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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EXTENSÃO RURAL E DESENVOLVIMENTO
LOCAL - (POSMEX)

RURBANIZAÇÃO NA PERIFERIA:
Análise da experiência de desenvolvimento local
das comunidades de Dois Unidos e Passarinho

RAFAEL FERREIRA DANTAS SANTOS

RECIFE
2019
RAFAEL FERREIRA DANTAS SANTOS

RURBANIZAÇÃO NA PERIFERIA:
Análise da experiência de desenvolvimento local
nas comunidades de Dois Unidos e Passarinho

Dissertação apresentada para o Programa de Pós-


Graduação em Extensão Rural e Desenvolvimento Local –
POSMEX, da Universidade Federal Rural de Pernambuco,
sob a orientação da Prof.ª Dra. Rita Alcântara Domingues.

RECIFE-PE
2019
RAFAEL FERREIRA DANTAS SANTOS

RURBANIZAÇÃO NA PERIFERIA:
Análise da experiência de desenvolvimento local
nas comunidades de Dois Unidos e Passarinho

Dissertação apresentada para o Programa de Pós-


Graduação em Extensão Rural e Desenvolvimento
Local da Universidade Federal Rural de Pernambuco,
como parte das exigências para a obtenção do título
de mestrado.

Recife, 23 de Abril de 2019

BANCA EXAMINADORA

________________________________________
Prof.ª. Drª Rita Alcântara Domingues
Universidade Federal Rural de Pernambuco

________________________________________
Prof.ª. Drª Irenilda de Souza Lima
Universidade Federal Rural de Pernambuco

________________________________________
Prof. Dr. José Nunes da Silva
Universidade Federal Rural de Pernambuco
AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar a Deus, por ter me permitido alcançar tantos sonhos e seguir
sonhando com novos horizontes. Agradeço aos meus familiares, que dividem comigo uma
caminhada árdua, mas de muito apoio mútuo. Minha esposa Regina, especialmente, por
toda paciência e compreensão. Registro uma gratidão especial às professoras Rita
Alcântara, com quem tive o privilégio de ser orientado e compartilhar a construção desta
pesquisa, e Irenilda Lima, que foi minha motivadora em todos os momentos nesse retorno
à vida acadêmica. Registro ainda a gratidão a todos os amigos que conheci no Posmex,
uma turma inesquecível e de muita luta. E, por fim, a todos aqueles moradores das
comunidades de Dois Unidos e de Passarinho que colaboraram para responder a cada
pergunta levantada nessa pesquisa. Que esse esforço acadêmico contribua para o
desenvolvimento local da periferia.
RESUMO

Dois Unidos e Passarinho são dois bairros situados na periferia da zona norte do
Recife que são caracterizados por um processo de desenvolvimento local relacionado aos
aspectos de rurbanidade presentes nessa região. A presente pesquisa realizou um
levantamento bibliográfico dos estudos sobre rurbanização, a partir de Gilberto Freyre, e
de desenvolvimento local; construiu uma narrativa da história de ocupação desses bairros,
que tinham inicialmente fortes elementos de ruralidade; e apontou os marcadores de
desenvolvimento local e de rurbanidade, identificados principalmente pelo trabalho do
Espaço Mulher, instituição popular mobilizadora do movimento Ocupe Passarinho. Para
a melhor compreensão do conceito de rurbanização, a pesquisa sistematizou os principais
trabalhos realizados no Brasil e no exterior por autores como Coelho, Matheus, Maia,
Froehlich e Graziano, apontando nesse aprofundamento as diferentes abordagens de cada
estudo. Para traçar se a população local participava, percebia e tinha anseios que
apontavam na direção do desenvolvimento local e da valorização dos aspectos de
rurbanidade, a presente pesquisa entrevistou moradores que integram movimentos
sociais, idosos e universitários, extraindo diferentes olhares e apropriações acerca desse
cenário.

Palavras-chave: Rurbanização, Desenvolvimento Local, Periferia.


RESUMEN

Dos Unidos y Pasarinho son dos barrios situados en la periferia de la zona norte
de Recife que pasan por un proceso de desarrollo local relacionado a los aspectos de
rurbanidad presentes en esa región. La presente investigación realizó un levantamiento
bibliográfico de los estudios sobre rurbanización, a partir de Gilberto Freyre, y de
desarrollo local; construyó una narrativa de la historia de ocupación de esos barrios, que
tenían inicialmente fuertes elementos de ruralidad; y apuntó los marcadores de desarrollo
local y de rurbanidad, identificados principalmente por el trabajo del Espacio Mujer,
institución popular movilizadora del movimiento Ocupe Pasarinho. Para la mejor
comprensión del concepto de rurbanización, la investigación sistematizó los principales
trabajos realizados en Brasil y en el exterior por autores como Coelho, Matheus, Maia,
Froehlich y Graziano, apuntando en esa profundización los diferentes abordajes de cada
estudio. Para trazar si la población local participaba, percibían y tenían anhelos que
apuntaban hacia el desarrollo local y la valorización de los aspectos de rurbanidad, la
presente encuesta entrevistó a moradores que integran movimientos sociales, ancianos y
universitarios, extrayendo diferentes miradas y apropiaciones acerca de ese escenario.

Palabras clave: Rurbanización, Desarrollo Local, Periferia.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Imagem de satélite dos bairros. 48


Figura 2 – Mapa de Passarinho. 49
Figura 3 – Mapa de Dois Unidos. Mapa de Dois Unidos. 50
Figura 4 – Anúncio de leilão. 52
Figura 5 – Anúncio de venda de terreno. 53
Figura 6 – Anúncio de arrematação. 53
Figura 7 – Anúncio de leilão. 54
Figura 8 – Denúncia do perigo da travessia através do jornal. 55
Figura 9 – Registro de instituição educacional. 55
Figura 10 – Imagem do rio Beberibe em 1905. 56
Figura 11 – Anúncio de venda de propriedade rural. 57
Figura 12 – Registro de Roubo de cavalos. 58
Figura 13 – Anúncio solicitando providências. 58
Figura 14 – Prédio da Água Mineral Santa Clara. 59
Figura 15 – Nota da Fábrica de Papel Beberibe ou Indústrias Minerva. 63
Figura 16 – Anúncio da Prefeitura do Recife, em 1973. 65
Figura 17 – Açude da Água Mineral Santa Clara. 69
Figura 18 – Região de sítios no bairro de Dois Unidos. Registro de existência de
densa vegetação em propriedade particular, com o Sr. Amaro. 80
Figura 19 – Região de sítios no bairro de Dois Unidos. Registro de criação de
patos, com a Srª Lourdes. 80
Figura 20 – Quintal agroecológico de uma das integrantes do grupo de mulheres
capacitadas em agricultura urbana pela ONG Casa da Mulher do
Nordeste, em parceria com o Espaço Mulher. 82
Figura 21 – Local que antes era um Ponto Crítico de Lixo, às margens do Rio
Beberibe, nas proximidades do principal pontilhão que liga os
bairros de Dois Unidos e Passarinho. 83
LISTA DE TABELAS E QUADROS

Quadro 1 – Tipos de estudos sobre rurbanização/rubanidades. 35


Quadro 2 – Percepções dos entrevistados sobre as comunidades de Dois
Unidos e Passarinho. 95
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

BNH Banco Nacional de Habitação

Compesa Companhia Pernambucana de Saneamento

CPRH Agência Estadual de Meio Ambiente de Pernambuco

ECO 92 Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o


Desenvolvimento

FAPESP Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

FURB Florestas Urbanas

GATT General Agreement on Tariffs and Trade

IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais


Renováveis

I Idosos

IMS Integrante de Movimentos Sociais

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IDH Índice de Desenvolvimento Humano

IUCN The International Union for Conservation of Nature

OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico

ONG Organização Não-Governamental


MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário

PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

PB Paraíba

RMR Região Metropolitana do Recife

RJ Rio de Janeiro

SDR/MMA Secretaria de Desenvolvimento Rural do Ministério da Agricultura e


do Abastecimento

SEMAS Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade de Pernambuco

SDSMA Secretaria Municipal de Desenvolvimento Sustentável e Meio


Ambiente do Recife

U Universitários

WWF World Wide Fundo of Nature


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................11
1.1 Método e metodologia ...........................................................................................17
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ...............................................................................21
2.1 Rurbanização: de Gilberto Freyre aos dias de hoje ...............................................21
2.2. Do desenvolvimento ao desenvolvimento local ...................................................35
3 PROCESSO DE OCUPAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO ATUAL DOS BAIRROS ..48
3.1 Contexto histórico e econômico do processo de ocupação ....................................50
3.2 Indicadores socioeconômicos e políticos atuais ....................................................66
3.3 Movimento popular “Ocupe Passarinho” ..............................................................69
4 RURBANIZAÇÃO NA PERIFERIA: UM CAMINHO POSSÍVEL PARA O
DESENVOLVIMENTO LOCAL? ...............................................................................733
4.1. Cenários de rurbanidade .......................................................................................75
4.2 Natureza da pesquisa e sujeitos pesquisados .........................................................86
4.3 Características e anseios da população ..................................................................87
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................98
REFERÊNCIAS ..........................................................................................................1011
APÊNDICE A – Roteiro de entrevista com lideranças e participantes de movimentos
sociais dos bairros........................................................................................................1088
APÊNDICE B – Roteiro de entrevista com universitários do bairro ........................10909
APÊNDICE C – Roteiro de entrevista com idosos .....................................................1100
APÊNDICE D – Artigo Científico ..............................................................................1101
ANEXO .........................................................................................................................130
11

1 INTRODUÇÃO

Para compreender o fenômeno do crescimento urbano atual é preciso analisar o


papel exercido pela cidade na modernidade. Ela se expande a partir do período da
Revolução Industrial no mundo desenvolvido, com forte atração do homem do campo
devido ao processo de mecanização agrícola e, na Inglaterra, da Lei dos Cercamentos 1,
dando início a um processo mais forte de proletarização.
Enquanto isso nos países em desenvolvimento a expansão urbana ocorreu com o
modelo de substituição das exportações e com a sua industrialização tardia após a II
Guerra Mundial. Somando-se a esses fatores esteve o rápido crescimento da população,
a oferta de empregos industriais e, paralelamente no campo, esteve o modelo de
concentração de terras atrelado à mecanização, que expulsou o homem do campo. Numa
escala maior de análise está o modelo de desenvolvimento historicamente fundamentado
na má distribuição de renda e nas desigualdades sociais. Nas cidades, esse processo
promoveu mudanças rápidas e, com elas, surgiram inúmeros problemas socioeconômicos
e de infraestrutura.
As indústrias modernas ao mesmo tempo em que atraiam pessoas pela oferta de
trabalho, geravam empregos insuficientes e, nesta realidade, encontra-se o “exército
industrial de reserva”. O homem originário do campo sem a devida qualificação
profissional e sem a empregabilidade no mercado formal ou com baixo padrão de
remuneração ocupava áreas mais distantes do centro das cidades onde o custo da moradia
era mais baixo comparado com bairros que possuíam infraestrutura. O setor terciário, por
sua vez, apontava para um quadro de dificuldades, hipertrofiado e descapitalizado.
Portanto, essa população oriunda do campo ocupa áreas periféricas das grandes
cidades, hoje em sua maioria já classificadas como urbanas, embora sejam percebidas
como últimos espaços com características rurais nas regiões metropolitanas (CRUZ,
1962). Segundo os dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) foi significativo o crescimento da população urbana no País nas últimas décadas
do século XX, quando alcançou 84,4% do total populacional. A explicação é atribuída a
vários fatores, dentre eles, o elevado processo migratório do campo para a cidade,

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1
Com a demanda por algodão para a indústria têxtil os campos foram esvaziados para a criação de ovelhas,
e a população que lá vivia foi expulsa para as cidades com métodos nada idílicos (MARX, [1867], p. 339-
355).
12

conhecido como êxodo rural. A cidade, sem condição de atender a demanda, levou a
expansão acelerada da ocupação habitacional para a periferia tornando possível a
continuidade de certos hábitos do cotidiano rural.
Especificamente, no que diz respeito à Região Metropolitana do Recife2 (RMR)
os dados apontam que dos 15 municípios, três deles: Recife, Camaragibe e Paulista são
100% urbanos. Os demais integrantes da RMR possuem percentuais reduzidos de áreas
rurais. Cabe registrar que os bairros limítrofes dessas três cidades apontadas como
totalmente urbanas são detentores, não apenas de maiores áreas verdes como também de
populações com ligação com o uso da terra para fins agrícolas, devido as suas origens no
campo (CRUZ, 1962). Essa população vivenciou um movimento migratório (êxodo
rural), pelos idos dos anos de 1950 a 1970, quando foi obrigada a migrar para as cidades
em busca de trabalho, ocupando as áreas mais pobres e precárias dos grandes centros
urbanos.
Entre o urbano e o rural, há um intenso debate desses limites, inclusive de forma
conceitual. A partir dos estudos realizados no Projeto Repensando o Conceito de
Ruralidade no Brasil e suas implicações para as políticas públicas de desenvolvimento
rural, Bezerra e Bacelar (2013) discorrem sobre concepções contemporâneas das
ruralidades e acerca das suas singularidades no Brasil, com a perspectiva de contribuir
para a ampliação do debate sobre o lugar e a importância dos espaços rurais brasileiros.
De acordo com as autoras, a definição do que é rural no Brasil é historicamente definida
por oposição e exclusão em relação às áreas consideradas urbanas. Essa conceituação de
rural classifica todo espaço que não corresponde a urbano como rural. Elas avaliam que
essa definição de desprestígio ao rural, levou o País a adotar uma estratégia de
desenvolvimento priorizando sempre que possível a intervenção nos espaços urbanos, em
especial nas metrópoles.
Para propor uma nova definição do que seja rural, Bezerra e Bacelar (2013, p. 72)
fizeram uma vasta pesquisa, analisando a tipificação dos espaços rurais em outros Países,
tanto da América Latina, como da Europa. A revisão do conceito destaca o rural como

–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
2
A RMR é uma divisão geopolítica do IBGE, uma unidade organizacional, geoeconômica, social e cultural
composta por 15 municípios, hoje constituída por Abreu e Lima, Araçoiaba, Cabo de Santo Agostinho,
Camaragibe, Goiana, Igarassu, Ipojuca, Itamaracá, Itapissuma, Jaboatão dos Guararapes, Moreno, Olinda,
Paulista, Recife e São Lourenço da Mata. Para fins de planejamento o Estado de Pernambuco considera
Região de Desenvolvimento Metropolitana. Para maiores informações ver:
http://www.bde.pe.gov.br/estruturacaogeral/mesorregioes.aspx.
13

forma territorial da vida social, ultrapassando dessa forma o olhar apenas economicista
do meio rural enquanto espaço de produção agropecuária. Uma análise que traz como
implicações “a interdependência entre os espaços rurais e as cidades; os traços distintivos
dos espaços rurais são variáveis; e o desenvolvimento rural é um projeto de sociedade”.
Segundo Wanderley e Favareto (2013, p. 415), “o rural não se resume às formas
de produção agropecuária. O rural é um lugar de produção e também um lugar de vida e
de moradia”. O conceito é construído por três pilares: funcional, econômico e social.
Funcionalmente, ruralidade está relacionada a elementos como o lugar, a paisagem e a
sociedade rural; economicamente está ligado ao seu papel de produção, inclusive não-
agrícola; enquanto a construção social do rural trata do papel da identidade cultural na
distinção socioespacial.
Tomando de empréstimo a definição de rural como desenho territorial da vida
social, nos aproximamos do cotidiano rural/urbano (rurbanidade) em periferias de grandes
cidades e, no caso específico, da cidade do Recife. A opção por pesquisar a rurbanidade
surge dos debates dentro de diferentes disciplinas do Programa da Pós-Graduação em
Extensão Rural e Desenvolvimento Local, ao associar que os elementos que marcam esse
conceito estavam presentes nas comunidades em que vivi desde a infância na periferia do
Recife, nos bairros de Dois Unidos e de Passarinho. Além desse aspecto, tenho me
dedicado há alguns anos, enquanto profissional do campo de jornalismo, a realizar
reportagens e coberturas jornalísticas de temas relativos ao urbanismo na cidade do
Recife, em discussões sobre a mobilidade urbana e acerca da construção de espaços
públicos mais humanizados, em que acompanho fortemente a participação dos moradores
em novos movimentos sociais ligados à cidade.
As discussões sobre rurbanidade ganharam maior densidade no País com o
crescimento das grandes cidades, como os estudos de Freyre (1982) que apontavam para
a necessidade de se implantar no País processos de rurbanização, que seria o planejamento
dos espaços urbanos e rurais dentro das cidades. Das proposições iniciais de Freyre,
diversos outros estudos posteriormente discutiram essa relação entre o rural e urbano,
inclusive a situação das comunidades de periferia (GOMES, 2018) e dos resquícios de
rurbanidade dentro das capitais (MAIA, 2000, 2010), como na forma de transporte,
atividade econômica e costumes sociais.
As comunidades de Dois Unidos e Passarinho, escolhidas como objeto desta
pesquisa, são marcadas por aspectos ambientais e culturais, como a presença de grandes
áreas verdes e o convívio com práticas mais típicas do meio rural, como algumas práticas
14

agrícolas nos quintais e, em menor escala, a criação de animais (DANTAS; LIMA, 2017).
Passamos a analisá-los sob a perspectiva de espaços rurbanos, onde está posta uma nova
concepção de rurbanidade, principalmente no que tange aos aspectos da vida social, o que
nos leva a enxergar de forma mais clara resquícios desses elementos imbricados no
cotidiano urbano dessas comunidades.
O debate sobre o que é rural/urbano continua a instigar cientistas a procura da
melhor conceituação que se adapte a dinâmica da realidade posta. Em estudos de Bezerra
e Bacelar (2013) está colocada a pendência entre as especificidades do campo e a cidade
e sugere inclusive uma nova classificação ao IBGE, que considere as diferentes gradações
para classificar uma localidade enquanto rural ou urbana.
Em oposição ao conceito de rural, o urbano é caracterizado pela predominância
de atividades do segundo e do terceiro setor, com uma menor dependência da natureza
(HESPANHOL, 2013). Para o IBGE o critério fundamental escolhido para a classificação
é a densidade demográfica, alinhada com tipologias bem aceitas internacionalmente como
a da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e União
Europeia (IBGE, 2017)3. Reconhece ainda que a definição de uma tipologia rural–urbano
para o recorte territorial municipal denota uma generalização necessária nessa escala de
análise, uma vez que dentro de praticamente todos os municípios brasileiros
encontraremos uma variedade de situações que vão desde os espaços eminentemente
rurais às grandes densidades urbanas.
Bezerra e Bacelar (2013), por sua vez, reiteram que no Brasil a classificação do
que é rural ou urbano do IBGE depende da legislação de cada município. Sendo assim,
toda a população que vive nos perímetros definidos como urbano pela legislação
municipal é classificado também pelo IBGE como urbano. Sendo residualmente
considerados como rurais todos aqueles que estão em áreas externas a esses perímetros
urbanos.

–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
3
Através da utilização da base do estudo Arranjos populacionais e concentrações urbanas do Brasil (IBGE,
2016), partiu-se da premissa de agrupamentos de municípios com sua mancha urbanizada contígua iriam
constituir como uma seção homogênea de atividades urbanas. Sendo assim, foram consideradas as
concentrações urbanas (arranjos populacionais e municípios isolados com mais de 100 000 habitantes), os
arranjos populacionais com contiguidade das manchas urbanizadas (neste caso, os municípios que
pertencem a um arranjo populacional somente pelo critério de deslocamento cotidiano, não foram
considerados), além dos municípios isolados (que não formaram arranjos). A este elemento analítico foi
dado o nome de Unidade Populacional a fim de facilitar a compreensão do trabalho (IBGE, 2017).
15

Para discutir esse entrelaçamento do rural e urbano, com a combinação de


características que são úteis para ambos, evocaremos nessa pesquisa o conceito de
rurbanização, tratado por autores como Gilberto Freyre (1982), em Rurbanização: Que
é? Essa pesquisa propõe um olhar sobre os espaços urbanos que estão em algumas
periferias e que possuem elementos rurais, mas nem sempre são percebidos ou
valorizados pela sua população. E, mais que isso, como esses elementos têm a capacidade
de contribuir para a construção de um tecido “rurbano” de maior dignidade, conforto e
capacidade de desenvolvimento local para seus moradores, quando há a participação
intensa das pessoas na construção de uma alternativa que garanta melhoria de qualidade
de vida e geração de renda.
Os bairros escolhidos para o estudo encontram-se localizados no extremo norte da
capital pernambucana e detêm indicadores que os posicionam entre aqueles mais pobres
da sua periferia e, como diferencial, têm em sua paisagem um reduto do verde urbano,
com a presença de duas reservas de Mata Atlântica. Este aspecto remete a uma
contradição entre a preservação ambiental e a ocupação urbana acentuada e desordenada,
sobretudo, que ocorreu nas últimas décadas.
A discussão acerca do desenvolvimento dessas comunidades perpassa por outros
debates sobre esse complexo e polêmico conceito (SOUZA; RAMALHO; MOTA, 2018).
Desde a compreensão mais tradicional do desenvolvimento caracterizado principalmente
pelo “aumento de produtividade, acumulação de capital e renda real per capita” até as
perspectivas do desenvolvimento como realização das potencialidades humanas,
apresentado por Furtado (1996), ou como forma de liberdade, tal qual proposto do Sen
(2000).
Entre as diferentes perspectivas de desenvolvimento analisaremos à luz dos
estudos de Jesus (2003) a existência do desenvolvimento local nessas comunidades e a
proximidade desse aporte teórico das experiências de rurbanização ou de preservação das
rurbanidades nesses bairros. Do ponto de vista populacional essas comunidades têm algo
em comum posto que foram ocupadas inicialmente, em sua maioria, por famílias
originárias de comunidades rurais do interior do Estado, chegando ao Recife em
movimentos de êxodo rural (CRUZ, 1962). Nas periferias urbanas das grandes cidades
está alocada uma parcela significativa da população brasileira em situação de
vulnerabilidade social. Contribuem para essa realidade fatores como o crescimento da
população e a inflação imobiliária em bairros com melhor infraestrutura nas metrópoles,
realidade que ao longo das últimas décadas induziu a população de baixa renda para
16

buscar moradia em localidades periféricas das cidades, muitas vezes em processos tensos
de ocupação.
Apesar de inúmeras dificuldades inerentes a áreas periféricas urbanas, o Estado
está presente com projetos de infraestrutura urbana. Devido à existência de áreas verdes,
o bairro de Dois Unidos recebeu nos últimos anos alguns investimentos públicos para
replantio de árvores, requalificação de áreas nos seus morros e, mais recentemente, do
Programa Prometrópole4 que visa requalificar as margens do Rio Beberibe, que separa os
dois bairros que são objeto do estudo. Paralelamente, a comunidade de Passarinho passou
por um intenso processo de mobilização política em torno do direito à moradia, com duas
ocupações recentes no bairro. Desse momento político contra a desocupação e
necessidade de moradia nasce o movimento Ocupe Passarinho, inspirado no Ocupe
Estelita5, mas com bandeiras distintas e com uma participação intensa da comunidade
local.
Do processo vivenciado e a partir da orientação da Organização Não-
Governamental (ONG) Casa da Mulher do Nordeste, nasce um projeto de incentivo à
agricultura urbana, que se tornou o tema central de um dos encontros prévios do evento
anual do Ocupe Passarinho em 2016, chamado de Pré-Ocupe. Esse fato despertou nas
mulheres que integram esse movimento o interesse em retomar práticas agrícolas para o
consumo de suas famílias e até para comercialização de excedentes, quando as produções
são um pouco maiores. Esse foi mais um fator relevante que estimulou as práticas
relacionadas à rurbanidade nesta região.
Embora oficialmente sejam consideradas comunidades distintas, a de Dois
Unidos sendo integrante do Recife e a de Passarinho sendo parcialmente de Recife e
parcialmente de Olinda -, há um entrelaçamento da dinâmica social desses bairros, com

–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
4
A Lei nº 17.379/2007 altera dispositivos da Lei nº 16.947 de 08 de janeiro de 2004, alterada pela Lei nº
17.166 de 28 de dezembro de 2005, que criou a estrutura de gerenciamento do programa de infraestrutura
em áreas de baixa renda da RMR - Prometrópole - projeto Recife. Faz parte do Conselho previsto, os
seguintes membros: o Secretário de Saneamento- SESAN; o Secretario de Planejamento Participativo,
Obras e Desenvolvimento Urbano e Ambiental; o Secretário de Finanças; Diretor-Presidente da Empresa
de Urbanização do Recife; e um Vereador, representando a Câmara Municipal do Recife (RECIFE, 2007).

5
O movimento Ocupe Estelita é movimento social e cultural que defende um marco histórico de Recife.
Uma área de cerca de 101,7 mil metros quadrados, com um pátio ferroviário e uma série de armazéns de
açúcar abandonados pelo poder público é um local que faz parte da história de Recife, sendo um dos cartões
postais e espaços públicos que restam na capital pernambucana. E é por isso que um grupo está lutando
para evitar que as construções sejam demolidas por um consórcio de grandes construtoras para construção
de prédios comerciais e residenciais. (BUENO, 2014).
17

circulação diária dos seus moradores, usufruindo de serviços em comum, tais como
transporte, comércio e educação. Cruz (1962), que realizou um vasto estudo sobre a
rurbanidade em Dois Unidos na década de 1960 relatou que desde aquela época havia
uma comunicação intensa dessas duas comunidades e semelhanças socioeconômicas.
Do ponto de vista físico os bairros encontram-se separados apenas pelo Rio Beberibe,
entretanto, as comunidades estão conectadas por pontes e passarelas. No passado, a
maioria dessas passagens eram por pequenas pontes de pedestres construídas com
troncos de árvores, segundo o relato dos moradores mais antigos. Até os anos 1990
algumas dessas travessias permaneciam em uso, fazendo o trânsito de pessoas entre os
bairros.
Neste contexto, a pesquisa tem como objetivo geral analisar o cenário de
rurbanidade, relacionando-o a promoção do desenvolvimento local, nos bairros de Dois
Unidos e Passarinho. Desse objetivo geral decorrem alguns específicos, que dizem
respeito a:
1. identificar os elementos de rurbanidade presentes nos bairros;
2. sondar as concepções que os moradores possuem sobre os aspectos de
rurbanidade da comunidade;
3. analisar a atuação das organizações populares locais em prol da melhoria
da qualidade de vida e geração de renda; e
4. relacionar a experiência de desenvolvimento local e de rurbanidade nessas
comunidades.

1.1 Método e metodologia

A presente pesquisa é orientada pelo método histórico e dialético, partindo do


pressuposto que a realidade do nosso objeto de estudo não é estática, mas bastante
dinâmica, complexa, contraditória e dialética. A pesquisa consiste na investigação da
origem populacional, seus comportamentos, o caminho de formação da comunidade, com
a observação dos processos que levaram a sua organização. E, com as informações,
compreender as possíveis aberturas para o seu desenvolvimento.
De acordo com Lakatos e Marconi (2003, p. 106) o método dialético tem como
característica o fato de penetrar no universo dos “fenômenos através de sua ação
recíproca, da contradição inerente ao fenômeno e da mudança dialética que ocorre na
natureza e na sociedade”. E o método histórico investiga os acontecimentos, processos e
18

instituições do passado com a intenção de analisar a influência que eles têm na sociedade
atual.
Para atender tal objetivo e seguir na direção do método escolhido a metodologia
idealizada consta de três fases. A primeira fase é da pesquisa exploratória, composta
inicialmente de um levantamento bibliográfico em fontes secundárias, como dados do
IBGE, pesquisas em documentos já existentes, pesquisa em jornais do Estado, impressos
e digitais e em fontes primárias, bem como foram obtidos dados em pesquisas de campo,
visando o melhor entendimento da área. Para fundamentar o trabalho utilizam-se os
conceitos de rurbanização, desenvolvimento local e sustentável, e periferia, procurando,
sempre que possível estabelecer o diálogo com a realidade em questão.
O segundo momento diz respeito ao levantamento histórico da comunidade,
realizado por meio da sistematização de outras pesquisas realizadas sobre os bairros, em
um segundo levantamento bibliográfico, e principalmente no trabalho de investigar em
jornais antigos de Pernambuco as menções sobre os Bairros, buscando organizar da forma
mais linear possível os registros antigos de ocupação e crescimento dessas comunidades,
que é pouquíssimo conhecido pelos moradores. Ainda nessa fase foi realizada uma
pesquisa de imagens dos bairros de algumas décadas atrás, do acervo do Museu da Cidade
do Recife e da Villa Digital da Fundação Joaquim Nabuco.
Um terceiro momento da pesquisa se voltará para entrevista semiestruturada (2ª
fase) com a população local. A partir dessas realidades, levantamos alguns
questionamentos: Quais os elementos de rurbanidade presentes nessas comunidades?
Qual o nível de percepção e de apropriação desses elementos pela população local e qual
o valor dado a essa característica? Como tem sido a participação da população local na
promoção ou reivindicação das melhorias socioeconômicas das comunidades? Perguntas
que tiveram como a meta encontrar as respostas para os objetivos da pesquisa por meio
de entrevistas diretas com moradores, por meio da análise de outros estudos acadêmicos
e da observação do que é publicado na imprensa sobre essas comunidades.
O trabalho está organizado em três capítulos. O primeiro trata-se de um marco
teórico voltado para as questões da rurbanização, rurbanidade e desenvolvimento local e
sustentável, sendo frutos de pesquisa bibliográfica. O primeiro tópico apresenta diferentes
olhares ao longo das últimas décadas sobre a rurbanização e a rurbanidade, a partir de
Gilberto Freyre. Propomos uma classificação das diferentes vertentes de estudos que
marcaram as pesquisas sobre rurbanidade e rurbanização. O segundo tópico se deteve às
discussões acerca da construção da ideia de desenvolvimento, com as críticas propostas a
19

este conceito e o seu desdobramento até o desenvolvimento local e sustentável. Há um


esforço em identificar como esses conceitos de rurbanidade/rurbanização e
desenvolvimento local se relacionam com a periferia das grandes cidades.
O segundo capítulo é voltado para a apresentação da comunidade, em especial nos
aspectos de sua formação e do contexto socioeconômico atual. A história dessa ocupação
apresenta os indícios da presença de moradores ainda no final do século XIX, a partir dos
registros coletados em jornais antigos de Pernambuco, uma contribuição bem pouco
conhecida e até então não sistematizada desses bairros, passando pela chegada de várias
instituições que construíram a trajetória mais recente de Dois Unidos e Passarinho. O
segundo tópico deste capítulo se debruça na apresentação dos indicadores que expõem
numericamente os desafios dessas comunidades, como renda, desemprego e escolaridade.
O último aspecto destacado por este capítulo é o movimento Ocupe Passarinho, uma
atuação de resistência dos moradores da comunidade frente a uma ameaça de despejo de
cinco mil famílias após uma ação judicial.
O terceiro capítulo se volta diretamente para a observação dos aspectos de
rurbanidade, para a identificação dos marcadores de desenvolvimento local nessas
comunidades e para a análise da percepção da população acerca dessas duas questões (se
a população percebe os aspectos de rurbanidade em suas comunidades e qual a sua
percepção sobre os marcadores de desenvolvimento local presentes nos bairros). Para
mapear a questão da rurbanidade houve tanto uma pesquisa documental sobre os ativos
ambientais ainda presentes na comunidade e sobre os registros de rurbanidade no local,
como na própria observação das práticas que relacionam a experiência dessa comunidade
com a rurbanidade e com o desenvolvimento local. Um segundo tópico do capítulo é a
apresentação dos resultados das entrevistas semiestruturadas realizadas com
representantes de movimentos sociais, idosos e universitários da comunidade. Trata-se de
uma pesquisa qualitativa, pois este será o modo de identificar e descrever as relações
dessa população com os seus bairros. Esse registro é fruto da observação da rotina dos
moradores, coleta de depoimentos, diário de campo e registro fotográfico. Nas entrevistas,
um dos objetivos foi fazer um resgate da história oral da ocupação e formação da
comunidade a partir do relato de pessoas residentes a mais tempo nas comunidades (que
teve seus registros no segundo capítulo).
Desvendar a experiência de desenvolvimento local associado à valorização da
rurbanidade dessas comunidades de periferia traz uma contribuição para a construção de
novas perspectivas de planejamento urbano para bairros mais carentes das grandes
20

cidades. A presente pesquisa traz uma contribuição a este debate, principalmente frente
aos desafios contemporâneos de promover o desenvolvimento urbano com preservação
ambiental e com sustentabilidade em seus diferentes aspectos. A sistematização da
história dessas comunidades poderá contribuir também para o fortalecimento da
identidade desses bairros e da maior identificação dos moradores com o seu espaço.
21

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 Rurbanização: de Gilberto Freyre aos dias de hoje

O interesse da população urbana pelo resgate ou obtenção de experiências de vida


típicas do campo e da população rural por tecnologias e atividades geralmente
relacionadas às cidades têm levado o poder público e a iniciativa privada a realizarem
investimentos e intervenções que atendam a esses anseios. Nasceram nesse contexto
opções de lazer rurais dentro das cidades, feiras com produtos orgânicos e iniciativas de
agricultura urbana, até mesmo em edifícios de grandes metrópoles. No campo, por sua
vez, o acesso às tecnologias digitais, - interiorização das universidades e o avanço do
emprego não rural ilustra essa mudança em curso. Tais interações entre o campo e a
cidade, planejadas ou não, foram alvo de publicação do sociólogo Gilberto Freyre, ainda
no início da década de 1980, quando analisou as chamadas rurbanidades e os processos
de rurbanização. Décadas antes ele já publicava nos jornais recifenses artigos sobre esses
temas.
O Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa Michaelis Online define rurbano
como um adjetivo com dois significados: O primeiro faz referência ao morador de uma
área rurbana como: “Relativo ou pertencente à área decorrente do encontro entre a área
do campo6 e a da cidade”. E o segundo que define um lugar rurbano como aquele
“Relacionado à área decorrente do encontro entre a área rural7 e a urbana”. Esse conceito,
no entanto, é insuficiente para explicar o que significa rurbano. Os verbetes rurbanidade
e rurbanização estão ausentes do dicionário.
Com a deterioração mais acelerada da qualidade de vida nas grandes cidades, as
iniciativas relacionadas à rurbanização ou ao menos à preservação das características de
rurbanidade nos centros urbanos, uma das preocupações de Freyre (1982), está ganhando
força na sociedade brasileira. O termo “rurbano” que está na raiz dos conceitos

–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
6
O conceito de Campo apresentado pelo dicionário no sentido do texto é o de uma “Região situada fora
dos limites urbanos, distante do litoral, explorada para atividades agropecuárias; zona rural”.

7
O termo rural traz conceitos complementares no dicionário: “Relativo ou pertencendo ao campo;
campestre”; “Que é próprio do campo”; “Aquele que vive ou trabalha no campo”. Há um intenso debate
quando se trata de educação do Campo e Educação Rural, que diferencia esses dois termos para além desses
conceitos, pois associam que o rural adotou ao longo do tempo um sentido pejorativo, de atraso. Na pesquisa
adotaremos ambos como sinônimos, preferindo o uso “rural”, que está na raiz de duas palavras-chaves
rurbanidade e rurbanização.
22

rurbanização e rurbanidade é anterior ao sociólogo pernambucano. De acordo com


Froehlich (2000, p. 9), o sociólogo pernambucano importou e aportuguesou o termo
ruban dos estudos norteamericanos:

A ideia de viver uma "vida mista", de conciliar "contrários" (rural x urbano),


nasce de aceitação da tipologia dualista proposta em termos sociológicos
enquanto ‘Diferenças fundamentais entre o mundo rural e o urbano’, título do
artigo de Sorokin, Zimermann e Galpin, publicado na década de 1930, nos
Estados Unidos. Tratar-se-ia de uma adaptação desta tipologia a situações
"intermediárias", proposta pelo mesmo Galpin através do neologismo
sociológico inglês rurban, que Freyre importou aportuguesando para rurbano,
usando-o pela primeira vez, segundo ele, na obra Sociologia: introdução ao
estudo dos seus princípios (1945). O seu significado é a tentativa de estabelecer
uma mediatriz entre duas situações ou estados polarmente opostos, que seriam
o rural e o urbano. Um estado intermediário que criaria um tipo
psicossocioculturalmente misto, denominado de rurbanita, já que a
rurbanização seria uma concepção.

Rurbanização, no entanto, é um termo criado pelo sociólogo pernambucano


Gilberto Freyre, que dedicou um livro especificamente para tratar desse fenômeno,
Rurbanização: Que é? (1982), discutindo o diálogo e aproximação de elementos
tipicamente urbanos em áreas rurais, e vice-versa. O conceito de rurbanização é
encontrado anteriormente em duas de suas obras clássicas, Casa Grande & Senzala
(1933) e Nordeste (1937). Mais que trazer apenas uma abordagem com foco no meio
ambiente, o sociólogo pernambucano apresenta uma preocupação de como os equilíbrios
e desequilíbrios ecológicos, promovidos pelas relações entre o campo e a cidade,
influenciam na qualidade de vida das pessoas e no seu desenvolvimento social. Para
fundamentar seu pensamento, Freyre fez incursões em várias especialidades, como na
botânica, na patologia, na psiquiatria, entre outras.
O olhar inicial de um contexto de rurbanidade na pesquisa de Freyre recai sobre
Pernambuco, quando ele buscou entender numa mesma lógica as inter-relações da
civilização predominantemente rural e açucareira com uma complementação urbana do
que ele chama de “surtos de desenvolvimento” do Recife e de Olinda. Há que se
considerar uma distância do cenário desenhado por Freyre para a atual realidade recifense
e olindense, já sem a predominância da economia açucareira e com o avançado processo
de urbanização nas cidades. No entanto, guardam ainda em regiões periféricas algum
diálogo de experiências rurais e urbanas, como nos casos de Aldeia (que fica na periferia
de vários municípios da Região Metropolitana do Recife) e do objeto de estudo desta
pesquisa, nos bairros de Passarinho e Dois Unidos, no extremo norte do Recife.
23

Ao refletir sobre as intervenções realizadas por Maurício de Nassau no Recife,


Freyre considerou que foi configurada assim uma antecipação da experiência de
rurbanidade brasileira na cidade ao classificar que o Recife possuía ainda “toscos
ajustamentos rurbanos”, como uma referência a experiência inicial de rurbanização.
Acerca daquele período, ele chamou a atenção para os investimentos do conde alemão,
que trabalhou para a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, na construção de
espaços verdes e naturais na cidade. Ele conceitua a rurbanização como “Um processo de
desenvolvimento socioeconômico que combina, como formas e conteúdos de uma só
vivência regional, [...] valores e estilos de vidas rurais e valores e estilos de vida urbanos.
Daí o neologismo: rurbanos” (FREYRE, 1982, p.57).
Ampliando o entendimento, se o Recife do período do domínio holandês pôde ser
observado como um marco zero da experiência brasileira de rurbanização, o sociólogo
pernambucano destacou também a experiência curitibana, na gestão do prefeito Jaime
Lerner, com planejamento e valorização harmônica dos elementos urbanos e rurais como
o que havia de mais avançado no País. Lerner teve diversas passagens no poder executivo
como prefeito de Curitiba em três mandatos (1971-1975, 1979-1984 e 1989-1993) e como
governador no Estado do Paraná em dois mandatos (1995-1999 e 1999-2003). O referido
projeto mencionado por Freyre (1982, p. 16 e 17) foi na sua gestão entre os anos de 1979-
1983.
A partir da conceituação de Freyre sobre rurbanização e dessa perspectiva de um
planejamento harmônico de convívio entre o rural e o urbano presente na experiência
curitibana, sem esquecer a sua crítica tanto do desenvolvimentismo das “urbanizações
absolutas” como do tratamento do “teluricamente rural”, outros pesquisadores fizeram
reflexões sobre a experiência rurbana em distintas regiões. Essas expressões destacadas,
utilizadas por Freyre (1982, p. 16), se referem respectivamente: a) ao modelo de
desenvolvimento urbano que não considera os ativos ambientais e os aspectos de
ruralidade presentes; e b) ao tratamento romântico ou idealizado dado aos ambientes
rurais, sem considerar os seus desafios e dificuldades da vida e do desenvolvimento do
campo. O modelo de rurbanização pensado e proposto por Freyre não se ancorava nesses
dois extremos de modelos de desenvolvimento, mas de uma experiência que associasse
características consideradas positivas para o desenvolvimento humano e sustentável de
ambos.
Nessa busca sobre o pensamento freyreano acerca da rurbanização, Meucci (2015)
se debruça mais especificamente sobre a temática educacional do sociólogo
24

pernambucano no Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife. Ela discorre


sobre a trajetória do Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife, Educação em
Debate (1957 – 1964), - um braço do Centro Brasileiro de Estudos Educacionais. Ela
trouxe um debate na linha pedagógica, quando abordou as condições de produção a
circulação e a influência das ideias de Freyre no período destacado sobre a sociedade
pernambucana de então.
A autora aponta que a atuação de Freyre se dava em três esferas: a) publicando
artigos em jornais e revistas da época; b) publicando livros; e c) orientando atividades no
Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife. Apesar da importância desse
trabalho na última esfera, foi o menos reconhecido de acordo com a autora. Na direção
desse centro, Freyre defendia uma educação escolar capaz de se adequar às diferentes
formas de vida regional.
Uma das publicações mais antigas relacionando o Recife com a rurbanidade foi
justamente o estudo de Cruz (1962), contemporâneo de Freyre, sobre a comunidade de
Dois Unidos. Da pesquisa foi publicado um livro que demonstrava às práticas agrícolas e
de criação de animais, bem como a origem da população, os seus anseios e as principais
motivações que os levaram a ocupar essa região. O estudo socioeconômico traçou um
cenário do bairro entre as décadas de 1950 e 1960.
Após a publicação de Freyre (1982) que discutiu especificamente a questão da
rurbanização um longo período se passou para que esse conceito ganhasse novas
pesquisas dentro do campo das ciências sociais. De acordo com Froehlich, Monteiro e
Ericeira (2017, p.160), apenas duas décadas após esses estudos iniciais de Freyre, por
volta dos anos 2000, é que a sociologia retomou a rurbanização com o objetivo de explicar
a interpenetração dialética do campo e da cidade e passou a “estabelecer novas pautas de
desenvolvimento, especialmente nos territórios situados nas consideradas periferias
mundiais”.
Desde então, diversos outros pesquisadores tais como Modesto Siebra Coelho
(1999), José Marcos Froehlich (2000, 2017), José Graziano (2001), Maria de Lurdes
Pávoa da Fonseca Roxo Cavado Mateus (2009), Doralice Sátyro Maia (2010), Vargas
López e Romero Pérez (2014) passaram a estudar outros aspectos de rurbanização e
rurbanidade, tanto nos contextos urbanos como nos rurais.
Sobre esses olhares, pode-se dizer que todos referenciam a Freyre, contudo trazem
algumas características distintas, que nos permitirão uma classificação acerca dos estudos
sob cinco ângulos: 1) Rurbanização sob a perspectiva de planejamento de espaços
25

rurbanos, tal como propôs Freyre; 2) Rurbanização a partir do crescimento de moradias


em zonas rurais ou de transição rural-urbano (populações urbanas que migram em busca
de melhor qualidade de vida e realizam uma migração pendular constante para o
trabalho); 3) A inserção ou a identificação da resistência de características do rural no
meio urbano (as rurbanidades na cidade); 4) A inserção de elementos socioeconômicos
tipicamente urbanos no meio rural; e 5) o estímulo à rurbanidade como um elemento para
o desenvolvimento local nas periferias urbanas, com o estímulo a práticas como os
quintais agroecológicos, a agricultura urbana em locais públicos, como hortas
comunitárias, a promoção de um maior usufruto de lazer dos espaços verdes das
comunidades (além da promoção de um possível turismo ecológico nas áreas
preservadas), a preservação de costumes culturais da vida no campo, caso ainda sejam
identificados. Todos esses elementos podem de alguma maneira contribuir para a
melhoria da qualidade de vida e, em algumas situações, para a geração de renda.
Um olhar crítico sobre o aspecto do crescimento urbano descontrolado ficou
evidente nos estudos de diversos autores que se debruçaram sobre a temática da
rurbanização, a exemplo de Coelho (1999, p.3). O autor revelou que o Departamento de
Geociências da Universidade Federal da Paraíba publicou ainda em 1988 (seis anos após
Freyre) os primeiros textos que buscavam discutir a noção de rurbanização.
Naquele período do final dos anos 1980, a noção era de que “a rurbanização
sugeria, mais precisamente, a fixação, nos campos periurbanos de residências de
habitantes da cidade que passam a morar um pouco mais distante, retornando, em razão
do seu trabalho” (1999, p.17). Ele lança um olhar sobre a experiência de transição do
município de Meruoca, no Estado do Ceará, a partir do processo de avanço da mancha
urbana do município vizinho de Sobral. Na ocasião, o objetivo do autor foi analisar, a
princípio, o fenômeno da rurbanização e sua relação com o fenômeno da metropolização
e, ao mesmo tempo, diferenciando-o do processo de formação de subúrbios em regiões
antes rurais.

O espaço rurbanizado não é o subúrbio. Enquanto o subúrbio caracteriza o já


referido desenvolvimento em forma de “mancha de óleo” da cidade, o espaço
rurbanizado se notabiliza pelos níveis de imbricação e de interrelação entre o
espaço rural e o espaço urbano, independentemente da questão da contiguidade
no processo de crescimento da cidade. O espaço rurbanizado pode até estar
distante da cidade. (…) O campo rurbanizado permanece visualmente um
campo pela importância dos espaços agrícolas, pela fraca densidade
populacional e pela baixa presença de equipamentos coletivos. Ela permanece
um espaço rural. (COELHO, 1999, p. 17, 18).
26

Contextualizando, Coelho (1999) aponta alguns elementos que levaram a


Meruoca ser considerada uma região rurbanizada. O primeiro deles foi a procura da
população de alta renda do município de Sobral por um lugar que proporcionasse conforto
ambiental e, nesse sentido, Meruoca foi escolhida para ser um lugar de “segunda
residência” 8. O segundo elemento identificado pelo autor foi o fato da pequena distância
entre as cidades. Seria, pois, um retorno ao cotidiano mais próximo à vida no campo.
Houve a partir dessa vocação, um processo de transformação do espaço ao longo da
estrada Sobral-Meruoca, imbricando o que é rural e urbano.
Nesse processo de rurbanização registrou-se uma tipologia diferente da que ocorre
na área do nosso objeto de pesquisa: a comunidade de Dois Unidos e a de Passarinho.
Entende-se que o caso de Sobral-Meruoca seria um processo de rurbanização semelhante
ao que ocorre em Aldeia, região situada na Região Metropolitana do Recife. A população
que lá está é de classe social alta e uma maior preocupação com os ativos ambientais
motivadores para a reorganização daquele espaço. A partir dessa visão mantém-se na
região um forte ativo ambiental e, de certa forma, há uma valorização por algumas
práticas agrícolas, embora essa não seja a principal motivação desses moradores, nem sua
fonte de renda.
Por outro lado, o interesse por moradia em áreas rurbanizadas, ou seja, lugares
com características rurais em periferias é um dos elementos presentes em diferentes
situações. O êxodo de parcela da população de alto padrão de renda da cidade de Sobral
há quase 20 anos é um exemplo de migração em busca de melhor qualidade de vida. Tal
transformação foi acompanhada de robusto investimento para transformação da antiga
via rodoviária, outrora mal pavimentada numa estrada de qualidade.
O autor registrou que naquela ocasião o poder da população de alta renda no
espaço, tanto em termos econômicos como políticos, possibilitou intervenções aceleradas
em comunidades rurais, resultando em processos de rurbanização distintos daqueles que
acontecem em comunidades de baixa renda.
Situação específica encontra-se na de áreas rurbanizadas periféricas às grandes
metrópoles por população sem qualificação profissional ocupando postos de trabalhos
com baixa remuneração. É uma equação com três elementos postos: falta de qualificação

–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
8
Uso para a família vivenciar nos finais de semana, férias e feriados. Por trás desse uso encontra-se uma
questão de status, uma vez que tais proprietários detêm alto poder aquisitivo na região.
27

profissional, baixa remuneração e menor custo da moradia. Neste caso, dois fatos seriam
indicadores, o baixo valor da compra ou aluguel da moradia ou a mobilização social por
terras desocupadas.
Em qualquer dessas situações uma nova organização do espaço acontece a partir
de uma migração permanente, cuja população oriunda, muitas vezes do campo, em busca
de trabalho e melhor condição de vida.
Acrescenta-se a estes elementos anteriormente citados o fato das dificuldades
financeiras que os levam, na maioria das vezes, em direção à ocupação de áreas carentes,
- sem infraestrutura básica e até então desvalorizadas pelo mercado imobiliário,
justificando o baixo custo do aluguel -, ou ocupação em área de risco. Este seria o caso
da nossa área de pesquisa. Vejamos, pois, que processos diferentes de ocupação podem
sinalizar também resultados muito distintos quanto à manutenção das características
iniciais da região e preservação dos seus ativos ambienteis.
Vários são os processos de reorganização e ocupação do espaço que podem levar
a situação de rurbanização, a exemplo do estudo conduzido por Mateus (2009) quando
observou as ações mutacionais no diálogo entre o rural e o urbano em Coimbra, em
Portugal. A partir da análise específica ela estabeleceu uma classificação para melhor
identificar as dinâmicas acerca da rurbanização de diferentes regiões no entorno de
Coimbra que apresentaram interfaces entre o rural e o urbano. Seriam, pois:
a) a suburbanização (caracterizada pelo espaço próximo do centro urbano, dominado
por um espaço construído com algum grau de degradação urbanística, por vezes
socialmente segregado, onde a distância ao centro é mais sociológica do que física);
b) a periurbanização, espaço morfologicamente heterogêneo, com claros processos de
mutação social e econômica;
c) Rurbanização, campos urbanizados, com áreas construídas, segundo modelos de
arquitetura urbana, intercalados com espaços agrícolas e naturais, estando o seu
desenvolvimento estreitamente relacionado com o centro urbano próximo.
As perguntas iniciais do trabalho de Mateus foram: Como se transformou o espaço
rural envolvente de Coimbra? Que dinâmicas o animaram? Que novas territorialidades se
geram? Após a pesquisa, Mateus (2009) afirmou que o processo de suburbanização se
concretizou na subida da densidade demográfica urbana, nas regiões mais próximas do
núcleo urbano, tais como Santa Clara, Santo António dos Olivais, Eiras e S. Martinho do
Bispo, entre 1960 e 1991. Tais regiões até aquele momento eram caracteristicamente
rurais.
28

Para ela, entre os elementos que contribuíram na aceleração do processo de


periurbanização está a dinâmica de crescimento demográfico9 com a expansão residencial
e a mutação econômica e social. Paralelamente houve melhoria da infraestrutura de
acessibilidades para essa região, a encurtar as distâncias das periferias às áreas mais
centrais da cidade. Como resultado colateral do processo de rurbanização, a autora
apontou a desorganização dentro dessas freguesias periurbanas, caracterizada pelo
trânsito caótico e pela falta de ordenamento da habitação repercutindo na qualidade dos
espaços e nos níveis de conforto dos residentes.
Observa-se que o mesmo conceito foi utilizado em realidades e especificidades
diferentes, ora no interior do Estado do Ceará (expansão de segunda residência por uma
população de alto padrão de rendimento) ora no interior de Portugal (com declínio do
quantitativo populacional, seguido do retorno de portugueses na década de 1970, devido
ao processo de descolonização de espaços africanos e, posteriormente, com a entrada de
Portugal na União Europeia em 1985). Essas perspectivas se aproximam da proposta de
um planejamento rurbano proferida por Freyre.
O outro olhar sobre o tema das rurbanidades diz a respeito aos resquícios de suas
atividades ou características dentro dos ambientes urbanos, tais como apontam os estudos
de Maia (2000, 2010), quando constatou a presença de diversos elementos rurais dentro
da cidade de João Pessoa, capital da Paraíba, e de Froehlich, Monteiro e Ericeira (2017),
que realizaram um estudo de caso no município de Seropédica sobre o transporte de tração
animal em cidades de médio porte.
A presença de elementos e dinâmicas do campo nas cidades é um dos campos de
estudo de Maia (2010), principalmente na cidade de João Pessoa. O olhar da referida
pesquisa se volta sobre a presença de vacas na cidade e a busca por conhecer os currais
(ou subespaços rurais, como vacarias, granjas, sítios) dentro do perímetro urbano da

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9
Alves (2015) aponta que “a população de Portugal estava decrescendo. Houve declínio populacional na
década de 1960, durante a ditadura salazarista. Em 1960, a população de Portugal era de 8,9 milhões de
habitantes e o saldo natural (natalidade-mortalidade) estava acima de 100 mil pessoas por ano. Em 1970, a
despeito do crescimento vegetativo dos anos 60, a população portuguesa caiu para 8,7 milhões de
habitantes, chegando a 8,6 milhões em 1973. Porém, a Revolução dos Cravos, de 25 de Abril de 1974,
mudou a história portuguesa e em 1975 houve a independência das colônias africanas: Angola,
Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau. Com isto houve uma grande volta de
patrícios e a imigração bateu todos os recordes históricos. Em 1980, a população de Portugal tinha subido
para 9,8 milhões de habitantes. Porém, a emigração voltou a subir e, mesmo com crescimento vegetativo,
a população portuguesa ficou estável na década de 1980. Somente depois da constituição da União Europeia
foi que Portugal apresentou elevadas taxas de crescimento e teve saldo migratório positivo”.
29

capital paraibana. O estudo revelou que a permanência de vida rural não apenas enquanto
atividades econômicas, mas também como manutenção de costumes referentes a um
modo de vida rural.

Geralmente dispostas ao longo dos vales dos rios e por detrás das grandes
avenidas, essas unidades de produção, a despeito da constante pressão que a
vida urbana lhes impõe, conseguem manter costumes trazidos da zona rural de
onde foram expulsas, principalmente das regiões interioranas do estado da
Paraíba e de estados vizinhos (Rio Grande do Norte e Pernambuco). Algumas
já vieram de outros bairros da cidade de onde foram tangidas pela especulação
imobiliária. Outros pequenos produtores estão no local desde que para aqui
migraram. A escolha do local dá-se a partir do valor do terreno a ser adquirido
como também da constatação da existência de um grande número de lotes
vazios ou mesmo antes do loteamento da área. (MAIA, 2010, p. 47).

A continuidade, ou como a autora menciona, (2010, p. 55), “a subsistência de


modos tradicionais de vida diante das imposições da vida urbana” possui não apenas
raízes na população, mas também encontram vitalidade em regiões menos valorizadas ou
mesmo em vazios urbanos capazes de sustentar as relações econômicas e culturais. Seus
estudos sobre esse fenômeno estão registrados em sua tese (2000), quando pesquisou
sobre a permanência e as transformações dos costumes rurais em João Pessoa, trazendo
um olhar não apenas das atividades econômicas tipicamente rurais que existiam no espaço
urbano da capital paraibana, mas também, há um olhar sensível acerca das motivações da
manutenção desses costumes rurais na cidade.

Na cidade de hoje, constatamos o predomínio da mercadoria em detrimento


dos costumes e do valor dos costumes que antes caracterizavam o horário, o
espaço e a vida. Quando estudamos os costumes rurais presentes na cidade de
João Pessoa, investigamos as razões pelas quais os seus habitantes ainda
guardam esses costumes. Estes, não entendidos como sobra de uma estrutura
social já extinta, “resíduos do passado”, “antiguidades” ou “sobrevivências”
— interpretações bastante utilizadas durante um certo período nas ciências
humanas, principalmente nos estudos folclóricos — mas enquanto
manifestações culturais em que se denota a prática social, a (re)produção
espacial, a valorização do passado e a interação conflitiva com os setores
hegemônicos. Dessa forma, tratamos os costumes rurais como processo e não
como resultado. Por isso, na nossa análise, há um sentido histórico que se refere
ao seu presente e também ao seu passado. (MAIA, 2000, p. 332).

Essa perspectiva humana, não apenas histórica ou econômica das ruralidades no


meio urbano, nos remete a força dos significados pessoais e familiares na construção da
dinâmica das cidades. Um fenômeno que se manifesta com a continuidade dos costumes
rurais nas cidades, mesmo diante de uma série de fatores hegemônicos do meio urbano
que tendem a sufocar essas práticas sociais.
30

Ampliando a análise da rurbanidade em situações de intensa urbanização, a partir


da continuidade de modos de produzir aspectos sociais e culturais típicos da vida rural,
Froehlich, Monteiro e Ericeira (2017) identificaram a presença expressiva da circulação
de carroças nos perímetros urbanos da cidade de Seropédica, no Rio de Janeiro. Nessa
pesquisa foram mapeados cerca de 60 veículos movidos à tração animal trafegando nas
proximidades da principal via expressa asfaltada do município durante o período de um
ano. Nas entrevistas com os moradores da cidade e com pessoas que frequentavam
Seropédica por necessidades profissionais ou de estudo10, 50% delas usavam as carroças
para fazer deslocamento, 20% como transporte de carga e 30% como veículo de lazer.
Os autores observaram a aceitabilidade desse serviço pela população local, a
percepção da imagem desse tipo de trabalho e, principalmente, a condição de visibilidade
e invisibilidade dos atores que garantem a continuidade dessa prática social e econômica.
Entre as motivações para a continuidade do transporte com tração animal no município
estava a exclusão econômica de certos atores sociais, que se viram diante da necessidade
de criarem alternativa de renda, passando a fazer fretes, levar lavagem para os animais,
entulhos, dentre outras funções. Porém, a pesquisa identificou também que “há nestas
invenções ou recriações a permanência não apenas de gostos e emoções ligadas à vida
rural, como também o valor da resistência cultural”, como apontam Froehlich, Monteiro
e Ericeira (2017, p. 168). Em outras palavras, há aspectos culturais, econômicos e sociais
que envolvem a persistência dessa atividade em um meio urbano.
Assim tanto a permanência das vacarias na cidade de João Pessoa, PB, como o
transporte com tração animal em Seropédica, RJ, são resquícios de ruralidade no meio
urbano. Conclui-se que as realidades postas caracterizam a rurbanidade ora por meio das
atividades econômicas rurais na cidade, ora da permanência da população de origem
interiorana e rural moradora e trabalhadora no meio urbano e, de certa forma, a luta pela
permanência de costumes do campo, mesmo diante de toda a pressão “modernizante” das
cidades.
Outro estudo vem colaborar com o olhar sobre a inserção ou desenvolvimento de
elementos tipicamente urbanos em meios rurais. Essa é uma das tônicas das pesquisas do
projeto Rurbano, que foi coordenado por Graziano da Silva (2001). Essa iniciativa,

–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
10
A Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro é uma universidade federal brasileira localizada no
município de Seropédica, no km 7 da BR-465, no Rio de Janeiro. (UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL
DO RIO DE JANEIRO, 2019).
31

apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), por meio
do programa de Núcleos de Excelência e pela Secretaria de Desenvolvimento Rural do
Ministério da Agricultura e do Abastecimento (SDR/MMA), teve três fases, começando
em 1997; tendo um segundo momento iniciado em 1999; e a sua última fase no ano 2000.
A primeira fase (1997) tinha como meta retomar e sistematizar os dados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) para apresentar o cenário da
população rural e do campo brasileiro. Naquele momento foi diagnosticado um
crescimento dessa população na década de 1990 (0,5% ao ano) e uma mudança de cenário
com a existência e o aumento de atividades econômicas não agrícolas, sendo responsável
na época por ocupar 30% da população rural.
O segundo período (1999), apenas dois anos depois, da pesquisa Rurbano apontou
para o fato da agricultura e da pecuária terem perdido espaço para a criação de animais
exóticos, e mais nobres, que tinham como destino a comercialização para a agroindústria,
os restaurantes e para as redes de supermercados. Atividades que não eram tipicamente
rurais, como o “pesque-pague”, a construção de condomínios de classe média e alta nessas
regiões antes agrícolas e o turismo rural são algumas das novidades reveladas na segunda
fase desse estudo.
A terceira fase do Projeto Rurbano (2000) aprofundou o conhecimento sobre o
novo rural brasileiro, se direcionando então para uma análise sobre a influência das
transformações no campo brasileiro no meio ambiente e no cenário do emprego e renda,
como a importância das aposentadorias e pensões na composição de renda familiar, a
abertura de oportunidade de trabalho com o crescimento das agroindústrias e até mesmo
de atividades ligadas ao turismo e lazer rural, que passaram a demandar outros tipos de
profissionais ligados a esses segmentos. Graziano da Silva (2001) quebra uma série de
mitos acerca da vida e da dinâmica socioeconômica do meio rural brasileiro. O rural
menos agrícola revelado pelo autor é o sinal da chegada de novas atividades econômicas
no campo.

Mostramos que o rural não se opõe ao urbano enquanto símbolo da


modernidade. Há no rural brasileiro ainda muito do atraso, da violência, por
razões em parte históricas, relacionadas com a forma como foi feita a nossa
colonização, baseada em grandes propriedades com trabalho escravo. Mas há
também a emergência de um novo rural, composto tanto pelo agribusiness
quanto por novos sujeitos sociais: alguns neo-rurais, que exploram os nichos
de mercados das novas atividades agrícolas (criação de escargot, plantas e
animais exóticos etc.); moradores de condomínios rurais de alto padrão;
loteamentos clandestinos que abrigam muitos empregados domésticos e
aposentados, que não conseguem sobreviver na cidade com o salário mínimo
32

que recebem; milhões de agricultores familiares e pluriativos, empregados


agrícolas e não-agrícolas; e ainda milhões de sem-sem, excluídos e
desorganizados, que além de não terem terra, também não têm emprego, não
têm casa, não têm saúde, não têm educação e nem mesmo pertencem a uma
organização como o MST para poderem expressar suas reivindicações.
(GRAZIANO, 2001, p. 37).

A pesquisa Rurbano teve ainda uma quarta fase (2005), que se desdobrou já sem
a coordenação de José Graziano11. Com um grupo menor de pesquisadores e agora com
o apoio do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o projeto trouxe como foco
de análise a pobreza rural e o autoconsumo, que até então era uma renda invisível, embora
fundamental para a segurança alimentar da população. A análise comparativa envolvia a
segurança alimentar em duas situações distintas: municípios que tinham como principal
atividade econômica a agrícola e àqueles que estavam mais alinhados à atividade
industrial (IZIQUE, 2012). Essa última fase revelou que o autoconsumo era uma prática
em 11,1% dos domicílios rurais e urbanos, sendo uma renda até então invisível e
contribuía para a segurança alimentar das populações em situação de vulnerabilidade
social. Também foi realizada uma radiografia da pobreza da população agrícola, seja de
moradores do campo ou das cidades. O estudo apontou que a insegurança alimentar era
maior com a população que vivia nas áreas urbanas de pequenos municípios.
Dando continuidade a estudo de cenários rurais López, Vargas e Romero Perez
(2014) investigaram as transformações na arquitetura rural a partir dos aspectos da
viviendas vernáculas, que são construções tradicionais e com maior resistência às
mudanças ao longo do tempo, na região de Chilapa de Álvarez (Guerrero, México). Os
pesquisadores identificaram o surgimento de elementos de evolução no espaço físico,
como uma “nueva concepción del hábitat originado en el cambio generacional, social y
de actividades económicas” (ibid., p. 163). Nesse aspecto, as evidências apontaram para
mudanças não apenas nas atividades econômicas, na arquitetura da região e no processo
de transformação da rurbanização, mas, sobretudo influenciaram fortemente nos
costumes e comportamentos da população.

Los patrones de transfiguración en la vivienda vernácula son evidentes en el


espacio habitable. El proceso de rururbanización juega un papel importante
como catalizador. Así, la infraestructura carretera, la globalización –social,
cultural, económica y política–, la migración y el ‘estatus’ constituyen los

–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
11
O Graziano se afastou do projeto devido ao seu envolvimento com o Ministério Extraordinário de
Segurança Alimentar (Mesa) em 2003.
33

aspectos que generan el cambio. (LÓPEZ; VARGAS; ROMERO PERES,


2014, p. 181).

Especificamente, os autores apontaram ainda que a relação entre o campo e a


cidade trouxe uma série de intervenções na construção dessas habitações, com mudanças
nos materiais usados e no desenho das edificações. O exemplo da arquitetura dos quartos
redondos e pátios amplos, que eram característicos das construções tradicionais perderam
espaço na nova realidade de muitas comunidades em Chilapa de Álvarez e em outras
comunidades vizinhas. As evidências apontaram, pois, a influência econômica urbana
sobre o meio rural através de novos valores introjetados na cultura levando, não apenas a
perda da identidade de alguns costumes, mas também a questão do status atribuído às
construções com elementos mais urbanos.
Vê-se, pois, a riqueza da temática rurbanidade quando existem tantos olhares
quanto forem os questionamentos e os observadores. As várias abordagens têm suas
particularidades aproximando-se em determinados aspectos ou distanciando-se noutros
guardando entre si a mesma raiz, ou seja, as mudanças e permanências nas relações entre
o urbano e o rural. Esse aspecto difere daquele tratado por Freyre (que analisou o
planejamento do rurbano), de Coelho e de Mateus (que observaram a migração da
população urbana com objetivo de moradia em regiões rurais próximas das cidades) e de
Maia e Froehlich (que estudaram os resquícios de ruralidade nas cidades).
Além desses quatro olhares acerca de tipologias de rurbanização e rurbanidade
pesquisadas: 1) da perspectiva de planejamento rurbano tratado por Freyre; 2) da análise
do crescimento de moradias em zonas rurais ou de transição rural-urbano pelas
populações urbanas em busca de qualidade de vida abordada por Coelho e de Mateus; 3)
da identificação e análise de resquícios de ruralidade na cidade trabalhada por Maia e
Froehlich e; 4) da identificação das transformações no meio rural a partir da influência
urbana apontada por López, Vargas e Romero Peres e Graziano da Silva; há uma quinta
perspectiva que observa a valorização dos elementos de rurbanidade ou mesmo de um
processo de rurbanização como caminhos de desenvolvimento local para as periferias
urbanas. Essa é a perspectiva observada nos estudos de Gomes (2018, p. 37), quando
analisa a comunidade do Morro da Conceição, também periferia da zona norte do Recife,
como um bairro que tem origem a partir da população rural, vinda do êxodo de décadas
atrás.
A partir de alguns elementos de rurbanidade, a pesquisa aponta o desenvolvimento
local promovido pela festa popular das quadrilhas juninas, a partir do estudo da Quadrilha
34

Junina “Tradição Nordestina”. A autora conclui que o Morro da Conceição é formado por
cenários rurbanos posto que haja o “uso de carroças com cavalos, a conversa nas portas
das calçadas ou nas escadarias, e as festas religiosas tão características das cidades
rurbanas”. Conclui que o aspecto cultural rurbano é importante para o desenvolvimento
local, gerando renda, promovendo a valorização do endógeno, e ponto de partida para a
realização de parcerias público-privadas e da participação popular.
Esse olhar estaria inserido entre a perspectiva de observar a rurbanização como
um elemento de desenvolvimento e, paralelamente, da contemplação da permanência dos
elementos de ruralidade nas cidades. Nesse sentido, o trabalho de pesquisa aqui proposto
toma de empréstimo esta abordagem para as experiências dos bairros de Dois Unidos e
de Passarinho, relacionando a rurbanidade e rurbanização como elementos no processo
de desenvolvimento local.
Como indicadores de rurbanidade dentro dos espaços urbanos, podemos apontar
três deles. O primeiro é o humano, através da presença de parte da população de origem
rural, seja vinda diretamente da vida do campo no interior do Estado, seja descendente de
retirantes a partir do êxodo rural ocorrido no Brasil décadas atrás. Esse segundo perfil é
o mais comum de ser encontrado nos bairros de Dois Unidos e de Passarinho, tendo sido
identificados inclusive famílias que tiveram seus antepassados oriundos de indígenas e
ex-escravos.
O segundo indicador de rurbanidade na cidade diz respeito à manutenção de
práticas ou costumes tipicamente rurais, tais como, atividades agrícolas, de pequenos
plantios (em quintais produtivos ou por meio de espaços comunitários), criação de
animais, uso de modos de transporte (tais como uso de carroças ou mesmo de animais,
como cavalos, nos deslocamentos), festividades e outras atividades culturais típicas do
meio rural.
O terceiro indicador seria a própria paisagem do lugar, visto que alguns dos
bairros, principalmente aqueles localizados na periferia, guardam ainda vastas áreas
verdes, com menor intervenção humana, como nos meios rurais e espaços destinados à
agricultura urbana e criação de animais. Esses marcadores de ruralidade observados em
áreas periféricas de cidades estão presentes em três tipologias identificadas nos estudos
de rurbanização e de rurbanidade mapeados.
Enquanto no caso do Morro da Conceição é a questão cultural (da festividade e da
dança), o elemento mais forte de ruralidade dentro dessa comunidade, nos bairros de Dois
Unidos e Passarinho são os aspectos ambientais e a manutenção de algumas práticas
35

agrícolas nos quintais e sítios como pontos fortes que as caracterizam como rurbanas.
Embora não haja um indicador oficial do percentual de moradores com origem de
comunidades rurais de áreas do interior, em ambas as pesquisas acadêmicas a observação
de campo apontou que uma parcela significativa da população tem origem nos
movimentos de êxodo rural vividos na região Nordeste décadas atrás.
A abrangência da temática vai mais além com novos questionamentos dependendo
dos observadores. Entretanto, para esta pesquisa estão postos alguns estudos acerca de
rurbanização e rurbanidades, conforme o quadro abaixo.

Quadro 1 – Tipos de estudos sobre rurbanização/rubanidades.

TIPOS DE ESTUDOS SOBRE RURBANIZAÇÃO/RURBANIDADES


(Autores)

Rurbanização: uma perspectiva de planejamento regional


(Gilberto Freyre)
Rurbanização: a experiência do
Percepção da permanência dos
crescimento das novas moradias em
elementos de ruralidade em contextos
zonas rurais ou de transição rural-
urbanos
urbano
(Doralice Sátyro Maia)
(Modesto Siebra Coelho)
(José Marcos Froehlich)
(Maria de Lurdes Roxo Mateus)
Rurbanização e preservação valorização
dos elementos de rurbanidade na
Inserção de elementos e atividades
periferia urbana relacionados com o
tipicamente urbanas no campo
desenvolvimento local
(José Graziano)
(Giselle Gomes)
(López, Vargas e Romero Perez)
(Rafael Dantas, Rita Domingues e Irenilda
Lima)
Fonte: Elaboração do autor, 2019.

A partir do estudo desses autores a análise avança em direção à investigação dos


elementos de rurbanidade dos bairros de Dois Unidos e Passarinho buscando entender a
relação deles com as categorias do desenvolvimento local. Dessa forma a discussão
avança acerca de diferentes conceitos de desenvolvimento.

2.2. Do desenvolvimento ao desenvolvimento local

Buscar o desenvolvimento é uma constante na maioria dos Países, principalmente


do Mundo Ocidental. Inicialmente atrelado estritamente à questão econômica – da
36

produtividade, industrialização e acúmulo de riquezas – esse termo ganhou outros


contornos mais complexos ao longo dos anos. Mas afinal, o que é desenvolvimento?
De acordo com Esteva (2000, p.62), nenhum outro conceito contemporâneo
possui uma força para influenciar a nossa forma de pensar, bem como os comportamentos
humanos. Antes de ser utilizado dentro do campo semântico em que o conhecemos
atualmente, esse termo teria vindo de uma metáfora biológica que relacionava o
desenvolvimento ou a evolução dos seres como um “processo através do qual os
organismos atingiam seu potencial genético: a forma natural daquele ser, prevista pelo
biólogo”.
Quando o ser vivo não chegava ao patamar esperado ele era considerado uma
anomalia. Fazendo as devidas comparações com o que conhecemos sobre
desenvolvimento, aqueles países apontados como subdesenvolvidos ou em
desenvolvimento seriam os que de alguma forma fracassaram. De acordo com o Esteva
(2000, p. 62), ainda nos séculos 18 e 19 a concepção de desenvolvimento passa a ser de
um “movimento na direção de uma forma sempre mais perfeita daquele mesmo ser”. E
os cientistas daqueles séculos começam a tratar como sinônimos os termos
desenvolvimento e evolução. Essa metáfora biológica é assimilada dentro da esfera social
e cria o desenvolvimento tal qual conhecemos hoje e seu derivado, o subdesenvolvimento.
O autor afirma que as metáforas utilizadas no século XVIII em volta do termo
desenvolvimento passaram a se consolidar como uma linguagem popular no século
seguinte, assumindo significados diferentes e até imprecisos. No século XX um novo uso
da palavra esteve relacionado ao desenvolvimento urbano12 e na terceira década deste
século houve um desdobramento do termo com desenvolvimento colonial, a partir da
criação da Lei de Desenvolvimento das Colônias, criada pelo governo britânico em 1939.

A palavra sempre tem um sentido de mudança favorável, de um passo do


simples para o complexo, do inferior para o superior, do pior para o melhor.
Indica que estamos progredindo porque estamos avançando segundo uma lei
universal necessária e inevitável, e na direção de uma meta desejável.
(ESTEVA, 2000, p. 64).

–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
12
Neste ponto não se aborda o surgimento do urbano, mas do conceito de “desenvolvimento urbano”. Um
desdobramento do conceito de desenvolvimento.
37

Esteva (2000, p. 65) afirma ainda que esse conceito nunca conseguiu se dissociar
de termos que se aproximam da sua origem, tais como crescimento, evolução e maturação.
De forma irônica ele descreve que desenvolvimento ganha um contorno quase que mágico
que irá “solucionar todos os mistérios que nos rodeiam ou, pelo menos, que nos irá guiar
até essas soluções”.
Avançando no entendimento Montenegro Goméz (2005) ressalta que a
inauguração do termo desenvolvimento como instrumento de dominação, impunha um
modelo a ser seguido pelos países, aconteceu em um discurso do presidente dos Estados
Unidos Harry S. Truman13, no dia 20 de janeiro de 1949. A busca do “melhor mundo
possível” assinalada no discurso do presidente americano apontaria as políticas
econômicas que conduziram o mundo nas décadas seguintes.

Truman estabelece os fundamentos de um instrumento que reforçará as


estratégias de controle social existentes e estabelecerá uma nova geografia
política: a divisão do mundo em países desenvolvidos e subdesenvolvidos; a
consolidação de um modelo de “desenvolvimento” à imagem e semelhança dos
países desenvolvidos, que os subdesenvolvidos deveriam seguir; e, a direção
de todo o processo nas mãos dos organismos internacionais de controle (Banco
Mundial, Fundo Monetário Internacional, Organização das Nações Unidas,
etc.), dominados pelos países desenvolvidos (com os Estados Unidos na
frente). De forma resumida, esses fundamentos, que aquele discurso seminal
propunha, ainda hoje conformam as bases do mito/espectro/crença do
“desenvolvimento”. (MONTENEGRO GÓMEZ, 2005, p. 54).

Niederle e Radomsky (2016) reiteram que o conceito de desenvolvimento tal qual


conhecemos hoje ganhou mais relevância após a Segunda Guerra Mundial. Em busca de
uma estabilidade econômica em prol do crescimento da economia, surgiram naquele
período organismos internacionais tais como a Organização das Nações Unidas (ONU)
em 1945 e o Banco Mundial (1944), além de serem firmados vários acordos comerciais
internacionais dentro do âmbito do Gatt14 em 1947, atual, (OMC) Organização Mundial
do Comércio (1995).
Pode-se observar historicamente o progresso dos significados. De acordo com
Furtado (1980) por um lado o desenvolvimento está associado à produtividade,

–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
13
Após a Segunda Guerra Mundial a geopolítica apontou a existência de dois blocos: capitalista e socialista.
Tal situação da pré-Guerra Fria levou o presidente americano, Truman como representante da nação
hegemônica dos países capitalistas a estabelecer estratégias econômicas, diplomáticas e militares para
impedir a expansão do socialismo, especialmente em nações capitalistas consideradas frágeis.
14
Gatt é o "General Agreement on Tariffs and Trade”, que em português significa Acordo Geral de Tarifas
e Comércio.
38

acumulação de riquezas e a alta produtividade da força de trabalho, logo há uma


perspectiva inicial relacionado à economia. Um segundo viés está mais relacionado ao
atendimento das necessidades humanas na sociedade, portanto, mais conectado à questão
social. É importante ressaltar que nesses dois olhares iniciais acerca do desenvolvimento
estaria ausente ainda a preocupação com a questão ambiental, que só surgiria
posteriormente com o desdobramento desse conceito na direção do desenvolvimento
sustentável nos anos de 1970.
Um dos pensadores que aponta um caminho para o desenvolvimento dentro da
perspectiva da produtividade, com uma orientação para conduzir os países em
desenvolvimento para o modelo de consumo dos países desenvolvidos, é Walt Whitman
Rostow (apud CONCEIÇÃO; OLIVEIRA; SOUZA, 2016). Para ele o conceito de
desenvolvimento era ancorado no crescimento econômico e só seria alcançado mediante
a industrialização, que remetia a chamada modernização. Segundo Conceição, Oliveira e
Souza (2016), Rostow propunha uma alternativa de crescimento à teoria marxista. As
etapas de desenvolvimento proposto por este autor estão descritas em sua obra The Stages
of Economic Growth: A Non-Communist Manifesto.
As etapas de desenvolvimento segundo Rostow seriam: 1) Sociedade tradicional
(consiste num modelo econômico rudimentar, com objetivo de garantir a subsistência
através de atividades agrícolas); 2) As precondições para o arranco ou a decolagem –
(versa no primeiro estágio de transição. No esforço por romper as limitações da primeira
etapa, há um aumento da especialização do trabalho e os primeiros passos de um processo
de modernização tecnológica); 3) O arranco (já sem os bloqueios enfrentados pela
segunda etapa, se acelera o fomento à industrialização e também é caracterizada pela
migração de mão de obra rural para o segundo setor); 4) A marcha para a maturidade
(período marcado pelo avanço do uso de tecnologias modernas acontece simultaneamente
o incentivo à produtividade e a corrida pela diversificação de produtos. Segue-se o
processo de redução de necessidade de mão de obra no campo e o fenômeno da
especialização dos profissionais que atuam nos grandes centros urbanos); e finalmente
chegaríamos a 5) Era do consumo em massa (frente à ampliação da renda há um estímulo
ao sistema econômico ancorado no consumo intensivo. Rostow considera que a
consequência disso seria uma intensificação da busca por mais distribuição de renda).
Segundo Conceição, Oliveira e Souza (2016, p. 15), um dos problemas da
concepção de desenvolvimento de Rostow está no fato dele sugerir que “os países
subdesenvolvidos chegariam ao desenvolvimento seguindo idêntica trajetória de
39

modernização”. Não são consideradas as diferenças ambientais, culturais e históricas que


marcaram a trajetória de cada país, além dos próprios objetivos e prioridades de cada
lugar. Ele avalia o subdesenvolvimento apenas como uma fase atrasada desse processo
de crescimento e progresso que aconteceria no mundo inteiro. Outro fator destacado por
Rostow é que para impulsionar esse modelo de desenvolvimento deve-se considerar que
as economias mais desenvolvidas contribuiriam para o progresso das nações
subdesenvolvidas através de empréstimos e auxílio técnico. Nessa lógica, o
desenvolvimento seria impulsionado por um fator externo, uma concepção diferente do
que pensam autores que discutem o desenvolvimento local, que veremos mais à frente.
Ao analisar a literatura do século XX sobre o desenvolvimento econômico,
Furtado (1980) afirmava ser um mito o pensamento de que o modelo praticado pelos
países que lideravam a revolução industrial poderia ser universalizado, estendendo os
padrões de consumo da minoria da humanidade que vive nas nações desenvolvidas com
avançado processo de industrialização para as grandes massas da população do então
chamado terceiro mundo. Além de considerar esse pensamento universal do
desenvolvimento como um mito, ele aponta que se todos os países alcançassem a forma
de vida dos ricos, o sistema econômico mundial entraria em colapso não apenas pela
pressão sobre os recursos não renováveis, mas também pela poluição ambiental gerada
por esse padrão de consumo.
Avançando a análise Vargas, Aranda e Radomsky (2016) afirmaram que a
perspectiva de finitude dos recursos naturais e as injustiças sociais que foram promovidas
pelo modelo de desenvolvimento econômico vigente desde a década de 1960 constituíram
o pontapé inicial das discussões em torno do conceito de desenvolvimento sustentável,
que, por sua vez, possui olhares distintos entre os países desenvolvidos e àqueles
classificados como subdesenvolvidos.
O evento emblemático para o nascimento do conceito de desenvolvimento
sustentável é o Clube de Roma, que aconteceu em 1972. Dessa reunião, que aconteceu
em Estocolmo, uma equipe do Massachussets Institute of Technology construiu o estudo
“Limites do Crescimento”, também conhecido como Relatório Meadows, que defendiam
uma abordagem unificada para tratar das questões do desenvolvimento e o meio ambiente.
Três meses após aquela publicação sucedeu a reunião da Organização das Nações Unidas
sobre meio ambiente que teve como temáticas centrais o crescimento econômico,
desenvolvimento e proteção ambiental.
40

Dentro daquelas discussões chegou-se ao conceito de desenvolvimento


sustentável.15 A expressão desenvolvimento sustentável surgiu pela primeira vez em
1980, no documento denominado, World Conservation Strategy, produzido pela The
International Union for Conservation of Nature (IUCN) e World Wildlife Fund, hoje
World Wide Fundo of Nature (WWF). Na conferência das Nações Unidas sobre o Meio
ambiente e Desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro em 1992 foi denominada como
Cúpula da Terra. Naquele momento consagrou as linhas-mestras do relatório da Comissão
de Brundtland, “Nosso futuro comum” mencionando explicitamente, entre outras
questões, que o desenvolvimento sustentável é o planejamento da vida e, dessa forma,
deve assegurar um ambiente saudável e seguro para a atual e futuras gerações e uma
economia sólida (BARBIERI, 1997, p. 26-27).
A organização desse documento foi um dos passos importantes da discussão em
torno do desenvolvimento sustentável, tendo sido fruto do trabalho da Comissão Mundial
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, criada pela ONU em 1983, chefiada então pela
primeira-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland. Esse relatório traz o seguinte
conceito sobre o desenvolvimento sustentável:

O desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do


presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a
suas próprias necessidades. Ele contém dois conceitos-chave: o conceito de
necessidades essenciais dos pobres do mundo, que devem receber a máxima
prioridade; e a noção das limitações que o estágio da tecnologia e da
organização social impõe ao meio ambiente, impedindo-o de atender às
necessidades presentes e futuras. (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO
AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1988, p. 46).

Complementando a discussão muitos foram os autores que pensaram o termo


desenvolvimento sustentável, a exemplo de Milanez (2003) quando concordou que o
termo nasceu em resposta ao agravamento dos desequilíbrios ambientas, frutos de uma
agenda de crescimento econômico predatória, sendo definido como “aquele que atende
as necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das gerações futuras
atenderem a suas próprias necessidades”.
Ao refletir sobre a Agenda 21, documento construído na Reunião da ECO-92,
Milanez (2003) destacou a relevância da participação local na construção de uma

–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
15
O entendimento de ecodesenvolvimento aos poucos foi substituído por desenvolvimento sustentável,
como informa Sach (1993. p .2 apud BARBIERI. 1997. p. 23).
41

sociedade que se projete para um modo de vida e de produção mais sustentável como
parte da cooperação internacional

Surge com mais intensidade a importância dos governos locais na construção


de suas próprias agendas 21. Isso dá continuidade à afirmação de que o
Desenvolvimento Sustentável requer um sistema político que assegure a
efetiva participação dos cidadãos no processo decisório. (MILANEZ, 2003, p.
78).

No entanto, ele ressaltou que no marco dos dez anos após a Reunião ECO-92 o
desequilíbrio planetário se agravou, não apenas com a manutenção dos problemas vistos
na década de 1990, mas também com a insistência dos países em não assumirem
compromissos em questões como a substituição de combustíveis fósseis, redução do
crescimento, reconhecimento de direitos sobre a biodiversidade e aumento dos
financiamentos aos países pobres.
Milanez (2003, p. 81) reitera que o Desenvolvimento Sustentável tem quatro
facetas: a ambiental, a social, a econômica e a cultural. Ele avalia, porém, que a última
delas é relevante e complexa, uma vez que envolve a sociedade com “os sistemas de
valores, as estratégias de produção, as formas de lazer”, entre outros elementos que
movem todo o processo de desenvolvimento. O caminho apontado pelo autor para se
atingir o desenvolvimento sustentável culturalmente é através de uma educação que
desenvolva indivíduos “críticos, criativos e cooperativos”. Essa consideração parte do
pressuposto de que se não for transformada a mente do indivíduo que cresceu imerso dos
valores da sociedade capitalista, não seria possível modificar a relação entre o homem e
a natureza.
Apesar de avanços em relação ao conceito tradicional de desenvolvimento,
Mazzeto (2012) apontou contradições no Relatório de Brundland quando o documento
não fez uma crítica acerca do padrão de consumo elevado adotado pelos países
industrializados. Seria, para ele, uma defesa tímida de um modelo de desenvolvimento.
No entanto, ele reconheceu a importância daquele documento para pavimentar um
caminho diplomático de proposta de uma nova política global com uma perspectiva de
sustentabilidade. Mesmo diante das críticas às limitações impostas pelo sistema
capitalista ao desenvolvimento sustentável, Mazzeto (2012) ressaltou que nas últimas
décadas, apesar do reconhecimento de sua necessidade não houve uma transformação do
modelo de desenvolvimento, e sim, apenas uma atuação para tornar a sociedade menos
predatória ambientalmente.
42

Nos limites dados por esse contexto, o consenso em torno do desenvolvimento


sustentável é a saída para os impasses atuais deste sistema de produção de
mercadorias, mas não para reformular a relação com a natureza, nem para
construir possíveis sociedades sustentáveis. (MAZZETO, 2012, p. 209).

Outro autor que trouxe, no início do Século XXI, uma concepção mais
humanizada e distante daquele modelo inicial de desenvolvimento foi Sen (2000, p. 10):
“o desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam as
escolhas e oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente sua condição enquanto
agentes de sua própria mudança”. O conceito está relacionado às pessoas e ao processo
de mudanças e não nas transformações em si. Sen, que foi um dos responsáveis pela
proposição da criação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), propõe uma
abordagem que é também econômica, mas não essencialmente econômica sobre o
desenvolvimento.
Para ele é após desprender os indivíduos das privações que impedem o fluir de
suas capacidades que se torna possível impulsionar quaisquer processos de
desenvolvimento. Sua perspectiva é de que primeiro acontece a formação das capacidades
humanas para que a população tenha condições de construir a própria melhora da
condição de vida humana. O reconhecimento do papel dos indivíduos na construção do
desenvolvimento vista em Jesus (2003) e em Sen (2000) nos leva a outro desdobramento
desse conceito que é o de desenvolvimento local.
O desenvolvimento local seria, segundo Jesus (2003), “um processo que mobiliza
pessoas e instituições buscando a transformação da economia e da sociedade local,
criando oportunidades de trabalho e de renda, superando dificuldades para favorecer a
melhoria das condições de vida da população local”. Sob esse ponto de vista,
desenvolvimento não está atrelado simplesmente a crescimento econômico, atração de
investimento e geração de postos de trabalho, mas traz uma perspectiva humana e de
dignidade social sustentável, conforme define o próprio conceito de desenvolvimento.
Jesus (2003) apontou que o nascedouro desse conceito de desenvolvimento local
está assentado nas últimas décadas do século XX. O contexto desse nascimento são as
consequências negativas do intenso processo de globalização. Sua formação é uma
antítese aos modelos de desenvolvimento com forças muito mais exógenas do que
endógenas conforme pensavam autores.
O olhar mais humano sobre os processos de desenvolvimento e a concepção de
observar o indivíduo ao mesmo tempo como agente e beneficiário do desenvolvimento
43

são algumas marcas desse conceito. “Trata-se, pois, de um pressuposto óbvio, isto é, que
as pessoas devem participar ativamente e não apenas serem beneficiárias do
desenvolvimento” (MARTINS, 2002, p. 51). Neste ponto há uma mudança de paradigma
significativa entre as concepções anteriores acerca do desenvolvimento.

Não obstante, objetivar as pessoas e propor a sua participação em todo o


processo de desenvolvimento (do planejamento à ação), mesmo que resultem
em melhorias efetivas das condições materiais de vida, são insuficientes para
assegurarem a continuidade do processo. O verdadeiro diferencial do
desenvolvimento local não se encontra em seus objetivos (bem-estar,
qualidade de vida, endogenia, sinergias etc), mas a postura que atribui e
assegura à comunidade o papel de agente e não apenas de beneficiária do
desenvolvimento. Isto implica rever a questão da participação. (MARTINS,
2002, p. 52)

Tendo como pilar e grande desafio a participação dos indivíduos, o conceito de


desenvolvimento local tem objetivos que foram apontados em 2005 pelo Comitê
Econômico e Social das Comunidades Europeias (1995): o crescimento da economia, a
criação de emprego e a melhoria da qualidade de vida. Na experiência da América Latina,
o enfrentamento da condição de miséria e pobreza tem sido um dos alvos mais recorrentes
das experiências de desenvolvimento local (MARTINS, 2002), que tem relação direta
com esses objetivos instituídos no continente europeu.
Outro fator apontado por Martins (2003) está relacionado com a escala.
Diferentemente do desenvolvimento pensado inicialmente, que atuava dentro de uma
abrangência nacional ou ao menos regional, no desenvolvimento local a escala não é
definida por uma linha de demarcações geográficas oficiais, mas pela escala das inter-
relações pessoais da vida cotidiana. Ou seja, está centrada no lugar que é o espaço da
convivência humana.
O reconhecimento dos potenciais e dos anseios dos indivíduos quanto à sociedade
que eles desejam construir estão associados à concepção de capital social, tão necessário
dentro dessa perspectiva de promoção do desenvolvimento local. O capital social,
segundo Abramovay (2000, p. 380) está relacionado às “características da organização
social, como confiança, normas e sistemas, que contribuam para aumentar a eficiência da
sociedade, facilitando as ações coordenadas”. Logo, o capital social das populações
locais, mobilizadas em torno de um processo de desenvolvimento endógeno, seria um dos
impulsionadores para que sejam alcançados os objetivos por elas traçados, através dos
caminhos por elas escolhidos e construídos.
44

É dentro desta perspectiva de desenvolvimento local, que considera o capital


social dos indivíduos que vivem no lugar, que analisamos as possibilidades de
transformação de comunidades de periferia urbana. Para desenvolver essa visão se faz
necessário fundamentar teoricamente a “periferia”.
Os conceitos de subúrbio e periferia se confundem no senso comum. O subúrbio
etimologicamente traz o significado de um espaço que cerca uma cidade. Seriam, pois,
espaços intermediários entre a cidade e o campo, não necessariamente relacionados à
condição socioeconômica da sua população, mas caracterizados por serem lugares de
baixa densidade ocupacional, abrigando desde pequenas comunidades agrícolas até
condomínios de luxo, como empreendimentos que buscam mais espaços (PALLONE,
2005).
Enquanto isso, a palavra periferia carrega um uso mais político, social e
econômico, de antítese ao centro, mas caracterizado por locais onde vive a população de
baixa renda. Essas duas palavras se aproximaram com a expansão da ocupação popular
nas regiões mais afastadas dos centros econômicos das cidades, que são os territórios
ocupados e construídos pelos populares, segundo Raffestin (1993). Estão nesses
territórios as maiores evidências de preservação ou resistência de costumes e práticas
rurais nas cidades.
Nesse sentido, retoma-se o conceito de território tal como definido por Raffestin
(1993, p. 143):

Espaço e território não são termos equivalentes... o espaço é anterior ao


território. O território se forma a partir do espaço, é resultado da ação
conduzida por um ator em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço,
concreta ou abstratamente o ator territorializa o espaço.

Aqui, segundo Domingues (2006), o espaço torna-se território pela projeção dos
diversos interesses, das diferentes formas de apropriação do recurso e das distintas
funções que lhe são atribuídas. Reiterando essa visão, para Santos (1999, p. 18-19): “O
território usado é a categoria de análise e deve ser visto como algo que está em processo,
possuindo um conteúdo social, um dinamismo sócio-territorial, enfim, é o quadro da vida
de todos nós nas várias dimensões”.
A formação das periferias, tais como conhecemos atualmente, acontece no mundo
com a eclosão dos processos de industrialização e a mobilização intensa da população
rural para as cidades. Lefebvre (1999) defendeu que o surgimento da indústria trouxe uma
transformação também na relação entre o espaço e o valor. Diferente do período histórico
45

da Idade Média, quando o valor do espaço era do seu uso, o autor apontou que na era
industrial ele é um produto cujo valor está na comercialização.

Os subúrbios, sem dúvida, foram criados sob a pressão das circunstâncias a fim
de responder ao impulso cego (ainda que motivado e orientado) da
industrialização, responder à chegada maciça dos camponeses levados para os
centros urbanos pelo “êxodo rural”. (LEFEBVRE, 1999, p. 17)

No Brasil, o crescimento populacional e das cidades nas últimas décadas


evidenciou um intenso processo de formação das periferias urbanas. Outro fenômeno que
contribuiu para a sua expansão foi o êxodo rural. De acordo com Ritter e Firkowski (2009,
p.24) a formação das periferias brasileiras esteve em sua origem diretamente ligado ao
fenômeno do êxodo rural, quando as populações sem oportunidades de vida no campo
chegavam aos grandes centros em busca dos atrativos urbanos.

Esses contingentes, uma vez expulsos do campo, eram atraídos pelos inúmeros
predicados atribuídos à cidade-polo, porém, ao chegarem se viam
desqualificados e, principalmente, descapitalizados a ocupar a “cidade”, a
“metrópole”, consequentemente, passavam a fazer parte das suas franjas, do
seu entorno ou das suas áreas insalubres.

Entretanto, esse processo é antigo, posto que segundo Anjos e Chaveiro (2007, p.
188), desde o período do Brasil Colônia até a segunda metade do século XVIII, quando
acontecem invasões nos centros urbanos pelo comércio e indústria, o processo de
expansão das cidades brasileiras não ocorria de forma muito distinta em relação à classe
social ou econômica dos indivíduos. O crescimento da população urbana e a instituição
da Lei de Terras (inclusa dentro da Lei Áurea e que dá o início às restrições do uso de
terras no País) mudam esse cenário.
Ritter e Firkowski (2009, p.24) ressalvam que como o êxodo rural é praticamente
inexistente no Brasil do século XXI, a expansão atual das periferias está relacionada às
“migrações intraurbanas ou intrametropolitanas, uma vez que a metrópole e a pós-
metrópole produzem pobres e reproduzem a pobreza nos seus interiores”.
Nesse contexto, a crescente violência urbana vista nas duas últimas décadas tem
levado os olhos do poder público e da academia a analisar com maior atenção esse
fenômeno da expansão das periferias e suas consequências socioeconômicas.
O problema da expansão da periferia de cidades remete de alguma forma a questão
da necessidade de uma política pública de promoção à habitação. Entretanto, tardiamente,
se registra uma primeira política pública no País nos anos de 1960, com a criação do
46

Banco Nacional de Habitação - BNH, prolongando-se até o ano de 1986, sem atender de
forma eficiente a necessidade de moradia nos grandes centros urbanos. Por outro lado,
Santos (1994) afirma que naquele período houve um incremento acelerado da quantidade
de habitantes nos grandes centros urbanos do País, em especial em São Paulo e no Rio de
Janeiro. Segundo o geógrafo, na década de 1960, a média percentual de aumento da
população que se instala nas Regiões Metropolitanas é de 37,46% alcançando na década
de seguinte o percentual de 43,37%.
A negação do direito da cidade e dos seus serviços é uma constante da experiência
de expansão da urbanização brasileira à população da periferia. Esses moradores, que
ocuparam os extremos das cidades ou as áreas de pântanos e morros (ARRAIS, 2004),
como no caso recifense, ficam excluídos dos benefícios do desenvolvimentismo
brasileiro.
Diante da ausência de políticas públicas de habitação específicas para áreas de
periferia urbana, houve a necessidade de participação da comunidade na gestão do seu
território e as experiências aconteceram historicamente no Recife, por meio dos
movimentos sociais (CAVALCANTI, 2017). Em muitos casos, participação essa
organizada através de Associações de Bairros na década de 1950.

As teorias dos movimentos sociais do Brasil revelam que os movimentos que


surgiram no País são: manifestações das classes populares que partem dos
bairros – são heterogêneas, surgem devido às contradições urbanas e são contra
o Estado, principalmente quando esses estão comprometidos com os interesses
das elites sociais. (CAVALCANTI, 2017, p. 20)

As Associações de Bairros da capital recifense funcionaram como porta-vozes dos


seus habitantes perante o poder municipal. E, a partir da década de 1970 surgem outros
movimentos sociais, já em pleno período do governo militar, com uma experiência
totalmente diferente daqueles primeiros. Enquanto a atuação dos primeiros movimentos
populares foi marcada pelo diálogo com o poder público, os ocorridos na década de 1970
foram caracterizados pela oposição ao poder instituído. Cavalcanti (2017) afirma que
naquela década há o surgimento de novos bairros periféricos, “constituídos por pessoas
expulsas do seu lugar de origem devido à especulação imobiliária”. A autora destaca que
há uma atuação relevante da Igreja Católica em defesa e apoio a esses movimentos
populares.
Em análise da organização em bairros na periferia de Recife, Albuquerque e
Gomes (2017, p.41) apontam que os jogos de poder que determinam tais espaços urbanos
47

na capital seguem em disputa. Elas afirmam que hoje, mais do que em qualquer outro
momento, a supremacia dos agentes que detém o poder econômico tem conduzido a
processos de ampliação da “segregação espacial do Recife, expulsando, indiretamente, os
mais pobres para áreas periféricas cada vez mais distantes e sem infraestrutura”.
Para discutir alternativas de melhorias de qualidade de vida para as populações
das periferias, observaremos a evidência dos elementos de desenvolvimento local dentro
das comunidades de Dois Unidos e Passarinho, localizados na periferia da zona norte do
Recife e de Olinda. Nosso olhar se orienta para identificar como o capital social da
população local mobilizada em torno do seu próprio desenvolvimento tem a capacidade
de trazer avanços socioeconômicos e culturais observando uma das características
singulares de algumas dessas comunidades de periferia que é a rurbanidade, presente
nesses bairros (DANTAS; LIMA, 2017).
Apesar do processo de desenvolvimento urbano da cidade ser configurado em sua
maioria como de uma “urbanização absoluta” (FREYRE, 1982), sem historicamente ser
dado o devido valor a preservação dos ativos ambientais e das práticas agrícolas,
diferentemente, no caso dos bairros de Dois Unidos e Passarinho, há um remanescente de
área verde relativamente preservada, além da presença de uma parcela da população de
origem rural. Estes seriam elementos que podem evidenciar um caminho para o
desenvolvimento a partir da valorização e fomento dessas características.
48

3 PROCESSO DE OCUPAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO ATUAL DOS


BAIRROS

Os bairros de Dois Unidos e Passarinho estão localizados na periferia da zona


norte dos municípios de Recife e Olinda (Passarinho tem parte do seu território no Recife
e parte em Olinda), conforme Figura 1. Esses bairros estão hoje bastante populosos,
entretanto, há algumas décadas possuíam grande parte da sua área ainda coberta por
vegetação e com pouca infraestrutura urbana. As informações do seu processo de
ocupação são escassas, sendo identificadas em alguns documentos oficiais, publicações
acadêmicas e de jornais antigos e, finalmente, embora não menos importantes, do relato
oral dos moradores mais idosos. Os poucos registros sistematizados acerca do processo
de ocupação dos bairros é uma característica comum de localidades de periferia.

Figura 1 – Imagem de satélite dos bairros.

Fonte: Google Earth (2019).

O nome do bairro de Dois Unidos, de acordo com Cavalcanti (1998) estaria


relacionado à situação de um dos primeiros moradores que, apesar de ter uma casa bem
modesta, acolhia muitos familiares. Devido a esse fato, essa moradia instalada na
comunidade era conhecida como Casa ou Família “dos Unidos”. Entretanto, para Alencar
(2018), fazendo referência a jornais antigos do Recife, o nome viria do Sitio Dois Unidos,
registrado desde o final do século XIX na imprensa.
49

Brandão (1988, p.124) ainda no final dos anos 1980, aponta que Passarinho
(Figura 2), compunha a chamada Zona Administrativa de Beberibe da mesma forma que
o Bairro de Dois Unidos (Figura 3), de igual forma, é conforme registrado em vários
documentos e jornais como um lugar ou povoado de Beberibe. Contudo na descrição das
fotografias encontradas em pesquisa no Museu da Cidade do Recife foi possível
identificar também imagens do Alto do Maracanã, que fica em Dois Unidos, assinaladas
como se fossem do Bairro de Casa Amarela. Essas nomenclaturas diversas dificultam a
busca de informações das origens dos bairros.

Figura 2 – Mapa de Passarinho.

Fonte: Atlas Metropolitano – Desenvolvimento Humano na Região Metropolitana do Recife (2013)


50

Além de ambas as comunidades serem pertencentes à Beberibe em registros da


cidade do Recife, as Matas de Dois Unidos e de Passarinho, cuja composição vegetal é
semelhante, separadas apenas pelo Rio Beberibe, no passado compunham provavelmente
uma única propriedade privada, de acordo com Oliveira Júnior (2015, p. 36). Ambas as
florestas urbanas são separadas apenas pelo Rio Beberibe. O autor aponta que as
composições vegetais de ambas as matas são semelhantes.

Figura 3 – Mapa de Dois Unidos.

Fonte: Atlas Metropolitano – Desenvolvimento Humano na Região Metropolitana do Recife (2013)

3.1 Contexto histórico e econômico do processo de ocupação

Nossa pesquisa identifica a chegada de estruturas públicas e privadas relevantes


para essa região a partir da década de 1940 e uma expansão mais acelerada na década de
1970, mas os relatos orais das entrevistas realizadas e, principalmente, os jornais antigos
do Recife indicam que a ocupação desses bairros para moradia aconteceu muito antes,
ainda no século XIX. Do grupo de entrevistados idosos, metade deles chegou ao Recife
dentro do fenômeno do êxodo rural entre as décadas de 1960 e 1970, contribuindo
51

consideravelmente para a reconstrução do cenário daquela época e caracterizando


também uma relação entre a ocupação do bairro com esse processo de fuga do campo em
direção às cidades, vivido por inúmeros brasileiros.
Reiterando a ocupação, de acordo com Alencar (2018, p.1), a antiga Estrada do
Cumbe, que se transforma na década de 1970 na Avenida Hidelbrando de Vasconcelos,
foi aberta ainda no século XIX.

Desde a abertura da Estrada do Cumbe, seus pequenos povoados, suas ricas


fontes de água, sua mata e o Rio Beberibe que foi degradado com o passar dos
anos. O que seria uma olaria, foi descoberto o Sítio Dois Unidos, que já existia
desde o século XIX, embrenhado dentro da mata e que serviu de morada para
os flagelados das grandes enchentes dos rios Beberibe e Capibaribe e dos
mocambos espalhados pelo Centro do Recife que o interventor Agamenon
Magalhães com sua ideia fixa de modernização e sobre pressão oposicionista,
tratou de expurgar toda a miséria dos mocambos para os chamados arrabaldes.

Nesse século há uma série de menções nos classificados de jornais sobre terrenos
ou sítios à venda nesses bairros. Uma questão interessante é perceber que nos anúncios
não são citados os nomes dessas comunidades que pertenciam à Beberibe, mas devido à
localização foi possível ser reconhecida pela indicação dos endereços, a Estrada do
Passarinho e a Estrada do Cumbe, que são as principais vias dos dois bairros.
Para fundamentar a ideia da ocupação desses bairros no final do século XIX, a
pesquisa se alongou no tempo e encontrou o registro mais antigo do Bairro de Passarinho,
com o anúncio da venda de um terreno na Estrada do Passarinho, que tinha o fundo para
o rio Beberibe no Diário de Pernambuco de 19 de novembro de 1878. Com relação à
comunidade de Dois Unidos o mesmo jornal, no dia 11 de março de 1881, (três anos
depois) registrou o mais antigo anúncio que sem registrar o nome cita a Estrada do
Cumbe, que futuramente irá se chamar de Avenida Hidelbrando de Vasconcelos, principal
via nos dias de hoje. A notícia revela que “A 3 de novembro, em cumprimento do disposto
do parágrafo 38 da Lei 1.449, (1881) mandei (Governo da Província) que a repartição de
obras públicas, no mais curto prazo, apresentasse os estudos indispensáveis à conclusão
de 63 quilômetros da Estrada da Villa de Água Preta ao povoado de Jacuípe, assim como
a Estrada do Cumbe, em Beberibe”.
No Jornal do Recife, em 2 de julho de 1881, há outro registro sobre a Estrada do
Cumbe. Essa nota anuncia o leilão do sítio denominado Emberibeira, (Figura 4) que tem
a Estrada do Cumbe como limite ao sul. O local é apresentado como situado no Povoado
52

de Beberibe e há a informação que se trata da casa onde funcionava uma escola pública
este, por sua vez é o registro mais antigo de uma instituição educacional na localidade.
Figura 4 – Anúncio de leilão.

Fonte: Jornal do Recife, 2 de Julho de 1881.

Em 24 de janeiro de 1882 há o anúncio de classificados no Jornal do Recife que


comercializava um terreno em Beberibe, em direção à Passarinho, (Figura 5) na Estrada
do Passarinho. Nos anos seguintes outros anúncios de sítios, casas e terrenos nesta Estrada
do Passarinho sinalizam que naquela época já havia moradia na região. A descrição desses
sítios ou terrenos nos trazem sempre informações do caráter rural da época, sendo lugares
com qualidades para plantações, com árvores frutíferas e próximos às águas do Rio
Beberibe ou de outros riachos. Em alguns dos classificados se informa que o referido
terreno é cortado pelo Rio Beberibe, o que indica propriedades que atravessavam os
limites dos dois bairros no passado.
53

Figura 5 – Anúncio de venda de terreno.

Fonte: Jornal do Recife, 24 de janeiro de 1882

Há uma menção de uma localidade chamada de Sítio Dois Unidos no Jornal do


Recife, no dia 4 de abril de 1883. O sítio seria de propriedade de Eulalio Rodrigues dos
Santos, que teria ficado como herança para seus filhos, conforme Figura 6.

Figura 6 – Anúncio de arrematação.

Fonte: Jornal do Recife, 4 de Abril de 1883

Provavelmente o mesmo sítio, que pode ter originado o nome do Bairro, vem a ser
registrado em 19 de março de 1935 no 1º Ofício do Registro Geral de Imóveis do Recife,
com a seguinte descrição:

Sítio denominado "Dois Unidos", no qual existe uma casa de residência, de


alvenaria, com dependências desligadas e outras pequenas casas de taipa em
ruínas à Estrada do Cumbe, 1591, propriedade esta que tem a forma irregular,
limitando-se ao Nordeste, pelo Rio Beberibe, com uma extensão
aproximadamente de 1.300,00 m; ao Noroeste pelo Riacho das Pacas, numa
extensão de cerca de 200,00m, onde se encontra um marco de trilhos, e ao
Oeste e ao Sudoeste, com terras de João Chagas, com sete marcos de trilhos,
54

até encontrar a antiga Estrada do Oiti Furado, até onde existe um marco de
trilho e daí limita-se com terras de Claudino Leal, por uma reta com 760,00 m,
aproximadamente, em cerca de arame farpado, até encontrar novamente o Rio
Beberibe, estando dita propriedade cortada pelo riacho permanente de taipa,
em sentido transversal do Sudoeste para Nordeste, em posição de cerca de
900,00m contados do Poente terminal da Estrada do Cumbe. (Anexo 1 da Lei
Nº 14.517, de 7 de dezembro de 2011, p.3).

No ano de 1884, o mesmo Jornal publica no dia 4 de agosto um anúncio de leilão


de um terreno de 220 palmas de frente no caminho de Dois Unidos e outro menor, como
espólio de Elias Marinho Falcão de Albuquerque. É importante destacar na nota que se
faz destacar que estão localizados em Beberibe (Figura 7). Conforme citado
anteriormente, na ocasião, o hoje bairro de Dois Unidos era considerado um distrito de
Beberibe. A mesma nota é publicada novamente nos dias 10 e 12 de agosto neste jornal.

Figura 7 – Anúncio de leilão.

Fonte: Jornal do Recife, 4 de Agosto de 1884

Há a menção de problemas no Pontilhão da Estrada do Cumbe, numa nota que


denunciava o perigo de travessia desse lugar em 16 de abril 1890, no Jornal do Recife
(p.2), registrando inclusive um acidente de uma pessoa que se deslocava de cavalo na
região, conforme Figura 8. Destaque dessa nota é para a presença dessa estrutura de
Pontilhão ainda no século XIX, ainda que em condições precárias. Praticamente a mesma
denúncia se repete no dia 22 de abril do mesmo ano, acrescentando a informação de que
o cavaleiro era morador da região e cobrando do poder público uma manutenção na ponte.
55

Figura 8 – Denúncia do perigo da travessia através do jornal.

Fonte: Jornal do Recife, 16 e de Abril de 1890

Mais um registro aponta a presença de uma instituição de ensino particular mista


é informada em uma nota no dia 20 de dezembro de 1904 conforme figura 9, quando há
o anúncio da aprovação dos exames de primeiro grau de quatro alunas. Essa escola,
também localizada na Estrada do Cumbe, era regida por uma professora chamada
Sebastiana Cândida Farias de Albuquerque.

Figura 9 – Registro de instituição educacional.

Fonte: Jornal do Recife, 20 de dezembro de 1904.


56

A pesquisa localiza imagens do Rio Beberibe no início desse século, em 1905, no


acervo de Manoel Tondella, conforme Figura 10. As fotos não identificam exatamente o
bairro em que foi realizado esse registro fotográfico. As imagens servem de referência
para se aproximar do contexto da época. Até os anos 1990, o trecho do Rio Beberibe que
divide os bairros, na área ainda hoje caracterizada pela maior presença de sítios guardava
ainda bastante semelhança com a vegetação identificada na fotografia abaixo.

Figura 10 – Imagem do rio Beberibe em 1905.

Fonte: Acervo Manoel Tondella, Fundação Joaquim Nabuco

A estrada do Cumbe volta a ser citada no referido Jornal do Recife em 22 de Abril


1923, quando há um anúncio de venda de vacas leiteiras por um cidadão chamado de
Antônio Martins. O classificado sinaliza a prática de criação de animais de grande porte
na comunidade no início do século XX. Em 31 de março de 1925, o mesmo periódico
informa a existência da Granja Cumbe, localizada na Estrada do Cumbe, que seria
propriedade de Luiz de Oliveira França. Outro registro que aponta o uso dessa região para
criação de animais, desta vez de aves.
Em 18 de novembro de 1925 a venda de uma propriedade rural (Figura 11) expõe
algumas características do bairro na época. O proprietário apresenta que o local é apto
57

para plantações, possuindo muitas fruteiras de qualidade, sendo cortado por diversos
riachos, além do Rio Beberibe, e possui gado e cavalos. A referida propriedade rural
ficava distante 15 minutos no terminal do bonde no bairro de Beberibe. Sem identificar
se seriam 15 minutos de veículo, animal ou a pé, não é possível uma compreensão mais
aproximada do local exato dessa propriedade. A nota menciona ainda que a Estrada do
Cumbe fica no Engenho Beberibe.

Figura 11 – Anúncio de venda de propriedade rural.

Fonte: Jornal do Recife, 18 de novembro de 1925.

O registro do roubo de dois cavalos, em 9 de maio de 1926 (p.9) seria o primeiro


registro de falta de segurança na comunidade, um problema que hoje possui uma
gravidade significativa. A nota fala da residência do Sr. Lula de França, na Estrada do
Cumbe, 940, conforme Figura 12. O anúncio registra que o proprietário “gratifica bem”
a quem deles der notícia. Outras informações relacionadas à atos de violência são
mencionadas nos jornais pernambucanos nas primeiras décadas do século 20.
58

Figura 12 – Registro de Roubo de cavalos.

Fonte: Jornal do Recife, 9 de maio de 1926 (p.9)

A presença de moradores de maior posse fica evidente em outra nota em 24 de


dezembro de 1930, quando a nota do jornal (Figura 13) se refere aos proprietários de
automóveis do bairro que pedem providências sobre uma cerca de arame farpado na
Estrada do Cumbe que estaria furando os pneus dos veículos.

Figura 13 – Anúncio solicitando providências.

Fonte: Jornal do Recife, 24 de dezembro de 1930.

A convocação do Sr. Caetano Buonafina, em 22 de junho 1933, no Jornal do


Recife, pelo Serviço de Zoothecnica Leite e Derivados para regularização de uma
matrícula de um estábulo sinaliza para a presença do Engenho São João, em Beberibe.
No entanto, a nota revela que o referido engenho está localizado na Estrada do Cumbe.
59

Nos jornais surgem vários nomes de moradores e posseiros que teriam vivido
nesta região no início do século XIX. A região era caracterizada em vários momentos
como um lugar que tinha a qualidade de ter abundância de água.
O Livro de Mensagem da Assembleia Legislativa de Pernambuco de 1925 (no
Anexo X) registra a construção de dois Pontilhões na Estrada do Cumbe. O registro indica
que são construções de madeira com encontros de alvenaria.
Até este momento apenas informações mais fragmentadas dos bairros foram
coletadas nos jornais do Recife. No final da década de 1930 e início da década de 1940
passamos a ter algumas informações de instituições com atuação local, como a Água
Mineral Santa Clara, alguns terreiros e as primeiras instalações militares.
Em 1937 um grupo de investidores compra a propriedade com algumas nascentes
de água do Rio Beberibe. Já na década de 1910 havia na localidade um personagem
chamado de Bento, o milagroso, que tinha a fama de curar pessoas nas águas dessas
nascentes que ele dá o nome de Santa Clara. É organizada então a sociedade comercial
que ganha o nome de Empresa Santa Clara Limitada, conforme Figura 14. De acordo com
o histórico da empresa, seu objetivo inicial seria explorar a fonte do “Bento Milagroso”
tanto para o engarrafamento natural da água como para sua comercialização gaseificada.
Dessa fábrica são produzidas também guaraná, vinagre, refrigerante de uva, gasosa de
maçã e pera e água tônica. Um dos fatos curiosos dessa empresa é que ela se torna a
primeira produtora da Coca-Cola em solo brasileiro, no ano de 1941, um ano antes da
inauguração da primeira fábrica da multinacional no Rio de Janeiro.

Figura 14 – Prédio da Água Mineral Santa Clara.

Fonte: Site da empresa.


60

O site da Coca-Cola Brasil (2016) informa que Recife e Natal foram as primeiras
cidades a receber os refrigerantes da marca, pois eram paradas obrigatórias das
embarcações norteamericanas e de veículos militares que se deslocavam em direção à
Guerra na Europa. “A Coca-Cola usou as instalações da fábrica de água mineral Santa
Clara, que existe até hoje. Depois foram instaladas mini fábricas (kits com equipamentos
básicos para produção de refrigerante) em Recife e Natal”. A empresa Águas Minerais
Santa Clara foi registrada no Diário Oficial de Pernambuco como Sociedade Autônoma
apenas no dia 8 de maio de 1942 (PERNAMBUCO, 1942). Atualmente a Empresa
engarrafa apenas água mineral no bairro.
Campos e Pacheco (2018) ressaltam a importância inclusive histórica da bacia do
Rio Beberibe para o abastecimento de água na Região Metropolitana do Recife. O trecho
do rio que divide os bairros de Dois Unidos e Passarinho, inclusive, foi um dos pontos
utilizados já em 1946 para captação de água para abastecimento das cidades do Recife e
de Olinda.

A captação original era feita numa pequena barragem de derivação situada em


Caixa D’água, e uma estação elevatória, próxima à localidade de Passarinho.
Mais adiante, em virtude da poluição provocada pela intensa urbanização da
área, a captação foi transferida para local, 2 km a montante, denominado
Pedacinho do Céu, retirando-se a água por gravidade. (CAMPOS; PACHECO,
2018, p.41)

De acordo com Cavalcanti (1998) na década de 1940, no bairro de Dois Unidos


havia um sítio que servia de invernada para os cavalos da Brigada Militar de Pernambuco
e o Stand de Tiro da Invernada Dois Unidos, já mencionado pelo Diario16 de Pernambuco
em 7 de novembro do mesmo ano. Ele relata que apenas na segunda metade do século
passado é que foram instalados na região a Companhia de Cães da PM (ainda em
funcionamento no bairro), e um Presídio, que trataremos posteriormente. Atualmente, no
prédio dessa antiga estrutura prisional funciona a Escola Estadual Francisco Pessoa de
Queiroz, embora os moradores da comunidade com frequência mencionam o local ainda
como presídio.
Em 1945 temos o primeiro registro de atividade religiosa no Bairro de Dois
Unidos, com a instalação do terreiro Ilê Obá Aganju Okoloyá, de tradição nagô,
conhecido como Terreiro Mãe Amara ou Xangô da Mãe Amara (OLIVEIRA, 2017). O

–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
16
A palavra Diario não tem acento. Até hoje eles não mudaram a forma de grafia.
61

primeiro nome deste espaço foi São João Baptista de Seita Africana. Segundo Mendonça
(1975), essa região foi no passado uma das que concentravam o maior número de terreiros
do Estado. O relato de Meira (2008) sobre os primeiros anos deste espaço religioso é que
o bairro não tinha sequer as ruas definidas, sendo entrecortado por caminhos estreitos de
terra, sendo a Avenida Hidelbrando de Vasconcelos a primeira via a receber
pavimentação do bairro, sendo inaugurada apenas em 1973 pelo prefeito Augusto Lucena.
Nas proximidades deste terreiro, que segue em atividade, havia uma cacimba onde se
encontravam as lavadeiras do bairro naquela década.
No final desta década, o Diario de Pernambuco, na edição de 27 de maio de 1949
(p. 4), há o registro do levantamento topográfico e o loteamento do Sítio Dois Unidos,
pelo Serviço Social Contra o Mocambo17. Uma edição do Diario de Pernambuco em 15
de agosto de 1939, quando ainda estava em vigor a Liga Social Contra o Mocambo, há
uma menção do interventor Agamenon Magalhães à construção de uma olaria no Sítio
Dois Unidos para fornecer 25 mil tijolos por semana para esse serviço de construção de
moradias populares. Os moradores mais idosos da comunidade entrevistados na pesquisa
mencionam a Liga Social Contra o Mocambo como responsável pela construção de parte
das casas antigas do bairro.
Apenas em 1958 é erguida no bairro a Capela da Vila de Dois Unidos (MENDES,
2011), o primeiro templo católico desta região, a hoje Paróquia São Vicente de Paulo.
Essa igreja foi liderada por décadas pelo padre holandês João Pubben. No relato oral dos
moradores mais antigos do bairro aponta a presença de uma pequena igreja pentecostal,
chamada de O Brasil para Cristo, ainda na década de 1960 em Dois Unidos. Quanto à
presença religiosa no bairro de Passarinho, está a primeira Igreja Batista fundada na
década de 1970, de acordo com os moradores. Ambas as igrejas permanecem em
funcionamento.
Do ponto de vista prisional localiza-se a Colônia Correcional de Dois Unidos,
construída em 1960, apontada como uma das estruturas mais antigas do bairro que

–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
17
O Serviço Social contra o Mocambo é o originado com o final da Liga Social Contra o Mocambo, que
era uma associação fundada pelo interventor Agamenon Magalhães em 1939, que tinha como meta
extinguir os mocambos (moradias miseráveis recifenses, como as palafitas — e de mobilizar a construção
de residências populares. A Liga é encerrada em 1945, dado lugar o Serviço Social contra o Mocambo.
Essa entidade construiu em torno de 45 vilas até o ano de 1943. As residências eram comercializadas a
prazo. O Serviço Social Contra o Mocambo, segundo DE LIRA (1994, p.750), era uma autarquia
administrativa do Governo do Estado, que tinha finalidade “a construção de casas higiênicas e populares
destinadas às classes menos favorecidas, protegendo-as contra os males da habitação insalubre e da
promiscuidade da vida nos mocambos”.
62

posteriormente se chamará de Presídio Mourão Filho. Sua concepção acontece antes do


ano de 1964, quando aconteceu o Golpe Militar no Brasil. Naquele período é formado um
sistema de vigilância e repressão às esquerdas em Pernambuco por meio da Secretaria de
Segurança Pública. Os relatos militares eram de que havia uma forte presença de
lideranças de esquerda nessa região (DA SILVA; MARTINS, 2014).
Esse espaço serve, entre outras finalidades, para as prisões políticas que ocorreram
no período dos Governos Militares. Alguns dos moradores entrevistados mencionam a
lembrança dos gritos que ouviam dos presidiários, que teriam sofrido agressões físicas
severas. Os moradores idosos entrevistados na presente pesquisa, que será detalhado no
último capítulo, também mencionaram que os presos trabalhavam na construção de casas
populares. Um dos entrevistados que chegou à comunidade no final dos anos 1960
afirmou ter comprado uma casa na “Vila da Reeducação”, que teria sido construída pelos
presidiários. A referida residência fica há menos de 500 metros do antigo presídio. Nas
imediações desta colônia funcionou já em 1961 uma escola policial, financiada com apoio
do Programa do Ponto IV18, do governo norteamericano, na ocasião presidido por Harry
Truman.

A região de Dois Unidos apresenta-se nos relatórios – integrantes do prontuário


institucional referente à Colônia Correcional de Dois Unidos – de agentes
sociais como um locus privilegiado de atuação dos movimentos de esquerda.
Em janeiro de 1960, o agente social Benedito Gomes de Lima aponta as
atividades de divulgação política das principais lideranças da localidade. (DA
SILVA; MARTINS, 2014, p. 7)

Um fato relevante para a economia local do bairro, provavelmente na década de


1950, foi a instalação da Indústrias Minerva, que era uma indústria de papelão,
popularmente conhecida pelos moradores como Fábrica da Minerva (Figura 15). Um dos
seus sócios era Hidelbrando de Vasconcelos, nome que seria dado à avenida, apenas em
1973, pelo prefeito Augusto Lucena. As informações iniciais indicavam que ela teria se
instalado no bairro no início da década de 1970, mas numa edição do Diário de
Pernambuco de 1º de janeiro de 1955, a empresa já emitia neste periódico uma nota
desejando boas festas aos clientes e amigos, já com o endereço da Estrada do Cumbe,
1016. Os jornais antigos também a chamam de Fábrica de Papel de Beberibe.

–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
18
O Programa Ponto IV tinha como meta prevenir a infiltração comunista, para isso fazia aportes
econômicos e fornecia treinamento para forças policiais. (DA SILVA e MARTINS, 2014).
63

Figura 15 – Nota da Fábrica de Papel Beberibe ou Indústrias Minerva.

Fonte: Anúncio no Diário de Pernambuco de 1º de janeiro de 1955

Em 4 de setembro de 1958, uma reportagem do Diario de Pernambuco anunciou


que a Indústrias Minerva passa a dominar a técnica de fabricar papel ondulado com fibras
de agave e bagaço de cana. Os planos da empresa à época eram bem ousados e havia a
prospecção de produzir no futuro papel para a imprensa num volume capaz de atender
toda a demanda nacional, substituindo assim as importações. Em 17 de Fevereiro de 1963,
o Diario de Pernambuco publicou outra reportagem em que celebra a modernização da
Fábrica da Minerva como uma solução para o problema das embalagens no Norte e
Nordeste. A notícia informava que trabalhavam na ocasião 200 funcionários, número que
dobraria em breve com as novas instalações. O então diretor da empresa, Jarbas
Vasconcellos, é nomeado em 1971 como secretário da Fazenda de Pernambuco. Essas
informações da imprensa e os números revelados apontavam para a relevância econômica
dessa empresa que operava no Bairro até a sua falência, 20 anos depois, na década de
1990, sendo adquirida posteriormente pela empresa Ondunorte.
Enquanto isso, no bairro de Passarinho, na década de 1950, há o Registro no Jornal
Pequeno, no dia 23 de julho de 1953, a presença de uma vacaria de propriedade do Sr.
Lopes, que despejava todo tipo de resíduo às margens da Estrada do Passarinho. Esta
notícia cobrava providências da Prefeitura de Olinda e indicava que a denúncia partiu das
pessoas que circulam de carro na localidade.
No mesmo ano a Câmara Municipal do Recife aprova a Lei 2593 de 195319, que
anunciava a pavimentação da Estrada do Cumbe, entre a Rua Uriel de Holanda e o Sítio

––––––––––––––––––––––––––––
19
Lei 2593/1953. Câmara Municipal do Recife. Disponível em:
<https://leismunicipais.com.br/a/pe/r/recife/lei-ordinaria/1953/260/2593/lei-ordinaria-n-2593-1953-
autoriza-pavimentacao-da-estrada-do-cumbe?q=Estrada+do+cumbe>.
64

Dois Unidos. Esse teria sido o primeiro pavimento dessa via, ainda sem as dimensões da
avenida atual, que só foi construída 20 anos depois.
O estudo realizado por Cruz (1962) apontava que a maior dificuldade dos
moradores era o transporte (mencionado por 61,5% da população). Os problemas ou a
ausência de luz elétrica foi o segundo maior problema destacado por 9,1% da população
entrevistada na década de 1960. Observa-se, portanto, uma diferença muito grande da
primeira para a segunda maior reivindicação de melhoria. A ausência de escolas,
comércio, serviços médicos e falta de trabalho foram outras dificuldades relatadas
naquele contexto entre 1950 e 1960. Com exceção do número de comércio, que é bastante
característico dos bairros, todos os demais problemas seguem mencionados pelos
moradores. A questão das escolas e serviços médicos, que eram praticamente ausentes
naquelas décadas, hoje são mais presentes nos bairros, porém com muitas queixas de falta
de qualidade nos seus serviços.
Em 25 de novembro de 1973 a Prefeitura do Recife inaugurava a pavimentação e
a iluminação da Avenida Hidelbrando de Vasconcelos. As notícias do Jornal da Manhã
daquele ano anunciavam essa obra como uma infraestrutura que facilitaria o acesso à área
rural de Beberibe. Uma segunda etapa era prometida para permitir o acesso dos moradores
da zona norte do Recife para a BR-101, mas naquela data foi inaugurado apenas o trecho
que seguiria de Beberibe até o Terminal de Dois Unidos. Os relatos da imprensa
revelavam que o acesso a essa comunidade era prejudicado principalmente nos períodos
de inverno, devido às chuvas que afetavam a via que até então era de terra batida.
Do ponto de vista demográfico, nas décadas seguintes há um crescimento
populacional, com a chegada de conjuntos habitacionais populares ou mesmo com
processo de ocupações não regulares. Até o final da década de 1960 sequer havia moradia
em alguns dos morros das comunidades, segundo o relato dos entrevistados da pesquisa,
que afirmavam que a parte alta dos bairros era tomada de vegetação e que foi pouco a
pouco ocupada. Com a chegada dos moradores nessas regiões mais altas surge a
necessidade de investimentos em infraestrutura, sobretudo, no sentido do abastecimento
de água, como relatou principalmente o Diario da Manhã na década de 1970. Em 1973,
inclusive, o então governador Eraldo Gueiros inaugura (Figura 16) um sistema robusto
de chafarizes no Alto do Deodato para atender 255 mil moradores dos morros da Zona
Norte do Recife. Com base nestes dados percebe-se quão grande era a demanda reprimida.
65

Figura 16 – Anúncio da Prefeitura do Recife, em 1973.

Fonte: Diario da Manhã, em1973

A questão do Meio Ambiente ganha força em agendas internacionais, nacional e


Estadual nos idos da década de 1980. Neste sentido foi mapeada a existência de vegetação
nativa em área urbana e o reconhecimento das Matas de Passarinho (13,6 ha) e de Dois
Unidos (34,72 ha) como Unidade de Conservação Estadual, a princípio como Reserva
Ecológica da Região Metropolitana do Recife, no ano de 1987. Apesar das delimitações
legais, essas duas reservas vivenciam a ocupação. Em Dois Unidos, a inclinação mais
acentuada do terreno facilitou a preservação, uma vez que se torna difícil sua ocupação.
Enquanto isso é evidente a degradação acelerada da mata no bairro de Passarinho embora,
paralelamente, tenha avançado alguns marcos legais, como a instituição de um conselho
gestor, em 2012, e de um plano de manejo, em 2013.
Da década de 1990 em diante, os bairros passam a receber diversos habitacionais
populares, dentro dos esforços dos poderes públicos para reduzir o déficit de moradias no
Estado. Antigos campos de futebol e grandes áreas planas, ainda não habitadas e cobertas
de vegetação na época, passaram a receber moradores vindos de outras regiões do Recife
e Olinda.
Essa realidade é resultado de pressões das associações de moradores. No bairro de
Passarinho, especialmente, acontece a doação de lotes para população de baixa renda de
alguns morros do Recife, principalmente do Morro da Conceição. De acordo com Mello
66

(2016), na década de 1980 os problemas de infraestrutura e a escassez de serviços


públicos levou os moradores de periferias do Recife a reivindicar aos órgãos públicos
principalmente a construção de moradias. Entre as lideranças populares da época
destacava-se Marluce Santiago, que chegou a ser presidente do Conselho de Moradores
do Morro da Conceição, ainda nos anos 1990.
A luta de Marluce Santiago e dos demais integrantes do conselho resultou na
entrega de 500 lotes de terra do bairro de Passarinho para famílias que estavam em
situação precária no Morro da Conceição, Alto Santa Terezinha e Córrego São Domingos
Sávio (MELLO, 2016). A líder sindical não chegou a morar nas comunidades -, que viria
a se chamar Vila Nossa Senhora da Conceição e Vila Esperança -, pois foi assassinada
em 1994. Hoje o bairro possui uma escola pública com o nome dessa líder.
Quanto ao processo de construção os relatos das lideranças do movimento
apontam que após o recebimento dos lotes, os moradores deveriam receber um kit de
construção (materiais básicos para construção da alvenaria) e haveria uma mobilização
popular para erguer as casas. A estratégia funcionou apenas para as primeiras residências
construídas uma vez que faltaram kits de construção para todos os contemplados. A vila
foi construída e urbanizou uma parte significativa do bairro de Passarinho, que guardava
naquela década ainda um clima mais “bucólico”, embora fosse um lugar distante de tudo,
com pouquíssima infraestrutura urbana segundo a descrição dos moradores.
É entre as mulheres que vivem nestas vilas que nascerá mais de duas décadas
depois o Espaço Mulher, uma organização feminista popular. Essa organização se tornará
a principal instituição do movimento Ocupe Passarinho, que no ano de 2014 conseguiu
evitar o despejo de cinco (5) mil famílias que moravam nesta região. Nesta década há a
continuidade do processo de ocupações regulares e irregulares nas comunidades e
também é marcada pelo fortalecimento do comércio e da chegada de algumas indústrias
para esses bairros.

3.2 Indicadores socioeconômicos e políticos atuais

Os bairros de Dois Unidos e Passarinho estão situados em uma das regiões mais
carentes das cidades do Recife e de Olinda, possuindo respectivamente 32.805 e 25.421
habitantes, de acordo com o Censo do IBGE de 2010. A população de Passarinho aqui
registrada é a soma do número de moradores presentes na parte do bairro pertencente ao
território localizado em Olinda (5.116) e no Recife (20.305).
67

Uma das características econômicas marcantes desses bairros é a baixa renda de


sua população, visto que, o valor médio mensal de rendimento nominal dos domicílios
em Dois Unidos é de R$ 937,92, enquanto que de Passarinho é de R$ 824,02, segundo
dados do Censo 2010 do IBGE. Nas duas comunidades há uma média de 3,5 pessoas por
residência. Quando dividimos o rendimento real por domicílio pelo número de pessoas
por residência, chegamos ao rendimento/mês por habitante nessas comunidades de
R$ 268,00 (Dois Unidos) e R$ 235,50 (Passarinho).
Todos esses indicadores se referem ao Censo 2010, do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, logo não está registrado o impacto da crise econômica do País
sobre esses bairros, que se estendeu de forma mais grave entre 2013 e 2018. O fator do
desemprego é muito presente nessas comunidades agravado no período recente de crise,
reduzindo ainda mais esses indicadores de renda familiar. Fazendo um cruzamento entre
as informações econômicas de renda e de gênero, o IBGE apontou que nos bairros ora
analisados a proporção de mulheres responsáveis pelo domicílio é maior que 40%.
Num olhar socioeconômico mais amplo, é importante ressaltar que ambas as
comunidades são marcadas pela violência urbana, frequentando posições preocupantes
em algumas amostragens de rankings de homicídios elaborados pelo Programa Pacto pela
Vida do Recife20. Um dos desdobramentos do programa foi a adoção pela Prefeitura do
Recife, que passou a monitorar os indicadores por bairro. Entre 2013 e 2014, Dois Unidos
esteve entre os 10 que mais registraram homicídios na cidade.
Atualmente o comércio é uma das fortes atividades econômicas dos bairros,
principalmente em Dois Unidos, que tem uma atividade econômica mais consolidada e
abrangente. A maioria das unidades comerciais é pequena, de moradores da comunidade
(farmácias, mercadinhos, padarias, lojas de roupas, calçados, acessórios de celular e
presentes, papelarias, quitandas, açougues, lanchonetes, casas de ração, entre outras).
Trata-se de um comércio bem diversificado. Além dessas atividades, há ainda indústrias,
em segmentos como engarrafamento de água mineral, fabricação de papelão, produção
de sorvetes a base de açaí. Pela proximidade à BR-101, há ainda muitos galpões que
servem ao segmento logístico do Recife. Logo há uma grande circulação de caminhões
nos bairros.

–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
20
O programa Pacto Pela Vida foi criado pelo Governo do Estado, tendo como uma de suas inúmeras
atribuições o monitoramento dos Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) por cidade.
68

Do setor público, estão presentes nas comunidades, além de escolas e postos de


saúde, uma unidade Companhia Pernambucana de Abastecimento - Compesa e a
Companhia Independente de Policiamento com Cães - CIP Cães, da Polícia Militar de
Pernambuco, que é uma das instituições mais antigas em funcionamento na região.
No Censo de 2010 do IBGE, mesmo em um momento econômico aquecido do
País, o bairro de Dois Unidos registrava uma taxa de 20,6% de população
economicamente ativa desocupada e o índice de 11,3% de população economicamente
inativa. No bairro de Passarinho, o Censo 2010 registrou 16% de população
economicamente ativa desocupada e 22,9% de população economicamente inativa. Um
indicador relevante é perceber que mesmo na população ativa, a sua grande maioria é
composta de profissionais com baixa qualificação profissional. Em Dois Unidos, 55,4%
dos ocupados tinham o ensino fundamental completo e 37,47% possuíam nível médio
completo. Dados que não diferem muito de Passarinho, onde 54% dos ocupados possuem
ensino fundamental completo e 29,5% são de profissionais com ensino médio completo.
De acordo com o Atlas de Desenvolvimento Humano do Brasil (2013), esses
indicadores de renda e emprego classificam 54,77% da população de Passarinho e 48,28%
da população de Dois Unidos como vulneráveis à pobreza. Apesar desses números serem
significativamente elevados, quando comparados com o Censo de 2000, houve uma
melhora. No Censo 2000, 75,81% da população de Passarinho e 68,8% da população de
Dois Unidos estavam vulneráveis à pobreza.
Apesar de relatos de atividades políticas de esquerda na região – o que motivou a
instalação da Colônia Correcional de Dois Unidos – os bairros nas últimas décadas não
tiveram uma grande experiência de mobilização política popular até o surgimento do
movimento Ocupe Passarinho, no ano de 2014, que veremos com mais detalhes no
próximo tópico21. A partir de então há uma atividade contínua de mobilização política por
melhorias da comunidade, principalmente pelo Espaço Mulher, que é a principal
instituição na mobilização do Ocupe Passarinho. Desde então, o movimento tem
participado de debates relacionados, especialmente, à violência contra mulheres e as

––––––––––––––––––––––––––––
21
O Ocupe Passarinho é um movimento social popular, que nasceu num processo de intensa ameaça de
remoção de milhares de famílias, no ano de 2014, do bairro de Passarinho, uma comunidade com
características rurbanas que é localizada na periferia da zona norte do Recife e de Olinda. (DANTAS e
SOUZA, 2018).
69

necessidades de melhorias urbanas no bairro, com diversas menções na imprensa e alguns


estudos no meio acadêmico sobre essa mobilização popular.
A pesquisa de Barboza, Oliveira e Freitas (2010, p.14), sobre a tentativa de
organização do Fórum Popular Permanente de Dois Unidos, diagnosticou entre outros
fatores o comportamento de passividade da comunidade àquela época, mencionando que
a “falta de uma experiência participativa comunitária anterior a este projeto colocou um
entrave para o avanço da proposta e a participação dos moradores”. Esse cenário teve uma
mudança, com o Movimento Ocupe Passarinho, mas nas entrevistas foi possível
identificar a passividade entre os universitários e idosos que não integram os movimentos
sociais.

3.3 Movimento popular “Ocupe Passarinho”

O Ocupe Passarinho é um movimento social popular que nasceu em meio a uma


tentativa de remoção de pelo menos cinco (5) mil famílias que moravam no Bairro de
Passarinho, no ano de 2014. Anos de ocupações ilegais levaram o poder público a
surpreender moradores de décadas na localidade com ordens de despejo em 60 dias
devido a um mandado de reintegração de um terreno que abrange 33 hectares em
benefício da Indústria e Comércio de Pré-moldados do Nordeste LTDA instalada na
comunidade. A ação da empresa junto ao poder judiciário foi iniciada em setembro de
2007, entretanto foi conhecida pelos moradores em 2014. Dentro do perímetro demarcado
na decisão judicial algumas famílias relataram morar há mais de 40 anos. No mesmo ano,
o então governador decretou a área como de interesse público e põe fim ao processo de
reintegração, sendo amplamente noticiado pelos jornais impressos e televisivos da época.
A trajetória e o esforço popular para chegar a esse resultado não foram poucos.
A notificação judicial de reintegração de posse criou um sentimento de
insegurança na comunidade, dando início a uma série de reuniões para defender suas
moradias. Os moradores contaram com apoio de Organizações Não Governamentais e
movimentos sociais a exemplo da Casa da Mulher do Nordeste, ActionAid, Ocupe
Estelita e SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia.
A atuação coletiva conseguiu mobilizar a população local e promover reuniões
com a Secretaria de Desenvolvimento e Direitos Humanos do Estado e com
representantes da Prefeitura do Recife. As reuniões eram marcadas por fortes emoções,
movidas inclusive pelo medo dessa população, de baixíssima renda, perder sua residência.
70

Dentro desse contexto de mobilização, os moradores fecharam a BR-101, em um trecho


próximo a comunidade, no dia 22 de setembro daquele ano. O grande congestionamento
de 18 quilômetros gerou noticiários nos grandes veículos de imprensa de Pernambuco,
proporcionando uma ampla divulgação na cidade.
Além da atuação da população local, das ONGs e movimentos sociais, a
Defensoria Pública de Pernambuco teve também uma atuação significativa de defesa do
direito à moradia que foi ratificado pelo Governo do Estado de Pernambuco. O decreto
do executivo estadual22, além de declarar o terreno como área de interesse social para fins
de desapropriação, também previa um processo de regularização fundiária, além da
realização de projetos qualificação da estrutura urbana dessa comunidade (DANTAS;
LIMA, 2018).
Há duas questões importantes em relação às datas desse movimento. O nome
Ocupe Passarinho só vem a ser utilizado pela população local com a realização da
primeira festividade que marcou o aniversário da declaração do terreno como área de
interesse público. Esse evento, com proposta de ser anual, é ancorado pelo Espaço
Mulher, que, como citado anteriormente, é a principal instituição em atividade na
mobilização da população local. Mais que um evento de comemoração, o encontro anual
é uma ocasião de ratificar as reivindicações de melhorias urbanas e de acesso a direitos
suscitados por esse movimento popular feminista. As lideranças entrevistadas pela
pesquisa indicam que a escolha desse nome é uma referência ao movimento Ocupe
Estelita, que reivindicava também o direito à cidade, mas na região central do Recife, no
Bairro de São José, nas intermediações do Cais José Estelita. No ano de 2014 um grupo
de integrantes desse movimento visitou o bairro de Passarinho para conhecer as
reivindicações da comunidade e contribuir com esse processo de luta popular pelo direito
à moradia.

O Ocupe nasceu com uma proposta de evento a ser realizado uma vez por ano,
sendo um dia de atividades na comunidade que visava atrair o olhar da
sociedade civil e do poder público para os problemas pelos quais o bairro passa.
Em articulação com diversas organizações, coletivos e movimentos da Região
Metropolitana do Recife – inclusive o Movimento Ocupe Estelita -, o Ocupe
Passarinho trouxe um dia de programações intenso para a comunidade: rodas

–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
22
Decreto 41.332, de 19 de novembro de 2014, assinado pelo então governador João Soares Lyra Neto,
“Declara de interesse social para fins de desapropriação a área de terra, com suas benfeitorias porventura
existentes, situada no município do Recife, neste Estado”. Foi publicada no Diário Oficial de Pernambuco,
em 20 de novembro de 2014.
71

de diálogo, debates, oficinas infantis, apresentações culturais, etc.


(CAVALCANTI, 2018, p. 35).

Outra data relevante acerca da origem do movimento está relacionada ao


surgimento do próprio Espaço Mulher. As bandeiras de reivindicação que mobilizaram a
população local estavam na raiz desse grupo feminista desde o final dos anos 1990. Esse
grupo foi criado por mulheres negras, empregadas domésticas, que discutiam no trajeto
do transporte até o trabalho, - na época de caronas em uma Kombi -, enfim, sobre as
necessidades da comunidade. Desse movimento coletivo surgiu a ideia de auto-
organização de um grupo de mulheres para reivindicar ações do poder público no sentido
de atender as demandas reprimidas da população, como transporte coletivo, educação,
saúde e segurança. Há de se observar que a comunidade recebeu escola, linha de ônibus
e alcançou melhorias a partir de investimentos públicos municipais, entretanto outras
demandas seguem sem atendimento. Essa organização é a principal responsável pela
articulação da continuidade do Ocupe Passarinho e tem sido a instituição mais ativa nas
reivindicações de melhorias na comunidade.
O evento Ocupe Passarinho teve três edições. De acordo com Dantas e Lima
(2018), a participação da população veio perdendo força com o distanciamento do
momento da crise que o gerou em 2014. Apesar disso, as organizadoras, que integram o
Espaço Mulher, mantêm um evento cultural e formativo, que inclui apresentações
musicais, teatrais, participação de ONGs e representantes de movimentos sociais, feirinha
e oficinas. A organização confecciona camisas, blusas e bolsas com imagens que fazem
referência ao movimento e servem também para levantar recursos para o trabalho do
Espaço Mulher.
A força da líder do Espaço Mulher, Ediclea Santos, 61 anos, se consolidou nos
últimos anos como uma referência de liderança feminista em temas relacionados à
periferia e a questão racial. A atuação local (grupo de 15 mulheres) e capacitação para
discutir assuntos de grande interesse social têm ampliado a divulgação na grande mídia,
além das publicações na imprensa alternativa e canais digitais de outras organizações
populares.
Para Dantas e Lima (2018) a atuação do Espaço Mulher por meio do Ocupe
Passarinho tem um grande impacto na formação de uma identidade territorial da
população local e no engajamento dos moradores em temas de interesse coletivo. A
atuação desse movimento contribuiu para tornar menos tímida a participação popular na
72

luta por melhor qualidade de vida, nas reivindicações por implantação de infraestrutura
junto ao poder público.

A partir desse trabalho de mobilização, o Ocupe Passarinho teve um efeito


relevante na construção e no fortalecimento da identidade territorial dos
moradores deste bairro e na organização popular em torno da mobilização em
prol das reivindicações de melhorias urbanas e sociais. O movimento alcançou
inicialmente a maior das suas reivindicações, que foi evitar o despejo de
milhares de moradores da região, mas teve avanços mais tímidos em outras
bandeiras, como na luta por melhorias nas infraestruturas de saúde e educação
locais. O próprio evento Ocupe Passarinho, realizado em 2015 e em 2016, não
foi realizado em 2017 por dificuldades financeiras e de mobilização dos atores
locais. (DANTAS; LIMA, 2018, p. 3).

Assim, por meio do Espaço Mulher, o movimento segue com o desafio de


mobilizar uma parcela maior da comunidade. Com a continuidade dos eventos e a
articulação com outras instituições ligadas aos direitos à cidade e, principalmente, aos
diretos das mulheres, esse movimento social tem contribuído para uma maior
identificação da população com o seu bairro, com um sentimento de pertencimento e,
como resultado estimula a luta coletiva por melhorias urbanas. Suas ações também geram
renda e valorizam os elementos de rurbanidade presentes na região.
73

4 RURBANIZAÇÃO NA PERIFERIA: UM CAMINHO POSSÍVEL PARA O


DESENVOLVIMENTO LOCAL?

Nas periferias urbanas das grandes cidades, - a exemplo dos bairros de Passarinho
e Dois Unidos -, estão localizadas de forma mais acentuada problemas nacionais como a
violência urbana, a pobreza, a falta de infraestrutura básica e uma série de outras questões
que contribuem para o agravamento da desigualdade social no País (como a mobilidade
urbana ineficiente, a ausência de equipamentos educacionais e de saúde qualificados).
Soma-se a esses aspectos a baixa autoestima de muitas comunidades, que geralmente são
marcadas pelos meios de comunicação de massa apenas por seus aspectos negativos,
dificultando assim o desenvolvimento de uma maior identificação com o seu espaço, que
é um elemento fundamental para o despertamento do protagonismo cidadão para o
desenvolvimento local.
Diante desse cenário de adversidades, é imprescindível identificar vocações e os
indicativos de alternativas para a promoção do desenvolvimento local a partir da realidade
específica dessas periferias. Um aspecto que ganhou atenção da sociedade nos últimos
anos e que poderia ser tomado como fio condutor de um planejamento para o
desenvolvimento local dessas periferias é a valorização dos espaços que preservam áreas
verdes, sejam os parques, frentes d’água (praias, lagos, rios) ou mesmo as florestas
urbanas. Ao mesmo tempo, o meio rural também passa por transformações a partir da
apropriação de elementos tipicamente urbanos que agregaram valor à moradia, a geração
de renda e a qualidade de vida dessas populações. Paralelamente as populações urbanas
têm procurado experienciar no seu cotidiano alguns elementos que antes eram da vida
tipicamente rural.
Diante dessa especificidade da realidade de estudo é possível dialogar com o
quadro teórico. Vejamos, pois. Parte-se do entendimento de rurbanização como um
processo de desenvolvimento que promove o diálogo das formas e conteúdos de vivências
rurais e urbanas, segundo Freyre (1982) e agrega-se a questão do desenvolvimento local
como um processo que tem o objetivo de buscar melhoria das condições de vida da
população local, a partir da mobilização das pessoas e instituições segundo Jesus (2003).
Neste sentido é possível perceber elementos que nos apontem a comunicação entre
esses dois conceitos como um caminho sustentável para superação das dificuldades
enfrentadas pelos moradores desses bairros de periferia. Além desse olhar de
identificação dos marcadores de rurbanização e desenvolvimento local, nossa pesquisa
74

tem a pretensão de responder a seguinte pergunta: esse modelo poderia ser aplicado
noutras comunidades de periferia?
Para a caracterização dos elementos de rurbanidade e rurbanização presentes nas
comunidades, bem como a percepção dos marcadores de desenvolvimento local, a
presente pesquisa, de caráter qualitativo, realizou uma intensa observação de campo
durante dois anos e fez uma análise interpretativa a partir das 20 entrevistas realizadas
com moradores dos dois bairros dentro dos seguintes perfis: universitários (8 entrevistas),
idosos (5 entrevistas) e integrantes de movimentos sociais da comunidade (7 entrevistas).
O número menor de idosos se deu porque as respostas acerca das percepções praticamente
se repetiram. Nos outros dois grupos surgiram algumas divergências de percepção e, por
esta razão, um número um pouco maior de moradores pesquisados.
A escolha desses perfis proporcionará o entendimento a partir dos diferentes
olhares sobre as transformações do bairro. O primeiro grupo, o dos universitários por
trazerem olhares acadêmicos das suas respectivas áreas de estudo incorporados ao fato de
morarem e conviverem com dificuldades e potencialidades dessas periferias urbanas. O
segundo grupo, o dos idosos agrega informações e interpretações próprias pelo longo
período de vivência no bairro e, o terceiro grupo, integrantes de movimento sociais por
estarem engajados diretamente nas reivindicações por melhorias na infraestrutura e nos
serviços públicos.
Ao trabalhar o espaço de periferia urbana dotado de carências torna-se
imprescindível o entendimento do Estado em várias escalas. Como no caso da
rurbanização, o processo de desenvolvimento, na maioria dos casos, conta com uma
participação forte do poder público, se faz necessário mapear as iniciativas do poder
público estadual e municipal nessas comunidades e verificar se dialogam ou não com os
elementos de rurbanização e de desenvolvimento local.
Essa análise indicará a existência ou não de diálogo entre ações públicas e
necessidades da comunidade que possam favorecer a um dinamismo autossustentável. É
importante ressaltar que dentro do conceito de desenvolvimento local o protagonismo do
processo é das pessoas que vivem na comunidade e das instituições por elas formadas, e
não dos governantes, empresas ou demais instituições externas que venham a intervir ou
induzir possíveis melhorias para as comunidades.
75

4.1. Cenários de rurbanidade

Os cenários de rurbanidade presentes nas comunidades foram construídos a partir


do levantamento de publicações científicas e jornalísticas (dos três grandes jornais de
Pernambuco – Diario de Pernambuco, Jornal do Commercio e seus portais digitais) e,
principalmente, por meio da observação direta de Dois Unidos e Passarinho e das
entrevistas com os moradores. Nesse passo de caracterização dos bairros, observa-se os
elementos naturais e humanos de rurbanidade presentes e buscar o entendimento de suas
capacidades de contribuírem como elementos relevantes no desenvolvimento local.
Do ponto de vista ambiental, os espaços guardam ainda uma vasta área verde
preservada, nas reservas de Mata Atlântica (a Mata de Passarinhos, com 14 hectares; e a
Mata de Dois Unidos, com 52,14 hectares, de acordo com o documento Unidades
Protegidas do Recife, da Prefeitura Municipal do Recife). Então, qual a relação da
população local com este ativo ambiental? Podemos responder esse questionamento tanto
com o levantamento realizado pela atual pesquisa, como pelos estudos de Dantas, Dantas
e Torres (2014), que estudaram exatamente qual a relação da população que morava
vizinha à Mata de Dois Unidos. Os resultados do estudo realizado por esses autores
apontaram para o pouco conhecimento sobre as leis que regem a Unidade de Conservação
e uma percepção negativa sobre as restrições impostas pelo IBAMA (DANTAS;
DANTAS; TORRES, 2014). Este é um elemento negativo para conservar e preservar o
ativo ambiental, buscando num futuro uma ecoeconomia.
Para a compreensão desse processo ambiental foram desenvolvidas por esses
autores entrevistas com 22 moradores da vizinhança da reserva. Primeiro aspecto
identificado é o fato de que 77% “não realizavam e nem tinham realizado atividades na
mata”, ou seja, a maioria não tinha nenhum tipo de interação com esse ativo ambiental.
Apesar disso, quando perguntado aos entrevistados se eles tinham realizado ações de
preservação ambiental nesta reserva, 68% deles apesar de não se envolver diretamente
com a mata, preservavam evitando formas de degradação.
Contudo afirmam que entre as tensões nessa área da reserva estão o
desmatamento, a queimada, a caça predatória, o corte de árvores, a apreensão de animais
e a dispersão de lixo. Na avaliação dos autores “Em todos os trechos foi observado que a
expansão urbana é um dos agravantes da degradação da Mata de Dois Unidos, e essa
76

intervenção humana se dá através da ocupação e transformação da área” (DANTAS;


DANTAS; TORRES, 2014, p. 8).
A relação, portanto, de parte da população com esse que é o principal ativo
ambiental da comunidade é marcado por certa tensão e distanciamento (não físico, visto
que são vizinhos da mata, mas pelo fato de não haver quaisquer interações desses
moradores com o espaço preservado). Os entrevistados da atual pesquisa, que não são
vizinhos imediatos das matas, como no caso do estudo de Dantas, Dantas e Torres (2014)
possuem algumas concepções diferentes da mata, que serão apresentados no próximo
tópico.
Por outro lado, o poder público em seu campo de ação declara a Mata de Dois
Unidos como Unidade de Conservação Municipal na Lei Nº 16.176/96, e posteriormente,
regulamenta por meio da Lei Nº 9.985/2000 como Zona Especial de Proteção Ambiental
2. Este marco legal determinou que seja criado um Plano de Manejo, a ser coordenado
pelo Órgão de Gestão Ambiental Municipal e com a participação da sociedade civil. O
referido plano ainda está em desenvolvimento através de uma cooperação técnica entre a
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente (SDSMA) junto
à Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) e a Agência Estadual
de Meio Ambiente (CPRH). Apesar do lento caminhar foram realizadas em 2018,
reuniões e oficina de elaboração do Plano de Manejo da Unidade de Conservação com
moradores, membros de associações de bairro, ONGs, representantes de empresa privada,
profissionais da saúde, educação, meio ambiente e Polícia Militar.
Quanto a Reserva da Floresta Urbana de Passarinho, esta possui um Plano de
Manejo, construído no ano de 2013. Esse documento informa que a floresta possui uma
“feição tipo anfiteatro” que circunda a área baixa do bairro, e possui uma “vegetação
remanescente que evidencia a existência no passado uma lagoa de captação de água de
nascente e água pluvial” na região.

A FURB Mata de Passarinho constitui um importante atrativo ambiental,


histórico e cultural, com potencial turístico e educativo, apesar de ainda ser
pouco conhecida e explorada pela população olindense. Mesmo tendo sua
cobertura vegetal limitada fisicamente pelo tecido urbano consolidado em seu
entorno, predominam os aspectos e características do verde urbano, disponível
para visitação, estudo e recreação em qualquer época do ano
(PERNAMBUCO, 2013, p. 27).

No Plano de Manejo estão registradas mais de 50 espécies de plantas lenhosas


encontradas na Unidade de Conservação de Passarinho. A mata, apesar de ter uma
77

pequena extensão, abriga também uma lista numerosa de espécies de animais, incluindo
mamíferos como bicho-preguiça, preá, raposa, saguim, timbus; répteis a exemplo do
jaboti, cágado, iguana e teju; e uma diversidade de anfíbios, aves e insetos. Diferente da
Mata de Dois Unidos, em Passarinho há uma estrutura municipal de gestão da Unidade
de Conservação para recepção de visitas públicas e de caráter científico. Uma estrutura
pública que teria o potencial de ser um espaço de formação ambiental em direção à uma
maior consciência do valor das rurbanidades nesses locais.
As matas são o elemento de rurbanidade mais perceptível pelos moradores. Elas
foram mencionadas como ativos importantes dos bairros por todo o grupo enquadrado no
perfil de integrantes de movimentos sociais e pela maioria dos universitários ouvidos
(apenas uma não mencionou a mata como um aspecto de rurbanidade na comunidade,
citando apenas que entre os aspectos mais típicos do universo rural ela observava a
presença de animais de maior porte no bairro, não comuns na cidade.
Uma das universitárias (U5) relatou que desde a infância passeava e brincava na
região da Mata de Passarinho, sendo a única que sinalizou de fato uma relação mais forte
nesse espaço. Aos demais ficou claro na pesquisa que há uma valorização dessas matas
ou florestas urbanas como um ativo importante para o bairro, que precisam ser
preservados, mas nunca tiveram uma experiência mais significante nesses espaços. Os
idosos, por sua vez, faziam referência aos elementos de rurbanidade do bairro como algo
mais referente ao passado, - com a extensão de áreas verdes -, do tempo que chegaram à
localidade para morar, embora sejam um grupo que guarda práticas agrícolas nas suas
residências, nos quintais.
Uma particularidade dos bairros de Dois Unidos e Passarinho além dessas reservas
permanentes, é o fato de possuírem sítios urbanos e áreas desocupadas que passaram a
receber ocupações irregulares em áreas privadas nos últimos anos com finalidade
residencial. Numa região dessas comunidades compreendida entre o Terminal de Ônibus
de Passarinho e a BR-101, pela Rua Pereira Barreto, nas proximidades do Conjunto
Habitacional Miguel Arraes, há uma presença ainda maior de sítios no bairro. Com mais
espaço nos quintais e com uma maior concentração de população de idosos, neste trecho
do bairro é mais comum a prática da agricultura urbana e onde estão as experiências mais
consistentes de produção de alimentos para consumo e comercialização dos excedentes
dos bairros. É nessa localidade onde aconteceram algumas das Oficinas de Agricultura
Urbana ligadas ao Espaço Mulher. Uma das idosas entrevistadas mencionou que nessa
78

região havia uma intensa plantação de cana-de-açúcar no passado, num marco de tempo
de aproximadamente 50 a 55 anos.
Acrescentando ao quadro de mudança ambiental os dois rios que cortam os bairros
(Rio Beberibe e Rio Morno) possuem pouca mata ciliar e encontram-se extremamente
poluídos. Árvores são derrubadas sistematicamente na região com a finalidade de abrir
novos terrenos para construções de moradias ou para abertura de vias. Do ponto de vista
paisagístico além das matas, ocupações consolidadas e em construção, a paisagem do
bairro é desenhada ainda por uma série de morros que circundam as suas áreas planas,
onde estão localizados comércio e terminais de ônibus.
Nesses bairros há ainda uma significativa produção de água. Está localizada ao
lado da Mata de Dois Unidos à sede da Água Mineral Santa Clara, por exemplo, que segue
por décadas seu trabalho de extração e engarrafamento de água mineral. Apesar disso, a
oferta de água encanada na comunidade é um problema semelhante aos demais bairros da
periferia do Recife. A presente pesquisa identificou ainda que alguns dos quintais
possuem cacimbas para coleta de água para consumo familiar, complementar à oferta de
água da Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa).
A imagem a seguir, a Figura 17 por exemplo, por estar situada numa propriedade
privada é bem pouco conhecida pelos moradores do bairro. Durante as pesquisas, quando
essas imagens foram apresentadas aos universitários e aos idosos houve surpresa ao
saberem que se tratava de uma localidade dentro da comunidade de Dois Unidos. Isso
revelou que existe a percepção da população local quanto aos aspectos de rurbanidade
ainda presentes nesses bairros, mas ela é limitada pelo fato de parte disso estar em terrenos
privados e outra parte estar numa área marcada como Reserva de Floresta Urbana, em
que os acessos são de certa forma restritos.
Essas informações apontam para a necessidade de uma maior circulação dessas
imagens e informações que valorizam essas comunidades nos espaços coletivos, como
associações, igrejas ou mesmo em espaços digitais utilizados pelos jovens, como as redes
sociais. O maior conhecimento desse cenário de rurbanidade tem o potencial de agregar
valor aos bairros, associado ao sentimento de orgulho das comunidades e, em um segundo
momento, de preservação desses ativos ambientais.
79

Figura 17 – Açude da Água Mineral Santa Clara.

Fonte: Francisco Cunha (arquivo pessoal do autor)

Apesar do processo de degradação ambiental das matas, a pesquisa de Campos e


Pacheco (2018) apontou que atualmente, as cabeceiras do rio Beberibe encontram-se
relativamente preservadas, ressalvando, no entanto, o crescimento da população na
Estrada da Mumbeca, na Guabiraba, e na Estrada de Aldeia, em Dois Irmãos. A motivação
desse crescimento de uso para habitação seria decorrência da atividade de “clubes de
campo, condomínios fechados horizontais, casas de eventos”, estruturas que afetam a
qualidade e a quantidade de água do manancial em questão. Na observação direta da
pesquisa foi possível identificar que no trecho do Bairro de Passarinho, bem próximo a
BR-101, há uma ocupação intensa do ano de 2018, imediatamente às margens do rio.
Há na área urbana dos bairros, principalmente nas residências mais próximas das
áreas verdes, a presença de animais silvestres e até, segundo os moradores, existe a
criação alguns de grande porte, como cavalos e vacas, embora em número inferior a
presença em décadas atrás. Na região onde ainda é mais predominante a presença de
sítios, (Figuras 18 e 19) são encontrados saguins, iguanas, algumas espécies de cobras e
gaviões, de acordo com o relato dos nossos entrevistados e da observação direta na região.
80

Figura 18 – Região de sítios no bairro de Dois Unidos. Registro de existência de densa vegetação em
propriedade particular, com o Sr. Amaro.

Fonte: Arthur de Souza (cedido pelo autor).

Figura 19 – Região de sítios no bairro de Dois Unidos. Registro de criação de patos, com a Srª Lourdes.

Fonte: Arthur de Souza (cedido pelo autor).

Então, diante da presença de áreas verdes, nos costumes e práticas da população


podemos apontar a remanescência de elementos de ruralidade com a prática de agricultura
nos quintais, principalmente no bairro de Passarinho. Essa marca é notada em especial
nas famílias que vieram do interior do Estado, dentro do contexto do fenômeno do êxodo
rural, (décadas atrás) em que muitas famílias deixaram o interior do Nordeste em busca
de oportunidades nas grandes cidades (RITTER; FIRKOWSKI, 2009). De acordo com
81

Cruz (1962) no bairro de Dois Unidos 40% dos moradores criavam animais e 59,5%
plantavam no quintal de casa no início dos anos 1960. Em sua pesquisa com os moradores
da região foi mapeado, naquela ocasião, que cerca de 54,1% delas tinham origem rural e
45,9% vinham de áreas urbanas. Esse estudo não abrangeu o bairro de Passarinho.
Dantas e Lima (2017) identificaram vários elementos de práticas tipicamente
rurais no cotidiano dessas comunidades urbanas.

“Foi verificado práticas agrícolas e criação de animais, algo que é típico do


contexto rural. E também evidenciamos as trocas solidárias, venda de pequenas
produções originadas dos quintais, o que poderíamos indicar como quintais
produtivos. A caracterização formal da área como urbana indica nessa prática
típica de áreas rurais o que se considera agricultura urbana”. (DANTAS;
LIMA, 2017 p. 7).

Um dos fatores recentes de motivação para essas práticas foi o projeto de


Agricultura Urbana, com 30 mulheres, em 2016. No projeto Mulheres Urbanas:
Segurança Alimentar e Consumo Consciente, um grupo de moradoras conectado à ONG
Espaço Mulher receberam oficinas e assistência técnica para aprenderem a cultivar os
quintais produtivos, conforme Figura 20. Tal iniciativa foi coordenada pela ONG Casa
da Mulher do Nordeste, pela ONG Espaço Mulher, além da UFPE e UFRPE. O projeto
teve ainda como proposta da troca de saberes entre o conhecimento das práticas
tradicionais com o conhecimento científico, dentro de uma abordagem agroecológica.

Figura 20 – Quintal agroecológico de uma das integrantes do grupo de mulheres capacitadas em


agricultura urbana pela ONG Casa da Mulher do Nordeste, em parceria com o Espaço Mulher.

Fonte: Elaboração do autor, 2019.


82

Essa iniciativa contribuiu para a produção de alimentos de forma orgânica, sem


uso de agrotóxicos, contribuindo para geração de renda de algumas famílias com a
comercialização dos excedentes das frutas, hortaliças e verduras produzidas, mudas das
plantas ou produtos derivados delas, como picolés e bolos. Outro aprendizado dessas
oficinas foi de produção de fertilizantes naturais (a partir do chorume), que é
comercializado e utilizado nos próprios quintais. A geração de renda, obtida pela
experiência de parte das mulheres que receberam essas capacitações, bem como dos
moradores de alguns sítios identificados, são elementos que caracterizam o
desenvolvimento local, ao mesmo tempo em que sendo frutos de agricultura, promovidos
por um processo intencional de capacitação para manutenção dessas características
potenciais de ruralidade no meio rurbano, são marcadores dos conceitos de rurbanidade e
de rurbanização.
Tanto a geração de valor a partir da produção agroecológica como o uso desses
produtos no consumo familiar foram identificados também por Freitas, Silva, Jalil e
Oliveira (2018) em uma pesquisa com essas mulheres. As trocas entre elas de sementes,
mudas e produtos também foi analisada, sendo caracterizado também neste contexto laços
de solidariedade comunitários. Apesar da capacitação promovida pela ONG, a referida
pesquisa identificou que a maioria das mulheres já possuíam conhecimentos agrícolas
adquiridos com suas mães ou avós.

A agroecologia vai incidir nesses espaços e na vida das mulheres,


principalmente através dos quintais produtivos. Sendo considerado a extensão
do trabalho doméstico, o plantio das mulheres nos quintais é desvalorizado e
tido como trabalho reprodutivo. Desse modo, potencializar a agroecologia é
visibilizar não apenas o trabalho, mas resgatar práticas e saberes antigos,
sobretudo entre as gerações de mulheres, tendo em vista que a maioria delas
aprendeu a plantar com a avó (33%) ou a mãe (40%), o que nos mostra como
as mulheres produzem e transmitem saberes entre elas, inclusive saberes
históricos. Da mesma forma, a produção das mulheres também tem uso
histórico, uma vez que ela é destinada a alimentação e aos cuidados da família;
em Passarinho, 57% das mulheres utiliza a produção na alimentação da família.
Através dos dados também observamos que as mulheres utilizam 14% da
produção para a troca, mostrando que o tecido social ainda é construído através
dos laços de solidariedade entre elas. (FREITAS; SILVA; JALIL;
OLIVEIRA., 2018, p. 5).

Na observação ao longo dos dois anos da presente pesquisa sobre as comunidades,


foi possível perceber ações dos moradores distribuídos nos espaços públicos que eram
ocupados por pontos críticos de acúmulo de lixo. O problema do acúmulo de lixo em
esquinas, ruas menos movimentadas, terrenos baldios e nas margens dos rios segue
83

presentes e espalhados em diversos lugares dos bairros. No entanto, foi perceptível a


multiplicação de iniciativas de limpeza, instalação de placas de “proibido colocar lixo”,
plantio de mudas de árvores nas margens do rio, cercamento com pneus de alguns desses
pontos críticos de depósito de lixo para plantio de vegetação decorativa, como mostra a
figura abaixo.

Figura 21 – Local que antes era um Ponto Crítico de Lixo, às margens do Rio Beberibe, nas proximidades
do principal pontilhão que liga os bairros de Dois Unidos e Passarinho.

Fonte: Elaboração do autor, 2019.

São ações que aconteceram após os primeiros anos do movimento Ocupe


Passarinho, embora não seja possível fazer uma relação direta entre suas ações e
mensagens de melhoramentos da qualidade de vida da comunidade e estímulo à
participação popular com esse efeito de combate ao descarte irregular do lixo e as
experiências pontuais de plantio e reflorestamento. Esse fato foi observado diretamente e
também mencionado por alguns universitários entrevistados na pesquisa.
Outra característica presente na comunidade que se distancia do que é típico dos
contextos urbanos, em sua maioria, é de incidência elevada de transporte não motorizado
(seja a pé, de bicicleta ou em casos hoje mais pontuais com animais) para curtas e médias
distâncias. Devido à condição de baixa renda da comunidade, ainda é bem comum vários
trabalhadores que atuam nas comunidades próximas dos bairros ou mesmo dentro dos
84

bairros de Dois Unidos e Passarinho, fazerem seus deslocamentos de bicicleta ou a pé. O


uso de carroças e cavalos, antigamente mais comum, hoje é praticamente inexistente, mas
ainda presente.
Apesar disso, ambas as comunidades sofrem atualmente com problemas de
trânsito urbano, com alguns engarrafamentos nas suas áreas mais povoadas, como na
Avenida Hidelbrando de Vasconcelos. Além dos veículos particulares, há um trânsito
local de caminhões para abastecimento, armazenagem e desabastecimento de
mercadorias. A reclamação acerca do trânsito e da qualidade do transporte público, que
enquadramos como transporte, foi mencionado por 50% dos entrevistados como um dos
problemas a serem superados pelo poder público.
A despeito dos elementos de rurbanidade já serem analisados por diversas
pesquisas acadêmicas que se dedicaram ao estudo das matas, do rio e das práticas
agrícolas estimuladas pelas Organizações Não Governamentais que tem atuação nas
comunidades, esse recorte ambiental e de ruralidade remanescente na região é
praticamente invisível na cobertura da imprensa pernambucana.
Em um levantamento de todas as publicações realizadas em 2018 nos sites de
notícias do Jornal do Commercio (www.jconline.com.br), Diario de Pernambuco
(www.diariodepernambuco.com.br) e da Folha de Pernambuco (www.folhape.com.br)
que mencionam os bairros de Dois Unidos, apenas uma matéria trata da questão
ambiental, que é um dos elementos de rurbanidade presentes na comunidade. A
reportagem “Unidades de Conservação do Recife ganham reforço estadual”, publicada
em 02 de Abril de 2018, na Folha de Pernambuco que noticiou uma parceria das estruturas
públicas do Estado e do poder municipal para defender as unidades de conservação, entre
elas a Unidade de Conservação de Dois Unidos. A maioria das reportagens destacam os
assassinatos, queda de barreiras e a Parada da Diversidade que acontece no bairro.
Observado o mesmo período, o ano de 2018, nos três veículos de imprensa já
citados, o destaque para os resquícios de rurbanidade presentes na comunidade de
Passarinho aconteceu em apenas uma publicação no Jornal do Commercio, e em uma
notícia do site da Folha de Pernambuco. Na reportagem “Mata do Passarinho: moradores
pedem mais integração com reserva florestal”, publicada no dia 02 de outubro de 2018, é
destacado o marco de 16 anos da reserva e uma contestação dos moradores locais por
mais atividades que os conectem a esse ativo ambiental. Enquanto isso, na Folha de
Pernambuco há uma menção indireta, em uma notícia que anunciava que a Mata de
Passarinho estava incluída no roteiro da Semana Lixo Zero Brasil, no dia 18 de outubro
85

de 2018, evento de conscientização ambiental. A violência urbana e os problemas


relacionados ao saneamento e iluminação pública são os mais frequentes no noticiário
dos três jornais.
Essa invisibilidade dos elementos de rurbanidade e dos ativos ambientais da
comunidade na grande imprensa contribui para que esses fatores também não estejam tão
visíveis aos moradores da comunidade, conforme ficou registrado nas entrevistas
realizadas para esta pesquisa e serão apresentados no próximo capítulo. Outra
característica que contribui para a não percepção dos elementos de rurbanidade por parte
do grupo de entrevistados é o fato dessas práticas de agricultura urbana e das áreas
preservadas serem em sua maioria em lugares privados e no caso das matas não haver
oportunidades mais amplas de conhecimento e visitação da população a esses espaços,
inclusive para preservá-los.
Na Mata de Passarinho há uma estrutura para recepção de visitantes, não sendo
sequer conhecida pela maioria dos entrevistados, por exemplo. A Mata de Dois Unidos
não possui estrutura para visitação. Com exceção dos moradores que tem suas residências
imediatamente ao lado dessas reservas, para a maioria da população a relação com essa
paisagem preservada acontece apenas nos curtos trechos deslocamentos pelas avenidas
desses bairros que passam ao lado das matas (a Estrada do Passarinho, em Olinda, e a
Avenida Hidelbrando de Vasconcelos, em Dois Unidos).
Observando os três grupos entrevistados, apenas os integrantes de movimentos
sociais e um dos universitários apontaram os ativos ambientais da comunidade como um
elemento positivo, presente no seu bairro já no primeiro momento. A maior parte dos
universitários (70%) faz a associação da comunidade a presença de um ativo ambiental e
costumes sociais que remetem à rurbanidade apenas quando provocados. O universitário
que realizou a menção aos ativos ambientais, estudava engenharia de pesca. Ele apontou
que algumas das características marcantes da comunidade são o seu rio e suas matas e
enfatizou o processo de degradação e de poluição de ambos.
Essa informação nos leva a duas concepções: a primeira é de que os moradores
sabem que seu bairro tem características diferentes da maioria da cidade (já que esses
bairros abrigam todas as características rurbanas já mencionadas, como as reservas
ambientais, práticas de agricultura urbana, a criação de animais de maior porte, entre
outros); porém isso ainda não está associado como uma marca da comunidade. Quando
trazemos a memória, por exemplo, o bairro de Boa Viagem ou o do Pina, a praia como
ativo ambiental relevante é uma das forças da identidade desses lugares. Ao tratarmos
86

sobre Aldeia, os aspectos de rurbanidade, como a intensa vegetação e a qualidade


climática diferente do restante da cidade, são elementos que marcam essa localidade.
Tanto a percepção dos ativos ambientais como os elementos mais típicos de
ruralidade estão presentes nos três grupos no que se refere à memória da comunidade, em
quase 100% das respostas. Os idosos e integrantes de movimentos sociais tiveram
experiências mais rurais da comunidade. Os universitários que tem famílias que moram
há mais tempo no bairro se referem aos relatos dos avós ou dos pais de como era o bairro
no passado e, mesmo jovens, tem a lembrança pessoal do tempo em que na comunidade
muitas ruas sequer eram pavimentadas e que as atividades comerciais eram muito
restritas.
As entrevistas com moradores foram semiestruturadas. Várias percepções foram
perseguidas, dentre elas, a percepção da população sobre o local onde moram e modo de
vida, o entendimento de sua origem rural e, a partir daí, que elementos de rurbanidade são
perceptíveis a esses moradores e que demandas são consideradas mais relevantes para
promoção do desenvolvimento local das comunidades. Para desenvolvimento da
entrevista foi elaborado um roteiro, que serviu como uma orientação ao pesquisador.

4.2 Natureza da pesquisa e sujeitos pesquisados

Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, que tem por recorte os


moradores dos bairros de Passarinho e Dois Unidos. Esse segmento populacional se
enquadra em perfis pretendidos que representam uma parcela significativa da população
com capacidade de intervenção na realidade social das comunidades (como os
universitários e representantes dos movimentos sociais) ou de segmentos que conseguem
retratar com mais informações o processo de ocupação do local e as características ainda
presentes de rurbanidade (como os idosos).
As informações coletadas pela pesquisa foram tratadas e sintetizadas com base na
análise interpretativa, examinando-se o material textual e visual produzido ou selecionado
através das entrevistas e pesquisa de campo, associado com sistematização da análise
documental das publicações anteriores realizadas sobre os bairros que são o objeto de
estudo.
A metodologia de análise será orientada por uma análise de conteúdo qualitativa,
segundo uma estratégia de emparelhamento, que segundo Laville e Dionne (1999), trata-
se de um caminho desenvolvido pelos pesquisadores anglo-saxões que consiste em:
87

[…] associar os dados recolhidos a um modelo teórico com a finalidade de


compará-los. Essa estratégia supõe a presença de uma teoria sobre a qual o
pesquisador apoia-se para imaginar um modelo do fenômeno ou da situação
em estudo. Cumpre-lhe em seguida verificar se há verdadeiramente
correspondência entre essa construção teórica e a situação observável,
comparar seu modelo lógico ao que aparece nos conteúdos, objetos de sua
análise. (LAVILLE; DIONNE, p. 227, 1999)

De acordo com essa metodologia de análise, a qualidade do trabalho tem uma


relação direta com a organização dos elementos de comparação entre o aporte teórico
utilizado e os dados coletados, visto que é desta grade de análise que surge a interpretação
dos conteúdos.
Da análise e interpretação dos dados e conteúdos levantados ao longo da pesquisa
serão retiradas as conclusões do trabalho, reconhecendo-se o valor das questões iniciais e
realizando a construção de uma explicação científica do fenômeno estudado dentro dos
limites propostos e, a partir daí observar novos horizontes de pesquisa.
Neste item a proposta é revelar as características e anseios da população local a
respeito de rurbanidade e desenvolvimento local a partir de entrevistas realizadas entre
dezembro de 2018 e janeiro de 2019 com três grupos distintos: idosos, integrantes de
movimento sociais e universitários.

4.3 Características e anseios da população

Na construção deste capítulo utilizam-se números e siglas referentes ao grupo de


entrevistados que integram (I para idosos; U para universitários e IMS para os Integrantes
de Movimentos Sociais, seguido do numeral que é apenas a referência da ordem das
entrevistas).
Todos os entrevistados souberam apontar com facilidade as mudanças em diversos
aspectos no bairro desde a sua chegada à localidade, contudo trazendo apontamentos
diferentes.
A pesquisa partiu de algumas hipóteses. A primeira é de que existe um processo
de desenvolvimento local na comunidade e que alguns dos elementos que compõem essa
construção coletiva estão ancorados nos aspectos de rurbanidade da comunidade. Uma
segunda hipótese era de que a percepção desses aspectos estava concentrada nos
representantes de movimentos sociais, sendo invisível para os universitários e idosos da
comunidade, que são grupos com uma menor interação das lutas pelos interesses da
88

comunidade. Uma terceira era de que o conhecimento histórico estava mais concentrado
nos idosos, sendo menos conhecido pelos universitários.
Em relação à primeira hipótese, podemos apontar que o processo de
desenvolvimento local fica bem característico ao se analisar a experiência das moradoras
do bairro envolvidas na atuação do Espaço Mulher, que é responsável pela mobilização
do Ocupe Passarinho. As entrevistas revelaram a presença dos marcadores do
desenvolvimento local, tais como:
a) um processo de mobilização de pessoas e instituições: a maioria das atividades
do grupo são abertas para a população local, há a comunicação com outros grupos sociais
da comunidade, como associação de moradores e grupos culturais locais, além do diálogo
com Organizações Não-Governamentais externas, ligadas principalmente ao movimento
feminista e aos grupos de pesquisa universitários sobre agroecologia.
b) uma busca pela transformação da sociedade local: várias são as reivindicações
ao poder público por mais investimentos na comunidade, em prol da oferta de novos
serviços públicos, como creches e ampliação da oferta de vagas na escola pública local,
e de estruturas urbanas, como iluminação pública. As integrantes desse movimento social
reconhecem que algumas das demandas foram atendidas, como a chegada da escola
pública, posto de saúde e de calçamento da comunidade, bem como da construção de uma
praça pública.
c) geração de renda: no Movimento Social Ocupe Passarinho, em que há uma
circulação maior de pessoas, é realizada uma feirinha, onde são comercializados lanches,
roupas e produtos artesanais dos próprios moradores locais. A partir das formações de
agricultura urbana, as mulheres capacitadas aprenderam a produzir fertilizante natural,
que é comercializado. O próprio plantio nos quintais agroecológicos gera frutas, verduras,
ervas e legumes que são tanto consumidos pelas próprias famílias (autoconsumo) como
comercializados os seus excedentes, no caso das famílias com maiores quintais. No
Espaço Mulher também houve a confecção de camisas e bolsas, com marcas relacionadas
ao movimento ou à comunidade, que são comercializadas na sede ou nos eventos que as
suas integrantes promovem ou participam.
d) os resultados já alcançados pelos movimentos sociais: a chegada de novas
estruturas urbanas, a oferta de formação e os eventos dessas organizações populares
atuantes na comunidade favorecem a melhoria das condições de vida da população local.
Quanto aos elementos de rurbanidade no seu cotidiano, o grupo dos Integrantes
de Movimentos Sociais é aquele com maior percepção acerca da relevância dos aspectos
89

de rurbanidade para a promoção da qualidade de vida e geração de renda da população.


Uma percepção recente, construída após as formações de agricultura urbana que
receberam via parcerias com outras Organizações Não-Governamentais. Entre os
entrevistados são os que demonstraram maior preocupação com os desequilíbrios
ambientais promovidos pela intervenção da população nas reservas ambientais e pelo
descarte de resíduos sólidos nos rios da comunidade. As entrevistadas que integram o
Espaço Mulher trouxeram um recorte de gênero mais acentuado em relação às
dificuldades enfrentadas pela comunidade. “Aqui só temos de bom a restinga de Mata
Atlântica (Mata do Passarinho e a proximidade com a BR 101) apenas isso. Agora quanto
as deficiências, são muitas, inúmeras”, relatou o IMS 5. O IMS 6 apontou que a principal
mudança que ele percebeu no bairro desde que chegou à comunidade há 40 anos foi que
“éramos área rural, hoje somos área urbana”.
Esses depoimentos expõem de fato a percepção do grupo como um lugar com
características ambientais especiais. Isto se torna positivo uma vez que são formadores de
opinião e motivadores na condução de pautas levadas pelos movimentos sociais. No
entanto, ainda é inicial a percepção da questão rurbanidade, atrelada como um fator que
pudesse agregar qualidade de vida e renda para seus moradores. Apesar disso, existem
oficinas de agricultura urbana, desenvolvimento de novos projetos relacionados aos
quintais agroecológicos no planejamento do movimento social para o ano de 2019. Uma
experiência de transformação simbólica relatou uma das entrevistadas:
No passado precisava gastar dinheiro para limpeza do seu quintal que
acumulava matos, mas em poucos meses passou a coletar de alimentos para
consumo doméstico e para produção de picolés para venda, gerando uma renda
complementar. Em torno de 40 variedades de frutas, verduras, legumes e ervas,
que transformaram a sua relação com o espaço (IMS 4).

Os demais integrantes de movimentos sociais apontaram principalmente as


mudanças relativas às melhorias da infraestrutura urbana, como o calçamento das ruas e
a chegada de instituições como escola pública, posto de saúde municipal e iluminação
pública. Eles alargam o seu entendimento e conseguem identificar uma relação das suas
demandas históricas e as intervenções do poder público na comunidade. No caso de Dois
Unidos, a principal mudança identificada pelos moradores, foi a construção da Avenida
Hidelbrando de Vasconcelos, embora atribuam como uma demanda da iniciativa privada
que tinha atuação na ocasião.
Esse grupo é bastante crítico com a participação tímida da comunidade nos
processos de luta coletiva e faz um esforço pessoal significativo para ativar o movimento
90

em busca das demandas socioeconômicas de interesse comum. Em alguns momentos essa


interação foi real seguida de momentos de dificuldades devidos ora a descontinuidade do
processo, ora as restrições financeiras para colocar em prática os processos planejados e,
sobretudo, a dificuldade na formação de novas lideranças são fatores preocupantes
apontados por integrantes de movimentos sociais. Apesar dos esforços, existem críticas
ao seu trabalho quando em depoimento: “No ponto de vista do potencial eu vejo uma
comunidade lutadora que sabe o que quer, porém que necessita de ser melhor atendida
em todas as áreas por parte do poder Público” (IMS 4).
Sobre esse grupo dos integrantes de movimentos sociais, após a realização da
primeira fase da pesquisa, foram apresentados os resultados iniciais do presente estudo,
sendo referendado pelos integrantes do Espaço Mulher, que é o responsável pelo Ocupe
Passarinho. Algumas representantes do movimento se surpreenderam com alguns
detalhes da história da comunidade levantadas pela pesquisa. Embora elas conheçam as
demandas dos moradores e tenham uma percepção mais forte dos aspectos de
rurbanidade, as informações a quem tem acesso sobre a ocupação dos bairros vem a partir
da formação da Vila Nossa Senhora da Conceição, na década de 1990. Elas concordaram
com a análise acerca dos avanços e limitações apontados na pesquisa inicial, bem como
sobre o alcance da atuação dos movimentos sociais locais.
No grupo dos Integrantes de Movimentos Sociais, metade dos entrevistados
possui entre 60 e 65 anos e metade entre 40 e 45 anos. Os mais jovens, porém, vivem no
bairro praticamente desde que nasceram, enquanto os mais idosos chegaram à
comunidade na formação da Vila Nossa Senhora da Conceição, em Passarinho. Esse
grupo é composto por pessoas com nível médio de escolaridade e o mais crítico em
relação aos problemas no bairro e a percepção de dificuldade de mobilização dos
moradores. No entanto, é o grupo que teve maior capacidade de apontar os avanços que
aconteceram na comunidade relacionando-os às lutas coletivas. As críticas não se referem
à baixa identificação com a comunidade, mas a luta a que eles se propõem a realizar em
busca de melhorias urbanas para os moradores.
Ainda em relação à percepção dos aspectos de rurbanidade na comunidade, o
grupo dos idosos, - que vive nessa comunidade entre 50 e 60 anos – é o que, pôde apontar
mudanças mais substanciais, pois viveram os dias mais rurais dessas comunidades até a
transição para a predominância urbana dos dias atuais. Essa percepção foi apontada
também pelos outros grupos, mas de forma mais limitada, pois não viveram a
91

transformação dessas décadas e pelo fato de não haver uma oferta de informações
sistematizadas.
Para a categoria dos idosos a abertura da Avenida Hidelbrando de Vasconcelos, a
chegada da Fábrica da Minerva (duas estruturas típicas de espaços urbanos), o
escasseamento das práticas agrícolas no bairro e o aumento da quantidade de moradores
e da violência urbana foram as mudanças mais mencionadas por esse grupo de
entrevistados. Todas estão de alguma forma atreladas ao processo de urbanização vivido
pela comunidade (crescimento da atividade industrial, calçamento de vias para atender a
necessidade do deslocamento de veículos motorizados, redução das práticas agrícolas e o
aumento da densidade populacional e da intensidade dos problemas urbanos nessas
comunidades constroem esse cenário relatado pelos idosos.

No começo, os morros não eram ocupados. Era tudo mato. Daí um começou a
invadir e daqui a pouco estava tudo cheio de casas”, menciona o I-1. “Aqui era
o fim do mundo, muito distante de tudo. Andávamos muito para chegar a casa,
sem iluminação de noite. Mas era muito bonito, muito verde, o rio era limpo”,
afirmou a I-3. “Antigamente não conseguíamos ver a casa do outro lado da rua
pela quantidade de bananeiras plantadas. (I-6).

Três idosos entrevistados ainda guardam práticas agrícolas no quintal, então há


uma valorização de ruralidade do local e de qualidade de vida no bairro. Desse grupo de
entrevistados, três quintos têm origem rural e dois quintos de origem urbana. As
necessidades de mudanças no bairro apontadas por eles são notadamente na questão da
saúde pública e do transporte. “Eu sou caipira. Pode me chamar de caipira. É isso que
gosto, de plantar minha horta, ter meu bredo do quintal. Colher as frutas, cuidar dos
bichos”, relatou a I-2, que entre todos os entrevistados é a que vive num ambiente com
aspectos mais rurais, em um sítio privado com amplo quintal. Com origens rurais, ela
trabalhou na infância nos cafezais de Taquaritinga do Norte.
Ainda nos elementos de rurbanidade, nesse grupo dos idosos são visíveis os
elementos de ruralidade em plena atividade no seu cotidiano vivido com elementos de
ruralidade, alargando o sentimento de solidariedade em relação ao compartilhamento de
parte das colheitas das árvores frutíferas como experiência observada ainda hoje pelos
idosos que vivem nos sítios. Esse é um dos grupos que consegue gerar renda a partir das
práticas agrícolas, com venda de frutas e seus derivados, além do autoconsumo, uma
“renda invisível”, que traz uma grande colaboração na segurança alimentar da população
mais carente que vive nesses bairros.
92

Com relação à história, o grupo de idosos contribui com seus conhecimentos da


construção da comunidade, demonstram interesse e são exemplos com experiência
pessoal sobre os aspectos rurais e a capacidade de articulação com seus familiares mais
jovens. Entende-se, pois, que são atores menos ativos no processo de desenvolvimento da
comunidade. Esse grupo e o dos universitários tem uma cultura de participação coletiva
em grupos e atividades das igrejas da comunidade.
O sentimento de pertencimento existe na categoria dos idosos, mas isto não remete
a sua participação ativa nos movimentos sociais atuais como parte de processos de
transformação vividos pela comunidade. Contudo lembra sua participação no passado
com relatos de sua vivência nos seus primeiros anos no bairro, de experiências em
construção coletiva, seja em mutirões para construir residências da comunidade
(mencionada por uma das entrevistadas) ou o financiamento coletivo para a primeira
pavimentação da rua em que moravam. Esses relatos apontaram, sim, para a participação
deles em mobilizações coletivas comunitárias em outros momentos na construção do
bairro. Essa ausência pode ser atribuída a rotina de vida mais caseira e as dificuldades da
idade os isola das atividades de construção coletivas. Apenas uma das entrevistadas
participa das capacitações e eventos do Espaço Mulher, por exemplo. Esse grupo, no
entanto, participa de atividades religiosas das instituições eclesiásticas da comunidade.
A partir das entrevistas foram perceptíveis duas características a partir dos
depoimentos: um sentimento de saudosismo do tempo em que chegaram à comunidade
(apesar de sempre rememorarem as dificuldades e a escassez vivida em décadas atrás,
pois todos chegaram num contexto de pobreza e as moradias mais baratas foram uma
alternativa a falta de renda familiar) e, ao mesmo tempo os relatos são de satisfação com
a sua qualidade de vida atual (como os fatos de terem conquistado a aposentadoria e o
local de moradia sem necessitar mais de aluguel).
O grupo dos universitários se revelou distante, de uma forma geral, dos elementos
questionados referentes ao bairro, a exemplo da sua história e da sua participação nas
mobilizações de interesse coletivo. Dentre os oito (8) universitários apenas dois deles
(25%) mostraram conhecimento mais amplo sobre a história de ocupação do bairro, uma
vez que fizeram pesquisas na comunidade para trabalho da faculdade. As informações do
U8 sobre o bairro são frutos tanto do que ele mesmo observou de transformações no local
como através da história oral advinda de alguns idosos. Este universitário foi além e
desenvolveu no bairro um projeto social de ensino de idiomas estrangeiros, sendo o único
que tinha utilizado os conhecimentos acadêmicos para trazer algum benefício para sua
93

comunidade. O U1 pesquisou sobre a história do Presídio Mourão Filho, levantados em


um trabalho acadêmico realizado a partir da pesquisa de Da Silva e Martins (2014).
Outros universitários mencionaram que ouviam dos avós ou pais referências de que no
passado o bairro era caracterizado por muita vegetação, relatado informalmente de que o
“lugar só tinha mato”. Esses relatos orais reforçam a percepção histórica de um ambiente
mais bucólico do bairro.
Seis dos universitários entrevistados, após citarem os aspectos de rurbanidade
presentes nos bairros, relacionaram esses ativos ambientais e costumes menos usuais nas
cidades como fatores que acrescentam qualidade de vida à comunidade e defenderam sua
valorização. Apenas um deles (U4) mostrou sentimento de valorização dos aspectos de
rurbanidade como um caminho para o desenvolvimento da comunidade:

Acho que já é um caminho para o desenvolvimento do bairro, as pessoas já o


fazem e são beneficiadas por estes aspectos, quando se compara o contraste
com a urbanização desenfreada. Em minha opinião traz uma paz e um
sentimento de contraste com o trabalho fora da comunidade e o ambiente
universitário, por exemplo. A valorização disto é imprescindível até pra
promover a reflexão e o reconhecimento destes aspectos como pontos
positivos, motivadores a preservação. (U4).

Um dos entrevistados, estudante de engenharia civil, U-6 fez uma ressalva em


relação às práticas agrícolas. Ele defendeu a valorização dos ambientes rurais como um
fator importante para o desenvolvimento do bairro, mas se posicionou contra em relação
ao estímulo a criação de animais e plantações justificando que “plantação causaria
desmatamentos. Criação de animais causaria poluição no rio, mau cheiro para as
residências vizinhas”. Foi o único que trouxe uma restrição, mas ele reconhece o valor
dos ativos ambientais do bairro.
Quando foram perguntados sobre as características do bairro, sem nenhuma
indução, apenas um deles (U1) citou esses aspectos característicos das comunidades
rurbanas. Porém, quando eram questionados especificamente se a comunidade possuía
elementos ou práticas rurais, o quadro se invertia. A maioria fazia apontamentos sobre os
ativos ambientais e as práticas rurais. Isso demonstra que esse grupo, em verdade, conhece
os elementos de rurbanidade, porém essas características não são para esse grupo tão
marcantes, não compondo ainda a identidade dessas comunidades. Em outras palavras,
os aspectos de rurbanidade não estão entre as primeiras coisas quem “vem à cabeça” dos
universitários ao se referirem sobre o bairro de Dois unidos.
94

As respostas sobre participação na construção do desenvolvimento dos bairros


indicaram pequeno ou nenhum engajamento em qualquer projeto de transformação. Sobre
esse último aspecto, foi perceptível que esse grupo sequer conhece os movimentos sociais
que têm atuação na localidade. Em outras palavras, eles vivem no bairro, mas não vivem
o bairro. A U5 e a U6, ambas integrantes de comunidades religiosas de origem protestante
no bairro, mencionaram que viveram a maior parte da sua vida mais isolados pelo
ambiente eclesiástico, conhecendo pouca coisa fora do contexto da igreja.
Quanto à percepção do fato de ser um bairro violento não foi tão marcante nesse
grupo, que reconhece em alguns depoimentos que o bairro é “visto como violento”.
Entende-se que não se trata de uma negação desta realidade, mas de que a imagem externa
da comunidade é mais forte do que de fato a sensação dos moradores.
Ainda nesse sentido os jovens contestaram a imagem de violência do Bairro de
Dois Unidos. “Muito embora Dois Unidos seja taxado, por diversas vezes, como um
bairro perigoso e violento, eu nunca me senti tão seguro e confortável num bairro como
aqui”, declarou U5. E segue apontando que os seus amigos jovens gostam do bairro,
embora apontem a ausência de alternativas de lazer. “O que se tem pra fazer aqui?! Dois
Unidos não tem nada!”, afirmou U8. Todas as suas sugestões estão relacionadas a esta
demanda, como a indicação da necessidade de criar uma biblioteca, espaços para ensino
de música, capoeira, cursos de línguas, reforço escolar, com oferta de formação em
empreendedorismo e criatividade. Diversos anseios ancorados na melhoria da qualidade
de vida local e na expectativa da chegada de estruturas que contribuam para a geração de
emprego e renda nas comunidades.
Como um valor social desses bairros, a maioria dos universitários apontou as
relações amistosas vividas pelos jovens e adolescentes desses bairros, destacando a
pluralidade das pessoas e também o fato de ser um lugar bastante populoso. U7 aponta
que se trata de “um lugar extremamente plural e vejo isso como algo muito positivo. Tem
muita igreja, muito bar, tem ‘cruzadas evangélicas’, tem marcha LGBTQI, tem sempre
muita gente na rua, ocupando os espaços”. Mas admite que, apesar desse cenário de
ocupação dos espaços públicos, faltam áreas de convivência na comunidade.
A sistematização das percepções das três categorias de entrevistados sobre as
comunidades de Dois Unidos e Passarinho está apontada no Quadro 2, abordando as
seguintes questões: a) a percepção da qualidade de vida; b) o conhecimento sobre a
história da comunidade local; c) a percepção sobre a participação popular nas causas
coletivas; d) a percepção dos aspectos de rurbanidade das comunidades.
95

Quadro 2 –PERCEPÇÕES DOS ENTREVISTADOS


SOBRE AS COMUNIDADES DE DOIS UNIDOS E PASSARINHO
REPRESENTANTES
IDOSOS DE MOVIMENTOS UNIVERSITÁRIOS
SOCIAIS
Um cenário de
Há um cenário de
insatisfação mais
satisfação, em
forte e de intensas Percepção positiva
comparação à sua
cobranças e atuação quanto à
chegada à
por melhorias. sociabilidade, mas
Percepção da comunidade.
Violência ressaltada. identificação de
qualidade de vida Desconfortos
No entanto, há uma falta de opções de
urbanos
avaliação de que as lazer. Violência
ressaltados,
condições de vida minimizada.
violência
melhoraram a partir
mencionada.
das lutas coletivas.
Conhecimento tanto
Conhecimento pessoal das
Conhecimento da pessoal das transformações do Baixo
história local transformações do Espaço, mais conhecimento.
Espaço. sistematizado do que
os idosos.
Percepção e
Há uma percepção de
identificação
Pouco que as pessoas
pessoal de que a
conhecimento “sabem o que
participação é
Percepção sobre a sobre as lutas querem”. Há uma
reduzida. Há um
participação coletivas e exaltação das
reconhecimento de
popular nas comportamento conquistas coletivas.
que seu
causas coletivas mais doméstico, Mas crítica da baixa
conhecimento
de baixa quantidade de
acadêmico poderia
participação. pessoas envolvidas
contribuir para
nesses processos.
melhorias no local.
Percepção média Percepção geral
dos aspectos da baixa sobre as
comunidade, mas considerações
Alta percepção.
identificação acerca da
Preocupação com os
Percepção dos pessoal com as comunidade, mas
desequilíbrios
aspectos de práticas de elevada quando
ambientais. Incentivo
rurbanidade das rurbanidade. provocados sobre o
às práticas de
comunidades Associam o tema. Crença de que
rurbanidade na
contexto de são importantes para
agenda de atuação.
rurbanidade mais melhoria da
ao passado do que qualidade de vida
ao presente. local.
Fonte: Elaboração do autor, 2019.
96

A análise da síntese das entrevistas em comparação com as questões iniciais que


nortearam as entrevistas nos aponta para alguns resultados que confirmam a presença do
desenvolvimento local na comunidade e o papel dos resquícios de rurbanidade do bairro
nesse processo de melhoria da qualidade de vida e de geração de renda.
A participação de moradores na luta por melhorias urbanas e pelo estímulo às
práticas rurbanas, que qualificaram a vida da população local, apontam para os
marcadores de desenvolvimento local nos Bairros de Dois Unidos e Passarinho,
principalmente neste segundo, por meio do Espaço Mulher, através do Ocupe Passarinho
e de outras iniciativas, conforme já mencionado.
Todos os grupos têm a percepção, direta ou indiretamente, dos aspectos de
rurbanidade na comunidade, sendo mais frágil entre os jovens universitários o fato da
rurbanidade ser uma ideia força da identidade desses bairros. Há um olhar da maioria dos
entrevistados do potencial dos ativos ambientais e da preservação (ou até estímulo) das
atividades rurbanas como elementos importantes para o desenvolvimento da comunidade.
A participação reduzida dos idosos, pelo comportamento mais reservado e pelas
dificuldades de saúde promovidas pela idade avançada, e dos universitários, pela falta de
despertamento para atuação em prol das necessidades coletivas ou pelo isolamento
eclesiástico, são fatores que de fato enfraquecem o processo de desenvolvimento local.
No entanto, as entrevistas revelaram o interesse de ambos os grupos por avanços nas
comunidades e que existem interesses em algumas demandas socioeconômicas desses
dois perfis de entrevistados, com potencial de serem articuladas com os movimentos
sociais. Há um baixo conhecimento da atuação dos movimentos sociais, principalmente
entre os mais jovens e não uma negação de participar objetivamente, o que é um fator que
revela um potencial para ampliar o envolvimento da comunidade no processo de
desenvolvimento local que já está em curso na comunidade.
Concluímos que as questões propostas estão na mentalidade dos integrantes de
movimentos sociais e parcialmente nos idosos. No grupo dos entrevistados a percepção
sobre desenvolvimento local e rurbanidade é mais frágil, em geral mencionada apenas
quando provocada. De fato, já existe na comunidade experiências que relacionam os
aspectos de rurbanidade com o desenvolvimento local, que caso ganhem publicidade fora
dos integrantes dos movimentos sociais poderá contribuir significativamente para a
construção de novas perspectivas para a comunidade de forma mais ampla e de anexar a
imagem da comunidade os aspectos positivos relacionados às ruralidade, que atualmente
são observadas, mas não valorizadas pela maioria dos universitários desses bairros.
97

Tanto os conhecimentos históricos como práticos dos idosos, bem como sua
referência junto aos mais jovens da família apontam para o fato da retomada do
engajamento do grupo ser estratégico para a reconexão da população mais jovem com seu
território. A afetividade pelo espaço e a interação amistosa com outros idosos são fatores
fortes que contribuem para a sensibilização deste grupo diante das mobilizações em torno
do desenvolvimento local. A reconquista do engajamento dos idosos na comunidade e a
abertura deles para receber visitas na região dos sítios pode trazer um olhar mais evidente
aos jovens e integrantes dos movimentos sociais acerca do potencial da comunidade de
geração de renda e empregos a partir dos elementos de rurbanidade.
98

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fica evidente na pesquisa que os bairros de Dois Unidos e de Passarinho guardam


elementos de rurbanidade, sejam eles ambientais ou culturais. Neste sentido, as
características mais fortes são a presença de intensa área verde nessas comunidades,
principalmente nas reservas florestais e no perímetro do bairro em que há uma maior
concentração de sítios, mencionada no terceiro capítulo, e as práticas de agricultura
urbana presentes na comunidade.
Sobre a questão do desenvolvimento local, fica claro também que há um processo
de mobilização das pessoas e instituições locais por meio dos movimentos sociais, com
destaque para o trabalho desenvolvido pelo Espaço Mulher, por meio do estímulo à
agricultura urbana, às reivindicações ao poder público em relação aos problemas
enfrentados pelos moradores e ao evento do Ocupe Passarinho. Entre esses dois aspectos
evidenciados na pesquisa há um elemento em comum relacionado à agricultura urbana,
que é tanto um elemento de rurbanidade como é um dos caminhos já percorridos pelo
principal movimento social dessas comunidades na busca do favorecimento das melhorias
da qualidade de vida da população local.
Mesmo diante das dificuldades visíveis na pesquisa de mobilização de um número
maior de pessoas dessas comunidades por parte dos movimentos sociais, ficou evidente
também que a bandeira de combate à poluição ambiental, que é um dos fatores que mais
ameaça os aspectos de rurbanidade presentes alcança uma parte mais significativa da
população, não ficando restrito aos participantes diretos do Espaço Mulher. Este,
portanto, é um desdobramento dessa sensibilidade ambiental despertada dentro desse
movimento social e que pode ser mais um fio condutor para a geração de renda para
famílias em situação de maior vulnerabilidade social, diante da possibilidade do estímulo
à reciclagem, que é praticamente inexistente na comunidade.
A falta de percepção dos universitários dos aspectos rurbanos como um elemento
forte da comunidade (existe a percepção da presença dos elementos de rurbanidade, mas
não é vista como uma marca da identidade desses bairros) e a falta de conhecimento deles
da história da ocupação e dos movimentos sociais em atividade no local são fatores
restritores da rurbanização e do desenvolvimento local na comunidade. No entanto, o fato
de existir um sentimento de pertencimento na comunidade pela maioria deles e uma
valorização de outros aspectos sociais, não foi identificada uma imagem negativa ou de
rejeição da comunidade, aponta para um cenário potencial de engajamento futuro desse
99

público. Uma atuação mais sistematizada dos movimentos sociais na direção destes
universitários no sentido de despertá-los a uma participação mais ativa nas lutas coletivas
da comunidade seria um caminho endógeno para gerar engajamento e até formar
lideranças jovens nos bairros. Em relação aos aspectos rurbanos, a falta de interação da
população com suas matas, rios ou mesmo nas áreas onde é praticada a agricultura urbana
seriam os fatores que dificultam a estes jovens uma maior identificação com essa
característica dos bairros. A criação de espaços públicos nas bordas das matas e nas
margens dos rios poderiam construir conexões que conduzissem esses jovens a observar
os ativos ambientais como elementos relevantes na qualidade de vida local e, a depender
das suas áreas de formação profissional, teria a capacidade de geração de emprego e renda
a partir da exploração sustentável de atividades de lazer ecológico, por exemplo.
Seria relevante neste contexto, observar como se deu a experiência de outras
comunidades com florestas urbanas que conseguiram simultaneamente garantir a
preservação dos seus ativos ambientais, permitindo experiências de lazer deles com a
população que os rodeia, e gerar oportunidades de trabalho e renda para os moradores.
Sobre os rios que cortam os bairros, há uma memória bastante positiva da
experiência com esses ativos ambientais, onde era possível banhar-se e viver momentos
de lazer. A revitalização dos rios para reviver essas práticas, frente ao estado de
degradação atual, é bastante improvável. Um cenário comum a maioria dos rios urbanos
do País. No entanto, há de se considerar a relevância das atividades possíveis às margens
dos rios, a exemplo das propostas de parques lineares como no caso do Parque Capibaribe,
no Recife.23 Esse projeto prevê num horizonte de duas décadas a criação de um sistema
de parques integrados nas duas margens do Rio Capibaribe, reconectando as pessoas com
as águas do rio, com a promoção do lazer, descanso e bem-estar dos recifenses. Uma das
propostas deste projeto é de ampliar o acesso da população às áreas verdes da cidade, um
objetivo que poderia ser comum a um projeto “Parque Beberibe”. Para tal, simples
intervenções às margens do rio, como um projeto urbanístico que privilegie a arborização,
construção de calçadas e iluminação pública voltada para os pedestres, teriam o potencial
de ampliar a relação dos moradores com esse ativo ambiental. A percepção dos valores
ambientais da comunidade, gerados pelos estudos acadêmicos e adquiridos inicialmente

––––––––––––––––––––––––––––
23
O Parque Capibaribe é um projeto da Prefeitura do Recife, UFPE e Inciti (Pesquisa e Inovação para a
cidade) que propõe a requalificação das margens do Rio Capibaribe, de forma a garantir melhor qualidade
de vida na cidade.
100

pelo Espaço Mulher, representa um grande ativo de conhecimento dos potenciais do


bairro. Essas informações, que chegaram ao grupo ao longo dos últimos anos através das
visitas e oficinas de grupos universitários e de outros movimentos sociais, poderiam ser
disseminadas em outros grupos sociais da comunidade, como nas igrejas e escolas.
A pesquisa identificou que apesar dos jovens e dos idosos em sua maioria não
participarem dos movimentos sociais, esses grupos têm experiências coletivas na
comunidade e de grande engajamento nas suas igrejas. Um diálogo entre os movimentos
sociais e as igrejas baseadas na comunidade teria a capacidade de aglutinar a capacidade
de mobilização de pessoas das instituições religiosas com a visão já desenvolvida das
demandas e potencialidades acerca do desenvolvimento das comunidades.
Se em relação aos jovens e idosos existem caminhos de despertamento e
sensibilização mais rápido, poderíamos apontar que para o futuro da comunidade seria
estratégica a realização de um trabalho educativo a longo prazo nas escolas públicas e
privadas dos bairros com vistas à apresentar-lhes a história local, as características
positivas da comunidade onde residem e o papel do engajamento popular nas conquistas
que hoje eles usufruem, incluindo a própria escola. Um trabalho consistente e de longo
prazo nestas instituições, que poderia ser motivado ou até operado pelo movimento social
ou pelos próprios universitários, após cientes desses elementos de rurbanização e de
desenvolvimento local e sensíveis ao seu papel social. Durante o período de pesquisa
identificamos em uma escola de ensino fundamental a realização de estudos sobre o rio
Beberibe. No caso das instituições de ensino, trata-se de uma grande oportunidade de
formar na próxima geração uma autoimagem do bairro de maior valor, além de moradores
mais conscientes da relevância da preservação ambiental para a qualidade de vida.
Fazendo uma reflexão sobre desenvolvimento local, rurbanização e o contexto das
periferias urbanas, poderia apontar que esse caminho é traçado inicialmente pelas
comunidades de Dois Unidos e Passarinho pode ser realizado por outros bairros
periféricos que possuam algumas características comuns de rurbanidade, como a presença
de uma população originada das zonas rurais (que é uma característica de fato similar a
outros lugares, ocupado a partir do fenômeno do Êxodo Rural no País); a existência, ainda
que residual, de ativos ambientais; a manutenção de práticas ou costumes culturais típicos
do meio rural. Para tal é necessário a percepção desses elementos por parte das pessoas e
instituições das comunidades e o seu engajamento num processo de construção coletiva
com vistas a garantir a melhoria da qualidade de vida local e a geração de emprego e
renda.
101

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108

APÊNDICE A – Roteiro de entrevista com lideranças e participantes de


movimentos sociais dos bairros

Perfil dos entrevistados: Liderança ou integrante de movimentos sociais da comunidade


Nome_______________________________________________________________
Sexo______ Idade: ______ Bairro: Dois Unidos ( ) Passarinho ( )
Tempo que mora no bairro: ___________________
Escolaridade: _______________________________

1 – Como você avalia o lugar onde você mora?


2 – Qual a sua percepção sobre os potenciais e necessidades da sua comunidade? (O que você
considera de melhor ou de pior da sua comunidade?) Cite os principais pontos positivos e
negativos se houver.
3 – Há quanto tempo você mora no bairro?
4 – Que mudanças mais perceptíveis você apontaria que aconteceram no seu bairro?
5 – Como você avalia o engajamento da população nos temas coletivos de interesse local?
6 – Como é atuar numa organização/movimento social na periferia?
7 – Que assuntos são mais comumente tratados pela organização/movimento social que você
participa? E qual o impacto da atuação do movimento na comunidade?
8 – Quais os principais caminhos para o desenvolvimento e melhoria da qualidade de vida da
sua comunidade?
9 – Sua comunidade preserva aspectos rurais e ativos ambientais (caso, sim, quais você
destacaria?)
10 – Você acredita que a valorização dos aspectos ambientais e costumes mais “rurais” no
bairro seria um caminho para o desenvolvimento? Por quê?
109

APÊNDICE B – Roteiro de entrevista com universitários do bairro

Perfil dos entrevistados: Universitários


Nome_______________________________________________________________
Sexo______ Idade: ______ Bairro: Dois Unidos ( ) Passarinho ( )
Tempo que mora no bairro: ___________________
Escolaridade: _______________________________

APÊNDICE: Roteiro de entrevista com universitários que moram/cresceram no bairro


1 – Como você avalia o lugar onde você mora?
10 – Qual a sua percepção sobre os potenciais e necessidades da sua comunidade? (O
que você considera de melhor ou de pior da sua comunidade?) Cite os principais
pontos positivos e negativos se houver.
10 – Há quanto tempo você mora no bairro? O que você conhece da história dele?
4 – Que mudanças mais perceptíveis você apontaria que aconteceram no seu bairro?
5 – Como você avalia o engajamento da população nos temas coletivos de interesse local?
6 – Na vida acadêmica você já realizou alguma pesquisa na sua comunidade? (caso, sim, relate
essa experiência)
7 – Como é a experiência de ser um morador da periferia e universitário? O que essa experiência
universitária pode agregar para o desenvolvimento da sua comunidade?
8 – Quais os principais caminhos para o desenvolvimento e melhoria da qualidade de vida da
sua comunidade?
9 – Sua comunidade possui aspectos rurais e ativos ambientais (caso, sim, quais você
destacaria?)
10 – Você acredita que a valorização dos aspectos ambientais e costumes mais “rurais” no
bairro seria um caminho para o desenvolvimento? Por quê?
110

APÊNDICE C – Roteiro de entrevista com idosos

Perfil dos entrevistados: Idosos


Nome_______________________________________________________________
Sexo______ Idade: ______ Bairro: Dois Unidos ( ) Passarinho ( )
Tempo que mora no bairro: ___________________
Escolaridade: _______________________________
APÊNDICE: Roteiro de entrevista com idosos que moram há muitos anos no bairro (pelo menos
três décadas)
1 – Como você avalia o lugar onde você mora? ________ANOS
2 – Há quanto tempo você mora no bairro? Como ele era no ano que você chegou?
3 – Que mudanças mais perceptíveis você apontaria que aconteceram no seu bairro?
4 – Qual a sua percepção sobre os potenciais e necessidades da sua comunidade? (O que você
considera de melhor ou de pior da sua comunidade?) Cite os principais pontos positivos e
negativos se houver.
5 – Quais os principais caminhos para o desenvolvimento e melhoria da qualidade de vida da
sua comunidade?
6 – Sua comunidade possui aspectos rurais e ativos ambientais (caso, sim, quais você
destacaria?)
7 – Você acredita que a valorização dos aspectos ambientais e costumes mais “rurais” no bairro
seria um caminho para o desenvolvimento? Por quê?
111

APÊNDICE D - ARTIGO

OCUPAÇÃO DOS BAIRROS DE DOIS UNIDOS E PASSARINHO


NO FINAL DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX,
REGISTRADOS NOS JORNAIS DO RECIFE

RESUMO
Notas e anúncios dos jornais do Recife no final do século XIX e começo do século XX
revelam a presença de moradores e o desenvolvimento de atividades econômicas
tipicamente rurais nas comunidades de Dois Unidos e Passarinho, localizadas nas
periferias do Recife e de Olinda. As pesquisas acadêmicas anteriores registravam a
ocupação dessas comunidades apenas em meados do século XX. A ocupação nas Estradas
do Cumbe e Estrada do Passarinho revelam um período em que as periferias do Recife e
de Olinda guardavam uma paisagem do campo.

PALAVRAS-CHAVE: Periferia, Ocupação, Rurbano

ABSTRACT
Notes and classifieds of Recife newspapers in the late nineteenth and early twentieth
century reveal the presence of residents and the development of rural economic activities
in the communities of Dois Unidos and Passarinho, located on the periphery of Recife
and Olinda. Previous academic research recorded the occupation of these communities
only in the middle of the twentieth century. The occupation on the Cumbe Road and
Passarinho Road reveals a period in which the periphery of Recife and Olinda kept a
countryside landscape.

KEY-WORDS: Periphery, Occupy, Rurban

INTRODUÇÃO
Os registros acadêmicos sobre a ocupação dos bairros de Dois Unidos e
Passarinho, na periferia da zona norte do Recife e de Olinda, em sua maioria remetem as
décadas de 1960 até 1980. Os poucos estudos científicos, que se debruçaram em algum
112

recorte temático sobre essas comunidades, usaram na maioria das vezes a história oral24
dos moradores como instrumento de coleta de dados, elucidando informações importantes
sobre o passado desses bairros, mas muito distante de uma possível origem da ocupação
dessas comunidades.
Dentro da pesquisa realizada sobre uma experiência rurbana dessas
comunidades25 foram identificados indícios e uma presença bem mais antiga. No acervo
da Fundação Joaquim Nabuco está preservado o livro Dois Unidos: uma comunidade
rurbana26, de Levy Cruz, que revelava a formação de vilas nesta comunidade entre as
décadas de 1950 e 1960 e já menciona o bairro vizinho de Passarinho. Um estudo
socioeconômico que já recuaria em mais uma década a história de ocupação deste bairro.
A proximidade do bairro de Beberibe, que faz divisa com as duas comunidades
em análise e que possui uma ocupação muito antiga, sendo palco principal, por exemplo,
da Convenção de Beberibe27 há quase dois séculos (DELGADO, 1972), em 1821, era
outro indício inicial de que poderia haver uma ocupação bem mais antiga desses bairros.
Beberibe é apontado por Vainsencher (2008) como uma das ocupações mais antigas do
Recife, tendo sido doada ao então auditor da capitania de Pernambuco Diogo Gonçalves
ainda em meados do século XVI.
Foi realizada também uma pesquisa nos acervos da Fundação Joaquim Nabuco e
no Museu da Cidade do Recife de imagens que retratassem o bairro no século XIX. No
entanto, as fotografias mais antigas encontradas da região datam do início do século XX
e sem o registro preciso desses bairros, mas de Beberibe (que abrangia Dois Unidos e
Passarinho naquele período).
A presente pesquisa teve o objetivo principal de identificar uma ocupação mais
antiga dessas comunidades da periferia do Recife, partindo da hipótese de que tenha
ocorrido ainda no século XIX. Um objetivo secundário seria de levantar uma
caracterização inicial dessas comunidades, buscando enxergar os elementos de ruralidade
presentes naquele período. Sem livros ou publicações acadêmicas que revelem mais

24
Trata-se de uma metodologia de pesquisa que levanta informações a partir de entrevistas gravadas com
testemunhas de modos de vida, acontecimentos, instituições e demais aspectos da história recente.
25
O presente artigo integra uma pesquisa mais ampla de dissertação que relacionou a rurbanização e o
desenvolvimento local na experiência das comunidades de Dois Unidos e Passarinho.
26
A pesquisa do sociólogo Levy Cruz, que foi professor da Universidade Federal de Pernambuco e
presidente da Fundação Joaquim Nabuco, foi realizada no ano de 1960, sendo publicada dois anos depois.
Trata-se de um levantamento socioeconômico dessa comunidade, que recebeu entre os anos de 50 e 60
famílias fugidas das intensas secas do interior e das cheias que atingiram outras regiões do Recife.
27
Foi um movimento constitucionalista, armado, que aconteceu no ano de 1821 e que conseguiu na
ocasião a expulsão dos exércitos portugueses de Pernambuco.
113

informações acerca da ocupação dos bairros de Dois Unidos e Passarinho, esse trabalho
utilizou os jornais que circulavam em Pernambuco no século XIX para levantar indícios
mais antigos da ocupação dessas localidades, bem como para identificar essa provável
caracterização inicial desses bairros, com ênfase no mapeamento dos elementos de
ruralidade.

JUSTIFICATIVA

A ausência da narrativa de uma história das periferias é uma realidade da maioria


das comunidades mais carentes do País. A falta desses registros e o desconhecimento
deles por parte dos moradores dessas localidades dificulta a construção de uma identidade
territorial28 (OLIVEIRA E SILVA, 2017), como consequência, há uma dificuldade de
maior engajamento dessa população com o desenvolvimento do seu espaço. “Esses
territórios periféricos, no entanto, são marcados a partir de uma narrativa recorrente de
violências urbanas, desastres naturais e vulnerabilidade socioeconômica” (LIMA,
DOMINGUES E DANTAS, 2017). Esse levantamento contribui para a construção da
história de ocupação das periferias do Recife e de Olinda, bem como revelar
características sociais e ambientais das extremidades desses municípios no final do século
XIX.
Hoje tais comunidades somam mais de 58 mil habitantes, segundo o último dado
do Censo 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e
apesar disso têm suas instituições de ensino básico desprovidas de quaisquer informações
acerca do processo de ocupação local, principalmente desse período mais remoto da
possível chegada dos primeiros moradores. De acordo com Bittencourt (2012) o processo
de ensino da história é fundamental para o desenvolvimento de uma postura crítica dos
estudantes.

O ensino de História visa contribuir para a formação de um “cidadão crítico”,


para que o aluno adquira uma postura crítica em relação à sociedade em que
vive. As instruções dos textos oficiais reiteram, com insistência, que o ensino
de História, ao estudar as sociedades passadas, tem como objetivo básico fazer
o aluno compreender o tempo presente e perceber-se como agente social capaz

28
Em contraponto ao processo de globalização e homogeneização cultural, há no mundo inteiro o
processo de fortalecimento das identidades relacionadas ao território, entendendo que este é um “espaço
de identidade ou pode se dizer que é um espaço de identificação”. Essa identidade diz respeito ao espaço
social e geográfico que o grupo habita.
114

de transformar a realidade, contribuindo para a construção de uma sociedade


democrática (BITTENCOURT, 2012, p. 19).

O levantamento de informações das ocupações das periferias da cidade, que


ocuparam a posição de “coadjuvante” da sociedade na narrativa midiática e histórica, tem
essa proposta de provocar nos seus moradores uma postura crítica de compreensão do seu
contexto. Bittencourt (2012) considera que apenas compreendendo o tempo presente e
percebendo-se como agende social é possível que esse indivíduo tenha capacidade de
intervir na sua realidade de forma a promover uma sociedade mais democrática.
A formação das periferias brasileiras ganha força no início da década de 1950
(MOREIRA, SANTOS e GANDIN, 2017), no momento em que as novas tecnologias
avançam sobre o meio rural brasileiro, em um processo de avanço do desenvolvimento
do capitalismo no Brasil. Sem emprego no campo, parte da população brasileira migra
para as grandes cidades em busca das oportunidades que começavam a surgir com o
crescimento da industrialização no País.
Lefebvre (1999) defendeu que o surgimento da indústria trouxe uma
transformação também na relação entre o espaço e o valor. Diferente do período histórico
da Idade Média, quando o valor do espaço era do seu uso, o autor apontou que na era
industrial ele é um produto cujo valor está na comercialização.

Os subúrbios, sem dúvida, foram criados sob a pressão das circunstâncias a fim
de responder ao impulso cego (ainda que motivado e orientado) da
industrialização, responder à chegada maciça dos camponeses levados para os
centros urbanos pelo “êxodo rural”. (LEFEBVRE, 1999, p. 17)

Esses fenômenos que ocorrem paralelamente – mecanização do campo, avanço da


industrialização nas cidades e migração de parte da população de baixa renda em direção
aos centros urbanos – contribuem para a aceleração da urbanização brasileira e os seus
consequentes desequilíbrios que são sentidos até os dias de hoje. Um deles é justamente
promovido por uma ocupação desordenada das periferias. Moreira, Santos e Gandin
(2017) afirmam que os elevados custos de vida nos bairros centrais “empurraram” a
população pobre para ocupar áreas irregulares, distante dos lugares até então urbanizados.
O conceito de periferia não traz um significado apenas geográfico, de um espaço
distante dos centros urbanos, mas carrega um uso mais político, social e econômico, de
antítese ao centro. O avanço da ocupação popular nas regiões mais distantes dos principais
centros econômicos são os territórios construídos pelos populares, segundo (Raffestin,
115

1993). Nesse sentido, retoma-se o conceito de território tal como definido por Raffestin
(1993, p. 143):

Espaço e território não são termos equivalentes... o espaço é anterior ao


território. O território se forma a partir do espaço, é resultado da ação
conduzida por um ator em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço,
concreta ou abstratamente o ator territorializa o espaço.

Domingues (2006) destaca que o espaço se torna território a partir da projeção de


diferentes interesses e formas de apropriação do recurso e das distintas funções que lhe
são atribuídas. Reiterando essa visão, para Santos (1999, p. 18-19):

O território usado é a categoria de análise e deve ser visto como algo que está
em processo, possuindo um conteúdo social, um dinamismo sócio-territorial,
enfim, é o quadro da vida de todos nós nas várias dimensões.

Essa composição da periferia inicialmente por uma população majoritariamente


rural foi observada pelos estudos de Cruz (1962) na comunidade de Dois Unidos. Na
ocasião, o sociólogo realizou um vasto estudo socioeconômico dos moradores deste
bairro entre as décadas de 1950 e 1960. De acordo com Cruz (1962) no bairro de Dois
Unidos 40% dos moradores criavam animais e 59,5% plantavam no quintal de casa no
início dos anos 1960. Em sua pesquisa com os moradores da região foi mapeado, naquela
ocasião, que cerca de 54,1% delas tinham origem rural e 45,9% vinham de áreas urbanas.
Tratava-se de uma ocupação em que os moradores trabalhavam na cidade, com
atividades profissionais tipicamente urbanas e usufruindo uma vida nos espaços urbanos,
ao mesmo tempo em que mantinham práticas agrícolas e de criação de animais nesta
região. Uma descrição de uma comunidade rurbana, como dizia o título da publicação.
De acordo com Lobosco (2009, p.27), as práticas urbanas presentes nos chamados
assentamentos informais, que costuram a ocupação nas periferias das cidades, possuem
um modo singular de pensar e agir que tem com objetivo reduzir os desconfortos e
dificuldades fruto das restrições enfrentadas por essas populações de baixa renda nos seus
territórios, sejam elas econômicas, espaciais ou de serviços básicos. Ele afirma que esses
moradores são ao mesmo tempo “frutos e produtores do espaço que os abriga”.
A questão que persiste, entretanto, é se esta resistência seria produzida de
forma consciente, como uma busca de adequação do espaço construído a uma
condição de vida divergente daquela dominante, ou se se apresenta apenas
como “efeito colateral” de uma tentativa de sobrevivência e permanência no
espaço urbano, que teria como objetivo final a conquista do espaço formal, seja
através de um deslocamento em direção a espaços mais consolidados e “bem
116

acabados” urbanisticamente, ou por uma evolução das áreas informais até se


equipararem com o resto da cidade. (LOBOSCO, 2009, p.30)

As informações apresentadas na pesquisa contribuem para a caracterização


histórica rurbana dessas comunidades periféricas, bem como para sinalizar um caminho
de pesquisa para outras comunidades periféricas a partir de pequenos registros publicados
em jornais de circulação antiga.
A questão rurbana ganhou maior relevância na formação das cidades a partir dos
estudos de Gilberto Freyre (1982), que propunha um planejamento das cidades
considerando o lugar do urbano e do rural.
Nas últimas décadas foram desenvolvidos uma série de estudos que apontaram
diferentes formas de rurbanidade, como a preservação de resquícios de atividades,
práticas e costumes rurais nas cidades (MAIA, 2010 e 2017) e, por outro lado, a inserção
de elementos mais tipicamente urbanos nos meios rurais (GRAZIANO, 2001),
derrubando uma série de mitos sobre o campo, apontando, por exemplo, que a economia
rural não necessariamente seja predominantemente agrícola. Mais recentemente, Gomes
(2018) desenvolveu uma pesquisa relacionando as características de rurbanidade na
periferia (numa análise da origem da população e da manutenção de costumes e
festividades originadas no campo), na comunidade do Morro da Conceição, com o
desenvolvimento local. Dantas, Domingues e Lima (2017) tem desenvolvido estudos nas
comunidades de Dois Unidos e Passarinho, alvo desta pesquisa, na caracterização das
mesmas como rurbanas e na relação dessa característica com a experiência de
desenvolvimento local presente nos bairros.

MATERIAIS E MÉTODOS

A presente pesquisa foi realizada a partir dos jornais Diario de Pernambuco e do


Jornal do Recife, que tinham circulação desde o século XIX e que tem seus acervos
digitalizados, sendo disponibilizados pela Hemeroteca da Biblioteca Nacional. De acordo
com Lapuente (2015), até 1970, o uso de jornais como fonte de pesquisa científica era
visto com desconfiança pelos pesquisadores, mas esse é um cenário que se reverteu nas
últimas décadas, guardando os devidos cuidados frente aos interesses econômicos que
influenciam as publicações da imprensa. Ele afirma que essa mudança de concepção
117

acontece a partir do advento dos Annales29, que ampliou a concepção do que são fontes
documentais. Ele informa, mais precisamente, que a partir da terceira geração dos
Annales, quando a história cultural ganha um protagonismo no período pós-movimentos
de maio de 1968, “o quadro da historiografia brasileira passa por alterações em sua
relação com o jornal como documento-fonte” (LAPUENTE, 2015, p.3). Antes disso,
porém, a historiografia francesa já utilizava vastamente o jornal como fonte histórica.
Foi realizada uma busca inicialmente pelo nome dos bairros, não se obtendo
resultados, pois a nomenclatura atual é recente. Na ocasião, ambas as comunidades eram
conhecidas como localidades de Beberibe. A busca passou a ser realizada com os nomes
das avenidas principais desses bairros: Estrada do Cumbe (nome antigo da Avenida
Hidelbrando de Vasconcelos), no bairro de Dois Unidos, e Estrada do Passarinho, no
bairro de Passarinho.
O foco desses levantamentos foi nas notas e anúncios publicados nos jornais, visto
que não havia reportagens ou notícias escritas sobre as comunidades nessa época. Os
textos foram guardados digitalmente, transcritos e identificadas as palavras que
revelavam sempre que possíveis aspectos ambientais, modo de vida e atividades
econômicas desenvolvidas nessas comunidades.
As informações publicadas pelos veículos de comunicação são fatos discursivos
(BENITES, 2001). O que eles contam ou deixam de contar expõe muito do olhar
jornalístico de tal redação, bem como a abordagem dos textos e as expressões usadas nas
notícias, reportagens ou mesmo notas.
A “verdade” dos textos jornalísticos deve ser buscada não apenas na
concordância entre o narrado e o ocorrido, mas também na seleção e ordenação
de vocábulos, acontecimentos e declarações, nas lacunas deixadas entre as
informações e nas indicações sugeridas sobre a forma de preenchê-las.
(BENITES, 2001, p. 217)

Muitas dessas notas foram encontradas repetidamente (um mesmo anúncio, por
exemplo, era publicado em vários dias ou mesmo nos dois jornais). Nesses casos, a análise
será apenas da primeira publicação e haverá menção de que foi republicado em outras
ocasiões. Os resultados serão apresentados de forma cronológica.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

29
Trata-se de um movimento historiográfico que aconteceu a partir de 1929, pelos pesquisadores Lucien
Febvre e Marc Bloch. O movimento era responsável pelo periódico acadêmico Annales d'histoire
économique et sociale.
118

Enquanto as matérias maiores e de maior destaque dos jornais do século XIX


passavam distante das comunidades de periferia, nas suas pequenas notas e anúncios de
vendas foi possível identificar oito (8) registros do bairro de Dois Unidos e um (1) registro
do bairro de Passarinho antes de 1900. A presente pesquisa mapeou oito (8) menções à
comunidade de Dois Unidos na primeira década do século XX e uma (1) menção sobre
Passarinho neste período.
Os nomes das vias (a Estrada do Cumbe e Estrada de Passarinho), que nos
confirmam ser dos bairros pesquisados, eram apresentadas na ocasião como pertencentes
à Beberibe, que conforme mencionado anteriormente tem uma ocupação bem mais antiga.
As notas revelam nomes dos moradores, mas são muito sucintas para levantar mais
informações sobre atividades comerciais, educacionais, agrícolas, entre outras
características socioeconômicas que não puderam ser extraídas nesta pesquisa. Embora a
ocupação histórica dessas comunidades tenha sido marcada pela chegada de uma
população de baixíssima renda, flagelos das secas e das enchentes (CRUZ, 1962), nessas
notas é possível observar a ocupação naquela época de moradores com um maior poder
aquisitivo. O próprio acesso aos periódicos da época revela que se tratava de uma parcela
da população com algum poder de influência, econômico ou de acesso à redação ou à
direção dos referidos periódicos, que eram bem escassos na época. A extensão das
primeiras propriedades mencionadas e as características descritas de algumas residências
confirmam essa percepção de que a localidade não era habitada apenas por pessoas de
baixa renda.
O primeiro registro da Estrada do Passarinho, principal via do bairro, acontece em
19 de novembro de 1878, no Diario de Pernambuco. Tratava-se de um pequeno anúncio
de venda de um terreno. O anúncio referia-se a uma pequena propriedade de 11,4 metros
de frente e 11,4 metros de fundo, com os fundos para o rio Beberibe. O anúncio (Figura
1) se refere à vizinhança de outra residência de um morador identificado apenas como Sr.
Cintra30.

30O mesmo texto é publicado no jornal nos dois dias seguintes (19 e 20 de novembro de 1878). No dia 24
de janeiro de 1882 a mesma nota é publicada no Jornal do Recife, acrescentando-se apenas o nome da
proprietária que deveria ser contatado para a negociação, Nicomedes Maria Freire.
119

Figura 1: Classificado de venda de terreno

Fonte: Diario de Pernambuco, em 19 de novembro de 1978

Ainda entre os anos de 1870 e 1880 o mesmo jornal publica quatro listas de
devedores de impostos, referentes aos anos e 1875 e 1876, em que menciona os endereços
e a dívida dos mesmos. Nessas listas estão registrados o nome de moradores que residiam
na Estrada do Cumbe. Essa informação sinaliza que havia um reconhecimento e algum
tipo de registro do poder público acerca dessas propriedades. Esse apontamento é
relevante, pois ainda hoje muitas residências, sítios e terrenos desses bairros não têm seus
devidos registros. Parte da ocupação dessas comunidades segue de maneira informal,
segundo pode ser observado nas visitas de campo e entrevistas recentes com moradores
(DANTAS e LIMA, 2018).
Em 19 de junho de 1880, está registrada no periódico Diario de Pernambuco,
aproximadamente dois anos depois, uma lista de emendas parlamentares da então
Assembleia Provincial que menciona que “foram lidas, apoiadas e postas em discussão
as seguintes emendas”. A emenda N. 12, que tratava de ordem de pagamento, liberava a
quantia de 3:000$ para “a conclusão da Estrada do Cumbe, em Beberibe”.
Em se tratando de um recurso público liberado para ampliação, fica evidente que
a referida via já possuía um trecho concluído naquela década. A mesma nota é publicada
uma semana depois, no dia 25 de junho e no dia 9 de julho de 1880. Com pequenas
alterações, o texto volta a ser publicado nos dias 17 de julho, 2 de agosto e 8 de novembro
daquele ano. A autorização para o pagamento dessa conclusão das obras, no entanto, só é
anunciada no dia 6 de maio de 1881, pelo Diario de Pernambuco, endereçada ao contador,
e no dia 11 de maio, (Figura 3) uma nova publicação autoriza o engenheiro ajudante da
repartição de obras públicas a conclusão da referida estrada, com uma despesa que não
superasse o valor e 1:500$00.
A primeira residência em Dois Unidos, mencionada no Jornal do Recife, está
registrada no dia 11 de junho de 1881. Um leilão da finada Antonia Isabel de Couto revela
quer ela possuía o Sítio Embiribeira na Estrada do Cumbe e uma casa na povoação, com
120

o número 21, ocupada na ocasião por “escolas públicas”. A nota do leilão cita o terreno
contendo o sítio, que possui uma cocheira e cacimba, e matas do Cumbe ou do Cafezeiro.
Além do sítio, entra no leilão também uma parte da “Mata do Cumbe ou Cafezeiro”. Não
há referência no local de nenhuma mata com este nome, mas um trecho da comunidade
de Dois Unidos, bem próxima da Mata de Dois Unidos, é conhecido como Cumbe.

Figura 2: Leilão do Sítio Emberibeira no Jornal do Recife

Fonte: Diário de Pernambuco, em 11 de junho de 1881

O Jornal do Recife publica uma nota de um leilão de uma propriedade situada na


Estrada do Cumbe, denominada de Sítio Embiribeira, (Figura 5) na data de 2 de julho de
188131. A nota apenas cita que se trata de uma grande propriedade e menciona
informações sobre a extensão da residência, mas não há detalhes que permitam identificar
a paisagem do local, nem as atividades econômicas desenvolvidas desse lugar. A mesma
nota vende também uma residência em Beberibe. Nessa nota é informado que há outro
sítio com o mesmo nome na vizinhança e outra propriedade pertencente a Francisco

31
A mesma nota é publicada no dia 12 de julho de 1881, no Jornal do Recife, um dia antes da data agendada
para o referido Leilão, no dia 13 de julho. Com pequenas variações no texto, o Leilão é anunciado em
diversas notas no Diário de Pernambuco na década de 1880.
121

Esteves de Abreu. Pela proximidade da data, poderia se tratar da mesma propriedade, no


entanto a descrição dos imóveis é distinta.

Figura 3: Leilão do Sítio Emberibeira no Jornal do Recife

Fonte: Jornal do Recife, em 2 de julho de 1881.

Em 1882, o Diario de Pernambuco registra no dia 25 de março que o serviço


aprovado dois anos antes na Estrada do Cumbe é executado, mas de forma incompleta. A
nota registra a necessidade de mais recursos para uma “regularização da estrada”, bem
como para a construção de bueiros, conforme Figura 6, o que sinaliza a presença de uma
estrutura inicial de saneamento na comunidade.

Figura 4: Sobre as obras na Estrada do Cumbe

Fonte: Diario de Pernambuco, em 25 de março de 1882


122

Nos anos seguintes outros anúncios de sítios, casas e terrenos nesta Estrada do
Passarinho sinalizam que naquela época já havia moradia na região. A descrição desses
sítios ou terrenos nos trazem sempre informações do caráter rural da época, sendo lugares
com qualidades para plantações, com árvores frutíferas e próximos às águas do Rio
Beberibe ou de outros riachos. Em alguns dos classificados se informa que o referido
terreno é cortado pelo Rio Beberibe, o que indica propriedades que atravessavam os
limites dos dois bairros no passado.
Há uma menção de uma localidade chamada de Sítio Dois Unidos no Jornal do
Recife, no dia 4 de abril de 1883 (Figura 6). O sítio seria de propriedade de Eulalio
Rodrigues dos Santos, que teria ficado como herança para seus filhos, conforme Figura
6. É a primeira vez que o nome Dois Unidos, que dará futuramente o nome ao bairro, é
mencionado nos periódicos. Um detalhe dessa nota é o fato de a questão ser resolvida na
Comarca de Olinda. As comunidades ficam numa região exatamente de divisa entre o
Recife e Olinda.

Figura 5: Anúncio de arrematação

Foto: Jornal do Recife, 4 de Abril de 1883

Provavelmente o mesmo sítio, que pode ter originado o nome do Bairro, vem a ser
registrado em 19 de março de 1935 no 1º Ofício do Registro Geral de Imóveis do Recife,
com a seguinte descrição:

Sítio denominado "Dois Unidos", no qual existe uma casa de residência, de


alvenaria, com dependências desligadas e outras pequenas casas de taipa em
ruínas à Estrada do Cumbe, 1591, propriedade esta que tem a forma irregular,
limitando-se ao Nordeste, pelo Rio Beberibe, com uma extensão
123

aproximadamente de 1.300,00 m; ao Noroeste pelo Riacho das Pacas, numa


extensão de cerca de 200,00m, onde se encontra um marco de trilhos, e ao
Oeste e ao Sudoeste, com terras de João Chagas, com sete marcos de trilhos,
até encontrar a antiga Estrada do Oiti Furado, até onde existe um marco de
trilho e daí limita-se com terras de Claudino Leal, por uma reta com 760,00 m,
aproximadamente, em cerca de arame farpado, até encontrar novamente o Rio
Beberibe, estando dita propriedade cortada pelo riacho permanente de taipa,
em sentido transversal do Sudoeste para Nordeste, em posição de cerca de
900,00m contados do Poente terminal da Estrada do Cumbe.

No ano de 1884, o Jornal do Recife publica no dia 4 de agosto um anúncio de


leilão de um terreno de 220 palmas de frente no caminho de Dois Unidos e outro menor,
como espólio de Elias Marinho Falcão de Albuquerque (Figura 7). É importante destacar
na nota a afirmação que tais terrenos estão localizados em Beberibe. (Figura 7).32

Figura 6: Anúncio de leilão

Foto: Jornal do Recife, 4 de Agosto de 1884

No ano de 1887, a edição do Diario de Pernambuco no dia 18 de agosto traz uma


nota em que apresenta o recebimento de esmolas para distribuição aos pobres (Figura ).
Há o registro do nome, valor e endereço dos beneficiários. Há nesta nota a primeira
menção sobre a presença de pessoas de baixa renda na comunidade, quando é mencionada
uma mulher com o nome de Josephina Maria Francisca do Espírito Santo, que residia na

32 A mesma nota é publicada novamente nos dias 10 e 12 de agosto neste jornal.


124

Estrada do Cumbe (não é registrado o número, diferentemente de todas as menções


anteriores sobre os moradores desta avenida).

Figura 7: Lista de pessoas beneficiadas com esmolas

Diario de Pernambuco, em 18 de agosto de 1887

O Pontilhão da Estrada do Cumbe volta a ser destacado na imprensa, numa nota


que denunciava o perigo de travessia desse lugar em 16 de abril 1890, no Jornal do Recife
(p.2), registrando inclusive um acidente de uma pessoa que se deslocava de cavalo na
região, conforme figura 9. Praticamente a mesma denúncia se repete no dia 22 de abril do
mesmo ano, acrescentando a informação de que o cavaleiro era morador da região e
cobrando do poder público uma manutenção na ponte.

Figura 8: Denúncia do perigo da travessia através do jornal.

Fotos: Jornal do Recife, 16 e de Abril de 1890

A nota destaca que “já reclamamos, por solicitação de moradores da Estrada do


Cumbe, em Beberibe”. O registro não nomeia seu autor ou algum grupo formal que ele
125

viesse a representar, mas sinaliza uma primeira demanda coletiva da comunidade


referente à melhoria na infraestrutura de acesso à comunidade. A reclamação, como em
notas anteriores, era direcionada ao Diretor das Obras Públicas, cujo nome também não é
apresentado no texto.
Entre 1900 e 1909 nenhuma menção sobre essas comunidades é feita nos jornais
em circulação no Estado de Pernambuco catalogados na Hemeroteca da Biblioteca
Nacional.
Na década entre 1910 e 1920 há anúncios das comunidades em três jornais: Diario
de Pernambuco, Jornal do Recife e A Província. Nesta década, mesmo com notas
igualmente curtas, existem mais referências dos aspectos rurais dessas comunidades.
Em relação às imagens, os registros mais antigos identificados são do Rio
Beberibe no início do século, em 1905, conforme figura 10, do Acervo da Villa Digital da
Fundação Joaquim Nabuco. São três fotos do Acervo Manoel Tondella. As fotos não
identificam exatamente o bairro em que foi realizado esse registro fotográfico. Mas elas
servem de referência para se aproximar da paisagem dessas comunidades no início do
século XIX. Até os anos 1990, o trecho do Rio Beberibe que divide os bairros, na área
ainda hoje caracterizada pela maior presença de sítios guardava ainda bastante
semelhança com a vegetação identificada na fotografia abaixo. Essa constatação da
semelhança foi apontada por um grupo de seis (6) idosos que tiveram acesso à fotografia
na pesquisa e que moram há décadas nessas comunidades.

Figura 9: Imagem do rio Beberibe em 1905

Fonte: Acervo Manoel Tondella, Fundação Joaquim Nabuco


126

Nas três primeiras décadas do século XX as novas notas publicadas nesses jornais
dão indícios mais claros do contexto de ruralidade desses locais. São colocadas à venda
granjas33, sítios com árvores frutíferas, gado e cavalos34, vendas de vacas leiteiras35.

CONSIDERAÇÕES

Os registros do Jornal do Recife e do Diario de Pernambuco confirmam a


ocupação nas comunidades de Dois Unidos e de Passarinho na segunda metade do século
XIX, o que estende em mais de 50 anos os registros mais antigos até então observados
pelas pesquisas científicas. As notas de jornal indicam a presença de pessoas de baixa
renda, que eram beneficiárias inclusive de esmolas naquelas décadas, como donos de
grandes propriedades e residências maiores.
O tema mais mencionado nas notas é relacionado às obras da então Estrada do
Passarinho, que é a principal via da comunidade de Dois Unidos. As menções são bem
mais sucintas acerca da comunidade de Passarinho nesta época. Os demais campos
temáticos são em referência à venda desses imóveis através dos leilões, e a revitalização
da avenida principal dos dois Bairros. Nesses documentos, classificados e notas de
jornais, é possível identificar informações sucintas e descritivas de lugares menos
privilegiados nos conteúdos editoriais destes veículos de comunicação, permitindo à
pesquisa científica levantar nomes de pessoas, localidades e instituições que podem
contribuir para novas descobertas.
Essas informações, algumas com pequenas curiosidades sobre os prováveis
primeiros dias de ocupação de Dois Unidos e de Passarinho vem a contribuir para este
cenário de pouco conhecimento sobre o seu espaço. Sendo sistematizada de forma mais
infantil, é possível apresentar esses traços de presença nas escolas municipais de ensino
básico, presentes em ambas as comunidades.
Segundo Cruz (1962) foram as intensas secas no Nordeste e as enchentes do
Recife as principais impulsionadoras na ocupação nessa região em meados do século XX.
As motivações para as primeiras ocupações desses bairros, na época de difícil acesso,
ainda são incertas. Existem atividades relatadas pelos antigos moradores mais antigos

33 Jornal do Recife, em 31 de março de 1925, refere-se à Granja do Cumbe.


34
Jornal do Recife, em 18 de novembro de 1925
35 Jornal do Recife, em 22 de abril de 1923
127

dessas comunidades36, que apontam que essa região era produtora de café, cana-de-açúcar
e açafrão, além de ser utilizada para extração de madeiras, que não foi mapeada nesses
jornais.

REFERÊNCIAS
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Letras, Curitiba, n. 55, p. 197-219, jan./jun. 2001. Editora da UFPR.

BITTENCOURT, Circe M. Fernandes (org.) O saber histórico na sala de aula. São


Paulo: Contexto, 2012.

CRUZ, Levy. Dois Unidos: uma comunidade rurbana do Recife. Recife: Fundação de
Promoção Social, 1962.

DANTAS, Rafael. LIMA, Irenilda. Aspectos de rurbanidade em Recife – Pernambuco


nos bairros de Passarinhos e Dois Unidos. In: XVIII CONFERÊNCIA BRASILEIRA DE
FOLKCOMU-NICAÇÃO, 2017, Recife. Anais da Conferência Brasileira de
Folkcomunicação – Folkcom. Recife, 2017

DELGADO, Luiz. A Convenção de Beberibe; o primeiro episódio da independência


do Brasil. Comissão Estadual das Comemorações do Sesquicentenário da Independência,
1972.

Diario de Pernambuco, no século XIX. Acervo da Hemeroteca da Biblioteca Nacional.


Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital>. Acesso em 30 dez 2018.

FREYRE, Gilberto. Rurbanização: que é? Editora Massangana. Recife, 1982.

GRAZIANO, José. Velhos e novos mitos no rural brasileiro. Revista Estudos


Avançados, São Paulo, v.15. p. 37-50, 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br
/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142001000300005> Acesso em: 13 de out.
de 2016.

GOMES, Giselle. Quadrilha junina: comunicação para o desenvolvimento e


rurbanidade. São Paulo. Fonte Editorial, 2018.

Jornal do Recife, no século XIX. Acervo da Hemeroteca da Biblioteca Nacional.


Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital>. Acesso em 30 dez
2018.

36
Entrevistas realizadas na pesquisa de dissertação, com moradores que chegaram à comunidade entre as
décadas de 60 e 70.
128

LAPUENTE, Rafael Saraiva. O jornal impresso como fonte de pesquisa:


delineamentos metodológicos. GT de História da Mídia Impressa. 10º Encontro
Nacional de História da Mídia. Porto Alegre. UFRGS, 2015.

LAKATOS, Eva Maria. MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de


metodologia científica. 5. ed. - São Paulo : Atlas 2003.

LIMA, Irenilda de Souza. DOMINGUES, Rita Alcântara. DANTAS, Rafael. Território,


territorialidade e a influência da mídia na identidade da periferia – um estudo sobre a
imagem construída pelos moradores de Dois Unidos (Recife) nas redes sociais. Revista
Humanae, Recife, v. 11. n.2., 2017.

LOBOSCO, Tales. Práticas Urbanas e Produção do Espaço em ocupações informais.


Geotextos. Salvador, v. 5, p. 25-48, 2009.

MAIA, Doralice Sátyro. Tempos lentos na cidade: permanências e transformações


dos costumes rurais em João Pessoa-PB. 2000. Tese (Doutorado em Geografia
Humana) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.

MAIA, Doralice Sátyro. Desvendando o campo na cidade: notas metodológicas.


Geotextos, Salvador, v. 6, p. 35-57, 2010.

MOREIRA, Simone Costa ; SANTOS, Graziella Souza dos ; GANDIN, LUÍS


ARMANDO . Periferias Urbanas e Efeito do Território: contribuições conceituais
para análises de processos curriculares e do trabalho escolar. REVISTA E-
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Territorial: categorias para análise da dinâmica territorial quilombola no cenário
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VAINSENCHER, Semira Adler. Beberibe (rio e bairro, Recife). Pesquisa Escolar


Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em:
<http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar>. Acesso em: 17 mar. 2019.
129

ANEXO

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EXTENSÃO RURAL E DESENVOLVIMENTO
LOCAL – POSMEX

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE ESCLARECIDO

Cumprimento Sr./Sr. ª ao tempo em que solicito a sua participação na pesquisa intitulada


Rurbanização na periferia: uma alternativa ao desenvolvimento local?, integrante do
Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural e Desenvolvimento Local - POSMEX, da
Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE. A referida pesquisa tem como objetivo
principal, analisar o cenário de rurbanidade e rurbanização e relacioná-los a promoção do
desenvolvimento local na periferia e será realizada por Rafael Ferreira Dantas Santos,
estudante do referido Programa.
Sua participação é voluntária e se dará por meio de ENTREVISTA, com utilização de
recurso de GRAVADOR DE VOZ, a ser transcrita na íntegra quando da análise dos dados
coletados. Os resultados da pesquisa serão analisados e publicados, contudo, será mantido o
anonimato dos respondentes e das organizações participantes da pesquisa. Dessa forma, a
participação na pesquisa não incide em riscos de qualquer espécie para os respondentes. A sua
aceitação na participação dessa pesquisa contribuirá para o/a mestrando/a escrever sobre o tema
da pesquisa, a partir da produção do conhecimento científico.
Consentimento pós-informação
Eu, _____________________________________, estou ciente das condições da pesquisa da
qual livremente participarei, sabendo ainda que não serei remunerado/a por minhas contribuições
e que posso afastar-me quando quiser. Este documento é emitido em duas vias que serão ambas
assinadas por mim e pelo/a pesquisador/a, ficando uma via para cada um/a.
Recife, PE, _____ de ______________ de 2018.
________________________________________
Assinatura do/a participante
________________________________________
Assinatura do/a pesquisador/a

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