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ARTIGO ARTICLE
para a compreensão da morte infantil
Helena de Oliveira 1
Maria Cecília de Souza Minayo 2
te de um conhecido de maneira perceptiva, in- nário consiste não apenas em exprimir poten-
telectual, instintiva, direta, indireta, clara ou cialidades, mas também em reduzir potencia-
nítida, vaga ou pouco diferenciada, formulada lidades, para as limitar às de um ser humano
ou não formulada (Atlan, 1992). A interação (Atlan, 1991).
entre o passado e o futuro, entre o consciente e Em síntese, o processo de organização e de
o inconsciente, entre a memória e o querer, é o auto-organização da vida tem as bases em três
que geraria os fenômenos híbridos e secundá- sistemas abertos: o ecossistema, o biológico e
rios, principalmente o desejo consciente. Es- o social, numa interação contínua e perma-
se desejo seria a exibição, como memória, des- nente de formas provisórias de expressão. Os
ses processos auto-organizadores originados seres vivos nascem, se desenvolvem e se man-
do querer inconsciente e nascidos da vida ve- têm em constante interação com o meio, que
getativa, acrescidos à consciência voluntária os atravessa incessantemente com fluxos, for-
que, por mecanismos de armazenagem dos ças e ruídos. Nada é estático, nada é imutável.
processos auto-organizadores efetivamente vi- Porque é da comunicação entre esses três ce-
vidos, interviriam secundariamente, decidin- nários que nossa identidade recebe influxo,
do sobre a resposta a um estímulo. nosso caráter se forja numa escolha entre múl-
É importante considerar que o funciona- tiplas possibilidades e nossa história se cons-
mento desses fenômenos híbridos deve acon- trói. Por outro lado, quanto mais os sistemas
tecer como um compromisso ótimo e flexível social, biológico e ecológico se comunicam a
entre a memória e o querer. Para Atlan, o de- partir de suas diferenças, mais ricos e mais
lírio não seria o imaginário projetado no real, complexos cada um deles se torna, permitin-
mas a conservação demasiadamente sistemáti- do infinitas combinações de vida. Pela influên-
ca e demasiadamente rígida de estados de au- cia do meio, o sistema vivo está constante-
to-organização que, normalmente, deveriam se mente se desorganizando, se desordenando,
suceder, modificando-se (Atlan, 1992). se desintegrando, vivendo uma série de pe-
A racionalidade, como busca da verdade, quenas e fugazes mortes cotidianas. As enzi-
ao invés de se firmar na ciência, deveria se fun- mas se degradam, os metabólitos são elimina-
dar no sistema dos afetos e na vida vegetativa dos, os líquidos evaporam, 90% de suas mo-
de cada indivíduo em sua relação com o meio léculas envelhecem e morrem no espaço de um
social, em uma memorização flexível, abrin- ano (Guyton, 1996).
do-lhe o mundo infinito das possibilidades. Apesar da degeneratividade de seus com-
Nesse sentido, não se pode conceber o in- ponentes e das agressões do meio ambiente, o
divíduo como a simples realização de um pro- organismo é capaz de, complexificando-se, ex-
grama determinado geneticamente, sem von- trair desses eventos, princípios de ordem in-
tade livre, ou como apenas uma “pessoa po- terna, ordenando-se e ordenando ativamente
tencial”. Segundo Atlan o indivíduo não está o meio para assegurar sua sobrevivência. É evi-
contido em potencial mesmo no ovo fecundado, dente, portanto, que o morrer faz parte do vi-
sob a forma da totalidade de suas propriedades, ver e que, indo mais além, a morte é, ela mes-
que existiriam já como potencialidades repri- ma, fonte de vida. As atitudes diante da mor-
midas, esperando uma ocasião para se exprimir. te ao longo da história e através das culturas,
Falta-lhe o que resultará das interações com o bem como as descobertas mais recentes da teo-
meio, daquilo a que chamamos o desenvolvi- ria da auto-organização, corroboram essas afir-
mento epigenético. (...) Ora, existem, de fato, mativas.
potencialidades de desenvolvimento em um ovo E então, se o organismo se mantém, simul-
fecundado, mas sua extensão varia, ela própria, taneamente, tanto sob o efeito da degenerati-
ao longo do desenvolvimento (Atlan, 1991). vidade causada por um meio perturbador,
Além disso, as experiências de transplan- quanto da sua capacidade de se adaptar e de
tes de frações de órgãos inter-espécies, em la- adaptar esse meio a seus próprios fins, o que
boratório, nos mostram que a vida é possível falha quando o organismo se encaminha para
em outras condições e que, certamente, o em- a morte real? Como explicar a morte de seres
brião humano traz em si outras potencialida- que, convivendo intimamente com a mortali-
des que não as especificamente humanas. dade, possuem uma aptidão inata para a vida?
Maiores que a de um indivíduo humano e ne-
cessariamente maiores que as de uma pessoa
humana. Ou seja, o desenvolvimento embrio-
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