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A auto-organização da vida como pressuposto

ARTIGO ARTICLE
para a compreensão da morte infantil

The life self-organization as a requirement


to understand the infancy death

Helena de Oliveira 1
Maria Cecília de Souza Minayo 2

Abstract Considered as a health indicator tra- Resumo Indicador de saúde tradicionalmente


ditionally valorised and recognised, infancy valorizado e reconhecido, a mortalidade infan-
death is still a challenge for the Governments til é ainda um desafio para os governos e insti-
and institutions, both nationally and interna- tuições nacionais e internacionais interessa-
tionally, which are struggling to reduce those das/envolvidas na luta pelo seu declínio. Suas
numbers. The causes of infancy death are causas estão ligadas basicamente às pneumo-
linked, mainly, to pneumonia and gastro-en- nias e às gastroenterites; patologias que têm seu
teritis pathologies that have a vicious circle círculo vicioso agravado e/ou desencadeado pe-
that is enhanced and/or disseminated by un- la desnutrição. Em busca de uma abordagem
der-nourishment. Searching for a less biolog- menos biológica, e no fundo de intervenções
ical way and, in fact, more effective and effi- mais efetivas e eficazes, os estudos mais recentes
cient interventions, recent studies are being di- têm sido direcionados aos fatores socioeconô-
rected by social-economical factors as indicative micos que aumentariam o risco de doença e de
of illness and death increase during the first morte no primeiro ano de vida. Classe social,
year of life. Social class, mother’s educational escolaridade materna, saneamento básico e ren-
background, basic sewage system and family’s da familiar são algumas das variáveis às quais
income are some of the variables which can be se atribui esse risco diferenciado. Um instigan-
attributed this differentiated risk. But an in- te questionamento, entretanto, persiste: consi-
stigating question persists: considering fami- derando famílias da mesma classe social, ren-
lies with similar social class, income and edu- da familiar e escolaridade materna, por exem-
cational background, for instance, why some plo, por que em algumas morrem crianças pe-
children die still in infancy and others do not? quenas e em outras não? Esse questionamento
This questioning inspired this article that, from inspirou este artigo que, a partir da teoria da
1 Instituto Fernandes
Figueira. Av. Rui Barbosa,
a self-organisation theory, search for a contri- auto-organização, busca contribuir para o elu-
716 Flamengo – 22250-020 bution to clarify the complex mechanisms re- cidamento dos complexos mecanismos envolvi-
– Rio de Janeiro – RJ. lated to death in the first year of life. We sup- dos na morte de crianças no primeiro ano de vi-
helena-oliveira@bol.com.br
2 Centro Latino Americano pose that the family’s dynamics, understood da. Parte-se do pressuposto de que a dinâmica
de Estudos de Violência inside the concept of self-organisation, gener- familiar, compreendida dentro do conceito de
e Saúde Jorge Careli – ates the conditions for increasing the risk of in- auto-organização, cria as condições para esse
CLAVES. Av. Brasil, 4.365 –
Pavilhão Mourisco –
fancy death. aumentado risco de mortalidade infantil.
Manguinhos – 21045-900 – Key words Infant mortality, Families, Chil- Palavras-chave Mortalidade infantil, Famí-
Rio de Janeiro – RJ dren, Risk factors lias, Crianças, Fatores de risco
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Oliveira, H. & Minayo M. C. S.

Introdução Do presente ao passado: a história ao


reverso das representações da morte
Em geral nossa sociedade, aí incluída a cate-
goria médica, tende a se recusar a tratar, co- A interdição e a recusa da morte em nosso sé-
mo seu, o fenômeno da morte. Estranhá-lo, culo são fenômenos inegáveis. Profissionali-
esquecê-lo, não nomeá-lo, apenas aceitá-lo co- zada, medicalizada, sobretudo hospitalizada,
mo inevitável: eis a atitude mais comum e re- a morte é desapropriada tanto do contexto do
petitiva em nosso cotidiano. No âmbito da me- indivíduo e de sua família, quanto de seu meio
dicina, menos que aceitar, o lema é estabele- social mais imediato. No âmbito da medicina,
cer com a morte um duelo de poder, onde, sua dimensão biológica suplanta todas as ou-
quando ela é vencida, a onipotência médica se tras e sua tecnificação é crescente, o que difi-
reproduz e se reafirma em seu objetivo essen- culta sobremaneira a detecção do momento
cial. Prova disso são todos os feitos mitológi- exato em que ocorre, transformando o faleci-
cos do setor que, não só atribuem ao médico mento, no mais das vezes, em um processo pro-
o poder quase divino, mas levam a sociedade a longadamente doloroso e solitário. Morre-se
reconhecê-lo apenas abaixo de Deus. São esses por descuido, por acidente; morre-se por de-
mesmos mitos que, do ponto de vista cultu- sobediência às regras do bem-viver. Culpa-se o
ral, impulsionam as avançadas pesquisas de indivíduo e, no caso da criança pequena, a fa-
genética e de inibição e retardamento do en- mília, por seu adoecimento e – no fundo – pe-
velhecimento. O sonho de imortalidade nun- lo suposto fracasso que resultou em seu óbito.
ca foi tão vivido e revivido pela medicina e As tentativas de ocultamento dos dolorosos
acariciado pela sociedade, como no momen- momentos do falecimento, sobretudo às crian-
to presente, projetando-se como a grande uto- ças; os cuidados com a (não) apresentação do
pia do século XXI. cadáver; as cerimônias de enterro; em todas
Interessante que, enquanto as novas des- essas “tentativas” de rituais os momentos do
cobertas científicas e tecnológicas prometem, morrer são abreviados, ocultados a mais não
antes da metade deste século, quase dobrar a poder, numa tentativa de negar não só a mor-
expectativa de vida, com a longevidade média te em si, mas a morte como constitutiva da na-
tendendo a aumentar, a morte continua a ron- tureza de todos os seres vivos.
dar a sociedade nas bases das relações sociais, As atitudes frente à morte em nossa socie-
nas suas chamadas causas externas. Homicí- dade têm raízes na Revolução Industrial, no
dios, suicídios, violências no trânsito, no tra- século XVIII, com a intensificação da cultura
balho, nos lares são formas atuais que a com- capitalista e a necessidade social, cada vez
panheira da vida apresenta para assustar pre- maior, de se transformar os corpos em objeto
tensos imortais. E assim, correndo contra to- de produção. O poder médico começa a se in-
das as ameaças de dor e sofrimento, sobretudo surgir contra o poder religioso, introduzindo
correndo individualmente, o ser deste novo a prática de dissecamento de cadáveres e se
século percebe que a morte é apenas e simples- apropriando progressivamente da morte e dos
mente a outra banda da dialética da vida. E mortos.
que natural, social e cultural ela está aí, tão Muros são construídos em torno dos cemi-
unida e tão fortemente atada ao nascimento térios e estes são mantidos com as portas fe-
do qual é o próprio germe. chadas e longe das cidades. Rompendo sua tra-
Este artigo tenta trazer para o setor saúde dicional convivência com o mundo dos vivos,
essa reflexão, ao discutir e problematizar ba- desde finais do século XVIII, a morte passa a
ses filosóficas da teoria da auto-organização ter um caráter extremamente dramático, com
como potencializadoras de uma forma de com- manifestações emocionais incontroláveis por
preensão da dinâmica da vida e da morte. E, parte dos parentes e amigos, que freqüente-
ao focalizá-las, toma como centro essa ques- mente choram e gesticulam convulsivamente.
tão no primeiro ano da infância, onde o preco- Os mortos são lembrados com insistência pe-
ce falecer parece estabelecer um paradoxo com los vivos, principalmente por meio da prática
as leis da natureza. Toda a discussão deste ar- de construção de jazigos perpétuos e das visi-
tigo se assenta na idéia da construção subjeti- tas aos túmulos e cemitérios. O testamento se
va da existência onde se entrelaçam três gran- torna um ato legal de transmissão da herança.
des sistemas, o biológico, o ecológico e o social. Do século XII à Revolução Industrial, ao
contrário, desenvolveu-se uma crença inaba-
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lável na existência após a morte, sendo esta a Segundo o autor, essas duas representações
última prova à qual o indivíduo se submete- se confundem, sendo metáforas míticas dos
ria para alcançar a vida. Presidido pelo poder processos biológicos fundamentais ligados à
religioso, o quarto do moribundo era o local reprodução: a duplicação e a fecundação. São
e o templo do Julgamento Final. A noção de mitos que, apontando para uma continuida-
uma biografia humana que se prolongaria após de para além da descontinuidade que a mor-
a morte do corpo trazia então, na individua- te evidencia, acalmam o traumatismo da mor-
lização das sepulturas, sua marca particular. te individual, fazendo que ela seja compensa-
Antes disso, porém, na Baixa Idade Média, da pelo renascimento da espécie.
havia um laço contínuo e uma pacífica coexis- Parece a alguns autores que apenas os se-
tência entre os vivos e os mortos, uma profun- res vivos mais evoluídos estão sujeitos à mor-
da familiaridade com a morte e o morrer e a te, não sendo esta uma propriedade inerente
certeza de que a mesma fazia parte de um des- à substância vital. Os unicelulares podem se
tino coletivo da espécie humana. A relação en- reproduzir indefinidamente por cissiparida-
tre morte e vida era não só sabida, mas vivida de; numerosos animais e vegetais inferiores
coletivamente com tranqüilidade, resignação são, em princípio, amortais, pois possuem uma
e sem expressão religiosa, como as duas faces capacidade infinita de regeneração; nossas pró-
de um mesmo fenômeno. Os mortos eram en- prias células, se isoladas de nosso organismo,
terrados dentro das cidades; os cemitérios parecem ter uma duração indeterminada de
eram o centro da vida social; os ossos serviam vida (Morin, 1996). A mortalidade, para Mo-
de elementos de decoração; o morrer consti- rin, é o preço da organização e da especializa-
tuía uma cerimônia pública, prolongada, pre- ção da vida – sinal, ao mesmo tempo, de sua
sidida pelo moribundo, e contava sempre com potência adaptativa e da imensa fragilidade
a presença das crianças. que essa adaptatividade lhe traz. Em outras
Essa concepção da morte era uma forma palavras, parece que é na proximidade e na
de aceitação da ordem da natureza, aceitação ameaça da morte que a vida encontra sua mais
ao mesmo tempo ingênua na vida cotidiana e determinada fonte de invenção. Onde a vida
sábia nas especulações astrológicas (Ariés, quase desaparece – biológica e psiquicamen-
1988). E é curioso notar que todas as culturas te – daí emergem novas formas de existência,
(não capitalistas) acreditam que a morte come- desafiando e enganando os poderes da mor-
ce antes da morte e que a vida dure depois da talidade e da finitude.
vida, de forma que morte e vida não sejam in- Evoluir, portanto, organizar-se, especiali-
conciliáveis, que uma não seja o fim da outra, zar-se, diversificar-se e adaptar-se significa
que ambas se encontrem no mesmo plano e não aceitar a metamorfose: a morte em favor de
sejam pensáveis separadamente (Rodrigues, um nascimento, a morte-renascimento. A úni-
1983). ca maneira de superar a morte é integrá-la de
Para Morin (1980), existem dois mitos certo modo à vida, (...) no mais íntimo dela
fundamentais presentes nas representações mesma (Morin, 1996). Assumi-la como um ris-
da morte através dos tempos e das culturas co permanente, como um encontro, uma fe-
que, mesmo arcaicas, teimam em sobreviver cundação da vida com o acaso. A morte nasce
de variadas formas nos dias de hoje: a mor- a cada salto para a frente da vida (Morin, 1996).
te-renascimento e a morte-duplo. A primei- Se, desta maneira, a morte está indissocia-
ra simboliza a vida e a fecundação, aparecen- velmente ligada à vida, se não há divórcio real
do sob várias vertentes culturais: nos ritos de entre a morte e a vida humana, poderíamos
iniciação, de sacrifício e de canibalismo; nas buscar nesta as raízes daquela. Mas, para isso,
analogias com a maternidade (lar, terra, re- seria necessário não um saber sobre a morte
torno, água) e com o sono (a noite). A morte- – ainda que de qualquer natureza, seja antro-
duplo simboliza a sobrevivência do morto, pológica, biomédica e filosófica – mas um sa-
seja no além – por duplicação ou por outro ber sobre a vida: uma teoria da vida. É isso que
nascimento – seja no aqui, por reencarnação. se tenta ensaiar neste artigo, acompanhando
Ambas estão presentes não só na mentalida- as reflexões de vários campos do conhecimen-
de arcaica, mas também no folclore, no ocul- to que se sintetizam nas teorias sistêmicas.
tismo, nas artes, na mentalidade onírica, in-
fantil, poética e filosófica. Daí seu caráter uni-
versal.
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A vida e sua organização: do aglomerado de enzimas nascem os sofisti-


uma teoria para a vida cados mecanismos de regulação e homeosta-
se. Do excesso de microorganismos e toxinas
A vida, o que é? Que leis regem sua compreen- acumulando-se na pele e nas mucosas aparece
são? É possível um conhecimento científico a imunidade, fornecendo adequadamente os
sobre ela? Que tipo de biologia pode dar con- limites e as aberturas de troca com o meio.
ta dos complexos processos da organização vi- Se, por um lado, a existência do determi-
vente? A compreensão da vida humana é ne- nismo genético é inquestionável, a esponta-
cessariamente antropocêntrica, ou a dimen- neidade pode explicar a cura surpreendente
são humana da vida pode ser referida a algo de alguns doentes com câncer, a sobrevivên-
para além de sua própria humanidade? O co- cia inesperada de algumas pessoas com graves
nhecimento da vida não pode parar onde co- traumatismos cranianos, ou a morte inconce-
meça (ou termina) a vida humana. A frontei- bível de outras com simples pneumonias, por
ra que separa o homo dos seres vivos não é na- exemplo.
tural: é uma fronteira cultural, que não anula O paradoxo está lançado: condicionamen-
a vida, mas a transforma e lhe permite novos to ou liberdade?
desenvolvimentos (Morin, 1980). Deve-se a Schrödinger (1997), em meados
Até o início da Idade Contemporânea, a do século passado, a primeira tentativa de as-
biologia – ou o estudo da vida – estava funda- sociar essa aparente oposição entre esponta-
mentada numa crença vitalista de que haveria neidade e determinação. A hereditariedade –
uma força divina capaz de levar os organismos ou informação genética – explicaria a ordem
e seus respectivos processos biológicos à sua a partir da ordem e a termodinâmica dos sis-
finalidade existencial. O sopro divino impreg- temas abertos, a ordem a partir da desordem
nava o corpo e esta alma, ou anima, colocava – sendo ambas faces do mesmo fenômeno de
em ação a respiração, a digestão e o movimen- aptidão para a vida. Schneider e Kay (in
to dos seres animados. A descoberta do códi- Murphy & O’Neill, 1997), na busca de uma ex-
go genético, no início deste século, com a bio- plicação para essa relação entre ambos os prin-
logia molecular, foi determinante na reformu- cípios – explicação esta esboçada por Schrö-
lação dessa concepção, pois forneceu as bases dinger –, acreditam hoje que o papel dos ge-
para a noção da realização de um programa nes seria o de conter o processo auto-organi-
no desenrolar dos processos biológicos, não zativo dentro das opções com maior probabi-
mais sob os auspícios de forças divinas, mas lidade de sucesso para a sobrevivência.
sob forças naturais. O programa inscrito no Segundo alguns autores, seria a físico-quí-
DNA, localizado em cada uma das células, de- mica biológica, clássica ou não, englobando
terminaria não só o fato de que os processos as noções da termodinâmica dos sistemas
biológicos fossem colocados em ação, mas tam- abertos, da teoria da informação e da ciberné-
bém a forma e o ritmo que os mesmos toma- tica, a epistemologia capaz de explicar o mun-
riam em cada organismo particular. A genéti- do vivo. Trata-se assim não de uma redução
ca veio trazer, com seus novos achados, a subs- da vida à físico-química, mas de integrar as
tituição da teleologia pela teleonomia. leis de organização físico-químicas que torna-
Seja na concepção das forças divinas, na ram a vida possível a novas dimensões, em que
teleologia; ou das naturais, na teleonomia, a os fenômenos do ser vivo encontrem seu lu-
idéia que subjaz nos dois casos é a de um pro- gar natural (Atlan, 1992) e de ampliar a físi-
fundo determinismo. A vida funcionaria, em co-química para uma biofísica dos sistemas
ambos, com objetivos e finalidades predeter- organizados (Atlan, 1992).
minadas: ordem a partir da ordem, nada mais. O conceito de auto-organização não sur-
A ruptura com o determinismo é o primei- giu, entretanto, da físico-química, mas sim da
ro e mais importante diferencial que uma no- cibernética e do neo-mecanicismo, procuran-
va teoria da vida vem inaugurar, através do do explicar a organização dos seres vivos co-
conceito de auto-organização. Este supõe que mo máquinas cibernéticas com propriedades
a ordenação presente nos processos vitais específicas (Atlan, 1992). Para alguns impor-
emerge espontaneamente de uma desordem tantes autores dessa linha, como von Neuman,
inicial. Do crescimento celular desordenado von Foerster e Ashby (in Capra, 1996; Prigo-
surgem a organização e a diferenciação preci- gine I & Stengers E, 1997), a auto-organização
sas dos tecidos e dos órgãos. Do desorganiza- seria o princípio que explicaria os motivos pe-
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los quais os seres vivos, ao contrário das má- nal. Transportando a definição para o campo
quinas artificiais: a) mantêm um funciona- da teoria dos sistemas, o ruído, ou erro de
mento global altamente confiável, que assegu- mensagem, ao contrário, vai propiciar uma
ra a sobrevida, apesar de serem constituídos multiplicação das vias de comunicação no sis-
por elementos não confiáveis que se degradam tema como um todo, para que este sobreviva
continuamente; b) dispõem de um grande po- aos erros de transmissão. Isso vai acarretar,
der de criação, apesar do desgaste natural de para o sistema, um aumento tanto da sua com-
seus componentes; c) funcionam com a maior plexidade, quanto da quantidade total de in-
parte de aleatoriedade, desordem e ruído, ou formação. Podemos dizer, em outras palavras,
com os imprevistos. que o ruído tem, para os sistemas naturais, um
Por tais razões, os únicos sistemas auto-or- papel positivo e constitutivo, sendo uma me-
ganizadores conhecidos até hoje são as máqui- dida de sua complexidade.
nas naturais. Esses sistemas, por sobreviverem A termodinâmica-não-linear parte do pres-
a partir de sua abertura ao meio, são capazes suposto de que os sistemas vivos, ao contrário
de manter um estado de invariância funda- dos sistemas artificiais, são sistemas abertos,
mental, para além das transformações a que vivem de sua abertura ao meio, alimentam-se
estão sujeitos nesta relação. Não há possibili- do fluxo de matéria e energia que lhe vem do
dade lógica de auto-organização em um siste- mundo exterior (Prigogine I & Stengers E,
ma fechado, sem trocas com o ambiente, co- 1997) e, por conta das flutuações internas cau-
mo no caso das máquinas artificiais. sadas por esses fluxos da natureza, funcionam
Auto-organização, portanto, é o fenôme- longe do equilíbrio. A constância dos proces-
no primário que caracteriza os seres vivos em sos biológicos é mantida com um certo grau
sua organização tanto estrutural quanto fun- de liberdade, dentro de limites de variação
cional (Atlan, 1992). É o núcleo da complexi- compatíveis com a preservação da vida.
dade biológica (Morin, 1996). É a emergência De acordo com o segundo princípio da
espontânea de novas estruturas e de novas for- termodinâmica, nas reações de troca entre o
mas de comportamento em sistemas abertos, sistema vivo e o meio há uma perda ou dissi-
que operam afastados do equilíbrio (Capra, pação de energia, denominada entropia, re-
1996). É uma faculdade inconsciente que se sultante do movimento desordenado e alea-
situa em todas as células do organismo vivo, tório das moléculas sob a ação do calor. En-
no nível de suas interações com os fatores alea- tropia é, portanto, uma medida de desordem
tórios do meio ambiente (Atlan, 1992). É uma molecular.
forma de inter-relações, existente no interior A desordem e a entropia serão tanto maio-
do organismo vivo que, além de mantê-lo vi- res quanto maior for o fluxo de matéria e de
vo, estrutura-o, mas não depende da nature- energia, ao qual os ecossistemas são sumamen-
za física de seus componentes (Maturana & te sensíveis e abertos: Pela sua extrema aber-
Varela, 1995). tura e pela sua extrema sensibilidade, os ecos-
A faculdade de auto-organização leva o or- sistemas são extremamente vulneráveis aos
ganismo inteiro a reagir aos fatores aleatórios, agentes desorganizadores. Mas, também aqui,
ou ruídos, não só tolerando-os, mas criando, a fragilidade faz o vigor. São tão abertos uns
através deles, complexidade, autonomia e adap- para os outros, que se reorganizam e se alimen-
tação. Em outras palavras, elaborando uma or- tam mutuamente em caso de devastações (Mo-
dem cada vez mais diferenciada (Atlan, 1992). rin, 1980).
A noção de ruído pode ser comparada à de Segundo Atlan (1992), a entropia é um dos
entropia, advinda da termodinâmica dos sis- grandes princípios físicos que regem a evolu-
temas abertos, ambas provenientes da teoria ção dos sistemas naturais, pois, para sobrevi-
geral dos sistemas ou cibernética. Na teoria ver a ela, esse necessariamente deverá aumen-
das informações, ruídos são erros na transmis- tar sua complexidade, com o objetivo de não
são de mensagens, quaisquer perturbações que, dissipá-la, de torná-la utilizável e de ordenar
ao interferirem na comunicação, degradam a o movimento das moléculas. Noutras palavras,
mensagem, tornando-a errônea (Morin, 1996). transformará desordem em ordem, desorga-
Portanto, a concepção de ruído, quando apli- nização em organização. Sob tal aspecto, é pos-
cada às comunicações, ou mesmo ao código sível estabelecer uma analogia com a teoria das
genético, exclui qualquer possibilidade de pen- informações de Shannon aplicada aos siste-
sá-lo como um papel positivo e organizacio- mas vivos, na qual o ruído pode acarretar me-
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lhores condições de sobrevivência e comple- Pensando desse modo, em que a interação do


xificação dos organismos, semelhante à ação ser vivo com o ecossistema, em sua dupla di-
e ao efeito da entropia sobre os mesmos. mensão física e viva, é absolutamente necessá-
Esses fluxos da natureza, de dimensão alea- ria à sua sobrevivência, é preciso compreender
tória indiscutível, que nutrem os sistemas vi- de que forma se estabelecem as interdependên-
vos, produzem entropia, desordem molecular cias e as inter-retroações entre um e outro.
e vida. Em outras palavras, a vida se nutre da O conceito de auto-organização está estrei-
entropia, da desordem, do acaso e dos fluxos tamente vinculado ao pensamento da comple-
que, levando os sistemas vivos a pontos críti- xidade o qual, ainda que sendo hoje um desa-
cos de instabilidade, viabilizam o emergir de fio, tende para o conhecimento multidimen-
um alto grau de ordem. sional e para a retomada da riqueza e movi-
Os sistemas vivos, portanto, em sua com- mento dos fenômenos que ele busca conhecer.
plexidade organizacional e em seu dinâmico A complexidade – ou riqueza biológica dos
desenvolvimento auto-organizador, criam in- sistemas vivos – aumenta com o número e a
formação, organização e ordem não apesar do diversidade dos elementos que compõem o sis-
ruído, do aleatório, da entropia e da desordem, tema e com a flexibilidade e a indeterminação
mas a partir dos mesmos, que se sucedem inin- das inter-relações presentes no mesmo. Tra-
terruptamente. Poderíamos ir mais além e di- duz-se por uma aptidão para criar formas e
zer que a solução complexa do ser vivo é acen- estruturas novas, ou seja, qualidades auto-or-
tuar e ampliar a desordem, para dela extrair a ganizadoras, a partir da incerteza, da aleato-
renovação de sua ordem (Morin, 1997). Auto- riedade, da desordem, do ruído: os sistemas
organização é, por isso, auto-reorganização, mais complexos são estruturas de acolhimento
segundo o referido autor. cada vez mais abertas à novidade e cada vez
O ruído, o aleatório e a desordem, outros- mais sensíveis a ela (Morin, 1996).
sim, resultam de acoplamentos estruturais nos A auto-organização e a complexidade es-
quais duas ou mais estruturas, a partir da in- tão também estreitamente relacionadas à au-
teração que estabelecem entre si, representam tonomia. Essa pode ser conceitualizada como
fontes recíprocas de perturbação e transfor- a possibilidade de um sistema aberto, utilizan-
mação. As mudanças desencadeadas por esta do as causalidades externas em benefício pró-
interação, assim como os efeitos do ruído, do prio, não submergir a elas, mas, ao contrário,
aleatório e da desordem, seguem o sentido da emancipar-se delas, mantendo seu meio inter-
vida se forem compatíveis com a preservação no constante, em equilíbrio dinâmico, por
da auto-organização e da morte, em caso con- meio de mecanismos de retroação e feedback.
trário (Maturana & Varela, 1995). A autonomia é também uma propriedade
A expressão acoplamento estrutural, utili- emergente. Decorre da própria complexidade
zada por Maturana & Varela (1995), é outra organizacional do sistema vivo como um to-
forma de representar a interação absolutamen- do. Não é predeterminada pelo código gené-
te necessária entre o ser vivo e o ecossistema, tico e não existe nos seus componentes isola-
em que ambos são modificados um pelo ou- damente. Mas ao mesmo tempo em que ganha
tro. Por esse motivo é que, para Morin, auto- uma progressiva autonomia no desenrolar de
organização é também eco-organização pois, sua história, o sistema vivo passa por situação
para organizar-se, mesmo que arriscando-se paradoxal: torna-se mais dependente do meio
à desintegração, “a vida tem uma necessidade externo, de onde extrai matéria, energia e in-
vital da vida” (Morin, 1980). Prigogine e Sten- formação. Noutras palavras, quanto mais um
gers também acreditam nessa premissa, pois sistema desenvolver sua complexidade, mais po-
ambos observaram no mundo físico-químico derá desenvolver sua autonomia e mais depen-
que as células são parte integrante do mundo dências múltiplas terá (Morin, 1996). Comple-
que as nutre, constituem uma espécie de encar- xidade e autonomia são conceitos indissolu-
nação dos fluxos que elas não cessam de transfor- velmente ligados ao de individualidade nos
mar: (...) Se separadas de seu meio, morrem ra- sistemas vivos: A individualidade molecular do
pidamente (Prigogine I & Stengers E, 1997). organismo (identidade) é condicionada pelos
A vida é, portanto, uma auto-eco-organiza- encontros parcialmente aleatórios com estru-
ção pois, ao mesmo tempo em que preserva turas moleculares e celulares trazidas por um
sua integridade e seus limites, o faz construin- ambiente sempre renovado, ao menos em parte
do espaços de abertura e de trocas com o meio. (Atlan, 1992).
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Autonomia, individualidade e identidade per com o finalismo/determinismo implícito
são algumas das características dos sistemas tanto na teleologia quanto na teleonomia, dan-
auto-organizados. A auto-organização e a do lugar à idéia de uma criação espontânea de
complexidade do ser vivo são também respon- organização no interior da desordem inicial
sáveis por sua adaptatividade, isto é, sua apti- dos processos vitais. No entanto, ao conside-
dão para adaptar-se e readaptar-se em diver- rá-los especificamente na existência humana,
sas condições e diferentes meios. Ou, em ou- razão, emoção, consciência e sobretudo inten-
tras palavras, uma adaptação às novidades, ris- ções, projetos e finalidade são questões que
cos e mudanças oferecidos pela eco-organiza- emergem em primeiro plano. Há escolhas? Há
ção, e cuja flexibilidade adaptativa se expressa um querer? Há um ser humano dotado de in-
por estratégias inventivas e diversificadas que tenções que atribui fins a si próprio? Ou a úni-
vêm substituir os comportamentos rígidos ca finalidade racionalmente aceitável é a de
(Morin, 1980). Segundo Maturana, é o fenô- um mecanismo otimizado e não a intenção re-
meno do acoplamento estrutural, com as his- sultante de uma vontade livre?
tórias de mudanças estruturais que o acom- A construção teórica de Atlan sobre essas
panham, o responsável pela conservação da questões é no mínimo instigante. Naturalmen-
adaptação dos sistemas auto-organizados (Ma- te a auto-organização como essência da vida
turana, 1997). A auto-organização, a comple- é considerada por ele como o fenômeno pri-
xidade e este comportamento adaptativo são mordial dos mecanismos do verdadeiro que-
também uma medida de autonomia e decor- rer, o qual é inconsciente, e se situa em todas
rem do aumento da quantidade total de infor- as nossas células, no nível, muito precisamen-
mações contida no sistema, das multiplicadas te, de suas interações com todos os fatores alea-
e numerosas interconexões conseqüentes, que tórios do ambiente (Atlan, 1992), orientando
por sua vez ocasionam uma variedade maior o nosso viver, que parece sempre se dar ape-
de respostas desse sistema aos estímulos di- sar e através de nós. O querer inconsciente, con-
versificados e imprevisíveis provenientes do junto dos mecanismos pelos quais nosso orga-
ambiente: Num ambiente que seja fonte de nismo inteiro reage ao aleatório e à novidade,
agressões imprevisíveis, a variedade na estrutu- é o fenômeno primário que caracteriza tanto
ra e nas funções do sistema é um fator indispen- nossa organização estrutural quanto funcional
sável de autonomia (Atlan, 1992). (Atlan, 1992).
Uma relação entre esse conceito de adapta- Esse querer inconsciente corresponderia à
tividade pode ser estabelecida com o de apren- alma vegetativa dos antigos – compreendida
dizagem não dirigida. Segundo Atlan (1992), como o conjunto de aparelhos que assegura as
esse tipo de aprendizagem é próprio dos sis- funções fisiológicas e metabólicas característi-
temas auto-organizadores, nos quais os padrões cas de qualquer organismo vivo – modulada
de comportamento, ao emergirem da interação pela alma animal, ou sistema dos afetos; e pe-
mais primária do organismo com os estímu- la alma inteligente, ou aparelho cognitivo. A
los aleatórios ambientais, tornam-se padrões intuição primeira de nosso corpo e de nosso
inventados. Com esse tipo de aprendizagem o meio biológico ocuparia um caráter central e
caráter indiferenciado do sistema diminui; a de partida na construção de uma intenciona-
variedade, a heterogeneidade, a especificidade lidade: com sua respiração, alimentação, sen-
e a diferenciação dos padrões aprendidos au- sibilidade e motricidade reflexas; sua sensibi-
mentam. E esses padrões aprendidos terminam lidade inconsciente e difusa; sua percepção
por funcionar como estímulos internos aleató- imediata e indivisa do prazer e da dor; sua
rios, realimentando todo o processo, favorecen- consciência pré-lingüística. Essa intuição se-
do a complexidade, a autonomia e a adaptação. ria alargada pelos afetos cada vez mais dife-
Mas como interagimos com o meio am- renciados, expressos principalmente pela lin-
biente, nós, humanos, que ao processo do guagem pré-lingüística, e finalmente pela ra-
aprendizado e do conhecimento introduzimos zão, apoiada na medida das possibilidades, na
a racionalidade, a reflexão, a emoção, a cons- verificação, na linguagem falada e na palavra
ciência e o inconsciente, em síntese, a cultu- humana, para a elaboração e realização dessa
ra? Como se constitui e se expressa a “vida do intencionalidade (Atlan,1991; 1992).
espírito” na vida humana? A consciência seria, para Atlan, a memó-
Pudemos constatar no início deste texto ria se manifestando. Diz respeito ao passado,
que o conceito de auto-organização veio rom- pois é uma presença do conhecido quer se tra-
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Oliveira, H. & Minayo M. C. S.

te de um conhecido de maneira perceptiva, in- nário consiste não apenas em exprimir poten-
telectual, instintiva, direta, indireta, clara ou cialidades, mas também em reduzir potencia-
nítida, vaga ou pouco diferenciada, formulada lidades, para as limitar às de um ser humano
ou não formulada (Atlan, 1992). A interação (Atlan, 1991).
entre o passado e o futuro, entre o consciente e Em síntese, o processo de organização e de
o inconsciente, entre a memória e o querer, é o auto-organização da vida tem as bases em três
que geraria os fenômenos híbridos e secundá- sistemas abertos: o ecossistema, o biológico e
rios, principalmente o desejo consciente. Es- o social, numa interação contínua e perma-
se desejo seria a exibição, como memória, des- nente de formas provisórias de expressão. Os
ses processos auto-organizadores originados seres vivos nascem, se desenvolvem e se man-
do querer inconsciente e nascidos da vida ve- têm em constante interação com o meio, que
getativa, acrescidos à consciência voluntária os atravessa incessantemente com fluxos, for-
que, por mecanismos de armazenagem dos ças e ruídos. Nada é estático, nada é imutável.
processos auto-organizadores efetivamente vi- Porque é da comunicação entre esses três ce-
vidos, interviriam secundariamente, decidin- nários que nossa identidade recebe influxo,
do sobre a resposta a um estímulo. nosso caráter se forja numa escolha entre múl-
É importante considerar que o funciona- tiplas possibilidades e nossa história se cons-
mento desses fenômenos híbridos deve acon- trói. Por outro lado, quanto mais os sistemas
tecer como um compromisso ótimo e flexível social, biológico e ecológico se comunicam a
entre a memória e o querer. Para Atlan, o de- partir de suas diferenças, mais ricos e mais
lírio não seria o imaginário projetado no real, complexos cada um deles se torna, permitin-
mas a conservação demasiadamente sistemáti- do infinitas combinações de vida. Pela influên-
ca e demasiadamente rígida de estados de au- cia do meio, o sistema vivo está constante-
to-organização que, normalmente, deveriam se mente se desorganizando, se desordenando,
suceder, modificando-se (Atlan, 1992). se desintegrando, vivendo uma série de pe-
A racionalidade, como busca da verdade, quenas e fugazes mortes cotidianas. As enzi-
ao invés de se firmar na ciência, deveria se fun- mas se degradam, os metabólitos são elimina-
dar no sistema dos afetos e na vida vegetativa dos, os líquidos evaporam, 90% de suas mo-
de cada indivíduo em sua relação com o meio léculas envelhecem e morrem no espaço de um
social, em uma memorização flexível, abrin- ano (Guyton, 1996).
do-lhe o mundo infinito das possibilidades. Apesar da degeneratividade de seus com-
Nesse sentido, não se pode conceber o in- ponentes e das agressões do meio ambiente, o
divíduo como a simples realização de um pro- organismo é capaz de, complexificando-se, ex-
grama determinado geneticamente, sem von- trair desses eventos, princípios de ordem in-
tade livre, ou como apenas uma “pessoa po- terna, ordenando-se e ordenando ativamente
tencial”. Segundo Atlan o indivíduo não está o meio para assegurar sua sobrevivência. É evi-
contido em potencial mesmo no ovo fecundado, dente, portanto, que o morrer faz parte do vi-
sob a forma da totalidade de suas propriedades, ver e que, indo mais além, a morte é, ela mes-
que existiriam já como potencialidades repri- ma, fonte de vida. As atitudes diante da mor-
midas, esperando uma ocasião para se exprimir. te ao longo da história e através das culturas,
Falta-lhe o que resultará das interações com o bem como as descobertas mais recentes da teo-
meio, daquilo a que chamamos o desenvolvi- ria da auto-organização, corroboram essas afir-
mento epigenético. (...) Ora, existem, de fato, mativas.
potencialidades de desenvolvimento em um ovo E então, se o organismo se mantém, simul-
fecundado, mas sua extensão varia, ela própria, taneamente, tanto sob o efeito da degenerati-
ao longo do desenvolvimento (Atlan, 1991). vidade causada por um meio perturbador,
Além disso, as experiências de transplan- quanto da sua capacidade de se adaptar e de
tes de frações de órgãos inter-espécies, em la- adaptar esse meio a seus próprios fins, o que
boratório, nos mostram que a vida é possível falha quando o organismo se encaminha para
em outras condições e que, certamente, o em- a morte real? Como explicar a morte de seres
brião humano traz em si outras potencialida- que, convivendo intimamente com a mortali-
des que não as especificamente humanas. dade, possuem uma aptidão inata para a vida?
Maiores que a de um indivíduo humano e ne-
cessariamente maiores que as de uma pessoa
humana. Ou seja, o desenvolvimento embrio-
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O exemplo da morte infantil As manifestações dessa organização ocor-
rem na “alma vegetativa”, nas funções meta-
A abertura e a sensibilidade aos fluxos ambien- bólicas básicas, no psicossoma dos bebês. Den-
tais são características inerentes ao sistema vi- tre essas funções, destacam-se a respiração, a
vo, às quais, quanto mais intensas, melhores alimentação, a motricidade e a sensibilidade re-
chances de sobrevivência lhe oferecem. So- flexas, a sensibilidade inconsciente e difusa, a
mente um motivo como esse poderia explicar percepção indivisa de prazer e dor, a indiferen-
o fato de que seres tão abertos, tão desprote- ciação afetiva e a consciência pré-lingüística.
gidos, tão sensíveis e tão vulneráveis como os Seu bom funcionamento somático e psí-
bebês, sobrevivam, em maioria. quico traduz a adequação entre os cuidados
Esta constatação é, no entanto, paradoxal, oferecidos por seu ambiente protetor e propi-
pois as crianças muito pequenas estão, na mes- ciador e as suas reais necessidades. Traduz tam-
ma medida, extremamente sujeitas à morte. bém um relacionamento benéfico com as de-
Diferentes dos adultos, são muito mais susce- sordens, os imprevistos e as invasões prove-
tíveis à inanição, à desidratação, à obstrução nientes tanto do meio externo quanto de seu
respiratória, à aspiração de alimentos, aos aci- próprio interior. Ou seja, constrói uma boa
dentes domésticos e às várias formas de aban- imunidade que mantém seu meio interno den-
dono, de negligência e de maus-tratos. tro de variações compatíveis com a vida.
A grande surpresa e interrogação não é, O mecanismo explicativo para o adoeci-
portanto, com relação à sua morte, mas o fato mento dos bebês em Winnicott (1978) é bas-
de conseguirem sobreviver, apesar de todos os tante interessante, e pode incluir a própria teo-
riscos e circunstâncias adversas. A vida seria ria da auto-organização. Quando há uma in-
o acontecimento dos mais improváveis para vasão excessiva de desordens ambientais, em
os bebês, dada a imensa vulnerabilidade, na geral por falha na proteção materna, o psicos-
qual estão profunda e completamente imer- soma do bebê tem duas alternativas. Ou me-
sos. Para fazer frente a este desafio de viver em taboliza essa desordem e evolui em autono-
meio a perturbadores acontecimentos como mia, em complexidade e em desenvolvimen-
o frio, a fome ou a sede, a criança pequena to; ou sucumbe à mesma e dissocia a psique
conta, dentro de si, apenas com uma faculda- do soma, adoecendo. A essa dissociação se se-
de inconsciente – intuitiva, corporal, somáti- gue o fato de que ambas as dimensões do sis-
ca – inscrita em suas células, que lhe garante tema vivo ficam impossibilitadas de se alimen-
um sentido global de auto-conservação. Para tarem e de interagirem, enfraquecendo-se e
que sobreviva, tendo em vista tal fragilidade, é tornando-se mais vulnerável a distúrbios tan-
preciso um meio ambiente capaz de oferecer to somáticos quanto psíquicos. Quadros or-
a seus processos biológicos e a este seu sentido gânicos leves foram observados freqüentemen-
global de auto-conservação, não só substratos te por Winnicott (1994) em sua clínica pediá-
e fluxos, mas fundamentalmente barreiras, fil- trica, como a enurese, a constipação intesti-
tros e proteção. nal, a asma brônquica, os resfriados, as enxa-
Winnicott (1995) foi o autor que, com- quecas. Spitz (1998) refere que esses quadros
preendendo a vulnerabilidade infantil, melhor podem assumir feições extremamente graves,
estabeleceu correlações entre a proteção am- como o marasmo, a morte “acidental”, o in-
biental e a sobrevivência saudável dos bebês. fanticídio, entre outras.
Para ele, a mãe biológica ou substituta é a re- Dada a vulnerabilidade natural do bebê, a
presentante desse tipo de ambiente, cujas fun- atitude de quem dele cuida é sempre responsá-
ções protetoras e propiciadoras, ela exerce atra- vel, em algum grau, pelo desenrolar de cada
vés de cuidados predominantemente corpo- uma das possibilidades apresentadas: de adoe-
rais, aos quais alia uma afetividade íntima e cimento ou de saúde. O resultado final vai de-
sintonizada com seu bem-estar. pender da correlação entre a força invasiva do
A forte união psicobiológica entre a mãe e ambiente e o quantum de desordens cada be-
o bebê assegura um fluxo adequado de ener- bê é capaz de metabolizar e transformar em
gia e um mínimo de desordens e de ruídos em complexidade de vida.
seu cotidiano. Essa é a única forma de lhe pro- As funções maternas de proteção e cuida-
porcionar maiores probabilidades de emer- do são exercidas principalmente a partir de
gência espontânea de organização, de ordena- um estado psicobiológico especial alcançado
ção, de saúde e de sobrevida. pela mãe no final da gestação – denominado
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preocupação materna primária – que a torna e a criança. A mulher é atingida principalmen-


capaz de sintonizar e de suprir as necessida- te por: situações de cargas diferenciais de res-
des de seu bebê. Apesar de referidas à biolo- ponsabilidade no cotidiano, necessidade de
gia da gestação, e supondo que seja a própria trabalho feminino fora do lar, ausência de
mãe biológica quem cuide do bebê, tais fun- apoio nas tarefas domésticas, carência de sa-
ções só serão adequadamente exercidas se a tisfações básicas, incerteza existencial, irres-
mãe estiver “pessoalmente bem”. ponsabilidade, reprovações, insultos, agressi-
Para que possa estar intensamente atenta vidade, desavenças, disputas crônicas com a
e cuidadosa com seu bebê, a mãe biológica per- família de origem, alcoolismo, violência do-
manece num estado altamente vulnerável que, méstica, descontinuidade nas relações fami-
se rompido, pode levá-la a exercer aquelas fun- liares ou isolamento social.
ções com dificuldades, ou com muitas falhas. Através da figura materna assim atingida,
Isso, por sua vez, pode desencadear a já des- a família pode ser hostil à criança de variadas
crita dissociação psicossoma no bebê e os di- formas: falta de atenção, cuidado e proteção
versos estados possíveis de enfermidade (Win- inadequados; falta de satisfação das necessida-
nicott, 1990). des básicas de nutrição, higiene, saúde e apren-
Se a função da mãe é proteger diretamen- dizagem; abandono parcial ou total; carência
te o bebê, cabe à família proteger a mulher nes- afetiva ou, em graus extremos, agressões.
se momento altamente exigente que os pri- Pela ausência de uma rede social de apoio,
meiros tempos da criança representam para essas famílias tendem a se submergir às forças e
ela. Essa proteção deve ser também psicobio- aos acontecimentos desorganizadores do meio
lógica – como o vínculo que estabelece com o ambiente, não sendo capazes de utilizá-los em
bebê – e é representado concretamente pelo benefício de sua própria evolução, diferencia-
suprimento de suas necessidades alimentares, ção e complexificação de suas experiências.
de repouso, de ar puro, de higiene, de carinho, Ao não estar inserido em uma rede de de-
de segurança e de valorização, entre outros. pendências múltiplas, benéficas e construti-
Um ambiente que garanta bem-estar à mulher vas, o bebê fica privado da proteção necessá-
para que a mãe possa despontar e brilhar com ria ao seu desenvolvimento. Graus excessivos
tranqüilidade para seu bebê: esse é o papel da de desordem ambiental invadem seu organis-
família na sobrevivência da criança pequena. mo. Rompe-se a unidade de seu psicossoma,
Marido, companheiro, filhos, irmãos, tios, pais, tornando-o presa fácil de doenças. Estando
avós, padrinhos, agregados, amigos íntimos, doente, provavelmente não contará com os
a possibilidade de “famílias” é quase infinita. cuidados necessários para sua recuperação.
Quanto mais próxima a pessoa, mais impor- Em síntese, não existe, em geral, uma de-
tância nessa função. terminação nem da vida e nem da morte, nem
As redes sociais de intercâmbio e de ajuda da inteligência, nem do sucesso e nem do fra-
mútua estão por nós incluídas nessa categoria casso. A história mostra trajetórias de pessoas
ampliada de família, pois são construídas atra- que nasceram em condições totalmente desfa-
vés dos laços de parentesco, de vizinhança e de voráveis e conseguiram, a partir da desordem e
amizade. Representam, principalmente para os do ruído construir sua expressão social. Existe
núcleos de mais baixa renda, um insubstituí- sim, um ponto de partida específico onde cada
vel recurso nos momentos de crise e viabili- um tem a sua vantagem comparativa entre o
zam, inclusive, um maior acesso aos bens e ser- que é determinado pela hereditariedade e a es-
viços comunitários e públicos disponíveis pa- pontaneidade das interações, entre o peso dos
ra evitar as doenças e as mortes das crianças. fatores biológicos e os condicionantes emocio-
A construção e o grau de conectividade nais e sociais. E onde o excesso de ruído, de ins-
dessas redes depende, em última instância, da tabilidade e de desproteção pode ser fatal.
capacidade que os membros da família pos-
suam, em sua dinâmica relacional, para tecer
elos com um círculo social mais vasto. Estru-
turas disfuncionais e processos rígidos dessa
dinâmica, normalmente, acarretam uma po-
breza nos laços sociais de ajuda, o que se tra-
duz em comportamentos familiares de gran-
de vulnerabilidade e desproteção para a mãe
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