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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PARANÁ - UNESPAR

CAMPUS CURITIBA II – FACULDADE DE ARTES DO PARANÁ/FAP


CURSO DE CINEMA E VÍDEO

CAMILA MACEDO

PÓS-PORNOGRAFIA E A PRODUÇÃO DISCURSIVA DAS SEXUALIDADES


DISSIDENTES
Um estudo sobre a heteronormatividade nas representações de gênero

CURITIBA
2014
CAMILA MACEDO

PÓS-PORNOGRAFIA E A PRODUÇÃO DISCURSIVA DAS SEXUALIDADES


DISSIDENTES
Um estudo sobre a heteronormatividade nas representações de gênero

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à


Banca Examinadora como requisito parcial para a
obtenção do título de Bacharel em Cinema e
Vídeo pela Universidade Estadual do Paraná,
campus Curitiba II/ Faculdade de Artes do Paraná
- FAP.

Orientadora: Profa. Ma. Juslaine de Fátima Abreu


Nogueira

CURITIBA
2014
CAMILA MACEDO

PÓS-PORNOGRAFIA E A PRODUÇÃO DISCURSIVA DAS SEXUALIDADES


DISSIDENTES
Um estudo sobre a heteronormatividade nas representações de gênero

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Banca Examinadora como requisito


parcial para a obtenção do título de Bacharel em Cinema e Vídeo pela Universidade
Estadual do Paraná, campus Curitiba II/Faculdade de Artes do Paraná – FAP.

Aprovado em 04 de dezembro de 2014.

___________________________________________________________________
Profª. Ma. Juslaine de Fátima Abreu Nogueira
Universidade Estadual do Paraná – Unespar/FAP

___________________________________________________________________
Profª. Ma. Carolina Ribeiro Pátaro
Universidade Federal do Paraná – UFPR

___________________________________________________________________
Prof. Dr. Jamil Cabral Sierra
Universidade Federal do Paraná - UFPR
À memória de Denize Regina Detzel Bernert,
cuja presença continua viva em minha trajetória.
AGRADECIMENTOS

À Juslaine Abreu-Nogueira, pela orientação-companheira. Pelos abraços de


rede, pelo caminhar conjunto, pelas veredas indicadas, pela não-colonização, pela
confiança e incentivo, pela abertura de novas portas, pelo olhar atencioso. Por estar
junto.

À Jessica Candal, parceira neste e em tantos outros trabalhos - os que já


vieram e os que ainda virão. Pela possibilidade do criar conjunto, pelo generoso
investimento do seu tempo e energia na investigação e na produção do filme desta
pesquisa. Por ser amiga, professora, parceira, incentivadora e referência.

À Verônica Macedo, amiga e mãe. Por possibilitar e acolher mesmo as


dimensões menos aprazíveis da minha existência, pelo respeito à minha liberdade
de ser. Por garantir sempre um espaço de vivência no qual eu pude questionar,
experimentar, descobrir e, acima de tudo, amar e ser amada.

À Ana Paula Macedo Máttar e Marco Kramer, minha irmã e meu irmão. Por
todas as divergências que me possibilitam tanto crescimento e evolução. Por
estarem sempre comigo. Por serem um lar.

Aos professores, às professoras e às/aos colegas, em especial à Janaina


Veiga, por todas as trocas realizadas no decorrer da graduação.

À Ligia Durski, pelo EuTu. Pelas mãos-dadas, pelo amor, o desejo e os


prazeres compartilhados. Por somar as suas às minhas reflexões. Por ouvir, pensar,
discutir, construir conjuntamente. Pelas tantas contribuições teóricas e afetivas. Por
ter aceitado participar da criação sonora do filme, mesmo nunca tendo feito isso
antes. Por ter conseguido. Por tudo.
Foi uma transformação do próprio Orlando que lhe ditou a
escolha das roupas de mulher e do sexo feminino. E talvez
nisso ela estivesse expressando apenas um pouco mais
abertamente do que é usual – a franqueza, na verdade, era a
sua principal característica – algo que acontece a muita gente
sem ser assim claramente expresso. Pois aqui de novo nos
encontramos com um dilema. Embora diferentes, os sexos se
confundem. Em cada ser humano ocorre uma vacilação entre
um sexo e o outro; e às vezes só as roupas conservam a
aparência masculina ou feminina, quando, interiormente, o
sexo está em completa oposição com o que se encontra à
vista. [...] No entanto, se Orlando era mais homem ou mulher, é
coisa difícil de dizer e não pode ser resolvida agora.1

Virginia Woolf

1 WOOLF, Virginia. Orlando. Tradução de Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
MACEDO, Camila. Pós-pornografia e a produção discursiva das sexualidades
dissidentes: um estudo sobre a heteronormatividade nas representações de
gênero. Trabalho de Conclusão do Curso de Cinema e Vídeo. Universidade Estadual
do Paraná/Faculdade de Artes do Paraná. 2014. 42f.

RESUMO

O presente trabalho traça, inicialmente, uma breve trajetória da pornografia no


cinema, pontuando aspectos que concernem às representações de gênero e
sexualidade que incidem na formação de um discurso político e normatizador dos
corpos e de suas práticas. Nesta esteira, a pesquisa se propõe, então, a apresentar
a pós-pornografia como um fenômeno de fratura no discurso dominante e como a
possibilidade de utilização do dispositivo pornográfico na subversão do
entendimento disciplinador do sexo. Depois de delinear a cronologia das
representações de gênero e de práticas sexuais no cinema pornográfico, analiso a
materialização de conceitos foucaultianos e da Teoria Queer na proposição de
ruptura sinalizada pelos filmes pósporno. A pesquisa se encerra na realização de
uma experiência fílmica autobiográfica que questiona a centralidade do corpo no
ditame de uma identidade fixa e inequívoca.

PALAVRAS-CHAVE: Pornografia. Pós-pornografia. Teoria queer.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FIGURA 1 - Homem saltando .................................................................................. 16


FIGURA 2 - Mulher saltando .....................................................................................17
FIGURA 3 - Eu aos 8 anos ...................................................................................... 28
FIGURA 4 – Adolescentes do filme Kids .................................................................. 28
FIGURA 5 – Emma ................................................................................................... 29
FIGURA 6 – Mel C .................................................................................................... 29
FIGURA 7 – Personagem Feiticeira no Programa H ................................................ 30
FIGURA 8 – Eu com a cueca samba canção aparecendo ....................................... 32
FIGURA 9 – Colagem de fotografias nas quais apareço com idades variadas ........ 34
FIGURA 10 – Frame de O Espelho de AnA – primeiros experimentos .................... 35
FIGURA 11 – Frames do experimento fílmico .......................................................... 36
FIGURA 12 – Frames do experimento fílmico .......................................................... 36
FIGURA 13 – Frames do experimento fílmico .......................................................... 37
FIGURA 14 – Frames do experimento fílmico .......................................................... 38
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 10
2 GÊNEROS INTELIGÍVEIS .................................................................................... 11
3 O SABER-PRAZER DA PORNOGRAFIA ............................................................ 15
4 PÓS-PORNOGRAFIA ........................................................................................... 22
5 UMA INVESTIGAÇÃO AUTOBIOGRÁFICA ........................................................ 28
6 REFLEXÕES SOBRE O EXPERIMENTO FÍLMICO ............................................ 35
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 40
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 42
10

1 INTRODUÇÃO

Este texto apresenta o percurso investigativo percorrido na pesquisa


desenvolvida para o Trabalho de Conclusão de Curso da graduação em Bacharelado
em Cinema e Vídeo na Faculdade de Artes do Paraná/Universidade Estadual do
Paraná em 2014, sob a orientação da Professora Mestra Juslaine Abreu-Nogueira.
O Memorial Artístico-Reflexivo, como o instrumento textual foi batizado, reúne
conceitos, autoras e autores estudadas/dos para o desenvolvimento do experimento
fílmico – resultado “prático” da pesquisa -, bem como apresenta uma narrativa
autobiográfica em diálogo com as proposições teóricas apresentadas.
Optei por organizar a enunciação partindo, primeiramente, do esmiuçamento
das ideias de corpo e de gênero com as quais minha investigação conversa, dando
especial atenção aos conceitos de performatividade de gênero e de
heteronormatividade desenvolvidos no campo da Teoria Queer. No momento
seguinte, a partir de um olhar crítico sobre as representações de sexo, de gênero e
de desejo, busco traçar um breve panorama da história da pornografia no cinema,
bem como contextualizar a incidência pós-pornográfica e suas propostas de ruptura
com algumas das normas reiteradas pela indústria pornô.
Por fim, trago os questionamentos referentes à heteronormatividade para a
vivência do meu próprio corpo e da minha própria história, mostrando-os em
palavras e também em um apanhado de fotografias do arquivo pessoal. Concluo a
pesquisa no desenvolvimento de um experimento fílmico que tenta condensar em
imagens, sons e movimentos as perguntas e reflexões que foram sendo realizadas
durante a trajetória perquisitiva.
11

2 GÊNEROS INTELIGÍVEIS - A HETERONORMATIVIDADE DOS CORPOS

Antes de abordar as representações próprias do cinema pornográfico e o


consequente surgimento de uma resposta pós-pornográfica, faz-se necessária a
apresentação do meu ponto de partida para o pensamento sobre o corpo, sobre o
sexo, sobre o gênero e sobre as práticas sexuais. Neste capítulo, buscarei explicitar
meu entendimento sobre o que vem a ser “heteronormatividade” apoiada nos
conceitos desenvolvidos pelos estudos queer.
Da leitura do livro Gender Trouble (1990), da filósofa Judith Butler, podemos
concluir que o argumento central de sua escrita é uma réplica à célebre frase “Não
se nasce mulher, torna-se mulher” (BEAUVOIR, Simone de, 19492). Butler questiona
se, de fato, termina-se por tornar-se mulher ou se, na verdade, o “ser mulher” é um
eterno devir. Expandindo ainda mais a ideia, lança a interrogação para além da
exclusividade do gênero feminino: e se não se nasce nem homem e nem mulher,
mas torna-se um ou outro? E vai mais fundo nas hipóteses: e se talvez se nasça
“macho” ou “fêmea” para, depois, não se tornar nem homem e nem mulher,
sugerindo que a noção de “devir”, eventualmente, poderia dispersar-se em várias
direções ao longo do “tornar-se”.
Consideremos a interpelação médica que, apesar da emergência recente
das ecografias, transforma uma criança, de um ser “neutro”, em um “ele” ou
em um “ela”: nessa nomeação, a garota torna-se uma garota, ela é trazida
para o domínio da linguagem e do parentesco através da interpelação do
gênero. Mas esse tornar-se garota da garota não termina ali; pelo contrário,
essa interpelação fundante é reiterada por várias autoridades, e ao longo de
vários intervalos de tempo, para reforçar ou contestar esse efeito
naturalizado. A nomeação é, ao mesmo tempo, o estabelecimento de uma
fronteira e também a inculcação de uma norma. (BUTLER, Judith, 2013, p.
161)

Em sua obra seguinte, Bodies That Matter (1993), Judith apresenta a


importância das reiterações performativas de gênero, que, por serem constantes e
contínuas, acabam produzindo o efeito de realidade. Quando o médico – a “voz
autorizada” – observa a ecografia e proclama que aquele corpo ainda não nascido é
o corpo de uma menina, a partir daí, passa-se a um jogo tácito de repetição de
normas capazes de materializar o próprio corpo através da materialização do sexo,

2 Contrariando as normas da ABNT, acredito ser necessário nomear as e os autoras/es que cito para
além do nome “de família”. Primeiro, por acreditar na tendência de que o uso apenas do sobrenome
acaba por dar a entender serem todos homens. Segundo, por não defender a ideia de conhecimento
“neutro” e entender ser relevante saber a partir de que visão de mundo determinada pelas condições
materiais de existência se aponta dado conhecimento sobre gênero/sexo/desejo.
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ou seja,
Em outras palavras, o “sexo” é um construto ideal que é forçosamente
materializado através do tempo. Ele não é um simples fato ou a condição
estática de um corpo, mas um processo pelo qual as normas regulatórias
materializam o “sexo” e produzem essa materialização através de uma
reiteração forçada destas normas. O fato de que essa reiteração seja
necessária é um sinal de que a materialização não é nunca totalmente
completa, que os corpos não se conformam, nunca, completamente, às
normas pelas quais sua materialização é imposta. (BUTLER, Judith, 2013,
p. 154)

Dito isso, aponta-se para o caráter de dispositivo de governamento dos


corpos atribuído ao sexo. Entendendo-o, em função do imperativo heterossexual,
como produtor de identidades, o sexo acaba por ter o estruturante e organizador
efeito de indicar o lugar em que as pessoas ocupam no mundo. A partir da distinção
entre fêmea e macho, o sujeito torna-se culturalmente inteligível. O “sexo” sendo,
então, mais do que possuir um pênis ou uma vagina, mais do que ser um homem ou
uma mulher, mas a qualidade que torna a existência de um corpo viável ao
entendimento cultural.
Para Butler, é importante ressaltar que não só o gênero é um construto, mas
que o próprio corpo sexuado não pode ser tido como portador de uma materialidade
pura, anterior à cultura e ao discurso. É possível fazer um paralelo, por exemplo,
com a nominação que diferentes línguas dão às cores azul e verde. Enquanto em
idiomas europeus se convencionou chamar de verde os espectros visíveis de luz
com comprimento de onda entre 520 e 570nm, convencionou-se chamar de azul os
compreendidos entre 440 e 490nm. Já em línguas como a tailandesa e a vietnamita,
não há termos separados para essa mesma extensão de comprimentos e, quando
há a necessidade de se ser mais específico em relação à qual cor se quer referir,
buscam-se acrescentar informações como “de folha” ou “de oceano” ao termo único
que as engloba.
Ou seja, apesar das diferentes cores e dos diferentes sexos estarem na
natureza com suas especificidades, eles em si não nos oferecem suas normas. É a
partir da cultura e do discurso que as marcamos - o que não equivale a dizer que é o
discurso que causa as diferenças, apenas que as diferenças são indissociáveis de
uma marcação discursiva.
Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo para a
natureza; ele também é o meio discursivo/cultural pelo qual “a natureza
sexuada” ou “um sexo natural” é produzido e estabelecido como “pré-
discursivo”, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a
qual age a cultura. [...] Na conjuntura atual, já está claro que colocar a
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dualidade do sexo num domínio pré-discursivo é uma das maneiras pelas


quais a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo são eficazmente
asseguradas. Essa produção do sexo como pré-discursivo deve ser
compreendida como efeito do aparato de construção cultural que
designamos por gênero. (BUTLER, Judith, 2003, p. 25)

Por “estrutura binária do sexo”, quer-se dizer a divisão dos indivíduos em dois
únicos grupos (“machos” ou “fêmeas”) pautada na classificação das diferenças
anatômicas e biológicas também em duas únicas variáveis (“pênis” ou “vagina”, “XY”
ou “XX”), estipulando-se assim uma ordem estável – digo, não flutuante – de
catalogação do sexo. Ocorre que, ao se tomar o sexo como uma realidade material
neutra e anterior à cultura e o gênero como o construto que o tornará discursivo,
invoca-se a instituição de uma relação mimética do gênero com o sexo, resultando
em uma ordem compulsória na qual invariavelmente pênis indica macho e macho
indica masculino em oposição à vagina, que indica fêmea, fêmea indicando
feminino.
Gêneros “inteligíveis” são aqueles que, em certo sentido, instituem e
mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática
sexual e desejo. Em outras palavras, os espectros de descontinuidade e
incoerência, eles próprios só concebíveis em relação a normas existentes
de continuidade e coerência, são constantemente proibidos e produzidos
pelas próprias leis que buscam estabelecer linhas causais ou expressivas
de ligação entre o sexo biológico, o gênero culturalmente constituído e a
“expressão” ou “efeito” de ambos na manifestação do desejo sexual por
meio da prática sexual. (BUTLER, Judith, 2003, p. 38)

Por fim, o termo “heteronormatividade” diz respeito, então, ao estabelecimento


de um imperativo relacionado ao sistema sexo-gênero-desejo, no qual formas de
comportamento sexual que escapem às relações heterossexuais são tidos como
“desvios”, fora da norma, a-normais. É justamente mediante a “produção de
oposições discriminadas e assimétricas entre feminino e masculino, em que estes
são compreendidos como atributos expressivos de macho e de fêmea” (BUTLER,
Judith, 2003, p. 39) que se dá a heterossexualização do desejo. Ou seja, além de
vagina indicar fêmea que indica feminino que indica mulher, complementa-se ainda
que ser mulher indica desejar/manter práticas sexuais com homens - sendo
“homem” quem tem pênis (que indica macho que indica masculino) e que,
consequentemente, deseja/mantém práticas sexuais com mulheres.

A instituição de uma heterossexualidade compulsória e naturalizada exige e


regula o gênero como uma relação binária em que o termo masculino
diferencia-se do termo feminino, realizando-se essa diferenciação por meio
das práticas do desejo heterossexual. O ato de diferenciar os dois
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momentos oposicionais da estrutura binária resulta numa consolidação de


cada um de seus termos, da coerência interna respectiva do sexo, do
gênero e do desejo. (BUTLER, Judith, 2003, p. 45)

Instituída a norma heterossexual para as relações, uma série de “verdades”


acaba sendo também atribuídas à prática sexual. Uma vez que as diferenciações de
gênero são apoiadas nas diferenças anatômicas do sexo, em especial na oposição
entre “pênis” e “vagina”, não é de se espantar, por exemplo, a importância concedida
às genitais no trato do que vem a ser uma relação sexual de acordo com o
imaginário heteronormativo. Basicamente, a ideia de sexo se relaciona à penetração
da vagina pelo pênis, existindo uma predominância dessa cena específica – com
começo, meio e fim: preliminares, penetração e orgasmo – para designar o que é
uma relação sexual “normal” e desejável.
Sendo o “cinema pornográfico” um dos campos que mais veementemente se
propõe a discorrer sobre as práticas sexuais, faz-se imprescindível para este
trabalho uma análise de como a pornografia vem organizando as representações de
gênero, de desejo e de práticas sexuais no decorrer de sua história.
15

3 O SABER-PRAZER DA PORNOGRAFIA - REVISÃO HISTÓRICA E


ICONOGRÁFICA

“Que outra máquina política conhece que tenha o mesmo poder de produzir
prazer?”, é o que responde Beatriz Preciado ao ser questionada pela revista Parole
de Queer sobre qual a importância política da pornografia.

A pornografia é uma potente tecnologia de produção de gênero e


sexualidade. Para dizê-lo rapidamente: a pornografia dominante é à
heterossexualidade o que a publicidade é à cultura de consumo de massas:
uma linguagem que cria e normaliza modelos de masculinidade e de
feminilidade, gerando cenários utópicos escritos para satisfazer o olho
masculino heterossexual. (PRECIADO, Beatriz, 2010, tradução livre)

É possível compreender a fala de Preciado segundo a proposta foucaultiana


apresentada no primeiro volume de História da Sexualidade (1978) de que a
sociedade ocidental moderna estrutura seu conhecimento sobre a sexualidade a
partir de uma scientia sexualis, ou seja, com base no aparato do discurso científico
para extrair confissões sobre “a verdade do sexo”. O controle ideológico do corpo,
antes exercido pelos mecanismos da religião, a partir do século XIX se estrutura em
cima da configuração de teorias que buscavam levar à compreensão dos fenômenos
como leis naturais, conjugando as relações do poder e do saber não mais na palavra
divina, mas no rigor classificatório da ciência.

O corpo envergonhado, pecador e maldito passa a possuir, cientificamente,


perturbações do instinto, anomalias genéticas, neuroses, enfermidades,
práticas condenáveis e, portanto, formas adequadas de agir, pensar e amar.
(ABREU, Nuno Cesar, 1996, p. 29)

Essa hermenêutica do desejo dedicada a explorar de maneira detalhada as


verdades científicas da sexualidade (WILLIAMS, Linda, 1989) se fundamenta,
sobretudo, na confissão, no devotar-se a falar sobre sexo, valorizando-o como o
segredo (FOUCAULT, 1978), e controlando a sexualidade a partir da exposição, não
da condenação à permanência na obscuridade enunciativa. Logo, o surgimento de
tecnologias capazes de registrar imagens da realidade potencializa o cientificismo
das confidências sexuais, pois se possibilita “um flagrante – uma confissão
irrefutável e involuntária dos corpos, disponível a quem quiser ver” (DUARTE,
Larissa Costa, 2013, p. 1688), o conhecimento da verdade sexual autoevidente.
A pré-história do cinema pornográfico é intimamente relacionada à ambição
16

científica de investigar a anatomia dos corpos em movimento possibilitada pelo


registro fotográfico sequencial. A série de Eadweard Muybridge, Animal Locomotion
(1887), inventor do dispositivo para projetar retratos em movimento que precedeu as
técnicas cinematográficas, tinha como intenção possibilitar a observação de detalhes
e minúcias da materialidade dos corpos ao se moverem, mas, como aponta Linda
Williams, também pode ser considerada como a obra que funda o gênero
pornográfico ao explicitar diante das câmeras a fetichização dos corpos femininos
em movimento, sempre os convidando a uma mise-en-scéne mais elaborada e
performática que na representação dos movimentos dos corpos masculinos.

Figura 1 – Homem saltando: não há nenhum acréscimo de detalhe supérfluo na mise-en-scéne

Fonte: Animal Locomotion (1887)


17

Figura 2 – Mulher saltando: a mão se ergue, a fenda da saia revela a coxa, ela sorri.

Fonte: Animal Locomotion (1887)

Sobre a série, Linda Williams completa:


Se o cinema prototípico de Muybridge se tornou depressa […] uma espécie
de show pornográfico efeminado que minou suas pretensões acadêmicas
mais sérias, não foi porque homens são naturalmente mais voyeuristas ou
fetichistas e nem que esses prazeres perversos tenham superado a ciência.
Pelo contrário, ciência e perversão interpenetram a construção do discurso
cinemático – em um momento em que não havia naquela disposição social,
nenhuma mulher na audiência […] em posição de dizer: esta não é a
verdade sobre os meus movimentos […]. (1989, p. 45)

A colonização do corpo feminino pelo olhar masculino heterossexual que


registra e que assiste à pornografia, depois dos experimentos de Muybridge e antes
de chegar aos filmes pornôs contemporâneos, passou por distintos momentos,
especialmente centrados nas condições de exploração mercadológica das obras.
Traçando um breve percurso da pornografia no cinema, já na primeira década dos
anos 1900 são produzidos e exibidos os stag films, que, renegando os avanços
técnicos da época, não revelavam especial preocupação com a estrutura do
desenvolvimento da narrativa.

Se nas sequências que preparam ou levam ao ato sexual observa-se uma


certa linearidade de causa e efeito – lógica preliminar a uma coerência
narrativa -, as sequências explícitas propriamente ditas (show genital) são
marcadas por um alto grau de descontinuidade temporal, produzido por
bruscas mudanças de enquadramento, de iluminação e cortes desconexos,
oferecendo uma representação confusa do ato sexual. (ABREU, Nuno
Cesar, 1996, p. 46)
18

Esses filmes eram comumente exibidos em bordéis e casas de prostituição


com o objetivo econômico de levar o público – que era exclusivamente masculino - à
excitação e, consequentemente, à vontade de desfrutar dos serviços oferecidos
pelas mulheres que lá trabalhavam. Explica-se assim a despreocupação com o
estabelecimento de uma linha narrativa capaz de fazer com que o espectador
transite entre o espaço diegético e o não diegético do filme. Não era interessante
para os espaços exibidores que o público conseguisse estabelecer uma identificação
com o personagem e uma projeção na ação fílmica, pois se retirariam da imagem
plenamente satisfeitos. Linda Williams (1989), ao abordar o assunto, utiliza o final de
um stag francês para ilustrar a intenção: a última cena de Le Telegraphiste (ca. 1921
– 1926) é do personagem lendo uma carta que funciona como um convite à
audiência, “Depois de assistir a esse filme, procure uma bela garota e cuide bem
dela”. Não é de se espantar que a maior parte das imagens conduziam ao prazer
visual a partir da objetificação do corpo feminino em closes com genitais visíveis.

Desse modo, além da natureza diegética específica dos stags, um dos


motivos da não-identificação do espectador com os “personagens” são as
pressões para que ele se identifique com a plateia (outros homens), com a
qual partilha o conhecimento das “maravilhas ocultas” do corpo feminino (e
do próprio corpo masculino) em excitação. Uma situação que pode ser
definida mais como de construção de uma auto-identificação com o gênero
masculino. (ABREU, Nuno Cesar, 1996, p. 49)

Para Linda Williams (1989), esse processo de autoidentificação masculina


mediado pelo corpo feminino também gera o prazer de expressar em grupo o desejo
heterossexual, reafirmando dentro e fora da tela uma política de prazer masculina
heterocêntrica. A dinâmica aqui estabelecida entre sexo, gênero e desejo pode ser
lida como indicado por Judith Butler:

Em tal contexto pré-feminista, o gênero, ingenuamente (ao invés de


criticamente) confundido com o sexo, serve como princípio unificador do eu
corporificado e mantém essa unidade por sobre e contra um “sexo oposto”,
cuja estrutura mantém, presumivelmente, uma coerência interna paralela
mas oposta entre sexo, gênero e desejo (2003, p. 44)

À primeira vista, pode parecer curioso que uma quantidade significativa de


stags também incluísse imagens de sexo lésbico, mas vale ressaltar que o interesse
era de provocar o desejo do homem – geralmente, inclusive, começando a ação com
duas mulheres, mas a completando com o envolvimento de uma figura masculina
19

em um número de ménage -, não o de dar espaço para a representatividade do


prazer homossexual.
Depois dos stag films, as décadas de 1930 e 1940 são marcadas por menos
ousadia. Nos Estados Unidos, estabelece-se uma primeira regulamentação sobre
censura, o Código Hays, e as produções, no máximo, continham nudez velada.
Ainda assim, havia a exibição legalizada dos ditos filmes exploitation, produzidos por
um grupo de empresários conhecido como “Os 40 Ladrões”, que continham uma
leve inspiração erótica e que costumavam ser vistos por um público cativo que não
queria se expor, a “brigada encapotada”. Durante os anos 1950, além dos
exploitation, começam a ser realizados filmes mais liberais, chamados de nudies
justamente por conterem nudez (desde que não frontal), mas que visavam mais a
promoção do naturalismo do que o erotismo. É só em 1959 que o diretor Russ
Meyer coloca um olhar sexualizante nos nudies com o filme The Immoral Mr. Teas,
fazendo com que os nudie-cuties (nudez maliciosa, mas sem sexo) se
popularizassem pelos anos 1960. A trama de Mr. Teas traz, em certa medida, a
revelação do olhar imperativo na pornografia: um homem hetero, branco, de classe
média, que “desenvolve a capacidade – partilhada pela plateia – de enxergar as
mulheres nuas” (ABREU, Nuno Cesar, 1996, p. 59). Enquanto isso, na ilegalidade
dos anos 1960, os filmes exibidos eram os beavers ou girlie movies, que mostravam
garotas nuas em performances lúbricas.
A primeira vez que um filme colorido e sonoro de longa-metragem inclui em
seu enredo uma variedade não velada de números sexuais é em Garganta Profunda
(1972), talvez o mais famoso filme pornô até hoje. Apesar de acompanhada por
batalhas judiciais, o filme foi lançado em exibições legalizadas e, só nos Estados
Unidos, arrecadou cerca de 20 milhões de dólares. Assim surge a indústria do
cinema pornográfico como a conhecemos hoje: graças à constatação de que o sexo
explícito é potencialmente lucrativo. Sobre Garganta Profunda, O Diabo Na Carne
De Miss Jones (1972) e Atrás Da Porta Verde (1972), a “santíssima trindade do
pornô”, Cesar Nuno Abreu afirma:

[…] abriram as portas para o ingresso dos filmes pornográficos no circuito


de exibição comercial de qualquer parte do mundo, em salas
(posteriormente) identificadas como “especiais”. A partir de então, sua
produção multiplicou-se em progressão geométrica. Instituindo uma
estrutura narrativa peculiar, com seus próprios códigos de representação, o
hard core afirma-se como mais um gênero cinematográfico. (1996, p. 67)
20

O entendimento do hard core como um gênero cinematográfico – que também


chamarei de pornô clássico, mainstream, dominante – pressupõe a assimilação de
uma sistemática utilização da linguagem audiovisual. Stephen Ziplow, um produtor
de filmes pornôs, escreveu em 1977 o The Film Maker's Guide To Pornography,
onde listou alguns dos elementos iconográficos essenciais no pornô clássico, além
de uma espécie de tipologia de atos sexuais que podem ser incluídos nos filmes e a
melhor maneira de filmá-los. Sua sugestão é de que as performances sexuais
ocupem 60% do tempo do filme, ficando os 40% restantes ocupados por uma
narrativa capaz de ligar os números de sexo.
Buscando não incorrer em interpretações totalizantes, podemos observar uma
tendência à normatização das ações de acordo com o sexo/gênero de quem as
representa. Quando Nuno Cesar Abreu, em O Olhar Pornô (1996, p. 97), assinala
que “ainda que Ziplow não especifique o sexo de quem se masturba, fica claro pela
sua descrição que o ato será executado por uma mulher” ou, ao falar do sexo anal,
“como na masturbação, o autor sugere que a pessoa a ser penetrada é uma
mulher”, a problemática da estipulação de padrões inquestionáveis de papéis a
serem seguidos na sexualidade se evidencia, como se não fosse nem sequer
necessário explicitar quem faz o quê. Há também os momentos em que às
dificuldades técnicas são atribuídas as escolhas pelo protagonismo da cena:

Ziplow nota que a filmagem do cunnilingus apresenta dificuldades técnicas


de visibilidade, uma vez que a cabeça do homem obscurece a ação. Já as
blow jobs (felações) não apresentam tal dificuldade, com a vantagem
adicional de facilitar o money shot: “sempre fazem sucesso com o público
pornô”. (ABREU, Nuno Cesar, 1996, p. 97)

Considerando as possibilidades visuais de quadros que o pênis oferece - “que


revela ele mesmo a verdade do sexo e do prazer do sujeito através da ereção e da
ejaculação” (DUARTE, Larissa Costa, 2013, p. 1696) – é preciso esboçar uma razão
pela qual a automasturbação feminina é tão mais comum.

Confrontar a audiência heterossexual masculina com a possibilidade de


excitação diante do falo poderia constranger os espectadores. Assim, o
pênis, ao contrário da vagina, só pode ser visualmente destacado em um
contexto de interação. (DUARTE, Larissa Costa, 2013, p. 1696)
21

Talvez por isso, a marcante diferença é dada no trato da homossexualidade


masculina e da feminina. Enquanto o sexo entre duas mulheres é incentivado e até
apontado como uma boa forma de se comunicar com a audiência heterossexual (ao
que nos caberia indagar “com qual audiência heterossexual?”), Ziplow adverte, ao
falar sobre o ménage à trois, não ser conveniente que dois homens se envolvam.
Aos sons inseridos na mixagem dos filmes, também são dados tratamentos distintos
de acordo com o gênero/sexo3. Apesar de gritos e gemidos masculinos também
serem acrescentados, são os femininos os mais audíveis e marcados como efeito
dramático – maneira encontrada de se representar o gozo da vagina em oposição à
ejaculação do pênis. Se o hard core “apresenta sexo como problema e, através da
prática sexual, busca a solução” (ABREU, Nuno Cesar, 1996, p.110),

[…] a penetração não constitui o principal número de um filme pornográfico


– embora se faça imprescindível, não é este ícone que “resolve” a narrativa
de um filme pornô. O principal “evento”, a cena imperativa à narrativa do
gênero, não é senão o money shot (também chamado “come shot”). Todos
os “números” que se desenrolaram ao longo da narrativa, não foram senão
etapas que conduziram os protagonistas à resolução de seu conflito: o
momento do orgasmo. (DUARTE, Larissa Costa, 2013, p. 1700)

Nuno Cesar Abreu não descreve o money shot como o momento genérico do
orgasmo, mas sim “a ejaculação masculina fora do orifício vaginal feita para a
câmera” (1996, p. 96). Mesmo que o autor apresente o princípio dinâmico motivador
dos filmes pornôs como “a diferença fundamental entre o masculino e o feminino”,
destacando a imperatividade de se dividir os seres entre sexos, ao considerar o gozo
do homem a finalidade máxima do desenrolar da narrativa, concluo ser possível que
à pornografia mainstream se encaixe a mesma análise feita por Monique Wittig
sobre a gramática nas línguas francesa e inglesa: “[...] não há dois gêneros. Há
somente um: o feminino, o “masculino” não sendo um gênero. Pois o masculino não
é o masculino, mas o geral” (apud BUTLER, Judith, 2003, p. 42).
Logo, o olhar hegemônico da pornografia clássica é, indubitavelmente, o que
foi convencionalmente atribuído ao prazer do homem cisgênero heterossexual.
Diante de tal contexto, o surgimento da pós-pornografia marca a possibilidade de se
instituir a representação do desejo e do prazer a partir de olhares mais flutuantes e
diversificados, trazendo à tona sexualidades anteriormente marginalizadas.

3 Nesse contexto, o binômio sexo/gênero ainda é tido como equivalente.


22

4 PÓS-PORNOGRAFIA - A FRATURA DO DISCURSO DOMINANTE

Parece-me contraditório, uma vez que esse trabalho visa questionar a


normatividade, referir-me à pós-pornografia como um gênero cinematográfico. Tal
classificação demandaria a instituição conceitual de uma identidade, sem a qual
“unidades provisórias podem emergir no contexto de ações concretas que tenham
outra proposta que não a articulação de identidade” (BUTLER, Judith, 2003, p. 36).
Como Butler defende em relação à categoria “mulheres”, acredito que a hipótese de
incompletude na essência da acepção do pósporno – uma ideia não encerrada na
aglutinação dos vários componentes que poderiam ser relacionados a priori à
categoria – é o que o torna um espaço para os significados contestados. Partirei de
um entendimento queer da pós-pornografia no cinema não só no que diz respeito ao
reconhecimento da orientação teórica que fundamenta vários dos filmes ditos
pósporno, mas também a localizando na política pós-identitária como um fenômeno
tanto ético quanto estético - como obras cinematográficas que operam por devires,
pelas possibilidades de experimentação, não por identificações fixas a serviço de
uma finalidade definidora. Portanto, referir-me-ei à pós-pornografia não como um
movimento artístico e social, mas como um em movimento, levando em conta
justamente obras que desestabilizam4 o discurso pornográfico hegemônico.
Já traçados os componentes fundadores da pornografia “clássica”, podemos
compreender historicamente o surgimento do em movimento pósporno. Ao que tudo
indica, a primeira vez que o termo foi utilizado com uma abordagem que dissesse
respeito a um novo estatuto da representação sexual foi com o fotógrafo erótico
Wink Van Kempen, mas seu desenvolvimento se deu através da apropriação feita
por Annie Sprinkle em sua performance Post-Porn Modernist Show5 (1989). A
performance era uma espécie de autobiografia burlesca na qual Annie relatava e
explorava sua evolução sexual, contava sobre sua carreira como atriz pornô, como
prostituta, como stripper, como dominatrix e, por fim, como produtora, roteirista e
diretora de seus próprios filmes. Sobre outra performance, The Public Cervix
Announcement (1990), em que Annie convida o público a explorar o interior de sua
vagina com um espéculo ginecológico, Beatriz Preciado diz que, através da

4 Desestabilizar, em latim, é subversu, origem da palavra subversão.


5 É possível ter acesso a um “roteiro ilustrado” do show na página online de Annie Sprinkle:
http://www.anniesprinkle.org
23

produção artística de diversas ficções do sexo, a performer consegue criticar


simultaneamente os códigos sexuais produzidos pela medicina e pela pornografia
tradicional (PRECIADO, Beatriz, 2008).
A relevância do trabalho de Annie Sprinkle para a pós-pornografia, por fim,
não diz respeito apenas ao colocar em movimento a verdade do sexo, mas no
deslocamento da objeta6 passiva da representação pornográfica (a corpa da atriz, a
corpa da prostituta) em sujeita do discurso. Abre-se para quem experiencia
sexualidades marginalizadas (mulheres, putas, bichas, sapatões, gordes, anômales,
corpas abjetas7 em geral) a possibilidade de reivindicar o direito a ficcionalizar o
sexo para além da normatividade heterocapitalista, conduzindo a uma produção
audiovisual que não visa necessariamente a excitação do público, mas a reflexão
política sobre o desejo.
Não à toa, a insurgência pós-pornográfica acontece em meados dos anos
1980, época em que a homofobia e as políticas de controle do corpo e de
regulamentação da sexualidade ganham nova força com as campanhas de combate
à AIDS, em que se começa a desenvolver uma teoria queer e que a facilidade de
acesso promovida pelo vídeo cassete consolida os filmes pornôs como produto
cultural, despertando a atenção das feministas e gerando uma acirrada discussão
entre a relação da pornografia com a manutenção do patriarcado.

O feminismo dos anos 80 foi o primeiro movimento político a fazer um


diagnóstico lúcido do poder deste aparato iconográfico pornô para produzir
e controlar as identidades sexuais, mas quando chegou o momento de
tomar uma decisão a respeito da gestão desse poder, viu-se fraturado em
duas estratégias divergentes: por um lado, o feminismo abolicionista,
liderado por autoras como Catherine MacKinnon e Andrea Dworkin,
identificado com a mulher heterossexual branca casta e de classe média,
pede ao Estado (paradoxalmente ao mesmo Estado que criticam como
patriarcal) que proteja as mulheres da violência da linguagem pornográfica
fazendo uso da censura e da repressão para controlar as representações.
[…] Frente a esse feminismo abolicionista, aparece a estratégia política do
feminismo pro-sexo e pósporno, a princípio organizada por coletivos como
COYOTE e PONY, com a participação de trabalhadoras sexuais, lésbicas e
atrizes pornô como Annie Sprinkle, Verónica Vera, Scarlot Harlot e Diane
Torr. Aqui já não se trata de pedir ajuda ao Estado-papa-censor, mas de
apropriar-se das tecnologias de produção da representação sexual e do
prazer. O feminismo pósporno reivindica a representação pornográfica como

6 Na generalização, flexionarei alguns substantivos e adjetivos no feminino por se tratarem justamente


das “anormais”, das que não são incluídas no “geral”.
7 “O abjeto designa aqui, precisamente aquelas zonas ‘inóspitas’ e ‘inabitáveis’ da vida social, que

são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo
habitar sob o signo do ‘inabitável’ é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito”.
(BUTLER, Judith, 2013, p. 155)
24

espaço de ação política através do qual as mulheres e as minorias sexuais


podem redefinir seus corpos e inventar novas formas de produzir prazer que
resistam à normalização da pornografia dominante (PRECIADO, Beatriz,
2010, tradução livre).

Ainda que muitas dessas corpas sejam populares nas representações


pornográficas desde sempre, a revolução pós-pornográfica advém do
empoderamento do olhar sob o qual essas representações ocorrem. Enquanto na
pornografia dominante as corpas das mulheres e das minorias sexuais aparecem a
serviço da ratificação do prazer masculino heterossexual como imperativo cultural e
político, essas mesmas corpas figuram na pós-pornografia regidas pelo ponto de
vista dissidente, ou seja, a partir da reapropriação e da subversão da iconografia
pornô, fugindo da normatização proposta pelos subgêneros pornográficos fetichistas
que transferem as corpas da categoria de “não atraentes” para a de “atração
pervertida”, não rompendo com a ideia de que há corpos desejáveis e corpas
abjetas.

Os desejos e corpos que “não funcionam para a norma heterossexual”, e


que são “descartados e inviabilizados” (COELHO, 2008, p.36) pelo mesmo
preceito – gays, lésbicas, transexuais, intersexuais, mulheres e homens
velhos, mulheres e homens de ascendência diversa, e sujeitos cujos corpos,
de algum modo, desafiam o esteriótipo do normal ou desejável – são
colocados, deste modo, junto àqueles que não desafiam o “padrão”. Ao
exibir esta variedade de tipos corporais; de formas genitais; de maneiras de
exercer a sexualidade para além de filiações identitárias, a pós-pornografia
ataca de forma violenta as estruturas hétero, falo e androcêntricas da
pornografia clássica. (DUARTE, Larissa Costa, 2013, p. 1695)

A lógica da dualidade contida na diferenciação de desejável/indesejável é a


mesma encontrada na estrutura binária de homem/mulher, masculino/feminino,
pênis/vagina, heterossexual/homossexual, que ignora os sujeitos que estão ou
circulam pelas fronteiras dessas normas (SARMET, Érica, 2014). O pósporno
formula a partir da estrutura representacional “uma crítica às categorias de
identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram, naturalizam e
imobilizam” (BUTLER, Judith, 2003, p. 22).
Aqui, devemos entender as linguagens não só como ferramentas
representacionais da realidade, mas também como instrumento de intervenção e
criação dessa mesma realidade. Pensemos no mapa de uma cidade, por exemplo. À
mesma medida em que a linguagem cartográfica representa a espacialidade da
cidade, ela também é responsável por criar a ideia mesma de território pertencente à
25

cidade. Ao nos deslocarmos de um bairro a outro, não vemos desenhadas no chão


as linhas que delimitam estarmos cruzando uma fronteira, não percebemos no solo
uma ruptura brusca que nos indique a cisão entre duas áreas. Portanto, quando
essas linhas fronteiriças são desenhadas, elas mais do que representam os espaços
geográficos dos bairros ali localizados, pois a própria geografia dos bairros acaba
sendo criada a partir da demarcação feita pelo mapa. O mesmo vale para a
linguagem cinematográfica. Ao pretender representar a realidade do sexo, o cinema
pornô acaba por produzir ele mesmo o que será entendido realmente por sexo,
excluindo dessa compreensão todas as práticas sexuais que ali não estiverem
representadas.
Se retomarmos as ideias apresentadas nos capítulos anteriores do presente
trabalho - 1. Que a heteronormatividade diz respeito tanto às normas reguladoras de
desejo e práticas sexuais quanto à ordem compulsória entre sexo e gênero, 2. Que a
pornografia mainstream é ditada pelo olhar hegemônico masculino cisgênero
heterossexual - torna-se evidente a potência do pornô na corroboração da criação
de convenções que estipulam o que é um homem e o que é uma mulher. Assim,
quando a resposta pós-pornográfica se propõe a colocar em cena justamente as
corpas e práticas até então à margem das representações cinematográficas pornô,
ela bagunça a própria concepção do que é a verdade do sexo, do que é uma mulher
e do que é um homem.
Nos últimos anos, uma série de coletivos e de artistas individuais vem
realizando uma vasta produção pósporno em Barcelona, Espanha. Alguns desses
trabalhos, como o vídeo Love On The Beach8 (2003), do coletivo Girls Who Like
Porno, e Implantes9 (2008), do grupo de “artivistas” Post-Op, abordam diretamente
as questões relacionadas à representação de gênero. A sinopse de Implantes diz:

Neste vídeo se analisa a identidade de gênero como o conjunto de uma


série de tecnologias biopolíticas. Essas complexas estruturas podem ser
instrumentos de normalização a serviço do poder, regulando as relações
entre os corpos, as máquinas, os usos e os usuários, ou converterem-se em
verdadeiras armas nas mãos dos terroristas de gênero. Toda tecnologia
repressiva é suscetível a ser re-apropriada em diferentes usos e contextos,
dando lugar a outras técnicas de construção de identidades aprazíveis.
Durante a performance, utilizam-se diferentes tecnologias, modificando seus
usos e contextos, às vezes respondendo aos padrões de normalização e às
vezes contestando a norma, produzindo subjetividades, como fronteiras em

8 Disponível em http://girlswholikeporno.com/shortfilms/love-on-the-beach/
9 Disponível em http://postop-postporno.tumblr.com/videos
26

movimento que não podem ser lidas em termos binários de sexo/género.


(POST-OP, tradução livre)

No vídeo de quase 5 minutos, há o arrancar, o colar e o modelar dos pelos do


corpo. Vemos mãos cortarem pequenas mechas de cabelo e, depois, transformá-las
em uma barba grudada ao rosto. Vemos mãos espalharem e puxarem cera nas
pernas. Mãos manejarem um utensílio que curva os cílios pintados. Bobes enrolados
aos cabelos, esculpindo-os. As mãos também pintam de vermelho as unhas dos pés,
acariciam os seios, ajeitam a calça ao sentar. As pernas sentam-se abertas, em
outro momento, ao cruzarem-se, revelam as coxas. Uma faixa amarra os peitos, as
mãos colocam um volume dentro da cueca. É uma série de imagens que exibem o
corpo agindo sobre o próprio corpo, utilizando diversos tipos de ferramentas e
tecnologias para configurar-se. Os corpos dançam e os olhos olham para nós.
Parecem desafiar os vigilantes do gênero, os que aplaudirão as pernas depiladas e
acusarão a cueca de não esconder um pênis de verdade. Dançam porque não estão
estáticos em si mesmos, porque não são fixos. Sentem-se livres para experimentar
as demais possibilidades sigilosamente ofertadas pelo manejo de técnicas
comumente utilizadas para normatizar.
Em Love On The Beach o movimento não está nos corpos, é o ritmo da
montagem que muda de um plano para outro freneticamente. São barbas, seios,
pelos, dildos, bandagens, que vão se revelando e se ocultando rapidamente.
Ocupam espaços variáveis na janela de exibição, são espelhados e des-espelhados,
fazendo com que os corpos ora estejam de um lado, ora de outro. E então vemos
imagens de interações sexuais diversas. Os corpos se relacionam com as próteses
que estendem a área de outros corpos. Nenhum dos pênis utilizados é de carne e
veias, nem mesmo os usados pelos corpos que supomos possuí-los
anatomicamente. O pênis plástico não é sinônimo nem de masculino e nem de
feminino, não estabelece relações compulsórias. A velocidade dos cortes, as
oposições entre morfologia e figurino, entre mise-en-scène e aparência, não nos
convidam a deliberar sobre a qual categoria – hetero ou homo – pertencem as
práticas sexuais ali expostas. São sexualidades des-generadas. As relações sexuais
não terminam com o gozo, os planos detalhes das genitais não são os protagonistas
da narrativa, a trilha sonora não é diegética (não ouvimos os gemidos das
personagens). Com exceção do sexo explícito, o vídeo em nada se parece com o
pornô convencional.
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Diante do exposto, pergunto: inaugurada(s) nova(s) forma(s) de se


representar corpos/as sexuados/as, desejantes e desejados/as, modifica-se também
as possibilidades do/a espectador/a na descoberta e na obtenção do prazer pelas
práticas sexuais? Abre-se ou não, assim, um campo mais propício à experimentação
de uma vivência mais autêntica de si, das relações com o próprio corpo - sexuado e
generificado - e com o outro?
28

5 UMA INVESTIGAÇÃO AUTOBIOGRÁFICA

Defendida a ideia de ser o cinema pornográfico uma potente força criadora e


movimentadora do imaginário sobre o sexo e sobre as diferenciações de gênero, o
presente capítulo visa apresentar um relato autobiográfico sobre a maneira pela qual
as fantasias midiáticas ganharam corpo e repercussão na minha própria sexualidade
e generificação.
1997, Londrina. Eu constituía e era constituída por um corpo infantil. Um
corpo branco, magro, “normal”. Corpo já na fase intrauterina classificado como
sendo portador do “sexo feminino”. Mas, naquele ano, o sétimo da minha vida, eu
havia decidido começar a vestir roupas compradas na sessão masculina. De dois
conjuntos eu gostava especialmente: a calça xadrez modelo “skatista” com a blusa
cinza de mangas longas estampada pelo Bad Boy e da calça jeans de barras
desfiadas e com rasgos na altura dos joelhos com a camiseta do time estadunidense
de basquete Chicago Bulls. Para completar o figurino, boné virado para trás e tênis
All Star. Uma mimese da imagem de meninos rebeldes que eu via figurar na
televisão e no cinema.
Figura 3 – Eu aos 8 anos Figura 4 – Adolescentes do filme Kids (1995), de Larry Clark

Fonte: Arquivo pessoal Fonte: Google Imagens.

A novela infantil Chiquititas, em sua primeira versão brasileira, era um


fenômeno daquela época. E eu, como fã, não só acompanhava os episódios como
consumia os produtos lançados em função do programa. Do álbum musical
Chiquititas Volume 2, segunda trilha sonora da novela, minha faixa preferida era a
intitulada Blue Jeans Baby Tatuá, a música “dos meninos”. Os poucos garotos que
29

faziam parte do elenco na temporada, no clipe apareciam chutando latas, grafitando,


exibindo bíceps com falsas tatuagens, misturando movimentos de dança a
movimentos de luta, enquanto entoavam versos como “Eu não sou santo / nem
caretão / Eu sou marrudo e muito mandão”. Eu gostava tanto da atmosfera do vídeo,
que propus às minhas amigas que montássemos uma banda inspirada naquela
música. Escrevemos uma letra mais ou menos assim: “Somos as bad girls /
Andamos pelas ruas escuras / Não temos medo de nada e metemos porrada”. Bad
girls, que teria sido o nome da banda, exprimia o sentimento de sermos meninas que
não correspondiam inteiramente ao que se espera da feminilidade.
O grupo de cantoras Spice Girls foi outro estouro midiático dos anos 1990.
Cada uma delas tinha uma espécie de rótulo relacionado ao seu estilo e à sua
personalidade – Posh Spice, Baby Spice, Ginger Spice, Scary Spice e Sporty Spice.
Era comum, em 1998, que eu me reunisse a mais quatro amigas para imitarmos as
coreografias e performances das Spice. Eu costumava alternar, curiosamente, entre
interpretar a Emma (a Baby Spice) e a Mel C (Sporty Spice), consideradas
respectivamente a mais e a menos “menininha”.

Figura 5 - Emma Figura 6 - Mel C

Fonte: Google Imagens

Mantive, durante toda a infância, uma diversão secreta com algumas amigas.
Chamávamos pelo código “brincar de namorado” e, basicamente, era quando
fingíamos ser um casal heterossexual vivendo enredos que envolvessem sedução e
erotismo. Embora alternássemos, eu quase sempre escolhia desempenhar o papel
masculino. As fantasias masturbatórias transfiguradas nessas brincadeiras eram,
claro, repletas de referências culturais sobre quais os atributos dos homens e quais
30

os das mulheres, quais as funções que cada um deve desempenhar em um


relacionamento amoroso e nas práticas sexuais. O personagem que inventei, ao
qual dei o nome de Patrique, era uma mescla dos estereótipos de masculino e
feminino. Eu o imaginava sensível, romântico e carinhoso, assim como forte, viril e
mais ativo do que seu par mulher nas histórias que encenávamos. Parecia-me mais
possível encaixar nessa configuração as características que eu reconhecia em mim
mesma e as características que eu notava no outro como atrativas para mim.
Mas, hoje, algo me chama a atenção nos enredos que criávamos: eles eram
constantemente permeados por relações de abuso. Lembro de uma cena em que,
numa dessas brincadeiras, fingíamos estar em um programa de auditório. A
personagem da minha amiga era uma dançarina que se apresentava no programa (a
exemplo dos atrativos televisivos da época, como o Programa H, e suas respectivas
figuras femininas célebres, como a Tiazinha e a Feiticeira). Eu representava um
convidado qualquer. Então, em sua apresentação, minha amiga reproduzia as
performances as quais já tinha assistido, e eu, no que imaginávamos ser o papel
masculino correspondente à tal situação, puxava-a pela roupa e sujeitava os
movimentos do corpo dela à minha vontade.
Figura 7 – Personagem Feiticeira no Programa H

Fonte: Google Imagens

Não consigo desassociar a minha percepção e o meu entendimento de que


partes do corpo feminino devem ter um maior apelo sexual do que outras, além de a
esses programas de TV, à popularidade do grupo É o Tchan durante a minha
infância. Essas referências me indicaram não só quais as áreas sexualizantes de um
corpo, mas também qual a aparência que essas áreas devem ter para serem
31

realmente atraentes. Alguns trechos de músicas do É o Tchan, como “O califa tá de


olho no decote dela/ Tá de olho no biquinho do peitinho dela” (Ralando o Tchan), “É
linda/ Tem sessenta de cintura/ Que gostosura/ 105 de bundinha/ Que bonitinha/
1,70m de altura/ Ninguém segura/ Mas que loirinha danadinha” (A Nova Loira Do
Tchan), “A baiana desce/ Que desce, que desce, que desce, que desce, que desce/
Balançando a bundona/ Havaiana sobe e sobre/ Que sobe, que sobe, que sobe, que
sobe, que sobe/ Sacudindo as mamonas” (É O Tchan No Havaí), compunham meu
imaginário sobre a desejabilidade dos corpos. O shortinho curto e colado que as
dançarinas do É O Tchan utilizavam fez, várias vezes, parte do repertório utilizado
nas minhas brincadeiras. Em dado momento, eu e uma amiga também passamos a
enrolar bolinhas de papel para que ela colocasse embaixo da roupa e, durante a
brincadeira, fingíssemos serem seios. Em momento algum construímos próteses que
remetessem a um pênis e tampouco me lembro de valorizarmos especialmente
algum atributo físico do personagem masculino. Na verdade, a única menção ao
órgão masculino da qual me lembro, foi a vez em que minha amiga jurou ter
assistido a um filme chamado “Pipi encostado na xereca”. Mas, à época, o título me
pareceu impossível. Eu ainda não fazia ideia da existência de um cinema
pornográfico e nem do quanto a ideia de “sexo” presente em tal gênero estava
intimamente ligada à síntese do título inventado pela minha amiga.
Com a aproximação da adolescência, iniciou-se um maior constrangimento no
que diz respeito a expor meu próprio sexo aos outros. Deixei de “brincar de
namorado” com as minhas amigas, mas passei a utilizar ferramentas online de bate-
papo como estímulo para fantasias de cunho erótico. Às vezes, eu entrava nos chats
como Gabriel, também um personagem masculino, mas que apresentava ainda mais
características tidas como “femininas”, inclusive em sua descrição física, do que
Patrique. Outras vezes, eu entrava nos chats simplesmente com o nickname “ela” e
assumia a identidade de uma garota mais velha, com uma personalidade muito
menos passiva do que a das mulheres da brincadeira simulada na infância. Ambos
os personagens desenvolviam relações virtuais heterossexuais, ou seja, quando
como Gabriel, eu supostamente flertava com meninas, quando como “ela”, com
meninos.
Nessa época, eu voltei a mesclar elementos visuais da moda feminina e da
masculina na minha vestimenta. Eu gostava de usar imensos brincos de argola,
além de blusas justas e lápis no olho, mas ainda adoravas as chamadas calças
32

skatista e o uso de cuecas samba canção. Assim como os meninos, eu deixava uma
parte da cueca para fora das calças largas e caídas, o que, no colégio, rendeu-me a
fama de “puta” – a justificativa, de acordo com os colegas, era a de que eu mostrava
as minhas roupas íntimas para provocá-los.
Figura 8 – Eu com a cueca samba canção aparecendo

Fonte: Arquivo pessoal

Estávamos na puberdade, o que iniciou uma fase em que o aspecto


que algumas partes do corpo feminino aparentavam – com especial atenção para os
seios, para as nádegas e para o quão magra ou gorda cada garota era – ganhou o
caráter de demarcação social. O tamanho dos peitos e da bunda, bem como o quão
marcado eles ficavam pelo uniforme, eram o que dizia a qual “tribo” cada menina
pertencia na escola. Se a menina fosse magra, mas tivesse seios e nádegas
grandes, ela era desejável e “popular”. Se fosse gorda, não era. Se fosse magra e
sem as curvas muito marcadas, mas tivesse um rosto “bonitinho”, dependia de com
quem ela se relacionava – se misturava-se às populares, seria também popular; se
misturava-se às excluídas, seria também excluída. Agora, se o corpo estivesse no
padrão do cobiçado, mas o rosto fosse considerado “feio” ou “não tão bonito”,
expunha-se toda a essência desse olhar sobre os corpos: a menina era tratada pelos
meninos como um objeto a ser desfrutado – pelo olhar, pelo toque, pelo “passar a
mão” – e, em consequência, era rotulada, tanto pelos meninos quanto pelas outras
meninas, como “vadia”. Isso significava, na prática, que aquela garota só tinha lugar
na condição de “ficante esporádica”, não de amiga e, muito menos, de namorada.
Era comum ouvir meninos dizerem ter ficado com essas meninas apenas por elas
33

serem “gostosas” e deixarem que eles “passassem as mãos”. Já para as meninas


com os corpos lidos a partir dessa configuração, era como se não houvesse outra
possibilidade de inserção social.
A relação direta feita entre algumas regiões do corpo – as genitálias de ambos
os sexos, os seios e as nádegas femininas – com o desejo sexual, bem como com
as possibilidades de prática sexual apresentadas pelas mesmas, são
constantemente reiteradas pela pornografia dominante, assim como a tendência em
se dividir as personagens femininas em arquétipos que dizem respeito, justamente,
ao quão propícios ao sexo são seus corpos ou ao quão propícias ao casamento são
suas personalidades, está fortemente inscrita nas representações cinematográficas
e televisivas de mulheres.
Com isso, não quero apontar para as representações audiovisuais do sexo e
dos gêneros como fundadoras das relações de poder vivenciadas no interior da
sociedade, nem cair na armadilha de entender a pornografia como essencialmente
violenta ou ilusória, mas pensar sobre de que maneira as práticas sexuais e os
papéis atribuídos aos gêneros, ao serem cinematograficamente/televisivamente
representados, estabelecem um regime de verdade que acaba por se retroalimentar.
Minha pergunta é sobre a possibilidade de resistência. Nas palavras de Elsa Dorlin:
La pornografia masiva es violenta. No obstante, el desafio no es tanto la
condenación de la pornografia en cuanto violenta por esencia, como más
bien la crítica del régimen de veridicción que instituye em materia de
sexualidad. Una pornografía no sexista, no lesbofóbica o no racista, sólo es
posible a condición de desplazar los códigos y las técnicas de la pornografía
massiva: de marginalizar esa verdad del sexo mostrando otras verdades
sobre el orgasmo femenino, la relación com el cuerpo proprio como com el
cuerpo outro (lo que implica uma crítica de las técnicas de alterizaciones
ligadas con el sexo, con el color, con la clase); trabajando sobre sus
condiciones materiales de posibilidad: el conocimiento de sí de su anatomia,
de su salud, la palabra expresada y escuchada, el consentimiento, el juego
(entendido aquí como reconocimiento de la movilidad de las posiciones de
poder en las sexualidades, pero también del reconocimiento del “juego”
como trabajo). Lejos de uma estetización de la dominación, una pornografía
semejante es uma de las raras políticas de educación sexual alternativa, y a
sus detractores ler corresponderá iniciar otras. (2009, p. 118)

Em acordo com a ideia de que às/aos que não se sentem contemplados pela
pornografia vigente cabe experimentar novas formas de representar o sexo, encerro
a presente pesquisa com a proposição de um experimento fílmico, visando
representar poeticamente o meu corpo a partir da maneira como eu o vivencio,
tentando não reforçar o imperativo heteronormatizante.
34

Figura 9 – Colagem de fotografias nas quais apareço com idades variadas

Fonte: Arquivo pessoal


35

6 REFLEXÕES SOBRE O EXPERIMENTO FÍLMICO

A produção desse experimento remete, em verdade, a um trabalho filmado


anteriormente. Em 2009, eu e a cineasta Jessica Candal havíamos realizado um
vídeo experimental que compunha as investigações imagéticas feitas para
integrarem o documentário O Espelho de AnA, lançado em 2011. Nessa
investigação, que intitulamos de O Espelho de AnA – primeiros experimentos10,
projetamos em meu corpo crescido as imagens da ecografia na qual meu corpo
ainda não nascido teve seu sexo trazido para o campo discursivo através da palavra
“feminino”.
A forma oval que circunscreve o conjunto de letras que vão uma a uma
aparecendo – s e x o f e m i n i n o – repete-se em projeção nas minhas pernas, nas
minhas costas, nos meus ombros, nos meus seios. Mas, naquele momento, o corpo-
tela na qual essas imagens são exibidas parece apaziguar o passado intrauterino e o
presente construto. Nada contrasta. O corpo novo não coloca em questão o sexo do
corpo velho. O gênero, na leitura que as imagens apresentam, corresponde ao
esperado do sexo já antecipado. As imagens são de uma fêmea, de uma mulher, de
um corpo feminino. Parecem ser, ou melhor, nada indica que não sejam.

Figura 10 – Frame de O Espelho de AnA – primeiros experimentos

Fonte: Arquivo pessoal

Passados 5 anos desde a feitura desse vídeo, já com questionamentos mais


organizados acerca da minha própria generificação, resolvi revisitá-lo e, com base

10 Vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=zTEtzUdLSr4


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nos estudos aqui citados anteriormente, apontar imageticamente para possíveis


desdobramentos da materialização do meu sexo.

Figura 11 – Frames do experimento fílmico

Fonte: Arquivo pessoal

Uma das diretrizes tomadas foi a de gerar choques entre as informações


contidas em um mesmo quadro. Como exemplificado pela imagem acima, brinca-se
com o pedaço do corpo em cena, o pedaço que vemos, e a sombra que revela um
pedaço extra campo, um pedaço oculto desse mesmo corpo. Vemos um rosto com
bigode – seria um homem? -, mas a sombra de seu tronco revela um seio – seria
uma mulher, então? -. Vemos um rosto maquiado e um par de seios – é uma mulher!
-, mas a sombra de sua silhueta revela um pênis – um homem? -. Um homem é um
homem na medida em que não é uma mulher. Uma mulher é uma mulher na medida
em que não é um homem. Mas que corpo seria esse, então?

Figura 12 – Frames do experimento fílmico

Fonte: Arquivo pessoal


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A pergunta sobre a “verdade” que esse corpo esconde também é induzida


pelas imagens que mesclam corpos outros a esse corpo primeiro. As cores e curvas
dos distintos corpos se misturam e não sabemos se são as costas de uma mulher,
ou o peitoral de um homem trans; se são ombros e braços de uma mulher, ou o
tronco de um homem cis; se são coxas e vagina de uma mulher, ou se são um par
de grandes seios de outra; se são dois pares ou um par de seios, se são médios ou
pequenos; de quem são? O que são? O que desnudam e o que deflagram?

Figura 13 – Frames do experimento fílmico

Fonte: Arquivo pessoal

Tentando traduzir em imagens a ideia de performatividade de gênero e sua


contínua e constante necessidade de reiteração para que pareça verdadeira,
utilizamos o artifício de, com a mesma câmera que estava ligada ao projetor,
enquadrarmos a imagem projetada – gerando um efeito semelhante ao que ocorre
quando se posiciona um espelho em frente ao outro. Como a imagem projetada era
a mesma captada pela câmera que produzia as imagens que seriam projetadas,
formava-se uma repetição serial. Além dessa camada, a reiteração também está
corporificada nos movimentos realizados repetidamente. O corpo experimenta
maneiras diversificadas de sentar, repete-as, conforma-as. As modalidades de abrir
e cruzar as pernas, de apoiar ou torcer os braços, de jogar-se na cadeira ou manter-
se ereto, a maneira como posicionamos nossos corpos em repouso e como os
colocamos em movimento - práticas tão generificadas pelos discursos reguladores
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dos corpos podendo ser experimentadas livremente, podendo ser “brincadas” pelo
corpo em cena. Alguns enquadramentos geram uma cisão entre membros
superiores e membros inferiores, convidam-nos a pensar: aqueles movimentos de
pernas cabem àquele rosto, àqueles seios, àqueles braços? O corpo é uma unidade
homogênea? O reverberar de seus movimentos é estático na qualidade de
masculino ou feminino? Há uma identidade fixa manifestada pela matéria?

Figura 14 – Frames do experimento fílmico

Fonte: Arquivo pessoal

Sugerindo uma nova geografia corporal, integramos elementos protésicos ao


território do meu corpo. O pênis e os seios plásticos, assim como a barba e os cílios
postiços, são utilizados também para a desconstrução da oposição entre natural e
artificial e para evidenciar o caráter de “construído” mesmo daquilo o que, a
princípio, tomamos como originário. Por que os cílios longos que colei em minhas
pálpebras são validados como inerentes ao meu gênero enquanto os pelos que
crescem em minhas axilas – os quais optei por não tirar – são desqualificados e
“estranhados” enquanto meus? O rosto maquiado é menos “máscara” de
feminilidade quanto os seios plásticos? Se o plástico estivesse por baixo da pele,
seriam seios mais ou menos reais? A barba – feita, inclusive, a partir de fios do meu
cabelo – é menos real do que o lápis de olho, os cílios postiços, o batom?
Deixamos para pensar o som do filme só depois de um primeiro corte das
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imagens já montadas. Havia a preocupação de que os questionamentos estivessem


nas imagens e que não precisássemos de verbos para assinalá-los. Porém,
percebemos que o uso de palavras como camada sonora seria extremamente
coerente com o lugar teórico do qual partimos, tendo em vista a importância da
linguística no campo do pós-estruturalismo e dos estudos queer. Passamos a
procurar no youtube áudios que contivessem enunciados relacionados à vigilância
de gênero no sentar e levantar dos corpos e encontramos uma série de falas
proferidas em aulas de etiqueta com marcações claras a respeito de normas
generificadas. Decidimos usá-las de forma a criar uma atmosfera sonora de falas
picotadas e repetidas que não explique as imagens, mas que acrescente uma nova
camada de reflexão. Além do uso das vozes, incluímos uma trilha rítmica que faz
menção à ideia de marcha militar, reforçando a disciplinarização dos corpos pela
heteronorma.
Tanto no que diz respeito às imagens quanto ao som, o partido estético
adotado foi o do “faça você mesmo” proposto pela pós-pornografia. Para as
filmagens, utilizamos apenas um projetor, uma câmera (Panasonic DVX100) e um
computador ligados ao projetor, um refletor (estilo os usados em jardins) com
lâmpada halógena incandescente e uma câmera digital (Panasonic Lumix GH3).
Para gravar o som, utilizamos apenas um pedal de efeito (Loop Station Rc30) e um
microfone. Filmamos em duas meia-diárias noturnas e gravamos o som em um fim
de semana. A montagem foi feita no programa de edição Adobe Premiere. Além de
mim e da professora orientadora, Juslaine Abreu-Nogueira, participaram também da
concepção e da realização do experimento fílmico: Jessica Candal e Ligia Durski.
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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

La epistemología de la subversión [...] trabaja sobre el hecho de que esos


términos (hombres/mujeres, masculino/femenino, heterosexual/homosexual,
activo/pasivo...) no tienen realidad o pertinencia más acá o fuera de la
relación antagónica que los constituye. Por consiguiente, la línea de mira de
toda política de subversión no consiste tanto em superar, destruir o
abandonar dichos términos como en verdade más bien em impugnar,
perturbar, transformar la relación que los engendra, es decir, subvertir el
dispositivo de saber y de poder que se oculta detrás de la ontologización de
los sexos. La política de la subversión, pues, puede desembocar o en una
mutación de los sexos tal que se vuelvan intercambiales, irreconocibles y
por tanto inéditos, o en su difracción, en su multiplicación. Pero la finalidad
no es el sexo (como un invariante insuperable o como uma categoría que
hay que derogar), sino más bien la relación de poder que lo produce aqui y
ahora. (DORLIN, Elsa, 2009, p. 107)

O objetivo deste trabalho foi o de tornar possível utilizar a experiência do meu


próprio corpo, da minha própria generificação, do meu próprio sexo, como fontes de
afirmação enquanto força criativa, enquanto força tensionadora e transformadora
dos regimes de opressão. Se há uma relação de poder na tecnologia pornográfica,
há também uma força produtiva: a resistência. Mas precisei antes entender no
interior de qual dinâmica a resistência se localiza, para então poder resistir. Estudar
a história do cinema pornográfico à luz dos conceitos de corpo, de sexo e de gênero
apresentados pela Teoria Queer, foi a forma encontrada de entender as relações de
poder que produzem o sexo aqui e agora.
Por acreditar e desejar uma vida mais aberta aos devires, uma vida em que
seja possível experimentar os corpos e os prazeres para além de modelos
normalizadores, é que busquei investigar as representações cinematográficas não
baseadas nos esquemas binários de gênero e de sexualidade. Se estudar a
pornografia dominante me levou a uma maior compreensão das relações de poder,
chegar à proposta pós-pornográfica me elucidou a resistência – a maneira pela qual
ela se apoia na própria estrutura que combate. Foi através da pesquisa da forma
como (outras) subjetividades dominadas conseguem criar seus próprios discursos,
que comecei a testar uma linguagem minha, tendo como resultado o experimento
fílmico.
Evidentemente, a liberação da minha prática discursiva, bem como a de
todas/os as/os outras/os sujeitos que contestam o discurso dominante, manter-se-á
em movimento. Sendo as relações de poder dinâmicas, a própria resistência não há
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como ser estática. Portanto, a pesquisa aqui desenvolvida é só um primeiro


momento do que se apresenta mais como uma alternativa de vivência do meu corpo
e do meu sexo, um ideal de existência e de produção artística, do que
exclusivamente como um trabalho de conclusão de curso.
Sendo assim, finalizo com um trecho da entrevista de Beatriz Preciado
concedida à Parole de Queer:
¿No es el posporno demasiado chic, demasiado artístico? ¿Por qué esta
reivindicación artística de los pospornógrafos?
El arte no es elitista sino fundamentalmente corporal y político. No se trata
de que el posporno reivindique el arte frente a la pornografía, sino más bien
de que ambos, arte y posporno, son espacios de experimentación, de crítica
y de investigación en los que se trabaja con la materialidade del signo, con
la imagen y el sonido y con su capacidad de crear afectos, de producir
placer y identidad. (2010)
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REFERÊNCIAS

ABREU, Nuno Cesar. O Olhar Pornô: A representação do obsceno no cinema e no


vídeo. Campinas: Mercado de Letras, 1996.

BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade/


Judith Butler; tradução, Renato Aguiar. - 5ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.

______. "Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo". Tradução de


Tomaz Tadeu da Silva. – 3ª ed. - In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo
educado. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. p. 151-172.

COELHO, Salomé. Por um feminismo Queer: Beatriz Preciado e a pornografia


como pre-textos. Ex aequo, Porto, n.20, p. 29 – 40, 2000.

DORLIN, Elsa. Séxo, género y sexualidades. Introducción a la teoría feminista. 1ª


ed. Buenos Aires: Nueva Visión, 2009.

DUARTE, Larissa Costa. Iconografia e pós-pornografia – feminismo, subversão e


teoria queer. In: I ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS DA IMAGEM, 2013,
Londrina - PR. Anais, 2013.

FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade I: a vontade de saber. 13. ed. Rio


de Janeiro: Graal, 1999.

PRECIADO, Beatriz. Manifiesto Contra-sexual. Barcelona: Opera Prima, 2002.

________________. Posporno: excitación disidente. Revista Parole de Queer, n.4,


p 12-19, jan 2010. Entrevista concedida a Parole de Queer.

SARMET, Érica. Pós-pornô, dissidência sexual e a situación cuir latino-americana:


pontos de partida para o debate. Revista Periódicus, maio/out de 2014.

WILLIAMS, Linda. Hard Core: Power, pleasure, and the “frenzy of the visible. Los
Angeles, University of California Press, 1989.

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