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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS

Marcia Auria Santos Conceição

CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CIRCENSE:

Os “de dentro e “os de fora”.

BELÉM/PA

2019
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CIRCENSE:

Os “de dentro e “os de fora”.

Trabalho de Conclusão de Curso,


apresentado como requisito parcial para
obtenção de grau de Bacharel e licenciado
em Ciência Sociais – Antropologia,
Faculdade de Ciências Sociais, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, pela
Universidade Federal do Pará.

Orientadora: Profa. Dra. Edna Alencar

BELÉM/PA

2019
Marcia Auria Santos Conceição

CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CIRCENSE:

Os “de dentro e “os de fora”.

Trabalho de Conclusão de Curso,


apresentado como requisito parcial para
obtenção de grau de Bacharel e licenciado
em Ciência Sociais – Antropologia,
Faculdade de Ciências Sociais, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, pela
Universidade Federal do Pará.

Data de aprovação: ___/___/___

Banca Examinadora:

____________________________

Profa. Dra. Edna Alencar – Orientadora


UFPA

_____________________________

Profª. Dra. Telma Amaral Gonçalves – Examinador Interno


UFPA
Aos meus filhos, minha força pra seguir
adiante...
AGRADECIMENTOS

Nestes quase oito anos de estrada, tenho muito a agradecer, muitas pessoas
que fizeram parte desta jornada.

Primeiro agradeço a mãe oxum que ilumina e me dá serenidade, que foi a


quem recorri em todos momento de angústia e que quase desisti, sempre me
mostrou que havia um caminho que eu devia percorrer, e a todos os orixás que
estão sempre nos protegendo e me guiando, neles deposito minha fé.

Aos meu pais Moisés Ferreira da Conceição e Maria Dalva Santos Conceição,
por me conceberem e me trazer ao mundo. Que apesar de todas as dificuldade e em
meio as tribulações me criaram e me educaram.

Aos meu filhos Ana Merielle, André Miguel e Abner Murilo, pela paciência e
compreensão, nos diversos momentos em que tive que me ausentar para poder
concluir esta jornada, das vezes em que tive que abdicar do meu papel de mãe para
me dedicar ao meu papel de graduanda, e foram muitos, mas graças ao orixás tenho
filhos maravilhosos.

Ao meu companheiro Alberdan Batista, que possibilitou financeiramente, para


que pudesse me dedicar aos estudos e emocionalmente, que em todas as manhãs
ao acordar me incentiva a sair da cama e seguir, e jamais desistir. Que está sempre
disposto a me ajudar e cuidar de mim.

A minha amiga/irmã Grace Kelly que, literalmente, pagou minha taxa de


inscrição para que eu pudesse prestar o vestibular e assim poder ingressar no Curso
de Ciências Sociais da UFPA. Por acreditar em mim, e graças a essa atitude me
proporcionou ingressar no Curso de Ciências Sociais.

Ao meu amigo e companheiro de curso Ícaro Chaplin, sem esse menino eu


não conseguiria concluir esta etapa, ele foi incansável nesta jornada, obrigada por
surgir em minha vida e se dedicar a nossa amizade.

Aos meus amigos de curso que foram tão importante pra mim, que foram meu
incentivo em ir todos os dias as aulas, pois eu sabia que estaria lá comigo, em
especial Catarina Santos minha amorinha, Nancy Bargas, Márcia Inara, Luciana,
Domingos, Márcio Del. E a todos os colegas das Ciências Sociais.

Aos meus amiga na vida, aos que passaram, e aos que permaneceram, mas
que independente disto, sempre estiveram dispostos a me ajudar em tudo que fosse
preciso, em especial a Joyce Kelly, Carlos Mendes, Paola Cibele, Aline Balieiro,
Ellen Thaís, Aline Santana, Wesley Endrew.

A todos que passaram pela minha vida e de alguma forma contribuíram nesta
minha jornada.

Ao Professor Clorisvaldo Santos, essa pessoa maravilhosa com que tive


minha experiência em sala de aula, foi uma honra tê-lo como mentor.

A minha professora de sociologia no EJA, Ana Célia, a grande culpada da


minha escolha pelas Ciências Sociais pra minha vida.

Aos meus amigos no EJA, que sempre estiveram ao meu lado e me


incentivaram, e até hoje continuam ao meu lado, em especial Ana Andreia e
Edemilson. Muito obrigada!

A minha orientadora, pela paciência e tempo investido neste processo de


construção deste trabalho.

A Ciências Sociais que me permitiram uma nova visão de mundo, através


dela pude me tornar um ser humano mais consciente da realidade em que vivemos.

Aos artistas que colaboraram para a realização deste trabalho.

A todos que direta ou indiretamente fizeram parte desta jornada.


RESUMO

Esta pesquisa tem por objetivo evidenciar as fronteiras que formam a identidade do
artista circense entre os “de fora” e os “de dentro” da tradição circense, e
compreender como a partir o discurso de “ser tradicional” diferencia os artistas
formados sob a lona, dos artistas formados pelas escolas de artes circenses.
Procuro demonstrar o processo histórico sociocultural que formaram o Circo e as
diversas influências que fazem parte desta construção, assim como, a chegada e
formação do Circo no Brasil em torno da tradição familiar conhecido como circo-
família, e como surgiu o “Novo Circo” com o processo de descentralização do saber
circense antes controlado pelas famílias. Penso o Circo tradicional socialmente
estruturado em torno da família, como um grupo étnico a partir da “Retórica da
Tradição” de Gilmar Rocha. Para tanto recorri a perspectiva de Fredrik Barth sobre
grupos étnicos, a qual os define como um tipo organizacional que tem como principal
característica a autoatribuição e a atribuição de sua identidade. Por meio de
entrevistas e através de um questionário semiestruturado que possibilitasse que os
artistas discorressem sobre suas experiências e vivências nas artes circenses,
procuro demonstrar como essas fronteiras se realizam, de como se identificam e são
identificados. Em suas falas, verificou-se que tanto para a artista que nasceu em
uma família circense, como para o artista que teve sua formação em uma escola de
arte circense, a principal fronteira que os diferencia é a tradição familiar, ambos se
reconhecem e são reconhecidos como artistas circenses, porém suas identidades se
definem como “de dentro” e “de fora” da tradição circense.

Palavras-chave: Identidade, Circo, Artista Circense, Tradição.


ABSTRACT

This research aims to highlight the boundaries that form the identity of the circus
artist between the "outside" and the "inside" of the circus tradition, and how from the
discourse of "being traditional" differentiates the artists formed under the canvas , of
the artists formed by the circus arts schools. I try to demonstrate the socio-cultural
historical process that formed the Circus and its various influences that are part of
this construction, as well as the arrival and formation of the Circus in Brazil around
the family tradition known as circus-family. And how the "New Circus" came about
with the process of decentralization of circus knowledge once controlled by families.
Think of the traditional Circus socially structured around the family, as an ethnic
group from the "Retorica da Tradição" by Gilmar Rocha. For that, I used Fredrik
Barth's perspective on ethnic groups, in which he defined them as an organizational
type whose main characteristic is the self-attribution and attribution of their identity.
Through interviews and through a semi-structured questionnaire that allowed artists
to talk about their experiences and experiences in the circus arts, he sought to
demonstrate how these borders are realized, how they are identified and identified. In
her speeches, it was verified that for both the artist who was born in a circus family,
and for the artist who had her training in a circus art school, and what the main
frontier that differentiates them and the family tradition, both recognize and are
recognized as circus artists, but their identities are defined as "from within" and
"outside" of the circus tradition.

Keywords: Identity, Circus, circus artist, Tradition,


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Mulheres Acróbatas ...................................................................................


8

Figura 2 – Circus Maximus ...................................................................................... 10

Figura 3 – Escola de Equitação do Século XVIII .......................................................


13

Figura 4 – Padrão de Estrutura Circense do Século XIX ..........................................


14

Figura 5 – “Congresso dos Freaks” por volta de 1924 .............................................


15

Figura 6 – Ringling Bros & Barnum e Bailey, Julho/ 1956 ....................................... 16

Figura 7 – Estrutura Itinerante do Ringling Bros & Barnum e Bailey, 1956 ..............
17

Figura 8 – Cartaz do Circo Chiarini ..........................................................................


20

Figura 9 – Fotografia da Fachada do Circo Stankovich, o mais antigo Circo


tradicional em atividade no Brasil, fundado em 1856 20

Figura 10 – Sede da Escola Pernanbucana de Circo – Rede Circo Mundo Brasil ...
28

Figura 11 – Características do Circos Tradicional e Novo ........................................


29

Figura 12 – Circo da Família de Yéssica Jazneliz em turnê em Belém na década de


70............................................................................................................................... 42
Figura 13 – Público em uma sessão no Circo da família de Yéssica ...................... 42

Figura 14 – Gabriel Silva em treinamento junto com Yéssica ..................................


43

Figura 15 – Gabriel em sessão de treinamento ........................................................


43

SUMÁRIO

Introdução ..................................................................................................................1

Capítulo 1 – Uma Breve História da Arte Circense ................................................ 6


1.1 – O Circo no Brasil .............................................................................
186

Capítulo 2 – O Circo Tradicional e o Novo Circo .................................................


231

Capítulo 3 – A “Retórica da Tradição” à Luz De Fredrik Barth ...........................


321

3.1 – Construção Da Identidade Circense: o tradicional e o


contemporâneo .......................................................................................................
374

Considerações Finais ............................................................................................


440

Referências Bibliográficas ....................................................................................


484
“O circo é o último vestígio de um saber antigo, existencial e
iniciático. Esse saber, essa arte ancestral e única que é o circo
só se perpetua graças a dois mecanismos: a transmissão do
saber de pai para filho e o ensino proporcionado por uma
escola.” (ZIELGLER apud BORTOLETO M. A. e MACHADO G.
A., 2003, p. 64)
INTRODUÇÃO

A arte circense é uma manifestação artística que está presente entre as mais
diversas sociedades ao longo da história da humanidade, e tem como principal
característica a performance com uso do corpo. Essa arte incorpora características e
peculiaridades que remetem ao sistema cultural e social nos quais está inserida.

As artes corporais que tem como protagonista o artista, e que hoje


categorizamos como circenses, precedem o Circo e se caracterizam como uma arte
milenar. Se considerarmos que nas artes circenses o artista é o ator principal, e que
homens e mulheres com as mais diferentes origens e experiências se expressam
por meio de gestos físicos arriscados, podemos dizer que essa expressão artística
antecede o Circo, na forma como hoje o conhecemos, dotada de uma estrutura e
organização fundada em laços familiares de parentesco. Ao longo de sua história o
Circo absorveu as mais diferentes influências culturais porque criava um vínculo
muito forte com o povo e a sociedade na qual estava inserido.

O Circo Moderno tem um pouco mais de 3 séculos, é resultado de um


processo histórico e social que reuniu sob a lona pessoas com as mais diversas
experiências e pertencentes a diversas culturas, que incluía famílias ciganas a
oficiais britânicos, formando sob a lona grandes famílias circenses. Ao chegar ao
Brasil, o Circo novamente se adaptou, e em cada lugar que passava absorvia um
pouco da cultura daquele povo, transformando-se no Circo tradicional brasileiro. Sua
estrutura organizacional está baseada na tradição familiar onde o saber circense é
repassado de uma geração a outra por meio de processos de ensino e
aprendizagem fortemente ancorados na tradição oral e reprodução de performances
corporais.

A mais recente transformação do Circo ocorreu com o movimento de


descentralização do saber circense, quando as técnicas circenses - que antes só se
adquiriam por meio da família circense - passam a ser ensinadas nos mais diversos
contextos como em escolas de artes circense, academias e outras, fazendo assim
surgir o chamado “Novo Circo”. Assim, longe da vivência proporcionada pela lona
surge uma nova categoria de artistas circenses que domina a técnica, mas não vive
1
mais a rotina do circo tradicional. Estes novos artistas foram batizados pelos artistas
tradicionais como “os de fora”.

Este trabalho tem por objetivo identificar os elementos ou símbolos que são
utilizados para estabelecer as fronteiras identitárias com o surgimento dos novos
artistas formados na escola de artes circenses. Ou seja, busco conhecer as
diferenças entre o artista tradicional identificado como o “de dentro” e o artista do
novo circo identificando-o como os “de fora”.

Desta forma, para desenvolver o estudo procurei abordar o processo de


construção do próprio artista, no qual ao falar de si ele também fala do outro, e de
como ele se define por meio deste processo histórico sociocultural de ser iniciado na
arte circense, criando uma clara separação entre os dois grupos. Assim uma
pergunta que orientou o estudo foi: como falar em uma identidade circense, se o
artista circense é produto de um processo histórico/social/cultural, que tem em suas
raízes diversas influências culturais, sendo o resultado de um conjunto de elementos
culturais partilhados por pessoas das mais variadas origens e culturas? Quando e
como surgem as fronteiras identitárias que separam os artistas circenses e que
possibilita estabelecer diferenças entre os “de fora” e os “de dentro” do Circo? O que
muda na definição de Circo?

Para desenvolver a pesquisa, além dos trabalhos utilizados como referência


bibliográfica, também realizei pesquisa de campo para obter dados qualitativos com
a aplicação de questionários, realização de entrevistas semiestruturadas, as quais
se combinam perguntas abertas e fechadas, através das quais o informante teve a
possibilidade de discorrer sobre o tema proposto, falando sobre sua percepção
acerca do que é ser um artista circense.

As entrevistas com os interlocutores da pesquisa foram realizadas


separadamente com os dois indivíduos de interesse, um deles é Gabriel Silva que é
artista circense do Novo Circo, formado pelo Curro Velho, um órgão do estado ligado
à Fundação Cultural do Pará, a outra é Yessica Jazneliz Rodriguez, que pertence à
sétima geração de uma família tradicional circense.

2
O interesse por este tema de pesquisa nasceu de um acaso. Apesar de
sempre ter tido contato como o Circo na minha infância, já que morava na cidade de
Ananindeua em lugar muito próximo de onde os circos da época costumavam se
assentar em suas temporadas. Mas meu interesse acadêmico pelo tema só foi
despertar ao fazer um trabalho de conclusão da disciplina Laboratório de Pesquisa II
ministrado no 2º período de 2016 pela profa. Dra. Edna Alencar, quando desenvolvi
uma proposta de projeto de pesquisa em dupla. Meu parceiro nessa pesquisa era
um frequentador assíduo de aulas de artes circenses, e propôs falar sobre os novos
artistas circenses com quem ele tinha bastante contato e teria fácil acesso. No
decorrer da pesquisa percebi que, apesar das claras diferenças, este grupo poderia
talvez ser estudado dentro de uma teoria identitária, tema pelo qual tinha bastante
interesse. Logo, por um acaso, a experiência do meu companheiro de trabalho se
encaixava com o meu interesse acadêmico prévio adquirido ao realizar um pesquisa
de campo em uma comunidade tradicional.

Porém, não foi tão fácil desenvolver e concluir esta pesquisa. Dentre os
empecilhos encontrados para completar a realização da pesquisa destaco
ironicamente uma das principais características do Circo como organização sócio
cultural, o nomadismo. Os artistas circenses tradicionais costumam viajar em
grandes caravanas de cidade em cidade apresentando seus números, e
permanecendo por temporadas mais longas ou mais curtas em cada uma delas,
dependendo de como o público responde na bilheteria. Assim sendo, o desafio foi
saber como adquirir o material necessário à realização da pesquisa, uma vez que os
artistas do novo circo poderiam ser encontrados na cidade em que resido, mas os
artistas tradicionais não. Durante o processo de construção deste trabalho um Circo
de lona fez temporada em Belém, o qual tive a oportunidade de visitar na tentativa
de conseguir entrevistar os artistas que trabalhavam neste Circo, sem êxito, pois a
rotina dos artistas circenses que residem sob lona, e bem diferente da rotina as
quais estamos familiarizados, os circense, como costumamos dizer “trocam a noite
pelo dia”, em função das apresentações no Circo que são noturnas. Após as
apresentações eles se dedicam aos ensaios, desta forma no dia do circense se
inicia pela tarde, em que cuidam das tarefas domésticas e da manutenção do Circo
como um todo, limpeza, arrumação e preparação dos espetáculos, essa rotina do
circense tradicional impossibilitou o acesso ao artista para a realização da entrevista,
3
isto me foi relatado por um artista do próprio Circo. A solução a esta questão foi
indicada pelo próprio entrevistado do circo novo, Gabriel Silva. Ao saber da nossa
dificuldade em encontrar artistas circenses tradicionais entrou em contato com
Yessica Jazneliz, que a é uma artista de família tradicional circense que escolheu
fixar residência em Belém para que ela e o irmão cursassem o nível superior. Trata-
se de uma estratégia bastante comum, como pude perceber durante a pesquisa, da
qual tratarei no capítulo sobre o novo circo.

Os conceitos que utilizei para a construção deste trabalho são o de Circo


tradicional de Ermínia Silva (2009), que é o Circo cuja característica central é possuir
uma configuração familiar e que utiliza a oralidade e tradicionalidade nos processos
de transmissão de saberes. Este conceito de Circo tradicional, de ser um artista
circense tradicional, significa ter recebido e repassado o saber circense por meio da
família. Já o Novo Circo podemos classificar de duas formas: a primeira diz respeito
a uma nova forma de espetáculo; a segunda, que é o foco desta pesquisa, está
relacionada ao aprendizado da arte circense em outros contextos, fora da estrutura
formal do circo e da família como principal instituição responsável pelo repasse dos
saberes da arte circense.

Segundo Gilmar Rocha em seu trabalho “Retórica da tradição” o circo sempre


esteve ligado ao novo e ao moderno, característica essa que permitiu a sua
sobrevivência e manteve um público sempre cativo e ávido pela próxima novidade.
No entanto, o “circo novo” causou um movimento que Rocha chamou de “retorno à
tradição” como forma de estabelecer seu lugar na estrutura social.

No que diz respeito a construção da identidade, recorri ao conceito de


etnicidade de Barth, que define os grupos étnicos como categorias de atribuição e
identificação realizadas pelos próprios autores, organizando assim a interação entre
as pessoas, permitindo transformações contínuas que constroem a identidade, em
processo de exclusão ou inclusão, determinando quem está inserido no grupo e
quem não está. Compartilham diversas características, mas principalmente, esses
grupos se organizam a fim de definir o “eu” e o “outro” e se manifestam de maneira à
categorizar e interagir com os outros. Neste sentido, a teoria de Barth se aplica ao
mundo do Circo.

4
Este trabalho traz quatro capítulos nos quais discorrerei sobre o processo de
formação do Circo tradicional brasileiro. O primeiro capítulo traz um histórico da
arte circense no mundo, antes mesmo da existência do circo na estrutura que
conhecemos, pela antiguidade chinesa, indiana e greco-romana. Apresenta também
as origens do circo moderno, a criação da estrutura de lona e do circo americano, e
seu estabelecimento como uma estrutura socialmente organizada sob a lona. O item
1.1 demonstra também como o circo brasileiro passou por processos completamente
diferenciados do resto mundo, culminando em suas características e formatos
distintos, tomando formato próprio, e tendo sua estrutura social baseada na família.
No segundo capítulo são definidas as características que definem o chamado
“circo tradicional” e do que ficou conhecido como “Novo Circo”, com ênfase para o
processo educacional, pois é a partir da descentralização do saber circense que
surge uma nova categoria circense. No terceiro capítulo procuro estabelecer o
Circo como uma unidade étnica portadora de cultura e socialmente organizado em
torno da tradição, que se constitui como uma fronteira identitária entre os chamados
“de dento” e “de fora” do circo a partir da “retórica da tradição”. No quarto
capítuloSeguido de uma subseção em que trago a fala dos artistas, de como seus
enunciados afirmam essas fronteiras na construção da identidade circense, seguido
da conclusão do trabalho.

5
CAPITULO 1 - UMA BREVE HISTÓRIA DA ARTE CIRCENSE

A arte circense1 é uma arte milenar do entretenimento, sendo uma das mais
antigas manifestações artísticas da história da humanidade. O Circo 2 acompanha as
sociedades desde os primórdios, pois há registros desde a pré-história chegando até
a contemporaneidade. Em uma pesquisa realizada por Alice Viveiros de Castro,
sobre os desenhos rupestres encontrados no Parque Nacional Serra da Capivara
(Piauí – Brasil), que se pressupõe tenha em torno 27.000 anos, a autora apresenta
um conjunto de imagens denominado de “Acrobatas do Boqueirão da Pedra
Furada”, por tratar-se de desenhos que sugerem claramente ações acrobáticas, de
equilíbrios com dupla altura, de roda de dança etc. (SILVA, 2009).

Essas formas de manifestações artísticas, a qual denominamos de artes


circense, permeia a vida dos mais diferentes povos e das mais diversas culturas. E
assim o circo se constrói como forma de encantamento e de fuga do mundo real.
(SOARES, 1998).

Desta forma não há como se falar em uma origem única do circo, já que nas
mais diversas culturas, encontramos artistas que exerciam algum tipo de atividade
como malabarismos, acrobacias, a doma de animais, entre muitas outras. Para
Ermínia Silva (2006), vários artistas em momentos históricos específicos, e em
diversas sociedades, realizavam exercícios acrobáticos ou atividades artísticas com
finalidade religiosa, em festejos, entre outros. Em vários períodos da história, e em
diversas culturas, foram encontradas várias referências que fazem menção às

1
A arte circense como manifestação de habilidade física com a finalidade de entreter um público é anterior a
própria estrutura sociocultural de circo como a conhecemos. Porém, para uma melhor compreensão, o termo
“arte circense” será utilizado para definir este tipo de performance, mesmo que o termo circo seja posterior
aos fatos citados.

2
O circo é um espaço redondo, traçado pelo picadeiro e pela lona, onde as apresentações acontecem no
centro. Mas o motivo que explica a forma circular do circo vem de uma questão técnica que foi descoberta foi
Astley, por volta de 1770, quando se percebe que a segurança do galope, em pé sobre o cavalo, feito em
círculo, era muito melhor. (FIGUEIREDO, 2007.)

6
práticas circenses na Grécia, em Roma, na China, na Índia, no Egito e até nas
Américas.

Na China antiga, por volta do século XV a.C foram encontradas “algumas


imagens pintadas sobre vasos e cerâmicas, incrivelmente conservadas até hoje,
mostrando equilibristas, contorcionistas e acrobatas que se apresentam diante de
uma plateia visivelmente interessada no espetáculo que lhe é oferecido”.
(ANDRADE, 2006.). Bem como a acrobacia como parte do treinamento para formar
novos guerreiros para lhes dar agilidade no combate. Segundo Bhakta a acrobacia
“era também uma forma de treinamento para os guerreiros de quem se exigia
agilidade e força” (BHAKTA, 2011).

Já no Egito, os primeiros sinais da arte circense foram encontrados, por


arqueólogos e historiadores, gravuras incrustradas nas paredes das pirâmides, com
desenhos de domadores, equilibristas, malabaristas e contorcionistas. Nesse
período eram realizados cortejos, que tinham por objetivo, saudar os generais
vitoriosos que regressavam de incursões militares. Nesses cortejos, apresentava-se
a doma de animais exóticos, além de apresentações em argolas e barras, que
lembravam, em muito, os números da ginástica olímpica moderna,

Ao final de cada campanha bélica, retornando à terra natal, militares


egípcios de altas patentes traziam, entre os tesouros pilhados, exemplares
vivos da exótica fauna estrangeira, desconhecida da população local.
Animais grandes e ferozes eram presenças habituais nesses desfiles. O que
mais encantava o público que assistia ao cortejo triunfante era a habilidade
com que essas feras eram controladas e domadas, atendendo docilmente
às ordens de seus treinadores. (ANDRADE. 2006. p. 22-23).

Encontramos também referências às artes circenses na Índia, onde os


exercícios eram realizados principalmente em cerimônias religiosas:

Na índia, os saltos e contorcionismos eram praticados na meditação e na


glorificação. Há mais de 5.000 anos as escrituras sagradas conhecidas
como satras (chástras) já mencionavam os gandharvas, considerados
artistas celestiais entre os semideuses. Até hoje cantar e dançar é uma
forma de glorificar a Deus, para os indianos e outros povos. (BHAKTA,
2011, p.4).

Na antiguidade Greco-romana, havia apresentações de equilibristas e


ginastas, associadas a peças teatrais dos estilos satírico, trágico e pantomímico 3,
3
Que se refere à pantomima, à mímica ou à arte de demonstrar, através de gestos ou expressões faciais, os
sentimentos, pensamentos, ideias, sem utilizar palavras.
7
este último caracterizado pela ausência de diálogo, restringindo-se aos gestos e às
expressões dos atores, narrados em crônicas do período, a grande atração exercida
sobre o público pelas demonstrações de habilidades físicas.

De início apresentadas em meio à praça, o gênero conquistou de tal forma o


gosto popular que as Olimpíadas, de caráter notadamente esportivo,
surgiram como uma estratégia para que se pudesse reunir em uma mesma
ocasião todos os que, de alguma forma, fossem capazes de demonstrar
suas potencialidades. Datam desse período as paradas de mão, o equilíbrio
mão a mão, a formação de pirâmides humanas, números de força e
contorcionismo. (ANDRADE, 2006, p. 24)

Figura 1 - Mulheres acrobatas

Fonte: Saglio Histoire générale illustrée du Théâtre – Lucien Dubech Volume I – P. 159

Segundo Andrade (2006) algumas das técnicas e formas marcantes do circo


atual foram desenvolvidas na antiguidade greco-romana, o que incialmente começou
com uma exibição de vigor e força física, que levariam a lendária criação das
olimpíadas, levou também os artistas que faziam parte do show a buscarem formas
de atrair os olhares para si e arrancar aplausos da plateia, assim foram introduzidos
aparelhos como trapézios e argolas nestas exibições. Estas exibições exigiam
também uma estrutura física adequada, que comportasse artistas e público, levando
a construção do primeiro circo latino no reinado de Tarquínio Tasso. O Circus
Maximus romano passa a ter uma enorme importância política e militar, já que este
espaço era utilizado também na exibição de exércitos, animais exóticos de terras
distantes, inimigos derrotados nas conquistas etc. Esta estrutura crescia em
tamanho e pompa de acordo com as expansões romanas, passando com o tempo

8
de simples arenas de madeira e toras para enorme estruturas de pedra e mármore,
colunas trazidas do Egito e camarotes para os proeminentes. Este impressionante
desfile poderia ser visto de qualquer ângulo graças ao formato circular da estrutura,
o que facilitava a formação de um percurso do desfile.

No Circus Maximus também é onde pela primeira vez na história, se vê a


aplicação do termo Circo para designar um espaço voltado para o entretenimento, e
lazer dos romanos reservado para jogos e espetáculos, onde havia participação
social dos súditos e privilegiados. Os espetáculos eram promovidos por cidadãos
mais abastados, por líderes políticos e pelo Estado nos tempos posteriores, tendo
por finalidade entreter a população com a política de “Pão e Circo”, bem como
homenagear os deuses ou mesmo como entretenimento para festividades privadas.
O Circus Maximus, no seu auge tinha capacidade para 300.085 lugares, eram
realizados jogos caracterizados, “pelos combates de gladiadores e as corridas de
charrete, além de propor outros números de atrações, sendo os jogos antecipados
por uma "parada", consistindo numa fanfarra, comediantes mascarados e
funâmbulos fazendo o povo rir.” (JACOB Apud DUPRAT, 2007.).

A partir do século V, esse modelo de circo romano, entra em processo de


extinção devido à forte influência cristã que classificava tais manifestações como
práticas pecaminosas. Parte desta perseguição se devia ao fato de que na Europa
os artistas estavam intimamente associados à cultura cigana 4, esses artistas
passaram a ser perseguidos pelas autoridades religiosas, essa foi umas das
principais causas desses artistas adotarem o nomadismo.

4
O povo cigano possui uma origem tão ou mais incerta que a da arte circense, há quem acredite que sua
origem está em algum lugar do Egito, porém a versão mais aceita seria a de que a maior parte dos muitos
povos que formam o povo cigano se origine no Paquistão e no norte da Índia, nos atuais estados do Rajastão e
Punjab. Este registo praticamente inexiste graças a forte tradição oral dos ciganos e o hábito de destruir todos
os pertences dos seus mortos. Vistos com desconfiança na Europa, graças a sua pele escura, língua estranha,
numerosa prole, poucos se arriscavam a empregar os ciganos e muitos os perseguiam. Porém, estas mesmas
características conferiam aos membros destes povos uma aura mística de mistério, que foi abraçada por eles,
que passaram a se apresentar como videntes, exóticos e donos de incríveis habilidades. Todos estes fatos se
encaixam perfeitamente com outros párias sociais, que também sofriam perseguição, possuíam incríveis
habilidades e estavam dispostos se locomover para fugir da igreja católica, os artistas circenses.
9
Figura 2 - O Circus Maximus

Fonte: http://wikimapia.org/6501872/pt/Circus-Maximus. Acesso em: 22/03/20019

Na Idade Média, quando ocorre uma crise de fome e doenças que é agravada
pela pobreza de toda a população, ocorre uma busca pelo sagrado, pelo culto do
espírito e, dessa maneira, os artistas passam a ser muito discriminados pelas
autoridades. Louis XIV proíbe que artistas demonstrem suas habilidades em via
pública,

Louis XIV, por exemplo, proíbe que dançarinos de corte e outros artistas
demonstrem suas habilidades em via pública, provocando um agrupamento
obrigatório das apresentações em feiras. Portanto os artistas acabam
integrando o bando dos marginalizados, assim, sempre procuravam novas
cidades nas quais poderiam ganhar um pouco mais e ter mais respeito,
caracterizando o nomadismo dessas pessoas (DUPRAT, apud COSTA,
2007, p. 25.)

Artistas que atuavam nos espaços público e dependiam das contribuições


espontâneas da população, como os funâmbulos5 e saltimbancos6 buscaram novos
espaços de atuação como os festejos populares, ocupando as praças e ruas,
apresentando as mais variadas formas de habilidades tais como a acrobacia, o
ilusionismo, a mímica, a ventríloqua, música, entre outras. (DUPRAT, 2007.)

5
Artista que anda ou dança em corda ou cabo, normalmente suspensos esticados a altura considerável do solo;
equilibrista
6
Vem do Italiano SALTARE IN BANCO, “pular sobre um banco”, que era o que muitos artistas de feira faziam em
suas apresentações.
10
A partir do século XVII, esses saltimbancos consolidam uma forte dinastia,
tradição ou forma de viver da arte, na Europa, seguindo uma tendência
comercial, estruturam-se em barracas que funcionavam como palcos,
circulando livremente pelas vilas e povoados, mantendo as características
nômades. (DUPRAT, 2007, p. 26.)

Entretanto, na Europa o período renascentista foi caracterizado como sendo o


período das grandes transformações, com mais liberdade e que proporcionou o
desenvolvimento de inúmeras expressões artísticas. Nesse momento surgem novas
ideias como a do homem (humano) como centro do universo, uma gradual perda do
poder e influência da igreja católica e uma retomada da valorização do período
greco-romano. Consequentemente, houve um grande avanço científico e uma maior
liberdade artística.

Com isto os artistas e suas famílias passam a frequentar os grandes centros


urbanos com mais assiduidade e temendo menos possíveis perseguições religiosas
em suas apresentações públicas. (ANDRADE, 2006.). Segundo Andrade, com esse
novo sentimento instaurado na sociedade, os espetáculos circenses passam,
também, a ser valorizados pela nobreza, exigindo um processo de readaptação ao
novo público frequentador dos espetáculos,

O circo renascentista torna-se estável e, não mais voltado para o público


das ruas, atenderá agora ao gosto mais refinado da nobreza. Os sinais
dessa transformação são evidentes, principalmente no que diz respeito à
seleção dos números apresentados. Os cômicos tornaram-se mais
comedidos em suas graças e provocações, assim como desaparecem por
completo as anomalias das barracas de feira. Os figurinos ganham agora
em luxo e riqueza, ainda que tudo não passe de um recurso meramente
visual. A própria aristocracia fornecia os trajes fora de uso para as
companhias que os adaptavam, com os olhos voltados para uma nova
utilização. (ANDRADE, 2006, p. 25)

De acordo com DUPRAT (2007) no século XVII, que corresponde ao final do


período renascentista, os saltimbancos consolidam na Europa uma forte tradição e
forma de viver da arte. Seguindo uma tendência comercial, estruturam-se em
pequenas barracas que funcionavam como palcos, circulando livremente pelas vilas.
Este momento é marcado por momentos de interação entre artistas circenses que
compartilhavam valores e técnicas entre os grupos que percorriam a Europa,
buscando novos conhecimentos e experiências sobre as práticas circenses.

Porém foi no Reino Unido que o circo moderno adquiriu o formato como hoje
conhecemos e que foi amplamente difundido, ou seja, com uma arena circular. Teve
11
seu início em 1768 quando Philip Astley abriu a Astley’s Riding School (Escola de
Equitação de Astley), e reuniu outros ex-oficiais para ali desenvolveram técnicas
equestres. No ano 1770, Astley transformou a escola de equitação em um anfiteatro,
o Royal Amphitheatre of Arts (Anfiteatro Real das Artes), idealizado por Philip Astley
para exibições das técnicas que tinha desenvolvido na escola. De acordo com
Bolognesi,

O circo moderno formou-se no final do século XVIII, a partir da iniciativa do


militar Philip Astley (1742-1814). Em 1768, ele inaugurou, em Londres, na
Westminster Bridge Road, 687, Lambeth, a Astley’s Riding School,
destinada a repassar os ensinamentos que ele desenvolvera na Cavalaria
Britânica. Fora da caserna, além dos exercícios militares, ele explorou a
execução de proezas de um homem sobre o cavalo. De escola, a partir de
1770, o lugar transformou-se em casa de espetáculos. (BOLOGNESI, 2009,
p. 01)

Apesar de nesse mesmo período existir outras casas onde eram feitas
apresentações e atividades equestres, a casa criada por Astley se tornou referência
no que diz respeito à inovação dos espetáculos. De acordo com PINES JUNIOR
(2013) no início o anfiteatro de Astley, contava somente com as apresentações da
arte equestre, desta forma o espetáculo foi se tornando monótono e o público
começava a se afastar das apresentações, o que levou Astley a incorporar aos
espetáculos os artistas saltimbancos dando início ao que hoje conhecemos como
Circo de variedades7.

O anfiteatro de Astley tinha sua estrutura construída em madeira, e foi


destruído pelo fogo em várias ocasiões. Inicialmente, o lugar era bastante simples,
mas a cada reconstrução recebia requintes de decoração e de equipamentos, até
que em 1863 o espaço foi definitivamente demolido.

Figura 3 - Uma escola de equitação do século 18.

7
O circo tradicional apresentando habilidades físicas, animais exóticos e acrobacias
12
Fonte: https://www.countrylife.co.uk/out-and-about/horse-mad-englishman-pioneered-modern-circus-
181821

Segundo Andrade (2006) o sucesso das encenações equestres junto com a


apresentações de artistas saltimbancos, levaram a multiplicação dessa nova estética
circense na Europa. Um dos primeiros multiplicadores da estética de Astley foi
Charles Dibdin Hughes, artista e também cavaleiro, que criou uma das primeiras
companhias de espetáculos do mundo em 1780 que se chamou Royal Circus, foi a
primeira vez que esse tipo de espetáculo e espaço aparecia com o nome de "circo" 8
na era moderna.

[...] entusiasmado, resolveu seguir os passos do militar e, ao inaugurar um


anfiteatro de sua propriedade, foi o primeiro a utilizar o nome “circus” para
defini-lo. Tratava-se do Royal Circus de Londres. (ANDRADE, 2006, p. 46)

Conforme Silva (2009) o sucesso de sua companhia foi responsável por esse
nome ficar popular e ser conhecido até os dias de hoje. A autora afirma que por volta
de 1768 uma grande diversidades de artistas faziam parte do grupo como acrobatas,
atores, cantores, músicos, dançarinos, pirofagistas, ao cruzarem com grupos de
cavaleiros e que somente a partir daí passaram a se conformar com a denominação
categórica de trabalhadores artistas circenses. Esses elencos incumbiram-se de
difundir uma nova forma de realizar os espetáculos, tornando-se, involuntariamente
em elementos reprodutores do que lhes havia sido transmitido como afirma
DUPRAT,

8
Ver NOTA 2
13
Durante o século XIX, os espetáculos circenses proliferaram por toda a
Europa, aumentando o número de companhias que se apresentavam, na
sua maioria, em instalações estáveis, construídas em estrutura de madeira
ao ar livre (sem cobertura), em anfiteatros ou em teatros adaptados
(DUPRAT, 2007, p. 30)

Essa nova forma de fazer circo teve seu auge de expansão no século XIX
quando começaram a se direcionar para as Américas. Enquanto alguns grupos se
encaminhavam para a América do Norte, principalmente Estados Unidos, outros
seguiam para a América Sul, principalmente no Chile, Uruguai, Argentina e Brasil.

Figura 4 - Padrão de estrutura circense do século XIX

Fonte: SILVA, E. Respeitável Público... O circo em cena. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2009.
Fotografia p&b.

A ampliação, desenvolvimento e reconhecimento do circo em território norte


americano aconteceu principalmente pela itinerância e pela nova estrutura que
facilitava o deslocamento. Para Costa,

A América conhecia o circo na forma como se conhece hoje: o chamado


circo americano. Uma estrutura arquitetônica baseada nas naus, com
mastros, cordas e manobras, coberta de lona. Esta estrutura se adequava
perfeitamente à itinerância característica dos saltimbancos facilitando seu
14
contato permanente com diferentes grupos populacionais. Adequava-se
também, perfeitamente a cobrir o espaço circular criado por Astley.
(COSTA, 1999, p. 38.)

Em 1820, Phineas T. Barnum um famoso apresentador estadunidense, se


uniu a James Anthony Bailey proprietário de Circo. Juntos, criaram um monumental
Circo na cidade de Nova York. Já naquela época, a dupla de empresários acreditava
no poder da promoção e anunciava seu circo como “o maior espetáculo da Terra”, o
circo se tornou conhecido nos Estados Unidos por promover um tipo de espetáculo
diferenciado, com a inserção de animais exóticos, e o também conhecido como circo
de “espetáculo de horrores” no qual os artistas expunham para o público anomalias
físicas,

[...]abrigava uma coleção impressionante de aparelhos e animais exóticos e


os apresentava em um espetáculo grandioso realizado em três pistas. O
Barnum e Bailey Circus ficou conhecido por ter sido o primeiro a apresentar
um “espetáculo de horrores” no qual os freaks expunham para o público
suas anomalias físicas. (BORGES, 2010, p.30)

Figura 5 – "Congresso dos Freaks" por volta de 1924.

Fonte: https://allthatsinteresting.com/freak-show-members

No final do século XIX, totalmente incorporada ao gosto e aos hábitos da


sociedade norte americana, em 1884, desponta uma forte dinastia circense, os
Irmãos Ringling. Para mostrar que tinha vindo para ficar, esta nova companhia foi
15
absorvendo todas as demais que surgiam à sua volta, não esmorecendo diante dos
grandes concorrentes, como Barnum e Bailey, que acabaram se unir aos Ringling,

Os Irmãos Ringling eram chamados de “Os reis do circo”. Movidos por uma
sensível percepção voltada para o sucesso, eles descobriram exatamente o
que o público tinha interesse em ver. Esses irmãos, baseados em um
trabalho sério e consistente, conquistaram o primeiro posto no coração das
platéias americanas. Um dos principais feitos dessa companhia foi ter
notado a possibilidade de usar o transporte ferroviário para o deslocamento
de seu numeroso elenco, material e animais. Graças a esta comodidade foi
possível atravessar o país inteiro, chegando a cobrir 150 cidades entre os
meses de abril e outubro de um mesmo ano. (ANDRADE, 2006, p. 56)

Figura: 6 – Ringling Bros e Barnum & Bailey Circus Julho de 1956

Fonte: http://www.circusesandsideshows.com/circuses/ringlingbrosbbcircus.html

Os circos itinerantes e o uso de tendas e barracas se consolidou nos Estados


Unidos e se espalhou por todo o continente, favorecendo uma convivência que
possibilitou o maior entrosamento entre os artistas que começaram então, a formar
famílias, o que deu origem ao circo-família9, conforme Figueiredo,

Desde as últimas décadas do século XVIII, formaram-se na Europa as


“dinastias circenses”, também chamadas de famílias circenses ou circo-
família, que se espalharam por todos os lugares. O circo-família reconhecia,
ou em um membro mais velho do grupo ou em algum homem, a tarefa de
mestre. Ele era o responsável pelo aprendizado das crianças e dos que se
integravam ao circo, no decorrer do seu percurso pelas diversas cidades e
países. As técnicas circenses eram transmitidas de uma para outra pessoa,
9
Tem como base a tradição familiar.
16
não existindo obras escritas ou uma reflexão sistematizada sobre o circo e
nem escolas. A tradição se transmitia pelas memórias: gestuais, sonoras e
rítmicas. (FIGUEIREDO, 2007, p. 18)

A história Circo e da arte circense é a história diferentes artistas se


inventando e reinventando ao longo da história da humanidade, de artistas se
adaptando e se readaptando ao contexto social, político e econômico no qual se
encontravam. Esses processos de adaptação também constituem e produzem
padrões, principalmente no que se refere à estrutura. No entanto, a maioria dos
circos europeus se manteve em espaços fixos, pois a sociedade europeia não
aceitava o circo itinerante, pela associação à cultura cigana, tão rejeitada na Europa.
Mas esse modelo serviu como referência para a construção dos espetáculos e
proliferação da arte circense, que era levada na bagagem de milhares de famílias e
trupes circenses.

Figura 7 – Estrutura Itinerante do Ringling Bros e Barnum & Bailey Circus. 1956

Fonte:https://journaltimes.com/news/local/ringling-brothers-had-several-racine-county-encounters/
article_85c79c08-21fc-528b-94aa-55077a478f26.html

1.1. O CIRCO NO BRASIL

17
O Circo formalmente organizado só chegou ao Brasil no final do Século XIX,
no entanto alguns artistas já circulavam pelo país. O Circo por aqui se transformou e
adaptou, dando ao Circo brasileiro uma estrutura própria.

A história da arte circense no Brasil está intimamente ligada à migração


cigana. Foi desta forma que os primeiros traços da arte foi introduzida no Brasil ao
final do século XVIII. Fugindo da perseguição da igreja católica na Europa, muitas
famílias de ciganos, desembarcaram no Brasil, e junto com elas, artistas
saltimbancos. De acordo com Henriques,

No Brasil, antes mesmo da chegada do circo, famílias de ciganos e


saltimbancos que vieram da Europa, tinha como especialidade a doma de
ursos, o ilusionismo e as exibições com cavalos. Viajavam de cidade em
cidade, adaptavam seus espetáculos ao gosto da população local e à
medida que viajavam agregavam novos artistas, isso fez com que o circo se
apropriasse da cultura de cada região visitada. (HENRIQUES, 2006, p. 03.)

Desde sua origem o circo brasileiro teve como principal característica a


itinerância, que muito se deve a sua inserção por meio de famílias de ciganos, assim
como pelo fato de que quando chegaram por aqui, ainda não conheciam a estrutura
desenvolvida e utilizada no Estados Unidos;

Nesse caso do nomadismo, a relação de vínculos com aquelas pessoas


escolhidas para formação de uma família só podiam acontecer, de maneira
constante, se todas elas estivessem unidas no mesmo objetivo, o que
podemos relacionar com o advento do início dos circos no Brasil, quando
famílias vinham para cá e, não tendo opção, deviam manter-se unidas pela
sua própria sobrevivência. (SACCHI, 2009, p. 7)

Os grupos que viajavam pelo Brasil se apresentavam em espaços


improvisados, que foram evoluindo até chegar ao modelo americano, entre os
primeiros espaços de trabalho podemos destacar o “tapa-beco”, o “circo de pau
fincado” e o circo de “pau a pique”:

As primeiras informações são do circo tapa-beco, consistindo em um terreno


baldio, com casa a seu lado, cobria-se à frente e o fundo com uma cortina,
denominada pano de roda (com a intenção de não deixar a pista à vista,
sendo necessário entrar e pagar para assistir ao espetáculo). [...] No caso
do circo de pau-a-pique, a madeira era cortada e disposta em círculo,
enfincada no solo, uma peça do lado da outra, rodeada pelo pano de
algodão. Ainda não havia iluminação, apresentando os espetáculos no
período diurno. [...] Uma nova tendência de estrutura de circo cresce no
início do século XX, é o circo de pau fincado, as diferentes formas de circos
coexistem dependendo das condições financeiras para se estruturarem
melhor ou pior. Nesta estrutura, a volta ao redor do circo pode ser feita pelo
pano de roda ou com chapas de alumínio, e a cobertura, feita de pano,
18
podia ser parcial, sobre o público, ou total. Surgem as arquibancadas para
melhor acomodação do público. [...] O último tipo foi o circo americano que
começa a ser usado no Brasil, difundindo-se a partir de 1940. (DUPRAT,
2007, P.37)

Segundo alguns registros, as famílias ciganas e de artistas saltimbancos se


agrupavam-se em guetos, onde realizavam seus espetáculos, percorrendo também
as áreas rurais. Suas apresentações ocorriam principalmente em festas religiosas
onde poderiam auferir renda (BOLOGNESI, 2003). Esses grupos se instalavam nas
periferias das grandes cidades suas apresentações estavam voltadas para classes
populares, havia bagunça, bebedeira, e exibições artísticas, incluindo o teatro de
bonecos. A modernização dessas apresentações se deu através dos artistas,
utilizando sua criatividade e inventividade para atrair o público. (HENRIQUES,
2006.).

Nesse mesmo período, final do século XVIII, saltimbancos, conhecidos como


volantis ou bulantis10, já percorriam o território nacional;

Desde 1757 registraram-se na Argentina os passos de volatineros (como


são denominados em castelhano os saltimbancos e funâmbulos) vindos da
Espanha para exercerem seu ‘tradicional ofício no Novo Mundo’, como o
acrobata Arganda e o volatim Antonio Verdún, que teria vindo do Peru para
Buenos Aires e Brasil (SILVA, 2003, p.36).

A partir do século XIX muitas companhias vieram para o Brasil atraídas


pela grande produção econômica. Artistas e famílias que vinham junto com as
companhias, decidiam por ficar no país e, aos poucos, foram se organizando e
estabelecendo laços de sociabilidade e se unindo aos grupos de artistas que por
aqui já circulavam. (BOLOGNESI, 2003.)

Alguns historiadores defendem a tese de que o circo formalmente organizado


chegou ao Brasil no século XIX, entre 1820 -1830, dentre eles está o circo de
Giuseppe Chiarini, que pode ser considerado um ponto de referência para se
compreender o encontro do circense europeu com os artistas e as experiências
locais. Para Ermínia Silva (2007), esta foi a época, em que o circo passou por
diversas mudanças, principalmente na produção do espetáculo com a assimilação
da cultura local;

10
Como são denominados em castelhano os saltimbancos e funâmbulos
19
Em 1834 tem-se, pela primeira vez, o registro da chegada ao Brasil de um
circo formalmente organizado, o de Giuseppe Chiarini. Pode-se, através de
uma observação mais detalhada dele, fornecida por distintas fontes, utilizá-
lo como uma janela importante para se conhecer como se deu o processo
de encontro entre os circenses europeus, suas relações com os artistas e as
experiências locais, produzindo um espetáculo que, se por um lado deixa
clara a preservação de grande parte do modelo europeu de fazer circo, por
outro vai operando mudanças na produção do espetáculo, na sua
organização ou na representação dos vários gêneros artísticos, pela
incorporação, assimilação e mistura de novos elementos vivenciados.
(SILVA, 2007, p.58)

Figura 8: Cartaz do Circo Chiarini

Fonte: http://www.circopedia.org/Giuseppe_Chiarini

O circo no Brasil pôde, também, contar com a diversidade dos grupos


mambembes11, os quais, por sua vez, também beberam da fonte da cultura popular
11
A palavra 'mambembe' provavelmente vem de 'zambembe' – 'errante', utilizada para trupes nômades, com
poucos recursos e amadoras, que apenas sobreviviam de passar o chapéu, de cidade em cidade. O termo
também é usado pejorativamente, como 'desnorteado', 'medíocre' ou 'sem valor'. É da natureza 'mambembe'
viajar muito, assim não é muito conveniente um discurso estético, com grandes cenários, grandes figurinos,
que a manutenção é complicada e com o tempo se deteriora e fica feio, daí, talvez, este conceito pejorativo
que acompanha o termo 'mambembe'. No Brasil, A expressão provavelmente surgiu entre os séculos XVII e
XVIII. Para os dicionários brasileiros 'mambembe' significa "algo de má qualidade', 'medíocre' e 'grupos
20
onde absorveram os trejeitos e a música caipira, adaptaram seus números ao gosto
das regiões que visitavam, realizando um intercâmbio cultural espontâneo e único.

As trupes circenses que circulavam pelo país iam moldando suas


apresentações ao gosto do público das cidades onde se encontravam, o número que
não agradasse era excluído do repertório e não era mais apresentado naquela
determinada região. Um exemplo é a apresentação do palhaço, “o europeu era
menos falante, usando a mímica como base, já no Brasil, o palhaço se tornou mais
falante, utilizando de comédia sorrateira, e também de instrumentos musicais, como
o violão.” (HENRIQUES, 2006)

Pode-se dizer que a palhaçaria brasileira, com a incorporação de expressões,


hábitos e tipos, além de gêneros musicais próprios da região, resultou num forte laço
social entre o universo de dentro e o de fora dos picadeiros. E com o palhaço foi
introduzido aos espetáculos circenses o teatro, apesar de já haver encenações
teatrais no circo, foi só a partir de 1910 que foi instalado um palco junto a picadeiro.
O Palhaço se tornou figura central nos espetáculos. A inserção do teatro no circo é
atribuída a Benjamim de Oliveira12, ex-escravo que ainda muito jovem decidiu fugir
com um circo que visitava a sua cidade. Neste, aprendeu a fazer acrobacias e a arte
do trapézio. Também neste circo Benjamim aprende que o trabalho no circo vai
muito além do espetáculo. O rapaz enfrentava uma rotina árdua de treinamento e de
tarefas domésticas. (SILVA, 2007).

A atividade circense no Brasil que se desenvolveu ao longo das décadas, tem


como uma de suas características a formação intrinsecamente familiar em toda sua
estrutura, e a continuidade das companhias é depositada nas novas gerações de
filhos, netos e outros familiares. No circo-família o dono do circo é, ao mesmo
tempo, um artista, e os artistas são herdeiros do dono.

teatrais/circenses itinerantes que apresentam espetáculos popularescos sem recursos tecnológicos'."


12
Benjamin Chaves: foi no circo Sotero que Benjamim conheceu seu mestre Severino de Oliveira, cujo
sobrenome pode ter sido adotado pelo rapaz após um novo registro, ficando conhecido como Benjamin
Oliveira. Foi um artista, compositor, cantor, ator e palhaço de circo brasileiro. Ele é mais conhecido por ser o
primeiro palhaço negro do Brasil. Além de ser o idealizador e criador do primeiro circo-teatro. Ermínia Silva
dedicou seu doutorado a Benjamin, que se transformou em livro, tal a sua importância para a construção do
Circo brasileiro.
21
O Circo no Brasil é a soma de diversas influências, tanto na estrutura física,
como a do circo americano e a forma circular do circo Astley, quanto na elaboração
do espetáculo, como circo teatro e o circo variedade, forma incorporadas às
características do que viria a ser o Circo no Brasil, e mais tarde o Novo Circo
brasileiro, que percorreu as mais longínquas comunidades, principalmente
interioranas, impregnado de traços da cultura popular, da música, da literatura e
muita diversão. As trupes levaram grandes contribuições a essas cidades,
movimentando o comércio local, pode prover as demandas dos artistas e gerar
renda através de comércio e serviços em torno das lonas.

Segundo Ermínia Silva citada por DUPRAT (2007), esse modelo de circo se
enraizou em nossa cultura, de forma que as trupes circenses consolidaram uma
forte tradição, caracterizada por um forte vínculo social, tendo a família como base
de sustentação; é o que os circenses chamam de “circo dos tradicionais”.

No entanto surge um novo formato de Circo que se contrasta com o modelo


de circo que se formou no Brasil, o Circo com sua estrutura baseada na família com
o saber oral repassado através das gerações de circenses.

22
CAPÍTULO 2 – O CIRCO TRADICIONAL E O NOVO CIRCO

A tradição permeia a história de diferentes grupos de uma determinada


sociedade. Muitos dos elementos constitutivos de uma cultura grupal se
identificam como sendo tradicionais, como pertencentes à tradição, em
qualquer período da história. Os circenses não fogem à regra. (Silva, 1996 –
55)

O termo “circo tradicional” remete, de certa forma, a uma história e a uma


forma de funcionamento e de transmissão de saberes muito particulares, que se
consolidaram no século XVIII, e que no Ocidente não encontram equivalentes em
outras manifestações artísticas;

Mas o termo tradicional pressupõe que estes circenses estão fazendo


necessariamente uma arte voltada para uma origem precisa no passado.
Arte estática, autossuficiente e em vias de marginalização por não firmar
hoje acordos com instituições de financiamento privadas, como fazem os
artistas do Novo Circo, por exemplo. (Borges, 2013, p)

Figura 9 – Fotografia da Fachada do Circo Stankovich, o mais antigo Circo tradicional em atividade
no Brasil, fundado em 1856

Fonte: http://www.stankowich.com.br/

O circo-família traz em seu bojo essa ideia de tradição circense familiar, e


esta é uma característica específica da cultura circense brasileira, já que o fazer

23
circo no molde europeu se dava apenas como relação de trabalho. Essa
organização com base na família, com o passar dos anos, se consolidou como
sendo algo muito peculiar do circo brasileiro,

No caso do circo, a arte e a vida dos que vivem “de baixo da lona” possui
uma característica singular, pois é sempre um viver comunitário. Sua
estrutura básica é de agrupamento de famílias, que vivem e trabalham no
mesmo local, sendo mantidas formas de vida comunitária. Nesta relação de
vida e trabalho, as famílias “tradicionais” transmitiam todo o aprendizado do
ofício, através do que foi aprendido pelos antepassados. Nesse contexto, é
difícil ver o relato da memória de um artista circense como produção
unicamente individual, ela é coletiva, também. O aprendizado, tanto o da
vida como o de ser artista, ocorria no próprio local em que se vivia e
trabalhava; assim é a construção social de um processo de trabalho
específico, que é o trabalho circense. Sua especificidade reside no fato de
que além de ter uma dimensão individual, constitui um processo grupal e
familiar” (p. 10-11)

O nomadismo, que também é uma característica marcante dessa estrutura


circense, foi uma estratégia que os circenses tradicionais encontraram para diminuir
os problemas financeiros, como aluguéis de terrenos e retorno de bilheteria. Porém
o nomadismo não é uma simples alternativa de sobrevivência, mas também uma
construção sociocultural herdada da tradição cigana, assim como dos saltimbancos,
Para Ermínia Silva:

Ainda que os nômades sejam definidos a partir do movimento, continuam,


como grupo, a ser portadores de saberes e práticas que o balizam, que os
define como grupo, com uma historicidade singular. Sua forma de habitação
e a relação com o trabalho podem ser diferentes daquela vida sedentária;
contudo fazem do mundo nômade um mundo particular, mas também
determinado e organizado. (SILVA, 1996, p. 45-46)

Para Silva (2011) ser tradicional significa “ter recebido e ter transmitido
oralmente, valores, conhecimentos e práticas” e no circo tradicional está é a única
forma da transmissão do saber. Todo conhecimento, não só gira em torno da família,
como também é repassado de geração para geração. Dentro desta estrutura social,
o saber circense consiste em ensinar a armar e desarmar a tenda, o picadeiro, as
arquibancadas, a preparar os números, e garantir a inserção dos mais novos
transmitindo-lhes o conhecimento adquirido, às crianças se dedicavam desde
pequenas ao ofício da arte, dessa forma faz-se possível a continuidade do “fazer
circo”,

[...] ser tradicional, para o circense, não significava e não significa apenas
representação do passado em relação ao presente. Ser tradicional significa

24
pertencer a uma forma particular de fazer circo, significa ter passado pelo
ritual de aprendizagem total do circo, não apenas de seu número, mas de
todos os aspectos que envolvem a sua manutenção. Ser tradicional é,
portanto, ter recebido e ter transmitido, através das gerações, os valores,
conhecimentos e práticas, resgatando o saber circense de seus
antepassados. Não apenas lembranças, mas uma memória das relações
sociais e de trabalho, sendo a família o mastro central que sustenta toda
esta estrutura (SILVA, 2003, 65-66).

O Circo se constitui no viver cotidiano enquanto humanização. É no dia a dia


da lona que o artista se faz, no aprender técnicas que se confunde com o aprender a
ser uma pessoa, situada dentro de uma estrutura e com estabelecimento do Circo
tradicional socialmente organizado em torno da família, se estabelece também a
cultura dos circenses, a do povo do circo que gira em torno da forma de transmissão
de seus saberes. Neste sentido, o espetáculo aparece como resultado da própria
existência. A vida no Circo é um processo educativo constante.

No entanto a arte circense passou por um processo de descentralização do


saber, saindo da oralidade para formatação sistemática de ensino. A primeira escola
de arte circense13, que se tem registro, surgiu no ano de 1919 quando o governo
soviético decretou a nacionalização do circo e teatros, fundando em 1927 o curso de
arte do circo em Moscou,

A primeira informação de uma escola de circo que conhecemos fora do


processo de formação/socialização/aprendizagem que sempre foi dado sob
a lona. Criou-se uma forma de ensino/aprendizagem diferente do lugar onde
estava sendo realizada há séculos, mas não necessariamente o modo, a
técnica do que era ensinado. Com certeza este processo de ensino
a partir da escola de Moscou, propiciou um dispositivo pedagógico
diferenciado para a linguagem circense, mas isto não significa que o que se
ensinava nesta escola era diferente do ensinado pelos circenses que viviam
debaixo da lona. (DUPRAT, 2007, P.41)

Mas foi só na década de 70 que surgiu um novo movimento em vários países


simultaneamente. Na França, a primeira escola de artes circenses é a Escola
Nacional de Circo Annie Fratellini. Annie era descendente da maior família de

13
Neste trabalho optei por utilizar o termo “escola de arte circense” e não “escola de Circo”, pois
entendo que o Circo não se resume às técnicas corporais que são ensinadas neste tipo de instituição, mas sim a
uma forma de organização que abrange toda a rotina dos indivíduos que dela fazem parte, desde a montagem
da lona, espetáculos e cuidados com animais, até as tarefas domésticas cotidianas.

25
palhaços franceses, os Fratellini14. A escola surge com o apoio do governo francês,
em 1975.

Na década de 80, no Canadá, os circenses começaram a dar aulas para


alguns artistas e atletas performáticos que se apresentavam em programas
especiais na redes de televisão e exibições em ginásios, então criou-se a primeira
escola de circense para atender esses artistas performáticos que não estavam
ligados à tradição circense,

O contato entre os tradicionais do circo e a vanguarda do teatro resulta na


criação de uma escola que coloca o circo num patamar de arte. Dança
clássica e teatro fazem parte do currículo. É criada uma forma de
espetáculo com temas e uma apresentação inteiramente novas. São criados
novos aparelhos, diretores são chamados para dirigir os espetáculos,
músicos fazem composições especiais e sob medida, através desta escola
pública cunharam-se os primeiros aspectos de um novo formato estético,
uma nova técnica, um novo circo, uma nova proposta, integrando saberes
de outras disciplinas que ainda não compunham os saberes circenses.
(DUPRAT, 2003, p. 04).

Porém se olharmos a arte circense do ponto de vista histórico, o circo sempre


esteve em constante transformação. Assim, o termo “Novo Circo” tem sido usado
para falar de uma nova forma de transmissão do saber circense, Segundo Rocha,

Do ponto de vista histórico, o circo parece estar em constante processo de


reinvenção desde sua institucionalização no mundo moderno. É suficiente
lembrar ainda as inúmeras transformações ocorridas no plano interno em
relação à organização social e produção do espetáculo
quanto, no externo, no campo das representações sociais que formam
o seu imaginário social. (ROCHA, 2009, P. 66.)

Em âmbito internacional a arte circense vai bem além de uma nova forma de
transmissão do saber circense, ela ganha uma nova configuração no espetáculo, o
14
Familia de artistas de circo italianos ativos na França. Gustavo (Florencia, 1842-París, 1901) foie o
fundador da dinastía. Seus filhos; Paul (Catania, 1877-Le-Perreux-sur-Marne, 1940), François (París,
1879-id., 1951) e Albert (Moscú, 1885-Épinay-sur-Seine, 1961) formaram um trio de palhaços de
grande sucesso na França entre 1920 e 1940. Os sucessos são continuados com a tradição circense
da família. Annie Violette Fratellini nasceu em Argel, onde seus pais estavam em turnê, em 14 de
novembro de 1932. Seu pai era o palhaço e acrobata Victor Fratellini (1901-1979), filho de Paul
(Paolo) Fratellini (1877-1940) e sobrinho de François e Albert, do ilustre trio Fratellini , e sua mãe,
Suzanne Rousseau (1915-1999), eram a filha de Gaston Rousseau, diretor do extinto Cirque de
Paris , o gigantesco edifício de circo que ficava na Avenue de la Motte- Picquet na capital francesa de
1906 a 1930. Herdeira a lendária dinastia dos palhaços, Annie Fratellini (1932-1997) nasceu no circo,
deixou o circo e voltou ao circo para se tornar um dos palhaços mais célebres da França com seu
marido, Pierre Étaix (e, mais tarde, com ela filha, Valérie) - antes de criar uma escola de circo em
1975, que se tornou uma das principais escolas de circo patrocinadas pelo seu país, a Académie
Fratellini .

26
circo saí da lona e do picadeiro e vai para os palcos. Já no Brasil ao falarmos em
“Novo Circo”, estamos nos referindo a forma de transmissão do saber, em que o
ensino das artes circenses sai da lona e passa a ser ensinado em escolas de artes
circense, formando assim uma nova categoria de artistas c, que não aquele que tem
seu saber adquirido a partir da família e através da vivência sob a lona.

A quebra da configuração do ensino dos saberes do circo no Brasil, se deu


nos anos 1940 e 1950, quando uma nova geração não permaneceu embaixo da
lona: as crianças eram mandadas para as cidades para terem acesso a melhores
condições e possibilidades futuras diante das dificuldades que os pequenos circos já
enfrentavam. Neste sentido, vale ressaltar o relato da pesquisadora e circense
Ermínia Silva, que faz parte desta geração,

Em idade escolar, fomos mandados para a casa de parentes que possuíam


residência fixa, para iniciarmos nossos estudos “formais” e construirmos um
“futuro diferente” e “melhor” que a vida que haviam herdado, segundo eles
mesmos. Sempre ouvimos as histórias de circo, víamos fotografias ou
recortes de jornais, mas não havia um livro para ler, assim como não havia
nada semelhante a essas histórias em nossos livros escolares. Tratava-se
da história do “povo do circo” que ninguém mais conhecia. Adultos, parte de
nós percebeu que essa distância tornou difícil a continuidade da arte
circense, porque não éramos mais os depositários de suas memórias –
ensinamentos e saberes. A partir das décadas de 1940 e 1950, período de
nascimento da minha geração, iniciou-se um processo de transformação do
modo de organização do trabalho e do processo de socialização, formação
e aprendizagem, alterando-se a transmissão dos saberes circenses, o que
fez gerar outras formas de produção do espetáculo e do artista (SILVA, E.;
ABREU, L., 2009, p. 27).

Com saída do circo, houve um crescente desinteresse de novas gerações de


se manterem na tradição do circo, e optando por manterem residência fixa, aliado a
números de bilheterias que não refletem mais o fascínio que o circo outrora
despertava, seria simples afirmar que o circo está morrendo. Porém, Segundo Silva
(1996), alguns circenses, a partir da década de 70, preocupados em transmitir a
técnica circense fundam escolas no Brasil, tentando com isso fazer renascer esta
arte, mesmo que não fosse com seus próprios filhos.

Esses circenses saído da lona foram de suma importância para a formação


do “novo circo”, e quando falo em “novo circo”, me refiro a uma nova forma de
transmissão do saber circense, pois se olharmos a arte circense do ponto de vista
histórico, o circo sempre esteve em constante movimento de transformação.

27
Como foi demonstrado em todo processo de formação, o circo e seus artistas
possuem uma imensa capacidade de se adaptar. O circo não só sobrevive em sua
forma tradicional como prospera em outros formatos trazidos pelo circo novo.

A primeira escola de circo no Brasil que funcionou fora da Lona foi a


Academia Piolin de Artes Circenses, que surgiu em São Paulo no final da década de
1970, essa escola funcionou em São Paulo entre 1978 e 1983 e encerrou suas
atividades por falta de verba, desinteresse e falta de amparo dos órgãos
governamentais. Acompanhando o movimento paulista, em 1982 foi fundada a
Escola Nacional de Circo no Rio de Janeiro, que é a única em atividade. Somente
em 1984 foi aberta a primeira escola privada de circo, em São Paulo, a Circo Escola
Picadeiro. (SILVA, 2008).

Muitas outras escolas foram inauguradas com o passar dos anos, entre elas
figuram atualmente, a Intrépida Trupe, os Acrobáticos Fratelli, os Parlapatões,
Patifes e Paspalhões, a Nau de Ícaros, o Circo Mínimo, o Circo Escola Picadeiro, o
Linhas Aéreas e o Teatro de Anônimo, entre outros, formam o Circo Contemporâneo
Brasileiro.

As formas de transmissão de saberes que fogem ao formato essencialmente


oral e cotidiano do circo tradicional incluem: i) o circo escola, como um grande
celeiro de talentos e profissionais do novo circo; ii) o circo social/educativo que visa
atender, em sua maioria, uma população em situação de risco, associando suas
práticas à educação formal; e por último iii) grupo/trupe, que possui uma origem
variada já que os alunos podem aprender as técnicas tanto oralmente quanto em
escolas de circo mais formais, sendo diferenciados em sua forma de organização e
apresentação. (CORDEIRO, 2015)

Dentre os formatos mais encontrados no Brasil destaco o circo social e o circo


escola, que Perim e Bortoleto (2010) definem da seguinte forma,

Circo-social é a articulação dos processos de ensino e aprendizagem da


cultura das artes e habilidades circenses, associada a conceitos
pedagógicos, dando forma a metodologias de educação não formal que
utilizam os fatores “risco” e “sedução” do circo como elementos centrais de
atividades que propiciam a crianças, adolescentes e jovens, especialmente
os de classes e territórios populares, o desenvolvimento de suas múltiplas
potencialidades, a elevação de sua autoestima, a construção da sua
28
autonomia e a ampliação do seu exercício pleno da cidadania (PERIM,;
BORTOLETO 2010, p. 208).

A tática é simples, consiste em utilizar a chamada magia do circo para atrair


jovens em situações de vulnerabilidade social para espaços alternativos, onde estes
se sintam acolhidos e estimulados. Muitos destes espaços associam a educação
formal como uma condicionante para que as crianças e jovens tenham acesso aos
treinos, tornando os treinos não só espaços onde se aprendem técnicas circenses,
mas também um estímulo para elevar o nível de escolaridade de uma área ou bairro.

Um dos mais famosos circos do chamado novo circo é o Cirque du Soleil, que
desenvolve um projeto chamado Cirque du Monde15, que trabalha dando apoio e
subsídios para diversos projetos de circo social ao redor do mundo e estabeleceu
bases para a formação de novos artistas e para seu desenvolvimento
socioeconômico, ao incorporá-los em seus espetáculo. No Brasil a parceria se dá
através da Rede Circo Mundo Brasil16 é uma das maiores programas de formação de
artista circense com base no circo social.

Figura 10– Sede da Escola Pernambucana de Circo – Rede Circo Mundo Brasil
15
Programa de circo social criado pelo Cirque du Soleil e Jeunesse du Monde, que visa jovens em
risco. Ele combina técnicas de circo junto com a intervenção social educacional para atingir jovens em
situação de risco entre as idades de 8 e 25 anos. Eles geralmente vêm de baixa renda, e muitos
ainda vivem nas ruas. No Brasil este programa se faz através da Rede Circo do Mundo Brasil com
sede em Londrina/PR.

16
No Brasil este programa se faz através da Rede Circo do Mundo Brasil com sede em Londrina/PR.
Esta rede, hoje reúne 22 instituições de 4 regiões brasileiras, que trabalham com educação/
promoção de crianças, mas principalmente de adolescentes e jovens de classes populares e têm
como perspectiva mais geral o trabalho educativo, o exercício da cidadania, o resgate das raízes
culturais. Todas estas instituições, em sua ação educativa, privilegiam linguagens artísticas (teatro,
música, dança e circo) no processo educativo. As atividades desenvolvidas no cotidiano buscam
favorecer a identificação destes jovens com o universo mágico do circo e com seus valores
cooperativos e associativos, oferecendo-lhes oportunidade de uma nova experiência individual e
coletiva. (http://www.redecircodomundo.org.br/a-rede/historia)

29
Fonte: https://www.escolapecirco.org.br/website/escola-pernambucana-de-circo/

A multiplicação das escolas de circo é um passo decisivo para a


democratização deste tipo de saber, que permite que conhecimentos que se
encontravam enraizados nas tradições circenses, agora possam ser aprendidos e
usufruídos por inúmeras pessoas que buscam nesta arte as mais diferentes
finalidades (DUPRAT, 2007).

Na figura que segue apresento um quadro elaborado por Gilmar Rocha


(2010), que demostra quais a principais características do Circo tradicional e do
Novo Circo, que evidenciam as diferenças e seus contrates entre essas duas formas
de “fazer circo”.

Figura. 11 – Características dos Circos Tradicional e Novo

30
Fonte: O Circo no Brasil – Estado da Arte - Gilmar Rocha BIB, São Paulo, nº 70, 2º semestre de
2010, p. 51-70.

Das características explicitadas no quadro acima, a que focarei é a que está


relacionada à transmissão do saber circense, que é repassado oralmente às novas
gerações, pois nela reside a principal diferenciação entres os artistas circenses, a
forma como se aprendeu a arte vai definir a identidade circense entre os “de dentro”
e os “de fora”; e através do saber/fazer apreendido através de uma família
tradicional circense se evoca todas as outras características.

Com a proibição de animais no Circo, o artista se tornou o principal e única


atração, assim teve que se reinventar, mais uma vez. E a forma encontrada para
isso foi trazer para o picadeiro as novas técnicas desenvolvidas nas escolas de arte
circense. E junto com as novas técnicas vem o artista que é fruto da
descentralização do saber circense, nesse momento se dá o confronto que
estabelece um contraste entre esses dois artistas, o “de dentro” do Circo e o “de
fora”, e desse contrates surgem as fronteiras que residem na “Retórica da Tradição,

... a noção de tradição e/ou tradicional aparece antes como um elemento de


classificação social do que como resultado de uma herança genética. Em
um sentido amplo a tradição adquire uma função retórica no discurso

31
circense mais do que representação de uma realidade. (ROCHA, 2009, P.
73)

Desta forma a questão inevitável que se segue desta democratização do


saber tange a identidade dos artistas que vem do picadeiro em contraste com a dos
artistas formados nestas outras escolas. No próximo capítulo trarei a teoria de Barth
(1969) para entender como o Circo Tradicional brasileiro se estabelece como um
grupo étnico quando ele evoca a tradição como forma de diferenciação do “Novo
Circo”.

32
CAPÍTULO 3 - A “Retórica da Tradição” à luz de Fredrik Barth.

Em “Grupos étnicos e suas fronteiras”, Barth se interessa pela questão da


diferenciação cultural e, consequentemente, da criação de fronteiras entre os grupos
étnicos. O conceito de etnicidade está relacionado ao sentido organizacional dos
grupos étnicos, entendidos como categorias de atribuição e identificação realizadas
pelos próprios atores que além de perpetuarem-se biologicamente, compartilham
valores culturais fundamentais.

Por essa perspectiva da etnicidade, é possível pensar o Circo Tradicional


como uma unidade étnica com seus membros partilhando valores culturais
socialmente estabelecidos. Ser um artista circense tradicional implica um processo
de formação/socialização/aprendizagem (SILVA, 1996), com base na tradição
familiar onde o saber circense é repassado sob a lona, de uma geração a outra. O
grupo se organiza para interagir e categorizar a si mesmo e aos outros (BARTH,
1969).

A “retórica da tradição” surge como forma de diferenciação do circo tradicional


do Novo Circo, ou seja, das escolas de artes circenses. Os artistas formados por
elas, aparecem como sendo “o outro”. No Circo tradicional essa diferença está
caracterizada no discurso de “sangue de serragem” ou “serragem nas veias” 17
(ROCHA, 2019). Mas este discurso só é possível a partir do contato como “outro”,
pois é na interação que surge o contraste,

[...] A metáfora do sangue é fundamental nesse processo de classificação.


O circense é aquele que tem “serragem no sangue” ou “serragem nas
veias”. É como se o circo fosse uma questão de atavismo biológico, diz um
empregado do circo “eu, sinceramente, não estou discriminando não, mas
eu acho que o artista feito na escola não é artista não”. Quando perguntado
por quê, ele responde: “o artista tem que ser feito de geração em geração”
(p. 83). Há uma certa representação de “pureza” nessa fala. (ROCHA, 2009,
P.73)

Os atores étnicos, são instauradores de novos quadros de socialização e


expressão dos sujeitos, e transformam as narrativas étnicas passadas em sinais
diacríticos. Ou seja, sinais que o grupo escolhe para se diferenciar de outros grupos

17
Estas expressões são impressas pelos próprios artistas para evocar uma hereditariedade circense.
33
e que depende dos sinais do outro. Neste sentido pode-se inferir que é a tradição o
que diferencia os artistas circenses.

Os signos e símbolos que o grupo cria para se representar, mostra que é


diferente e, em certo sentido, “que existe enquanto grupo”. São sinais cunhados ou
inventados que oscilam, não são fixos, podem ser exaltados ou ignorados,
minimizados e omitidos pelos membros do grupo. Mas são, acima de tudo, uma
reinterpretação da história étnica do grupo e, dessa forma, são visíveis para os
outros, neste sentido,

Modernidade e tradicionalidade não são duas condições naturais, antes,


podem ser vistas como categorias de pensamento que acionam um sistema
de classificação e de significados sociais orientando as interpretações não
só de circenses tradicionais e modernos bem como dos antropólogos nesse
processo de (re)invenção do circo no mundo contemporâneo. (ROCHA,
2009, p. 80)

Podemos estabelecer o Circo como um grupo étnico a partir da “Retórica da


tradição” de Gilmar Rocha (2009), em que ele diz que essa tradição circense surge
como forma de estabelecer seu lugar em uma estrutura social, o Circo abraça a
modernidade como uma forma de se reinventar e assim garantir sua continuidade,

Tradição e modernidade não se opõem, ao contrário são complementares,


pois, segundo Ricoeur, toda “tradição vive graças à interpretação; é
por este preço que ela dura, isto é, permanece viva” (1988, p. 28). Assim
como para um artista a tradição funciona como selo de qualidade, para
o circo a tradição funciona como autenticação da sua modernidade. No
Brasil, hoje, a evocação da tradição ganha contornos de modernidade. É
moderno ser tradicional. (ROCHA, 2009, p.80)

A tradição surge com afirmação do “eu” em relação ao “outro” circense. A


relação entre os circenses, os “de dentro’ e os “de fora” são mantidas através
dessas fronteiras,
As distinções entre categorias étnicas não depende da ausência de
mobilidade, contato e informação, mas implica efetivamente processos de
exclusão e incorporação, através dos quais, apesar das mudanças de
participação e pertencimento ao longo das histórias de vida individuais,
estas distinções são mantidas. (BARTH, 1969, P. 26)

O Circo tradicional se estabelece pela transmissão do saber oral repassado


através das gerações, o circense é definido pela relação familiar que molda a vida
do artista desde o nascimento, onde o circo é o mundo em que são realizadas e
reproduzidas todas as atividades da vida cotidiana,

34
O circo deve ser visto como estilo de vida e visão de mundo. O circo não é
só uma maneira de viver, morar e trabalhar, é também uma maneira de
pensar. O circo corre nas veias, está no sangue, não sai do pensamento,
dizem os circenses. O circo é ao mesmo tempo casa e empresa, arte e
trabalho. Como me disse certo dia um circense: “moramos no trabalho e
viajamos com nossa casa”. [...] O circense tradicional é o resultado não só
de uma genética ou de uma hereditariedade; ele também é fabricado aos
poucos, todos os dias dentro do circo. (ROCHA, 2009, p. 73.)

No entanto essas características não deveriam ser tomadas como aspecto


primário, mas sim como resultado atributivo dos próprios atores, com o objetivo de
organizar as interações entre as pessoas. Os grupos étnicos se estabelecem como
organizações sociais, onde as fronteiras étnicas são o fruto da interação com o
outro. A característica definidora dos grupos étnicos é a de serem tipos
organizacionais definidos por categorias de adscrição do tipo “nós” e “outros”,

Assim, no que diz respeito à minha experiência de campo, a família surgia


mais como uma categoria de classificação e menos como uma “realidade”
que pudesse ser pura e simplesmente definida por relações de
consanguinidade ou instituição detentora de um saber específico. Família
servia para falar tanto de “relações de sangue” quanto de “relações de
trabalho”. Em nome da tradição, da “pureza de sangue”, da natureza
especial do artista tradicional de circo, ameaçado de morte pela “invasão
dos aventureiros” o “circo-família”, esconde-se um processo de
“autenticação” do Circo. (ROCHA, 2009, p. 76.)

Para Barth o trabalho etnográfico tem de centrar-se naquilo que o grupo


reivindica como seu e que fundamenta o grupo étnico, e deve ser compreendido
enquanto um campo de comunicação e interação. Além disso, as distinções étnicas
não dependem da ausência de mobilidade, contato e informação, nem mesmo da
ausência de conflito, pois apesar dos fluxos de pessoas e contatos, as fronteiras e
os sinais diacríticos permanecem.

Ser tradicional ganha um novo significado, que não é só a de uma forma


antiga de fazer circo. Agora ele significa ter um lugar específico em uma estrutura
social. O ser tradicional evoca uma origem, um pertencimento, uma formação
sociocultural que está embasada na família circense, com o discurso de
tradicionalidade o circense busca estabelecer as diferenças que existem entre os
artistas “de dentro” do Circo e os artistas “de fora” dele,

Nesse sentido organizacional, quando os atores, tendo como finalidade a interação,


usam identidades étnicas para se categorizar e categorizar os outros, passam a
formar grupos étnicos. (BARTH,1969, p.32)

35
Os grupos étnicos se estabelecem como organizações sociais, onde as
fronteiras étnicas são o fruto da interação com o outro. A característica definidora
dos grupos étnicos é a de serem tipos organizacionais definidos por categorias de
adscrição do tipo “nós” e “outros”, a “retórica da tradição” diz respeito a afirmar seu
lugar na estrutura social, surge como uma, do artista que nasceu no Circo, de dizer:
eu sou artista circense tradicional, o “outro” circense não. Desta forma Circo se
estabelece como um grupo étnico, pois,

A atribuição de uma categoria é uma atribuição étnica quando classifica uma pessoa
em termos de sua identidade mais básica, mais geral, determinada presumivelmente
por sua origem e circunstância de conformação. (BARTH,1969, p.32)

A tradição não deve ser vista como aspecto primário da identidade, mas sim
como resultado atributivo dos próprios circenses, como objetivo de organizar suas
interações. A Identidade Circense é fruto dessa interação entre os artistas circenses
formados no Circo tradicional, ou seja, aquele que tem sua estrutura social baseada
em uma relação familiar, onde o saber circense e repassado de geração em
geração, e o artista circense fruto que aprendeu a arte em uma escola de artes
circense. As fronteiras identitárias surgem como resultado dessa interação e dessa
interação surge o contraste. Os circenses encontram na tradição uma forma de se
afirmarem perante esses novo artistas. A identidade circense tradicional se forma
partir da interação onde surgem os contrastes entre esses artistas que se diferem
principalmente em função de suas origens,

“Assim, a persistência de grupos étnicos em contato implica não apenas a


existência de critérios e sinais de identificação, mas também uma
estruturação das interações que permita a persistência das diferenças
culturais.” (BARTH, 1969, p. 35).

No capítulo que segue, veremos como a tradição se estabelece como uma


fronteira entre os artistas do Circo Tradicional e Novo Circo, e como essas fronteiras
se realizam na fala do artistas, não só a autoatribuição de ser tradicional e a
atribuição de ser artista contemporâneo, assim como seu reconhecimento por
ambos.

36
3.1. Processo De Construção Da Identidade Circense: tradicional e o
contemporâneo

Como vimos no capítulo anterior, a principal fronteira identitária estabelecida


no mundo circense é a tradição, que sugere uma origem e uma formação, tanto na
técnica circense como na vida. Assim busco identificar na fala dos artistas
entrevistados, como são percebidas as fronteiras que apoiam o discurso de “os de
dentro” e “os de fora” no mundo circense. De como eles se identificam e são
identificados.

Por meio das falas desses artistas18, tanto do artista circense contemporâneo,
como ele mesmo se define, quanto do artista circense tradicional, é possível
identificar como ambos percebem essa diferença entre suas origens circenses.

Para Yéssica, artista circense tradicional, a arte circense é uma identidade


herdada, já que ela nasceu e se criou dentro de um circo e foi socializada nos
moldes da arte circense:

...tipo nasci lá e fui criada no circo, como artista. Sendo uma artista muito
profissional desde pequena né. Meu pai foi um dos melhores artistas do
circo, e ele foi meu professor até hoje. E aí, a gente sempre teve aquele
símbolo sabe? ... (YÉSSICA.)

Já para Gabriel, artista circense contemporâneo, a arte circense é identidade


adquirida através da técnica, pois ele não nasceu em uma família circense, ele
descobriu o circo por acaso:

...foi assim, tipo, eu nem pretendia ter esse contato com o circo, no primeiro
momento quando eu fui conhecer o circo, o primeiro momento na verdade
quando quis me envolver com a arte eu fui para o teatro. Vendo, mas meu
objetivo na verdade não era ir para o teatro, meu objetivo era ver se na
18
A opção por utilizar a fala de somente dois artistas, um artista representante do Circo tradicional e outro do
Novo Circo, se dá pelo fato de o acesso aos artistas tradicionais é muito difícil, tanto por sua configuração
nômade, quanto por terem um vida cotidiana diferenciada. Apesar de no período de produção desta pesquisa,
dois Circos terem feito temporada de apresentações em Belém, não consegui ter acesso aos artistas, pois após
cada espetáculos, todos noturnos, se dava início a rotina de treinos, que entravam pela madrugada, o que faz
com que acordem e iniciem suas rotinas cotidianas pela parte da tarde. Que consiste em tarefas domésticas e a
manutenção do Circo como em todo. Desta forma não consegui entrevistar outros artistas do Circo tradicional,
optando por equipara o número de artistas, para fazer o contraste de suas falas.
37
instituição onde eu fui procurar esses cursos se tinha aula de gastronomia,
pra minha infelicidade não tinha gastronomia, mas eu vi teatro e foi o que
mais me chamou atenção antes de ver o circo. (GABRIEL.)

O Circo para Yéssica é casa, é trabalho, é o meio pelo qual ela foi criada, é a
sua medida de vida. O circo é mais que só uma profissão, representa a tradição em
que sua família vive há sete gerações. É a forma como se locomovem, se organizam
socialmente, como desenvolvem as tarefas domésticas, os treinos, como Yéssica
evidencia em sua fala:

Isso é ser artista. Artista é trabalhar com aquilo que você gosta. Como eu
sempre falo: “Deus deu dom pra gente fazer o que a gente sabe”. O que a
gente nasceu pra ser isso, o que a gente criou, vem de família; de gerações
em gerações, meus avós, meus pais, meus filhos, meus avós, meus tios
todos são artistas de circo. Todos tem um circo. E ser artista de circo é um...
tipo assim, ser artista de circo é um privilégio, é isso aí. E é isso aí, ser
artista de circo é um privilégio, uma emoção. Cada vez que um sai no
picadeiro, sabe? É uma coisa diferente, transmite alegria pras pessoas. As
pessoas “te olham” como teu trabalho é, e admiram né?! Principalmente.
(YÉSSICA)

Se para Yéssica o Circo é a medida de sua vida, para Gabriel essa é uma
relação de trabalho, onde um contratante deve oferecer a estrutura adequada para
que ele possa realizar o show, no entanto:

É difícil tu achar um contratante que tu dê o teu preço e ele pague. O


contratante, ele não pensa. [...] eu tenho me deslocar da minha casa pro
evento, se eu for fazer aéreo, os aparelhos aéreos, ou perna de pau ou
qualquer outra coisa eu teria que cobrar uma taxa pra levar esses
aparelhos, [...] eu vou ter que fazer um trabalho que seria de um bombeiro,
que seria de subir e armar um aparelho, aí eu cobro essa outra taxa. [...] se
acontecesse deu cair eu teria que levar um técnico de enfermagem, por
exemplo. Entendeu? Então são todas essas taxas, antes de chegar no meu
cachê tem todos esses investimentos pra ti poder ter uma boa... Uma
segurança no teu trabalho. (GABRIEL)

Para Yéssica a relação de trabalho, está ligada a essa formar de fazer


circense que exige do artista tradicional, treino diário e muita disciplina. E que ela
não enxerga nos artistas “de fora”. Este é um dos argumentos que ela se utiliza
para se diferenciar deles,

E agora que eu tô vendo os artistas que não moram no circo, mas se


considera artistas de circo, é outro espetáculo entendeu?! A gente era o
mesmo todo dia, espetáculo todo dia, eles não trabalham todo dia, então
eles não sabem totalmente como ser um de circo, entendeu?! [...]
(YÉSSICA)

38
Apesar de Yéssica estar fora do Circo, pois teve que pausar suas atividades
circenses para poder completar os estudos, ela afirma que em qualquer Circo ela
conseguirá trabalho, pois carrega consigo a tradicionalidade circense. O fato dela
ser de uma família de Circo lhe garante o retorno a lona,

Acho que conseguir trabalho, eu consigo, como eu te falei, minha família


vem do circo, então tem muito circo, e é a medida de todo mundo, então é
tipo assim, um ajuda o outro, eu vou pro circo, eles me contrato, e eu moro
no circo, entendeu? Agora eu não tô trabalhando porque a gente teve
problema financeiro, teve coisa e estudo, mas já me chamaram inúmeras
vezes pra trabalhar no circo. (YÉSSICA)

Indagado se consegue trabalho dentro do Circo, Gabriel diz que sim. No


entanto, reconhece que sempre será visto como um artista circense “de fora” do
Circo, evidenciando as fronteiras existentes entre essas duas categorias de artistas.
Porém isso, no seu ver, não é algo negativo, pois ele tem a compreensão de que um
artista circense tradicional é aquele que nasceu dentro de um circo, e que herda e se
aperfeiçoa em uma determinada modalidade circense. E ele sendo um artista
contemporâneo pode transitar entre muitas ou até em todas:

Ah sim, hoje em dia sim, muito mais fácil, é, hoje em dia eu creio que o
artista contemporâneo ele evolui muito mais do que o artista tradicional, o
artista tradicional, ele geralmente se vincula a um só aparelho, o artista
contemporâneo não, ele aprende quase todos, ele tem que aprender quase
todos...” (GABRIEL)

O princípio da formação do artista circense tradicional parte de uma


valorização do meio em que se encontra, ou seja, o próprio circo e seus saberes.
Possuir uma identificação com a classe e um vínculo com o fato de ser um
tradicional,

...acho que isso como vem de família, né?! Não pode se romper, eu vejo
assim, não posso romper algo que vem de faz tempo, e me orgulha ser
“cirquense”, [...] porque a gente como é tradicional né?! Minha família, meu
pai, a gente ensina sempre uma cultura entendeu?! (YÉSSICA)

Gabriel tem a compreensão do que é ser um artista circense tradicional e que


ele não se encaixa nesta categoria de artista. Como podemos verificar nesta fala:

... eu não nasci numa família tradicional de circo, por isso me considero um
artista contemporâneo. Eu não tive um pai que fosse me auxiliar,
entendeu? No que eu fizesse, no que eu vou fazer, no que eu faço na
verdade. Eu não tive uma mãe pra me ensinar a fazer meus collants, ir
bordando meus collants. Não. Eu tive que aprender um pouco de cada
coisa. Só eu. Eu tive que vir treinar só eu, e aprender tudo só eu. Era tudo
39
só eu. Se eu fosse me apresentar, a minha roupa era costurada por mim. Se
eu tivesse que bordar minha roupa, eu vou lá e bordo a minha roupa.
(GABRIEL)

As identidades construídas sempre buscam reforçar uma tradição, uma


origem geracional antiga. O novo é visto como os outros, “eles”, os “de fora” do
picadeiro, da lona. Assim, para alguns ter sangue circense, ser de família circense a
gerações, garante o atributo de ser circense tradicional e define para o sujeito uma
identidade vista como naturalizada. Dentro do circo tradicional esta característica se
manifesta na forma das famílias circenses, como verificamos nesta fala de Yéssica:

Era na Holanda, chamava Circo Os Valentin, agora é um dos melhores da


Venezuela, tá passando por crise, mas tá tudo bem, tá ótimo. E, tipo o dono
desse circo é meu padrinho. Então a gente era uma família cirquense,
realmente era um circo de família, que ele foi se multiplicando, se
multiplicando, se multiplicando, foi viajando a medida do mundo né?! [...]
Sete gerações sim, a minha vó morreu com cento e quinze anos, e era a
melhor artista de circo no tempo dela. É muita história, mais de duzentos
anos, realmente sete gerações. E atualmente a família nossa tem dez
circos, e na família, todo a nossa família... (YÉSSICA)

Como artista do Novo Circo, Gabriel tem a compreensão que ao ser inserido
no Circo Tradicional, não será reconhecido como um “de dentro”, pois entende que
ser um artista circense tradicional está ligado à questão de pertencimento a uma
longa geração de artistas membros de uma família:

... hoje em dia eu posso mandar um currículo, esse Circo pode me contratar,
e aí sim, se lá dentro formar uma família, aí sim, vai ser a minha primeira
geração de Circo. E eu nem sou considerado uma geração ainda. A minha
família, meus filhos vão ser considerados a primeira geração de circo.
(GABRIEL)

As falas dos dois artistas evidenciam que ambos percebem que apesar de
dividirem uma mesma técnica, possuem socializações diferentes, encaram o circo
de forma diferente e, principalmente, reivindicam para si uma identidade diferente.
Tal percepção só foi possível através do contraste produzido pelo contato entre
estas duas identidades. Desta forma afirmam-se como um sendo artista tradicional,
“de dentro” e o outro, como um artista contemporâneo “de fora” do Circo.

Mas essas diferenças só são possíveis a partir do contato e interação entre


essas duas categorias de artistas, e isso acontece quando o Circo traz esses novos
artistas para debaixo da lona, como uma forma de se modernizar, mas deixar de ser
tradicional. Nesse contato que surgem as diferenças, é na interação que é possível
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perceber que esses dois artistas, apesar de praticarem uma mesma arte, se
diferenciam, e essa diferença reside na tradição. No entanto, “O circense não está
fechado à modernidade, embora seja visto e classificado na maioria das vezes como
“tradicional”. O recurso à tradição consiste numa forma de estabelecer uma
diferença com o artista que vem “de fora”. (ROCHA, 2009, p.73).

O artista circense que figura neste Novo Circo, não vem de uma tradição
familiar, seu saber circense vem de uma escola, que não é o Circo. Neste sentido,
os artistas circenses, que herdaram a arte, evocam a tradição como forma de marcar
sua posição na estrutura social.

Na fala dos artistas, percebemos que a principal diferença entre eles é a


tradição familiar circense, quando Yéssica diz: por que a gente como é tradicional
né?! Minha família, meu pai, a gente ensina sempre uma cultura entendeu?!. Neste
enunciado, fica evidenciado que a Tradição é a fronteira que diferencia e o que
define o artista circense que nasceu no mundo do Circo, daquele artista circense
que aprendeu a arte em uma escola de arte circense, a tradição é enaltecida afim de
os de dentro se afirmarem enquanto pertencentes a uma história de construção e
formação do Circo,
As características a serem efetivamente levadas em conta não
correspondem ao somatório das diferenças objetivas, são apenas aquelas
que os próprios atores consideram significativas. (BARTH,1969, p.32)

Nesse processo de construção das fronteiras identitárias é o circense quem


determina as características que serão manifestadas, afim de estabelecer a
diferenciações entre os “de dentro” e os “de fora”.

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Figura 12 : Circo da Família Jazneliz em turnê em Belém na década de 70

Fonte: Yéssica Jazneliz

Figura 13 : Público em uma sessão no Circo da Família de Yéssica Jazneliz

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Fonte: Yéssica Jazneliz

Figura 14: Gabriel em treinamento junto com Yéssica no Curro Velho

Fonte: Arquivo pessoal de Gabriel Silva

Figura 15 :Gabriel em sessão de treinamentoSilva em treinamento

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Fonte: Arquivo pessoal de Gabriel Silva

Considerações Finais

O texto procurou mostrar que o Circo e o circense traz em seu processo


histórico uma grande capacidade de adaptação, sendo esse um fator imprescindível
para a sua continuidade sem abandonar as tradições. O Circo passou por um
processo de construção, desconstrução e agora está se reconstruindo sob a lona.

No primeiro capítulo trago a histórias de artistas desempenhando atividades,


que hoje chamamos circenses, ora como forma de expressão do sagrado, ora como
treinamento militar; o fato é que essa diversidade se configura no Circo que reúne
sob a lona as mais diversas expressões artísticas. Fica evidente que o Circo é
resultado da influências das mais diversas manifestações artísticas dos mais
diversos povos, o equilibrismo, o contorcionismo, a pirofagia, a arte equestre, a
doma são exemplos dessa manifestações. Não se pode dizer ao exato quando
essas expressões artísticas se encontraram, o que pode-se dizer é que de seu
ajuntamento formou-se esse Circo diverso e colorido, que habita o imaginário
popular.

A história da formação do Circo brasileiro, assim como a história do Circo,


como um todo, juntou o que já estava estabelecido como Circo e adicionou aspectos
da cultura popular, inseriu o teatro a seu espetáculo, e transformou o palhaço em
uma representação do povo. Por onde passava, agregava para si características do
popular, principalmente o palhaço que se tornou uma caricatura do homem do
campo.

Porém, diferente do que ocorreu no resto do mundo, o Circo no Brasil


enraizou em sua estrutura social, conceitos como a família e transmissão oral do
saber, criando assim, uma cultura única e específica da realidade brasileira. Até
então o Circo era o único formador de artistas circenses, mas isso muda com a
descentralização do saber; a arte circense passa a ser ensinada em escolas, desta
forma surge um novo artista circense, que não é mais aquele com suas bases em

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uma tradição familiar, e com esse novo artista, surge um novo formato de Circo que
difere da forma tradicional de fazer Circo. Esse “Novo Circo” foi apresentado no
terceiro capítulo.

Esse “Novo Circo” se configura, principalmente pela descentralização do


saber; se antes só se tornava artista pela transmissão do saber, repassado através
da gerações familiar e com uma vivência sob a lona, agora é possível ser artista
circense em uma escola. No entanto esse saber, só diz respeito a técnica da arte,
pois no Circo Tradicional reside um saber secular, ou mesmo milenar, não é só uma
técnica mas uma maneira de viver, de pensar e reproduzir o mundo.

O Circo tradicional estabelece padrões baseados na tradição que definem as


identidades circenses entre os “de dentro e os “de fora”, entre tradicional e não-
tradicional. No entanto, esses padrões não são fixos, podem mudar e ressignificar-
se em outro momento, conforme o contexto social.

Ser um artista circense implica em um viver sob a lona. Antes só se era


artista circense, antes só existia o Circo. Mas com o surgimento do “Novo Circo”, o
Circo que estava consolidado e com sua estrutura social formalmente organizada
em torno da relação familiar, se vê diante da necessidade de se afirmar perante este
“Novo Circo”, onde não há uma relação familiar, não há a vivência do dia-a-dia, e o
artista circense que figura neste do novo cenário que não vem de uma tradição
familiar, adquire seu saber circense em uma escola, que não é o Circo.

A “retórica da tradição” diz respeito a marcar seu lugar na estrutura social,


surge como uma forma do artista que nasceu no Circo dizer: eu sou artista circense
tradicional, o “outro” circense não. O ser tradicional evoca uma origem, um
pertencimento uma formação sociocultural embasada na família circense.

A perspectiva de que a identidade étnica é uma identidade relacional e


situacional é explicada a partir da abordagem de que sendo os grupos étnicos
categorias de atribuição e identificação construídas pelos próprios atores, tem-se
que, os sinais e signos manifestos, variam conforme a situação e o contexto.
Portanto, de maneira geral, a construção e manutenção das fronteiras étnicas,

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representam jogos de interesse, em que entram em disputa códigos e diferenças
culturais significantes para a comunidade circense. .

No entanto esses padrões não são fixos, podem mudar e ganhar um novo
significado em outro momento, conforme o contexto social. A identidade circense
como uma identidade étnica é relacional, pois ela só se define em relação ao outro,
na interação com o outro, e situacional, pois depende da situação do outro, se essas
situações mudam os signos também podem mudar.

O Circo Tradicional, como um grupo, cuja identidade se aproxima de um


grupo étnico, possui padrões valorativos que o definem enquanto tal, e a forma
como cada grupo ou cada circense irá se portar em contato com outros, na interação
interétnica, com o intuito de adquirir visibilidade e dialogar com outro. Nesse sentido
a artista circense tradicional se afirma como sendo “de dentro” da tradição circense e
o artista contemporâneo como “de fora”. Nesse sentido os artista tradicional se
afirma como sendo “de dentro” da tradição circense e o de artistas contemporâneo
como “de fora”.

Nesse sentido, percebemos que ambos se reconhecem como artistas


circenses, assim como reconhecem o outro como sendo um artista circense, no
entanto, a partir do contato e da interação, percebem que possuem origens e
vivências distintas, as diferenças de postura, o processo de aprendizagem e os
processos de transmissão dos saberes da arte circense, assim surgem os contrastes
que os diferenciam, que se configuram em fronteiras identitárias que os definem
enquanto artistas. Se percebem iguais apesar de suas diferenças. De um lado, um
artista com um forte vínculo familiar e a uma cultura secular, de outro, um artista que
pode inovar, e que embora siga os pressupostos que compõem os conhecimentos
que fazem parte da arte circense, não possui os vínculos familiares que referenciam
a tradição.

As identidades tem que ser entendidas como uma construção ideológica e


como posição em uma estrutura socialmente estabelecida. As identidades se
articulam em sistemas contrastivos. No caso dos circenses, é a tradição, que surge
em oposição entre os “de dentro” e o “de fora” do Circo, o que se vê reforçado pela

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transmissão do saber oral repassado pela família circense e como a mesma
condiciona a inserção na estrutura social.

Esta pesquisa, muito vem a contribuir para minhas reflexões iniciais sobre
identidade, em como os sujeitos pertencentes a um grupo se organizam se
identificam no sentido de que seu grupo seja reconhecido como tal, estabelecendo
fronteiras que definem sua identidade os diferenciando dos demais. Mesmo
compartilhando uma mesma arte, essa fronteira não só define a identidade, mas
também é criadora de diferença e se estabelece no contraste com o outro, sendo
iguais mas ao mesmo tempo diferentes; mas ao criarem essas fronteiras possibilitam
uma convivência sob ou fora da lona, a partir do reconhecimento de ambos. A
Identidade do artista circense tradicional só se faz possível por meio de seus
símbolos e fronteiras, presentes na construção da diferença, no reconhecimento de
alteridades, e nas relações interétnicas e interculturais, essa assertivas me
nortearão para futuras discussões acerca da identidade e alteridade.

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