da administração colonial portuguesa, quanto das
próprias elites africanas.

Por isso, entender o poder de barganhar destes carregadores é compreender desde suas
formações sociais, modos de vida e até aspirações. Esta é uma premissa que nos
proporciona uma visão para além da sobrevivência material.25 O perscrutar, por
exemplo, a existência de associações horizontais entre os diferentes grupos de trabalho
envolvidos com as expedições europeias, em um nível em que se tente desvelar suas
noções de direito e de dever, quiçá como nos ensinou Maria Cristina Wissenbach
quando revelou a importância de se atentar para as aspirações de homens e mulheres em
sua luta cotidiana contra a realidade dura.

A partir da análise da documentação judiciária e tomando emprestada a distinção de


Michelle Perrot entre reivindicação e aspiração, na qual reivindicar constitui um espaço
estreito de negociação, já que se reivindica o que é possível consensualmente, enquanto
que aspirar é tentar transformar por meio dos arranjos diários da sobrevivência a
realidade dura em favor dos desejos e sonhos, a historiadora nos revelou casos de
escravos e forros da São Paulo das décadas entre 1850 e 1880 em que pôde apreender
concepções de mundo e de liberdade em espaços improvisados de autonomia que
significaram movimentos políticos de sobrevivência. 26

24
Cf.: DIAS, Jill. Angola. In: ALEXANDRE, V.; DIAS, J. Nova História da Expansão Portuguesa. O
império africano 1825-1890. Lisboa: Editorial Estampa, v. X, 1998, p. 357.
25
Subjacente às ideias de „negociação‟, „noção de direitos‟ e „fluidez da concepção de resistência‟ existe
logicamente a referência ao trabalho do historiador E.P. Thompson, em especial, aos artigos sobre
economia moral publicados na coletânea Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
26
Cf.: WISSENBACH, Maria Cristina C. Sonhos africanos, vivências ladinas. Escravos e forros em São
Paulo, 1850-1880. São Paulo: Hucitec; História Social USP, 1998, p. 32.

25
Neste sentido, o esforço investigativo de Maria Cristina Wissenbach, que resultou na
visualização de uma não quebra total com a realidade de forças desiguais por parte da
população mais sofrida de São Paulo, mas sim uma adequação possível a ela, é
significativo para o nosso estudo sobre os diferentes trabalhadores africanos no contexto
de abusos exercidos pelos europeus na partilha dos seus territórios e nas distintas formas
de exploração.

Além disso, esta questão dos trabalhadores centro-africanos pode nos remeter para a
situação angolana atual. Voltando à afirmação de Alfredo Margarido, sobre o estudo dos
carregadores significar um desenho do retrato do colonialismo português em Angola, 27
chegamos à ideia da pertinência do diálogo com o passado, no tocante à precariedade do
cotidiano atual do trabalhador angolano, uma realidade que também não é desconhecida
de nossa sociedade brasileira.

Neste sentido, entendemos que nossa pesquisa também se inscreve naquela vertente que
tão bem explicou a historiadora Maria Odila da Silva Dias,

“... [neste tipo de estudo] o conhecimento histórico tende para o


configurativo e o perspectivista; nele um tema é construído a partir do ponto
de vista do historiador que, imerso em sua contemporaneidade, consegue
iluminar um fragmento do passado por meio das fontes, entabulando com
elas um diálogo...”. 28

Mais ainda, para nós brasileiros, olhando em termos das relações históricas que
mantiveram Angola e Brasil ligados, um estudo que olhe para as regiões lundas e
lundaizadas,29 pelas quais passou a expedição de Henrique de Carvalho, pode significar
uma contribuição para a história de uma parte dos escravizados que foram trazidos para
cá, entre o final do século XVIII e a primeira metade do XIX, no contexto de

27
MARGARIDO, Alfredo. Les porteurs..., p. 397.
28
Cf.: DIAS, Maria Odila Silva. Hermenêutica do quotidiano na historiografia contemporânea. Projeto
História. Revista do programa de estudos pós-graduados em História e do departamento de História da
PUC-SP. nº.17, nov. 98, p.234.
29
Lundaizado é o termo genérico utilizado pela historiografia contemporânea para designar os povos
tributários do império Lunda. No relato de Henrique de Carvalho, lundaizados são [na grafia do autor]
xinjes, muxaelas, bangalas, quiocos, entre outros.

26
interiorização das redes de escravização na África centro-ocidental, como sugere Joseph
Miller. 30

À medida que os trabalhos sobre o tráfico atlântico se afirmam, ou se tornam mais


extensos, é possível vislumbrar cada vez melhor a procedência dos escravizados que
foram trazidos para o Brasil. No levantamento realizado por Mary Karasch em seu
trabalho sobre A vida dos escravos no Rio de Janeiro, entre os anos de 1830 e 1852,
eram do norte de Angola 19% dos escravizados do total de todas as áreas escravistas
arroladas: as Áfricas ocidental, centro-ocidental e oriental. Destes, 53% provinham ou
eram identificados com as áreas lundaizadas, conjuntos identitários pouquíssimo
mencionados nos estudos sobre o tráfico. Eram eles os bonbas, os cassanjes, os
cucungos, os coizas, os cojocos, os pulondas, os nuquelôas, os colués, os molués, os
matiavos, os lundes, os samuimbos, entre outros. 31

Em última instância, parafraseando o africanista Alberto da Costa e Silva, o estudo em


geral da história africana está

“...para nós, brasileiros, porque ajuda a explicar-nos. Mas é importante


também por seu valor próprio e porque nos explica o grande continente que
fica em nossa fronteira leste e de onde proveio quase a metade de nossos
antepassados. Não pode continuar o seu estudo afastado de nossos
currículos, como se ela fosse matéria exótica. O oba do Benim ou o angola a
quiluanje estão mais próximos de nós do que os antigos reis da França.” 32

30
Para tanto, ver: MILLER, Joseph C. África Central durante a era do comércio de escravizados, de
1490 a 1850. In: HEYWOOD, Linda M. Diáspora Negra no Brasil. (trad. Ingrid C. V. Fregonez, Thaís
Cristina Casson e Vera Lucia Benedito) São Paulo: Contexto, 2008, p.65.
31
Cf.: KARASCH, Mary C. Apêndice A: Origens africanas do Tráfico de escravos para o Rio de
Janeiro, 1830-1852. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Cia das Letras,
2000, p. 481-496.
32
Cf.: COSTA e SILVA, Alberto da. Os estudos da História da África e sua importância para a História
do Brasil. Abertura da IIª. Reunião Internacional de História da África. In: A dimensão atlântica da
África. São Paulo: CEA/USP; SDG-Marinha; CAPES, julho de 1996, p. 20.

27
Relatos de viagem como fonte historiográfica

As implicações teóricas e metodológicas de nossa pesquisa incidem sobre a


problemática da utilização dos relatos de viagem como fonte da história africana. De
maneira geral, esta questão já foi tratada por importantes estudiosos como Edward Said
e Mary Louise Pratt que ressaltaram a relevância de prestarmos a atenção aos níveis de
discursos presentes nos diferentes relatos produzidos. 33

De modo mais particular, sobre as narrativas que se referem ao continente africano, os


diversos autores reunidos na coletânea organizada por Beatrix Heintze e Adam Jones e
também as historiadoras Isabel de Castro Henriques e Maria Emília Madeira Santos,
mais preocupadas com as produções sobre as regiões de colonização portuguesa,
destacaram o caráter eurocêntrico presente nas descrições dos agentes europeus, sua
natureza parcial, quanto às interpretações culturais generalizantes e imprecisas,
baseadas em discursos ideologizados pela predominância civilizacional europeia. 34

Em especial, as obras destes autores nos ajudam a compreender questões da produção e


divulgação dos relatos de viagem. Entre outras, a prática do plágio, problema
metodológico que vem sendo debatido pela historiografia contemporânea, que significa
a cópia sem referências de informações de outros relatos, frequentes nas obras dos
chamados „compiladores de poltrona‟, aqueles editores e autores que nunca estiveram
nas regiões descritas, mas que publicaram narrativas muito apreciadas por um público
europeu ávido de conhecer o „exótico‟. E, ainda, na questão das apropriações
sucessivas, também relacionadas aos próprios viajantes que se preparam de forma
prévia para sua viagem com informações sobre a região a ser visitada e que na ação de
sua escrita podem ter deixado pouco espaço para conclusões próprias. 35

33
Ver: SAID, E. Orientalismo. São Paulo: Cia das Letras, 1990 e PRATT, Mary L. Os olhos do império.
Relatos de viagem e transculturação. Bauru: Edusc, 1999.
34
Ver: HEINTEZ, Beatrix e JONES, Adam (org.) European Sources for Sub-Saharan African before
1900. Uses and Abuses. Paideuma, n.33, Stuttgart, 1987; HENRIQUES, Isabel de Castro. Presenças
angolanas nos documentos escritos portugueses. In: Actas do II Seminário Internacional sobre a
História de Angola. Construindo o passado angolano: as fontes e a sua interpretação. Lisboa: Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, p. 26-62 e SANTOS, Maria
Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África. Lisba: Centro de Estudos
de História e Cartografia Antiga do IICT, 1988.
35
Cf.: JONES, Adam e HEINTZE, Beatrix. Introduction. Paideuma, p.1-17. Em específico sobre a
questão do plágio em diferentes perspectivas ver: VANSINA, J. “The many uses of forgeries – The
case of Douville‟s Voyage au Congo.” History in Africa. 31, 2004 e LAW, Robin. “Problems of

28
Por fim, as modificações que os relatos sofreram no processo de edição, seja pela
ausência do autor-viajante nesta fase, seja pela interferência de eventos e pessoas não
anotados nos diários de viagem, porém lembrados posteriormente por meio das lentes
embaçadas da memória ou informações modificadas intencionalmente por razões
posteriores a viagem, não somente aquelas de cunho pessoal, mas também as referidas
ao debate social de sua época.

Portanto, para além das simples anotação das informações que encontramos nos relatos
análise interna
das fontes. de viagem que analisamos, houve a necessidade de examinar elementos sobre os seus
autores, relacionados às suas origens, profissões, interesses e noções de direitos e
deveres – num movimento parecido ao que utilizamos no exame do próprio objeto de
estudo, no caso, os trabalhadores africanos.

Além disso, na questão teórica especificamente relacionada aos trabalhadores africanos,


agência o esforço investigativo do discurso de agentes exteriores para tentar entender o espaço
de possíveis agências africanas não significa a premissa da ausência da dimensão da
opressão, mesmo quando essas agências destacam protagonismos que fazem parecer
como uma espécie de facilitação à política colonialista europeia sobre os territórios
africanos.

Pelo contrário, compreendemos que este foi um processo dialético no qual a agência
africana acabou por se voltar contra si mesma, também no sentido de uma violência
epistemológica na produção de um conhecimento que contou com a participação de
informantes, guias e intérpretes africanos.

Por isso, como bem argumentou o historiador Alexsander Gebara, não se trata de
África: para a-
lém dos dualis- recuperar „vozes de vencidos‟, mas entender a atuação de grupos originários de
mos.
territórios que passaram a ser conhecidos como África, num espaço atlântico de
interação que deve ser entendido para além dos simplismos ou dualismos, exatamente

Plagiarism, Harmonization and Misunderstanding in Contemporary European Sources. Early (pre-


1680s) Sources for the „Slave Coast‟ of West Africa”. In: JONES, Adam e HEINTZE, Beatrix.
Paideuma, do qual foi retirada a expressão „armchair compiler‟. Este último historiador, Robin Law,
nos lembra também a importância de considerarmos nesta questão a característica do mercado editorial
até o século XVIII, sobre a maior liberdade dos editores em parafrasear, cortar e até mesmo adicionar
informações aos textos.

29
porque os termos identitários africano e europeu não conseguem abarcar o todo
complexo da existência de pessoas originárias destas regiões.

“Desta forma, é preciso pensar no espaço de produção do conhecimento


não se esquecer das desigualda- „ocidental‟ de maneira ampliada, como um espaço interativo, relacional que
des que haviam entre as partes. se constitui simultaneamente ao processo material de expansão imperial. Ao
utilizar este enfoque, a análise do discurso colonial ganha outros contornos.
Não mais se limita a demonstrar a violência epistemológica exercida sobre
os não europeus, mas ao fazer isto, recupera as experiências de embates,
resistências e colaborações oriundas do contato cultural e material que criam
as necessidades de representações que constituem o próprio discurso
colonial.” 36

Assim, reafirmamos a pertinência dos relatos de viagem como fonte historiográfica do


trabalho africano, por permitir a busca, além de suas representações, dos papéis
históricos de pessoas que, embora com presença ostensiva, foram ao longo do tempo
socialmente desvalorizadas, em um movimento semelhante ao exposto pela historiadora
Maria Odila Leite da Silva Dias quando justificou a viabilidade e a importância do seu
estudo sobre as mulheres da São Paulo do século XIX:

“[a] memória social de suas vidas [foi-se] perdendo antes por um


esquecimento ideológico do que por efetiva ausência dos documentos. É
verdade que as informações se escondem, ralas e fragmentadas, nas
entrelinhas dos documentos, onde pairam fora do corpus central do conteúdo
explicito. Trata-se de reunir dados muito dispersos e de esmiuçar o implícito
[...] É uma história do implícito resgatada das entrelinhas dos documentos,
beirando o impossível, de uma história sem fontes...”. 37

Esta perspectiva teórica e analítica é similar ao movimento realizado, na década de


1980, pela historiografia social da escravidão no Brasil, que retomando o uso de
processos criminais – documentação tida até então como própria dos agentes
repressores e, portanto, externa aos escravizados – conseguiu comprovar a sua
importância para o entendimento tanto do papel dos escravizados como agentes
históricos, quanto da dinâmica histórica da escravidão. Assim, as questões postas no

36
Cf.: GEBARA, Alexsander. A África de Richard Francis Burton. Antropologia, política e livre-
comércio, 1861-1865. São Paulo: Alameda, 2010, p.16.
37
DIAS, Maria Odila L. S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense,
1984, p.7 e 10.

30
presente estudo, no que concerne a utilização dos relatos de viagem, por vezes
entendidos como ficção, por outras como representação do real, em suma, como fontes
externas aos africanos, aproximam-se do constante questionamento e esforço
promovidos por esta vertente da historiografia brasileira.

Em vista disso, nos termos de uma reflexão documental mais pontual e crítica,
encaramos a obra do major português Henrique de Carvalho de maneira mais alargada,
como um gênero que abarca em si um conjunto de documentos – cartas, ofícios,
relatórios, fotografias, entre outros, produzidos pelos portugueses componentes da
expedição e pelos africanos, ambaquistas, intérpretes e carregadores. 38

Nesta perspectiva, foi necessário promover um estudo sobre a composição dos


documentos em análise, desde a investigação dos seus autores, passando pelo contexto
de sua produção, até a natureza de sua divulgação. Nesta estratégia a questão
metodológica que se impôs foi a filtragem da informação relatada comparada ao
universo de produção do próprio documento, num sentido semelhante ao proposto por
Beatriz Heintze e Adam Jones: „quando lemos um relato italiano sobre matrimônio ou
práticas de guerra na África, nós podemos comparar isto com o que sabemos sobre
matrimônio ou guerra na Itália do relator‟.39

Outro exercício foi considerar também o papel dos acompanhantes locais dos viajantes
portugueses, uma vez que serviram de principais informantes dos costumes e da história
das populações africanas. E, ainda, aproximar o relato analisado, a Descripção da
viagem à Mussumba do Muatiânvua, a outras publicações de Henrique de Carvalho para
verificar se há diferenças discrepantes de escrita e de concepção de ideias.

A pertinência de analisar estes pontos arrolados está no entendimento de possíveis


legados epistemológicos sobre a história africana, expressos nos documentos e no „pano

38
Além dos trabalhadores, carregadores, guias e intérpretes, a expedição portuguesa a mussumba do
muatiânvua era composta pelo empregado português Augusto Cesar, pelo major Henrique Augusto
Dias de Carvalho (chefe), pelo farmacêutico Augusto Sisenando Marques (subchefe) e pelo capitão
Manuel Sertório de Almeida Aguiar (ajudante). Sendo que além de Carvalho, Sisenando Marques
escreveu o volume sobre o clima, a geografia e as produções das regiões centro-africanas e Manuel
Sertório produziu as fotografias que integraram o albúm da expedição. Para a citação completa das
obras da expedição ver a seção Bibliografia e Fontes no final deste trabalho.
39
Cf.: JONES, Adam e HEINTZE, Beatrix. “Introduction”. Paideuma, p. 4 [tradução minha]

31
de fundo‟ de sua produção, no sentido de uma dialética entre memória e evento, como
observou Richard Price:

“... No nível mais simples, afirmo que, para compreender plenamente o


„discurso‟ (a memória coletiva e os modos pelos quais se atribui sentido a
figuras como a escravidão, a resistência, ou a África da atualidade),
devemos, simultaneamente, considerar o „evento‟ (a demografia – inclusive
a etnicidade – ao longo do tempo, a sociologia e a economia de
determinados regimes das plantations e assim por diante). E que, para
compreender o „evento‟ ou a „história‟, devemos também considerar o
„discurso‟ e a ideologia ...”.40

***

Declarado o vínculo de nossa pesquisa com a historiografia da escravidão no Brasil,


devemos dizer ainda que os seus trabalhos nos ajudaram também na reflexão sobre a
legislação abolicionista portuguesa.

Esta tendência teórico-metodológica, que associa o estudo da legislação às ferramentas


da história social, propõe que devemos levar em conta concepções de liberdade no
contexto jurídico da abolição gradual, porque “a lei [revela-se] como mediação
substancial nas relações sociais, instrumentalizando e prenunciando os movimentos de
expropriação e concentração da propriedade capitalista”. Neste sentido de mediação
social, esta orientação foi importante para compreendermos a questão jurídica do
trabalho africano nas áreas de colonização lusa: como a legislação foi influenciada e
influenciou visões de liberdade, produção e trabalho, como pretendemos demonstrar no
primeiro capítulo desta pesquisa. 41

Outro tópico importante para a abordagem do tema foi o recurso à historiografia que
trata da história dos trabalhadores em Angola, em específico, aquela que aborda as
diferentes modalidades de trabalho, o escravizado e o compulsório, no caso deste

40
PRICE, Richard. O milagre da crioulização: retrospectiva. Estudos Afro-Asiáticos. Ano 25, nº. 3,
2003, p. 406.
41
Para o trecho citado ver a análise de Maria Cristina Wissenbach do estudo realizado por Thompson
sobre a lei negra de 1783 em Sonhos africanos, vivências ladinas ..., p.23. Outro trabalho importante
que segue a mesma orientação é o de Joseli M. Mendonça sobre a lei dos sexagenários de 1875: Entre
as mãos e os anéis. A lei dos sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Editora da
Unicamp, 1999.

32
último, as pesquisas que se referem ao serviço forçado dos carregadores nos territórios
africanos. Nesta linha de interpretação, além do estudo de Alfredo Margarido, Les
porteurs: forme de domination et agents de changement em Angola, que nos alertou
para o modo e a intensidade da pilhagem do colonialismo português, podemos apontar
também os vários trabalhos de Jill Dias, Aida Freudhental, Isabel de Castro Henriques e
Beatrix Heintze. 42

Quanto a esta última historiadora, é mister apontar o seu Pioneiros africanos como um
beatrix
heintze dos principais textos com os qual dialogamos e obtivemos uma série de informações e
testemunhos. As considerações contidas no trabalho de Beatrix Heintze referem-se
especificamente ao objeto de estudo que elegemos para esta pesquisa, que também
utiliza, em grande medida, como fonte historiográfica, a obra de Henrique de Carvalho.

De outra parte, a pesquisa da historiadora alemã se mostrou profícua para análise


documental comparativa, uma vez que contém trechos dos relatos dos exploradores
alemães que podemos relacionar com o discurso de Henrique de Carvalho, bem como
parte das fontes guardadas nos arquivos portugueses e angolanos, que nos foram
inacessíveis, especialmente o conjunto de fotografias publicadas no seu estudo e que
compõe o Álbum de Fotografias da Expedição Portuguesa ao Muatiânvua 1884/1888
de Manuel Sertorio de Almeida Aguiar (fotografias) e Henrique Augusto Dias de
Carvalho (anotações).

Sobretudo, as biografias reveladas em Pioneiros africanos nos mostraram a


possibilidade de um estudo aprofundado dos trabalhadores da expedição a partir da obra
de Henrique de Carvalho.

Junto com essa bibliografia sobre a questão do trabalho, examinamos textos que tratam
da história em geral de Angola. Utilizamos para tanto estudos mais clássicos como os de
Joseph Miller, Maria Emilia Madeira Santos, Jill Dias, Isabel de Castro Henriques e de
Elikia M‟Bokolo. São obras e artigos científicos que consultamos com certa frequência,
pois constituem a base das informações que dispomos sobre o tema analisado.

42
Para a citação completa dos trabalhos mencionados nesta discussão historiográfica ver a seção Fontes
e Bibliografia no final deste estudo.

33
De temáticas específicas, outros estudos analisados foram aqueles que dizem respeito à
imprensa de Luanda e outras regiões, como Benguela e Moçamedes, produzidos por
Mario Antonio F. Oliveira, Aida Freudhental, Rosa Cruz e Silva e Fernando Gamboa,
que serviram também como material documental, uma vez que apresentam artigos da
imprensa angolense de fim de século, que também discutia a questão do trabalho
africano.

Já os estudos de Manuela Cantinho Pereira e Sérgio Campos Matos foram importantes


para nos ajudar a compreender o contexto português finissecular de produção de
conhecimento sobre os territórios africanos. São estudos sobre intelectuais e instituições
da época, como a Sociedade de Geografia de Lisboa, que ajudaram a fomentar a
colonização nos tempos iniciais. A compreensão destas atuações nos proporcionou o
dimensionamento da natureza dos escritos que analisamos nesta pesquisa.

De cunho metodológico, o trabalho da escritora angolana Ana Paula Tavares nos ajudou
a refletir sobre a estrutura narrativa dos quatro volumes da Descripção da viagem a
Mussumba do Muatiânvua. Este importante estudo destaca também o resgate da obra de
Henrique de Carvalho na Angola atual, especificamente, no que concerne o papel do
mito de fundação do império Lunda, registrado pelo militar português em fins do XIX,
na construção da nacionalidade angolana no pós-independência, e em especial, na
releitura do mito pelo escritor Pepetela, em seu romance Lueji, o nascimento de um
império.

Deste modo, levando em consideração as inquietações e os propósitos apresentados,


como estrutura narrativa desta pesquisa, propomos no primeiro capítulo a análise da
legislação abolicionista portuguesa, porque entendemos que nela existe desde seus
primeiros projetos apresentados no parlamento a intenção colonizadora pelo controle da
força de trabalho africana que se tornou mais evidente em fins do século XIX com a
racialização da legislação e o avanço administrativo e militar português sobre os
territórios africanos.

Em seguida, no segundo capítulo, sobre o contexto do imperialismo luso, marcado por


uma necessidade de „reaportuguesar‟ a nação, pontuamos as diferenças de pensamento e

34
projeto entre os homens políticos portugueses. Neste sentido, por meio dos interstícios
presentes no discurso imperialista de Henrique de Carvalho, elaboramos uma reflexão
que pretendeu ultrapassar os dualismos que buscaram separar civilização de barbárie, ou
ainda, desenvolvimento capitalista de atraso econômico, destacando a possibilidade de
reconhecermos protagonismos africanos.

No terceiro capítulo, tratamos dos espaços africanos representados ou „cartografados‟ na


narrativa de viagem de Henrique de Carvalho. Na primeira parte, discutimos a
construção das representações de mundo dos europeus a partir de um olho soberano que
pretendeu ordenar a paisagem por meio da arquitetura, artes, literatura, cartografia,
ciência etc. Ao longo do tempo, este mesmo olhar desenvolveu um senso de
superioridade relacionado a outros povos como os africanos. Neste desenvolvimento,
destacamos o olhar dos portugueses que lhes possibilitou o entendimento de sua
existência no mundo como um modo peculiar. Na segunda parte, discutimos a produção
de paisagem pelas sociedades africanas que – acreditamos – igualmente formularam
seus espaços de poder por meio da apropriação prática e simbólica destes, também
como um modo de ver.

Estas análises são importantes para entendermos as descrições de Henrique de Carvalho


e, a partir delas, as configurações sociais contatadas nos caminhos da viagem até a
mussumba. Com este direcionamento investigativo objetivamos alcançar os significados
das relações entre os diferentes grupos de trabalhadores da expedição e as sociedades
locais.

Por fim, no último capítulo, resgatados dos interstícios dos documentos analisados e
para além das intenções colonizadoras dos portugueses, tratamos especificamente da
agência dos trabalhadores angolanos e em especial dos contratados da expedição
portuguesa à Lunda.

Esta agência encontra-se explicitada nas circunstâncias em que os trabalhadores


africanos incorporaram a seus atos valores ou sentidos que lhes eram próprios: os
diferentes entendimentos sociais de fuga, tais como registrados na documentação –
vatira, shimbika [chimbika] ou tombika; percepções outras mobilizadas pelo debate
abolicionista, as fugas estimuladas com os rumores sobre a abolição e, ainda, a

35
consciência da legislação nas estratégias de enfrentamento nas esferas legais da
sociedade colonial.

Tal delineamento argumentativo sobre o trabalho africano realizado nas regiões de


colonização portuguesa serviu para melhor entender a experiência dos loandas, grupo
de trabalhadores que participou da expedição portuguesa à Lunda, sobretudo, no que
concerne à maneira como encaravam o contrato de trabalho firmado com Henrique de
Carvalho e, a partir dela, a compreensão de suas crenças e concepções de autonomia e
identidade social.

36
1. Controle da mão de obra africana e administração colonial:
faces convergentes da política portuguesa oitocentista

37
Segundo a historiografia em Portugal, a problemática emancipacionista do trabalho
escravizado deve ser entendida à luz dos processos desencadeados pela independência
do Brasil ou, para alguns, pela desintegração do império luso-brasileiro. Assim, para os
políticos portugueses que pretendiam a formação em África de novos brasis, importante
era cuidar, em um primeiro momento, da abolição do tráfico de escravizados, no sentido
de tentar dissipar, sobretudo, as relações diretas entre as regiões angolanas e
brasileiras.43

Em parte, este é o entendimento do historiador Valentim Alexandre que defende a


necessidade do projeto colonial português ser pensado para além das pressões externas,
nomeadamente inglesas, sob pena de cair em um preconceito teórico que considera
“como estagnadas ou como „irracionais‟ as sociedades que não se desenvolveram
segundo o modelo das zonas de capitalismo mais avançado”. 44

Em um movimento interpretativo semelhante ao de Alexandre, a historiadora Miriam


Halpern Pereira, ao discutir a vigência de duas leituras clássicas da sociedade
oitocentista portuguesa que preconizam os temas da decadência e do
subdesenvolvimento, propõe que a expansão colonial e a dependência externa não
sejam compreendidas de maneira estática, de natureza sempre idêntica, de forma a
ressaltar também o seu caráter imperialista.

Em específico, sobre o tema da decadência, divulgado com intensidade no período da


partilha pelos europeus dos territórios africanos e asiáticos, ele foi celebrizado por
Antero de Quental em As causas da decadência dos povos peninsulares, no qual
defendeu a tese da „progressiva perda de um lugar de vanguarda e a passagem de
Portugal para um segundo plano na história europeia‟. Segundo Halpern, o motivo

43
Bastante mencionada pela historiografia é a cláusula no tratado de Paz e Reconhecimento de 1825
sobre a aceitação da independência brasileira por Portugal estar condicionada à não anexação de
regiões africanas ao império que se formava. Para uma análise do mesmo tratado e da comissão mista
composta com o intuito de arbitrar litígios quanto aos bens daqueles que se consideraram a partir de
então brasileiros ou portugueses, entre os quais comerciantes com negócios na África, ver: RIBEIRO,
Gladys Sabina. Desenlaces no Brasil pós-colonial: a construção de uma identidade nacional e a
Comissão Mista Brasil-Portugal para o reconhecimento da Independência. Disponível em:
http://www.historia.uff.br/artigos/ribeiro_desenlaces.pdf. Último acesso em: dezembro de 2009.
44
Cf.: ALEXANDRE, Valentim. O liberalismo português e as colônias de África (1820-1839). Velho
Brasil Novas Áfricas: Portugal e o Império (1808-1975). Porto: Afrontamento, 2000, p. 121.

38
para aceitação e divulgação deste tema no pensamento português é devido ao seu
discurso superficial contra o imperialismo. 45

Considerando as proposições de Halpern e Alexandre, podemos compreender que as


soluções para os problemas que mais afligiram os governantes portugueses no século
XIX, a saber: a abolição do Antigo Regime, a promoção da independência econômica
do reino em relação à Inglaterra e a reconversão de uma economia baseada no império
que tinha como eixo Brasil-Angola, caminharam no sentido de promover uma política
que continuasse 'a via da expansão colonialista', a partir de então mais preocupada com
os territórios africanos.

Neste sentido, esta política tentava ainda a conciliação dos interesses de grupos sociais
antagônicos no plano interno da sociedade lusa, que viviam em constantes tensões.
Como no caso da disputa econômica entre os partidários do livre-cambismo e do
protecionismo, respectivamente, entre a burguesia industrial algodoeira composta de
produtores de tecidos crus com negócios no Brasil e na África e os industriais do setor
da estamparia, finalizadores dos tecidos ingleses. 46

Prósperas desde os primeiros acordos anglo-portugueses assinados entre os séculos


XVII e XIX, entre eles o famoso tratado de Methuen de 1703, conhecido como Panos e
Vinhos, o desenvolvimento destas burguesias comercial e industrial foi possível devido
à posição intermediária dos portos portugueses no comércio do Atlântico Sul com as
regiões da Europa setentrional. Este embate de interesses econômicos divergentes
ligados ao comércio de tecidos nos territórios africanos foi visível também no final do
século XIX, no contexto de avanço do colonialismo português.

45
Sobre o tema do subdesenvolvimento, que ao longo do século XX sobressaiu ao de decadência, a
mesma historiadora atribui esta leitura à historiografia de cunho econômico que tendeu a „designar o
defasamento da grande maioria dos países inseridos no sistema capitalista em relação a um centro
mais avançado‟. Cf.: PEREIRA, Miriam H. Decadência ou subdesenvolvimento: uma reinterpretação
das suas origens no caso português. Análise Social. Vol. XIV, nº. 53, 1978, p. 9.
46
Cf.: ALEXANDRE, Valentim. O liberalismo português e as colônias de África..., p. 135. Para uma
visão diferente sobre o [não] interesse da burguesia portuguesa na colonização de territórios africanos,
ver: MARQUES, João Pedro. Os sons do silêncio: o Portugal de Oitocentos e a abolição do tráfico de
escravos. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1999, especialmente o
capítulo „Impasses coloniais: novos Brasis ou verdadeiras Áfricas?‟.

39
Na década de 1880, por exemplo, esta questão foi discutida pelo comerciante Custódio
Machado na correspondência que enviou a Henrique de Carvalho, chefe da expedição
portuguesa à Lunda. Sobre a concorrência das casas comerciais de Manchester e da ação
de seus parceiros portugueses na região angolana escreveu:

africa: força de consumo


de mercadorias ingleses. "... em vez de educar e alimentar a nossa população com industrias, cujos
Portugal: intermediário; productos teem neste illimitado paiz tão largo consumo, preferem antes
não industrial. animar a industria e o commercio estrangeiro, servindo apenas de seus
intermediarios, para nos venderem essas mercadorias depois de haverem
tirado d´ellas um fabuloso lucro, alem da commissão, que se lhes paga por
tal serviço ...". 47

Tendo em mente este quadro de interesses, precisamente relacionado ao controle dos


territórios e da mão de obra africanos, podemos entender que os movimentos desde os
anos de 1820 e 1830 da política portuguesa, vistos em seus relatórios e projetos de lei,
apresentam formas características do pensamento colonialista atreladas ao discurso
abolicionista.48

Enquadrar-se-ia nesta nossa interpretação o projeto de lei do deputado José Antonio


Braklami, apresentado às Cortes na sessão de 11 de dezembro de 1826. Tal projeto
propunha para a colonização da África, entre outros: incentivos, abatimentos e isenções

47
Cf.: Correspondência de Custódio José de Sousa Machado ao chefe da expedição, inclusa 'Lista das
mercadorias que mais convem para os mercados do interior d'esta parte da Africa, por ser com ellas
que se fazem as permutações de cera, borracha e marfim, com os povos gentillicos - Tecidos e Varios
artigos de differentes industrias'. s/d In: CARVALHO, Henrique A. D. Expedição Portuguesa ao
Muatiânvua 1884-1888: Descrição da Viagem à Mussumba do Muatiânvua. Lisboa: Imprensa
Nacional, vol. I (De Luanda ao Cuango), 1890, p. 339-342.
48
Há que mencionarmos sobre a orientação abolicionista da política portuguesa dessa época a
interpretação do historiador João Pedro Marques que destaca o grande peso da pressão inglesa sobre
Portugal. Essa interpretação, que entendemos ser correta em parte, não compromete, a nosso ver, a
leitura sobre as intenções coloniais da política lusa, já que para além da importante variável „pressão
inglesa‟ é preciso considerar o poder institucional das sociedades africanas, a debilidade portuguesa no
controle das colônias litorâneas e todas as práticas comerciais que ligaram especialmente Angola ao
Brasil, como já apontou uma historiografia avalizada sobre o tema: ALENCASTRO, Luis Felipe. O
trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia das
Letras, 2000 e MILLER, Joseph. Way of Death. Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade,
1730-1830. Madison, University of Wisconsin Press, 1988. Sobre as controvérsias em torno do tema
do abolicionismo português ver o debate entre Valentim Alexandre e João Pedro Marques publicado
em diferentes edições da revista Penélope: MARQUES, J.P. Uma revisão crítica das teorias sobre a
abolição do tráfico de escravos português e ALEXANDRE, Valentim. Projecto colonial e
abolicionismo. Penélope. nº.14, p. 95-125, 1994; MARQUES, J.P. Avaliar as provas. Resposta a
Valentim Alexandre e ALEXANDRE, Valentim. 'Crimes and misunderstandings'. Réplica a João
Pedro Marques. Penélope. nº.15, p. 143-168, 1995; ALEXANDRE, Valentim. Sem sobra de pecado.
Tréplica a João Pedro Marques e MARQUES, J.P. O equívoco abolicionismo de setembro. Segunda
resposta a Valentim Alexandre. Penélope. nº.17, p. 123-151, 1997.

40
fiscais quanto ao comércio de produtos do reino em direção às colônias africanas
(artigos 1, 2, 3 e 4), a inexistência de um exclusivo colonial quanto aos portos de
comércio (artigo 5), o envio de missões de exploração e de evangelização (artigos 14 e
15) e, na política de fomento ao trabalho livre, a condecoração com hábitos das ordens
militares aos cidadãos portugueses que não utilizassem trabalho escravizado em seus
empreendimentos nos territórios africanos (artigo 12). Além do tom passadista, que
demonstra a singularidade das propostas para o fim do antigo regime português, há que
destacarmos no texto deste legislador a ideia do trabalho escravo como impedimento da
produtividade em série:

“Art. 12 - Sendo quase todos os trabalhos, e a maior parte dos serviços


campestres, e domésticos praticados na África por Negros escravos,
circunstância esta, que tanto se opõe ao adiantamento, e perfeição dos
mesmos trabalhos, e serviços, que medram, e se aumentam muito mais
exercidos por mãos livres; fica determinado que o Dono de Engenho, Roça,
ou outro estabelecimento, quer de Agricultura, Comércio, Indústria,
Navegação, Armações, etc. que se ajudar, e servir com homens forros,
brancos, ou pretos, portugueses, ou estrangeiros, na proporção de mais de
metade dos seus trabalhadores gozará dos Foros de Nobreza para si, e seus
filhos, e será condecorado com um dos Hábitos das Ordens Militares”. 49

Em uma „segunda geração‟ de escritos abolicionistas de políticos portugueses, o


ministro Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo, então visconde de Sá da Bandeira, no
relatório A Abolição do Tráfico de Escravos e o futuro da África Portuguesa de 1836
discutiu a possibilidade de eliminar a concorrência comercial brasileira com o fim do
tráfico atlântico, já que os brasileiros não mais poderiam contar com a força de trabalho
africana para suas lavouras e indústrias e nem lucrar com o comércio de humanos
escravizados.

Neste relatório, a direção do projeto colonial de Sá da Bandeira seguiu o mesmo sentido


do projeto de lei do deputado Braklami, da década anterior: isenções fiscais aos
negócios portugueses, incentivo ao trabalho livre e política de povoamento em favor de
população branca e livre a exemplo daquela realizada por ingleses na África do Sul e
por estadunidenses na Libéria:

49
Para tanto ver o projeto de lei, que não foi aprovado, em: “Um plano para as colônias. Proposição e
projeto de lei apresentados às Cortes pelo deputado Braklami, Diário das Cortes, sessão de 11/12/1826
da Câmara dos Deputados.” In: ALEXANDRE, Valentim. Origens do colonialismo moderno. Lisboa:
Sá da Costa, 1979, p. 92-100. (Portugal no século XIX. Antologia de Textos Históricos).

41
“... mas para isto é necessário [escreveu Sá da Bandeira] reformar
inteiramente a legislação colonial. Se pelo resultado se pode julgar o sistema
apartheid: referencia de de uma legislação, nenhuma poderá ser pior do que a das nossas possessões:
colonização para os séculos têm decorrido depois que se acham no domínio português; e pouco
portugueses. diferentes estão na civilização do que eram no tempo da conquista, enquanto
a vizinha colônia do Cabo da Boa Esperança em muito menos tempo tem
avançado rapidamente em população branca, e em riqueza; enquanto a nova
colônia americana denominada Libéria composta de negros livres, situada na
costa da Guiné, que não conta ainda três dezenas de anos de existência, tem
prosperado dum modo espantoso, e já vai lançando suas vistas cobiçosas
para a nossa ilha de Bolama, doentia sim, mas tão rica em madeiras, e tão
vantajosamente situada na foz do Rio Grande e do Rio de Geba.” 50

A consequência mais importante dos projetos de Sá da Bandeira foi o decreto da


abolição do tráfico a 10 de dezembro de 1836, uma vez que entendia que a colonização
dos territórios africanos e o controle do comércio de seus produtos dependiam em
primeira instância desta „lei capital, base da civilização e da prosperidade dos povos
africanos‟, pois sem ela – em uma intencional africanização do tráfico atlântico – „inútil
seria legislar, porque uma parte daqueles para quem são destinadas as leis, ou seriam
arrebatados para além do mar, ou eles mesmos continuariam a ocupar-se no tráfico e
nas guerras intestinas... ‟. 51

Contudo, uma coisa era a extinção do tráfico, outra bem diferente era decretar a
abolição da escravidão nas colônias litorâneas do continente africano. O mesmo
imediatismo exigido para o final do comércio atlântico de escravizados, com vistas ao
desenvolvimento do ultramar português, levando-se em conta também as pressões

50
Cf.: “Extrato do relatório do Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, Sá da
Bandeira (1836)”. In: ALEXANDRE, Valentim. Origens do colonialismo moderno ..., p.103 e 104.
Conhecida na historiografia portuguesa por questão da Bolama, o enredo clássico aponta, tal como Sá
da Bandeira, para as „pretensões estrangeiras‟ sobre a ilha de Bolama, na África Ocidental, as quais
estavam no bojo das frentes de colonização inglesa em território africano, no caso, no projeto dos
oficiais do exército inglês Beaver e Darrymple, em 1792. No desenvolvimento dos acontecimentos, as
disputas territoriais entre colonos ingleses, portugueses e bijagós, originários da região, acabaram por
serem arbitradas somente em 1870, pelo presidente dos EUA, Ulisses Grant, que decidiu em favor dos
portugueses. Cf.: REGO, A. Silva. O ultramar português no século XIX (1834-1910). Lisboa: Agência
Geral do Ultramar, 1966, p. 132. Sobre as implicações ideológicas da política abolicionista que
promoveu a colônia da Libéria – sendo uma delas, „levar os descendentes africanos para seu lugar de
origem‟ – como também sobre a resistência a esta ação dos libertos estadunidenses que tinham projetos
próprios, ver: BURIN, Eric, Slavery and the Peculiar Solution. A History of the American
Colonization Society. Gainesville: University of Florida Press, 2005.
51
Cf.: “Extrato do relatório do Secretário de Estado...”. In: ALEXANDRE, Valentim. Origens do
colonialismo moderno ..., p. 104.

42
externas, não se verificou na decretação de leis emancipacionistas que ficou marcada
por uma feição gradativa.

Sintomaticamente, a abolição da escravidão foi um tema progressivamente aflitivo para


os políticos portugueses desde, pelo menos, as primeiras discussões dos projetos de lei
da abolição do tráfico, apresentados nas décadas de 1820 e 1830 à Câmara dos Pares.
Com este panorama, não é de se admirar as brechas no decreto abolicionista do tráfico
de 1836, quanto à possibilidade ainda da condução de escravizados por terra e mar. 52

Além dos interesses de controle da mão de obra, tais „lacunas‟ nos textos legislativos
também podiam estar ligadas à questão da indenização dos proprietários de
escravizados, conforme podemos notar na fala do deputado Alexandre de Morais
Sarmento, que mesmo se dizendo abolicionista, nas seções de março e abril de 1836
propôs que se evitasse „falar muito em liberdade de escravos‟, já que Portugal não tinha
recursos para proceder como os ingleses que „tiveram o arrojo de se multarem em
duzentos milhões de cruzados para pagar indemnizações aos senhores‟. 53

Dentre os discursos parlamentares da época destacáveis são as crenças no abolicionismo


gradual da escravidão a partir do final do tráfico de escravizados. Desta forma,
acreditava-se que a inexistência de novas ofertas de braços faria com que os
proprietários tivessem que tratar melhor de seus escravizados remanescentes, algo que
elevaria o custo da mão de obra até não poder mais competir com o trabalho livre e
assalariado. Este paradoxo abolicionista, igualmente referido aos espaços coloniais
africanos, nos faz refletir sobre as reais vantagens do trabalho assalariado para os
empregadores. 54

52
Precisamente neste caso, nos artigos 2, 3, e 4 a concessão aos colonos transportarem escravizados
entre regiões controladas pelos portugueses, desde que não ultrapassassem o número de dez e tivessem
a permissão das autoridades alfandegárias dos portos de embarque. Para tanto, ver o texto do decreto
de D. Maria II de Portugal, assinado por Antonio M. L. Vieira de Castro, Manuel da Silva Passos e
visconde de Sá da Bandeira, em: BIKER, Julio Firmino Judice. Collecção dos tratados, convenções,
contratos e actos publicos celebrados entre a coroa de Portugal e as mais potencias desde 1640.
Lisboa: Imprensa Nacional, 1880, vol.28, p.634-659.
53
Sobre as falas do deputado Alexandre de Morais Sarmento ver o estudo de João Pedro Marques em
Uma cosmética demorada: as Cortes perante o problema da escravidão (1836-1875). Análise Social.
vol. XXXVI, nº. 158-159, 2001, p. 211 e 215.
54
Para uma discussão aprofundada desta situação, ver o estudo do historiador estadunidense Eric Foner
sobre o Caribe inglês com o sugestivo título: Nada além da liberdade. A emancipação e seu legado.
Rio de Janeiro; Brasília: Paz e Terra; CNPq, 1988.

43
Neste sentido, no quadro de agitação política, a questão das indenizações significou a
resistência dos proprietários de escravizados aos projetos apresentados por Sá da
Bandeira ao parlamento luso nos anos de 1845, 1846, 1849 e 1850. Oposição que muito
influenciou os próprios legisladores abolicionistas, que assim contribuíram para o
emperramento do processo da abolição.

Porém, mesmo com todas estas contrariedades, a política emancipacionista portuguesa


acabou por se afirmar na vaga do grand experiment inglês justificada na propalada
incapacidade do autogoverno do africano e de seus descendentes nas Américas. De
acentuado gradualismo, esta política preconizou um período de aprendizagem para os
ex-escravizados sob a justificativa do abrandamento da transição da escravidão para o
trabalho livre. Sob a tutela dos senhores, argumentavam os políticos ingleses, criar-se-
iam novas bases de relacionamento capazes de remodelar a cultura do trabalho, que
eliminaria a pretensa natural indolência dos ex-escravos e dos africanos. 55

Na sequência da política abolicionista, após o decreto de supressão do tráfico, foi


assinado em 1842 um tratado com a Inglaterra que determinou o aprisionamento de
navios de bandeira portuguesa suspeitos de tráfico e a instauração de uma comissão
mista em Luanda para julgar os casos dos navios apreendidos e regulamentar os direitos
e deveres dos „resgatados‟.

Sob o emblema da promoção do trabalho livre na agricultura e na indústria e de acordo


com a política do aprendizado, insigne nestes casos foi que os africanos liberados pela
ação das esquadras inglesas e lusas foram entregues a proprietários de terras para
cultivo de produtos de exportação e a empresários que pretendiam desenvolver alguma
manufatura em territórios africanos.

55
Segundo Eric Foner, a derrocada da lei do aprendizado foi inevitável, “dadas à aspiração dos ex-
escravos a uma liberdade completa e imediata e a intenção dos fazendeiros [...] de manterem
obstinadamente o poder arbitrário sobre os negros”. Assim, no contexto de resistência escrava no
Caribe inglês, além das fugas das fazendas, outro fator importante foi a formação de um campesinato
negro que “resultou de uma série mais complexa de articulações e motivos [sendo] tanto uma resposta
às condições da emancipação quanto um legado da escravidão.” Para tanto, ver o seu supracitado
Nada além da liberdade ..., p. 36-37 e 39.

44
Como exemplo, enquadram-se nestes casos os colonos Valentino Pereira e José Soeiro,
estabelecidos em Moçamedes, que em 1850 contaram com vinte destes „resgatados‟
para trabalharem em sua fábrica de sabão. E, ainda, João Guilherme Pereira Barbosa
que, em 1846, recebeu do governo vinte e quatro libertos para auxiliá-lo nos seus úteis
trabalhos de cultura do café, na região do Cazengo.

Quanto a este último colono, na década de 1880, no tempo da expedição de Henrique de


Carvalho à Lunda, havia ainda o imaginário português de ter sido João Guilherme
Barbosa o iniciador do cultivo de café nesta região. Ignorando um provável
desenvolvimento anterior da cultura desta planta, esta memória referia-se a crença lusa
da inexistência entre as populações locais de uma intenção produtiva em larga escala, já
que os „pés de café, em 1837, quando Barbosa chegou ao Cazengo‟ eram vistos como
„silvestres‟. Partindo deste imaginário, Henrique de Carvalho destacou que o
conhecimento do agricultor, que vinha de experiências no Brasil, possibilitou 'devido
aos seus cuidados, um tal desenvolvimento que os indígenas da localidade o imitaram'.

Particularmente reveladora é a acusação que o mesmo expedicionário fez à inabilidade


governamental portuguesa quanto ao não desenvolvimento ao longo do tempo da
produção de café em grande quantidade devido à ausência de „protecção oficial de
capitaes‟, de não cuidar da „falta de braços e das dificuldades de transporte‟ e do erro
de „afastar o pequeno proprietário‟. A despeito de Henrique de Carvalho também
apontar para o problema da „baixa do preço do café na Europa‟, esta última acusação
remete-nos para o importante motivo dos diversos conflitos armados ocorridos na
década de 1870, que na documentação oficial foi chamada de resistência dos dembos: a
tentativa colonial de controle de terras na região do Cazengo.

Sobre as motivações destes conflitos, que nos permitem entender a orientação colonial
da política portuguesa ao longo do século XIX, o governador-geral de Angola,
Francisco Joaquim Ferreira do Amaral (1882-1886) não pode deixar de reparar que

"os proprietarios brancos têm absorvido todas as pequenas propriedades


dos indígenas, o que fizeram principalmente em 1874 no tempo da fome [...]
quando os pequenos proprietários [entenda-se, africanos], pela sua falta de
previsão, se constituiram na necessidade de vender primeiro os frutos
pendentes e depois o próprio terreno para se alimentarem a si e a suas
famílias. Hoje que vêem quanto perderam na precipitação da venda,

45
pretendem que já o lucro obtido pelos novos proprietários tem sido tal que
está forra em muito a quantia por que foram vendidos os diversos tratos de
terreno e a lucta entre as duas miserias, representadas pelas relações entre
os antigos pequenos proprietários e os actuaes possuidores de terrenos, é
igual à que existe entre estes e o Banco [Nacional Ultramarino], que se não
der remédio prompto e efficaz a este estado anomalo, encontrará
principalmente se não se construir o caminho de ferro de penetração [de
Luanda até Ambaca], fortes perdas dos capitaes empregados.” 56

Outro destino dos africanos liberados, como também de muitos escravizados que
prestavam serviços em Angola, foram as roças de café e cacau das ilhas de São Tomé e
Príncipe. A intensidade progressiva do transporte destes trabalhadores entre o litoral
angolano e as ilhas atlânticas forçou, logo em seguida, a regulamentação de tal prática. 57

Tal conformação legal deu-se por meio do anexo de um decreto baixado em 25 de


outubro de 1853, que concedeu a João Maria de Sousa e Almeida, posteriormente barão
de Agua-Izé, um terreno na Ilha do Príncipe para a instalação de uma exploração
agrícola. Apesar da determinação estabelecida no decreto abolicionista de 1836, sobre o
número de escravizados transportados não exceder a dez, o que já era uma exceção
acabou sendo alargada, porque a mesma disposição permitiu ainda a este concessionário
transportar cem (100) escravizados que possuía em Angola sob a condição de lhes
conceder carta de alforria. 58

56
Relatório de F.J. Ferreira do Amaral em: OLIVEIRA, Mário António Fernandes. Angolana
(Documentação sobre Angola) I (1783-1883). Luanda; Lisboa: Instituto de Investigação Científica de
Angola; Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1968, p.188. Sobre as afirmações de Henrique de
Carvalho, ver: Descripção ..., vol. 1, p. 122-123. Mais sobre as atividades de João Guilherme Pereira
Barbosa no artigo de Jill Dias O Kabuku Kambilu (c. 1850-1900): uma identidade política ambígua.
In: Actas do Seminário Encontro de povos e culturas em Angola. Lisboa: Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1995, p. 13-53.
57
Conforme lembrou João Pedro Marques em: Uma cosmética demorada..., p. 222.
58
Participante da rede do tráfico clandestino, na década de 1840, como sócio de firmas escravagistas
que controlavam barracões de escravos na região de Moçamedes, João Maria de Sousa e Almeida foi
um dos precursores a investir em roças de café nas ilhas atlânticas. Nascido na ilha do Príncipe,
estabeleceu-se primeiro em Angola como comerciante do tráfico, retornando depois à sua região natal
como concessionário de terras, onde criou, especificamente em São Tomé, a roça Agua-Izé, localidade
de onde surgiu seu título de barão, galardoado pelo rei português em 1868. O historiador Augusto
Nascimento argumenta que na década de 1870, depois da abolição da escravidão, os libertos preferiam
ficar nas pequenas roças dos ilhéus que eram diferentes das grandes roças como Água-Izé, que “em
geral pertença de europeus, [eram] afamadas pelos maus tratos e privação da liberdade.” Cf.:
NASCIMENTO, Augusto. São Tomé e Príncipe. In: ALEXANDRE, Valentim e DIAS, Jill (eds.).
Nova História da Expansão Portuguesa. O império Africano 1825-1890. Lisboa: Editorial Estampa,
1998, p. 296. Para uma análise das redes do tráfico considerado clandestino junto ao comércio de
exportação de produtos naturais em Angola, ver: WISSENBACH, Maria Cristina C. Entre caravanas
de marfim, o comércio da urzela e o tráfico de escravos: Georg Tams, José Ribeiro dos Santos e os

46
A partir deste caso, a regulamentação do trabalho dos escravizados transportados para
as ilhas atlânticas tomou a seguinte forma: no caso dos trabalhadores, a obrigação de
servirem por mais sete anos e de maneira gratuita aos seus senhores, observando-se que
no caso dos menores de 13 anos esta situação deveria perdurar até atingirem a idade de
20 anos (artigo 10). Sobre os deveres dos patrões, a obrigatoriedade da entrega da carta
de alforria aos seus trabalhadores, após serem batizados (artigo 1) e a responsabilidade
por sua alimentação, vestuário, instrução religiosa, vacinação e assistência médica
(artigo 15), sob pena dos novos empregados obterem sua liberdade (artigo 13). Para
fiscalizar o cumprimento dos deveres e dos direitos de ambas as partes foi criada a Junta
de Superintendência dos Libertos com sede em São Tomé (artigos 3 e 4).59

No decorrer da legislação trabalhista portuguesa e baseado no decreto de 1853, o artigo


7 do decreto de 14 de dezembro de 1854 generalizou as determinações sobre os direitos
e deveres dos escravizados transportados por terra entre as regiões continentais
controladas pelos portugueses. Mesmo sendo imediatamente declarados livres, estes
trabalhadores deveriam ainda servir aos seus senhores por mais dez anos. Outras
disposições deste mesmo decreto foram: a obrigação do registro dos escravizados, que
em caso de não ser realizado implicava na declaração automática destes à categoria de
libertos (artigos 1 e 9) e a declaração de livres para os escravizados pertencentes ao
Estado, com o dever de ainda o servirem por mais sete anos (artigo 6).

O decreto de 1854 estabelecia ainda a possibilidade da indenização pecuniária dos


proprietários pelos respectivos escravizados, isto é, da compra da carta de alforria
(artigo 31) e as situações nas quais a tutela dos libertos – assim chamado o prazo
estabelecido em lei para o trabalho dos ex-escravizados – poderia ser extinta: no caso de

negócios da África Centro-Ocidental na década de 1840. Ensaio sobre a obra Visita às possessões
portuguezas na costa occidental d´Africa, por Georg Tams, doutor em medicina, com uma introducção
e annotações, em dous volumes. Vertida do Inglez por M. G. C. L. Porto: Typographia da Revista,
1850, Fundação Biblioteca Nacional – Programa Nacional de Apoio à Pesquisa, julho de 2009.
59
Esta e outras disposições legais foram parcialmente analisadas a partir das transcrições contidas em
CUNHA, J. M. da Silva. O trabalho indígena. Estudo de direito colonial. (2ª. edição) Lisboa: Agência
Geral do Ultramar, 1954, p. p. 132-133, nota 8. Há que observarmos que não deixamos de levar em
conta em nossa análise os objetivos do estudo de Silva Cunha, patrocinado por agência do governo
colonialista português, de defesa lusa nos debates sobre a escravatura e o trabalho forçado promovidos
pela Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização Internacional do Trabalho (OIT), nas
décadas de 1940 e 1950.

47
conseguirem se graduar por alguma universidade ou se tornarem clérigos, oficiais do
exército ou da armada, professores, proprietários rurais, negociantes de grosso trato,
guarda-livros ou primeiro caixeiro, administradores rurais ou de fábricas ou ainda o
exercício de cargos públicos (artigo 33). Por fim, as determinações deste decreto
ficavam a partir de então sujeitas aos organismos criados e chamados de Juntas
Protetoras dos Escravos e Libertos (artigo 10). 60

Outro importante decreto do processo gradual da abolição, instrumentalizado pela


política do aprendizado, foi instituído em 24 de julho de 1856. Espécie de „lei do ventre-
livre portuguesa‟, determinou que nascessem livres os filhos das mulheres escravizadas,
porém com a obrigação de trabalharem para os proprietários das mães até a idade de 20
anos. Referendada por Sá da Bandeira, esta lei foi encarada pelo estadista como mais
um meio de promover o costume do trabalho entre os africanos, já que acreditava na sua
natural indolência. Tal determinação faria com que „sendo creados com os paes
escravos, e trabalhando com estes até terem vinte annos de idade‟, os libertos no ventre
materno achar-se-iam „habituados ao serviço, quando chegasse o tempo de ficarem
completamente livres.‟ 61

Outra deliberação relevante foi o decreto de 29 de abril de 1858, também assinado por
Sá da Bandeira, que determinou o prazo de vinte anos para a abolição total da
escravidão nos espaços coloniais africanos, isto é, para a data de 29 de abril de 1878.

No final década de 1860, prosseguindo no quadro legislativo emancipatório, outro


decreto instituiu para todos os escravizados o estatuto civil de liberto. Por esta
determinação legal, assinada em 25 de fevereiro de 1869, as relações trabalhistas ainda
obrigatórias daqueles libertos a partir de então deveriam ser regidas pelas disposições do
decreto de 1854 até a supressão total da escravidão, em 1878. A propósito destas
relações trabalhistas, as mesmas disposições possibilitaram e generalizaram a venda do
serviço dos libertos. Como bem lembrou o historiador João Pedro Marques, „a par de

60
O decreto de 1854 dispôs ainda a possibilidade da indenização de 5 mil réis fortes, paga no ato do
batismo, para a libertação de crianças escravizadas com até 5 anos de idade. Para o texto do decreto de
1854, ver: CUNHA, J. M. da Silva. O trabalho indígena ..., p.132-135.
61
Para os comentários do próprio estadista português sobre o decreto de 1856, ver: BANDEIRA,
Marquês de Sá da. O trabalho rural africano e a administração colonial. Lisboa: Imprensa Nacional,
1873, p.23.

48
um mercado de escravos, [passou] a haver igualmente um mercado de libertos, o que
constituía uma verdadeira aberração numa medida formalmente abolicionista‟.62

Dados práticos sobre esta questão podem ser observados nos jornais luandenses da
época, no crescente número a partir de 1869 de anúncios de oferta de aluguel de
63
serviços de libertos. Neste contexto legal – diga-se de passagem, difícil de
acompanhar – há ainda que mencionarmos, com vistas ao entendimento da
complexidade do estatuto do trabalho africano nos códigos lusos, as prescrições da Lei
de abril de 1875 e o Regulamento de novembro de 1878.

Preparando a supressão total da escravidão legal, a lei de 1875 determinou o fim do


estatuto dos libertos, decretado seis anos antes, para um (1) ano após a sua
promulgação, quando todos seriam declarados livres, mas ainda sob tutela pública e
com o dever de servir aos mesmos senhores até o ano de 1878. O historiador João Pedro
Marques entende que a lei de 1875 foi nada mais nada menos que a solução encontrada
para o problema da falta de mão de obra nas ilhas de São Tomé e Príncipe, já que ao
instituir as regras do contrato de trabalho possibilitava o envio de trabalhadores
chamados a partir de então de serviçais para prestarem serviços em regiões que não
aquelas de sua origem (artigo 6).64

Tanto assim foi que no próprio texto do decreto previa-se a contratação de trabalhadores
para as ilhas com o governo como órgão engajador e, mais insigne, a não permissão da
legalização de contratos suspeitos de tentarem promover o tráfico de escravizados:

“Artigo 24 - O governo, se achar conveniente, poderá auctorisar o


governador da provincia de S. Thomé e Principe a contratar, por conta da

62
Lembrando que o processo de mudança do estatuto civil dos escravizados para o de libertos iniciou-se
pelo artigo 7 do decreto de 1854, que dizia respeito somente aos escravizados do Estado e àqueles
transportados por terra e mar, conforme exposto anteriormente. Na ocasião, o parlamentar Afonso de
Castro, consciente da contradição das disposições do decreto de 1854, manifestou a sua preocupação
com as gerações futuras que, segundo ele, haveriam „de admirar-se que [os legisladores da época
julgassem] isto um grande passo no caminho da civilização. Para tanto, ver: MARQUES, João Pedro.
Uma cosmética demorada ..., p. 230-231.
63
Conforme ressaltou Mário Antonio no seu texto: Os „Libertos‟ em Luanda no Terceiro Quartel do
século XIX. In: SANTOS, Maria Emilia Madeira (org.) Primeira Reunião Internacional de História da
África. Relação Europa-África no 3º. quartel do século XIX – Actas. Lisboa: CEHCA; IICT, 1989, p.
260.
64
Cf.: MARQUES, João Pedro. Uma cosmética demorada..., p. 244.

49
província, colonos em qualquer outra parte, podendo esses contratos ser,
com as mesmas condições, sublocados a particulares;
Artigo 25 - Estes contratos não serão permitidos se por qualquer modo se
mostrar que servem para promover o trafico da escravatura.” 65

Segundo a historiadora Jill Dias, este estímulo legal para a contratação de trabalhadores
em um período de prosperidade comercial das plantações de cacau de São Tomé só fez
com que as regiões angolanas mergulhassem em num novo surto de tráfico, que durou
até o século XX. Esta situação pode ser constatada no relatório do cônsul inglês em
Luanda, David Hopkins, datado de 1877, que denuncia a „farsa da emigração livre
entre Angola e S. Tomé‟ e revela as condições desumanas com que eram transportados
os trabalhadores: „em rebanhos, sem privacidade ou separação dos sexos, obrigados a
deitar-se juntamente com porcos, carneiros e cabras‟. 66

Prosseguindo na miscelânea legislativa portuguesa, o Regulamento de 21 de novembro


de 1878, decretado logo após a abolição da escravidão, que extinguiu o conceito da
tutela pública com relação aos serviçais, dispôs novamente sobre os contratos de
trabalho. Contendo 107 artigos, esta regulamentação tratou ainda, entre outros aspectos,
sintomaticamente, das condições de transporte dos trabalhadores (capítulo V); do
controle policial sobre os mesmos, por intermédio da lei da vadiagem instituída pelo
Código Penal Português de 1852 (capítulos VIII). 67

Interpretando este regulamento, a jurista e historiadora Esmeralda Simões Martinez


aponta uma tensão na questão da „apregoada liberdade contratual‟ do trabalhador

65
Referendado pelo então ministro e secretário de estado dos negócios estrangeiros e interino dos da
marinha e ultramar João de Andrade Corvo, o texto do decreto de 29 de abril de 1875 pode ser
consultado em http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1425.pdf. Último acesso em: outubro de
2010.
66
Cf.: DIAS, Jill. Angola. In: ALEXANDRE, Valentim e DIAS, Jill (eds.). Nova História da Expansão
Portuguesa. O império Africano 1825-1890. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 461. Para uma
discussão mais aprofundada da revitalização das relações escravistas nas roças são-tomenses, ver o
estudo de Augusto Nascimento na mesma coletânea que traz o texto de Jill Dias: São Tomé e Príncipe.
In: ALEXANDRE, Valentim e DIAS, Jill (eds.). Nova História da Expansão Portuguesa. O império
Africano 1825-1890. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 283-293.
67
Ver o texto do Regulamento de 21 de novembro de 1878, assinado por Tomás António Ribeiro
Ferreira, ministro da marinha e ultramar, disponível em:
http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1426.pdf. Último acesso em: outubro de 2010.

50
africano, a partir do texto introdutório do Regulamento, o qual limitava o raio de ação
dos trabalhadores africanos:

“Considerando, outrosim, que o estado de civilisação entre os indigenas não


os habilita ainda a promoverem, por si próprios, a manutenção dos seus
direitos de cidadãos livres, e que, por tal rasão, uma protecção especial da
auctoridade se lhes torna essencial, o que foi attendido no mencionado
projecto de regulamento.” 68

Desta situação, compreendemos que o impasse apontado revela não o plano prático das
ações, mas aquilo que as autoridades que promulgaram o Regulamento de 1878
esperavam que ocorresse: a total inépcia dos trabalhadores africanos com relação aos
contratos de trabalho, dando margens assim à continuação da tutela ou do controle de
sua força de trabalho pelo estado. 69

Em geral, este é caso da legislação abolicionista portuguesa discutida até agora. Do


ponto de vista dos estadistas, a preocupação com controle da força de trabalho junto à
administração colonial dos territórios africanos fez com que a percepção da realidade se
tornasse turva ao ponto de não aceitar enxergar o plano das ações e interesses,
sobretudo, dos trabalhadores.

Em uma comparação com outras regiões como o Brasil pode até ser que a morosidade
do processo português tenha sido menos intensa pela urgência da colonização dos
territórios africanos, porém, por outro lado, face às diferenças processuais, as
justificativas que orientaram os processos abolicionistas em geral não se distanciaram
quanto às suas intenções finais e as crenças no término da escravidão pela aprendizagem
do trabalho livre. Neste sentido, particularmente elucidativa é a síntese realizada pela
historiadora Joseli Mendonça sobre o gradualismo abolicionista brasileiro:

“... a concepção do gradualismo pautava-se pela atuação de sujeitos


históricos que, nesse tempo, procuravam encaminhar projetos próprios de
emancipação. Em alguns deles, a liberdade definia-se pela preservação de
laços de atrelamento e dependência pessoal entre libertos e ex-senhores; uma

68
Cf.: MARTINEZ, Esmeralda Simões. O trabalho forçado na legislação colonial portuguesa – o caso
de Moçambique (1899-1926). Lisboa, 2008. Dissertação (Mestrado em História da África) – Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa, p. 55.
69
Esta questão será mais longamente discutida quando tratarmos da contratação por Henrique de
Carvalho dos trabalhadores da expedição e, principalmente, do entendimento que eles tiveram do
processo contratual.

51
liberdade que não significava a ruptura completa com os elementos que
haviam permeado as relações entre senhores e escravos. Pautando-se pela
concepção de que os libertos eram, ao mesmo tempo, indivíduos que
necessitavam de proteção e indivíduos contra os quais era necessário
proteger-se, reconhecendo no poder público a incapacidade de prestar
proteção ou exercer o controle social necessário, os senhores se
autodesignavam como os melhores provedores de proteção e a única
autoridade capaz de conter a desordem que poderia decorrer de uma
liberdade desassistida.”70

Portanto, entendemos que é necessário diferenciar o plano do discurso do prático,


porque do contrário estaremos negando, da mesma forma que os estadistas da época, as
ações e reações dos trabalhadores africanos aos projetos emancipatórios e coloniais.

Após várias discussões sobre o funcionamento dos contratos de trabalho,71 já sob a


égide de Antônio Enes, foi promulgado, vinte anos depois, o Regulamento do Trabalho
Indígena, em 09 de novembro de 1899, que modificou aquele de 1878. Este
Regulamento, mais do que representar um endurecimento da política de controle da mão
de obra africana – como teve a intenção de fazer parecer – é, ao nosso entender, a
manifestação expressa da intenção colonial portuguesa implícita na legislação
trabalhista do século XIX.

Ao proclamar „o princípio da coercibilidade ao trabalho dos indígenas pelas


autoridades coloniais‟, no dizer de Silva Cunha, o Regulamento não deixou de
considerar a noção de tutela sobre o trabalho africano em favor da colonização, tal como
podemos ver no seu texto introdutório:

“Sendo desde muito tempo reconhecida a necessidade de regular


devidamente, no interesse da civilisação e de progresso das provincias
ultramarinas, as condições do trabalho dos indigenas, de modo a assegurar-
lhes, com efficaz protecção e tutela, um proporcional e gradual
desenvolvimento moral e intellectual, que os torne cooperadores uteis de

70
A comparação dos processos abolicionistas brasileiro e português é uma interessante investigação a
ser realizada, sobretudo no que concerne aos distanciamentos e aproximações dos discursos dos
legisladores, bem como o peso da escravidão para as sociedades em questão. Agradeço a professora
Lucilene Reginaldo por me alertar para esta possibilidade de investigação. Para o trecho citado, ver:
MENDONÇA, Joseli N. M. Entre as mãos e os anéis. A lei dos sexagenários e os caminhos da
abolição no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 1999, p. 308.
71
Por exemplo, ver as discussões em torno do decreto de 26 de dezembro de 1889 que tratava dos
contratos de trabalho especificamente de São Tomé e Príncipe, em: MARTINEZ, Esmeralda Simões.
O trabalho forçado na legislação colonial portuguesa ..., p. 67-69.

52
uma exploração mais ampla e intensa da terra, de que essencialmente
depende o augmento da nossa riqueza colonial.” 72

Certamente, o dado novo na legislação da década de 1890 é a racialização como


legitimadora das relações sociais e trabalhistas. Isso fica claro no termo indígena,
definido legalmente pelo Regimento de Administração da Justiça nas Províncias
Ultramarinas, promulgado em 20 de setembro de 1894 e no qual podemos encontrar o
sentido mais acabado desta questão: a crença na indolência africana como elemento
fundador da ideologia colonial, colocada em prática pelos subsequentes códigos do
trabalho que pressupunham a ideia do bom colonizador português capaz de prodigalizar
a civilização.

Neste sentido, a oficialização do termo indígena foi posta da seguinte maneira:


„...sómente são considerados indigenas os nascidos no ultramar, de pae e mãe
indigenas, e que não distingam pela sua instrucção e costumes do comum da sua raça.‟
(artigo 10)73

Muito se aproxima deste texto a redação que define o mesmo termo no Estatuto Político
Civil e Criminal dos Indígenas de 06 de fevereiro de 1929, já sob governo salazarista:
“Consideram-se indígenas os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que, pela
sua ilustração e costumes, se não distingam do comum daquela raça”. Segundo a
cientista social angolana Elizabeth Ceita Vera Cruz, este estatuto também foi julgado
por seus proponentes como um „acto magnânimo, humanista e, nessa medida,
revolucionário, numa época em que poucos eram aqueles que tratavam os negros como
seres que necessitassem de ser protegidos‟. E nos lembra de que esta crença – „como
uma manifestação de fé e não de certeza‟ – era necessária para „fazer crer ao
colonizado, que com o tempo, determinação e força ele poderia vir a ser igual, melhor

72
Cf.: CUNHA, J. M. da Silva. O trabalho indígena ..., p. 147-148. Texto do Regulamento de 09 de
novembro de 1899, assinado por Antonio Eduardo Villaça, ministro da marinha e ultramar, disponível
em: http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1427.pdf. Último acesso em: outubro de 2010.
73
Texto do Regimento de Administração da Justiça nas Províncias Ultramarinas, promulgado em 20 de
setembro de 1894 e assinado pelo ministro da marinha e ultramar, João Antonio de Brissac das Neves
Ferreira, que regulamentava o decreto de 20 de fevereiro do mesmo ano, disponível em:
http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1422.pdf . Último acesso em: outubro de 2010.

53
dizendo igualado ao colonizador. Sendo sinónimos de tempo, determinação e força
74
respectivamente a passividade, a obediência e o trabalho‟.

Salvaguardadas as diferenças de contexto, do final do XIX, início da colonização de


fato dos territórios africanos, para a década de 1920, do governo salazarista, é possível
afirmar que este era, em essência, o mesmo espírito que animava o Regulamento de
1899 elaborado por uma comissão nomeada em 1898, presidida por António Enes e
formada por Luiz Fischer Berquó Poças Falcão, Anselmo de Andrade, Brito Godins e
Paiva Couceiro.

Contando com 65 artigos, o Regulamento de 1899, pelo princípio da especialidade,


permitia acomodações locais, nas colônias, para sua execução.75 Tratando em grande
medida do trabalho sob pena correcional, já previsto no Regulamento de 1878, ele foi
instrumentalizado pelas disposições do Regimento de 1894 supracitado, que havia
disposto a possibilidade da substituição da punição condenatória por uma pena de
quinze dias até um ano de prestação nos serviços públicos, de forma remunerada.76

Antonio Enes já havia embasado teoricamente a sua prática nas comissões legislativas,
especificamente na elaboração do relatório intitulado Moçambique do início da década
de 1890, no qual promoveu o princípio de coercibilidade na legislação trabalhista como
sendo algo inovador e necessário à política relacionada aos africanos, sob a justificativa
dela até então ter sido branda se comparada à legislação repressora da vadiagem
exercida sobre os trabalhadores metropolitanos:

“Abolidos os crimes e horrores da escravidão, os interesses económicos


recomendavam ao legislador que diligenciasse aproveitar e conservar os
hábitos de trabalho que ela impunha aos negros, embora proibisse, para os
conservar e aproveitar, o emprego dos meios por que tais hábitos haviam
sido impostos. Converter um escravo em homem livre era um benefício para

74
Cf.: VERA CRUZ, Elizabeth Ceita. O estatuto do indigenato – Angola – A legalização da
discriminação na colonização portuguesa. Lisboa: Novo Imbondeiro, 2005 (Colecção Estudos e
Documentos), p. 19-21.
75
Cf.: MARTINEZ, Esmeralda Simões. O trabalho forçado na legislação colonial portuguesa ..., p.
128.
76
A existência do trabalho correcional, conforme Silva Cunha, é de “longa data no Direito colonial
português. Os princípios gerais a que deve obedecer a sua organização, porém, foram fixados pela
primeira vez pelo decreto nº. 12533, de 23 de outubro de 1926." Cf.: CUNHA, J. M. da Silva. O
trabalho indígena ..., p. 150.

54
ele e para a sociedade, mas deixar transformar um trabalhador num vadio
depreciava esse benefício. O que se fez, porém? Por medo de que as práticas
do regime abolido lhe sobrevivessem, elaboraram-se leis e regulamentos
encimados por uma espécie de declaração dos direitos dos negros, que lhes
dizia textualmente de ora avante ninguém tem obrigação de trabalhar, e os
tribunais e as autoridades administrativas foram encarregados de proteger
contra qualquer atentado o sagrado direito de ociosidade reconhecido aos
Africanos. Na Metrópole não se reconhece aos brancos semelhante direito.
Na Metrópole todos são obrigados a procurar adquirir pelo seu trabalho os
meios de subsistência que lhes faltam, sob pena de serem punidos como
vadios. [...] Todavia, o pavor da escravatura, o frenesi de opor às doutrinas
dos seus defensores rasgadas proclamações liberais e humanitárias, saltaram
por cima do código e da moral, do bom senso e das necessidades econômicas
para ensinarem ao negro que tinha a liberdade de continuar a viver no estado
selvagem, pois que tal é a necessária consequência da liberdade de não
trabalhar, deixada a quem só pelo trabalho pode entrar no grémio da
civilização.” 77

Há nestas afirmações de Enes, quanto ao „sagrado direito de ociosidade reconhecido


aos africanos‟ e na tentativa de ignorar a pré-existência do princípio de coercibilidade
na legislação ao longo do XIX, muito daquilo que a historiografia social do trabalho já
tratou, da ideologia da mão de obra livre na colonização dos espaços africanos no final
deste século ser “um conceito vital para distinguir o colonizador progressista dos
saqueadores, bandidos, sequestradores e compradores de carne humana que durante
séculos representaram a Europa no ultramar...”. 78 Todavia, o mais importante é que
implícito neste discurso da legislação trabalhista também está, conforme igualmente
ressaltou esta mesma vertente historiográfica, a incapacidade dos colonizadores do
controle total da força de trabalho africana devido às práticas cotidianas locais. 79

77
Cf.: ENES, António. Moçambique. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1946, p.70-71 [texto original
de 1893]. Sobre o trabalho correcional há ainda que ressaltarmos que quando o Regulamento de 1878
foi promulgado, a lei de vadiagem contida no Código Penal de 1852, anteriormente mencionada, até
pelo menos as reformas de 1884 e 1886 do mesmo código, referia-se tanto para o plano interno da
sociedade portuguesa quanto para as colônias. Nos termos do artigo pertencente ao Capítulo IX, Dos
vadios, e mendigos, e das associações de malfeitores do Código Penal de 1852, vadio era “aquelle,
que não tem domicílio certo em que habite, nem meios da subsistência, nem exercita habitualmente
alguma profissão, ou officio, ou outro mister, em que ganhe sua vida; não provando necessidade de
força maior, que o justifique de se achar nestas circumnstancias, será competentemente julgado e
declarado vadio, e punido com prisão correccional até seis mezes, e entregue á disposição do
Governo, para lhe fornecer trabalho pelo tempo que parecer conveniente.” Ver texto do Código Penal
aprovado por decreto de 10 de Dezembro de 1852 em:
http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1265.pdf. Ultimo acesso em: novembro de 2009.
78
Cf.: COOPER, Frederick. Condições análogas à escravidão. In: COOPER, Frederick, HOLT, Thomas
C. e SCOTT, Rebecca J. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em
sociedades pós-emancipação. (trad. Maria Beatriz de Medina) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005, p.209.
79
Por exemplo, no mesmo sentido destacado por Keletso Atkins no seu estudo sobre o processo de
proletarização do trabalho nguni em Natal, colônia inglesa na África do Sul. Neste trabalho, a
historiadora ressaltou, para além do discurso inglês sobre a não adequação africana ao trabalho

55
A adoção pelos homens políticos portugueses do vocabulário dos direitos e deveres
de senhores e escravizados, bem como dos carregadores

Ao longo do século XIX, no plano do discurso, a luta dos portugueses pela colonização
efetiva dos territórios africanos se deu pelo empréstimo dos ingleses de um vocabulário
de direitos e de deveres de senhores e ex-escravos construído nas colônias americanas.
Adaptando este vocabulário à colonização em África com o mesmo intuito de manter o
trabalho constante e controlável em favor da economia de exportação, legisladores,
administradores, militares e comerciantes foram paulatinamente promovendo a ideia do
fomento do trabalho entre os africanos como um dever ou um esforço civilizador dos
brancos e um direito dos negros:

“Ensinar os negros a serem uteis, a comprehenderem as vantagens do


trabalho, e os beneficios do commercio: crear nos negros as necessidades,
que representam melhoramento na vida material, desenvolvimento na vida
moral: abrir aos negros horisontes, por onde se possam expandir as suas
limitadas aptidões, a fim de lhes transformar a natural indolencia em
actividade productiva: ensinar os negros pelo exemplo, atrail-os pela
benevolencia, domar-lhes as ruins paixões pela justiça, impressional-os pelas
maravilhas da civilisação, ministrar-lhes, na escola e na officina, um
ensinamento que os persuada de que elles podem seguir as praticas dos
brancos, com vantagem propria: eis o que temos a fazer na Africa
Portugueza. É proseguir, aperfeiçoando-o, no systema, ha seculos iniciado
pelos portuguezes n'aquellas regiões. [...] A politica do governo, com
referencia a raças indígenas, não pode ser outra senão a que fica indicada
n‟estas breves palavras. É a mais segura, a mais efficaz; a que está mais de
accordo com os nossos meios e o nosso caracter; é a que nos dá decidida
superioridade sobre todos os povos europeos, estabelecidos na África ...” 80

Neste processo de apropriação de um repertório de palavras e expressões em voga


houve também acomodações ao modo como os portugueses apreendiam a sua realidade
em específico. Tal apreensão do real, que foi entendida por Valentim Alexandre como
uma questão de identidade nacional portuguesa, foi sustentada por duas crenças

assalariado ou de sua natural indolência, as noções de tempo próprias destes trabalhadores, as quais
contrastavam com a de seus empregadores, os colonos britânicos, e que foram as causas dos diversos
conflitos em torno dos contratos acordados entre as partes. Foram estas demandas que possibilitaram a
Atkins perceber, além da dificuldade do controle da mão de obra, a influência da resistência da
população local sobre a regulamentação do trabalho assalariado. Para tanto ver o artigo: 'Kafir Time':
Preindustrial Temporal Concepts and Labour Discipline in Nineteenth-Century Colonial Natal. The
Journal of African History. vol. 29, nº. 2, p. 229-244, 1988.
80
Citação retirada da obra de João Andrade Corvo, político português que, entre os anos de 1871 e
1878, foi ministro dos negócios estrangeiros no governo „regenerador‟ de Fontes Pereira de Melo. Cf.:
Estudos sobre as Províncias Ultramarinas. Lisboa: Tipographia da Academia Real das Sciencias, vol.
III, 1884, p. 389.

56
chamadas pelo mesmo historiador de mitos da herança sagrada e do eldorado. Em suas
palavras, o primeiro mito via „na conservação de toda e qualquer parcela do território
ultramarino um imperativo histórico, tomando os domínios sobretudo como
testemunhos da grandeza dos feitos da nação, que não os poderia perder sem se perder‟
e o segundo mito, „a crença inabalável na riqueza das colônias de África, na sua
extrema fertilidade, nos tesouros das suas minas por explorar‟. 81

No excerto supracitado de Andrade Corvo, o mito da herança sagrada aparece no


momento em que é exaltada a atuação dos portugueses na África, „a sua política de
governo há séculos iniciada, sendo ela a mais segura e eficaz, a que está mais de
acordo com os meios e o caráter português‟, isto é, „aquela que dá decidida
superioridade sobre todos os povos europeus estabelecidos na África‟, e por isso a
necessidade de Portugal em prol da civilização manter as províncias ultramarinas, tal
como o próprio título da obra em questão sugere. utilizar este problema em minha dissertação.

Já a crença portuguesa na riqueza das colônias africanas, o mito do eldorado pode ser
notado nos escritos de diferentes épocas de Sá da Bandeira. Por exemplo, em um trecho
de relatório de 1836, que produz a forte sensação de ser uma reconfiguração temporal e
espacial da carta de Pero Vaz de Caminha relacionada ao „mundo novo‟:

“Para avaliarmos o que são os domínios portugueses ultramarinos, não


devemos considerar somente o que actualmente são, mas sim aquilo de que
são susceptíveis. [...] Nas províncias do Ultramar existem ricas minas de
ouro, cobre, ferro e pedras preciosas. Em África podemos cultivar tudo
quanto se cultiva na América; possuímos terras da maior fertilidade nas ilhas
de Cabo Verde, Guiné, Angola e Moçambique, onde poderemos cultivar em
grande o arroz, o anil, o algodão, o café, o cacau; numa palavra todos os
gêneros chamados coloniais, e todas as especiarias, não somente que bastem
ao consumo de Portugal, mas que possam ser exportados em muito grandes
quantidades para os outros mercados da Europa, e por menores preços que os
da América, porque o cultivador africano não será obrigado a buscar, e a
comprar os trabalhadores que são conduzidos da outra banda do
Atlântico...”82

81
Cf.: ALEXANDRE, Valentim. “A África no imaginário político português (séculos XIX-XX)”. Velho
Brasil. Novas Áfricas. Portugal e o Império (1808-1975). Porto: Afrontamento, 2000, p. 221.
82
Cf.: “Extrato do relatório do Secretário de Estado...”, In: ALEXANDRE, Valentim. Origens do
colonialismo moderno ..., p. 101.

57
Implícita no discurso do „Wilberforce português‟,83 a natureza anistórica, „o cenário
exuberante, que tornará maiores os atos do conquistador‟, porque esteve sempre à sua
espera para desenvolver os gêneros possíveis de se tornarem coloniais, foi destacada
por Tania Macêdo como fazendo parte das mitologias colonialistas de um modo geral:
„As árvores grandiosas, os animais ferozes, os rios caudalosos praticamente
intransponíveis representam todo um mundo novo em sua pujança que deve vergar-se à
presença do europeu, sua crença e seus valores para, domesticada, servir a seus
objetivos.‟ 84

Um desdobramento de tais mitos produziu ainda a ideia da riqueza natural obtida sem
grande esforço como a principal causa da indolência atribuída aos africanos:

"As margens do rio Coanza, Bengo e Dande sam sobretudo de uma


fertilidade extrema [...] produzem em abundancia, e quasi sem trabalho, o
feijão-maindona, privativo d'este paiz, e inda não introduzido em Portugal;
as ervilhas de optima qualidade; o mandobi, que pode em differentes usos
supprir a amendoa, que fornece muito azeite, e que vem em tão grande copia
que os habitantes com elle cevam os porcos, cuja carne fica saborosissima
com este sustento; o milho, de que os negros fazem, depois de macerado,
uma farinha (fuba) que lhes fornece um alimento muito de seu gosto; a canna
de assucar, de extraordinaria grandeza; a mandioca doce, que constitue,
reduzida em farinha de pau, a parte principal do sustento do povo; os
inhames, carás, batatas, etc. [...] O algodão é tambem natural do paiz, e de
qualidade superior ao do Brasil. Os Muxiloandas fazem d'elle as suas linhas
de pesca e redes, e os Negros do interior fabricam umas mantas, a que
chamam ntangas, de grande solidez e duração, e de uso mui geral, sendo de
admirar a perfeição de alguns d'estes tecidos, á vista da imperfeição dos
chamados teares de que aquelles negros se serve ..." 85

83
Como parte da imprensa portuguesa do XIX chamava Sá da Bandeira, em referência ao abolicionista
inglês do final do século XVIII, Willian Wilberforce.
84
Cf.: MACÊDO, Tania Celestino. Da fronteira do asfalto aos caminhos da liberdade (Imagens do
musseque na literatura angolana contemporânea). São Paulo, 1990. Tese de Doutorado (Literatura
Portuguesa) - FFLCH/USP, p.95.
85
Cf.: António Saldanha da Gama que foi administrador colonial e diplomata integrante da comissão
portuguesa no Congresso de Viena. O trecho citado foi retirado de sua memória escrita, segundo o
próprio autor, em virtude da abolição do tráfico e com a seguinte intenção: 'apontar quais os
melhoramentos suscetíveis às colônias portuguesas e quais as medidas governamentais a serem postas
em prática para que o momento da cessação do tráfico da escravatura não seja o da perda total
daqueles estabelecimentos, antes pelo contrario eles venham a ser de então em diante de maior
proveito a Portugal', em Memoria sobre as colonias de Portugal, situadas na costa occidental
d'Africa, mandada ao governo pelo antigo governador e capitão general do reino de Angola, Antonio
Saldanha da Gama ... Luís António de Abreu e Lima (ed.). Paris: Typographia de Casimir, 1839, p. 56
e 72-74.

58
africa: resistência à modernização?

A propósito do inventário das produções angolanas realizado por Saldanha da Gama e


da sua paradoxal sentença, „abundância quase sem trabalho‟, igualmente inscrita no
quadro dos mitos coloniais foi a reprodução ao longo do tempo da crença que as
populações africanas por terem costumes rotulados de tradicionais, com práticas
sustentadas por métodos arcaicos e rudimentares, impróprios ao desenvolvimento das
potencialidades produtivas da terra, resistiam substituí-los por processos de maior
racionalidade econômica utilizados nas sociedades modernas. 86

Tal representação, acreditamos que possa ser alterada por intermédio do próprio
discurso colonialista. Na Memória escrita por Saldanha da Gama, por exemplo, logo
após a passagem citada anteriormente, o autor iguala o recrutamento do serviço
compulsório dos carregadores nas regiões angolanas ao tráfico atlântico de
escravizados, para mostrar a desvantagem daquele ao desenvolvimento da agricultura
local:

Fugas: causa maior era "Não faltam portanto elementos naturaes para a prosperidade da agricultura
seu caráter de servidão. nestes paizes, e o não florescer ella attribuo eu principalmente á causa que
A obrigatoriedade das vou dizer. O commercio da escravatura exigia que as volumosas e pesadas
tarefas gerava inúmeros fazendas que para elle serviam, como armas, polvora, gerebita, zuartes, etc.
prejuízos, como na própria fossem transportadas da capital a enormes distancias do sertão, ás costas dos
agricultura. Negros, não havendo aqui outro meio de fazer estes ou quaesquer outros
transportes. Os Sovas ou Potentados avasallados eram obrigados a fornecer
estes carregadores, que recebiam por este serviço uma insignificante
retribuição, pela qual esperavam muitos mezes, e ás vezes annos, até que se
concluisse a negociação. Os Negros odiavam naturalmente esta servidão, que
os distrahia de suas occupações, e lhes occasionava muitos incommodos, um
penoso trabalho mesquinha e tardiamente remunerado, e toda sorte de
vexações. Por isso buscavam elles evadir-se a este penoso dever, por todos
os meios possiveis, sendo o mais usual a fuga, que effectuavam umas vezes
antes da requisição e na previsão d'ella, e outras mesmo durante as suas
caravanas. Ora como necessariamente o numero d'estes carregadores era mui
grande, bem pode imaginar-se qual seria a rapida progressão decrescente da
população, que estas deserções occasionaram nos districtos e presidios
obrigados a similhantes alcavalas ou prestações pessoaes, as quaes por isso
mesmo se tornavam ainda cada vez mais duras e pezadas á população
diminuida que ficava. Escusado parece dizer qual seria tambem o funesto
effeito d'este tributo dos carregadores sobre a agricultura, que ficava privada
dos braços necessarios para os seus trabalhos, quer temporaria, quer
permanentemente. " 87

86
Noção dicotômica entre tradicional e moderno trabalhada pela historiadora moçambicana radicada em
Angola Aida Freudenthal no seu Arimos e fazendas. A transição agrária em Angola. Luanda: Edições
Chá de Caxinde, 2005, p.22.
87
Cf.: GAMA, Antonio Saldanha da. Memoria sobre as colonias de Portugal ..., p. 74-76.

59
Há, portanto, no olhar do político português um reconhecimento e de maneira explícita
– o que não surpreende, devido à natureza intersticial do discurso colonialista – da
causa primordial para o impedimento da prática da agricultura ser o serviço de carreto
imposto às populações das regiões próximas a Luanda: porque os „distrahia de suas
occupações‟, e assim „buscavam elles evadir-se a este penoso dever‟, que era
„mesquinha e tardiamente remunerado‟ e lhes impunham „toda sorte de vexações‟.

Porém, mais importante do que isso é que o reconhecimento da dimensão dos danos
causados pelo recrutamento forçado para o serviço de carregador só foi possível por
meio do inventário das „potencialidades naturais da região‟, um dos objetivos do autor
ter escrito sua Memória, como apontando em nota. Ou melhor, pela observação do
trabalho das populações locais, responsáveis pela produção das culturas enumeradas no
trecho supracitado, ainda que o político lusitano tenha salientado que esta produção era
realizada sem grande esforço, ou „quase sem trabalho‟. E é justamente através de
observações como estas que podemos identificar a natureza intersticial do discurso do
colonizador que ao almejar os espaços alheios e ver uma necessidade de inventariá-los,
não pode deixar de reconhecer a agência das populações instaladas nestes mesmos
espaços.

Neste mesmo sentido, voltemos a Sá da Bandeira, especificamente à sua publicação de


1873, sugestivamente intitulada O trabalho rural africano e a administração colonial,
na qual o marquês ao objetivar, no terceiro capítulo, demonstrar „a natureza do serviço
de carregador e as medidas governamentais para terminar com os abusos nesta
questão‟, inclusive citando alguns trechos da Memória de Saldanha da Gama que
analisamos, tratou da resistência de comerciantes e de algumas autoridades portuguesas
estabelecidas na região à abolição deste tipo de trabalho compulsório.

Todavia, antes é importante que se diga que mesmo sendo um tema igualmente
espinhoso como a emancipação dos escravizados, a supressão legal do serviço de
carregador foi tentada e por fim conseguida em duas ocasiões: a primeira vez em 31 de

60
janeiro de 1839, sendo anulada no começo da década de 1840, e a segunda, retomada e
conseguida em 03 de novembro de 1856. 88

Da campanha em Angola contra os projetos emancipacionistas relacionados ao trabalho


compulsório dos carregadores, a documentação inventariada por Valentim Alexandre
traz os mesmos argumentos apresentados nas discussões sobre a abolição da escravidão:
„a paralisação do comércio do sertão angolano pelo decreto de 3 de novembro de
1856‟, 'golpe imprudente, intempestivo e impensado' que matou 'o comércio, a
prosperidade e o futuro de Angola!' (no Jornal do Commercio de 06 de abril de 1858);
„a tendência inata dos estúpidos selvagens para a ociosidade e o roubo, a que não
deveriam sacrificar-se os interesses da nação, e os da sociedade em geral‟ (na
representação de Luanda); „o estado medonho e assustador de Angola‟ (no Jornal do
Commercio de 16 de maio de 1858); e „a necessidade e o dever de coagir o negro a
trabalhar, em nome da civilização‟, (novamente na representação dos comerciantes de
Luanda e no Jornal do Commercio de 17 de abril de 1858). 89

Igualmente em Lisboa houve oposições às medidas abolicionistas e à própria figura de


Sá da Bandeira: da Associação Comercial dessa cidade, na representação de 22 de
setembro de 1858 e no abaixo-assinado de quarenta e quatro negociantes da capital
publicado no Jornal do Commercio, em 23 de setembro de 1858. Neste sentido, afirma
Alexandre que „tornou-se corrente atacar o ministro e presidente do Conselho
Ultramarino‟ pela „utopia e cegueira das suas medidas, tidas geralmente por
inexequíveis', e pela 'espécie de fanatismo' e 'embriaguez de sentimentalismo que
mostrava em relação aos negros‟ (conforme Latino Coelho em editorial do jornal
Revolução de Setembro de 15 de abril de 1858 e no Jornal do Commercio de 31 de
março de 1858). 90

88
Para um comentário sobre os decretos de abolição do serviço forçado de carregador de 1839 e de 1856
pelo próprio Sá da Bandeira ver o capítulo supracitado em O trabalho rural africano e a administração
colonial.
89
Cf.: ALEXANDRE, Valentim. A questão colonial no Portugal Oitocentista. In: ALEXANDRE,
Valentim e DIAS, Jill (eds.). Nova História da Expansão Portuguesa. O império Africano 1825-1890.
Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p.79. Para um comentário sobre os decretos de abolição do serviço
forçado de carregador de 1839 e de 1856 pelo próprio Sá da Bandeira ver o capítulo supracitado em O
trabalho rural africano e a administração colonial.
90
Cf.: ALEXANDRE, Valentim. A questão colonial no Portugal Oitocentista ..., p. 80.

61
Assim, voltando a Sá da Bandeira, em portaria emitida em resposta aos ofícios do
governador-geral de Angola de 1858, que tratavam das dificuldades em fazer obedecer
ao decreto abolicionista de 1856 devido à resistência dos comerciantes da região, teceu
as seguintes considerações, em um movimento de adequação do seu discurso pelo fim
da escravidão a uma defesa da abolição do trabalho compulsório dos carregadores:

“1ª. Observando-se o que se tem passado na provincia de Angola desde a


publicação do decreto de 3 de novembro de 1856, nota-se que a repugnancia
dos pretos ao serviço de carreto se mostra mais pronunciada nos distritos
centraes, como o Golungo Alto, Ambaca e Pungo Andongo, isto é,
justamente nos logares em que d'antes os pretos eram forçados a fazer esse
serviço, e onde, em consequencia d'esta obrigação, os antigos regentes, e os
chefes que os substituiram, lhes faziam as maiores extorsões, e praticavam
para com elles toda a sorte de violencias, com o fim de enriquecerem dentro
de pouco tempo ...” 91

regimes regu- Segundo o estadista português, havia nas regiões angolanas dois regimes reguladores do
ladores do ser- serviço de carregador: (a) o de Benguela, instituído pelo regimento de 30 de setembro
viço de carre-
dores: o de de 1796, que obrigava os comerciantes a pedirem os filhos aos sobas, sob pagamento
Benguela e o convencionado no preço das cargas; e (b) o de Luanda, válido também para o Golungo
de Luanda.
Alto, Pungo Andongo e Ambaca, regiões onde as populações mais tinham repugnância
ao serviço de carreto e a prática era a de que fossem tomadas pessoas das comunidades
vassalas da coroa portuguesa. Esta forma de arregimentação de mão de obra
prevalecente na região norte angolana ocasionou, no século XVIII, uma crise
demográfica devido às fugas em massa em direção ao interior do continente. 92

Para compreendermos este êxodo populacional basta dimensionar a violência com que
eram tratados os carregadores arregimentados, parecida àquela utilizada no trato com os
escravizados das caravanas que abasteciam o tráfico atlântico:

a violencia com que eram


tratados os carregadores. “... os pretos carregadores, a quem os negociantes obrigavam a longas
marchas, carregados com grandes pesos e a penosos trabalhos, e de ordinario
sem remuneração alguma, e a ficarem frequentemente muitos mezes
seguidos ausentes de suas familias, levando-os ás vezes até Cassange presos

91
Para os excertos da Portaria de 22 de setembro de 1858 citados neste estudo, ver: BANDEIRA,
Marquês de Sá da. O trabalho rural africano ..., p. 58-70.
92
Cf.: BANDEIRA, Marquês de Sá da. O trabalho rural africano ..., p.46-47. Sobre o mesmo tema ver
ainda TORRES, Adelino. O Império Português entre o real e o imaginário. Lisboa: Escher, 1991, p.
78-79.

62
com correntes ao pescoço, e fazendo-lhes outros ultrajes, de que muitas
vezes se lhes originava a morte ...” 93

Embora seja necessário manter certas reservas quanto às afirmações sobre o fato de o
serviço de carregador no sul angolano não ser compulsório, a brutalidade presente no
trabalho dos carregadores das regiões ao longo do rio Kwanza é facilmente observável
na documentação portuguesa. Como por exemplo, no relato da viagem realizada no ano
de 1846, entre Luanda e a região de Ambaca ou Mbaka, pelo funcionário dos serviços
judiciais da administração de Angola, Manoel Alves de Castro Francina, que descreveu
a dinâmica do angariamento de carregadores, a qual envolvia vários agentes.

Neste processo, quando o chefe do distrito recebia ordem do governo de Luanda ou o


pedido de comerciantes para obter trabalhadores para o serviço de carreto, este os
passava a um agente nomeado para tratar diretamente com os sobas. Em seguida, após o
pagamento do passule, isto é, de um imposto em víveres para o sustento deste agente
durante o tempo de angariamento, os sobas repassavam a ordem da apresentação de
carregadores aos chefes dos fogos, os chamados patrões nas fontes portuguesas.

“... [Este procedimento] que sempre se efetua por meio de violência e


amarração, e nunca sem faltas; porque, enquanto aparece quem se quer
resgatar por dádivas [ou tributos], o número pedido não se preenche, vindo
então pela maior parte camundelles, 94 que se não sujeitam ao carreto, nem
mesmo às leis dos sobas, e que sendo forçados a descalçar os chinelos, para
serem dados como carregadores, fogem logo que podem, ou desamparando a
carga, ou levando-a ...” 95

93
Cf.: BANDEIRA, Marquês de Sá da. O trabalho rural africano ..., p. 59.
94
Segundo Arlindo Barbeitos, camundelle significava pessoa branca e correspondia a Kamundele em
Kimbundu. Mais sobre o assunto ver o seu trabalho que analisa a questão identitária para além dos
„cromatismos e esquematismos‟ em: BARBEITOS, Arlindo. A 'raça' ou a ilusão de uma identidade
definitiva. In: GONÇALVES, António Custódio (org.) O racismo ontem e hoje. Papers do VII
Colóquio Internacional Estados, poderes e identidades na África Subsariana. Porto: FLUP, 2005,
p.140, nota 3. In: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/6895.pdf. Último acesso em novembro de
2009.
95
Segundo esse funcionário colonial, havia na região de Ambaca, na década de 1840, cinco grandes
sobados passíveis da arregimentação: de Ngonga a Muisa, do Caculo Cacabaça, de Pari a Mulenga, de
Casoha Cagingi e de Ndala Ceia ou Seia, afora as comunidades pequenas. Estes deveriam fornecer
carregadores pelo menos duas vezes por ano e conforme a população de cada um, nas ocasiões do
pagamento do tributo de vassalagem e do tributo do sobado. Todas as citações do relato de viagem de
Francina foram retiradas de FRANCINA, Manoel Alves de Castro. Itinerário de uma jornada de
Loanda ao distrito de Ambaca, em 1846. In: Annaes do Conselho Ultramarino. Parte não-oficial. 1ª.
série, 1854-58, Lisboa: Imprensa Nacional, 1867, p. 3-15.

63
Famosas nas fontes documentais ao longo do tempo são as acusações de práticas de
extorsão e corrupção por parte daqueles envolvidos no engajamento de carregadores.
Numa tentativa de absolver as ações dos chefes de distritos, sobre o agente recrutador
diretamente relacionado com os dirigentes políticos africanos, e que eram em sua
maioria oriundos das próprias regiões de angariamento, Francina relatou que quando os
sobas em substituição aos carregadores apresentavam-lhes „qualquer dádiva e
instrumento cortante, dando-lhe a escolha, o encarregado abraçava o que menos feria‟.

Tal procedimento nos leva a perceber que a resistência à obrigação do serviço de carreto
fugas para os
matos: mtos ia muito além das populações em geral, passava também pelos sobas ou chefes de
eram castiga-
fogos, principalmente por aqueles com poucos recursos e que, portanto, não tinham
dos.
como pagar o passule ou „qualquer dádiva [ou tributo]‟. „A estes restavam as fugas
para o mato‟ nos períodos de pagamento dos impostos que incluíam a contribuição de
seus filhos no sistema de transporte da região. A repressão a essa resistência foi em
diversas ocasiões o castigo „com dias de prisão, quando o soba se apresenta, porque o
Chefe [de distrito] não tem força capaz para o fazer conter nestas continuas e diárias
desobediências‟, conforme afirmou Francina.

Além disso, a morosidade no processo de angariamento pode ser entendida como uma
forma de oposição, já que nela estavam envolvidas noções de direitos adquiridos por
certas parcelas das populações dos sobados, que entendiam estarem isentas da obrigação
do trabalho de carregador, tais como:

“... os parentes dos mais abastados moradores, ainda em o mais remoto gráo,
os dos soldados e meirinhos, os agregados ás senzalas dos grandes, que os
protegem, os devedores de negociantes desta Praça, e finalmente a
parentalha de qualquer antigo empacaceiro, cujo titulo ou serviço julgam
dever herdar, e todos estes motivos são os que difficultam o rapido
cumprimento de ordens superiores, e que torna este genero de serviço mais
pezado ...”. 96

Estas noções promoviam discussões que entravavam o procedimento de retirada das


pessoas de suas habitações, tal como ocorria com os camundelles, que, conforme visto,
tinham que ser descalços para serem recrutados. Segundo Francina, quanto maior fosse
o número de camundelles presente em um sobado, menor era o número de angariados.

96
Cf.: FRANCINA, M. A. de Castro. Itinerário de uma jornada ..., p. 11.

64
Assim, junto à questão do aculturamento, no fato de existirem pretos calçados que se
autodenominavam brancos está a aversão ao trabalho compulsório.

Desta forma, constatada a inquietação que o trabalho de carregador provocava face às


consequências negativas de seu recrutamento contínuo e violento – voltando a Sá da
Bandeira, na segunda consideração da portaria que estamos tratando – o estadista foi
constrangido a reconhecer o trabalho africano, parafraseando uma vez mais o título de
sua obra:

“... não são, porém, só os factos observados n'estes districtos que


demonstram que nem sempre o trabalho dos pretos é effeito da coacção; pois
que nos referidos boletins [da província de Angola] se lê que os pretos do
concelho de Cazengo são mais trabalhadores que os de nenhum outro; que
agricultam por sua propria conta ...”97

Ainda mais porque destacou a obrigação de parte do resultado desse trabalho agrícola
ter de ser dividida com os donos da terra:

“... ou [agricultam por conta] dos maiores proprietarios, como forros; o que
significa que dão dois dias de trabalho para os donos da terra, sendo o
restante da semana para si, pagando-lhes os proprietários o dizimo; e
deixando-lhes certa quantidade dos productos ...” 98

“Em presença de taes informações, é evidente que a asserção, de que os pretos sempre
se esquivam ao trabalho, não tem fundamento”, conforme declarou o próprio Sá da
Bandeira. Por isso, como estamos tentando argumentar, nada contraditório à política
colonialista, que sempre acreditou e divulgou a „indolência africana‟, embasar a sua
legislação a partir do reconhecimento do trabalho dos mesmos africanos:

“... [política] que já se teve em vista na promulgação do outro decreto de 3


de novembro de 1856, que ordena o augmento do imposto sobre as
habitações, impropriamente chamado dizimo [...] sendo este tributo lançado
com o fim, não só de ampliar os rendimentos da provincia, mas igualmente
de crear os indigenas a necessidade de trabalhar, a fim de produzirem valores
sufficientes para pagar o imposto; obtendo-se, por este modo, tambem o

97
Cf.: BANDEIRA, Marquês de Sá da. O trabalho rural africano ..., p. 60.
98
Cf.: BANDEIRA, Marquês de Sá da. O trabalho rural africano ..., p. 60. Sobre os „maiores
proprietários‟ ver o estudo de David Birmingham, The Coffee Barons of Cazengo. The Journal of
African History. vol. 19, n. 4, p. 523-538. Com relação às plantações de café controladas por sobas, ver
o estudo de Jill Dias em: O Kabuku Kambilu (c. 1850-1900): uma identidade política ambígua ...

65
augmento das producções agricolas da provincia, e por consequencia o da
sua riqueza." 99

Isto é, não há nenhuma novidade ou mérito em somente constatarmos que homens e


mulheres africanos eram trabalhadores, já que o próprio colonialismo se encarregou de
fazer isso, sendo, aliás, o controle dessa força de trabalho um dos desejos mais intensos
dos colonizadores, conforme postula o estudioso Alfredo Margarido. Para o historiador
Frederick Cooper o cerne desta questão está para além da formação dos grupos de
trabalho, está, sobretudo, nas influências das noções e práticas que fundamentam a
própria existência dos grupos sobre a organização geral do trabalho.100

Desta maneira, em uma espécie de antecipação do imposto de palhota, as sementes do


colonialismo visto no século XX estavam lançadas no decreto de 1856 e na portaria
assinada por Sá da Bandeira de 1858, que previa entre outras ações para excitar a
população indígena ao trabalho:

“4ª. a) Obrigar os sobas e dembos, que habitam em terras apropriadas á


cultura do algodão, a apresentarem annualmente, na cabeça do respectivo
concelho, e em dia designado, um determinado numero de arrateis do dito
producto, em proporção do numero de fogos de que constassem as senzalas
suas subordinadas [...] 101
b) Permittir que em logar de algodão podesse o indigena, conforme as
localidades, apresentar outro genero de producção agricola ou mineira da
provincia, como tabaco, arroz, café, gado, ferro, cobre, enxofre [...]

99
Cf.: BANDEIRA, Marquês de Sá da. O trabalho rural africano ..., p. 60.
100
Nas palavras do historiador: “the question one would want to see asked by an Africanist would be
what Africans brought to the workplace.” Cf.: COOPER, Frederick. Work, Class and Empire: An
African Historian's Retrospective on E. P. Thompson. Social History. vol. 20, nº. 2, p. 235-241, 1995.
101
Apesar do discurso da espontaneidade do crescimento de algumas plantas, como o café e o algodão,
nos territórios angolanos, a importância do cultivo do algodão pelas sociedades da região pôde ser
certificada pelo botânico Frederico Welwitsch. Para as considerações deste botânico sobre o
desenvolvimento de uma produção em larga escala a partir da já estabelecida prática do cultivo dessa
planta ver o Extrato do relatório apresentado ao Ministério da Marinha e Ultramar, em 05 de outubro
de 1861, citado no relatório da subcomissão composta por Henrique de Carvalho, chefe da expedição
ao muatiânvua, e outros sócios da Sociedade de Geografia de Lisboa, in: CARVALHO, Henrique A.
D.; FONSECA, Henrique Quirino da et al. Relatório da subcomissão africana encarregada de dar
parecer sobre a memória do consócio Francisco Martins Swart respeitante à cultura do algodão em
Cabinda. Lisboa: Typographia da Livraria Ferin, 1902, p.7-9. Esse reconhecimento já havia sido feito
na primeira metade do XIX, pelo então governador-geral de Angola Pedro Alexandrino da Cunha, que
também não fugiu do discurso do „sem grande esforço‟, ao afirmar a pouca exigência do cultivo do
algodão, que não demanda grande arte, intelligencia, ou machinismo. Cf.: Ofício nº. 131 do
governador-geral, Pedro Alexandrino da Cunha, para o ministro e secretário de estado dos Negócios da
Marinha e Ultramar, em 21-03-1846, AHU - Angola, pasta 10, 1846, apud OLIVEIRA, Mario António
Fernandes. Alguns aspectos da administração de Angola em época de reformas (1834-1851). Lisboa:
Universidade de Lisboa, 1981, p.282-283.

66
c) Determinar que o chefe de familia que não apresentasse a quantidade
designada de algodão ou de outro producto, seria obrigado a trabalhar para o
estado nas estradas ou na agricultura, de modo que o valor d'esse trabalho,
fosse equivalente ao dobro, ou triplo, do preço por que o estado devia pagar
o genero que o chefe de familia tivesse obrigação de apresentar [...]
d) Estabelecer que o estado poderia ceder a particulares esses dias de
trabalho, para ser empregado na agricultura, mediante uma compensação
equivalente em dinheiro, cuja importancia deveria ser applicada, parte como
salario para o indigena, e parte para o melhoramento das vias de
communicação interna.
e) Introduzir de um modo suave o uso dos trajes europeus, determinando-se
que os sobas e macotas, quando assistissem ás audiências das auctoridades
principaes da provincia, deveriam apresentar-se vestidos á europêa, e que
tambem assim andassem vestidos os escravos á custa de seus senhores; tudo
sob pena de multa.” 102

Segundo a historiografia, a resistência aos impostos coloniais, já na década de 1850, foi


um dos motivos de guerras promovidas por grupos africanos contra a administração
portuguesa na região. Como no caso do imposto mencionado contestado pelo dembo
Ngombe-a-Muquiama meses antes de seu valor ter sido aumentado pelo decreto de
1856. Aliás, a questão da obrigação do cultivo de algodão é algo visto nos movimentos
contestatórios ao colonialismo português do século XX, tal como na revolta dos
agricultores da Baixa do Cassange contra a empresa com capitais luso-belga Cotonang,
em janeiro de 1961. Neste caso, as reclamações eram contra as adulterações das
balanças que pesavam os sacos de algodão, o quê acarretava nos baixos preços pagos
aos agricultores. Porém o ponto fulcral das reivindicações era a própria coação ao
cultivo de algodão que obrigava com que as populações locais interrompessem os seus
103
afazeres voltados para o cultivo de mandioca, milho e feijão.

Embora Sá da Bandeira com seus escritos nos instigue a enxergar a política trabalhista
do XIX em retrospectiva, isto é, sem nenhuma novidade em relação às práticas coloniais

102
Cf.: BANDEIRA, Marquês de Sá da. O trabalho rural africano ..., p. 61-62. . Sobre a influência de Sá
da Bandeira nas diretrizes que embasaram a instituição do imposto de palhota ou sobre cada família em
Moçambique, no ano de 1892, ver a análise de Valdemir Zamparoni no seu De escravo a cozinheiro:
colonialismo & racismo em Moçambique. Salvador: EdUFBA; CEAO, 2007, p.67.
103
Para o caso do dembo Ngombe-a-Muquiama, ver: carta do chefe dos Dembos ao governador geral de
01 de fevereiro de 1856 publicada no Boletim do Governo-geral da Província de Angola, n. 542, de 16
de fevereiro de 1856 e citada por Jill Dias em Angola ..., p.435, nota 226. Sobre a revolta da Baixa do
Cassange, que ajudou no estopim da luta armada na guerra de libertação no norte do país, em marco de
1961, ver o documentário de Joaquim Furtado: A Guerra | Colonial | Do Ultramar | De Libertação.
Episódios da Baixa do Cassange. Documentário RTP, 2008. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=I5xGtc8qqJ4 Último acesso em: outubro de 2010.

67
do século XX, o mesmo político português nos força a recordar as especificidades do
seu tempo, de não haver uma colonização de fato dos espaços africanos, até mesmo das
regiões ao longo do rio Kwanza, próximas de Luanda, e necessariamente por isso
aparecer em seu discurso de controle da mão de obra a defesa da moderação:

“5º. [...] É comtudo conveniente, que se averigue com cuidado, quaes são as
occupações mais exequiveis e uteis a que os indigenas devam ser incitados, a
fim de se empregarem para este effeito os mais adequados e efficazes d'esses
meios; na intelligencia de que só de taes meios indirectos se poderá usar,
porque seria impossivel estabelecer regras para obrigar os pretos a
trabalharem para os brancos, ainda pagando-lhes estes, sem que isso désse
occasião a uma infinidade de abusos da força, de que resultaria a oppressão
dos indigenas, e a sua emigração, como succedia frequentes vezes, quando
elles eram forçados ao serviço de carregadores.”104

Mesmo que logo em seguida – expressando o implícito de suas intenções, que no


imperialismo finissecular acabou por se instituir – ele trate do alistamento militar:

“6ª. Mas para que se possa fiscalisar a execução das medidas que ficam
indicadas no § 4º. letras a, b, c, d, quando ellas sejam adoptadas, e para os
fins que adiante se declaram, conviria alistar todos os indigenas dos
concelhos de Golungo Alto, de Ambaca e de Pungo Andongo em
companhias de guerra preta, ou com outra denominação.”105

Tal ambição colonialista da política de Sá da Bandeira e a persistência ao longo do


tempo da escravização e de outras formas análogas podem ser resumidas pelo registro
literário de Costa Andrade de exatos cem anos após a portaria de 1856, na estória de
Paulino Kambulu:
“Sempre que era chamado à tarefa de 'cidadão português no exercício de
funções públicas', o secúlo Paulino envergava o velho casacão verde de
fardo, pertencente à farda de qualquer soldado americano desconhecido. O
comprimento, os botões dourados ostentando as armas a que pertencera o
defunto, conferiam-lhe a solenidade dos porteiros. No dia do recenseamento,
assim vestido. [...] Mesuras, salamaleques, cofió na mão direita, respondia ao
chefe de Posto: - Sô eu Paulino kambulu, secúlo do Salundo, meu Chefe
manda ... Viva Portugale! Assim todas as vezes. Preliminar decorado e
invariável, pronunciado de dentro do dólman verde de botões amarelos, de
submissão e presença.
[...]
O problema da mão de obra começava a avolumar-se. As rugas não
resolviam coisa nenhuma. Os cipaios deixavam-se corromper. Uma ou duas
galinhas, um garrafão de vinho, era um homem a menos na granja à espera

104
Cf.: BANDEIRA, Marquês de Sá da. O trabalho rural africano ..., p.63.
105
Cf.: BANDEIRA, Marquês de Sá da. O trabalho rural africano ..., p.64.

68
de embarque. Surgiram então os angariadores invadindo as sanzalas, nas
suas carrinhas com toldo de lona. [...]
Famílias que se destroem. Ficam as mulheres e crianças, que do contrato
verbal não constava o seu transporte. Partem os homens debaixo dos toldos,
em camiões de lonas, cujas cargas declaradas são couros ou mercadoria
vendável no litoral. [...]
Antes que tivessem voltado os primeiros, cresceu o pranto das mulheres e
das crianças diante da casa do secúlo:
- Paulino, não deixes que levem o meu homem. - Não quero que morra no
mar. – Não quero que o levem... – E se não volta?
E o Paulino ouvia confiante. Cedo, porém, passou a escutar sem fé, calado e
esquecido de si, o grito aflitivo do amor de esposa, coração mais negro que a
noite escura da pele. [...]
Paulino bebia muito mais agora. Afogava no álcool a impossibilidade do
poder que não tinha e lhe exigiam.” 106

106
Escrito em abril de 1958, Um conto igual a muitos foi publicado no livro Estórias de Contratados
que, segundo o autor, são relatos de vida de pessoas que conheceu na infância, “cuja memória
[conservou] com indelével saudade”. Cf.: ANDRADE, Fernando Costa. Estórias de contratados.
Lisboa: Edições 70, 1980, p. 17 e 40-43.

69
2. Interstícios imperiais na obra de Henrique de Carvalho

70
Discursos imperiais no Portugal da segunda metade do XIX

Para a civilização ocidental, o conceito de império e os fatos históricos desencadeados


dualismo
no mundo por sua disseminação ao longo do tempo quase sempre estiveram associados à ideia de
ocidental dualismo. Por exemplo: na medievalidade da Europa ocidental, com a sua acepção de
unidade do povo de Deus na terra que separava o mundo em cristãos e não cristãos; e no
fim de século oitocentista, „cujo ritmo [da economia mundial] determinado por seu
núcleo capitalista desenvolvido ou em desenvolvimento‟ era capaz de transformar o
globo terrestre, „onde os avançados dominariam os atrasados‟. 107

No entanto, acreditamos que nesta questão do dualismo há sempre a necessidade de


atentarmos para existência de desvios ou múltiplas vias comprometidas com diferentes
concepções. Tal como ocorrido na sociedade portuguesa finissecular, na qual sentidos
imperialistas reverberaram nas esferas governamentais, no parlamento, no executivo, no
militar e também nos universos intelectual e acadêmico.

Palco privilegiado desta reverberação, o periodismo foi o meio mais utilizado por
a imprensa. políticos, intelectuais, militares, estudantes, profissionais liberais, entre outros, para
promover debates, especialmente, a partir da crônica, de caráter moralizante e em forma
de diálogo. Neste sentido, o papel da imprensa era propor a mudança do mundo e não
somente a reflexão sobre ele, como argumenta Maria Manuela Cantinho Pereira. Não
por acaso que boa parte dos intelectuais e políticos preocupada com os rumos da nação,
inclusive a „sua parte‟ ultramarina, expôs suas ideias e projetos como redatores e
diretores de diversos jornais. 108

No geral, tanto nas crônicas como em outros gêneros, estes agentes sociais se dedicaram
a divulgar a um público alargado uma memória do passado português capaz de
instrumentalizar as ações do presente em um momento de necessidade de
reaportuguesar Portugal -- como diria Eça de Queiróz -- em face ao que entendiam

107
Cf.: HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios. 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 87.
108
Para tanto, ver o importante estudo de Manuela Cantinho Pereira sobre a Sociedade de Geografia de
Lisboa e a atuação de seus membros, principalmente, do seu secretário perpétuo Luciano Cordeiro no
colonialismo português do final do XIX: PEREIRA, Maria Manuela Cantinho. O museu etnográfico da
Sociedade de Geografia de Lisboa. Modernidade, colonização e alteridade. Braga: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2005, p. 124.

71
como ameaças externas representadas especialmente pela Espanha e pela Inglaterra: o
receio sobre a possibilidade de associação ou integração de Portugal numa unidade
política maior, problema que ficou conhecido como A questão ibérica ou Iberismo, e a
disputa com os ingleses de regiões no sul do continente africano que culminou no
Ultimato de janeiro de 1890.

Esta produção de grande parte do século XIX foi chamada pelo historiador Sérgio
Campos de Matos de historiografia de divulgação:

“que não é adequado classificar de gênero, na medida em que abrange uma


produção escrita bastante heterogênea: histórias gerais de Portugal,
narrativas históricas referentes a determinados episódios passados (não
lacerda
confundir com romance histórico), biografias, alguns folhetins, livros
escolares dirigidos especificamente (ou não) a determinado grau de ensino,
pequenos textos evocativos em revistas ou almanaques, panfletos em que
predomina a argumentação histórica, etc.” 109

Acreditamos que nesse „etc‟ podem entrar os relatos de viagem e a documentação


administrativa e militar coligida por órgãos como a Associação Marítima Colonial e a
própria Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL), fundada em 1875.

Criada no ano de 1839 por figuras como o visconde de Sá da Bandeira, José Xavier
AMC
Bressane Leite, Joaquim José Falcão e Feliciano António Marques Pereira, a
Associação Marítima Colonial (AMC) tinha entre seus sócios agentes ligados ao
governo e à marinha com grande experiência de atuação em regiões africanas e asiáticas
e que se predispunham a fazer um diagnóstico das causas da decadência das colônias
portuguesas, bem como apresentar propostas para a sua solução. Sintomaticamente,
com a perda do Brasil esta era a época de promover a „boa colonização‟ e não somente a
extração de riquezas destas áreas, conforme argumentamos no capítulo anterior.

Estes objetivos da AMC se materializaram nos estudos, relatos e pareceres publicados


nos Annaes Maritimos Colonias, os quais debatiam a situação das produções e riquezas
que de sua visão colonizadora chamavam „ultramarinas‟. Objetivos parecidos ao da

109
MATOS, Sérgio Campos. Historiografia e memória nacional no Portugal do século XIX (1846-
1898). Lisboa: Edições Colibri, 1998, p.27.

72
Sociedade de Geografia de Lisboa que, devido ao contexto final do XIX, apresentava
tons mais acentuados com referência ao par Colonização e Ciência. 110

Muito influenciada pelas ideias do positivismo e do evolucionismo, a maioria dos


membros da SGL, claro com algumas divergências, entendiam que a regeneração da
raça portuguesa ou ibérica, que tinha decaído por ter rejeitado o „espírito moderno‟,
passava pela compreensão do sentido da sua história. Nesta perspectiva, também esta
Sociedade contribuiu com a historiografia de divulgação com a produção de vasto
material publicado no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (BSGL). 111

Eleito como o grande debate da época, já que para alguns, como já argumentamos,
Portugal só se manteria independente enquanto possuísse colônias, o tema da
colonização do „ultramar‟ marcou os conteúdos do BSGL, os quais tentavam responder,
utilizando a linguagem científica, ao desafio da civilização – afinal, modificar era antes
de tudo uma questão de conhecer e para conhecer era necessário realizar estudos
científicos capazes de responder a questões como:

“Civilizar? Se sim como? Civilizar colonizando? Colonização de brancos?


Colonização de africanos, através das „aldeias cristãs‟? Colonização mista?
Colonizar pela ocupação efectiva? Ocupação através de exploração
comercial? Ocupação através de explorações geográficas? O que era uma
exploração científica? Qual o perfil do explorador? Ocupação através de
congregações religiosas? Através do „missionário geógrafo‟? Civilizar pela
via do conhecimento? Como ultrapassar as vicissitudes do clima? Como
ultrapassar o desconhecimento das línguas africanas? Ensino das línguas
africanas na metrópole? Ensino das línguas africanas no Colégio das
Missões? Como ultrapassar o desconhecimento da religião, da „família‟ ...?
Conhecimento do „espírito africano‟ através do conhecimento etnográfico?
Seria possível regenerar a sociedade africana? Através da „família cristã‟,
das aldeias indígenas?” 112

110
Para uma análise da AMC e de seus Annaes Maritimos Colonias, que apresenta material que
utilizamos neste nosso estudo, ver: PEREIRA, Maria Manuela Cantinho. O museu etnográfico da
Sociedade de Geografia de Lisboa ..., p. 69-76.
111
Sobre os objetivos da SGL e a „publicação continuada de todos os pareceres, projectos, relatórios,
estudos ou propostas ao governo que tivessem, como tema principal, a defesa daquilo que a SGL
julgava ser de interesse dos portugueses e que denuncia o espírito positivista dessa instituição‟,
igualmente utilizados como fonte neste estudo, ver o supracitado trabalho de Maria Manuela Cantinho
Pereira, O museu etnográfico da Sociedade de Geografia de Lisboa ..., p. 115, 254-270.
112
O sumário das preocupações civilizadoras da SGL, que explicam a sua criação e que motivaram sua
dinâmica institucional no final do século XIX, é de Manuela Cantinho Pereira, em: O museu
etnográfico da Sociedade de Geografia de Lisboa ..., p. 147.

73
Analisando no geral, os pontos levantados no interrogatório citado em sua maioria
convergiam para a probabilidade da civilização do africano pela colonização. Porém
havia aqueles que não acreditavam nesta possibilidade e postulavam a não necessidade
de preocupação com este elemento, já que estava fadado a desaparecer como os índios
americanos, às mãos e ante o homem branco e culto. 113

Entre os que pensavam desta última maneira estava Joaquim Pedro de Oliveira Martins,
ligado à chamada Geração de 1870 também acreditava que o decadente Portugal de sua
época havia perdido o patriotismo, o sentimento da coesão moral e o orgulho nacional
que o haviam caracterizado nos primeiros tempos da expansão ultramarina. Para ele, a
solução para este candente problema só poderia vir de uma consciência crítica e
construtiva do passado por meio do conhecimento da história de Portugal. 114

Oliveira Martins foi um intelectual atuante em diferentes esferas e capaz de refazer os


seus projetos ao longo do tempo. Naquilo que mais nos interessa, na questão da
colonização dos territórios africanos, ele foi da ideia da alienação de alguns „territórios
ultramarinos‟, „o Oriente, Moçambique, por enfeudação a companhias, abandonar as
pretensões ao domínio nas bocas do Congo e congregar as forças de uma política sábia
e sistemática na região de Angola‟,115 para a urgência de „andar depressa‟ na
conservação de regiões orientais do continente africano, „se não queremos ficar ao
norte do Limpopo, reduzidos à faixa litoral que temos ao sul‟. Para tanto e mesmo ainda
contracorrentes, propunha „franquear o Zambeze à navegação internacional sob a
condição de liquidar com a Inglaterra a questão das fronteiras sertanejas de
Moçambique‟, já que estavam em jogo as jazidas de ouro recém-descobertas. 116

113
Cf.: PEREIRA, Maria Manuela Cantinho. O museu etnográfico da Sociedade de Geografia de
Lisboa..., p. 147.
114
Neste sentido, Eça de Queiróz louvou a obra de Oliveira Martins como um reaportuguesamento da
nação: “Tu reconstrói a Pátria, e ressuscitas, com esses livros, o sentimento esquecido da Pátria. E
não é pequeno feito reaportuguesar Portugal. Pagas, de resto, a dívida, que nunca fora paga àqueles
que fizeram Portugal...”. Apud MATOS, Sérgio Campos. Historiografia e Memória Nacional no
Portugal do século XIX ..., p. 44 e ainda na p. 75 sobre a ideia de decadência no pensamento de
Oliveira Martins.
115
Apud Prefácio de José Gonçalo de Santa-Rita, em: MARTINS, J. P. de Oliveira. Portugal em África.
A questão colonial e o conflito anglo-português. 2ª. ed. Lisboa: Guimarães & Cia Editores, 1953,
p.XIV.
116
Cf.: MARTINS, J. P. de Oliveira. “Moçambique”. Portugal em África..., p. 19. Texto originalmente
publicado em O Repórter de 26 e 27 de maio de 1889.

74
Porém um aspecto muito forte do pensamento de Oliveira Martins que não oscilou com
para justificar o tempo foi a sua convicção da inferioridade do negro africano. Acreditamos que esta se
o trabalho for-
çado, o criacio- baseava em teorias originárias do criacionismo que, diferente do evolucionismo,
nismo.
postulavam a existência de raças diferentes que permaneceriam invariáveis, isto é, não
tinham a possibilidade de evoluírem. Por isso que para o autor o africano era
incivilizável, restando ao branco atribuir-lhe a função do trabalho: „o papel dos
portugueses no ultramar só pode ser, ou de negociante [...] ou de fazendeiros
explorando o trabalho dos negros num regime que, nem por ter de ser mais ou menos
forçado, há de ser forçosamente bárbaro como era a escravidão‟. 117

Em parte, esta depreciação do africano aproximou Oliveira Martins de outras figuras


portuguesas que se dedicaram ao colonialismo. O escritor angolano Arlindo Barbeitos,
por exemplo, traçou um paralelo das ideias deste autor com as de Antonio Enes,
chamando esta aproximação de Escola de António Ennes, amigo e colega de lides
políticas de Oliveira Martins e sobretudo admirador das suas ideias:

“...A dita escola não constituía uma instituição formal de ensino, mas antes
uma corrente doutrinária e de acção coloniais, tentando levar á prática as
propostas martinianas, que incluiu a maioria dos mais destacados agentes da
derradeira expansão portuguesa. Eduardo Galhardo, Ayres d‟Ornelas,
Eduardo da Costa, Freire de Andrade, Paiva Couceiro e Mouzinho de
Albuquerque são várias das personalidades que dela fizeram parte e que o
Estado Novo, posteriormente, entronizou em sua hagiografia colonial.” 118

Barbeitos sobre esta questão traçou uma tese baseada no conceito de travestissement,
qual seja: que na motivação da imagem negativa dos africanos levada ao público por
Oliveira Martins, Antonio Enes e outras personalidades da época estaria o pessimismo
sobre a própria sociedade portuguesa.

Na noção, por exemplo, de selvagem interno, o elemento ambíguo do caráter nacional,


aqueles compatriotas humildes que migravam para a África, portugueses que Oliveira
Martins dizia serem „um resto de gente pré-histórica‟ que em suas „ligações

117
Apud PEREIRA, Maria Manuela Cantinho. O museu etnográfico da Sociedade de Geografia de
Lisboa..., p. 209.
118
BARBEITOS, Arlindo. Oliveira Martins, Eça de Queiróz, a raça e o homem negro. In: SANTOS,
Maria Emilia Madeira (dir.) A África e a Instalação do Sistema Colonial (c.1885 – c.1930). III
Reunião Internacional de História da África. Lisboa: Centro de Estudos de História e Cartografia
Antiga; Instituto de Investigação Científica Tropical, 2000, p.601.

75
deprimentes com as pretas‟, completaria Enes, „as próprias inúmeras necessidades da
civilização não encontram préstimo‟. Assim, a obra de divulgação histórica se edificaria
na ação educativa não do africano, incapaz da aprendizagem, mas do colono branco que
teria a missão de civilizar os territórios africanos com sua presença. 119

Nesta perspectiva, estes homens políticos portugueses, no dizer de Alfredo Margarido,


combatiam pela linguagem do racismo aquilo que chamavam de cafrealização, o
processo de africanização dos colonos europeus em África.

Em suma, o termo travestissement, retirado do trabalho de Cornelius Castoriadis,


ver Fanon significa uma intenção essencial do discurso em relação ao Outro: aquela que pretende
situar no âmbito do imaginário a si mesmo por algo que realmente não é e que, por
consequência, os outros e o mundo sofreriam uma desfiguração correspondente. De tal
modo, o Outro africano não equivaleria senão ao medo que o português teria de si
mesmo. 120

De acordo com Arlindo Barbeitos, toda esta atmosfera de pessimismo, de agudização do


sentimento de inferioridade portuguesa com relação a „ameaças externas‟, culminaria
na era de extrema violência marcada pela política ditatorial salazarista. Tempo em que a
personalidade autoritária assumiria sua máxima com o nazismo de Hitler e que faria da
redução da mulher ocidental algo correspondente à realizada com os colonizados:

“Adorno e Horkheimer [...] se anteciparam a muita desconstrução posterior


da ideologia racista, colonialista e sexista. Eles consideravam ambos os
fenómenos componentes de um único processo de violentação de alguém
que se abusou a si mesmo e que, incapaz de deslindar o mecanismo que
metera em marcha, engendrara para alívio fantasmagorias que despejara para
cima do Outro. A lógica mórbida, que reduz a fêmea, ataca o autóctone e
provoca guerras fratricidas, se revela em fim de contas potencialmente
suicida. Disto são sintomas e arautos inequívocos o pessimismo, senão o
cinismo, e determinados escapismo de linguagem que, quantas vezes, a
acompanham e com os quais nos deparámos nas individualidades referidas
[Enes, Martins e Eça].” 121

119
Apud BARBEITOS, Arlindo. “Oliveira Martins, Eça de Queiróz, a raça e o homem negro”..., p.603.
Cabe-nos apontar a ideologia racial que culpou a mulher negra da „conquista dos homens brancos para
a sensualidade dos macacos‟ (Enes). Ideologia que ressoará nos anos de 1930 nas teses de Gilberto
Freyre com a sua mistificação da sensualidade da mulata poderosa na civilização brasileira.
120
BARBEITOS, Arlindo. “Oliveira Martins, Eça de Queiróz, a raça e o homem negro”..., p. 604.
121
BARBEITOS, Arlindo. “Oliveira Martins, Eça de Queiróz, a raça e o homem negro”..., p. 605.

76
Oliveira Martins também foi um homem de negócios. Ligado à burguesia comercial da
cidade do Porto, bastante interessada na parte oriental do continente africano, o
intelectual foi capaz de transformar sua opinião pela crença que a colônia moçambicana
poderia se cumprir „um Brasil do século XVIII‟ para o seu Portugal contemporâneo:

“Ultimamente, porém, a descoberta dos jazidos de ouro em Moçambique


modificara de novo o nosso modo de ver, e lembrando-nos do que sucedeu
no século XVIII no Brasil austral, que também eram sertões, sem mérito,
puséramos também esperança noutra farta colheita de benefícios.” 122

Naquela cidade lusa, na década de 1880, Oliveira Martins exerceu muitas funções: foi
presidente da Sociedade de Geografia Comercial do Porto (1880), diretor do Museu
Industrial e Comercial do Porto (1884), administrador da Régie dos Tabacos (1888),
administrador da Companhia de Moçambique (1888-90) e também fez parte da
comissão executiva da Exposição Industrial Portuguesa (1888). Por esta experiência
empresarial foi nomeado, em 1889, para a pasta da Fazenda, função que ocupou por
quatro meses, durante o ministério presidido por José Dias Ferreira.

Sintomaticamente, este foi o mesmo contexto de realização dos projetos ultramarinos do


contexto polí- major Henrique Augusto Dias de Carvalho, que em busca de patrocínio para sua viagem
tico e ideoló-
gico da expedi- à Lunda, chegou a estabelecer contato com Oliveira Martins, quando este era presidente
ção de Henrique
da Sociedade de Geografia Comercial do Porto (SGCP). 123

A ação mais visível do intelectual português neste sentido foi emitir correspondência à
Associação Comercial do Porto informando sobre o pedido de patrocínio de Henrique
de Carvalho e a nomeação pelo Conselho Geral da SGCP de uma comissão composta de
nove membros, que tinha por objetivo „angariar a adhesão de negociantes e industriaes
para a remessa de artigos para a Expedição‟:

“Esta Sociedade, e especialmente a commissão acima indicada, luctariam


com grandes difficuldades para attingirem o fim a que se propõem, se não
esperassem obter o valiosissimo auxilio e protecção da meritissima

122
MARTINS, J. P. de Oliveira. Tempo. 30 de agosto de 1890. Apud SANTA-RITA, José Gonçalo de.
Prefácio. In: MARTINS, J. P. de Oliveira. Portugal em África ..., p. XXXIX.
123
Sobre a SGCP e suas propostas de exploração geográfica de cariz comercial, ver o estudo de
Manuela Cantinho Pereira, O museu etnográfico da Sociedade de Geografia de Lisboa..., p. 205-214.

77
Associação Commercial do Porto [...] e por isso o Conselho Geral resolveu
que eu me dirigisse a V. Exª., manifestando as intenções d'esta
Sociedade...”.124

Henrique de Carvalho justificou a importância do patrocínio das associações comerciais


de Lisboa, que também contatou à procura de auxílio, e da cidade do Porto, que foi
aquela que efetivamente doou produtos, como um estímulo ao comércio africano, por
levar junto com a expedição artigos negociados por essas praças mercantis.

Assim, com grandes dificuldades no embarque das cargas no porto de Lisboa, os artigos
que seguiram com a expedição foram: ferragens, galões, botões, sombrinhas, pentes,
mantas, rendas, emblemas, 48 latas de azeitonas, 12 caixas de vinho do Porto e 4
caixotes com louça.125

Com esta justificativa comercial do major português, percebemos que houve uma
confluência de compreensão do expedicionário e dos comerciantes portugueses com
relação ao significado da viagem à Lunda também ser um empreendimento mercantil.
Este „teor acentuado de exploração de mercados que as expedições africanas do século
XIX tinham‟ também foi ressaltado pelo historiador José Capela que, ao citar a circular
que Henrique de Carvalho enviou aos comerciantes de Lisboa e do Porto, na qual havia
uma listagem de produtos que sabia de „prompta venda naqueles sertões‟, chegou a
afirmar que ela não é mais do que „uma circular de caixeiro-viajante que vai fazer a
praça da África‟. 126

A propósito do entendimento de Henrique de Carvalho sobre a natureza de sua


expedição, que acreditamos não se esgotar na questão mercantil, conseguimos perceber
em parte esta questão por meio da anedota do portuense de gênio folgazão contada pelo
124
Cf.: Correspondência de J. P. Oliveira Martins, presidente da Sociedade de Geografia Comercial do
Porto, ao presidente da Associação Commercial do Porto, de 6 de abril de 1884. In: CARVALHO,
Henrique A. D. Expedição Portuguesa ao Muatiânvua 1884-1888: Descrição da Viagem à Mussumba
do Muatiânvua. Lisboa: Imprensa Nacional, vol. I (De Luanda ao Cuango), 1890, p. 25-26.
125
Mais sobre a colaboração das praças mercantis portuguesas com a expedição à Lunda ver a
correspondência entre o major português e as associações comerciais mencionadas, inclusive a SGCP,
entre a qual está anexada a „Relação dos exportadores que confiaram volumes à Expedição‟ em:
CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. 1, p.18-28.
126
Mais sobre a repercussão das expedições africanas na burguesia mercantil portuense em: CAPELA,
José. A burguesia mercantil do Porto e as colónias (1834-1900). Porto: Afrontamento, 1974, p.141-
151. A circular com a listagem de produtos citada também pode ser vista em: CARVALHO, Henrique
A. D. Descripção ..., vol. 1, p.19-21.

78
major português como um fato ocorrido no início da expedição, na viagem entre Lisboa
e Luanda, em maio de 1884, a bordo do vapor S. Thomé, o mesmo que quatro meses
antes havia levado Capello e Ivens para sua segunda exploração na África Central.

O chiste se deu da seguinte maneira: achando a vida a bordo monótona, o tal passageiro
portuense, sobre o qual não nos é passado o seu nome, entusiasmado por estar viajando
com expedicionários dizia que gostava muito de 'commoções fortes, novas, nunca
sentidas' como aquelas que provavelmente Henrique de Carvalho iria passar:

"... [dizia ele] Imagine, eu mettido numa cubata no meio de um deserto e que
de repente, sem me ser dado prever, um leão de um salto apparece ao pé de
mim! Fixa-me com os seus olhos de fogo, mas não vacillo um só momento.
Se não tenho a espingarda á mão deito fogo á cubata, e elle enraivecido lá
vae para a floresta berrando como um possesso, e eu cá fico ao pé do fogo
com os meus companheiros, cantando victoria, emquanto não rompe o
dia."127

Este tipo de acontecimento era algo que entendia só poder se dar na África, „não no
Amazonas, no Rio da Prata e nem em outras terras do Brasil: estas scenas que ora nos
assustam, ora nos animam, e muitas vezes nos fazem suppor termos a nossa vida por
um fio‟. Fortes sensações de fazer inveja, pois „nada mais belo‟, afirmava o „jovial
portuense‟, „que depois de dias de fome, disputar-se a tiro com o gentio uma gallinha,
um ovo, um fructo qualquer, e ir saboreá-lo depois com todo o descanso! São estes
momentos felizes de que só podem gozar actualmente os exploradores!‟.128

Ao apresentar o senso comum da época – „é assim que uma grande parte da gente
pensa com respeito a explorações!‟ – Henrique de Carvalho passou a rejeitar a sua
expedição como sendo uma viagem de aventuras: „não eram essas commoções que eu
procurava, não; e, pela minha parte, confesso que as muitas por que passei me
abalaram e fatigaram bastante‟. 129

No seu entendimento, a Expedição Portuguesa ao Muatiânvua devia ser um


cumprimento fiel das „Instrucções‟ pelas quais havia de se guiar e que a determinavam
127
O relato integral sobre o „portuense folgazão‟ pode ser lido em: CARVALHO, Henrique A. D.
Descripção..., vol. 1, p.44-45.
128
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. 1, p.45.
129
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. 1, p.45.

79
como „uma missão de paz, de civilisação, e em que se apresentavam os mais
importantes problemas a resolver‟.130

Logo, mais do que ser um ótimo subordinado que segue as diretrizes de seus superiores,
parece-nos que a noção de expedição de Henrique de Carvalho se aproximava dos
princípios veiculados pela Sociedade de Geografia de Lisboa, da qual era sócio desde
1876, 131 e que nas três últimas décadas do XIX, conforme já pontuamos, deu o tom no
perfil das explorações portuguesas.

De acordo com Manuela Cantinho Pereira, esta questão era debatida em diferentes
seções da SGL: nas seções ordinárias, nas palestras dos exploradores após o seu retorno
a Portugal e na própria correspondência que mantinham durante viagem com o comando
da Sociedade.

Este foi o caso de Alexandre Serpa Pinto, em 1877, durante a sua viagem de travessia
continental, que em carta ao secretário-perpétuo da instituição, Luciano Cordeiro, expôs
o tema de um modo que podemos relacioná-lo diretamente com a natureza da expedição
de Henrique de Carvalho:

“É preciso ser-se selvagem fisicamente entre os selvagens. Sem isso nada de


explorações geográficas. As expedições verdadeiramente scientificas são
possíveis n‟uma área muito limitada com muito tempo [...] O Explorador
Geographico tem de correr, correr, correr sempre.”132

viagens do 18. Portanto, as viagens geográficas, muito em voga no final do século XVIII, como já
apontou Maria Emília Madeira Santos, e mesmo aquelas que tentavam a travessia

130
As 'Instrucções por que se deve regular o major do exercito Henrique Augusto Dias de Carvalho na
Missão ao potentado Muata Ianvo' determinadas pelo ministro da marinha e ultramar, Manuel Pinheiro
Chagas, contém 19 'preceitos' que podem ser lidos na íntegra em: CARVALHO, Henrique A. D.
Descripção ..., vol. I, p. 35-42. No próximo capítulo procederemos a um exame mais pormenorizado
das instruções que eram passadas aos expedicionários portugueses, dentre elas as da expedição à
Lunda, e que no geral sofreram a influência da Sociedade de Geografia de Lisboa, especialmente
quanto às suas intenções de caráter modernizante dos territórios africanos.
131
Conforme Relação dos sócios falecidos em 1909, publicada no Boletim da Sociedade de Geografia
de Lisboa, 7ª. série, n. 12, dez. de 1909, p.469.
132
Apud PEREIRA, Maria Manuela Cantinho. O museu etnográfico da Sociedade de Geografia de
Lisboa..., nota 455, p. 223. Manuela Pereira ressalta ainda que esta diferença colocada por Serpa Pinto
talvez fosse um dos motivos da sua separação de Capelo e Ivens, que preferiam seguir „de machila
pelos caminhos do comércio‟ e não conduzir „uma verdadeira exploração geográfica, segundo Serpa
Pinto‟.

80
continental, importantes na esfera da propaganda imperialista finissecular, para os fins
da colonização dos territórios africanos não eram entendidas como apropriadas. 133

Atreladas à linguagem científica, as expedições das últimas décadas do século XIX, no


geral, procuravam realizar estudos das terras visitadas na tentativa de responder
questões similares àquelas colocadas por Henrique de Carvalho:

"Que raças habitavam todas as terras até á Mussumba? Que línguas


fallavam? Quaes os seus usos e costumes? Quaes os seus caracteristicos
ethnographicos? Qual a influencia do meio que os cercava? Qual a sua forma
de governo? A sua politica? A sua historia? Em fim, como aproveitá-los para
o bem, sem a macula da escravidão?” 134

Neste sentido, o Parecer da Comissão Africana da Sociedade de Geografia de Lisboa


sobre a expedição à Lunda, requisitado pelo ministério da marinha e ultramar, ratificou
que não se tratava „rigorosamente de uma Expedição de descoberta de novos caminhos
e regiões, e sendo o principal objetivo o restabelecimento das relações com o Muata-
Yanvo‟, anteriormente realizado pelo comerciante Joaquim Rodrigues Graças, na década
de 1840:

“... Considerâmos o projecto sobre que temos de pronunciar-nos como o de


uma missão, principalmente commercial e diplomatica, destinada:
1º. A estudar os meios mais praticos e faceis de assegurar e desenvolver as
relações commerciaes entre os territórios e portos da nossa provincia de
Angola e os povos e territórios sujeitos á dominação do Muata-ya-nvo;
2º. Renovar junto d'este a memoria e cordialidade das relações antigas,
reforçar no seu animo e governo a estima e o respeito pelos portuguezes,
vigiar e combater as influencias estranhas e hostis que tendam a alheal-o de
nós e promover, emfim, os trabalhos convenientes no sentido de fixar
n'aquellas regiões, e junto d'aquelle potentado, o prestigio e auctoridade da
civilisação portugueza por meio do estabelecimento de uma missão religiosa,
de um „residente‟ político ou de algumas feitorias nacionaes.

133
Sobre as expedições geográficas portuguesas, com forte influência da escola francesa de cartografia e
que penetravam as regiões à procura de nascentes e traçados de rios e „medir com rigor os territórios‟
para a elaboração de mapas com vistas ao uso comercial e político, ver o capítulo As explorações
terrestres e o desenvolvimento das ciências geográficas no século XVIII. A grande reforma da
cartografia africana de Maria Emília Madeira Santos na sua obra Viagens de exploração terrestre dos
portugueses em África. Lisboa: CEHCA; IICT, 1988, p. 143-147.
134
CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. I, p. 45-46. Neste ponto não resisto à digressão: o
quanto da Filosofia da História de Hegel, que entendia ser a África uma „terra do ouro, voltada para si
mesma, a terra-criança que fica além da luz da história autoconsciente, encoberta pelo negro manto
da noite...‟, [não] influenciou a busca de Henrique de Carvalho da história da Lunda? Para o
pensamento do filósofo, ver: HEGEL, G.W.F. Filosofia da História. Brasília: Editora da UNB, 1995,
p. 83-84.

81
[...]
São do maior interesse todas as informações que a Missão possa colher
ácerca dos caminhos commerciaes mais faceis e seguidos, dos processos,
necessidade e preferencias do commercio indigena, das aptidões do solo e do
clima, dos costumes, tendencias e situação dos diversos povos, em summa,
de quanto importa ao melhor desenvolvimento das nossas relações
mercantis. Estudar e pesquisar o procedimento e propositos dos exploradores
e agentes estrangeiros, é necessariamente um dos fins da Missão
portugueza.” 135

Resumindo: recusada a viagem de aventuras, os propósitos do militar Henrique de


Carvalho ultrapassavam os princípios da exploração geográfica e comercial, eles
incluíam também os preceitos da via etnográfica que estava de acordo com o novo
conceito de exploração científica, defendido desde o início dos anos oitenta na
Sociedade de Geografia de Lisboa e que objetivava a colonização dos territórios
africanos. 136

Tendo isto posto, concordamos com Manuela Cantinho Pereira, que esta conclusão não
retira quaisquer merecimentos da obra de Henrique de Carvalho, mas permite entender
o seu significado como testemunho dos grupos sociais africanos que retratou.

Neste sentido, a importância de destacar as ideias e opiniões de outros atores sociais da


mesma época de Henrique de Carvalho – tais como Oliveira Martins, Sá da Bandeira,
João Andrade Corvo, Saldanha da Gama e Antonio Enes, com exceção do primeiro,
referidos no capítulo anterior – encontra-se no fato delas constituírem um parâmetro
para analisarmos o pensamento colonizador do major português, que a despeito da sua
proximidade com algumas destas figuras, especialmente Oliveira Martins e Enes,
parece-nos com elas ter mais divergências do que convergências.

135
Cf.: Parecer da Comissão Africana da Sociedade de Geografia de Lisboa, de 03 de fevereiro de
1884. In: CARVALHO, Henrique A. D. Descrição ..., vol. I, p. 6-14.
136
Cf.: PEREIRA, Maria Manuela Cantinho. O museu etnográfico da Sociedade de Geografia de
Lisboa..., p.347-348.

82
As singularidades do pensamento colonial do português Henrique de Carvalho

Salvo Antonio Enes, a primeira diferença a pontuar entre Henrique de Carvalho e estes
homens é a de ter sido uma pessoa com grande experiência em várias partes do
chamado „ultramar‟ português.

Ex-aluno do curso de infantaria da Escola do Exército e com curso incompleto de


engenharia, Henrique de Carvalho com a idade de 24 anos iniciou sua carreira fora de
Portugal, na região de Macau em 1867, local onde permaneceu até o ano de 1873. Como
alferes e em seguida tenente do exército português e servindo no setor de obras
públicas, trabalhou na construção do Hospital Militar de S. Januário e, como mostrou ao
longo do tempo ser do seu feitio, desta experiência publicou um relatório intitulado
Memória dos trabalhos que se emprehenderam para edificação do hospital militar de
sam Januario.

Logo após, no mesmo ano de 1873, foi enviado para São Tomé, tornado capitão foi
nomeado para o comando da Companhia de Polícia e em seguida, diretor das Obras
Públicas até o ano de 1876. Sua produção escrita neste período foi a publicação da
primeira Estatística de todos os ramos de administração da Colônia.137

No ano de 1877, Henrique de Carvalho foi chamado pelo novo governador de


Moçambique, Francisco Maria da Cunha, a prestar serviços na então Lourenço Marques
e na sequência em outras comissões em Ibo e Quelimane. Desta experiência na parte
oriental do continente africano, que durou aproximadamente oito meses, publicou anos
mais tarde, em 1883, um artigo sobre o hospital de Lourenço Marques. 138

Na metade do ano de 1878 foi nomeado para o Serviço das Obras Públicas de Luanda,
onde ficou até o ano de 1882. Como major e engenheiro auxiliar dirigiu a construção do
Hospital Maria Pia, sobre o qual escreveu um relatório que publicou no volume que diz

137
LAVRADIO, José Maria de Almeida Correia de Sá, Marquês do (1874-1945). Henrique Augusto
Dias de Carvalho pelo márquez do Lavradio. Lisboa: Divisão de publicações e biblioteca; Agência
geral das colônias, 1935, p. 5-6.
138
O artigo citado pode ser visto no número 5 do periódico As Colónias Portuguezas, à época de
propriedade de Henrique de Carvalho, em: “Hospital de Lourenço Marques”. As Colónias
Portuguezas. Revista Illustrada. Lisboa, 01 de maio de 1883, nº. 5, anno I, p. 55.

83
respeito à colonização de Angola pertencente à obra Expedição Portuguesa ao
Muatiânvua.139 Foi nesta construção civil que Henrique de Carvalho conheceu os
trabalhadores que em 1884 foram por ele contratados para a expedição à Lunda. Estes
doze homens que foram chamados de „loandas‟ pelo major português constituem o
principal grupo de trabalhadores que analisaremos no último capítulo.

Neste período, em Luanda, Henrique de Carvalho juntamente com integrantes da elite


local criaram a Sociedade Propagadora de Conhecimentos Geográficos Africanos e
como membro-fundador redigiu os seus estatutos. 140

Entre os sócios da Sociedade de Geografia de Luanda, como também era conhecida a


entidade, encontravam-se pessoas como Guilherme Gomes Coelho, segundo tenente da
armada real e diretor do Observatório meteorológico de Luanda, construído em 1881 no
edifício da antiga igreja de N.Sª. da Conceição, devido à sua torre, „um ponto de
referência, à distância, na Cidade alta‟.141 Também o oficial-médico da armada real e
cirurgião-mór dos Serviços de Saúde da Província de Angola, José Baptista de Oliveira.

Outros sócios-fundadores da Sociedade tinham uma destacada participação na imprensa


luandense finissecular: o advogado Alfredo Mântua, que em 1882, havia se oferecido
para fazer parte da expedição de Henrique de Carvalho, o padre António Castanheira
Nunes, professore em Lunda e que, em 1884, foi nomeado pelo ministério da marinha e
Ultramar para compor o grupo da expedição à Lunda, cargo que não aceitou alegando a
„idade avançada (50 anos), os baixos salários oferecidos e por estar a pouco tempo de
ser reformado‟,142 e, ainda, António Urbano Monteiro de Castro, que por ser

139
Para tanto, ver: CARVALHO, Henrique A. D. Relatório apresentado pelo major Henrique de
Carvalho ao diretor das obras públicas da província de Angola acerca da construção do Hospital Maria
Pia, incluindo anexos documentais, de 01 de junho de 1881. In: Expedição Portuguesa ao Muatiânvua.
Meteorologia, Climatologia e Colonização: estudos sobre a região percorrida pela expedição
comparados com os dos benemeritos exploradores Capello e Ivens e de outros observadores nacionaes
e estrangeiros: modo practico de fazer colonisar com vantagem as terras de Angola. Lisboa, 1892, p.
119-128.
140
Cf.: LOPO, Júlio de Castro. Recordações da capital de Angola de outros tempos. Luanda: Centro de
Informação e Turismo de Angola, 1963, p.8.
141
Cf.: MOURÃO, F. A. A. Continuidades e descontinuidades de um processo colonial através de uma
leitura de Luanda: uma interpretação do desenho urbano. São Paulo: Terceira Margem, 2008, p. 93.
142
O apoio ao pedido de exoneração de Castanheira Nunes foi manifesto pelo governador-geral
Francisco do Amaral em correspondência ao governo português porque acreditava que o „gênero deste
serviço‟ pedia mais um missionário vindo do Colégio das Missões Ultramarinas, „aos quaes cumpria

84
administrador do concelho de Luanda, foi a autoridade que, em junho de 1884, lavrou o
contrato dos 12 trabalhadores loandas com o major Henrique de Carvalho. 143

Interessante destas alianças de Henrique de Carvalho é que entre elas se encontravam


críticos da política colonial portuguesa, como António Urbano Monteiro de Castro e
Alfredo Mântua que na década de 1860 foram responsáveis pela publicação do jornal A
Civilização da África Portuguesa de cunho republicano.144

Com o término de seu trabalho em 1882, o período até sua nomeação como chefe da
expedição em 1884, passado em Lisboa, nos parece ter sido de preparativos para colocar
em prática o seu projeto de viagem à Lunda, que entendemos ter nascido nos anos que
145
Henrique de Carvalho passou em Luanda. Neste sentido, a revista ilustrada As
Colónias Portuguezas, criada em 1883, serviu como um elemento de „propaganda das
vantagens de um possível reatamento das antigas relações lusas com os estados da
Lunda‟, conforme o próprio major português. 146

No momento da sua criação eram diretores da revista, além de Henrique de Carvalho,


G. D. Pessoa Allen e Manuel Ferreira Ribeiro, este último era médico-sanitarista com
experiências de trabalho em São Tomé e Angola e autor de estudos de „medicina

mais do que a outro funcionario da província em vista da educação que receberam‟. Cf.:
Correspondência do governador-geral Francisco Joaquim Ferreira do Amaral ao ministério da marinha
e ultramar que trata do pedido de exoneração do padre Antonio Castanheira Nunes do cargo de
missionário da expedição ao Muata-Ianvo. 24 de maio de 1884. PADAB, DVD 19, AHA Códice 40 -
A-9-3, Pasta 78, DSC 00022. Para a informação sobre Alfredo Mântua e também sobre Castanheira
Nunes ver PEREIRA, Maria Manuela Cantinho. O museu etnográfico da Sociedade de Geografia de
Lisboa..., p. 354, nota 685 e 686.
143
Sobre a Sociedade Propagadora de Conhecimentos Geográficos Africanos, ver: LOPO, Júlio de
Castro. Um doutor de Coimbra em Luanda. Luanda: Museu de Angola, 1959, p. 20 (Separata de
Arquivos de Angola, nº.s 47 a 50) e FREUDENTHAL, Aida. Voz de Angola em tempo de Ultimato.
Estudos Afro-asiáticos. Rio de Janeiro: Candido Mendes, v. 23, n. 1, jan. jun. 2001, nota 4.
144
Mario Antonio destacou a colaboração de Henrique de Carvalho, no período em que já estava em
Lisboa, com o jornal A Verdade de Alfredo Mântua. Em um destes contatos, o major português tratou
das eleições e representação de Angola no parlamento português. Cf.: OLIVEIRA, Mario Antônio F. A
formação da Literatura Angolana (1851-1950). Lisboa: Imprensa Nacional, 1997, p.62.
145
O biógrafo de Henrique de Carvalho, o seu filho João Augusto de Carvalho, apresentou a
possibilidade de seu pai já ter saído de Luanda com a perspectiva da expedição, uma vez que colega de
infância do ministro da marinha e ultramar, visconde de São Januário e de Luciano Cordeiro, secretário
da SGL já havia com eles principiado um acordo nesta questão, o qual ficou guardado como segredo
de estado antes de sua realização para não instigar a „cobiça das outras potências imperiais‟. Cf.:
CARVALHO, João Augusto de Noronha Dias de. Henrique de Carvalho. Uma vida ao serviço da
pátria. Lisboa: Serviços Gráficos da Liga dos Combatentes, 1975, p. 109-110.
146
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. I, p. 4.

85
colonial‟. Entre aqueles que participavam como colaboradores estavam Visconde de S.
Januário, Luciano Cordeiro e Manuel Pinheiro Chagas, então ministro da marinha e
ultramar, foi quem nomeou Henrique de Carvalho chefe da viagem à Lunda. Depois de
sua partida para a expedição, em 1884, Manuel Ferreira Ribeiro e seu irmão António
Ferreira Ribeiro assumiram a direção da revista.

Neste periódico, ainda em Lisboa, Henrique de Carvalho publicou artigos bastante


elucidativos de seu pensamento colonial, dentre eles destacamos os seguintes títulos:
Escola profissional de Loanda e Explorações ao Muatianvo (nº.2, fev. de 1883),
Colónias penitenciarias e São Thomé - Aquisição de braços (nº.5, maio de 1883), S.
Thomé, sua questão vital (nº.8, ago. de 1883), S. Thomé, seu estado financeiro (nºs. 10,
11, 12 e extraordinário de out. a dez. de 1883), Timor, abertura de cannaes (nº.
extraordinário de dez. de 1883), além do já citado, Hospital de Lourenço Marques. Na
maioria das edições do primeiro ano da revista tanto o editorial quanto a seção Notícias
das Colônias também foram escritos por Carvalho. 147

Destes títulos destacamos aquele sobre o ensino em Angola, que propunha, diferente
dos que pensavam como Oliveira Martins, o ensino profissional para a mocidade
indígena. Na opinião de Henrique de Carvalho, somente a educação para o trabalho
poderia contribuir para „o desenvolvimento e prosperidade das nossas possessões‟, por
isso a necessidade de „buscar os meios para as satisfazer, como um dever imperioso
dos que teem esta missão‟. Para tanto, projetava a continuação das obras do edifício da
escola, iniciadas em 1878 nas ruínas do extinto convento de S. José e que se
encontravam abandonadas. 148

Na mesma perspectiva, o artigo Colónias Penitenciarias sugeria a regeneração para o


trabalho daqueles deportados condenados pela justiça portuguesa. Também propunha às
colônias penais os mesmos cuidados com a questão da salubridade tomados com outras
colônias de povoamento branco:
147
A Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro guarda em seu acervo de obras raras todos os números do
primeiro ano desta publicação além do número especial, de setembro de 1885, dedicado “aos nossos
actuaes exploradores: Serpa Pinto, Cardoso, Paiva de Andrade, Henrique de Carvalho, Sesinando
Marques e Anchieta”. Para citação completa dos artigos ver a seção Fontes e Bibliografia no final
deste estudo.
148
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Escola Profissional de Loanda. As Colónias Portuguezas. Revista
Illustrada. Lisboa, 01 de fevereiro de 1883, nº. 2, anno I, p. 17-18.

86
“Como sanccionando-se a pena de degredo, não houve em vista, tirar a vida
ao sentenceado martyrisando-o com faltas de recursos indispensaveis nos
pontos onde fosse maior a insalubridade; e antes se deprehende que o
legislador teve em vista, aproveitar a vida d'esse homem em beneficio da
sociedade regenerando-o pelo trabalho, durante a expiação do castigo; não
há que hesitar, sua sentença póde ser cumprida em Africa na conformidade
da lei, mas em localidades em que o trabalhador europeu possa resistir a
acção do clima.”149

Nestes e em outros escritos de Henrique de Carvalho, desenvolvimento e regeneração


foram termos comumente utilizados também para se referirem aos empreendimentos
lusos de construção civil iniciados e em seguida abandonados pela alegação de falta de
recursos – algo que muito irritava o engenheiro-major e que dá o tom de seu
pensamento colonial:

149
Neste artigo o major português recomendou as regiões de Pungo-Andongo e Moçamedes como locais
apropriados e também projetou a organização interna destas colônias. Cf.: CARVALHO, Henrique A.
D. Colónias Penitenciarias. As Colónias Portuguezas. Revista Illustrada. Lisboa, 01 de maio de 1883,
nº. 5, anno I, p. 52-53.

87
O texto da anotação referente às imagens apresentadas diz:

“Vista nº.1 - É uma Egreja na Villa do Dondo que se começou, mas depois
abateu o tecto antes de concluida, e assim ficou á 5 annos.
É pena realmente que nós portuguezes na actualidade assim vamos dando
[dem]onstração que olvidamos quanto nossos antepassados alcançaram em
Africa tendo por arma unicamente a observancia dos preceitos da nossa
religião; e tambem que consitamos em nosso desfavor que as missoes
Americanas ali e mais para o interior, empreguem todos os meios ao seu
alcance para ir cathechisando o indigena para a sua.
Talvez um dia, os brados que se levantem como protesto á nossa tolerancia
seja tardio.
O edificio que vemos na vista inferior pertence á caza ingleza na villa do
Dondo, caza que há muitos annos se tem sabido manter não só ali como em
differentes pontos em toda a margem direita do Cuanza. H. de Carvalho”. 150

De outra parte, a larga produção escrita de Henrique de Carvalho, também possibilitada


pela sua experiência na administração colonial, leva-nos a perceber que em
determinados aspectos ela pode ser enquadrada na historiografia de divulgação, quando
se refere, como no trecho acima, à demonstração de esquecimento por seus
contemporâneos dos feitos dos portugueses antigos, por exemplo. No entanto, como um
homem de campo não deixou nunca de propor soluções para os problemas que levantou
– algo que vimos nos artigos publicados na revista As Colónias Portuguezas,
anteriormente citados. 151

Esta característica do militar português também está presente na obra sobre a viagem à
Lunda. Intitulada Expedição Portuguesa ao Muatiânvua 1884-1888, esta obra é
composta de oito volumes e um álbum fotográfico, sendo que quatro deles referentes à
narrativa da viagem, um outro que corresponde à história e etnografia da Lunda, um

150
Tanto as imagens como o fac-símile de Henrique de Carvalho podem ser consultados em:
CARVALHO, João Augusto de N. D. Henrique de Carvalho ..., p. 32 e 99.
151
Por vezes os projetos de Henrique de Carvalho não eram bem recebidos por outras autoridades: como
na vez em que foi acusado pelo governador-geral de Angola de ser „um homem de ciência e não
prático‟ por ter sugerido as tropas de 3ª. linha do exército para realizarem a manutenção das estradas (a
preferência do governador era pelos „filhos‟ dos sobados) e também os „postos avançados‟ no interior
equipados com ambulância para os primeiros socorros e instrumentos meteorológicos. Para tanto, ver:
Correspondência do governador-geral Francisco Joaquim Ferreira do Amaral ao ministério da marinha
e ultramar que trata do ofício do chefe da expedição ao Muata Yanvo. 14 de agosto de 1884. Projeto
Acervo Digital Angola Brasil (PADAB), DVD 19, AHA Códice 40 -A-9-3, Pasta 78, DSC 00160 a
00162.

88
sexto sobre a língua lunda e outro ainda sobre meteorologia, clima e colonização
portuguesa em Angola.152

Há nela ainda o volume de autoria do farmacêutico e subchefe da viagem Sisenando


Marques que, conforme o título, trata dos climas e das producções das terras de
Malange à Lunda, por meio de observações meteorológicas diárias, variadas
monographias de vegetaes e de alguns animaes, doenças que se manifestaram no
pessoal da expedição, qualidade dos terrenos, estado das povoações etc., etc.

Além desses oito volumes, existe o álbum da expedição com fotografias tiradas por pelo
terceiro chefe da expedição, o capitão Sertório de Aguiar e com legendas e comentários
de Henrique de Carvalho, a partir do qual foram produzidas as inúmeras gravuras
publicadas nos oito volumes. Atualmente, este álbum constitui uma raridade encontrada
com colecionadores e em duas instituições portuguesas, a Biblioteca Nacional de
Portugal e a Sociedade de Geografia de Lisboa, que não dispõem de todas as fotografias
que pertenciam ao álbum original. 153

Henrique de Carvalho justificou o valor científico e político de todos estes volumes na


carta-dedicatória ao ministro da marinha e ultramar Manuel Pinheiro Chagas, que abre o
primeiro volume da Descripção:

“Todas as investigações e estudos a que procedeu a Expedição foram além


do que no seu inicio se podia suppor; excederam os limites que lhe foram
marcados, porque tambem, por circumstancias que não era dado prever, não
só duplicou o tempo calculado para o desempenho da sua tarefa, mas ainda
se alargou o campo em que essas investigações e estudos deviam ser feitos,
em territorios cujos habitadores não tinham ainda visto o homem branco, - o
que tudo consta das minuciosas communicações mensaes e mais documentos
que sempre enviei á Secretaria dos Negocios de Marinha e Ultramar, e

152
Sobre a presença de projetos na obra, temos, por exemplo, o último capítulo e o apêndice do primeiro
volume da narrativa da viagem chamados, respectivamente, O que deve ser Malange e Plano e
Orçamento para o novo governo de Malange, em: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. I,
p. 531-628. E ainda o próprio volume Meteorologia, Climatologia e Colonização, tido por seu autor
como um manual prático de fazer colonizar com vantagem as terras de Angola, como nos é dito em
seu subtítulo.
153
Para a citação completa dos volumes ver a seção Fontes e Bibliografia no final. As citações das
fotografias do álbum estão conforme publicadas em Pioneiros Africanos de Beatrix Heintze. Sobre as
diferentes composições do álbum, cada qual com fotografias diferentes faltando ver: HEINTZE,
Beatrix. In Pursuit of a Chameleon: Early Ethnographic Photography from Angola in Context. History
in África. vol. 17, p. 131-156, 1990.

89
tambem, quando isso era possivel, a tres dos nossos principaes institutos
scientificos.
Essas investigações e estudos constituem um volumoso e variado material
que torna assaz conhecida a vasta região explorada, sob muitos pontos de
vista, quer nos interesse da sciencia quer no do paiz, e por isso, além d'esta
obra geral, foi organisado um album ethnologico de photographias, que
esclarece todos os estudos da Expedição, e coordenaram-se mais quatro
volumes parciaes, referentes: um, ás producções e aos climas; dois, aos
vocabularios e á grammatica das linguas; e o outro, á ethnographia e historia
tradicional dos povos; constituindo o todo um trabalho baseado em factos
escrupulosamente observados, e devidamente elucidados por gravuras,
chromos, cartas, mappas, schemas e diagrammas.”154

Sobre estas cartas-dedicatórias publicadas como prefácios no início de cada um dos


volumes da Expedição Portuguesa ao Muatiânvua, com exceção do volume escrito por
Sesinando Marques, Ana Paula Tavares afirmou que por terem sido escritas durante o
tempo de edição e publicação da obra, elas faziam parte de uma estratégia
argumentativa que tinha por intuito legalizar e legitimar os conteúdos de cada um dos
volumes por uma personalidade representante do poder português, neste caso do
ministro da marinha e ultramar. 155

Neste sentido, há ainda neste trecho citado uma questão que pode nos permitir avançar
no entendimento sobre as singularidades de Henrique de Carvalho e de sua obra: a
defesa da demora e, consequentemente, dos maiores gastos da expedição, já que ela
estava programada para ocorrer no período de dois anos e com orçamento prévio
ajustado, com exceção dos pagamentos aos carregadores, por falta de bases e ainda
porque se contava com o auxilio dos comerciantes portugueses. 156

154
Note-se que a pretensão de Henrique de Carvalho no momento de publicação do volume 1 da
Descripção era levar a público dois estudos sobre gramática lunda e, ainda, que o volume
Meteorologia, Climatologia e Colonização não fazia parte de seus planos neste momento de integrá-lo
a obra Expedição Portugueza ao Muatiânvua. Para a citação ver: Carta dedicatória ao Conselheiro
Manuel Pinheiro Chagas, em: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. I, s.p.
155
Cf.: TAVARES, Ana Paula. Na Mussumba do Muatiânvua quando a Lunda não era leste. Estudo
sobre a Descrição da Viagem à Mussumba do Muatiânvua de Henrique de Carvalho. Lisboa, 1995.
Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira e Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa) –
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, p. 33-34.
156
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. I, p.31. Estimativa sobre o tempo de duração
pode ser vista no 18º item das Instrucções, que trata também da importância do chefe da expedição
estabelecer com o muatiânvua um acordo para deixar na mussumba um residente político fixo, para
que „as relações entre lusos e lundas não se afrouxassem‟. Pelo tempo que Henrique de Carvalho
permaneceu na mussumba se considerou como sendo esta figura de representação, porém devido a
guerra entre lundas e chokwes não pode continuar e nem deixar alguém no seu lugar. Para o texto da
Instrucção n.18 ver: Descripção ..., vol. I, p. 41.

90
Assim, o procedimento de Henrique de Carvalho de documentar todos os seus passos e
publicá-los ao longo dos volumes, além de nos remeter aos seus ideais positivistas de
comprovação da realidade, pode também significar a maneira que encontrou para se
defender das críticas no seu retorno da viagem:

“Facilmente se acreditou que a minha Expedição emquanto luctava no


theatro das operações por cumprir os deveres que lhe fôram impostos, sem
lhe importar as circumstancias anormaes do meio em que vivia e os
sacrificios a fazer, que estava sendo muito dispendiosa ao governo, nada
produzindo de util!
Esta injustiça que por vezes se lhe fizera e muito me magoou, sem querer,
agora, recordar as textuaes palavras com que muito se pretendeu ferir-me em
alguns jornaes dos mais lidos e acreditados d'esta capital [Lisboa],
felizmente posso rebater porque não me faltam para isso todos os elementos
precisos.”157

Sobre estes gastos temos notícias na correspondência do governador-geral Guilherme


Augusto de Brito Capello (1886-1892) ao ministério da Marinha e Ultramar, que
informou o dispêndio da expedição pelos cofres de Angola com pagamentos ao pessoal
e aos fornecimentos enviados de Malanje.158 Há uma probabilidade desta informação ter
sido mais que uma comunicação de rotina do governador sobre gastos públicos. Talvez
ela fosse uma espécie de justificativa ao fato dele, em maio de 1887, ter recusado o
pedido de socorro do subchefe da expedição, Sisenando Marques, para o seu colega que
ainda se encontrava na mussumba do muatiânvua, com o argumento de esperar
ulteriores noticias da expedição ou o regresso dos carregadores. Alguns meses depois,
o mesmo governador teve que dirigir outra carta ao governo português notificando o
159
fato de se ter perdido o contato com o chefe da expedição.

157
Esta questão foi longamente discutida, com palavras e números, por Henrique de Carvalho no
capítulo Despezas, do qual foi retirada a citação acima: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ...,
vol. IV, p. 755-771.
158
Cf.: Correspondência do governador-geral G.A. de Brito Capello ao ministério da marinha e ultramar
informando os gastos da expedição ao Muata Yanvo. 10 de outubro de 1887. Projeto Acervo Digital
Angola Brasil (PADAB), Pasta 85, Códice 46 -A-10-4, DSC 00033.
159
Cf.: Correspondência do governador-geral G.A. de Brito Capello ao ministério da marinha e ultramar
remetendo cópia de um ofício do subchefe da expedição ao Muata Yanvo relativos aos socorros
prestados ao major Carvalho. 09 de maio de 1887. PADAB, DVD 20, Pasta 83, Códice 45 -A-10-3,
DSC 00107. O fac-símile desta última carta de Guilherme A. Brito Capello, datada de 12 de setembro
de 1887, pode ser consultado nos anexos da dissertação de Ana Paula Tavares, Na Mussumba do
Muatiânvua quando a Lunda não era leste.

91
Separados desde novembro de 1886, por falta de recursos, tanto o subchefe quanto o
ajudante, o capitão Sertório de Aguiar, junto com grande parte dos trabalhadores,
tiveram que ficar em Malanje à espera do retorno de Henrique de Carvalho, algo que só
ocorreu em outubro de 1887. Enquanto isto não ocorria, com a ajuda dos comerciantes
locais deviam enviar suprimentos a parte da expedição que havia permanecido na
Lunda. Por isso o ofício de Sisenando Marques ao governador-geral da época pedindo
ajuda.

O tempo excedido da expedição e, consequentemente, dos gastos foram justificados por


Henrique de Carvalho pelos seus estudos sobre a Lunda e também pelas vantagens aos
portugueses de sua interferência na política regional, apesar das frequentes demoras nos
acampamentos ao longo do caminho, nas ocasiões em que recebia os dirigentes políticos
locais para tratar do término da guerra entre lundas e chokwes e discutir com eles as
bases das mucandas (tratados) assinadas por ambas as partes. 160

Além de questões de cunho mais prático como esta dos gastos, para compreender o
pensamento colonial de Henrique de Carvalho, é importante destacarmos Ethnographia
e História Tradicional dos Povos da Lunda, já que é o volume que mais vem sendo
utilizado pelos estudiosos da Lunda e, principalmente, da influência do trabalho de
Henrique de Carvalho sobre escritores contemporâneos, entre eles, Pepetela e Castro
Soromenho.161

160
A interferência do major português na política regional pode ser analisada nos volumes da
Descripção e na documentação publicada na obra: CARVALHO, Henrique A. D. A Lunda ou os
estados do Muatiânvua. Domínios da soberania de Portugal. Lisboa: Adolpho, Modesto & Cia., 1890.
Este livro, que não faz parte da obra Expedição Portuguesa ao Muatiânvua, foi publicado durante os
debates entre portugueses e belgas sobre o traçado da fronteira entre Angola e o Estado Independente
do Congo. Ele traz conforme o seu longo subtítulo os documentos comprobatórios, segundo Henrique
de Carvalho, da „antiga expansão e influencia dos Portuguezes, Convenções com as Nações
Estrangeiras e Estado Livre do Congo sobre a divisão política do Continente Africano; tratados,
declarações e convenções com os diversos potentados dos Estados indigenas, embaixadas que teem
vindo a Loanda e ainda pela correspondencia official trocada entre o Chefe da Expedição Portuguesa
ao Muatiânvua de 1884-1888 com as diversas auctoridades portuguezas e indigenas‟.
161
Estes são os casos de pelo menos dois estudos que conhecemos da área de teoria literária e literatura
comparada que utilizam Ethnographia e Historia dos povos da Lunda: TEIXEIRA, Valéria M.B. A
recuperação da cultura tradicional angolana a partir da releitura do mito, da lenda e da História em
Lueji (O nascimento dum Império). São Paulo, 1999. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e
Literatura Comparada). FFLCH-USP e SILVA, RAQUEL. Figurações da Lunda: experiência histórica
e formas literárias. São Paulo, 2007. Tese (Doutorado em Estudos Comparados de Literaturas de
Língua Portuguesa) FFLCH-USP.

92
Nestes casos os autores encontram evidências em Ethnographia e História para
argumentar sobre as artimanhas do discurso científico que tinha por objetivo a
persuasão da conquista colonial tanto dos africanos quanto dos europeus no quadro de
disputa imperialista. São passagens em que se encontram termos muito comuns do
termos colonia- discurso hegemônico europeu da época: indolência, preguiça, falta de inteligência,
listas preconcei-
tuosos. ignorância, apatia - adjetivos utilizados por Henrique de Carvalho e que impressionam
por sua intenção de demonstrar uma imagem de inferioridade e primitivismo dos
africanos. 162

Este volume impressiona por tratar de fatos e pessoas com esta linguagem agressiva se
comparados aos mesmos fatos e pessoas tratados nos volumes da Descripção da
viagem. Parece-nos que a preocupação de Henrique de Carvalho com a descrição
etnográfica à luz dos preceitos da ciência o fez se municiar de termos em voga na época,
dando-nos a sensação de sua indiferença e preconceito. Este movimento também ocorre
com as gravuras feitas a partir das fotografias do álbum da expedição e que foram
publicadas nos volumes da narrativa e em
Ethnographia e História:

162
Cf.: SILVA, RAQUEL. Figurações da Lunda ..., p.24.

93
As imagens acima são de Malia (à direita), Camonga, mulheres de Paulo Mujinga
Congo, ao centro. Dom Paulo, como gostava de ser chamado, era líder da comitiva
conguesa que acompanhou durante um tempo a expedição de Henrique de Carvalho e
que possibilitou ao major português trocar correspondência com o rei do Kongo. 163

Note-se que na imagem da esquerda, a que pertence ao volume Ethnographia e


História, Malia, Paulo e Camonga estão representados como „typos‟ do Kongo e da
Lunda, da região do rio Kasai, diferentemente daquela publicada no volume 2 da
Descripção (imagem da direita) em que nos são apresentados os seus nomes.164

A historiadora Beatrix Heintze já havia feito esta observação sobre os diferentes


discursos presentes na obra de Henrique de Carvalho, precisamente no que se refere às
fotografias da expedição. Partindo do exemplo da fotografia e da gravura dos
carregadores Filipe e Ricardo, que também apresentados de maneira diferente nos
volumes que compõe a obra Expedição Portuguesa ao Muatiânvua, ela argumenta que
este processo de anonimização das pessoas pela tipificação de estereótipos na
monografia etnográfica tinha por objetivo representar uma totalidade, no caso a da
tribo a partir de um ou dois exemplares.

Deste modo, para a historiadora a inserção da gravura como uma imagem de tipo estava
mais de acordo com os princípios da ciência antropológica, da qual Ethnographia e
História como gênero de produção de conhecimento fazia parte, e menos com a
intenção ou visão do fotógrafo no momento da produção da fotografia. 165

163
As cartas entre Henrique de Carvalho e o rei do Kongo podem ser consultadas na obra A Lunda,
p.131-135. Sobre a historia da comitiva do Kongo, ver: Correspondência de Henrique A. D. Carvalho
ao Ministro dos Negócios de Marinha e Ultramar, datada da estação Conde de Ficalho, margem
esquerda do Chiumbue, em 28 de fevereiro de 1886. In: A Lunda ..., p. 139-147 e, ainda:
CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. II, p. 294-295.
164
As imagens podem ser consultadas em: CARVALHO, Henrique A. D. Ethnographia e História ..., p.
225; ------. Descripção ..., vol. II, p. 636 e HEINTZE, Beatrix. Pioneiros Africanos ..., imagem XIX,
Álbum da Expedição ao Muatianvua, AMNE, nº. 112.4 e, neste mesmo, o capítulo sobre a história de
Paulo Mujingá Congo e as suas caravanas, entre as p. 143-153.
165
Cf.: HEINTZE, Beatrix. Representações visuais como fontes históricas e etnográficas sobre Angola.
In: Actas do II Seminário Internacional sobre a História de Angola. Construindo o passado angolano:
as fontes e a sua interpretação. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1997, p. 212-213.

94
Ana Paula Tavares, sobre as fotografias da expedição, afirma que a sua presença e
fotografias.
inclusão em obras posteriores refere-se a um percurso tão longo como ambíguo.
Primeiro porque se perdeu a marca de autor: a autoria passou do ajudante da expedição,
o capitão Manuel Sertório de Aguiar, que de fato foi o fotógrafo da expedição, para
fotografias da expedição e depois muitas vezes, ao menos implicitamente, para o
próprio Henrique de Carvalho. Segundo, porque a fotografia também deve ser julgada
pelo papel que cumpria nas expedições, para além dos estudos etnográficos, o fato dela
servir de testemunha a favor do real representado na escrita, atributo muito caro aos
europeus da época na sua corrida imperialista pelos territórios africanos. 166

Enfim, longe de esgotar esta questão neste momento,167 o que pretendemos ao ressaltar
os desníveis presentes no pensamento e no discurso colonial de Henrique de Carvalho é
propor a observação criteriosa dos passos de obtenção e realização de todos os seus
trabalhos, assim como entende Ana Paula Tavares. 168

Prosseguindo, especificamente sobre a Descripção da viagem à mussumba do


muatiânvua: os seus quatro volumes foram publicados em anos diferentes e divididos
em capítulos delimitados pelo percurso da viagem.

O primeiro volume é de 1890 e relata a preparação da expedição em Lisboa e as


publicação
experiências vividas na viagem entre Luanda e o rio Kwango; o segundo, publicado em
1892, trata do percurso entre o Kwango e o Chicapa; o terceiro, de 1893, do Chicapa ao
Luembe; e, finalmente, o quarto volume, de 1894, da região do Luembe até a mussumba
lunda e o retorno a Lisboa. Foi neste último volume que Henrique de Carvalho
descreveu a sua presença no palco da guerra entre lundas e chokwes que colocou fim à
hegemonia política lunda na África Centro-Ocidental.

166
Cf.: TAVARES, Ana Paula. Na mussumba do Muatiânvua quando a Lunda não era leste ..., p.26-28.
167
Já que para isto deveríamos (algo que ainda não conseguimos) proceder também à análise dos
gravuristas que copiaram as fotografias e por vezes modificaram a paisagem de fundo, como na
gravura feita a partir da mesma fotografia que retrata a embaixada da Lunda e que será alvo de nossa
atenção, por outros motivos, no próximo capítulo. Adiantando a citação, esta gravura e fotografia
podem ser vistas em CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. IV, entre as p. 560-561 e
HEINTZE, Beatrix. Pioneiros Africanos ..., imagem XXXIX.
168
Cf.: TAVARES, Ana Paula. Na mussumba do Muatiânvua quando a Lunda não era leste ..., nota 52,
p.28.

95
Necessária para o entendimento desta Descripção é a consideração de sua inserção em
um conjunto mais amplo de narrativas sobre a África Centro-Ocidental – pelo menos
desde a segunda metade do século XVIII, a produção escrita em decorrência de
tentativas portuguesas de alcançar terras mais ao longe da faixa litorânea, até os escritos
de militares, sertanejos e comerciantes, no século XIX. Configurado ao longo do tempo
por meio de uma cadeia de transmissão de informações, esta produção instrumentalizou
as ações imperiais dos portugueses.

Neste sentido, a importância de pelo menos dois relatos que influenciaram a obra de
referencias do Henrique de Carvalho, pela incorporação de informações sobre a mussumba lunda, o
18 para HC.
caminho para chegar até ela e a existência de um profícuo comércio de marfim na
região: as narrativas do militar Manuel Correia Leitão de 1755 e do representante
comercial de D. Ana Joaquina, Joaquim Rodrigues Graça da década de 1840. 169

As informações de Rodrigues Graça foram destacadas por Henrique de Carvalho como


responsáveis pelos êxitos das explorações alemãs que delas se aproveitaram:

“... comparando os trabalhos dos recentes exploradores allemães ao


Muatianvo, com os do negociante sertanejo Joaquim Rodrigues Graça, em
1843, por aquelles sempre citado, e com os de alguns outros portuguezes
antes e depois d‟este – demonstra que, se houvéssemos aproveitado o
caminho que elles nos franquearam e conselhos que nos legaram, certamente
nos pertenceriam as vantagens, que aquelles vão adquirindo pela sua
persistência em estabelecer relações d‟amisade e commerciaes com aquelle
grande potentado e seus súbditos.” 170

Esta valorização da narrativa de Graça, além da importância de suas informações,


também se refere às questões políticas desencadeadas pela concorrência europeia em
torno do comércio e territórios lundas. Talvez por isso ela tenha sido publicada uma
segunda vez, em 1890, pela Sociedade de Geografia de Lisboa [vide citação em nota], já
que era importante representá-la como parte de uma „linhagem‟ portuguesa de relatos,
169
Cf.: DIAS, Gastão de Sousa (ed.) “Uma viagem a Cassange nos meados do século XVIII”. Boletim
da Sociedade de Geografia de Lisboa, 56ª. série, 1-2, 1938 e GRAÇA, J. Rodrigues. Descripção da
viagem feita de Loanda com destino ás cabeceiras do rio Sena, ou aonde for mais conveniente pelo
interior do continente, de que as tribus são senhores, principiada em 24 de abril de 1843. In: Annaes do
Conselho Ultramarino. Parte não-oficial. 1ª. série, 1854-58, Lisboa: Imprensa Nacional, 1867,
publicado ainda no boletim da SGL: GRAÇA, Joaquim Rodrigues. “Expedição ao Muatiânvua –
diário.” Boletim da Sociedade Geografia de Lisboa, 9ª. série, 8-9, 1890, p. 399-402.
170
Cf.: CARVALHO, H.A.D. Explorações ao Muatianvo. As Colónias Portuguezas. Revista Illustrada.
Lisboa, 01/02/1883, nº. 2, anno I, p. 15.

96
da qual faziam parte as obras dos negociantes sertanejos, dos exploradores e também o
relato de Henrique de Carvalho.

As questões políticas referidas e que coincidem com o processo de edição e publicação


de Expedição Portuguesa ao Muatiânvua referem-se ao período em que portugueses e
belgas disputavam os traçados de fronteiras na região centro-ocidental do continente.
Estas disputas que se tornaram conhecidas como „a questão da Lunda‟ provocaram uma
série de eventos na Europa, depois da Conferência de Berlim (1884-1885), o Acordo de
Paris (09/02/1891), a Convenção de Lisboa (25/05/1891) e os encontros para a
aprovação da demarcação da Lunda em 26 de junho de 1893 e outro para sua
ratificação, em Bruxelas, a 24 de março de 1894. 171

Dentro deste contexto, o expedicionário que levou consigo vários objetivos, em parte
determinados pelos interesses dos poderes governamentais de Lisboa, mas também em
parte por suas aspirações. Dentre as mais declaradas, a de saber científico, produziu um
conhecimento que „se procurou servir os interesses portugueses, não pôde deixar de
servir os interesses africanos, mesmo se de maneira artificial ou artificializante‟,172 já
que colocou na pauta dos debates imperialistas do final do XIX, a existência de
sociedades da África Centro-Ocidental ao nomeá-las especificamente xinjes, muxaelas,
imbangalas, quiocos, lundas ... 173

Em suma, para além dos encargos de explorador e realizador da ocupação territorial


portuguesa da região, o que se destaca na Descripção da viagem à Mussumba do
Muatiânvua de Henrique de Carvalho é sua reconhecida notoriedade na descrição das

171
Todos estes eventos e a documentação produzida foram inventariados e sumarizados por: SANTOS,
Eduardo dos. A questão da Lunda. 1885-1894. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1966.
172
Cf.: HENRIQUES, Isabel C. Presenças angolanas nos documentos escritos portugueses. In: Actas do
II Seminário Internacional sobre a História de Angola. Construindo o passado angolano: as fontes e a
sua interpretação. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, 1997, p. 56.
173
Se estas denominações, tal como aparecem nos escritos de Henrique de Carvalho, estão em
desacordo com as diferentes grafias utilizadas para designar as mesmas sociedades centro-africanas na
atualidade, importante a menção, neste caso, da sua preocupação em indicar cada povo que estava na
área de influência do muatiânvua por nomes específicos, como os citados anteriormente, deixando-nos
conhecê-los. E, neste sentido, interessante também é ressaltarmos a utilização pela historiografia
contemporânea do termo genérico lundaizado para tratar dos mesmos povos.

97
populações africanas: seus escritos constituem o primeiro registro sistemático sobre a
Lunda.

Nesta perspectiva, a obra de Henrique de Carvalho é importante porque foi feita pelo
europeu que afirmou a sua intenção de produzir um conhecimento sobre as populações
lundas. E mesmo que as motivações para tanto projetassem ações civilizatórias ou
coloniais, ao publicar sua obra -- no sentido da dialética das relações concretizadas nos
interstícios dos discursos escritos -- não pôde evitar que os interesses africanos viessem
à tona. Por esta razão acreditamos que a sua obra enseja o conhecimento de agentes
históricos variados, que se envolveram de formas também variadas no empreendimento
português de viagem à Lunda.

Como exemplo desta afirmação podemos citar o capítulo suplementar do segundo


volume publicado no apogeu das discussões entre belgas e portugueses sobre a
demarcação do território da Lunda, em 1892. Nele Henrique de Carvalho discorre sobre
as inconveniências de separar os territórios dominados pelo Caungula Muata Xa Muteba
e Muata Cumbana e argumenta que isto só se dava por falta de „esclarecimentos
práticos da região a partilhar‟ por parte daqueles que não a conheciam in loco. 174

Longe de só querer com este protesto fazer constar os interesses africanos e convencer
sobre possíveis injustiças com a partilha de seus territórios, as palavras de Henrique de
Carvalho intencionam mais apontar para as dificuldades que os futuros colonizadores
teriam que enfrentar. Contudo, ao fazer este reparo - no interstício de seu discurso - o
major português não conseguiu concluir seu argumento sem deixar de apontar para a
importância dos interesses das populações locais:

“Desenganemo-nos, a partilha de África pelas nações europêas poderá ser


respeitada na Europa entre aquellas que, inconscientemente trataram d‟essa
partilha para evitar conflictos no equilíbrio da sua política; mas na África, no
campo pratico, quando ahi quizerem trabalhar, se os elementos de que
podem dispor lá chegarem um dia, acredite-se, serão os agentes d‟essas
nações que estabelecerão os conflictos entre si e com os povos indigenas, os
verdadeiros senhores das suas terras; e a humanidade, em vez de benefícios,
registará massacres, expoliações, sequestros, e quem sabe o que mais!” 175

174
CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. II, p. 825-908.
175
CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. II, p. 829.

98
Insigne nesta discussão, exposto logo na abertura do referido capítulo suplementar, é o
provérbio lunda „masuma makusala makijita, kumasŭ ana bŭate‟ - „mais faz quem quer,
que quem póde‟, que demonstra o estado de contrariedade de Henrique de Carvalho na
ocasião.

Este é mais um interstício em seu pensamento colonial: as suas duras críticas à política
portuguesa de homens de gabinete, em Lisboa, mas também àqueles integrantes da
administração colonial nos espaços africanos, alguns desorientados e muitos outros
movidos somente por um ardoroso desejo de enriquecimento:

“Não queremos esquecer, porém, que sendo o nosso fito contentarmo-nos,


porque os nossos protestos de nada valem, com os limites que nos fixaram
ao norte; devemos ter em vista empregar todos os nossos esforços em evitar
que o commercio que convergia para o litoral da nossa possessão no
Occidente, seja desviado para o norte e assim devemos lembrar que o café
nativo de Encoje e dos Hungos, já no último anno foi levado para o Zaire, e
isto é devido á falta de auctoridades conscientes naquelles logares [...] Se nós
estamos tratando da nossa expansão e não tratamos de aproveitar o que
temos dentro de casa, então é melhor desistirmos de mais sacrifícios e
pouparmos os esforços dos que se dedicam a trabalhar pelo bom nome de
seu paiz, em proveito de outra causa melhor.” 176

Apesar da complexidade do momento vivido, nas críticas do explorador dos estados do


muatiânvua podemos entrever as produções agrícolas das regiões africanas, mesmo que
elas estejam camufladas por termos depreciativos como nativo, isto é, sem a intenção
inicial da produção em alta escala. Acreditamos que nos falta nesta questão é o
conhecimento dos conflitos de interesses envolvidos nos desvios do comércio aludido
por Henrique de Carvalho. No jogo das hipóteses, entre os interesses podiam estar os
dos tais administradores desejosos de enriquecimento, como nos tenta fazer acreditar o
autor, mas será que os desejos das próprias populações africanas que trabalharam nesta
produção poderiam influenciar este „desvio‟ ou até mesmo de alguma forma resistindo a
ele?

Esta possibilidade nos é apresentada pelo próprio Henrique de Carvalho, em


Ethnographia e História, na passagem em que demonstra o seu temor, no contexto da

176
CARVALHO, Henrique A. Dias de. Descripção ..., vol. II, p. 840.

99
corrida imperialista, de outras nações europeias tomarem aquilo que entendia ser de
Portugal:

“Attentava eu, porém, nos exploradores allemães, que tão frequentes viagens
estão fazendo e que de tantos recursos dispõem, seguindo-se as suas
expedições umas ás outras, e redobrando-se de esforços na proporção das
difficuldades que se apresentam; mas apesar de tudo, nestes annos mais
proximos, ainda seremos nós os preferidos, e elles serão obrigados a
servirem-se da nossa lingua, como meio de communicação, e dos nossos
sertanejos como guias e interpretes.
Somos nós, pois, quem lhe facilitâmos os principaes meios d'elles se
internarem, de se entenderem com os indigenas e de escolherem as melhores
terras e os centros commerciaes mais importantes.
Se nós, porém, lhes abrimos as portas e se sairmos de casa, o que podemos
esperar?
E se não procuramos augmentar as nossas relações com as tribus mais
afastadas, favorecendo as suas migrações para as localidades que mais nos
convenham, ficarão essas tribus sujeitas a quem lhes proporcionar mais
vantagens ou melhor as souber explorar.
E chegaremos então tarde, e mais uma vez nos lastimaremos pela nossa boa
fé.
E quem percorrer toda esta região, a leste da provincia de Angola, não
deixará de notar, como eu, que, se é grande o atraso em que se encontra a
agricultura, não faltaria a boa vontade da parte dos indigenas em se
occuparem nestes trabalhos se tivessem a certeza de que lhe seriam
comprados os seus productos.
Bastava aproveitar esta tendencia para fazer augmentar os productos
provinciaes ...”177

Note-se o interstício no seu raciocínio, que se inicia com o atraso da agricultura e


continua no reconhecimento do trabalho africano pela sua tendência ou boa vontade
nestes trabalhos com a condição que tivessem a certeza de que lhe seriam comprados
os seus produtos.

interstícios: Não estamos propondo que possamos concluir somente com este trecho a existência de
um interesse das populações lundas na agricultura voltada para a exportação -- algo que
realmente interessava a maioria dos colonizadores desta época -- mas que a partir desta
informação podemos „colher‟ nos interstícios da obra, e também em outras fontes,
outros indícios que possam nos ajudar a nos aproximar da questão dos interesses dos
lundas naquele momento, fossem eles quais fossem.

177
CARVALHO, Henrique A. D. Ethnographia e História ..., p. 31 [grifos nosso].

100
Neste sentido, os volumes da Descripção cumprem o papel aglutinador de todos os
trabalhos da Expedição, porque eles não se esgotam na reprodução do diário de
viagem, como afirma Ana Paula Tavares, mas também porque incorpora partes dos
178
outros textos.

Com esta assertiva, a escritora angolana chama atenção para os diversos textos que
estão incluídos na Descripção e que não são de autoria de Henrique de Carvalho: tal
como o relatório do Ajudante, editado pelo major português e publicado em extracto o
que julgava oferecer mais interesse. 179

Mas também as cartas dos negociantes sertanejos, como Custódio Machado, dos
dirigentes políticos como Andala Quissúa Andombo, Cuigana Mogongo, Mona Samba
Mahango, Mona Quienza, entre outros, na maioria, escritas por ambaquistas que
trabalhavam como secretários em diversas regiões da Lunda. Todos estes textos compõe
um repositório de informações importantes tanto por seu conteúdo quanto pelo papel
desempenhado pelos ambaquistas. E neste sentido, há a necessidade de estarmos atentos
para a diversa autoria que a Descripção da viagem ao Muatiânvua apresenta. 180

178
Cf.: TAVARES, Ana Paula. Na mussumba do Muatiânvua quando a Lunda não era leste ..., p.24.
179
Relatório do Ajudante em: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. II, p. 203-216.
180
Parte desta correspondência foi analisada por Beatrix Heintze em: A lusofonia no interior da África
Central na era pré-colonial. Um contributo para a sua história e compreensão na Actualidade.
Cadernos de Estudos Africanos. n. 7-8, p.179-207, jul. de 2004 a jul. de 2005. Disponível em:
http://cea.iscte.pt/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=73. Último acesso em:
outubro de 2010.

101
Mais ainda, os textos dos tratados e dos autos
de notícia escritos pelos intérpretes ao serviço
de Henrique de Carvalho: Antonio Bezerra de
Lisboa, primeiro intérprete, Agostinho
Alexandre Bezerra, segundo intérprete e José
Faustino, o professor da escola da expedição
que por vezes ocupava o cargo de intérprete e
de secretário de Henrique de Carvalho.181

181
Textos dos Tratados e dos autos também foram publicados em conjunto na obra de Henrique de
Carvalho, A Lunda ou os estados do muatiânvua ... Na parte superior esquerda, Antonio Bezerra de
Lisboa, na direita, Agostinho Alexandre Bezerra, ambas as fotografias publicadas em: HEINTZE,
Beatrix. Pioneiros africanos ..., respectivamente, imagem II (AMNE, nº.19.3) e imagem V (AMNE,
nº.19.4) e mais abaixo, José Faustino, gravura de: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II,
p. 232.

102
3. Os caminhos da Expedição Portuguesa à
Mussumba do Muatiânvua

103
Nas décadas de 1880 e 1890, com as novas estratégias de exploração e ocupação
colonial postas em prática pelas potências europeias – de uma ocupação sustentada em
feitorias espalhadas pelo litoral e em alguns pontos do interior para uma intervenção
administrativa e militar mais incisiva – e a definição da delimitação das esferas de
influência, em detrimento do fator histórico na legitimação da partilha dos espaços
africanos, especialmente depois da Conferência de Berlim (novembro de 1884 a
fevereiro de 85), a situação de Portugal como potência ultramarina se tornou
problemática, uma vez que seus interesses em África foram progressivamente atacados
pelos imperialismos britânico, belga, francês e alemão.

Em razão disto, esse foi um momento que se caracterizou por uma popularização de um
nacionalismo exacerbado e doloroso em Portugal, em que o debate africano se tornou
182
vivo. Em parte, isso se expressou na divulgação das narrativas de viagens de
militares como Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, que enalteciam a
concretização, nos anos de 1870 e 1880, do antigo sonho português de travessia terrestre
da África que „ligaria‟ o Atlântico ao Índico por terra. 183

Portanto, tal enaltecimento nacional ocorreu muito a despeito desta „travessia‟ já ter
sido realizada, entre os anos de 1802 e 1814, pelos pombeiros africanos Pedro João
Baptista e Anastácio Francisco (ou Amaro José, como aponta Isabel de Castro
Henriques), escravizados do tenente-coronel Francisco Honorato da Costa,184 e,

182
nacionalismo A expressão nacionalismo português exacerbado e doloroso é do historiador Sérgio Campos Matos,
que acrescenta que este sentimento também deve ser entendido numa „... conjuntura de afirmação de
português.
nacionalismos agressivos – o pan-germanismo e o pan-eslavismo – na Europa e em África,[que] terá
fornecido elementos valiosos para legitimar, no decénio de 1880, uma política expansionista na África
austral – o ambicioso projecto de um Império de costa a costa‟. E nos lembra de que „... numa época
em que era geralmente aceite o chamado darwinismo social e o seu princípio da luta pela vida, com o
corolário da sobrevivência dos melhores a justificar a supremacia das nações poderosas sobre as
pequenas potências, não surpreende que a resposta adoptada nessa época pelos políticos portugueses,
que aliás reuniu largo consenso, fosse a de uma estratégia ofensiva, baseada em argumentação
histórica sistemática mas de reduzida eficácia perante as bem mais pragmáticas razões britânicas ...”
Cf.: Historiografia e Memória Nacional no Portugal do século XIX (1846-1898). Lisboa: Edições
Colibri, 1998, p.495.
183
Dos relatos das viagens dos exploradores portugueses, ver: PINTO, Alexandre Alberto da Rocha de
Serpa. Como eu atravessei África do Atlântico ao mar Indico. Viagem de Benguella à Contra-costa
(1877-1879), Londres, Sampson Low, Marston, 1881, 2 vols; CAPELLO, Hermenegildo e IVENS,
Roberto. De Benguella às Terras de laca - Descripção de Uma Viagem na África Central e
Occidental, Lisboa: Imprensa Nacional, 1881, 2 vols. e também destes últimos, De Angola à Contra-
Costa, Lisboa: Imprensa Nacional, 1886, 2 vols.
184
Pombeiros eram os agentes itinerantes que representavam os comerciantes estabelecidos nas regiões
mais próximas da costa atlântica. Para o diário da viagem de Pedro João Baptista e Anastácio

104
principalmente, de existir uma ligação histórica entre as partes ocidental e oriental do
continente, com as profundas relações políticas e comerciais entre a Lunda e a região
sob controle do conhecido reino do Kazembe, respectivamente. Relações que podem ser
encontradas na própria documentação portuguesa.

No século XVIII, por exemplo, nas descrições de Manuel Correia Leitão, que entre
1755 e 1756 empreendeu viagem de Luanda até a região de Kasange e destacou o
comércio controlado por estes entre o centro do continente e a costa ocidental, não
deixando os brancos passarem do rio Kwango além. Da mesma forma que, no lado
oriental do continente, o reino do Muzumbo-a-Calunga, que fica muito a sul e leste das
de Cassange‟ [Kazembe?] controlava o comércio com os europeus e não lhes permitia
acesso direto ao muatiânvua:

“Os práticos informantes e todos os gentios destas remotas paragens não têm
licença do da outra banda para chegarem ao menos ao Mataiiâmvua, quanto
mais chegarem a esses Malagis, e por isso não têm visto com o seu olho
branco da Contra-Costa, mais do que ouvirem sempre dizer que se têm visto
brancos nestas partes diante do Mataiiâmvua, os quais aparecem em barcos a
que o gentio chama uatos, e que tem lá seus lugares donde saem e que fazem
negócio, dando por escravos zuartes e outras fazendas próprias como as que
lhe vão de cá, missangas brancas e azuis e búzio; e que os potentados que
tratam com os tais brancos, que eu cuido são os Malagis ou outros, impedem
a este Mataiiâmvua o poder busca-los e trata-los, o que é comum entre este
gentio; assim como o Cassange e os mais nomeados não querem que nós
tratemos como os que além do rio Cuango e como o tal Muatiiâmvua tem
também notícia dos brancos de cá, por esta razão também o quer por amigos,
fazendos-os procurar por seus capitais para que lhe vendam fazendas.” 185

Nas fontes da época, segundo Maria Emília Madeira Santos, malagis podia também ser
grafado maravi ou maraves e indicava uma sociedade estabelecida no vale do rio
Zambeze, no caminho entre a Vila de Tete e o referido Kazembe.186

Francisco, ver: BAPTISTA, Pedro João. "Viagem de Angola para Rios de Sena"; "Explorações dos
portugueses no interior d'África meridional (...) Documentos relativos à". Annaes Maritimos e
Coloniaes, v. III, 5-11, p.162-190; 223-230; 278-297; 423-440; 493-506; 538-552, 1843.
185
Cf.: LEITÃO, Manuel Correia (ou Corrêa). “Viagem que eu, sargento mor dos moradores do distrito
do Dande, fiz às remotas partes de Cassange e Olos, no ano de 1755 até o seguinte de 1756”. In: DIAS,
Gastão de Sousa (ed.) “Uma viagem a Cassange nos meados do século XVIII”. Boletim da Sociedade
de Geografia de Lisboa, 56ª. série, nº. 1-2, 1938, p.27.
186
Para tanto, ver o mapa da viagem de Francisco José de Lacerda e Almeida de 1798, publicado em:
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África. Lisboa:
CEHCA; IICT, 1988, p.195. Neste mesmo sentido podemos atentar para o título da narrativa de Pedro
Gamitto: O Muata Cazembe e os Povos Maraves, Chevas, Muízas, Muembas, Lundas e Outros de

105
Há certa dificuldade em precisar tal questão. Segundo Jan Vansina, a nomenclatura
malagis, definida por Correia Leitão na citação acima, referia-se a „uma subdivisão do
grupo étnico conhecido como Congo-Dinga, estabelecido ao longo do Rio Kasai, no
oeste do reino Rund‟, que por sua vez foi o grupo que conseguiu, ao longo do tempo e
através da linguagem do parentesco, conformar-se como centro de poder da Lunda,
dominando um vasto território, que se estendia de leste a oeste do continente, habitados
por povos de culturas e línguas diversas. 187

Seja como for, a importância de tal questão para nossos propósitos é apontarmos a
existência de eixos comercias e vias de comunicação no centro do continente,
inacessíveis aos europeus antes do final do século XIX, como atesta Francisco José de
Lacerda e Almeida no relato de sua recepção como governador da Vila de Tete da
embaixada do Kazembe:

“... Este Principe [filho do Rei dos Muizas], e o grande Catara [hum grande
do Reino de Cazembe] dizem, que o Cazembe, ou os seus ascendentes, vindo
das partes de Angola conquistou o Reino que presentemente ocupa, e que do
Cazembe se pode ir ao Morupue [muatiânvua] em sessenta dias; porém os
brancos em menos tempo; e finalmente, que ao Reino de Morupue vem
lacerda e almeida. canoas de Angola, ou de suas vizinhanças conduzir escravos; mas que o rio
he pequeno. Do reino de Morupue para o de Cazembe passão fazendas, e
trastes, que vem das costas occidentaes da Africa, como espelhos, aparelhos
de xá, que conservão para ostentação, e grandeza; pratos, copos, avelório,
missanga, couros, e fazendas de lã. [...] Os escravos, que o Cazembe faz,
remete-os para o pai [muatiânvua]; e delle por qualquer via que seja, vão ter
a Angola, que elles pronuncião Gora, e em retorno vem o fato de lã, como
baeta, durante, sarafina, e os mais, que acima disse. Não querem vender
escravos aos Portuguezes destes rios [isto é, da parte oriental do continente],
nem os Portuguezes os querem comprar, porque não fazem conta, nem a
huns, nem a outros: o marfim sim faz muita conta a ambos: se for possível
achar-se navegação para estes rios, o lucro que se há de tirar no marfim deve
ser considerável, pois o seu transporte por terra he trabalhoso, e
dispendioso.” 188

África Austral. Diário da Expedição Portuguesa Comandada pelo Major Monteiro e Dirigida Àquele
Imperador nos anos de 1831 e 1832, Lisboa, 1854, Reedição, 2 vols., Lisboa, 1937.
187
Cf.: VANSINA, Jan; SEBESTYÉN, Evá. Angola's Eastern Hinterland in the 1750s: A Text Edition
and Translation of Manoel Correia Leitão's "Voyage" (1755-1756). History in Africa. vol. 26, 1999, p.
355, para a definição do termo malagi, p. 364 para o mapa que define a sua localização e p. 325 para o
texto supracitado de Manuel Correia Leitão, que pode ser comparado com o da edição de Gastão de
Sousa Dias, citado na nota 3. Agradeço ao historiador Roquinaldo Ferreira pela indicação desta
tradução realizada por Vansina e Sebestyén.
188
Sobre o relato desta embaixada, ver os Ofícios de Francisco José de Lacerda e Almeida, governador
da Vila de Tete, para d. Rodrigo de Sousa Coutinho, ministro da marinha e ultramar, datado de 21 e 22
de março de 1798, sobre a diligência que foi incumbido para verificar a possibilidade de comunicação
das costas oriental e ocidental da África e as notícias dadas por Manuel Caetano Pereira, comerciante
que se entranhou pelo interior da África até a povoação ou cidade do rei Cazembé. Coleção IHGB,

106
Em primeiro lugar, os relatos de Correia Leitão e Lacerda e Almeida confirmam o
argumento do estudioso Alfredo Margarido, sobre a impossibilidade de utilizarmos o

Lundas. termo Lunda para tratarmos dos povos estabelecidos, grosso modo, entre os rios
Kwango e Zambeze, no centro do continente, antes do século XIX: „na medida em que
ninguém conhecia então a existência dos Lundas, e menos ainda dos Lundas centrais,
só visitados no século XIX, primeiro por Joaquim Rodrigues Graça e depois por
Henrique de Carvalho‟.189 „Mas é também verdade‟, afirma Margarido, „que Correia
Leitão dá pela primeira vez notícia dos „moluas‟, a leste, que mais tarde serão
reconhecidos como sendo os Lundas que Pinheiro Furtado inscrirá pela primeira vez
num mapa‟, ainda sob a expressão „terras dos muluas‟.190

E mais, os relatos supracitados ressaltam também a ideia de que os artigos europeus


transacionados no interior do continente não eram para as sociedades locais uma
„mercadoria essencial‟, mas de „ostentação e grandeza‟, no dizer de Lacerda e Almeida.

produção Se fizermos um „exame minucioso‟, conforme argumenta John Thornton, veremos que a
africana. „antiga manufatura africana era em muitos casos capaz de prover as necessidades do
continente‟, como no caso dos tecidos do Kongo oriental para leste de Angola, no
191
século XVII, mas também do sal produzido na região do Kazembe, capaz de
abastecer redes comerciais entre as regiões ocidentais e orientais inacessíveis aos

DL39, 10.01 e 10.01.01 e a sua transcrição em: NEVES, José Accursio das. Considerações políticas e
commerciaes sobre os descobrimentos e possessões dos portuguezes na África e na Ásia. Lisboa :
Impressão Régia, 1830, p.368-393.
189
Cf.: MARGARIDO, Alfredo. Um livro trágico. Prefácio da obra de CURTO, José C. Álcool e
Escravos. O comércio luso-brasileiro do álcool em Mpinda, Luanda e Benguela durante o tráfico
atlântico de escravos (c.1480-1830) e o seu impacto nas sociedades da África Central Ocidental.
Tradução Márcia Lameirinhas. Lisboa: Editora Vulgata, 2002, p.11.
190
Cf.: MARGARIDO, Alfredo. Algumas formas da hegemonia africana nas relações com os europeus.
In: SANTOS, Maria Emilia Madeira. 1ª. Reunião Internacional de História de África: relação Europa-
África no 3º quartel do séc. XIX. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1989, nota4, p.
402-403. Para o mapa citado ver a „cópia muito simplificada da carta de Angola de Pinheiro Furtado
(1790)‟ em: SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em
África ..., p.160.
191
Cf.: THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico 1400-1800.
Tradução de Marisa Rocha Mota. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 89 e 94. Para uma visão contrária a
de Thornton ver o texto de ALPERN, Stanley B. What Africans Got for Their Slaves: A Master List of
European Trade Goods. History in Africa. vol. 22, p. 5-43, 1995, que apresenta uma extensa lista de
artigos comercializados na África Ocidental ou „Kwaland‟ (sociedades de língua Kwa) como prefere o
autor, entre eles: tecidos da Índia, da Europa e outros, vestuário em geral, metal bruto ou
semiprocessado e objetos de metal, armas de fogo, contas, búzios, álcool, tabaco, vidro, cerâmica,
papel, temperos, comidas exóticas, drogas e adornos de luxo.

107
europeus até o último terço do XIX, como defende Isabel de Castro Henriques. A
transformação desta situação de inacessibilidade iniciou-se na década de 1840 com a
intervenção das quibucas (caravanas) ovimbundas e de sertanejos como Silva Porto no
comércio da região do Zambeze. 192

O sal deste comércio era acinzentado e produzido a partir de plantas, que o pombeiro
Pedro João Baptista chamou de „palhas‟ de onde os produtores „tiram o sal, o qual sal
sal.
cortam a palha [...] e vão [-na] queimando a cinza em umas panelas pequenas que eles
fazem e vão cozinhando água lauda [enlameada]‟, servindo estas „panelinhas‟ de
medição com vistas a valoração do produto: „dez panelinhas valem um xuabo‟ ou peças
de tecido de algodão, que serviam como moeda nas trocas realizadas nos entrepostos do
comércio regional, as „casas já feitas dos compradores de sal‟.193

No final do século XIX, no tempo de Henrique de Carvalho, as salinas valorizadas pelos


povos lundaizados estabelecidos nos caminhos pelos quais a expedição passou eram as
da região do rio Lui, na salina do Holo, entre Malanje e rio Kwango. Com o sal
produzido nesta localidade o major português pagou os seus trabalhadores e aproveitou
para estabelecer a „estação civilizadora Paiva de Andrade‟ em Quibutamêna, na
margem direita do mesmo rio, em razão do intenso trânsito de caravanas envolvidas no
comércio local, conforme demonstra a correspondência do chefe da expedição ao seu
ajudante, o capitão Manoel Sertório de Almeida Aguiar:

“O Sr. Ajudante não deixará de conhecer, quanto tem sido util o modo por
que vamos avançando, ainda que lentamente; pois que alem dos povos já nos
estimarem e se congratularem quando qualquer individuo da Expedição
passa pelas suas povoações, tem havido a vantagem de não estarmos
inactivos e de podermos dar cumprimento a uma parte importante da nossa
missão, fazendo estudos que vão sendo remettidos ao Ministerio da Marinha

192
Cf.: HENRIQUES, Isabel de Castro. Percursos de Modernidade em Angola: Dinâmicas Comerciais e
Transformações Sociais no Século XIX. Lisboa, IICT, 1997, p. 391. As quibucas do sul foram
estudadas por Linda Heywood que destacou a possibilidade de ascensão social dos carregadores com
os lucros obtidos no transporte de mercadorias, sobretudo marfim, cera, borracha e goma copal, logo
após o término do tráfico atlântico de escravizados e início da intensificação do comércio das
chamadas matérias-primas da indústria europeia. Para Heywood os carregadores ovimbundus foram
responsáveis nesta época pela integração da África central à economia mundial no século XIX. Para
tanto, ver: HEYWOOD, Linda. Porter, Trade, and Power. The Politics of Labor in the Central
Highlands of Angola, 1850-1914. In: COQUERY-VIDROVITCH, Catherine, LOVEJOY, Paul E. The
Workers of African Trade. Berverly Hills, London, New Delhi: Sage Publications, 1985, p.243.
193
As informações de Pedro João Baptista e do significado de xuabo são de Isabel de Castro Henriques,
Percursos de Modernidade em Angola ..., p. 266 e 768, respectivamente.

108
e Ultramar, estabelecendo estações, como nos foi muito particularmente
recommendado, nos pontos onde o commercio se não fazia senão entre
indigenas, tornando-se as vizinhanças d'essas estações povoadas de gentios
que vem do interior com negocio, constituindo ellas verdadeiros centros das
suas transações. É de esperar que os gentios quando se conveçam que não ha
pensamento reservado de os hostilisar formem ahi centros de população
importantes, o que por certo, será agradavel ao governo de Sua
Magestade.”194

Deste modo, a partir dos registros de observadores portugueses, somo capazes de


perceber a organização do comércio nas regiões do centro do continente, que
pressupunha a existência de: rotas especializadas nas trocas de produtos específicos (os
tecidos do Kongo, o marfim da Lunda, o sal do Zambeze e do rio Lui); formas de
empacotamento e transporte (no caso do sal do Lui, 'em folhas de arvores, a formar um
rolo de 70 cm de comprimento e 6 cm de diâmetro, a que chamam muxa‟, sendo que
195
uma carga de sal comportava de 25 a 30 muxas) e maneiras de valorar as
mercadorias (no caso, três muxas equivaliam a uma jarda de fazenda ou cada uma, 30
réis).

As representações dos diferentes pacotes


de sal do comércio regional da África
centro-ocidental foram baseadas no relato
do explorador alemão Max Buchner, que
esteve na Lunda na década de 1870, e
foram produzidas pela historiadora Beatrix
Heintze, que aponta as embalagens de
formato cilíndrico como aquelas utilizadas
na região do rio Lui.

Para além da informação etnográfica, a importância de apresentarmos estas embalagens


está na demonstração da especialização de conhecimento dos grupos engajados no

194
Cf.: Ofício de Henrique de Carvalho, chefe da expedição, ao capitão Manoel Sertório de Almeida
Aguiar, ajudante da expedição, datada de Malanje, 24 de julho de 1884. In: CARVALHO, Henrique A.
D. Expedição Portuguesa ao Muatiânvua 1884-1888: Descripção da Viagem à Mussumba do
Muatiânvua. Lisboa: Imprensa Nacional, vol. I (De Luanda ao Cuango), 1890, p. 325-326.
195
CARVALHO, Henrique A. D. Expedição Portuguesa ao Muatiânvua. Ethnographia e História
Tradicional dos Povos da Lunda. Lisboa: Imprensa Nacional, 1890, p. 707.

109
comércio de longa distância do sal, quanto à melhor forma de armazenar e conservar
esta carga altamente delicada.

A importância do armazenamento deste artigo é confirmada por Henrique de Carvalho


ao relatar as dificuldades no transporte das 50 arrobas de sal que a expedição carregava
transporte desde a cidade do Dondo: „accondicionado em sacos de palha, estava muito sujeito a
sal.
reducções pelas elevadas temperaturas, muitas chuvas e pelas subtracções dos
carregadores‟, sendo a forma de acondicionamento dos imbangalas a que mais
convinha, no seu entender, já que „os rolos protegidos por folhas e revestidos depois de
palha (capim secco)‟ era tanto vantajosos no transporte quanto na segurança da carga.196

Estes diferentes recursos utilizados confirmam ainda os hábitos regionais que podem ter
sofrido transformações ao longo do tempo devido ao contato entre os grupos engajados
no comércio, como no caso do pacote de sal da Lunda que, segundo Heintze, podia ser
originário do norte, das regiões dos Chilangues, vide a representação dos pacotes de
sal.197

Estas questões de armazenamento e transporte de mercadorias nos fazem relativizar


algumas proposições sobre o transporte do comércio de longa distância no tempo do
tráfico atlântico ter sido realizado pelos próprios escravizados que seriam levados para o
continente americano, já que não precisavam ser carregados e eram obrigados a
transportarem outras mercadorias. Refletindo a partir do conhecimento especializado
que demandava este trabalho de transporte, acredito que esta questão será melhor
discutida pesquisando-se sobre as caravanas do comércio africano para além da imagem
corrente dos sofrimentos dos traficados e de intencionais acusações de africanização do
tráfico internacional de escravizados.

Assim, retomando o discurso do nacionalismo exacerbado e doloroso português


finissecular, afora a sua ineficácia nas negociações com as outras nações europeias e
mesmo conhecendo o inventário realizado por diferentes agentes ao longo do tempo,
apesar das especificidades dos discursos, no geral não admitiu a existência de uma

196
CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. I, p. 499.
197
Cf.: HEINTZE, Beatrix. Pioneiros Africanos. Caravanas de carregadores na África Centro-Ocidental
(entre 1850 e 1890). Lisboa: Editorial Caminho, 2004, p. 319-320.

110
racionalidade africana na gestão de territórios e negócios e propôs práticas coloniais em
África que primavam por torná-la „moderna‟, no sentido de dar-lhe caminhos por terra e
água possíveis de serem trilhados e navegados pelos portugueses.

instruções. No final do século XIX, as diferentes expedições, com auxílio de instrumentos técnicos,
deviam produzir esboços dos caminhos percorridos e medição de terrenos para a
posterior elaboração de mapas e estudos de implantação de estradas e ferrovias;
observações meteorológicas e fluviais, e ainda registros sobre rotas comerciais, aptidões
do solo, além dos hábitos das diferentes populações contatadas e, na medida do
possível, produzir algum material fotográfico e ilustrativo.

Deviam também fazer recolhas de espécimes vegetais, animais e de exemplares


geológicos para as instituições científicas europeias e construir em diferentes pontos do
caminho abrigos que oferecessem proteção aos viajantes e comerciantes, incentivando
198
por meio das chamadas estações civilizadoras, comerciais e hospitaleiras a
comunicação e o comércio regional com as cidades litorâneas controladas pelos
europeus. Conforme apontamos anteriormente, no caso da instalação da estação Paiva
de Andrade na região do rio Lui pela expedição de Henrique de Carvalho, todas estas
atividades estavam previstas nas instruções dadas ao major português.

Embora a viagem à Lunda tenha exercido menor impacto na opinião pública portuguesa
auxilio da sgl
para a expedi em comparação com as de Serpa Pinto, Capello e Ivens, entre outros motivos, por não
cao.
ter como meta a travessia continental, em alguma medida elas podem ser comparadas
por causa da ação da Sociedade de Geografia de Lisboa que ajudou o Ministério da
Marinha e Ultramar a elaborar as instruções das diferentes expedições. 199

198
Sobre as estações civilizadoras na Conferência de Bruxelas, de 1876, quando se discutiu os princípios
da instalação destas edificações, ver: WESSELING, H. L. Dividir para dominar: a partilha da África
(1880-1914). 2ª. edição [trad. de Celina Brandt] Rio de Janeiro: Editora da UFRJ; Revan, 2008. p.92-
101.
199
Sobre a elaboração das instruções da expedição de Henrique de Carvalho, ver: „Parecer da Comissão
Africana da Sociedade de Geografia de Lisboa sobre o projeto da expedição ao Muatiânvua de
Henrique de Carvalho, de 03 de fevereiro de 1884‟ e „Instrucções do ministério da Marinha e Ultramar
de Manuel Pinheiro Chagas por que se deve regular o major do exercito Henrique Augusto Dias de
Carvalho na Missão ao potentado africano Muata Ianvo, de 28 de abril de 1884‟, ambos em:
CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. I, p. 7-14 e 35-42.

111
Em linhas gerais, as instruções recebidas pelas expedições refletiam toda a
efervescência da época, de acalorado debate político e manifestações sociais, e foram
apreendidas por um dos mais reconhecidos intelectuais portugueses, que nos dá uma
dimensão da problemática envolvida nas atividades dos expedicionários no terreno da
viagem ao registrar, com ironia peculiar, o embate anglo-luso na região do Zambeze:

“... Quando se desenrolava esta controvérsia [...] um incidente sobreveio


inesperadamente, que transformou essa argumentação quase acadêmica
numa pendência quase sangrenta. Uma expedição nossa, que, sob o comando
do major Serpa Pinto, estudava o traçado do caminho-de-ferro do rio Chire
(que ultimamente nós resolvêramos construir para suprir as obstruções da
navegação no Zambeze), tendo penetrado na terra dos Macololos, antigos
vassalos da coroa, encontrou um gentio hostil que lhe impediu a passagem,
arvorou no topo das cubatas bandeiras inglesas e terminou por fazer fogo
sobre os nossos com aquelas espingardas do valor de cinco xelins, que são
um dos comércios ingleses mais rendosos no interior da África. Para
desimpedir o caminho, afirmar a soberania e castigar o ultraje, os nossos
(depois de tentarem conciliação) dispersaram o gentio – matando
infelizmente uma centena desses negros, que são no fundo os verdadeiros
senhores da região...”. 200

Neste caso, devemos levar em consideração, além das vontades portuguesas e inglesas
em jogo e o sentimento de inferiorização de Portugal com o famoso – na historiografia
lusa – ultimato inglês, os interesses dos citados macololos como produtores e
controladores do comércio, entre outros artigos, do sal no Barotze, região também
conhecida como Lui, terra dos Lozi, na época recém-dominada pelos makololos ou
macorrolos. 201

Precisamente a respeito do problema tão candente da navegação fluvial no continente


africano para os europeus, o historiador Joel Serrão lembrou a necessidade de „remontar
um tanto no fito‟ para encontrar „as pontas de novelo tão enredado‟. Pontas que levam
ao Congresso de Viena de 1814/15 e à adoção dos princípios do mare liberum de Hugo
Grotius de 1609 para a navegação dos grandes rios. Assim, em fins do XIX,

200
Excerto de Eça de Queiroz: O ultimatum. In: Obras de Eça de Queiroz. Lisboa: Edição Livros do
Brasil, 1890, p.323-324.
201
Não confundir as salinas desta região com as do rio Lui mais ao norte, referidas por Henrique de
Carvalho. Sobre o comércio do Barotze, ver: SANTOS, Maria Emília Madeira. Trajectória do
comércio do Bié. In: Nos caminhos de África. Serventia e Posse (Angola – século XIX). Lisboa:
Instituto de Investigação Científica Tropical, 1998, p.105. Sobre as ações de Serpa Pinto, o ultimato
inglês e as noções erradas na Europa da ostensiva presença portuguesa na região, ver na mesma obra
de Maria Emília Madeira Santos o capítulo: Ultimato, Espaços Coloniais e Formações Políticas
Africanas, p.385-420.

112
recuperando convenções do início do mesmo século, que de antemão haviam sido
recuperadas do início do XVII, a „bacia do Congo e seus tributários‟, na parte ocidental
do continente, e a „zona marítima oriental, dos Grandes Lagos até o oceano Índico,
inclusa a embocadura do Zambeze, ao sul‟ passaram a ser de livre-navegação e
comércio, no entender dos europeus. 202

Portanto, esta discussão em torno da navegação marítima e fluvial é historicamente um


processo de longa duração, que tem em seu âmago a disputa pela dominação dos
espaços naturais pelos europeus, e se remete ao tempo do jurista Grotius: prelúdio da
produção moderna europeia de ordenação dos espaços burgueses e de representação de
antigos e novos mundos.

Sobre os propósitos de ordenação e representação do mundo material, o geógrafo Denis


a apropriação Cosgrove, em estudo que pretendeu historicizar a „paisagem como um termo, uma ideia,
da paisagem
africana pelos ou, melhor ainda, um modo de ver‟ surgido nos séculos XV e XVI, sugeriu tratá-la
europeus.
como uma prática simbólica de apropriação do espaço. Nesta proposição, a perspectiva
linear foi uma das principais técnicas desse processo de formação da „paisagem‟, que se
desenvolveu a partir da geometria euclidiana, anteriormente utilizada no inventário e
mapeamento das propriedades da burguesia da época. Sendo ótica, foi capaz, ao longo
do tempo, de instrumentalizar uma concepção espacial, mas também visual, de
ordenamento do mundo material, por meio das representações arquitetônica, artística,
cartográfica, literária e científica.

Desta maneira, evoluídas da arquitetura humanista, propriamente dos trabalhos do


florentino Leon Baptista Alberti, as representações a partir da perspectiva linear se
caracterizaram – e ainda são, defende Cosgrove – por três pontos ou „consequências‟:
forma e posição são relativas e não absolutas, isto é, a forma de um objeto que se vê no
espaço e a sua posição variam de acordo com ângulo e com a distância de quem o
observa; assim „o próprio olho‟ ou „o olho soberano‟ se conforma no centro visual do

202
Cf.: SERRÃO, Joel. “De cor-de-rosa era o mapa”. Da „Regeneração‟ a República. Lisboa: Livros
Horizonte, 1990, p. 159. Para as discussões na Conferência de Berlim sobre a „livre-navegação‟ dos
rios na África, especialmente do „Danúbio africano‟, como chamava Bismarck o rio Congo, ver, entre
outros: WESSELING, H. L. Dividir para dominar..., p.129-134.

113
mundo e, portanto, a perspectiva linear, partindo deste „olho soberano‟ como técnica, é
fundamental para a representação „realista‟ do espaço e do mundo externo. 203

as cores do Refletindo a partir das proposições de Cosgrove, os mapas elaborados em finais do


mapa da par
tilha século XIX, durante a partilha imperial dos espaços africanos entre as nações europeias,
podem ser entendidos como apropriação: por exemplo, com o uso das cores na
cartografia para representar a realidade.

As cores, argumenta Cosgrove, evitam o uso de palavras em demasia e servem para


produzir um efeito do real, „assim, diferentes tons de verde nos permite reconhecer as
terras férteis e inférteis e florestas‟ e ajudam a „criar a imagem de uma paisagem
(paese) sobre tela em guache e de acordo com a perspectiva‟. Por isso, não à toa que a
técnica da perspectiva, como expressão da técnica do pintor, foi utilizada nas artes
pictóricas ao longo do tempo. 204

No decurso da produção de conhecimento realizado por expedicionários, militares,


funcionários metropolitanos e coloniais de fins do XIX, as ações de medir e esboçar os
caminhos e os rios e, posteriormente, cartografar os espaços ajudaram a preencher com
cores
“o maior espaço em branco do mapa da terra, com uma vasta extensão de
vermelho, um bocado de azul, um pouco de verde, pequenas manchas de
laranja, uma extensão comprida de púrpura e de amarelo, bem no centro”. 205

203
Cf.: COSGROVE, Denis. Prospect, Perspective and the Evolution of the Landscape Idea.
Transactions of the Institute of British Geographer, new series. vol. 10, nº. 1, p. 45-62, 1985.
204
Cf.: COSGROVE, Denis. Prospect, Perspective and the Evolution of the Landscape Idea …, p. 54.
205
o uso da geo Para uma intrigante reflexão sobre o mapa da África pós-Conferência de Berlim ver: CONRAD,
grafia pela Joseph. Coração das trevas. (tradução Sergio Flaksman) São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.
burguesia im 16 e 19-20. Sobre o papel da geografia durante o imperialismo do final do XIX, o geógrafo Milton
Santos escreveu: "A ideologia engendrada pelo capitalismo quando da sua implantação tinha que ser
perialista eu adequada às suas necessidades de expansão [...] Era necessário, portanto, criar as condições para a
ropeia. expansão do comércio. As necessidades em matérias-primas da grande indústria garantiam além-mar
a abertura de minas e a conquista de terras que eram também utilizadas para a produção de alimentos
necessários aos países então industrializados numa fase onde a divisão internacional do trabalho
ganhava nova dimensão. Era então imperativo adaptar as estruturas espaciais e econômicas dos
países pobres às novas tarefas que deviam assegurar sem descontinuidade. A geografia foi chamada a
representar um papel importante nesta transformação." In: Por uma geografia nova. 3a ed. São Paulo:
HUCITEC, 1990, p.13-15. Devo a citação deste trecho à observação arguta de Elisangela Mendes
Queiroz.

114
Neste sentido, o painel produzido pelos portugueses, já no século XX, parece-nos dilatar
essa concepção racionalista de apreensão dos espaços:

Esta representação, intitulada Portugal não é um país pequeno, foi retirada do trabalho
de Omar Ribeiro Thomaz, sugestivamente do tópico „Portugal no espaço‟, no qual
analisa a Exposição Colonial Portuguesa, de 1934. Sobre a maneira com a qual os
objetos representativos das diferentes regiões do império português foram dispostos no
pavilhão de exposição, de modo a dar a sensação de se viajar entre tempo e espaço,
incluso o painel, vale a pena registrar a análise perspicaz do autor, que destacou a
distensão do olhar perspectivado português, que ora incidi sobre os que chamavam
„povos indígenas‟, ora sobre os „outros europeus‟.

Deste modo, o efeito da viagem temporal valorizava o senso comum da época que
ideologia.
acreditava na inferiorização do africano e no seu atraso com relação ao ocidente e
reforçava a ideia da missão portuguesa como uma vocação de „continuar a obra
incompleta da civilização africana‟. Quanto ao mapa, que sugeria a „grandiosidade e
continuidade na extensão do império‟, o seu título „Portugal não é um país pequeno‟ e
a sobreposição do desenho do país junto com as suas colônias sobre grande parte da

115
Europa não constituem uma falta com o realismo e nem deve ser encarado como um
„truque‟ português, conforme propõe Omar Ribeiro Thomaz:

Essa singular „cartografia‟ revelava, em sua própria operação, que Portugal


concebia sua unidade territorial como distinta, em sua própria natureza, das
demais nações imperiais. Ao contrário das outras metrópoles que viam suas
colônias como territórios estrangeiros subjugados – atitude evidente pelo
menos no caso britânico -, a nação portuguesa se estendia pelo mundo. Era
essa particularidade que a tornava uma grande nação.” 206

Em outro lugar, Thomaz ponderou a ideia do peculiar modo português ser uma
invenção do luso-tropicalismo freyriano e referir-se mais a uma noção anteriormente
presente na sociedade portuguesa: nos debates de fim de século dos intelectuais e
políticos lusos sobre a natureza do império ultramarino. Para seus entusiastas, nem
mesmo a sua miséria atrapalharia a compreensão se se percebesse „a especificidade do
espírito português: aqueles ansiosos por dar novos mundos ao mundo, garantindo a
hierarquia, a ordem e uma adequada assimilação dos indígenas‟. 207

a compreensão Atenta a este pretenso modo de ser [de ver] do português no [o] mundo, proponho que o
do espaço como
uma das bases interesse em reconhecer as bases que formularam o seu olhar soberano está também na
dessa soberania. possibilidade da compreensão, a partir de suas representações, sejam imagéticas, sejam

escritas, do espaço dos observados. Se o olhar português tendeu a incidir sobre as


sociedades africanas, em específico, há que tentarmos perceber possíveis alterações ou
perturbações desse mesmo olhar, mesmo que pretensamente soberano, porquanto ainda
humano, pode ter se tornado astigmático em algum momento.

Astigmia no sentido de reconhecermos a necessidade de avançarmos sobre a


relatividade – quanto à forma e posição – do „olho soberano‟ como centro visual do
mundo, para verificarmos se o objeto observado agiu ou contribuiu, de alguma maneira,
para eventuais alterações ou perturbações sobre este mesmo olho, não deixando que „os

206
Cf.: THOMAZ, Omar Ribeiro. Ecos do Atlântico Sul: representações sobre o terceiro império
português. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Fapesp, 2002, p. 228-229.
207
Cf.: THOMAS, Omar Ribeiro. Tigres de papel: Gilberto Freyre, Portugal e os países africanos de
língua oficial portuguesa. In: BASTOS, Cristina; ALMEIDA, Miguel Vale de; FELDMAN-BIANCO,
Bela (orgs.) Trânsitos Coloniais. Diálogos críticos luso-brasileiros. Campinas: Editora da Unicamp,
2007, p.50.

116
raios luminosos partidos dele [observado] se reunissem, como deveriam, em um ponto
da retina, sendo percebidos difusamente‟ pelo observador. 208

Deste modo, temos por finalidade discutir a produção de paisagem pelas sociedades
africanas, que acreditamos também terem formulado, de maneira própria, seus espaços
de poder através da apropriação prática e teórica destes mesmos espaços, isto é, também
como um modo de ver e deixar ver.

Contudo, se não o fizeram com base na geometria euclidiana, um desafio do trabalho


está no entendimento da „base africana‟ por meio das representações contidas nas
diferentes fontes produzidas pelos europeus. Logo, isto faz com que ao pretendermos
analisar a ordenação e representação de espaço dos africanos tenhamos que
obrigatoriamente estudar a mesma questão para os europeus e na comparação tentarmos
filtrar estas representações. 209

O interesse pela questão das representações da paisagem está no entendimento dos


caminhos da expedição portuguesa à mussumba lunda como espaços de vivência dos
seus trabalhadores. Esta análise se impõe em razão de nossa proposta de perscrutar o
cotidiano destas pessoas, por meio das suas noções de direitos e deveres que nortearam
as suas relações não só com o comando da expedição, mas também com as autoridades
africanas locais.

Por fim, há que destacarmos o nosso próprio olhar, orientado primordialmente aos
grupos de trabalhadores, mas também direcionado para o expedicionário português, uma
208
Astigmatismo conforme definição no dicionário Aurélio. Sobre o „triângulo visual‟ descrito por
Alberti que explica, por meio da centralidade exercida pelo olho observador, a conversão do espaço
tridimensional em uma superfície bidimensional, pretendendo ser esta uma representação realista do
mundo externo, ver: COSGROVE, Denis. Prospect, Perspective and the Evolution of the Landscape
Idea…, p.47-48.
209
Sobre os problemas metodológicos envolvidos no uso das narrativas de viagem como fonte
historiográfica, Adam Jones e Beatrix Heintze argumentam que é preciso reconhecer nelas os seus
limites e a sua natureza „parcial‟, e acrescentaríamos perspectivada. Uma possível saída apontada pelos
autores é a filtragem da informação relatada por meio da comparação com o universo cultural do
relator, por exemplo, “quando lemos um relato italiano sobre matrimônio ou práticas de guerra na
África, nós podemos comparar isto com o que sabemos sobre matrimônio ou guerra na Itália do
relator”. No entanto, esta perspectiva parcial não encobre a questão do caráter de interioridade de
muitos destes relatos: o papel dos acompanhantes africanos dos viajantes europeus, principais
informantes dos costumes e história das populações locais. Cf.: JONES, Adam e HEINTZE, Beatrix.
“Introduction”. European sources for Sub-Saharan Africa before 1900: use and abuse. Paideuma.
Stuttgart: Frobenius-Institut, n.33, p.1-17, 1987.

117
vez que nos importar compreender, por meio do discurso contido no relato deste militar,
como os diversos grupos com os quais conviveu participaram deste empreendimento.
Não esquecendo também que Henrique de Carvalho, em terras africanas, teve de criar
suas próprias estratégias de relacionamento, de organização de tarefas, por meio de suas
noções de direitos e deveres.

“Mas o território não é o mapa” 210

Sobre o contexto da conformação dos atuais territórios africanos, em específico do


angolano, em estudo de 2004, a historiadora Isabel de Castro Henriques pretendeu
compreender como os poderes africanos ocuparam estes mesmos espaços segundo
premissas próprias, por meio do gerenciamento da violência das operações
colonizadoras europeias.

A historiadora justificou a importância deste seu trabalho pela necessidade de rever


chavões que articulam a história da criação e colonização de Angola, tais como, do lado
do colonizador, „campanhas militares‟, „guerras de pacificação‟, „operações de
ocupação efetiva‟ e „operações de polícia‟ e, do lado dos colonizados, „ações de
protesto‟, „guerras, combates ou atividades de resistência‟. Expressões que são
„provocadas pela visão da primazia europeia e que chegam a suscitar a vitimização ou
inferiorização africana‟. 211

Tal exigência de revisão fez com que Henriques desenvolvesse uma proposta
metodológica de análise dos espaços angolanos partindo de duas premissas: a
„descoincidência africana e europeia‟ quanto à visão de terra, território e identidade; e
pela „coabitação conflitual‟ destes dois grupos, marcada pelos „antagonismos, mas

210
Verso do poeta açoriano Emmanuel J. Botelho, in Mas o território não é o mapa. Angra do
Heroísmo: Secretaria Regional de Educação e Cultura, 1981 citado por HENRIQUES, Isabel Castro.
Território e identidade. O desmantelamento da terra africana e a construção da Angola Colonial.
(c.1872-1926). Lisboa, 2003. Disponível em:
http://www.ics.ul.pt/agenda/seminarioshistoria/pdf/isabelcastrohenriques. Último Acesso em: 2008.
211
O estudo de Isabel de Castro Henriques citado é o artigo: A materialidade do simbólico: marcadores
territoriais, marcadores identitários angolanos (1880-1950). Textos de História. Brasília: UnB, vol.12,
nº.1/2, 2004, p.9-10.

118
também em cumplicidades, em compromissos estratégicos, assim como em choques
violentos‟. 212

Propôs, então, três tópicos a serem analisados no inventário dos símbolos que
instituíram a criação de Angola: a laicização da terra africana pela ação científica dos
europeus; a tentativa de salvaguarda dos valores fundamentais das identidades africanas,
pela apropriação de aspectos culturais dos europeus como uma maneira de „criar
estruturas de proteção dos valores e práticas próprios‟ e, por fim, advindo do ato da
apropriação, o reconhecimento que a identidade também não é estática para os
africanos. 213

Neste sentido, devemos analisar a „polissemia dos símbolos‟ pelos recursos imagéticos e
materiais: pelo lado dos europeus, instrumentos técnicos, bandeiras, cruzes e crucifixos,
designações, vestuário, documentos, construções etc. e pelo lado africano, os
monumentos, as construções, mas também as danças, os cantos, os rituais, as sepulturas,
as árvores, entre outros. Metodologicamente estes recursos africanos foram
conformados em cinco categorias de marcadores: vivos, religiosos/sagrados, fabricados,
históricos e musicais ou sonoros, sendo possível apresentarem por vezes funções
sobrepostas.

Já para os europeus, a historiadora sugeriu os marcadores advindos da ciência e da


simbolos euro
peus: ligados técnica, aqueles que impuseram a laicização da terra africana e serviram para a
à dominação ocupação e o controle colonial. Entre estes estão os instrumentos técnicos como os

aparelhos fotográficos, binóculos, lunetas, relógios, cronômetros e outros aparelhos de


medição, mas também as representações cartográficas e os inventários demográficos
que pretendiam responder „onde estão e quantos são‟ e os elementos que reorganizaram

212
Cf.: HENRIQUES, Isabel Castro. A materialidade do simbólico..., p.11.
213
a compara- Cf.: HENRIQUES, Isabel Castro. A materialidade do simbólico ..., p. 11-12. Em outro artigo, a
ção material historiadora justificou a importância da história comparada em seu estudo: "Comparar deve neste caso
e simbólica. ser interpretado como o movimento que permite dar conta simultaneamente da heterogeneidade dos
sistemas culturais e dos processos de socialização inventados pelos homens no longo curso das suas
histórias e da homogeneidade das soluções encontradas pelas sociedades ocidentais, nas quais
acabou por se integrar o continente africano: os espíritos pairam ainda nas cabeças dos homens, mas
deixaram de impedir as suas iniciativas e de impor normas rígidas ou regras imperativas. Tanto os
aparelhos mentais, como os políticos e os econômicos, mantendo embora a nostalgia dos 'puros'
valores africanos, procuram responder de maneira eficaz à solicitação do 'espírito do capitalismo'.”
Cf.: HENRIQUES, Isabel Castro. Território e identidade ..., p. 20.

119
o espaço, como a ferrovia e as redes rodoviárias, as estruturas urbanas, as culturas
industriais do café, algodão, açúcar, entre outras, a organização administrativa e jurídica
e a instalação de colônias de brancos, que chamou de processo de branquização.

Depois de realizado o inventário dos recursos imagéticos e materiais de africanos e


europeus que permitiram a criação de Angola, a proposta metodológica de Isabel Castro
Henriques prevê a comparação entre estes elementos para poder entender a adesão dos
africanos à dinâmica da mudança engendrada pelos portugueses no processo de
modernização dos seus territórios:

“Expulsos das suas terras, obrigados a adaptar-se aos sistemas de dominação


e de exploração do colonizador, em particular à violência do trabalho que
lhes é imposto, escolhem comportamentos que lhes permitam impedir a
anulação de toda a sua autonomia/hegemonia, procurando simultaneamente
dar-se os meios para não perder totalmente o controlo da transformação do
território. Ou seja, obrigados a entrar na engrenagem dos portugueses, os
africanos organizam estratégias e inventam novas fórmulas culturais capazes
de permitir a preservação dos valores essenciais da sua identidade, sem
todavia recusar a dinâmica da mudança. Assim, participam e orientam o
sentido da metamorfose do território e organizam uma identidade
angolana.”214

extroversão. Refletindo sobre o tema dos impactos externos sobre os grupos africanos, o historiador
Paulo Fernando de Moraes Farias propõe o conceito de extroversão para se analisar as
transformações históricas e estruturais ocorridas nas sociedades africanas.

O conceito de extroversão propõe pensar os fatores externos como apropriação pelas


sociedades africanas para „redizer coisas que elas diziam antes, de outra maneira‟.
Deste modo, „as influências externas, por elas mesmas, não teriam tido efeito
considerável se não houvesse uma receptividade ativa e um interesse ativo em receber
coisas de fora e em retrabalha-las‟. 215

214
Cf.: HENRIQUES, Isabel Castro. Território e identidade ..., p. 34-35; para os marcadores africanos
analisados pela autora, com base na divisão que propôs, ver as p. 13-26; para os elementos europeus,
p. 26-34 e, ainda, para aqueles apreendidos, em alguma medida, dos europeus pelos africanos, p. 34-
39.
215
O conceito de extroversão é utilizado por Paulo de Moraes Farias no seu estudo sobre a o impacto do
Islã sobre as sociedades sahelianas. Para tanto, ver: FARIAS, Paulo Fernando de Moraes. Sahel: a
outra costa da África. Curso apresentado no departamento de História da Universidade São Paulo, 29
de setembro de 2004. Transcrição de Daniela Baoudouin. E ainda os vídeos do curso Sahel: a outra
costa da África, promovido pela Casa das Áfricas e pelo departamento de História da USP. Disponível

120
Assim, a metamorfose do território e a organização de uma identidade angolana, de que
fala Isabel de Castro Henriques, podem ser um processo corrente desde o início da
presença europeia na região, que a violência do avanço colonial do final do XIX irá
interromper em alguns casos e acelerar em outros.

Este tipo de análise permite, por exemplo, interpretarmos que as apropriações do


Cristianismo na região centro-ocidental do continente africano teriam sido parte das
estratégias dos grupos envolvidos, uma vez que a luta pelo poder, segundo Farias,
também faz parte da extroversão, posto que ela não significa um „processo de braços
abertos ou amistosidade infinita: era uma luta de poder em que a abertura das portas e
a introdução de idiomas novos eram calculadas por muitos como uma oportunidade de
acréscimo de poder e de monopólio de autoridade‟. 216

Neste sentido podemos nos referir à vertente católica do Cristianismo no reino do


Kongo. De acordo com Rosana Gonçalves, mesmo com toda a fluidez das hierarquias
internas do reino, o catolicismo foi capaz de proporcionar à figura do mani Kongo uma
posição de dirigente principal por seu acesso à tecnologia e ao poder simbólico trazidos
pelos portugueses. Desta maneira foi possível ao mesmo dirigente conguês impor „um
cristianismo novo leque de ritos e símbolos às populações em geral‟, as quais reagiram de diferentes
no congo.
formas: resistindo, aproximando e até mesmo reelaborando estes ritos e símbolos
conforme os seus entendimentos, partindo de „paralelismos com a sua cosmogonia
vigente‟.

E se não é possível medir a extensão do Cristianismo entre as populações em geral,


afirma a historiadora, importante é compreender,

sincretismo? “por meio das fontes disponíveis, as reelaborações dos ritos e dos preceitos
católicos por parte dos centro-africanos, quando, por exemplo, identificavam
o batismo com o ato de comer o sal, associando sua importância simbólica
com os rituais de proteção contra os maus espíritos, que claramente
antecediam qualquer influência cristã”. 217

em: http://www.casadasafricas.org.br/site/movies.php?area=talks&action=show&filter=authors&id=8
Último acesso em: agosto de 2010.
216
FARIAS, Paulo Fernando de Moraes. Sahel: a outra costa da África ..., p. 8.
217
Cf.: GONÇALVES, Rosana Andréa. África Indômita: Missionários capuchinhos no Reino do Congo
(século XVII). São Paulo, 2008. Dissertação (Mestrado em História Social) – FFLCH-USP, p.140-144.

121
Nesta perspectiva, voltando ao programa de estudos proposto por Isabel de Castro
Henriques e com o fim de refletirmos sobre o processo de apropriação como uma via de
mão-dupla, passamos a analisar de agora em diante alguns marcadores presentes nos
caminhos da expedição portuguesa ao muatiânvua com o objetivo de apreendermos
significados dos mesmos elementos por aqueles que participaram deste
empreendimento, sejam africanos, sejam europeus.

Iniciamos então com os marcadores vivos, aqueles naturais que assegurariam a


socialização do espaço e a conformação do território e suas fronteiras. Nestes estão a
vegetação, as águas e seu ecossistema: a importância dos rios para as sociedades locais,
mas também para os portugueses que instalaram o centro da sua colônia Luanda em
uma região privilegiada próxima ao mar e ao rio Kwanza.

sobre os rios Esta intenção lusa de estabelecimento na região configurou o rio Kwanza como um
e a disputa por marco natural de disputas entre os poderes locais e a administração portuguesa, mesmo
eles.
que os primeiros acessos dos europeus a este rio tenha se dado a partir da orientação de
especialistas locais: os nambios, pilotos de dongos (canoas), conforme nos relata a
historiadora Rosa Cruz e Silva. 218

No decorrer do tempo, o rio Kwanza agregou o importante significado de definidor do


espaço colonial português, a que estes chamaram de Angola, especialmente no que
concerne à divisão regional da administração. Grosso modo, a divisão pode ser
entendida da seguinte forma: no norte, de Cabinda até as regiões do rio Zaire; no centro,
de Luanda até Ambaca (Mbaka) e seguindo a linha do Kwanza até Kasange e no sul, de
Benguela, e posteriormente no XIX, de Moçamedes até o Bié.

Esta divisão administrativa foi posta em prática por meio dos núcleos de poder,
chamados de presídios, fortes ou feitorias, os quais detinham dependendo do contexto
um maior ou menor controle sobre as populações ao seu redor, segundo as regras dadas
pelos acordos de vassalagem estabelecidos entre os dirigentes políticos africanos e o
governo-geral da colônia.
218
Cf.: SILVA, Rosa Cruz e. O Corredor do Kwanza: a reurbanização dos espaços – Makunde,
Kalumbo, Massangano, Muxima, Dondo e Kambambe. Séc. XIX. In: SANTOS, Maria Emilia Madeira
(dir.) A África e a instalação do sistema colonial (c.1885-c.1930). Actas do III Reunião Internacional
de História de África. Lisboa: IICT, p. 157-173, 2000.

122
Insigne no caso da resistência a estas zonas de poder português foi aquela exercida pelos
Kisamas, estabelecidos imediatamente na região sul de Luanda, portanto muito
próximos ao centro de poder português. Os diversos ataques desta população ao presídio
da Muxima – o mais próximo da capital colonial, instalado às margens do rio Kwanza –
podem ser encontrados na documentação portuguesa ao longo do tempo. 219
regionalização Esta regionalização dos espaços da África centro-ocidental foi reapropriada no século
de Angola. XX pelos estudos coloniais que definiram um mapa étnico de Angola dividido em
quatro grandes áreas com subdivisões específicas: no norte, os bakongos de língua
kikongo, no centro, os ambundus, falantes de kimbundu e no sul, os ovimbundus, de
língua umbundu, e a novidade da colonização do século XX, a integração a estas áreas
do grande espaço além-rio Kwango chamado de Lunda-chokwe. Estas nomenclaturas
são constantemente retomadas nos estudos contemporâneos sobre a região. 220

os presídios. Retomando a questão dos núcleos de poder, estes foram conformados em nove presídios
e treze distritos, desde o início administrados por militares. São eles: os presídios da
Muxima, Massangano, Pungo Andongo, Ambaca, Duque de Bragança, Cambambe,
Novo Redondo, São José de Encoje, Benguela e Caconda e os distritos da Barra do
Bengo, Barra do Dande, Barra de Calumbo, Dande, Icolo e Bengo, Zenza e Quilengues,
Dembos e Golungo e Dombe Grande, Bailundo, Bié, Huambo e Quilengues de
Benguela. Todos eles compostos de capelas e fortificações que abrigaram tropas do
exército português que tinham em sua composição soldados originários das sociedades
locais e próximas a algumas destas feiras que tentavam se estabelecer como centros
regionais de comércio. 221

219
A importância da região da Muxima e das águas do rio Kwanza para as populações locais será
retomada posteriormente quando tratarmos dos loandas, grupo de contratados nesta cidade por
Henrique de Carvalho para os trabalhos da expedição. Sobre a independência dos Kisamas, „que
[tinha] seus Sovas Independentes‟, ver, por exemplo, a afirmação do governador-geral Nicolau de
Abreu Castelo Branco no seu ofício datado de 20 de outubro de 1825 que tratava dos fortes de São
Pedro da Conceição de Penedo, porto de Luanda, Sítio de Calumbo e os presídios de Muxima,
Massangano e Cambembe. Coleção IHGB DL 76, 02.23.01.
220
Dentre os estudos coloniais destaca-se o trabalho de José de Oliveira Ferreira Diniz, secretário dos
Negócios Indígenas de Angola durante o primeiro governo de José Norton de Mattos (1912-1915).
Nele o alto funcionário português, a partir de questionários etnográficos preenchidos por funcionários
da administração, propôs uma divisão étnica das populações do território angolano. Este trabalho foi
publicado em 1918 sob o título Populações Indígenas de Angola que teve como objetivo, segundo
Isabel de Castro Henriques, „habilitar o governo colonial com os elementos indispensáveis para a
elaboração da legislação especial para os indígenas‟. Cf.: HENRIQUES, Isabel de Castro. Percursos
da modernidade ..., p. 68-69.
221
Capitão-mor e regente foram os títulos utilizados para designar os administradores, respectivamente,
de cada presídio e distrito, sendo que em 1836, eles foram substituídos por comandante e chefe. Na

123
A percepção dos núcleos portugueses mais como centros de comércio na época de
funcionamento do tráfico atlântico de escravizados pode ser vista na correspondência
enviada por Joaquim José da Silva do presídio de Ambaca ao governador-geral Miguel
António de Melo (1797-1802), datada de 20 de março de 1798, na qual afirma a
importância das feiras „nos negócios do sertão‟, portanto seria de grande utilidade a
instalação de feiras a „huma menor distancia [...] do que aquella em que se acha a de
Cassange, sendo demonstrado quanta facilidade communicaria ao negócio hum tal
plano‟. 222

No final do século XIX, estes núcleos de poder tiveram o seu significado reconfigurado
em favor do avanço colonial: instalados mais ao interior tomaram o sentido de zonas de
civilização para os portugueses que seguiam as diretrizes discutidas na Conferência de
Bruxelas de 1876, conforme ressaltado anteriormente sobre as estações civilizadoras,
comerciais e hospitaleiras.

Nesta perspectiva, interessante é o entendimento, ainda no século XX, das estações


edificadas pela expedição portuguesa à Lunda como sendo um prolongamento dos
presídios instalados ao longo do Kwanza. Neste caso, notem-se no mapa produzido pelo
filho do explorador Henrique de Carvalho as bandeiras portuguesas como marcos destes
centros nos caminhos da expedição: 223

década de 1850 uma outra reorganização administrativa transformou os presídios e distritos em


concelhos. Cf.: DIAS, Jill. “Angola”. In: ALEXANDRE, Valentim e DIAS, Jill (eds.). Nova História
da Expansão Portuguesa. O império Africano 1825-1890. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 357.
222
Cf.: Carta de Joaquim José da Silva, do Presídio de Ambaca, ao governador de Angola d. Miguel
António de Melo, datada de 20/03/1798. Col. IHGB DL81, 02.27. Sobre a feira de Kasanje construída
de acordo com o modelo de outras feiras luso-africanas ver o estudo de Jean-Luc Vellut, Notes sur le
Lunda et la frontière luso-africaine (1700-1900). Extrait de Études d'histoire africaine. t. III, 1972,
p.94-110.
223
Mapa da Expedição Portuguesa ao Muata Iânvua produzido por João Augusto Noronha Dias de
Carvalho de 1974. In: CARVALHO, João A. N. D. Henrique de Carvalho. Uma vida ao serviço da
pátria. Lisboa: Serviços Gráficos da Liga dos Combatentes, 1975, p.166.

124
Dividida a expedição em seções, os trabalhadores que avançavam na frente sob o
comando do capitão Manuel Sertório de Aguiar construíram as seguintes estações: no
sentido litoral-interior, na margem esquerda do rio Kwango, a Estação 24 de Julho (24-
07-1884), na região de Andala Quissua, próxima de Malanje; a Estação Ferreira do
Amaral (15-08-1884), no Cafuxi de Sé Quitari; a Estação Paiva de Andrada (01-11-
1884), na margem do rio Lui, nas terras dos shinjes.

Prosseguindo, na margem direita do Kwango, foram edificadas: a Estação Costa e Silva


(31-10-1884), nas terras de Capenda-Camulemba, onde Henrique de Carvalho
conseguiu realizar o primeiro tratado com a dirigente local Mona Mahango e seus
macotas, em 28 de fevereiro de 1885; a Estação Cidade do Porto (24-04-1885), na
margem do rio Cuilo; a Estação Luciano Cordeiro (31-10-1885), na região a caminho
do rio Lóvua, onde a expedição assinou um segundo tratado com o Caungula e seus
ilolo, em 31 de outubro de 1885; a Estação Andrade e Corvo (10-01-1886), no vale do
rio Chicapa; a Estação Conde de Fialho (28-02-1886), na região do rio Luachimo, local
onde Henrique de Carvalho, meses depois, em negociações com os chokwes visando o
término dos ataques aos lundas, consegue de Quissengue um tratado, em 26 de setembro
de 1886; a Estação Serpa Pinto, Capelo e Ivens (04-08-1886), na margem esquerda do
rio Cachimi, a Estação Pinheiro Chagas (18-01-1887), na mussumba lunda, onde o
chefe da expedição consegue a assinar um tratado com o muatiânvua interino Mucanza,
em 18 de janeiro de 1887.224

224
As datas entre parêntesis referem-se à construção das estações pela primeira seção comandada por
Sertório de Aguiar e não à chegada e permanência do chefe da expedição Henrique de Carvalho, salvo
os casos da estação Luciano Cordeiro e Pinheiro Chagas, que tiveram sua construção autorizada no

125
Além da preocupação em construir as estações próximas aos rios, outro ponto de
interesse dos locais escolhidos foi o trânsito de pessoas pela região, principalmente,
pelas caravanas do comércio do interior, tal como ficou evidenciado na correspondência
de Henrique de Carvalho ao governador-geral de Angola a respeito da Estação Costa e
Silva, diferente do lugar ermo representado na imagem:

“Sendo um dos artigos das


Instrucções d'esta Expedição fazer
tratados de amisade e commercio
com os potentados por onde
transitar e sendo o sitio em que
está estabelecida esta Estação ate
agora o mais importante que
conheço e julgo conveniente
assegurar, quer por estar proximo
ao Cuango, mais a leste 6 milhas,
quer porque seu povo é dos que
tenho visto mais se presta ao
trabalho e apresenta indicios de
querer civilisar-se pois um ou
outro, embora de riscado, se vê de
calças e jalecos; e tambem de chapeus e sapatos de ourellos; quer proque
n'elles se encontra o espirito mercantil, assim vão ao Lui buscar sal para irem
ao Peinde trocar por borracha e levam-no a Cassanje ou esperam os
Bangalas para obterem fazendas, missangas, polvora, etc., ainda que em
pequena quantidade; quer finalmente porque não muito distante de Cassanje
e independente d'elle, garantiria mais a segurança d'aquelle concelho da
provincia e por estar internado além d'elle, permittiria estreitarem-se mais as
nossas relações com a Lunda ao mesmo tempo que facilitará e auxiliará e
mesmo activará communicações reciprocas entre nós e aquelles povos; por
todos estes motivos, pareceu-me acertado aproveitar da nossa influencia já
adquirida, preparando a pouco e pouco o animo dos potentados, suas
familias e macotas que fazem parte do Conselho do Estado para se fazer esse
tratado.”225

decorrer das discussões dos tratados realizados entre Henrique de Carvalho e os dois dirigentes lundas,
o Caungula da Mataba e o muatiânvua interiono Mucanza.
225
As razões alegadas por Henrique de Carvalho sobre a instalação da estação neste local em razão do
comércio promovido pelos shinjes foram também motivo do itinerário de viagem escolhido, uma vez
que eram independentes de Kasanje e não colocariam obstáculos a passagem da expedição. Tal questão
pode ser vista em: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol.I, p. 438-439. Para o trecho
citado, ver: Correspondência de Henrique de Carvalho ao governador geral de Angola, datada da
Estação Costa e Silva, em 15 de fevereiro de 1885. In: CARVALHO, Henrique A. D. A Lunda ou os
estados do Muatiânvua. Domínios da soberania de Portugal. Lisboa: Adolpho, Modesto & Cia., 1890,
p. 32. A fotografia da estação Costa e Silva é da coleção da Sociedade de Geografia de Lisboa exposta
na seção Viagem na seguinte página da internet: http://socgeografialisboa.pt/projectos/2010/henrique-
carvalho/. Último acesso em: novembro de 2010.

126
Além dos rios, outro importante marcador vivo, que ensejou descrições pejorativas por
parte de alguns viajantes, são as termiteiras. Construções geralmente com o formato de
cones feitas por formigas brancas que na região por onde a expedição chefiada por
Henrique de Carvalho passou eram chamadas de salalé. Segundo o subchefe da
expedição, o farmacêutico Sisenando Marques,

“Essas formosas construcções que se podem contar aos milhares, são de


barro, representando na primeira espécie pyramides conicas mais ou menos
alongadas, um tanto irregulares [...] São todas dotadas de tão grande solidez
peripherica que resistem aos golpes da enxada, e as aguas pluviaes mais
densas, demoradas e erosivas não as penetram nem pelo menos lhes
destacam uma molecula do seu bem preparado cimento. No interior e solo
subjacente vê-se um labyrinto formado de milhares de cavidades, corredores
e galerias traçadas em todos os sentidos, no centro do qual se encontra uma
pequena construção especial similhante a um tijolo com uma cavidade
interna a estrictamente necessaria para alojamento da termita-mãe [...] Se
não fossem as aves, os desdentados e muitos outros animaes que lhes fazem
grande exterminio, e até os povos africanos que utilisam estes insectos como
substancia alimentícia, devia dizer-se das termites o mesmo que diz ainda
Michelet: 'Se todas as especies reunidas não trabalhassem para a sua
destruição, ficavam ellas sós e os peixes senhores do mundo.” 226

Construindo suas habitações no formato


das termiteiras, as populações lundaizadas
chamavam de muquinde a moradia de
forma cônica e de caráter provisório e
mabúxi, aquelas com o formato de
cogumelo, com uma espécie de „chapeleta‟
na parte superior, na expressão de
Henrique de Carvalho.227

226
Cf. o farmacêutico e subchefe Agostinho Sisenando Marques em sua obra Expedição Portugueza ao
Muata-Yanvo. Os climas e as producções das terras de Malange à Lunda. Lisboa: Imprensa Nacional,
1889, p. 92-94.
227
Gravura das „Construcções do Mabúxi e do Muquinde (salalé)‟ em: CARVALHO, Henrique A. D.
Ethnographia e História ..., entre as p.212 e 213.

127
À primeira vista, a comparação entre as
formas das termiteiras e a das habitações
africanas feita por Henrique de Carvalho
transparece uma visão depreciativa ao
afirmar que elas pareciam mais „abrigos que
nem mereciam o nome de choupanas‟. 228

Por outro lado, quando o major português tratou dos projetos de colônias agrícolas de
povoamento branco propôs a construção das moradias ao estilo das africanas por
entender que as condições locais pressupunham o aproveitamento do conhecimento
africano na questão:

“Seguindo o uso dos naturaes que julgo de conveniencia conservar-se, não


só as cosinhas são isoladas dos quartos mas ainda estes, se devem separar
uns dos outros na repartição de cada colono - e o todo limitado por cêrcas ao
alinhamento das ruas, as quaes devem ter altura que não deve exceder o
peitoril das janellas dos quartos.
[...]
A cosinha e a casa de familia julgo conveniente serem terreas separadas
tambem uma da outra, sendo esta de maior área que as do quartos, porque
ahi comem, recebem visitas e é onde á noite se juntam em roda das
fogueiras...”.229

E valorizou mais ainda a técnica de construção civil africana quando em outro trecho da
mesma obra citada – a qual propunha, de acordo com o seu subtítulo, um „modo
practico de fazer colonisar com vantagem as terras de Angola‟ – criticou as habitações
edificadas pelo governo nos bairros dos africanos, no início da formação dos conhecidos
musseques luandenses:

“Em abono da verdade deve dizer-se que nos ultimos vinte annos, os
governadores geraes da provincia teem pela sua parte mais ou menos
procurado em beneficio da cidade de Loanda, dispôr a população africana da

228
Gravura das habitações e da sua descrição em: CARVALHO, Henrique A. D. Ethnographia e
História ..., p. 220-221.
229
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. CARVALHO, Henrique A. D. Expedição Portugueza ao
Muatiânvua. Meteorologia, Climatologia e Colonização: estudos sobre a região percorrida pela
expedição comparados com os dos benemeritos exploradores Capello e Ivens e de outros observadores
nacionaes e estrangeiros: modo practico de fazer colonisar com vantagem as terras de Angola. Lisboa:
Typ. do jornal "As Colonias portuguezas",1892, p. 459-460.

128
classe inferior em bairros, nas melhores condições de salubridade; mas não
tem sido isto o bastante, porque as habitações não são as mais proprias para
climas quentes, nem a sua exposição é das mais favoraveis.”230

Os problemas para Henrique de Carvalho destas moradias estabelecidas „no fundo da


cidade sobre a encosta‟ eram:
 a divisória das construções: „algumas teem apenas uma casa, com uma divisória
de paus revestidos de esteiras ou de um gradeamento de troncos delgados,
cheios os intervallos de barro que foi adelgaçado e tornado pastoso em agua
para se almodar á obra‟;
 o revestimento das paredes externas: „feitas por este mesmo systema [das
internas], mas com duas ordens de gradeamentos sendo os troncos esteios mais
grossos. O revestimento de barro tanto interior como exteriormente alisa-se a
cólher, sendo em algumas coberto esse revestimento duma camada de cal
affagada á colher, ou o que é mais trivial, caiada a brocha por duas ou tres
vezes‟;
 a altura da habitação: „teem pouca altura as paredes e a cobertura disposta em
duas aguas e feita por um gradeamento de varas que resistam ao peso do capim
ou colmo com que os revestem‟;
 o piso das casas: „o solo em geral não é batido e quase sempre fica ao nivel das
ruas, quando não inferior, succedendo no tempo das grandes chuvas ficar
coberto de agua e pastoso muitos dias‟;
 a pouca ventilação: „em algumas vê-se rasgamentos de pequenas dimensões nas
paredes da frente, que mais são frestas do que janelas, e se fecham com portas
de madeira pela parte de dentro‟;

Enfim, a precariedade destas moradias de Luanda fazia com que as famílias instaladas
„nestas pequenas habitações‟ vivessem sempre sob uma „atmosphera pesada‟, também
devido „ao fumo dos fogos‟ que mantinham „de dia e de noite, salvo poucas excepções‟.
231
Estas condições de moradia junto à má alimentação e à falta de água potável
contribuíam para aquilo que Henrique de Carvalho considerava não ser natural: a „maior

230
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Meteorologia, Climatologia e Colonização..., p.166.
231
Problema antigo desde os primeiros tempos da fundação da cidade. Segundo o cronista ANÔNIMO,
era do rio Bengo que vinha a água que se bebia em Luanda: “... transportada em pipas que os pretos
conduzem n‟umas barcas bastante mal construídas, a que dão o nome de dongos, e que fazem navegar
á força de remos, quando a brisa, que é o vento que reina de dia de oeste a leste, não é suficientemente

129
mortalidade entre os africanos, quando o número de doentes é muito menor comparado
aos europeus‟. 232

Após esta digressão sobre a difícil vida


formigas africana em Luanda, voltemos ao interior
salalé
e à convivência das populações com as
termiteiras. A despeito da voracidade da
salalé, que era capaz de destruir quase
todo o tipo de material, exceto metais, 233
outro recurso que as formigas brancas
proporcionavam a estas populações era o alimentar. 234

forte para poderem usar d‟umas velas d‟esteira fabricadas por eles. [...] Há certas ocasiões em que o
mar da costa perde a sua tranquilidade e se torna agitado, a ponto de não poderem ir as barcas ao
Bengo: n‟essas épocas, chamadas da – callema -, sobe o preço da agua em Loanda, e muitos dos seus
habitantes se vêem obrigados a gastar agua do sito da Mayanga, nos subúrbios da cidade, ou dos
poços, a que chamam cacimbas.” Cf.: ANÔNIMO. Quarenta e cindo dias em Angola. Apontamentos
de viagem. Porto: Typographia de Sebastião José Pereira, 1862, p.20-21. Trecho também citado em:
OLIVEIRA, Mario Antonio F. (anotações). Angolana: documentação sobre Angola, I (1783-1883).
Luanda; Lisboa: Instituto de Investigação Científica de Angola; Centro de Estudos Históricos
Ultramarinos, 1968, nota 5, p.407-408. Ainda em 1885, a falta de água foi apresentada no relatório do
governador-geral Ferreira do Amaral enviado ao ministério do ultramar, no qual foram discutidos os
planos de Eduardo Ayala dos Prazeres que, por meio de uma operação financeira, propunha conseguir
„abastecer de águas a cidade de Loanda‟. Este interessante relatório, originário do acervo do Arquivo
Histórico de Angola e que conta com mais de 40 páginas foi digitalizado pelo Projeto Acervo Digital
Angola Brasil-PADAB e pode ser consultado no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro sob a
seguinte notação: PADAB, DVD 19, AHA Códice 42 –A-9-5, pasta 78 DSC 00233 a 00280.
232
A historiadora Mary Karasch no seu trabalho sobre a vida dos escravizados no Rio de Janeiro, na
primeira metade do XIX, também chegou à mesma conclusão de Henrique de Carvalho, sobre as
causas da alta mortalidade entre a população africana serem as más-condições de vida: „Apesar das
explicações sobrenaturais de senhores e escravos, a perspectiva do século XX explica que os cativos
morriam devido a uma correlação complexa entre descaso físico, maus-tratos, dieta inadequada e
doença. A falta de alimentação, roupas e moradias apropriadas, em combinação com os castigos,
enfraqueciam-nos e preparavam-nos para serem liquidados por vírus, bactérias e parasitas [sendo a
tuberculose] a principal causa da morte de escravos no Rio, diretamente relacionada com os baixos
padrões socioeconômicos de existência [...] com exceção da malária e da varíola, que não respeitavam
posição social‟. Cf.: KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São
Paulo: Cia das Letras, 2000, p. 207-208 e 258, respectivamente. O estudo de Henrique de Carvalho
sobre as condições dos primeiros tempos dos musseques luandenses é fruto de seu trabalho como
engenheiro-militar responsável pela construção do Hospital Maria Pia, entre os anos de 1878 e 1882.
Para as citações acima de Carvalho, ver: Meteorologia, Climatologia e Colonização..., p.166-167.
233
As populações lundas, segundo Henrique de Carvalho, pensaram algumas estratégias contra esse
poder destruidor da salalé, tais como a prateleira chamada lutala, disposta na parte superior das
habitações que serviam para 'esconder' os objetos da salalé e fazer o chão da moradia com couros de
animais, madeira ou argila vermelha batidos. Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Ethnographia e
História ...., p. 218 e 271.
234
Gravura da „Colheita do Salalé‟ em: CARVALHO, HENRIQUE A. D. Descripção ..., vol. IV, entre
as p.380 e 381.

130
Importante para várias sociedades da África Central, a captura das térmitas constituía
uma das atividades sazonais praticadas em várias regiões do continente africano. Ilídio
do Amaral, citando um estudo da década de 1950, revela que para as populações
agrícolas zande, estabelecidas no sul do Sudão, na fronteira com as atuais República
Democrática do Congo e Uganda, „a posse de uma termiteira era quase tão sagrada
como a de uma tamareira para um beduíno‟: cada família tinha as suas próprias
termiteiras e na época de seu enxame os adultos saíam para capturá-las munidos de
cestos e archotes de palha, procedimento muito parecido com a representação contida na
gravura sobre a „a colheita do salalé‟ apresentada por Henrique de Carvalho. 235

Na Lunda, na época da expedição, a salalé também era tida como uma importante
iguaria que podia ser conseguida entre os meses de maio e outubro, na „estação em que
os cogumellos tomam enormes proporções, em que os ratos, as lagartas de árvores, os
gafanhotos, os salalés e outros insectos abundam, e lhes proporcionam depois de
seccos ao sol, um recurso para se supprirem na epocha das grandes chuvas‟. 236

Mas não foram somente para as populações africanas que as termiteiras tomaram
significado prático. Já no século XX, o biólogo Luís Carrisso chamou atenção para as
termiteiras como uma matéria-prima capaz de ajudar na conservação das estradas de
rodagem angolanas:

“É, porém na reparação das estradas angolanas que o salalé presta relevantes
serviços. [...] Extensas regiões do planalto são constituídas por areia solta,
que de forma alguma oferece a consistência necessária para suportar o pêso
dos carros. Pedra para fazer brita, só existe por vezes muito longe, e a
macdamização das estradas do interior seria por tal forma dispendiosa, que
essa solução do problema se deve considerar como absolutamente inviável.
[...] Mas o processo mais usado para dar à estrada uma superfície boa para os
rodados pneumáticos, é o emprego da terra de salalé. Em geral, utilizam-se
construções de tipo pequeno, que se destacam facilmente do solo, e cujo

235
Cf.: AMARAL, Ilídio do. Importância das „fontes cruzadas‟ na historiografia angolana (reflexões de
um geógrafo). In: Actas do Seminário Encontro de Povos e Culturas em Angola. Lisboa: CNCDP,
1997. p. 89.
236
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Ethnographia e História ...., p. 452. Parecida com as salalés,
quanto ao seu poder devastador e seu aproveitamento pelo homem, eram as saúvas, formigas do gênero
„ata‟, originárias de regiões americanas. Sobre a venda de içá (rainha das saúvas) na São Paulo do XIX,
„apregoadas no centro da cidade pelas pretas de quitanda, ao lado das comidas tradicionais‟ e „com
grande escândalo para os estudantes forasteiros‟, ver: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e
fronteiras. 3ª. edição. São Paulo: Cia das Letras, 1994, p.57, no capítulo com o sugestivo título
„Iguarias de bugre‟.

131
pêso é compatível com a capacidade de transporte de um homem. Os
indígenas encarregados da reparação da estrada vão buscar essas
construções, verdadeiros torrões de terra consistente, e esboroam-nos nos
pontos da estrada que exigem reparo - geralmente ao longo dos sulcos
abertos pelos rodados. O resto faz-se por si; a chuva humedece a terra de
salalé, já reduzida a pequenos fragmentos, e a passagem dos carros
comprime-a. Por fim a estrada fica razoável, por vezes mesmo magnífica,
tais são as virtudes do cimento que o térmite fabrica no seu tubo
digestivo.”237

A apreensão dos diferentes marcadores, de maneira recíproca, porém desigual, pelas


populações africanas e pelos europeus também se deu com os outros tipos propostos por
Isabel de Castro Henriques. Assim, naqueles marcadores chamados de religiosos ou
os feiticeiros sagrados podemos citar as espécies vegetais que, por assegurarem uma força protetora
e as plantas. foram reconhecidas, respeitadas e difundidas através de complexos iniciáticos
promovidos por especialistas conhecidos como ngangas [angangas ou quimbandas] e
chamados pelos portugueses de „feiticeiros‟, os quais dispunham de um conhecimento
sobre as plantas que lhes possibilitavam atuar socialmente na cura dos males que
pressupunham a ingestão de algum veneno nos processos judiciários. 238

Sobre as instituições sociais africanas que carregavam uma dimensão religiosa, como o
sistema judicial do ordálio, Luis Nicolau Parés propõe encará-las não só como uma
forma de controle, mas também com uma maneira de promover a integração social em
momentos difíceis de secas, guerras, enfermidades e mortes em que se necessita de
soluções a partir de referências conceituais e morais coerentes com as necessidades
básicas do social a que se pertence.

Relevantes neste sentido são as descrições e desenhos das plantas produzidos pelo
subchefe da viagem à Lunda, o farmacêutico Sisenando Marques, publicados no volume
de sua autoria. Não é de admirar que por suas práticas de coletar, descrever, esboçar
espécimes vegetais e de assistir com remédios algum paciente local ele foi chamado de

237
O biólogo Luís Carrisso participou em 1927 da chamada Missão botânica da Universidade de
Coimbra e a partir dela produziu alguns estudos, entre os quais, este que retiramos a citação acima:
Colecções de fotografias diapositivas de Angola. Primeira série, números 1 a 20. Coimbra: Imprensa
da Universidade, 1932, p.24-25.
238
Cf.: PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé. História e ritual da nação jeje na Bahia.
Campinas: Editora da Unicamp, 2006, p.106.

132
nganga dontolo pelos habitantes das populações que visitou e pelos trabalhadores da
expedição. 239
As atividades de Sisenando Marques objetivavam a ordenação por meio do
reagrupamento e da nomeação dos „aspectos naturais da Lunda‟ por ele observados.
Embora estas práticas estejam de acordo com o pensamento científico em voga na época
ou com aquilo que Mary Louise Pratt chamou de „olho ordenador do cientista‟,
acreditamos que o ato de representar a realidade em sua essência não é algo inerente aos
europeus e não está somente no plano discursivo da escrita. 240

Nesta linha de análise, vale citar o relato de Sisenando Marques, mesmo que um pouco
longo, sobre o caso dos muquixis dos lundaizados, representantes das crenças locais, e
da bandeira nacional dos portugueses, da ciência moderna, que chegaram a medir forças
na ocasião em que a expedição estabeleceu acampamento na povoação de N‟seige:

“Armaram-me a barraca, resolvido a não seguir mais n‟este dia, porque a


marcha por caminhos sempre acidentados, na sua maioria quasi
impraticaveis, desde as seis horas e quarenta e cinco minutos, com um
pequeno descanço, tinha-nos tornado inúteis, e parte da gente trazia os pés
retalhados pelas asperezas dos terrenos que se pisavam.
[...]
Depois do acampamento estabelecido, mandei como de
costume hastear a bandeira defronte da minha barraca sobre um
muquiche - pequena cubata representando um templo erigido
em honra do N'zambi ou divindade, para implorarem a sua
protecção. Têem os muquiches ou mubambas diversos feitios:
muitas vezes são uns pequenos telheiros de duas aguas, abertos
nos quatro lados, ou só em um, e então com tres paredes de
colmo verticaes; outras vezes têem a disposição circular e a
cobertura em fórma de cone.
N'esta senzala e em outras onde passei, adoptam o ultimo
formato, que offerece uma certa elegância.
A altura d'estes monumentos regula proximamente por 10 a 12 decimetros,
com 6 de diametro. Parecem uns pequenos kiosques de colmo e vêem-se nas
povoações duzias d'elles, podendo-se calcular quase um por habitante.
Não é como entre nós, que o templo é commum e abriga todos os fieis. Cada
indigena tem o seu pequeno templo, que só n'elle tem crença; e se respeita o
do seu vizinho é pela consideração que lhe merece a propriedade alheia, por

239
Para tanto, ver: MARQUES, A. Sisenando. Os climas e as producções das terras de Malange à
Lunda..., p. 561, por exemplo.
240
Sobre o „olho ordenador do cientista‟, que „reagrupa as formas de vida do planeta, extraídas do
emaranhado de seu ambiente, conforme os padrões europeus‟ na intenção de nomeá-las [em latim] de
acordo com o sistema proposto por Carl Linné ou Lineu no século XVIII, ver: PRATT, Mary Louise.
Os olhos do império. Relatos de viagem e transculturação. Bauru, São Paulo: Edusc, 1999, p.55-75.

133
que não representa o menor valor nem veneração religiosa para aquelle que o
não construiu para seu uso.
Era pois sobre um muquiche que estava a bandeira, com prévio
consentimento do seu dono, quando uma trovoada do NW. acompanhada de
um tremendo vendaval annuncia medonhos aguaceiros.
Eram quatro horas da tarde continuava este estado de tempo; chovia por
montes e valles menos na aldeia, o que fez logo correr o boato de que não
chovia no logar por estar a bandeira içada.
É um feitiço muito forte do branco, diziam uns. A nossa terra fica estragada
se o feiticeiro não tira a bandeira, diziam outros.
Procuraram fazer-me chegar aos ouvidos estes commentarios a que eu me
tornava surdo; até que a fim de conjurarem o perigo de que se diziam
ameaçados, de vez em quando chegava-se um ou outro ao pé de mim
pedindo-me para tirar o feitiço, porque a sua terra estava muito secca e
precisava de agua para as culturas, e que quando eu conservasse o feitiço
espetado no muquiche no meio da libata, não podia chover.
Pretendia eu sempre dissuadil-os do seu prejuiso, porém nada os convenceu.
A chuva caía a cantaros em todo o grande circulo do horisonte; os pedidos
succediam-se, mas a bandeira lá continuava a fluctuar ao sopro das virações
do SE, porque eu esperava a cada momento que os aguaceiros inundassem
toda a libata.
Os indigenas já se não atreviam a fazer-me pedidos; apenas olhavam para
mim com um sorriso velhaco e eloquente e diziam só 'muene-puto' ao
mesmo tempo que estendiam um braço e descreviam um grande arco sobre o
horisonte, para onde mais chovia, como querendo tacitamente, em presença
d'estas evidentes provas physico-meteorologicas, esmagarem-me debaixo do
peso de tão valente argumentação.
Estava prestes a anoitecer e escurecia cada vez mais o tempo; deram seis
horas, quando com grande gaudio dos indigenas mandei arriar a bandeira, e
ainda bem não estava enrolada - como o diabo as tece! - parecia que o céu
rasgava para dar passagem a um diluvio que vinha inundar a libata! Choveu
torrencialmente! Dir-se-ía que os elementos reunidos se compraziam em
arreigar a superstição gentilica, conferindo-me pelo menos na occasião um
diploma de charlatão de feira no meio d'aquella ignara populaça; e declaro
que me contrariou bastante esta inesperada lição de physica.” 241

Este relato do embate entre forças simbólicas também se remete aos marcadores
fabricados: segundo Isabel de Castro Henriques, àqueles objetos sacralizados que são
instalados em locais de fácil visibilidade. Neste sentido, podemos nos referir também às
próprias edificações com sua disposição espacial que define a hierarquização das
relações sociais, tal como ocorreu com a mussumba do muatiânvua construída no
formato de uma tartaruga na região do Kalani.

241
Relato sobre o „feitiço da bandeira na povoação de N‟seige‟ em: MARQUES, A. Sisenando. Os
climas e as producções das terras de Malange à Lunda ..., p. 185-187. Para a representação do
muquixi, ver: CARVALHO, Henrique A. D. Ethnographia e História ...., p. 248.

134
“A mussumba comprehende um grande numero
de povoações dispostas numa certa ordem em
torno da quipanga do Muatiânvua, mais ou
menos distantes d'ella; e com ella constituem a
capital do seu estado. [...] Se suppuzermos uma
tartaruga projectada sobre o solo e contornarmos
essa projecção por linhas rectas, obtemos a
planta da mussumba, em que a cabeça é o logar a
que se chama méssu (mësu 'olhos'); cada um dos
braços mucano (mukano 'boca'); a cauda,
mazembe; cada um dos lados maiores macala
(makala); e cada uma das pernas ambaia, sendo a
da direita da Muári (primeira mulher do
muatiânvua) e da esquerda da Lucuoquexe
(mulher que representa a mãe do primeiro
muatiânvua quando enviuvou). A mussumba é
traçada a preceito, pelo Muatiânvua, quando
muda de sitio ou por qualquer outra circunstância. [...] A frente da
mussumba é sempre virada para leste e a direção da rua principal é na linha
E.-W. [...] O estado do Muatiânvua, é dividido em pequenos estados e o
chefe de cada um, embora Muata e Quilolo do Muatiânvua tem sempre o seu
logar na côrte pela ordem de hierarchia. Se está no seu sitio, fica na corte o
representante d'elle, com familia e alguma força armada, e por isso se
reserva sempre espaço para as suas habitações.”242

Mais uma vez foi Isabel de Castro Henriques quem fez o inventário do significado de
linguas lunda
e kimbundu. mussumba nos relatos do século XIX. Aproximando mussumba, em língua lunda, à
mbanza, em Kimbundu, a historiadora sugere que as duas nomenclaturas se
equiparavam por designarem, „em sentido lato‟, a sede de poder de um dirigente político
importante.

O comerciante húngaro Ladislau Magyar, que afirmou ter estado na capital da Lunda
nos anos de 1850, chamou-a de Kabeba. O pombeiro Pedro João Baptista escreveu
musumba, mussamba e ainda banza do muatiânvua. Já Pedro Gamitto, que esteve no
Kazembe nos anos de 1830, demonstrou que o modelo da mussumba serviu de
kazembe
referência para o plano da capital deste reino aparentado com os lundas. 243

242
Esquema e descrição da mussumba em: CARVALHO, Henrique A. D. Ethnographia e História ....,
entre as p.224-227.
243
Cf.: HENRIQUES, Isabel de Castro. Percursos da modernidade ..., nota 24, p.175-176.

135
A descrição da mussumba do Kalani feita
por Henrique de Carvalho244 refere-se
especificamente àquela que visitou em
1887, uma vez que as mussumbas
construídas no decorrer da história dos
lundas tinham o caráter itinerante que
acompanhavam os propósitos de cada
muatiânvua eleito. Embora haja certa
dificuldade em acompanhar a evolução das capitais lundas ao longo do tempo, como
afirma Alfredo Margarido, parece que a maioria dos muatiânvuas conhecidos procurou
estabelecê-las no formato de tartaruga. 245

Em estudo de 1970, Alfredo Margarido ressaltou a forma analógica do pensamento


os valores da
lunda que permitiu definir as qualidades da tartaruga e integrá-las na conformação
tartaruga e
do muatianvua espacial de sua capital a partir daquilo que neste animal lhe pareceu sociável. Assim, a
escolha desta representação se deu pelos lundas identificarem a tartaruga como símbolo
de sabedoria, força, astúcia e, especialmente, longevidade, atributos que acreditavam
ser essenciais para o muatiânvua exercer o seu poder. 246

Carlos Serrano e Maurício Waldman nos apresentam mais dois exemplos da


importância da tartaruga na África Central: as representações gráficas dos ovimbundus
chamadas Omau onombe (carapaça de tartaruga) feitas em diademas e nos motivos
geométricos tecidos nos tapetes de prestígio utilizados pelos dirigentes kuba.247

Conforme podemos seguir na descrição de Henrique de Carvalho, cada parte do corpo


da tartaruga estava identificada com a composição sócio-política da Lunda que por sua
vez baseava-se na história de sua fundação. Isto é, a forma e a disposição do poder na

244
Vide a imagem intitulada pelo explorador „Uma rua do Calanhi (Mussumba)‟ publicada em:
CARVALHO, Henrique A. D. Descrição ..., vol. IV, entre as p. 326 e 327.
245
Cf.: MARGARIDO, Alfredo. La capitale de l‟Empire Lunda. Un urbanisme politique. Annales
Économies, Sociétés, Civilisations. v. 25, n.4, 1970, p. 857-858. Agradeço ao professor Carlos Serrano
a indicação deste trabalho de Alfredo Margarido.
246
Cf.: MARGARIDO. La capitale de l‟Empire Lunda ..., p. 857-858.
247
Cf.: SERRANO, Carlos M. Henriques e WALDMAN, Maurício. Memória d‟África. A temática
africana em sala de aula. São Paulo: Cortez Editora, 2007, p. 154-156.

136
mussumba significavam uma hierarquia estatal traduzida no traçado arquitetônico da
cidade a partir de uma „descrição ideal de acordo com a tradição oral‟, no dizer de
Paulo de Moraes Farias. 248

Havia na capital lunda espaços definidos para os titulares de cargos administrativos,


organização
da capital militares e representantes dos dirigentes políticos espalhados pelos territórios
Lunda
lundaizados. Por esta visível submissão ao poder do muatiânvua de líderes de diversas
regiões da África central que os estudiosos ao longo do tempo entenderam chamar a
Lunda de império, aproximando o significado desta forma de subordinação ao tipo
conceito
de império político formulado especialmente na passagem da medievalidade para a modernidade
europeia.

Nesta perspectiva, a geografia da mussumba acompanhava aspectos políticos que


definiam no geral dois planos: um interno e outro externo. No plano da tartaruga lunda,
portanto, havia líderes, chamados de quilolo, que deviam se instalar permanentemente
nela e outros que apenas deviam ser representados por seus delegados. 249 Esta divisão,
afirma Alfredo Margarido, tinha a vantagem de estender por todos os territórios
lundaizados dirigentes políticos com força militar razoável para defender todo o espaço
do „império‟ Lunda.

De acordo com o sistema do parentesco – que define a hierarquização social a partir do


parentesco: princípio de ancestralidade ou daqueles que se acreditam ser descendentes diretos dos
baseia hierar
primeiros a fundar a sociedade – o plano interno referia-se àqueles que eram
quia social.
250
descendentes diretos dos fundadores do estado Lunda que tinham o direito de se
estabelecerem próximos à anganda ou moradia do muatiânvua, edificada entre a ambula

248
Expressão de Paulo de Moraes Farias para se referir à hierarquia política do Mali. Para tanto, ver o
vídeo da palestra apresentada na PUC-SP: „Griots, louvação oral e noção de pessoa‟. Disponível em:
http://www.casadasafricas.org.br/site/movies.php?area=talks&action=show&filter=authors&id=8
Último acesso em: agosto de 2010.
249
Conforme definição de Henrique de Carvalho: “... todos os ilolo, (plural de Kilolo, que se tem
interpretado por „fidalgo‟), apesar de serem senhores de estados espalhados por toda esta região, tem
logar na corte e por isso, quando estão nas suas terras, fica na mussumba quem os represente e com
força armada. Esse representante toma o titulo e para todos os efeitos é ouvido, vota e delibera, como
se fosse o próprio quilolo ...”. Para tanto, ver: CARVALHO, Henrique A. D. Ethnographia e
História..., p. 231.
250
Os primeiros lundas são chamados pelos especialistas de lundas centrais ou rund, conforme podemos
ver no título da tese de James Jeffrey Hoover: The Seduction of Ruwej: Reconstructing Ruund History
(The Nuclear Lunda, Zaire, Angola, Zambia). 1978, 2v. Tesis (Doctor of Philosophy) Yale University.

137
e a manga direita, e o plano externo remetia-se exatamente para o contrário, àqueles que
deviam ser representados na mussumba. Esta geografia política da Lunda Alfredo
Margarido chamou de „sucessão posicional‟.251

Para estabelecer a posição de cada titular político na mussumba havia uma cerimonia na
qual o muatiânvua, montado nas costas de um chimangata (servo especial, na tradução
de Henrique de Carvalho), definia o local de cada quipanga a ser construída, começando
pelas duas partes que se acreditavam mais importantes: na cabeça ou méssu (mësu
„olhos‟) para o calala e sua gente e na cauda ou mazembe para o canapumba e os seus
subordinados. 252

O calala era o „chefe das primeiras forças que entravam em operações‟ nos tempos de
guerra e era responsável pela vigilância da parte frontal da mussumba. Esta autoridade
comandava também „um estado além do Cajidíxi‟ e nele tinha estabelecido um seu
calala, que não era o mesmo segundo calala do muatiânvua, o qual tinha o dever de
substituir o primeiro quando este saía em diligências.

No mésu da mussumba e próximo a ele instalavam-se junto ao calala os seguintes ilolo:


 Cambaje-uá-Pembe, „chefe dos que sentenceiam e que são executores das
sentenças‟ e dirigente de estado na região entre os rios Luxíxi e Luíza, chamado
de Muiala-iá-Pembe ou pedreira de calcário, „d'onde se extrahe um pó
esbranquiçado‟ que os lundas „amassam em rolos para com elle friccionarem o
corpo em signal de humildade‟ na presença de seus governantes;
 Muene Têmbue, „filho de muatiânvua, imediato do Suana Mulopo (príncipe
herdeiro). Tem o seu estado na mussumba, isto é, a sua residência oficial, e por
sua conta faz lavrar as terras que o muatiânvua lhe dá já fora da sua
residência, mas próximo d‟ella‟.
 Muene Casse, „com honras de muatiânvua‟ era considerado cárula, nome do
primeiro tio do muatiânvua – „seus descendentes conservaram essas honras –,
servia para designar os conselheiros do muatiânvua, a partir da figura do tio ou
do mais-velho, segundo as regras da matrilinearidade. Desta forma, alguns ilolo
251
Cf.: MARGARIDO, Alfredo. La capitale de l‟Empire Lunda ..., p. 859.
252
Para a descrição do cerimonial de definição dos espaços, ver: CARVALHO, Henrique A. D.
Ethnographia e História ..., p.224.

138
detinham também o título de cárula. Podendo se estabelecer diretamente na
mussumba, na época de Henrique de Carvalho o muene casse dirigia uma
povoação na margem do Luíza e mantinha um representante com forças
militares estabelecidos na mussumba.

Outros somente com representantes na mussumba eram: Muene Quijidila, Muene


Capanga, Muene Mussengue, Uana Mutombo, o „curandeiro do muatiânvua‟, quem o
preservava de feitiços e fazia o seu muquixi, Muene Panda, Muene Dicamba, Muene
Cahunza,253 Muene Catota, Muene Mulombe, Muata Xacambunje e Muene Calenga,
„senhor da Mataba entre o Cassai e o Luembe ao norte‟, controlava uma grande região
e em parte eram-lhe sujeitos os Tucongos e os Tubinjis‟. 254

O canapumba era, segundo Henrique de Carvalho, „um grande quilolo‟ estabelecido no


mazembe ou cauda da tartaruga: era „por assim dizer o guarda-costas do Muatiânvua
quer na paz quer na guerra; vigiava para que elle não fosse atacado à falsa fé‟.
Comandava os tucuatas, oficiais de diligências e o „seu estado era na margem esquerda
do Kalani até o rio Luíza, confinado pelo norte com os Uandas‟. Já o segundo
Canapumba „residia sempre na mussumba com o seu povo‟ e tinha o dever de substituir
o primeiro quando este estava ausente.255

Havia ainda muitos outros ilolo na macala da muári, primeira mulher do muatiânvua, e
na da Lucuoquexe, „mulher que representava a mãe do primeiro muatiânvua quando
enviuvou‟:
“Muári Camonga, título que Luéji-á-Cônti recebeu quando seu filho herdou
o estado, pelo fallecimento do pae, o chibinda Ilunga. Ella que era a senhora
das terras da Lunda, Suana Murunda, passou a accumular com o estado que
tinha este, muito superior em grandeza pela quantidade de quilolos que seu
filho ordenou lhe pagassem tributo, e por isso adquiriu maiores encargos
como o titulo o indica. Aquella palavra é composta do prefixo lu, do verbo
kuoka 'tratar, cuidar, curar', e a terminação exe, que impõe a obrigação de
253
Muene Cahunza era filho de Ambumba ou Noéji Ambumba, o Xanama (1874-1883), muatiânvua que
transferiu a colônia ambaquista de Lourenço Bezerra do Chimane, na região da antiga mussumba do
muatiânvua Muteba (1857-1873 ou 1874), para o Luambata, na margem esquerda do Kalani, esta
última visitada por Henrique de Carvalho. Nesta época Muene Cahunza não controlava nenhuma
região. Sobre a colônia ambaquista de Lourenço Bezerra ver o capítulo „A família Bezerra‟ de Beatrix
Heintze no seu Pioneiros africanos ..., p. 81-115.
254
Descrição dos titulares políticos estabelecidos no mésu da mussumba em: CARVALHO, Henrique
A.D. Ethnographia e História ..., p.231-236.
255
Cf.: CARVALHO, Henrique A.D. Ethnographia e História ..., p.237.

139
fazer a acção que o verbo indica. Lucuoquexe quer dizer: pessoa que faz
tratar, cuidar, curar do estado e da pessoa que o governa, que é o
Muatiânvua. Ella e todo o seu estado occupam uma grande área de terreno
para as suas povoações, por que tem de contar com o necessario para
hospedar os que vivem nos seus sitios e que frequentemente a vem visitar; e
ainda com os hospedes de grande categoria. Constitue uma mussumba, só
por si, porém para não haver confusões deram-lhe o nome de muíla.” 256

Devemos ainda nos remeter aos herdeiros do muatiânvua que se estabeleciam no


mucano ou braço esquerdo da tartaruga: o Suana Mulopo, 'primeiro principe herdeiro',
controlava a povoação na margem esquerda do Kalani, ao sul; o segundo, governador de
Tenga, na margem esquerda do Kasai, em terras de Xacambunje, detinha o título de
Xanama, o mesmo do antigo muatiânvua Ambumba Noéji, e o terceiro, Muata
Mussenvo, que controlava uma região na margem esquerda do Luachimo. 257

Segundo Alfredo Margarido, a definição de espaços específicos no plano da tartaruga


para cada um destes ilolo era importante tanto para o controle prático da arrecadação
dos tributos em nome do muatiânvua, quanto para manter o equilíbrio das forças
258
políticas que compunha o „império‟. Sendo que o espaço da reunião destas forças se
dava „no cruzeiro formado pelas ruas principaes da mussumba, [no] espaço á frente da
quipanga [do muatiânvua], fechado dos lados pelas habitações da macala da Muári e
da macala da Temeínhe, inteiramente livre, onde [tinha] logar as audiências geraes,
tetame, e que se [chamava] ambula (abula, de kujubula „dizer, transmitir, noticiar,
comunicar)‟.259

Por fim, na tartaruga lunda, perto do mazembe (cauda), entre a ambula e a manga ou
pátio, ficavam ainda os trabalhadores da mussumba ou os servidores do muatiânvua:
 No cruzeiro, a que chamavam miata, do lado da Muári‟: o mestre de campo das
forças armadas, Muári-uá-Quilombo; aquele que vigiava as águas, Cana
Golungo; aquele que vigiava as lavras do muatiânvua, Fuma Anganda; aquele
que vigiava os serviçais, Tunzo; o chefe dos guardas, Fuma tuxalapóli; o
imediato deste último, Támbu Calau; o guarda roupa, Famuissassa; o guarda das

256
Descrições de cada ilolo, da múari e da lucoquexe em: CARVALHO, Henrique A.D. Ethnographia e
História ..., p.234-236.
257
Cf.: CARVALHO, Henrique A.D. Ethnographia e História ..., p.237.
258
Cf.: MARGARIDO, Alfredo. La capitale de l‟Empire Lunda ..., p. 860.
259
Cf.: CARVALHO, Henrique A.D. Ethnographia e História ..., p. 227.

140
armas, Chicomba-chiá-Mata; a ama seca do muatiânvua ou sua representante,
Uana e as mulheres a serviço da Muári, Amilombe;
 „No cruzeiro a que chamavam kipala, do lado da Temeínhe‟, ou segunda mulher
do muatiânvua: o particular do muatiânvua, Muata Candala; a mãe da Muári,
Anguina Muana; o guarda das bebidas, Uana malufo; o guarda dos móveis e
utensilios, Luína; o carrasco, Cambuía; os quilolos de honra ao serviço particular
do Muatiânvua, Muene Séji, Muene Cadinga, Muene Muxinda e Muene Canéji;
o guarda e porta bandeira do muatiânvua, Uana Cabuavo;
 Ainda na manga: o chefe dos cozinheiros, Muári Muíxi; o chefe dos tocadores
de marimbas, Muvazo; o guardador das caldeiras e dos utensílios de cozinha,
Chissenda Manungo; aquele que conduz o guarda-sol do muatiânvua, Fuma
Chisseque; o copeiro responsável pela distribuição de todas as bebidas, Casseia;
o fabricante de malufo, garapa e outras bebidas, Camuema; a „mulher
encarregada da grande faca do Muatiânvua, e que a transporta quando elle vae
em marcha, indo sempre a seu lado‟, Uana Ampaca; a „mulher que tem á sua
guarda tudo o que se tem feito, com destino aos idolos do muatiânvua, de que é
o principal o Mundele, que tem casa especial, e d'ahi o título, Uana Mundele‟;
„o que guarda a cauda com que se enxotam as moscas. Este utensilio contem no
cabo ou péga os remedios contra os feitiços‟, Uana Mupungo; „quilolo, espécie
de fiel, o comprador da casa do muatiânvua‟, Muári Noéji; o dispenseiro,
Chibundo-diá-Mesma; o homem ou a mulher que transporta a água pra o
muatiânvua, Cahimbo-á-Cumema; „os vigilantes de polícia‟, tuxalapóli; „os
algozes‟, tumbaje e os carregadores da môuha, Fuma-iá-Missele.260

Com tudo isto exposto, diante da complexidade da mussumba do muatiânvua, podemos


compreender o fascínio que ela exerceu sobre Henrique de Carvalho, já que em última
instância, como afirma Ana Paula Tavares, a mussumba legitimadora do poder lunda,

260
“A môuha é uma espécie de palanquim ou de andor [...] São transportados em môuha, o
muatiânvua, a lucuoquexe e o muata com honras de muatiânvua, notando-se que poderá algum usar o
distinctivo na cabeça, miluina, e não ter a honra de ser transportado de môuha. Na côrte actualmente
só tinham essa distincção Muene Rinhinga [que colocava o distintivo da realeza, o mucano, no braço
do muatiânvua eleito], Muitía e Muene Casse. [...] A môuha é transportada por dezesseis ou vinte
homens, quatro ou cinco a cada extremidade dos varaes, e vão outros na companhia para os
renderem.” Cf.: CARVALHO, Henrique A.D. Ethnographia e História ..., p. 226-227; para a
descrição dos servidores do muatiânvua ver as p. 237-238.

141
em fins do XIX, também se apresentava como tal para os portugueses: „é à mussumba
que o governo que me mandou ir, poderei, pois morrer no caminho, mas em direção
para lá, e não em retirada sem nunca lá ter chegado‟.261
Podemos também concordar com a argumentação de Alfredo Margarido sobre o
pensamento analógico que possibilitou a geografia do poder lunda: ele não foi um
limitador para as inovações técnicas e econômicas desta sociedade, antes pelo contrário,
foi o elemento que proporcionou uma „invenção urbana excepcional‟. 262

O que era notável, afirma o expedicionário português, que esta excepcionalidade se


mantinha mesmo quando a mussumba era mudada provisoriamente de lugar em virtude
do deslocamento do muatiânvua: o próprio acampamento de viagem, no tempo da caça
e da guerra. Neste sentido, até mesmo os objetos sagrados mereciam toda a atenção a
fim de se evitar que algum mal se abatesse sobre a nova localidade. “Era por isto que os
Lundas entendiam como indispensável proceder logo á plantação de um certo numero
de arvores e arbustos dentro e fora dos recintos que cercam, e mesmo nos caminhos e
em logares afastados d'estes, mas ao alcance da vista.”263

Além do dado religioso, este procedimento de legitimação da mussumba pode ter


relação com os marcadores históricos propostos por Isabel de Castro Henriques: aqueles
monumentos erigidos com materiais naturais e construídos e que representavam a
história da sociedade lunda, a exemplo das árvores sagradas, sepulturas, entre outros.

261
Cf.: CARVALHO, Henrique A.D. Descripção ..., vol. IV, p. 49. Trecho tratado por Ana Paula
Tavares no seu Na mussumba do Muatiânvua quando a Lunda não era leste. Estudo sobre a
Descripção da Viagem à Mussumba do Muatiânvua de Henrique de Carvalho. Lisboa: [s.n.], 1995.
Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira e Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa) -
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, p.65.
262
Cf.: MARGARIDO, Alfredo. La capitale de l‟Empire Lunda ..., p. 861. Não resisto mencionar,
mesmo que me referindo a contextos tão diferenciados, mas porque se remetem à questão da
representação do poder no espaço, o formato de aeronave da capital brasileira, neste caso como uma
forma de hierarquização das relações sociais pela linguagem da tecnologia.
263
Cf.: CARVALHO, Henrique A.D. Ethnographia e História ..., p. 238-239.

142
Como exemplo, podemos citar o
Monumento do Kalani que mistura os
aspectos natural e fabricado para se referir
aos pais fundadores da Lunda: „o enlace de
duas árvores, á sombra das quaes, junto á
mais grossa e entre as raizes, se vê uma
pedra, que é de tradicção, ter servido de
assento a Luéji e a Ilunga na sua primeira
entrevista‟.264

Entendemos que estes marcadores


históricos também podem ser
relacionados com os portugueses,
especialmente no final do XIX e a
preocupação lusa em demonstrar a
anterioridade da sua presença no
continente africano com relação aos
outros europeus. Nesta perspectiva vale lembrar a inscrição em pedra feita por Diogo
Cão em Yelala, que significou para os portugueses uma espécie de carimbo que
justificaria o seu direito histórico às regiões centro-ocidentais da África. 265

Em suma, poderíamos avançar mais e tratar de vários outros exemplos de casos em que
houve apropriações por diferentes grupos, independente de suas origens. Apropriações
que com o avanço colonizador do final do século XIX e a „fabricação do território
colonial‟, na expressão de Isabel de Castro Henriques, provocaram disputas cada vez
mais intensas entre os diferentes marcadores africanos e europeus.

264
Cf.: CARVALHO, HENRIQUE A. D. Descrição ..., vol. IV, p. 252-253. Sobre o imaginário atual de
Lueji dos Bungos e o caçador luba Chibinda Ilunga, dos povos lundaizados como fundadora „de uma
organização e desenvolvimento de um espaço de multiplicação do poder de que foi centro a região das
mussumbas‟, ver a seção „A propóstio de Luéji‟ na dissertação de Ana Paula Tavares, Na mussumba
do Muatiânvua quando a Lunda não era leste ..., p.60-67.
265
Cf.: "Inscrição de Diogo Cão em Yelala". In: PEREIRA, João Camacho (org.) Angola. Colecção de
Gravuras Portuguezas. Lisboa: Lith. Continental, 1970, 10ª. série, estampa nº.10.

143
Logo, o inventário destes marcadores – visto que identitários, já que são uma instância
que tanto aproxima quanto separa as identidades em presença – é importante porque nos
deixa perceber o sentido de posse como uma via de diversas mãos, em diferentes
sentidos e graus de intensidade, que está para além da simples ideia de subjugação total.
Prosseguindo nesta perspectiva quem sabe consigamos encontrar a perturbação
astigmática do olho soberano.

E aproveitando a metáfora das leis da física para destacar a dimensão humana ou as


iniciativas da cultura humana sobre os elementos mecânicos, como sugere E.P.
Thompson, 266 gostaríamos de terminar este capítulo com uma proposição, mais do que
uma análise: com a apropriação da fotografia pelos africanos, que à primeira vista
parece ser um marcador referido somente aos europeus, mas que nos permite conhecer
as feições das pessoas sobre as quais tratamos neste estudo – como um dado
„humanizante‟ de nossa história:

“Ill.mo ser. Tenente - Em primeiro desculpa sem saber o honrado nome de


V. Sª. e peço perdão a V.Sª. por parte de Deus Nosso Senhor, a confiança de
lhe dirigir similhante esta; e como minha necessidade tão me exige por isso
humildemente dirigio-lhe esta; Estou informado de varios meus patricios
d'aqui, em como V. Sª. tem a Gulha de olhar para uma pessoa que está muito
distante de 4 leguas e pode ser conduzido por um emzollo e por este motivo
quero ver tambem com meus olhos; e para que no caso de ser assim, rogo a
sua bondade comparecer nesta minha Banza, resposabilizo da jornada do
meu senhor 50:000 que são duas vaccas e um garrote que é o nosso dinheiro
d'aqui. - Deus guarde a V.Sª. Canbonbo, 29 de agosto de 1884. = Soba,
Cuigana Mogongo.
Quer V.Ex.ª saber do que se trata?
Pede o homem ao meu ajudante para ir á sua residencia com a machina
photographica tirar-lhe o retrato, responsabilisando-se elle pelas despezas da
viagem.” 267

266
Para tanto, ver: THOMPSON, E.P. As peculiaridades dos ingleses. In: NEGRO, Antonio Luigi e
SILVA, Sérgio (orgs.) As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da
Unicamp, 2001, p.158.
267
Correspondência do soba Cuigana Mogongo ao ajudante da expedição, Manuel Sertório de Almeida
Aguiar, de Canbonbo, 29 de agosto de 1884, apresentada no corpo da correspondência do
expedicionário Henrique de Carvalho ao Ministério da Marinha e Ultramar, datada de Malange, em 30
de setembro de 1884. In: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. I, p. 344. Esta carta foi
tratada por Beatrix Heintze em: A lusofonia no interior da África Central na era pré-colonial. Um
contributo para a sua história e compreensão na Actualidade. Cadernos de Estudos Africanos. n. 7-8,
jul. de 2004 a jul. de 2005, p.198. Disponível em:
http://cea.iscte.pt/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=73. Último acesso em:
outubro de 2010.

144
Mais ainda, na figura abaixo, parte da mussumba na embaixada Lunda enviada pelo
muatiânvua eleito Xa Madiamba ao governador-geral de Angola em 1887, que
268
acompanhou Henrique de Carvalho no seu retorno ao litoral. Noéji Caúanga,
sentado, ao centro, era o embaixador nomeado muatiânvuanjila, que quer dizer o
muatiânvua em viagem. Nas suas costas, à sua direita, Ianvo á Uâne, canapumba e
intérprete de Xa Madiamba, que foi designado como mestre de cerimonias da
embaixada e responsável pela segurança de Noéji. „O resto do pessoal foi requisitado
por Noéji, que o escolheu entre indivíduos de sua confiança, distribuindo-lhes os
cargos que entendeu‟.269 Segundo Beatrix Heintze, a mulher agachada ao lado de Noéji
era a sua muári. 270

268
Esta representação foi analisada por Beatrix Heintze a partir do Álbum de fotografias da Expedição
Portuguesa ao Muatiânvua 1884/1888 de Manuel Sertorio de Almeida Aguiar (fotografias) e Henrique
Augusto Dias de Carvalho (textos), 1890, Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa,
Secretaria de Estado, nº. 5.1, e publicada em: Pioneiros Africanos ..., imagem XXXIX. Uma gravura
com fundo diferente feita a partir da mesma fotografia pode ser vista em CARVALHO, Henrique A.
D. Descripção ..., vol. IV, entre as p. 560-561. No mesmo volume, na p. 525, outra gravura somente
com o muatiânvuanjila Noéji sentado em uma posição diferente.
269
CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. IV, p. 526.
270
As fotografias que compõe o Álbum da expedição de Henrique de Carvalho já mereceram
importantes estudos, alguns já citados no capítulo anterior: DIAS, Jill R. Photographic Sources for the
History of Portuguese-Speaking Africa, 1870-1914. History in Africa. vol. 18, p. 67-82, 1991;
HEINTZE, Beatrix. „In Pursuit of a Chameleon‟: Early Ethnographic Photography form Angola in
Context. History in Africa. vol. 17, p. 131-156, 1990 e, da mesma autora, Representações visuais como
fontes históricas e etnográficas sobre Angola. In: Actas do II Seminário Internacional sobre a História
de Angola. Construindo o passado angolano: as fontes e a sua interpretação. Lisboa: Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, p.187-236; por fim, o
trabalho de Ana Paula Tavares, que refletiu sobre as questões da perca da autoria das fotografias [„do
capitão Sertório de Aguiar‟ para „fotografias da expedição‟] e do entendimento que seus produtores
tiveram deste material: como sendo um „testemunho a favor do real representado na escrita‟, em: Na
mussumba do Muatiânvua quando a Lunda não era leste ..., p. 26-28.

145
4. Os trabalhadores da Expedição Portuguesa à
Mussumba do Muatiânvua

146
A resistência dos trabalhadores libertos de Angola às persistências da escravização
e do trabalho forçado

“Os libertos do Sr. Andrade arreganhavam uns para os


outros sorrisos de contentamento, porque, desde a cena violenta com
a filha, não foi aplicado castigo corporal a nenhum deles, o que era
com efeito caso digno de excepcionais congratulações; pois, quando
ele andava menos preocupado, a pretalhada doméstica sentia-lhe a
bengala marcando muito energicamente os compassos do hino do
trabalho.” 271

A legislação trabalhista discutida no primeiro capítulo, além de informar sobre as


intenções colonialistas, pode nos ajudar também a perceber vivências dos que foram
afetados por suas determinações, os trabalhadores africanos sob várias de suas
definições, e em especial a de liberto, porque há nela uma condição pungente: a
liberdade recém-formalizada e a coerção ainda vivenciada, como quase podemos sentir
pelo texto da epígrafe. 272

Com o progressivo emprego das formas de trabalho compulsório em Angola,


especificamente no período imediatamente posterior ao fechamento dos portos
brasileiros para a entrada de escravizados africanos e refletindo a legislação
abolicionista lusa, o número de trabalhadores com o estatuto de liberto tendeu a
aumentar seguindo a variação do peso de atividades econômicas de determinadas
regiões e épocas. Alternâncias que nos permitem também perceber os espaços de
trabalho dos libertos.

271
Cf.: MACHADO, Pedro Félix. Cenas de Africa. ? Romance íntimo. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa
da Moeda, 2004, p.73 e 90. Texto escrito em 1892 e que se refere à cidade de Luanda da década de
1860, com seus empacaceiros, feiras sertanejas, casas-fortes gradeadas para os libertos e o bairro de
Nazaré.
272
Ainda mais que o decreto de 1858 já havia retirado aos senhores o direito de infligir a seus escravos
castigos corporaes. Tal condição ambígua foi tema discutido em colóquio na Universidade Estadual
de Campinas, em 2009. No evento o estatuto civil de afrodescendentes que circulavam pelo mundo
atlântico com diferenças regionais na legislação trabalhista foi tratado por Rebecca Scott,
especificamente na história de refugiados de São Domingos em Nova Orleans. Em sua fala, a
historiadora metaforizou os motivos da luta social destas pessoas da seguinte maneira: “toda a vez que
os livres de cor embarcavam nos navios em busca de novas regiões para viver, seus direitos e
privilégios se desmanchavam na espuma do mar ...”. Tradução livre de excerto da comunicação
intitulada Papéis frágeis: Liberdade, reescravização e contendas sobre a atribuição do status legal (de
São Domingos a Nova Orleans). Colóquio Condições Ambíguas. Lei, escravidão e liberdade no mundo
atlântico. Campinas, IFCH, Unicamp, 5 e 6 de novembro de 2009.

147
A partir dos números levantados pelo historiador Roquinaldo Ferreira podemos
visualizar a presença destes trabalhadores nas seguintes localidades: até a década de
1850 com maior força no centro-sul angolano, entre Luanda e Benguela, após este
período, nas regiões do norte, como em Ambriz, nos vultosos empreendimentos
promovidos por comerciantes do tráfico atlântico que passaram a negociar produtos
como óleo de palma, café, borracha e amendoim, e ainda no sul, na região de
Moçamedes, na coleta de urzela e nas plantações de algodão desenvolvidas nos anos
sessenta, em tempos de guerra civil estadunidense. 273

No entanto, mesmo com toda a demanda conjuntural, as regiões ao longo do corredor


do rio Kwanza, desde o litoral luandense até Golungo Alto, continuaram, por todo o
período, a concentrar a maior parte dos libertos: nos anos de 1859 e 1863, os números
destes trabalhadores passaram de 2328 para 6781, em Luanda, e de 9483 para 21182,
em Golungo Alto. Tal expansão refletiu o alto número de carregadores empregados no
transporte de mercadorias nas rotas de comércio do litoral com os sertões, além das
frentes de trabalho nas plantations de café e de cana-de-açúcar na região do Cazengo. 274

No caso em específico destas últimas regiões, podemos afirmar que na mesma


proporção das necessidades de comerciantes, administradores portugueses e grandes
sobas do serviço de carreto estava a rejeição por parte das populações alvos do
recrutamento. Nesta circunstância, dentre os motivos de repulsa, além da violência e do
desvio dos angariados de suas famílias e de seus trabalhos na agricultura, encontravam-
se também as disputas de poder no interior dos sobados.

Mesmo que as oposições ao angariamento de carregadores por parte de dirigentes


políticos africanos tenham predominado, outros comportamentos também existiram, tais

273
Sobre a formação de Moçamedes na década de 1840 por migrantes portugueses oriundos do Brasil,
Madeira e Algarve junto a uma sociedade africana composta de libertos do tráfico, engajados nos
trabalhos agrícolas da região, ver: DIAS, Jill. Angola. In: ALEXANDRE, V.; DIAS, J. Nova História
da Expansão Portuguesa. O império africano 1825-1890. Lisboa: Editorial Estampa, v. X, 1998. p.
441-446.
274
Para os números apresentados, ver „Relação dos libertos registrados na Província d'Angola desde que
existem indivíduos (1854) com tal condição até o fim do ano de 1859‟ e „Nota do número de libertos
que têm sido registrados na Província de Angola depois do decreto de 14 de dezembro de 1854 até 31
de dezembro de 1863‟, ambas da Correspondência dos Governadores analisada por Roquinaldo
Ferreira em Dos sertões ao Atlântico: tráfico ilegal de escravos e comércio lícito em Angola, 1830-
1860. Rio de Janeiro: [s.n.], 1996. Dissertação (Mestrado em História Social). IFCS/UFRJ, p. 72.

148
como os ganhos de alguns sobas na aceitação de pagamentos por parte de chefes de
fogos e outros filhos pela isenção do serviço de carreto. Tal situação pode ter se
estendido até na aceitação de pedidos por carregadores de comerciantes e funcionários
da administração portuguesa como forma dos dirigentes políticos excluírem pessoas
indesejadas dos territórios sob sua influência, como sugere a correspondência de
Kabuku Kambilo analisada pela historiadora Jill Dias. 275

A relevância de tratarmos deste tema está para além do reconhecimento da inexistência


de uma bipolaridade africano versus europeu. 276 Encontra-se, sobretudo, na atuação das
populações alvos do recrutamento forçado. Neste sentido, a questão que mais nos
resistencias interessa são as concepções que norteavam as estratégias de resistência, que –
acreditamos – foram formuladas a partir das experiências vividas tanto entre as
sociedades africanas quanto nas regiões de autoridade portuguesa.

No trânsito entre uma região e outra, as ações em defesa da autonomia de alguma forma
incorporaram as noções de direitos discutidas em torno da abolição do tráfico, da
própria escravidão e do serviço compulsório de carregadores, como também absorveram
valores próprios dos diferentes grupos africanos.

as fugas já no No caso das regiões de influência portuguesa, os rumores em torno da legislação


18.
abolicionista podem ter estimulado o aumento das fugas, nas décadas de 1840 e 1850,
para regiões como a Kissama, de longa tradição de resistência ao poder português. Não
sendo uma novidade, esta prática pode ser acompanhada desde meados do século XVIII
nos registros de fugas do serviço de carregador anotados na documentação relativa ao
governo de Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho. 277

275
A correspondência de Kabuku Kambilo enviada ao governador geral era uma espécie de protesto
contra o decreto de supressão do trabalho forçado de carregador de 1856 e pode ser encontrada no
Boletim Oficial do Governo da Província de Angola, 612, 20 de junho de 1857 analisado pela
historiadora. Insigne no argumento deste soba contra a legislação é a adoção do discurso
abolicionista/colonialista, já que para ele a abolição decretada promoveria a „ociosidade‟ no seu povo.
Cf. DIAS, Jill. Mudanças nos padrões de poder no „hinterland‟ de Luanda. O impacto da colonização
sobre os Mbundu (c.1845-1920). Penélope. Lisboa, nº.14, 1994, p.55.
276
Isto é, para além do reconhecimento da existência de imbricamentos ou entrecruzamentos de vidas
que permite enxergar para além dos dualismos dos termos identitários consagrados ao longo do tempo
(como no caso de africano e europeu), simplismos que impedem o entendimento das conformações
sociais em seus sentidos múltiplos e convergentes.
277
Para um sumário e análise de parte desta documentação que integra o acervo Lamego, guardado pelo
Instituto de Estudos Brasileiros da USP, ver: MACHADO, Mônica Tovo Soares. Angola no período

149
Além disso, outra prática de resistência que aumentou neste período foi a formação de
formação de mutolos – como os quilombos eram chamados – na região de Icolo. Segundo o juiz
mutolos.
presidente da Relação de Luanda, estas comunidades representavam um „iminente risco‟
por existir na época „talvez dois mil negros fugidos nos mutolos, a menos de um dia de
viagem da cidade‟, sendo que eram „outras tantas feras contra seus senhores‟. Mesmo
que o número apresentado dos habitantes dos mutolos possa estar superestimado pelo
juiz, isto não retira a ideia que subjaz à afirmação: a própria existência dos mutolos e o
receio que eles provocavam.278

Ou ainda, nos anos de 1860, na região de Moçamedes, as fugas seguidas de revoltas


motivadas pelo temor de uma possível retomada do tráfico ilegal, porque “supunham
[os trabalhadores] e mesmo diziam que já não lhes restava dúvida alguma, em como
depois de longos anos de serviço, com que – com mais certeza deviam contar, é de
serem embarcados para além-mar”.

De acordo com Roquinaldo Ferreira, este receio foi desencadeado pela repercussão dos
embarques ilegais de escravizados para Havana promovidos por Manuel José Correa no
litoral de Moçamedes. A conduta deste traficante chegou a ser contestada pelos
produtores de urzela da área, porque além da perda de trabalhadores para o tráfico
atlântico preocupavam-se ainda mais com possibilidade das fugas de escravizados para
o interior, já que esta última situação, devido ao conhecimento dos caminhos „do
interior‟ por parte dos trabalhadores, representava uma perda muito maior da mão de
obra que garantia a coleta da urzela. 279

pombalino: o governo de Dom Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho (1764-1772), p.48. São Paulo,
1998. Dissertação - Mestrado em História Social – FFLCH-USP. Sobre as tentativas frustradas dos
portugueses, desde o século XVI, em dominar a região imediatamente ao sul de Luanda, onde havia,
para o comércio de longa distância da África Centro-Ocidental, importantes minas de sal controladas
pelas populações que foram registradas nas fontes portuguesas como quissamas, ver: BIRMINGHAM,
David. Trade and Conflitc. The Mbundu and their Neighbours under the Influence of the Portuguese,
1483-1790. Oxford: Clarendon Press, 1966.
278
Cf.: Luís José Mendes Afonso ao Ministro da Marinha, 22 de abril de 1860, Apud MARQUES, João
Pedro. Quatro assassinatos e um retrocesso: violência escrava em Angola (1860-61). In: CENTRO DE
ESTUDOS AFRICANOS DA UNIVERSIDADE DO PORTO (coord.) Trabalho forçado africano.
Articulações com o poder político. Porto: Campo das Letras, 2007, p.106.
279
Cf.: Representação dos produtores de urzela de Mossamedes contra o tráfico ilegal de escravos, em
24 de março de 1860 examinada por FERREIRA, Roquinaldo. Dos Sertões ao Atlântico ..., p. 85-89.

150
Sobre estas fugas, o governador-geral de Angola, Sebastião Lopes de Calheiros e
Menezes (1861-1862) anotou:

“... A escravidão acha-se abolida por lei, e não é de crer que reviva, porém a
lei admitte a condição de liberto, ou preto livre obrigado a dez annos de
serviço em favor d'aquelle que o remiu da escravidão. Talvez d'esta sorte,
apesar do praso ser curto [o preto de menor idade, resgatado da escravidão
no gentio fica livre quando está educado e em estado de prestar algum
serviço]. Segure-se ao emprehendedor de trabalhos agricolas, mais ou menos
completamente, o trabalho do escravo que remiu, sempre que esteja valido,
durante o praso que a lei concede, e poderá ainda haver em Angola
agricultura com algum valor. Terá porém o colono seguro o trabalho do
liberto no estado actual das cousas? Não tem, porque o preto, vindo do
sertão, sabe o caminho d'esse sertão, e na primeira occasião opportuna foge,
ou para li, ou para o primeiro motolo (couto de bandidos), que encontra, ou
para qualquer ponto do gentio não avassalado, que não dista muito da
estancia do agricultor, a quem deve o serviço.”280

No mesmo relatório, em outro lugar, Calheiros e Menezes ainda apresentou os números


das fugas para a Kissama: “no mez de setembro do corrente anno de 1866 fugiram para
a Quissama, ao maior cultivador de café e proprietário da melhor fazenda de Casengo,
Albino José Soares da Costa Magalhães, 411 pretos”. 281

Por este excerto do relatório do governador podemos entender que havia três tipos de
fugas: a fuga para lugares longínquos, o sertão; para os mutolos e para regiões próximas
das áreas de trabalho. Tal classificação do governador, por mais que aparente ser casual,
pode não ser aleatória, principalmente se a relacionarmos com conceitos próprios das
sociedades da região.

Jill Dias confirma esta situação ambígua dos trabalhadores na colônia angolana, que
tendeu a aumentar com o tempo, já que mesmo com a abolição decretada, houve ainda a
possibilidade da aquisição de escravizados oriundos das sociedades autônomas do
interior sob a justificativa do resgate humanitário, como afirmou o próprio governador

280
Cf.: MENEZES, Sebastião Lopes de Calheiros e. Relatório do Governo Geral da Província de
Angola para o ano de 1861. Lisboa, Imprensa Nacional, 1867, p. 19 e 83.
281
Cf.: MENEZES, Sebastião Lopes de Calheiros e. Relatório do Governo Geral ..., p. 19. Mais sobre
as fugas e quilombos ver o supracitado estudo de Roquinaldo Ferreira e o artigo de Aida Freudenthal,
Os quilombos de Angola no século XIX: a recusa da escravidão. Estudos Afro-Asiáticos. nº. 32, p. 109-
134, 1997.

151
Calheiro e Menezes, com relação ao „preto de menor idade, resgatado da escravidão no
gentio‟. 282

Com as agruras do trabalho nos empreendimentos agrícolas e no serviço de carregador,


vista sob a ótica destes trabalhadores, a fuga pode ter parecido a saída menos difícil, já
que „vindos do sertão, sabiam o caminho de volta‟. Porém, esta questão pode conter
algo ainda mais profundo.

Segundo a descrição do viajante húngaro László Magyar, havia entre os grupos


africanos da região centro-ocidental variações no entendimento da fuga. Chamadas
vatira, shimbika [chimbika] ou tombika, estas variações designavam as estratégias que
permitiam aos escravizados mudarem de patrões:

“A vatira designa a fuga simples. O escravo aproveita um momento propício,


abandona tudo, vai-se embora e procura fugir o mais longe possível [...] Para
os proprietários dos escravos a shimbika ou tombika é muito prejudicial e
perigosa, porque este tipo de fuga é não só fácil de levar a cabo, mas tomado
possível pela lei. O escravo descontente com o seu proprietário pode afastar-
se facilmente da casa, dizendo que pretende apenas ir visitar alguém nos
arredores; mas em vez deste passeio, dirige-se à casa de um chefe de família,
geralmente abastado e influente que já tinha escolhido; chega, mata diante de
testemunhas um cão, uma cabra, uma ovelha ou qualquer outro animal
doméstico, o primeiro que encontrar. Não podendo esquivar-se à prestação
de contas, declara então que pretende abandonar o seu senhor, e oferece-se
como escravo ao proprietário da casa, para compensar o prejuízo causado.
Mas isso nem sequer é necessário, porque basta que ele pegue no casaco do
proprietário da casa provocando-lhe um pequeno rasgão e declarando: ame
pika yove (sou teu escravo) [...] Além dos escravos pessoas livres podem
[recorrendo à mesma operação], de sua livre vontade, tornar-se escravos de
um proprietário importante, quando são pobres e perseguidos em
consequência de um delito ou de uma dívida, para escapar a um perigo
certo...” 283

Completando as informações do relato de Magyar, Isabel de Castro Henriques apresenta


a possibilidade do antigo proprietário conseguir recuperar o seu escravo a partir de um
pagamento, caso tivesse condições para isto. Conhecedor desta possibilidade e da

282
A historiadora, que levantou o número de trabalhadores nos empreendimentos agrícolas da colônia
angolana, verificou que havia um grande número de mulheres e crianças entre eles. Como no caso
supracitado no primeiro capítulo de João Guilherme Barbosa, que recebeu 24 libertos, em 1846, sendo
a maior parte constituída de mulheres e moleques. Cf.: DIAS, Jill. Angola ..., p. 458.
283
Cf.: MAGYAR, Lázlo (Ladilas). Reisen in Sud-Afrika in den Jahren 1849 bis 1857, Pesth- Leipzig,
1859, apud HENRIQUES, Isabel de Castro. Percursos da Modernidade..., p. 229-230.

152
situação do seu senhor, o escravo então procurava provocar um prejuízo maior ao que o
seu dono podia pagar.

Por ser um mecanismo socialmente reconhecido, o antigo proprietário era obrigado a


entregar ao seu ex-escravo todos os bens que lhe pertencia. A resistência do senhor a
esta situação podia levá-lo a uma condenação pública, sendo até mesmo possível que
outros seus escravos, julgando-o de maneira negativa, tentassem também praticar a
tombika. 284

Não por acaso que os conceitos de fuga descritos por Magyar ajustam-se à classificação
anotada por Calheiros e Menezes, porque o ato de fugir para regiões longínquas,
próximas ou para mutolos carregava em si uma premissa fundamental, a possibilidade
da inserção social nas regiões de fuga, não importando que elas estivessem próximas da
„estancia do agricultor, a quem o foragido devia o serviço‟.

Retomando o caso analisado por Roquinaldo Ferreira dos embarques clandestinos de


escravizados no litoral de Moçamedes, no texto da representação dos produtores de
urzela contra estes fatos podemos verificar que as estratégias de fugas dos trabalhadores
da região foram orientadas tanto pelos debates públicos em torno da abolição do tráfico
atlântico e da escravidão nos espaços da colônia angolana, quanto pelo entendimento da
tombika:
“Temos que notar ilustríssimo sr. que entre os desgraçados escravos que o tal
sr. Correa levava para embarcar iam alguns roubados também – porque pelo
que se sabe, há muito tempo, é costume antigo deste sr. roubar e sonegar
parte dos escravos que nas suas fugas são capturadas pela sua gente – no
sítio de Carunjamba, e mesmo parte daqueles que das feitorias vizinhas para
lá acodem, a título de lhe pedirem padrinho por algum delicto de que os ditos
julgam serem réus [...] não falando dos muitos moradores de Mossamedes
que para sempre têm perdido os seus escravos, sendo embarcados nos navios
negreiros, dos quais este homem imoral é agente especial.” 285

Levando em conta que parte dos foragidos procurava Correa para pedir padrinho ou
para novo patrão, podemos entender que os prováveis motivos desencadeadores das
revoltas e fugas que se seguiram a estes episódios foram, além do conhecimento

284
Cf.: HENRIQUES, Isabel de Castro. Percursos da Modernidade..., p. 230.
285
Apud FERREIRA, Roquinaldo. Dos Sertões ao Atlântico ..., p. 88.

153
generalizado da proibição de tal ato pelas autoridades portuguesas, os embarques destes
empregados de Correa, adquiridos por sucessivas tombikas, para além-mar.

Assim como a não aceitação da prática da tombika pelo antigo patrão podia desencadear
novas tombikas, talvez o não cumprimento por parte de Correa de suas obrigações como
padrinho ou novo patrão pudesse ter tido o mesmo efeito, já que os embarcados não
estariam mais sob sua proteção.

Os trabalhadores da coleta de urzela conhecendo esta situação, porque „tiveram ocasião


de ver com seus próprios olhos o embarque dos negros que se fazia a bordo do barco
espanhol, no porto de Carunjamba‟, prevendo a sua generalização,

“juraram desertar todos e até vingaram-se de seu próprio senhor, pois


supunham e mesmo diziam que já não lhes restava dúvida alguma, em como
depois de longos anos de serviço, com que – com mais certeza deviam
contar, [era] de serem embarcados para além-mar”.286

Portanto, o caso das revoltas e fugas dos trabalhadores de Moçamedes relacionadas à


prática da tombika é exemplar para entendermos possíveis noções que orientavam os
procedimentos dos diferentes grupos que resistiam aos abusos de poder, tanto dos
portugueses, conforme visto, mas também dos africanos: como nos casos mencionados
da exclusão de indesejados por parte de alguns sobas, na medida em que a inserção
social promovida pelo mecanismo da tombika podia ser vista como um espaço de
atuação ou um meio destes mesmos indesejados – sejam os escravizados, trabalhadores
dos empreendimentos portugueses, sejam os carregadores arregimentados e levados
para longe – de prosseguirem suas vidas em outras regiões, aliando-se a novos patrões
em busca de proteção e pertencimento social.

Outros episódios de resistência que podem ser relacionados ao debate abolicionista em


vigor são encontrados no texto da representação da Câmara de Luanda, de 1860,
entregue ao governador-geral. De cunho mais violento, tratam-se de casos de
assassinatos ou tentativas de assassinatos de senhores por parte de seus escravizados: a
morte por apunhalamento de 'dois cidadãos respeitáveis', Mendonça e Prudêncio, de
Luanda; na região de Ambriz, ferimento à bala de 'um respeitável decano dos

286
Apud FERREIRA, Roquinaldo. Dos Sertões ao Atlântico ..., p. 88.

154
facultativos da província‟; o assassinato do comerciante Mota de Kasanje e a tentativa
de envenenamento por arsênico da família de um 'fabricante' de Luanda, afora
'referências sobre escravos que ameaçavam, na rua, diversos transeuntes'. 287

Podemos encontrar também ações de resistência nos anúncios dos jornais angolanos da
segunda metade do XIX. Entre eles destacamos a história de duas libertas que
demonstra a ação consciente instrumentalizada no debate sobre a legislação
288
abolicionista em vigor.

No anúncio de venda publicado n‟O Mercantil, de 16 de novembro de 1871, lemos que:

“...duas libertas de nome Rosa e Domingas – esta filha d‟aquella que foram
registradas no tempo da escravidão e que agora passaram à condição de
libertas. Domingas – em vida de sua ama, requereu dizendo que não era
registrada, perdendo a causa por a dona ter apresentado prova. Portanto os
annunciantes vão vender [...] as duas libertas para o pagamento do
enterro”.289

Analisando o anúncio conseguimos saber que a ex-escravizada Domingas conseguiu


lutar por sua liberdade na esfera legal por conhecer disposições da legislação
abolicionista.

Pela afirmação de que sua proprietária conseguiu provar que ela havia sido registrada,
obtemos a informação que Domingas no tempo da sua escravização requisitou ser
considerada liberta por não ter sido registrada, algo que só poderia ter se dado a partir
do seu conhecimento dos termos do decreto de 1854.

Como não temos acesso a este processo, levantamos a possibilidade deste julgamento
ter ocorrido antes da promulgação da lei de 1869 e a ela devessem as condições de

287
Estas ações mais violentas de resistência de escravizados e libertos foram analisadas de modo
diferente pelo historiador João Pedro Marques, que acredita na impossibilidade da interferência de tais
casos sobre o avanço do processo abolicionista português. Cf.: MARQUES, J.P. Quatro assassinatos e
um retrocesso ..., p. 107.
288
A possibilidade de encontrarmos casos de resistência nos jornais angolanos foi levantada pelo
historiador José C. Curto em: Resistência à escravidão na África: o caso dos escravos fugitivos
recapturados em Angola, 1846-1876. Afro-Ásia. n. 33, p.67-86, 2005.
289
Cf.: O Mercantil, 16-11-1871 apud OLIVEIRA, Mario Antonio Fernandes. Aspectos sociais de
Luanda inferidos dos anúncios publicado na sua imprensa. Boletim do Instituto de Angola. Luanda:
Instituto de Angola, nº.19, maio-agosto, 1964, p. 49.

155
libertas de Domingas e de sua mãe em 1871. Lembrando que foi esta lei que declarou
libertos todos os escravizados sob a condição de trabalharem gratuitamente para seus
senhores até 1878.

Esta história contida n‟O Mercantil nos leva a considerar que Domingas, que de alguma
forma soube da lei de 1854, lançou mão de uma estratégia na esfera legal com o fim de
diminuir o tempo da sua escravidão, já que pelo texto da mesma lei, mesmo que
conseguisse provar a falta da sua proprietária de não tê-la registrado ainda assim teria de
„servi-la como liberta‟ por mais sete anos. Deste modo, levando em consideração as
possibilidades de Domingas frente à legislação, vemos que mesmo sendo as chances
mínimas elas não eram descartas como estratégia de ação em favor da liberdade.

Outra questão intrigante do excerto do Mercantil é ser ele um anúncio de venda. Como
já dissemos no primeiro capítulo, segundo os estudos de Mário Antonio, depois da lei
de 1869, o mais comum entre os patrões era anunciar a oferta de aluguel de serviços dos
„seus‟ libertos como uma forma de obter renda com a transferência temporária de sua
capacidade de trabalho. 290

Neste sentido, Domingas que havia lutado por sua liberdade quando sua proprietária
estava viva, encontrava-se naquele momento, em 1871, depois da morte da patroa,
enredada na teia da reescravização que poderia envolvê-la em mais um ciclo de
„trabalho liberto‟.

Os „contratados de Loanda‟

Com relação à história dos trabalhadores libertos discutida até o momento, podemos
dimensionar a sua situação no período posterior à promulgação da abolição total da
escravidão em Angola, em 1875, com a história de um grupo de doze homens
contratados por Henrique de Carvalho para a expedição à mussumba do muatiânvua, em
1884.

290
Cf.: OLIVEIRA, Mário Antonio de. Os „Libertos‟ em Luanda no Terceiro Quartel do século XIX.
In: SANTOS, Maria Emilia Madeira (org.) Primeira reunião internacional de história da África.
Relação Europa-África no 3º. quartel do século XIX – Actas. Lisboa: CEHCA; IICT, 1989, p. 260.

156
Como o próprio expedicionário nos dá a conhecer, estes homens e suas famílias na
cidade de Luanda vivenciaram como escravizados o período de promulgação e
cumprimento e [tentativa de] da legislação emancipacionista e, principalmente,
experienciaram a ambiguidade das condições de liberto, de serviçal e de indígena.

Referidos por Henrique de Carvalho como os contratados de Loanda ou simplesmente


Loandas, à medida que vão se estreitando as relações destes trabalhadores com o chefe
da expedição ao longo dos quatros anos da viagem, que equivalem aos quatro volumes
da Descripção, mais o seu narrador vai deixando escapar as suas histórias de vida,
através de menções aqui, rápidas passagens acolá, num rastro de pegadas deixadas pelas
experiências, nem sempre harmoniosas, da vida em caravana.

Nomeados e fotografados pelos chefes da expedição: Paulo, oriundo de Malanje;


Matheus, vindo do Libolo; Manuel, da Jinga; Paulino, da Kisama; Roberto, de
Benguela; Cabuíta, de Kimbundo; Marcolino, do Kongo; Narciso, da Lunda; Domingos,
de Luanda; Francisco Domingos, de Kasanje; Antônio, de Golungo Alto e Adolpho, do

157
291
Kongo, assim que aparecem na história vão nos deixando conhecer suas famílias,
suas qualidades profissionais, suas aspirações, como aprender a ler e a escrever, enfim
seus comportamentos que nos deixam perceber suas noções de direitos e deveres.

qto mais hetero Esta proveniência heterogênea do grupo foi vista com bons olhos pelo chefe da
genea, mais in
formações expedição pela possibilidade de obter informações de diferentes localidades pelas quais
a expedição iria passar: “alguns filhos de Malanje, um das proprias terras da Lunda, e
dois que dão conhecimento e informações de rios e povoados até além do Cassai”.292

Sabemos, a partir do relato da expedição, que o primeiro contato dos trabalhadores


loandas com Henrique de Carvalho não se deu em junho de 1884, quando este
preparava os provimentos e a contratação de pessoal para a viagem à Lunda, mas em
anos anteriores, quando o então major era o engenheiro-militar responsável pela
construção do hospital Maria Pia.

Nesta obra, os loandas trabalharam no transporte de cargas entre a alfândega da cidade


e o local da construção e prestaram serviços como carregadores de maxila.293 Esta
experiência anterior foi considerada positiva, já que Henrique de Carvalho defendeu a
contratação destes homens, escolhidos de um grupo de trinta que se apresentou para os
trabalhos da expedição, em correspondência ao secretário-geral do governo de Angola,
pela confiança que depositava neles. 294

291
A lista dos nomes dos contratados não está necessariamente conforme a posição das pessoas
mostradas na imagem. Como não é possível ter certeza nesta questão, adotamos a ordem dos nomes da
forma como foram apresentados por Henrique de Carvalho no seu relato. A décima terceira pessoa
talvez possa ser ou o corneteiro Domingos, originário de Massangano, ou o cozinheiro José, do Libolo,
que foram contratados juntos com o grupo dos doze. Cf.: Álbum de fotografias da Expedição
Portuguesa ao Muatiânvua 1884/1888 de Manuel Sertorio de Almeida Aguiar (fotografias) e Henrique
Augusto Dias de Carvalho (textos), 1890 conservado pelo Arquivo do Ministério dos Negócios
Estrangeiros, Lisboa, Secretaria de Estado, 3º. P., A. 7, M.108 analisado e publicado em parte por
Beatrix Heintze em Pioneiros Africanos. Caravanas de carregadores na África Centro-Ocidental (entre
1850 e 1890). Lisboa: Editorial Caminho, 2004, imagem VIIb.
292
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Ofício ao secretário do Governo-geral da Província de Angola,
Carlos d‟Eça de Queiróz, de 07 de junho de 1884. In: CARVALHO, H. A. D. Descripção ..., p. 65.
293
Maxila era o „palanquim ou cadeirinha suspensa de um bordão ou bambú com tampo e cortina‟
utilizado no transporte de pessoas. Cf.: ASSIS JR., A. Dicionário Kimbundu-Português. Linquísfico,
Botânico, Histórico e Corográfico seguido de um índice alfabético dos nomes próprios. Luanda:
Argente, Santos e Cia Ltda., s.d.
294
Sobre a escolha dos doze loandas, conhecidos do chefe e que lhe inspiravam mais confiança, ver:
CARVALHO, Henrique A. D. Ofício ao secretário-geral do Governo Geral da Província de Angola,
Carlos d‟Eça de Queiróz, de 07 de junho de 1884. In: CARVALHO, H.A.D. Descripção ..., vol. I,
p.65.

158
Nesta mesma correspondência, Henrique de Carvalho pediu ao secretário-geral uma
autorização para proceder ao registro do contrato de trabalho na administração do
concelho da cidade, porque mesmo com a confiança declarada nestes trabalhadores, ele
também se preveniu com a possibilidade de haver uma punição pelo não cumprimento
dos termos do contrato, caso algum d'esses individuos, depois de ter recebido os
adeantamentos, deixasse de embarcar, ou fugisse de qualquer ponto para esta cidade.

Precaução que provavelmente foi compartilhada pelos loandas: o registro do contrato


em repartição pública, não só reconhecia a sua condição de livres, como garantia os seus
direitos de trabalhadores, algo que no decorrer da viagem pudesse lhes servir como
instrumento de barganha.

Em época de pós-abolição, outro sentido tomado por este contrato de trabalho foi o
propagandístico, como escreveu Henrique de Carvalho:

“Fazemos referencia especial aos contractos que celebramos, para que se


conheçam mais algumas provas sobre o modo por que nos entendemos com
os indígenas, e acabe para sempre a idea de que nas nossas possessões se
tolera um vislumbre sequer de escravatura.” 295

O contrato de trabalho dos loandas foi registrado em 09 de junho de 1884, no livro II


dos Termos Diversos do mesmo ano, às folhas 22 e 23, pelo administrador Antonio
Urbano Monteiro de Castro, o mesmo que fundou o jornal luandense A Civilização da
África Portuguesa, e confirmado por testemunhas. 296

Os termos deste contrato, no que se refere às obrigações dos loandas, exigiam deles o
lacerda: sem
contratos serviço de vigia e defesa das cargas e dos expedicionários, mais eventuais trabalhos de
carregadores, sempre que por falta de pessoal assim se tornasse preciso, além de ser
destacado o comprometimento destes homens de acompanharem a Expedição até a
mussumba do Muatiânvua. Tal obrigação dizia respeito ao tempo de duração do
contrato que equivalia ao período de dois anos previstos para a realização da viagem.

295
Para tanto, ver: CARVALHO, Henrique A.D. Descripção ..., vol. I, p. 66.
296
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ...., vol. I, p. 66.

159
Estimativa que não se cumpriu, já que o período total da expedição foi de quatro anos,
entre junho de 1884 e março de 1888, e assim houve um acréscimo de tempo de
trabalho para a maior parte dos loandas que não só foi até a mussumba do Kalani como
retornou com Henrique de Carvalho a Luanda, sendo que um deles, Antônio, o
acompanhou até Lisboa. 297

Sem contar o acréscimo do tempo de trabalho, pelas obrigações iniciais o chefe da


expedição comprometeu-se a pagar 100 (cem) réis por cada dia de serviço e mais o
equivalente a 100 (cem) réis diários para rações, sendo que estas principiavam vencer
do Dondo em diante. Sobre o contrato em geral, Henrique de Carvalho o considerou
vantajoso, além da garantia que oferecia, por ter sido feito na administração do
concelho, também pelo lado financeiro. 298

Acerca do valor da remuneração prometida aos loandas, o major português


comparando-o ao salário regular dos maxileiros luandenses, que era de 5$000 a 6$000
réis mensais (ordenado e ração), reconheceu que a real vantagem dos primeiros era por
„lhe terem sido pagos todos os vencimentos juntos no regresso – o que não compensou
de certo os perigos a que se expuseram e trabalhos por que passaram‟, completou –
mas também por terem recebido de maneira adiantada 36$500 réis para cobrirem as
despesas iniciais da viagem, visto que a alimentação só passariam a ter da cidade do
Dondo em diante, e para deixarem alguma cousa a suas famílias. 299

Outro exemplo comparativo são os salários dos operários que trabalhavam na


construção do hospital Maria Pia: segundo relatório do próprio Henrique de Carvalho,
era de 400 réis em dias úteis e foram considerados pelo na época administrador da obra
como muito pequenos.300

297
Junto com Antonio também foi o professor da escola da expedição José Faustino, de Cabinda. Cf.:
CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ...., vol. IV, p. 732.
298
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ...., vol. I, p. 66.
299
Cf.: CARVALHO, H. A. D. Descripção ..., vol. I, p. 66-67.
300
Cf.: CARVALHO, Henrique Augusto Dias de. Relatório apresentado pelo major Henrique de
Carvalho ao diretor das obras públicas da província de Angola acerca da construção do Hospital Maria
Pia, incluindo anexos documentais, de 01 de junho de 1881. In: Expedição Portuguesa ao Muatiânvua.
Meteorologia, Climatologia e Colonização: estudos sobre a região percorrida pela expedição
comparados com os dos benemeritos exploradores Capello e Ivens e de outros observadores nacionaes
e estrangeiros: modo practico de fazer colonisar com vantagem as terras de Angola. Lisboa: Typ. do
jornal "As Colonias portuguezas",1892, p. 121.

160
salários Levando em conta somente o salário em réis [sem aquele destinado às rações] de cada
um dos trabalhadores, esta quantia de 36$500 réis equivalia a 365 dias de trabalho ou a
(1) ano pelo calendário europeu, isto é, compreendia a metade do total dos vencimentos
constante em contrato a que cada um tinha direito. Ainda que o expedicionário não
mencione, não é nenhum despropósito aventar que tal feita fosse uma requisição dos
próprios loandas, visto que permaneceriam por muito tempo longe de suas casas. 301

Talvez possamos entender um pouco mais o valor destes salários relacionando-o com os
preços de serviços e mercadorias da época. Por exemplo, ao contratar os loandas,
Henrique de Carvalho teve que pedir ao governador-geral que custeasse a viagem destes
trabalhadores nos vapores que percorriam o rio Kwanza, de Luanda até o Dondo. Na
ocasião as passagens dos vapores da Companhia do Cuanza custavam 5 mil réis, as de
terceira classe, e 10 mil réis, as de primeira, isto significava que se os loandas
quisessem viajar por conta própria nestes vapores, levando em consideração o salário
acordado no contrato, teriam que desembolsar o equivalente a cinquenta dias de
trabalho para pagarem a passagem da classe inferior. 302

Sobre a viagem, devido aos preços cobrados pelas passagens, Henrique de Carvalho
criticou as suas péssimas condições:

“Nos vapores da companhia do Cuanza só se faz distincção de duas classes.


A superior differe da inferior em a primeira ter comida e a outra não; em nos
offerecer, para nos deitarmos, as taes camas de campanha sobre o convez,
emquanto que na inferior serve de leito o próprio convez; em proporcionar
uma bacia e uma toalha para os passageiros mais abonados, e aos demais
apenas uma celha. Por taes commodidades paga o passageiro de primeira
classe 10$000 réis, e o da segunda 5$000 réis!
Ora devemos confessar que tudo isto é exhorbitante, e que se por qualquer
circumstancia, o que succede muitas vezes, a viagem se prolonga até cinco
ou mais dias [sendo a duração prevista de quarenta horas], torna-se um

301
No 4º volume da Descripção, no capítulo que Henrique de Carvalho procede ao levantamento das
despesas de toda a viagem, há uma marcação sobre o valor deste adiantamento ter sido de 478 mil réis,
o que dá a entender que a soma de 36$500 foi paga a cada um dos doze, embora o total devesse ser de
438 mil réis – provavelmente um erro de impressão (?). Para tanto ver: CARVALHO, Henrique A. D.
Descripção ..., vol. IV, p.761.
302
A questão matemática neste caso é simples: 5000 mil réis do valor da passagem dividido por 100 réis
ao dia de salário é igual a cinquenta dias de trabalho. O pedido de passagens no vapor da Companhia
de navegação do Cuanza para os 12 trabalhadores pode ser encontrado no ofício supracitado de
Henrique de Carvalho ao secretário-geral Carlos d‟Eça de Queiróz, publicado em: CARVALHO,
Henrique A. D. Descripção ..., vol. I, p.65.

161
martyrio para os passageiros de 1ª classe pelos incommodos, falta de asseio e
mau passadio; e para os da inferior pelo que ainda é peor – a fome!” 303

Diferente do major português pensava o governador Ferreira do Amaral. Um mês


depois da partida da expedição de Henrique de Carvalho, em correspondência ao
governo de Lisboa, afirmou que não via problemas com os vapores que prestavam
serviços de transporte no rio Kwanza e que havia aprovado o auto de vistoria do vapor
Cunga, outra embarcação pertencente à Companhia do Cuanza:

“... dei licença para se empregar no serviço da Companhia contra a qual


felismente nos ultimos tempos não tem havido a mais pequena reclamação.
Tanto os vapores como uma quantidade extraordinaria de embarcações de
vela teem feito as carreiras do Cuanza sem novidade e com fretes
importantes o que claramente para o desenvolvimento commercial que tem
produzido a navegação apesar de difficil d'aquelle rio.” 304

Importante ressaltar que


vapores como o Serpa Pinto,
que levou a expedição de
Luanda até a cidade do Dondo,
foram espaços onde muitos
trabalhadores da região
305
prestaram serviços. A
exemplo do professor José
Faustino, que antes de trabalhar
na expedição havia sido despenseiro de um destes vapores da linha do Kwanza. 306

Se até mesmo o expedicionário considerou o preço das passagens elevado, talvez para
uma melhor compreensão do valor da remuneração dos loandas a comparação devesse
ser realizada com o valor de outros produtos: tais como o do vinho do porto fornecido

303
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. I, p.89-90.
304
Cf.: Correspondência do governador-geral Francisco Joaquim Ferreira do Amaral ao ministério da
marinha e ultramar que trata do Auto de vistoria passado ao vapor Cunga da Companhia do Cuanza.
14 de julho de 1884. PADAB, DVD 19, AHA Códice 40 -A-9-3, Pasta 78, DSC 00087.
305
Gravura do vapor Serpa Pinto publicada em: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. I,
entre as p. 86-87.
306
CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. IV, p. 692.

162
pelo negociante da mesma cidade, Eduardo Augusto dos Santos, e trazido por Henrique

vinho de Carvalho para ser „vendido a um comerciante do Dondo, que devia tornar conhecido
o seu vinho‟. A bebida que saiu a 400 réis a garrafa, segundo o chefe da expedição, „se
vendeu na mesma noite a razão de 1000 réis‟, nestas circunstâncias, para ser adquirida
por um dos doze loandas, uma garrafa consumiria dez dias de seu trabalho na
expedição. 307

Ou ainda, talvez mais condizente com os interesses materiais dos loandas, os preços dos
tecidos comercializados em Malanje, em agosto de 1884, no período que a expedição
teve de permanecer estacionada na região por falta de carregadores para prosseguir a
viagem até a Lunda.

Na ocasião, conforme apurou o chefe da expedição, os riscados azul em branco de


primeira, segunda e terceira qualidades eram vendidos, respectivamente, a 3000, 2500 e
1500 réis a peça. Quanto ao tamanho e a qualidade dos tecidos em geral vindos de
países europeus, Henrique de Carvalho anotou em correspondência ao secretário da
Sociedade de Geografia Comercial do Porto que

“vem já das fabricas, pelos pedidos que se fazem, dobradas de modo que as
dobras (beirames) não correspondem ás medidas que se indicam. Assim, diz-
se que uma peça (2ª) tem 9 beirames, cada beirame 2 jardas; devia, portanto,
ter 18 jardas, mas apenas tem, quando tem, 12 jardas. [...] D‟estas fazendas,
em geral, raras são as que se podem chamar boas, e o mau tecido sustenta-se
por algumas semanas, devido a uma espécie de gomma, que cáe em pó. Se a
fazenda vae a lavar, fica uma rodilha, se não uma rêde, o que o gentio já
reconhece e por isso rejeita-a. [...] O que se está praticando actualmente
afugenta o negocio do interior ...”. 308

Outros preços de tecidos diferentes eram: para os algodões de 1ª, 2ª. e 3ª qualidades,
com distinção de largo e estreito, de 1300 a 3500 réis; para as chitas, classificadas em
finas e de negócio, adamascadas e riscadas com cores vivas, que variavam em preço,

307
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. I, p. 100.
308
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Correspondência ao secretário da Sociedade de Geographia
Commercial do Porto, datada de Malanje de 03 de agosto de 1884, in: -------- Descripção..., vol.I,
p.329-332.

163
por peça, de 2250 a 5000 réis e para o riscado anilado – „de que os pretos gostam‟ – a
4000 réis a peça.309

Portanto, estes tecidos eram um tanto custosos para os loandas que se pretendiam
adquirir alguma peça, deveriam entregar na sua compra, no mínimo, o correspondente a
quinze dias de trabalho. 310

Sobre o comércio de Malanje, com a permanência da expedição, Henrique de Carvalho


pôde se informar com mais profundidade sobre os procedimentos e as formas de logros
entre as caravanas imbangalas e os comerciantes da região no comércio da borracha e
do pouco marfim que ainda restava na época. 311

Provavelmente um dos informantes nesta questão tenha sido o loanda Francisco


Domingos Silveira, originário de Kasanje. 312

Domingos de Kasanje, como era comumente


chamado por Henrique de Carvalho, antes de se unir
à expedição à Lunda era maxileiro em Luanda. Por
ser considerado „bom para marchas rápidas‟ era
enviado para algumas diligências: como na vez que
foi enviado junto com Manuel Bezerra e um soldado
de Ambaca ao quilolo Bungulo para tentar descobrir
as intenções de Xa Madiamba, muatiânvua eleito que
deveria seguir para a mussumba do Kalani para

309
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Correspondência ao secretário da SGCP ..., in: --------
Descripção..., vol.I, p.329-332.
310
Outros produtos também vendidos em Malanje no mesmo período eram as armas lazarinas a 3500
réis a peça, "de pau pintado a vermelho, de pederneira, que ahi [no Porto] custam 600 réis" e a
pólvora, vendida a 900 réis o barril. Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Correspondência ao secretário
da SGCP..., in: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. I, p.329-332.
311
Sobre a importância do comércio do marfim ao longo do XIX, ver: HENRIQUES, Isabel de Castro.
Percursos de Modernidade em Angola: Dinâmicas Comerciais e Transformações Sociais no Século
XIX. Lisboa, IICT, 1997, p.334-344. Sobre a questão dos logros, Henrique de Carvalho relata o caso
do cacuata Tambu da Lunda que teve problemas com um comerciante de Malanje no negócio de uma
ponta de marfim. O negociante havia oferecido 34 peças de algodão, sendo que o correto era 68. Para
tanto, ver: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. I, p.316-319.
312
Para a fotografia de Franscisco Domingos de AMNE n. 23.2, ver: HEINTZE, Beatrix. Pioneiros
africanos ..., imagem XIV.

164
313
tomar posse do seu cargo ou enviado ainda com o loanda Manuel e outros para
permanecerem em Malanje aguardando ordens do governo português. Com isto,
Henrique de Carvalho contava com o apoio do governo deixando um grupo confiável da
expedição em Malanje que pudesse contatá-lo no interior, algo que nunca ocorreu:

“entendemos ser de toda a vantagem expôr novamente ao Governo a nossa


situação [de demora por esperar Xa Madiamba e presenciar a sua posse
como muatiânvua] e mandar voltar Augusto com Manuel e Domingos e os
soldados que chegaram na diligencia de Manuel Bezerra, para aguardarem
em Malanje as ordens e acompanharem os recursos que este entendesse
dever proporcionar, quer para permanecermos ou retirarmos, quer para se
continuar a manter ali a nossa occupação por alguem que nos viesse
render.”314

Esta comitiva volta a se encontrar com Henrique de Carvalho quando este já estava com
somente parte dos loandas e alguns carregadores na região do Kalani, perto da
mussumba. No retorno, Henrique de Carvalho que na ocasião estava doente de febres e
dependendo dos „presentes‟ dos chefes políticos locais que ainda permaneciam na
região em guerra e das providências dos loanda para continuar se alimentando e a seu
grupo, mais ainda se desesperançou quando soube o que estes haviam conseguido trazer
de Malanje:

“Quando tratei de tomar contas a Manuel do que trazia, é que soube da triste
realidade!
Cada um trazia a sua carga, mas para poderem chegar á Mussumba com uma
correspondencia retardada, tiveram de despender tudo que traziam com
presentes, passagens de rios, exigencias e sustento d'elles, que certamente foi
pago á larga, sem se lembrarem dos 26 homens que estavam esperando
recursos, e acreditando mesmo que estando nós na Mussumba, estavamos
num paraizo em que nada nos faltaria; quer dizer a minha situação passou a
ser muito peor, porque tinha mais quatro bôcas com que repartir o pouco que
podesse alcançar de alimentos.”315

313
Cf.: CARVALHO, Henrique A.D. Descripção..., vol. II, p. 357 e 431.
314
Lembrando que isto não aconteceu nem com o subchefe Sisenando Marques, enviado por Henrique
de Carvalho para Malanje para ficar na retaguarda ajudando-o com envio de suprimentos, como
apontamos no segundo capítulo sobre a negativa do governador-geral ao ofício do subchefe da
expedição. Cf.: Correspondência do governador-geral G.A. de Brito Capello ao ministério da marinha
e ultramar remetendo cópia de um ofício do subchefe da expedição ao Muata Yanvo relativos aos
socorros prestados ao major Carvalho. 09 de maio de 1887. PADAB, DVD 20, Pasta 83, Códice 45 -A-
10-3, DSC 00107. Para a citação da passagem sobre a diligência de Domingos e Manuel em Malanje,
ver: CARVALHO, Henrique A.D. Descripção ..., vol. II, p. 442.
315
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. IV, p. 372 e 374.

165
Domingos já doente na mussumba, com „uma tosse cavernosa e d'uma magresa, como
nunca vi, escreveu Carvalho, á força de muitos cuidados, lá se levantou do leito, mas só
podia dar alguns passos amparado a dois companheiros‟, no regresso do chefe com
este grupo a Malanje faleceu nas vésperas da partida para Luanda e seu enterro foi „feito
com alguma pompa‟ à custa dos outros loandas.316

Considerando todo o trabalho que tiveram e voltando a considerar a questão da


remuneração, provavelmente mais interessante é confrontarmos os salários dos loandas
com o de outros membros da própria expedição, porque pode nos permitir perceber
possíveis hierarquias internas, provenientes de noções que envolviam a especialização e
a importância das funções para o desenvolvimento da viagem.

Como no caso dos salários do cozinheiro José, do Libolo, e do corneteiro Domingos, de


Massangano, ambos contratados em Luanda junto com os outros doze e que recebiam
um total mensal, respectivamente, de dez mil e cinco mil réis. Se levarmos em conta que
nesta soma também estavam inclusos os 100 réis diários para o custeio da alimentação,
tal como acontecia com os loandas, em um mês o ordenado real do primeiro era de sete
mil réis e do segundo dois mil réis.

Em uma hierarquização dos papéis dentro da expedição, isto equivale dizer que o
trabalho do cozinheiro, responsável direto pela alimentação de Henrique de Carvalho,
era mais valorizado. Já o segundo, o corneteiro, importante nas conduções dos
músicas caminhos, porque seguia à frente da caravana e influenciava com sua música „no ânimo
dos carregadores, que iam levando as cargas e seguindo, sem que fosse preciso dizer-
lhes que avançassem‟, teve seu trabalho menos reconhecido em relação ao dos loandas,
responsáveis pela segurança da expedição. 317

316
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. IV, p. 377 e 688. Como observa Beatrix
Heintze, não conseguimos com as informações do relato da viagem de Henrique de Carvalho conhecer
sobre a vida do outro Domingos, originário de Luanda. Será que era ele era o caçador na ocasião em
que o major português o julgou perdido por ter anoitecido e ainda não ter retornado, o que só ocorreu
ao amanhecer, já que chovia e afastado muito do acampamento, entendeu ele fazer uma cubata para
passar a noite e poder regressar no outro dia? CARVALHO, Henrique A. D. Descripção, vol. IV, p.33-
34. Sobre a informação da historiadora, ver: HEINTZE, Beatrix. Pioneiros africanos ..., p.137.
317
Função de condução da caravana de cargas do corneteiro que a compartilhava com o porta-bandeira e
o tocador de tambor, cf.: CARVALHO, Henrique A.D. Descripção..., vol. I, p. 107.

166
Outras funções mais bem valorizadas, principalmente pela chefia da expedição, eram a
de intérprete e guia que pressupunham um conhecimento aprofundado das regiões além-
Kwango e junto a isso, por vezes, a prática da escrita em língua portuguesa. Como no
caso do sertanejo Vieira Carneiro, „africano de 50 e poucos anos e empregado como
escriturário de comércio na vila de Caculo‟, região do Cazengo, que se ofereceu para
acompanhar a expedição, com a condição do governo garantir-lhe uma pensão para a
família no caso de sua morte.

Henrique de Carvalho, embora não pudesse prometer a pensão, estava disposto a pagar-
lhe transporte, mesa, barraca e uma mensalidade de 18$000 réis, isto é, três vezes
mais, levando em consideração ordenado e alimentação, do valor pago aos loandas,
afora os objetos mencionados, que implicavam a necessidade da função, a mesa para
escrita, e a posição social com relação aos indivíduos que compunham a expedição, a
barraca e a rede, incluída no oferecimento do transporte, que deveria ser levada por pelo
menos dois homens.

Assim, com relação a este último ponto, da visibilidade perante o grupo de


pertencimento e para além das questões materiais que os valores salariais suscitam,
possivelmente tão importante seja aquilo que a historiadora Jill Dias chamou de sentido
subjetivo da diferença: atributos físicos como vestuário, adornos corporais, objetos
portados e práticas costumeiras que em termos de identificação social foram
determinantes. 318

Ainda sobre os motivos de Vieira Carneiro em querer acompanhar a expedição, vontade


que não se concretizou, talvez por não lhe ter sido atendido o pedido da pensão, o chefe
da expedição anotou:
“Contou-nos ele que a sua ultima viagem fora em 1874. Levava muito
negocio e roubaram-lhe quase tudo o que trouxera, resultado de uma boa
permutação; sendo forçado a enterrar o resto do marfim, antes de chegar ao
Cuango, com receio de que os Bângalas lh‟o roubassem também. Era este o
motivo principal por que se propunha a ir comnosco, embora com pequeno

318
Sobre esta perspectiva de análise, ver a discussão de Jill Dias sobre os canoeiros vilis da costa do
Loango em: “Novas identidades africanas em Angola no contexto do comércio atlântico”. In:
BASTOS, Cristina; ALMEIDA, Miguel Vale de; FELDMAN-BIANCO, Bela (orgs.) Trânsitos
Coloniais. Diálogos críticos luso-brasileiros. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 317 e 319.

167
salario. Queria aproveitar a passagem da Expedição no regresso, para á
sombra dela trazer a sua pequena fortuna.” 319

Talvez o mesmo processo possa ter ocorrido no caso do cozinheiro José, que mesmo
com o salário um pouco maior que o dos outros com quem foi contratado, não
permaneceu trabalhando na expedição. Quem sabe tenha ele utilizado a expedição para
chegar a algum local que de outra forma não conseguiria acessar? Ou tenha
simplesmente fugido quando sentiu a oportunidade?

Embora não consigamos precisar a circunstância de sua partida, pelo relato de Henrique
de Carvalho, em outubro de 1884, ou seja, quase quatro meses depois da saída da cidade
de Luanda, como cozinheiro do major português já estava o loanda Marcolino, que a
partir de então será referido pelo major português como „o nosso cozinheiro‟. Nesta
mesma época a expedição estava acampada junto ao Kafúxi [Ka, pequeno e fúxi, sítio;
pequena povoação, segundo os ambaquistas] do soba Sé Quitari, onde foi construída a
segunda estação civilizadora, a qual foi dada o nome do então governador-geral de
Angola, Ferreira do Amaral. 320

Originário do „baixo Kongo‟, Marcolino foi escravizado ainda criança e trazido para
Luanda; na época de sua contratação para a expedição à Lunda, com a abolição já
promulgada, vivia nos arredores da cidade como lavrador junto de sua mulher que era
quitandeira no comércio da região. Para compor o ganho de sua sobrevivência,
Marcolino ocasionalmente prestava serviços na alfandega e provavelmente foi em uma
destas ocasiões que conheceu o major português.

Junto com o loanda Antônio, Marcolino foi um dos mais próximos de Henrique de
Carvalho, acompanhando-o até a mussumba do muatiânvua e retornando com ele a
Luanda. Conhecedor das iguarias do sertão e da sociedade cristã, Marcolino cozinhou
para o chefe da expedição desde bombós, infunde, quizacas,321 mocotós,322 até um galo

319
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. I, p. 116-117.
320
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. I, p. 381-382.
321
Sobre o preparo destes pratos Henrique de Carvalho, muito provavelmente por ter observado
Marcolino, anotou: "A mandioca depois de sair da agua é exposta ao sol a seccar, o que fazem sobre
esteiras no chão, ou sobre a cobertura das cubatas, e depois da seccagem toma o nome de bombó.
Cortada ás tiras e torrada ao fogo, serve-lhes de pão, e sendo acompanhada de jinguba ou de mel,
além de agradavel entretem a debilidade por muitas horas. Geralmente o bombó partido em pedações

168
para a ceia do natal de 1886.323 Como também foi a pessoa que Henrique de Carvalho
mais confiou nas travessias de rios e pântanos, sendo Marcolino o seu guia de passos
nos caminhos difíceis, como na passagem do rio Lúto, que o chefe da expedição teve
que atravessar:

“debaixo d'uma imponente chuva, sobre uma pessima


ponte quasi sempre coberta d'agua, um amontoado de
paus muito tortuosos, que a força da corrente ia
deslocando pouco a pouco, de modo que eu tive de ser
guiado á mão, por Marcolino que ia na frente,
indicando-me os paus firmes em que podia assentar os
pés e, de quando em quando, encontrava-me em
grandes embaraços para passar as pernas, sobre os
paus levantados e moveis.” 324

Conforme a viagem foi acontecendo, a


proximidade das relações fez com que Henrique
de Carvalho externasse ainda mais a sua
admiração por aquele que considerou estar entre a
nata dos cozinheiros. 325

é lançado no chino, especie de gral de madeira e ahi é triturado e reduzido a um pó finissimo, a que se
chama fuba, e esta passando por uma fervura, e mexida constantemente com um pau, forma uma
massa, ruka, em Angola infunde, e constitue a base principal da alimentação. Tirando da massa
pequenas bolas, mergulham-se em caldos ou môlhos, ás vezes só das proprias folhas do arbusto da
mandioca, a que chamam quizaca ou chizaca, sendo esta uma das refeições vulgares, mas das mais
parcas; se houver peixe, carne ou gallinha, então podem chamar-se boas refeições, sobretudo se se
dispõe de azeite de palma e sal para temperos, porque o jindungo (pimentinhas) nunca falta." Cf.:
CARVALHO, Henrique A. D. Expedição Portuguesa ao Muatiânvua. Ethnographia e História
Tradicional dos Povos da Lunda. Lisboa: Imprensa Nacional, 1890, p. 466-467.
322
Como na mesma ocasião no Kafúxi de Sé Quitari, quando Marcolino „estava alegrote e entreteve a
sociedade local cozinhando os mocotós para o nosso almoço do dia seguinte‟. Cf.: CARVALHO,
Henrique A.D. Descripção ..., vol. I, p. 382.
323
Sobre a ceia de natal, Henrique de Carvalho registrou: "Devido aos cuidados de Marcolino, á meia
noite em ponto, saboreava uma explendida canja de gallo, em que o arroz era substituido por milho,
que primeiro tinha sido migado num almofariz de madeira”. Do ano novo: "Entendera Marcolino, ao
uso de Loanda, preparar-me uma refeição á meia noute, para o que tinha contribuido Rocha com uma
gallinha; queria que me despedisse do anno de 1886 ..." In: CARVALHO, Henrique A.D.
Descripção..., vol. IV, p. 189 e 224.
324
CARVALHO, Henrique A.D. Descripção ..., vol. IV, p. 555. Ou ainda, quando na vez que levou o
major nos ombros, vol. II, p. 400, ou quando este ficou contrariado porque teve ir com outra pessoa por
Marcolino não ter chegado a tempo da travessia dos riachos Hongo e Liba, vol. IV, p.430-433.
325
Cf.: CARVALHO, Henrique A.D. Descripção ..., vol. IV, p. 46. Para a imagem de Marcolino com
sua mulher, inclusa no Álbum de fotografias da Expedição, AMNE, 103.4, ver: HEINTZE, Beatrix.
Pioneiros Africanos..., imagem XV.

169
Junto a estas práticas cotidianas, que permitiram aos loandas, por sua proximidade com
o chefe Henrique de Carvalho, uma maior visibilidade entre os diferentes grupos de
trabalhadores, outros elementos também fizeram com que a expedição como um todo se
destacasse na paisagem social como uma sociedade expedicionária cujo chefe era o
major português.

Ao estudar a constituição do poder político e sua relação com o sistema de parentesco


entre os Mbundu da África Centro-Ocidental, Joseph Miller apontou para a
possibilidade de se perceber o sistema de parentesco como um sistema social cuja
essência diz respeito a uma ligação dos vivos com os antepassados mortos há muito
tempo e que está para além da formação de novos conjuntos populacionais devido a
fatores migratórios.

O ponto em que se inscreve tal discussão está no redimensionamento cotidiano do


poder político que prevê a „difusão de ideias, instituições, símbolos de autoridade e
coisas semelhantes‟ por meio de princípios genealógicos de reciprocidade e
redistribuição, que confere ao líder da comunidade o poder de redimensionar ou
reatualizar o discurso dos ancestrais através dos ritos de distribuição de bens materiais
e daqueles conectados à harmonia social, dentre os quais, a justiça. Deste modo, cabe
ao „chefe‟ o papel da mediação com os ancestrais na resolução dos conflitos como
forma de legitimar o seu poder e tornar a vida em conjunto possível. Logo, é neste
processo de busca de coesão social em que se dão as rupturas e continuidades que
movimentam a história destes povos. 326

Neste sentido, uma das formas deste movimento histórico pode estar naquilo que Miller
chamou de instituições transversais ao sistema de parentesco, isto é, a existência de
associações capazes de transcender o poder genealógico das sociedades hierarquizadas
pela forma do parentesco e que, para os nossos propósitos, são capazes de dimensionar
o significado de trabalho para as sociedades da África centro-ocidental, para além da
questão da subsistência humana.

326
Cf.: MILLER, Joseph. C. Poder político e parentesco. Os antigos estados Mbundu em Angola.
Luanda: Arquivo Histórico Nacional; Ministério da Cultura, 1995, p. 29.

170
Neste caso, o trabalho seria uma relação que se dá em tempo e espaço determinados e
que necessitaria de ser formalizado por uma ritualização e o porte de símbolos e marcas
enquanto forma de coesão social.327

No seu trabalho, Joseph Miller discute quando esta forma do trabalho passa a se
constituir um mecanismo do poder capaz de contestar a legitimidade da autoridade
instituída sob o sistema de parentesco. Exemplificado na associação de mestres-
caçadores (yibinda, singular kibinda) entre os Mbundu, este estudo foi capaz de
perceber uma relação entre poder, identidade, competição e conflitos.

Em linhas gerais, na questão identitária, a associação dos yibinda pressupunha a criação


de laços pessoais para além das estruturas do parentesco, uma vez que um iniciante
(mona a yanga, ou yanga, querendo dizer „filho do kibinda‟) na profissão de caçador
podia ter como mestre um kibinda que se encontrava fora do seu grupo de parentesco.
Deste modo, diz Miller, a relação entre mona e mestre era comparável àquela entre pai e
filho, que no caso Mbundu, atravessava os laços matrilineares entre tio e sobrinho.

Esta relação se baseia na concepção de pai social, aquele que preside o rito de iniciação
do novato, que tem o poder de criar uma solidariedade para além das linhagens,
formando assim novos segmentos sociais independentes do sistema de parentesco ou de
laços consanguíneos. Grosso modo, este foi o caso dos acampamentos de circuncisão
chamados de kilombos dos ovimbundus e adotados posteriormente pelos imbangalas
como organização social e política.

Outras formas de manifestação identitária do caçador eram os encontros nas florestas,


nas cerimônias em ocasião da morte de um kibinda famoso e os sinais secretos de
reconhecimento dos yibinda que faziam com que os laços entre os caçadores se
estendessem “muito para além dos limites do parentesco e mesmo da etnicidade”.328

A possibilidade de haver competição e conflito, ou seja, de existir uma interferência


nas estruturas políticas tradicionais dos Mbundu, deu-se pela transmissão de poder a

327
SERRANO, Carlos. Poder Político Tradicional na África. Disciplina de graduação: Seminários de
Antropologia I. 22 ago. 2007. Notas de aula. Manuscrito.
328
Cf.: MILLER, Joseph. C. Poder político e parentesco ..., p.52.

171
partir das insígnias como objetos de mediação com as forças espirituais e naturais.329 O
exemplo mais destacado por Miller em seu estudo foi a transmissão de poder a partir da
insígnia Ngola, „que forneceu mais uma, entre outras, forma de construir laços não
hierarquizados pelo parentesco entre linhagens Mbundu‟.330

Esta insígnia, associada à árvore mulemba, significava o poder de mediação entre os


membros vivos e mortos da linhagem e fazia parte dos objetos utilizados pelos
adivinhos malemba dya ngundu. Sua difusão se deu, tal como aconteceu com os
caçadores, pela instrução que previa a entrega de insígnias aos aprendizes, mas também
a entrega ou venda destes objetos de metais em forma de martelo, sino, enxada ou faca,
a herdeiros e clientes, que passavam a agir em nome do lemba dya ngundu, que apesar
de deterem um conhecimento limitado, eram possuidores de um atributo material da sua
autoridade algo que lhes possibilitava também exercer alguma autoridade. 331

Nesta perspectiva, o caso dos loandas e outros grupos da expedição que foram
reconhecidos pelas diferentes sociedades contatadas ao longo dos caminhos como filhos
de muene puto [rei de Portugal ou autoridade máxima dos portugueses] ou ainda filhos
do angana ou muata majolo [senhor major] que tinha o seu nganga dontolo, o subchefe
Sisenando Marques, que na qualidade de farmacêutico por vezes ministrou remédios aos
doentes da expedição. 332

329
Insígnias que por serem símbolos físicos de poder, ao serem conservadas, constituem-se em mais
uma fonte histórica destes povos, sem perder de vista a dimensão da transformação por que passaram
tais insígnias, já que seu significado e uso variaram conforme o tempo.
330
Cf.: MILLER, Joseph. C. Poder político e parentesco ..., p.63.
331
Cf.: MILLER, Joseph. C. Poder político e parentesco ..., p.63-64. Sobre a importância das enxadas
como instrumento de trabalho e como insígnia, ver: SILVA, Juliana Ribeiro. Homens de ferro. Os
ferreiros na África Central no século XIX. São Paulo, 2008. Dissertação (Mestrado em História Social)
- FFLCH, USP, p. 35 e 58.
332
Para o reconhecimento de Henrique de Carvalho como gana majolo e a tradução dos chokwes do
termo mona para muana gana „senhor filho‟, ver: CARVALHO, Henrique A.D. Expedição Portugueza
ao Muatiânvua. Méthodo prático para fallar a língua da Lunda contendo narrações históricas dos
diversos povos. Lisboa: Imprensa Nacional, 1890. p.156 e 290.

172
Assim, os loandas como ex-escravizados, portanto, desenraizados de suas origens, que
eram diversas – do Libolo, da Jinga, da Kisama, de Benguela, de Kimbundo, do Kongo,
da Lunda, de Luanda, de Kasanje e de Golungo Alto – no período de pós-abolição
encontraram na expedição uma forma de integração social na incorporação de
elementos variados proporcionada por experiências múltiplas adquiridas em conjunto.333

Tal questão pode estar inserida, por exemplo, no porte de objetos e vestuário que os
distinguiam dos demais grupos dos caminhos da expedição: uniformes, correames e
armamento que deviam ser utilizados nas solenidades nas terras dos maiores dirigentes
lundas. Estes atributos físicos eram entendidos por eles como uma espécie de distintivo
que lhes possibilitava agir em nome do chefe da expedição.

Não queremos dizer com isso que Henrique de Carvalho foi „confundido‟ tal e qual a
um chefe político africano tradicional. Quanto a esta ideia que julgamos simplista,
temos certeza da consciência mais profunda desta questão principalmente entre os
loandas que foi o grupo que mais nos atentamos neste estudo. No nosso entendimento, a
figura de Henrique de Carvalho foi formulada em um sentido próprio ao
empreendimento da expedição à Lunda como uma autoridade capaz de dar um sentido
333
O mapa dos locais de origem dos loandas é de Beatrix Heintze e foi publicado no seu Pioneiros
africanos ..., p.133.

173
de unidade grupal em torno de um objetivo que passou a ser comum: chegar a
mussumba do muatiânvua, visto que sendo todos voluntários, contratados pelo angana
major iriam com ele porque o majolo lá queria ir. 334

Assim, a caracterização como gente de muene puto, na qualidade de testemunhas, foi


utilizada nas cerimônias de assinatura de tratados realizados com as autoridades
lundas,335 e como emissários nas comitivas para estabelecer os primeiros contatos da
expedição com as autoridades locais – como no caso apresentado de Francisco
Domingos ao quilolo Bungulo – nas quais eram levados presentes ou musapos
conforme o costume.336

Destacável, neste sentido, foram as missões do loanda Paulo nos acampamentos dos
chokwes, para sossegar os ânimos em tempos de guerra com os lundas, como também
nas visitas às autoridades deste mesmo povo acompanhando Henrique de Carvalho
como intérprete ou muzumbo, na linguagem lunda. 337

Outro que também se sobressaiu foi o loanda Antonio, tanto por suas atribuições diárias
– cuidados com o armamento da expedição, inclusive da arma pessoal de Henrique de
Carvalho, e da segurança das cargas – quanto por seus atributos físicos – o vigor que lhe
permitiu, junto com o loanda Adolpho, entrar no recinto que ia ser fechado por
labaredas e salvar dois rapazes, arrastando-os pelas pernas para fora e ainda pelo próprio

334
Para esta afirmação do grupo de trabalhadores que foi com Henrique de Carvalho até a mussumba do
Kalani, que retomaremos logo mais, ver: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. IV, p. 11.
335
Para a descrição dos ritos e cerimônias realizados nos momentos de leitura e posterior assinatura dos
tratados realizados entre Henrique de Carvalho, como representante português, e os dirigentes políticos
lundas ver o seu: A Lunda ou os estados do Muatiânvua. Domínios da soberania de Portugal. Lisboa:
Adolpho, Modesto & Cia., 1890.
336
Os musapos também eram um modo de adquirir alimentos para os integrantes da expedição: “...
como a Expedição tem por costume quando chega a qualquer povoação, mandar logo um signal de
amizade, musapo (presente) ao soba, este vem agradecer também, trazendo uma vitella ou garrote, se
tem gado, maior, quando não um porco ou carneiro, e os menos abastados, galinhas, ovos ou
qualquer outra cousa.” Cf.: CARVALHO, Henrique Augusto Dias de. Correspondência ao secretário
da Sociedade de Geographia Commercial do Porto, datada da Estação Ferreira do Amaral, no Cafuxi
de Sé Quitari, de 15 de novembro de 1884. In: CARVALHO, Henrique A.D. Descripção ..., vol. II, p.
455.
337
Para tanto ver: CARVALHO, Henrique A.D. Descripção ..., vol. IV, p. 345, 360-361, 450-451, 462,
480, 485.

174
uso do uniforme encomendado especificamente para vestir os soldados de Ambaca,
convocados para servir à expedição, e os trabalhadores contratados em Luanda. 338

Uniformes que, de acordo com o chefe da expedição:

“... porque era de justiça vestirmos os soldados e por equidade os contratados


de Loanda, para o que havíamos mandado pedir ao nosso correspondente em
Malanje fardas encarnadas e bonés de veludinho preto e uns pannos imitando
os chamados da Costa ás riscas de diversas cores.
Este uniforme econômico e vistoso reservavamo-lo para servir nas nossas
solemnidades nas terras dos maiores potentados ...” 339

Na fotografia de Antonio são mostradas algumas


peças do vestuário, como o boné em sua mão,
porém diferente daquele descrito por Henrique de
Carvalho. 340

A importância atribuída ao uniforme nas relações


sociais da expedição também funcionou nos casos
de punição: como no rebaixamento do soldado
Cambuta („o de pequena estatura‟) a carregador,
por causa de uma briga que se envolveu com os
shinjes, devido a ter sido chamado de escravo de
Muene Puto pelo chefe da povoação, Mona Candala. Sobre o castigo, Henrique de
Carvalho anotou:

“... Tinhamos de ser inexoráveis, e ordenámos ao cabo da força para que


immediatamente despojasse o delinquente do seu uniforme e lhe desse um
panno de carregador a cuja classe passava durante todo o tempo que
estivesse ao serviço da Expedição, e ainda que nos custasse, demos ordem
para lhe baterem nas costas com correias. Eram então os anganas [shinjes]

338
Sobre o incêndio ocorrido no acampamento da expedição ver: CARVALHO, Henrique A. D.
Descripção ..., vol. II, p. 463-464. E sobre os cuidados de Antonio com o armamento e a segurança das
cargas ver: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. IV, p. 174 e 295.
339
Cf.: CARVALHO, Henrique A.D. Descripção ..., vol. IV, p. 487.
340
Conforme fotografia do Álbum da Expedição do AMNE, nº.32.1, publicada por HEINTZE, Beatrix.
Pioneiros Africanos..., imagem X.

175
que nos pediam cessasse com o castigo, e as mulheres e os rapazes nos
limites das povoações imploravam em altos gritos a Muene Puto que
perdoasse. O soldado ficou ainda prohibido de sair da cubata emquanto nos
demorássemos na Estação.” 341

Portanto, ser filho de muene puto não equivalia ser escravo no entendimento dos
integrantes da expedição. A razão deste conflito, muito importante para o entendimento
da sociedade expedicionária formada, provavelmente se relacionava ao sentido de
escravo das palavras do chefe shinje, como aquele que poderia ser enviado para o
Calunga ou além-mar.

Outro aparente aspecto de distinção dos filhos de muene puto foi proporcionado pela
possibilidade da aprendizagem da escrita. Desta experiência, ficou-nos a fotografia
tirada no acampamento junto ao rio Camau, que mostra entre os vários alunos do
professor cabindense José Faustino, vestido de branco, o contratado Adolpho em pé, ao
meio, junto com outros alunos, todos pousando com um papel na mão. 342

341
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. II, p.129-131.
342
A fotografia da escola da expedição é da coleção da Sociedade de Geografia de Lisboa exposta na
seção Viagem na seguinte página da internet: http://socgeografialisboa.pt/projectos/2010/henrique-
carvalho/. Último acesso em: novembro de 2010. Também pode ser vista em HEINTZE, Beatrix.
Pioneiros Africanos..., imagem IX do Álbum da Expedição do AMNE, nº. 50.3.

176
De acordo com o expedicionário Henrique de Carvalho, tratava-se de

“... uma aula de intrucção primaria - que se instituíra por lembrança do


empregado José Faustino e outros, onde concorriam alguns soldados,
carregadores de Malanje e menores, a qual continuou durante a viagem, e
alguns discipulos teve que aproveitaram...” 343

Entre os que aproveitaram as aulas do professor José Faustino, provavelmente estava o


carregador Xavier que no retorno de toda a expedição ao litoral enviou a Henrique de
Carvalho a seguinte carta pedindo atestado de bom comportamento:

“Meu bom patrão. – Desejo-lhe saude. Por este meio


venho sollicitar a V. uma fineza que desejo vel a
realisada. Como vim a esta cidade [Luanda] em
acompanhamento de V., no seu regreço a esta, e como
não sou filho d'esta terra e por não me agradar esta terra,
não quero ficar, quero regraçar-me á minha patria,
portanto venho por meio d'esta minha cartinha, pedir o
favor de me passar um escripto do meu bom
comportamento durante a longa viagem que fizemos para
ir á Mussumba e para chegar a esta cidade, que parece
não tinha fim, qual é o meu mau procedimento que
procedi na viagem, se assim V. patrão assim julgar, outro
sim passar-me uma carta para minha segurança, que
quando eu chegar á minha terra não me acontecer nada,
porque eu em chegando lá, quero fabricar minha cubata
em ordem no caminho do negocio junto á minha familia,
para quando vier qualquer auctoridade do Rei como o patrão receber-ia em
boa harmonia, eu sou preto mas com o coração de branco. A terra que eu
quero fabricar lá no caminho é o Camau, onde o meu patrão com o seu
Angananzambi cortou o fogo no acampamento, onde todos iamos ficando
assados, portanto peço a V. este obsequio e favor para o meu governo. - Sou
com toda a estima de V. Attº. V.º Obrº. Crº. Servo que pede a resposta (ass.)
Xavier Domingos Paschoal. – NB. Não se esqueça de me dar uma bandeira
do nosso Rei para a cubata”.344

Sobre o pedido de Xavier o major português relatou:

343
Cf.: CARVALHO, Henrique A.D. Descripção ..., vol. II, p.235.
344
Salvo engano de minha parte, não há nenhum reparo, como de costume, do major português que esta
carta tenha sido escrita por outra pessoa a pedido de Xavier, portanto, inferimos que ela seja do próprio
carregador. Para a carta citada e a gravura de Xavier, ver: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção...,
vol. IV, p. 722-723. Esta carta pode ser analisada também no trabalho de Beatrix Heintze em: A
lusofonia no interior da África Central na era pré-colonial. Um contributo para a sua história e
compreensão na Actualidade. Cadernos de Estudos Africanos. n. 7-8, p.179-207, jul. de 2004 a jul. de
2005, p. 203. Disponível em:
http://cea.iscte.pt/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=73. Último acesso em:
outubro de 2010.

177
“... o carregador Xavier [era] esse rapaz que na Estação - Costa e Silva -
esteve gravemente doente com uma pneumonia dupla, que ficou muito
reconhecido pelo tratamento que se lhe dispensou, devido a ser epocha de
abundancia dos nossos melhores recursos, aquelle que, mais tarde, na
margem do Cuengo, eu consegui curar das febres, apezar de ser natural das
visinhanças da localidade, e entendeu mimosear-me com um coêlho que
agarrou á mão no mato, o único que vi em toda a viagem, e que veiu a
proposito por não ter que almoçar na occasião,
[...]
Não era muito exigente e merecia que alguma coisa fizesse em seu beneficio,
pois foi um dos que se comportou bem; paguei a sua passagem para o Dondo
no vapor da carreira e dei-lhe seis mil réis em cobre para comer até Malanje.
Recebeu uma bandeira nacional com a competente auctorisação para a
hastear junto da sua residencia e tambem um attestado de seu bom
comportamento, emquanto esteve ao serviço da Expedição, e entreguei-lhe
tambem cartas para os chefes dos concelhos e amigos lhe dispensarem
protecção.”345

Ainda com relação à escrita, o empregado José Faustino, que por seu conhecimento das
línguas portuguesa e lunda teve importante participação na formulação dos tratados
realizados entre a expedição e as autoridades locais, conseguiu até mesmo fazer constar
em um deles os seus interesses pela escola da expedição:

“... com annuencia do muatiânvua, [a abertura de] uma escola primaria de


instrucção da lingua portugueza obrigatoria para todos os menores que
faziam parte da Expedição entre sete a quinze annos e para todos os
individuos que o Muatiânvua levava na sua comitiva e que elle dizia que ia
mandar frequentar. Que por emquanto era professor d'ella o empregado da
Expedição José Faustino, que sob sua direcção havia de leccionar das 11
horas da manhã ás 2 horas da tarde, tendo logar a primeira lição no dia 3 do
proximo mez [de novembro de 1885] e esta aula, a primeira que se
estabelecia em terras da Lunda entendia dever denomina-la Chibunza Ianvo
[como também se chamava o muatiânvua eleito] para que pelo menos os
seus discipulos se recordasse no futuro, não só d'este dia, como do
Muatiânvua presente que de passagem pelas terras do Caungula seguia a
chamado dos grandes quilolos a tomar posse do seu Estado.” 346

345
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. IV, p. 723-724.
346
Excerto do tratado da expedição portuguesa com o caungula Muata Xa Muteba, grande quilolo do
muatiânvua, que pode ser visto em CARVALHO, Henrique A.D. Descripção ..., vol. II, p. 692. Este
tratado foi realizado em 31 de outubro de 1885, na estação Luciano Cordeiro instalada na região do
Caungula, terras da Lunda, na confluência entre os rios Mansai e Lóvua. Na ocasião, acompanhava a
expedição até a mussumba do Kalani a comitiva do muatiânvua eleito conhecido como Xa Madiamba
ou Chibunza Ianvo. Nesta região – a mussumba do Kalani – reconhecidamente a capital da Lunda,
Ianvo deveria ser instituído como muatiânvua, fato que não aconteceu devido às questões políticas com
os chokwes que também disputavam o cargo. Quando Henrique de Carvalho chegou à mussumba no
cargo de muatiânvua interino estava Mucanza, com que efetivamente realizou um tratado em janeiro
de 1887. Para tanto ver: Correspondência de Henrique de Carvalho ao ministério da marinha e
ultramar, datada de Luambata, na margem esquerda do Calanhi, de 01 de fevereiro de 1887. In:
CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. IV, p. 787-796.

178
Sobre a influência cultural, como consequência dos contatos entre as sociedades
africanas e os portugueses, a historiadora Maria da Conceição Neto propõe pensá-la
para além dos vícios do pensamento luso-tropicalista:

“Igualmente fruto dos contatos, diretos ou indirectos, com portugueses e


outros europeus, foi a introdução nesta parte do mundo da mandioca e do
milho, das calças e camisas dos homens, dos „quimones‟ e dos panos de
algodão dos trajes tradicionais das mulheres, dos canhangulos dos velhos
caçadores. E nada disso precisa do „lusotropicalismo‟ para ser explicado,
manifestando simplesmente o resultado de influências culturais, impostas em
diversas circunstâncias ou voluntariamente assumidas.”347

Neste sentido exposto, incluímos o tema da apreensão da escrita pelos trabalhadores da


expedição de Henrique de Carvalho: mais do que se referir à „boa influência lusa‟ –
aceitação da como por vezes o próprio major português tenta nos fazer crer –, o interesse por
escrita por
parte dos aprender a escritura se refere mais à aceitação de aspectos vindo do exterior que em
africanos.
alguma medida passam a fazer sentido como atributo de relevância social entre os
agentes africanos que a partir de então passam a se assenhorarem da escrita, no caso,
da língua portuguesa.

Neste sentido, Elizabeth Ceita Vera Cruz sobre a figura dos ambaquistas nos aponta
uma contradição da colonização portuguesa com relação a estes agentes sociais: de
acordo com o discurso colonial, sendo o primeiro grupo histórico de „assimilados‟ em
Angola passou a ter de ser combatido pelo mesmo entrave do assimilacionismo contido
no Estatuto do Indigenato, porque houve uma „necessidade de pôr um travão ao grupo,
de o condicionar, de o limitar, de o dominar‟, porque trabalhadores – portanto, não
preguiçosos – secretários dos dirigentes políticos africanos e com domínio da língua
portuguesa, encontraram-se os ambaquistas munido das alavancas que permitiram ser
independentes, à luz da ideologia vigente que consagrou o trabalho e a instrução como
elementos constitutivos dos homens livres‟:

“Entre a teoria e a prática, entre o dito e o feito, entre o manifesto e o latente,


estas as contradições e ambiguidades que funcionaram como proteção do
próprio poder – as contradições e ambiguidades são as duas faces de uma
mesma moeda cujo valor estava encerrado num objetivo único: o domínio.

347
NETO, Maria da Conceição. Ideologias, contradições e mistificações da colonização de Angola no
século XX. Lusotopie. 1997, p.331-332. Disponível em:
http://www.lusotopie.sciencespobordeaux.fr/resu9719.html. Último acesso em: novembro de 2010.

179
Para fazer frente às ameaças – e os ambaquistas constituíram uma ameaça –,
os colonialistas tiveram de se dotar de armas eficazes para manter o domínio
face àqueles que se apresentaram como um adversário. Tendo em atenção
que os ambaquistas não somente falavam e escreviam português como,
mercê desta mais-valia serviam de intermediários entre os autóctones (sobas)
e os portugueses, facilmente se compreende a ameaça que representaram
para os portugueses.” 348

Outra trajetória que nos permite avançar no entendimento, sobretudo, da configuração


identitária dos loandas como um grupo influente da expedição, é a do contratado
Matheus, inclusive naquilo que comumente entendemos ser mais africano: a liderança
dos mais velhos pelo respeito que inspirava.

O velho Matheus, como era conhecido pelos


outros trabalhadores, nascido no Libolo, região
ao sul do rio Kwanza, foi um dos loandas que,
devido a sua idade, mais vivenciou os efeitos da
promulgação da legislação abolicionista
portuguesa. Escravizado ainda criança e levado
para Luanda, foi comprado pela famosa
negociante do trato atlântico, Ana Joaquina dos
Santos e Silva. Depois de algum tempo,
Matheus foi revendido junto com outros
escravizados para uma mulher chamada
Thereza. 349

A partir da Descripção de Henrique de Carvalho, sabemos que o velho Matheus foi


carregador de maxila em Luanda, inclusive servindo o major português na sua primeira
estadia na cidade, entre os anos de 1878 e 1882, conforme já dissemos. 350

A estima que o velho loanda inspirava em diferentes grupos de trabalhadores da


expedição pode ser vista, por exemplo, na viagem que o subchefe Agostinho Sisenando
Marques fez com uma turma de trabalhadores até uma comunidade chokwe, mais

348
Cf.: VERA CRUZ, Elizabeth Ceita. O estatuto do indigenato – Angola – A legalização da
discriminação na colonização portuguesa. Lisboa: Novo Imbondeiro, 2005, p. 132-141.
349
Cf.: HEINTZE, Beatrix. Pioneiros africanos ..., p. 139.
350
Para a fotografia de Mateus junto com duas mulheres e uma criança lundas do Álbum de fotografias
da Expedição, AMNE, 103.3, ver: HEINTZE, Beatrix. Pioneiros Africanos..., imagem XVI.

180
especificamente no momento em que ordenou a marcha de partida e recebeu uma
negativa dos homens por Matheus não ter condições de caminhar:

“Loandas, Malanges e soldados, gritei, a caminho, vamos-nos embora.


- Não podemos, senhor, adoeceu o velho Matheus, e não há de ficar
abandonado no mato, respondeu uma voz do grupo.
- Pouco me importa. Matheus não fica só; acompanham-n'o os
[carregadores] masongos e as praças 49 e 90, disse eu.
Rosna-se e manifesta-se descontentamento. Ouve-se a voz de João
Capangalla, tolo, mas atrevido:
- A gente, senhor, não póde deixar o nosso pae Matheus, é o nosso velho!”351

Nessa ocasião, outro motivo da recusa da marcha também pode ter sido uma espécie de
solidariedade entre os grupos que acompanhavam o subchefe, já que Sisenando
Marques anteriormente vinha disputando forças com os carregadores massongos.

Enfim, não só o velho Matheus como também os outros loandas, devido às suas
atuações, acabaram de pouco em pouco a serem reconhecidos como uma liderança por
todos que se envolveram com o empreendimento português, inclusive pelo chefe
Henrique de Carvalho.

Já perto da mussumba do Kalani, depois que boa parte da expedição por falta de
recursos retornou a Malanje, o major português foi forçado a refletir, com relação aos
loandas e outros trabalhadores mais próximos, sobre o estado de dependência não só da
sua própria sobrevivência, como de todo o projeto da expedição:

“Não direi que esteja completamente só, escrevia eu no Diario, pouco depois
de retirarem os meus companheiros, de 28 mezes successivos de trabalhos,
no coração d'este continente, porque, enfim, commigo quizeram ficar
voluntariamente, o interprete e sua familia, o José Faustino, o Augusto
Jayme, os dez contractados de Loanda [inclusive Matheus], o piloto, seis
carregadores de Malanje, os meus afilhados Henrique, Mario e Filipe, e
essas 156 pessoas da Lunda, que me comprometi a apresentar ás suas
familias na Mussumba; porém, o que é muito peor, é que somos 190 bôccas
que precisamos comer, e faltam-me os recursos indispensaveis para comprar
os alimentos, até para os 26 a que se reduziu a Expedição!
[...]
Mandei chamar de novo, todos os meus companheiros, e fiz-lhes sentir, que
pouco era o que tinhamos para comer, que já estavamos na epocha das
chuvas, e não podiamos contar com o recurso da caça, e portanto, que todos
deviamos esperar o soffrimento da fome. Não eram elles obrigados a arrostar

351
Cf.: MARQUES, Agostinho Sisenando. Expedição Portugueza ao Muata-Ianvo. Os climas e as
producções das terras de Malange à Lunda ... Lisboa: Imprensa Nacional, 1889, p.390.

181
contra mais sacrificios e privações por minha causa, estavam todos muito a
tempo de retirarem e alcançarem a Expedição, que se demorava em Calamba
Cassênga, fazendo fornecimento de farinhas e de bombós.”352

Na resposta a estas quase súplicas do chefe da expedição, ao confirmarem o seu


propósito de continuar com a expedição, os companheiros de Carvalho fizeram questão
de reafirmar o seu estatuto de pessoas livres, já que acentuaram a vontade própria no
cumprimento – e diríamos extensão – do contrato acordado com o angana major:

“responderam: somos todos voluntarios, fômos contractados pelo angana


major e só regressaremos com nosso amo; se algum de nós morrer, é sorte; a
nossa obrigação é acompanhar o angana major á Mussumba, visto que, quer
lá ir, e comer para o homem, (o homem era eu) sempre se há de arranjar.”353

Deste modo, Henrique de Carvalho, frente a esta situação, acabou por expressar, e até
de maneira acusatória, parte do que há de implícito em seu discurso colonialista, o
reconhecimento e a dependência europeia do trabalho africano:

“Bons rapazes; nunca esquecerei as provas de defferencia, que ainda nas


occasiões as mais criticas, fiquei devendo a estes meus companheiros!
Que me importa a côr, a sua origem, o seu nascimento, a sua humilde
posição, o seu estado social e d'onde vieram! Sei que são homens de
sentimentos, que fracos e abatidos pela fome se esforçavam a derrubar
palmeiras, para irem em seguida cozinhar os palmitos, ou arrancavam as
raízes da terra, até poderem encontrar tuberculos, que coziam em água, para
me alimentarem; que além de muitas outras condescendências e
considerações de respeito, que individuos esfaimados e desalentados, em
regiões civilisadas, só como virtude, por excepção, as podem ter por outrem,
eu as tive, de uma abnegação de seus proprios interesses, para me salvarem
das vascas da morte, que, quase de mim se ia apoderando, quando já
supponha ter terminado a minha missão!
Quanto se enganam aquelles que na Europa, compulsando no seu gabinete
um ou outro caso isolado, narrado pelos viajantes africanos, d'estes
pretendem deduzir que os prêtos são entes desnaturados!” 354

Em suma, se para Henrique de Carvalho os contratos escritos realizados com os loandas


serviram para a defesa das acusações aos portugueses de práticas escravistas, para
homens como Matheus e os outros loandas, o mesmo documento significou o registro
da situação social deles enquanto homem livre, mesmo que chamado de serviçais ou

352
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol.IV, p. 8.
353
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol.IV, p. 11.
354
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol.IV, p. 11-12.

182
indígenas pelo discurso colonialista, e da posição de liderança dos mesmos frente aos
outros trabalhadores arregimentados ao longo da viagem, algo, aliás, previsto nas
obrigações contratuais: do serviço de vigia e defesa das cargas, e só fazendo o serviço
de carregador quando houvesse falta de pessoal para este trabalho.

Assim, é nesta perspectiva que o nosso estudo, ao objetivar reconstituir aspectos da vida
cotidiana dos trabalhadores da expedição portuguesa ao muatiânvua, acaba por cuidar
também do sentido do controle social português. Ou ainda, nas palavras do historiador
moçambicano Elísio Macamo:

“o trabalho pode ser definido como uma relação social que é tanto o
conteúdo como o resultado desta ação social. Neste sentido, a relação entre o
trabalho e a ordem social é mais encarada como uma tentativa de ordenar as
relações com base nos conceitos e práticas de trabalho. [Portanto, nas
questões] da obrigação de trabalhar [...] e da consideração realista do papel
desempenhado pelos africanos [...] devem ser reconhecidas as influências
externas, como parte de mundo real [...] E é precisamente neste ponto que o
trabalho torna-se um interessante ponto de partida para discutir questões de
mudança social, pois é de fato com a mudança social que estamos
lidando.”355

Seguindo esta linha de raciocínio, inferimos que, de uma forma mais generalizada, a
noção de mukanda ou mucanda, um termo que encontramos no relato de Henrique de
Carvalho como em outras fontes da época, pode ter alcançado um sentido mais
profundo no entendimento de contrato dos trabalhadores centro-africanos.

O sentido social da mukanda

Pela literatura antropológica, mukanda é a palavra utilizada para os ritos de circuncisão


dos meninos das sociedades Lunda, Luvale, Chokwe, Luchazi e Ndembu, este último
estudado por Victor Turner.356 Embora não consigamos dar conta da complexidade que
envolve estes ritos, no geral sabemos que são processos iniciatórios que objetivam a

355
Cf.: MACAMO. Elísio S. Denying Modernity: the Regulation of Native Labour in Colonial
Mozambique and its Postcolonial Aftermath.” In: MACAMO, Elísio S. Negotiating Modernity –
Africa Ambivalent Experience. London: Zed Books, 2005, p. 67-68. (Tradução nossa)
356
Para tanto ver: TURNER, Victor. Florestas de símbolos. Aspectos do ritual Ndembu. Trad. Paulo
Gabriel H. R. Pinto. Niterói: EdUFF, 2005.

183
inserção social do menino como um novo membro apto aos direitos e deveres de sua
comunidade, como algo que marca seu pertencimento social ou identidade.

Na Lunda no tempo da expedição, como rito de passagem a mucanda foi descrita por
Carvalho como sendo a „casa distante da povoação, onde os rapazes se conservam em
liberdade com os companheiros, mas não tendo relações alguma com o exterior‟ e
também para se referir a um determinado grupo de iniciados, „a mucanda de tal epocha‟
que era

“assignalada por algum facto extraordinario, podendo até ter um nome de


animal não vulgar, morto na occasião por um caçador, o nome d'este
caçador, o nome de algum outro animal que tenha causado desgraça
devorando alguma pessoa, como o jacaré, o leopardo, a onça, etc., um nome
que se deu a uma visita estranha, á escassez de um genero de producção, que
dizem fome de tal producto, etc. A ceremonia termina pelo corte do
prepucio.
Em toda a região da Lunda ninguem pode ser senhor de Estado sem ter
passado por essa operação.”357

Nas fontes arroladas, mukanda também é a autorização dos chefes políticos para os
estrangeiros fundarem em suas terras casas de negócio, tal como foi o caso das estações
civilizadoras construídas por Henrique de Carvalho: o termo mucanda aparece, por
exemplo, no tratado realizado entre o major português e o Caungula Muata Xá Muteba,
em outubro de 1885, com a presença do muatiânvua eleito Xa Madiamba, que consentia
na instalação da „Estação Luciano Cordeiro‟ nas suas terras.

Sobre o terreno onde foi edificada a estação, o Caungula e o Muatiânvua diziam não
poder vender „o que há muitos annos a Lunda considerava propriedade sua‟:

“Está feita uma boa casa e por isso todos nós temos muita esperança que
Muene Puto não deixará de mandar para ella quem venha negociar e ensinar
o povo d'esta terra. O nosso Muatiânvua deseja que se escreva a Muene Puto
e se lhe participe que está feita a casa em terra que cedemos de bom grado a
Muene Puto para esta se fazer; e eu tambem desejo que elle saiba que muito
estimo que mande pára ella seus filhos e emquanto não vierem para cá
mandarei um homem que tome conta della e a conserve sempre limpa e em
estado de ser devidamente occupada por quem elle mandar. Isto que eu

357
Cf.: CARVALHO, Henrique A.D. Ethnographia e História ..., p. 447-448.

184
desejo, desejam tambem os do meu Estado e por isso presto o meu nome
para a Mucanda (escripto) que o sr. Major já nos leu.
Aos interpretes se repetiu que transmittissem novamente, que eram desejos
da Expedição comprar o terreno não por elles, mas porque no futuro seus
herdeiros talvez mal aconselhados, não quizessem confirmar a concessão
agora feita e tanto pelo Caungula, directo senhor destas terras como pelo
futuro Muatiânvua, já por elle como tal recebido e considerado, foi repetido
que uma futura interpretação differente do acto que estamos praticando se
não podia dar pelos seus herdeiros e que se fechasse a mucanda”.358

Mukanda também recebeu um significado mais geral de contrato comercial ou de


crédito como uma prática alargada entre as populações da África centro-ocidental.
Podemos perceber o funcionamento deste processo nos casos de contratação de grupos
de carregadores. Como na vez que o chefe do concelho de Malanje contratou alguns
grupos para levar suprimentos à expedição acampada na margem direita do rio Cuengo.

Esta caravana liderada pelo empregado português da expedição, Augusto Cesar, era
composta de 200 pessoas, sendo 106 carregadores com suas mulheres e quibessas
(ajudantes de carregadores, na maioria das vezes meninos que estavam aprendendo o
ofício) distribuídos em grupos de cada sobado da região de Malanje.359

Sobre a chegada desta comitiva, com cerimônia de boas vindas, e a aceitação do chefe
da expedição destes trabalhadores por meio das mucandas, Henrique de Carvalho
relatou:

“A chegada d'aquella comitiva, como é bem de deprehender, era um sucesso


importante de que se esperavam optimos resultados, por isso imagina-se qual
foi a satisfação que de todos nós se apoderou logo que os primeiros
carregadores se avistaram ao longe.
Todos os rapazes que estavam no acampamento principiaram a disparar as
suas armas, indo logo uns enfeitar a ponte com lenços e retalhos de chita de
diversas côres, outros vestir o que tinham de melhor e pedir-nos algumas
cargas de polvora para saudarem condignamente os antigos companheiros
que caminhavam no couce da comitiva com Augusto, o qual vinha montado
num boi, e os que faziam parte da musica lá foram para a entrada da ponte
com os seus instrumentos.
Pode dizer-se que entre o gentio era esta uma manifestação imponente, e
naquelle dia ficaram logo esquecidos os sacrificios, privações e trabalhos
que todos até ali tinham soffrido no cumprimento dos seus deveres. Já não

358
Auto de inauguração escrito pelo primeiro intérprete da expedição Antonio Bezerra de Lisboa, para
tanto ver: Lisboa, Antonio Bezerra de. Auto da Inauguração da Estação Luciano Cordeiro, de 31 de
outubro de 1885. In: CARVALHO, Henrique A. D. A Lunda ... p. 78-88.
359
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. II, p. 414.

185
havia desgostos, e os soffrimentos referiam-se apenas para justificar a alegria
de que todos estavam possuidos.
A comitivia veiu chegando por grupos com os seus cabeças, e os
carregadores iam collocando as cargas na arrumação devida em local
reservado que se lhes destinou. Atrás dos grupos de cada sobado
apresentava-se-nos o representante do respectivo soba entregando-nos uma
mucanda d'esse potentado, que principiava invariavelmente pelos protestos
de submissão a Muene Puto, desejos que tinha em bem os servir,
recommendando á sua protecção os seus filhos, e terminava sempre
esperando que nós agradecessemos os serviços d'elles, e não nos
esquecessemos no regresso de o contemplar a elle soba com uma boa
gratificação e com roupas para se vestir.”360

Embora a citação seja longa, é necessária para dimensionarmos o momento festivo que
marcava a chegada de caravanas com suprimentos nos acampamentos da expedição e a
prática da contratação (neste caso, mais da aceitação por Henrique de Carvalho) dos
carregadores, que pressupunha a entrega pelo líder de cada grupo, o cabeça dos
carregadores, de uma mucanda em nome de seu soba ao empregador.

Com relação à mucanda, pela prática já costumeira, ela tinha todo um protocolo: o
início invariável de protestos de submissão a Muene Puto e o pedido de proteção dos
carregadores e o fim com os pedidos de pagamentos para os filhos, os carregadores, nos
agradecimentos aos serviços deles e para os sobas, na gratificação e com roupas para
se vestir.

Como carta ou bilhete de recomendação, esta prática visível na Descripção era ainda
mais alargada:
 Como no bilhete deixado em Carima por um soldado da expedição que
recomendava a Henrique de Carvalho a compra de um boi, „como cousa muito
boa‟. (Descripção, vol. I, p. 184);
 No bilhete de Wissmann, chefe da expedição alemã, que recomendou a
Henrique de Carvalho o Cacuata do Muatiânvua Tâmbu e pedia que o protegesse
„no negócio que pretendia fazer em Malanje, e em troca ficava a disposição
para acompanhar a expedição até a mussumba, podendo os seus rapazes
transportar alguma carga‟. (Descripção, vol. I, p. 316-317);

360
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção ..., vol. II, p. 435-436.

186
 Na vez que Henrique de Carvalho deixou um bilhete a Mona Quinhangua para
entregar a um cabo de carregadores que vinha atrás do chefe da expedição com
suprimentos para que este lhe desse um garrafão pequeno de aguardente como
„presente‟ em troca da sua boa recepção. (Descripção, vol. I, p. 391);
 Na povoação de Mulolo Quinhângua, o chefe Henrique de Carvalho em troca da
acolhida na sua terra entregou „um pouco de cognac do nosso cantil, uma peça
de chita, outra de riscado e um bilhete para que o nosso intérprete quando
passasse, lhe entregasse duas garrafas de aguardente, com o que elle ficou
muito satisfeito.‟ (Descripção, vol. I, p. 460);
 Ou a possibilidade da não contratação de trabalhadores sem o bilhete de
recomendação ou apresentação por alguém conhecido: como na vez que „uns
rapazes que pretendiam logo ser contractados, porém como o soldado não
vinha na sua companhia, nem trouxessem um bilhete, dissemos que esperassem
pelas noticias que devia mandar o senhor capitão‟. (Descripção, vol. II, p. 195);
 No bilhete de Henrique de Carvalho para o subchefe Sisenando Marques para
aceitar os dois carregadores do Canapumba, o Cacuata Andumba: „dissemos a
Canapumba que fosse com elles ao acampamento do sub-chefe, a quem num
bilhete que demos ao mesmo Canapumba recomendámos que segundo as forças
de cada um lhes distribuisse cargas mas em caixas, e que depois d'esse serviço
feito lhes fizesse sentir pelo interprete que nós pagariamos rações, mas só na
vespera do dia em que se declarassem promptos para partirem com o sub-chefe,
ás ordens de quem haviam de marchar até ao Caungual.‟ (Descripção, vol. II,
p. 491);
 Ou a mucanda como um „salvo-conduto‟: como desculpa utilizada por Henrique
de Carvalho aos carregadores do Songo que não mais queriam permanecer junto
da expedição: „Á noite voltaram a procurar-nos para se despedirem, dizendo
que retiravam por que tinham fome. Não podem retirar, porque os portos estão
fechados, lhes dissemos, e se forem para o Lubuco serão lá agarrados pelos
nossos amigos Allemães; nós com estes em Malanje estabelecemos - que vendo
passar os carregadores d'elles, e elles os nossos, se não apresentassem
mucanda, seriam presos.‟ (Descripção, vol. II, p. 712);
 A mucanda como insígnia de poder ou, nos termos portugueses, de louvor:
quando Augusto Jayme pediu a Henrique de Carvalho que em troca dos

187
trabalhos na expedição ele lhe passasse uma mucanda como capitão de Sua
Magestade: disse ele, „falta-me a mucanda (decreto) mas o sr. Major sendo feliz
nesta viagem há de arranjá-la. É o ganho que eu venho buscar no serviço da
Expedição de Sua Magestade‟. (Descripção, vol. II, p. 319);
 O pagamento por Henrique de Carvalho de dívida contraída por Sisenando
Marques com Anguvo: „O Anguvo entregou-me um bilhete aberto, que o sub
chefe lhe deixara quando aqui passou, para que eu o gratificasse por elle o ter
recebido muito bem e lhe facultar a passagem do rio nas suas canoas, tendo a
certeza de que chegara ao seu sitio sem recursos alguns, para lhe pagar taes
serviços. Tambem Anguvo deu ao interprete uma arma da Expedição, dizendo
me que o Vunje lha entregara de penhor para passar o rio, porque ia de minha
ordem buscar cargas de fazendas e aguardente com que eu o queria presentear
e aos seus.‟ (Descripção, vol. IV, p. 584-585);
 Mas também na carta do carregador Xavier a Henrique de Carvalho, que
apresentamos, pedindo atestado de bom comportamento e outra para sua
segurança na viagem de volta até a sua terra. (Descripção, vol. IV, p. 722-723).

Constatada a existência de tal sistema de crédito adaptado também à escrita podemos


os presentes
relativizar as denúncias dos viajantes europeus de extorsões praticadas pelos chefes
africanos quando passavam por sua região e lhe eram exigidos „presentes‟. Estes
presentes, neste sentido, devem ser pensados como pagamentos em troca de serviços
prestados ao viajante: lugar para acampamento, canoas para travessias de rios, guias
para vias difíceis, alimentação etc.

Portanto, as aludidas extorsões não eram fruto da pura sovinice dos dirigentes políticos
africanos, mas consequência de possíveis infrações a este sistema de crédito: a
compensação para a falta de um viajante que podia ser buscada no próximo que
passasse – como também observou Henrique de Carvalho, apesar de seu discurso
comum de viajante europeu:

“E não devem extranhar os leitores que assim succedesse, quando nesta


publicação por vezes lhe tenho feito sciente, dos pretextos, alguns puramente
imaginarios, de que se servem os potentados gentilicos, para justificarem as

188
extorsões que fazem a uma comitiva de commercio que passa, attribuindo-os
a uma outra ou apenas a um negociante, que passou annos antes.”361

Enfim, o expedicionário sobre este sistema de crédito afirmou terem sido os „Cassanjes
e os Ambaquistas os introductores d'este aperfeiçoamento, a que chamam fundo, e os
Lundas mucanda‟:

“A carta que transita em mão de qualquer portador no interior, além de


encerrada no seu involucro fechado, é envolvida em papeis, para não se
enxovalhar, e depois em pedaços de fazenda e ainda em folhas seccas
amarradas com fibras. É ao conjuncto d'esses resguardos, que elles chamam
por analogia mucanda, e tanto que o papel, que conhecem servir para
involucros, tambem denominam mucanda, e quando seja destinado para
cartas dizem mucanda uá sanhica (papel de escrever) e para cartuchos de
polvora, uá difanda, de missanga, uá kassangassanga.
[...]
Do Cuango para a costa dizem soneca (soneka). Muitos já dizem papéle; e
alguns já lhe applicam o vocabulo ibubulo „folha de palmeira‟, em que
escrevem os Ambaquistas.”362

Os loandas e a devoção a Nossa Senhora da Muxima

... Se uamgambé uamga uami


Gaungui beke muá Santana

Se dizes que sou feiticeiro


Leva-me então a Santana 363

Importante marcador da paisagem próxima da cidade de Luanda até os dias atuais é a


igreja de Nossa Senhora da Conceição de Muxima. De acordo com as categorias
propostas por Isabel de Castro Henriques, discutidas no capítulo anterior, constitui
poderoso recurso imagético e material angolano, no qual se justapõem os aspectos
religioso ou sagrado, fabricados e históricos.364

361
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. IV, p. 584.
362
Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Ethnographia e História ..., p. 215.
363
Parte da letra da música Muxima, que embora não se possa apontar um autor em específico é
fortemente associada ao trabalho do grupo Ngola Ritmos.
364
Sobre as categorias de análise dos espaços angolanos propostas por Isabel de Castro Henriques, ver:
A materialidade do simbólico: marcadores territoriais, marcadores identitários angolanos (1880-1950).

189
De acordo com Henrique de Carvalho, a denominação muxima significava coração
tanto em kimbundu como nas línguas dos povos lundaizados que também empregaram
o termo para aquilo que está dentro e não se vê e para vontade, porque o coração é que
dirige todas as suas acções, conforme no provérbio lunda, qui alundu o muxima,
muzumbu ca quí tangiê-a: o que o coração guarda, não o diz a boca, ou ainda, nem
tudo o que sentimos se diz. 365

O presidio português da Muxima, do qual fazia parte a igreja, foi fundado em 1599 na
margem esquerda do Kwanza nas terras, para os portugueses, mal seguras da
Quissama, a vinte e oito léguas do mar e dezoito de Calumbo, pelo capitão Balthazar
Rebello de Aragão, que o construiu á sua própria custa no tempo de governador João
Furtado de Mendonça. Ainda no tempo do administrador colonial Lopes de Lima, na
primeira metade do XIX, a igreja tinha „boas imagens, e paramentos, e quantidade de
escravos para o serviço da mesma e também bastante prataria para o ornato della.‟ 366

A importância da igreja para as populações da região, inclusive para os kisamas, foi


atestada por diferentes agentes ao longo do XIX, como, por exemplo, pelo funcionário
da administração angolana Manoel Francina, que em viagem ao Cazengo, no final de
1846, chegou a anotar notícias de milagres promovidos pela santa protetora da igreja:

“bastante espaçosa, coberta de telha, na proximidade do rio, na margem de


Quissama, onde foi situado o Presidio, e que por fórma alguma se deverá
deixar perder, não só por ser um Templo religioso, como porque pela muita
crença do gentio nos milagres de Nossa Senhora da Conceição de Muxima,
que se diz ora pestanejar, ora ter apparecido um dia fóra da igreja na praia,
por occasião de ter sido agarrada por um jacaré uma preta que lhe havia sido
offerecida, e que fôra lavar diversos objectos da igreja, a qual appareceu
logo sem damno, e o jacaré morto; e ora finalmente em diversas guerras,
decidindo as acções a favor d'aquelles que mais confiavam n'ella, vem de

Textos de História: Revista do Programa de Pós-Graduação em História da UNB, Brasilia: UnB, v. 12,
n. 1-2, p. 9-41, 2004.
365
Cf.: CARVALHO, Henrique A.D. Méthodo prático para fallar a língua da Lunda ..., p. 111 e 158. O
provérbio citado foi utilizado por Henrique de Carvalho como epigrafe do capítulo XVI, do quarto
volume da Descripção, que trata da volta da expedição à cidade de Malanje, e talvez seja uma alusão
ao seu desgosto por saber das acusações que vinha sofrendo por parte da imprensa e do governo
portugueses pela demora e gastos da expedição.
366
Cf.: LOPES DE LIMA, José Joaquim. Ensaios sobre a Statísticas das Possessões Portuguesas na
África Occidental e Oriental. Vol. III: Angola e Benguela, Imprensa Nacional, Lisboa, 1846, p. 13 e
152.

190
quando em quando tributar cera e azeite; sendo um dos fortes motivos e
talvez o principal que o contém, e esses receios de todo desapparecerão se
ella se deixar caír.” 367

Assim, mesmo com a tradição de quase quatro séculos de resistência dos kisamas ao
domínio português, a crença na santa fazia com que a região da Muxima não sofresse
ataques devastadores, como notou o comandante José Francisco da Silva, já que a
localidade sem uma força regular capaz de resistir a investidas armadas devia sua
proteção à grande ascendência da Nossa Senhora: “e se até hoje não tem havido da
parte do gentio alguma invasão d'aquellas terras, que elles consideram suas é á
Senhora de Muxima que se deve [...] e não ao nome português." 368

Interessante no caso deste importante marcador territorial foi que sua construção e
manutenção ao longo do tempo dependeram do reconhecimento tanto de portugueses
quanto das populações locais, como símbolo de professamento da fé católica e das
crenças kisamas.

Embora não consigamos perceber as razões de Balthazar Rebello de Aragão para


construir precisamente nesta localidade o presídio que ensejou, conforme o costume
português, a edificação da igreja, a questão é que essa mesma região ou tomou um
sentido de sagrado para os kisamas, a partir da presença da santa da Muxima, ou pelo
contrário, renovou e aumentou este sentido, que preexistia.369

367
Cf.: FRANCINA, Manoel Alves de Castro. Viagem a Cazengo pelo Quanza, e regresso por terra,
pelo sr. Manuel Alves de Castro Francina, em dezembro de 1846. Annaes do Conselho Ultramarino
(ACU). Parte não-oficial. Lisboa: Imprensa Nacional, 1ª. série, 1854-58, 1867, p.455.
368
Cf.: Relatório do comandante da corveta Affonso d'Albuquerque, José Francisco da Silva, ao
governador-geral Francisco Joaquim Ferreira do Amaral, assinado de Luanda, 10 de novembro de
1885. In: OLIVEIRA, Mário António F. Angolana. (Documentação sobre Angola). Luanda; Lisboa:
Instituto de Investigação Científica de Angola; Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1971, vol.
II (1883-1887), p. 854. Constatada essa ascendência, em ofício ao ministro da marinha e ultramar, que
encaminhava cópia do mesmo relatório do comandante J. Francisco da Silva, o governador-geral
defendeu a conveniência da reforma da igreja da Muxima em virtude dela ser "um bom elemento de
dominação sobre o gentio da Quissama". Para tanto, ver: Ofício nº. 503 do governador-geral de
Angola, Francisco Joaquim Ferreira do Amaral, para o ministro e secretário de estado dos negócios da
marinha e ultramar, sobre incidentes em Calumbo, 11 de novembro de 1885. In: OLIVEIRA, Mário
António F. Angolana ..., vol. II, p. 852.
369
Intrigante neste sentido é a análise do historiador Luís Felipe Alencastro de Baltasar Rebelo como
um homem experiente das coisas da terra onde desembarcara em 1592, que ficou conhecido como
Bangalambota ou 'pau-ferro', nome pelo qual os ambundos quiseram definir sua dureza na vida
sertaneja. Cf.: ALENCASTRO, Luis Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico
Sul. São Paulo: Cia das Letras, 2000, nota 115, p. 409.

191
De acordo com o relato do viajante Joachim J. Monteiro, na década de 1850, havia perto
da Muxima, em direção a cidade do Dondo,

“um penhasco perpendicular, no sopé do qual corre o rio [Kwanza]. Este é


chamado de 'Pedra dos Feiticeiros', e é a partir dele que os Quissamas
lançam ao rio os desgraçados acusados de feitiçaria. Primeiramente eles são
golpeados na cabeça por uma vara e depois jogados do penhasco para
garantir que não escapem dos jacarés nadando até a margem.” 370

Ainda segundo o mesmo viajante, Nossa Senhora da Muxima inspirava uma grande
veneração até mesmo em pessoas de regiões distantes e era considerada um 'grande
feitiço'. Dos peregrinos que iam até a igreja em busca de prosperidade foi mostrada a ele
uma caixa cheia de oferendas com correntes, anéis e outros objetos.

Se concordarmos com a tese da historiadora Rosa Cruz e Silva, em seu estudo sobre a
urbanidade antiga das regiões ao longo do rio Kwanza, no qual atribuiu importante
papel para o sal extraído das minas da Kisama nas relações comerciais entre várias
regiões da África centro-ocidental, tais como o Ndongo, Kongo, Loango e até a Lunda,
poderemos encontrar talvez algum sentido na difusão da crença a Nossa Senhora da
Muxima associada ao comércio de longa distância. 371

Interessante neste sentido, sobre as devoções negras e o catolicismo centro-africano, é a


são benedito afirmação de Lucilene Reginaldo sobre a popularidade das devoções marianas e a São
Benedito no contexto da colônia portuguesa angolana. Sobre este último santo, „nascido
na Sicília em 1524, de pais escravos mouros‟, a historiadora nos informa sobre sua
presença desde „o final do século XVII, em altar da Igreja do Rosário de Luanda, na
periferia da cidade [e] no presídio de Massangano, [onde] foi homenageado com uma
igreja própria‟. 372

370
Cf.: MONTEIRO, J.J. Angola and the river Congo. London: Macmillan and Co., 1875, vol. II, p. 123
e 128 [tradução nossa].
371
Para tanto, ver: SILVA, Rosa Cruz. O Corredor do Kwanza: a reurbanização dos espaços - Makunde,
Kalumbo, Massango, Muxima, Dongo e Kambambe. Séc. XIX. In: A África e a instalação do sistema
colonial (c.1885-c.1930). Actas da III Reunião Internacional de História de África. Lisboa: IICT, p.
157-173, 2000, p. 162-163, especialmente.
372
Cf.: REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: irmandades negras, experiências escravas e
identidades africanas na Bahia setecentista. Campinas, 2005. Tese (Doutorado em História). IFCH,
Unicamp, p.38-39.

192
Outro resgate importante da historiadora é sobre a „lenda‟, que obteve nos escritos de
Antonio Cadornega: „de que a mãe de São Benedito era, na verdade, natural de
Kisama, no Reino de Angola, [o que sugere, completa Lucilene Reginaldo] um caminho
para a identificação com o santo, além daquela em decorrência da semelhança
física‟.373

Seja como for, no processo de apropriação de aspectos culturais dos europeus, no caso
da crença católica à santa da Muxima, é necessário que reconheçamos a presença das
noções de sagrado próprias das populações locais, até como um modo de continuar a
praticar estas noções.

Isto é, na expressão de Isabel de Castro Henriques: na coabitação conflitual das crenças,


a busca da ventura por meio da proteção de nossa senhora contra os prejuízos causados
pelos feitiços. E talvez aí esteja o sentido profundo e de resistência da letra da música
Muxima, em destaque na epígrafe deste texto, que no início dos anos de 1950 foi o tema
da abertura do programa de rádio Angola Combatente. 374

Muxima ...

Assim como boa parte da população de Luanda, os contratados da expedição portuguesa


ao muatiânvua também tinham devoção à santa da Muxima. Quando em junho de 1884,
o vapor Serpa Pinto aportou na região, para receber um passageiro para Massangano,
os loandas:

“... como fossem devotos da imagem de Nossa Senhora que ahi se venera,
traziam já de Loanda vassouras, para varrer a capella e vélas de cera e ainda
373
Cf.: REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas ..., p.39. Instigante seria, talvez, levarmos em
conta a aproximação física e simbólica da igreja da Muxima com a região da „Pedra dos Feiticeiros‟ e a
lenda da mãe de São Benedito ser natural da mesma região, já que São Benedito, por exemplo, em
outras partes do mundo atlântico, como o Rio de Janeiro, era associado pelos escravizados às questões
de cura nas seções de ordálio para detectar feitiçaria. Cf.: KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no
Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Cia das Letras, 2000, p.373.
374
Citando Marcelo Bittencourt, a pesquisadora Marissa J. Moorman, afirma que Muxima, no mesmo
programa da rádio, foi logo depois substituída pelo hino do MPLA, mas que esta canção que evoca o
ambiente cultural dos anos 1950 ainda foi por algum tempo considerada o hino angolano, trocada
somente em 1975 com a instituição do estado nacional e a oficialização de Angola Avante Revolução
como hino da nação. Cf.: MOORMAN, Marissa Jean. Intonations: a Social History of Music and
Nation in Luanda, Angola, from 1945 to recent times. Ohio: Ohio University Press, 2008, p.121-122.

193
outras cousas para depositarem aos pés d'aquella tão afamada imagem,
implorando-lhe uma boa viagem até á Mussumba e que os livrasse de
perigos e grandes trabalhos, e permitisse que regressassem todos com
saude.” 375

Embora tivessem a permissão


do chefe da expedição para
fazerem a cerimônia de lavação
da igreja, não puderam os
loandas realizá-la, uma vez que
o capitão do vapor não estava
disposto a esperar – nem por
meia hora! – porque queria
adiantar a carreira com receio
que lhe faltasse água no Dondo, isto é, que em alguns pontos do rio Kwanza faltasse
água suficiente para o vapor navegar.

Chegando à parada seguinte, no porto conhecido como Cunga, os loandas indo lamentar
para o capitão de segunda linha João Rebello, de boas e antigas relações com Henrique
de Carvalho, da contrariedade que sentiam e da situação em que os colocara o
comandante do vapor, não lhes permitindo que fossem a Muxima levar as suas
oferendas, conseguiram desta autoridade a promessa dele mesmo ir na manhã seguinte,
á outra banda do rio, satisfazer esse compromisso religioso. 376

Tal contrariedade vivenciada no início da viagem foi lembrada pelos loandas quase três
anos depois, quando na mussumba, Henrique de Carvalho ficou muito doente de febres,
– conforme o próprio expedicionário anotou em seu diário, em 11 de abril de 1887:

“... Os contractados de Loanda teem velado por mim ficando dois de noite ao
meu lado sem se deitarem. Por mais de uma vez me teem forçado a fallar, e
me teem lembrado a esposa e filhos, e insistido para que eu tome algum
alimento e não me deixe morrer. [...] Reanimavam-me, despertavam-me da
somnolencia com agua fria, e mostravam-me a necessidade de reagir contra
o mal, de viver, a fim de que elles me pudessem entregar em Loanda ao
governador geral, e este me mandar para Lisboa. Tanto elles como os lundas

375
Para a citação e a gravura da região da Muxima, com destaque da igreja, ver respectivamente:
CARVALHO, Henrique A.D. Descripção ..., vol. I, p. 90 e 93.
376
CARVALHO, Henrique A.D. Descripção ..., vol. I, p. 95-96.

194
que para aqui fugiram teem sido incansaveis em procura de caça para mim; e
Marcolino que conseguiu matar tres passarinhos depois de tantos dias de
buscas infructiferas ferveu-os em agua, e muito satisfeito pediu-me para que
a bebesse, obrigando-me pelas suas instancias a comer os passarinhos. O
meu creado Antonio, que chora como uma criança, já vendeu todos os
pannos que tinha para me comprar bananas e batatas doces, e anda agora
com uma pequena toalha da cara a cobrir-se. O pequeno Filippe não
descança a esgravatar a terra em procura de batatas para o Muata Majolo.
[...] Os interpretes e Loandas chamaram adivinhos, e convencidos que Nossa
Senhora da Muxima se zangou commigo por os Loandas não terem ido
visitá-la como queriam, fizeram-lhe promessas para ella me dar forças e
saude ...”. 377

Tal promessa para apaziguar a zanga da santa da Muxima era a de entregar para o
serviço da igreja um dos afilhados do muata majolo, que como escravo de Nossa
Senhora, tomaria d'ele conta o parocho ou o encarregado da Igreja, para ele a varrer,
limpar, lavar, etc., ser mais um trabalhador para as lavras da mesma, que se diziam de
Nossa Senhora.

Como tal procedimento contrariava todo o discurso do chefe da expedição contra


práticas escravistas, principalmente, porque tal caso poderia abastecer os adversários
dos portugueses de munição para acusar a expedição de promover escravização de
africanos, Henrique de Carvalho tentou convencer os seus loandas a desobrigaram-se da
promessa, comprometendo-se de na volta, em Malanje, conversar com o pároco da
região para substituí-la por outra coisa que agradasse Nossa Senhora, a qual também se
associaria no pagamento, porque “todos os loandas sabiam que presentemente nas
terras portuguezas ninguem podia dispor da vida e dos serviços de seus semilhantes”.

Esta proposta foi respondida pelo cozinheiro Marcolino da seguinte maneira:

“Nós somos pretos, mas não gostamos de brincar com as cousas da Senhora
da Muxima e o Angana Majóri deve ter reparado que todos os nossos
padecimentos, nesta viagem, fomes, doenças, mortes, trabalhos para
podermos chegar á Mussumba, foi devido ao capitão do vapor Serpa Pinto
não nos deixar desembarcar em Muxima e irem os Loandas á igreja levar as
vassouras, escovas, toalhas e velas, que prometteram entregar a Nossa
Senhora, e queriam pedir-lhe que nos desse uma feliz viagem. Era verdade
que o sr. Rebello se offereceu para tudo mandar para a Igreja, mas não
fomos nós que lho levamos e quem sabe se o portador entregou aquellas
cousas. Os rapazes nunca se atreveram a fallar nisto ao patrão, mas em toda

377
Cf.: CARVALHO, Henrique A.D. Ethnographia e História ..., p. 685-687.

195
a viagem, quando succede alguma cousa má, todos se lembram que a
Senhora da Muxima não está contente comnosco.”

O loanda também fez questão de lembrar a Henrique de Carvalho que não era nenhum
gentio e percebia bem que o majolo não aprovaria a promessa feita porque significava a
escravização de um rapaz. E afirmou ainda, como que rebatendo o discurso do chefe da
expedição, que sabia da possibilidade, mesmo havendo a proibição de comercializar
escravos imposta pelas autoridades portuguesas, do mesmo rapaz ser vendido por quem
dele tomasse conta:

“que podia ser um bom homem, mas também podia ser mau e ir vende-lo ás
occultas das autoridades, e Nossa Senhora ficava sem os seus serviços, como
já ficou sem os de muitos escravos, ouro e pratas, que tinha de promessas de
pessoas ricas de outros tempos. [...]
Deu isto logar a um certo numero de perguntas da parte de Marcolino,
admirando-se muito da maldade dos que se atreviam a roubar o que era de
Nossa Senhora, e com isto me entretive, emquanto com muito apetite estava
honrando os seus merecimentos na arte da cosinha, dizendo elle, como de
costume, se a comida tivesse todos os temperos necessarios, veria eu do que
elle era capaz.” 378

Outros eventos fizeram com que os loandas lembrassem a Henrique de Carvalho da


promessa a Muxima, porém tal situação aparentemente se resolveu quando em Malanje,
no retorno da viagem, eles puderam contribuir com o Te Deum realizado em ação de
graças pelo regresso da expedição a salvo, com o altar sendo iluminado por conta
d'elles. 379

Deste modo, a igreja da Muxima, mesmo sendo uma fabricação do território colonial,
constituiu um rito literal de passagem em prol da prosperidade da expedição portuguesa
à mussumba do muatiânvua e uma vez não realizado representou para os loandas a
causa dos problemas enfrentados na viagem, diferente de como entendeu Henrique de
Carvalho, que apontou a guerra entre lundas e chokwes e as „artimanhas‟ dos chefes
políticos envolvidos nela como entraves para o desenvolvimento de sua missão.

378
Sobre os excertos que tratam da promessa dos loandas à N.S. da Muxima para Henrique de Carvalho
sobreviver à doença, ver: CARVALHO, Henrique A.D. Descripção ..., vol. IV, p. 416-420.
379
Cf.: CARVALHO, Henrique A.D. Descripção ..., vol. IV, p. 619.

196
Destacável da fala de Marcolino é que ela também sinaliza o contrário do discurso
colonialista sobre o trabalho africano: já que mesmo sendo eles pretos, entendiam suas
responsabilidades, tanto como crentes em N.S. da Muxima, quanto por seus trabalhos na
expedição – no caso de Marcolino, ao fazer questão, como de costume, de demonstrar o
melhor de sua capacidade como cozinheiro e admirar-se muito da má procedência
daquelas pessoas ricas de outros tempos que se atreviam a roubar o que não era delas,
inclusive os serviços daqueles que serviam a santa da Muxima.

197
Considerações Finais

198
A importância da temática do trabalho africano para a história está além dos
significados tomados com a escravização de pessoas originárias deste continente nas
Américas, durante a época moderna. A relevância está, em nosso entendimento, no
próprio sentido do trabalho como conformador de organização social, que pressupõe em
seu desenvolvimento a ideia de movimento, de conflito, portanto, de história. Uma
história que, com relação às sociedades africanas, negada ao longo do tempo, precisa ser
investigada em todos os seus níveis.

Por partirmos desta premissa que o século XIX foi eleito como baliza cronológica de
nossa investigação, especificamente porque entendemos ter sido esta uma época
seculo 19. significativa quanto aos modos de se tratar o trabalho africano: no plano do discurso, o
debate abolicionista colocando no palco das discussões temas como liberdade humana
em contraposição à escravização dos africanos, e no prático, o século também da
revolução europeia da técnica e da indústria conformando-se na persistência de
imposições de formas de trabalho análogas à escravidão.

Neste quadro complexo, no que se refere aos espaços que conformaram a Angola atual,
para refletir sobre as relações entre as sociedades africanas e os agentes portugueses de
colonização, que cada vez mais se pronunciavam, nos foi necessário investigar sobre o
estatuto do trabalho africano a partir da legislação abolicionista portuguesa por meio dos
escritos dos homens políticos portugueses, como Alfredo Margarido chama os
detentores do poder colonizador em Portugal.

Recuperando propostas metodológicas, como a de Richard Price, que preconizam a


importância da análise conjunta entre memória e evento, no primeiro capítulo, além do
sumário da legislação, o exame dos relatórios, projetos de lei, relatos e estudos
portugueses nos proporcionou a compreensão da colonização dos territórios e do
controle da força de trabalho africanos como parte de um mesmo processo gestado ao
longo do XIX no parlamento luso.

Porém, nos interstícios dos discursos de estadistas como Antonio Saldanha da Gama, Sá
da Bandeira, João Andrade Corvo, Antônio Enes, entre muitos outros, pudemos
visualizar e, quiçá, demonstrar as ininterruptas formas de atuação das sociedades

199
africanas que teimavam afirmar os seus próprios conceitos de liberdade, trabalho e
organização social.

Deste modo, com intuito de avançarmos na compreensão da história social do trabalho


africano para além das generalizações imprecisas e dualistas que, com relação a estes
sujeitos históricos, buscam apontar diferenças entre civilização e barbárie ou
desenvolvimento capitalista e atraso econômico, como percurso investigativo,
apresentamos no segundo capítulo uma análise de parte da produção de intelectuais
portugueses do século XIX. A partir dos diferentes discursos tentamos abarcar as
especificades da obra de Henrique de Carvalho, por nós eleita como fonte principal do
trabalho de homens e mulheres centro-africanos no contexto de partilha dos seus
territórios.

Assim, utilizando o mesmo procedimento analítico de desmontagem de discurso, foi nos


possível visualizar os interstícios presentes na obra de Henrique de Carvalho. Por sua
natureza ambivalente – de desejo pelos espaços africanos e, portanto, de
reconhecimento dos seus protagonismos – estas fissuras permitiram-nos a historicização
de experiências concretas dos trabalhadores da expedição à mussumba do muatiânvua.

Nesta linha argumentativa, o estudo apresentado no terceiro capítulo sobre os caminhos


e a paisagem descritos na obra do major português foi o primeiro estágio para
identificarmos por meio da organização das sociedades contatadas pela expedição –
sejam aquelas de colonização portuguesa antiga, sejam as autônomas, como as
lundaizadas – as experiências dos trabalhadores que a elas se ligavam em termos de

para entender identificação social. Neste sentido, entender os modos da organização política, das
a expedição hierarquias de poder, do controle social do trabalho e da reprodução das riquezas locais
de HC.
foi importante para a compreensão da presença de tensões que emergiram na sociedade
expedicionária chefiada por Henrique de Carvalho.

O perscrutar dos significados destas tensões revelou as concepções de sujeitos históricos


como os loandas, que por sua experiência de escravização na sociedade colonial foi o
os loandas.
grupo que, pelo nosso conhecimento atual, melhor nos deixou perceber suas estratégias
no trato tanto com as autoridades africanas contatadas, quanto com a chefia portuguesa
da expedição.

200
Como tentamos demonstrar no quarto capítulo, ser „filho de muene puto‟ para os
filhos de Mue-
ne Puto: ser li- loandas significava não ser escravo, devido ao contrato de trabalho acordado e
vres, ser devoto
de Muxima, ter registrado em Luanda, como também significava ser devoto de nossa senhora da
prosperidade. Muxima, um símbolo da fabricação do território colonial, mas também um signo de
prosperidade para a sociedade expedicionária, de acordo com os preceitos locais de
ventura por meio da proteção de uma entidade sobrenatural.

A partir do enlace do evento e da memória, entendemos que o percurso seguido em


nossa pesquisa, que culminou na análise do caso dos loandas a partir dos escritos de
Carvalho, significou um movimento duplo de compreensão em direção aos grupos de
trabalhadores centro-africanos da expedição e ao próprio expedicionário português, que
em terras africanas barganharam por sua sobrevivência.

201
Fontes e Bibliografia

202
I. Manuscritos

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)

Documentos pertencentes ao acervo do IHGB citados de acordo com os verbetes publicados em:
WANDERLEY, Regina M. M. P. Inventário analítico da documentação colonial portuguesa na África,
Ásia e Oceania integrante do acervo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. RIHGB. a. 166, n.427,
p.27-570, abr./jun. 2005.

674 - 20/03/1798 - Carta de Joaquim José da Silva, do Presídio de Ambaca, respondendo a d.


Miguel António de Melo, [governador de Angola], sobre os negociantes, comércio e
restabelecimento dos negócios do sertão, diminuição da distância das feiras para melhora a
comunicação e diminuir o número de viagens propiciando o aumento de importações de
escravos para a capital. Informa que a feira de Cassange permanece como o melhor entreposto
de escravos. Col. IHGB DL81, 02.27

675 - 21/03/1798 - Ofício de Francisco José de Lacerda e Almeida, [governador da Vila de


Tete], para o [1º. conde de Linhares] d. Rodrigo Domingos de Sousa Coutinho, [ministro e
secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos] sobre a diligência que
foi incumbido para verificar a possibilidade de comunicação das costas oriental e ocidental da
África e a informação obtida de Gonçalo Caetano Pereira, homem dos sertões, sobre existência
de um rei de nome Cazembé vizinho as terras de Angola, enviado para conquistar as terras do
interior da África, ficando de posse das terras dos movizas. Col. IHGB DL39, 10.01

676 - 22/03/1798 - Ofício de Francisco José de Lacerda e almeida, [governador da Vila de


Tete], para o [1º. Conde de Linhares] d. Rodrigo Domingos de Sousa Coutinho, [ministro e
secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos], sobre as notícias
dadas por Manuel Caetano Pereira, comerciante que se entranhou pelo interior da África até a
povoação ou cidade do rei Cazembé. Col. IHGB DL39, 10.01.01.

855 - c.1810 - Ofício (minuta) do [5º. Conde das Galveias], d. João de Almeida de Melo e
Castro, [secretario de Estado da Marinha e Conquistas], para o sr. Freitas informando ter
remetido um maço de requerimentos e um aviso que deve ser encaminhado à Junta do
Comércio. Anexos minutas do Conde das Galveias sobre a possibilidade da venda do navio
português 'Emulação', sendo prejudicial ou não para o comércio de navegação; dificuldades do
tráfico no interior da África, devido à falta de carregadores pois são espancados por sertanejos e
fogem; e de um plano do [1º.] conde de Linhares [Rodrigo Domingos de Sousa Coutinho,
secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra] utilizando um navio de comércio
de Moçambique para ir às ilhas de França, a fim de examinar o estado de defesa e possibilitar
posterior ataque, em resposta à tomada da fragata 'Minerva'. Col. IHGB DL82, 05.14

1248 - 19/10/1824 a 20/10/1825 - Relação dos ofícios enviados por [Nicolau de Abreu Castelo
Branco], governador de Angola, através da charrua 'Princesa Real', sobre o casamento do
capitão de engenheiros, Henrique Martins Pereira, com uma menina de nove anos, má
administração da justiça em Benguela, a chegada da charrua 'Princesa Real' ao porto de Luanda
com todos os empregados públicos exceto o boticário que faleceu em Benguela, o julgamento
dos capitães Antônio dos Santos Leite e Eusébio Xavier de Morais Resende, comércio de
escravos, marfim, barras de ferro e salitre, as campanhas da Guerra peninsular das Índias
Ocidentais de 1816 a 1818, tratando dos fortes de São Pedro da Conceição de Penedo, porto de
Luanda, Sítio de Calumbo e os presídios de Muxima, Massangano e Cambembe. Col. IHGB
DL76, 02.23.01

203
Projeto Acervo Digital Angola Brasil (PADAB)

Coleção de documentos do Arquivo Histórico de Angola disponível em discos digitais (DVD) que estão
sob a guarda do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)

Correspondência do governador-geral Francisco Joaquim Ferreira do Amaral ao ministério da


marinha e ultramar que trata do pedido de exoneração do padre Antonio Castanheira Nunes do
cargo de missionário da expedição ao Muata-Ianvo. 24 de maio de 1884. PADAB, DVD 19,
AHA Códice 40 -A-9-3, Pasta 78, DSC 00022.

Correspondência do governador-geral Francisco Joaquim Ferreira do Amaral ao ministério da


marinha e ultramar que trata do Auto de vistoria passado ao vapor Cunga da Companhia do
Cuanza. 14 de julho de 1884. PADAB, DVD 19, AHA Códice 40 -A-9-3, Pasta 78, DSC 00087.

Correspondência do governador-geral Francisco Joaquim Ferreira do Amaral ao ministério da


marinha e ultramar que trata do ofício do chefe da expedição ao Muata Yanvo. 14 de agosto de
1884. PADAB, DVD 19, AHA Códice 40 -A-9-3, Pasta 78, DSC 00160 a 00162.

Relatório do governador-geral Francisco Joaquim Ferreira do Amaral encaminhado ao


ministério da marinha e ultramar e que trata de propostas para o abastecimento de água em
Luanda. 14 de maio de 1885. PADAB, DVD 19, AHA Códice 42 -A-9-5, pasta 78, DSC 00233
a 00280.

Correspondência do governador-geral G.A. de Brito Capello ao ministério da marinha e


ultramar remetendo cópia de um ofício do subchefe da expedição ao Muata Yanvo relativos aos
socorros prestados ao major Carvalho. 09 de maio de 1887. PADAB, DVD 20, Pasta 83, Códice
45 -A-10-3, DSC 00107.

Correspondência do governador-geral G.A. de Brito Capello ao ministério da marinha e


ultramar informando os gastos da expedição ao Muata Yanvo. 10 de outubro de 1887. Projeto
Acervo Digital Angola Brasil (PADAB), Pasta 85, Códice 46 -A-10-4, DSC 00033.

II. Fontes Impressas

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

CARVALHO, Henrique A. D. Explorações ao Muatianvo. As Colônias Portuguezas. Revista


Illustrada. Lisboa, 01 de fevereiro de 1883, nº. 2, anno I, p. 15.
-------------------------------------. Escola Profissional de Loanda. As Colónias Portuguezas.
Revista Illustrada. Lisboa, 01 de fevereiro de 1883, nº. 2, anno I, p. 17-18.
------------------------------------. São Thomé - Aquisição de braços. As Colónias Portuguezas.
Revista Illustrada. Lisboa, 01 de maio de 1883, nº. 5, anno I, p. 51.
------------------------------------. Colónias Penitenciarias. As Colónias Portuguezas. Revista
Illustrada. Lisboa, 01 de maio de 1883, nº. 5, anno I, p. 52-53.
-------------------------------------. Hospital de Lourenço Marques. As Colônias Portuguezas.
Revista Illustrada. Lisboa, 01 de maio de 1883, nº. 5, anno I, p. 55.
-------------------------------------. S. Thomé, sua questão vital. As Colónias Portuguezas. Revista
Illustrada. Lisboa, 01 de agosto de 1883, nº. 8, anno I.
-------------------------------------. Timor, abertura de cannaes. As Colónias Portuguezas. Revista
Illustrada. Lisboa, dezembro de 1883, nº. extraordinário, anno I.
-------------------------------------. S. Thomé, seu estado financeiro. As Colónias Portuguezas.
Revista Illustrada. Lisboa, dezembro de 1883, nºs. 10, 11, 12 e extraordinário, anno I.

204
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Biblioteca Florestan Fernandes da FFLCH-USP

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--------------------------------------. Expedição portugueza ao Muatyan-vu-a. Boletim da Sociedade
de Geografia de Lisboa. 6ª. série, nº.3, 1886, p.133-162, 1885.

CORREA, Elias Alexandre da Silva. História de Angola. Lisboa: Agência Geral das Colônias,
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do Dande, fiz às remotas partes de Cassange e Olos, no ano de 1755 até o seguinte de 1756”. In:
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-----------------. Expedição Portuguesa ao Muatiânvua. Meteorologia, Climatologia e
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modo practico de fazer colonisar com vantagem as terras de Angola. Lisboa: Typ. do jornal "As
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-----------------. Expedição Portuguesa ao Muatiânvua 1884-1888: Descripção da Viagem à
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Info: Acervo digital sobre direito Colonial: doutrina; textos legislativos; legislação – direito
constitucional, direito internacional, organização ministerial, organização administrativa,
organização judicial, organização do trabalho; Índices, Repertórios, Coletâneas e Varia.

BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA. Gallica Biblioteca Digital. Disponível em:


http://gallica.bnf.fr/. Último acesso em: novembro de 2010.
Info: Acervo digital da Biblioteca Nacional da França que contém: livros, manuscritos, mapas,
imagens, periódicos, revistas, letras, músicas e partituras.

SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DE LISBOA. Memórias de um Explorador: A Colecção


Henrique de Carvalho da Sociedade de Geografia de Lisboa. Disponível em:
http://socgeografialisboa.pt/projectos/2010/henrique-carvalho/. Último acesso em: novembro de
2010.
Info: Página de conteúdo sobre a Exposição patrocinada pela Fundação para a Ciência e a
Tecnologia no âmbito do Projecto “EXPLORA – A Colecção Henrique de Carvalho:
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http://galenet.galegroup.com/servlet/ECCO. Último acesso em: outubro de 2010.
Info: Acervo da British Library do século XVIII, incluindo livros, manuscritos e mapas.

INTERNET ARCHIVE. Disponível em: http://www.archive.org. Último acesso em: novembro


de 2010.
Info: Acervos digitalizados de diferentes bibliotecas dos EUA e Canadá. Conteúdo: textos,
imagens, filmes, áudios e „softwares‟.

V. Videografia

FURTADO, Joaquim. A Guerra | Colonial | Do Ultramar | De Libertação. Episódios: Baixa do


Cassange. Documentário RTP, 2008. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=I5xGtc8qqJ4 Último acesso em: outubro de 2010.

FARIAS, Paulo Fernando de Moraes. Sahel: a outra costa da África, curso promovido pela
Casa das Áfricas e pelo departamento de História da USP. Disponível em:
http://www.casadasafricas.org.br/site/movies.php?area=talks&action=show&filter=authors&id=
8 Último acesso em: agosto de 2010.

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