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Moda, arte e
interdisciplinaridade
São Paulo
2013
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO
São Paulo
2013
LEILANE RIGATTO MARTINS
Área de Concentração:
Design e Arquitetura
São Paulo
2013
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
CDU 7.067.3
MARTINS, Leilane R.
Moda, arte e interdisciplinaridade
Banca Examinadora
Instituição: ______________________________________________________
Julgamento: _____________________________________________________
Assinatura: ______________________________________________________
Instituição: ______________________________________________________
Julgamento: _____________________________________________________
Assinatura: ______________________________________________________
Instituição: ______________________________________________________
Julgamento: _____________________________________________________
Assinatura: ______________________________________________________
Dedico este trabalho ao meu marido, Felipe Votava Lourenço, com amor, admiração e
gratidão, por todo seu apoio, carinho e compreensão durante o meu Mestrado.
Agradecimentos
Ao meu orientador, Prof. Dr. Sérgio Régis Moreira Martins, que me ensinou com
inteligência e leveza a transitar pela complexidade que se rebate neste mundo que
se descortina para mim e que, sobretudo, ensinou-me a ver o lado bom de palavras
como “contaminação”. Agradeço-o também pelo empenho nas leituras e confecção
desta dissertação.
À contribuição dada em meu Exame de Qualificação pelos professores Dr. Carlos Zibel
Costa e Dr. Pelópidas Cypriano de Oliveira. Suas críticas, considerações e sugestões
foram fundamentais para o amadurecimento da minha pesquisa.
Às indicações iniciais de bibliografia cedidas por Mitisuko Shitara, além das conversas
esclarecedoras.
Ao meu amigo, sempre presente, André Bragança Martins, por quem tenho grande
estima.
Aos meus amigos e colegas da FAU pelo apoio acadêmico e pelas discussões
prolíficas: Iara Pierro de Camargo, Renata Figueiredo, Lina Kamitsuji, André Lacroce
e Ludmila Machado.
RESUMO
This research studied art and fashion trying to relate the two areas of knowledge
through interdisciplinary theories. The main part of the research focuses on the
interdisciplinary study of three acts occurring among contemporary artists Stephen
Sprouse, Takashi Murakami and Vanessa Beecroft produced in collaboration with
Marc Jacobs, creative director of Louis Vuitton. These cases were selected taking into
account the encounter between fashion and art that emphasizes the beneficial action
of the art in fashion product and fashion in art. From these cases are raised issues
pertaining to the fields of art, design and fashion, showing the exchange between
them, in which permeate the complexity that demands an integrative process. There
is interest in investigating which type of interdisciplinarity meets every act and study
them under a philosophical, sociological look and also under some theories of art. It is
understood that the interdisciplinary study of fashion related to other areas contributes
to formalize research in this field.
INTRODUÇÃO........................................................................................................... 8
Arte, design e design de moda – aproximações e distanciamentos........................ 13
Atos Interdisciplinares entre arte e moda ao longo da história................................ 46
1 TEORIAS INTERDISCIPLINARES........................................................................ 79
1.1 Fundamentações, conceituações e metodologias interdisciplinares................. 80
1.2 Sobre a história interdisciplinar.......................................................................... 94
5 CONCLUSÃO...................................................................................................... 148
REFERÊNCIAS...................................................................................................... 151
GLOSSÁRIO.......................................................................................................... 157
ANEXOS................................................................................................................ 162
INTRODUÇÃO
Moda, arte e interdisciplinaridade 9
1 Look é toda produção que uma pessoa veste (ou vestirá) ao mesmo tempo, como, por exemplo,
camisa, colete, saia, meia, sapato e chapéu. Engloba tudo o que ela está usando e, geralmente, visa o
uso de peças coerentes entre si e a um determinado estilo.
Moda, arte e interdisciplinaridade 11
que impõe a substituição cada vez mais veloz dos produtos anteriores por linhas de
produtos mais novos. A obsolescência se intensificou. Nesse sentido, o trabalho do
designer é fundamental como ato que fomenta a otimização técnica e estética do
artefato. E, para tal atuação, ele recorrerá aos dispositivos que tem ao seu alcance:
as máquinas, os materiais, a tecnologia de maneira geral e à sua própria subjetividade
que, no fim das contas, é que revela a essência de seu esforço. Esse esforço, por sua
vez, implica em diferenciação constante que leva a um desgaste repertorial, pois o
designer está quase sempre a serviço de uma empresa que depende de seu sucesso
financeiro para garantir sua subsistência e, indiretamente de seus funcionários, entre
eles o designer.
Nesse contexto, o designer se empenhará em pesquisar, reformular e abstrair
segredos de produção ou de qualquer outra ordem com cada vez mais intensidade em
uma realidade onde o consumo intenso baseado na efemeridade do uso do produto
foi instaurado. Essa relação de desgaste embota a imagem do designer, levando a
crer em alguns momentos que ele é alguém de quem sempre se deve desconfiar,
é alguém que está sempre pronto a enganar. Os conceitos sobre o design ou o seu
materializador humano, elencados por Vilém Flusser, não parecem agora tão absurdos.
Flusser também se refere a outro aspecto basilar do design. A antiga explicação
de arte, que está relacionada à techné (técnica) do grego que, por sua vez, está ligada
à tekton (carpinteiro). O material amorfo, hylé, que receberá o afeto do artista, se
tornará o produto final de sua arte. Assim, o artista é quem provoca o aparecimento da
forma. Artista e técnico eram funções que se fundiam, pois a arte estava em um estágio
essencialmente técnico. Platão considerava esses indivíduos impostores e traidores
das ideias, pois as deformavam ao tentar seduzir os observadores (FLUSSER, 2007:
182).
Ars do latim equivale à techné e sintetiza a noção de manobra, agilidade,
enquanto artifex refere-se ao impostor. O artista é então um prestidigitador que se
utiliza de artifícios para manipular. Ele tem poder – Kunst em alemão deriva do verbo
poder – no sentido de poder realizar algo (FLUSSER, 2007: 183).
É nesse ponto que a arte e design coincidem e ao mesmo tempo se contradizem.
São capazes de estetizar objetos que sensibilizarão as pessoas, em quantidade muito
limitada e de modo a ser cultuado, ou de forma que também seja cultuado, mas
massificado.
Esse objeto de culto, exclusivo, que responde a uma qualidade máxima e a uma
quantidade mínima, denomina-se obra de arte. A arte se interpõe como modelo da
produção de objetos que têm o máximo de valor (ARGAN, 2005: 252), em detrimento
do design que se caracteriza pelo produto reproduzido em larga escala. Uma coisa
é “a coisa que tem valor” e outra é “o valor da coisa”. Essa dicotomia guia a relação
existente entre arte e design que se intercalou em diversos períodos. Houve fases ou
Moda, arte e interdisciplinaridade 15
regiões culturais inteiras em que a práxis prevaleceu sobre a teoria e outras em que
a teoria predominou sobre a práxis, o que levou a segunda a ser reduzida à operação
mecânica que, por sua vez, está sempre aquém de um modelo ideal (ARGAN, 2005:
13 e 14), ideal este que levava Platão a julgar impostores os que tentavam se apropriar
da forma.
Existe uma contiguidade entre arte e design cada vez mais explícita. O consumo
de massa de produtos industrializados desenhados por designers gráficos, de produto
e de moda muito reconhecidos ou de artistas faz com que a linha que separa o design
da arte obnubile-se em direção a um caminho que talvez um dia eleve o design ao
status da arte. Essa condição se formaliza o mastige (mass + prestige), onde o saca-
rolhas é assinado por um grande designer italiano e o espremedor de laranjas por um
célebre designer francês, levando ao ápice do consumo do capital cultural, quando um
artista inglês assina uma coleção de jeanswear, ou uma célebre arquiteta iraquiana
cria sandálias de plástico. Esses exemplos mostram que o mastige satisfaz o indivíduo.
Ele pode não ter acesso a uma grande arquiteta para projetar sua casa, mas tem
possibilidade de contato com seu trabalho adquirindo a sandália que ela desenhou.
Alessandro Mendini, Philip Starck, Damien Hirst ou Zaha Hadid equiparam-se na
materialização de uma assinatura prestigiosa em campos interdisciplinares.
O trabalho criativo do artista renova a experiência da realidade estabelecendo
uma relação entre a arte e a sociedade que sai da primeira para segunda, nunca ao
contrário. Dessa forma, a produção artística estabelece uma história das imagens
que [assim como o design], está vinculada às atividades culturais. Levando em
consideração que a forma se legitimava por meio do espírito, por ser imanente a uma
época onde o seu sentido se concentrava na atividade espiritual e no conhecimento e
não no sentido (ARGAN apud NAVES, 1992: XII; XV; XVI e XXII), essa discussão se
aproxima da ideia de zeitgeist ou “espírito do tempo”.
Antes de analisar esse novo termo apontado, vale lembrar que a construção da
história visual, ligada às artes e ao design, é concebida por críticos de arte, curadores,
artistas e pessoas em geral ligadas às artes visuais. A crítica consiste no fato de a
história do design ter sido em grande parte gestada por indivíduos ligados à arte, nem
sempre ao design, como é o caso de Argan, a quem se atribui alguns sentidos sobre o
que é arte contidos neste texto. Portanto, é necessário ter cautela ao se apropriar de
determinada teoria, sendo importante entender o contexto de onde ela emana.
O “espírito do tempo” ou l’air du temps, mais conhecido como zeitgeist na
sociologia, designa um conjunto de opiniões válidas em um determinado tempo, gosto
ou desejo. Mais utilizado a partir do século XVIII, refere-se, no uso culto, às ciências
sociais para identificar o clima geral intelectual, moral e cultural, predominante
em determinada época (CALDAS, 2004: 70-71). Assim, a partir deste preceito,
compreende-se melhor o uso de um objeto, seja ele de arte ou design. Ao saber em
Moda, arte e interdisciplinaridade 16
que época um objeto foi criado, produzido e posto em uso, é possível entender melhor
quais as necessidades e anseios daquela sociedade em determinado período, para
que esse repertório sirva como modelo para a criação atual.
Cabem aqui algumas definições essenciais sobre moda. O próprio termo zeitgeist
denomina algo que está ligado a um modo de agir, pensar, a um comportamento de
uma época ou região. Dessa forma, a palavra moda se aproxima de “modo”, façon do
francês, que origina por meio da corruptela em inglês a palavra fashion.
O sentido dado à palavra moda a partir de 1700 (BRAUDEL apud WILSON,
1987: 29) passa a significar “andar ao ritmo dos tempos”. Essa definição se encaixa
muito bem na pós-modernidade. Talvez andar ao ritmo dos tempos em função da
valorização exacerbada presente, seja seguir o fluxo fragmentado e complexo
imposto pela ordem atual efêmera, o l’air du temps do momento presente. Nesse
contexto faz sentido pensar a moda interdisciplinarmente. A ramificação de diversas
áreas do conhecimento se une em um momento interdisciplinar, a fim de combater a
fragmentação na busca por uma solução.
Para falar em moda, é imprescindível discutir a origem da vestimenta. Há
algumas possibilidades para justificar o surgimento da vestimenta: o clima que leva o
indivíduo a se cobrir para se proteger do frio, o pudor, uma ideia mais sofisticada de
que os trajes eram usados – pois fornecia magia a quem os usava – e, por último, a
exibição (LAVER, 1989: 7; 8 e 16). Outra conclusão a respeito do aparecimento da
vestimenta se refere, por um lado, ao resultado de condições materiais que implicam
em clima, saúde, agricultura e meios produtivos e, por outro, se refere ao resultado de
fatores mentais, ligados à religião, à estética, à posição social, à magia e à imitação.
Ainda hoje existem dúvidas a respeito do surgimento da vestimenta, se veio antes ou
depois do surgimento da moda (BOUCHER, 2010: 13), mas interessa saber que são
dois fenômenos distintos. A vestimenta refere-se ao ato de cobrir o corpo, já a moda
está intimamente ligada à substituição. Aparentemente é o vestuário que dará vazão
à moda.
Já em 1831, sabe-se que o primeiro objetivo do vestuário, quando se refere
à Pré-história, era o ornamento e não a decência. A primeira necessidade, a de
ornamentação, era espiritual (CARLYLE apud WILSON, 1987: 77). E vale reiterar
que a moda surge, sobretudo pelo aspecto mágico, por acreditar que a diferenciação
atribuiria magia ao indivíduo.
Embora o advento do termo moda esteja ligado ao início do Renascimento,
ele só foi tema de pesquisa científica por volta de 1860, em trabalhos eruditos, de
pesquisadores medievalistas. Estes tratavam a indumentária como uma soma de
peças, e a peça indumentária em si como um narrador histórico (BARTHES, 2005:
258), sem considerar os aspectos sociais e psicológicos implicados pelas roupas.
No livro Para uma crítica da economia política do signo, Jean Baudrillard
Moda, arte e interdisciplinaridade 17
moda.
A moda tem origem nas contradições da sociedade capitalista e funciona como
uma máscara essencialmente urbana. É um reflexo direto da vida nas cidades, é a
própria ironia moderna. Por meio dela se expressam as ambiguidades sociais. Seu
significado e finalidade emanam das contradições do capitalismo que se desenvolvem
no meio urbano: a criação em oposição ao desperdício, a riqueza e a sordidez do
sistema capitalista, a identidade do eu com o corpo e com o mundo e a moda oposta
e complementar à arte (WILSON, 1985: 21; 27 e 29).
O incremento do comércio e do capitalismo, a queda da sociedade feudal, o
crescimento das cidades e a ascensão da burguesia foram as principais razões para
o estabelecimento da moda. É nesse momento de transição do final da Idade Média
para o Renascimento que emerge o conceito de moda (WILSON, 1987: 32-34).
Entre os teóricos, é consenso que a moda desponta entre a segunda metade
do século XIV e o início do século XV na parte ocidental da Europa. Essa formalização
refere-se a três diferentes períodos: do seu surgimento no século XIV até a metade
do século XIX, de 1850 até meados de 1960 e da década de sessenta do século XX
até os dias atuais. Dos três períodos, o primeiro é o mais linear, no sentido de que as
mudanças nas roupas ainda ocorrem de maneira sutil, além de levarem mais tempo
para serem substituídas. O segundo momento, denominado “moda de cem anos”,
está ligado ao nascimento da alta-costura em 1850 e sua formalização ao longo desse
século, o que a tornou modelo de irradiação de tendências para todas as esferas
da moda, do alto-luxo ao popular, ou seja, a despeito de todo o desenvolvimento
tecnológico ocorrido nesse período – a máquina de costura mecânica é introduzida
nos métodos de produção em 1860 – a moda se mantém regular em sua estrutura
de difusão por um grande período (LIPOVETSKY, 1989: 69-72). O terceiro e último
período descreve o funcionamento da moda a partir da década de sessenta do século
XX, que implica em mudanças formais referentes ao modo de se vestir e de consumir.
O último período difere da “moda de cem anos” representando uma nova fase
da história da moda. A emergência desse sistema renovado da moda não compreende
qualquer ruptura com o passado moderno. A burocracia na produção de roupas de
moda orientada por criadores e estilistas, a lógica da produção em série, as coleções
criadas a cada estação, os desfiles e a publicidade de moda serão alterados pelo
redescobrimento do sistema de moda. A ideia de moda no sentido individual e social
mudou junto com os gostos e os comportamentos dos sexos de uma nova classe de
jovens: os baby-boomers. A avidez pelo consumo aumenta à medida que aumenta o
individualismo. Essa fase da moda está diretamente ligada à sua fase anterior, a da
moda moderna, que tinha seu ritmo ditado pela alta-costura. Nesse sentido, esse último
momento é uma extensão potencializada dos preceitos modernos da moda ligados à
sua estética burocratizada por protocolos de difusão de tendências, de produção de
Moda, arte e interdisciplinaridade 19
ao imperativo moda.
Fala-se em “fim do mundo tradicional”, onde, na cultura moderna, a novidade
tem seu valor elevado e a expressão da individualidade humana diz respeito à
dignidade (STERN, 2004: 3). É evidente que a passagem discute a entrada no período
moderno, mas se por uma corruptela essa passagem do “fim do mundo tradicional” for
interpretada como uma ruptura entre períodos pode-se estabelecer uma analogia a
respeito do rompimento da moda com os ditames modernos da “moda de cem anos”
e sua entrada no período contemporâneo, que se inicia a partir de 1960, onde seria
possível falar em um “fim do período moderno na moda”, um fim simbólico da moda
moderna que eclode com as modificações sociais.
Houve um momento na arte que se falava em “fim da história da arte”. Ele
não significa que a arte acabou, mas que o discurso no qual ela está inserida sofreu
uma mudança, já que o objeto mudou e não se ajusta mais às suas antigas diretrizes
(BELTING, 2006: 8). Assim como a arte, o design e a moda também sofreram
transformações progressivas ao longo do último século, imiscuindo-se um ao outro.
A partir da década de setenta, destaca-se nos países capitalistas
industrializados o pensamento pós-moderno, inicialmente dirigido às questões
estéticas e arquitetônicas, tendo, desde então, uma crescente difusão e repercussão
no mundo da cultura e incidindo na elaboração da teoria social e na reflexão filosófica.
O raciocínio pós-moderno denota uma crítica e uma ruptura com a modernidade, com
implicações que atingem desde a vida cotidiana até a produção do conhecimento
social (EVANGELISTA, 2001: 30).
A pós-modernidade abarca inúmeras manifestações do efêmero e seus reflexos
na cultura, nas artes e no design. A arte, a sociedade e o sujeito são marcados
pela efemeridade, pela fragmentação, pelo descentramento, pela indeterminação,
pela descontinuidade, pelo ecletismo das diferenças e pelo caos paradoxal. Nessa
perspectiva, o individualismo domina o cotidiano, por meio do consumismo e pelo
predomínio da informação (EVANGELISTA, 2001: 30).
Na busca de uma solução, algumas obras contemporâneas descortinam-se
nesse cenário interdisciplinar que se desdobra em informações sobre arte e moda.
Assim, a moda passa a ser uma possibilidade de suporte para a arte.
Ainda na década de setenta, o design se liberta da rigidez normativa, passando
por um período de fervilhamento. Para o design, deixa de existir somente uma maneira
correta de fazer as coisas, ao mesmo tempo em que é alcançada uma disposição para
conviver com a complexidade e com a fragmentação.
A arte busca, a partir da década de setenta, questionar limites e fronteiras
da cultura e do cotidiano. Naquele momento, a arte conceitual, uma arte de ideias,
imaterial, estava em seu apogeu. Refletindo sobre seus novos desafios, ela se difundiu
de outras maneiras, por meio dos happenings, das performances e de inúmeros tipos
Moda, arte e interdisciplinaridade 21
de manifestações que tiveram reconhecido seu status de arte dentro desse panorama.
Esse cenário da arte que se forma a partir da década de setenta é fundamental para
o estudo que se pretende nesta pesquisa, pois ele admite formas de arte que se
diferenciam da arte moderna.
A silhueta “H”, que na moda corresponde a roupas com volumes de mesma
proporção nos ombros e quadris, além da cintura marcada, corresponderia aqui para
todos os efeitos ao grid moderno da arquitetura e do design gráfico. Esse quadrado
perfeito onde a silhueta “H” se encaixa será simbolicamente superado, principalmente
a partir da década de setenta. O ideal moderno contaminado por uma estética
minimalista tendia a uma homogeneização. É nesse sentido que se fala em superar
a silhueta “H” a partir da década de setenta, momento de maior abertura a novos
diálogos.
Como a moda é essencialmente contemporânea, é difícil de encaixá-la em
determinado período histórico sem referências de história da moda muito profundas. A
silhueta “H” dominou efetivamente a moda da década de quarenta e noventa, mas não
se pode dizer que ela foi extinta. A silhueta “H” não foi abolida na década de setenta,
então a afirmação do parágrafo acima deve ser entendida de forma alegórica.
Ainda concernente às precisões do termo moda, é possível afirmar que ela
sugere mudança no vestir, ou seja, diferentes modas. Esse sentido é dado às roupas
e acessórios que mudam sazonalmente. Outro sentido dado à palavra moda é dirigido
por padrões comportamentais e estéticos adotados por uma sociedade por um
determinado tempo. Essas lógicas são regidas pela substituição do velho pelo novo.
Se existe uma palavra que sintetizaria a moda como uma ideia, essa palavra seria
“mudança” (CALDAS, 1999: 30), que gera o novo, o exclusivo. A ideia de exclusividade,
além de estar ligada à moda, ao luxo e à arte, é essencialmente moderna.
A moda como representação do ciclo de vida do produto – roupas e acessórios
em especial – cada vez mais acelerado e mais curto só se consolidará entre os séculos
XIV e XV na Europa Ocidental (CALDAS, 1999: 31). Hoje, graças ao fenômeno “moda”,
a obsolescência programada foi superada pela “obsolescência acelerada”.
A moda se enuncia em sua difusão de tendências graças a um preceito
sociológico conhecido como “efeito de
gotejamento”, do inglês, trickle effect. Ele
justifica por si só a difusão, e diz respeito à
criação de fenômenos de moda gerados no
topo da pirâmide social, que caracteriza o
bottom down. Esse efeito atua pela busca
constante de diferenciação, distinção do
grupo. Logo após serem criados, esses
fenômenos se alastram em cadeia sobre as 1. Irmãos Campana. Mobiliário Zig Zag, 2001
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classes sociais subalternas. Estas, por sua vez, imitam as camadas superiores em
busca de identificação com as mesmas. Em uma escala de apropriação de uma
inovação pode-se falar em ordem decrescente em: “inovadores”, “seguidores precoces”
e “atrasados”. Os “inovadores” são os formadores de opinião que criam um estilo a ser
seguido pelos “seguidores precoces” que estão atentos a tudo o que é lançado para
ser consumido como imagem ou produto. Os atrasados, por último, recebem toda a
informação das camadas anteriores e podem adaptá-la para seu uso (CALDAS, 2004:
46).
Um exemplo esclarecedor do trickle effect ocorreu nos últimos anos. A empresa
Grendene vem lançando, desde 2005, várias sandálias da marca Melissa em parceria
com vários designers e artistas,
entre eles, os irmãos Campana.
Eles estariam no topo da pirâmide,
seriam os “inovadores” – a Melissa
Zig Zag inspirada em seu Mobiliário
2. Cópia de Melissa Zig Zag para a marca Material Girl da Macy’s, 2011 Zig Zag sofre o trickle effect. A
sandália, além da versão em
plástico, já foi reeditada flocada (com aspecto de veludo) e com glitter (brilho) pela
própria Grendene. A adesão e o uso desta sandália são representados pela classe
dos “seguidores precoces”. Em último lugar vêm os “atrasados” que, muitas vezes
recorrem a cópias mais baratas do produto e que, ironicamente, trazem algumas
inovações antes mesmo dos “inovadores”. É o caso
da Melissa com glitter, que já é encontrada no
comércio popular há alguns anos, antes de a
própria Grendene começar a fabricá-la. A marca
Material Girl, desenvolvida pela cantora Madonna
para o magazine Macy’s copia de forma quase
idêntica o trabalho dos irmãos Campana, fato
evidenciado pela imagem 2. A imagem 3 refere-se 3. Irmãos Campana. Melissa Zig Zag, 2005
à Melissa original desenhada pelos irmãos
Campana em 2005. Na cópia de 2011 (imagem 2), se não fosse pela palmilha listrada
e pela emenda central, que conota mau acabamento, nem se perceberia que se trata
de uma cópia mais barata da marca Material Girl.
Além do bottom down, onde o fenômeno começa no topo da pirâmide para em
seguida gotejar até sua base, é possível observar o efeito contrário, conhecido como
bubble up. Nesse caso, o fenômeno começa na base da pirâmide e sobe em direção
ao topo, como é o caso do glitter colocado nas Melissas pelo comércio informal antes
mesmo da própria detentora da criação do produto, a Grendene, colocar.
À medida que uma inovação é difundida no campo cultural, ela tende a perder
Moda, arte e interdisciplinaridade 23
sua força, seu significado (CALDAS, 2004: 47). Vale esclarecer que o topo da pirâmide
também é representado por formadores de opinião como a “alta-costura” e artistas,
não estando limitado somente à classe econômica. Assim, é também com a base da
pirâmide que pode ser representado pelo público em geral ou por alguma subcultura,
o underground, a cultura alternativa (JONES, 2005: 51).
Moda e tendência são palavras que se fundem chegando ao ponto de se
equivalerem, já que a tendência é algo que já se transformou ou pretende se transformar
em moda (CALDAS, 2004: 50).
A moda se transforma o tempo todo por meio da criação de tendências. Elas
percorrem o caminho ao longo da cadeia têxtil e seus valores correspondem a uma parte
inseparável do sistema de moda. O trickle effect ou efeito de gotejamento intensifica
o desejo de diferenciação, onde a busca pelo exclusivo, pelo novo, a obsolescência
contínua de artigos criados pelo mercado é o próprio motor da mutabilidade da moda,
pelo qual o indivíduo deseja exprimir uma identidade única, que justifica a sazonalidade
da moda (LIPOVETSKY, 2004: 18 e 19).
Assim como a moda, o design também sofre esse trickle effect. Esse gotejamento
também contamina os produtos e os processos de produção, difusão e consumo dos
objetos de design. O saca-rolhas Anna G. de Alessandro Mendini é um bom exemplo.
Até 2005, só existia o original, da marca Alessi. Pouco tempo depois, já era possível
encontrar sua cópia no mercado popular. A moda contamina outras áreas por meio de
seus processos típicos como a difusão.
A aparência das coisas é, para o design, uma consequência das condições de
sua produção (FORTY, 2007: 12). Assim, os objetos do design, sejam eles de moda,
de produto, de gráfico ou de embalagem sofrerão também ao longo da descida e
subida na pirâmide os efeitos do l’air du temps. E, de acordo com mudanças culturais
ligadas a um determinado período, passarão por mudanças estéticas e funcionais.
Assim como as várias formas de design, a arte também mantém a convicção
no l’air du temps, uma vez que sua história oscilou entre períodos onde houve o
predomínio da práxis ou da teoria, por exemplo. Em dado momento, a arte figurou
como objeto, sendo modelo para outras atividades (ARGAN apud NAVES, 1992: XXI)
como no caso do artesanato. A obra de arte deve ser apreciada no contexto do seu
tempo e circunstancialidade (JANSON, 1992: 9), por isso não é possível separá-la da
conjuntura em que ocorre.
Há exemplos emblemáticos da apreensão do l’air du temps por uma nova
moda. Os dóricos da antiguidade grega impunham aos vencidos a sua moda e seus
costumes, assim como os romanos. Além disso, o primeiro exemplo de bubble up
ocorre em 1789, quando, pela primeira vez, o traje começa a sofrer influências políticas
com os sans-culottes (BOUCHER, 2010: 14 e 17). Na moda, essa influência do l’air
du temps ocorre quando se discute o seu surgimento e da vestimenta pelo viés das
Moda, arte e interdisciplinaridade 24
referência estética. Por outro lado, o aço corten, se pensado como material, tem sua
origem no design, então esse aspecto político e crítico em relação ao espaço urbano
e à arquitetura presente nas obras de Serra pode se estender ao design. Sabe-se que
na tecnocracia a produção industrial é costumeiramente associada à questão política
e carece de crítica.
A partir daí é possível afirmar que arte e design trocam conceitos o tempo
todo, inclusive com a arquitetura, mas o foco deste estudo são o design de moda e a
arte. Conceitos, materiais, ideias e apropriações processuais originários da arte ou do
design podem se sobrepor entre si. É sob esse prisma que os três produtos gerados
por artistas para a Louis Vuitton serão discutidos.
O design pode ser entendido como um serviço público, onde o designer é o
narrador de uma história que, se souber conduzir o uso da linguagem de forma clara e
eficaz, se tornará convincente (SUDJIC, 2010: 24; 34 e 37). A inteligência conspiradora
do designer volta a vociferar.
A essência do raciocínio do designer e os métodos utilizados, inclusive
na produção do produto que deverá ser orientada por ele, é o mais relevante na
produção industrial. O designer sugere determinadas características ao objeto e deve
dar indícios de como ele funciona e de que forma pode ser explorado, no sentido de
otimizar seu uso. O design adapta as percepções ao modo como o objeto deve ser
interpretado. Ainda na esteira do desenvolvimento de produto, é preciso assegurar
a identidade visual de um produto, mantendo traços de família à qual ele pertence
(SUDJIC, 2010: 24; 34; 37; 46 e 51). Nas obras de arte, ao contrário, o artista não
orienta um uso ou interpretação, mas busca atingir uma forma específica, um resultado
que, nesse ponto, aproxima a arte do fazer processual do design. E no caso das
“séries”, produzidas pelos artistas, elas trazem o DNA daquela família à qual as obras
pertencem, mantendo uma identidade visual e conceitual entre suas obras, como no
design.
O design já se encontra embrenhado nas camadas mais profundas da sociedade
pós-industrial. Ele revela valores culturais e emocionais (SUDJIC, 2010: 49). Há uma
fala de Paul Rand com relação a essa situação que só pode ser avaliada com ironia
ou sob um olhar lúdico. “Todos têm ideias diferentes sobre o que seja design. Alguns
pensam que é a gravata do pai. Outros pensam que é a camisola da mãe. Outros
ainda acham que é o tapete da sala. Outra pessoa está pensando que é o papel de
parede do seu banheiro. Entende? Isso não é design. É decoração.” (RAND apud
KROEGER, 2010: 34).
Percebe-se na fala de Rand um reducionismo que acaba por ferir a esfera do
design. O design de moda é responsável pela criação e desenvolvimento de produtos
como gravata ou camisola, portanto os dois são design. Quanto ao papel de parede ou
o tapete da sala, os dois também são design de produto, e só passam a ser decoração
Moda, arte e interdisciplinaridade 28
moldada durante todos esses anos com o auxílio desses símbolos gráficos.
É importante conhecer as três principais funções do design gráfico: identificar,
informar (e instruir) e apresentar (e promover). A primeira diz do que se trata, a segunda
indica relação com outra coisa, enquanto a terceira tenta prender a atenção e tornar a
mensagem ou o visual inesquecível. O alfabeto e a imagem são elementos essenciais
do design gráfico. Ele é uma linguagem, de gramática imprecisa e vocabulário em
contínua expansão. Assim como os outros tipos de design mencionados, ele também
é inseparável da economia e cultura dos países industrializados (HOLLIS, 2010: 1 e
4).
Quando se fala em qualquer produto material de design, é preciso lembrar que
por trás deles há outro tipo de leitura: a leitura não-verbal, que se estabelece como
uma linguagem quando evidencia o texto que ele permite produzir, ou seja, é “uma
linguagem da linguagem” (FERRARA, 2007: 13). Então, a bolsa da Louis Vuitton seria
um produtor de linguagem que permite ao observador montar outros textos.
Em complementaridade a estes aspectos mais subjetivos, aparece a esfera
prática do design. O design de moda, por exemplo, é sustentado por uma indústria
pesada, representada pela CPTV – Cadeia Produtiva Têxtil e de Vestuário. Ela é
composta por diversos setores que processam sua matéria-prima. O ponto de partida
nesta cadeia é a agroindústria e a petroquímica, que estão por trás da fabricação das
fibras que são os componentes dos fios. Da fiação, os fios vão para as tecelagens
e se materializam em tecidos, planos e malhas. A tecelagem fornece tecidos aos
confeccionistas, que em sua manufatura os transforma em roupas e acessórios. E
no final da cadeia se encontram as redes de varejo, onde o produto é encontrado
na forma como é consumido pelo público em geral, já beneficiado, sob de forma de
roupas ou acessórios (IPT, 1992).
Entre os elementos constituintes da CPTV, as fibras, os fios, os tecidos, as
confecções e o varejo podem aparecer coadjuvantes. As empresas de beneficiamento
– tinturarias, lavanderias, estamparias, e empresas de bordado – podem aparecer
entre os setores da cadeia. As tinturarias e lavanderias podem aparecer desde a
fiação até a confecção. A estamparia e o bordado podem ser feitos desde a tecelagem
até a confecção. Além disso, é importante falar do “TNT”, que é o “tecido-não-tecido”.
Formada por uma pasta prensada à alta temperatura, ele não tem a trama e o urdume
característicos do tecido plano, como o jeans, nem colunas e fileiras que as malhas
circulares (como o moletom) e retilíneas (como os tricots) possuem. Ele é uma massa
prensada, por isso o nome “tecido-não-tecido”. De forma sucinta, essa é a cadeia têxtil
que representa as engrenagens do funcionamento da moda. Ela é parte do design de
moda, é sua faceta industrial.
Um profissional de moda, de maneira geral, para ingressar nessa indústria,
além de criatividade, também precisa atender a exigências nos campos pessoal,
Moda, arte e interdisciplinaridade 33
intelectual, técnico e até físico. A grande maioria dos criadores de moda não tem
projeção espetacular de celebridade e, principalmente na Europa e nos Estados
Unidos, trabalha satisfeita nos bastidores, em empregos gratificantes e com salários
medianos (JONES, 2005: 6). Grande parte da produção desses lugares é realizada
em países como China, Índia ou Ilhas Maurício. Assim, aos profissionais europeus e
americanos cabe a função de designer, que não é confundida em nenhum momento
com a produção, ao contrário do que acontece em países como o Brasil. Outro aspecto
marcante é a baixa remuneração oferecida ao designer em território brasileiro.
Por vezes, o estilista assume os papéis de artista, cientista, psicólogo, político,
matemático, economista e vendedor (STOREY in JONES, 2005: 6), na confecção em
que trabalha. Por se tratar de um cargo estratégico e pela falta de profissionalização do
meio de moda, o estilista com formação que atua em confecção acaba por acumular
diferentes funções por ser visto como uma espécie de “salvador”, já que muitas vezes
ele é o único com formação específica dentro de uma empresa.
Essa faceta ligada à atuação do profissional do design, em especial na área de
moda, traz à tona a realidade econômica atual. Distante da ideia de glamour, a maioria
que trabalha com criação de moda está subordinada às demandas do mercado que,
no caso do Brasil, copiam servilmente as tendências vindas do exterior.
As pequenas confecções são a maioria empregadora em todo o mundo e o
lucro capitalista que almejam as faz andar na contramão dos desfiles de moda, que
seriam os lançadores de tendências. Essas pequenas empresas não participam
desses desfiles. Quanto às marcas que desfilam em semanas de moda, no Brasil ou
no exterior, o que se vê é um desfile de cinco minutos que resume o trabalho árduo de
seis meses que nada tem de espetacular.
Quando a moda é pensada como um fenômeno socialmente amplo, se
estendendo a outros sistemas, ela pode ser pensada como parte integrante do
cenário da arte. Ela exibe o entrelaçamento indissolúvel das esferas econômica,
social, cultural, organizacional, técnica e estética. Isso quer dizer que, embora a moda
esteja ligada ao belo, ao luxo e ao glamour que aferem a ela um tom de futilidade, o
campo se revela como uma zona de manifestação visual de atributos que vão além da
estética (SANTAELLA, 2004: 115).
Hoje, é fundamental que as habilidades técnicas e o pensamento visual e crítico
operem em equilíbrio (LUPTON e PHILIPS, 2008: 6). Se separados, mão e cabeça,
técnica e ciência, arte e artesanato, a cabeça é prejudicada e a compreensão e a
expressão são comprometidos (SENETT, 2008: 30). O desenvolvimento de produto e
o conhecimento de técnicas e materiais são imprescindíveis ao design, bem como as
ideias, o pensamento crítico.
De qualquer forma, esse trabalho não será beneficiado em se ater à questão
da indústria da moda ou a aspectos práticos ligados ao design. Embora importantes
Moda, arte e interdisciplinaridade 34
sessenta para cá, eles só se potencializaram, seja por meio dos esforços realizados
para profissionalizar e estruturar a indústria da moda, seja por meio da demanda dos
consumidores que só cresce.
Dior também critica o consumo excessivo, orientando as pessoas a se
perguntarem o que determinado produto pode fazer por elas. Esse questionamento
não visa levar à questão do bom ou mal design encontrada neste texto nas citações de
Paul Rand, considerada de certa forma ultrapassada por esta dissertação. Mas vale
ser crítico e pensar: que diferença um objeto a ser adquirido irá fazer no cotidiano?
Para além da questão estética, existe hoje uma preocupação muito maior com o
descarte destes objetos e que impacto eles podem gerar no ambiente ou na sociedade.
A contradição entre design, em especial o design de moda, a sustentação de seu
sistema calcado no consumo e as demandas sociais e ambientais por sustentabilidade
se fazem presentes gerando um panorama antagônico.
A moda se torna muito mais importante à medida que é uma maneira de
perceber o cotidiano. “Se a moda é roupa, ela não é indispensável”. Transgredindo as
definições acadêmicas de arte, pintura e escultura, poucas podem, como a moda ou
a música, influenciar tão diretamente as pessoas. A moda é uma comunicação única,
uma espécie de língua, que tem a ver com as sensações vividas por uma geração
que as transmitirá usando a roupa que quiser (YAMAMOTO in BAUDOT, 2000: 12 e
13). Yamamoto define a moda com um olhar contemporâneo onde ele a equipara de
forma contundente à arte. Embora se saiba das diferenças entre moda e arte, esse
tipo de manifestação parece cada vez mais aceitável. Aqui sua visão coincide com a
de Ferrara, pois parte da ideia de que a roupa é um produtor de linguagem não verbal.
O produto de luxo da moda sempre prezou pela exclusividade e, assim como a
arte, até meados do século XX a herança de uma família era medida pela quantidade
de Worths, Poirets ou Redferns2 que as mulheres de uma família tinham, sendo
inclusive passados de geração a geração. Apesar de a moda ter um posicionamento
bastante comercial, o seu produto de luxo anda na contramão, visando a exclusividade.
A arte, por outro lado, expande seu mercado de forma cada vez mais agressiva se
proliferando na abertura de mais galerias, feiras de arte e exposições espetaculares
que contabilizam o número de visitantes. Ela visa uma finalidade não muito diferente
da moda: o lucro.
A exclusividade vai muito além da distinção social. Ela possui um aspecto de
magia, de algo sagrado, místico e de libertação espiritual que manifesta a expressão
mais profunda do “eu”, da individualidade do ser humano. Dessa forma, o homem
aproxima-se da fruição artística, ato individual condicionado ao entendimento de uma
2 Frederic Worth foi o primeiro grande coutourier e criador do sistema de alta-costura. John Redfern
e Paul Poiret foram estilistas expoentes no final do século XIX e início do século XX, respectivamente.
As roupas destes três criadores (além de outros) era tão valiosa que se tornava herança.
Moda, arte e interdisciplinaridade 37
obra em que o autor leva em consideração o olhar do fruidor, onde a obra é constituída
a partir da observação deste, uma vez que ela está no centro e o espectador está ao
redor.
“A própria velocidade de mudança acabou mudando até as formas de produção.”
Não há mais “ismos”, mas uma “intervenção de eventos artísticos e a-artísticos que
explodem precisamente com a ideia linear de tempo, que operava tanto na tradição,
quanto na vanguarda.” (PLAZA in FERREIRA e COTRIM, 2009: 452). Isso diz respeito
à arte, ao design e à moda. As relações entre sua produção, o público e seus suportes
mudaram completamente na passagem do período moderno para o contemporâneo.
A “estética relacional” e a “pós-produção” de Bourriaud podem refletir as micropolíticas
tratadas por Katia Canton. Esse vínculo ajuda a configurar o panorama atual que paira
sobre novas formas de produzir objetos visuais. Ao que parece, esse sistema ainda
não se estabilizou e nem parece ser esse seu objetivo.
Conceitos originais de uma área podem contribuir com outros campos, como é
o caso da filosofia no design. A filosofia pós-estruturalista busca ajudar a apreender
o mundo visual presente. Da mesma forma, um pensamento de Bernard Tschumi é
passível de ser extraído da arquitetura para adaptar-se à realidade do design: “as
definições da arquitetura reforçam e amplificam duas concepções irreconciliáveis:
de um lado, a arquitetura [e o design] como coisa do intelecto, uma disciplina
desmaterializada ou conceitual com suas variações tipológicas [arquitetônicas ou
gráficas] e morfológicas; de outro lado, a arquitetura [e o design] como fato empírico
que se concentra nos sentidos, na experiência do espaço...[o design é uma experiência]
difícil de exprimir em palavras ou desenhos: o prazer e o erotismo” (TSCHUMI in
NESBITT, 2008: 576-577). Nota-se aqui o dado sensorial dos objetos que não podem
ser descolados do cotidiano.
Há uma espécie de ajuste, de “acerto de contas” entre as áreas. A moda parece
reivindicar seu estatuto de arte, muito embora haja afirmações veementes de que
moda não é arte. Por outro lado, a arte cava de forma cada vez mais profunda em
um terreno que outrora não lhe despertava tanto interesse: o do estreitamento de
relação com o cotidiano, por meio dos ready-mades, performances, instalações,
happenings e outras formas de produção. A discussão central não é a destituição da
escultura tradicional ou das qualidades pictóricas da pintura impressionista, mas sim
a mudança na linguagem que cada vez mais se aproxima do cotidiano, do consumo
e, consequentemente, da moda.
Para que uma obra de arte seja compreendida, ela deve, antes de tudo, ser
encarada como um todo. Perceber qual é o clima, a dinâmica das formas. Antes de
qualquer elemento ser identificado, a composição total faz uma afirmação que não
pode ser desprezada. Deve-se procurar um assunto, uma chave com a qual tudo se
Moda, arte e interdisciplinaridade 38
relacione3. A partir daí, instruir-se até onde puder a respeito do assunto de que trate a
obra parece o mais prudente, pois, nada que um artista põe em seu trabalho pode ser
negligenciado impunemente pelo observador (ARNHEIM, 1980: intr.).
Na arte moderna, as teorias que dão embasamento à ideia de arte se relacionam
por meio de documentos teóricos que podem ser resumidos em alguns pontos: o
contexto cultural da época (avanços científicos, políticos, sociais etc), o ambiente
ideológico específico (círculo de relacionamentos dos artistas), veículo transmissor
das ideias do artista, a linguagem escolhida e as qualificações pessoais do autor
como teórico e seu repertório (CHIPP, 1996: 2 e 3). É impossível não reconhecer
a importância dos elementos que dão forma à arte moderna e, por se tratar dela,
deve-se entender sua contribuição, mas ressalvando-se as críticas. O contexto, o
ambiente, a linguagem, o suporte e a formação do artista são relevantes desde que
esses pressupostos não excluam trabalhos coerentes pelo fato de o autor não atender
a algum deles.
Um exemplo é a obra de Arthur Bispo do Rosário, que nunca admitiu ser
chamado de artista em vida, mesmo especialistas tendo lhe conferido tal designação.
As proposições de Chipp podem excluir Bispo do Rosário da seara dos artistas por se
tratar de uma pessoa que não teve uma formação tradicional em artes, porque não
se relacionava com intelectuais e artistas ou até porque muito de sua produção não
se deu em telas pintadas ou esculturas clássicas, mas sobre roupas. Os documentos
teóricos modernos que tendem a validar um artista e sua obra já não dão conta e não
podem ser os únicos meios de inserção de um trabalho e seu criador no métier da
arte.
Na renovação cíclica da moda, quando se entende a moda como modas que se
passam ao longo de meses ou estações, onde ela é sazonal, ela adquire um caráter
de reprodução e essa reprodutibilidade ameaça a “aura” da obra de arte que passa
a ter sua singularidade substituída pela massificação (BENJAMIN apud SVENDSEN,
2010: 113-114). Assim, as obras dos três artistas estudados, mesmo que possam
promover a moda à arte, sofrem a ameaça constante da renovação do ciclo da moda.
Essa substituição de modas interfere no processo de validação e garantia de um
objeto como objeto dotado de valor artístico, nesse contexto, o objeto de arte-moda.
O critério funcional ou não de uma peça de roupa não é suficiente para
designar se a moda alcança o terreno da arte. Tradicionalmente, esse ponto de vista
é encontrado em autores como Adorno. Essa ideia vem desde Kant, que defende a
genuinidade de um objeto pelo seu caráter puramente estético, se ausentando de
qualquer característica ligada à finalidade. Assim, como quase toda a peça de roupa
3 Essa chave de que Arnheim fala com a qual tudo se relaciona alude a “estética relacional” de
Bourriaud e, embora se saiba que essa não era a intenção do autor em 1980, o momento atual permite
entender a composição total como um contexto geral ou enredo onde tudo se relaciona.
Moda, arte e interdisciplinaridade 39
possui essa característica funcional, ela não seria arte. Por outro lado, tomando o ideal
de Adorno, há roupas de alta-costura ou feitas para os museus que nunca foram sequer
vestidas. Um vaso grego, considerado uma antiguidade artística, não é destituído de
sua capacidade funcional, conter líquidos e sólidos, mas ocupa um espaço idealizado
pela arte que não permite que ele cumpra esta função. (SVENDSEN, 2010: 119-120).
Esse ponto de vista, o da necessidade da ausência da funcionalidade, dificulta a
inclusão de alguns objetos no universo artístico, muito embora possam ser apreciados.
Dessa maneira, se torna difícil alocar obras de arte contemporânea no conceito de
arte de acordo com o conceito kantiano, já que boa parte delas é propositadamente
útil. (SVENDSEN, 2010: 120).
Há um contraponto, mais forte do que todos citados até agora, que equipara a
arte, o design e o design de moda: a estetização dos objetos. Delimitando arte como
“o exercício de atividades tais como a edificação de templos e casas, a realização de
pinturas e esculturas, ou a tessitura de padrões [...] por outro lado [...] arte [é] alguma
espécie de belo artigo de luxo, algo para nos deleitar em museus e exposições ou
uma coisa muito especial para usar como preciosa decoração na sala de honra”
(GOMBRICH, 1993: 19), percebe-se o destaque dado ao “belo” ou ao que gera
deleite. Não é intenção desta pesquisa entrar em uma discussão sobre o “belo”, mas,
independentemente dos padrões que confiram beleza a determinado objeto, tanto
a arte, quanto o design e o design de moda, perseguem essa qualidade em suas
produções.
Conforme já visto em Flusser, a obra de arte era algo que constituía
funcionalidade na antiguidade, portanto a definição de arte do parágrafo anterior
“constitui um desenvolvimento recente e que muitos dos maiores construtores, pintores
ou escultores do passado sequer sonharam com ele” (GOMBRICH, 1993: 20).
Atualmente, “a arte é secretamente rival da técnica”. “A técnica não interpreta o
mundo que vê à sua frente, mas produz um mundo técnico, das aparências, como se
vê nas mídias” (BELTING, 2006: 19).
Em todas as suas nuances, a arte, o design e a moda ora se assemelham, ora
caminham em direções diametralmente opostas. O fato é que há um ponto comum
entre os três campos que é inegável: todas trabalham o campo visual ou sensorial e, a
partir daí, buscam elevar seus objetos à categoria de luxo ou de objeto questionador.
Conforme já afirmado anteriormente, essa dissertação não visa travar uma
discussão a respeito do termo “belo”, mas por hora basta entender a beleza como
algo que desperta grande interesse e tende a estar ligada ao luxo, à exclusividade.
Sua marca ao longo da história, tanto na arte quanto no design e na moda, é inegável.
Dessa forma, algumas passagens e autores contidos neste texto farão perceber a
importância dada à beleza e ao registro retiniano, que atualmente não deixa de ser
uma experiência mais cultural que estética.
Moda, arte e interdisciplinaridade 40
Se o objeto de arte aparece como aquele que é estetizado e, por sua vez, é feito
para ser visto e apreciado, por outro lado é impossível definir qualidades absolutas em
arte baseadas em regras suscetíveis advindas de inúmeras culturas tão diversificadas
entre si (JANSON, 1992: 9). Isso seria reduzir o sentido da arte. Novamente é reforçada
a relevância que tem o objeto digno de ser observado por suas qualidades estéticas.
O design está relacionado a tornar os objetos belos, à transmissão de ideias,
ao lucro ou a ser um método especial de resolver problemas (FORTY, 2007: 11). As
duas primeiras premissas estão diretamente ligadas ao contato visual. O design se
reflete no objeto que é apreciado por suas características visuais. O aspecto visual
tem muito apelo no que diz respeito à transmissão da mensagem, ajuda o usuário a
desenvolver empatia pelo produto. O valor dado ao objeto que exerce grande poder
visual é sentido tanto na arte como no design.
Com o design de moda não é diferente. Das inúmeras justificativas sobre o
surgimento da vestimenta, algumas se baseiam em questões referentes ao clima,
ao pudor, até uma delas atingir uma ideia mais sofisticada. Essa ideia consiste na
invenção da vestimenta por acreditar que esta conferia algum tipo de magia a quem a
portava. Ao final, a exibição carrega consigo o apontamento mais esclarecedor no que
diz respeito à criação dos primeiros trajes (LAVER, 1989: 7). Sem dúvida, a exibição
individual remonta a antiguidade e o ato de destacar-se dos demais, inerente ao
homem, fará com que ele use um traje mais vistoso, ou elaborado, para ser apreciado
como uma obra de arte.
O uso da vestimenta como um esforço para se libertar espiritualmente e
socialmente (BOUCHER, 2010: 17) reflete uma preocupação com a magia e a
diferenciação social. Essa última é secundária, sendo a primeira o motor da apropriação
humana por peles e adereços na antiguidade. A roupa adquire um aspecto sagrado,
então a roupa mais arrojada, até certo ponto, que não comprometa a aceitação social,
tornará alguém líder em um ambiente e fará dos outros pessoas comuns.
Interessante que essa roupa sagrada da antiguidade tem um ponto comum
com a atualidade. Em ambos períodos, esse líder, mencionado no texto por sua
diferenciação adquirida por meio da vestimenta, deve ser diferente na medida em
que sua imagem se destaque do restante das pessoas de sua convivência, mas não
seja excessivamente distinta a ponto de gerar estranheza. O que difere o arrojo do
excesso de extravagância em um determinado período é o tempo. O l’air du temps
ajudará a definir o que é acolhido ou não em determinada sociedade. Muito parecido
com o que ocorre hoje em termos de tendência de moda.
Argan fala em fazer a história da arte como a história das imagens (ARGAN
apud NAVES, 1992: XV), algo pertinente aos três campos: arte, design e design de
moda. Eles caminham paralelamente construindo sua história por meio de imagens
que tem cada vez mais força com o advento da pós-modernidade.
Moda, arte e interdisciplinaridade 41
estivessem em uma loja com ferramentas à disposição para usar, manipular, reordenar
e projetar (BOURRIAUD, 2009: 12 e 13).
A ideia central é inventar novos usos para os modos de representação de
formas já existentes. Rirkrit Tiravanija parafraseia Wittgenstein ao alertar para
procurar o uso ao invés do significado (BOURRIAUD, 2009: 14), onde a arte assume
uma dimensão política, manifestando-se por meio das micropolíticas. É uma postura
essencialmente contemporânea no sentido de criticar, e ao mesmo tempo consumir,
de viver na fronteira, na fragmentação. A “cultura DJ” (BOURRIAUD, 2009: 41), que
inventa itinerários por entre as culturas, justifica com clareza o que se pretende nesta
pesquisa: validar objetos de moda que recorreram à arte de modo a se reinventar por
meio de formas já existentes incorrendo em atos interdisciplinares.
Deve-se pensar que a moda atinge em alguns momentos o campo da arte
quando se utiliza de seus processos criativos. Atualmente essa fronteira não é mais
líquida, mas sim gasosa. Dessa forma, a arte também se utiliza dos estratagemas da
moda para renovar seu discurso absorvendo novas linguagens. Estas afirmações são
carregadas de complexidade, pois vivem no auge de seu antagonismo sem ao mesmo
tempo negar a essência das duas áreas.
Apesar do caráter comercial, a moda penetra profundamente nas obras de arte.
A moda está inserida no contexto histórico de uma maneira que afeta o sensório,
consequentemente, as obras de arte, mesmo que isso seja sutil (ADORNO apud
SVENDSEN, 2010: 124).
Essa questão fica mais clara ao ler o próximo capítulo desta dissertação,
onde é delimitado um recorte histórico acerca dos casos interdisciplinares mais
marcantes da história da moda recente. Por meio da troca, a moda busca renovar
sua linguagem, abrindo a possibilidade de um “autoquestionamento”, além de ser por
vezes provocativa.
A arte contemporânea busca questionar e criticar. Ela se rende aos anseios
sazonais da moda, ao mesmo tempo em que tece sua crítica por meio de obras como
as de Beecroft, Murakami e Sprouse.
A interdisciplinaridade de certa forma explica a moda, pois embora a moda
trabalhe sempre para satisfazer suas necessidades, ela sempre busca a troca de
informações em sistemas distintos para agregar valor à sua produção.
Embora os produtos analisados na presente pesquisa tenham sido pensados,
projetados majoritariamente em território francês, eles hoje são consumidos em todos
os continentes, o que torna maior o alcance e compreensão desta pesquisa. No
momento contemporâneo, principalmente graças à internet, a informação caminha com
velocidade cada vez maior e assim é também com os produtos, resguardadas suas
respectivas categorias. Os acessórios de moda aqui estudados têm reconhecimento
internacional. Então é possível afirmar que, caso a pesquisa fosse realizada em outra
Moda, arte e interdisciplinaridade 46
Este capítulo visa repassar os principais atos interdisciplinares ocorridos entre arte e
moda do final do século XIX, passando pelo século XX e estendendo-se até o início
do século XXI.
Segundo Peter Wollen, autor do primeiro capítulo e organizador do catálogo
Addressing the Century: 100 Years of Art and Fashion, resultado da exposição
homônima realizada na Califórnia em 1999, uma diferenciação inicial é importante a
respeito do trabalho do artesão e do artista, onde o primeiro faz objetos destinados ao
uso cotidiano (no qual o usuário possa usar da maneira que melhor lhe convier), e o
segundo é tido como algo não instrumental (WOLLEN, 1999: 7). O catálogo, produto
da referida exposição, servirá de base para este capítulo, que tem enfoque histórico.
Essa compilação acerca da exposição conta com a colaboração de vários estudiosos
de moda, artistas e filósofos que têm como foco a produção interdisciplinar entre moda
e arte.
Wollen toma como exemplo uma pintura, que é algo a ser admirado, mas nada
de prático pode ser feito com ela. Sua importância é atribuída a valores elevados que
foram elaborados por especialistas em história da arte e estética ao longo do tempo
(WOLLEN, 1999: 7), conforme visto na Introdução, em autores como Argan.
Vicenzo Fani, artista futurista conhecido como Volt, afirma que moda é arte,
como arquitetura e música. Para ele, um vestido brilhantemente desenhado e gasto
pelo uso possuía o mesmo valor de um afresco de Michelangelo ou da Madonna de
Ticiano (FANI apud STERN, 2004: 160).
Para Henry Van de Velde, a evolução das ideias e as condições da vida social
não poderiam fazer com que só tivessem valor pinturas e esculturas. Seria loucura
pensar que somente estas duas categorias poderiam satisfazer a necessidade artística
do século XX (VELDE apud STERN, 2004: 11).
O ponto de vista que dispensa à arte a qualidade de objeto inútil justifica o
valor da arte como um fim em si, ou seja, a arte só tem valor porque é inútil (SUDJIC,
2010: 168). Esse pensamento coincide em Wollen e Sudjic. Ambos compartilham uma
visão que valoriza o design em detrimento da arte. Eles acreditam que o design, assim
como a moda, traduz a identidade contemporânea, muitas vezes suplantando a arte.
Wollen afirma que é importante conhecer o contexto artístico no qual um trabalho
de arte específico está inserido e, considerando o questionamento dos limites da arte,
estes são expressivamente redefinidos para além da tradição do desenho, da pintura e
da escultura clássica quando se analisa obras como os pôsteres de Toulouse-Lautrec,
as colagens de Picasso, as obras de Duchamp, Johns, Rauschenberg, Tinguely, Naum
June Paik e Christo (WOLLEN, 1999: 7). Esses limites transbordam para novas áreas,
como a abordagem da moda sob a óptica da arte e vice-versa.
Ainda segundo Wollen, o design de produtos e de roupas é visto tradicionalmente
como algo mais artesanal do que artístico. O traço mais significante que difere a
Moda, arte e interdisciplinaridade 48
roupa de outros objetos utilitários é redefinido após 1850, com surgimento de Charles
Frederic Worth (WOLLEN, 1999: 8).
O design de moda é extremamente diferente de outras atividades projetivas que
se dedicam ao design de outros produtos. Existe uma relação íntima entre a roupa e
seu uso, o que distingue o design de moda dos demais “designs” (WOLLEN, 1999: 8).
O prestígio da pintura tinha a ver com sua durabilidade e sua transcendência
histórica, então a moda como um fenômeno essencialmente efêmero não possuía
o mesmo reconhecimento de uma obra de arte. Graças ao criador da alta-costura,
Charles Frederic Worth, redefinir a natureza da relação da roupa com seu uso, a moda
eleva seu status como arte aplicada, mas ainda muito distante de ser considerada
puramente arte. Considerado o pioneiro da alta-costura, tornou-se o fornecedor ideal
para as pessoas que desejavam ostentar determinada condição social (WOLLEN,
1999: 8).
Sob a liderança de Worth, existia uma indústria do luxo que se beneficiava
da publicidade gerada pela corte, como a indústria de tecidos de luxo de Lyon,
publicidade esta que beneficiava também o costureiro e seu cliente. Os consumidores
que adquiriam essas roupas sob medida eram vistos como usuários efêmeros, uma
vitrine perfeita para a indústria do luxo. Eram clientes mais ricas que dificilmente
usavam um mesmo vestido mais que uma vez, o que aferia à moda um tom teatral. A
moda nunca atingiria o status de arte, a não ser que superasse sua efemeridade, que
nesse momento estava diretamente ligada ao seu efeito teatral (WOLLEN, 1999: 8-9).
De acordo com Judith Clark, a história da arte na década de vinte é indissociável
tanto da história da moda como da história do teatro. Qualquer estudo dessa época
que envolva arte ou moda implica na compreensão de como os ideais modernistas
foram interpretados pelo teatro europeu. Teatro e figurino foram componentes críticos
de uma fusão interdisciplinar artística que começou no início do século XX e, já na
década de vinte, fornecia um contexto para o desenvolvimento do vocabulário moderno
(CLARK, 1999: 79).
Diretores de teatro trabalharam com artistas rejeitando a arte decorativa de caráter
popular na virada do século, a fim de propor soluções visuais para o desenvolvimento
de uma sociedade mecânica e urbanizada. O teatro era um microambiente onde o
corpo vestido se tornava a expressão do movimento plástico dentro do espaço cênico.
A roupa desse momento poderia ter um papel fundamental na propaganda política na
Europa, da Rússia comunista até a Itália fascista. Ela poderia transformar, restringir,
modificar, fazendo o corpo parecer mecanizado, sexualizado ou dessexualizado
(CLARK, 1999: 79). Esses eram os parâmetros que apareciam nos textos e criações
de moda de artistas futuristas como Giacomo Balla e Fotunato Depero.
Um exemplo mais recente dado por Valérie de Givry, que se refere à regulação
dos ideais modernos do início do século XX, são as roupas do estilista Thierry Mugler
Moda, arte e interdisciplinaridade 49
destaque especial nas mãos de Poiret. Ele foi o estilista que melhor relacionou moda a
outros tipos de fazer artístico. Vale ressaltar os artistas com quem ele trabalhou e dos
quais ele era também colecionador: Paul Iribe, Georges Lepape, Edouardo Benito,
Man Ray, Edward Steichen, Raoul Dufy, Erté, Constantin Brancusi, Kees van Dongen,
Boutet de Monvel, Pierre and Jacques Brissaud, André Dunoyer de Segonzac, Henri
Matisse, Amedeo Modigliani, Francis Picabia, Jean Metzinger, Jean-Louis Boussingault,
Bernard Naudin, Marie Laurencin, Robert e Sonia Delaunay, Roger de la Fresnaye,
Luc-Albert Moreau, André Derain e Pablo Picasso (MACKRELL, 2005: 118).
Ao trabalhar com alguns dos principais expoentes da arte moderna, Poiret foi
responsável por reforçar a ligação entre arte e vida que o ideal moderno previa e
elevar o nível das ações interdisciplinares entre arte e moda. Poucos vivenciaram tão
bem a arte em seu trabalho supondo superar os obstáculos impostos à criação de
moda.
Nessa busca pela união entre arte e vida, Poiret acreditava que a mulher
precisava de uma roupa mais saudável e atual, que fosse condizente com seus
movimentos. Para isso, ele encara os riscos comerciais da mudança e assume a
posição do estilista que “libertou” as mulheres do corselet. Ele tinha uma postura
considerada vanguardista para o início do século XX, seja em seu relacionamento
profissional e produtivo com artistas, seja na abolição do corselet.
Ele encarava esses artistas como “colegas de profissão”, uma vez que, para
ele, seus ofícios eram parecidos. Pela recepção às ideias dos artistas se convencionou
dizer que ao seu redor havia um “movimento” (MACKRELL, 2005:118). A vida de
Poiret também influenciou sua obra. Seu relacionamento com artistas, seja como
colecionador, admirador ou amigo, afetou profundamente sua produção.
É possível fazer uma analogia entre o seu trabalho e o da Louis Vuitton. Tanto na
tradição de seus produtos, como nos relacionamentos com artistas que os mentores
criativos das duas “marcas” possuíram ou possuem – Paul Poiret e Marc Jacobs – se
parecem.
Ainda no início do século XX, o futurismo italiano se empenhou em criar uma
nova dinâmica cultural que revolucionaria o vestir, assim como a pintura, a poesia,
a arquitetura, a música, o cinema e até a gastronomia. Em 1913, Giacomo Balla
desenvolveu padronagens geométricas, com cores vivas, tanto para homens quanto
para mulheres (WOLLEN, 1999: 11-12).
Judith Clark apoia-se no fato de a roupa ter se tornado não somente um
objeto, mas um evento para os futuristas. Ela podia ser agressiva, ágil, dinâmica,
simples, confortável, higiênica, jovial, assimétrica, agradável e diversificada. A criação
de estampas óticas causou uma ruptura no sentido visual, gerando incômodo para
as ruas. O design das roupas futuristas deveria variar de acordo com o humor e o
ambiente, com diferentes peças para manhã, tarde e noite. Por meio de acessórios
Moda, arte e interdisciplinaridade 51
liberta as mulheres do corselet, no Arts and Crafts que cresce a Reforma na Moda.
O movimento Arts and Crafts em poucos anos estimulou a expansão do design
de moda. O arquiteto e designer holandês Henry van de Velde descreveu o vestir
como o último “movimento conquistado” seguido da arquitetura, mobiliário e artigos de
design em geral, funcionais ou decorativos (WOLLEN, 1999: 10). Esse pensamento
reforça o caráter contemporâneo da moda que busca reconhecimento como atividade
criadora, buscando deixar de lado comparações prejudiciais com a arte, a arquitetura
e o design.
Peter Wollen relata que Arthur Lasenby Liberty, proprietário da loja de
departamentos Liberty situada em Londres, solicitou tanto a Paul Poiret quanto ao
grupo Wiener Werkstätte, liderado por Josef Hoffmann, Koloman Moser e Dagobert
Peche, trabalhos para a coleção de sua loja, a Liberty. Esses designs foram inspirados
pelo trabalho de Gustav Klimt, também integrante do grupo. Nesse período Klimt foi
claramente influenciado pelo orientalismo. Emilie Flöge, designer de moda e esposa
de Klimt, também se mostrou uma força importante para a realização destes trabalhos
para a Liberty no final do século XIX e começo do XX (WOLLEN, 1999: 9-10).
A qualidade que envolvia a produção do grupo de Viena talvez fosse uma das
principais preocupações do grupo. Em 1910 passava a funcionar sob a direção de
Eduard-Josef Wimmer-Wisgrill um departamento de moda dentro da Wiener Werkstätte
que já contava um ano antes com a criação de uma divisão têxtil interna. Essa abertura
para a moda sem dúvida teve influência direta de Paul Poiret, que defendia a criação
de moda como parte da criação artística de maneira geral (MACKRELL, 2005: 124).
O que interessava a Poiret era a oficina que produzia estampas florais pintadas
à mão. Como bases eram utilizados tecidos feitos de seda. O design de superfície
desenvolvido pelo grupo neste período afetou a moda internacional (MACKRELL,
2005: 124-125).
Essa presença é sentida na moda parisiense por meio das criações de Poiret
que remetiam ao ambiente cultural que Viena cultivava naquele momento. Um figurino
de Poiret de 1912, que se tratava de um quimono drapeado desestruturado, remetia
diretamente aos quimonos criados por Hoffmann e Peche. Além disso, seu figurino
levava tecido estampado pela Wiener Werkstätte (MACKRELL, 2005: 125).
A qualidade e a importância do trabalho da Wiener Werkstätte ainda se fazem
sentir. A eficiência interdisciplinar se mostra por meio dos atos propostos pelo grupo.
Contribuições como essas servem de parâmetro para produções futuras pelo seu
caráter positivo ao mesclar arte e moda.
Josef Hoffmann, arquiteto do grupo de Werkstätte, se preocupava com as
roupas que o usuário vestiria nas casas em que projetava, ultrapassando a questão
arquitetônica e configurando um panorama multidisciplinar (WOLLEN, 1999: 10).
Rapidamente, tornou-se óbvia a ligação entre o estilo de Poiret e do grupo de
Moda, arte e interdisciplinaridade 53
Klimt. Por meio da obra de Poiret, o gosto austríaco é colocado em contato com a
tradição francesa.
Alguns artistas que trabalharam com Poiret, como Paul Sérusier e sua esposa
Madame Sérusier, rejeitavam qualquer distinção entre artes decorativas e belas artes
(MACKRELL, 2005: 127).
Menos frequente – mas não incomum – era a produção de artistas que buscavam
expressar sua visualidade por intermédio da moda. Aparentemente igual, esse tipo de
produção difere por se tratar de uma colaboração que se inicia no campo da moda e
vai para a arte. Diferentemente da situação em que Poiret
convocava artistas para trabalharem com ele, esses artistas
procuravam a moda espontaneamente como forma de
manifestação. O estímulo vinha antes da arte.
Entre os trabalhos relevantes, encontram-se propostas
de roupas de Sonia Delaunay e Natalia Goncharova. A primeira
criou estampas vivas e produziu seus próprios vestidos,
casacos e têxteis voltados para a decoração de interiores.
A segunda ganhou fama pelos figurinos produzidos para o
Ballet Russo e por trabalhar para a Maison Myrbor – que
comercializava artigos de moda, tapetes e cortinas – entre
os anos de 1922 e 1926, auxiliando na criação das peças
exibidas na Exposition Internationale des Arts Décoratifs et 5. Aleksandr Ródtchenko. Roupa
masculina para trabalho, 1922
Industriels Modernes de 1925.
Nesse mesmo período, os construtivistas russos como Stiepânova e Ródtchenko
também se dedicaram ao design de moda, mas com foco nas massas em detrimento
da elite (WOLLEN, 1999: 12).
Varvara Stiepânova defendia que a roupa
deveria expor a maneira como era costurada e,
consequentemente, seu dinamismo. Expor como as
peças haviam passado por máquinas de costura, como
a máquina reta4 por exemplo, lembrava a agilidade
moderna. Stiepânova e Popova foram capazes de
desenvolver tecidos inovadores e designs de roupas
como parte do seu trabalho na Primeira Fábrica de
Tecido do Estado.
O Construtivismo, que nesse momento
dava mais importância ao processo, disseminou
formas geométricas para substituir as tradicionais 6. Varvara Stiepânova. Figurino – The Death
of Tarelkin, 1922
moda, abraçando um relutante manequim. Esse manequim não tem nada mais a
oferecer que um esqueleto de madeira. Sem braços e sem
sexo, as proporções do manequim aparecem por trás dele
como se fosse compensar seu trágico estado de reduzida
mobilidade, fazendo alusão à história bíblica, em um
“estilo de vida devasso entre prostitutas”, argumenta Ulrich
Lehmann (LEHMANN, 1999: 94).
André Breton, teórico do surrealismo, e Pierre
Naville, sociólogo francês, acreditavam que as grandes
tensões no coletivo expressadas pela moda deveriam ser
submetidas à percepção (LEHMANN, 1999: 93).
De acordo com Lehmann, o manequim
desconstruído tornou-se uma figura de devoção durante 7. Giorgio de Chirico. O Filho Pródigo,
o período surrealista. O manequim nu reduzido a uma 1975
armadura, esta livre de qualquer conceituação ou modificação, poderia ser usada
pelo artista para expressar os ímpetos e ansiedades básicas tanto da mulher quanto
do homem (LEHMANN, 1999: 95).
O manequim foi transformado pelo seu contexto, de um ícone de beleza
efêmera, em um exemplar de sátira boêmia. A feminilidade idealizada não é somente
uma representação nem um trabalho de arte, mas parte de uma grande crítica da vida
moderna. Em seu trajeto pela arte e pela moda nos anos vinte e trinta, o manequim
perdeu sua inocência e, finalmente, sua importância como discurso artístico moderno
(LEHMANN, 1999: 95).
A atmosfera de mistério evocada pelos escritos surrealistas revelou uma
camada de significado além da estranha semelhança humana da manequim como
uma musa misteriosa, catalisadora da imaginação humana (LEHMANN, 1999: 94-95).
A designer Elsa Schiaparelli recusou o estilo moderno da década de vinte, do
qual Chanel foi expoente, desenvolvendo uma tendência ao surrealismo que a cercou
de artistas como Man Ray, Tristan Tzara, Hans Picabia, Jean Cocteau, Salvador Dalí e
Meret Oppenheim. Schiaparelli experimentou materiais como celofane, vidro, plástico
e náilon de pára-quedas trabalhando os acessórios em excesso (WOLLEN, 1999: 14).
Chanel se inspirou em movimentos de arte moderna. Seus designs, que refletiam
a racionalização e funcionalismo fundados na arquitetura moderna – Construtivismo e
a Bauhaus –, costumavam ter o formato de um cubo, tendendo ao cubismo analítico.
Esbelta, clássica, graciosa, elegante e geralmente esportiva, a moda de Chanel se
tornou um dos estilos que viria a ser produzido facilmente em grande escala pelos
fabricantes do Pós-Guerra.
Com o fim da Primeira Guerra Mundial, o estilo de Chanel foi massificado, se
embrenhando em várias esferas da vida por meio de roupas e acessórios. Hoje, esse
Moda, arte e interdisciplinaridade 56
movimento se repete não só por meio de marcas de moda, mas também por meio
da obra de artistas pop, como Takashi Murakami, que inunda com suas estampas
diversos objetos, que variam de chaveiros até quadros.
A vanguarda moderna que contaminou a moda se refletiu nas aproximações
entre couturriers e artistas. Muitos couturriers admiravam e frequentavam artistas
modernos. É o caso de Paul Poiret, que era amigo de Francis Picabia, Maurice de
Vlaminck, André Derain e Raoul Dufy, ou Chanel, que era ligada ao poeta Pierre
Reverdy e a Max Jacob. A versão de Jean Cocteau para Antígona teve cenários de
Pablo Picasso, figurino de Juan Gris e música de Arthur Honegger (LIPOVETSKY,
2001: 81).
As relações entre arte e moda estreitam-se de forma cada vez mais intensa
culminando em uma simbiose que passa a favorecer não só a moda, mas também a
arte.
A capa da revista Punch, de 1913, cria uma provocação ao tencionar a relação
entre arte e moda com a pergunta: “Por que não deixam os cubistas e futuristas
lançarem as tendências de moda da primavera?” (PEAKE apud STERN, 2044: 64 e
192).
Na década de cinquenta, a performance de arte trouxe uma preocupação aos
artistas do gênero que era inevitável: a roupa. A performance envolve criação de
roupas, o que anteriormente correspondia a desenhar para um espetáculo de dança
ou teatro, só que agora atendendo especificamente aos objetivos dos artistas, usando
a roupa como uma forma de autoexpressão ou como um elemento “quase-ritual”
(WOLLEN, 1999: 14).
Na década de setenta, é comum encontrar artistas japoneses e brasileiros,
assim como americanos e europeus, que realizavam performances e confeccionavam
suas próprias roupas, seu próprio design. Para as duas disciplinas, moda e arte, a
referência é a mesma, e a respeito dela convergem pontos em comum como a
utilização da cor, o movimento de onde pode nascer a forma, o gesto, o conceito ou a
escolha, a tela, o espaço, o volume. A tela para o artista é como o tecido para o
designer de moda e, nesse momento, o
artista prefere se aproximar do tecido
(WOLLEN, 1999: 15).
No Brasil, o artista, engenheiro e arquiteto
Flávio de Rezende Carvalho (1899–1973),
ficou conhecido, além de suas obras de
inegável valor, por sua coluna semanal no
jornal Diário de São Paulo e, acima de tudo,
por sua postura ousada e, de certa forma,
8. Flávio de Carvalho. Experiência nº 3, 1956 agressiva. Em textos diretos e sarcásticos,
Moda, arte e interdisciplinaridade 57
reconhecida, foi a de Giacometti. Ele foi responsável pelo desenho que estampou
lenços distribuídos como brindes de fim de ano aos clientes da Galeria Maeght, em
Paris, no ano de 1959. Para a execução deste projeto, pois
se trata de um design, ele pintou ao menos quatro telas a
óleo no tamanho do lenço a ser estampado. Como artista,
ele respeitou profundamente a função do objeto neste
projeto (WIESINGER, 2012: 131 e 132).
Os lenços (figuras 13, 14 e 15) compunham a
exposição de Giacometti realizada no Brasil de março a
junho de 2012. Eles se referem às pinturas de Giacometti
feitas a pedido da Galeria Maeght no ano de 1959. Antes
dele, Braque, em 1957, e Chagall e Miró, em 1958, também
13. Alberto Giacometti. Lenço, 1959
foram requisitados para este tipo de trabalho. A Fundação
Alberto e Annette Giacometti, que generosamente cedeu
essas imagens, não possui o registro das outras duas
pinturas que seriam testes para o referido lenço. Percebe-
se que só agora se revela um desvelo interdisciplinar da
obra de Giacometti no tocante à moda. Antes considerados
objetos de menor valor, esses “testes” para lenços não
tiveram tanta sorte na sua conservação. No ano de 2007,
a marca de moda Louis Vuitton editou um dos lenços do
artista que também foi exibido na Pinacoteca (figura 15),
onde a exposição foi sediada.
Na década de sessenta, Giacometti estabeleceu 14. Alberto Giacometti. Lenço, 1959
um rico diálogo entre o objeto
decorativo e o objeto de arte. Acreditava que, naquele
período, as fronteiras entre design e arte obnubilavam-se
de forma cada vez mais intensa. Este foi o tema de sua
exposição Antagonismos 2 – objetos, realizada em 1962
no Museu de Artes Decorativas de Paris. De qualquer
maneira, ele acreditava que os objetos, ao contrário das
produções artísticas, não tinham a aptidão de “adquirir
15. Alberto Giacometti. Lenço, editado vida” (WIESINGER, 2012: 134), ou melhor, não possuíam
pela Louis Vuitton, 2007
aura nas palavras de Walter Benjamin.
Outra vertente abordada pelo artista em sua obra foi o teatro. O artista criou
objetos que eram recorrentes em interiores de Jean-Michel Frank, e em desenhos de
Jean Hugo para a Harper’s Bazaar em 1938 (WIESINGER, 2012: 131).
A questão da teatralidade aparece na relação da obra com o espaço, em que ele
se aprofunda no esboço de uma arquitetura para um cenário de teatro e nos acessórios
Moda, arte e interdisciplinaridade 61
de cenário que ele criava, muito utilizados pela fotografia de moda (WIESINGER,
2012: 131) e que permite afirmar novamente o caráter interdisciplinar de parte de
sua obra com relação à moda. Essa teatralidade estava intrinsecamente ligada à
moda no período surrealista. Foi na década de trinta que as obras de Giacometti mais
apareceram ligadas ao universo do teatro, da decoração e da moda.
Na década de sessenta, William Klein, pintor abstrato, escultor da arte cinética,
cineasta e fotógrafo de moda, mostra muito de seu desprezo pela indústria da moda
em seu filme, sarcástico, quase cômico Qui
êtes-vous, Polly Maggoo?, onde ele cria
um mundo fantasioso da moda, fazendo
referência aos leitores de revista de moda
que, na década de sessenta, se
amontoariam ao ver “supermodelos”
(MUIR, 1999: 104).
16. William Klein. Qui êtes-vous, Polly Maggoo?, 1966
Klein também ficou famoso em 1965
por seu livro New York, um olhar sobre
a cidade que ele deixou para trás, focando no caos das ruas e no modo de vida
lunático das cidades. Ele desenvolveu uma estética e uma variedade de técnicas, que
incorporaram a distorção, closes, borrados que aparentavam um resultado acidental
ou não intencional. Klein trouxe suas idiossincrasias na linguagem visual para as
páginas da revista Vogue e produziu imagens subversivas e “antimoda” durante uma
década, destoando das imagens produzidas décadas antes que refletiam Nova Iorque
e Paris (MUIR, 1999: 103 e 104).
Aleksandr Liberman, então diretor de arte da Vogue, lembrou os leitores que
nem tudo na vida é saúde e felicidade. Segundo
Robin Muir, ele concebia a foto de forma que
contasse uma estória, como um quadro, o que
traz ao trabalho de moda um teor crítico, quase
politizado. Foi a partir do trabalho de Deborah
Tuberville, uma série de fotos de 1975 de
modelos em uma ducha, que uma tempestade
de protestos tomou forma. As modelos estavam
17. Deborah Turbeville. Fotos para Vogue, 1975
dispostas lânguidas, solitárias, sem qualquer
interesse no mundo externo. Criou-se um cenário de alucinação, que lembrava um
campo de concentração, onde seus corpos esvaziados de qualquer energia pareciam
estar dopados (MUIR, 1999: 104). Foi a primeira vez que fotos com este teor figuraram
em revistas de moda.
O período que compreende a década de quarenta até meados da década de
setenta foi marcado por uma produção têxtil prolífica. Tecelagens inglesas como a
Moda, arte e interdisciplinaridade 62
Ascher e a Liberty trabalharam neste espaço de tempo com vários artistas plásticos
que imprimiam às suas estampas um efeito pictórico, nem sempre condizente com as
regras da produção em série da estamparia têxtil, mas que mostram a interação entre
arte e moda (MACKRELL, 2005: 151), muitas vezes
transformando defeitos em efeitos de vanguarda.
Entre os principais artistas a quem foi solicitado
tanto pela Ascher quanto pela Liberty a dar sua
contribuição estão: Pablo Picasso, Jean Cocteau,
John Piper, Feliks Topolski, Eduardo Paolozzi, Francis
Picabia, Ben Nicholson, Barbara Hepworth, Henri
Matisse, Victor Vasarely, André Derain, Antoni Clavé,
John Tunnard, Françoise Gilot, Scottie Wilson, Ivon
Hitchens, Jean Hugo, André Lanskoy, Christian Bérard,
Marie Laurencin, Cecil Beaton, Phillip Jullian, Jean-
Denis Malclès, Constantin Alajalov, Alexander Calder,
Lucian Freud, Frances Hodgkins, Henry Moore, Graham 18. Henri Moore. Two Standing Figures
(for Ascher), 1947
Sutherland e Sonia Delaunay.
Essas estampas encontraram apoio de estilistas da época que faziam com que
elas se tornassem tendências. Essas estampas exibem um deslumbrante senso de
cor e mostram como os designs desses artistas ainda permanecem atuais (MACKRELL,
2005: 153).
Peter Wollen sustenta que um dos marcos
da aproximação entre arte e moda ocorreu em
1982, com a capa da revista nova-iorquina
Artforum5 feita pelo designer japonês Issey
Miyake com colaboração do artista Koshige
Shochikudo, que trabalhava com bambu,
em uma fusão de moda, trabalho manual e
escultura – esse ato assinalou um novo tipo
19. Issey Miyake. Capa da Artforum, 1982 de relacionamento entre arte e alta-costura
(WOLLEN, 1999: 15).
Em meados dos anos oitenta, vários ateliês de moda empregaram artistas para
aumentar sua “credibilidade artística”. Assim foi até a década de noventa, quando
Cindy Sherman fez fotos para Comme des Garçons; Nan Goldin para Helmut Lang
e Mitsuhiro Matsuda; Tracey Emin criou peças publicitárias para Vivienne Westwood;
Jenny Holzer desenvolveu um letreiro para Helmut Lang; e Julian Schnabel trabalhou
só como um meio de registro, mas como uma mídia criativa em si. Ao mesmo tempo,
artistas usam roupas relacionadas às performances com a finalidade de produzir seu
próprio vídeo de arte. A estética que transpassa o mundo da arte e da moda torna-
se cada vez mais permeável, como uma estética de mistura e de novas mídias que
continuam a se desenvolver (WOLLEN, 1999: 18).
A moda se comporta como arte quando mostra sua habilidade em criar “imagens
completamente simbólicas”, dando corpo às imagens tanto psicologicamente como
fisiologicamente, de maneira real e moderna. A moda tem um compromisso com o
visual e a função da alta-costura é reconciliar o lado visual e o lado tátil. No avant-
-garde da moda, o visual e o tátil estão frequentemente em uma dinâmica de tensão
(HOLLANDER apud WOLLEN, 1999: 18).
Um terceiro campo emergiu com o pós-modernismo. O campo da arte,
anteriormente dominado pela pintura e pela escultura, foi acrescido da performance,
do vídeo e da instalação, que passam a ter papel fundamental na interdisciplinaridade
entre arte e moda (WOLLEN, 1999: 18).
Artistas se voltaram para a moda assim como designers de moda se voltaram
para as artes, no sentido de explorar os conflitos dinâmicos e frequentes entre o
visual e o tátil, a arte e o design, a acepção da “forma pura” e do design para o uso.
O diálogo entre eles ainda está se iniciando, mas sua produtividade não pode ser
negada (WOLLEN, 1999: 18).
Para Caroline Evans, a provocação de Max Ernst de 1919, “vamos deixar a
moda existir, assim pode ser que a arte morra”, contrasta com os valores duráveis da
arte com a efemeridade e superficialidade da moda (ERNST apud EVANS, 1999: 97)
reforçados a partir da década de noventa.
A relação entre arte e moda passa a ganhar força principalmente a partir da
década de oitenta, atingindo seu ápice na Bienal da Moda, evento que ocorre a cada
dois anos na Europa e que prestigia os principais criadores da moda em exposições,
em museus antes destinados somente à arte (BRAGA, 2004: 104).
A primeira edição desta Bienal ocorreu em 1996, em Florença, e trouxe como
tema “O tempo e a moda”. Sua segunda edição, em 1998, ocorrida nas cidades de
Florença, Prato e Livorno, trouxe o tema “A moda se veste de cinema”. A Bienal da
Moda ilustra bem como esse arrivismo artístico foi acolhido e fez com que importantes
exposições de moda ganhassem cada vez mais espaço nos museus (BRAGA, 2004:
104).
Na contemporaneidade, a discussão em torno do corpo humano se intensificou.
Ele se distingue por sua característica de ser de certo modo inacabado, desnudo,
vulnerável e incompleto (ENTWISTLE e WILSON, 1999: 108). O modernismo reforçou
a ideia de que o corpo é como uma lacuna que deve ser preenchida.
Para Adolf Loos, algo só era considerado moderno se esse “algo” estivesse
Moda, arte e interdisciplinaridade 66
na moda há algum tempo, além de somente uma estação (LOOS apud SVENDSEN,
2010: 27). De acordo com este raciocínio, a moda em geral não é moderna, pois não
se considerava moderno algo tão efêmero que durasse uma estação ou menos. Essa
afirmação se mostra incoerente, uma vez que já ficou claro até aqui que a moda foi um
dos principais pilares da formação da vida moderna nas cidades do século XIX.
Confrontando as colocações de Entwistle e Wilson e Loos, depara-se aqui com
uma contradição: se o corpo humano, segundo Entwistle e Wilson, é de certo modo
inacabado e incompleto, ele não seria moderno de acordo com a ideia de boa forma,
mas é para este corpo que se criam inúmeros designs desde o século XV e, seguindo
o próprio raciocínio de Loos, este corpo é identificado como algo moderno por estar
em vigor há tantos séculos.
Esse corpo é inacabado, ou seja, é constantemente repensado. Aí reside a
maior dificuldade em elevá-lo ao status de boa forma de acordo com o ideal moderno.
Talvez o melhor exemplo desse corpo humano da mutabilidade constante seja a artista
Orlan e seu trabalho.
Em suas performances, ela se submete a cirurgias plásticas, em que recita
poemas, em uma tentativa irônica de se tornar Vênus de Milo. Ela questiona ferozmente
o sistema da moda, da obsolescência constante, e critica o sacrifício para se atingir a
boa forma, aqui observado em duplo sentido, a imposta pelas revistas de moda e a
proposta pelo modernismo.
26. Jurgen Teller. Campanha Jigsaw, 1997 27. Jurgen Teller. Campanha Jigsaw, 1997
6 Expressão latina que significa “lembre-se de que você é mortal” ou “lembre-se de que você vai
morrer”.
Moda, arte e interdisciplinaridade 72
artística de Regina Silveira pela carga semântica que cada objeto desses carrega.
O texto A revelação da sombra, de 1981, de José Teixeira Coelho Netto, dá
indícios sobre a série Armarinhos. O professor e curador fala de “um conflito, uma
colisão entre signos autônomos: o sentido surgindo
de uma incongruência resolvida esteticamente [...]
de um jogo de aproximações e colisões de signos
de proximidade insuspeitada” (COELHO, 1981).
Ele discorre a respeito da sombra “distanciada
do signo do objeto: duas dimensões distintas em
queda livre na direção de um terceiro significado
virtual [...]. Pela tradição, todo produto estético
desdobrava-se em duas vertentes, conteúdo e
forma. Mas há uma terceira margem: a da matéria,
aquilo que é a substância primeira do ato poético e
que receberá, num segundo momento, uma certa
forma que por sua vez se reveste de um conteúdo
exteriorizado. Matéria não é forma, nem conteúdo.
34. Regina Silveira. Tesoura, 2007 É a mola de ambos, o poético em estado extremado:
a ideia do poético, a sensação primeira do poético.”
(COELHO, 1981)
O objeto que não está lá se constitui como um jogo, baseado na intuição, mas
que ao mesmo tempo se recusa à
facilidade. Nesse sentido, o novo é
deixado de lado, passando a importar
o desconhecido e sua construção
(COELHO, 1981). Esses trabalhos de
Regina Silveira parecem priorizar a
sombra que se refere ao que há para
desvendar, o que está por de trás da
imagem.
Assim, revelar é velar de novo.
35. Regina Silveira. Botão, 2002
A sombra é escorregadia, movediça,
está e não está no lugar ao mesmo tempo e está no espectador que é a própria
sombra (COELHO, 1981).
Com relação à obra Tramazul, outro texto de Teixeira Coelho corrobora para
seu entendimento. Ele fala de uma “arte de sexo, com sexo” ao invés de se referir à
obra como uma “arte de gênero”, expressão que ele considera um eufemismo. O céu
bordado seria, portanto, um céu pós-feminista de acordo com a leitura. (COELHO,
2009)
Moda, arte e interdisciplinaridade 74
mundo de corpos vestidos ou pelo menos enfeitados, onde a nudeza sem adornos é
algo quase sempre inapropriado, mesmo quando é parcial (ENTWISTLE e WILSON,
1999: 107).
Evidências antropológicas também têm mostrado que todas as culturas vestem
o corpo de alguma maneira, com roupas, tatuagens, escarificação, cosméticos ou
de outras formas (ENTWISTLE e WILSON, 1999: 107). Essas escolhas representam
signos da autoimagem que se quer comunicar, e esses “signos falam sem palavras,
são linguagens não verbais altamente eficientes no mundo da comunicação humana”
(FERRARA, 2007: 6 e 7).
Isso leva à valorização da moda no ocidente evidenciada pela prática do vestir.
A moda se refere a um sistema particular para a produção e consumo de roupas,
caracterizado por um ciclo de estilos que mudam (ENTWISTLE e WILSON, 1999: 107)
incessantemente.
O corpo nu é tão potente que, quando é permitido vê-lo, quando, por exemplo,
ele é representado na arte, ele ainda é governado por convenções sociais. Enquanto
representação na arte e na mídia há uma distinção entre a nudez por escassez de
ornamentos e a nudez indecorosa. No espaço público, há regras sempre exigindo que
o corpo esteja vestido (ENTWISTLE e WILSON, 1999: 108).
A moda tem sido descrita como uma forma de vestir que se tornou uma forma
de adornar o corpo, e a natureza ubíqua do adorno/vestir sugere que o ato de vestir-se
é um dos meios pelos quais o corpo se torna sociável, além de dar a ele um sentido,
uma identidade (ENTWISTLE e WILSON, 1999: 108).
O ato individual e pessoal de se vestir é um ato de preparar o corpo para o
mundo social, tornando-o apropriado, aceitável, de fato respeitável e possivelmente
também desejável para os outros em um encontro social. Vestir é um modo importante
sobre como os indivíduos aprendem a viver em seus corpos e sentir-se em casa neles
(ENTWISTLE e WILSON, 1999: 108).
Vestir-se é uma prática de cuidar do corpo, que requer conhecimento, técnicas
e habilidade. Operar no limite entre o “eu” e os outros é a interface entre o individual e
o mundo social (ENTWISTLE e WILSON, 1999: 108).
O sistema da moda é marcado pela produção e distribuição de roupas, e ele
trabalha para promover, em qualquer período, uma estética específica que se torna
moda, em outras palavras, um estilo que se torna popular, um estilo desejável de
vestir (ENTWISTLE e WILSON, 1999: 107).
No mundo contemporâneo, as coleções de prêt-à-porter dos grandes costureiros
criam um cenário significativo ao promover certos estilos de vestir, e hoje esses estilos
alcançam a moda de rua mais rápido do que nunca com a ajuda das fábricas de
produção em massa que interpretam as coleções e trazem versões mais baratas
(ENTWISTLE e WILSON, 1999: 107), como as lojas situadas nos bairros Les Halles,
Moda, arte e interdisciplinaridade 77
senão ela corre o risco de virar uma “ciência das ciências”, como propunha Heckhausen
(FAZENDA, 2002: 30), onde se tornaria uma verdade absoluta contradizendo seus
princípios. Ela deve rever sua produção de conhecimento e conceitos a todo o
momento, a fim de não se tornar um discurso estabelecido.
A despeito da cultura do descarte de tendências, produtos e comportamento,
a moda também deve rever sua produção a fim de estabelecer critérios com uma
consideração especial que possibilitem a construção de uma crítica séria na área, sob
pena de não obter um grande reconhecimento acadêmico.
Uma rede de comunicação enraizada liga o planeta todo de modo que todos
se tornaram vizinhos próximos. Isso muda a relação do espaço-tempo do planeta.
O crescimento da especialização sinaliza e multiplica mais e mais necessidades
humanas e os meios para satisfazê-las (JAPIASSU, 1976: 10). A moda tem seu papel
como criadora de artifícios para satisfazer as necessidades humanas e, com o advento
da internet, principalmente desde a década de noventa, esse quadro só se agrava.
Dessa forma, a verdade humana se submete à verdade econômica. É preciso
ter cuidado com “a verdade econômica que nem sempre se identifica com a verdade
humana” (GUSDORF apud JAPIASSU, 1976: 12).
Quanto mais as disciplinas se desenvolvem, mais elas se vêm dissociadas
da realidade humana, dado o grau de abstração que visam atingir. Assim, quanto
mais rigoroso seu discurso, mais ele se vê separado da realidade (GUSDORF apud
JAPIASSU, 1976: 14).
É necessária a renúncia ao excesso de especialização, que leva à abstração
por parte dos pesquisadores. Eles têm de estar comprometidos na “restauração das
significações humanas do conhecimento”. A ciência que divide para reinar dissocia as
perspectivas, levando a um racionalismo que descaracteriza a natureza e desumaniza
o homem (GUSDORF apud JAPIASSU, 1976: 15-19 e 20), relegando a subjetividade
à informalidade.
A patologia contemporânea se traduz em uma “patologia do saber” e uma
patologia da existência individual e coletiva. É preciso que o homem da especialidade
se torne também o homem da totalidade, em uma dinâmica compensadora à da
especialização que seria a da não especialização, onde seria fundada a consciência
interdisciplinar postulada por Japiassu. Para tanto, é necessário que cada especialista
supere os limites de sua área de conhecimento de forma que ela não seja desfigurada,
acolhendo as contribuições advindas de outras disciplinas (GUSDORF apud
JAPIASSU, 1976: 23-26). A disciplina isolada só consegue atingir um sentido parcial e
limitado da realidade que foi destacada (JAPIASSU, 1976: 67).
Ivani Fazenda considera que a interdisciplinaridade é uma atitude que implica
a mudança de hábitos adquiridos com relação à compreensão do conhecimento
(FAZENDA, 2002: 20). É uma nova forma de ver, uma nova leitura despida de
Moda, arte e interdisciplinaridade 84
perdido sua força como discurso estético. Assim, o manequim, que possui uma ligação
com a moda, não era o único elemento usado pelos artistas surrealistas. Apesar de
esta figura ser recorrente, ela não é responsável pelo discurso surrealista, e a ligação,
apesar de evidenciada por estudiosos (como Ulrich Lehmann), não é evidente para a
moda sequer como uma atitude pluridisciplinar – que dirá interdisciplinar – considerando
seus níveis de integração. A obra de Chirico não tem ligação direta com a moda e o
uso do manequim como suporte para a arte não é suficiente para enriquecer o campo
da moda. A ligação não é aparente, pois não gera benefícios visíveis para os dois
campos. Portanto, o exemplo proposto é multidisciplinar.
No caso da pluridisciplinaridade, a diferença é que há alguma cooperação,
mas não coordenação entre as disciplinas. São disciplinas agrupadas, de modo que
algumas relações existentes entre elas podem aparecer, sem que isso faça com que
haja qualquer colaboração para as disciplinas envolvidas (JAPIASSU, 1976: 73).
A pluridisciplina ocorre quando há a justaposição de disciplinas próximas,
onde pode haver relação, mas ela não é aparente (MICHAUD apud FAZENDA, 2002:
27).
O Electric Dress, o vestido de lâmpadas representado pela figura 11 do Capítulo
I, da artista japonesa Atsuko Tanaka, evidencia relações aparentes entre a arte e a
moda, mas sem gerar enriquecimento para a última. Se de um lado ela contribui para a
arte propondo uma nova obra, por meio de um novo suporte, por outro ela nada altera
no campo da moda. Dessa forma, esse exemplo constitui um caso pluridisciplinar por
existir relação entre os dois campos, arte e moda, representados pela obra citada,
mas sem contribuição efetiva para ambos.
É importante esclarecer que o princípio de diferenciação entre um nível
interdisciplinar e outro é coordenado pela intensidade das trocas e pelo grau de real
interação. Segundo Japiassu, a interdisciplinaridade em si se destaca das demais até
agora por se caracterizar como um campo unitário do saber, ou seja, seu espaço é
encontrado na negação e na superação das fronteiras existentes entre as disciplinas
(JAPIASSU, 1976: 74).
O termo interdisciplinaridade surge na década de setenta como um neologismo,
que ainda hoje não possui sentido estático. É necessário propor uma diferenciação
entre multi e pluri de um lado para explicar a interdisciplinaridade que se coloca do
lado oposto (JAPIASSU, 1976: 72).
Interdisciplinaridade, para Japiassu, significa religar fronteiras estabelecidas
anteriormente entre as disciplinas que, por algum motivo no decorrer do processo,
seguiram rumos diferentes culminando na multi ou pluridisciplinaridade (JAPIASSU,
1976: 75).
A interdisciplina, de acordo com Fazenda, é configuração entre duas ou mais
disciplinas onde existe a interação, que pode ir da troca de ideias à troca de conceitos,
Moda, arte e interdisciplinaridade 87
teorias interdisciplinares.
Para o autor, os campos prático e teórico não se excluem, muito pelo contrário,
colaboram entre si, e esta ação está no cerne da interdisciplinaridade (JAPIASSU,
1976: 45)
É claro o posicionamento interdisciplinar quanto ao seu legado para o sistema
universitário: ela deseja transformar e desenvolver o pesquisador com um olhar aberto
que não se encerra em sua área específica. Assim, a universidade interdisciplinar
se estabelece como lugar de prática da descoberta das estruturas em detrimento
da repetição exaustiva de conteúdos, lugar de reflexão permanente de ordem
epistemológica crítica, onde ela supera o corte entre universidade, saber, sociedade e
realidade, e estimula a atividade e a pesquisa coletivas (JAPIASSU, 1976: 162).
Por um lado, Fazenda declara que a prática interdisciplinar inexiste nas
universidades brasileiras, seja no ensino, seja na pesquisa (FAZENDA, 2002: 15).
Por outro, a autora reconhece que há algum interesse no que diz respeito à prática
interdisciplinar no país, uma vez que ela admite a possibilidade de trabalhá-la no ensino
desde o final da década de sessenta, enquanto em países da Europa e nos Estados
Unidos ela se apresenta ainda hoje como um tema controverso (FAZENDA, 2002: 7).
Não se pode generalizar, mas, quando há prática interdisciplinar, ela é incipiente ou
não é formalizada e registrada adequadamente.
A interdisciplinaridade afeta a forma de pensar, o discurso da construção do
conhecimento. Assim, o grande desafio interdisciplinar não é somente a tomada de
consciência, mas a aceitação de uma nova postura diante do conhecimento que se
reflete na inevitável reorganização dos estudos e pesquisas já realizados, ou em
andamento, de forma metodológica (JAPIASSU, 1976: 31). A divisão racional do
trabalho aumenta, por sua vez, sua eficácia e produtividade (JAPIASSU, 1976: 41).
Japiassu defende que há urgência em se criar a uma nova antropologia, que
teria a tarefa de reagrupar os dados pesquisados por todas as disciplinas em uma
perspectiva de convergências interdisciplinares, e que daria origem a um projeto de
pesquisa orientado reflexivo (JAPIASSU, 1976: 182).
Esses dados deveriam ser revistos sempre, à exaustão, pois assim colaborariam
para reafirmar a necessidade da atividade em grupo na prática interdisciplinar. Dada a
dimensão desse trabalho, ele envolveria vários grupos organizados empenhados em
fazer um levantamento desses estudos e realocá-los constantemente em grupos que
concorressem para a realização de pesquisas interdisciplinares, além de funcionarem
também como vigias dedicados a combater sectarismos intelectuais.
Em respeito a essa nova antropologia proposta por Japiassu, esta pesquisa
busca cumprir parte de seus objetivos, uma vez que não é uma pesquisa em grupo.
Ela realiza o levantamento de casos interdisciplinares que envolvem arte e moda e os
analisa, buscando organizar o pensamento sobre a arte e a moda. Essa colaboração
Moda, arte e interdisciplinaridade 91
para a moda é indispensável por reforçar seu reconhecimento como uma ciência ou
atividade dotada de profundidade sob a óptica interdisciplinar.
Com relação à questão metodológica, é importante estabelecer a problemática
que guiará a pesquisa de modo bastante claro. Desse modo, cada envolvido no
processo compreenderá qual seu grau de participação na pesquisa (FAZENDA, 2002:
55).
Outro ponto relevante é que, se a pesquisa interdisciplinar está invariavelmente
ligada à realidade, que está ligada à sociedade, uma linguagem clara só vem contribuir
para que o resultado de uma pesquisa atinja seu objetivo final: retornar como forma de
benefício para a sociedade. Para tanto, a pesquisa deve considerar o seu interlocutor;
as pessoas que colocarão o produto da pesquisa em prática devem ter uma leitura
acessível da mesma.
É preciso ser crítico com relação ao que se preza em uma pesquisa
interdisciplinar. Seus pesquisadores devem ter certa independência com relação aos
temas a serem pesquisados para que não se convertam em instrumentos a serviço
da ideologia da tecnoestrutura. A tecnoestrutura é representada por três blocos: o
da burocracia industrial, o da tecnocracia ou gestão profissional e o do saber técnico
necessário ao processo de inovação (JAPIASSU, 1976: 213).
A dimensão crítica é indispensável. A “ciência crítica” visa recolocar as práticas
científicas no contexto sócio-político-cultural (FAZENDA, 2002: 13). A sociedade
precisa se beneficiar dos avanços científicos de forma mais direta.
A interdisciplinaridade requer o uso da intuição para apontar as relações não
observadas entre as coisas (FAZENDA, 2002: 15). O pesquisador comprometido, que
tem conhecimento sobre seu campo de estudo, busca o estado da arte em seu objeto
de estudo, e sua intuição é decisiva neste processo. Ela entra no espaço adequado da
“liberdade do pesquisador”. Essa liberdade garante que o estudo responda e legitime
as dúvidas e hipóteses propostas pela pesquisa e que o trabalho do pesquisador não
seja colocado a serviço de interesses escusos.
Segundo Fazenda, deve haver uma preocupação constante com o
desenvolvimento de certas aptidões intelectuais e de faculdades psicológicas além da
memória e do simples raciocínio discursivo (FAZENDA, 2002: 17). A pesquisa jamais
pode ser colocada a serviço de uma clientela e, embora o mercado muitas vezes force
a essa sujeição o campo acadêmico, este deve se declarar em um ato verdadeiramente
interdisciplinar como um baluarte da ética combatendo esses receios.
Existem ainda dois tipos de pergunta comuns ao processo de pesquisa.
A intelectual, que explicita seu objetivo e busca respostas imediatas, e a de cunho
existencial, que contempla os compromissos e angústias que permeiam a vida. As
perguntas acadêmicas conduzem a resultados previsíveis, enquanto as “perguntas que
transcendem o homem e seus limites conceituais exigem respostas interdisciplinares”
Moda, arte e interdisciplinaridade 92
Estudo de Caso de
Design de Superfície
Moda, arte e interdisciplinaridade 101
2009, 355).
Sprouse era um desses indivíduos raros, que é ao mesmo tempo frágil e
indestrutível. Ele era uma daquelas pessoas que influenciavam positivamente as
pessoas ao seu redor, fazendo-as acreditar que elas também eram talentosas e
fornecendo a elas evidências disso (O’Brien: 2009, 355).
Como designer, ele criava uma coleção brilhante
após a outra, sempre conseguindo extrair o incomum de
algo aparentemente banal ou que já havia sido dado por
perdido (O’Brien: 2009, 355).
Sprouse nunca foi um artista do grafite. Mas ele
vivia cercado pelo grafite e pelos seus mais importantes
representantes, como Jean-Michel Basquiat e Keith
Haring. Para Sprouse isso era algo inerente à sua
geração, e a despeito de suas palavras hesitantes, ele
era um estilista extraordinariamente eloquente. Ao ver
uma caligrafia em um muro, Stephen sabia que o grafite
representava o triunfo da mão humana na era das
megacorporações e da produção em massa (O’Brien:
39. Stephen Sprouse. Sem Título, 1984
2009, 355).
O dado humano em sua obra é recorrente e
mostra como sua produção, artística ou de design, está alinhada ao pensamento
interdisciplinar que visa combater paradigmas no que diz respeito à visão cartesiana
que ainda hoje acomete as ciências e as artes. A despeito do desenvolvimento que
a ciência possa proporcionar é preciso lembrar do componente humano que está por
trás dela.
Sprouse era capaz de ver, desenhar, pintar e arrumar as coisas de um jeito
que elas pareciam ser do futuro, e sua visão implacável transformou o panorama da
moda (O’Brien: 2009, 355). Ele era uma espécie de artista, estilista e diretor-criativo
ao mesmo tempo. Tinha uma capacidade admirável de criar imagens.
A participação de Sprouse na criação da Louis Vuitton abriu as portas para as
inovações subsequentes imaginadas por Jacobs. Foi uma espécie de manifesto de
Sprouse em sua abordagem. Seus acessórios projetados para a Vuitton atravessaram
violentamente o mundo do parisiense chique (GASPARINA, 2009:46).
Marc Jacobs sabia disso, e foi um golpe de mestre aliar-se a Sprouse. O’Brien
conta que Jacobs viu em Sprouse sua alma gêmea. Há grandes semelhanças entre o
talento de ambos, mas, se por um lado Sprouse era tolhido por sua hesitação e
laconismo, Jacobs era uma força eloquente da natureza. Em um ponto os dois se
pareciam: eram ao mesmo tempo parceiros de trabalho e fãs um do outro. Stephen
gostava de utilizar o trabalho de amigos artistas em seus projetos de moda. Ele sabia
Moda, arte e interdisciplinaridade 105
que trabalhar com outro criador não o depreciava, mas o enaltecia enquanto artista, e
Marc Jacobs também acreditava nisso (O’Brien: 2009, 355).
Ambos entenderam intuitivamente
que o ato de alterar a marca registrada da
Louis Vuitton, consagrada comercialmente,
deu uma nova vida a empresa que guarda
tão zelosamente o símbolo de sua herança.
Eles fizeram a marca entender que o grafite
não alteraria sua tradição e que para crescer
ela precisaria de um toque cada vez mais
humano (O’Brien: 2009, 355).
O estilista se aproximou cada vez mais
40. Stephen Sprouse. Louis Vuitton Graffiti, 2009
de Sprouse pela admiração que tinha pelo
trabalho do amigo. Guiado por esse
sentimento, a colaboração foi selada. Stephen Sprouse também era um estilista e isso
só ajudou para que os dois se unissem cada vez mais (GASPARINA, 2009: 47).
O artista desenvolveu, em 2001, ao lado
de Marc Jacobs, as primeiras peças grafitadas
para a marca. Dado o sucesso da coleção criada
em 2001, o trabalho foi reeditado somente com
uma mudança de cor e relançado em 2009.
Em viagem a Paris em janeiro de 2009,
foi possível constatar que essa coleção de
acessórios, criada por Sprouse e Jacobs,
lançada em oito de janeiro de dois mil e nove,
foi responsável por uma fila de dar a volta no
41. Stephen Sprouse. Louis Vuitton Graffiti, 2009
quarteirão, ao redor da loja.
O preço das peças variava de cem a mil seiscentos e noventa euros e, na hora
do almoço, já não tinha sobrado nada nas lojas. Jacobs afirma que se oferecer à suas
clientes alguma coisa instigante, interessante,
elas vão comprar. Além dessa coleção, outras
parcerias interdisciplinares foram realizadas com
Sprouse. Entre elas está uma de 2006, em que ele
desenvolveu uma padronagem de leopardo para a
Vuitton.
No mês seguinte, a coleção Graffiti foi
lançada no Brasil. Segundo informações de Marc
Sjostedt, gerente-geral da marca no Brasil, essa
coleção era uma espécie de tributo prestado à 42. Stephen Sprouse. Louis Vuitton Graffiti, 2009
Moda, arte e interdisciplinaridade 106
de homenagem a Wahrol.
Tendo iniciado suas atividades no Brooklyn em 1998, em um estúdio que
funcionava como entreposto do estúdio japonês de Murakami, o lugar se dedica tanto
à produção em massa quanto ao refinamento da estética elitizada do Superflat de
Murakami (MEAD: 2009, 290).
Murakami foi o fundador do movimento Superflat, que mistura referências do
mangá e do anime, além da cultura pop ocidental. Com seu estilo assina produtos que
vão da alta moda a chaveiros e toy art. Seu trabalho está representado em museus de
todo o mundo.
No Kaikai Kiki New York, em Long Island,
subindo as escadas, há um escritório com uma
bancada de computadores tripulada por asseclas
usando fones de ouvido, que lidam com a
produção e promoção das obras de arte de
Murakami, a gestão e o suporte de artistas
seletos, a feira de arte semestral GEISAI em
Miami e Tóquio, e a divisão internacional de
merchandising da empresa. Seus produtos
variam das bolsas luxuosas aos chaveiros
47. Takashi Murakami. Multicolor Monogram Black,
2003
baratos. Descendo um andar, vinte funcionários
especializados produzem a arte – imagens que
remetem ao cartoon, escandalosamente enquadradas em folhas de platina – de
acordo com as instruções precisas enviadas por designers sêniores de Murakami
(MEAD: 2009, 290).
Se o local não tem os zumbidos de uma linha de
montagem, ainda assim há prazos para cumprir uma
ordem de Murakami no que diz respeito à produção,
incluindo parcerias como a que tem com Kanye West,
com quem Murakami começou trabalhar em 2007
desenhando capas de álbuns, além da Louis Vuitton,
cujo monograma padrão Murakami foi encarregado
de renovar em 2003 a pedido de Marc Jacobs, diretor
criativo da marca. “Quando eu vi o trabalho de Takashi
48. Takashi Murakami. Multicolor Mono-
Murakami pela primeira vez eu sorri e me surpreendi: gram White, 2003
De onde vem essa explosão?”, diz Jacobs (MEAD:
2009, 290).
“Eu adoraria se a mente que imaginou este mundo produtor de extravagâncias,
de olhos de água-viva, musgos cantores, cogumelos mágicos e criaturas que se
metamorfoseiam, estivesse disposta a renovar o icônico monograma Louis Vuitton”,
Moda, arte e interdisciplinaridade 109
uma cena de Alice no país das Maravilhas, na qual três servos da Rainha de Copas
são vistos pintando freneticamente rosas brancas de vermelho (MEAD: 2009, 290).
A única coisa que faltava nessa fábrica de arte era o próprio artista: Murakami.
Ele passa somente uma pequena parte do tempo em Nova Iorque, e a maior parte do
tempo se encontra na sede do Kaikai Kiki, em Tóquio. A filial do escritório de Murakami
foi criada em Nova Iorque para diminuir a logística e os custos envolvidos na venda
para uma clientela internacional (MEAD: 2009, 290).
Sua presença física é requisitada em apenas duas tarefas: aprovar e então
assinar as obras produzidas em seu nome. “As pinturas nunca estão prontas antes
que ele diga que está”, diz Jeff Vreeland, um gerente do estúdio. “Só é uma pintura
quando ele diz que é.” (MEAD: 2009, 290)
O trabalho de Murakami só pode ser produzido da maneira como é porque não
depende da presença física do artista: seria um trabalho extenuante e inacessível em
termos financeiros para ser feito pelo próprio artista. Mas ao mesmo tempo em que
a presença física não é necessária para a produção desses trabalhos, Murakami é
completamente dedicado à sua arte, em um grau que suplantará o artista que mais
“põe a mão na massa”. “Eu acordo e durmo no estúdio, cuido da minha dieta para ter
longevidade, pratico exercícios, leio pilhas de livros, falo com meus funcionários o dia
todo, faço alguns desenhos, e vou dormir,” ele diz. “A minha vida se resume a isso.
A única coisa que eu espero é o momento em que um projeto é concluído, e essa
satisfação dura apenas três segundos.” (MEAD: 2009, 290)
Murakami não tem um apartamento no Japão ou em Nova Iorque; ele prefere
viver em seu estúdio. Seu quarto em Long Island consiste em um quarto diminuto,
separado da entrada comum por uma porta translúcida deslizante e contém pouco
mais que uma cama queen-size e uma mesa com alguns livros sobre ela. O que
acontece naquele quarto nas poucas horas em que Murakami não está efetivamente
trabalhando é um sonho recorrente, no qual ele diz: “Estou sendo assustado e
perseguido por um robô gigante, e eu continuo correndo em alta velocidade pelas
esquinas da velha cidade”. (MEAD: 2009, 290)
A questão da tecnologia misturada a um mundo fantástico permeia a vida de
Murakami. As figuras alegóricas que participam de sua vida invadem seus momentos
mais íntimos. A velocidade é outro elemento recorrente em suas criações. Percebe-
-se, em suas obras e seu processo criativo, uma voracidade por criar cada vez mais
e mais imagens.
Quanto à relação existente entre arte e moda em sua obra, Murakami se refere
a essas imprecisões como “ladainha”. Para ele vigora o princípio da colaboração que
é a própria resposta. Ele afirma que, daqui a duzentos anos, essa colaboração para a
Louis Vuitton será vista como arte. Ele gosta dessa dicotomia. De qualquer maneira, o
que interessa é o conceito que envolve a colaboração realizada para atingir o objetivo:
Moda, arte e interdisciplinaridade 112
trabalho de ambos. Ao criar sua arte, eles tangenciam o design e a moda. Ao criar
design, não se desvinculam da arte. A forma dos dois projetarem se rebate na seguinte
afirmação: eles produzem arte pensando em design e design pensando em arte.
3
Vanessa Beecroft e
a não intervenção
no produto da
Louis Vuitton
Moda, arte e interdisciplinaridade 115
são mulheres nuas que os homens querem ver, são mulheres nuas que eles vão ter.
Longe de ser a mulher produzida para um ensaio fotográfico, suas mulheres
parecem inanimadas, como uma mortalha. Inertes, entediadas e sem muita produção,
todas se parecem entre si. Nessa homogeneização dessas figuras humanas, o que
interessa é o discurso do corpo. A artista revoga o romantismo que a nudez feminina
possa ter em detrimento de um discurso direto e crítico.
Em sua primeira instalação em Milão, VB01, de 1993, a artista procurou modelos
para a performance prestando atenção aos seus atributos físicos, sua maquiagem e
os acessórios que completariam o efeito desejado (HERMANGE: 2009, 132).
Em suas performances, a cenografia às vezes é mínima, com o espaço
previamente designado – frequentemente uma instituição de arte – praticamente
intocada pela presença de tantos corpos. Outras vezes, há uma narrativa mais clara
(HERMANGE: 2009, 132).
Na maior parte das performances de Vanessa Beecroft, as modelos sob
instrução minuciosa da artista não se movem. Em outras performances, elas se
movem vagarosamente, languidamente, embora sem exageros. Em geral, elas não
se comprometem com a audiência, mas se isso ocorre, é de forma rápida e evasiva,
de relance (BURTON, 2005: 64).
As modelos não têm nenhuma responsabilidade pelo efeito que causam nos
espectadores. Nestas circunstâncias, o espectador é levado a encarar e projetar sua
visão, seu desejo e sua identificação (ou não identificação) nas modelos. Obrigados
a assistir, pela incerteza da cena a que estão assistindo, os espectadores esperam a
promessa de alguma ação ou de um sinal de reconhecimento de suas presenças, seu
controle, que seus olhares desejosos podem ser devolvidos (BURTON, 2005: 64).
O espectador sente-se envergonhado pelo modo como sua atenção não é
percebida, não é levada em conta ou fica impune. Outros membros do público acusam
a presença de outros espectadores. Eles são espectadores que desempenham um
papel no espetáculo, engajados no processo voyeurista de avaliação dos corpos que
realizam a performance à sua frente (BURTON, 2005: 64).
As performances de Beecroft, que são conhecidas como uma arte
“padronizada”, que recorre a ícones do cinema e da moda, têm sido bem documentadas
desde 1993. Os títulos são simples e progressivos, como VB01, VB02, VB03 e assim
por diante, e suas performances variam em termos de acessórios como perucas,
meias, sapatos etc. (BURTON, 2005: 64).
As performances têm evoluído a partir de eventos não ensaiados, envolvendo
mulheres parcialmente vestidas, reais, onde é dado o mínimo de instrução, para que
“espetáculos de proporções épicas” sejam orquestrados cuidadosamente, usando
modelos nuas, ou quase nuas. O trabalho de Beecroft é baseado em ideias de controle
e instrução (BURTON, 2005: 64).
Moda, arte e interdisciplinaridade 117
Beecroft possui algumas regras básicas para uma performance. Entre elas
estão:
“Não converse, não interaja com outros, não cochiche, não ria, não se mova
teatralmente, não se mova muito devagar, seja simples, natural, desarme-se, seja clássica,
inacessível, alta, forte, não seja sexy, não seja rígida, não seja casual, assuma o estado de
espírito que você preferir (calma, forte, neutra, indiferente, orgulhosa, educada, superior),
comporte-se como se você estivesse vestida, como se não houvesse mais ninguém no
mesmo ambiente, você é como uma imagem, não estabeleça contato com o exterior,
mantenha-se firme o quanto puder, lembre-se da posição que foi atribuída à você, não sentem-
se todas ao mesmo tempo, não façam os mesmos movimentos ao mesmo tempo, alternem
posições de descanso com posições de alerta, se você estiver cansada, sente, se você tem
que sair, faça em silêncio. Aguente até o fim da performance, interprete as regras com
naturalidade, não transgrida as regras, você é o elemento essencial da composição, suas
ações se refletem no grupo, quando estiver próximo ao fim você pode se deitar, levante-se
pouco antes da reta final.” (Beecroft in Marcella Beccaria 2003, p.18-19)
evento de abertura da loja deu à artista a oportunidade única de criar uma imagem que
não teria sentido em outro contexto. E por essa razão, ela se sente muito satisfeita em
ter tido esta oportunidade de trabalhar neste espaço (BEECROFT, 2007: 5).
Beecroft (BEECROFT, 2007: 5) afirma que o mundo da arte também tem suas
próprias lojas para a comercialização de seus produtos. De qualquer maneira, o foco
imediato desta performance premeditada não é vender mais bolsas ou mais obras de
arte.
No entanto, para a marca, este ato equivale a legitimar a identidade intelectual
da empresa, para ajudá-la a entrar em uma esfera superior a do comércio em si. E
para o artista, a parceira proporciona o acesso a um desafio e uma maior exposição
(BEECROFT, 2007: 5).
Uma vez que um alto valor de mercado é atingido pelos produtos das empresas,
elas frequentemente querem elevar seu status cultural – para se tornarem patronos de
ideias e conceitos, e até mesmo unir-se ao avant-garde. Trabalhando nesse ambiente,
Beecroft (BEECROFT, 2007: 5) afirma que se sente quase como se estivesse
trabalhando em um museu.
Se por um lado a artista não se diz adepta da moda, por outro ela eleva uma
loja de moda – que representa um dos maiores centros irradiadores de ideologias
destinadas ao consumo – ao patamar de um museu. É possível sustentar que a moda
não é apenas um apêndice na obra de Beecroft.
Mas para escapar definitivamente das atividades mundanas e comerciais –
como vender bolsas – hospedar um evento de arte, ou pendurar uma obra de arte em
uma loja não é suficiente (BEECROFT, 2007: 5). É preciso assumir riscos.
Riscos incluem submeter um trabalho de arte a um ambiente vulgar; ou aplicar
à arte as mesmas regras que são aplicadas ao merchandising, reforçando assim a
supremacia cultural que diz que é possível se apropriar de ideias, transformar a arte
em commodity e cooptar o avant-garde (BEECROFT, 2007: 5).
Trabalhando nos bastidores do poder, a questão que permanece para Beecroft
(2007: 5) é: de que lado da linha ela está? A artista recebeu muitas críticas na ocasião
da realização dessa performance, possivelmente porque entre os dois lados, da arte
e do comércio, seu posicionamento nem sempre é claro.
Ela diz se inspirar no modus operandi dos primeiros pintores renascentistas
que trabalharam para o Papa Giulio II, incluindo Rafael, cujas composições e imagens
perfeitamente equilibradas continuam a despertar um sentimento de confiança e
beleza, enquanto ao mesmo tempo inspiram dúvida. Ele se aproximou da expectativa
da Igreja por meio de uma imagem de estabilidade ao alcançar o equilíbrio ideal
entre paisagem, figura e arquitetura – surpreendendo a todos (BEECROFT, 2007: 5).
Quando pensada a relação entre moda e pintura renascentista, surge outra questão
fundamental: o panejamento. O peso do tecido e sua caída eram fundamentais para a
Moda, arte e interdisciplinaridade 126
de carga onde eram transportados escravos. Ela conta que já desejava fazer um
alfabeto com corpos femininos, mas que antes do convite da Vuitton não tinha nada
para escrever (BEECROFT, 2007: 49).
Foi preciso submeter as modelos a uma posição desconfortável para escrever o
nome da marca. Elas precisavam se dobrar para atingirem as formas desejadas. Para
a artista, as formas das letras eram reminiscências das formas cariátides (BEECROFT,
2007: 49).
Sem dúvida, havia interesse também em design gráfico e fontes. Para realçar
as proporções cromáticas do logo da Louis Vuitton, foram usadas majoritariamente
modelos negras e uma minoria branca (BEECROFT, 2007: 49). O tom de pele das
modelos negras variava bastante, a fim de alcançar o contraste desejado.
Nesse trabalho, a artista buscava criar uma imagem que remetesse ao período
colonial, quando a Louis Vuitton começou suas operações, em 1854. Vuitton teve a
intuição de construir baús assim que as pessoas começaram a viajar para países
remotos. Ele havia previsto a necessidade de um recipiente de bagagem compacto.
Mesmo sendo analfabeto, produziu baús para sheiks, soberanos e exploradores do
Oriente Médio (BEECROFT, 2007: 50).
Com relação à produção do alfabeto, a artista escolheu um ensaio fotográfico
para se proteger contra riscos. A artista temia imprevistos ao fotografar uma performance
ao vivo, ainda mais se tratando da construção complexa de um alfabeto com corpos
(BEECROFT, 2007: 50).
Na VB56, havia a novidade de executar uma performance na loja e de trabalhar
com uma marca de artigos de luxo, algo até então inédito para a artista. Ela conta que,
quando aceitou o projeto, estava na Alemanha realizando uma performance na Neue
Nationalgalerie, em Berlim. Era a VB55, que ela considerava o oposto da performance
para a Louis Vuitton (BEECROFT, 2007: 50).
No dia da performance em Paris, ela pediu à Louis Vuitton que fossem removidas
todas as bolsas da nova coleção no espaço que havia sido atribuído a ela na loja da
Champs-Élysées, e que as prateleiras fossem preenchidas somente com coleções de
malas de viagem clássicas. A artista também solicitou que fossem mantidas as bolsas
das linhas Keepall, Speedy e Noé, porque elas exemplificavam o estilo e filosofia da
Louis Vuitton (BEECROFT, 2007: 50).
A partir daí, ela afirma que não “terminou” a preparação das modelos,
e as mostrou “não finalizadas” com meias em suas cabeças ao invés de perucas
(BEECROFT, 2007: 50). Havia interesse por parte da artista em contestar o ideal de
beleza feminino que, por vezes, ela reproduzia em suas performances, porque, nesse
caso, dentro da Louis Vuitton, representante máxima do consumo de moda, a crítica
proveniente de seu trabalho seria mais incisiva se as modelos parecessem padecer
ao lado de malas e bolsas luxuosas.
Moda, arte e interdisciplinaridade 128
subversivo do mundo da arte? É difícil levar essa discussão adiante, mas é reconhecido
no risco um papel muito importante (GASPARINA, 2009: 46).
Ao realizar o trabalho para a Louis Vuitton, talvez Vanessa Beecroft não esteja
contemplando a arte contemporânea somente por meio da performance, mas também
por aludir ao objeto de moda que é emblemático para a produção artística recente.
O que também contribui para aumentar o interesse no ato interdisciplinar talvez
seja o fato de a artista considerar o espectador, que tem a possibilidade de ativar a
obra. O público se sente em certo sentido efetivando a obra.
4
ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES
Moda, arte e interdisciplinaridade 132
10 O termo logomania é utilizado aqui para designar o uso excessivo do nome de uma marca em
seus produtos, tornando-o um objeto de reconhecimento imediato, literal e de baixa complexidade. No
caso de bolsas e roupas o nome da marca pode aparecer ao mesmo tempo em um produto no couro
ou tecido, nos metais, no pingente do zíper etc.
Moda, arte e interdisciplinaridade 134
e arte pode ser uma combinação perigosa, mas no caso de Hill e Scher elas não
parecem ter intenções espúrias.
As duas artistas irrompem as barreiras da arte e do comércio. Da mesma
forma, a Louis Vuitton ultrapassa a barreira do comércio e chega até a arte. A moda
nesse contexto fala sobre arte sem negar sua finalidade primeira, diretamente ligada
à indústria do design: o lucro.
Deixando de lado a imagem da Louis Vuitton – de empresa multinacional
detentora de produtos icônicos –, esses atos conjuntos marcam um período muito fértil
para a interação da arte e da moda. Longe de ser algo passageiro, essas colaborações
entre artistas e estilistas assumem um novo patamar na criação contemporânea.
A partir daí, moda e arte assumem um novo posicionamento, onde não se fala
somente sobre arte ou sobre moda de forma isolada ou como um prenúncio do ato
interdisciplinar. No contexto estudado elas se tornam uma coisa só, uma unidade que
inexiste se separada. Mesmo que essa entidade ainda não possua um nome, ela já se
manifesta por meio de atos como estes realizados pela Louis Vuitton.
A questão é que fenômenos de equivalência e trocas simbólicas sempre
existiram entre os mundos da arte, da moda e do luxo. No caso da Louis Vuitton, é
importante entender como um acessório de luxo e uma obra de arte se aglutinam em
uma bolsa (GASPARINA, 2009: 43).
A mistura entre arte e moda nem sempre visa tornar os acessórios da marca
mais belos, pelo menos não no sentido tradicional, mas sim mais originais. Essa
originalidade pode beirar o bizarro e, nesse ponto, o ato de interação remete ao modus
operandi do avant-garde (GASPARINA, 2009: 43).
O trabalho de Marc Jacobs com os artistas contemporâneos visa converter
uma intuição em um produto real. Ao selecionar um experimento que Jacobs chama
de “acidente”, parte-se para entender o significado e poder de seu potencial estético
(GASPARINA, 2009: 43).
Além disso, existe a experimentação do artista isolado que, na maioria das
vezes, nunca trabalhou com design, especialmente design de moda. A criatividade
frequentemente é fruto do acidental. Sorte e aleatoriedade também são constantes da
criatividade (GASPARINA, 2009: 43).
Essas bolsas da Louis Vuitton são de certa forma a metáfora da criatividade.
Jacobs busca inspiração em eventos como a Frieze Art Fair, a principal feira de arte
contemporânea, sediada em Londres, todo mês de outubro (GASPARINA, 2009: 43).
A renovação do compromisso da Louis Vuitton com a arte acontece em 2005
com a reabertura de sua flagship em Paris. Remodelada pelo arquiteto Eric Carlson e
pelo designer de interiores Peter Marino, o espaço recebe o visitante de forma inédita,
integrando arte e arquitetura (GASPARINA, 2009: 44).
O espaço da loja é separado do espaço de exposição. A loja, seu design e sua
Moda, arte e interdisciplinaridade 138
característica funcional, em última instância inútil, muitos objetos inúteis não podem
ser classificados como arte. Por outro lado, a arte contemporânea prima por ser
explicitamente útil (SVENDSEN, 2010: 120). A arte contemporânea na maior parte das
vezes constrói seu discurso por meio de objetos utilitários, o que facilita seu diálogo
com a moda.
Percebe-se que não há nenhuma linha divisória que evidencie a separação
entre moda e arte. São dois mundos análogos (SVENDSEN, 2010: 123) dentro da
cultura visual.
Isso acontece não porque a moda atingiu o nível da arte, mas porque tudo –
inclusive a arte – está sujeita à lógica da moda. A forma de funcionamento da moda
tem tido uma participação cada vez mais relevante no desenvolvimento do campo
artístico (SVENDSEN, 2010: 123-124).
A arte não é tão pura para estar acima da moda, mas, para ser respeitada
como tal, deve resistir à moda. A arte também reconhece e segue a moda até certo
ponto, porque a moda oferece uma verdade à arte e ao mesmo tempo ameaça sua
autonomia (ADORNO apud SVENDSEN, 2010: 124). A arte reconhece o poder da
moda e se sujeita a ela ao mesmo tempo em que a combate (SVENDSEN, 2010:124).
Marc Jacobs afirma que quem trabalha para uma empresa internacional tem
que fazer uma série de escolhas criativas que diferem daquelas defendidas pelo
artista, que tem um comprometimento mais profundo com o seu trabalho. O artista
representa um tipo singular de contribuição (GASPARINA, 2009: 47).
Jacobs é um verdadeiro admirador de arte e muitas de suas escolhas são
guiadas por trabalhos artísticos. Ele é um colecionador de arte contemporânea e
descobre, sozinho, novos artistas o tempo todo. Foi assim com Takashi Murakami.
Ele descobriu o artista por meio de artigos e visitando a exposição do Kaikai Kiki na
Fundação Cartier em 2002. Ele cultiva amizades genuínas com artistas (GASPARINA,
2009:47).
É interessante pensar que, desde a década de sessenta, tem sido feito um
esforço para integrar a arte ao dia a dia e isso se refere ao avant-garde. Esse sonho
baseia-se em uma dicotomia potente, com a arte de um lado e de outro, bem distante
da realidade (GASPARINA, 2009: 47).
Esse pensamento aparece na moda, sob a forma de consumo de massa e
alta-costura. A última aparece associada a valores de escassez e elitismo que sempre
definiram a arte moderna. Contudo, essas fronteiras se tornaram mais porosas do que
o pensamento moderno jamais pode imaginar (GASPARINA, 2009: 47).
A cumplicidade entre arte e moda já era evidenciada por Theodor Adorno, que
acreditava que tal fato era intrínseco ao modernismo e ao mesmo tempo representava
grande confusão (ADORNO apud GASPARINA, 2009: 47). A complexidade desta
questão se rebate na afirmação de Baudrillard abaixo.
Moda, arte e interdisciplinaridade 141
A moda pode ser definida tanto pela sua ligação com o vestuário quanto pelo
fenômeno de mudança que denota (SUDJIC, 2010: 162). Essa segunda parte refere-
se ao sistema da moda, que é maior e que pode atingir outras áreas do campo visual.
O grupo Memphis, que parecia caçoar das verdades modernistas (SUDJIC,
2010: 84), é um exemplo dessa lógica pulsante do sistema da moda. Seus designers,
que davam acabamento rosa-bebê aos seus televisores na década de oitenta, traziam
a liberdade, o lado lúdico e a extravagância, geralmente associados à moda, para a
esfera do design.
Outro fator relevante na equação arte e moda é a percepção. Ela pode ser
moldada pelos aspectos físicos do design (SUDJIC, 2010:70). A bolsa Louis Vuitton,
que já possui um grande apelo visual no que diz respeito à tradição, quando modificada
por artistas se torna ainda mais exclusiva e, portanto, mais valiosa. Isso desperta a
curiosidade. Uma camiseta estampada com uma gravura de Andy Warhol não geraria
o mesmo interesse, mesmo se tratando de arte e moda em uma conotação simplista.
Não basta parecer caro. O produto deve sinalizar valor e ambição da forma
correta. É necessário entender para quem o produtor está olhando, pois nem todo
mundo conhecerá determinado produto. É preciso conhecer a “linguagem oculta dos
iniciados” e saber o que faz produtos idênticos parecerem tão diferentes uns dos
outros (SUDJIC, 2010: 100).
O que diferencia uma marca da outra é criar um estilo de vida que as pessoas
queiram viver. [A Louis Vuitton] reforça a necessidade de produzir uma nova linguagem,
além de ceder aos anseios de seus clientes por luxo (SUDJIC, 2010: 108 e 113).
Dieter Rams se ocupava em criar objetos perfeitos que resistiriam ao tempo,
desafiando a moda. Ele projetou objetos que supostamente se tornariam atemporais
por serem minimalistas, por se livrarem do excesso de informação. Sua intenção não
consistia em agradar os consumidores da Braun, mas em demonstrar uma supremacia
intelectual (SUDJIC, 2010: 30) inerente ao modernismo.
Sua tentativa em fazer o design superar a moda fez com que seus objetos
se tornassem obsoletos de qualquer maneira. Seus designs, rádios, calculadoras,
aparelhos de barbear foram suplantados por categorias de objetos completamente
novos (SUDJIC, 2010: 30). Essa lógica corresponde à renovação cíclica da moda. É
mais interessante reconhecê-la, pois ela é implacável. A Louis Vuitton é uma empresa
de moda que entende bem essa situação e por isso busca constantemente novo
fôlego na arte.
Muitos projetos hoje se baseiam em peças ou partes de produtos já prontos
e geralmente vindos da China. A ideia de montar um produto a partir de elementos
já existentes para dar resultado a uma personalidade distinta (SUDJIC, 2010: 31)
coincide com a noção de “pós-produção” de Bourriaud e atende às propostas da Louis
Vuitton.
Moda, arte e interdisciplinaridade 145
Devido a sua reputação, a arte é uma fonte de ideias visuais que se derrama
sobre outras áreas criativas. O fazer artístico de Takashi Murakami não está distante
dos modos de produção do design e da fabricação. Muitos recorrem à manufatura
chinesa, com melhor custo-benefício. Nesse ponto é possível estabelecer uma relação
entre ambos. Trata-se de uma confluência que faz com que o design se pareça e seja
tratado com arte (SUDJIC, 2010: 193).
O designer passa a ser um narrador. Quando ele possui uma história convincente
para contar e sabe a linguagem do design de maneira fluente e eficaz (SUDJIC, 2010:
34), seu produto revela novas maneiras de pensar.
Ernesto Nathan Rogers, um dos criadores da Torre Velasca, sugeriu, em um
artigo de 1946, que é possível descobrir que tipo de cidade uma sociedade construirá
por meio de um exame minucioso de uma colher proveniente daquela comunidade.
Ele defendia a importância do design no mundo contemporâneo (SUDJIC, 2010: 35).
Esse pensamento transbordou nas décadas de oitenta e noventa e tem muito
a dizer sobre o design atual (SUDJIC, 2010:35). Quando a referência é a bolsa da
Louis Vuitton na visão de Vanessa Beecroft, esse pensamento se ilumina. Sem dizer
uma palavra, sem interferir diretamente no produto, a artista e a marca reposicionam
o produto na escala do consumo.
“A arte e o design servem às vezes para se reforçar mutuamente.” A Pop Art
reabasteceu o tipo de objetos industrializados que havia inspirado a arte, em uma
continuidade do objeto “duchampiano”, ao mesmo tempo em que serviu de inspiração
a muitos designers (SUDJIC, 2010: 195).
É contraditório que, mesmo na era do individualismo exacerbado que se rebate
em um consumismo cada vez mais intenso, seja possível dar mais valor a algo que
pode ser chamado de inútil do que ao útil. De um modo simplista, a arte é inútil, o
design útil (SUDJIC, 2010: 167). É assim que o mercado reage em termos práticos
com relação à arte e ao design.
Dessa forma, uma bolsa grafitada por Stephen Sprouse em cores flúor tende
a ser mais chamativa, portanto mais difícil de usar que uma bolsa clássica. Mesmo
assim, a lógica do design se inverte, e o que é passageiro passa a ter mais valor.
O design é concebido para ser útil (SUDJIC, 2010: 176), mas a bolsa multicolorida
de Takashi Murakami para a Louis Vuitton é feita em quantidades reduzidas, é caríssima
e não é fundamental. Do ponto de vista prático, não é essencial ter uma bolsa dessas.
Alguns designers [como Marc Jacobs] mudaram o significado do design em
relação à natureza cada vez mais efêmera dos objetos estandardizados. Talvez a
separação entre arte e design não seja tão intensa como se sugere. A utilidade não é
o fim último do design (SUDJIC, 2010: 177).
Sottsass falava em utilidade emocional do design (SOTTSASS apud SUDJIC,
2010: 177), mas a mentalidade moderna persiste em equiparar essa função do design
Moda, arte e interdisciplinaridade 146
12 LVMH – Louis Vuitton Moët Hennessy é um grupo que representa um conglomerado de marcas
de luxo.
5
CONCLUSÃO
Moda, arte e interdisciplinaridade 149
arte, o segundo grupo devota seu trabalho à produção de subjetividade que, sob o
olhar da arte, transmuta-se em uma prática transdisciplinar, pois a subjetividade está
para a arte assim como a funcionalidade está para o design.
Nesse contexto, Beecroft é transdisciplinar por se preocupar com a visão
artística em detrimento do design. E mesmo tendo conhecimento de que a produção de
subjetividade não é exclusividade da arte e que a funcionalidade pode ser reconhecida
na arte contemporânea, sabe-se das predileções da arte e do design.
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Moda, arte e interdisciplinaridade 152
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WORSLEY, Harriet. 100 ideas que cambiaron la moda. Barcelona: Blume, 2011.
Arte Contemporânea – período artístico que surgiu após a segunda Guerra Mundial
e prolonga-se até hoje. Caracteriza-se pela ascensão de novas linguagens e novos
suportes além da pintura e da escultura tradicional. A ideia de “campo expandido” de
Rosalind Krauss é emblemática nesse sentido. Muitos movimentos desse período
manifestam-se primeiro na sociedade para só depois se revelar na pintura, na literatura,
na música, no cinema e na moda.
Arte-moda – objetos ou ações que envolvem a arte e a moda, seja a moda se utilizando
dos suportes recorrentes da arte ou o contrário. Esse termo foi desenvolvido para esta
dissertação e cobre uma lacuna existente entre as duas áreas, a arte e a moda.
Bottom Down – quando uma tendência goteja do topo da pirâmide social ou dos
formadores de opinião para as demais camadas. É o contrário do Bubble Up, e é mais
comum. Está no campo de abrangência do Trickle Effect, o Efeito de Gotejamento.
Estilista – aquele que concebe ou que tem por ofício conceber novas formas no terreno
da moda, do mobiliário etc. Que se expressa com um estilo próprio, inconfundível, em
qualquer outra área.
Fast Fashion – refere-se ao funcionamento da moda a partir dos anos dois mil,
representando seus ciclos que duram cada vez menos. É um termo comum hoje às
redes de varejo que visam à rápida substituição de produtos por outros mais novos, de
forma que sempre disponibilizem produtos novos para que possam ser consumidos
em um ritmo cada vez mais rápido. Esse pensamento ilustra o conceito de moda como
um acontecimento passageiro, potencializado pela lógica capitalista, que, por sua vez,
está diretamente ligada à indústria da moda.
Flagship – loja exemplar de uma marca, que denomina um estilo de vida específico
proposto por aquela empresa. Também chamada de “loja conceito”, servirá de modelo
para as demais lojas da marca no mundo. Reforça a ideia de criação de conceito da
marca, associando-a de forma cada vez mais profunda a esse conceito.
Halston – Nascido Roy Halston Frowick (1932-1990), nasceu em Des Moines, Iowa,
Estados Unidos. Estudou na Universidade de Indiana e no Chicago Institute. Começou
sua carreira desenhando chapéus. Na década de sessenta, desenhou chapéus para
Jacqueline Kennedy (Onassis) e, em 1966, passa a se dedicar ao prêt-à-porter.
Imortalizou os vestidos longos e fluidos da era da discoteca na década de setenta.
Look – é toda produção que uma pessoa veste (ou vestirá) ao mesmo tempo, por
exemplo, camisa, colete, saia, meia, sapato e chapéu. Engloba tudo o que ela está
usando e, geralmente, visa o uso de peças coerentes entre si e a um determinado
estilo.
Moda – conjunto de opiniões, gostos, assim como modos de agir, viver e sentir
coletivos (ex.: moda masculina) ou o uso de novos tecidos, cores, matérias-primas
etc. sugeridos para a indumentária humana por costureiros e figurinistas de renome
(ex.: a moda outono-inverno).
Roupa – peça ou conjunto de peças de vestir; traje; qualquer tecido que sirva para
adorno ou cobertura.
Vestimenta – peça de roupa que serve para vestir qualquer parte do corpo; vestidura.
Roupa usada como paramento para uma cerimônia, uma liturgia etc.; traje. Tudo o
que forma cobertura, revestimento.
Zeitgeist – “l’air du temps” ou “espírito do tempo”. Expressão que designa algo que
está ligado a um modo de agir, de pensar; comportamento de uma época ou região.
Anexos
Moda, arte e interdisciplinaridade 163
“vamos lá Lane,
Estou super corrida mas vou tentar te ajudar. Respondo algumas perguntas e te “dou
de presente” um press release com entrevista do Yves Carcelle sobre a relação da
LV com a Arte
Nele você vai encontrar TUDO!!!
2) Em que ano a Louis Vuitton iniciou suas operações no Brasil? 1989, COM A
PRIMEIRA LOJA EM SP
4) Com relação aos trabalhos que envolveram atos artísticos (como a colaboração
de Vanessa Beecroft, Takashi Murakami e Stephen Sprouse), houve alguma
interferência ou adaptação por parte da equipe do Brasil nas campanhas e
produtos ou tudo veio inteiramente pronto e só foi reproduzido aqui? TODAS
AS INICIATIVAS SÃO INTERNACIONAIS E AS EQUIPES LOCAIS APLICAM,
SEGUINDO GUIDELINES SUPER RESTRITOS EM TODAS AS AREAS, DE VM A
COMUNICAÇÃO
5) Em algum momento a equipe da LV Brasil teve contato com algum destes artistas
contemporâneos (Vanessa Beecroft, Takashi Murakami e Stephen Sprouse)? NÃO”
Patricia ROMANO
Louis Vuitton
Public Relations & Events Manager
Louis Vuitton
Arte, Moda e Arquitetura
01
Moda, arte e interdisciplinaridade 165
renome internacional.
moda. Essa antologia ricamente
ilustrada é complementada por
Um verdadeiro trabalho de
ensaios críticos que analisam e
trazem novas perspectivas sobre o
comprometimento da Louis Vuitton
referência, oferece uma nova durante um dos períodos mais
férteis da criação contemporânea.
perspectiva sobre as relações que Escrito por críticos internacionais
dos mundos da arte, moda e
lojas Louis Vuitton em todo mundo por Takashi Murakami estará à venda
nas lojas Louis Vuitton e no site www.
02
Moda, arte e interdisciplinaridade 166
03
Moda, arte e interdisciplinaridade 167
04
Moda, arte e interdisciplinaridade 168
Louis Vuitton
Arte, Moda e Arquitetura
05
Moda, arte e interdisciplinaridade 169
Título
Louis Vuitton : Arte, Moda e Arquitetura
Edições de Livrarias
Rizzoli USA, versão em inglês
Editions de La Martinière, versão em francês
Rizzoli Italia, versão em italiano
À venda nas livrarias
Fotos
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Senha: lvbook
www.louisvuitton.com
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