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Trinta e três segundos

A nave explodiu no céu, bombardeada por um enxame de drones.


Isso indicava para Jaqueline que tinha doze minutos. Corria por entre corredores
estreitos, pistola erguida, o rifle amarrado às suas costas, suas lentes de visão
noturna mostrando tudo em tons de verde, o mapa ligado no canto de seu olho
esquerdo mostrava as distâncias e caminhos. Virou à esquerda, correu cem
metros, esquerda de novo, doze metros, direita, o mapa alertava para um inimigo.
Esquerda, apontar, atirar. Um drone caiu. Continuou sua corrida até chegar em
uma escada vertical.
Parou.
Uma gota de suor escorreu para dentro do seu olho esquerdo. Sentiu-a, ácida,
salgada, podia ser uma lágrima, mas lágrimas escorrem para fora.
Já havia perdido tempo demais para limpar o suor. Começou a se lançar para
cima, usando os degraus como apoio. Seu mapa ocular indicava que não havia
inimigos nas redondezas. Saiu por um buraco na terra, a vinte e três metros da
torre de transmissão da televisão. Dias atrás fora tomada por drones, que se
retiraram após eliminar todos os sinais de vida humana dali. Felizmente ela não
apresentava sinais de vida humana e podia realizar essa missão. Correu e
sobreviveu aos vinte e três metros mais perigosos daquela missão.
Entrou pela porta escancarada, passou por pedaços de corpos, manchas secas de
sangue, entranhas espalhadas, cabeças explodidas. Não houve crueldade. Apenas
o caminho mais rápido que a inteligência artificial havia encontrado para eliminar
aquelas pessoas.
Chamou o elevador. Ficou parada de costas para ele, observando o cenário.
Guardou a pistola, sacou o rifle e apontou-o para a porta. Não que isso lhe
garantisse muita segurança caso um drone a encontrasse e tivesse um milésimo
de segundo para enviar o sinal de que havia uma humana ali. Apenas a teimosia
de agarrar-se a qualquer ilusão de que ainda havia esperança. ouviu a porta do
elevador abrindo-se atrás de si. Entrou de costas. Apertou o botão para fechar a
porta. Havia ainda outros três botões “P” de panorâmico, “T” de topo e uma
exclamação vermelha de alerta. Apertou o T.
Por quarenta e oito segundos ela estaria segura.
Essa era uma situação raríssima desde o começo da guerra. Passou pelo andar do
observatório panorâmico. Gostava de passear ali com sua esposa, Leila, e seus
dois filhos, Marcus e Tiago, ver o sol se pondo atrás das montanhas distantes,
saber que aquela cidade enorme tinha fim, que o mundo era muito maior do que
poderia compreender. Lembrava da sensação de segurar a mão de Leila e pensar
que estariam juntas, mesmo que o mundo estivesse acabando.
Sentiu uma gota salgada escorrendo por seu rosto. Poderia tê-la limpado.
Aquilo estava quase acabando, bastava sair pela porta que se abria, entrar nos
controles da torre, instalar uma peça e modificar o software. Parecia até mesmo
uma missão cotidiana. Estava prestes a completar sua missão quando notou que
havia uma pessoa respirando caída no chão.
Avaliou a situação. Se estava viva ainda, certamente os drones não conseguiram
localizá-la nos últimos três dias e certamente não iriam fazê-lo agora. Estavam
seguras por enquanto. Era um rapaz, estava vestido com o uniforme da
manutenção. Ela se aproximou, balançou-o pelos ombros. Ele abriu os olhos
lentamente, depois assustou-se, erguendo os braços sobre o rosto, em um gesto
de defesa.
— Como você sobreviveu? — Jaqueline lhe perguntou, pulando as apresentações.
Ele demorou para responder, parecia ter dificuldades em interpretar que era uma
humana falando com ele. — Tinha um galão de água, eu sempre trago um
lanchinho...
— Não, como sobreviveu ao ataque dos drones?
O rapaz ficou pensativo. Jaqueline não tinha esse tempo todo, ignorou-o e
começou a observar os controles da torre, procurando onde poderia instalar aquela
peça. Quase não lembrava mais do técnico quando ele respondeu.
— Essa sala é isolada para que não entrem nem saiam sinais, a torre emite uma
radiação muito forte, então ficamos protegidos aqui. Nem o celular pega, é um
tédio trabalhar aqui as vezes.
— Então precisarei sair daqui para dar o aviso. Preciso plugar essa peça no
computador que controla os sinais da antena.
— Mas porq…

— Sem tempo para explicações, apenas me aponte onde faço isso. — Assim que
ele levantou o dedo, ela já colocando a peça no plugue e ligando a máquina. Um
terminal acendeu e diversas letras começaram a correr pela tela. Enquanto os
computadores conversavam, ela perguntou ao rapaz:

— Você quer sobreviver? Ou já desistiu?


— Quero, mas parece meio impossível...
— Nós vamos sobreviver. Hoje é seu dia de sorte. Consegue andar?
Ele teve dificuldades para se levantar. Fez alguns alongamentos, andou um pouco
no espaço restrito da sala de manutenção. Parecia muito cansado, mas também
parecia capaz de se mover normalmente. Nesse meio tempo, as letras pararam de
correr pela tela e lia-se no terminal “Deseja executar a operação? [S/n]”. Ela pôs
seu dedo indicador esquerdo sobre a tecla S e com seu indicador direito apertou a
tecla SHIFT.
— Quando eu apertar esse botão, a torre emitirá um sinal que confundirá os
sensores dos drones. Teremos alguns minutos até que localizassem a origem dele
e derrubem a torre. Iremos perder cerca de 24 segundos até descer o elevador,
mais quatro segundos para correr até o túnel. Lá dentro eu sou capaz de destruir
alguns deles que possam vir em nosso caminho. Precisamos chegar até a nave.
— Tá certo. Eu só quero tomar um banho e um café.
— Pronto?
O rapaz fez que sim com a cabeça.
— Então entre no elevador e prepare-se para apertar o botão que nos levará até o
térreo.
Ela apertou o botão. Talvez um dia contassem a história de Jaqueline, a soldada
que arriscou sua vida para apetar um botão que salvaria seu povo da extinção.
Mas agora não era boa hora para pensar nisso. Assim que pisou no elevador as
portas se fecharam, pois, o rapaz apertou outro botão com a rapidez de quem quer
ir embora do trabalho. A mulher tirou um comunicador do bolso e preparou-se.
Assim que as portas se abriram, ela enviou apenas um sinal de “ok”, antes de
largar no chão o objeto e sair correndo, puxando o rapaz da manutenção pela mão,
gastando 4 segundos a mais do que o planejado. Quando chegou ao túnel, pulou
dentro dele. O rapaz desceu pela escada, enquanto ela dava cobertura no andar
de baixo, 8 segundos a mais que o planejado. Ela acendeu a lanterna em seu rifle,
para que ele pudesse enxergar sem óculos especiais. Correram no ritmo máximo
que o técnico conseguia, 14 segundos a mais que o planejado.
Ela notou que havia algo se movendo em sua direção, dobrando esquinas
rapidamente. Claro, o rapaz tinha sinais vitais. Pegou uma granada
eletromagnética e arremessou-a na parede, fazendo-a ricochetear e cair no outro
corredor. Explosão, flash, um calafrio na espinha. Os drones foram desativados. 7
segundos a mais que o planejado.
— Você é boa, ein. — Ele comentou, sem muito entusiasmo.
— Eu disse que era seu dia de sorte.
Prosseguiram, fazendo alguns desvios. Faltavam apenas alguns metros quando
sentiram o tremor de terra, que aumentou gradualmente, até que tiveram de cessar
a corrida para não cair. O rapaz comentou:
— Nossa, um terremoto bem agora?
— Não. Isso foi uma decolagem.
Apenas mais trinta e três metros e saíram do túnel. Já distante no céu, afastava-se
uma nave. A vigésima terceira a sair do planeta. Jaqueline ficou observando-a.
Missão cumprida. Os chamarizes foram um sucesso, sua esposa e filhos agora
voavam em direção ao desconhecido. Como seria viajar dezenas de anos-luz pelo
espaço? Jaqueline jamais saberia.
— Era a nossa forma de sobreviver? — Perguntou o rapaz da manutenção.
Jaqueline não respondeu. Os dois morreriam em breve. No entanto, estava feliz. A
decolagem atrasou trinta segundos, como prometido por Leila. Até o fim dos
tempos, elas ainda caminhavam de mãos dadas.

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