Você está na página 1de 322

Este livro é dedicado aos meus leitores, com estima e gratidão.

Uma nota sobre o nome da personagem «Cerian Tahany»

O nome «Cerian Tahany» foi-me dado por uma Cerian Tahany da vida real,
uma das vencedoras deste ano da campanha Get In Character.
CLIC Sargent é a principal instituição de caridade para o cancro do Reino
Unido para crianças e jovens. A sua missão é mudar o significado de se ser
diagnosticado com cancro quando se é jovem. Acredita que as crianças e
jovens com esta doença têm direito ao melhor tratamento, cuidado e apoio
possíveis, ao longo de todo o percurso da doença, e também posteriormente.
A campanha Get In Character tem vindo a realizar-se desde 2014 e tem sido
apoiada por muitos dos autores mais conhecidos do Reino Unido. Até à
data, a campanha arrecadou mais de 40 000 libras.
Tem sido um prazer apoiar a campanha Get In Character ao longo dos anos.
Poderá encontrar mais informações em www.clicsargent.org.uk
Seria inexato dizer que, antes de eles chegarem, a minha infância era
normal. Estava longe de ser normal, mas era o que me parecia, porque era
tudo o que eu conhecia. Só agora, com décadas de retrospetiva, consigo ver
o quão estranha era.
Eu tinha quase onze anos quando eles chegaram, e a minha irmã nove.
Viveram connosco durante mais de cinco anos e tornaram tudo muito,
muito negro. Eu e a minha irmã tivemos de aprender a sobreviver.
E quando eu tinha dezasseis anos e a minha irmã catorze, o bebé chegou.
I
1

Libby pega na carta caída sobre o tapete de entrada e revira-a entre as mãos.
Parece bastante formal. O envelope é de cor creme, em papel de muito boa
qualidade e ao tato dá até a sensação de ser de tecido. O carimbo postal
indica «Smithkin Rudd & Royle Solicitors, Chelsea Manor Street SW3».
Leva a carta para a cozinha e pousa-a sobre a mesa, enquanto enche a
chaleira e coloca um saquinho de chá numa caneca. Tem a certeza de que
sabe o que está no envelope. Fez vinte e cinco anos no mês passado. No seu
subconsciente, tem estado à espera desta carta. Mas agora que está ali, já não
tem a certeza de conseguir abri-la.
Pega no telefone e liga para a mãe.
– Mãe – diz –, chegou. A carta dos trustees1.
Ouve um silêncio do outro lado da linha. Imagina a mãe na sua própria
cozinha, a mais de mil e quinhentos quilómetros de distância, em Dénia:
armários brancos imaculados, acessórios de cozinha com combinações de
verde-limão, portas deslizantes de vidro que dão para um pequeno terraço
com uma vista distante para o Mediterrâneo, o telefone com uma capa
cravejada de brilhantes – a que ela se refere como o seu glamoroso – colado
ao ouvido.
– Oh – disse ela. – OK. Caramba. Já abriste?
– Não. Ainda não. Vou primeiro tomar uma chávena de chá.
– OK – diz a mãe, novamente. Depois, pergunta: – Queres que fique em
linha? Enquanto a abres?
– Sim – responde Libby. – Por favor.
Sente um pouco de falta de ar, como por vezes acontece quando está prestes
a levantar-se para fazer uma apresentação de vendas no trabalho, como se
tivesse tomado um café forte. Tira a saqueta de chá da caneca e senta-se.
Passa os dedos por um canto do envelope e respira fundo.
– OK– diz para a mãe. – Vou abri-la. Agora mesmo.
A mãe sabe o que está ali. Ou, pelo menos, faz uma ideia, embora nunca lhe
tenham dito formalmente o que havia nesse trust2. Como ela sempre disse,
bem pode tratar-se de um bule de chá e de uma nota de dez libras.
Libby pigarreia e desliza o dedo por baixo da dobra do envelope. Retira uma
folha de papel creme espesso e dá-lhe uma vista de olhos rápida:

À Menina Libby Louise Jones

Na qualidade de administrador do trust de Henry e Martina Lamb, criado a


12 de julho de 1977, proponho proceder à entrega do mesmo, conforme
descrito no cronograma em anexo…

Pousa a carta de apresentação e pega na papelada que a acompanha.


– Então? – pergunta a mãe, ansiosa.
– Ainda estou a ler – responde.
Lê rapidamente e os seus olhos são atraídos para o nome de uma
propriedade. Dezasseis, Cheyne Walk, SW3. Assume que é a propriedade
onde os seus pais biológicos moravam quando morreram. Sabe que era em
Chelsea. E que era grande. Presumira que já se fora há muito tempo.
Entaipada. Vendida. Custa-lhe a respirar quando se apercebe do que acabou
de ler.
– Eh… – diz.
– O que é?
– Parece… Não, não pode ser.
– O quê?
– A casa. Deixaram-me a casa.
– A casa de Chelsea?
– Sim – responde.
– A casa toda?
– Acho que sim. – Na carta de apresentação faz-se referência ao facto de
mais ninguém apontado como beneficiário do trust se ter apresentado no
devido momento. Ela não consegue digerir toda aquela informação.
– Meu Deus. Quer dizer, deve valer imenso…
Libby respira fundo e levanta os olhos para o teto.
– Deve haver algum engano – diz ela. – Isto só pode ser um erro.
– Vai falar com os advogados – diz a mãe. – Telefona-lhes. Marca uma
reunião. Assegura-te de que não é um erro.
– E se não for um erro? Se for verdade?
– Bem, nesse caso, meu anjo – responde a mãe, e Libby consegue imaginar o
seu sorriso a todos aqueles quilómetros de distância –, vais ser uma mulher
muito rica.

Libby termina a chamada e olha em volta da cozinha. Cinco minutos antes,


esta era a única cozinha que podia ter e aquele o único apartamento que
podia pagar, aqui nesta rua tranquila de casas geminadas, no remanso de St.
Albans. Lembra-se dos apartamentos e das casas que viu durante as suas
pesquisas online, os pequenos susteres de respiração quando os seus olhos se
deparavam com o lugar perfeito: um terraço ensolarado, uma cozinha com
espaço para zona de refeições, um sítio a cinco minutos a pé da estação, uma
janela antiga saliente com vidros quadriculados, o vislumbre dos sinos de
uma catedral do outro lado do relvado. Mas depois olhava para o preço e
sentia-se tola por ter sequer pensado que poderia ser para ela.
Acabou por ceder em tudo para encontrar um sítio que ficasse perto do
trabalho e não muito longe da estação de comboios. Não sentiu qualquer
ligação ao passar a soleira; o seu coração manteve-se impávido enquanto o
agente imobiliário lhe mostrava o apartamento. Mas fez dele um lar do qual
poderia orgulhar-se, selecionando meticulosamente o que de melhor a TK
Maxx3 tinha para oferecer, e agora o seu apartamento de apenas um quarto,
mal convertido e ligeiramente desajeitado, fá-la sentir-se feliz. Comprou-o;
decorou-o. Pertence-lhe.
Mas, ao que parece, agora é dona de uma casa na melhor rua de Chelsea e,
de repente, o apartamento parece apenas uma piada ridícula, tal como tudo
o que era importante para ela há cinco minutos atrás – o aumento de 1500 £
por ano que acabara de receber no trabalho, o fim de semana em Barcelona
só para miúdas no mês seguinte, para o qual andou seis meses a poupar, a
sombra de olhos Mac que se «permitira» comprar no fim de semana anterior
como presente por ter conseguido o aumento de salário – o suave frisson de
pôr de lado o seu apertado orçamento mensal em troca de um momento
brilhante e docemente perfumado na House of Fraser4, a leveza da
minúscula bolsa MAC a balançar na sua mão, o arrepio ao colocar a
pequena cápsula preta na sua bolsa de maquilhagem, de saber que era sua,
que até a poderia usar em Barcelona, onde poderia usar também o vestido
que a mãe lhe comprara no Natal, o da French Connection, com partes de
renda, que ela queria há séculos. Até há cinco minutos, as suas alegrias na
vida tinham sido pequenas, antecipadas, desejadas, difíceis de obter e para
as quais tivera de economizar, pequenas e inconsequentes ostentações que
não tinham qualquer significado no esquema das coisas, mas que davam
à sua vida desinteressante brilho suficiente para que valesse a pena sair da
cama todas as manhãs para ir para um trabalho de que gostava, mas não
adorava.
Agora, possui uma casa em Chelsea, o que veio abalar a dimensão da sua
existência.
Volta a meter a carta no envelope caro e acaba o chá.

1
Trustee é a entidade incumbida de administrar os bens que posteriormente serão entregues àquele a
favor de quem o trust foi estabelecido (beneficiário), geralmente ao atingir uma certa idade. (N. da T.)
2
Um trust é uma figura jurídica existente no direito anglo-saxónico (que não se encontra incorporada
no nosso ordenamento jurídico), que se define, no essencial, como uma relação fiduciária através da
qual os bens são transmitidos a uma pessoa (trustee) para que esta os administre em benefício de um
terceiro (beneficiário) e em conformidade com o objetivo estabelecido no ato constitutivo. (N. da T.)
3
Cadeia de lojas de departamentos com diversos tipos de produtos, desde roupa a artigos para a casa.
(N. da T.)
4
Grupo britânico de grandes armazéns. (N. da T.)
2

Há uma tempestade a formar-se sobre a Côte d’Azur. Escurece o horizonte


com um tom de ameixa e pesa sobre a cabeça de Lucy. Ela cobre a cabeça
com uma mão, agarra no prato vazio da filha com a outra e baixa-o até ao
chão, para que o cão possa lamber os restos de molho e de migalhas de
frango.
– Marco, acaba a tua comida – diz ao filho.
– Não tenho fome – responde ele.
Lucy sente a raiva a latejar-lhe nas têmporas. A tempestade aproxima-se.
Sente a humidade a arrefecer o ar quente.
– Chega – diz ela, com a voz entrecortada pelo esforço que faz para não
gritar. – Isto é tudo o que há para comer hoje. Não há mais dinheiro.
Acabou. Escusas de me dizer que estás com fome à hora de ir para a cama.
Nessa altura, já será demasiado tarde. Come. Por favor.
Marco abana a cabeça com um ar de sofrimento e corta o seu panado de
frango. Ela olha para a cabeça do filho, para o seu cabelo castanho espesso
com redemoinhos. Tenta lembrar-se da última vez em que todos lavaram o
cabelo, mas não consegue.
– Mamã, posso comer uma sobremesa? – pergunta Stella.
Lucy olha para ela. Stella tem cinco anos e é o melhor erro que Lucy já
cometeu. Deveria dizer que não; é tão dura com Marco, não deveria ser tão
mole com a sua irmã. Mas Stella é tão boa, tão dócil e fácil de lidar. Como é
que lhe pode negar algo doce para comer?
– Se o Marco terminar o seu panado – responde calmamente –, podemos
partilhar um gelado.
É obviamente injusto para Stella, que acabou o seu frango há dez minutos e
não deveria ter de esperar que o irmão terminasse o dele. Mas o sentido de
injustiça de Stella parece ainda não se ter formado e ela acena com a cabeça
e diz:
– Despacha-te, Marco!
Assim que ele termina, Lucy pega no seu prato e pousa-o no chão, para o
cão. Chega o gelado. São três sabores numa tacinha de vidro com calda de
chocolate quente, crumble de praliné e uma palmeira cor-de-rosa num palito
de cocktail.
A cabeça de Lucy lateja de novo e ela olha para o horizonte. Precisam de
encontrar um abrigo urgentemente. Pede a conta, coloca o cartão no pires e
depois digita o seu código no leitor de cartões, sustendo a respiração, porque
sabe que agora já não há dinheiro naquela conta, que não há dinheiro em
lado nenhum.
Espera enquanto Stella lambe a tacinha de vidro e, depois, solta a trela do
cão, presa à perna da mesa, e pega nos sacos, entregando dois a Marco e um
a Stella.
– Para onde vamos? – pergunta Marco.
Os seus olhos castanhos têm uma expressão séria e o seu olhar está pesado
de ansiedade.
Ela suspira. Olha para cima, na direção da zona antiga de Nice, para a rua
que desce até ao oceano. Olha até para o cão, como se ele pudesse ter uma
boa sugestão para lhe dar. Ele olha-a ansiosamente, como se pudesse haver
mais algum prato para lamber. Há apenas um sítio para onde ir e é o último
lugar onde desejaria estar. Mesmo assim, encontra um sorriso.
– Já sei – diz. – Vamos ver a Mémé!
Marco geme. Stella parece insegura. Ambos se lembram de como foi da
última vez que ficaram com a avó de Stella. Samia tinha sido estrela de
cinema na Argélia. Agora tem setenta anos, é cega de um olho e mora num
apartamento com mau aspeto, no sétimo andar de um bloco em l’Ariane,
com a sua filha adulta deficiente. O seu marido morreu quando ela tinha
apenas cinquenta e cinco anos, e o seu único filho, o pai de Stella,
desapareceu há três anos e nunca mais a contactou. Samia sente raiva e está
magoada, e com razão. Mas tem um teto e um chão; tem almofadas e água
corrente. Tem tudo o que agora Lucy não pode oferecer aos seus filhos.
– Só por uma noite – diz. – Só esta noite e depois arranjo alguma coisa para
amanhã. Prometo.
Chegam a casa de Samia quando a chuva começa a cair, minúsculas bombas
de água que explodem no pavimento quente. No elevador grafitado a
caminho do sétimo andar, Lucy consegue sentir o cheiro deles: o aroma
húmido das roupas sujas, dos cabelos oleosos, das sapatilhas usadas há
demasiado tempo. O cão, com o seu pelo crespo e denso, tem um cheiro
particularmente horrível.
– Não posso – exclama Samia à porta, bloqueando-lhes a entrada. – Não
posso mesmo. A Mazie está doente. A cuidadora tem de dormir cá esta
noite. Não há espaço. Não há.
Ouve-se o ribombar de um trovão por cima das suas cabeças. Atrás deles, o
céu, de onde escorrem lençóis de chuva, fica branco brilhante. Lucy olha
para Samia, desesperada.
– Não temos nenhum lugar para onde ir – responde-lhe.
– Eu sei – diz Samia. – Eu sei disso. Posso ficar com Stella. Mas tu, o rapaz e
o cão, lamento. Vais ter de encontrar outro sítio.
Lucy sente Stella encostar-se-lhe à perna, o seu pequeno corpo a ser
percorrido por um arrepio de desconforto.
– Eu quero ficar contigo – sussurra à mãe. – Não quero ficar aqui sem ti.
Lucy agacha-se e pega nas mãos da filha. Os olhos da menina são verdes,
como os do pai, o cabelo escuro tem madeixas cor de avelã e alouradas e o
seu rosto está bronzeado pelo longo verão quente. É uma criança linda. Por
vezes, as pessoas até interpelam Lucy na rua para lho dizerem, com um
suspiro suave.
– Querida, aqui vais ficar seca. Podes tomar um duche. A Mémé lê-te uma
história…
Samia assente.
– Leio-te aquela de que gostas – concorda –, sobre a Lua.
Stella aperta-se mais contra Lucy, ela sente que a sua paciência está prestes a
esgotar-se. Daria tudo para poder dormir na cama de Mémé, para que lhe
lessem o livro sobre a Lua, para tomar um banho e vestir um pijama lavado.
– É só uma noite, querida. Amanhã, venho buscar-te cedo, OK?
Sente o movimento da cabeça de Stella a acenar, encostada ao seu ombro,
inspirando enquanto tenta conter as lágrimas.
– Está bem, mamã – aceita a criança, e Lucy empurra-a ligeiramente para
dentro do apartamento de Samia, antes que alguma delas mude de ideias. A
seguir, apenas ela, Marco e o cão, com os tapetes de ioga enrolados nas
costas, saem para a chuva forte, para a noite escura, sem destino para onde
ir.

Durante algum tempo, abrigam-se por baixo de um viaduto. O zumbido


constante dos pneus dos carros sobre o asfalto quente e molhado é
ensurdecedor. A chuva continua a cair.
Marco tem o cão ao colo, o rosto pressionado contra o seu dorso.
Olha para Lucy.
– Porque é que a nossa vida é uma merda? – pergunta-lhe.
– Tu sabes porquê – replica ela.
– Porque é que não fazes alguma coisa em relação a isso?
– Estou a tentar – responde ela.
– Não, não estás. Estás a deixar-nos afundar.
– Estou a tentar – sibila, fixando-o com um olhar furioso. – A cada minuto
de cada dia.
Ele olha-a, com uma expressão de dúvida. Ele é muito, muito inteligente e
também a conhece, muito bem. Ela suspira.
– Amanhã vou buscar o meu violino. Posso começar outra vez a ganhar
dinheiro.
– Como é que vais pagar o arranjo? – pergunta, voltando-se para ela e
semicerrando os olhos.
– Hei de arranjar uma maneira.
– Que maneira?
– Não sei, está bem? Ainda não sei. Alguma coisa há de aparecer. Aparece
sempre.
Afasta o olhar do filho e fixa as linhas paralelas dos faróis que brilham na
sua direção. O enorme estrondo de um trovão ecoa por cima deles, o céu
ilumina-se novamente e a chuva torna-se, se possível, ainda mais forte. Tira
o seu maltratado smartphone do bolso exterior da mochila e liga-o. Vê que
só lhe resta oito por cento de carga de bateria e está prestes a desligá-lo,
quando repara que recebeu uma notificação do seu calendário. Já está ali há
semanas, mas ela não consegue arranjar coragem para a cancelar.
Diz, simplesmente: A bebé faz 25.
3

Chelsea, final dos anos 1980

O meu nome, tal como o do meu pai, é Henry. Esta duplicação foi a causa de
confusões ocasionais, mas como a minha mãe chamava querido ao meu pai,
a minha irmã chamava papá e praticamente todas as outras pessoas lhe
chamavam Sr. Lamb ou senhor, sobrevivemos.
O meu pai foi o único beneficiário da fortuna do seu próprio pai, feita com
um negócio de slot machines. Nunca conheci o meu avô, que era já muito
velho quando o meu pai nasceu, era de Blackpool e chamava-se Harry. O
meu pai nunca trabalhou um dia em toda a sua vida, limitando-se a ficar à
espera de que Harry morresse para poder ser rico por direito próprio.
Comprou a nossa casa em Cheyne Walk, em Chelsea, no próprio dia em que
pôs as mãos no dinheiro. Já andava à procura de casa durante os últimos
dias de Harry e tinha ficado de olho naquele sítio durante algumas semanas,
apavorado com a possibilidade de alguém poder fazer uma oferta antes de
ele conseguir reivindicar a sua herança.
Quando a comprou, a casa estava vazia e ele passou anos e milhares de libras
a enchê-la com aquilo que designava por objetos: cabeças de alce a assomar
de paredes apaineladas, espadas de caça cruzadas por cima das portas,
tronos de mogno com costas estofadas, uma mesa de banquete de estilo
medieval para dezasseis pessoas, repleta de cicatrizes e buracos de caruncho,
armários cheios de pistolas e chicotes, uma tapeçaria de seis metros,
sinistros retratos a óleo de antepassados de outras pessoas, montes de livros
encadernados em pele com gravações a ouro, que nunca ninguém leria, e
um canhão de tamanho real no jardim da frente. Na nossa casa não havia
cadeiras confortáveis nem recantos acolhedores. Ali, tudo era madeira e
couro, ou metal e vidro. Tudo era difícil. Especialmente o meu pai.
Ele levantava pesos na nossa cave e bebia Guinness do seu barril privado, no
seu bar privado. Usava fatos de oitocentas libras, feitos à mão em Mayfair,
que mal acomodavam os seus músculos e o seu perímetro. Tinha o cabelo
da cor de moedas velhas, mãos com um aspeto áspero e os nós dos dedos
avermelhados. Conduzia um Jaguar. Jogava golfe, apesar de odiar, porque
não era feito para balançar um taco de golfe; ele era demasiado sólido,
demasiado inflexível. Aos fins de semana, ia à caça: aos sábados de manhã,
desaparecia, vestido com um casaco de tweed justo e a mala do carro cheia
de armas, e regressava a casa à noite, no domingo, com um par de pombos-
torcazes numa caixa de gelo. Uma vez, quando eu tinha uns cinco anos,
trouxe para casa um bulldog inglês, que tinha comprado a um homem na
rua usando as notas fresquinhas de cinquenta libras que guardava enroladas
no bolso do casaco. Disse que o fazia lembrar-se de si próprio. Depois, o cão
fez caca num tapete antigo e o meu pai livrou-se dele.
A minha mãe era uma beleza rara.
As palavras não são minhas. Eram do meu pai.
A tua mãe é uma beleza rara.
Ela era meio-alemã, meio-turca. Chamava-se Martina. Era doze anos mais
nova do que o meu pai e nessa altura, antes de virem para cá, era um ícone
da moda. Colocava um par de óculos escuros e ia até à Sloane Street para
gastar o dinheiro do meu pai em lenços de seda brilhante, batons em
embalagens douradas e perfume francês intenso, e por vezes era fotografada
com os pulsos rodeados com as pegas dos sacos e embrulhos com papéis
chiques. Diziam que era uma socialite. Na verdade, não era. Ia a festas
glamorosas e usava roupas lindas, mas quando estava em casa era apenas a
nossa mãe. Não a melhor mãe, mas também não a pior, e sem dúvida um
elemento relativamente suave na nossa mansão de Chelsea enorme,
masculina e decorada com machetes.
Durante cerca de um ano, teve um emprego em que apresentava pessoas
importantes da moda umas às outras. Ou, pelo menos, era essa a minha
impressão. Tinha na mala uns pequenos cartões de visita prateados, com as
palavras «Martina Lamb Associates» em rosa-choque. Tinha um escritório
em King’s Road, um escritório no loft luminoso por cima de uma loja, com
uma mesa de vidro, cadeiras de couro e um telex, cabides de roupa em
plástico transparente e um vaso de lírios brancos sobre um pedestal. Nas
férias escolares, levava-nos, a mim e à minha irmã, para o trabalho e dava-
nos pilhas de papel incrivelmente branco, de uma resma que tinha dentro de
uma caixa, e um punhado de marcadores Magic Markers. O telefone tocava
ocasionalmente e a mamã dizia: «Bom dia, Martina Lamb Associates.» De
vez em quando, um visitante fazia-se anunciar através do intercomunicador,
e eu e a minha irmã lutávamos para saber de quem era a vez de pressionar o
botão para abrir a porta. Os visitantes eram mulheres esganiçadas e muito
magras, que só queriam falar sobre roupas e pessoas famosas. Não havia
«associados», apenas a nossa mãe e por vezes uma adolescente de olhos
arregalados a trabalhar à experiência. Não sei o que aconteceu a tudo isso.
Só sei que o escritório no loft desapareceu, bem como os cartões de visita
prateados, e a mamã voltou a ser dona de casa.
A minha irmã e eu fomos para a escola em Knightsbridge – possivelmente a
escola mais cara de Londres. Nessa época, o nosso pai não tinha medo de
gastar dinheiro. Adorava gastá-lo. Quanto mais, melhor. O nosso uniforme
era castanho cor de caca e amarelo bílis, e os rapazes usavam calças curtas.
Felizmente, quando eu já tinha idade suficiente para poder ser humilhado
por causa delas, o meu pai já não tinha dinheiro para pagar as mensalidades
escolares, quanto mais para as calças de veludo cotelê do uniforme escolar,
compradas no Harrods.
Depois de eles chegarem, tudo aconteceu tão devagar, mas ao mesmo tempo
tão extraordinariamente depressa: a mudança nos nossos pais, na nossa
casa, nas nossas vidas. Porém, naquela primeira noite, quando Birdie
apareceu nos degraus da nossa porta com duas malas grandes e um gato
numa caixa de vime, nunca poderíamos ter imaginado o impacto que ela
iria ter, as pessoas que iria trazer para as nossas vidas e que tudo acabaria da
forma como acabou.
Pensávamos que ela tinha vindo apenas para ficar durante o fim de semana.
4

Libby consegue ouvir todos os sussurros que esta sala já ouviu em cada
momento da sua existência, sentir a respiração de cada pessoa que ali
mesmo se sentou, onde ela está agora.
– Mil setecentos e noventa e nove – respondera o Sr. Royle à sua pergunta
anterior. – Um dos mais antigos escritórios de advocacia da capital.
O Sr. Royle olha-a do outro lado da sua secretária meticulosamente
encerada.
– Bem, bem. Isto é que é um presente de aniversário, não? – diz, com um
sorriso a aflorar-lhe os lábios.
Libby sorri nervosamente.
– Ainda não estou convencida de que seja realmente verdade – replica. –
Estou sempre à espera de que alguém me venha dizer que tudo não passou
de uma grande brincadeira.
A sua escolha de palavras – grande brincadeira – parece desajustada naquele
cenário venerável e antigo. Ela gostaria de ter usado uma expressão
diferente. Mas o Sr. Royle não parecia preocupado. Enquanto se inclinava
para a frente e passava a Libby uma pilha de papelada, o seu sorriso
mantinha-se inalterado.
– Posso garantir-lhe que não é brincadeira nenhuma, menina Jones. Aqui –
diz, puxando algo do monte de papel. – Eu não tinha a certeza se deveria
dar-lhe isto agora. Ou talvez lho devesse ter enviado juntamente com a
carta. Não sei, é tudo muito estranho. Estava na pasta e por isso guardei-o,
só para o caso de surgir alguma questão. Mas agora parece a coisa certa a
fazer. Portanto, aqui está. Não sei o que é que os seus pais adotivos lhe
contaram sobre a sua família biológica, mas talvez valha a pena ler isto.
Ela desdobra o bocado de papel de jornal e pousa-o sobre a secretária, à sua
frente.

Socialite e marido mortos em pacto de suicídio


Filhos adolescentes desaparecidos; bebé encontrado vivo

A polícia foi ontem chamada à casa da antiga socialite Martina Lamb e do


seu marido Henry, em Chelsea, após relatos de um possível triplo suicídio.
A polícia chegou à hora do almoço e encontrou os corpos do Sr. e da Sra.
Lamb lado a lado, no chão da cozinha. Foi ainda encontrado morto um
segundo homem, que ainda não está identificado. Um bebé, que se
acredita ser do sexo feminino e ter dez meses de idade, foi encontrado
num quarto no primeiro andar. O bebé foi entregue aos serviços sociais e
segundo parece estará de boa saúde. Os vizinhos referiram que várias
crianças tinham morado na casa nos últimos anos e há diversos relatos de
que outros adultos vivessem na propriedade, mas não foi encontrado
qualquer vestígio de outros residentes.
A causa da morte está ainda por ser apurada, mas as primeiras análises
realizadas ao sangue parecem sugerir que o trio poderá ter-se envenenado.
Henry Lamb, de 48 anos, foi o único beneficiário da herança do seu pai, o
Sr. Harry Lamb, de Blackpool, Lancashire. Nos últimos anos, sofria de
problemas de saúde e dizia-se estar confinado a uma cadeira de rodas.
A polícia leva a cabo uma investigação por todo o país, tentando descobrir
se alguém viu o filho e a filha do casal, descritos como tendo entre catorze
e dezasseis anos. Pede-se a qualquer pessoa que disponha de alguma
informação sobre o paradeiro das crianças que entre em contacto com a
Polícia Metropolitana logo que possível. A polícia está também interessada
em contactar com qualquer pessoa que tenha residido na propriedade com
a família nos últimos anos.

Ela olha para o Sr. Royle.


– Isto quer dizer que… o bebé que foi deixado… sou eu?
Ele anui. Ela consegue ver nos seus olhos uma tristeza genuína.
– Sim – responde ele. – Que história trágica, não é? E que mistério. O das
outras crianças, digo. Elas também eram beneficiárias da herança da casa,
mas nenhuma se apresentou. Apenas posso assumir que elas… bem,
adiante… – Inclina-se para a frente, ajeita a gravata e sorri, dolorosamente. –
Posso oferecer-lhe uma caneta?
Inclina um pote de madeira com canetas esferográficas de aspeto caro na sua
direção e ela pega numa. Tem o nome da firma impresso em letras douradas.
Por um momento, Libby olha-a, absorta.
Um irmão.
Uma irmã.
Um pacto de suicídio.
Abana a cabeça, muito ligeiramente. A seguir, pigarreia e diz:
– Obrigada.
Os seus dedos agarram com força a caneta. Mal consegue lembrar-se de
como é a sua assinatura. Há post-its em forma de setas colados nas
extremidades das páginas que ela deve assinar, indicando-lhe o lugar
correto. O som da caneta sobre o papel é quase excruciante. O Sr. Royle
observa com um ar afável. Empurra a sua chávena de chá alguns centímetros
sobre a secretária e, de seguida, volta a colocá-la na anterior posição.
Enquanto assina, Libby sente intensamente a importância daquele
momento, esta reviravolta invisível na sua vida, que a leva daqui para ali. De
um dos lados daquela pilha de papéis, estão as comedidas viagens de
autocarro até ao Lidl, uma semana de férias por ano e um CorsaVauxhall
com onze anos. No outro, estão as chaves de uma casa com oito quartos em
Chelsea.
– Muito bem – exclama ele, quase com um suspiro de alívio, quando Libby
lhe devolve a papelada. – Muito bem. – Folheia as várias páginas, prestando
especial atenção aos espaços ao lado dos post-its e, por fim, olha para Libby e
sorri. – Certo. Acho que está na hora de tomar posse das chaves. – Da gaveta
da secretária, tira um pequeno envelope almofadado branco. Na etiqueta
está escrito «16 Cheyne Walk».
Libby espreita lá para dentro. Três conjuntos de chaves. Um deles com um
porta-chaves de metal com o logotipo da Jaguar. Outro em latão com
isqueiro embutido. E um terceiro conjunto sem porta-chaves.
– Vamos? – pergunta ele, levantando-se. – Podemos ir a pé. É logo ali ao
virar da esquina.
Está um dia de verão violentamente quente. Libby consegue sentir o calor
nas pedras da calçada através das solas dos seus sapatos slip-on de lona, o
brilho do sol do meio-dia a queimar através da fina película de nuvens.
Descem uma rua repleta de restaurantes, todos eles com esplanada, as mesas
totalmente prontas dispostas sobre plataformas especiais e protegidas do sol
por amplos guarda-sóis retangulares. Mulheres com grandes óculos de sol
sentam-se aos pares ou em grupos de três a beber vinho. Algumas são tão
jovens quanto ela e fica admirada por se poderem dar ao luxo de se
sentarem num restaurante chique a beber um copo de vinho, numa tarde de
segunda-feira.
– Então, suponho que este poderá ser o seu novo bairro – diz o Sr. Royle. –
Se decidir vir morar na casa.
Ela abana a cabeça e solta uma pequena risada nervosa. Não consegue
encontrar uma resposta adequada. É tudo demasiado louco.
Passam por pequenas boutiques e lojas de antiguidades repletas de raposas e
ursos em bronze e enormes candelabros cintilantes do tamanho da sua
banheira. Estão junto ao rio e Libby consegue sentir o seu cheiro antes de o
ver, o odor forte a cão molhado. Grandes barcos cruzam-se; um outro barco,
mais pequeno e com mais pessoas ricas, passa, deixando atrás de si um rasto
de espuma: champanhe dentro de um balde de gelo prateado e um golden
retriever na proa, fustigado pelo vento, a semicerrar os olhos contra o Sol.
– É já aqui – esclarece o Sr. Royle. – Mais um ou dois minutos.
As coxas de Libby fazem fricção e ela gostaria de ter vestido calções ao invés
de uma saia. Sente o suor a ser absorvido pelo tecido do sutiã no ponto onde
as copas se encontram, e calcula que o Sr. Royle, com o seu fato e camisa
justos, também estará a achar o calor insuportável.
– Aqui estamos nós – diz ele, virando-se para um conjunto de cinco ou seis
casas de tijolo vermelho geminadas, todas de alturas e larguras diferentes.
Libby adivinha de imediato qual é a sua, mesmo antes de ver o número
dezasseis pintado sobre a bandeira da porta, numa caligrafia ondulada. A
casa tem três andares de altura e quatro janelas de largura. É linda. No
entanto, tal como tinha imaginado, está fechada com tábuas. As chaminés e
calhas estão cobertas de ervas daninhas. A casa é uma monstruosidade.
Mas uma monstruosidade tão bonita. Libby respira fundo.
– É enorme – diz.
– Sim – concorda o Sr. Royle. – No total, tem doze divisões. Sem incluir a
cave.
A casa fica bem afastada do passeio, atrás de grades de metal ornamentadas
e de um jardim com canteiros cobertos de vegetação. Há uma cobertura em
ferro forjado que se estende até à porta da frente, e à esquerda vê-se um
canhão em tamanho real, assente sobre um bloco de cimento.
– Quer que eu faça as honras? – O Sr. Royle aponta para o cadeado que
prende a placa de madeira à porta da frente.
Libby acena com a cabeça e ele abre o cadeado, segurando e afastando o
tapume, que se solta com um gemido terrível, deixando ver por trás uma
enorme porta preta. Ele esfrega as pontas dos dedos e a seguir,
metodicamente, tenta descobrir a chave que irá abrir a porta.
– Quando foi a última vez que alguém esteve nesta casa? – pergunta ela.
– Bem, acho que já foi há alguns anos, quando alguma coisa inundou.
Tivemos de entrar de emergência com os canalizadores. Reparámos alguns
danos. Esse tipo de coisas. Muito bem, aqui estamos nós.
Entram para o corredor. O calor do exterior, o barulho do trânsito, o ressoar
do rio, tudo desaparece. Ali está fresco. O chão, em parquê macio e escuro,
está empoeirado e cheio de marcas. A escada em frente tem um corrimão de
madeira escura trabalhada, com uma cesta transbordante de frutos
esculpida no topo do capitel. As portas de madeira têm relevos e maçanetas
de bronze ornamentadas. As paredes são revestidas até meio com madeira
escura e forradas com papel bordeaux esfarrapado, já com grandes zonas
nuas nos pontos em que foi comido pelas traças. O ar é denso e está cheio de
partículas de pó. A única luz vem das bandeiras por cima de cada porta.
Libby estremece. Há demasiada madeira. A luz é insuficiente. Tal como o ar.
Sente-se como se estivesse num caixão.
– Posso? – Pousa a mão numa das portas.
– Pode fazer o que quiser. A casa é sua.
A porta abre-se para uma longa sala retangular na parte de trás da casa, com
quatro janelas com vista para um denso emaranhado de árvores e arbustos.
Mais painéis de madeira. Persianas de madeira. Mais parquê sob os seus pés.
– Para onde dá aquela porta? – pergunta ao Sr. Royle, apontando para uma
porta estreita embutida no painel.
– Essa é a porta para a escada do pessoal – responde. – Leva diretamente aos
quartos mais pequenos, no sótão, e há outra porta escondida no patamar do
primeiro andar. É muito normal nestas casas antigas. Foram construídas
como gaiolas para hamsters.
Exploram cada andar e divisão da casa.
– O que aconteceu a toda a mobília? E a todos os objetos? – pergunta Libby.
– Já não existem há muito tempo. A família vendeu tudo para se conseguir
aguentar. Dormiam todos em colchões. Faziam as suas próprias roupas.
– Então, eram pobres?
– Sim – responde. – De facto, suponho que eram pobres.
Libby assente. Não tinha imaginado os seus pais biológicos como pobres.
Claro que se permitira criar pais biológicos imaginários. Mesmo as crianças
que não são adotadas fantasiam. Os seus pais imaginários eram jovens e
sociáveis. A sua casa junto ao rio tinha duas paredes de vidro e um terraço
envolvente. Teriam duas cadelas, pequenas, com diamantes nas suas coleiras.
A sua mãe imaginária trabalharia como relações públicas no setor da moda
e o pai imaginário seria designer gráfico. Quando ela ainda era bebé, pegar-
lhe-iam para ir tomar o pequeno-almoço e sentariam-na numa cadeira alta,
cortando-lhe brioches em bocadinhos e entrelaçando os pés por baixo da
mesa, onde as cadelinhas dormiam enroscadas.
Morreriam ao regressar de uma festa. Mais provavelmente num acidente
envolvendo um carro desportivo.
– Havia mais alguma coisa? – perguntou. – Para além da nota de suicídio?
O Sr. Royle abana a cabeça.
– Bem, nada de oficial. Havia apenas uma coisa. Quando a encontraram a si.
Algo que estava consigo no berço. Acredito que ainda esteja por aqui. No
seu quartinho. Vamos…?
Segue o Sr. Royle até um quarto amplo no primeiro andar, onde há duas
grandes janelas de guilhotina com vista para o rio. O ar é estagnado e denso,
os cantos junto ao teto estão cheios de teias de aranha e de pó. Na outra
extremidade da divisão, há uma abertura e eles viram a esquina, chegando a
uma pequena sala. Parece um quarto de vestir, com três paredes de
roupeiros e gavetas decoradas com contas ornamentadas e pintadas de
branco. No centro da sala, há um berço.
– É aquele…?
– Sim. Foi aqui que a encontraram. Segundo parece, a palrar, toda contente.
É um berço de balanço, com alavancas de metal para ser empurrado para a
frente e para trás. Está pintado num tom de creme de leite espesso e rosas de
um azul-pálido. Na frente, tem um pequeno emblema de metal com o
logotipo do Harrods.
O Sr. Royle aproxima-se de uma prateleira na parede do fundo e pega numa
pequena caixa.
– Aqui está – diz –, isto estava escondido entre os seus cobertores. Todos
presumimos, nós e a polícia, que era para si. A polícia conservou-o como
prova durante anos e depois acabou por devolvê-lo, quando o caso foi
arquivado.
– O que é?
– Abra e veja.
Ela segura na caixinha de papelão e abre-a. Está cheia de pedaços de jornal.
Os seus dedos encontram algo sólido e sedoso. Retira-o da caixa e deixa -o
pendurado entre as pontas dos dedos. É uma pata de coelho presa numa
corrente de ouro. Libby recua ligeiramente e a corrente escorrega das suas
mãos e cai no chão de madeira. Baixa-se para apanhá-la.
Passa os dedos pela pata de coelho, sentindo o pelo lustroso frio, sem vida, e
as pontas afiadas das suas garras. Passa a corrente pela outra mão. A sua
cabeça, que há uma semana estava cheia de imagens de sandálias novas,
noites de miúdas, pontas de cabelo espigadas, plantas de casa a precisarem
de ser regadas, estava agora cheia de imagens de pessoas a dormirem em
colchões, coelhos mortos e uma casa grande e assustadora, totalmente vazia,
com exceção de um grande berço de balanço do Harrods, com rosas de um
azul-pálido estranhamente sinistras pintadas dos lados. Volta a colocar a
pata de coelho na caixa e segura-a, desajeitadamente. Depois, devagar, pousa
a mão sobre o colchão na base do berço, procurando o eco do seu pequeno
corpo adormecido, o fantasma da pessoa que ali a deitou pela última vez,
aconchegada e em segurança, com um cobertor e uma pata de coelho. Mas
claro que ali não encontra nada. Apenas uma cama vazia e um certo cheiro a
bafio.
– Qual era o meu nome? – pergunta. – Alguém sabia?
– Sim – responde o Sr. Royle. – O seu nome estava escrito na nota que os
seus pais deixaram ficar. Era Serenity.
– Serenity?
– Sim. Um nome bonito. Eu acho – responde. – Talvez um pouco… boémio?
De súbito, ela sente-se claustrofóbica. Tem vontade de fugir,
dramaticamente, do quarto, mas o teatro não é nada do seu estilo.
Portanto, limita-se apenas a dizer:
– Por favor, podemos ir agora ver o jardim? Sabia-me bem apanhar um
pouco de ar fresco.
5

Lucy desliga o telemóvel. Precisa de conservar a bateria, para o caso de


Samia tentar entrar em contacto. Vira-se para Marco, que a olha com
curiosidade.
– O que é? – pergunta.
– Que mensagem era essa? No teu telemóvel?
– Qual mensagem?
– Eu vi-a. Agora mesmo. Dizia: A bebé faz vinte e cinco. O que quer dizer?
– Não quer dizer nada.
– Deve querer dizer alguma coisa.
– Não quer. É a bebé de uma amiga. Só para me lembrar de que faz vinte e
cinco anos. Tenho de lhe enviar um cartão.
– Que amiga?
– Uma amiga em Inglaterra.
– Mas tu não tens amigas em Inglaterra.
– Claro que tenho amigas em Inglaterra. Eu fui criada em Inglaterra.
– Então, qual é o nome dela?
– O nome de quem?
Marco solta um rugido de frustração.
– O nome da tua amiga, é claro.
– E o que é que te importa? – replica, bruscamente.
– Importa porque és minha mãe e quero saber coisas sobre ti. Eu não sei
nada de nada sobre ti.
– Isso é ridículo. Sabes montes de coisas sobre mim.
Ele olha-a estupefacto e de olhos arregalados.
– Tipo o quê? Quer dizer, sei que os teus pais morreram quando eras bebé.
Sei que cresceste em Londres com uma tia, que te trouxe para França e te
ensinou a tocar violino e que morreu quando tinhas dezoito anos. Portanto,
sei, tipo, a tua história. Mas não conheço os pormenores. Como em que
escola andaste ou quem eram os teus amigos, o que fazias aos fins de
semana, coisas engraçadas que te tenham acontecido ou esse género de
coisas normais.
– É complicado – diz ela.
– Eu sei que é complicado – responde. – Mas eu já tenho doze anos e tu não
me podes tratar como se eu ainda fosse um bebé. Tens de me contar as
coisas.
Lucy olha para o filho. Ele tem razão. Tem doze anos e já não se interessa
por contos de fadas. Ele sabe que a vida é mais do que cinco grandes
acontecimentos, que é feita de todos os momentos que existem entre eles.
Ela suspira.
– Não posso – diz. – Ainda não.
– Então quando?
– Em breve – responde. – Se algum dia chegarmos a Londres, eu conto-te
tudo.
– E vamos?
Ela suspira e afasta o cabelo da testa.
– Não sei. Eu não tenho dinheiro. Tu e a Stella não têm passaporte. O cão. É
tudo…
– O pai – Marco interrompe-a. – Telefona ao pai.
– Nem pensar.
– Podemos encontrar-nos num sítio público. Aí ele não se atreveria a fazer
nada.
– Marco, nem sequer sabemos onde está o teu pai.
Há um silêncio estranho. Ela consegue sentir o filho a remexer-se
nervosamente, enterrando de novo o rosto no pelo do cão.
– Eu sei.
Ela volta-se, bruscamente, para olhar para ele.
Ele fecha os olhos e abre-os de novo.
– Ele foi buscar-me à escola.
– Quando?
Marco encolhe os ombros.
– Algumas vezes. Perto do fim do período.
– E não me contaste?
– Ele disse-me para não o fazer.
– Porra, Marco. Porra. – Lucy esmurra o chão com os punhos. – O que
aconteceu? Onde te levou?
– A lado nenhum. Ele só me acompanhou.
– E?
– E o quê?
– O que é que ele te disse? O que é que anda a fazer?
– Nada. Está de férias. Com a mulher.
– E onde está agora?
– Ainda cá está. Vai ficar durante todo o verão. Na casa.
– Na casa?
– Sim.
– Meu Deus, Marco! Porque não me contaste antes?
– Porque sabia que te ias passar.
– Eu não me estou a passar. Olha para mim. Não me estou a passar. Estou
apenas aqui sentada no chão duro e molhado, por baixo de um viaduto, sem
lugar para dormir, enquanto o teu pai anda por aí a viver à grande. Porque
haveria de me passar?
– Desculpa – resmunga. – Disseste que nunca mais o querias voltar a ver.
– Isso foi quando eu não estava a dormir por baixo de uma autoestrada.
– Então, queres voltar a vê-lo?
– Eu não quero vê-lo. Mas tenho de arranjar uma saída para esta situação. E
ele é a única opção. Pelo menos pode pagar para eu recuperar o meu violino.
– Oh, claro, porque nesse caso ficaremos muito ricos, não é?
Lucy cerra os punhos. O filho arranja sempre forma de dar um tom
desagradável às palavras e de lhas atirar à cara.
– Estamos em meados de julho. Todas as escolas do Reino Unido e da
Alemanha vão fechar agora. Haverá o dobro de turistas. Não deverei
demorar muito a arranjar dinheiro suficiente para chegarmos a Inglaterra.
– Porque é que não pedes ao pai que nos pague a viagem? E vamos já. Quero
mesmo ir para Londres. Quero ir para longe daqui. Pede ao pai para pagar.
Porque é que não o fazes?
– Porque não quero que ele saiba para onde vamos. Ninguém pode saber
que vamos. Nem sequer a Mémé. OK?
– OK – concorda ele, acenando com a cabeça.
Ele encosta o queixo ao peito e ela vê os tufos de cabelo emaranhado que se
formaram na parte de trás da sua cabeça na semana em que ficaram sem
abrigo. Dói-lhe o coração e pousa a mão na parte de trás do pescoço esguio
do filho, apertando-o suavemente.
– Lamento muito, meu querido – diz –, lamento tudo isto. Amanhã vamos
visitar o teu pai e verás que tudo começa a melhorar. Prometo.
– Sim – replica Marco –, mas nunca nada será normal, pois não?
Não, pensa consigo mesma. Não. Provavelmente, não.
6

Chelsea, 1988

A Birdie chegou primeiro. Birdie Dunlop-Evers.


A minha mãe conheceu-a algures. Numa festa. Birdie tocava violino numa
banda pop chamada Original Version e era, suponho, vagamente famosa.
Houve um single estridente que quase chegou a número um e chegaram ao
Top of the Pops por duas vezes. Não que eu me importasse muito com essas
coisas. Nunca gostei realmente de música pop e a divinização das
celebridades repugna-me um pouco.
Ela estava sentada na nossa cozinha, a tomar chá numa das nossas canecas
castanhas. Tive um ligeiro sobressalto quando a vi ali. Uma mulher com
cabelo fino e comprido até à cintura, calças de homem apertadas com um
cinto, camisa às riscas e suspensórios, um sobretudo comprido cinzento e
umas luvas verdes sem dedos. Achei que parecia completamente deslocada
em nossa casa. As únicas pessoas que aqui vinham usavam fatos feitos à mão
e cetins com cortes em viés; cheiravam a after-shave Christian Dior e a l’Air
du Temps.
Birdie olhou para mim quando entrei, os olhos azuis pequenos com
sobrancelhas finas pintadas a lápis por cima, uma boca dura que não fechava
devidamente sobre uma fila de dentes pequenos, um queixo insignificante
que parecia ter-se curvado sob a tristeza do seu rosto. Pensei que ela poderia
sorrir, mas não sorriu.
– Henry – disse a minha mãe –, esta é a Birdie! A senhora de quem te falei,
do grupo de música pop.
– Olá – cumprimentei.
– Olá – respondeu ela. Não a conseguia perceber. Soava como a minha
diretora, mas parecia uma vagabunda.
– O grupo da Birdie quer usar a casa para fazer um vídeo pop! – explicou a
minha mãe.
Admito que neste ponto tive de fingir um certo desinteresse. Mantive o rosto
sem expressão e não disse nada, dirigindo-me silenciosamente à caixa de
bolachas sobre o balcão, para o meu snack diário de regresso da escola.
Escolhi duas bolachas Malted Milks e servi-me de um copo de leite. Então, e
só então, perguntei:
– Quando?
– Na próxima semana – respondeu Birdie. – Já tínhamos um local escolhido,
mas tiveram uma inundação ou um desastre do género. Puf. Cancelado.
– E então eu disse, venha ver o que acha da nossa casa – prosseguiu a minha
mãe.
– E aqui estou.
– E aqui está.
Acenei com a cabeça, descontraidamente. Eu queria perguntar quando é que
vinham e se podia não ir à escola e ficar a ajudar, mas não era, nem nunca
fui, uma pessoa que mostrasse entusiasmo por alguma coisa. Por isso,
mergulhei a minha bolacha no leite, como faço sempre, apenas até ao T da
palavra «Malted», onde o fim da vaca que está em pé encontra o fim da vaca
que está deitada, e comi em silêncio.
– Acho que é espetacular – disse Birdie, fazendo um gesto ao seu redor. – Na
verdade, até é melhor do que o outro sítio. É absolutamente perfeito.
Imagino que haja papelada para assinar – revirou os olhos. – Seguros e esse
tipo de coisas, sabe? Para o caso de pegarmos fogo à sua casa. Ou de uma
das suas cabeças de alce cair em cima de um de nós e nos matar. Esse tipo de
coisas.
– Sim, sim – respondeu a minha mãe, como se estivesse sempre a fazer
seguros para o caso de eventuais fatalidades com cabeças de alce. – Faz todo
o sentido. E claro que primeiro tenho de discutir o assunto com o meu
marido. Mas sei que ele vai ficar satisfeito. Adora a vossa música.
Suspeito que isso não fosse verdade. O meu pai gostava de canções sobre
râguebi e óperas obscenas. Mas também gostava de barulho e de atenção e
gostava da casa. Por isso, gostaria de quem também gostasse dela.
Birdie partiu alguns minutos mais tarde. Reparei num pequeno monte de
pele morta sobre a mesa, junto à sua caneca, e senti-me um bocado enjoado.

As filmagens para o vídeo duraram dois dias e foram muito mais


aborrecidas do que eu imaginei que seriam. Gastou-se um tempo
interminável a acertar as luzes e a fazer os desgrenhados membros da banda
repetirem takes, vezes sem conta. Estavam todos vestidos de forma
semelhante, com roupas em tons de castanho que tinham ar de cheirar mal,
mas não cheiravam, porque tinham sido trazidas por uma senhora num
suporte para cabides de roupa, protegidas por sacos de plástico transparente.
No final do dia, tinha a música cravada na minha cabeça, como uma mosca
presa numa armadilha. Era uma canção horrível, mas chegou ao número um
e aí se manteve durante nove longas e penosas semanas. O vídeo estava por
todos os ecrãs de televisão por onde se passasse. A nossa casa, ali, à vista de
milhões.
Era um bom vídeo. Isso tenho de admitir. E eu sentia uma pequena emoção
quando dizia às pessoas que era a minha casa que aparecia no vídeo. Mas a
emoção desapareceu com o passar das semanas, porque muito depois de a
equipa de filmagens ter partido, muito depois de o single ter caído nas
tabelas, e de o single seguinte ter caído também, Birdie Dunlop-Evers, com
os seus olhos de contas e os seus minúsculos dentinhos, continuava em
nossa casa.
7

Libby trabalha para uma empresa de design de cozinhas caras. É chefe de


vendas e tem a sua base num showroom no centro de St. Albans, perto da
catedral. Tem dois gestores de vendas e dois assistentes de gestores de vendas
abaixo dela e, acima dela, um assistente do diretor de vendas, um diretor de
vendas sénior e um diretor-geral. Está a meio da escada, essa escada que tem
sido o foco da sua existência nos últimos cinco anos. Na sua cabeça, Libby
tem vindo a construir uma ponte para uma vida que irá começar quando ela
chegar aos trinta anos. Nessa altura, será ela a diretora de vendas e, se não
for, irá para outro sítio, para conseguir essa promoção. A seguir, casará com
o homem que atualmente anda a tentar encontrar, tanto online como na vida
real, o homem com rugas de expressão de tanto sorrir e um cão ou um
gato, o homem com um apelido interessante que liga bem com Jones, que
ganha o mesmo ou mais do que ela, que gosta mais de abraços do que de
sexo e que tem sapatos bonitos e uma pele maravilhosa, sem tatuagens, uma
mãe encantadora e uns pés atraentes. Um homem que tem, pelo menos,
1,78 m de altura, mas que, preferencialmente, deverá ter 1,80 m ou mais.
Um homem que não traz «bagagem» e que possui um bom carro, além de
uma certa definição abdominal, embora uma barriga lisa seja suficiente.
Este homem ainda não se materializou e Libby está ciente de que é possível
que esteja a ser demasiado exigente. Mas tem cinco anos para o encontrar e
casar com ele e depois outros cinco anos para ter um bebé, talvez dois, se
gostar do primeiro. Não tem pressa. Ainda não. Vai continuar a rejeitar
convites nas aplicações, continuar a pôr-se bonita para ir sair, a aceitar
convites para eventos sociais, a manter-se positiva, a manter-se magra,
equilibrada e a avançar.
Quando se levanta para ir trabalhar, o ar ainda está quente e há uma espécie
de brilho perolado no ar, embora sejam apenas oito da manhã.
Dormiu toda a noite com a janela do quarto aberta, mesmo sabendo que as
mulheres são aconselhadas a não o fazer. Dispôs copos numa fileira ao longo
do parapeito da janela, de modo a ter pelo menos algum aviso se algum
homem entrasse por ali. Mesmo assim, passou uma noite agitada, às voltas,
com os lençóis desagradavelmente torcidos por baixo do seu corpo.
O Sol acordou-a de um sono breve, brilhando como um laser através de um
minúsculo espaço entre as cortinas, voltando a aquecer o quarto em
minutos. Por um momento, tudo pareceu normal. E no momento seguinte,
deixou de parecer. Os seus pensamentos voltaram abruptamente ao dia
anterior. Para a casa escura e para os painéis com relevo, a escada secreta, a
pata de coelho, as rosas azul-pálidas nos lados do berço. Aquilo teria
realmente acontecido? A casa estaria ainda ali ou transformara-se em
partículas, à sua passagem?
Nessa manhã, é a segunda a chegar ao trabalho. Dido, a designer-chefe, já
está atrás da sua secretária e tem o ar condicionado ligado. O ar gelado é
delicioso sobre a sua pele húmida, mas sabe que em meia hora irá ficar
gelada e a desejar ter levado um casaco de malha.
– Bom dia – cumprimenta-a Dido, sem tirar os olhos do teclado. – Como é
que correu?
No dia anterior, confidenciara a Dido que precisava de tirar o dia para ir ter
com um advogado a propósito de uma herança. Não lhe contou que era
adotada, nem falou de a possibilidade dessa herança ser uma casa. Disse que
se tratava de um parente idoso e sugeriu que poderia vir a receber algumas
centenas de libras. Dido tinha ficado muito entusiasmada com a perspetiva
de algumas centenas de libras e Libby ficou na dúvida se seria capaz de
aguentar a sua reação se lhe dissesse a verdade. Mas agora que está ali, que
estão apenas as duas, que é terça-feira de manhã, que não verá a sua melhor
amiga April até ao fim de semana e que não tem mais ninguém com quem
falar, decide que talvez seja bom partilhar, que talvez Dido, que tem mais
doze anos do que ela, tenha algo sábio ou útil a transmitir para ajudá-la a
entender todo o ridículo da situação.
– Herdei uma casa – declara, pondo água na máquina Nespresso.
– Ah, ah – reage Dido, visivelmente sem acreditar.
– Não. A sério. Fica em Chelsea, junto ao rio.
– Chelsea, Londres? – pergunta Dido, de boca aberta.
– Sim.
– Como no Made In5?
– Sim – repete Libby. – Junto ao rio. É enorme.
– Estás a gozar comigo?
– Não – diz, abanando a cabeça.
– Oh, meu Deus – exclama Dido. – Então, basicamente, és milionária?
– Acho que sim.
– E no entanto, aqui estás tu, na Northbone Kitchens, numa terça-feira de
manhã, a agir como qualquer pessoa normal.
– Estou a tentar assimilar tudo.
– Meu Deus, Libby, se eu estivesse no teu lugar, assimilaria tudo agora
mesmo a beber champanhe no jardim de St. Michael’s Manor.
– São vinte para as nove.
– Bem, então tomaria um chá. E uns ovos Benedict. O que raio estás aqui a
fazer?
Libby sente as suas amarras afrouxarem e a começarem a soltar-se ao pensar
que não precisa de estar ali, que a robusta escada à qual tem estado toda a
vida agarrada acabou de se dissolver numa pilha de moedas de ouro, que
mudou tudo.
– Só descobri ontem! Ainda não a vendi – responde. – Talvez nem sequer
consiga.
– Sim, claro, porque ninguém quer uma casa em Chelsea com vista para o
Tamisa.
Cerca de seis ou sete milhões de libras. Fora a estimativa que o advogado lhe
dera no dia anterior quando, finalmente, ela tivera coragem para perguntar.
Menos, dissera, as despesas e os honorários devidos à firma. E ainda teria de
pagar os impostos sobre a herança. «Vai ficar com cerca de três milhões e
meio. Ou algo dentro desses valores», dissera.
Dera-lhe um high five. Confundiu-a com o tipo de jovens sobre os quais lia
nos jornais. Fora bastante desconcertante.
– Está em mau estado – explica Libby. – E tem uma história.
– História?
– Sim. Morreram lá algumas pessoas. É um pouco sinistro. Parentes
distantes. – Estava prestes a mencionar a bebé que fora deixada na cama,
mas deteve-se.
– Não me digas!
– Sim. Um bocado chocante. Portanto, por agora vou agir como se tudo
estivesse normal.
– Vais continuar a vender cozinhas? Em St. Albans?
– Sim – responde Libby, sentindo que começa a recuperar o equilíbrio ante o
pensamento de que nada mudou. – Vou continuar a vender cozinhas em
St. Albans.

5
Programa de entretenimento britânico de formato reality show, transmitido pelo canal público
televisivo E4, que segue a vida de jovens ricos que residem em zonas chiques de Londres, como
Chelsea. (N. da T.)
8

Marco e Lucy acabaram por passar a noite na praia. A chuva parara por
volta das duas da manhã e eles tinham reunido as suas coisas e percorrido os
vinte minutos pela cidade até à Promenade des Anglais, onde desenrolaram
os seus tapetes de ioga sobre as pedras molhadas, aconchegaram-se sob os
seus sarongues e observaram os fragmentos de nuvens cinzentas de chuva
que se perseguiam à frente de uma enorme lua cor-de-rosa, até o Sol
começar a aparecer na linha entre o céu e o mar.
Às oito horas, Lucy juntou todos os cêntimos que tinha no fundo da sua
mochila e da sua mala e descobriu que era suficiente para comprar croissants
e um café. Comeram-nos sentados num banco, ambos apáticos pela falta de
sono e pela terrível noite que tinham passado. A seguir, atravessaram a
cidade de regresso ao apartamento de Samia para irem buscar Stella, e Samia
não os convidou para almoçar, apesar de ser meio-dia e de eles não terem,
claramente, dormido em camas. Stella tinha tomado banho e estava vestida
com roupas limpas, os seus caracóis suaves tinham sido penteados e presos
atrás com molas cor-de-rosa fofinhas e, ao atravessarem a cidade mais uma
vez, Lucy pensou que provavelmente parecia que ela e Marco a tinham
raptado.
– Posso ficar com ela mais uma noite – dissera Samia, com a mão pousada
no ombro da neta. Lucy apercebera-se de que, de forma quase impercetível,
a filha encolhera o ombro ao sentir a mão da avó, e abanara ligeiramente a
cabeça.
– É muito gentil da sua parte, mas arranjei um sítio para dormirmos esta
noite. – Sentiu o olhar de Marco a queimar-lhe o ombro pela sua mentira. –
Mas estou-lhe muito, muito grata. A sério.
Samia inclinou ligeiramente a cabeça e semicerrou os olhos, digerindo
alguma observação silenciosa sobre a situação de Lucy. Sustendo a
respiração, Lucy esperou alguma declaração contundente sobre a sua
aparência, a sua maneira de educar os filhos, o papel que desempenhou na
fuga do seu precioso filho. Porém, ao invés, Samia foi lentamente até à mesa
a meio do corredor e tirou um pequeno porta-moedas da sua mala a
tiracolo. Espreitou lá para dentro e retirou uma nota de vinte euros, que lhe
entregou.
– É tudo o que tenho – disse. – Não há mais.
Lucy pegou na nota e então inclinou-se para Samia e abraçou-a.
– Obrigada. Deus a abençoe.
Agora, ela, as crianças e o cão estão a passear ao longo da Promenade des
Anglais sob o Sol escaldante da tarde, com um saco cheio de roupas limpas
da lavandaria e a barriga cheia de pão, queijo e Coca-Cola. Dirigem-se a um
dos muitos clubes de praia que orlam as praias ali em Nice: o Beach Club
Bleu et Blanc.
Lucy já tinha comido ali, no passado. Sentara-se a todas aquelas mesas com
o pai de Marco, por entre pilhas de fruits de mer, com uma taça de
champanhe ou um spritzer de vinho branco ao seu lado, enquanto ia
arrefecendo com os esguichos intermitentes de água gelada lançados pelos
pequenos animais. Agora, aqueles velhos e cansados empregados, com os
seus incongruentes polos de cor azul e branca, não a reconheceriam. Doze
anos antes, ela tinha sido um colírio para os olhos.
À entrada do restaurante, uma mulher está sentada numa posição mais
elevada. É loura, daquela forma como só as mulheres no sul da França
podem ser, algo decerto relacionado com o contraste entre o cabelo baunilha
e a pele extremamente bronzeada. Olha com indiferença para a aparência de
Lucy, Marco e o cão, antes de voltar a fixar os olhos no ecrã do computador.
Lucy finge que está à espera de alguém que vem da praia para se juntar a
eles, protegendo os olhos com uma mão e olhando para o horizonte, até que
a mulher se distrai com um grupo de cinco pessoas que chega para almoçar.
– Agora – sussurra. – Agora.
Pega no cão nos braços e empurra Stella para a sua frente. O seu coração
dispara enquanto caminha o mais despreocupadamente possível pela
plataforma de madeira por trás do restaurante, em direção à zona dos
chuveiros. Olha em frente.
– Continua a andar – sibila para Stella quando a criança para,
inexplicavelmente, a meio do caminho. Por fim, chegam ao espaço escuro e
húmido do bloco de chuveiros.
«Reservado exclusivamente aos clientes do Beach Club Bleu et Blanc»,
dizem várias placas pregadas às paredes de madeira. O chão de cimento tem
areia e está húmido sob os seus pés; o ar está abafado. Lucy conduz Stella
para a direita. Se conseguirem passar para os chuveiros pelas portas vaivém
de madeira sem serem vistos, não terão problema.
E então entram. Os chuveiros estão vazios. Ela e Marco despem a roupa pela
primeira vez em quase oito dias. Ela encontra o caixote do lixo para pôr as
cuecas. Nunca mais quer voltar a usá-las. Tira da mochila champô e
amaciador, uma barra de sabão, uma toalha. Leva consigo o cão, massaja-lhe
o champô por todo o pelo, por baixo da cauda, da coleira, atrás das orelhas.
Ele permanece calmo e quieto, quase como se soubesse que é necessário. De
seguida, passa-o a Stella, que está à espera do lado de fora. Ele sacode-se e
Stella ri enquanto é salpicada pelas gotas do seu pelo. Lucy fica então por
baixo do fluxo de água morna e deixa-a correr sobre a sua cabeça, pelos seus
olhos e ouvidos, debaixo dos braços, entre as pernas e dedos dos pés,
sentindo que o inferno da semana anterior começa a dissolver-se
juntamente com a poeira, a lama e o sal. Lava o cabelo com champô,
passando os dedos por todo o comprimento, até chiar. Passa a embalagem a
Marco, por baixo do compartimento. Observa as espumas de ambos que se
encontram no espaço entre eles, e a sua cor, cinzenta e triste.
– Lava bem o cabelo na parte de trás do pescoço, Marco – diz. – Está todo
emaranhado. E debaixo dos braços. Lava bem debaixo dos braços.
Depois, sentam-se lado a lado num banco de madeira, embrulhados em
toalhas. Através de frestas na madeira conseguem ver as pessoas que passam
do outro lado e fatias de céu azul cintilante, e sentem o cheiro da madeira
aquecida pelo Sol e o odor de alho frito. Lúcia suspira. Sente-se quase
aliviada, mas ainda não totalmente preparada para a próxima etapa.
Vestem roupas limpas e põem desodorizante, Lucy espalha creme hidratante
no rosto e dá às crianças protetor solar. No fundo da sua nécessaire tem um
pequeno frasco de perfume que borrifa atrás das orelhas e no decote. Enrola
o cabelo húmido na parte de trás da cabeça e prende-o com uma mola de
plástico. Olha-se ao espelho. Quase quarenta anos. Sem casa. Solteira. Sem
um tostão. Nem sequer é quem diz ser. Até o seu nome é falso. É um
fantasma. Um fantasma vivo, que respira.
Põe um pouco de rímel, um pouco de brilho nos lábios e ajusta o pingente
do seu colar de ouro, para que fique centrado no decote bronzeado pelo sol.
Olha para os filhos. São lindos. O cão está bonito. Todos cheiram bem.
Comeram. Há muitos dias que as coisas não corriam tão bem.
– Muito bem – diz, virando-se para Marco, enfiando a sua roupa suja na
mochila e voltando a fechá-la. – Vamos visitar o teu pai.
9

Chelsea, 1988

Eu tinha estado a observar das escadas, por isso já sabia. Um homem com
caracóis escuros, um chapéu de aba, um donkey jacket6, calças de tweed
enfiadas em grandes botas de atacadores, malas velhas que pareciam
adereços de um filme de outros tempos e uma transportadora de gatos em
vime, presa com uma tira de couro desgastada. E Birdie de pé ao seu lado,
com um vestido que parecia uma camisa de noite.
– Querido! – Ouvi a minha mãe chamar o meu pai. – Vem conhecer
o Justin!
Vi o meu pai a sair da sala de estar. Tinha um charuto preso entre os dentes
e vestia um pulôver verde e peludo.
– Então – disse ele, apertando a mão do homem com demasiada força –, é o
namorado da Birdie?
– Companheiro – interrompeu Birdie. – Justin é meu companheiro.
O meu pai olhou-a do mesmo modo que fazia quando achava que alguém
estava deliberadamente a fazê-lo de parvo, como se estivesse a pensar em
recorrer à violência. Porém, o olhar passou rapidamente e vi-o a afastá-lo
com um sorriso.
– Sim – disse. – Claro. São os tempos modernos, não é?
A Birdie tinha dito à minha mãe que ela e o seu companheiro precisavam de
um sítio para ficar durante uns dias. O senhorio pusera-os a andar, porque
eles tinham um gato – que tipo de idiota arranja um gato sem verificar as
condições de arrendamento? Eu nem sequer tinha ainda onze anos, nunca
tinha morado numa casa arrendada e sabia disso –, e Birdie não sabia a
quem mais recorrer. Agora, como homem adulto de quarenta e um anos, já
muitas vezes usei este refrão para levar as pessoas a fazerem o que eu quero
que façam. Não sabia a quem mais recorrer. Não dá a mínima saída à pessoa
a quem se está a tentar manipular. A única opção que tem é capitular. Que
foi exatamente o que a minha mãe fez.
– Mas temos tantos quartos – disse ela, quando reclamei por causa dessa
combinação. – E é apenas por alguns dias.
Na minha opinião, a minha mãe só queria uma estrela pop a morar na sua
casa.
A minha irmã passou por mim na escada e teve um frémito quando viu a
transportadora do gato no corredor.
– Como se chama? – perguntou, ajoelhando-se para espreitar através da
pequena grade.
– É uma fêmea. Chama-se Suki – respondeu Birdie.
– Suki – repetiu ela, dobrando os dedos entre as barras. A gata encostou-se à
sua mão e ronronou alto.
O homem chamado Justin pegou na sua mala rígida de palco e perguntou:
– Onde pomos as nossas coisas, Martina?
– Temos um quarto encantador para vocês lá em cima. Meninos, mostrem
aos nossos convidados o quarto amarelo, sim?
A minha irmã liderou o caminho. Era, de longe, a mais sociável de nós os
dois. Eu achava os adultos relativamente assustadores, enquanto ela parecia
gostar bastante deles. Ela estava de pijama verde. Eu vestia um roupão
axadrezado e calçava uns chinelos de feltro azul. Eram quase nove horas e
estávamos em contagem decrescente para a hora de ir dormir.
– Oh – exclamou Birdie, quando a minha irmã abriu a porta escondida nos
lambris de madeira que dava para a escada de acesso ao piso superior. –
Onde diabo nos levas?
– É a escada dos fundos – explicou a minha irmã. – Para o quarto amarelo.
– Queres dizer a entrada dos empregados? – perguntou Birdie, dando uma
fungadela.
– Sim – respondeu a minha irmã com entusiasmo, porque embora fosse
apenas um ano e meio mais nova do que eu, era demasiado jovem para
compreender que nem todos achavam que dormir em quartos secretos ao
cimo de uma escada secreta fosse uma aventura; que algumas pessoas
poderiam achar que mereciam quartos maiores e mais adequados e,
portanto, em tais circunstâncias ficariam ofendidas.
No cimo da escada secreta, havia uma porta de madeira que levava a um
longo e estreito corredor onde as paredes pareciam pouco sólidas
e irregulares e as tábuas do soalho estavam deformadas e oscilantes, dando a
sensação de se caminhar num comboio em movimento. O quarto amarelo
era o mais bonito dos quatro lá de cima. Tinha três janelas de teto e uma
cama grande com uma capa de edredão também amarela, a combinar com o
papel de parede Laura Ashley amarelo e modernos candeeiros de mesa com
abajures de vidro azul. A nossa mãe tinha disposto tulipas amarelas e
vermelhas num vaso. Observei o rosto de Birdie enquanto absorvia tudo
aquilo, com uma espécie de inclinação relutante do queixo, como se dissesse:
acho que terá de servir.
Deixámo-los ali e eu fui atrás da minha irmã enquanto ela descia as escadas,
passava pela sala de estar e entrava na cozinha.
O pai estava a abrir uma garrafa de vinho. A mãe tinha colocado um avental
de folhos e preparava uma salada.
– Quanto tempo vão estas pessoas cá ficar? – perguntei, sem pensar. Vi uma
sombra passar pelo rosto do meu pai ao notar um certo tom de insolência
que não consegui disfarçar.
– Oh. Não vão ficar muito tempo. – A minha mãe voltou a colocar a rolha
na garrafa de vinagre de vinho tinto e pô-la de lado, sorrindo suavemente.
– Podemos ficar acordados? – perguntou a minha irmã, sem noção do
panorama geral, sem ver para além do nariz na sua cara.
– Esta noite não – respondeu a minha mãe. – Talvez amanhã, que é fim de
semana.
– E nessa altura eles vão embora? – perguntei, roçando muito levemente a
linha entre mim e a paciência do meu pai comigo. – A seguir ao fim de
semana?
Virei-me, ao sentir o olhar da minha mãe a desviar-se para algum ponto por
cima do meu ombro. Birdie estava parada à porta com a gata nos braços. Era
branca e castanha e tinha um ar de rainha egípcia.
– Não vamos ficar muito tempo, rapazinho. Só até Justin e eu encontrarmos
o nosso próprio espaço – declarou Birdie, olhando para mim.
– Chamo-me Henry – disse, extremamente surpreendido por um adulto me
ter acabado de chamar «rapazinho» na minha própria casa.
– Henry – repetiu Birdie, olhando-me de um modo intenso. – Sim, claro.
A minha irmã olhava, ansiosa, para a gata e Birdie perguntou:
– Queres pegar nela?
Ela assentiu e a gata foi pousada nos seus braços, onde de imediato deu uma
volta de 180 graus, saltando como um elástico e fugindo, deixando-a com
um horrível arranhão vermelho na parte interna do braço. Vi os seus olhos
encherem-se de lágrimas e a boca contorcer-se num sorriso corajoso.
– Estou bem – disse, enquanto a minha mãe se aproximava, preocupada, e
lhe passava um pano molhado sobre o braço.
– Henry, podes ir buscar Germolene ao meu armário da casa de banho, por
favor?
Ao passar, lancei um olhar a Birdie, desejando que ela percebesse que eu
sabia que ela não tivera cuidado suficiente ao passar a gata à minha irmã. Ela
olhou para mim, os olhos tão pequenos que mal conseguia distinguir-lhes a
cor.
Eu era um rapaz estranho. Agora consigo ver isso. Já conheci rapazes que
eram tal como eu era: levavam tempo a sorrir, eram intensos, cautelosos e
vigilantes. Suspeito que Birdie deve ter sido uma rapariga muito estranha.
Talvez ela se tenha reconhecido em mim. Mas, mesmo nessa altura,
consegui perceber que ela me odiava. Era óbvio. E totalmente recíproco.
Ao atravessar o corredor, passei por Justin. Segurava uma caixa amassada de
chocolates Black Magic e parecia perdido.
– Os teus pais estão por aí? – perguntou, apontando na direção da cozinha.
– Sim – respondi. – Estão na cozinha. Por aquele arco.
– Merci beaucoup – disse ele, e eu, apesar de ter apenas dez anos, já tinha
idade suficiente para perceber que ele estava a ser pretensioso.
Fomos mandados para a cama pouco depois, a minha irmã com um
curativo na parte interna do braço, eu com o início de uma dor de estômago.
Eu era uma daquelas crianças: as minhas emoções faziam-se sentir na
minha barriga.
Mais tarde, nessa noite, conseguia ouvi-los a arrastarem-se lá por cima. Pus
uma almofada por cima da cabeça e voltei a dormir.

Na manhã seguinte, quando desci muito cedo, a caixa de Black Magic


continuava por abrir sobre a mesa da cozinha. Senti-me tentado a retirar-lhe
o celofane e a abri-la. Um pequeno gesto de rebelião que me teria feito sentir
melhor a curto prazo, mas muito, muito pior a longo prazo. Senti um
movimento atrás de mim e vi a gata espremer-se através da porta. Lembrei-
me do arranhão no braço da minha irmã e do tom impaciente de Birdie:
– Foi um acidente, ela não estava a segurá-la corretamente. A Suki nunca
arranharia ninguém de propósito.
A memória do incidente provocou em mim uma onda de raiva, vermelha e
quente, e silvei alto para a gata, perseguindo-a para fora da sala.

Nesse dia, foi quase um alívio ir para a escola, sentir-me normal durante
algumas horas. Tinha começado o meu último período da escola primária7.
Eu faria onze anos no mês seguinte, era um dos rapazes mais novos do meu
ano, e depois passaria para uma escola maior, mais perto de casa, onde não
teria de usar as calças curtas. Nesta fase, eu estava bastante centrado nesse
aspeto. Já estava demasiado avançado para a escola das calças curtas, bem
como em relação a todas as crianças com quem cresci. Percebia que era
diferente. Totalmente diferente. Não havia ali ninguém como eu e fantasiava
sobre a ida para a escola grande e sobre a possibilidade de me ver rodeado
de pessoas como eu. Tudo seria melhor na nova escola. Só teria de aguentar
mais dez semanas, a seguir um longo e chato verão, e depois seria um novo
começo.
Eu não fazia ideia, absolutamente nenhuma, de como o panorama da minha
vida seria diferente no final daquele verão e de como todas as coisas pelas
quais ansiara em breve pareceriam sonhos distantes.
6
Casaco de lã grossa, geralmente com um pedaço de couro ou de plástico na região dos ombros,
habitualmente usado por operários no Reino Unido. (N. da T.)
7
No Reino Unido, a educação primária começa aos cinco anos e continua até aos onze,
compreendendo diversas fases. (N. da T.)
10

Libby está sentada à mesa da cozinha. A porta das traseiras está aberta para
o pátio, que fica na sombra apesar do sol de fim de tarde, mas ainda
demasiado húmido para lá se poder sentar. Tem junto de si um copo cheio
de gelo com Diet Coke e está descalça, depois de ter atirado para o lado as
sandálias assim que entrou no seu apartamento. Abre a tampa do
computador portátil rosa-dourado e abre o navegador Chrome. Quase fica
surpreendida ao ver que a última coisa que pesquisou, quatro dias atrás,
antes de a carta ter chegado e virado tudo de pernas para o ar, fora aulas
locais de salsa. Mal consegue imaginar o que lhe passou pela cabeça. Supõe
que tivesse que ver com a possibilidade de conhecer homens.
Abre uma nova janela no computador e devagar, nervosamente, digita as
palavras Martina e Henry Lamb.
Encontra de imediato um link para um artigo do Guardian de 2015. Clica
nele. O artigo intitula-se: «O Misterioso Caso de Serenity Lamb e da Pata de
Coelho».
Serenity Lamb, pensa, era eu, sou eu. Eu sou Serenity Lamb. E também sou
Libby Jones. Libby Jones vende cozinhas em St. Albans e quer frequentar
aulas de salsa. Serenity Lamb está deitada num berço pintado, num quarto
com painéis de madeira em Chelsea, e com uma pata de coelho enfiada no
meio do seu cobertor.
Acha difícil localizar o ponto de sobreposição, em que uma se torna a outra.
Imagina que seja quando a mãe adotiva a segura pela primeira vez nos seus
braços. Mas, nessa altura, ainda não era senciente. Não tinha consciência da
transição de Serenity para Libby, da torção e destorção silenciosa dos
filamentos da sua identidade.
Bebe um gole da Coca-Cola e começa a ler.
11

A casa em Antibes é da cor de rosas murchas: de um vermelho suave,


empoeirado, com as portadas pintadas de um azul brilhante. É a casa onde
Lucy viveu, uma vida atrás, quando era casada com o pai de Marco. Dez
anos após o divórcio, ainda mal consegue forçar-se a dizer o nome dele. A
sensação na sua língua, nos seus lábios, faz com que sinta náuseas. Mas aqui
está ela, do lado de fora da casa dele. O seu nome é Michael. Michael
Rimmer.
Há um Maserati vermelho estacionado na entrada, sem dúvida alugado, já
que Michael é muitas coisas, mas tão rico como ele pensa que deveria ser não
é uma delas. Vê o olhar de Marco a pairar com atenção sobre o carro.
Percebe o puro desejo estampado nas suas feições, a respiração sustida, a
admiração.
– Não é dele – murmura ela. – É apenas alugado.
– Como é que sabes?
– Porque sei, está bem?
Aperta a mão de Stella para a tranquilizar. Stella nunca conheceu o pai de
Marco, mas sabe bem como Lucy se sente em relação a ele. Aproximam-se
da porta e Lucy prime a campainha de latão. Uma empregada vem à porta,
vestida com um macacão branco e luvas de látex. Sorri.
– Bonjour, madame – cumprimenta.
– O senhor Rimmer está em casa? – pergunta Lucy, usando o seu melhor e
mais percetível sotaque inglês.
– Oui – responde a empregada. – Sim. Está no jardim. Só um minuto. –
Retira um pequeno Nokia preto do bolso do macacão, tira uma das luvas de
látex e marca um número. Olha para ela. – Quem devo anunciar?
– Lucy – responde. – E Marco.
– Senhor Rimmer, está aqui uma senhora chamada Lucy. E um rapaz
chamado Marco. – Acena com a cabeça. – OK. Sim. OK. OK. – Desliga e
volta a colocar o telemóvel no bolso. – O senhor Rimmer disse para vos
levar até ele. Venham.
Lucy segue a pequena mulher pelo corredor. Enquanto caminha, desvia o
olhar, para longe daquele ponto no final da escada de pedra onde ela acabou
com um braço partido e uma costela fraturada, quando Michael a
empurrou, grávida de quatro meses de Marco. Evita olhar para a parede do
corredor onde Michael lhe bateu repetidamente com a cabeça, porque tinha
tido um dia mau no trabalho – ou, pelo menos, foi essa a explicação que ele
deu uma hora depois, quando tentava impedi-la de ir embora porque a
amava muito, porque não conseguia viver sem ela. Oh, que ironia. Porque ali
está ele, casado com outra pessoa e totalmente vivo.
As mãos de Lucy tremem quando se aproximam da entrada das traseiras,
aquela que ela conhece tão bem, com as amplas portas duplas de madeira
que se abrem para o esplendor tropical do jardim, onde mariposas beija-flor
sorvem o néctar de flores em forma de chifre e bananeiras crescem em
recantos sombreados, onde uma pequena cascata cai por entre um conjunto
de pedras e flores e onde um retângulo brilhante de água azul-celeste se
estende, num ponto mais a sul, aquecendo-se ao Sol da tarde. E ali está ele.
Michael Rimmer. Sentado a uma mesa à beira da piscina, com um auricular
sem fios num dos ouvidos, um computador portátil aberto na sua frente e
dois telemóveis, além de uma pequena garrafa de cerveja que desmente o
papel de homem de negócios frenético que está, claramente, a representar.
– Lucy! – exclama ele, sorrindo, levantando-se e encolhendo a barriga
bronzeada, tentando encobrir o facto de que, aos quarenta e oito anos, já não
tem o corpo bem esculpido do homem de trinta e oito de quem ela fugira
dez anos antes. Ele tira o auricular do ouvido e dirige-se a ela. – Lucy! – diz
novamente, agora de forma mais calorosa e de braços estendidos.
Lucy recua.
– Michael – responde, de forma circunspecta, afastando-se dele.
Ele dirige então os seus braços estendidos para Marco e dá-lhe um abraço de
urso.
– Então, contaste-lhe?
Marco acena com a cabeça.
Michael lança-lhe um olhar trocista fulminante.
– E quem é esta? – pergunta, voltando a sua atenção para Stella, que está
agarrada à perna da mãe.
– Esta é a Stella – responde Lucy. – A minha filha.
– Uau – diz Michael. – Que menina linda. Muito prazer em conhecer-te,
Stella. – Estende-lhe a mão para que ela a aperte e Lucy resiste à tentação de
afastar dele a criança.
– E este é? – pergunta, olhando para o cão.
– Este é o Fitzgerald. Ou Fitz, para abreviar.
– De F. Scott?
– Sim, de F. Scott. – Sente uma pequena descarga de adrenalina: a memória
das sessões de perguntas e respostas a que uma vez ele a sujeitou, para lhe
mostrar como ela era estúpida e sem educação, indigna dele, sortuda por tê-
lo. Mas houve sempre algo pequeno, incisivo e certeiro no seu interior, a
recordá-la de que ele estava errado, lembrando-a de que, um dia,
encontraria uma forma de fugir e que então nunca mais olharia para trás. E
agora aqui está ela, a responder nervosamente às suas perguntas, prestes a
pedir-lhe dinheiro, quase no mesmo ponto em que tinha começado.
– Oh, olá, Fitz – diz, afagando-o por baixo do pescoço. – És muito giro. – De
seguida, endireita-se e avalia Lucy e a sua pequena família. Da mesma
maneira que costumava avaliar Lucy quando estava a considerar a
possibilidade de a castigar. Aquele momento no fio da navalha, que poderia
terminar com uma gargalhada e um abraço ou com um dedo partido ou
uma tortura chinesa8.
– Bem, bem, bem – diz ele. – Olhem para isto. São todos simplesmente
adoráveis. Posso servir-vos alguma coisa? Um sumo? – Olha para Lucy. –
Eles podem beber sumo?
Ela acena com a cabeça e Michael olha para a empregada que está parada lá
atrás, na sombra do terraço, nas traseiras da casa.
– Joy! Sumo para as crianças! Obrigado! E tu, Lucy? Vinho? Cerveja?
Lucy não bebe há semanas. Dava tudo por uma cerveja. Mas não pode. Tem
de manter toda a sua lucidez durante a próxima meia hora ou mais. Abana a
cabeça.
– Não, obrigada. Para mim também pode ser um sumo.
– Três sumos, Joy. Obrigado. E mais uma cerveja para mim. Oh, e algumas
batatas fritas. Daquelas que são, erh… onduladas? Excelente.
Volta-se de novo para Lucy, ainda no papel de homem animado e jovial.
– Sentem-se, sentem-se.
Dispõe as cadeiras e eles sentam-se.
– Então – prossegue –, Lucy Lou, como tens passado?
– Oh, sabes como é. Vai-se andando. Mais velha. Mais sábia – sorri,
encolhendo os ombros.
– E tens estado sempre aqui, durante todo este tempo?
– Sim.
– Nunca mais voltaste ao Reino Unido?
– Não.
– E a tua filha… o pai dela? Casaste?
– Não – responde novamente. – Vivemos juntos alguns anos. Depois, há
cerca de três anos, ele regressou à Argélia para «visitar a família» e não
tivemos mais notícias dele.
Michael estremece, como se o desaparecimento do pai de Stella fosse um
ataque físico a Lucy. Demasiado irónico para aguentar.
– É difícil – diz ele. – Muito difícil. Então, és mãe solteira?
– Sim, sou. Completamente.
Joy regressa com uma bandeja com um jarro de sumo de laranja gelado, três
copos sobre bases de papel, batatas fritas em pequenas tigelas de prata,
minúsculos guardanapos de papel e palhinhas. Michael serve o sumo e
entrega um copo a cada um deles, oferecendo-lhes as batatas onduladas. As
crianças atiram-se ansiosamente a elas.
– Devagar – murmura Lucy.
– Não há problema – diz Michael. – Tenho montes de pacotes desses. Então,
onde estão a morar?
– Aqui e ali.
– E tu ainda…? – Ele faz o gesto de tocar violino.
– Bem, sim – sorri ela, ironicamente. – Até um inglês bêbedo numa
despedida de solteiro decidir arrancar-mo das mãos e fazer-me persegui-lo,
a ele e aos seus companheiros, durante meia hora a tentar recuperá-lo, antes
de o atirar contra uma parede. Está a arranjar. Até já deve ter sido reparado.
Mas… – tinha a boca seca de pavor. – Não tenho dinheiro para ir buscá-lo e
pagar o arranjo.
Ele lançou-lhe aquele olhar de oh, pobre querida, o mesmo que costumava
fazer depois de a magoar.
– Quanto? – pergunta, torcendo-se no seu lugar para pegar na sua carteira,
enfiada no bolso de trás.
– Cento e dez euros – responde Lucy, recuperando um pouco a voz.
Observa-o a tirar as notas. Ele dobra-as ao meio e entrega-lhas.
– Aí tens – diz ele. – E um pouco mais. Talvez para cortar o cabelo do meu
filho – despenteia o cabelo de Marco novamente. – E talvez também o teu. –
E ali está, quando ele olha para o cabelo dela, aquela sombria e horrível
expressão de desilusão. Desleixaste-te. Não te esforças o suficiente. Como
posso amar-te quando não-fazes-a-porra-do-mínimo-esforço.
Ela pega nas notas dobradas na mão dele e sente a força quase impercetível
que ele faz, apertando-as um pouco mais, a sugestão de um jogo
desagradável de controlo e poder. Ele sorri e afrouxa o aperto. Ela guarda as
notas na sua carteira a tiracolo e diz:
– Obrigada. Fico-te muito grata. Devolvo-to daqui a umas semanas.
Prometo.
– Não – diz ele, recostando-se e esticando um pouco as pernas, enquanto
sorri, sombriamente. – Não quero. Mas…
Um arrepio percorre a espinha de Lucy.
– Promete-me uma coisa.
O sorriso de Lucy congela.
– Adorava voltar a ver-te. Quero dizer, estar mais tempo contigo. Contigo e
com Marco. E também convosco, está claro. – Transfere o seu olhar sombrio
para Stella, piscando-lhe um olho. – Vou ficar aqui durante todo o verão. Até
meados de setembro. Estou entre empregos. Sabes como é.
– E a tua mulher, ela…?
– A Rachel teve de regressar. Tem negócios importantes a tratar no Reino
Unido – di-lo num tom de voz desdenhoso. Tanto quanto Lucy sabe, Rachel
tanto pode ser uma neurocirurgiã ou uma política, tendo nas mãos a vida de
centenas, milhares de pessoas. Porém, no que diz respeito a Michael,
qualquer coisa que desvie a atenção de uma mulher da sua pessoa é uma
espécie de piada patética. Até mesmo se for um bebé.
– Oh, que pena – diz ela.
– Não propriamente – replica ele. – Eu precisava de algum espaço. Porque…
adivinha o que estou a fazer…
Lucy abana a cabeça rapidamente e sorri.
– Estou a escrever um livro. Na verdade, é um livro de memórias. Ou,
possivelmente, uma mistura dos dois. Meio autobiográfico. Ainda não sei
bem.
Meu Deus, pensa Lucy, parece tão contente consigo mesmo, como se
estivesse à espera que ela lhe dissesse: «Uau, Michael, isso é extraordinário,
és tão inteligente.» Ao invés, ela tem vontade de se rir na cara dele e dizer:
«Eh, tu, a escrever um livro? Estás a falar a sério?»
– Isso é ótimo – diz ela. – Emocionante.
– Acho que sim. Embora provavelmente também acabe por ser um tempo
que me permitirá um certo abrandamento. Por isso seria excelente se nos
víssemos mais vezes. Para conviver um pouco mais. Usar a piscina.
O olhar de Lucy segue o dele, na direção da piscina. Sente dificuldade em
respirar, os seus pulmões expandem-se e depois encolhem, o seu coração
bate com mais força com a memória da sua cabeça debaixo daquela água
azul-turquesa perfeita, a pressão das mãos dele sobre ela. Empurrando-a.
Empurrando-a, até que os seus pulmões quase explodiram. Então, de
repente, deixou-a subir até à superfície, a debater-se, engasgada, enquanto
ele saía da piscina, apanhava uma toalha pousada sobre uma espreguiçadeira
e a enrolava à sua volta, regressando a casa sem sequer olhar para trás.
«Eu podia ter-te matado», dissera, passado um bocado. «Se quisesse. Sabes
isso, não sabes? Podia ter-te matado.»
«Porque não o fizeste?», perguntara ela.
«Porque não me apeteceu.»
– Bem, talvez – diz Lucy, referindo-se agora ao convite. – É que este verão
vamos estar muito ocupados.
– Claro – diz ele, condescendente. – Imagino que sim.
– Sabes – continua ela, virando-se para olhar a casa –, sempre pensei que
tinhas vendido esta casa. Ao longo dos anos, tenho visto outras pessoas
morarem aqui.
– Arrendamento para férias – diz ele. E ela consegue perceber a vergonha na
sua voz, a ideia do brilhante, incrível, bem-sucedido e rico Michael Rimmer
ter de se rebaixar ao ponto de arrendar a estranhos a sua casa de férias em
Antibes. – Era uma pena – prossegue – mantê-la tanto tempo vazia. Quando
outras pessoas podem aproveitar.
Ela acena com a cabeça. Permite que ele se agarre à sua pequena mentira
ridícula. Ele odeia «outras pessoas». Mandaria o local ser desinfetado de
cima a baixo antes de conseguir enfrentar a ideia de regressar.
– Bem – diz Lucy, voltando-se para sorrir para as crianças –, acho que são
horas de irmos andando.
– Não, fiquem mais um pouco! – pede Michael. – Porque não? Posso abrir
uma garrafa de qualquer coisa. Os miúdos podem nadar na piscina. Vai ser
divertido.
– A loja de música vai fechar em breve – explica ela, tentando não parecer
nervosa. – Preciso mesmo de ir buscar o meu violino, para poder trabalhar
esta noite. Mas obrigada. Muito obrigada. O que se diz, meninos?
As crianças agradecem e Michael sorri-lhes.
– Que crianças tão bonitas – diz ele. – São lindas.
Acompanha-os até à porta da frente. Parece querer abraçar Lucy e ela
ajoelha-se rapidamente para ajeitar a coleira do cão. Michael fica a vê-los da
porta, do outro lado da capota do seu ridículo carro, com um sorriso ainda a
brincar-lhe nos lábios.
Por um momento, Lucy acha que vai vomitar. Para e respira fundo. E então,
quando estão quase a virar a esquina, o cão agacha-se de repente e deixa
uma pequena bosta junto ao muro da casa de Michael, mesmo no ponto em
que o Sol da tarde irá incidir.
Lucy enfia a mão na mala para procurar um saco de plástico para a apanhar.
Depois, para. Dentro de uma hora, a merda estará assada e a borbulhar
como um queijo brie. Será a primeira coisa que ele vai ver assim que sair de
casa. É até capaz de a pisar.
Deixa-a ficar.

8
Uma tortura chinesa que consiste em torcer a pele do pulso ou do braço de alguém em duas direções
diferentes em simultâneo. (N. da T.)
12

Era suposto Libby ir ao churrasco de uma amiga no sábado. Estava ansiosa.


April, a amiga, disse-lhe que ia convidar «um colega do trabalho em boa
forma. Acho que vais gostar muito dele. Chama-se Danny».
Contudo, ao amanhecer de sábado, outro dia quente com um céu cheio de
nada senão azul, os vidros da janela já quentes sob a sua mão enquanto a
abre, Libby não pensa no atraente Danny nem na famosa salada de cuscuz
picante de April, ou no copo com o cocktail brilhante e laranja de Aperol
Spritz 9 numa mão, e os pés dentro de uma pequena piscina de borracha.
Não consegue pensar em mais nada a não ser no misterioso caso de Serenity
Lamb e a pata de coelho.
Manda uma mensagem a April.
Desculpaaa. Diverte-te. Se ao fim da tarde ainda estiveres com disposição,
apareço para tomarmos um copo.
Toma um duche, veste um macacão com um padrão tropical, calça umas
sandálias abertas em couro dourado, esfrega protetor solar nos braços e
ombros, coloca os óculos de sol na cabeça, verifica se tem as chaves da casa
dentro da mala e apanha o comboio para Londres.

Libby roda a chave no cadeado do tapume de madeira. O cadeado abre-se e


ela coloca outra chave na porta da frente. Quase espera sentir uma mão
sobre o seu ombro, alguém a perguntar-lhe o que está ali a fazer, se tem
autorização para abrir a porta com aquelas chaves.
Entra em casa. Na sua casa. E está sozinha.
Fecha a porta atrás de si e o barulho do tráfego matinal desaparece de
imediato. O calor no seu pescoço diminui.
Por um momento, fica completamente imóvel.
Imagina a polícia ali, no sítio onde está. Usam capacetes antiquados. Sabe
qual é o seu aspeto porque havia fotografias deles no artigo do Guardian. Os
agentes Ali Shah e John Robbin. Tinham aparecido na sequência de uma
chamada anónima, para a esquadra, por parte de um «vizinho preocupado».
O tal vizinho preocupado nunca foi localizado.
Segue os passos desaparecidos de Shah e Robbin até à cozinha. Imagina o
cheiro a tornar-se agora mais intenso.
O agente Shah fez referência ao barulho das moscas. Disse ter pensado que
alguém deixara uma máquina de barbear ou uma escova de dentes elétrica
ligada. Segundo eles, os corpos encontravam-se nas fases iniciais de
decomposição, sendo ainda reconhecíveis como uma mulher atraente, de
cabelo escuro, com trinta e poucos anos, e um homem mais velho, com o
cabelo grisalho. Estavam de mãos dadas. Ao lado deles, estava o cadáver de
outro homem. Na casa dos quarenta. Alto. Cabelo escuro. Estavam os três
vestidos de preto: a mulher com uma túnica e leggings, os homens com uma
espécie de robe curto. Ao que constou, as roupas tinham sido feitas em casa.
Mais tarde, encontraram uma máquina de costura no quarto das traseiras,
com restos de tecido preto no caixote do lixo.
Com exceção do zumbido das moscas, a casa estava mortalmente silenciosa.
A polícia disse que nem sequer teria pensado em procurar um bebé se não
fosse a referência que lhe era feita no bilhete deixado sobre a mesa de jantar.
Quase não tinham dado pelo quarto de vestir junto ao quarto principal, mas
foi então que ouviram um som, um «ooh», explicou o agente Shah.
Um «ooh».
Libby sobe lentamente a escada e entra no quarto. Espreita para o quarto de
vestir pela esquina da porta.
E ali estava ela! Linda como tudo! Foi o que o agente Robbin dissera. Linda
como tudo!
A sua pele arrepia-se levemente ao ver o berço pintado. Supera
o desconforto e fixa o berço até se sentir insensível. Após um momento
sente-se suficientemente indiferente para conseguir pousar a mão sobre ele.
Imagina os dois jovens polícias a espreitar sobre o berço. Imagina-se com
um babygro branco puro, o cabelo como um capacete cheio de caracóis
como os da Shirley Temple – apesar de ter apenas dez meses de idade –, a
espernear com entusiasmo ao ver os dois rostos amigáveis a olhar para ela.
«Ela tentou levantar-se», contou Robbin. «Segurando-se aos lados do berço.
Estava desesperada para que a tirassem dali. Não sabíamos o que fazer. Ela
era uma prova. Devíamos tocar-lhe? Devíamos pedir reforços? Estávamos
perplexos.»
Aparentemente, tinham decidido não lhe pegar ao colo. O agente Shah
cantou-lhe canções enquanto esperavam indicações sobre o que deveriam
fazer. Libby desejava conseguir lembrar-se. Que canções lhe teria aquele
jovem e gentil polícia cantado? Teria gostado de o fazer? Sentira-se
embaraçado? De acordo com o artigo, ele viria a ter cinco filhos, mas
quando encontrara Serenity Lamb no berço, ainda não tinha qualquer
experiência com bebés.
Uma equipa da cena de crime chegou à casa pouco depois, incluindo uma
agente especial para recolher a bebé. Chamava-se Felicity Measures. Tinha
quarenta e um anos na altura. Agora, tem sessenta e cinco anos, é recém-
aposentada e mora no Algarve com o terceiro marido. «Era uma bebé tão
querida», citou-a o artigo. «Com caracóis dourados, bem alimentada e bem
tratada. Muito sorridente e fofinha. Incongruente, dado o cenário em que foi
deixada. Na verdade, bastante gótico. Sim, bastante gótico.»
Libby empurra o berço e ele range pateticamente, evidenciando a sua
avançada idade. Para quem foi comprado?, interroga-se. Foi comprado para
si? Ou para gerações de bebés antes dela? Porque agora ela sabe que existem
outras personagens na sua história. Não apenas Martina e Henry Lamb, e o
homem misterioso. Não apenas as crianças desaparecidas. Os vizinhos não
tinham falado de duas, mas sim de «numerosas» crianças, de outras pessoas
«que iam e vinham». A casa estava cheia de manchas de sangue e de ADN
cuja origem era difícil identificar, fibras e cabelos caídos, notas estranhas e
rabiscos em paredes e painéis secretos, e um jardim repleto de ervas
medicinais, algumas das quais tinham sido usadas no aparente pacto de
suicídio dos pais.
«Estamos a libertar-nos destes corpos deteriorados, deste mundo
desprezível, da dor e da desilusão. A nossa bebé chama-se Serenity Lamb.
Tem dez meses. Por favor, assegurem-se de que será entregue a boas pessoas.
Paz, sempre, HL, ML, DT», estava escrito na nota junto aos corpos em
decomposição.
Libby sai do quarto e vagueia lentamente pela casa, procurando algumas das
coisas estranhas encontradas na sequência das mortes. Quem quer que
também estivesse na casa na noite dos suicídios, dizia o artigo, fugira,
deixando as portas do roupeiro escancaradas, comida no frigorífico, livros
lidos até meio abertos no chão e pedaços de papel arrancados das paredes,
deixando nelas os cantos ainda presos com fita-cola.
Encontra uma dessas tiras de fita-cola na parede da cozinha, amarelada e
quebradiça. Puxa o pequeno pedaço de papel ao qual está agarrada e olha-o
por um momento, na palma da sua mão. O que haveria no pedaço de papel
que as pessoas que fugiam deste navio a afundar não queriam que outros
olhos vissem?
Na cozinha de estilo rústico há um frigorífico, enferrujado e enorme ao
estilo americano, creme e bege, decerto bastante invulgar no Reino Unido,
nos anos oitenta. Abre-o e espreita lá para dentro. Há manchas de mofo e
um par de cuvetes de plástico para o gelo rachadas e partidas, mais nada.
Nos armários da cozinha, encontra latas de esmalte vazias e um pacote de
farinha tão velho que se transformou numa espécie de tijolo. Há um
conjunto de chávenas de chá brancas, um bule de chá cromado, potes
antigos de ervas e especiarias, uma torradeira, uma bandeja grande pintada
de preto. Raspa a tinta preta para revelar a cor prateada por baixo. Pergunta-
se por que razão alguém pintaria de preto uma bandeja de prata.
E então para. Ouviu alguma coisa. Um movimento qualquer no andar de
cima. Volta a colocar a bandeja no armário e espera na base das escadas.
Ouve novamente o som, uma espécie de baque surdo. O seu coração
dispara. Vai em bicos de pés até ao patamar. Ali está de novo. E mais uma
vez. De súbito – a sua frequência cardíaca duplica ao ouvir o som –, alguém
pigarreia.
É o Sr. Royle, pensa, só pode ser o Sr. Royle, o advogado. Não pode ser mais
ninguém. Ela tinha fechado a porta quando entrara. Tinha a certeza.
– Olá? – diz em voz alta. – Olá. Senhor Royle!
Silêncio. Um silêncio imediato e deliberado.
– Olá? – chama de novo.
O silêncio instala-se como um urso imóvel no cimo de uma casa. Quase
consegue ouvir a pulsação de outra pessoa.
Pensa em todos os outros mistérios que o artigo da revista revelou: as
crianças que fugiram desta casa, a pessoa que ficou a cuidar dela. Pensa nos
rabiscos nas paredes e na tira de tecido pendurada no radiador, nos
arranhões marcados nas paredes, no estranho bilhete deixado pelos seus
pais, nas rosas pintadas de azul no berço que range, nas folhas de papel
arrancadas das paredes, nas manchas de sangue e nos cadeados no lado de
fora dos quartos das crianças.
Depois, volta a pensar no relvado bem tratado da sua amiga April, nos seus
cuscuz apimentados, no laranja fluorescente de um Aperol Spritz, nos seus
pés pegajosos numa piscina infantil com água gelada. Pensa no atraente
Danny e nos potenciais bebés que podem vir a ter quando ela tiver trinta
anos. Ou até mais cedo. Sim, porque não mais cedo? Para quê adiar? Ela
pode vender esta casa com o seu sombrio e terrível legado, o seu frigorífico
com mofo e o seu jardim morto, e a pessoa que se move no sótão e pigarreia.
Pode vendê-la agora e ficar rica, casar-se com Danny e ter bebés com ele. Já
não quer saber o que aconteceu ali. Não quer saber.
Procura as chaves na mala, tranca a grande porta de madeira da frente da
casa e o tapume com o cadeado e sai, aliviada, para o pavimento quente,
enquanto tira o telemóvel da carteira.
Guarda algum cuscuz para mim. Daqui a uma hora estou aí.

9
O Aperol é um aperitivo de baixo teor alcoólico, ligeiramente amargo, feito com laranjas amargas,
genciana e uma mistura secreta de plantas e raízes. O seu sucesso deve-se à receita do mítico cocktail
veneziano, o Spritz, uma mistura de Aperol e Prosecco com uma pitada de água com gás. (N. da T.)
13

Lucy vira o violino de um lado para o outro à luz fraca da loja de


instrumentos musicais.
Coloca-o sob o queixo e toca rapidamente uma escala e um arpejo de Lá
maior em três oitavas, verificando a uniformidade da qualidade do som e da
eventual existência do efeito «lobo»10 ou de assobios.
Sorri para Monsieur Vincent.
– Está incrível – diz, em francês. – Melhor do que antes.
Sente o coração amolecer-lhe no peito. Não se tinha apercebido, no pavor de
dormir em praias e por baixo de viadutos de autoestrada, de como era difícil
separar-se do seu instrumento e da raiva que guardava em relação aos
sacanas bêbedos que o tinham partido. Mas, mais do que isso, não se
apercebera de como sentira falta de o tocar.
Conta as notas de vinte euros em cima do balcão e Monsieur Vincent passa-
lhe o recibo, arranca-o do bloco e entrega-lho. Depois, tira dois chupa-
chupas de um suporte que se encontra em cima do balcão e dá um a cada
criança.
– Toma conta da tua mãe – diz a Marco. – E também da tua irmã.

No exterior da loja, no ar fresco do anoitecer, Lucy tira o papel de celofane


do chupa-chupa de Stella e entrega-lho. De seguida, caminham em direção
ao centro turístico, os filhos a chupar a guloseima, o cão a farejar o passeio
quente, em busca de ossos de frango deitados fora ou de gelados
derramados. Lucy ainda não tem apetite. O encontro com Michael
eliminou-o por completo.
Começam a chegar aqueles que jantam mais cedo: os turistas mais velhos ou
com filhos pequenos. É um grupo mais difícil do que o posterior. O grupo
que vem depois já esteve a beber. Não se sentem constrangidos em se
aproximarem da mulher de saia em voile esvoaçante e um top com alças,
com braços vigorosos e bronzeados, seios grandes, um piercing no nariz e
uma pulseira no tornozelo, com duas crianças lindas, de aspeto cansado,
sentadas na sombra sobre um tapete de ioga atrás dela, e um despenteado
Jack Russell com a cabeça pousada sobre as patas. Esses não se distraem com
as birras das crianças pequenas acordadas para além da sua hora de ir
dormir. Nem se perguntam cinicamente se ela irá gastar o dinheiro em
drogas ou bebida, se os filhos e o cão são apenas para criar mais empatia, se
ela lhes baterá quando chegarem a casa por não ter ganhado dinheiro
suficiente. Já ouviu de tudo ao longo dos anos. Já foi acusada de tudo. Agora,
tem as costas largas.
Tira o chapéu da mochila, aquele a que Marco costumava chamar «chapéu
do dinheiro» e a que agora chama «chapéu de mendigo». Ele odeia aquele
chapéu.
Ela coloca-o no chão à sua frente e abre o estojo do violino. Verifica se, atrás
de si, as crianças estão acomodadas. Marco tem um livro para ler. Stella está
a colorir outro. Marco olha para ela, cansado.
– Quanto tempo vamos ficar aqui?
Tem uma atitude de adolescente, apesar de ainda ter tantos meses pela frente
antes de completar treze anos.
– Até ganhar dinheiro suficiente para uma semana na Casa Azul.
– Quanto custa?
– Quinze euros por noite.
– Não sei porque é que não pediste simplesmente mais algum dinheiro ao
meu pai. Ele poderia ter-to dado. Podia ter-te dado outros cem. Era tão fácil.
– Marco. Sabes muito bem porquê. Agora, por favor, deixa-me continuar.
Marco faz uma careta e levanta as sobrancelhas, desviando depois os olhos
para o livro.
Lucy levanta o violino até junto do queixo, põe o pé direito à frente, fecha os
olhos, respira fundo e toca.
Está uma noite boa. A passagem da tempestade ontem à noite acalmou
o éter, já não está tanto calor e as pessoas estão mais relaxadas. São muitos
os que param para ficar a ouvir Lucy tocar violino. Ela toca canções dos
Pogues e dos Dexys Midnight Runners. Só no decurso da sua interpretação
de «Come On Eileen», ela calcula que lhe deixaram quinze euros no chapéu.
As pessoas dançam e sorriem. Um casal na casa dos trinta dá-lhe uma nota
de dez euros porque acabaram de ficar noivos. Uma mulher mais velha dá-
lhe cinco euros porque o seu pai tocava violino e aquilo lembrava-a da sua
infância feliz. Às nove e meia, Lucy já tinha tocado em três sítios e tinha
quase setenta euros.
Reúne as crianças, o cão, os sacos. Stella mal consegue manter os olhos
abertos e Lucy sente-se nostálgica em relação aos tempos em que, ao final da
noite, bastava pegar na filha e metê-la no carrinho de bebé, tirando-a depois
e metendo-a diretamente na cama. Mas agora tem de abaná-la com força
para que ela acorde e obrigá-la a andar, tentando não gritar quando a
criança reclama que está demasiado cansada.
A Casa Azul fica a dez minutos a pé, a meio do caminho que sobe até Castle
Park. É uma casa comprida e estreita, originalmente pintada de azul-bebé,
uma townhouse11 outrora elegante, ali construída pela sua vista para o
Mediterrâneo, agora com a pintura descascada e acinzentada e castigada
pelo tempo, com vidros rachados e hera agarrada aos algerozes. Um homem
chamado Giuseppe comprou-a na década de sessenta, deixou-a degradar-se
e ficar arruinada. Depois vendeu-a a um indivíduo que a encheu de gente de
passagem, uma família por quarto, partilhando casas de banho e baratas,
sem comodidades, e aceitando apenas dinheiro vivo. O proprietário permite
que Giuseppe fique num apartamento-estúdio no andar térreo, em troca de
uma pequena renda e de se encarregar da manutenção e administração de
toda a casa.
Giuseppe adora Lucy.
– Se eu tivesse uma filha – costuma dizer –, seria como você. Juro.
Durante algumas semanas, depois de lhe terem partido o violino, Lucy não
pagou qualquer renda e ficou à espera de que o senhorio a pusesse fora.
Contudo, um outro inquilino contou-lhe que Giuseppe estava a pagar a
renda dela. Fez as malas nesse mesmo dia e saiu sem se despedir.
Agora, Lucy sente-se nervosa assim que chega à curva para a Casa Azul.
Começa a entrar em pânico. E se Giuseppe não tiver um quarto para ela? E
se estiver zangado por ela ter saído sem se despedir e lhe bater com a porta
na cara? E se ele já não estiver ali? Ou se tiver morrido? E se a casa ardeu?
Mas ele vem à porta, espreita pela fresta da corrente de segurança e sorri,
permitindo vislumbrar uma parede de dentes acastanhados por entre uma
barba grisalha. Ele repara no violino dentro do estojo e sorri ainda mais.
– Minha menina – exclama, soltando a corrente e abrindo a porta. – Meus
meninos. Meu cãozinho! Entrem!
O cão fica louco de alegria, salta para os braços de Giuseppe e quase o faz
cair para trás. Stella envolve-lhe as pernas com os seus bracinhos e Marco
encosta-se a ele e deixa que o beije no topo da cabeça.
– Tenho setenta euros – diz ela. – O suficiente para algumas noites.
– Já tem o seu violino. Fica o tempo que quiser. Parece magra. Todos
parecem magros. Eu só tenho pão. E um pouco de fiambre. Não é grande
coisa, mas tenho uma boa manteiga, por isso…
Seguem-no até ao seu apartamento no piso térreo. O cão salta de imediato
para o sofá e enrosca-se como se fosse uma bola, olhando para Lucy como se
dissesse: Finalmente. Giuseppe vai até à sua pequena kitchenette e regressa
com pão, fiambre e três pequenas garrafas bojudas de Orangina. Lucy senta-
se ao lado do cão, acaricia-lhe o pescoço e expira, sentindo que as suas
entranhas se torcem e destorcem, acomodando-se no seu lugar. Enfia a mão
na mochila para procurar o telemóvel. A bateria esgotara-se durante a noite.
Encontra o carregador e pede a Giuseppe:
– Posso carregar o telemóvel?
– Claro, querida. Está ali uma tomada livre.
Liga-o e pressiona o botão on, esperando que o telemóvel ganhe vida.
A notificação ainda ali está.
A bebé faz 25.
Senta-se com as crianças na mesa de centro e observa-as a comer o pão e o
fiambre. As humilhações da última semana começam a desvanecer-se, como
pegadas na areia da praia. Os filhos estão a salvo. Têm comida. Ela tem o seu
violino. E uma cama onde dormir. Tem dinheiro na carteira.
Giuseppe observa também as crianças a comerem. Olha para ela e sorri.
– Estava tão preocupado convosco. Onde estiveram?
– Oh, ficámos com uma amiga – responde, num tom despreocupado.
– Nã… – começa Marco.
Ela dá-lhe uma cotovelada e vira-se para Giuseppe.
– Um passarinho contou-me o que o senhor fez, seu homem malvado. E eu
não podia aceitar isso. Não podia. E também sabia que, se lhe dissesse que ia
embora, me persuadiria a ficar. Por isso tive de partir sorrateiramente e, para
ser franca, ficámos bem. Ótimos. Olhe para nós! Estamos todos bem. – Puxa
o cão para o colo e aperta-o.
– E recuperou o seu violino?
– Sim, recuperei. Então… há algum quarto disponível? Não tem de ser o
nosso quarto habitual. Pode ser um qualquer. Um qualquer.
– Há um quarto, mas fica nas traseiras. Não tem vista. E é um bocado
escuro. E o chuveiro está estragado, só tem uma torneira. Pode ficar com ele
por doze euros por noite.
– Sim – diz Lucy –, sim, por favor! – Pousa o cão no chão, levanta-se e
abraça Giuseppe. Cheira a velho e a pó, está um pouco sujo, mas ela não se
importa. – Obrigada, muito obrigada.

Naquela noite, dormem os três numa pequena cama de casal, num quarto
escuro nas traseiras da casa, onde o som de pneus a chiar sobre o asfalto
quente do lado de fora entra em competição com o ranger de uma ventoinha
de plástico de má qualidade ao rodar, com a televisão das pessoas no quarto
ao lado e com uma mosca presa algures entre as cortinas e a janela. Stella
tem um punho sobre o rosto de Lucy, Marco geme suavemente no seu sono
e o cão ressona. Porém, pela primeira vez em mais de uma semana, Lucy
dorme longa e profundamente.

10
Um efeito que ocorre por vezes neste e em outros instrumentos de cordas, em que a nota soa como
o uivo de um lobo. (N. da T.)
11
Originalmente, townhouse referia-se à residência que um membro da nobreza ou da pequena
nobreza tinha na cidade, normalmente em Londres, em oposição à sua residência no campo –
geralmente conhecida como casa de campo ou casa senhorial. (N. da T.)
14

Chelsea, 1988

Esse dia, 8 de setembro de 1988, deveria ter sido o meu segundo dia na
escola grande, mas provavelmente por agora já devem ter adivinhado que
nesse ano não consegui ir para a minha tão desejada nova escola, aquela
onde iria conhecer as minhas almas gémeas, os meus amigos para toda a
vida, a minha gente. Naquele verão, fui perguntando com regularidade à
minha mãe: «Quando é que vamos ao Harrods comprar o meu uniforme?»,
e ela respondia: «Vamos esperar até ao fim das férias, para o caso de dares
um salto de crescimento.» E então o fim das férias aproximava-se e ainda
não tínhamos ido ao Harrods.
Nem tínhamos ido à Alemanha. Geralmente íamos por uma semana ou
duas visitar a minha avó na sua grande e arejada casa na Floresta Negra,
com a sua piscina elevada e fria e as agulhas de pinheiro sob os pés. Mas este
verão aparentemente não podíamos suportar essa despesa. E, se não
podíamos voar até à Alemanha, perguntei-me, como iríamos pagar as
propinas escolares?
No início de setembro, os meus pais já estavam a preencher candidaturas a
escolas públicas locais e a colocar os nossos nomes nas listas de espera.
Nunca tinham dito, especificamente, que tínhamos problemas financeiros,
mas era óbvio que tínhamos. Tive dores de estômago durante dias,
preocupado com a possibilidade de vir a ser intimidado por rufias numa
dessas escolas com todo o tipo de alunos.
Oh, preocupações mesquinhas e insignificantes. Preocupações frívolas. Olho
para trás e penso em mim com onze anos: um rapaz um pouco estranho, de
estatura média, compleição magra, os olhos azuis da minha mãe, o cabelo
castanho do meu pai, joelhos como batatas presas em paus, lábios finos
apertados em jeito de reprovação, uma atitude ligeiramente arrogante, um
menino mimado convencido de que os capítulos da sua vida já tinham sido
cuidadosamente escritos e bastaria segui-los em conformidade. Olho para
trás, para ele, e apetece-me dar-lhe uma chapada naquela carinha estúpida,
presunçosa e sonhadora.

Justin estava agachado no jardim, a mexer nas plantas que tinha semeado.
– Ervas medicinais; o plantio, o crescimento e o seu uso – explicou-me na
sua forma de falar lenta, quase comatosa. – As grandes empresas
farmacêuticas estão dispostas a dar cabo do planeta. Daqui a vinte anos
seremos uma nação de viciados em drogas prescritas e o Serviço Nacional
de Saúde estará de joelhos a tentar pagar pelos «rebuçados» de uma nação
doente. Quero voltar atrás no tempo e usar o que o solo oferece para tratar
as doenças do dia a dia. Não precisamos de oito tipos de produtos químicos
diferentes para curar uma dor de cabeça. A tua mãe diz que quer parar de
tomar comprimidos e começar a usar as minhas tinturas.
Olhei para ele. Nós éramos uma família de consumidores de
comprimidos. Para a rinite alérgica, para constipações, para dores de barriga
e dores de cabeça, para dores de crescimento e ressacas. A minha mãe até
tinha comprimidos para aquilo a que chamava de «sentimentos de tristeza».
O meu pai tinha comprimidos para o coração e também para evitar a queda
de cabelo. Comprimidos por todo o lado. E agora, aparentemente, íamos
passar a cultivar ervas e a fazer os nossos próprios medicamentos.
Inacreditável.

Durante as férias de verão, o meu pai teve um pequeno AVC, que o deixou a
coxear e a falar com uma ligeira dificuldade. De certa forma, de um modo
simplista, poder-se-ia dizer que já não era o mesmo. Vê-lo diminuído
daquela maneira fez-me sentir estranhamente desprotegido, como se agora
houvesse uma brecha, pequena, mas significativa, nas defesas da família.
O seu médico, o Dr. Broughton, um homem bastante seco e de idade
indeterminada, que vivia e tinha o seu consultório num edifício de seis
andares mesmo ao virar da esquina, veio visitá-lo depois de ele ter passado
uma noite no hospital. Fumaram charutos no jardim e falaram do seu
prognóstico.
– Henry, eu diria que o que precisa é dos serviços de um bom fisioterapeuta
de reabilitação. Infelizmente, todos os que conheço são horríveis.
Riram-se e o meu pai disse:
– Já não sei, não tenho certeza em relação a nada. Mas gostava de
experimentar. Tentar qualquer coisa, para voltar a ser eu mesmo.
Birdie estava a tratar do jardim de plantas medicinais de Justin. Estava calor
e ela vestia um top de musselina através do qual os seus mamilos estavam
perfeitamente visíveis. Tirou o chapéu de lona flexível e parou à frente do
meu pai e do médico.
– Eu conheço alguém – disse, de mãos nas ancas. – Conheço uma pessoa
espetacular. Faz autênticos milagres. Trabalha com energias. Ele consegue
fazer fluir o chi pelo corpo das pessoas. Já curou várias que conheço de dores
nas costas. De enxaquecas. Vou pedir-lhe que nos faça uma visita.
Ouvi o meu pai começar a protestar. Mas Birdie disse apenas:
– Não. A sério, Henry. É o mínimo que posso fazer. O mínimo. Vou ligar-
lhe agora mesmo. Chama-se David. David Thomsen.

Naquela manhã, eu estava na cozinha com a minha mãe, a vê-la fazer scones
de queijo, quando a campainha tocou. A minha mãe secou as mãos no
avental, ajeitando nervosamente as pontas do cabelo com permanente e um
corte de estilo bob.
– Ah, devem ser os Thomsens.
– Quem são os Thomsens? – perguntei, sem me lembrar da recomendação
de Birdie da semana anterior.
– Amigos – respondeu, animada. – Da Birdie e do Justin. O marido é
fisioterapeuta. Ele vai trabalhar com o teu pai, para tentar que ele volte a
ficar em forma. E a mãe é uma professora experiente. Vai dar-vos aulas em
casa a ambos, só durante um pequeno período. Não é bom?
Não tive a oportunidade de pedir à minha mãe que, antes de ir abrir a porta,
me desse mais pormenores sobre esse chocante desenvolvimento, tão
abruptamente apresentado.
De boca ligeiramente entreaberta, observei-os a entrar.
Primeiro, uma menina, com cerca de nove ou dez anos. Cabelo preto com
um corte bob, um macacão curto, os joelhos arranhados, uma mancha de
chocolate na bochecha, um leve ar de energia reprimida. Pelos vistos,
chamava-se Clemency.
Depois, um rapaz da minha idade, talvez mais velho, louro, alto, com
pestanas escuras que roçavam as suas maçãs do rosto bem definidas, as
mãos nos bolsos de uns calções azuis elegantes, uma franja que afastava
facilmente dos olhos e com um certo estilo. Chamava-se Phineas. Segundo
nos disseram, Phin, para abreviar.
A mãe deles entrou a seguir. De ossos largos, pálida, peito liso, cabelo louro
comprido e uma atitude um pouco nervosa. Como viria a descobrir, era
Sally Thomsen.
E atrás de todos eles, alto, de ombros largos, magro, bronzeado, com o
cabelo preto curto, olhos azuis intensos e uma boca carnuda, vinha o pai.
David Thomsen. Cumprimentou-me, agarrando a minha mão com força e
pousando a outra mão por cima.
– Prazer em conhecer-te, jovem – disse, em voz baixa e suave.
Largou-me a mão e levantou os braços.
Sorriu a cada um de nós e disse:
– É um prazer conhecer-vos a todos.

Nessa noite, David insistiu em levar-nos a todos a jantar fora. Era uma
quinta-feira, e a temperatura ainda estava amena. Passei bastante tempo a
aprimorar a minha aparência, não apenas da maneira como habitualmente o
fazia, para garantir que as minhas roupas estavam limpas, a risca do cabelo
bem feita e os punhos direitos, mas com snobismo. Para mim, o rapaz,
Phineas, era fascinante, não só por causa da sua grande beleza, mas também
pelo seu modo de vestir. Além dos calções azuis casuais, vestia um polo
vermelho com riscas brancas na gola, umas sapatilhas Adidas de um branco
brilhante e meias brancas pelos tornozelos. Nessa noite, revirei o meu
guarda-roupa em busca de algo igualmente descontraído. Todas as minhas
meias chegavam à barriga das pernas; só a minha irmã usava meias pelo
tornozelo. Todos os meus calções eram feitos de lã e todas as minhas
camisolas tinham botões. Por um momento até pensei usar o meu antigo
conjunto de educação física, mas rapidamente pus a ideia de lado quando
percebi que ainda estava metido no respetivo saco, desde a última aula.
Acabei por optar por uma T-shirt azul lisa, calças de ganga e sapatilhas.
Tentei fazer com que uma madeixa de cabelo me caísse sobre a testa, como
acontecia com Phineas, mas ela recusou-se, teimosamente, a sair do lugar.
Antes de sair do quarto, olhei para mim mesmo durante vinte segundos,
odiando o horror da minha cara estúpida, a simplicidade da minha T-shirt, o
corte triste das minhas calças de ganga John Lewis para rapazes. Fiz um som
estrangulado, dei um pontapé na parede e desci as escadas.
Phin estava ali, no corredor, sentado num dos dois enormes cadeirões de
madeira de cada um dos lados das escadas, a ler um livro. Por um momento,
olhei para ele através da balaustrada, antes de fazer a minha entrada. Ele era,
realmente, a coisa mais linda que eu já tinha visto na vida. Senti-me corar,
enquanto absorvia as linhas do seu rosto: o contorno delicado de uma boca
que parecia ter sido moldada com o barro mais macio e mais vermelho,
como se a ponta de um dedo pudesse deixar nela uma marca. A sua pele
assemelhava-se a uma camurça estendida sobre as maçãs do rosto que quase
parecia poderem rasgá-la. Tinha até uma emocionante sugestão de um
bigode.
Ele atirou de novo a franja para o lado e olhou para cima, para mim,
desinteressadamente, enquanto eu descia, baixando de imediato os olhos
para o seu livro. Queria perguntar-lhe o que estava a ler, mas não o fiz.
Sentia-me estranho, sem saber o que fazer ou onde ficar. Mas os outros
apareceram logo a seguir. Primeiro os meus pais, a seguir a rapariga
chamada Clemency, que estava com a minha irmã, as duas conversando já
entre si com facilidade, depois Sally, seguida de Justin e Birdie e, por fim,
virtualmente envolto num círculo de luz no cimo da escada, David
Thomsen.

O que posso dizer sobre David Thomsen na minha perspetiva de então,


enquanto criança? Bem, posso dizer-vos que era muito bonito. Não da
forma suave, quase feminina, como o seu filho era bonito, mas de um modo
mais tradicional. Tinha um sombreado denso na zona da barba que mais
parecia ter sido pintado, umas sobrancelhas grossas e bem delineadas, uma
energia animal, uma força potente. Tinha uma maneira de fazer com que
todos que estivessem em seu redor parecesse menos do que ele, mesmo que
não fossem. Posso dizer-vos que ele me assustava e me fascinava em igual
medida. E posso também dizer-vos que a minha mãe agia de um modo
estranho na sua presença, não de uma forma sedutora, mas talvez com uma
maior cautela, como se não confiasse em si mesma perto dele. Ele mostrava-
se, simultaneamente, pomposo e prático, caloroso e frio. Eu odiava-o, mas
conseguia perceber por que razão os outros gostavam dele. No entanto, tudo
isso ainda estava por vir. Antes de tudo, houve aquele primeiro jantar,
naquela primeira noite, em que todos mostravam o melhor de si.

Sentámo-nos apertados em volta de uma longa mesa no Chelsea Kitchen,


que na verdade dava apenas para oito pessoas. As crianças foram todas
colocadas numa extremidade, o que implicou eu ficar lado a lado com
Phineas. Sentia-me tão eletrificado com essa proximidade, as minhas
terminações nervosas tão tensas, o meu corpo tão desperto, ansiando por
algo que eu era demasiado jovem para começar sequer a entender, que não
tive alternativa a não ser virar-lhe as costas.
Olhei para a outra extremidade da mesa na direção do meu pai, que estava
sentado à cabeceira.
Ao vê-lo, senti algo dentro de mim a cair a pique, como um elevador solto
que descia vertiginosamente. Não compreendi muito bem o que estava a
sentir, mas posso dizer-vos agora que experimentei um momento terrível de
presciência. De súbito, vi o meu pai tornar-se insignificante na companhia
de David Thomsen, que era invulgarmente alto, e percebi que o seu domínio
sobre a cabeceira da mesa, outrora tão inquestionável e definido, era agora
frágil. Mesmo sem os danos que o AVC lhe causara, todos na mesa eram
mais inteligentes do que ele, até eu. Estava vestido de forma errada, com o
casaco demasiado apertado, o lenço rosa-escuro, que espreitava no bolso do
peito, a chocar com a cor de ferrugem do cabelo. Vi-o remexer-se no
assento. Vi a conversa passar por cima da sua cabeça como nuvens num dia
ventoso. Vi-o a olhar para a ementa durante mais tempo do que necessário.
Vi David Thomsen a inclinar-se sobre a mesa em direção à minha mãe para
enfatizar determinada questão e, de seguida, voltar a recostar-se, prestando
atenção à resposta dela.
Vi tudo isso, eu vi tudo isso, e já sabia, a um nível subliminar, mas
incrivelmente desconfortável, que uma luta pelo poder começara bem
debaixo do meu nariz e que mesmo então, no momento zero, o meu pai já
estava a perder.
15

Na segunda-feira de manhã, Libby chega ao trabalho com vinte minutos de


atraso.
Dido olha para ela, surpreendida. Libby nunca se atrasa para o trabalho.
– Já estava para te ligar – diz. – Está tudo bem?
Libby acena afirmativamente, tira o telemóvel da mala e a seguir o bálsamo
labial e o casaco de malha, enfia a mala por baixo da secretária, solta o
cabelo, volta a prendê-lo, puxa a sua cadeira e senta-se pesadamente.
– Desculpa – acaba por dizer. – Esta noite não consegui dormir.
– Era o que te ia perguntar – diz Dido. – Estás com péssimo aspeto. É do
calor?
Assente. Mas não foi o calor. Era dentro da sua cabeça.
– Bem, deixa-me ir buscar-te um café forte.
Normalmente Libby diria: não, não, não, eu posso ir buscar o meu próprio
café. Mas hoje as suas pernas estão tão pesadas e a cabeça tão confusa, que
aceita e agradece. Fica a ver Dido a preparar-lhe o café, sentindo-se
reconfortada pelo brilho do seu cabelo pintado de preto, pelo modo como
põe uma mão no bolso do vestido preto tipo túnica, pelos seus pés pequenos
bem afastados calçados com sapatilhas sólidas de veludo verde-escuro.
– Pronto. – Dido pousa a chávena sobre a secretária de Libby. – Espero que
ajude.
Libby conhece Dido há cinco anos. Sabe todo o tipo de coisas sobre ela. Sabe
que a sua mãe era uma poetisa famosa, que o pai era um prestigiado editor
de um jornal, que tinha crescido numa das casas mais ilustres de St. Albans
e que fora ensinada em casa por uma governanta. Sabe que o seu irmão mais
novo morreu quando tinha vinte anos e que ela não faz sexo há onze. Sabe
que ela mora num pequeno chalé, numa extremidade da propriedade dos
pais, e que ainda tem o cavalo que montava quando era adolescente, que se
chama Spangles. Sabe que a sua ilustre casa foi deixada pelos pais em
testamento ao National Trust12 e não a ela, mas que não se importa com isso.
Sabe também que Dido gosta dos chás da marca PG Tips, de Benedict
Cumberbatch, de cavalos, da mistura de chocolate e creme de avelã
Gianduja, de água de coco, de Doctor Who, de protetores de colchão caros,
do perfume Jo Malone Orange Blossom, de batatas fritas, de Nando’s e de
tratamentos faciais. Mas nunca foi a casa dela, nem conheceu a sua família
ou amigos. Nunca a viu fora do horário de trabalho, exceto na festa de Natal
anual, no elegante hotel no cimo da rua, e nas ocasionais saídas para tomar
um copo. Não sabe realmente quem é Dido.
Porém, agora olha para ela e, de repente, torna-se-lhe óbvio que Dido é
exatamente a pessoa de quem ela precisa. No sábado à noite, sentara-se no
jardim das traseiras de April, namoriscando muito ao de leve com Danny –
que, afinal, não era assim tão atraente, com o rosto de uma criança de oito
anos e mãos muito pequenas – e olhara em volta, em busca de alguém com
quem pudesse conversar sobre as coisas loucas que lhe estavam a acontecer,
sobre a casa e o artigo da revista, sobre os pais mortos e a pessoa que tossia
no sótão. Mas apenas vira pessoas como ela, pessoas normais, com vidas
normais, pessoas que ainda viviam em casa dos pais ou em pequenos
apartamentos com colegas ou amigos, pessoas com empréstimos para os
estudos ainda por pagar, empregos nada excecionais, sonhos nada
extraordinários, bronzeados falsos, cães de colo, dentes brancos, cabelos
lavados. Sentira-se apanhada entre dois lugares dolorosamente díspares e
saíra antes das onze, voltando para casa, para o seu portátil e para a pesquisa
na Internet, para tentar descobrir o que acontecera com Serenity Lamb.
No entanto, isto acabara por suscitar mais perguntas do que respostas, e às
duas da manhã fechara, finalmente, o computador e fora para a cama. Teve
um sono agitado, com sonhos cheios de estranhos leitmotifs e encontros.
– Preciso de um conselho – diz a Dido. – Acerca da questão da casa de
Chelsea.
– Oh, claro – declara Dido, esfregando o enorme disco de prata pendurado
num fio à volta do pescoço. – Que tipo de conselho?
– Bem, na verdade é mais para falar. De casas… sabes? Achei que tu devias
perceber de casas.
– Bom, eu percebo de uma casa. Não de casas em geral. Mas, claro, porque
não? Vem jantar.
– Quando?
– Esta noite?
– Sim – responde Libby. – Sim, por favor.

O chalé de Dido é lindo. Tem duas frentes com janelas de vidraças


quadriculadas, pequenas rosas cor-de-rosa a crescer junto à porta da frente e
ali, do lado de fora, o seu Fiat Spider preto brilhante descapotável, com
capota bege. O carro complementa o chalé, tal como o chalé complementa o
carro, e Libby não resiste a pegar no telemóvel que está dentro da mala e a
tirar uma fotografia para a sua página no Instagram. Dido vem
cumprimentá-la à porta com umas calças largas com flores e um top preto.
Tem o cabelo afastado do rosto por grandes óculos de sol vermelhos e está
descalça. Libby viu-a sempre com sapatos de plataforma no trabalho, e por
isso é uma surpresa ver dois pés pequenos, brancos, perfeitamente tratados,
com unhas pintadas de cor-de-rosa.
– Isto é encantador – exclama, atravessando a pequena porta para um
corredor branco, com chão de azulejos em terracota. – Lindo.
A casa de Dido está cheia do que Libby assume serem relíquias e heranças.
Não há nada do TK Maxx. As paredes estão decoradas com arte abstrata
luminosa e Libby recorda-se de Dido uma vez ter mencionado que a mãe
também era artista. Dido leva-a até às traseiras da casa, através de umas
portas francesas, e sentam-se no seu pequeno e perfeito jardim campestre
em cadeiras de verga Lloyd Loom, estofadas com almofadas de motivos
florais, à moda antiga. Enquanto assimila a beleza daquela casa, Libby pensa
que talvez Dido não precise realmente de trabalhar. Que talvez o seu
trabalho de design de cozinhas elegantes seja apenas um passatempo
agradável.
A colega traz uma tigela de salada de quinoa e abacate, outra tigela de
batatas com manteiga, um pedaço de pão escuro e duas taças de champanhe
para o prosecco que Libby lhe trouxe.
– Há quanto tempo moras aqui? – pergunta Libby, pondo um pouco de
manteiga numa fatia de pão escuro.
– Desde os meus vinte e três anos, quando voltei de Hong Kong. Era o chalé
da minha mãe. Ela conservou-o para mim. O meu irmão, está claro, estava
destinado a herdar a casa, mas então, bem, as coisas mudaram…
Libby sorri, sem expressão. «A casa.» «O chalé.» Mundos totalmente
diferentes.
– É triste – diz.
– Sim – concorda Dido. – Mas a casa é uma maldição. Fico contente por não
ter nada que ver com ela.
Libby assente. Uma semana atrás, não teria noção de que casas grandes e
bonitas poderiam ser uma maldição, mas agora começa a compreender.
– Então, conta-me sobre a tua casa! Quero saber tudo.
Libby dá um gole no prosecco, pousa o copo sobre a mesa e recosta-se na
cadeira.
– Encontrei um artigo no Guardian – começa –, sobre a casa. Sobre os meus
pais. Sobre mim.
– Sobre ti?
– Sim – responde Libby, esfregando os cotovelos. – É tudo um bocado
bizarro. Sabes, eu fui adotada em bebé, quando tinha quase um ano. A casa
de Chelsea pertencia aos meus pais biológicos. E, de acordo com o artigo,
nasci numa seita.
A palavra soa horrível ao sair da sua boca. É uma palavra que se tem
esforçado ao máximo por evitar usar, por evitar até mesmo pensar nela. Está
tão em desacordo com a fantasia patética que passou a vida a alimentar. Vê
Dido arrepiar-se ligeiramente de excitação.
– O quê?!
– Um culto. De acordo com este artigo, havia uma espécie de culto na casa
de Chelsea. Morava lá muita gente. Viviam todos de forma espartana.
Dormiam no chão. Vestiam roupas que eles próprios faziam. Contudo… –
Mete a mão na bolsa e tira o artigo impresso. – Olha, estes eram os meus
pais, seis anos antes de eu nascer, num baile de caridade. Olha para eles.
Dido pega no papel das suas mãos e olha.
– Caramba – exclama –, muito glamorosos.
– É verdade! A minha mãe era uma socialite. Dirigia uma empresa de
relações públicas relacionada com moda. Chegou a estar noiva de um
príncipe austríaco. Era simplesmente deslumbrante.
Ver o rosto da mãe fora extraordinário. Havia algo que a fazia pensar em
Priscilla Presley, com o cabelo pintado de preto e uns olhos azuis
penetrantes. Correspondia totalmente às suas fantasias de infância, até
mesmo no seu trabalho de relações públicas. O pai… bem, estava muito
bem vestido, mas era mais pequeno do que ela imaginara, mais baixo do que
a mãe, com uma inclinação de queixo um pouco arrogante, e algo
estranhamente defensivo na forma como olhava para o fotógrafo, como se
esperasse algum tipo de problema. Tinha um braço em volta da cintura de
Martina Lamb, as pontas dos dedos pouco visíveis na fotografia. Ela
segurava um xaile de seda sobre os ombros com os dedos cobertos de anéis e
os ossos das suas ancas sobressaíam sob o tecido do vestido de noite.
Segundo o artigo, era a última fotografia tirada ao «casal socialite» antes de
ambos terem desaparecido de vista, sete anos antes de serem encontrados
mortos no chão da cozinha.
– Eu tinha um irmão e uma irmã – acrescenta, sentindo o choque recente a
impulsionar as palavras para fora da sua boca, rapidamente, não deixando
espaços entre elas.
– Uau – comenta Dido, olhando para ela. – O que lhes aconteceu?
– Ninguém sabe. O advogado parece pensar que eles terão morrido.
Pronto. O mais pesado de todos os factos extremamente pesados, que a
sobrecarregavam havia dias, aterra entre elas, pesado como um martelo
acabado de lançar.
– Meu Deus – exclama Dido. – Isso é… Como é possível?
Libby encolhe os ombros.
– A polícia veio na sequência do telefonema de um vizinho. Encontraram os
meus pais e um outro homem morto na cozinha. Cometeram suicídio,
parece ter havido algum tipo de pacto. E lá estava eu, com dez meses,
saudável e bem-disposta num berço, no andar de cima. Mas não havia
qualquer sinal dos meus irmãos.
Dido deixa-se cair para trás na cadeira, de boca aberta. Durante um
momento não diz nada.
– OK. – Inclina-se para a frente e aperta as têmporas com as palmas das
mãos. – Então, havia um culto. E os teus pais fizeram um pacto suicida com
um homem qualquer…
Libby assente.
– Envenenaram-se com plantas que cultivaram no jardim.
Dido ficou novamente de queixo caído.
– Claro – diz, com um ar sério. – É claro que o fizeram. Porra. E depois?
– Havia mais gente a viver na casa. Possivelmente outra família, com filhos.
Mas quando a polícia chegou não estava lá mais ninguém. Só os corpos
mortos e eu. As outras crianças… desapareceram. Nunca mais se ouviu falar
delas.
Dido estremece e pousa uma mão no peito.
– Incluindo o teu irmão e irmã?
– Sim – responde. – E já há anos que mal se viam. Os vizinhos presumiram
que estavam num colégio interno. Mas nunca nenhuma escola apareceu
para dizer que tinha tido lá esses alunos. E algum deles deve ter
permanecido na casa depois de os meus pais terem morrido, porque
aparentemente alguém cuidou de mim durante alguns dias. A minha fralda
estava limpa. E quando me levantaram do berço, encontraram isto… – Pega
na pata de coelho que tem na mala e entrega a Dido. – Estava metida entre
os meus cobertores.
– Para dar sorte – disse Dido.
– Creio que sim – concorda Libby.
– E quem era o outro tipo que estava morto? – pergunta Dido.
– Ninguém sabe. Não tinha documentos que o identificassem, apenas as
suas iniciais na nota de suicídio. Ninguém fez referência ao seu
desaparecimento, ninguém o reconheceu através dos desenhos da polícia. A
teoria é que se tratava de alguém de passagem. Talvez um cigano. O que
poderá explicar isso… – Aponta para a pata de coelho na mão de Dido.
– Ciganos – Dido pronuncia a palavra com deleite. – Caramba.
– E a casa é estranha. É escura. E no sábado de manhã fui lá e ouvi qualquer
coisa. Lá em cima.
– Que tipo de coisa?
– Alguém. Alguém a mover-se. E a tossir.
– E tens a certeza de que não eram os vizinhos?
– Suponho que haja essa possibilidade, mas parecia realmente que vinha do
andar de cima. E agora estou demasiado assustada para lá voltar. Acho que
talvez fosse melhor pô-la à venda, livrar-me dela e seguir em frente. Mas…
– Os teus irmãos…?
– Os meus irmãos. A verdade. A minha história. Está tudo preso naquela
casa e se a vender talvez nunca descubra o que realmente aconteceu.
Dido olha por um momento para o artigo de jornal. Depois olha para Libby.
– Aqui – diz ela, batendo com a ponta do dedo no cimo do artigo do jornal.
– Ele. O jornalista. – Olha de soslaio para a assinatura. – Miller Roe. É o teu
homem. Tens de entrar em contacto com ele. Imagina como ficará
surpreendido ao ver um e-mail teu depois de tanto tempo e de todos os
meses que andou a investigar o caso. A Serenity Lamb em pessoa. E com a
pata de coelho.
Ficam ambas em silêncio por um momento e centram a atenção na pata de
coelho pousada sobre a mesa de jardim, sob a luz suave do entardecer.
Libby pega no artigo e procura a assinatura. «Miller Roe». Um nome
invulgar. Será fácil procurar no Google. Tira o telemóvel da mala e digita o
nome. Em menos de um minuto tem o endereço de e-mail dele no
Guardian. Vira o telemóvel para mostrar a Dido.
– Bom trabalho – assente Dido. A seguir, ergue a taça de prosecco na direção
de Libby. – À Serenity Lamb – diz –, e a Miller Roe. Que um possa descobrir
a verdade em relação ao outro.
12
O Fundo Nacional para Locais de Interesse Histórico ou Beleza Natural, conhecido como «National
Trust», é uma organização de conservação do património que engloba Inglaterra, País de Gales e
Irlanda do Norte. (N. da T.)
16

Lucy acorda às cinco e meia da manhã. Desliza cuidadosamente para fora da


cama e o cão salta e segue-a até à cozinha, com as unhas a raspar no linóleo.
Giuseppe deixou saquetas de chá, café em pó e um saco de plástico com
brioches de chocolate sobre o balcão. Há também uma garrafa de leite no
frigorífico. Lucy põe ao lume uma panela com água e senta-se na cadeira de
plástico a um canto, a olhar para a janela com cortinas. Após um momento,
levanta-se e abre-as, voltando a sentar-se enquanto olha para o prédio em
frente, com as janelas escuras a refletirem o tom laranja da madrugada e as
paredes cinzentas a tornarem-se rosadas por breves segundos. O céu tem
um tom azul-pálido e está cheio de pássaros que voam em círculos. O
trânsito ainda não se faz sentir e apenas se ouve o som da água a começar a
ferver e o zumbido da chama do gás, por baixo.
Lucy olha para o telemóvel. Nada. O cão olha para ela expressivamente.
Abre a porta do apartamento e, de seguida, silenciosamente, abre a porta das
traseiras para a rua e faz sinal ao cão para que saia. Ele passa por ela, levanta
a pata contra a parede do lado de fora do edifício durante meio minuto e
corre de volta para dentro.
De novo no apartamento, Lucy pega na sua mochila e abre uma bolsa
interior. Ali está o seu passaporte. Abre-o. Tal como suspeitava, tinha
expirado há três anos. A última vez que o usou foi quando Marco tinha dois
anos e ela e Michael o levaram a Nova Iorque para conhecer os pais de
Michael. Separaram-se pouco depois e Lucy nunca mais o usara.
Fora Michael quem lhe tratara do passaporte. Tinha reservado a sua lua de
mel nas Maldivas.
– Dá-me o teu passaporte, querida – pedira-lhe. – Preciso dos dados.
– Não tenho passaporte – dissera.
– Bem, então terás de o renovar quanto antes, pois caso contrário não
haverá lua de mel.
Ela suspirou e olhou para ele.
– Olha, não tenho passaporte. Ponto final. Nunca tive.
Então, ele detivera-se e olhara-a por um momento, as maquinações da sua
mente percetíveis no espaço entre o seu lábio superior e inferior.
– Mas…
– Vim para França de carro, como passageira. Quando era muito mais nova.
Ninguém pediu para ver o meu passaporte.
– De quem era o carro?
– Não sei. Um carro qualquer.
– Então, era o carro de um estranho?
– Não propriamente. Não.
– Mas qual era o plano? Se te pedissem o passaporte, o que terias feito?
– Não sei.
– Então, como é que tens vivido? Quer dizer…
– Bem, do modo como me encontraste – respondeu, laconicamente. – A
tocar violino em troca de uns cêntimos. A pagar alojamentos por noite.
– Desde que eras criança?
– Desde que era criança.
Tinha confiado nele, naquele americano alto e fantástico, com um sorriso de
vencedor. Nessa altura, ele tinha sido o seu herói, o homem que durante
quase um mês ia vê-la tocar todas as noites, que lhe disse que era a violinista
mais bonita que já vira, que a levara para a sua elegante casa cor-de-rosa e
lhe entregara toalhas macias para se secar, depois de ter passado meia hora
no duche, um cubículo com azulejos dourados, que lhe penteara as
madeixas molhadas do cabelo e a fizera estremecer quando as pontas dos
seus dedos lhe roçaram os ombros nus, que depois entregara as suas roupas
sujas à empregada para que as lavasse e passasse a ferro, sendo-lhe a seguir
devolvidas, dobradas como um leque em origami sobre a colcha da cama na
suíte de hóspedes. Nessa época, eram só toques suaves, apreço e
amabilidades. Claro que ela tinha confiado nele.
Portanto contara-lhe tudo, toda a história, e ele olhara para ela com os seus
olhos cor de avelã brilhantes e dissera: «Está tudo bem, agora estás segura.
Estás segura.»
E então arranjou-lhe um passaporte. Ela não fazia ideia como ou através de
quem. As informações nele contidas não eram totalmente precisas: não era o
seu nome verdadeiro, nem a data ou o local de nascimento corretos. Mas era
um bom passaporte, que a levou às Maldivas, Barbados, Itália, Espanha,
Nova Iorque e que lhe permitiu regressar, sem que ninguém fizesse
perguntas.
E agora o seu prazo de validade tinha expirado e ela não tinha forma de
arranjar outro, nem meios para regressar a Inglaterra. Já para não falar do
facto de não ter passaportes para as crianças nem para o cão.
Fecha o passaporte e suspira. Há duas formas de contornar este obstáculo.
Uma delas é perigosa e ilegal e a outra é simplesmente perigosa. A única
outra alternativa possível é não ir.
Com esse pensamento, a sua mente enche-se das imagens de quando deixou
Inglaterra, vinte e quatro anos antes. Recorda esses últimos momentos, tal
como os recordou milhares de vezes: o som do trinco da porta a fechar-se
atrás de si pela última vez, sussurrando baixinho: Voltarei em breve, prometo,
prometo, prometo, uma dúzia de vezes enquanto corria por Cheyne Walk, no
escuro, a meio da noite, com o coração a bater com força, a respiração
ofegante, o seu pesadelo a terminar e a começar, simultaneamente.
17

Chelsea, 1988

Passaram-se quase duas semanas até Phineas Thomsen se dignar a falar


comigo. Ou talvez tivesse sido o contrário, quem sabe. Tenho certeza de que
ele teria a sua própria opinião em relação a isso. Mas, segundo me lembro (e
é, claro está, a minha lembrança) foi ele que não falou.
Como sempre, eu andava pela cozinha com a minha mãe e,
disfarçadamente, ouvia-a conversar com as mulheres que agora pareciam
morar em nossa casa. Neste ponto, já estabelecera subliminarmente que a
única maneira de saber de facto o que se passava era ouvindo-as falar. Quem
quer que ignore as conversas das mulheres, fica sempre mais pobre.
Por esta altura, Birdie e Justin já moravam connosco há quase cinco meses e
os Thomsens há quase duas semanas. Neste dia em concreto, a conversa na
cozinha decorreu numa espécie de ciclo rotativo de quarenta e oito horas,
incidindo sobre a irritante questão de saber onde iriam Sally e David viver.
Nessa ocasião, eu ainda me agarrava pateticamente à falácia de que eles
ficariam apenas por um curto período de tempo. De tantos em tantos dias
surgia no horizonte uma nova possibilidade que era longamente debatida e a
sensação de que Sally e David estavam prestes a seguir em frente pairava
brevemente no ar, tentadora, até que, pop, se descobria que a «possibilidade»
tinha uma falha inerente e voltava tudo à estaca zero. Neste momento, a
«possibilidade» era uma casa flutuante em Chiswick. Pertencia a um
paciente de David que iria viajar durante um ano, de mochila às costas, e
que precisava de alguém que cuidasse dos seus dragões-barbudos.
– Mas tem apenas um quarto – dizia Sally à minha mãe e a Birdie. – E ainda
por cima minúsculo. Como é óbvio, eu e o David podíamos dormir nos
beliches da sala de estar, mas é um pouco apertada por causa dos terrários.
– Caramba – exclamou Birdie, escarafunchando a pele seca em volta das
unhas, fazendo os flocos cair nas costas da gata. – Quantos são?
– Os terrários?
– Sim. Ou lá o que isso é.
– Não faço ideia. Devem ser uns seis. Talvez tenhamos de encontrar uma
forma de os empilhar.
– Então, e as crianças? – perguntou a minha mãe. – Vão querer partilhar?
Especialmente uma cama dupla. O Phin está quase um adolescente…
– Oh, meu Deus, será por pouco tempo. Apenas até encontrarmos alguma
coisa permanente.
Olhei para cima. Este era o ponto em que quase sempre o plano
desmoronava. No momento em que se tornava claro que era de facto um
plano estúpido, e em que Sally dizia, estoicamente: «Oh, bem, não é
permanente», e a minha mãe replicava: «Oh, mas isso é um disparate, temos
aqui tanto espaço. Não se sinta na obrigação de se apressar.» E a linguagem
corporal de Sally suavizava-se e ela sorria e tocava no braço da minha mãe
enquanto dizia: «Não quero abusar da vossa hospitalidade.» E, de seguida, a
minha bonita mãe dizia, com o seu bonito sotaque alemão: «Que disparate,
Sally. Não faz sentido. Leve o seu tempo. Alguma coisa há de aparecer. Algo
perfeito.»
E foi o que aconteceu, naquela tarde do final de setembro. O plano da casa
flutuante foi debatido e resolvido nuns calmos oito minutos, possivelmente
um tempo recorde.

Devo dizer que fiquei devastado com a presença dos Thomsens. Por um
lado, eles estavam a atravancar a minha casa. Não com objetos propriamente
ditos, mas com eles mesmos, as suas formas humanas, os seus sons, os seus
cheiros, a sua alteridade. A minha irmã e Clemency tinham-se juntado
numa espécie de união profana mais barulhenta ainda. Corriam pela casa
desde manhã até à hora de ir dormir, envolvidas em estranhos jogos de faz-
de-conta que pareciam implicar fazer o máximo barulho possível. Além
disso, Birdie andava a ensinar as duas a tocar violino, o que era
absolutamente insuportável.
E depois, está claro, havia David Thomsen, cuja presença carismática parecia
permear cada recanto da nossa casa. Além do seu quarto no andar de cima,
ele também se apropriara, de alguma forma, da nossa sala da frente, onde
estava instalado o bar do meu pai, como uma espécie de espaço de exercício,
onde uma vez o observei, através de uma fresta na porta, a tentar levantar
todo o corpo do chão usando apenas as pontas dos dedos.
E no outro extremo de tudo aquilo estava Phin. Phin, que se recusava até a
olhar para mim, quanto mais falar. Phin, que se comportava como se eu não
estivesse ali. E quanto mais ele agia como se eu não estivesse ali, mais eu me
sentia capaz de morrer por ele se recusar a olhar para mim.
E então, finalmente, naquele dia, aconteceu. Eu saíra da cozinha depois de
ter ficado estabelecido que Sally e David iriam ficar e quase esbarrei com ele,
que vinha do outro lado. Vestia uma sweatshirt desbotada com letras e calças
de ganga com rasgões nos joelhos. Parou quando me viu e, pela primeira
vez, os seus olhos encontraram os meus. Sustive a respiração. Procurei entre
os meus pensamentos emaranhados algo para dizer, mas não encontrei
nada. Movi-me para a esquerda; ele moveu-se para o seu lado direito. Pedi
desculpa e fui para a minha direita. Achei que ele iria seguir em frente, em
silêncio, mas nesse momento ele disse:
– Sabes que estamos aqui para ficar, não sabes?
– Desculpa?
– Podes ignorar qualquer coisa que os meus pais digam em relação a mudar.
Não vamos para mais lado nenhum. Ficámos naquela casa, na Bretanha,
durante dois anos, sabes? – prosseguiu. – Era suposto termos ficado apenas
durante um feriado. – Fez uma pausa e ergueu uma sobrancelha.
Eu deveria, sem dúvida, responder de alguma maneira, mas estava
estupefacto. Nunca tinha estado tão perto de alguém assim tão bonito. E o
seu hálito cheirava a hortelã.
Ele olhou para mim e eu vi uma sombra de desilusão passar pelo seu rosto,
ou talvez não fosse sequer desilusão, mas antes resignação, como se eu
estivesse simplesmente a confirmar o que ele já desconfiava em relação a
mim, que eu era aborrecido e sem interesse, e portanto não merecia a sua
atenção.
– Porque é que não têm a vossa própria casa? – perguntei, por fim.
Ele encolheu os ombros.
– Porque o meu pai está demasiado apertado para conseguir pagar uma
renda.
– Nunca tiveram a vossa própria casa?
– Sim. Uma vez. Ele vendeu-a para que pudéssemos viajar.
– Então e a escola?
– O que é que tem?
– Quando é que vais à escola?
– Não vou à escola desde os seis anos. A minha mãe ensina-me.
– Uau – disse eu. – Então e amigos?
Olhou-me com uma expressão de desconfiança.
– Não sentes falta de ter amigos?
Estreitou os olhos.
– Não – respondeu, simplesmente. – Nem um bocadinho.
Parecia estar prestes a afastar-se. Eu não queria que ele fosse embora. Queria
sentir o seu hálito a hortelã e saber mais sobre ele. Os meus olhos pousaram
sobre o livro que ele tinha nas mãos.
– O que estás a ler? – perguntei.
Ele baixou os olhos e virou o livro para cima. Chamava-se The Dice Man, de
Luke Rhinehart, um romance do qual eu não ouvira falar, mas que desde
então li para aí umas trinta vezes.
– É bom?
– Todos os livros são bons – respondeu.
– Isso não é verdade – retorqui. – Já li livros mesmo muito maus. – Estava a
pensar concretamente no livro Anne das Empenas Verdes, que fomos
forçados a ler no último período e que era o livro mais estúpido e irritante
que já tinha lido.
– Não eram livros maus – retrucou Phin, pacientemente. – Eram livros de
que não gostaste. Não é, de modo algum, a mesma coisa. Os únicos livros
maus são aqueles que estão tão mal escritos que ninguém os publica.
Qualquer livro publicado será um «bom livro» para alguém.
Acenei com a cabeça. Não podia refutar a sua lógica.
– Estou quase a acabar – disse ele, olhando para o livro. – Podes lê-lo a
seguir, se quiseres.
Anuí mais uma vez.
– Está bem. Obrigado.
Ele seguiu caminho, mas eu fiquei onde estava, a sentir a minha cabeça a
latejar, as palmas das mãos húmidas, o coração cheio de algo extraordinário
e novo.
18

Miller Roe levanta-se assim que Libby se aproxima. Ela reconhece-o pela sua
fotografia na Internet, embora ele tenha deixado crescer a barba e também
tenha ganho algum peso. Está a meio de uma sanduíche já um pouco
desconjuntada e tem um bocado de molho amarelo na barba. Limpa os
dedos num guardanapo antes de pegar na mão de Libby para a
cumprimentar.
– Libby, uau, é um prazer conhecê-la! – Tem um sotaque londrino e os olhos
azuis-escuros. A mão dele em volta da dela é enorme. – Aqui, por favor,
sente-se. O que posso trazer-lhe? As sanduíches são excelentes.
Ela deita uma olhadela à sua sanduíche amassada e diz:
– Acabei de tomar o pequeno-almoço.
– Chá, café?
– Um cappuccino seria bom. Obrigada.
Observa-o ao balcão daquele café da moda em West End Lane, onde ele
sugeriu que se encontrassem, como um ponto intermédio entre St. Albans e
South Norwood. Tem vestidas umas calças de ganga de cintura baixa e uma
T-shirt desbotada, um casaco verde de algodão e botas de caminhada. Tem
uma grande barriga e uma cabeça também grande e coroada por espesso
cabelo castanho-escuro. É impressionante olhar para ele, com o seu ar um
pouco ursino, mas nada desagradável.
Ele traz o cappuccino e pousa-o na frente dela.
– Fico-lhe muito grato por ter vindo ter comigo. A sua viagem foi boa? –
pergunta, empurrando a sanduíche para o lado, como se não tivesse
intenção de comer mais.
– Sem problema – responde ela. – Quinze minutos e é direto.
– De St. Albans, certo?
– Sim.
– É um sítio agradável.
– Sim – concorda ela. – Eu gosto.
– Então – diz ele, olhando-a com atenção –, é a bebé.
– Parece que sim – ri, nervosamente.
– E herdou aquela casa?
– Sim.
– Uau. Que grande mudança.
– Enorme – concorda Libby.
– Já a viu?
– A casa?
– Sim.
– Sim, umas duas vezes.
– Meu Deus. – Ele deixa-se cair na cadeira. – Esforcei-me tanto para que me
deixassem entrar na casa. Quase ofereci o meu primogénito ao fulano da
firma de advogados. Uma noite ainda tentei assaltar a casa.
– Então nunca a viu?
– Não. Infelizmente não – ri com ironia. – Espreitei pelas janelas. E tentei
convencer os vizinhos das traseiras para que me deixassem olhar pelas suas
janelas. Mas nunca consegui entrar na casa. Que tal é?
– Escura – responde ela. – Tem imensos painéis de madeira. É esquisita.
– Presumo que vá vendê-la?
– Sim, vou. Mas… – Passa as pontas dos dedos pela borda da sua chávena
enquanto prepara as próximas palavras. – Primeiro quero saber o que ali
aconteceu.
Miller Roe faz uma espécie de rosnado e esfrega a barba com a mão,
desalojando a partícula de molho amarelo.
– Meu Deus, queremos ambos. Aquele artigo tirou-me dois anos de vida,
dois anos obcecados, insanos e lixados da minha vida. Destruí o meu
casamento e ainda não encontrei as respostas que procurava. Nem sequer
cheguei perto.
Ele sorri-lhe. Ela acha que ele tem um rosto agradável. Tenta adivinhar a sua
idade, mas não consegue. Pode ter qualquer idade entre os vinte e cinco e os
quarenta anos.
Ela procura na sua mala e tira as chaves de Cheyne Walk, pousando-as sobre
a mesa, à sua frente.
O olhar dele cai sobre elas e Libby apercebe-se de um brilho de ansiedade
nos seus olhos. Ele estende a mão.
– Oh, meu Deus. Posso?
– Claro – diz ela. – À vontade.
Ele olha para cada uma das chaves à vez, acaricia-as.
– A chave de um Jaguar? – pergunta, olhando para ela.
– Pelos vistos.
– Sabe, quando era jovem, Henry Lamb, o seu pai, era um pouco impetuoso
e convencido. Costumava escapulir-se para ir caçar aos fins de semana, e nas
noites de escola ia divertir-se para o Annabel’s.
– Eu sei – responde ela, entusiasmada. – Eu li o seu artigo.
– Pois, claro que leu – diz ele.
Faz-se um breve silêncio. Miller pega num bocado da sanduíche e mete-o na
boca. Libby bebe um gole do cappuccino.
– Então, e agora? – pergunta ele.
– Quero encontrar os meus irmãos – responde ela.
– Eles nunca tentaram entrar em contacto consigo?
– Não. Nunca. Qual é a sua teoria?
– Tenho milhões de teorias. Mas a grande questão é: eles sabem que a casa
lhe iria ser entregue? E, em caso afirmativo, sabem que tomou posse dela
agora?
– Não sei – Libby suspira. – O advogado disse que o trust foi estabelecido
anos antes, quando o meu irmão nasceu. A casa iria para ele quando fizesse
vinte e cinco anos. Porém, nunca veio reivindicá-la. A seguir, para a nossa
irmã, mas ela também nunca a reivindicou… e claro que os advogados não
tinham meio de entrar em contacto com qualquer um deles. Mas sim, acho
que há uma hipótese de eles saberem que acabaria por vir para mim.
Partindo do princípio que… – Ia dizer que ainda estão vivos, mas deteve-se.
– E o fulano – prosseguiu –, o homem que morreu com os meus pais. No
artigo dizia que seguiu uma série de pistas que não levaram a lado nenhum.
Nunca conseguiu descobrir quem era?
– Não. Foi muito frustrante, mas não. – Miller coçou a barba. – Apesar de
ter surgido um nome. Tive de desistir da minha busca. Mas é algo que me
incomoda desde então. David Thomsen.
Libby lança-lhe um olhar interrogativo.
– Havia iniciais na nota de suicídio, lembra-se? ML, HL, DT. Por isso pedi à
polícia os nomes de pessoas desaparecidas com as iniciais DT. David
Thomsen foi um dos trinta e oito nomes que eles desenterraram. Trinta e
oito pessoas desaparecidas com as iniciais DT. Dez na mesma presumida
faixa etária. E um a um, eliminei-os a todos.
»Mas este, em particular, fascinou-me. Não sei porquê. Havia algo na sua
história que parecia fazer sentido. Um tipo de quarenta e dois anos de
Hampshire. Uma educação normal. Porém, desde que regressou ao Reino
Unido vindo de França, em 1988, com a mulher, chamada Sally, e dois filhos,
Phineas e Clemency, não se encontrou mais nenhum registo dele. Vieram de
ferry de Saint-Malo para Portsmouth, em… – Folheia um livro de notas por
um instante – … setembro de 1988. E a partir daí não há, literalmente,
qualquer vestígio de algum deles: não há registos médicos, não há impostos,
não há registos escolares, idas ao hospital, nada. As suas famílias
descreveram-nos como «solitários»; havia desacordos e ressentimentos, uma
enorme desavença por causa de alguma questão de herança. Por isso,
ninguém se perguntou onde estariam. Durante anos e anos. Até que a mãe
de David Thomsen, ao chegar ao fim da vida, decide que quer uma
reconciliação no seu leito de morte e declara o filho e a sua família como
pessoas desaparecidas. A polícia conduz algumas buscas superficiais, não
encontra vestígios de David ou da sua família; entretanto, a mãe de David
morre e mais ninguém faz perguntas sobre o casal. Até eu ter surgido, há
três anos – Miller suspira. – Esforcei-me tanto para encontrá-los. Phineas.
Clemency. Nomes invulgares. Se andassem por aí, teria sido relativamente
fácil descobri-los. Mas nada. Nem o mínimo vestígio. E eu precisava de
concluir o artigo, precisava que mo pagassem, e por isso tive de desistir –
abana a cabeça. – Percebe agora? Percebe porque é que levou dois anos, por
que razão quase me matou? O motivo para a minha mulher me ter deixado?
Esta investigação tinha-me transformado num autêntico zombie. Só falava e
só pensava nisso.
Suspira e passa os dedos pelo conjunto de chaves.
– Mas sim. Vamos fazê-lo. Vamos descobrir o que aconteceu a todas essas
pessoas. Descobrir o que lhe aconteceu a si.
Ele estende-lhe a mão para que ela a aperte.
– Vamos a isso, Serenity Lamb?
– Sim – diz Libby, apertando-lhe a mão. – Vamos a isso.

Libby segue diretamente do pequeno-almoço com Miller Roe para o


showroom. São apenas nove e meia e Dido mal repara no seu atraso.
Quando, por fim, se apercebe, olha-a uma segunda vez e diz, num sussurro
urgente:
– Oh, meu Deus! O jornalista! Como correu?
– Incrível – responde Libby. – Vamos encontrar-nos esta noite na casa. Para
começar a nossa investigação.
– Só tu – comenta Dido, franzindo levemente o nariz –, e ele?
– Sim.
– Hum. Tens a certeza de que é boa ideia?
– O quê? Porque não?
– Não sei. Talvez ele não seja o que parece – Dido semicerra os olhos. –
Acho que também devo ir.
Libby pestaneja lentamente e depois sorri.
– Podias apenas ter pedido.
– Não percebo o que queres dizer. – Dido regressa ao seu portátil. – Só
quero tomar conta de ti.
– Está bem – diz Libby, ainda a sorrir. – Podes «tomar conta» de mim. Vou
encontrar-me com ele às dezanove horas. Precisamos de apanhar o das seis e
onze. OK?
– OK – concorda Dido, olhando, resoluta, para o ecrã do computador. – Está
bem. E por falar nisso – de repente, olha para cima –, eu li todos os livros
publicados da Agatha Christie. Duas vezes. Por isso até sou capaz de ser
bastante útil.
19

Lucy deixa as crianças ficarem a dormir e coloca um bilhete para Marco


sobre a mesa de cabeceira: «Fui tratar da questão dos passaportes. Estarei de
volta daqui a umas duas horas. Dá à tua irmã alguma coisa para comer. O
cão está com o Giuseppe.»
Sai de casa às oito da manhã e segue pelo longo caminho até à Gare de Nice.
Para por um momento e senta-se num banco, deixando o sol suave da
manhã aquecer-lhe a pele. Às oito e quarenta e cinco, apanha o comboio
para Antibes.
Pouco depois das nove está em frente à casa de Michael. Vê moscas
varejeiras, que parecem formar uma cobertura metálica, pousadas sobre a
bosta que Fitz fez na manhã anterior. Faz um sorriso tenso. Depois, muito
lentamente, com a bílis a queimar-lhe a boca do estômago, toca à campainha
de Michael.
A empregada vem atender. Sorri ao reconhecer Lucy.
– Bom dia! É a mulher de Michael! De antes! A mãe do filho de Michael. Eu
antes não sabia que ele tinha um filho! – Tem uma mão pousada no peito e
parece genuinamente feliz. – É um rapaz tão bonito. Entre, entre.
A casa está silenciosa.
– O Michael está disponível? – pergunta Lucy.
– Sim, sim. Está a tomar um duche. Vai esperar por ele no terraço. Pode ser?
Joy leva-a até ao terraço e diz-lhe para se sentar, insistindo em trazer um
café, acompanhado com uns biscoitos amaretti, mesmo apesar de Lucy ter
dito que queria apenas água. Pensa que Michael não merece uma empregada
assim. Michael não merece nada.
Enfia a mão na sua mala e tira dela o seu antigo passaporte e a pequena
carteira com as fotografias de Stella e Marco aí guardadas. Bebe o café, mas
deixa de parte os amaretti, porque o seu estômago não aguenta. Um
abelharuco colorido pousa no ramo de uma árvore, olhando em volta do
jardim, em busca de algum petisco. Ela parte um biscoito e deixa as
migalhas no chão, para ele comer, mas o pássaro não repara e voa para
longe. O estômago de Lucy dá uma reviravolta. São nove e meia.
Finalmente, ele chega, imaculado, com uma T-shirt branca e uns calções
verde-ervilha, o cabelo ralo ainda molhado do banho e os pés descalços.
– Bem, ora, ora – exclama, roçando-lhe as faces com as suas, de ambos os
lados. – Duas vezes em dois dias. Deve ser o meu aniversário. Não trouxeste
os miúdos?
– Não, deixei-os a dormir. Deitámo-nos muito tarde.
– Fica para a próxima – exibe-lhe o seu grande sorriso dourado, senta-se e
cruza as pernas. – Então, a que devo o prazer?
– Bem… – Ela pousa as pontas dos dedos sobre o passaporte e os seus olhos
voltam-se para ele. – Preciso de ir para casa – diz. – A minha amiga está
doente. Provavelmente a morrer. Preciso de vê-la, antes que… no caso de…
tu percebes. – Uma lágrima cai do seu olho esquerdo e pousa,
apropriadamente, em cima do passaporte. Ela limpa-a. Não tinha planeado
chorar, mas mesmo assim acontecera.
– Oh, querida. – Michael pousa uma mão sobre a dela.
Ela sorri, tentando mostrar-se grata pelo seu gesto.
– Isso é horrível. O que tem ela? É cancro?
Ela assente com a cabeça.
– Nos ovários – responde, retirando a mão de debaixo da dele e levando-a à
boca para abafar um pequeno soluço. – Quero ir na próxima semana, mas o
meu passaporte caducou. E também não tenho passaporte para as crianças.
Peço-te desculpas por vir pedir-to. Ontem foste tão generoso com o
dinheiro do meu violino. Não te pediria se tivesse outras opções. Mas ainda
conheces as pessoas? As que me arranjaram este passaporte? – Passa o dedo
por baixo dos olhos e depois olha para cima, para ele, de um modo um
pouco patético mas, ainda assim, esperando que seja sedutor.
– Bem, já não propriamente. Não. Mas ouve, vou tentar. – Puxa o passaporte
para si. – Deixa o assunto comigo.
– Toma. Trouxe fotografias. E, bem, pode parecer parvoíce, mas também
trouxe uma para o cão. Ele tem algumas vacinas em atraso, por isso não
posso seguir o processo habitual. E também, de qualquer forma, sabe Deus
quanto tempo demoraria…
– Vais levar o cão? Para ver uma amiga que está a morrer?
– Não tenho propriamente alternativa.
– Bem, talvez eu possa ficar com ele?
Ela tenta não parecer horrorizada ante a ideia de o seu precioso cãozinho
ficar a viver ali com aquele monstro.
– Mas o que farias com um cão?
– Ehr, bem, não sei. Brincar com ele? Passear? Alimentá-lo?
– Não é só isso. É preciso levantares-te todas as manhãs para levá-lo a fazer
as necessidades. E depois tens de apanhar a merda que ele fizer.
Michael revira os olhos e diz:
– A Joy adora cães. Ela adoraria ficar a tomar conta dele. E eu também.
Pois, claro, pensa Lucy, Michael tem quem apanhe a merda que o cão fizer.
– Bem – diz –, prefiro levá-lo comigo. As crianças estão muito ligadas a ele e
eu também…
– Verei o que posso fazer – diz ele. – Acho que arranjar o passaporte para o
cão será forçar um pouco os limites. Mas tentarei.
– Meu Deus – exclama ela, com os olhos arregalados de uma gratidão
fingida. – Muito obrigada, Michael. Nem imaginas como me sinto aliviada.
Recebi ontem à noite a mensagem sobre a minha amiga e não consegui
dormir por estar preocupada a pensar como poderia ir ter com ela.
Obrigada.
– Bem, ainda não está garantido.
– Eu sei – diz ela. – Sei que não. Mas mesmo assim fico-te muito grata.
Vê o rosto dele transformar-se de cordial para assustador.
– Mesmo muito grata?
Ela força um sorriso. Sabe o rumo que a conversa está a tomar. Vinha
preparada para isso.
– Muito, muito, muito grata – responde.
– Ah – ele recosta-se na cadeira e sorri. – Gosto disso.
Ela devolve-lhe o sorriso e passa a mão pelo cabelo.
Ele ergue os olhos na direção das janelas com persianas do andar de cima,
em direção ao quarto principal, local de múltiplas violações conjugais.
Depois, o seu olhar fixa-se nela e Lucy reprime um estremecimento.
– Talvez da próxima vez – diz ela.
Ele levanta uma sobrancelha e estende um braço sobre as costas da cadeira à
sua direita.
– Estás-me a encorajar?
– Possivelmente – responde ela.
– Gosto do teu estilo.
Ela sorri. Endireita-se e pega nas asas da sua mala.
– Mas agora preciso de voltar para junto dos meus filhos adormecidos.
Levantam-se ambos.
– Quando achas que… – começou ela a perguntar, hesitante.
– Tratarei do assunto imediatamente – responde. – Deixa-me o teu número
de telemóvel e eu ligo-te quando tiver novidades.
– Neste momento, não tenho telemóvel.
Ele faz uma careta.
– Mas acabaste de dizer que recebeste uma mensagem ontem à noite, sobre a
tua amiga?
Se dormir na praia durante uma semana faz algo por uma pessoa, é ensiná-
la a pensar com rapidez.
– Oh, isso foi no telefone fixo, no albergue. Alguém me deixou o recado.
Num pedaço de papel.
– Então, como é que consigo contactar contigo? Ligo-te para o albergue?
– Não – responde ela, friamente. – Não. Dá-me o teu número. Ligo-te de um
telefone público. Telefono-te na sexta-feira?
Ele rabisca o seu número num papel e entrega-lho.
– Sim, liga na sexta-feira. E toma… – Põe a mão no bolso e tira um maço de
notas dobradas. Pega em algumas notas de vinte e dá-lhas. – Arranja um
telemóvel para ti. Por amor de Deus.
Ela pega nas notas de vinte euros e agradece. Agora já não tem nada a
perder. Acabara de hipotecar a sua alma por um passaporte.
20

Chelsea, 1989

Passaram-se meses e meses. Phineas fez treze anos e ficou com uma enorme
maçã de Adão e um pequeno bigode louro. Eu cresci cerca de dois
centímetros e meio e finalmente o meu cabelo ficou suficientemente
comprido para poder ficar caído como o dele. A minha irmã e Clemency
iam ficando cada vez mais insanamente ligadas, partilhando uma linguagem
secreta e passando horas numa toca feita com lençóis e cadeiras viradas para
cima no quarto vazio no piso do sótão. A banda de Birdie lançou um single
horrível que chegou ao número 48 nas tabelas e, num acesso de raiva, ela
deixou o grupo, mas ninguém na imprensa musical pareceu importar-se ou
sequer reparar e ela começou a ensinar violino profissionalmente na sala de
música.
Entretanto, Justin transformou o jardim do meu pai numa empresa
comercial, vendendo os seus remédios à base de ervas através de anúncios
classificados nas últimas páginas dos jornais, Sally dava-nos aulas a todos,
durante quatro horas por dia, em volta da mesa da cozinha, e David dava
três aulas semanais das suas terapias alternativas num salão da igreja, no
World’s End, e voltava para casa com os bolsos cheios de dinheiro.
Phin estava absolutamente certo na previsão que fizera tantos meses antes.
Os Thomsen não iam para mais lugar nenhum.

Recordo esses anos na casa de Cheyne Walk com os Thomsens e vejo com
precisão os momentos de viragem, os pontos sobre os quais o destino deu
uma reviravolta e seguiu outra direção, em que o enredo se distorceu tão
horrivelmente. Recordo-me do jantar no Chelsea Kitchen e de ver o meu pai
a perder uma luta pelo poder, luta essa que já tinha começado, embora ele
estivesse demasiado fraco para o perceber. E lembro-me da minha mãe a
evitar David, recusando-se a brilhar, por medo de que ele a desejasse.
Recordo-me de quando tudo começou, mas não faço ideia de como
passámos dessa noite até ao ponto a que chegámos, nove meses depois,
quando estranhos tinham tomado conta de cada canto da nossa casa e os
meus pais permitiram.
O meu pai simulava interesse pelo que se ia passando. Deambulava pelo
jardim com Justin, fingindo ficar fascinado com as suas fileiras de ervas e
plantas. Todas as noites, às dezanove horas, deitava dois dedos de uísque em
dois grandes copos e sentava-se com David à mesa da cozinha, onde tinham
conversas tensas sobre política e assuntos mundiais, com os olhos
ligeiramente esbugalhados pelo esforço de tentar parecer que fazia ideia do
que estavam a falar. (Todas as opiniões do meu pai eram pretas ou brancas;
as coisas eram certas ou erradas, boas ou más. Na sua perspetiva do mundo,
não havia nuances. Era embaraçoso.) Por vezes, sentava-se junto a nós
durante as aulas na cozinha e mostrava-se extremamente impressionado
com a inteligência de todos. Eu não percebia o que lhe tinha acontecido. Era
como se Henry Lamb tivesse saído de casa, mas deixado ficar o corpo.
Eu queria desesperadamente falar com ele sobre tudo o que estava a
acontecer, a reviravolta do meu mundo, mas receava que fosse como
arrancar-lhe uma crosta do que ainda lhe restava do seu valor enquanto
pessoa. Parecia tão vulnerável, tão frágil. No início do verão, vi-o à hora do
almoço a segurar o seu boné de mohair e o casaco, enquanto verificava o
conteúdo da carteira, junto à porta da frente. Tínhamos terminado as aulas
do dia e eu sentia-me aborrecido.
– Aonde vais? – perguntei.
– Ao meu clube – respondeu.
Ah, o clube dele. Uma série de salas cheias de fumo numa rua secundária
junto a Piccadilly. Eu tinha lá ido uma vez, quando a minha mãe estava fora
e a nossa babysitter não dera sinais de vida. Em vez de ficar preso em casa, a
ter de entreter duas crianças pequenas e chatas, enfiara-nos no banco
traseiro de um táxi preto e levara-nos até ao seu clube. Lucy e eu ficámos
sentados a um canto com copos de limonada e amendoins, enquanto o meu
pai se sentava a fumar charutos e a beber uísque com homens que eu nunca
tinha visto antes. Eu tinha ficado encantado com aquilo, desejara nunca
mais sair dali e rezara para que as nossas babysitters nunca mais
aparecessem.
– Posso ir?
Ele olhou para mim sem expressão, como se lhe tivesse feito uma pergunta
difícil de matemática.
– Por favor, eu fico sossegado. Não falo.
Ele olhou de relance para o cimo das escadas, como se a solução para o seu
enigma pudesse estar prestes a aparecer no patamar.
– Acabaste a escola?
– Sim.
– Está bem.
Esperou, enquanto eu vestia o casaco. A seguir, fomos para a rua e ele
mandou parar um táxi.
Não encontrou ninguém conhecido no clube, e enquanto esperávamos que
nos trouxessem as bebidas, olhou para mim e perguntou:
– Então, como estás?
– Confuso – respondi.
– Confuso?
– Sim. Por causa do modo como as nossas vidas estão a correr. – Sustive a
respiração. Aquele era exatamente o tipo de abordagem insolente que no
passado teria levado o meu pai a fazer uma careta, voltando o olhar para a
minha mãe e perguntando-lhe sombriamente se ela achava que aquele tipo
de comportamento era aceitável, se era esse o tipo de filhos que estavam a
criar.
Mas ele olhou para mim com olhos azuis lacrimejantes e disse
simplesmente:
– Sim.
O seu olhar afastou-se de imediato do meu.
– Também estás confuso?
– Não, filho, não. Eu não estou confuso. Sei exatamente o que se passa.
Não percebi se ele queria dizer que sabia o que estava a acontecer e que
tinha tudo sob controlo, ou que sabia o que estava a acontecer, mas não
podia fazer nada para o evitar.
– E então… o que se passa? – perguntei. – O que se passa?
As nossas bebidas chegaram: uma limonada sobre uma base de papel branco
para mim e uísque e água para o meu pai. Ele não tinha respondido à minha
pergunta e pensei que decerto não o faria. Porém, ele suspirou e disse:
– Filho, há momentos na vida em que chegamos a uma encruzilhada. Eu e a
tua mãe chegámos a uma bifurcação na estrada. Ela queria ir para um lado,
eu queria ir para o outro. Ela ganhou.
Ergui uma sobrancelha.
– Queres dizer que a mamã quer todas aquelas pessoas lá em casa? Ela quer
mesmo que eles fiquem?
– Quer? – perguntou num tom severo, como se a minha pergunta fosse de
alguma forma ridícula quando, claramente, não era.
– Ela quer morar com todas aquelas pessoas?
– Meu Deus, eu não sei. Já não sei o que ela quer. E ouve o meu conselho.
Nunca cases com uma mulher. Podem ter boa aparência, mas irão destruir-
te.
Nada daquilo fazia sentido. O que é que casar com uma mulher – o que eu
não tinha a mínima intenção de alguma vez vir a fazer, mas também era algo
ao que não me parecia haver outra opção; se não casasse com uma mulher,
com quem casaria? – tinha a ver com as pessoas que viviam no andar de
cima?
Olhei para ele, desejando que dissesse algo que fosse claro e esclarecedor.
Mas o meu pai não tinha inteligência emocional nem, na verdade, o seu
vocabulário era claro ou esclarecedor desde o AVC. Tirou um charuto do
bolso do casaco e passou algum tempo a prepará-lo para ser fumado.
– Então, não gostas muito deles? – perguntou, finalmente.
– Não – respondi. – Não gosto. Eles nunca mais vão embora?
– Bem, se fosse por mim…
– Mas é a tua casa. Claro que tens tudo que ver com isso.
Recuperei o fôlego, preocupado com a possibilidade de ter ido demasiado
longe.
Porém, ele limitou-se a suspirar.
– Seria de pensar que sim, não é verdade?
A sua obtusidade estava a dar cabo de mim. Tinha vontade de gritar.
– Não podes, simplesmente, dizer-lhes para irem embora? – perguntei. –
Diz-lhes que queremos a nossa casa de volta. Que queremos voltar a ir à
escola. Que não os queremos mais aqui.
– Não – replicou o meu pai. – Não. Não posso.
– Mas porquê?
A minha voz subira uma oitava e vi o meu pai recuar.
– Já te disse – disparou. – É a tua mãe. Ela precisa deles. Precisa dele.
– Ele? – perguntei. – David?
– Sim. David. Aparentemente, ele fá-la sentir-se melhor em relação à sua
vida inútil. Aparentemente, ele dá um «sentido» à sua vida. Agora –
resmungou, abrindo o jornal –, disseste que não irias falar. E se mantivesses
a tua palavra?
21

Miller Roe está no exterior da casa em Cheyne Walk, a olhar para o


telemóvel. Parece ainda mais desgrenhado do que naquela manhã no café,
em West End Lane. Endireita-se ao ver Libby e Dido aproximarem-se e
sorri.
– Miller, esta é Dido, a minha colega. – A seguir, corrige-se a si mesma: – A
minha amiga. Dido, este é Miller Roe.
Apertam as mãos e de seguida voltam-se todos para a casa.
As janelas brilham douradas à luz do Sol de fim de tarde.
– Libby Jones – exclama Dido –, meu Deus. É mesmo uma mansão.
Libby sorri e vira-se para abrir o cadeado. Não se sente a proprietária
enquanto se juntam no corredor, a olhar em volta. Ainda espera que o
advogado apareça, avançando decidido à sua frente, com autoridade.
– Entendo o que quer dizer em relação a toda esta madeira – diz Miller. –
Sabe, esta casa costumava estar cheia de cabeças de animais e facas de caça.
Ao que parece até havia verdadeiros tronos, aqui mesmo… – Aponta para os
dois lados da escada. – O dele e o dela – acrescenta, ironicamente.
– Quem lhe falou dos tronos? – pergunta Dido.
– Velhos amigos de Henry e Martina, que costumavam vir cá a jantares
barulhentos nos anos setenta e início dos anos oitenta. Quando Henry e
Martina eram socialites. Nessa altura, os filhos eram pequenos. Ao que
parece, era tudo muito glamoroso.
– Então, onde estavam todos esses velhos amigos quando as coisas se
tornaram estranhas? – prosseguiu Dido.
– Oh, eles não eram propriamente amigos. Eram pais dos amigos dos filhos
na escola, vizinhos temporários, cosmopolitas inadaptados. Ninguém que se
importasse realmente com eles. Apenas pessoas que se lembravam deles.
– E dos seus tronos – acrescenta Libby.
– Sim – Miller sorri. – E dos seus tronos.
– E a família alargada? – pergunta Dido. – Onde estavam?
– Bem, Henry não tinha família. Era filho único e ambos os pais já tinham
morrido. O pai de Martina tinha-se afastado e a mãe voltara a casar e vivia
na Alemanha com uma nova família. Ao que parece, estava sempre a tentar
vir aqui a casa, mas Martina dissuadia-a sempre. Em 1992, a mãe até
mandou cá um dos filhos. Ele chegou e bateu à porta todos os dias durante
cinco dias e nunca ninguém respondeu. Disse que se ouvia barulho e que
viu cortinas a mexer. A linha telefónica parecia estar cortada. A mãe sentiu-
se atormentada pela culpa por não se ter esforçado mais para contactar a
filha. Nunca conseguiu superar o que aconteceu. Posso…? – Virou para a
esquerda, em direção à cozinha.
Libby e Dido seguem-no.
– Então era aqui que as crianças aprendiam – diz ele. – As gavetas estavam
cheias de papel, livros escolares e cadernos de exercícios.
– Quem os ensinava?
– Não se sabe. Mas não podia ter sido Henry Lamb. Ele reprovou em todos
os exames do secundário e não fez qualquer curso superior. Martina não
tinha o inglês como primeira língua e, portanto, era improvável que fosse
ela. Assim sendo, é de supor que fosse um dos misteriosos «outros». E
provavelmente uma mulher.
– O que aconteceu a todos os livros escolares? – pergunta Libby.
– Não faço ideia – responde Miller. – Talvez ainda estejam aqui?
Libby olha para a grande mesa de madeira com dois conjuntos de gavetas de
cada lado no meio da sala. Sustém a respiração e abre uma de cada vez.
Estão vazias. Ela suspira.
– Provas para a polícia – diz Miller. – Eles podem muito bem tê-los
destruído.
– O que mais levou a polícia como prova? – pergunta Dido.
– As roupas. E também as roupas de cama. Tudo o que era produto
medicinal, frascos e tabuleiros. Sabão. Toalhas de rosto e corpo. Alimentos,
está claro, esse tipo de coisas. Mas, na verdade, não havia mais nada. Não se
viam quadros nas paredes, nem brinquedos, nem sapatos.
– Não havia sapatos? – repete Dido.
Libby assente. Foi um dos pormenores mais chocantes da informação
contida no artigo de Miller no Guardian. Uma casa cheia de pessoas e sem
um único par de sapatos.
Dido olha à sua volta.
– Nos anos setenta, esta cozinha devia ser do mais chique que havia.
– Pois – concorda Miller. – E também topo de gama. Praticamente tudo o
que havia na casa, antes de começarem a vender tudo, tinha sido comprado
no Harrods. O arquivista do departamento de vendas deixou-me ver todas
as faturas, desde a data em que Henry comprou a casa. De eletrodomésticos,
camas, abajures, sofás, roupas, entregas semanais de flores, horas marcadas
no cabeleireiro, artigos de higiene pessoal, toalhas, comida, tudo.
– Incluindo o meu berço.
– Sim, incluindo o seu berço. Que foi comprado, se bem me lembro, em
1977, quando Henry era ainda um recém-nascido.
– Então eu fui o terceiro bebé a dormir nele?
– Sim. Acho que sim.
Dirigem-se à pequena sala na frente da casa e Dido pergunta:
– Qual é a sua teoria? O que acha que aconteceu aqui?
– Em poucas palavras? Pessoas estranhas mudam-se para vir morar com
uma família rica. Acontecem coisas estranhas e todos morrem, mas há ainda
os filhos adolescentes que nunca mais se viram ou ouviram. E claro, há uma
bebé. Serenity. E havia provas de que vivia aqui mais alguém. Alguém que
desenvolveu o jardim de ervas medicinais. Passei um mês inteiro a tentar
localizar todos os herbalistas do Reino Unido e do estrangeiro que
pudessem estar a morar em Londres nessa época. Nada. Nem o mínimo
vestígio.
A divisão em que se encontram está revestida com painéis de madeira e o
piso é também de madeira. Há uma enorme lareira de pedra na parede mais
distante e os restos de um bar de mogno na outra.
– Encontraram aqui alguns equipamentos – acrescenta Miller, num tom
grave. – A princípio, a polícia achou que eram instrumentos de tortura, mas
segundo parece tratava-se de um equipamento caseiro para a prática de um
tipo de exercício físico designado calistenia. Quando foram encontrados, os
corpos de duas das vítimas suicidas estavam muito magros e
hipermusculados. Este era, sem dúvida alguma, o sítio onde se exercitavam.
Possivelmente para atenuarem os efeitos negativos de nunca saírem de casa.
Então, mais uma vez, passei um mês à procura de todos os professores de
calistenia que conseguisse encontrar, para ver se alguém sabia que esta
técnica era usada nesta casa em Chelsea, nos anos oitenta e início dos
noventa. Novamente, nada – suspira e, de repente, vira-se para Libby. –
Encontrou a escada secreta? Para o sótão?
– Sim, o advogado mostrou-ma quando me trouxe aqui.
– Viu os cadeados? Nas portas dos quartos das crianças?
Libby é percorrida por um arrepio.
– Nessa altura, ainda não tinha lido o seu artigo – diz –, e por isso não
prestei atenção. E da última vez que vim… – Ela faz uma pausa. – Da última
vez, pareceu-me ter ouvido alguém lá em cima, assustei-me e saí.
– Vamos dar uma vista de olhos?
– OK – assente.
– Em casa dos meus pais há uma destas escadas secretas – diz Dido,
segurando-se no corrimão enquanto sobem a escada estreita. – Quando era
pequena, dava-me sempre arrepios. Costumava pensar que um fantasma
zangado iria trancar as duas portas e eu ficaria ali presa para sempre.
Ao ouvi-la, Libby acelera o passo e chega, ligeiramente ofegante, ao patamar
do sótão.
– Está bem? – pergunta Miller, gentilmente.
– Hmm – murmura. – Mais ou menos.
Ele leva a mão ao ouvido.
– Ouviram isso? – pergunta.
– O quê?
– Aquele estalido…?
Ela acena com a cabeça, de olhos arregalados.
– É o que as casas antigas fazem quando têm demasiado calor ou demasiado
frio. Queixam-se. Foi o que ouviu no outro dia. A casa a queixar-se.
Pondera a hipótese de lhe perguntar se as casas também tossem quando têm
calor, mas decide não o fazer.
Miller tira o telemóvel do bolso e liga a câmara, filmando enquanto avança.
– Meu Deus – diz ele, num sussurro alto. – É isto. É isto.
Aponta a câmara para a porta do primeiro quarto à esquerda.
– Olhem – diz.
Olham as duas. Há um cadeado do lado de fora da porta. Seguem-no até à
porta seguinte. Outro cadeado. E outro e mais outro.
– Os quatro quartos trancados por fora. É onde a polícia acha que as
crianças dormiam. E foi aqui que encontraram alguns vestígios de sangue e
as marcas nas paredes. Vejam, até a casa de banho tinha um cadeado do lado
de fora. Continuamos?
Ele tem a mão na maçaneta de um dos quartos.
Libby assente.
Quando lera o artigo de Miller pela primeira vez, apenas passara levemente
os olhos pelos parágrafos que faziam referência aos quartos do sótão,
incapaz de suportar o pensamento do que isso sugeria. Agora, só quer
acabar com aquilo.
É um quarto com um bom tamanho, pintado de branco com pinceladas de
amarelo nos rodapés, chão nu, cortinas brancas esfarrapadas nas janelas,
colchões finos nos cantos, nada mais. O quarto seguinte é igual. E o seguinte
também. Libby sustém a respiração quando chegam ao último dos quartos,
convencida de que atrás da porta estará um homem. Mas não há homem
nenhum, apenas mais um quarto vazio e branco, com cortinas brancas e um
piso de tábuas nuas. Estão prestes a fechar a porta atrás de si quando Miller
se detém, aponta a câmara para a extremidade mais distante e fixa-a no
colchão.
– O que é?
Ele aproxima-se do colchão, afasta-o ligeiramente da parede e faz um zoom
para algo que ali está entalado.
– O que é?
Ele pega-lhe, colocando-a primeiro na frente da câmara, e depois observa-a.
– É uma meia.
– Uma meia?
– Sim. Uma meia de homem.
É uma meia vermelha e azul, uma estranha explosão de cor sobre a tela em
branco dos quartos do sótão.
– É estranho – diz Libby.
– É mais do que estranho – acrescenta Miller. – É impossível. Ora vejam.
Vira a meia e mostra-a a Libby e Dido.
A meia tem o logotipo da Gap.
– O que é? – pergunta Dido. – Não entendo.
– Este é o atual logotipo da Gap – explica ele. – Só passaram a usá-lo nos
últimos dois anos. – Cruza o olhar com o de Libby. – Esta meia é nova.
22

Às cinco horas de sexta-feira, Lucy liga a Michael de uma cabine telefónica


que fica logo na esquina. Ele atende de imediato.
– Calculei que pudesses ser tu – responde ele, e ela percebe o sorriso lascivo
por trás da sua voz.
– Como estás? – pergunta ela, num tom animado.
– Estou ótimo, e tu?
– Eu também.
– Já compraste o telemóvel? Este é um número de telefone fixo, não é?
– Uma pessoa que conheço vai arranjar-me um – mente, delicadamente. –
Um recondicionado. Devo recebê-lo amanhã.
– Boa – diz Michael –, boa. E como imagino que este não seja um
telefonema de cortesia, deves querer saber como me saí com o teu pequeno
pedido.
– Gostaria bastante, sim – ela ri, suavemente.
– Bem, vais-me amar, Lucy Lou – prosseguiu –, porque consegui o pacote
completo. Passaportes para ti, para o Marco, para a tua miúda e até para o
teu cão. Na verdade, paguei tanto pelos passaportes que me deram de graça
o do cão!
Sente a bílis sempre presente coagular-lhe o almoço. Não quer pensar no
dinheiro que Michael gastou com os passaportes nem o que vai querer em
troca. Força uma risada e diz:
– Oh! Que simpático da parte deles!
– Simpático, uma porra – exclama ele. E acrescenta: – Então, queres passar
por cá? Para vires buscá-los?
– Claro! – responde. – Mas hoje não. Talvez amanhã, ou domingo?
– Vem no domingo – diz ele. – Vem almoçar. É o dia de folga da Joy, por isso
temos a casa só para nós.
Lucy sente a bílis subir-lhe do estômago para a base da garganta.
– A que horas? – consegue perguntar, animada.
– Digamos à uma. Ponho uns bifes no barbecue. Podes preparar aquilo que
costumavas fazer, como é que se chama? Com pão e tomate?
– Panzanella.
– Isso mesmo. Meu Deus, era tão bom.
– Oh, obrigada. Espero ainda conseguir dar-lhe o toque de magia.
– Sim. O teu toque de magia. Tenho mesmo muitas saudades dele.
Lucy ri-se. Despede-se, dizendo que lá estará no domingo à uma. Pousa o
auscultador, corre para uma casa de banho e vomita.
23

Chelsea, 1990

Numa tarde de verão de 1990, quando eu tinha acabado de fazer treze anos,
encontrei a minha mãe no patamar. Estava a pôr pilhas de roupa de cama
limpa no armário aberto. Anteriormente, a nossa roupa era recolhida uma
vez por semana por uma pequena carrinha com letras douradas pintadas na
lateral, que alguns dias depois a entregava em embrulhos imaculados atados
com uma fita, ou pendurados em cabides de madeira sob invólucros de
plástico.
– O que aconteceu com o serviço de lavandaria? – perguntei.
– Qual serviço de lavandaria?
O seu cabelo estava muito comprido. Tanto quanto me tinha apercebido, ela
já não o cortava desde que as outras pessoas tinham passado a viver
connosco, dois anos antes. Birdie usava o cabelo comprido, bem como Sally.
A minha mãe costumava usar o cabelo num puxo. Agora já lhe passava dos
ombros e tinha uma risca ao meio. Questionei-me se ela estaria a tentar ser
como as outras mulheres, da mesma forma que eu estava a tentar ser como
Phin.
– Não te lembras? Daquele velhote que vinha na carrinha branca recolher as
nossas roupas, que era tão pequeno que tu ficavas preocupada que ele não
fosse capaz de carregar tudo aquilo?
O olhar da minha mãe desviou-se lentamente para a esquerda, como se
estivesse a recordar-se de um sonho, e ela disse:
– Ah, sim. Tinha-me esquecido dele.
– Como é que ele já não vem?
Ela esfregou as pontas dos dedos e eu olhei para ela, alarmado. Eu sabia o
que esse gesto significava, e era algo de que já suspeitava há muito tempo,
mas foi a primeira vez que mo confirmaram. Estávamos pobres.
– Mas o que aconteceu a todo o dinheiro do pai?
– Chiiu.
– Mas não compreendo.
– Chiiu – repetiu ela. E então puxou-me com delicadeza pelo braço até ao
seu quarto e fez-me sentar em cima da cama. Segurou-me uma mão entre as
dela e olhou-me fixamente. Reparei que não estava a usar qualquer
maquilhagem nos olhos e perguntei-me quando teria deixado de o fazer.
Tantas coisas tinham mudado tão lentamente durante um período de tempo
tão longo, que por vezes era difícil determinar o ponto em que algo se
modificara.
– Tens de prometer, prometer mesmo, que não falas disto a mais ninguém –
disse. – Nem à tua irmã. Nem às outras crianças. Nem aos adultos. A
ninguém, está bem?
Assenti com veemência.
– Só te estou a contar porque confio em ti. Porque és sensível. Portanto, não
me deixes ficar mal, OK?
Assenti ainda com mais veemência.
– O dinheiro do pai esgotou-se há já muito tempo.
Engoli em seco.
– O quê, todo?
– Praticamente.
– Então como é que vivemos?
– O pai tem andado a vender ações e quotas. Ainda temos umas contas
poupança. Se conseguirmos viver com trinta libras por semana,
aguentaremos pelo menos mais um par de anos.
– Trinta libras por semana? – Arregalei os olhos. A minha mãe costumava
gastar trinta libras por semana só em flores frescas. – Mas isso é impossível!
– Não é. David sentou-se connosco e arranjou uma solução.
– David? Mas o que percebe ele de dinheiro? Ele nem sequer tem uma casa!
– Chiu – pôs um dedo nos lábios e olhou, cautelosa, para a porta do quarto.
– Vais ter de confiar em nós, Henry. Nós somos os adultos e tu tens de
confiar em nós. Birdie ganha dinheiro com as aulas de violino. O David
ganha dinheiro com as aulas de exercícios. E Justin está a ganhar imenso
dinheiro.
– Está bem, mas não estão a dar-nos nenhum desse dinheiro, pois não?
– Bem, sim. Todos contribuem. Estamos a fazer com que tudo funcione.
E foi nesse momento que a verdade me atingiu. Pura e dura.
– Isto agora é uma comuna? – perguntei, horrorizado.
A minha mãe riu-se, como se fosse uma ideia totalmente descabida.
– Não! – respondeu. – Claro que não!
– O pai não pode simplesmente vender a casa? – perguntei. – Podíamos ir
morar para um pequeno apartamento em algum lugar. Seria muito bom. E
assim já teríamos muito dinheiro.
– Mas não se trata apenas de dinheiro, percebes isso, não percebes?
– E então? – perguntei. – De que se trata?
Ela suspirou, baixinho, e massajou a minha mão com os polegares.
– Bem, suponho que tem que ver comigo. Sobre o modo como me sinto em
relação a mim mesma, a tristeza que sinto há tanto tempo e como tudo isto
– fez um gesto em volta do grande quarto, com as suas cortinas esvoaçantes
e o lustre brilhante – não me deixa feliz, nada mesmo. E então David chegou
e mostrou-me outra forma de viver, menos egoísta. Temos demasiado,
Henry. Consegues ver isso? Demasiado e, quando isso acontece, arrasta-nos
para baixo. E agora que o dinheiro praticamente acabou, é um bom
momento para mudar, para pensar naquilo que comemos, no que vestimos,
no que gastamos e de que modo preenchemos os nossos dias. Temos de dar
alguma coisa ao mundo e não estar constantemente a retirar coisas dele.
Sabes, David… – quando ela pronunciou o nome dele, a sua voz soou como
uma colher contra um copo de vinho –, ele dá quase todo o seu dinheiro
para a caridade. E agora, sob a sua orientação, estamos a fazer o mesmo. Dar
aos necessitados é muito bom para a alma. E a vida que levávamos antes era
um verdadeiro desperdício. Estava tudo tão errado. Estás a perceber? Mas
agora, com o David aqui para nos guiar, podemos começar a restabelecer o
equilíbrio.
Dei a mim mesmo um momento para absorver todo o significado do que
fora dito.
– Então, eles vão ficar – acabei por dizer. – Para sempre?
– Sim – respondeu, com um pequeno sorriso. – Sim. Espero que sim.
– E somos pobres?
– Não. Não somos pobres, querido. Estamos aliviados. Estamos livres.
24

Libby, Miller e Dido vasculham a casa de cima a baixo, à procura de um


ponto por onde o misterioso homem das meias poderia ter entrado. Nas
traseiras da casa, há uma grande porta envidraçada que se abre para as
escadas de pedra que levam ao jardim. Está aparafusada por dentro e, como
verificam ao tentar abri-la, também está trancada. Glicínias crescem
densamente através das fendas entre a porta e a respetiva soleira, indicando
que não é aberta há muitas semanas, talvez até mesmo anos.
Tentam abrir as janelas de guilhotina, bastante empoeiradas, mas também
estão trancadas. Espreitam nos cantos escuros, em busca de portas secretas,
mas não há nenhuma.
Passam por todas as chaves do molho de Libby, uma a uma, até que, por fim,
encontram a que abre a porta envidraçada. Mas, ainda assim, a porta não se
move.
Miller espreita para baixo, através dos vidros.
– Foi fechada com um cadeado – diz ele –, por fora. Tem alguma chave
pequena nesse porta-chaves?
Libby encontra a chave mais pequena e passa-a a Miller.
– Importava-se se eu tirasse uma das vidraças?
– Tirar? – pergunta ela. – Com o quê?
Ele mostra-lhe o cotovelo.
Ela estremece.
– Então avance.
Ele usa a cortina de chita esfarrapada para suavizar o impacto. O vidro
racha-se e solta-se em dois pedaços perfeitos. Ele enfia o braço pelo buraco e
destranca o cadeado com a chave pequena. Finalmente, a porta abre-se,
desfazendo os nós das glicínias.
– Aqui – diz Miller, dirigindo-se ao relvado. – Era aqui que as drogas eram
cultivadas.
– As drogas que mataram os pais de Libby? – pergunta Dido.
– Sim. Atropa belladonna. Ou, por outras palavras, beladona. A polícia
encontrou um grande arbusto.
Caminham até ao fundo do jardim, sob a sombra fresca da copa de uma
enorme acácia. Há ali um banco curvo, para seguir a sombra da árvore,
voltado para as traseiras da casa. Mesmo durante o verão mais quente que
Londres conheceu em mais de vinte anos, o banco permanece húmido e
bolorento. Libby toca gentilmente no apoio de braço com as pontas dos
dedos. Imagina Martina Lamb ali sentada numa manhã ensolarada, com
uma caneca de chá pousada no mesmo sítio onde estão agora os seus dedos,
a observar os pássaros a voar lá em cima. Imagina a sua outra mão pousada
na barriga de grávida, e o seu sorriso ao sentir o bebé dar pontapés e mexer-
se dentro dela.
A seguir, imagina-a um ano depois, a tomar veneno com o jantar, depois
deitada no chão da cozinha, a morrer sem uma boa razão, deixando a sua
bebé sozinha lá em cima.
Libby retira a mão e vira-se abruptamente para olhar para a casa.
Dali conseguem ver as quatro grandes janelas que ocupam a parte de trás da
sala de estar. Em cima, veem outras quatro janelas mais pequenas, duas em
cada um dos quartos das traseiras, para além de uma janela mais pequena
no meio, no cimo do patamar. Acima dessas há oito janelas estreitas com
beirais, duas para cada quarto do sótão e uma pequena janela circular no
meio, onde fica a casa de banho. Mais acima um telhado plano, três
chaminés e o céu azul, mais além.
– Olhem! – diz Dido, pondo-se em bicos de pés e apontando, frenética. –
Olhem! Não está ali uma escada? Será uma escada de incêndio?
– Onde?
– Ali! Vejam! Escondida atrás daquela chaminé, da vermelha. Vejam.
Libby vê-a, repara no brilho de metal. O seu olhar segue para baixo até um
rebordo da alvenaria, um ressalto por cima dos beirais, depois um algeroz
que se liga a outro rebordo na lateral da casa, um pequeno salto até ao muro
do jardim adjacente, uma descida para uma espécie de bunker de cimento e,
finalmente, para o jardim.
Ela dá uma volta. Atrás está uma folhagem densa, limitada por um velho
muro de tijolos. Força-se a avançar através dela pelo único caminho
possível, enquanto os seus pés vão encontrando zonas nuas por entre as
ervas daninhas. As plantas estão presas a velhas teias de aranha que se
agarram às suas roupas e ao seu cabelo. Mas continua a andar. Consegue
sentir o caminho, já está entranhado nela, sabe aquilo que procura. E lá está,
um portão de madeira em mau estado, pintado de verde-escuro, com as
dobradiças penduradas, que dá para a extremidade repleta de vegetação do
jardim da casa de trás.
Miller e Dido estão logo atrás dela, a espreitar por cima do seu ombro para o
portão de madeira. Ela empurra-o com toda a força e perscruta o jardim dos
vizinhos.
Está com mau aspeto e mal tratado. No meio do relvado, vê-se um relógio
de sol pouco seguro, e alguns caminhos de cascalho empoeirados. Não há
mobiliário de jardim, nem brinquedos de crianças. E ali, na lateral da casa,
há um caminho que, visto daqui, parece conduzir diretamente à rua.
– Encontrei-o – diz Libby, tocando no cadeado que fora aberto com recurso
a um alicate. – Vejam. Quem quer que tenha andado a dormir na casa entra
por este portão, através do jardim, por cima daquela coisa de cimento ali –
condu-los de novo para o jardim –, até ao muro do jardim, por cima do
algeroz para aquela plataforma, lá em cima, depois para o ressalto e,
finalmente, para o telhado e para a escada. Só precisamos de descobrir onde
vai dar essa escada.
Olha para Miller. Ele olha para ela.
– Eu não sou lá muito ágil – diz ele.
Ela olha para Dido que enche as bochechas e declara:
– Oh, sinceramente.
Regressam à casa e aos quartos do sótão. E ali está, um pequeno alçapão de
madeira no teto do corredor. Libby sobe para os ombros de Miller e
empurra.
– O que vê?
– Um túnel cheio de pó. E outra porta. Levante-me mais para cima.
Miller resmunga e dá-lhe um novo impulso. Ela agarra-se a uma ripa de
madeira e iça-se. Ali em cima o calor é intenso e ela sente as roupas
colarem-se ao corpo com o suor. Rasteja ao longo do túnel e empurra o
alçapão de madeira seguinte, sendo de imediato atingida por um Sol forte,
glorioso. Encontra-se num telhado plano, onde há alguns vasos com plantas
mortas e duas cadeiras de plástico. Põe as mãos nas ancas e olha para a vista
dali de cima: em frente, está a vegetação ensolarada dos Embankment
Gardens, e mais além a faixa escura do rio. Atrás dela consegue ver o
entrelaçado de ruas estreitas que se estendem até King’s Road; uma
esplanada cheia de gente a beber, um patchwork de jardins traseiros e carros
estacionados.
– O que vês? – berra Dido lá de baixo.
– Consigo ver tudo – diz ela –, absolutamente tudo.
25

Marco vira-se para Lucy, com os olhos semicerrados.


– Porque é que não podemos ir? – pergunta. – Não percebo.
Lucy suspira, acerta o eyeliner, olhando para o pequeno espelho de mão e
diz:
– Porque sim, OK? Ele fez-me um enorme favor e pediu-me que fosse
sozinha. Portanto, vou só eu.
– E se ele te magoar?
Lucy impede-se de estremecer.
– Ele não me vai magoar, OK? Tivemos um casamento muito conturbado,
mas esse casamento já não existe. As coisas seguiram em frente. As pessoas
mudam.
Não consegue olhar para o filho enquanto lhe mente. Ele veria o medo nos
seus olhos. Perceberia o que ela estava prestes a fazer e não faria ideia do
motivo que a levava a fazer isso, porque não poderia imaginar como tinha
sido a sua infância, o que a levara a fugir vinte e quatro anos antes.
– Precisas de um código – diz Marco, com autoridade. – Eu ligo-te e, se
estiveres com medo, dizes apenas: Como está o Fitz? OK?
Ela acena com a cabeça e sorri.
– OK – puxa-o para si e beija-o atrás da orelha. Ele deixa.
Alguns minutos depois, na cozinha, Stella e Marco observam-na enquanto
ela sai.
– Estás bonita, mamã – diz Stella.
O estômago de Lucy afunda-se.
– Obrigada, querida. Regressarei por volta das quatro. Já terei os passaportes
e poderemos começar a planear a nossa viagem para Londres. – Agora sorri
abertamente, deixando ver os dentes. Stella abraça-lhe a perna. Passado um
momento, Lucy solta-se da filha e sai do edifício, sem olhar para trás.

As fezes do Fitz ainda ali estão. Têm em cima o dobro das moscas varejeiras.
Acha essa imagem estranhamente reconfortante.
Michael abre a porta. Tem os óculos de sol na cabeça e veste uns calções
largos e uma T-shirt branca brilhante. Ele pega-lhe no saco com compras, os
tomates, o pão e as anchovas que ela comprou pelo caminho, e aproxima-se
para lhe dar um beijo em ambas as faces.
Lucy consegue sentir o cheiro a cerveja no seu hálito.
– Estás mesmo bonita – diz ele. – Uau. Entra, entra.
Segue-o até à cozinha. Sobre o balcão estão dois bifes em cima de um papel,
e uma garrafa de vinho num balde de gelo prateado. Está a ouvir Ed Sheeran
no seu sistema de som Sonos e parece muito animado.
– Deixa-me preparar-te uma bebida – diz ele. – O que queres? Gin tónico?
Bloody Mary? Vinho? Cerveja?
– Pode ser uma cerveja, obrigada.
Ele entrega-lhe uma Peroni e ela bebe um gole. Lucy apercebe-se de que
deveria ter tomado um bom pequeno-almoço, já que sente esse primeiro
gole a subir-lhe diretamente à cabeça.
– Saúde – brinda ele, encostando a sua garrafa à dela.
– Saúde – repete ela. No balcão há uma tigela com as suas batatas fritas
favoritas e ela pega num grande punhado. Precisa de estar suficientemente
sóbria para manter o controlo, mas suficientemente bêbada para levar a cabo
o que foi ali fazer.
– Então… – Tira uma tábua de cortar de uma das gavetas, uma faca de outra
e pega nos tomates que estão no saco de compras. – Como está a correr a
escrita?
– Meu Deus, nem perguntes – responde ele, revirando os olhos. – Digamos
apenas que não foi uma semana muito produtiva.
– Acho que isso acontece muito, não é? É uma questão psicológica.
– Hmm – diz, passando-lhe um prato. – Por um lado. Por outro lado, todos
os bons escritores conseguem avançar. É como decidir não ir correr, porque
está a chover. É apenas uma desculpa. Portanto, tenho de me esforçar mais –
sorri e, por um instante, parece quase humilde, quase real, e por um
momento ela acha que talvez hoje as coisas não corram como ela pensou
que iriam correr, que talvez almocem apenas e conversem e a seguir ele lhe
dê os passaportes e a deixe ir com um simples abraço junto à porta.
– Parece-me bem – comenta ela, sentindo a faca superafiada de Michael a
deslizar pelos tomates macios como se fossem manteiga. – Acho que é um
trabalho como outro qualquer. Tens de avançar e acabar o que começaste.
– Exatamente – concorda ele. – Exatamente. – Acaba de beber a segunda
metade da cerveja e deita a garrafa vazia no caixote de reciclagem. Tira outra
do frigorífico e estende também uma a Lucy. Ela abana a cabeça e mostra-
lhe a sua garrafa, ainda quase cheia.
– Bebe – diz ele. – Tenho ali um Sancerre maravilhoso a refrescar para ti. O
teu favorito.
– Desculpa – diz ela, levando a garrafa aos lábios. – Já não bebo há muito
tempo.
– Não?
– Não intencionalmente – explica. – Só porque não tenho dinheiro para isso.
– Bem, vamos chamar-lhe «Operação Tirar Lucy da Abstinência». Que tal?
Vá lá. Bebe.
E ali está, aquele ponto, tão perto do amigável, mas apenas a um pequeno
passo da agressão. Não é um pedido despreocupado, mas uma ordem. Ela
sorri e bebe metade da garrafa.
Ele observa-a com atenção.
– Linda menina – elogia –, linda menina. Agora o resto.
Ela sorri sombriamente e engole a cerveja restante, quase se engasgando
com o líquido a descer tão depressa.
Ele sorri, como um tubarão.
– Oh, linda menina. Linda menina.
Tira-lhe a garrafa vazia e depois volta-se para tirar dois copos de vinho de
um armário.
– Vamos? – pergunta, fazendo um gesto em direção à porta que dá para o
jardim.
– Deixa-me só acabar isto – pede Lucy, apontando para os tomates, apenas
meio cortados.
– Acabas isso depois – ordena. – Vamos primeiro tomar um copo.
Ela segue-o até ao pátio, segurando a tigela de batatas fritas e a sua mala.
Ele serve dois copos grandes de vinho e empurra um sobre a mesa, na
direção dela. Brindam de novo e, então, ele prende-lhe o olhar.
– Então, Lucy Lou, vá, conta-me tudo. O que tens feito nos últimos dez
anos?
– Ah! – exclama ela, num tom um pouco estridente. – Por onde queres que
comece?
– Que tal começares pelo homem que te deu uma filha?
O estômago de Lucy dá uma reviravolta. Desde o momento em que Michael
pusera os olhos em Stella que sabia que ele iria ficar a pensar no facto de ela
ter sexo com outro homem.
– Oh, não há grande coisa para contar. Foi um desastre. Mas tenho Stella.
Sabes como é.
Ele inclina-se na sua direção, fixando-a com os seus olhos castanhos. Sorri,
mas o sorriso não lhe chega aos olhos.
– Não, na verdade não sei. Quem era? Onde o conheceste?
Ela pensa nos passaportes, que estarão em algum lugar daquela casa. Não se
pode dar ao luxo de o enfurecer. Não lhe pode dizer que o pai de Stella era o
amor da sua vida, o homem mais lindo que já tinha visto, que era um
pianista extraordinário, cuja música a levava às lágrimas, que ele lhe partira
o coração e que ela continuava a carregar consigo os pedaços partidos,
mesmo agora, três anos desde a última vez que o vira.
– Ele era um idiota – responde. Faz uma pausa e bebe um longo trago de
vinho. – Apenas um rapaz bonito, um criminoso, sem nada entre as orelhas.
Tive pena dele. Ele não me merecia e, acima de tudo, não merecia Stella –
fala com convicção, porque enquanto olha Michael diretamente nos olhos,
ele não imagina sequer que ela o está a descrever.
Essa descrição parece saciar Michael por um momento. O seu sorriso
suaviza-se e ele parece novamente sincero.
– E onde está agora, esse idiota?
– Fugiu. Voltou para a Argélia. Despedaçou o coração da mãe. E ela culpa-
me – encolhe os ombros. – Mas, de qualquer maneira, ele iria sempre
desiludi-la. Iria sempre desiludir todos. Era esse género de pessoa.
Ele volta a inclinar-se para ela.
– Amava-lo?
Ela sopra, sarcástica.
– Meu Deus – exclama, pensando apenas em Michael. – Não.
Ele assente com a cabeça, como se estivesse a dar a sua aprovação.
– E houve mais alguém? Ao longo dos anos?
Ela abana a cabeça. É outra mentira, mas esta mais fácil de contar.
– Não – responde. – Ninguém. Limito-me a sobreviver com duas crianças
pequenas. Sabes, mesmo que eu tivesse conhecido alguém, nunca teria
funcionado. Do ponto de vista logístico. – Volta a encolher os ombros.
– Sim, estou a ver. Sabes, Lucy – olha para ela, sério –, eu teria ajudado
sempre que me pedisses. Só tinhas de pedir.
Ela abana a cabeça, triste.
– Pois. Eu sei. Demasiado orgulhosa.
Está tão longe da verdade que chega a ser engraçado, mas ela acena com a
cabeça, conscientemente.
– Conheces-me tão bem – diz, e ele ri-se.
– Em muitos aspetos, éramos a pior, a pior combinação de pessoas possível.
Jesus, lembras-te do que fazíamos? Éramos loucos! Mas, em outros aspetos,
éramos absolutamente incríveis, não é verdade?
Lucy obriga-se a sorrir e aquiesce, em sinal de concordância, mas não
consegue forçar-se a dizer «sim».
– Talvez nos devêssemos ter esforçado mais – diz ele, enchendo o seu copo e
depois o de Lucy, ainda que ela apenas tivesse bebido uns dois goles.
– Por vezes, a vida simplesmente acontece – diz, sem qualquer sentido.
– É bem verdade, Lucy – concorda, como se ela tivesse dito algo muito
profundo. Dá um grande gole no vinho e pede: – Conta-me tudo sobre o
meu filho. É inteligente? É desportista?
É gentil? pergunta ela, silenciosamente. É bom? Cuida bem da irmãzinha?
Faz-me manter os pés no chão? Cheira bem? Sabe cantar? Faz belos retratos de
pessoas? Merece melhor do que uma pessoa como eu e do que a vida de merda
que lhe proporcionei?
– É bastante inteligente – responde. – É médio a matemática e ciências, e
excelente em línguas, artes, inglês. E não, não é do tipo desportivo.
Absolutamente nada.
Olha para ele com firmeza, procurando uma sombra de deceção no seu
olhar. Mas ele parece pragmático.
– Não se pode ser bom em tudo – diz Michael. – E ele é realmente muito
bonito. Já se interessa por miúdas?
– Ele só tem doze anos – diz Lucy, de forma um pouco brusca.
– Já é idade suficiente – replica ele. – Meu Deus, não achas que ele pode ser
gay, pois não?
Tem vontade de atirar o vinho à cara de Michael e de partir. Ao invés,
limita-se a dizer:
– Quem sabe? Não há sinais disso. Mas, tal como disse, ele ainda não está
interessado nesse tipo de coisas. Bem – continua, mudando de assunto –,
tenho de voltar à panzanella. Ainda precisa de repousar um bocado antes de
a comermos.
Levanta-se. Ele levanta-se também e diz:
– E eu vou preparar o churrasco.
Ela dirige-se para a cozinha mas, antes de conseguir avançar, ele agarra-lhe
nas mãos e vira-a para ele. Lucy percebe que os olhos dele parecem não se
conseguir focar e ainda é apenas uma e meia. Ele pousa-lhe as mãos nas
ancas e puxa-a para si. Depois, afasta-lhe o cabelo da orelha, inclina-se para
ela e sussurra:
– Nunca deveria ter-te deixado ir.
Os seus lábios roçam os dela, brevemente, e a seguir dá-lhe uma palmadinha
no rabo e fica a observá-la, enquanto ela entra na cozinha.
26

Chelsea, 1990

Pouco depois de a minha mãe me ter contado que David nos obrigava a
doar todo o nosso dinheiro à caridade e que iria morar connosco para
sempre, vi-o a beijar Birdie.
Nessa altura, para mim isso era algo repugnante, a vários níveis.
Em primeiro lugar, como sabem, eu achava Birdie fisicamente repulsiva. A
ideia dos seus pequenos lábios duros contra a boca grande e generosa de
David, as mãos dele nas ancas ossudas dela, a sua língua nojenta
perseguindo a dele dentro da caverna húmida formada pelas duas bocas.
Ugh.
Em segundo lugar, eu era uma espécie de tradicionalista e achava a visão do
adultério chocante.
E terceiro: bem, a terceira coisa terrível não me atingiu de imediato. Na
verdade, não poderia, porque as implicações do que eu tinha visto sem
querer não eram totalmente óbvias. Mas, sem dúvida, senti algo semelhante
a medo ao ver David e Birdie juntos, uma sensação inata de que poderiam
despertar um no outro coisas que seria melhor ficarem enterradas.

Aconteceu num sábado de manhã. Sally estava fora, a tirar fotografias num
local de filmagens algures. Justin tinha ido montar uma barraquinha num
mercado, para vender os seus remédios à base de ervas. Os meus pais
estavam sentados no jardim com os seus roupões, a ler os jornais e a beber
chá em canecas. Eu tinha dormido até às oito e meia, o que para mim era
tarde. Sempre fui madrugador. Raramente dormia para além das nove horas,
mesmo durante a adolescência. Mal esfregara o sono dos olhos e saíra do
meu quarto quando os vi, agarrados um ao outro, à porta do quarto de
David. Ela tinha uma camisa de noite de musselina. Ele um robe curto de
algodão preto atado com um cinto. A perna dela estava presa entre os
joelhos dele. Os corpos unidos. Ele tinha uma mão sobre o pálido pescoço
dela. Ela tinha uma mão na nádega esquerda dele.
Retirei-me imediatamente para o meu quarto, com o coração a bater
desenfreado, o estômago totalmente revirado. Pus as duas mãos na garganta,
tentando reprimir a náusea e o horror. Silenciosamente, sussurrei a palavra
foda-se. Depois, voltei a repeti-la, com todas as letras. Abri uma fresta da
minha porta um momento depois e eles já tinham desaparecido. Não sabia o
que fazer. Precisava de contar a alguém. Precisava de contar a Phin.

Phin afastou do rosto as madeixas louras da franja. Absurdamente, enquanto


passava pela puberdade, ia ficando ainda mais bonito. Tinha apenas catorze
anos e mais de um metro e oitenta de altura. Nunca tivera uma única
borbulha, pelo menos que eu tivesse visto. E, se tivesse alguma, certamente
eu teria notado, pois estudar o seu rosto era o meu passatempo.
– Preciso de falar contigo – sibilei num tom urgente, mesmo em cima do seu
rosto. – É muito, muito importante.
Caminhámos até à extremidade do jardim, onde o banco curvo apanhava o
sol da manhã. Com as árvores em flor e carregadas de folhas não podíamos
ser vistos da casa. Ficámos de frente um para o outro.
– Acabei de ver uma coisa – disse eu. – Algo realmente muito mau.
Phin semicerrou os olhos. Percebi que ele estava a pensar que eu ia dizer que
tinha visto a gata a lamber a manteigueira ou algo igualmente infantil e
banal. Percebi que ele não confiava na minha capacidade de transmitir
notícias genuinamente chocantes.
– Vi o teu pai. E a Birdie…
A expressão de impaciência indulgente mudou, e ele olhou para mim
alarmado.
– Estavam a sair do quarto da Birdie e do Justin. E estavam a beijar-se.
Estremeceu ligeiramente ao ouvir estas palavras. Eu tinha causado impacto.
Finalmente, após dois anos, Phin estava mesmo a olhar para mim. Vi um
músculo contrair-se no seu maxilar.
– Estás a mentir?! – perguntou ele, quase rosnando.
Abanei a cabeça.
– Juro – disse. – Vi-os. Agora mesmo. Há cerca de vinte minutos. Juro.
Vi os olhos de Phin encherem-se rapidamente de lágrimas e percebi o seu
esforço para as conter. Algumas pessoas dizem-me que não mostro empatia.
Talvez seja verdade. Nem por um instante me ocorreu que Phin pudesse
ficar perturbado. Chocado, sim. Escandalizado. Enojado. Mas perturbado,
não.
– Lamento – disse. – Eu só…
Ele abanou a cabeça. O seu belo cabelo louro caiu-lhe sobre o rosto e ao
afastá-lo revelou uma expressão de coragem sombria de partir o coração.
– Tudo bem – atalhou. – Ainda bem que me contaste.
Fez-se um momento de silêncio. Tinha toda a atenção de Phin. Mas
magoara-o. Olhei para as suas mãos grandes e bronzeadas entrelaçadas à
frente e apeteceu-me pegar-lhes, acariciá-las, levá-las aos meus lábios, beijá-
las para afastar a dor. Senti uma terrível onda de desejo físico a trepar por
mim, desde o meu âmago, uma ânsia agonizante. Rapidamente, desviei o
olhar das suas mãos para o chão, entre os meus pés descalços.
– Vais dizer à tua mãe? – acabei por perguntar.
Abanou a cabeça. O cabelo voltou a cair e a esconder-lhe o rosto.
– Isso iria matá-la – limitou-se a responder.
Acenei em concordância, como se percebesse o que ele queria dizer. Mas na
verdade não percebia. Eu tinha apenas treze anos. E uns treze anos recentes.
Sabia que achara nojenta a imagem de Birdie e David a beijarem-se
apaixonadamente, com as suas roupas de dormir. Sabia que era errado um
homem casado estar a beijar uma mulher que não era a sua. Mas não
conseguia extrapolar esses sentimentos. Não conseguia imaginar como isso
faria outra pessoa sentir-se. Não percebia por que razão Sally haveria de
querer morrer por o marido ter beijado Birdie.
– Vais contar à tua irmã?
– Não vou contar a ninguém – retrucou. – Porra! E tu também não podes
contar. A sério. Não contes a ninguém. Não faças nada, a menos que eu te
diga, OK?
Voltei a acenar com a cabeça. Não sabia como lidar com essa situação e
senti-me satisfeito por poder seguir as indicações de Phin.
O momento estava a perder-se. Eu sentia-o. Percebia que ele estava prestes a
levantar-se e a ir para dentro de casa e que não me convidaria para entrar
com ele. Eu ficaria ali no banco, a olhar para as traseiras da casa, com todo
aquele tumulto ainda a agitar-se dentro de mim, toda aquela necessidade e o
desejo físico. E sabia que apesar do que acabara de acontecer, voltaríamos ao
normal, àquela atitude recíproca reservada e educada.
– Vamos sair hoje – sugeri, sem fôlego. – Vamos fazer alguma coisa.
Ele virou-se para olhar para mim.
– Tens dinheiro? – perguntou.
– Não. Mas posso arranjar.
– Eu também vou tentar arranjar – disse ele. – Encontramo-nos no corredor
às dez.
Então, levantou-se e partiu. Fiquei a vê-lo afastar-se, a forma da sua coluna
sob a T-shirt, a largura dos seus ombros, os seus pés grandes a pisarem o
chão, o modo dramático como a sua bela cabeça se inclinava.

Encontrei um punhado de moedas nos bolsos do casaco Barbour do meu


pai. Tirei duas libras da carteira da minha mãe. Penteei a franja e vesti o
casaco de jersey com fecho que a minha mãe me tinha comprado algumas
semanas antes, numa loja barata da Oxford Street, que era para aí umas cem
vezes mais bonito do que qualquer outra coisa que eu já tivesse comprado
nos armazéns Harrods ou Peter Jones.
Phin estava sentado no seu trono na base das escadas, com um livro nas
mãos. Até hoje, é sempre assim que o imagino – exceto nas minhas fantasias,
em que ele baixa o livro, os seus olhos se iluminam ao ver-me e sorri. Na
realidade, ele mal reparou na minha chegada.
Levantou-se, devagar, e olhou em volta da casa, de um modo furtivo.
– A costa está livre – fez um gesto para que eu o seguisse até à porta da
frente.
– Aonde vamos? – perguntei, correndo atrás dele, sem fôlego.
Vi-o levantar um braço e caminhar até à berma do passeio. Um táxi parou e
nós entrámos.
– Não tenho dinheiro para táxis. Tenho apenas duas libras e cinquenta –
disse eu.
– Não te preocupes com isso – replicou ele, friamente. Tirou um rolo de
notas de dez libras do bolso do casaco e levantou uma sobrancelha, olhando
para mim.
– Safa! Onde arranjaste isso?
– No esconderijo secreto do meu pai.
– O teu pai tem um esconderijo secreto?
– Sim. Ele acha que ninguém sabe. Mas eu sei tudo.
– Ele não vai reparar?
– Talvez – respondeu. – Ou talvez não. De qualquer maneira, não há forma
de provar quem o tirou.
O táxi deixou-nos na Kensington High Street. Levantei os olhos para o
edifício à nossa frente: uma fachada ampla, uma dúzia de janelas em arco
por cima, as palavras «kensington market» escritas em letras cromadas.
Ouvi a música que vinha da entrada principal, algo metálico, pulsante,
perturbador. Segui Phin até ao interior e deparei-me com um assustador
labirinto de corredores sinuosos, como túneis de coelhos, cada um
abrigando várias pequenas lojas, nas quais se viam homens de rosto
inexpressivo e mulheres com cabelos arco-íris, olhos com contornos de lápis
preto, couro rasgado, lábios brancos, chiffons esfarrapados, collants de rede,
studs, plataformas, piercings no nariz, piercings faciais, coleiras, poupas,
cortinas, crinolinas, louras oxigenadas, vestidos rosa aos quadradinhos,
botas de cano alto em PVC, botas pixie, blusões de basebol, patilhas,
penteados com puxos em forma de colmeia, vestidos de baile, lábios pretos,
lábios vermelhos, pastilha elástica, pessoas a comer um rolo de bacon, a
beber chá numa chávena pintada com flores e com a unha do dedo
mindinho pintada de preto esticada, pessoas a segurar um furão com uma
trela de couro com tachas.
Cada loja tinha a sua própria música a tocar. Era como mudar de estação de
rádio à medida que íamos andando. Phin ia mexendo nas coisas enquanto
passávamos: um blusão de basebol vintage, uma camisa de seda para
bólingue com o nome «Billy» bordado nas costas, um suporte de vinis, um
cinto de couro cravejado.
Eu não toquei em nada. Estava apavorado. Na pequena loja que se seguia
via-se o fumo de incenso a dissipar-se no ar. Do lado de fora, uma mulher
com cabelos e pele brancos sentada num banquinho olhou-me brevemente
com uns olhos azuis gelados e eu senti um aperto no coração.
Na loja seguinte, uma mulher estava sentada com um bebé ao colo. Não
conseguia imaginar que este fosse um bom lugar para um bebé estar.
Vagueámos pelos corredores deste estranho lugar durante uma hora.
Comprámos rolinhos de bacon e chá muito forte num café esquisito no
último andar e observámos as pessoas. Phin comprou um lenço estampado
preto e branco, do género que é usado pelos homens no Sara, e uns singles de
quarenta e cinco rotações de música de que eu nunca tinha ouvido falar.
Tentou convencer-me a deixá-lo comprar-me uma T-shirt preta com
desenhos de cobras e espadas. Recusei, embora uma parte de mim até
tivesse gostado dela. Ele experimentou um par de sapatos de camurça azul
com solas em crepe, a que se referiu como brothel creepers. Viu-se a si
mesmo num espelho de corpo inteiro, afastou a franja do rosto e
transformou o cabelo numa poupa, tornando-se subitamente um belo galã
dos anos 1950, uma espécie de cruzamento de Montgomery Clift com James
Dean.
Comprei um bolo tie13 com uma cabeça de carneiro prateada. Custou-me
duas libras. Um homem que parecia um cowboy punk colocou-a num saco
de papel.
Uma hora mais tarde, emergimos na normalidade de um sábado de manhã,
com famílias a fazer compras, pessoas a entrarem e a saírem dos autocarros.
Andámos cerca de um quilómetro e meio até ao Hyde Park, onde nos
sentámos num banco.
– Olha – disse Phin, abrindo os dedos da mão direita.
Olhei para um pequeno saco transparente amarrotado. Lá dentro estavam
dois minúsculos quadrados de papel.
– O que é isso? – perguntei.
– É ácido – respondeu.
Não percebi.
– LSD – explicou.
Eu já tinha ouvido falar em LSD. Era uma droga, qualquer coisa relacionada
com hippies e alucinações.
Arregalei os olhos.
– O que… Mas como…? Porquê?
– O tipo na loja de discos. Ele é que me deu a entender que tinha. Eu não
perguntei. Acho que pensou que eu era mais velho.
Olhei para os minúsculos quadrados de papel no pequeno saco. A mente
divagou com as possíveis implicações.
– Tu vais…?
– Não. Pelo menos hoje não. Talvez noutra ocasião? Quando estivermos em
casa? Estás pronto para isso?
Acenei com a cabeça. Eu estava pronto para qualquer coisa que implicasse
passar tempo com ele.

Phin comprou-nos sanduíches num hotel chique com vista para o parque.
Vinham servidas em pratos com rebordos prateados e acompanhadas de
faca e garfo. Sentámo-nos junto a uma janela alta e perguntei-me como os
outros nos veriam: o jovem alto e bonito e o seu pequeno amigo com cara de
bebé e um casaco de malha desleixado.
– O que achas que os adultos estão a fazer agora? – perguntei.
– Estou-me a cagar – respondeu Phin.
– Podem ter chamado a polícia.
– Eu deixei um bilhete.
– Oh – exclamei, surpreendido com esse gesto atencioso. – O que
escreveste?
– Escrevi eu e o Henry vamos sair. Voltamos mais tarde.
Eu e o Henry. O meu coração deu um salto.
– Contas-me o que aconteceu na Bretanha? – perguntei. – Porque vieram
todos embora?
Ele abanou a cabeça.
– Não vais querer saber.
– Não. Eu quero saber. O que aconteceu?
– Foi o meu pai – suspirou. – Ficou com uma coisa que não era dele.
E depois disse que pensava que era suposto partilharem tudo, mas aquilo era
uma relíquia de família. Valia cerca de mil libras. Levou-a para a cidade,
vendeu-a, e depois fingiu ter visto «alguém» a assaltar a casa e a roubá-la.
Manteve o dinheiro escondido. O pai daquela família descobriu através de
rumores. Foi um autêntico pandemónio. Fomos expulsos no dia seguinte –
encolheu os ombros. – E houve mais coisas. Mas esta foi a principal.
De súbito, percebi por que razão ele não sentia culpa por tirar o dinheiro ao
pai.
David afirmava estar a ganhar muito dinheiro com as aulas de ginástica, mas
quanto dinheiro poderia realmente ganhar com um punhado de hippies no
salão de uma igreja, duas vezes por semana? Teria vendido alguma coisa
nossa debaixo dos nossos narizes? Ele já fizera uma lavagem cerebral à
minha mãe para que o deixasse tratar das nossas finanças. Talvez até
estivesse a levantar dinheiro diretamente da nossa conta bancária. Ou talvez
este fosse o dinheiro que a minha mãe pensava que ia para a caridade, para
ajudar os pobres.
Todas as minhas dúvidas em relação a David Thomsen começaram
a transformar-se em algo concreto e real.
– Gostas do teu pai? – perguntei, brincando com o raminho de agrião na
beira do prato.
– Não – respondeu, simplesmente. – Desprezo-o.
Assenti com a cabeça, mais descansado.
– E tu? – perguntou. – Gostas do teu pai?
– O meu pai é um fraco – respondi, sabendo com total clareza que isso era
verdade.
– Todos os homens são fracos – disse Phin. – É esse o grande problema do
mundo. Demasiado fracos para amar devidamente. Demasiado fracos para
errar.
A força desta declaração fez-me suster a respiração. Soube de imediato que
era a maior verdade que já tinha ouvido. A fraqueza dos homens está na raiz
de todas as coisas más que já aconteceram.
Observei Phin enquanto tirava duas notas de dez libras do maço para pagar
aquelas sanduíches caras.
– Desculpa não te poder pagar – disse-lhe.
Ele abanou a cabeça.
– O meu pai vai ficar com tudo o que vocês têm e depois vai destruir a vossa
vida. Isto é o mínimo que eu posso fazer.

13
Um bolo tie, ou bootlace tie (Reino Unido), é um cordão que passa por baixo do colarinho de uma
camisa e que é preso à frente por uma peça decorativa de metal, abaixo do pescoço. É um ornamento
originalmente norte-americano, cujo uso se estendeu a outros países. (N. da T.)
27

Libby, Dido e Miller saem, trancam a casa e vão até um bar. É o pub que
Libby viu do telhado da casa. Está apinhado, mas conseguem encontrar uma
mesa alta na esplanada e arrastam até ela bancos de outras mesas.
– Quem acham que é? – pergunta Dido, mexendo o seu gin tónico com a
palhinha.
– Não é nenhum sem-abrigo. Não há por ali tralha suficiente – responde
Miller. – Se alguém estivesse realmente a viver ali, haveria muito mais coisas.
– Então acha que é alguém que só aparece de vez em quando? – pergunta
Libby.
– Acho que sim.
– Então havia realmente alguém lá em cima quando ali estive no sábado?
– É também o que acho.
Libby estremece.
– Ouçam – continua Miller –, sabem o que eu penso? Nasceu em junho de
1993, certo?
– Dezanove de junho. – Sente um arrepio ao dizer a data. Como é que
alguém sabe realmente? Talvez isso tenha sido inventado. Pelos serviços
sociais? Pela sua mãe adotiva? Sente que as suas certezas em relação a si
mesma começam a resvalar.
– Certo. Então os seus irmãos conheceriam a sua data de nascimento, já que
quando nasceu eles eram adolescentes. E se, de alguma forma, ficaram a
saber que a casa lhe estava destinada no seu vigésimo quinto aniversário,
poderia fazer sentido que eles tentassem regressar a casa. Para a conhecer…
Libby sobressalta-se.
– Então acha que pode ser o meu irmão?
– Acho que pode ser Henry, sim.
– Mas se ele estava na casa e sabia que era eu, porque é que não desceu para
me ver?
– Bem, isso não sei.
Libby pega no seu copo de vinho, aproxima-o brevemente dos lábios, mas
volta a pousá-lo.
– Não – diz ela, vigorosamente. – Isso não faz sentido.
– Talvez ele não te quisesse assustar? – sugere Dido.
– E não me teria deixado um bilhete? – replica. – Não teria entrado em
contacto com o advogado, dizendo-lhe que queria encontrar-se comigo? Em
vez disso, esconde-se no sótão como um esquisitoide.
– Bem, talvez ele seja mesmo um esquisitoide – declara Dido.
– O que descobriu sobre ele? – pergunta Libby a Miller. – Para além de ser
meu irmão?
– Na verdade, praticamente nada – responde Miller. – Sei que frequentou a
Portman House School dos três aos onze anos. Os seus professores diziam
que era um rapaz inteligente, mas um pouco convencido. Não tinha amigos.
E depois saiu em 1988, foi-lhe oferecida uma vaga no St. Xavier College, em
Kensington, mas não a aproveitou. E essa foi a última vez que alguém ouviu
falar dele.
– Não percebo – insiste Libby. – Andar por ali a espreitar, esgueirando-se
entre túneis e arbustos, escondendo-se no andar de cima, quando sabia que
eu estava lá em baixo. Tem a certeza de que é Henry?
– Bem, não, claro que não. Mas quem mais poderia saber que a Libby lá ia
estar? Quem mais saberia como entrar na casa?
– Um dos outros – responde ela. – Talvez seja um dos outros.
28

Lucy verifica as horas no telemóvel, enquanto Michael se distrai


momentaneamente com uma vespa que sobrevoa o seu prato. Tenta bater-
lhe com o guardanapo, mas ela insiste e continua a voltar.
São quase três horas. Ela quer estar em casa por volta das quatro. Precisa dos
passaportes, mas também sabe que ao pedir-lhos estará a acelerar a
inevitável jornada em direção à cama de Michael.
Ela começa a limpar os pratos.
– Deita aqui – diz-lhe. – Vamos levar isto para dentro, para te livrares da tua
irritante amiga.
Ele tem os olhos vidrados e sorri-lhe com gratidão.
– OK. Boa ideia, e aproveitamos também para tomar um café.
Ela lidera o caminho até à cozinha e começa a encher a máquina de lavar
louça. Ele observa-a, enquanto a máquina de café mói os grãos.
– Manténs a tua boa figura, Lucy – comenta. – Nada mal para uma mãe de
quarenta anos e dois filhos.
– Trinta e nove. – Ela força um sorriso e coloca dois garfos no cesto dos
talheres. – Mas obrigada.
O ambiente está um pouco estranho, ligeiramente azedo. Deixaram passar
demasiado tempo para o que vem a seguir. Também beberam e comeram
demais e ficaram muito tempo sentados no ar lânguido do jardim. Lucy diz:
– Em breve preciso de voltar para junto das crianças.
– Oh, o Marco já é um rapaz crescido. Pode ficar a tomar conta da irmã mais
um bocadinho.
– Sim, é verdade, mas a Stella fica um pouco ansiosa quando não está
comigo.
Apercebe-se de que o maxilar dele se contrai um pouco. Michael não gosta
de ouvir falar sobre a fraqueza das outras pessoas. É algo que abomina.
– Então – diz com um suspiro –, suponho que queres os passaportes?
– Sim. Por favor.
O seu coração bate com tanta força por baixo das costelas que ela consegue
senti-lo nos canais auditivos.
Ele inclina a cabeça e sorri-lhe.
– Mas não precisas de te apressar, pois não?
Ele dirige-se ao seu escritório e ela ouve-o a abrir e a fechar gavetas.
Regressa um momento depois, com os passaportes numa bolsinha de feltro
na mão. Ele acena-lhe.
– Sou um homem de palavra – diz, enquanto avança lentamente na sua
direção, de olhos fixos nela, a balançar o saco à sua frente.
Lucy não percebe o que é que ele pretende. Está à espera de que ela lhos
arranque da mão? Que vá atrás dele? O quê?
– Obrigada – diz, sorrindo nervosamente.
E, de repente, ele está de pé encostado a ela – que fica com o fundo das
costas pressionado contra o balcão da cozinha – com o saco de feltro
apertado numa mão, e a boca a deslizar para a curva do seu pescoço. Lucy
sente os lábios dele na sua garganta. Ouve-o gemer.
– Oh, Lucy, Lucy, Lucy – diz. – Meu Deus, cheiras tão bem. Estás tão… –
Aperta-se contra ela. – É tão bom. Tu estás… – geme de novo e a sua boca
encontra a dela. Ela beija-o também. É por isso que está ali. Veio para fazer
sexo com Michael e agora vai fazê-lo, como já fez antes e vai fazer de novo,
ela é capaz, especialmente se fingir que ele é Ahmed, ou até que é apenas um
estranho… então sim, ela consegue fazer isto, consegue fazê-lo.
Deixa-o meter a língua na sua boca e fecha os olhos, com muita, muita
força. As mãos dele empurram-na por trás, para cima do balcão. Pega-lhe
nas pernas e coloca-as de cada lado do seu corpo, segurando-lhe os
tornozelos com força suficiente para fazê-la estremecer, mas ela não para, ela
continua, porque foi isso que foi ali fazer. Atrás deles, a máquina de café
borbulha e assobia. Ela bate num copo vazio, que rola pelo balcão e bate
num dos lados da chaleira. Tenta afastar a mão do copo partido, mas
Michael está a empurrá-la para mais perto dos cacos, levantando-lhe a saia e
procurando o elástico das suas cuecas. Ela tenta mover-se sobre o balcão
para se afastar dos vidros, mas não quer interromper o momento, precisa
que aconteça para que fique resolvido, para que possa puxar as cuecas para
cima, agarrar nos passaportes e voltar para casa para os seus bebés. Procura
concentrar-se em ajudá-lo a tirar-lhe as cuecas, mas sente o caco de um
vidro sob as suas costas, pressionando-se contra a carne. Tenta uma última
vez chegar-se mais para o outro lado do balcão e então Michael afasta-se, de
repente, e diz:
– Porra, para de fugir. Merda. – E então encosta-se a ela com mais força e
Lucy sente o vidro perfurar-lhe a pele, fazendo-a saltar para a frente e gritar
de dor.
– Que merda foi esta agora? Que porra!
Quase em câmara lenta, ela apercebe-se da mão dele a mover-se para baixo
na direção do seu rosto e então sente os seus dentes a vibrar dentro da
cabeça e o cérebro a bater no interior do crânio quando ele a atinge.
Agora, o sangue quente escorre-lhe do fundo das costas.
– Estou magoada – diz. – Olha, foi um vidro e…
Mas ele não a ouve. Pelo contrário, volta a empurrá-la sobre o balcão e um
vidro perfura-lhe uma outra parte das suas costas. De súbito, ele já está
dentro dela e tapa-lhe a boca com uma mão. Não era assim que deveria ter
sido. Ia ser consensual. Ela ia deixar que ele o fizesse. Mas agora ela está
magoada, há sangue e sente o cheiro da carne grelhada na mão dele. Percebe
a fúria no seu rosto e só quer agarrar nos passaportes, só quer a merda dos
passaportes, não quer isto… até que a sua mão encontra uma faca. A faca
que usou para cortar os tomates, que deslizou por eles como se fossem
manteiga e que agora mergulha num dos lados do corpo de Michael, no
espaço por baixo da bainha da T-shirt, naquela parte macia e tenra onde a
pele é como a de uma criança, onde entra tão facilmente que ela mal se
apercebe do que faz.
Lucy vê os olhos dele enevoarem-se brevemente com a confusão e depois
desanuviarem, ao compreender o que se passava. Michael sai de dentro dela
e cambaleia para trás. Olha para o sangue a jorrar do buraco no seu corpo e
tapa-o com as mãos, mas o sangue continua a sair.
– Porra, Lucy. Que merda fizeste? – Fixa-a com os olhos arregalados,
incrédulo. – Ajuda-me. Porra.
Ela vai buscar panos da louça e coloca-os nas mãos dele.
– Pressiona com isto – diz ela, sem fôlego. – Pressiona com força.
Ele pega nos panos e pressiona-os sobre o ferimento, mas as suas pernas
cedem de imediato e ele cai no chão. Ela tenta ajudá-lo de novo, mas ele
afasta-a. De súbito, Lucy apercebe-se de que Michael está a morrer. Imagina-
se a ligar para os serviços de emergência. Imagina-os a chegar e a perguntar-
lhe o que tinha acontecido. Explicaria que ele a tinha violado. Havia provas.
O copo partido e o vidro ainda enfiado nas suas costas seria uma prova. E o
facto de ele ainda ter as calças em baixo, nos tornozelos. Sim, iriam acreditar
nela. Teriam de acreditar.
– Vou chamar uma ambulância – diz a Michael, que tem os olhos fixos no
vazio. – Continua a respirar. Respira. Eu vou ligar.
Com os dedos a tremer, tira o telemóvel da mala, liga-o e está prestes a
pressionar o primeiro dígito quando toma consciência de que mesmo que
acreditem nela não a irão libertar. Terá de permanecer em França, de
responder a uma série de perguntas. Terá de revelar que se encontra ali
ilegalmente, que é como se não existisse, os filhos ser-lhe-ão retirados e
tudo, absolutamente tudo, se irá precipitar de uma forma rápida e horrível,
como um pesadelo.
O seu dedo continua parado sobre o ecrã do telemóvel. Olha para Michael.
Ele está a tremer e o sangue continua a jorrar-lhe da ferida. Lucy sente-se
mal e vira-se para o lava-louças, a respirar com dificuldade.
– Oh, meu Deus, oh, meu Deus, oh, meu Deus. Oh, meu Deus, oh, meu
Deus, oh, meu Deus.
Volta-se de novo, olha para o telefone, olha para Michael. Não sabe o que
fazer. E então vê. Vê a vida escoar-se do corpo de Michael. Já o viu antes.
Sabe como é. Michael está morto.
– Oh, meu Deus. Oh, meu Deus, oh, meu Deus – agacha-se e tenta sentir-
lhe o pulso. Nada.
Começa a falar sozinha.
– OK – diz, levantando-se. – OK. Agora, quem sabe que vieste aqui? A Joy, é
possível que ele lhe tenha dito. Mas nesse caso teria dito que Lucy Smith ia lá
a casa. Sim. Lucy Smith. Mas esse não é o meu verdadeiro nome e agora já
nem sequer sou Lucy Smith. Sou… – As suas mãos trémulas procuram a
pequena bolsa e tira de lá de dentro os passaportes. Abre um deles e lê o que
lá está escrito. – Sou Marie Valerie Caron. Ótimo. Ótimo. Sou Marie Caron.
Sim. E Lucy Smith não existe. Joy não sabe onde moro. Mas… A escola! –
exclama.
Michael conhecia a escola em que Marco andava. Mas teria falado disso a
Joy? Não. Não iria falar disso a Joy. Claro que não. E, mesmo que o tivesse
feito, eles só conheciam Lucy Smith, não Marie Caron. E Stella está numa
escola diferente e ninguém sabe onde fica, para além de mim e de Samia.
Então, e as pessoas dos passaportes? Não. Eles devem estar tão
profundamente enterrados no submundo do crime que ninguém estaria
interessado em saber. As crianças: sabem que eu estou aqui, mas não vão
contar a ninguém. Bom. OK.
Ela anda enquanto fala. Depois olha para baixo, para o corpo de Michael.
Será melhor deixá-lo ali? Deixá-lo para que Joy o encontre amanhã de
manhã? Ou será melhor tirá-lo dali e limpar tudo? Esconder o corpo? Ele é
um homem grande. Onde poderia escondê-lo? Não conseguiria escondê-lo
definitivamente, mas talvez por tempo suficiente para que ela e os filhos
conseguissem chegar a Londres.
Sim, decide, sim. Vai limpar tudo. Vai levar o corpo lá para baixo, para a
adega. Tapá-lo-á com alguma coisa. Quando Joy chegar amanhã vai pensar
que ele foi a algum lado. Não vai perceber que ele desapareceu até o corpo
começar a cheirar mal. E nessa altura já Lucy e as crianças terão partido há
muito tempo. E todos presumirão que ele foi morto por alguém daquele
lado mais obscuro da sua vida.
Abre o armário por baixo do lava-louças. Tira a lixívia. Abre um novo rolo
de papel de cozinha absorvente.
Começa a limpar.
29

Chelsea, 1990

Phin e eu sentámo-nos no telhado da casa. Fora Phin quem o descobrira. Eu


nem sequer fazia ideia de que ele existia. Para lá chegar, era necessário abrir
um alçapão no teto do corredor do sótão, seguir por um túnel baixo e depois
abrir outro alçapão que dava para um telhado plano com uma vista
extraordinária sobre o rio.
Ao que parecia, não éramos os primeiros a descobrir o terraço secreto. Já ali
havia um par de cadeiras de plástico de aspeto desleixado, alguns vasos com
plantas mortas, uma mesa pequena.
Mal podia acreditar que o meu pai não conhecesse este espaço. Sempre se
queixara de ter um jardim virado a norte, no qual não poderia desfrutar do
sol do fim de tarde. No entanto, ali em cima havia um oásis privado que
apanhava sol todo o dia.
Afinal, os minúsculos quadrados de papel que Phin tinha recebido no
mercado de Kensington na semana anterior eram quatro, e unidos pareciam
ainda mais pequenos. Cada pequeno segmento tinha a imagem de um rosto
sorridente.
– E se a trip correr mal? – perguntei, sentindo-me indescritivelmente tolo ao
usar tal linguagem.
– Será melhor usarmos apenas metade – disse Phin. – Para começar.
Anuí efusivamente. Teria preferido nem sequer usar nada. Eu não era esse
tipo de pessoa. Mas Phin era, e eu, para usar o clichê dos pais, atirava-me a
um poço, se ele mo pedisse.
Observei-o enquanto engolia o minúsculo fragmento e ele observou-me
enquanto eu fazia o mesmo. O céu era de um azul-aguarela. O sol estava
fraco, mas ali em cima, naquele esconderijo, sentia-se o seu calor sobre a
nossa pele. Durante algum tempo, não sentimos nada. Falámos do que
conseguíamos ver: pessoas sentadas nos seus jardins, os barcos seguindo em
marcha lenta pelo Tamisa, a vista da central elétrica do outro lado do rio.
Depois de uma meia hora comecei a relaxar, achando que o ácido era
claramente falso, que nada ia acontecer, que tinha escapado incólume. Mas
então comecei a sentir o sangue a aquecer por baixo da minha pele. Olhei
para o céu e vi que estava cheio de veias brancas pulsantes que, quanto mais
olhava para elas, mais luminosas e coloridas se tornavam, com múltiplos
tons como madrepérola. Percebi que afinal o céu não era nada azul, mas que
tinha um milhão de cores diferentes, todas conspirando para criar um azul-
pálido; que era conivente e mentiroso, que era muito mais inteligente do que
nós e que talvez tudo o que considerávamos inanimado fosse, na verdade,
mais inteligente do que nós e se risse de nós. Olhei para as folhas das árvores
e questionei o seu tom verde. São mesmo verdes?, perguntei a mim mesmo.
Ou serão minúsculas partículas de roxo e vermelho e amarelo e dourado,
todas a fazer uma festa e a rir, a rir, a rir. Olhei para Phin e perguntei-lhe:
– A tua pele é mesmo branca?
Ele olhou para a pele.
– Não. É… – Começou a dizer mas, entretanto, olhou para mim e desatou a
rir. – Eu tenho escamas! Vê! Tenho escamas. E tu…! – Apontou para mim,
sem conseguir parar de rir. – Tu tens penas! Oh, meu Deus, em que é que
nos tornámos? Somos criaturas!
Durante um minuto, perseguimo-nos mutuamente em volta do telhado,
fazendo sons de animais. Acariciei as minhas penas. Phin desenrolou a
língua. Ambos manifestámos choque e admiração ao ver o seu tamanho.
– Tens a língua mais comprida que eu já vi.
– Isso é porque sou um lagarto. – Voltou a enrolá-la para dentro e depois de
novo para fora. Observei-o com atenção. Quando pôs novamente a língua
de fora, eu inclinei-me e prendi-a entre os meus dentes.
– Au! – queixou-se Phin, segurando a língua entre os dedos e rindo-se de
mim.
– Desculpa – pedi. – Sou apenas um pássaro estúpido. Pensei que era uma
minhoca.
E então parámos de rir e sentámo-nos nas espreguiçadeiras de plástico e
olhámos, olhámos e olhámos para a aurora boreal que rodopiava lá em cima,
as nossas mãos penduradas, com os nós dos dedos a roçarem-se de vez em
quando, e de cada vez que eu sentia a pele de Phin tocar na minha era como
se o seu próprio ser penetrasse na minha epiderme e pedaços da sua
essência rodopiassem na minha essência, fazendo uma sopa dos dois, e era
demasiado tantalizante, demasiado. Precisava de me ligar a ele para poder
prender toda a sua essência, e os meus dedos envolveram-se em volta dos
dele e ele deixou, deixou-me segurar-lhe a mão, e eu senti-o derramar-se em
mim como uma vez em que andámos de barco num canal e o homem abriu
a comporta e vimos a água passar de um lado para o outro.
– Pronto – disse eu, virando-me para olhar para ele. – Já está. Tu e eu. Agora
somos a mesma pessoa.
– Somos? – perguntou Phin, de olhos arregalados.
– Sim, olha – apontei para as nossas mãos. – Somos o mesmo.
Phin assentiu e permanecemos sentados durante algum tempo, não sei
quanto. Podem ter sido cinco minutos ou uma hora, de mãos dadas, a olhar
para o céu, perdidos nos nossos próprios devaneios quimicamente
induzidos.
– Não é uma má trip, pois não? – perguntei, finalmente.
– Não – disse Phin. – É uma boa trip.
– A melhor trip – continuei.
– Sim – concordou. – A melhor trip.
– Devíamos morar aqui em cima – disse eu. – Trazíamos as nossas camas e
passávamos a viver aqui.
– Pois devíamos. Devíamos fazer isso. Agora mesmo!
Levantámo-nos e saltámos pelo alçapão para o túnel por cima do sótão. Vi
as paredes do túnel a pulsar, como o interior de um corpo. Senti que
estávamos numa garganta, ou talvez num esófago. Quase caímos do alçapão
para o corredor e, de repente, parecia que estávamos no lugar errado, como
em Doctor Who, quando ele abre a porta da Tardis e não sabe onde está.
– Onde estamos? – perguntei.
– Estamos cá em baixo – respondeu Phin. – No mundo inferior.
– Quero voltar para cima.
– Vamos buscar as almofadas – disse Phin. – Depressa. – Puxou-me pela
mão para o seu quarto, pegámos nelas e estávamos prestes a subir de novo
para o túnel quando David apareceu à nossa frente.
Estava molhado do banho, a metade inferior do corpo tapada pela toalha, o
peito nu. Olhei para os seus mamilos. Eram escuros e coriáceos.
– O que andam os dois a fazer? – perguntou, com os olhos a fixarem-se,
atentamente, entre um e outro. A sua voz era como um estrondo baixo de
trovão. Ele era alto e extremamente rígido, como uma estátua. Senti o meu
sangue ficar frio na sua presença.
– Viemos buscar as almofadas – respondeu Phin. – Para levar para cima.
– Para cima?
– Para cima – repetiu Phin. – Aqui estamos em baixo.
– Em baixo.
– Em baixo – disse Phin.
– Que raio se passa convosco? – perguntou David. – Olha para mim –
agarrou com força o maxilar de Phin e olhou-o bem nos olhos. – Estás
pedrado? – perguntou, voltando o olhar para mim. – Meu Deus, os dois.
Que raio tomaram? O que é isso? Haxixe? Ácido? O quê?
Logo a seguir mandaram-nos descer e os meus pais foram convocados, bem
como a mãe de Phin, enquanto David continuava envolto na toalha e eu
continuava a olhar para os seus mamilos duros, sentindo o pequeno-almoço
a dar voltas na minha barriga. Estávamos na sala de estar, rodeados por
retratos a óleo que nos fixavam, animais mortos pendurados nas paredes e
quatro adultos a fazerem perguntas, perguntas, perguntas.
Como? O quê? De onde? Como pagaram? Sabiam a vossa idade? Podiam ter
morrido. Vocês são muito novos. O que diabo vos passou pela cabeça?
E foi nesse preciso momento que Birdie entrou na sala.
– O que se passa? – perguntou.
– Oh, vá embora – exclamou Phin –, isto não tem nada que ver consigo.
– Não te atrevas a falar com um adulto dessa maneira – disse David.
– Esta não é um adulto – disse Phin, apontando para Birdie.
– Phin!
– Ela não é um adulto. Nem sequer é humana. Ela é como um porco. Vejam.
Olhem para a pele rosada, para os olhos pequenos. É um porco.
Um bruaá percorreu a sala. Olhei para Birdie e tentei imaginá-la como uma
porca. Mas a mim parecia-me mais um gato muito velho, daqueles gatos
ossudos com peladas e olhos enremelados.
Depois, observei Phin e vi que ele estava a olhar para o seu pai. Abriu bem a
boca, riu-se e a seguir disse:
– Portanto, isso faz de ti um beijador de porcos!
Riu ruidosamente.
– Ela é uma porca e tu és um beijador de porcos. Sabias disso? Quando a
beijaste sabias que ela era um porco?
– Phin! – Sally fez uma careta.
– O Henry viu o pai a beijar a Birdie. Na semana passada. Foi por isso que
pegámos em todo o dinheiro do pai e saímos sem pedir licença. Porque eu
estava zangado com ele. Mas agora sei por que razão ele a beijou. Foi
porque… – Phin ria-se agora de tal maneira que mal conseguia falar. – …
queria beijar um porco!
Eu queria rir-me também, porque Phin e eu éramos a mesma pessoa, mas já
não tinha vontade, aquela ligação forte tinha-se perdido e agora apenas
conseguia sentir um terror intenso e frio.
Sally saiu a correr da sala, Phin seguiu-a e depois David, ainda envolto na
toalha de banho. Olhei para Birdie com um certo embaraço.
– Desculpe – disse eu, por alguma razão estranha.
Ela limitou-se a olhar-me boquiaberta, antes de sair também da sala.
Só ficámos eu e os meus pais.
O meu pai levantou-se.
– De quem foi a ideia? – perguntou. – Drogas?
Encolhi os ombros. Senti que o efeito da trip começava a passar. Sentia-me a
voltar à realidade.
– Não sei.
– Foi ele, não foi?
– Não sei – repeti.
Ele suspirou.
– Haverá consequências, meu jovem – disse, com severidade. – Precisamos
de discuti-las. Mas, por agora, vamos arranjar-te um copo de água e alguma
coisa para comer. Algo que encha. Uma torrada, Martina?
A minha mãe assentiu e eu segui-a timidamente até à cozinha.
Conseguia ouvir lá em cima as vozes alteradas: as vogais cortantes de Sally, o
ressoar da voz de David, Birdie a choramingar. Ouvia passos, portas a abrir e
a fechar. A minha mãe e eu entreolhámo-nos, enquanto ela punha o pão na
torradeira para mim.
– É verdade? – perguntou. – O que Phin disse sobre David e Birdie?
Assenti com a cabeça.
Ela limpou a garganta, mas não disse nada.
Um momento depois, ouvimos a porta da frente fechar-se com força.
Espreitei para o corredor e vi Justin, que chegava da sua banca do mercado,
carregado de sacos de juta. Quase de seguida, a sua voz juntava-se à sinfonia
de gritos vindos de lá de cima.
A minha mãe passou-me a torrada e eu comi em silêncio. Lembrei-me do
estranho pavor que senti ao ver Birdie e David a beijarem-se na semana
anterior, a sensação de algo pútrido a soltar-se no mundo, como se eles
fossem chaves e se tivessem destrancado um ao outro. E depois pensei na
sensação da mão de Phin na minha, no telhado, e achei que também nós
éramos chaves que se destrancavam reciprocamente, mas deixando daí sair
algo extraordinário e bom.
– O que vai acontecer? – perguntei.
– Não faço ideia – respondeu a minha mãe. – Mas isto não é bom. Não é
nada bom.
30

Michael está na cave e Lucy esteve a limpar durante mais de uma hora. Pega
num saco de lixo que está junto à porta da frente. Está cheio de papel de
cozinha encharcado de sangue, um par de luvas de látex de Joy e todos os
vestígios da sua refeição: garrafas de vinho vazias, garrafas de cerveja,
guardanapos, a panzanella que sobrou. Tratou os cortes nas costas com
pensos rápidos que encontrou na casa de banho de Michael e na sua carteira
estão três mil euros, que retirou de uma gaveta da mesa de cabeceira.
Dá uma olhadela ao Maserati, ao passar por ele no acesso à garagem. Sente
uma estranha onda de tristeza: Michael nunca mais guiará um carro potente
como aquele. Nunca mais irá reservar um voo para Martinica, de um
momento para o outro, nem fazer saltar a rolha de mais uma garrafa de
champanhe vintage. Nunca acabará de escrever o seu estúpido livro, nunca
mais saltará para a sua piscina com a roupa vestida, nunca dará a uma
mulher uma centena de rosas vermelhas, nunca mais fará sexo, nem beijará
ninguém…
Nunca mais magoará ninguém.
A sensação passa. Deita o saco de lixo num enorme caixote municipal junto
à praia. A adrenalina corre através dela, mantendo-a concentrada e forte.
Compra dois sacos cheios de snacks e bebidas para as crianças. Às dezassete
horas, Marco envia-lhe uma mensagem. Onde estás?
Nas compras, responde. Não demoro.

As crianças mostram-se participativas. Olham, incrédulas, para o saco de


snacks e guloseimas.
– Vamos para Inglaterra – diz-lhes, num tom leve e animado. – Vamos
conhecer a filha da minha amiga, comemorar o seu aniversário.
– A bebé! – diz Marco.
– Sim, a bebé. E vamos ficar numa casa onde morei quando era criança. Mas
primeiro vamos partir numa aventura! Vamos primeiro a Paris! De
comboio! Depois apanhamos outro comboio, para Cherbourg. Daí
apanhamos um pequeno barco para uma pequena ilha chamada Guernsey e
ficaremos numa encantadora casinha uma ou duas noites. De seguida,
apanharemos outro barco para Inglaterra e seguiremos de carro para
Londres.
– Todos? – pergunta Stella. – Mesmo o Fitz?
– Mesmo o Fitz. Mas precisamos de fazer as malas, OK? E precisamos de
dormir um pouco, porque temos de estar na estação às cinco da manhã!
Muito bem! Então vamos comer qualquer coisa, arranjar-nos e lavar-nos e
depois fazemos as malas e vamos dormir.
Deixa as crianças a fazer as malas e a comer e vai ao quarto de Giuseppe. O
cão salta para ela e Lucy permite-lhe que ele lhe lamba o rosto. Olha para
Giuseppe e pergunta-se o que lhe deverá dizer. Ele é leal, mas é velho, e por
vezes pode ficar confuso. Decide contar-lhe uma mentira.
– Amanhã vou de férias com as crianças – diz. – Vamos a Malta. Tenho lá
amigos.
– Ah – exclama Giuseppe. – Malta é um lugar mágico.
– Sim – concorda, sentindo-se triste por estar a enganar uma das pessoas
mais gentis que conhece.
– Mas nesta época do ano é quente – continua ele. – Muito quente. – Olha
para o cão. – Quer que tome conta dele?
O cão. Não tinha pensado no diabo do cão.
Entra momentaneamente em pânico, mas recompõe-se de imediato e diz:
– Vou levá-lo. Como cão de serviço. Por causa da minha ansiedade.
– Sofre de ansiedade?
– Não, mas disse-lhes que sofria e então disseram que podia levá-lo.
Giuseppe não a questiona. Ele não sabe propriamente como funciona o
mundo moderno. O seu mundo ainda se encontra aproximadamente em
1987.
– Que bom – diz, afagando a cabeça do cão. – Vais de férias, rapaz! Boas
férias! Quanto tempo vão ficar fora?
– Duas semanas – responde ela. – Talvez três. Se precisar, pode alugar o
nosso quarto.
– Mas vou assegurar-me de que estará aqui quando voltarem – diz, sorrindo.
Ela pega-lhe na mão.
– Obrigada, muito obrigada – diz, abraçando-o com força. Não faz a
mínima ideia se voltará a vê-lo de novo. Sai do quarto antes que ele possa
ver as suas lágrimas.
31

– Esta noite fico na casa – declara Miller, pousando o seu copo de cerveja
vazio sobre a mesa. – Se não se importar…
– E onde vai dormir?
– Não vou dormir. – O seu rosto tem uma expressão determinada.
– Está bem – assente Libby. – Se é o que quer.
Regressam à casa e Libby volta a destrancar o cadeado e a afastar o tapume
de madeira. Entram. Ficam parados por um momento, de olhos voltados
para cima, atentos a qualquer movimento. Porém, a casa está silenciosa.
– Bem – diz Libby, olhando para Dido –, acho que será melhor irmos
andando.
Dido acena com a cabeça e Libby aproxima-se da porta da frente.
– Vai ficar bem? Aqui sozinho? – pergunta.
– Ei, olhe para mim – diz Miller. – Pareço-lhe o género de pessoa que tem
medo de ficar sozinha numa casa escura e vazia, onde morreram três
membros de um culto vestidos com uma túnica preta?
– Quer que eu fique também?
– Não. Vá para casa, para a sua bela cama confortável. – Tem os dedos
espalmados sobre a barba e olha para ela com o olhar suplicante de um
cãozinho.
– Quer que eu fique, não quer? – pergunta Libby, sorrindo.
– Não. Não, não e não.
Libby ri-se e olha para Dido.
– Importas-te? – pergunta. – Amanhã de manhã, lá estarei. Prometo.
– Fica – diz Dido. – E amanhã podes chegar quando quiseres. Não há pressa.
Começa a escurecer quando Libby regressa à casa, depois de acompanhar
Dido até à estação de metro. Absorve a atmosfera de uma noite quente de
verão em Chelsea, a multidão de adolescentes loiros em calções de ganga
rasgados e enormes sapatilhas, as vistas de belos quartos através de janelas
de guilhotina. Por um momento, fantasia em morar ali, fazer parte daquele
mundo elitista; ser, realmente, uma rapariga de Chelsea. Imagina a casa de
Cheyne Walk cheia de antiguidades, lustres de cristal e arte moderna.
Porém, no momento em que abre a porta do número dezasseis, a fantasia
dissipa-se. A casa está manchada, deteriorada.
Miller está sentado à grande mesa de madeira da cozinha. Assim que ela
entra, ele levanta os olhos e diz:
– Depressa, veja isto. Veja.
Ele está a usar o telemóvel como lanterna e a olhar para alguma coisa dentro
da gaveta. Ela espreita lá para dentro.
– Veja – repete Miller.
Mesmo ao fundo da gaveta, escrito a lápis preto, alguém rabiscou as
palavras: «eu sou phin».
32

Chelsea, 1990

Sally deixou a nossa casa poucas semanas depois. Alguns dias mais tarde,
Birdie mudou-se para o quarto de David. Mas Justin não se mudou.
Manteve-se no quarto que tinha partilhado com Birdie.
Eu nunca cheguei a ser castigado pelo incidente da trip com ácido, e Phin
também não. Mas, ficou bem claro que ele sentiu que a perda da mãe era
pior do que qualquer castigo que o pai pudesse ter inventado. Primeiro que
tudo, culpou-se a si mesmo. A seguir, culpou Birdie. Desprezava-a e referia-
se a ela como «coisa». Depois, culpou o pai. E por fim, infelizmente, e de um
modo subliminar, culpou-me a mim. Afinal, fora eu quem lhe transmitira a
terrível e fatal bala de conhecimento que ele usara para, inadvertidamente,
destruir o casamento dos pais. Se eu não lhe tivesse contado, nada daquilo
teria acontecido: a ida às compras, o ácido, a hedionda tarde das revelações
dos beijos à porca. E, assim, aquele vínculo que tínhamos criado no telhado,
naquele dia, não só se desvaneceu, como ainda pareceu arder numa nuvem
de fumo de veneno tóxico.
Era difícil não admitir que fui eu quem provocou tudo isso. Quando pensei
na minha intenção ao contar-lhe o que tinha visto, na minha ânsia de
escandalizar e impressionar, na minha falta de empatia ou compreensão de
como isso podia fazê-lo sentir, não pude deixar de perceber a minha
responsabilidade pessoal. E, de facto, paguei o preço. Porque, ao destruir
involuntariamente o casamento dos seus pais, destruí involuntariamente
toda a minha vida.
Pouco depois de Sally sair de casa, encontrei Justin sentado à mesa no
terraço do jardim, classificando pilhas de ervas e flores. O facto de ele ter
permanecido sob o mesmo teto que a sua namorada adúltera pareceu-me
triste e até um pouco subversivo. Ele continuou como antes, a cultivar e a
tratar das suas plantas, transformando-as em pós dentro de saquinhos de
lona e em tinturas em minúsculos frascos de vidro, colocando-lhes
pequenas etiquetas onde se lia «The Chelsea Apothecary»14. Continuava a
usar as mesmas roupas e a deambular por ali da mesma maneira; não havia
sinais exteriores de qualquer turbulência interna ou desgosto. Sofrendo com
o meu próprio coração destroçado devido ao meu breve relacionamento
com Phin, senti curiosidade em entrar um pouco na sua cabeça. E com a
partida de Sally e a nova relação entre Birdie e David, para não mencionar
os meus próprios pais, que se iam tornando sombras cada vez mais
pequenas do que eram antes, estranhamente ele acabava por parecer uma
das pessoas mais normais da casa.
Sentei-me à sua frente e ele olhou-me com simpatia.
– Olá, miúdo. Como vão as coisas?
– Está tudo… – Eu estava prestes a dizer que estava tudo bem, mas depois
lembrei-me de que não estava mesmo nada bem. Então respondi: –
Estranho.
Ele olhou-me com mais atenção.
– Bem – disse ele. – Lá isso é verdade.
Ficámos em silêncio por um momento. Observei-o enquanto recolhia
delicadamente os rebentos dos ramos e os colocava num tabuleiro.
– Porque é que ainda vive aqui? – Acabei por perguntar. – Agora que a
Birdie…?
– Boa pergunta – disse, sem olhar para mim. Colocou mais um rebento no
tabuleiro, esfregou as pontas dos dedos e pousou as mãos no colo. – Acho
que é porque, mesmo já não estando com ela, Birdie continua a ser uma
parte de mim. Aquele amor que não tem que ver com sexo não morre
automaticamente, sabes? Ou, pelo menos, isso não acontece
necessariamente.
Acenei com a cabeça. Isso era totalmente verdade no meu caso. Embora
fosse muito provável que eu nunca mais tivesse a possibilidade de voltar a
segurar na mão de Phin, ou até mesmo de ter outra conversa mais profunda
com ele, isso não diminuiu os meus sentimentos por ele.
– Acha que pode voltar a ficar com ela?
– Sim – suspirou. – Talvez. Ou talvez não.
– O que acha do David?
– Oh.
A sua linguagem corporal mudou subtilmente. Ergueu os ombros e
entrelaçou os dedos.
– Ainda não sei bem – disse, por fim. – Em certos aspetos acho-o
espetacular. Noutros… – abanou a cabeça – assusta-me.
– Sim – exclamei mais alto e com mais fervor do que pretendia. – Sim –
disse novamente, agora num tom mais baixo. – Ele também me assusta.
– De que forma, mais concretamente?
– Ele é… – Levantei os olhos para o céu, procurando a palavra certa. –
Sinistro.
Justin soltou uma gargalhada ruidosa.
– Ah, sim, é isso mesmo – concordou. – Sinistro. Toma – passou-me um
punhado de pequenas flores amarelas parecidas com margaridas e um rolo
de fio. – Ata-as em pequenos feixes, pelos caules.
– Como se chamam?
– Calêndula. Para aliviar os problemas de pele. São ótimas.
– E aquilo? – Apontei para o tabuleiro com pequenos rebentos amarelos.
– É camomila. Para fazer chá. Ora cheira. – Passou-me um botão de
camomila, que pus por baixo do nariz. – Não é um cheiro tão bom?
Assenti, enquanto enrolava o fio nos caules da calêndula, amarrando-os com
um laço.
– Está bem assim?
– Ótimo. Muito bem. Então, ouvi falar do que aconteceu contigo e com
Phin. Na semana passada. Aquilo da droga.
Corei.
– Caramba – exclamou. – Eu só toquei em drogas quando tinha quase
dezoito! E tu, que idade tens? Doze?
– Treze – respondi com firmeza. – Tenho treze anos.
– Tão novo! – disse ele. – Tiro-te o chapéu.
Não percebi aquela postura. O que eu tinha feito era, sem dúvida alguma,
uma coisa má. Ainda assim, sorri.
– Sabes – prosseguiu, num tom de conspiração –, posso aqui cultivar
qualquer coisa. Qualquer coisa. Percebes o que isso significa?
Abanei a cabeça.
– Eu não me limito a cultivar coisas que são boas para a saúde. Também
posso plantar outras coisas. Qualquer coisa de que gostes.
Acenei com a cabeça, sério.
– Quer dizer, coisas como drogas?
Riu-se com vontade.
– Sim, acho que se pode dizer que sim. Das boas – deu uma pancadinha no
nariz. – E das más também.
Nesse momento, a porta das traseiras abriu-se. Voltámo-nos ambos, para ver
quem era.
Eram David e Birdie. Tinham os braços cruzados na cintura um do outro.
Olharam brevemente na nossa direção e foram sentar-se do outro lado do
jardim. O ambiente mudou. Como se uma nuvem estivesse a passar à frente
do Sol.
– Tudo bem consigo? – murmurei para Justin.
– Tudo bem – assentiu.
Permanecemos sentados durante algum tempo sob o manto abafado da sua
presença, conversando sobre diferentes ervas e plantas e os seus efeitos.
Perguntei a Justin sobre venenos e ele falou-me da Atropa belladonna, ou
beladona mortal, que, segundo a lenda, foi usada pelos soldados de Macbeth
para envenenar o exército inglês que chegava, e da cicuta, usada para matar
Sócrates após a sua condenação. Falou-me também do uso de ervas
afrodisíacas e com poderes mágicos para feitiços, como a Gingko biloba.
– Como aprendeu tudo isso? – perguntei.
– Acima de tudo, dos livros – respondeu Justin, encolhendo os ombros. – E
a minha mãe também gosta de jardinagem. Sabes, fui criado no meio das
plantas e da terra. Portanto… na verdade, é uma evolução natural.
Desde que Sally partira, nunca mais tínhamos tido um único dia de aulas.
Nós, as crianças, cirandávamos livremente pela casa, entediados e inquietos.
«Lê um livro» era a lengalenga para quem se queixasse de que não tinha
nada para fazer. «Faz umas contas.»
Portanto, acho que estava pronto para aprender algo novo, e tudo o que
havia disponível fora dali eram os estranhos exercícios de David ou o violino
de Birdie.
– Existem plantas que levam as pessoas a fazer coisas… contra a sua
vontade?
– Bem, claro que há alucinogénicos, cogumelos mágicos e outras coisas do
género.
– E também pode plantá-los? – perguntei. – Num jardim como este?
– Posso cultivar praticamente qualquer coisa, miúdo, em qualquer lugar.
– Eu posso ajudar? – perguntei. – Ajudá-lo a plantar coisas?
– Claro – disse Justin. – Podes ser o meu jovem aprendiz. Vai ser bom.

Não sei que tipo de conversa de travesseiro aconteceu atrás da sinistra porta
do quarto de David e Birdie. Não gostava de pensar muito sobre o que quer
que ali acontecesse. Ouvi coisas que ainda agora, quase trinta anos depois,
me fazem estremecer ao pensar nelas. Todas as noites, eu dormia com a
minha almofada por cima da cabeça.
De manhã, eles desciam as escadas juntos, com um ar de superioridade e
parecendo satisfeitos consigo mesmos. David estava obcecado com o cabelo
de Birdie, que lhe dava pela cintura. Tocava-lhe constantemente. Enrolava-o
nos seus dedos e apertava-o entre as mãos; passava as mãos ao longo do seu
cabelo, fazendo girar uma madeixa enquanto falavam os dois. Uma vez até o
vi pegar-lhe num pedaço de cabelo e segurá-lo por baixo das narinas,
inspirando profundamente.
– O cabelo da Birdie não é maravilhoso? – perguntou um dia, olhando para
a minha irmã e para Clemency, que usavam o cabelo cortado pelos ombros.
– Não gostavam de ter um cabelo assim, meninas?
– Sabem – disse Birdie –, em muitas religiões, o facto de as mulheres usarem
o cabelo comprido, é encarado como algo extremamente espiritual.
Apesar de não serem nada religiosos, nos primeiros tempos da sua relação,
David e Birdie falavam muito sobre religião. Discutiam sobre o sentido da
vida e a terrível facilidade com que tudo se descartava. Falavam sobre
minimalismo e feng shui. Perguntaram à minha mãe se poderiam voltar a
pintar o seu quarto de branco, se podiam pôr a cama de metal num outro
quarto e colocar o colchão no chão. Abominavam as latas de aerossol, fast
food, produtos farmacêuticos, fibras artificiais, sacos de plástico, carros e
aviões. Já falavam sobre a ameaça do aquecimento global e preocupavam-se
com o impacto das suas pegadas de carbono. Olhando agora para trás, do
ponto de vista do cenário apocalítico que atualmente ocorre com esta
sinistra onda de calor de 2018, com o oceano cheio de criaturas marinhas
sufocadas por plásticos e ursos polares a escorregarem pelas calotas polares
derretidas, eles estavam bem à frente do seu tempo. Contudo, no contexto
de 1990, quando o mundo ainda estava a despertar para tudo o que a
tecnologia moderna e a cultura de produtos descartáveis tinham para
oferecer, eles eram uma aberração.
E eu até poderia ter tido algum respeito por David e Birdie e pela força do
seu empenho em relação ao planeta se não fosse o facto de David esperar
que todos vivessem de acordo com a sua vontade. Para eles, dormirem em
colchões no chão não era suficiente. Todos devíamos dormir em colchões no
chão. Não lhe bastava que ele e Birdie evitassem carros e aspirinas e
douradinhos. Todos nós deveríamos fazê-lo. Para mim ficou bem claro que
aquilo que previra subliminarmente, há várias semanas, quando vira David e
Birdie a beijarem-se, acontecera. Ela desbloqueara algo terrível em David e
agora queria que ele controlasse tudo.
Ao que parecia, já não éramos livres.

14
Herbalista de Chelsea. (N. da T.)
33

Só anoitece já perto das vinte e duas horas. Libby e Miller conversam à mesa
do jardim, sem perceberem que a escuridão os vai invadindo, até que já nem
sequer conseguem ver o branco dos olhos um do outro. Então, acendem
velas cujas chamas saltitam e dançam ao sabor da brisa. Passaram a última
hora de luz do dia a vasculhar a casa e é disso que falam: das coisas que
encontraram.
Além da frase «eu sou phin» rabiscada no interior da gaveta da mesa,
encontraram as mesmas palavras garatujadas na parte de baixo da banheira
do sótão, na moldura da porta de um dos quartos e no interior de um
roupeiro embutido, num dos quartos do primeiro andar. Encontraram um
punhado de cordas de instrumentos musicais numa das salas de visitas do
rés do chão e uma estante de partituras atirada para um louceiro de canto.
No guarda-roupa do quarto onde Libby foi descoberta deitada no seu berço,
encontraram uma pilha de fraldas felpudas limpas, alfinetes de ama, creme
para fraldas e babygros. Encontraram uma pilha de livros num baú no
corredor das traseiras, bolorentos e acinzentados, livros sobre as
propriedades curativas das ervas e das plantas, livros sobre bruxaria
medieval e livros de feitiços. Estavam embrulhados num cobertor velho e
tapados com almofadas estofadas que, em tempos, deveriam ter adornado
mobiliário de jardim.
Encontraram um fino anel de ouro preso entre o chão de madeira e o
rodapé. Tinha uma marca de contraste que Miller fotografou com a sua
máquina e que depois ampliou. Quando pesquisaram no Google,
descobriram que tinha sido gravado em 1975, o ano do casamento de Henry
e Martina. Um objeto minúsculo, perdido para o mundo, a salvo dos olhos
de saqueadores e detetives no seu esconderijo escuro durante vinte e cinco
anos ou mais.
Libby usa agora o anel, no dedo anelar da mão esquerda. O anel da sua mãe.
Serve-lhe perfeitamente. Roda-o enquanto falam.
Param de falar a cada dois minutos, tentando ouvir o som de passos sobre a
vegetação rasteira. De vez em quando, Miller vai até ao fundo do jardim,
procurando sombras, sinais de que alguém entrou pelo portão do muro de
trás. Levam as almofadas estofadas que encontraram no baú, apagam as
velas e sentam-se no canto do relvado mais distante da porta das traseiras.
Falam por entre sussurros quando, de repente, Miller arregala os olhos e leva
um dedo aos lábios. Chiuu. Então, os olhos dele voltam-se para a parte de
trás do jardim. Está ali alguma coisa. Ela senta-se direita. Ali, no fundo do
jardim. E, enquanto observam, veem alguém a caminhar pelo relvado, um
homem alto e magro, de cabelo curto, óculos a refletir a luz do luar,
sapatilhas brancas, um saco a tiracolo. Veem-no a atirar primeiro o saco
para o cimo do bunker e depois a subir também. Ouvem-no trepar pelo
algeroz até a um rebordo do primeiro andar. Ambos se movem muito
silenciosamente, observando-o enquanto ele desaparece no telhado.
Libby sente o seu coração martelar.
– Oh, meu Deus – sussurra. – Oh, meu Deus. O que vamos fazer?
– Não faço a mínima ideia – sussurra Miller, por sua vez.
– Será melhor confrontá-lo?
– Não sei. O que acha?
Ela abana a cabeça. Está meio apavorada e meio desesperada para ver este
homem cara a cara.
Olha para Miller. Ele mantê-la-á segura. Ou, pelo menos, dá a impressão de
ser capaz de a manter segura. O homem que viram era mais pequeno do que
ele e usava óculos. Acena com a cabeça e diz:
– Sim, vamos entrar. Vamos falar com ele.
Miller parece ficar ligeiramente petrificado, mas depressa recupera.
– Sim. Está bem – diz.
A casa está escura, apenas tenuemente iluminada pelas luzes da rua e pelo
brilho prateado da Lua no rio. Libby segue Miller, sentindo-se tranquilizada
pela sua figura sólida. Param junto à escada. Sobem cada degrau de forma
lenta e segura, até chegarem ao patamar do primeiro andar. Aqui, a
claridade é maior, já que a Lua é visível através da grande janela que dá para
a rua. Ambos olham para cima e depois um para o outro.
– Está tudo bem? – sussurra Miller.
– Sim – responde Libby.
O alçapão no teto do sótão está aberto e a porta da casa de banho está
fechada. Conseguem ouvir o som da urina a cair na sanita, as interrupções
até terminar, a torneira que se abre, o pigarrear. Então, a porta abre-se e um
homem sai. É giro. É esse o primeiro pensamento de Libby. Um tipo giro,
com o cabelo louro bem cortado, um rosto jovem e bem barbeado, braços
com músculos bem definidos, uma T-shirt cinzenta, jeans pretos justos,
óculos modernos, boas sapatilhas.
Dá um salto e agarra o peito quando os vê ali parados.
– Oh, porra, caraças – exclama.
Libby também dá um salto. Tal como Miller.
Entreolham-se por um instante.
– É…? – Acaba por perguntar o homem, no preciso momento em que Libby
pergunta o mesmo.
– É…?
Apontam um para o outro e depois voltam-se os dois para Miller, como se
ele pudesse ter uma resposta para eles. A seguir, o homem volta-se de novo
para Libby e pergunta:
– É a Serenity?
Libby assente.
– É o Henry?
Durante um segundo, o homem olha para ambos, inexpressivo, mas então o
seu rosto parece mais seguro e ele diz:
– Não, não sou o Henry. Sou o Phin.
II
34

Chelsea, 1990

Sendo alemã, a minha mãe sabia muito bem como preparar um bom Natal.
Era a sua especialidade. Logo no início de dezembro, a casa foi enfeitada
com decorações caseiras feitas com laranjas cristalizadas, tecidos com
quadradinhos vermelhos e pinhas pintadas e sentia-se o aroma do pão de
gengibre, do stollen15 e do vinho quente com açúcar e canela. Para ela não
havia nada de fitas decorativas de mau gosto ou grinaldas de papel, nem
latas de Quality Street16 ou caixas de chocolates de seleção da Cadbury.
Até o meu pai gostava do Natal. Tinha uma roupa de Pai Natal que usava em
todas as vésperas de Natal quando éramos pequenos, e ainda hoje não sei
explicar como poderia eu saber que era ele, mas ao mesmo tempo não fazer
ideia de que era ele. Ao olhar agora para trás, percebo que era o mesmo tipo
de terrível desilusão que todos sentíamos em relação a David Thomsen. As
pessoas podiam olhar e ver apenas um homem, mas, com o mesmo olhar,
viam a resposta para todos os seus problemas.
Nessa véspera de Natal, o meu pai já não usou a roupa. Ele disse que
estávamos demasiado velhos para isso, e provavelmente tinha razão. Mas
também disse que não se sentia lá muito bem. De qualquer maneira,
a minha mãe organizou a habitual celebração da véspera de Natal. Sentámo-
nos em volta de um pinheiro nórdico (mais pequeno do que o habitual) e
desembrulhámos os presentes (menos do que era habitual), enquanto no
rádio se ouviam canções natalícias e o fogo crepitava na lareira. Cerca de
meia hora depois, mesmo antes do jantar, o meu pai disse que precisava de
se ir deitar por um bocado, porque tinha uma terrível dor de cabeça.
Trinta segundos mais tarde, estava no chão da sala de estar, com uma
apoplexia.
Nessa altura não sabíamos que era um AVC. Pensávamos que ele estava a ter
algum tipo de ataque. Talvez um ataque cardíaco. O Dr. Broughton,
o médico particular do meu pai, veio vê-lo, ainda com a sua roupa natalícia
de lã vermelha com decote em V e um laço estampado. Lembro-me da cara
dele quando o meu pai disse que já não tinha seguro de saúde e da rapidez
com que ele saiu da nossa casa, do modo como pôs de lado o seu habitual
comportamento untuoso. Mandou-o diretamente para o hospital numa
ambulância do Serviço Nacional de Saúde e saiu sem se despedir.
O meu pai voltou para casa no Boxing Day17.
Disseram que ele estava bem, que durante uns tempos poderia ter algumas
dificuldades cognitivas, alguns problemas motores, mas que o seu cérebro
recuperaria e que ele voltaria ao normal dentro de semanas. Talvez mais
cedo.
Mas, tal como acontecera com o primeiro AVC, ele nunca recuperou
devidamente. Agora havia ali um vazio ainda maior. Usava as palavras
erradas. Ou nem sequer conseguia encontrá-las. Passava dias inteiros
sentado na poltrona do seu quarto a comer biscoitos, muito devagar. Por
vezes, ria-se em momentos inapropriados. Outras vezes, nem entendia uma
piada.
Movia-se lentamente. Evitava as escadas. Deixou de sair de casa de uma vez
por todas.
E quanto mais fraco o meu pai se tornava, mais David Thomsen se ia
impondo.

Quando fiz catorze anos, em maio de 1991, já tínhamos regras. Não apenas
as regras familiares normais, como não pôr os pés em cima dos móveis, ou
fazer os trabalhos de casa antes de ir ver televisão. Não o tipo de regras que
toda a vida tivéramos.
Não, agora tínhamos regras loucas, despóticas, escritas com marcador preto
num grande cartaz que foi colado na parede da cozinha. Ainda me lembro
delas:

Não há cortes de cabelo SEM AUTORIZAÇÃO do David e/ou da Birdie


Não há televisão
Não há visitas SEM AUTORIZAÇÃO do David e/ou da Birdie
Não há vaidade
Não há ganância
Ninguém pode sair de casa sem AUTORIZAÇÃO EXPRESSA do David e/ou
da Birdie
Nada de carne
Nada de produtos de origem animal
Nada de couro/camurça/lã/penas
Nada de recipientes de plástico
Não mais do que quatro bocados de lixo por dia e por pessoa, incluindo os
restos de alimentos
Nada de roupas coloridas não naturais
Nada de produtos farmacêuticos
Nada de produtos químicos
Um banho ou duche POR DIA E POR PESSOA
Uma lavagem de cabelo por semana
TODOS OS RESIDENTES devem passar um mínimo de duas horas por dia
com o David na sala de ginástica
TODAS AS CRIANÇAS devem passar um mínimo de duas horas por dia
com Birdie na sala de música
Todos os alimentos devem ser preparados em casa com ingredientes
orgânicos
Não será usado aquecimento elétrico ou a gás
Nada de gritos
Nada de palavrões
Nada de correr dentro de casa

Esta lista de regras começara curta, mas fora sendo acrescentada, à medida
que o controlo de David sobre a nossa casa ia aumentando.
Nesta fase, Sally ainda costumava vir à casa uma ou duas vezes por semana,
para levar as crianças a tomar chá. Estava a dormir num sofá em casa de
uma amiga, em Brixton, enquanto tentava desesperadamente encontrar
algum tipo de acomodação com espaço suficiente para todos viverem.
Depois de passar tempo com a mãe, Phin ficava extremamente carrancudo.
Fechava-se no seu quarto e faltava às refeições seguintes. Na verdade, foi por
causa dele que muitas das regras foram implementadas. David achava
insuportável o seu estado de humor. Não aguentava ver a comida
desperdiçada, ou a porta que ele não podia abrir à vontade. Não suportava
que alguém fizesse alguma coisa que não correspondesse diretamente à sua
própria visão do mundo. Não suportava adolescentes.
Foram acrescentadas duas novas regras:

Nada de portas trancadas


TODOS os elementos da casa deverão comparecer em TODAS AS
REFEIÇÕES

Certa manhã, pouco depois da quinta vez que Phin regressara após ter
passado a tarde com a mãe e ter violado a regra: «Nada de portas
trancadas», fui ao andar de cima e encontrei David a retirar a fechadura do
lado de dentro da porta de Phin, de maxilares cerrados e com os dedos
apertados em volta do cabo de uma chave de fendas.
Phin estava sentado na cama, de braços cruzados com força à frente do
peito, a observar.
Quando à hora do jantar Phin continuava sentado na sua cama com os
braços cruzados, silencioso e com uma expressão mortífera, David arrastou-
o pelos braços – ainda cruzados – e fê-lo sentar-se numa cadeira.
Empurrou a cadeira para o seu lugar e serviu-lhe uma tigela grande de caril
de tutano e arroz. Phin permaneceu de braços cruzados. David levantou-se,
apanhou um pouco do caril com uma colher e empurrou-a contra os lábios
do filho. Phin apertou os lábios. Eu conseguia ouvir a colher a bater-lhe nos
dentes. O ambiente era chocante. Nessa época, Phin já tinha quinze anos e
meio, mas parecia bastante mais velho. Era alto e forte. A situação parecia
poder tornar-se violenta de um momento para o outro. Mas Phin manteve-
se firme, com um olhar que parecia capaz de fazer um buraco na parede
oposta, todo o seu rosto rígido de raiva e determinação.
Por fim, David desistiu de tentar enfiar a colher na boca do filho e atirou-a
pela sala, fazendo com que o caril deixasse uma feia marca amarela na
parede, e a colher produzisse um grito metálico raivoso ao atingir o chão.
– Vai para o teu quarto! – gritou David. – Já! – Uma veia latejava na sua
têmpora. Tinha o pescoço tenso e arroxeado. Eu nunca tinha visto um ser
humano tão enraivecido como David naquele momento.
– Com prazer – sibilou Phin.
David levantou a mão. Então, quase em câmara lenta, bateu-lhe na parte de
trás da cabeça, quando o filho passou por ele. Phin virou-se. Os seus olhos
encontraram os do pai, e vi neles uma expressão de verdadeiro ódio.
Phin continuou a andar. Ouvimos os seus passos, seguros e firmes, na
escada. Alguém pigarreou. Vi Birdie e David trocarem um olhar. O olhar de
Birdie, tenso e reprovador, dizia: Estás a perder o controlo. Faz alguma coisa.
O olhar de David, sombrio e furioso, dizia: É o que tenciono fazer.

Quando a refeição terminou, fui ao quarto de Phin.


Estava sentado na cama, com os joelhos dobrados contra o queixo. Olhou
para mim.
– O que é?
– Estás bem?
– O que achas?
Aproximei-me um pouco mais. Achei que me iria pedir para sair, mas não o
fez.
– Magoou-te? – perguntei. – Quando te bateu?
Os meus pais, por muito estranhos que fossem, nunca me bateram. Nem
sequer conseguia imaginar uma coisa dessas.
– Não propriamente.
Aproximei-me ainda um pouco mais.
Então, de repente, Phin olhou para mim e lá estava de novo. Estava
realmente a ver-me. A sério.
– Não posso continuar aqui – disse ele, abanando a cabeça. – Tenho de ir
embora.
O meu coração pareceu parar. Phin era a única coisa que mantinha viva em
mim qualquer réstia de esperança.
– Para onde?
– Não sei. Para junto da minha mãe.
– Mas…
Eu estava prestes a dizer que a sua mãe estava a dormir num sofá em
Brixton. Porém, ele interrompeu-me.
– Não sei, OK? Só tenho de sair deste lugar. Não posso continuar aqui.
– Quando?
– Já.
Olhou para mim por entre as suas enormes pestanas. Tentei decifrar a sua
expressão. Senti que havia ali um desafio.
– Tu… queres que… eu vá contigo?
– Não! Porra. Não.
Encolhi-me, de volta a mim mesmo. Não. Claro que não.
– O que deverei dizer? Quando os adultos me perguntarem?
– Nada – sibilou. – Nada. Não digas nada.
Assenti, de olhos arregalados. Vi-o atirar coisas para uma mochila: calças e
meias, uma T-shirt, um livro, uma escova de dentes. Virou-se e viu-me a
olhar para ele.
– Por favor, vai embora – pediu.
Saí do quarto e caminhei lentamente até à escada das traseiras, onde me
sentei no terceiro degrau e fechei a porta de cima, deixando apenas uma
fresta, através da qual vi Phin desaparecer com a mochila pelo alçapão do
sótão. Não conseguia imaginar o que estaria ele a fazer ou para onde iria.
Por um momento, pensei que talvez planeasse morar no telhado. No
entanto, apesar de ser maio, ainda estava frio. Não seria possível. Então, ouvi
um arrastar de pés do lado de fora e corri para o quarto de Phin, onde
coloquei as mãos em concha sobre o vidro da sua lucarna e olhei para o
jardim das traseiras. Lá estava ele: a correr através do jardim escuro em
direção às sombras negras das árvores. E então, de repente, desapareceu.
Voltei-me para encarar o seu quarto vazio. Peguei na sua almofada
e encostei-a ao meu rosto. Inspirei.
15
Stollen é um pão de Natal tradicional alemão com frutas cristalizadas, especiarias e frutos secos,
revestido com açúcar em pó e por vezes com maçapão. (N. da T.)
16
Marca da Nestlé, com sortido de chocolates. (N. da T.)
17
Feriado comemorado a 26 de dezembro na Grã-Bretanha e em alguns países anglófonos. (N. da T.)
35

Ainda está escuro quando Lucy sai da Casa Azul na manhã seguinte. As
crianças estão silenciosas e com um olhar vítreo. Sustém a respiração
quando entrega o dinheiro para os bilhetes de comboio para Paris a uma
mulher que parece conhecer todos os seus segredos mais profundos.
Sustém-na novamente enquanto entram no comboio, e também quando
o revisor entra na sua carruagem e pede para ver os bilhetes. Sempre que o
comboio reduz a velocidade ela sustém a respiração e examina as zonas em
volta, em busca do brilho azul de uma sirene ou do quépi azul-marinho de
um polícia. Em Paris, senta-se com os filhos e o cão no cantinho mais
sossegado do café mais silencioso, enquanto esperam pelo comboio para
Cherbourg. E, então, ele surge de novo: aquele medo absurdo em cada etapa,
a cada momento. À hora do almoço, quando entram no comboio seguinte,
imagina Joy na casa de Michael, começando a interrogar-se sobre onde
poderia ele estar, e sente a adrenalina a circular pelo seu corpo com tanta
força e rapidez que acha que pode morrer. Mentalmente, faz uma
panorâmica pela casa de Michael, tentando perceber se algo terá ficado
esquecido, o enorme sinal vermelho que dirá a Joy para procurar de
imediato na cave. Mas não, ela tem a certeza, a certeza absoluta de que não
deixou qualquer pista, nem um único vestígio. Ganhou algum tempo. Pelo
menos um dia. Talvez até três ou quatro. E, de qualquer maneira, diria Joy
alguma coisa sobre ela à polícia, a simpática mulher chamada Lucy, a mãe
do filho de Michael, que os levasse a considerá-la suspeita de alguma forma?
Não, Joy falar-lhes-ia dos contactos que Michael mantinha com o submundo
sombrio, dos homens grosseiros que por vezes apareciam à porta para falar
de «negócios». Ela encaminhá-los-ia para uma direção totalmente diferente
e quando eles finalmente percebessem que tinham chegado a um beco sem
saída, Lucy já não poderia ser encontrada.
Quando o comboio chega a Cherbourg, já é noite, a sua frequência cardíaca
abrandou e ela encontra apetite suficiente para comer o croissant que
comprou em Paris.
Na fila de táxis, entram para o banco de trás de um Renault Scenic
maltratado e ela pede ao motorista que os leve a Diélette. O cão senta-se ao
seu colo e pousa a cabeça na janela entreaberta. É tarde. Ambas as crianças
adormecem.
Diélette é uma pequena cidade portuária, verde e montanhosa. As únicas
pessoas que apanham o último ferry para Guernsey são turistas britânicos,
principalmente famílias com filhos pequenos. Lucy segura os passaportes
com força, com as mãos suadas. São passaportes franceses, mas ela é inglesa.
Os filhos têm apelidos diferentes dos dela nos respetivos passaportes. Stella
tem até uma cor diferente da dela. Levam enormes mochilas sujas e estão tão
cansados que parecem indispostos. E os seus passaportes são falsos. Lucy
está absolutamente convencida de que irão fazê-los parar, serão chamados à
parte e interrogados. Ela planeou esta longa e sinuosa jornada de regresso a
Londres de forma a diluir o seu rasto, mas ainda assim, enquanto mostra os
passaportes ao inspetor no porto dos ferrys, o seu coração bate com tal força
que ela acha que ele vai conseguir ouvi-lo. Ele folheia-os, olhando da
fotografia para a pessoa e depois em sentido inverso, devolve-os e manda-os
seguir apenas com um olhar.
Finalmente estão no mar, com a agitação e a espuma acinzentada do Canal
da Mancha, e França fica para trás.
Senta Stella no colo, na parte de trás do ferry, para que a criança possa ver a
terra onde nasceu, o único lar que conheceu a transformar-se numa grinalda
iluminada por fadas brilhando no horizonte.
– Adeus, França – diz Stella, acenando com a mão –, adeus.
36

Libby olha espantada para Phin.


Ele olha-a da mesma maneira.
– Eu morava aqui – diz ele, muito embora ninguém lhe tenha pedido para
explicar quem era. Então, rapidamente, antes que Libby consiga pensar em
algo para dizer, ele exclama:
– É muito bonita.
– Oh – diz Libby.
De seguida, ele olha para Miller e pergunta:
– Quem é você?
– Olá. – Miller estende-lhe a mão. – Sou Miller Roe.
Phin olha para ele interrogativamente.
– Porque me parece reconhecer esse nome?
Miller faz um barulho estranho, quase inaudível, e encolhe os ombros.
– Você é aquele jornalista, não é?
– Sim.
– Aquele artigo era uma grande merda. Estava totalmente errado.
– Sim – volta a dizer Miller. – Agora sei disso.
– Nem posso acreditar em como é bonita – diz, voltando-se para Libby. –
Parece tanto…
– A minha mãe?
– Sim – responde. – A sua mãe.
Libby pensa nas fotografias da mãe com o cabelo pintado de preto como a
Priscilla Presley, e os olhos maquilhados com um risco escuro.
Sente-se lisonjeada.
– O que faz aqui? – pergunta, por sua vez.
– Estava à sua espera – responde Phin.
– Mas eu estive aqui no outro dia. Ouvi-o lá em cima. Porque é que não
desceu?
Ele encolheu os ombros.
– Eu desci. Mas quando cheguei ao fundo das escadas, você já tinha partido.
– Oh.
– Não será melhor…? – Phin faz um gesto para a escada.
Eles seguem-no pelas escadas abaixo e entram na cozinha.
Phin senta-se de um lado da mesa; Miller e Libby sentam-se no outro. Libby
estuda o rosto de Phin. Ele deve estar no início da casa dos quarenta, mas
parece muito mais jovem. Tem umas pestanas extraordinariamente longas.
– Então – diz ele, abrindo os braços –, isto é tudo seu.
Libby assente.
– Embora, na verdade, devesse ser também dos meus irmãos…
– Bem, tanto pior para eles. Oh, acho que lhe devo desejar um feliz
aniversário. Um pouco atrasado.
– Obrigada – diz ela. – Há quanto tempo viveu aqui?
– Há décadas.
Faz-se um silêncio longo e muito frágil, que acaba por ser interrompido por
Phin:
– Calculo que tenha algumas perguntas.
Miller e Libby trocam um breve olhar. Libby assente.
– Bem – prossegue Phin –, vamos sair daqui? Eu vivo mesmo do outro lado
do rio. Tenho vinho fresco. E um terraço. E gatos que parecem almofadas.
Eles trocam outro olhar.
– Não vos vou matar – diz Phin. – Nem os meus gatos. Venham. Eu conto-
vos tudo.

Vinte minutos depois, Libby e Miller saem com Phin de um elevador


elegante para um corredor com chão de mármore.
O apartamento dele fica do outro lado.
As luzes acendem-se automaticamente enquanto ele os conduz ao longo do
corredor para uma sala de estar com portas de vidro que dão para um
terraço com vista para o rio.
É tudo claro e bem arranjado. Sobre as costas de um sofá creme muito
comprido há uma enorme pele branca de ovelha. Numa jarra, vê-se um
arranjo extravagante de lírios e rosas que não pareceria deslocado na sala de
exposições da Northbone Kitchens.
Phin usa um pequeno controlo remoto para abrir as portas para o terraço e
convida-os a sentarem-se num par de sofás em volta de uma mesa baixa.
Enquanto vai buscar vinho, Libby e Miller trocam um olhar.
– Este sítio deve valer uns poucos milhões – comenta Miller.
– Pelo menos – diz Libby, levantando-se para observar a vista do outro lado
do rio. – Veja! – aponta. – É a casa. Estamos exatamente do lado oposto.
Miller junta-se a ela.
– Bem – diz, com uma certa secura –, acho que podemos assumir que não se
trata de uma coincidência.
– Acha que ele tem andado a vigiar?
– Sim, acho que tem. Por que outra razão escolheria um apartamento com
esta vista?
– O que acha dele? – pergunta ela, num sussurro.
Miller encolhe os ombros.
– Acho que ele é um bocado…
– Esquisito?
– Sim, um pouco esquisito. E um pouco…
Mas, nesse momento, Phin regressa com uma garrafa de vinho e três copos
num balde de gelo numa das mãos e um gato contra o peito na outra. Pousa
o balde na mesa, mas fica com o gato ao colo.
– Esta é a Mindy – diz, levantando uma pata da gata em jeito de saudação. –
Mindy, estes são a Libby e o Miller.
A gata ignora-os e tenta libertar-se do abraço de Phin.
– Oh – exclama para a gata que se afasta –, se queres ser uma galdéria, põe-
te a andar, a ver se eu me importo.
Volta-se de novo para eles.
– É a minha preferida – diz. – Apaixono-me sempre pelos que não me
suportam. É por isso que sou solteiro.
Abre a garrafa de vinho e serve um grande copo a cada um.
– Um brinde aos reencontros – exclama.
Tocam os copos e segue-se um silêncio ligeiramente pesado.
– Tem uma vista incrível – diz Miller. – Há quanto tempo mora aqui?
– Não muito. Só acabaram de construir estes apartamentos no ano passado.
– É impressionante, estar exatamente do lado oposto a Cheyne Walk.
Phin assente com a cabeça.
– Eu queria estar perto – explica. – Para quando você regressasse.
Outro gato persa aparece no terraço. É terrivelmente obeso e tem os olhos
esbugalhados.
– Ah – exclama Phin –, cá está ele. O Senhor Caçador de Atenções. Percebeu
que eu tinha visitas. – Pega no gato gigante e deita-o no colo. – Este é o
Dick18. Dei-lhe esse nome porque foi a única forma de ter certeza de que
teria algum.
Libby ri-se e bebe um gole de vinho. Noutras circunstâncias, esta seria uma
excelente noite: dois homens bonitos, uma noite quente de verão, um
glamoroso terraço com vista para o Tamisa, um copo de vinho branco
fresco. Contudo, nestas circunstâncias, tudo parece distorcido e vagamente
ameaçador. Até os gatos.
– Então, o que nos vai contar sobre o que realmente aconteceu em Cheyne
Walk é confidencial, ou posso estar presente como jornalista? – pergunta
Miller.
– Pode estar na qualidade que quiser.
– Posso gravar? – Miller tira o telemóvel do bolso de trás.
– Claro – responde Phin, enquanto os seus dedos vão alisando o pelo
espesso das costas do gato. – Porque não? Já não há nada a perder. Força.
Miller brinca com o telemóvel por um instante. Libby apercebe-se de que as
mãos lhe tremem levemente, traindo a sua excitação. Ela bebe outro grande
gole de vinho, para acalmar os seus próprios nervos. De seguida, Miller
pousa o telefone na mesa e pergunta:
– Bem, diz que eu entendi tudo mal no artigo que escrevi. Podemos começar
por aí?
– Claro. – O gato gordo salta do colo de Phin que, distraidamente, sacode
com as mãos os pelos das pernas das calças.
– Bom, quando estava a fazer pesquisa para este artigo, deparei com o nome
David Thomsen. Thomsen com um E.
– Sim – diz Phin. – O meu pai.
Libby vê uma espécie de alívio triunfante espalhar-se pelo rosto de Miller.
Ele expira e prossegue:
– E a sua mãe… é Sally?
– Sim, Sally é a minha mãe.
– E Clemency…?
– A minha irmã, sim.
– E o terceiro corpo…
– Era o meu pai – Phin anui. – Em cheio. Foi pena não ter descoberto tudo
isso antes de ter escrito o artigo.
– Bem, de certa forma descobri, mas não consegui encontrar nenhum de
vocês. Procurei durante meses e não encontrei o mínimo vestígio. Então, o
que aconteceu a todos?
– Bem, sei o que me aconteceu a mim. Mas não faço a mínima ideia do que
aconteceu à minha mãe e a Clemency.
– Não se mantiveram em contacto?
– Longe disso. Nunca mais as vi desde a minha adolescência. Tanto quanto
sei, a minha mãe vive na Cornualha e assumo que a minha irmã também. –
Encolhe os ombros e pega no copo de vinho. – Em Penreath.
Miller lança-lhe um olhar interrogativo.
– Aliás, tenho a certeza de que ela mora em Penreath.
– Ah – diz Miller. – Isso é ótimo, obrigado.
– De nada – responde. A seguir, esfrega as mãos e incita: – Pergunte-me
outra coisa! Pergunte-me o que aconteceu realmente na noite em que todos
morreram.
Miller sorri sombriamente e pergunta:
– OK. Então, o que aconteceu realmente? Na noite em que morreram?
Phin olha para os dois, com um ar malicioso, e inclina-se de forma a que a
sua boca fique diretamente por cima do microfone do telemóvel de Miller.
– Bem, para começar, não foi suicídio. Foi assassinato.

18
O nome Dick é também usado em calão para designar pénis. (N. da T.)
37

Chelsea, 1991

Phin partira há uma semana. Eu mal conseguia suportar a inutilidade de


tudo sem ele por perto. Com ele em casa, cada viagem que fazia à cozinha
continha a possibilidade de ver o seu rosto, todas as manhãs começavam
com a perspetiva de potenciais encontros. Sem ele, eu estava numa casa
escura cheia de estranhos.
E então, uma semana depois, ouvi a porta da frente bater e vozes que se
elevavam vindas do corredor, e lá estava Phin, com Sally atrás, a falar num
tom de urgência com David, que tinha os braços cruzados à frente do peito.
– Eu não lhe disse para vir. Pelo amor de Deus. Essa é a última coisa que eu
teria feito. Já é suficientemente mau eu abusar do acolhimento em casa de
Toni. Quanto mais o meu filho adolescente.
– Porque não ligaste? – perguntou David.
– Ele disse-me que tu sabias que ele ia ter comigo! Como é que eu ia
adivinhar? E agora liguei-te, não liguei?
– Pensei que ele tinha morrido. Estávamos muito preocupados.
– Estávamos? Quem é que estava? Merda.
– Nós – respondeu David. – Todos. E por favor não uses essa linguagem na
nossa casa.
– Phin disse que lhe bateste.
– Oh, eu não lhe bati. Por amor de Deus. Foi uma palmada.
– Deste-lhe uma palmada?
– Meu Deus, Sal, tu não fazes ideia, não fazes a mínima ideia do que é viver
com este miúdo. É malcriado. Rouba. Droga-se. Desrespeita os outros
companheiros de casa…
Sally estendeu uma mão entre eles.
– Basta – disse. – Ele é um adolescente. É um bom rapaz, mas é adolescente.
É um comportamento normal.
– Bem, isso pode ser verdade de acordo com a tua visão do mundo
ligeiramente patética. Mas o resto do mundo discordaria. Não há desculpa
para nada disso. Eu nunca sonhei sequer em comportar-me dessa maneira
quando tinha a idade dele. É diabólico.
Vi Sally apertar o ombro do filho. Reparei nas suas faces cavadas. Então, ela
disse:
– Amanhã vou ver um apartamento. Em Hammersmith. Tem dois quartos.
Poderemos começar a partilhar a guarda das crianças.
– Como é que vais pagar isso? – perguntou David, cético.
– Tenho estado a trabalhar e a poupar.
– Bom, estou a ver. Mas agora a sério, não acho que Phin fique em segurança
ao teu cuidado. Tu és muito mole com ele.
– Não sou mole, David, sou carinhosa. De vez em quando devias
experimentar.

Sally ficou durante umas duas horas. O ambiente era tóxico. Birdie não
desceu do quarto, mas eu conseguia ouvi-la tossir ostensivamente, a suspirar
e a andar de um lado para o outro. Quando, finalmente, Sally foi embora,
Birdie precipitou-se pelas escadas e atirou-se para os braços de David,
sussurrando melodramaticamente:
– Estás bem, meu querido?
– Estou – assentiu David, estoicamente. E, de seguida, fixando Phin,
semicerrou os olhos e proferiu as palavras que marcaram o início do
verdadeiro pesadelo.
– As coisas vão mudar por aqui. Toma nota do que digo.

A primeira coisa que mudou foi Phin passar a ser trancado no seu quarto
sempre que David ou Birdie não o podiam vigiar. De alguma forma, os
adultos mostravam-se conluiados para nos persuadir de que isso era normal,
compreensível e até saudável. É para sua própria segurança, era o mantra.
Ele estava autorizado a sair para tomar banho, cuidar do jardim, ajudar na
cozinha, ter aulas de violino, estar presente às refeições e participar nas aulas
de ginástica.
Uma vez que já passávamos a maior parte do tempo livre nos nossos
quartos, a princípio isto não pareceu tão sinistro como parece, escrito desta
maneira. Ao olhar para trás, é muito estranho ver como as crianças são
capazes de aceitar mesmo os cenários mais estranhos. Mas ainda assim, ao
olhar agora para a situação, a preto e branco, é realmente bastante chocante.

Um dia, pouco depois de Phin ter voltado acompanhado pela mãe, eu estava
sentado na minha cama, de pernas cruzadas, a ler um livro que ele me
emprestara algumas semanas antes. Dei um salto quando o vi, porque já era
de noite e eu assumira que, por essa altura, a sua porta estaria trancada.
– Como…? – comecei.
– Depois do jantar, Justin trouxe-me para cima – disse. – «Sem querer»,
esqueceu-se de fechar devidamente o cadeado.
– Bom e velho Justin – comentei. – O que vais fazer? Não vais fugir, pois
não?
– Não – respondeu. – Agora já não interessa. Na próxima semana a minha
mãe vai mudar-se para o tal apartamento e eu vou morar com ela. Esta
merda vai acabar.
Foi como se ele me tivesse dado um soco na garganta. A minha voz falhou
quando respondi:
– Mas, o teu pai… ele vai deixar?
– Estou-me a borrifar se deixa ou não. Em dezembro faço dezasseis anos. Eu
quero ir morar com a minha mãe. Não há muito que ele possa fazer em
relação a isso.
– E Clemency?
– Ela também vai.
– E achas que o teu pai e Birdie também se irão mudar? Já que tu
e Clemency não estarão cá?
Riu-se asperamente.
– Hum. Não. Nem pensar. Ele está aqui bem firme. Conseguiu que tudo
corresse como queria.
Um breve silêncio instalou-se entre nós. Então, Phin disse:
– Lembras-te daquela noite? Quando subimos ao telhado? Quando
tomámos o ácido?
Acenei com a cabeça efusivamente. Como poderia esquecer?
– Sabes que temos outro. Que ainda está lá em cima…?
– Outro…?
– Mais uma tira. De ácido. O tipo do mercado de Kensington deu-me dois e
só tomámos um.
Assimilei a informação por um momento.
– Estás a dizer que…?
– Sim. Todos acham que estou trancado em segurança. As raparigas estão a
dormir. Agora já ninguém vai subir. Podes ir lá abaixo, dizes a todos que te
vais deitar e trazes um copo de água. Eu fico aqui à espera.
Claro que fiz exatamente o que ele me disse.
Agarrámos num cobertor e vestimos camisolas. Fui o primeiro a passar pelo
alçapão. Phin entregou-me a água e depois avançou atrás de mim.
Estávamos em julho, mas o ar estava húmido e fresco. Phin foi buscar o
saquinho ao sítio onde o tinha deixado, num vaso de plantas. Na verdade, eu
não queria nada daquilo. Esperava que de alguma forma tivesse perdido a
sua toxicidade durante os muitos meses em que esteve ali fora, sujeito aos
elementos. Tinha esperança de que uma repentina rajada de vento o levasse
dali para fora. Ou que Phin o voltasse a pôr no mesmo sítio, dizendo:
– Não precisamos disto. Temo-nos um ao outro.
Sacudimos as folhas secas caídas sobre as cadeiras de plástico e sentámo-nos
lado a lado.
Phin colocou o quadradinho na palma da mão.
O céu estava espetacular. Azul-real, âmbar torrado, batom cor-de-rosa. O
efeito refletia-se na superfície do rio. À distância, a ponte Battersea brilhava.
Vi que Phin também observava o céu. O ambiente parecia diferente da
última vez que ali tínhamos estado. Phin também estava diferente. Mais
pensativo, menos rebelde.
– O que achas que vais acabar por fazer? – perguntou-me. – Quando fores
adulto?
– Algo relacionado com computadores – respondi. – Ou fazer filmes.
– Ou talvez os dois? – sugeriu.
– Sim – concordei alegremente. – Fazer filmes com computadores.
– Fixe – disse ele.
– E tu?
– Quero ir viver para África. Ser guia de safáris.
– De onde veio essa ideia? – perguntei, rindo-me.
– Fizemos um safári quando andávamos a viajar. Eu tinha seis anos. Vimos
hipopótamos a fazer sexo. É aquilo de que melhor me lembro. Mas também
me recordo muito bem do guia. Era um tipo inglês muito fixe. Chamava-se
Jason.
Nesse momento, percebi uma pontada de saudade na sua voz. E isso fez-me
sentir mais próximo dele de uma forma que eu não conseguia entender
plenamente.
– Lembro-me de dizer aos meus pais que era isso que queria fazer quando
crescesse. O meu pai disse que eu nunca faria fortuna a conduzir turistas
num Land Rover. Como se o dinheiro fosse a única coisa que importasse…
Suspirou e olhou para a palma da mão.
– Então, vamos? – perguntou.
– Só um bocadinho – disse eu. – Um pedacinho mesmo minúsculo.
As horas seguintes desenrolaram-se como um sonho lindo. Observámos o
céu até que todas as diferentes cores se consolidaram em preto. Falámos
sobre o sentido da vida de um modo incrivelmente absurdo. Rimo-nos até
ficarmos com soluços.
– Quando me mudar para Hammersmith, tens de me ir visitar de vez em
quando. Tens de ir e ficar lá a dormir – disse Phin, a determinada altura.
– Sim. Por favor.
E então, num outro momento, perguntei:
– O que farias se eu te beijasse?
E Phin riu e riu e riu até que teve um ataque de tosse. Ele estava dobrado de
tanto rir e eu fiquei a observá-lo com um sorriso amarelo, tentando
compreender o significado da sua reação.
– Não, a sério – insisti. – O que farias?
– Empurrava-te deste telhado – respondeu, ainda a sorrir. Abriu os dedos e
disse: – Plaft.
– Ah, ah, que engraçado – forcei-me a rir.
– Vem, vamos embora daqui – disse ele.
– Para onde?
– Já te mostro. Segue-me.
E segui-o. Eu era um rapaz estúpido, mesmo estúpido. Segui-o enquanto
voltávamos ao patamar do sótão e depois saíamos por uma janela, descendo
por um dos lados da casa, num ato de insana temeridade, causador de medo
e náusea.
– O que estás a fazer? – ia eu perguntando, com as unhas cravadas nos
tijolos nus e as pernas das calças a rasgarem-se nas saliências da alvenaria. –
Onde vamos?
– É o meu caminho secreto! – respondeu ele, olhando-me com uma
expressão selvagem. – Vamos até ao rio! Ninguém vai saber!
No momento em que aterrámos no relvado, eu estava a sangrar em três
sítios diferentes, mas não me importei. Segui-o através das sombras até um
portão que eu não fazia ideia que existia, ao fundo do nosso jardim. De
repente, como em Nárnia, estávamos no jardim de outra pessoa e então
Phin agarrou-me na mão, arrastando-me de uma esquina para a outra,
através da escuridão mágica de Chelsea Embankment, atravessando quatro
faixas de tráfego até chegarmos à beira-rio. Aí, largou-me a mão. Durante
um momento, permanecemos ali parados, em silêncio, lado a lado, a
observarmos os vermes dourados e prateados que se contorciam pela
superfície da água. Continuei a olhar para ele, que no escuro ainda parecia
mais bonito do que nunca, sob a luz ténue em movimento.
– Para de olhar para mim – disse-me.
Olhei-o ainda com mais intensidade.
– Estou a falar a sério – disse. – Para de olhar.
Mas eu continuei a olhar para ele com a mesma intensidade.
E então ele empurrou-me com força, com as duas mãos, fazendo-me cair na
água escura. De repente, eu estava debaixo de água e os meus ouvidos
enchiam-se de bolhas que ecoavam e as minhas roupas ficavam pesadas e
prendiam-se-me à pele. Eu tentava gritar, mas em vez disso engolia água e as
minhas mãos procuravam o muro do rio e as minhas pernas batiam no
nada, espesso e pegajoso. E então os meus olhos abriram-se e vi rostos: uma
constelação de rostos enegrecidos em volta do meu e tentei falar-lhes, pedir-
lhes que me ajudassem, mas todos se afastaram e de súbito eu estava a subir,
com uma dor em volta do meu pulso, o rosto de Phin mais acima,
arrastando-me pelos degraus de pedra até à margem.
– Sacana maluco – disse ele, rindo-se, como se eu tivesse escolhido cair no
Tamisa, como se tudo fosse apenas diversão.
– Filho da mãe! – empurrei-o, gritando, com a minha voz ainda adolescente
a soar estridente e insuportável. – Grande filho da mãe!
Passei por ele determinado e atravessei as quatro faixas de tráfego, fazendo
alguém buzinar-me, em direção à porta da frente da casa.
Phin foi atrás de mim e aproximou-se já junto à porta, sem fôlego.
– Que merda estás a fazer?
Eu devia ter-me detido naquele momento, devia mesmo. Devia ter respirado
fundo e avaliado a situação, para tomar uma decisão diferente. Mas estava
tão cheio de raiva, não apenas por ter sido empurrado para o frio e imundo
Tamisa, mas por todos aqueles anos em que Phin ora me dava alguma
atenção, ora me ignorava por completo, oferecendo-me pequenas migalhas
quando era do seu interesse fazê-lo e ignorando-me totalmente quando não
era. Olhei para ele, que estava seco e bonito, enquanto eu estava molhado e
feio, e então virei-me e pressionei com firmeza a campainha com a ponta do
dedo.
Ele olhou para mim. Percebi que hesitava entre ficar ou fugir. Mas, um
segundo depois, a porta abriu-se. Era David e ele olhou de um para o outro
e os seus ombros levantaram-se, a sua boca apertou-se e ele parecia um
animal enjaulado prestes a atacar. Com uma voz lenta e retumbante, ele
disse:
– Entrem imediatamente.
Então, Phin voltou-se e começou a correr, mas o seu pai era mais alto e
estava mais em forma. Apanhou-o ainda antes de ele conseguir chegar à
esquina da rua e deitou-o ao chão. Assisti à cena com o queixo erguido
defensivamente, com os dentes a bater dentro do meu crânio de criança e os
braços em volta do corpo.
A minha mãe apareceu à porta.
– O que se passa? – perguntou, espreitando por cima da minha cabeça. – O
que é que andaram a fazer?
– O Phin atirou-me ao rio – gaguejei, com os dentes ainda a bater.
– Meu Deus – exclamou ela, puxando-me para dentro de casa. – Meu Deus.
Entra. Vai despir essa roupa. Que raio…?
Não entrei nem despi a minha roupa. Fiquei ali, a ver David arrastar o seu
filho já crescido pelo passeio, como uma presa recém-capturada.
Pronto, pensei comigo mesmo, já está.
38

Na manhã de quarta-feira, depois de duas noites numa pensão muito


humilde e de uma travessia agitada pelo que faltava do Canal da Mancha,
Lucy alugou um carro em Portsmouth e seguiram para Londres.
Quando deixara Inglaterra era inverno e, na sua mente, ali estava sempre
frio, as árvores sempre nuas, as pessoas sempre agasalhadas por causa do
clima inclemente. Mas agora Inglaterra está presa num verão longo e quente,
e as ruas estão cheias de pessoas bronzeadas e felizes, de calções e óculos de
sol, os passeios estão ocupados com mesas, há fontes cheias de crianças e
espreguiçadeiras do lado de fora das lojas.
Sentada no banco de trás do carro e com Fitz no colo, Stella olha pela janela.
Nunca tinha saído de França. Nunca deixara a Côte d’Azur. Toda a sua curta
vida tinha sido passada inteiramente nas ruas de Nice, entre a Casa Azul, o
apartamento da Mémé e o infantário.
– Então, o que achas de Inglaterra? – pergunta Lucy, olhando para ela pelo
espelho retrovisor.
– Gosto – responde Stella. – Tem cores bonitas.
– Cores bonitas, hein?
– Sim. As árvores são superverdes.
Lucy sorri e Marco dá-lhe a indicação seguinte para a autoestrada, a partir
da aplicação do Google Maps.
Três horas depois, Londres começa a assomar ao longo de uma rua principal
em mau estado.
Vê Marco virar-se para a janela, esperando descobrir o Big Ben e o Palácio
de Buckingham, mas vislumbra antes o restaurante de fast-food Dixie Fried
Chicken e lojas de eletrodomésticos usados.
Finalmente, atravessam o rio e está um dia de Sol glorioso: a água cintila
com os diamantes da luz do Sol; as casas de Cheyne Walk brilham com
intensidade.
– Chegamos – diz a Marco. – É aqui.
– Qual é a casa? – pergunta ele, quase sem fôlego.
– Aquela – diz Lucy, apontando para o número dezasseis. O tom da sua voz
é leve, mas o seu coração dispara dolorosamente ao ver a casa.
– A que tem o tapume? – pergunta Marco. – Aquela?
– Sim – responde, dando uma espreitadela em direção à casa, ao mesmo
tempo que presta atenção ao estacionamento.
– É grande – diz ele.
– É verdade – confirma ela.
Porém, estranhamente, agora parece-lhe mais pequena, através dos seus
olhos adultos. Quando era criança, achava que era uma mansão. Agora
percebe que é apenas uma casa. Uma casa linda, mas, ainda assim, apenas
uma casa.
Torna-se evidente que não há estacionamento disponível em qualquer lugar
perto da casa e por isso acabam na outra extremidade de King’s Road, numa
zona do World’s End que requer o download de uma aplicação de
estacionamento através do telemóvel.
Estão trinta graus, tão quente como no sul de França.
Quando chegam a casa, estão todos a suar e o cão ofegante.
O tapume está preso com um cadeado. Ficam alinhados a estudar o edifício.
– Tens certeza de que esta é a casa certa? – pergunta Marco. – Como é que
alguém mora aqui?
– De momento, não mora aqui ninguém – responde Lucy. – Mas vamos
entrar e esperar que os outros cheguem.
– Mas como é que entramos?
Lucy inspira profundamente e diz:
– Sigam-me.
39

Na manhã seguinte, Libby acorda com a luz brilhante do Sol. Passa a mão
pelo chão ao lado da cama e, em seguida, por cima da mesa de cabeceira,
tentando encontrar o telemóvel. Não está ali. A noite parece-lhe densa e
indefinida. Senta-se rapidamente e examina o quarto. É uma pequena
divisão branca e ela está deitada numa cama de madeira muito baixa com
um colchão enorme. E Miller também.
Instintivamente, puxa o lençol sobre o peito, antes de perceber que está
vestida. Tem o top que usava na noite anterior, e a roupa interior. Lembra-se
vagamente de ter despido os calções enquanto Miller estava na casa de
banho e de se ter escondido por baixo da colcha. Lembra-se vagamente de
ter lavado os dentes com pasta dentífrica e ainda sente alguns resquícios a
eles agarrados. Lembra-se vagamente de muitas coisas.
Está no apartamento de Phin.
Está na cama com Miller.
Estão ambos vestidos e deitados um ao lado do outro.
Na noite passada, Phin serviu-lhes um copo de vinho atrás de outro. E
insistiu, quase ao ponto de se tornar um pouco estranho, para que ficassem.
– Não vão – pediu. – Por favor. Acabei de a encontrar. Não quero perdê-la
de novo.
– Não me irá perder. Agora somos praticamente vizinhos. Veja! – diz Libby,
apontando para o outro lado do rio, para a fileira de casas aristocráticas
onde fica o número dezasseis.
– Por favor – prosseguiu, sedutor, com as suas longas pestanas a roçarem as
sobrancelhas perfeitamente penteadas. – É certamente melhor do que ficar
ali a dormir naqueles colchões velhos e sujos. Vá lá. De manhã preparo-vos
um pequeno-almoço delicioso! Tenho abacate. É disso que vocês,
millennials, gostam, não é?
– Eu prefiro ovos – respondeu Miller.
– Você é realmente um millennial? – perguntou Phin, de olhos
semicerrados, num tom ligeiramente malicioso.
– Por pouco – respondera Miller. – Mas prescindo da parte do abacate.
Libby vê as horas no despertador da mesa de cabeceira e calcula que se sair
dentro de oito minutos conseguirá estar no trabalho às nove da manhã.
Embora para ela seja tarde, não é problemático em termos de telefonemas
ou de clientes a entrarem na loja.
Volta a vestir os calções e iça-se da cama baixa.
Miller mexe-se.
Olha para ele.
Apercebe-se da sugestão de uma tatuagem na parte de cima do braço dele,
onde a manga da T-shirt subiu. Ela não suporta tatuagens. O que torna o
namoro particularmente estranho nos dias de hoje. Mas não pode deixar de
observar que ele tem um ar doce. Suave e atraente.
Desvia o olhar da forma adormecida e vai em bicos dos pés para a casa de
banho, da qual se recorda vagamente de ter usado já muito tarde na noite
anterior. Ao espelho, parece razoavelmente ilesa. Ter usado o secador na
manhã anterior permitiu-lhe sobreviver a todas as aventuras subsequentes.
Usa de novo a pasta de dentes e gargareja com água da torneira. Puxa o
cabelo para trás num rabo de cavalo e encontra uma lata de desodorizante
no armário da casa de banho.
Quando regressa ao quarto, Miller está acordado.
– Bom dia – cumprimenta ele, com um sorriso. Estica os braços acima da
cabeça e ela vê a extensão da tatuagem. É uma coisa qualquer celta. Podia ser
pior.
– Tenho de ir – diz Libby, pegando na mala de mão.
– De ir onde?
– Trabalhar – responde.
– Oh, a sério? Não acha que a sua chefe lhe dá folga esta manhã?
Para. Claro que ela lhe daria folga. Mas Libby não funciona dessa maneira.
Fica nervosa só de pensar nisso.
– Não – replica. – Quero ir trabalhar. Tenho um dia importante. Algumas
reuniões marcadas com clientes.
– Não quer desiludir as pessoas?
– Não, não quero.
– Bem – diz ele, atirando o lençol para trás e revelando estar a usar uns
boxers de algodão vermelhos e azuis e umas pernas sólidas de jogador de
râguebi –, dê-me trinta segundos e eu vou consigo.
– Por acaso não sabe onde está o meu telemóvel? – pergunta-lhe Libby.
– Não faço ideia – responde, levantando-se da cama e vestindo as calças.
O seu cabelo está na maior confusão. A barba também. Ela reprime um
sorriso.
– Vai… vai ver-se ao espelho?
– Devo ir? – Ele parece confuso.
Ela pensa nas horas e diz:
– Não, está bem assim. Vamos procurar os nossos telemóveis e sair daqui.
Põe a mão sobre a maçaneta da porta e empurra-a. A porta não se abre.
Volta a empurrar. Mais uma vez, a porta não abre. Insiste mais quatro vezes.
Então, volta-se para Miller e diz:
– Está trancada.
40

Chelsea, 1991

Depois da noite em que Phin me empurrou para o rio, David manteve-o


trancado no quarto durante uma semana. Uma semana inteira. De certa
forma fiquei satisfeito, porque não podia suportar olhá-lo nos olhos. Ele
empurrou-me para o rio, mas o que eu fiz foi muito, muito pior.
Contudo, acima de tudo, eu sofria. Sofria de remorsos, de arrependimento,
de fúria, de impotência e de saudades dele. As refeições eram-lhe levadas ao
quarto e ele tinha autorização para ir à casa de banho duas vezes por dia,
com o pai rondando do lado de fora da porta, com os braços cruzados sobre
o estômago, como um segurança malévolo.
Durante esses dias, o ambiente em casa era pesado e tornava-se impossível
ler. Tudo emanava de David. Ele irradiava uma terrível energia negativa e
todos evitavam irritá-lo ainda mais, inclusive eu.

Uma tarde, durante a prisão de Phin, sentei-me com Justin, organizando


ervas com ele. Olhei para cima, na direção da janela de Phin, nas traseiras da
casa.
– Não acha que é horrível David trancar Phin desta maneira? – perguntei.
Ele encolheu os ombros.
– Ele podia ter-te matado, amigo. Podias ter morrido.
– Sim, eu sei. Mas não matou. E eu não morri. Isto é… errado.
– Bom, decerto que eu também não faria as coisas desta maneira, mas
também não sou pai, não sei como é ter filhos. Acho que o David está
apenas a «fazer o seu papel». – Justin fez o sinal de aspas, ao dizer estas
palavras.
– O seu papel? – perguntei. – O que quer dizer?
– Bem, sabes como é, ter um controlo total sobre absolutamente tudo.
– Odeio-o – exclamei, com a minha voz a ceder inesperadamente.
– Pois, bem, já somos dois.
– Porque é que não vai embora?
Olhou primeiro para mim e depois para a porta das traseiras.
– É o que tenciono fazer – sussurrou. – Mas não digas a ninguém, OK?
Acenei com a cabeça.
– No País de Gales há uma pequena propriedade. Conheci uma mulher no
mercado que me falou disso. Estão à procura de alguém para montar um
jardim de ervas medicinais. Será como aqui, alimentação e alojamento
gratuitos e tudo isso. Mas sem um senhor feudal merdoso. – Mais uma vez,
revirou os olhos em direção à casa.
Sorri. Senhor feudal merdoso. Gostei.
– Quando vai?
– Em breve – respondeu. – Muito em breve – olhou para mim, rapidamente.
– Queres vir comigo?
– Para o País de Gales? – pisquei os olhos.
– Sim. Para o País de Gales. Podes continuar a ser o meu jovem amigo
aprendiz.
– Mas eu tenho apenas catorze anos.
Ele não disse nada, apenas acenou com a cabeça e continuou a amarrar as
ervas.
Só um pouco mais tarde percebi o significado do que me disse. Ele não
estava a convidar-me a ir para Gales para ser o seu jovem amigo aprendiz;
não estava a convidar-me por precisar de mim. Estava a convidar-me porque
achava que eu estaria mais seguro lá do que na minha própria casa.

Justin desapareceu dois dias depois. Não disse a ninguém que ia embora e
saiu tão cedo que nem sequer David tinha ainda acordado. Tendo aprendido
a lição com o que acontecera com Phin em relação a contar histórias, não
falei a ninguém da pequena propriedade galesa. Fiquei com a impressão de
que ele não queria que alguém soubesse para onde ia. Mais tarde, fui ao seu
quarto. Ele chegara com muito pouco, e partira ainda com menos. Fui até ao
parapeito da janela onde todos os seus livros estavam dispostos numa fila.
Um Guia Moderno de Bruxaria e Magia;
Wicca para Principiantes;
Livro Wicca de Feitiços com Plantas.
Tive a certeza de que ele os deixara para mim.
Espreitei para o corredor e, depois de me certificar de que não havia
ninguém por perto, escondi os livros por baixo da minha camisola.
Estava prestes a correr de volta ao meu quarto, quando vislumbrei outra
coisa na sua mesa de cabeceira que me chamou a atenção. Algo pequeno e
peludo. A princípio, pensei que era um rato morto, mas depois descobri que
era uma pata de coelho presa a uma pequena corrente. Eu tinha uma vaga
ideia de que servia para dar sorte, tal como a urze e os trevos de quatro
folhas. Enfiei-a rapidamente no bolso e corri para o meu quarto onde
escondi tudo por baixo do colchão.

Sempre esperei voltar a ter notícias de Justin.


Depois de os corpos terem sido descobertos e de a polícia começar a
investigar as mortes e a tentar localizar os «filhos tragicamente
desaparecidos» dos Lambs, esperei e esperei que Justin aparecesse de repente
no noticiário das seis horas para falar sobre o tempo que passara na casa,
sobre como David Thomsen costumava trancar o filho adolescente no
quarto e como dizia a todos o que comer e o que vestir, bem como onde
podiam e não podiam ir.
Desde então, procurei muitas, muitas vezes o Justin no Google, mas não
encontrei qualquer sinal dele em lado algum. Só podia presumir que tinha
morrido ou que emigrara para algum lugar obscuro e remoto ou ainda que
sabia o que acontecera a todos nós, mas decidira manter-se em silêncio e
não se envolver. Fosse qual fosse a verdade, sempre me senti secretamente
aliviado. Mas também senti a sua falta. A princípio, eu não tinha gostado
dele, mas Justin acabou por ser o menor dos meus malditos problemas.

Passaram-se meses. O verão tornou-se inverno. Tomei conta do jardim de


ervas medicinais de Justin. David encorajava-o ativamente, já que isso se
coadunava com a sua ideologia. As crianças devem trabalhar arduamente a
fazer coisas saudáveis. Não devem aprender atividades que as possam
encaminhar para os maléficos caminhos do capitalismo. Ele não fazia ideia
dos livros que eu tinha debaixo da minha cama nem das capacidades muito
particulares que eu andava a desenvolver. Todas as noites eu levava, a quem
quer que estivesse a cozinhar, punhados de manjericão e hortelã frescos, e os
adultos não só aprovavam como me mimavam por isso. Uma noite, Birdie
até me preparou um banho quando me viu à chuva a proteger umas jovens
plantas delicadas.
– Estás a fazer um bom trabalho – disse-me, entregando-me uma toalha
enquanto eu subia as escadas. – O David está muito satisfeito contigo.
O David está muito satisfeito contigo.
Apeteceu-me morder-lhe, como se fosse um cão.
Como era de prever, Sally não tinha conseguido o apartamento em
Hammersmith e continuava no sofá em Brixton. Agora falava em mudar-se
para a Cornualha.
Uma noite, chegou com Phin e Clemency a reboque e com três horas de
atraso, depois de os ter levado à tarde para a festa de um amigo, na qual era
bem percetível que tinha bebido demasiado. Eu já antes tinha visto adultos
bêbados, muitas vezes, quando os meus pais ainda eram sociáveis e davam
festas todos os fins de semana. Mas não tenho certeza de alguma vez ter
visto alguém tão bêbado como Sally naquela noite.
– Nem acredito – ouvi David dizer, num tom de voz tenso de fúria – que
aches que há a mínima possibilidade de alguém deixar estas crianças
morarem contigo. Olha para o estado em que estás.
– Tu! – disse Sally. – Bem podes falar! Olha para o teu estado! Quem pensas
que és? És patético. Patético. Tu e essa rapariga horrível. E sabe Deus com
quem mais andas enrolado. Só Deus sabe.
Vi David a tentar levar Sally até à porta com rudeza. Percebi que estava
cheio de vontade de lhe bater e que se esforçava para não o fazer.
Mas, nesse momento, a minha mãe apareceu.
– Vou-lhe fazer um café – disse, tocando no cotovelo de Sally, e lançando a
David um olhar de advertência. – Vamos. Vamos resolver esta situação.
Fingi ignorar o drama e apareci na cozinha um momento depois.
– Vim só buscar um copo de água – informei, embora, na realidade,
ninguém estivesse interessado em saber. Fingi sair, mas esquivei-me
silenciosamente para dentro da despensa.
Sally estava a chorar, em silêncio, com um lenço pressionado contra o rosto.
Ouvi-a dizer:
– Por favor, mantenha-os seguros. Mantenha-os seguros por mim. Eu não
sei se algum dia conseguirei… – As restantes palavras foram engolidas pela
buzina de um barco que passava no rio, do outro lado da porta da frente. –
Estou tão preocupada. Phin contou-me sobre ficar trancado no quarto e
claro que eu percebo que ele fez uma coisa má. Meu Deus, bem sei que
Henry poderia ter morrido. Mas é tão…cruel, não é? Trancar assim uma
criança? É um homem tão frio…
– Já sabe como é o David – replicou a minha mãe. – É a sua forma de
manter tudo em ordem. Ele salvou-nos, Sally. Salvou mesmo. Antes de ele
chegar, eu não percebia o interesse de viver cada dia. Mas agora, todos os
dias acordo sentindo-me feliz com a minha existência. Comigo mesma. Não
estou a tirar nada ao planeta. Não estou a saquear. Não estou a contribuir
para o aquecimento global. Os meus filhos não vão acabar sentados atrás de
secretárias com tampo de vidro a tirar dinheiro aos pobres. Eu só queria –
acrescentou – que David tivesse entrado nas nossas vidas muitos anos antes.
41

Libby bate com os punhos na porta. Miller faz o mesmo. É uma sólida porta
corta-fogo. Ele vai até à janela para ver se há alguma forma de escapar dali,
mas está hermeticamente fechada e simplesmente equivaleria a uma queda
de uma altura de dez andares.
Procuram mais uma vez os telemóveis por todo o quarto, mas não os
conseguem encontrar.
Após meia hora, param de bater e, derrotados, sentam-se no chão com as
costas encostadas aos pés da cama.
– E agora? – pergunta Libby.
– Vamos esperar mais meia hora e, nessa altura, tentarei deitá-la abaixo.
– Porque não tenta agora?
– Sabe que não tenho tanta força como parece. Tenho uma antiga lesão nas
costas. Preciso de ter cuidado.
– Dez minutos então – diz ela.
– OK, dez minutos.
– O que raio acha que ele tem em mente? – pergunta Libby.
– Não faço a mínima ideia.
– Acha que ele nos vai matar?
– Oh, duvido.
– Então, por que motivo nos trancou aqui?
– Talvez tenha sido acidental?
– Não acredita realmente nisso, pois não? – Libby olha para ele, incrédula. O
despertador marca 7h37. Ainda está a tentar calcular quanto tempo chegará
atrasada ao trabalho quando se ouve uma porta a bater e os dois se sentam
direitos. Ouvem uma voz. É a voz de Phin, a dirigir-se a um dos gatos.
Ouvem sons de beijinhos. Levantam-se de um salto e começam novamente a
bater na porta do quarto.
Um momento depois, a porta abre-se e Phin espreita.
– Oh, meu Deus – exclama, tapando a boca com a mão. – Meu Deus. Sinto
muito. Tenho este terrível problema de sonambulismo. Já antes entrei em
quartos de hóspedes… Na verdade, uma vez até tentei deitar-me com eles na
cama. Por isso, tranquei-vos antes de ir para a cama. E depois, esta manhã,
acordei estupidamente cedo e decidi sair para ir correr. Esqueci-me
completamente de vocês. Lamento imenso. Venham. Venham, por favor.
Vamos tomar o pequeno-almoço.
– Não posso tomar o pequeno-almoço. Estou atrasada para o trabalho.
– Oh, ligue-lhes e diga o que aconteceu. De certeza que vão compreender.
Vá lá. Tenho sumo de laranja acabado de fazer e tudo o mais. Está outro dia
lindo. Podemos comer no terraço. Por favor.
Estava a fazê-lo de novo, aquela espécie de sedução que já tinha feito na
noite anterior. Libby sentiu-se encurralada.
– Porque não nos contou – disse ela –, ontem à noite? Porque não nos disse
que ia trancar a porta? Ou, pelo menos, podia ter-nos dito para a
trancarmos por dentro.
– Já era muito tarde – respondeu –, e eu estava muito bêbado, e muito
estúpido.
– Assustou-nos a sério, sabe? Eu fiquei realmente apavorada. – Libby sente a
sua voz falhar, apesar da tensão dos últimos momentos ter começado a
desaparecer.
– Por favor, perdoem-me – pediu. – Sou um idiota. Não pensei como devia.
Vocês estavam a dormir e eu não quis acordar-vos. Limitei-me a trancá-la.
Sem pensar. Vá lá. Venham comer qualquer coisa.
Libby e Miller trocam um olhar. Ela percebe que ele quer ficar. Acena com a
cabeça.
– Então está bem, mas tem de ser rápido. Phin?
Ele olha para ela docemente.
– Onde estão os nossos telemóveis?
– Oh, não estão no vosso quarto?
– Não – responde ela. – Nenhum deles.
– Bem, devem tê-los deixado lá fora à noite. Vamos procurá-los.
Seguem-no ao longo do corredor até à sala de estar de plano aberto.
– Oh – diz ele, suavemente. – Estão aqui. Deixaram-nos a carregar na
cozinha. Ontem à noite devíamos estar todos muito, muito bêbados. Vá –
prossegue –, vão sentar-se no terraço. Já vos levo o pequeno-almoço.
Sentam-se lado a lado no sofá. O Sol brilha na margem do outro lado do rio,
incidindo sobre as janelas das casas de Cheyne Walk.
Sente Miller aproximar-se dela.
– Não pega – sussurra-lhe ao ouvido. – Não vou na história «estava bêbado e
por isso tranquei-vos no quarto sem vos dizer nada». E também não
acredito naquilo do telemóvel. Na noite passada, eu estava bêbado, mas
ainda me lembro de ter o telefone na mão quando nos fomos deitar. Cheira-
me a esturro.
Libby acena em concordância.
– Pois. Alguma coisa não bate certo.
Pega no telemóvel e liga para Dido. Vai diretamente para o voicemail.
– É uma longa história – começa a explicar –, mas ainda estou em Chelsea.
Podes pedir à Claire para falar com os Morgans quando eles chegarem, às
dez? Ela tem todas as informações. E os novos orçamentos estão no sistema.
Basta imprimi-los. E eu estarei a caminho antes da minha próxima reunião.
Prometo. Desculpa, explico-te tudo quando nos virmos. E se eu não estiver
aí às dez e meia, liga-me. Se eu não atender – olha rapidamente para trás e
vê que Phin ainda está atrás do balcão da cozinha, a cortar pão –, estou em
Battersea, num bloco de apartamentos precisamente do lado oposto à casa.
OK? Não sei qual é o número. Mas deve ser por volta do décimo andar. Até
já. Desculpa. Adeus.
Desliga e olha para Miller.
Ele olha para ela pelo canto do olho e sorri suavemente.
– Eu não vou deixar que nada de mal te aconteça – diz. – Vou certificar-me
de que chegas a tempo da tua próxima reunião. Viva. OK?
Sente-se inundada por uma onda de afeto. Sorri e acena com a cabeça.
Phin aparece com um tabuleiro e coloca-o à frente deles. Ovos mexidos,
abacate esmagado polvilhado com sementes, uma pilha de torradas em pão
de centeio escuro, um pouco de manteiga branca e um jarro de sumo de
laranja gelado.
– Que tal vos parece? – pergunta, distribuindo os pratos.
– Parece excelente – responde Miller, esfregando as mãos, antes de começar
a empilhar torradas no seu prato.
– Café? – oferece Phin. – Chá?
Libby pede café e acrescenta-lhe leite de um jarro. Pega numa torrada, mas
percebe que não tem apetite.
Olha para Phin. Quer fazer-lhe umas perguntas sobre a história que ele lhes
contou na noite passada, mas ainda não conseguiu recompor-se totalmente e
as ideias parecem confusas e distantes, difíceis de apreender. Era qualquer
coisa relacionada com uma mulher chamada Birdie que tocava violino.
Qualquer coisa relacionada com um gato. Qualquer coisa relacionada com
uma lista de regras e um sacrifício pagão e algo muito mau relacionado com
Henry. Mas, na verdade, parece-lhe tudo tão vago que é quase como se ele
não lhes tivesse contado nada. Portanto, pergunta-lhe apenas:
– Tem alguma fotografia de todos vocês quando eram crianças?
– Não – responde, com um ar de pena. – Nenhuma. Lembre-se de que
quando saímos não havia nada na casa. O meu pai vendeu tudo, até ao
último objeto. E o que não vendeu, entregou a lojas de caridade. Mas… –
Faz uma pausa. – Lembra-se de uma canção dos anos oitenta chamada…
Não, é claro que não se lembra, é demasiado nova. Mas havia uma canção de
um grupo chamado Original Version. Esteve em primeiro lugar nos tops
durante semanas, no verão, antes de irmos viver para a casa. Birdie, a
mulher de quem vos falei na noite passada, esteve nesse grupo durante uns
tempos. Aliás, a Birdie e o Justin. E o vídeo da canção foi filmado em
Cheyne Walk. Quer vê-lo?
Libby suspira. Além da fotografia dos pais em traje de noite, no artigo de
Miller no Guardian, isso será o mais perto que conseguirá chegar para ter
uma noção do lugar de onde veio.
Passam para a sala de estar e Phin liga o telemóvel à enorme televisão com
ecrã de plasma. Faz uma pesquisa no YouTube e carrega no play.
Libby reconhece imediatamente a música. Nunca soubera como se chamava
nem quem a cantava, mas conhece-a muito bem.
O vídeo começa com o grupo a atuar em frente ao rio. Estão todos vestidos
de forma semelhante em tweed, com suspensórios, bonés e botas DM. São
muitos, devem ser cerca de dez membros ao todo. Dois deles são mulheres,
uma das quais toca violino, a outra algum tipo de tambor em pele.
– Aqui – diz Phin, parando o vídeo e apontando para o ecrã. – Esta é a
Birdie. A que tem o cabelo comprido.
Libby observa a mulher no ecrã. Esquelética, com um queixo fraco e uma
expressão séria. Segura o violino firmemente contra o queixo e olha para a
câmara, arrogante.
– Essa é que é a Birdie? – pergunta. Não consegue imaginar aquela mulher
frágil e de aparência inexpressiva como a mulher da história que Phin lhes
contou na noite anterior, a mulher sádica que presidiu a uma casa onde
imperava a crueldade e o abuso.
Phin acena com a cabeça.
– Sim. A cabra malévola.
Carrega de novo no play e o grupo está agora dentro de uma casa, uma casa
gloriosa e turbulenta, cheia de pinturas a óleo e um mobiliário exagerado,
tronos de veludo vermelho, espadas e painéis polidos, cortinas esvoaçantes,
cabeças de alce, raposas empalhadas e candelabros brilhantes. A câmara
segue o grupo enquanto os seus membros vão andando pela casa com os
respetivos instrumentos, fazendo pose numa escadaria esculpida, correndo
por corredores com painéis de madeira, lutando com as espadas, usando o
capacete de um cavaleiro, montando o canhão colocado no jardim da frente
e junto a uma enorme lareira de pedra repleta de troncos a arder.
– Oh, meu Deus – exclama Libby. – Era linda.
– Era – diz Phin num tom seco –, não é verdade? E aquela vadia e o meu pai
destruíram-na sistematicamente.
O olhar de Libby regressa à imagem no ecrã da televisão. Dez pessoas
jovens, uma casa cheia de vida e de dinheiro, de energia e de calor.
– Não percebo como tudo pôde acabar dessa maneira – diz baixinho.
42

O Sol do princípio da tarde ainda está quente quando Lucy, as crianças e o


cão dobram a esquina para o bloco de apartamentos por trás do número
dezasseis de Cheyne Walk. Seguem rapidamente em bicos dos pés pelo
jardim comunitário até ao frágil portão nas traseiras e ela faz sinal às
crianças para que não façam barulho enquanto passam pela área arborizada,
em direção ao relvado seco pelo verão quente e prolongado.
Apercebe-se com surpresa de que a porta das traseiras da casa não está
trancada. Uma das vidraças está partida. Pelo estado dos vidros parece
tratar-se de algo recente. Sente um arrepio percorrer-lhe a coluna.
Enfia a mão pelo espaço da vidraça e gira a maçaneta no seu interior. A
porta abre-se e ela suspira de alívio por não ter de trepar pela lateral da casa
para conseguir entrar pelo telhado.
– É assustadora – diz Stella, seguindo a mãe para dentro de casa.
– Sim – concorda Lucy –, um bocadinho.
– Eu acho que é espetacular – diz Marco, passando a mão por cima de um
enorme radiador e olhando em volta da sala.
Enquanto mostra a casa às crianças, Lucy tem a sensação de que nem um
grão de poeira ou teia de aranha saíram do sítio desde a última vez que ali
esteve. Parece que tudo ficou parado a aguardar o seu regresso. O cheiro,
embora bolorento, é também sombriamente familiar. O modo como a luz
penetra através dos quartos escuros, o som dos seus pés sobre as tábuas do
soalho, as sombras nas paredes. É tudo exatamente igual. Enquanto andam
pela casa, vai passando as pontas dos dedos pelas várias superfícies. No
espaço de uma semana revisitou as duas casas mais significativas da sua
vida, a de Antibes e a de Chelsea, os dois lugares onde foi magoada,
destruída, de onde se viu forçada a fugir. O peso de tudo isso permanece no
seu coração.
Depois da visita pela casa, sentam-se no jardim. A folhagem crescida
proporciona sombras extensas e frescas.
Lucy observa Marco, que vai vasculhando o jardim com uma vara. Veste
uma T-shirt preta e, por um momento fugaz, vê-o como se fosse Henry, a
tratar do seu jardim de plantas medicinais. Quase se levanta com um salto
para ir espreitar o seu rosto. Mas então lembra-se: agora Henry é um
homem. Não um rapaz.
Tenta imaginar Henry, mas não consegue. Só consegue vê-lo tal como o viu
naquela última noite que passaram todos juntos, a rigidez do seu maxilar
face ao choque do que aconteceu, a luz da vela a tremeluzir sobre o seu
rosto, o seu terrível silêncio.
– O que é isto? – pergunta Marco.
Lucy põe a mão em pala na testa e olha através do jardim.
– Oh – diz, levantando-se e caminhando na sua direção. – É um antigo
jardim de ervas medicinais. Uma das pessoas que aqui morava plantava
ervas para fazer remédios.
Ele para e segura a vara entre os seus pés, como se fosse um cajado, e olha
para as traseiras da casa.
– O que aconteceu ali? – pergunta ele.
– O que queres dizer?
– Quero dizer que eu noto. Como tu estás desde que aqui chegámos. Tens as
mãos a tremer. E sempre disseste que a tua tia te tinha levado para França
porque eras órfã. Mas começo a pensar que alguma coisa muito, muito má
deve ter acontecido para fazer com que ela te levasse. E acho que aconteceu
nesta casa.
– Falaremos sobre isso mais tarde – disse Lucy. – É uma história muito
longa.
– Onde estão os teus pais? – pergunta Marco e ela percebe agora que levar o
filho até ali abriu as comportas para tudo o que ele nunca pensara
perguntar-lhe antes. – Onde estão enterrados?
Ela sustém a respiração e força-se a sorrir.
– Não sei. Não faço ideia.

Quando era mais nova, Lucy costumava anotar tudo, constantemente.


Comprara um bloco pautado e uma caneta, sentava-se em qualquer lugar e
escrevia, escrevia, escrevia. Fluxos da consciência. Phin amarrado a um tubo
do radiador no seu quarto, os adultos mortos, uma carrinha à espera nas
sombras com o motor a ressoar, e a longa viagem escura através da noite, o
silêncio decorrente do choque, e a seguir a espera, a espera pelo que deveria
chegar mas nunca chegou e agora, vinte e quatro anos depois, ela continua à
espera que chegue e está tão perto que quase lhe pode sentir o gosto na
garganta.
Esta foi a história que ela escreveu, vezes e vezes sem conta. Escrevia e
depois rasgava as páginas do bloco de notas, amassava-as numa bola e
atirava-as para o caixote do lixo, para o mar, através de uma claraboia fria e
húmida. Queimava-as, ensopava-as ou rasgava-as em pedaços. Mas
precisava de escrevê-la para a tornar uma história e não a verdade sobre a
sua vida.
E a verdade mexia-lhe constantemente com os nervos, apertava-lhe os
músculos do estômago, fazia-lhe disparar o coração, provocava-a nos seus
sonhos, deixava-a enjoada ao acordar e impedia-a de dormir quando ela à
noite fechava os olhos.
Sempre soubera que a única coisa que a levaria de novo a Londres, àquele
lugar onde tantas coisas horríveis tinham acontecido, era a bebé.
Mas onde estaria ela? Tinha estado ali, Lucy tinha a certeza. Há sinais de
atividade recente por toda a casa. Há bebidas no frigorífico, copos usados no
lava-louças, o buraco na porta das traseiras.
Agora só tem de esperar que a bebé chegue.
43

Chelsea, 1992

O que aconteceu a seguir foi que a minha mãe ficou grávida.


Bem, era evidente que a criança não era do meu pai. Ele mal se conseguia
levantar da cadeira. E o seu anúncio, quando chegou, curiosamente não
gerou qualquer surpresa. Porque, por essa altura, para mim já se tornara
terrivelmente óbvio que a minha mãe estava obcecada por David.
Vi a sua reação na noite em que ele chegou, afastando-se dele, e percebi
desde logo que era porque se sentia atraída. Vi essa atração inicial
transformar-se em paixão quando o meu pai ficou mais fraco e a influência
de David se tornou mais forte. Pude ver que a minha mãe estava totalmente
sob o feitiço desse homem, que estava disposta a sacrificar tudo por ele e
pela sua aprovação, incluindo a família.
No entanto, mais tarde, reparei também em outras coisas.
De noite, já tarde, ouvia portas a abrir e a fechar. Vi uma marca vermelha no
pescoço da minha mãe, senti momentos de tensão, ouvi coisas sussurradas
com um tom de urgência, senti o cheiro dele no cabelo dela. Vi Birdie olhar
para a minha mãe, vigilante, vi os olhos de David em partes do corpo da
minha mãe para as quais não deveria olhar. O que quer que estivesse a
acontecer entre ela e David era selvagem e intenso e alastrava por todos os
cantos da casa.
O anúncio foi feito do mesmo modo de todos os outros anúncios, à mesa de
jantar. Foi David quem o fez, está claro, e ao fazê-lo sentou-se entre Birdie e
a minha mãe, segurando a mão de cada uma delas. Quase se podia vê-lo
inchar de orgulho sob a sua pele. Estava tão satisfeito consigo mesmo. Que
homem. Dois passarinhos à disposição e agora um pãozinho no forno. Que.
Homem.
A minha irmã começou imediatamente a chorar e Clemency saiu a correr da
mesa e podia-se ouvi-la a vomitar na casa de banho junto à porta das
traseiras.
Olhei para a minha mãe com um horror absoluto. Apesar de não ter ficado
totalmente surpreendido com aquele desenvolvimento, fiquei surpreendido
por ela ter permitido que fosse anunciado tão publicamente e de modo tão
alegre. Eu não podia acreditar que ela não tivesse sentido que talvez um tête-
à-tête tranquilo num canto recatado fosse uma maneira melhor de dar essa
notícia aos seus filhos. Não se sentia embaraçada? Não sentia vergonha?
Pelos vistos, não. Ela agarrou na mão da minha irmã e disse:
– Querida, tu sempre quiseste um irmãozinho.
– Sim. Mas não desta maneira! Não desta maneira!
Tão dramática, a minha irmãzinha. Mas, neste caso, não a culpava.
– E o papá? – intervim, desesperadamente.
– O papá sabe – respondeu ela, agora segurando e apertando também a
minha mão. – O papá compreende. Ele quer que eu seja feliz.
David continuava sentado entre Birdie e a minha mãe, observando-nos
cuidadosamente. Eu percebia que ele estava apenas a satisfazer a vontade da
nossa mãe, permitindo que ela nos consolasse. Percebia que ele não se
importava absolutamente nada com o que pensávamos dele e do seu
repulsivo ato de penetrar e impregnar a nossa mãe. Ele não se importava
com nada que não fosse ele próprio.
Olhei para Birdie. Parecia estranhamente triunfante, como se aquilo fosse o
resultado de algum grande plano seu.
– Eu não posso ter filhos – disse ela, como se estivesse a ler a minha mente.
– Então, a minha mãe é… o quê? – dei por mim a perguntar, de modo
acutilante. – Uma incubadora humana?
David suspirou. Tocou nos lábios com um lado do dedo, uma pose que fazia
com frequência e que ainda hoje me deixa enervado quando vejo outras
pessoas fazê-lo.
– Esta família precisa de um foco – disse. – Um coração. Uma razão. Esta
casa precisa de um bebé. A vossa extraordinária mãe está a fazer isto por
todos nós. É uma deusa.
Birdie acenou ostensivamente com a cabeça, em concordância.
Nesse momento, Clemency regressou, parecendo pálida e indisposta.
Deixou-se cair pesadamente na sua cadeira, a tremer.
– Querida – disse-lhe David –, tenta ver a situação da seguinte maneira: isto
vai unir as nossas duas famílias. Vocês quatro terão um irmãozinho ou
irmãzinha em comum. Duas famílias – estendeu a mão para as mãos da filha
sobre a mesa – unidas.
A minha irmã irrompeu de novo em lágrimas e Clemency manteve os
punhos cerrados.
Birdie suspirou.
– Oh, pelo amor de Deus, vocês duas, vejam se crescem – sibilou.
Vi David lançar-lhe um olhar de advertência. Ela devolveu-lhe o olhar com
um movimento petulante de cabeça.
– Vão ser precisos alguns dias para se habituarem à ideia. Eu compreendo –
continuou David. – Mas têm de confiar em mim. Esta será uma criação de
todos nós. Será mesmo. Este bebé será o futuro da nossa comunidade. Este
bebé será tudo.

A minha mãe cresceu de uma forma que eu nunca imaginei ser possível. De
repente, ela, que sempre fora tão esbelta, com as suas ancas salientes e
cintura alta e estreita, era agora a maior pessoa da casa. Alimentavam-na
constantemente e diziam-lhe para não fazer nada.
Aparentemente, o «bebé» precisava de mil calorias suplementares por dia e
enquanto todos nos sentávamos a comer biryanis19 com cogumelos e sopas
de cenoura, a minha mãe empanturrava-se com esparguete e mousse de
chocolate. Já mencionei como estávamos todos magros nessa altura? Não
que algum de nós já antes tivesse peso a mais, com exceção do meu pai. Mas
nessa altura em que a minha mãe estava a ser engordada como um cabrito
cerimonial estávamos nitidamente magros. Eu, com quase quinze anos,
ainda continuava a usar roupas que me serviam quando tinha onze.
Clemency e a minha irmã pareciam sofrer de distúrbios alimentares e Birdie
era basicamente um ramo de árvore. Digo-vos desde já que a comida vegana
passa a direito por nós; não vai nada para os lados. Contudo, quando esse
tipo de alimentos nos é oferecido em porções médias e nos dizem
constantemente para não sermos gulosos e não pedirmos mais, quando um
cozinheiro odeia manteiga e, por isso, nunca há gordura suficiente (e as
crianças devem comer gordura), outro odeia sal e, por isso, nunca há sabor
suficiente, e outro ainda se recusa a comer trigo, porque faz com que o
estômago inche como uma almofada de puns, então nunca há alimentos
com amido ou mais saciantes, o que, claro, tem como resultado pessoas
muito magras e malnutridas.
Pouco depois de os corpos serem encontrados e de a imprensa deambular
pela nossa casa com microfones e câmaras de mão, uma noite, uma das
nossas vizinhas apareceu no noticiário fazendo referência a como todos
parecíamos magros. «Até me perguntei», dissera ela (quem eu nunca antes
vira), «se seriam devidamente tratados. Fiquei um pouco preocupada. Eram
todos terrivelmente magros. Mas uma pessoa não gosta de interferir, não é
verdade?»
Não, vizinha misteriosa, sem dúvida que não gosta.
Assim, enquanto nós definhávamos, a minha mãe ia crescendo, crescendo.
Birdie fez-lhe umas túnicas de grávida com uma peça de tecido de algodão
preto que meses antes tinha comprado barato numa feira de tecidos com o
intuito de fazer bolsas de tiracolo para serem vendidas no mercado de
Camden. Tinha vendido duas, uma quantidade impressionante, antes de ser
expulsa por outros feirantes que possuíam as devidas licenças, e desistira
instantaneamente do projeto. Mas agora costurava com todo o fervor,
desesperada por fazer parte do que estava a acontecer com a minha mãe.
Pouco depois, David e Birdie começaram também a usar as túnicas pretas
feitas por Birdie. Deram todas as suas outras roupas para a caridade.
Ficavam totalmente ridículos.
Eu deveria ter adivinhado que não iria tardar muito para que nós, crianças,
tivéssemos também de nos vestir dessa forma.
Um dia, Birdie entrou no meu quarto com sacos de lixo.
– Vamos doar todas as nossas roupas à caridade – disse ela. – Há pessoas
que precisam delas mais do que nós. Vim ajudar-te a empacotá-las.
Ao olhar para trás, nem consigo acreditar na facilidade com que capitulei.
Nunca me rendi ao ethos de David, mas tinha medo dele. Vira-o atirar Phin
ao chão no exterior da nossa casa, naquela noite terrível do ano anterior.
Vira-o bater-lhe. Eu sabia que ele era capaz de mais e de pior. E tinha
igualmente medo de Birdie. Fora ela quem libertara o monstro dentro dele.
Por isso, embora muitas vezes eu me queixasse ou resmungasse, nunca
recusei nada. E, assim, dei por mim às três horas da tarde de uma terça-feira,
no final de abril, a esvaziar as minhas gavetas e armários para dentro de
sacos de lixo. Lá se foram as minhas calças de ganga preferidas, lá se foi a
camisola com capuz da H&M que o Phin me tinha dado quando a admirei.
Lá se foram as minhas T-shirts, camisolas de lã e os meus calções.
– Mas então o que vou usar quando sair? – perguntei. – Não posso ir nu.
– Aqui tens – disse ela, entregando-me uma túnica preta e um par de
leggings pretas. – Daqui em diante, é o que todos vamos usar. É o que faz
sentido.
– Não posso sair com isto – exclamei horrorizado.
– Vamos conservar os nossos sobretudos – acrescentou ela. – Também
praticamente nem sais.
Era verdade. Eu era uma espécie de recluso. Com todas as «regras
domésticas», o facto de «não ir à escola» e de também não ter para onde ir,
mal saía de casa. Peguei nas roupas que ela segurava. Ela olhou-me,
expressiva.
– Vá – disse Birdie. – O resto.
Olhei para baixo. Ela estava a referir-se à roupa que eu tinha vestida.
– Posso ter alguma privacidade, por favor? – perguntei, com um suspiro.
Ela olhou-me com desconfiança, mas depois saiu do quarto.
– Rápido – gritou do outro lado da porta. – Tenho muito que fazer.
Despi as roupas o mais depressa que pude e dobrei-as descuidadamente
num rolo.
– Posso ficar com as cuecas? – perguntei.
– Sim, claro que podes – respondeu ela, impaciente.
Enfiei aquela estúpida túnica negra e as leggings e observei-me ao espelho.
Parecia um monge muito pequeno e muito magro. Reprimi a vontade de rir
em voz alta. Então, muito rapidamente, passei uma mão pelo fundo das
minhas gavetas, à procura de algo. Os meus dedos encontraram-no e
observei-o por um momento. O bolo tie que tinha comprado no mercado de
Kensington dois anos antes. Nunca o usara. Mas não suportava a ideia de
nunca o vir a usar. Enfiei-o por baixo do colchão, juntamente com os livros
de bruxaria de Justin e a sua pata de coelho, e fui abrir a porta. Entreguei a
Birdie as minhas roupas dobradas.
– Lindo menino – disse. Por um momento, pareceu que ia tocar no meu
cabelo, mas limitou-se a sorrir e repetiu: – Lindo menino.
Parei por um momento, questionando-me se poderia fazer a pergunta cuja
resposta queria desesperadamente saber, já que naquele momento ela
parecia mais branda. Sustive a respiração e deixei escapar.
– Não tem ciúmes? – perguntei. – Não está com ciúmes por causa do bebé?
Por uma fração de segundo, pareceu abalada. Senti-me como se de repente
conseguisse ver dentro dela, mesmo dentro da gema amarela que escorria do
seu âmago. Ela vacilou, mas recompôs-se de imediato.
– Claro que não – respondeu. – David quer um bebé. Fico grata à tua mãe
por lho poder proporcionar.
– Mas para isso ele não teve de ter… sexo com ela?
Eu não tinha a certeza absoluta de alguma vez ter dito a palavra sexo em voz
alta e senti o meu rosto começar a corar.
– Claro – respondeu, num tom afetado. – Claro que sim.
– Mas ele não é seu namorado?
– Companheiro – corrigiu. – Ele é meu companheiro. Não é minha
propriedade. Eu não sou propriedade dele. Tudo o que importa é a sua
felicidade.
– Sim – disse, pensativo. – Então e a sua?
Ela não respondeu.
A minha irmã fez treze anos alguns dias depois do anúncio da gravidez da
nossa mãe. Embora não seja propriamente uma área da minha
especialidade, eu diria que ela se estava a tornar uma rapariga muito bonita.
Era alta, como a mãe, e agora, um ano desde a implementação da regra «não
há cortes de cabelo», o seu cabelo escuro chegava-lhe até à cintura, além de
que, ao contrário do de Clemency e do de Birdie, que era fino e com as
pontas espigadas, o dela era espesso e brilhante. Era magra, tal como todos
nós, mas notava-se que era elegante. Eu conseguia imaginar (não que
passasse muito tempo a fazê-lo, posso garanti-lo) que, se estivesse arranjada
de outra maneira, teria uma figura espetacular. E havia um rosto
interessante com um certo charme travesso a começar a emergir por baixo
do rosto de bebé que eu estava habituado a ver. Quase belo.
Menciono tudo isto, não por achar que precisam de saber o que eu pensava
do aspeto da minha irmã, mas para o caso de ainda a imaginarem como
uma miudinha. Ela já não era uma miudinha.
Quando aconteceu a coisa seguinte, ela estava muito perto de se tornar uma
mulher.

19
Prato de arroz típico da Índia e do Paquistão. (N. da T.)
44

Libby chega ao trabalho, sem fôlego, dois minutos atrasada para o seu
encontro com Cerian Tahany. Cerian é uma DJ local e uma pequena
celebridade que está a gastar cinquenta mil libras numa cozinha nova e cuja
entrada no showroom parece desencadear sempre uma espécie de zumbido
elétrico. Normalmente, Libby estaria bem preparada para a receber, teria a
papelada pronta, bem como uma chávena de café, ter-se-ia visto ao espelho,
comido um rebuçado de menta e endireitado a saia. Hoje, quando Libby
chega, Cerian já se encontra sentada, a olhar, tensa, para o telemóvel.
– Sinto muito, muito mesmo – diz ela. – Desculpe.
– Não há problema – responde Cerian, desligando o telemóvel e metendo-o
na mala. – Vamos avançar, sim?
Durante uma hora, Libby não tem tempo para pensar nos acontecimentos
do dia anterior. Agora só consegue pensar em bancadas em mármore
Carrara, gavetas para talheres, exaustores e candeeiros pendentes de cobre
versus candeeiros pendentes esmaltados. Para ela, é reconfortante. Adora
falar sobre cozinhas. É boa nessa área. Então, de repente, termina e Cerian
guarda os seus óculos de leitura na mala e despede-se de Libby com um
abraço. Com a sua partida, o ambiente no showroom parece descontrair-se.
Dido chama-a ao escritório.
– Então – começa, segurando a argola de uma lata de Coca Diet –, o que raio
aconteceu?
Libby pestaneja.
– Não sei bem. Foi totalmente bizarro.
Conta-lhe como tinham encontrado Phin no patamar superior das escadas,
como tinham atravessado a ponte de Albert até ao seu deslumbrante
apartamento à beira-rio, em Battersea, com vista direta para a casa. Conta a
Dido o que se lembra da história que Phin lhes relatou no terraço. E a seguir
conta-lhe como acordou naquela manhã, deitada ao lado de Miller numa
grande cama de casal.
– Bem, eu já te podia ter dito que isso ia acontecer – diz Dido.
Libby olha para ela de soslaio.
– O quê?
– Tu e Miller. Vocês têm uma afinidade.
– Não, não temos.
– Têm sim. Confia em mim. Sou ótima nestas coisas. Previ três casamentos
praticamente antes de os casais se conhecerem. A sério.
– Estávamos bêbados e caímos na cama com todas as nossas roupas
vestidas – diz Libby, ignorando aquele absurdo. – E acordámos esta manhã
ainda com todas as nossas roupas. Ah, e ele tem uma tatuagem e eu não
gosto de tatuagens.
– Achei que hoje em dia toda a gente gostava de tatuagens.
– Sim, tenho certeza de que sim, mas eu não.
Nesse momento, o seu telemóvel vibra e ela atende.
– Fala-se no diabo… – diz, vendo o nome de Miller surgir no ecrã.
– Olá!
– Ouve – começa ele, num tom de urgência –, há aqui algo de muito
estranho. Acabei de abrir o meu ficheiro de ontem à noite, com a gravação
da história de Phin. Desapareceu.
– Desapareceu?
– Sim. Foi apagado.
– Onde estás?
– Estou num café em Victoria. Ia agora começar a transcrevê-lo e não está lá.
– Mas… tens a certeza de que estava lá? Talvez não tenhas pressionado
devidamente o botão para gravar?
– Claro que o pressionei devidamente. Lembro-me bem. Eu confirmei. E
ouvi a gravação. Estava lá. Até dei um nome ao ficheiro.
– Então, achas…?
– Só pode ter sido o Phin. Lembras-te de ter dito que achavas que tinhas o
telefone contigo quando te foste deitar? Eu também achava o mesmo. E o
meu telemóvel funciona com reconhecimento da impressão do meu polegar.
Portanto, ele deve ter entrado no nosso quarto quando estávamos a dormir e
ligou o meu telemóvel, usando o meu polegar. E também levou o teu
telemóvel. E depois trancou-nos. E há mais ainda. Pesquisei-o no Google.
Phin Thomsen. Não há qualquer vestígio dele na Internet. Também
pesquisei no Google o apartamento em que mora. É um Airbnb. De acordo
com o sistema, está reservado desde meados de junho. Basicamente desde…
– Desde o meu aniversário.
– Desde o teu aniversário – Miller suspira e passa a mão pela barba. – Não
faço ideia de quem seja este tipo. Mas é duvidoso como tudo.
– A história… consegues lembrar-te dela? O suficiente para descobrirmos a
verdade?
Ele faz uma breve pausa.
– Está um bocado enevoada – admite ele. – Consigo lembrar-me da maior
parte. Mas mais para o fim ficou realmente…
– Eu também – atalha ela. – Ficou realmente nebuloso. E dormi…
– Como um morto – finaliza Miller.
– E durante todo o dia, senti-me…
– Muito, muito estranho.
– Muito estranha – concorda Libby.
– E começo a pensar…
– Sim – interrompe ela –, eu também. Acho que ele nos drogou. Mas
porquê?
– Não faço ideia – diz Miller. – Mas será melhor verificares o teu telemóvel.
Tens password?
– Tenho.
– Qual é?
– É a minha data de nascimento – suspira, deixando descair os ombros.
– Está bem – diz Miller. – Bom, é melhor veres se há alguma coisa estranha
no teu telemóvel. Ele pode ter lá deixado algo. Spyware ou algo do género.
– Spyware?
– Quem sabe? Ele é estranho. Na noite passada, tudo foi estranho. Ele
invadiu a tua casa. Drogou-nos…
– Pode ter-nos drogado.
– Pode ter-nos drogado. Pelo menos, entrou no nosso quarto enquanto
dormíamos, usou a minha impressão digital para aceder ao meu telemóvel,
tirou o teu telefone da tua mala e depois trancou-nos. Eu não poria as mãos
no fogo por ele.
– Não – concorda ela, suavemente. – Não, tens razão. Vou ver o meu
telemóvel. Na verdade, ele até pode estar a ouvir-nos neste preciso
momento.
– Sim. Pois pode. Amiguinho, se estás a ouvir, estamos em cima de ti, seu
sacana sinistro. – Ela ouve-o respirar fundo, antes de continuar. – Devíamos
voltar a encontrar-nos. Em breve. Estive a pesquisar a Birdie Dunlop-Evers.
Tem um historial interessante. E acho que também descobri mais alguma
coisa sobre aquele outro fulano que lá morava: Justin, o namorado da Birdie.
Quando estás disponível?
A pulsação de Libby acelera com a perspetiva de novos desenvolvimentos na
história.
– Hoje à noite – responde, sem fôlego. – Bem, se calhar… – olha para Dido
que a observa com atenção. – Agora? – dirige a pergunta a Dido, que acena
com a cabeça freneticamente e sussurra, vai, vai.
– Podemos encontrar-nos agora. Em qualquer lugar.
– No nosso café? – pergunta ele.
Ela sabe exatamente a qual ele se refere.
– Sim – responde. – No nosso café. Posso lá estar daqui a uma hora.
Depois de ela desligar, Dido olha para ela e observa:
– Sabes, acho que esta seria uma boa ocasião para tirares umas férias.
– Mas… – Libby faz uma careta.
– Mas nada. Eu trato dos Morgans e da Cerian Tahany. Dizemos que estás
doente. O que se está aqui a passar é mais importante do que cozinhas.
Libby começa a abrir a boca para dizer algo a favor da importância das
cozinhas. As cozinhas são importantes. As cozinhas fazem as pessoas felizes.
As pessoas precisam de cozinhas. As cozinhas e as pessoas que as compram
têm sido a sua vida nos últimos cinco anos. Mas ela sabe que Dido tem
razão.
Portanto, faz um gesto de concordância e diz apenas:
– Obrigada, Dido.
Arruma a sua secretária, responde a dois novos e-mails, configura a sua
conta para a resposta automática «fora do escritório» e sai da St. Albans
High Street, em direção à estação de comboios.
45

Chelsea, 1992

Em maio de 1992, tudo na nossa casa se tinha deteriorado e transformado


em algo monstruoso. O mundo lá fora, cheio como estava de comedores de
carne, fumos e germes que não podiam ser combatidos apenas com
exercícios físicos e lindas flores, acabaria certamente por provocar a morte
da preciosa semente de David. Portanto, ninguém estava autorizado a ir ao
exterior. Os legumes eram entregues semanalmente à nossa porta e a nossa
despensa estava cheia de leguminosas, suficientes para nos alimentar
durante pelo menos cinco anos.
Então, um dia, pouco antes do meu décimo quinto aniversário, David
ordenou que entregássemos os nossos sapatos.
Os nossos sapatos.
Pelos vistos, os sapatos, mesmo aqueles que não eram feitos de animais
mortos, eram maus, maus, maus. Pressupunham passeios sujos e
caminhadas tristes para escritórios malignos, onde as pessoas faziam ainda
mais dinheiro para aqueles que já eram ricos esbanjarem, enquanto os
pobres eram deixados com as algemas da privação fabricada pelo governo.
Aparentemente, na Índia, as pessoas pobres não usavam sapatos; portanto,
nós também não devíamos usar. Todos os nossos sapatos foram recolhidos
juntos numa caixa de cartão, que foi depois deixada à porta da loja de
caridade mais próxima.
Desde o dia em que David levou os nossos sapatos, até à noite da nossa fuga,
dois anos depois, ninguém pôs os pés fora de casa.
46

Quando Libby entra no café, em West End Lane, Miller está a comer.
– O que é isso? – pergunta, pendurando a mala nas costas da cadeira
e sentando-se.
– Um wrap de frango e chouriço – responde ele, limpando um pouco
de molho do canto da boca. – É tão bom. Tão, tão bom.
– São quatro da tarde – diz ela. – Que refeição é essa?
Ele pondera por um momento.
– Um almoço tardio? Ou um jantar antecipado? Um «almar»? Um
«jantoço»? Já comeste?
Ela abana a cabeça. Não come desde o pequeno-almoço no terraço de Phin
nessa manhã, nem tem vontade.
– Não estou com fome – responde.
Ele encolhe os ombros e dá mais uma trincadela no seu wrap.
Libby manda vir um bule de chá e espera que Miller acabe de comer.
Há algo de extremamente atraente no apetite dele. Come como se não
houvesse mais nada que preferisse estar a fazer. Ela repara que ele come com
atenção.
– Então – diz Miller, abrindo o seu portátil, digitando algo e virando-o, de
seguida, para Libby –, apresento-te a Birdie Dunlop-Evers. Ou Bridget
Elspeth Veronica Dunlop-Evers, que é o seu nome completo. Nasceu em
Gloucestershire, em abril de 1964. Mudou-se para Londres em 1982 e
estudou violino no Royal College of Music. Costumava tocar na rua aos fins
de semana e depois juntou-se a uma banda chamada Green Sunday, com o
seu namorado de então, Roger Milton. Este viria a ser, aliás, vocalista dos
Crows.
Miller olha para ela com expectativa.
– Eles são famosos? – pergunta Libby, olhando-o, inexpressiva.
Ele revira os olhos.
– Isso não importa – responde ele. – Bem, ela continuou a tocar violino
durante alguns anos antes de fazer uma audição para uma banda chamada
Original Version. Começa então um relacionamento com um homem
chamado Justin Redding e leva-o para o grupo como percussionista.
Segundo entrevistas da época, ela era bastante controladora. Ninguém
gostava dela. No verão de 1988, o grupo chegou a ser número um nas
tabelas e depois ainda lançou mais um single com ela e Justin, mas quando a
coisa começou a correr mal, ela culpou toda a gente, fez uma fita e saiu do
grupo, levando Justin consigo. E esse é o fim da história da vida de Birdie
Dunlop-Evers na Internet. Não há mais nada. Apenas… – Faz um gesto com
a mão para descrever algo a cair de um penhasco.
– Então e os pais dela?
– Nada. Ela era uma de oito filhos, de uma grande família católica de classe
alta. Tanto quanto sei, os pais ainda estão vivos... pelo menos, não encontrei
nada que sugira o contrário; e há dezenas de pequenos e chiques Dunlop-
Everses por aí a tocar instrumentos musicais e a gerir serviços de entregas de
produtos veganos ao domicílio. Por alguma razão, a família dela não
reparou, ou talvez apenas não quisesse saber, que a sua quarta filha
desapareceu da face da Terra em 1994.
– E o namorado dela? Justin?
– Nada. Um par de menções durante a sua breve fase como percussionista
nos dois singles de sucesso dos Original Version. Mas mais nada.
Libby faz uma pausa para absorver tudo aquilo. Como é possível as pessoas
desaparecerem, como se tivessem deixado de existir? Como é possível que
ninguém tenha dado por isso?
Ele volta a virar o ecrã para si mesmo e digita alguma coisa.
– Então – prossegue Miller –, a seguir comecei a pesquisar Phin. Entrei em
contacto com o proprietário do Airbnb e expliquei-lhe que estava a
investigar um caso de homicídio e que precisava do nome da última pessoa
que arrendara o seu apartamento. Ele foi bastante acessível e claramente
estava ansioso por participar num caso tão excitante. O nome do
arrendatário era Justin Redding.
Libby olha para ele, chocada.
– O quê?
– Phin, ou quem quer que esse tipo seja, usou o nome do ex-namorado de
Birdie para se hospedar num Airbnb.
– Oh – exclama ela. – Uau.
– Não é? – digita outra coisa no portátil. – E por último, mas não menos
importante, apresento-te Sally Radlett.
Volta a virar o ecrã para ela. A imagem é de uma mulher mais velha, de
cabelo prateado cortado em forma de capacete, óculos com armações
espessas, uns olhos azuis aquosos, uma sugestão de sorriso, uma blusa azul-
clara desabotoada até ao terceiro botão, pescoço pálido, ecos de beleza nos
ângulos do rosto. Por baixo da fotografia está escrito «Terapeuta de Vida e
Coach. Penreath, Cornualha».
– A cidade certa. A idade certa. Parece uma carreira na área adequada a uma
terapeuta. É o tipo de treta que ela poderia acabar por fazer, não é? Se fosse
realmente a Sally Thomsen?
Olha para Libby, triunfante.
– O que achas? – pergunta. – É ela, não é?
– Bem, sim, acho que pode ser – responde Libby, encolhendo os ombros.
– E aqui está o endereço dela – aponta para o ecrã e ela pode ver a pergunta
nos seus olhos.
– Achas que devemos ir?
– Acho que sim.
– Quando?
Ele levanta uma sobrancelha, sorri e marca um número no seu telemóvel.
Pigarreia e diz:
– Olá, é Sally Radlett?
Consegue ouvir uma voz dizer sim do outro lado da linha.
Depois, tão repentinamente como fez a ligação, Miller desliga. Olha para
Libby e pergunta:
– Agora?
– Mas… – Libby parece prestes a começar a procurar um motivo para não
poder ir de imediato, mas lembra-se de que não tem nenhum. – Preciso de
tomar um banho – consegue dizer.
Ele sorri, vira de novo o computador para si mesmo e começa a digitar.
– Bed & Breakfast ou Premier Inn? – pergunta Miller.
– Premier Inn.
– Excelente. – Com mais alguns cliques, ele reservou-lhes dois quartos num
Premier Inn em Truro. – Podes tomar um banho quando lá chegarmos. –
Fecha o computador, desliga-o da tomada e coloca-o numa mala de nylon. –
Preparada?
Ela levanta-se estranhamente excitada ante a perspetiva de passar o resto do
dia com ele.
– Preparada.
47

Eu decidi que o bebé que estava a chegar era a causa de todos os nossos
males. Vi a minha mãe a engordar, enquanto todos nós íamos ficando mais
magros. Vi David a agitar as penas da cauda, vaidoso e empertigado. A cada
quilo que a minha mãe ganhava, sempre que o bebé dava pontapés ou se
remexia, David desenvolvia mais uma camada de enjoativa autoconfiança.
Tentei agarrar-me ao que Phin me contara no dia em que fomos ao mercado
de Kensington, sobre David ter sido expulso da última casa em que se
infiltrara tentando assumir o controlo. Tentei imaginar a humilhação de ter
sido apanhado em flagrante a roubar os seus anfitriões. Tentei recordar-me
de que o homem que aparecera sem teto e sem um tostão à nossa porta
quatro anos antes era o mesmo que agora se pavoneava pela minha casa
como um peru inchado.
Eu não podia suportar a ideia da existência daquele bebé. Sabia que David
iria usá-lo para consolidar o seu papel como deus do nosso pequeno
universo distorcido. Se o bebé não viesse, a minha mãe poderia parar de
estar sempre a comer, e já poderíamos trazer germes para dentro de casa. E,
mais importante ainda, não haveria absolutamente razão nenhuma para
termos mais qualquer coisa que ver com David Thomsen. Não haveria nada
a ligar-nos, nada.
Sabia o que tinha de fazer e isso não me permite ser visto sob uma luz mais
benevolente. Mas eu era uma criança. Estava desesperado. E estava a tentar
salvar-nos a todos.
As drogas eram surpreendentemente fáceis de administrar. Certifiquei-me
de cozinhar o mais possível para a minha mãe. Fiz-lhe os seus chás de
plantas e sumos de vegetais. Envolvia tudo o que lhe dava com os elementos
que vinham listados no capítulo do livro de Justin que se intitulava: «Pôr
Termo a Uma Gravidez Indesejada de Forma Natural». Toneladas de salsa,
canela, artemísia, sementes de sésamo, camomila e óleo de prímula.
Quando eu lhe dava um copo de sumo, ela acariciava-me a mão e dizia:
– Tens sido tão bom menino, Henry. Sinto-me abençoada por te ter a cuidar
de mim.
E eu corava um pouco e não respondia porque, de certa forma, eu estava a
cuidar dela. Estava a certificar-me de que ela não ficava amarrada a David
para sempre. Mas, por outro lado, não estava realmente a cuidar dela.
Até que um dia, quando estava com cerca de cinco meses de gravidez e o
bebé era real e já tinha começado a dar pontapés e a mexer-se, a minha mãe
desceu as escadas e eu ouvi-a falar com Birdie na cozinha.
– O bebé não se está a mexer – queixava-se. – Pelo menos hoje ainda não se
mexeu.
Ao longo do dia, a consternação foi aumentando e eu sentia um enjoo
sinistro e terrível no fundo do estômago, porque sabia o que vinha a seguir.
Claro que não chamaram um médico, nem a levaram a um serviço de
urgência. Aparentemente, David Thomsen era um ginecologista qualificado,
para além das suas outras múltiplas capacidades. Era ele quem se
encarregava de tudo, mandando alguém apressar-se a ir buscar toalhas, água
e tinturas homeopáticas inúteis.
Só ao fim de cinco dias, depois de ter morrido, o bebé saiu.
A minha mãe chorou durante horas. Permaneceu no seu quarto com David
e Birdie e o bebé, a fazer sons que se ouviam por toda a casa. Nós, as quatro
crianças, mantínhamo-nos juntas no sótão, em silêncio, incapazes de
assimilar devidamente o que acabara de acontecer. Até que, finalmente,
bastante mais tarde nesse dia, a minha mãe trouxe o bebé para baixo
embrulhado num xaile preto e David preparou uma sepultura para ele na
extremidade do jardim. O bebé foi enterrado na escuridão da noite com
velas acesas a toda a volta.
Nessa noite, procurei a companhia do meu pai. Sentei-me na sua frente e
perguntei:
– Sabias que o bebé morreu?
Ele virou-se e olhou para mim. Sabia que ele não iria responder à pergunta,
porque não conseguia falar. Mas achei que nos seus olhos poderia haver algo
que me permitisse saber o que pensava sobre o que acontecera nesse dia.
Contudo, tudo o que vi nos seus olhos foi medo e tristeza.
– Era um rapazinho – disse eu. – Chamaram-lhe Elijah. Estão agora
a enterrá-lo, no jardim das traseiras.
Continuou a olhar para mim.
– Provavelmente, é melhor assim, não é? Não achas?
Eu procurava redenção pelos meus pecados. Decidi entender o seu silêncio
como sinal de aprovação.
– Quero dizer, o mais certo era ter morrido de qualquer forma, não é? Sem
assistência médica? Ou, pior ainda, a mamã podia ter morrido. Por isso
talvez tivesse sido melhor assim. – Olhei para o meu reflexo no vidro escuro
da janela atrás do meu pai. Eu parecia jovem e tolo. – Era muito pequeno.
A voz falhou-me nesta última palavra. O bebé era tão pequenino, como uma
boneca esquisita. Doeu-me o coração ao vê-lo. O meu irmãozinho.
– Seja como for, foi o que aconteceu. E agora suponho que todos nós
podemos tentar voltar ao normal.
Mas era esse o problema. Não havia um normal. A vida do meu pai não era
normal. A nossa existência não era normal. O bebé tinha partido, mas eu
continuava a não ter sapatos. O bebé tinha partido, mas o meu pai
continuava sentado numa cadeira durante todo o dia, a fixar uma parede. O
bebé tinha partido, mas não havia escola, nem férias, nem amigos, nem
mundo exterior.
O bebé tinha partido, mas David Thomsen continuava ali.
48

São vinte e uma horas. Lucy e as crianças estão acomodadas no antigo


quarto dos seus pais, para passar a noite. As paredes do quarto parecem
dançar à luz das velas. Stella já está a dormir, com o cão enrolado na dobra
dos joelhos.
Lucy abre uma pequena lata de gin e água tónica. Marco abre uma lata de
Fanta. Batem com ambas num brinde a Londres.
– Então – pergunta ele baixinho –, agora vais-me contar sobre a bebé?
Ela suspira.
– Oh, meu Deus. – Passa as mãos pelo rosto. – Não sei. É tudo tão…
– Conta-me. Por favor.
– Amanhã – diz ela, abafando um bocejo. – Amanhã conto-te. Prometo.
Por fim, alguns minutos depois, Marco adormece e fica apenas Lucy
acordada, naquela casa arruinada onde jurou nunca mais voltar. Com
cuidado, tira a cabeça de Marco do seu colo e levanta-se. Da janela observa o
pôr do Sol refletido nos vidros das janelas dos blocos de apartamentos novos
e brilhantes do outro lado do rio. Quando morava ali ainda não existiam.
Pensa que se existissem, talvez alguém os pudesse ter visto, alguém tivesse
percebido, alguém os tivesse resgatado e os poupasse aos seus tristes
destinos.

Adormece já depois das três da manhã, uma vez que a sua mente se recusara
teimosamente a desligar durante várias horas. De repente, está a sonhar.
E então, com a mesma rapidez, acorda de novo. Senta-se direita. Marco
senta-se também. O seu telemóvel diz-lhe que todos estiveram a dormir até
tarde.
Ouvem-se passos lá em cima.
Lucy põe uma mão sobre a de Marco e toca nos lábios com a ponta do dedo
indicador.
Volta tudo a ficar em silêncio e ela começa a relaxar. Mas depois ouve de
novo, o som nítido de passos, as tábuas do chão a ranger.
– Mãe…
Ela aperta-lhe a mão e levanta-se lentamente. Dirige-se à porta em bicos dos
pés. O cão acorda e levanta a cabeça, desenrosca-se do corpo de Stella
e segue Lucy até à porta. As unhas das suas patas ressoam sobre as tábuas do
chão de madeira e ela pega-lhe ao colo. Apercebe-se de um rosnado
a formar-se na parte de trás da garganta do animal e manda-o calar-se.
Marco está mesmo atrás e ela consegue ouvir a sua respiração intensa
e pesada.
– Fica aí – sussurra.
O rosnado na garganta de Fitz começa a intensificar-se cada vez mais. Ouve-
se um novo rangido por cima das suas cabeças e então Fitz já não se
controla.
O rangido para.
Mas logo a seguir ouvem o som de passos, seguros e firmes, que descem a
escada de madeira que leva aos quartos do sótão. Ela para de respirar. O cão
recomeça a ladrar e debate-se para se libertar dos seus braços. Empurra bem
a porta e pressiona o corpo contra ela.
Stella está acordada e arregala os olhos na direção da porta.
– O que se passa, mamã?
– Nada, querida – sussurra, do outro lado do quarto. – Nada. É só o Fitz que
está a ser tolinho.
A porta para o patamar do primeiro andar range e depois é fechada com
força.
A adrenalina percorre-lhe o corpo.
– É a bebé? – pergunta Marco num sussurro urgente, com os olhos
arregalados de terror.
– Não sei – responde. – Não sei quem é.
Os passos avançam pelo patamar e então ouvem alguém respirar do outro
lado da porta. O cão fica quieto, com as orelhas para trás, os dentes
arreganhados. Lucy desencosta-se da porta e abre apenas uma fresta. Então,
o cão salta dos seus braços e abre caminho por entre o espaço que aí ficou.
Está um homem do lado de fora do quarto e o cão ladra e agita-se em volta
dos seus tornozelos. O homem olha para baixo, para o cão, com um
pequeno sorriso, e estende-lhe a mão, para ele a farejar. Fitz acalma-se,
cheira-lhe a mão e deixa o homem afagar-lhe a cabeça.
– Olá, Lucy – cumprimenta o homem. – Que cão simpático.
III
49

Libby está deitada na cama, com a caraterística faixa de tecido cor de


beringela do hotel em volta dos pés. Para ela, um quarto de hotel Premier
Inn é um lugar feliz. Associa-o a despedidas de solteira, pequenas viagens de
lazer e casamentos em cidades distantes. Uma cama num Premier Inn é
familiar e reconfortante. Era capaz de ali ficar todo o dia. Mas tem de ir
encontrar-se com Miller, no lobby, às nove da manhã. Vê as horas no
telemóvel. Oito e quarenta e oito. Levanta-se da cama e toma um duche
rápido.
A viagem de Londres da noite anterior tinha sido longa e ela ficara a saber
muito sobre Miller nas cinco horas que passaram juntos.
Ele sofrera um acidente de viação quando tinha vinte e dois anos e passara
um ano numa cadeira de rodas e em reabilitação. Quando era mais jovem,
era bastante magro e desportista, mas nunca mais recuperou a sua antiga
agilidade. Tem duas irmãs mais velhas e um pai gay e foi criado em
Leamington Spa. Estudou política na universidade onde conheceu a sua ex-
mulher, que se chamava Matilda, ou Mati, para abreviar. Mostrou a Libby
uma fotografia dela no seu telemóvel. Era extraordinariamente bonita, com
um cabelo ruivo escuro, lábios carnudos e um corte de cabelo hipster que
ficaria horrível em noventa e nove por cento das pessoas.
– Por que motivo se separaram? – perguntou. – Se não te importas que
pergunte – acrescentou.
– Oh, foi culpa minha – respondeu, pondo uma mão sobre o coração. – Foi
inteiramente culpa minha. Eu dava prioridade a tudo em detrimento dela.
Os meus amigos, os meus passatempos. Mas, acima de tudo, o meu trabalho.
E, em especial – faz uma pausa para sorrir ironicamente –, o artigo do
Guardian. – Encolheu os ombros. – Porém, aprendi a lição. Nunca mais
voltarei a pôr o trabalho à frente da minha vida pessoal. E tu? – perguntou. –
Existe algum senhor Libby por aí?
– Não – respondeu ela. – Não. Esse é um projeto em curso.
– Ah, mas ainda és nova.
– Sim – concordou Libby, esquecendo-se pela primeira vez da sua habitual
sensação de ficar sem tempo para realizar todos os seus objetivos arbitrários.
– Sou.
Volta a vestir a roupa do dia anterior e chega ao lobby dois minutos depois
das nove. Miller já está à sua espera. Não mudou de roupa nem, ao que
parece, tomou banho. Está um pouco desgrenhado, com o ar de alguém que
não vê a própria cama há quarenta e oito horas. Mas, ao mesmo tempo, há
algo de agradável nesse ar desgrenhado e pouco cuidado, e ela tem de
resistir à tentação de lhe arranjar o cabelo e lhe endireitar a gola da T- shirt.
Claro que já tomou o agradável pequeno-almoço do Premier Inn e quando
ela aparece está a acabar o resto do café. Sorri-lhe, pousa a chávena e saem
juntos do hotel.

O consultório de Sally fica na rua principal de Penreath, num pequeno


edifício em pedra. A montra acolhe um spa chamado Beach. O espaço de
Sally fica no cimo de um lanço de escadas, no primeiro andar. Miller toca a
campainha e uma rapariga muito jovem vem abrir a porta.
– Sim?
– Olá – cumprimenta Miller. – Estamos à procura de Sally Radlett.
– Neste momento, está com um cliente. Posso ajudar?
A rapariga é pálida e naturalmente loira e partilha a mesma estrutura óssea
bem formada de Sally. Por um momento, Libby pensa que deve ser a filha.
Mas não pode ser. Sally deve ter pelo menos sessenta anos, provavelmente
até mais.
– Hum, não, precisamos mesmo de falar com Sally – responde Miller.
– Têm consulta marcada?
– Infelizmente, não. É uma espécie de emergência.
A rapariga semicerra ligeiramente os olhos e vira-se para um sofá
Chesterfield em pele.
– Querem sentar-se um pouco enquanto esperam? Ela já não deve demorar
muito.
– Muito obrigado – diz Miller, enquanto se sentam lado a lado.
É uma sala pequena. Estão suficientemente próximos da rapariga, que
regressou para trás da sua secretária, para a ouvirem respirar.
Um telefonema quebra o silêncio constrangedor e Libby vira-se para Miller
e sussurra:
– E se não for ela?
– Não é – responde ele, encolhendo os ombros.
Libby olha para ele por uma fração de segundo. Percebe que ele não vê a
vida da mesma forma do que ela. Miller está preparado para errar; ele não
precisa de saber sempre o que vai acontecer a seguir. A ideia de viver a vida
como ele vive a sua parece-lhe estranhamente atraente.
Uma mulher alta aparece. Usa um vestido cinzento de manga curta e
sandálias douradas. Despede-se de um homem de meia-idade e nesse
momento repara neles, fazendo uma expressão de incerteza. Volta-se para a
rapariga por trás da secretária e pergunta:
– Lola?
A rapariga olha para eles e diz:
– Pediram uma consulta de emergência.
Ela volta-se para eles e sorri, insegura.
– Olá…?
É óbvio que não gosta de pessoas que venham pedir consultas de
emergência.
Porém, Miller não se incomoda e levanta-se.
– Sally – cumprimenta. – Chamo-me Miller Roe. Esta é a minha amiga
Libby Jones. Será que nos podia dispensar uns dez minutos?
Ela olha para Lola. A rapariga confirma que a consulta seguinte é só às onze
e meia. Ela faz-lhes sinal para que entrem no seu gabinete e depois fecha a
porta atrás deles.
O consultório de Sally é acolhedor no seu estilo escandinavo: um sofá claro
com uma manta de crochê atirada, de forma descontraída, por cima dele,
paredes de um cinzento-claro, uma secretária pintada de branco e cadeiras.
As paredes estão revestidas com dezenas de molduras com fotografias a
preto e branco.
– Então, em que vos posso ser útil?
Miller olha para Libby. Quer que seja ela a começar. Então, ela vira-se para
Sally e declara:
– Acabei de herdar uma casa. Uma casa grande. Em Chelsea.
– Chelsea? – repete Sally, vagamente.
– Sim. Cheyne Walk.
– Hum – ela acena com a cabeça, apenas uma vez.
– O número dezasseis.
– Sim, sim – diz, agora com um tom de impaciência. – Não sei… – começa.
Mas, de repente, detém-se e semicerra ligeiramente os olhos.
– Oh! É a bebé!
Libby acena afirmativamente.
– É Sally Thomsen? – pergunta.
Sally faz uma pausa.
– Bem – responde, após um momento –, tecnicamente não. Voltei a usar o
meu nome de solteira há alguns anos, quando abri o consultório. Não queria
que ninguém… bem. Estive num sítio mau durante bastante tempo e
suponho que precisava de começar de novo. Mas sim. Eu era Sally Thomsen.
Agora, ouçam! – O seu tom muda de repente, tornando-se um pouco
cortante e assertivo. – Não me quero envolver em nada, percebem? A minha
filha fez-me jurar nunca mais falar sobre a casa de Chelsea. Nunca mais.
Depois do que lá aconteceu, ela sofreu durante anos de stress pós-traumático
e, na verdade, ainda se encontra muito afetada. Não é apropriado eu dizer o
que quer que seja. E embora fique contente por vê-la aqui, viva e saudável,
receio que tenha de pedir a ambos o favor de saírem.
– Talvez possamos falar com a sua filha? O que acha?
Sally lança a Miller, que fizera a pergunta, um olhar de aço.
– De maneira nenhuma – responde. – De maneira nenhuma.
50

Chelsea, 1992

A minha mãe nunca recuperou totalmente da perda do bebé. Aos poucos,


foi-se afastando da vida comunitária. Também se afastou de David. Passou a
ficar mais tempo com o meu pai, os dois sentados em silêncio lado a lado.
Claro que eu me sentia totalmente responsável pela sua infelicidade. Tentei
remediar a situação alimentando-a com misturas retiradas dos livros de
Justin, que reivindicavam curar pessoas que sofriam de melancolia. Mas era
praticamente impossível levá-la a comer qualquer coisa, por isso, nada fazia
a mínima diferença.
David parecia tê-la abandonado. Fiquei surpreendido. Eu estava a contar
que ele quisesse envolver-se na sua recuperação. Mas ele estava distante com
ela, frio até.
Um dia, pouco depois de a minha mãe ter perdido o bebé, perguntei a
David:
– Porque é que já não fala com a minha mãe?
Ele olhou para mim e suspirou.
– A tua mãe está num processo de cura. E para isso ela precisa de seguir o
seu próprio caminho.
O seu próprio caminho.
Senti uma onda de fúria começar a crescer dentro de mim.
– Eu não acho que ela se esteja a curar – respondi. – Acho que ela está a ficar
pior. Então, e o meu pai? Não deveria ter algum tipo de cuidados? Algum
tipo de tratamento? Ele passa os dias sentado naquela cadeira. Talvez lá fora
alguém possa fazer alguma coisa por ele. Talvez algum tipo de terapia.
Talvez até terapia de choques elétricos ou algo do género. Já devem ter sido
feitos todos os tipos de avanços médicos para vítimas de AVC que nós nem
imaginamos existirem, porque estamos todos presos aqui… – Eu tinha
começado a gritar e assim que as palavras me saíram da boca, percebi que
tinha ido demasiado longe e então lá estava, a sua mão contundente e fria
contra um lado do meu maxilar.
Senti o sabor metálico do sangue dentro da boca e uma dormência a crescer
em volta dos meus lábios. Toquei no sangue com a ponta do dedo e olhei
para David, horrorizado.
Olhou para mim, os seus grandes ombros erguidos até às orelhas, uma veia a
latejar num dos lados da sua cabeça. Era incrível a rapidez com que aquele
homem sossegado e espiritual podia transformar-se num monstro furioso.
– Não tens o direito de falar sobre essas coisas – rosnou. – Não sabes nada
de nada. És um bebé.
– Mas ele é meu pai. E você tem-no tratado como merda desde que aqui
chegou!
A sua mão voltou, desta vez do outro lado do meu rosto. Eu sempre soube
que isto iria acontecer. Desde a primeira vez que o vi, soube que David
Thomsen me atacaria se eu o confrontasse. E aqui estava.
– Você estragou tudo – continuei, num crescendo de emoção de quem não
tinha nada a perder. – Acha que é muito poderoso e importante, mas não é!
É apenas um rufia! Entrou na minha casa e intimidou-nos a todos para que
nos tornássemos naquilo que queria que fôssemos. E depois engravidou a
minha mãe e agora ela está triste e você não quer saber, não se importa
minimamente. Porque só se importa consigo mesmo!
Desta vez bateu-me com força suficiente para me atirar ao chão.
– Levanta-te! – gritou. – Levanta-te e vai para o teu quarto. Ficas em
isolamento durante uma semana.
– Vai-me trancar? – perguntei. – Por falar consigo? Por dizer como me
sinto?
– Não – rosnou novamente. – Vou trancar-te porque não suporto olhar para
ti. Porque me enojas. Agora, ou vais pelo teu pé ou arrasto-te até lá. Como
vai ser?
Pus-me em pé e corri. No entanto, não corri para as escadas. Corri para a
porta da frente. Rodei a maçaneta, puxei-a e estava pronto, pronto para voar,
pronto para fazer sinal a um estranho e dizer-lhe, Deus nos ajude, estamos
presos numa casa com um megalomaníaco. Por favor, ajude-nos! Mas a porta
estava trancada.
Como é que eu não sabia disso? Puxei e voltei a puxar e então virei-me para
ele e disse:
– Prendeu-nos aqui!
– Não – replicou ele. – A porta está trancada. Não é a mesma coisa. Agora,
vamos?
Subi as escadas dos fundos até ao sótão com passos pesados, com David
logo atrás.
Ouvi o som da fechadura da porta do meu quarto a ser trancada.
Chorei e gritei como um bebé crescido horrível e patético.
Ouvi Phin a gritar comigo através da parede do seu quarto:
– Cala-te! Está calado!
Gritei pela minha mãe, mas ela não veio.
Ninguém veio.

Nessa noite, o rosto doía-me no sítio onde David me tinha batido, o meu
estômago roncava e eu não conseguia dormir. Fiquei toda a noite acordado a
olhar para as nuvens a passarem à frente da Lua, a ver as formas escuras dos
pássaros no topo das árvores, a ouvir a casa a ranger e a suspirar.
Creio que, no decurso da semana que se seguiu, enlouqueci um pouco.
Arranhei as paredes com as unhas até as pontas dos dedos sangrarem. Bati
com a cabeça no chão. Fiz barulhos de animais. Vi coisas que não existiam.
Acho que a ideia de David era que eu saísse da minha prisão subjugado e
pronto para um novo começo. Mas não foi esse o caso.
Quando, uma semana depois, a porta foi finalmente destrancada e fui
autorizado a voltar a andar pela casa, não me senti, de modo algum,
subjugado. Senti-me monstruosamente consumido por uma ira justa. Ia
acabar com David, de uma vez por todas.
Ao recuperar, por fim, a minha liberdade, havia algo mais no ar, um grande
segredo a flutuar na atmosfera, levado pelas partículas de poeira e raios
solares, preso nos fios das teias de aranha nos cantos altos das divisões da
casa.
Quando me juntei a todos à mesa do pequeno-almoço, nessa primeira
manhã depois do isolamento, perguntei a Phin:
– O que se passa? Porque estão todos a comportar-se de forma tão estranha?
– Não é assim que todos se comportam sempre por aqui? – disse Phin,
encolhendo os ombros.
– Não. É mais estranho do que habitualmente. Como se algo se passasse –
insisti.
Nessa altura, para mim tornou-se óbvio que Phin já estava doente. A sua
pele, antes tão macia e perfeita, parecia agora acinzentada e manchada. O
seu cabelo caía, oleoso, para um lado. E tinha um cheiro um pouco estranho,
um pouco azedo.
Disse-o a Birdie.
– Phin parece doente.
– Phin está ótimo. Precisa apenas de mais exercício – respondeu ela, de um
modo afetado.
Através da porta da sala de ginástica, eu ouvia o pai dele a implorar-lhe que
se esforçasse mais.
– Mais. Tu consegues. Empurra. Força. Vá lá! Nem sequer estás a tentar!
Vi Phin sair da sala de ginástica, com aspeto pálido e enjoado, e começou a
subir lentamente as escadas que conduziam ao sótão, como se cada degrau
lhe provocasse uma dor.
– Devias vir comigo ao jardim. O ar fresco ajuda – disse-lhe.
– Não quero ir a lugar nenhum contigo – replicou.
– Bem, não tens de vir comigo. Podes ir ao jardim sozinho.
– Não percebes? – perguntou. – Nada nesta casa me poderá fazer bem. A
única coisa que me ajudaria seria não estar aqui. Preciso de ir embora.
Preciso de ir embora – disse e os seus olhos pareciam perfurar os meus.
Eu sentia que a casa estava a morrer. Primeiro foi o meu pai a enfraquecer,
depois a minha mãe, agora Phin. Justin tinha-nos abandonado. O bebé
estava morto. De facto, eu já não conseguia ver qual era o sentido de tudo
isto.
Então, uma tarde, ouvi o som de gargalhadas vindo lá de baixo. Espreitei
para o corredor e vi David e Birdie a saírem da sala de exercício. Ambos
resplandeciam de saúde. David passou um braço em volta dos ombros de
Birdie e puxou-a para si, beijando-a com força nos lábios com um som de
muah repugnante. Eram eles. Via-o com toda a clareza. Eram eles que
esgotavam a casa, como vampiros, consumindo toda a sua energia, todo o
seu amor, vida e bondade, ficando com tudo para si, banqueteando-se com a
nossa infelicidade e os nossos espíritos destroçados.
Então olhei à minha volta, para as paredes nuas onde as pinturas a óleo
outrora estiveram penduradas, para os cantos vazios onde antes estavam
belas peças de mobiliário. Pensei nos candelabros que ali tinham brilhado
com a luz do Sol. A prata, o bronze e o ouro que tinham cintilado em todas
as superfícies. Pensei no guarda-vestidos da minha mãe, com roupas de
design e malas, nos anéis que lhe adornavam os dedos, os brincos de
diamante e os pingentes de safira. Agora, tudo desaparecera. Fora tudo para
a suposta «caridade», para ajudar os «pobres». Estimei o valor de todos esses
bens perdidos. Suspeitava que seria de milhares de libras. Muitos milhares
de libras.
Depois olhei de novo para David, para o seu braço em volta dos ombros de
Birdie, ambos tão livres e despreocupados com tudo o que se passava
naquela casa. Pensei: não és um messias, um guru ou um deus, David
Thomsen. Não és um filantropo nem um benfeitor. Não és um homem
espiritual. És um criminoso. Vieste à minha casa e saqueaste-a. E também
não és um homem de compaixão. Se fosses um homem de compaixão,
estarias agora sentado com a minha mãe enquanto ela chora o seu bebé
perdido. Arranjarias uma forma de ajudar o meu pai a sair da sua vida
infernal. Levarias o teu filho ao médico. Não estarias a rir-te com Birdie.
Estarias demasiado sobrecarregado pela infelicidade de todos os outros.
Portanto, se não sentes compaixão, isso significa que não tens dado o nosso
dinheiro aos pobres. Só podes tê-lo guardado para ti mesmo. Deve ser o tal
«esconderijo» de que Phin me falou há tantos anos. E, se for esse o caso,
então onde está? E o que estás a planear fazer com ele?
51

Chelsea, 1992

Duas semanas depois de me ter libertado do meu quarto, David anunciou à


mesa, durante o jantar, a gravidez da minha irmã. Ela tinha apenas catorze
anos.
Vi Clemency a afastar-se dela, a fugir da sua proximidade como se se tivesse
queimado com óleo quente. Vi o rosto da minha mãe, o olhar vazio da
morte, e percebi que ela já sabia. Olhei para Birdie. Ela sorriu-me. Ao ver
aqueles dentinhos minúsculos, explodi. Saltei por cima da mesa e atirei-me a
David. Tentei bater-lhe. Bem, na verdade, tentei matá-lo. Essa era a minha
principal intenção.
Mas eu era pequeno e ele era grande, e claro que Birdie se interpôs entre nós
e, de alguma forma, eu fui afastado e empurrado de volta para o meu lado
da mesa. Olhei para a minha irmã, para o estranho sorriso que lhe brincava
nos lábios, e não pude acreditar que não o tinha visto antes, que não tinha
percebido que a minha irmãzinha também caíra em toda aquela artimanha,
que ela via David do mesmo modo que a minha mãe o via, tal como Birdie o
via. Que ela estava orgulhosa por David a ter escolhido e orgulhosa por
agora esperar um filho seu.
E então fez-se luz.
David não queria apenas o nosso dinheiro. Queria a casa.
Era tudo que sempre quisera desde o momento em que ali pusera os pés. E
ter um bebé da minha irmã garantiria que ficava com o seu quinhão.
No dia seguinte, fui ao quarto dos meus pais. Abri as caixas de cartão para as
quais todos os seus bens não valiosos tinham sido despejados quando a
mobília foi dada. Sentia os olhos do meu pai sobre mim.
– Papá, onde está o testamento? O testamento que diz o que acontece à casa
quando vocês morrerem?
Conseguia perceber a sugestão de palavras que se formavam no fundo da
sua garganta. Ele abriu a boca um milímetro ou dois. Aproximei-me.
– Pai? Sabes onde está? Sabes onde está toda a papelada?
O seu olhar desviou-se do meu rosto para a porta do quarto.
– Está lá fora? – perguntei. – A papelada?
Ele pestanejou.
Por vezes fazia isso quando estava a ser alimentado. Se a mamã lhe
perguntasse: «Está bom, querido?», ele pestanejava e então ela dizia: «Ainda
bem. Ainda bem» e dava-lhe mais uma colher de comida.
– Em que quarto? – perguntei. – Em qual dos quartos está a papelada?
Vi os seus olhos moverem-se ligeiramente para a esquerda, na direção do
quarto de David e Birdie.
– No quarto de David?
Ele pestanejou.
O coração caiu-me aos pés.
Eu não conseguiria entrar no quarto de David e Birdie. Para começar,
mantinham-no sempre trancado. E, mesmo que não o fizessem,
as consequências de ser apanhado lá eram impensáveis.
Consultei, mais uma vez, o extremamente útil livro de feitiços de Justin.
«Um Feitiço para o Entorpecimento Temporário».
Parecia exatamente o que eu precisava. Prometia alguns momentos de
atordoamento geral e sonolência, uma «fuga breve e impercetível».
Implicava o uso de beladona mortal, Atropa belladonna, a planta venenosa
de que Justin me falara tantos meses antes. Eu tinha-a cultivado em segredo,
após ter encontrado algumas sementes na arca de Justin. As sementes
precisaram de ficar embebidas em água no frigorífico durante duas semanas.
Expliquei aos adultos que estava a experimentar uma nova planta para o
ennui de Phin.
A seguir, peguei nas sementes e plantei-as em dois vasos grandes. Foram
necessárias três semanas para que os rebentos aparecessem e na última vez
que olhei para eles já estavam a florescer. De acordo com o folheto, a Atropa
belladonna era muito difícil de plantar e eu fiquei incrivelmente satisfeito
comigo mesmo quando as primeiras flores roxas desabrocharam. Esgueirei-
me para o jardim e colhi um par de raminhos, enfiei-os no cós das leggings e
subi rapidamente. No meu quarto, fiz a tintura com folhas de camomila e
água açucarada. A mistura deveria também conter dois pelos das costas de
um gato ruivo e o bafo da boca de uma velha, mas eu era um herbalista, não
um mago.
Os meus chás de plantas foram muito apreciados. Disse a David e a Birdie
que andava a experimentar uma nova mistura: camomila e folhas de
framboesa. Olharam para mim afetuosamente e disseram que parecia
delicioso.
Pedi desculpa a Birdie, enquanto ela bebia o seu, por ser talvez um pouco
doce e expliquei-lhe que era apenas um toque de mel, para equilibrar o
amargor das folhas de framboesa. O feitiço especificava que o seu
destinatário precisava de beber pelo menos meio copo. Por isso, sentei-me e
fiquei a vê-los beber com uma expressão afável no rosto, como se desejasse
desesperadamente a aprovação de ambos, para que continuassem a beber,
mesmo que não gostassem do sabor.
Mas ambos gostaram e beberam a chávena inteira.
– Bem – disse Birdie um pouco depois, enquanto levávamos a loiça para
lavar –, este chá era super, super-relaxante, Henry. Acho que podia… na
verdade… – Vi os seus olhos revirarem-se ligeiramente. – Acho que me vou
deitar – concluiu.
Via agora que David também se debatia para manter os olhos abertos.
– Sim – disse ele. – Só uma pequena sesta.
– Vamos, deixem-me ajudar-vos – disse eu. – Caramba, sinto muito. Talvez
o chá tivesse demasiada camomila. Aqui, vá – permiti que Birdie se
segurasse no meu braço.
Ela encostou o rosto ao meu ombro e disse:
– Adoro o teu chá, Henry. É o melhor que já tomei.
– É mesmo muito, muito bom – concordou David.
David procurou a chave do seu quarto por entre as dobras da túnica e, nesse
momento, pude ver que, por baixo dela, ele usava uma bolsa de couro
cruzada à frente. Calculei que fosse aí que guardava todas as chaves de todas
as divisões da casa. Ele estava com dificuldade em colocar a chave na
fechadura e eu ajudei-o. Levei-os aos dois para a cama onde caíram
instantaneamente num sono profundo.
E ali estava eu. No quarto de David e Birdie. Há anos que não punha ali os
pés, desde o tempo em que David e Sally ainda estavam juntos.
Olhei em volta e mal consegui absorver tudo o que estava a ver. Pilhas de
caixas de cartão das quais transbordavam roupas, livros e inúmeros objetos,
coisas que nos tinham dito serem maléficas, más. Vi dois pares de sapatos no
canto do quarto, um dele e um dela. Vi álcool, uma garrafa de vinho meia
bebida e com a rolha substituída, um copo com um resíduo pegajoso escuro
no fundo, do uísque caríssimo do meu pai. Vi uma caixa de bolachas e o
invólucro de uma barra de chocolate Mars. Vi umas cuecas de seda e uma
embalagem de champô Elvive.
No entanto, tive de ignorar tudo aquilo por algum tempo. Não fazia ideia de
quanto iria durar aquele estado de «entorpecimento temporário». Precisava
de encontrar a papelada do meu pai e sair dali.
Enquanto as minhas mãos passavam pelas várias caixas, encontrei o meu
estojo de lápis, que já não via desde o meu último dia na escola primária.
Segurei-o por uns instantes e examinei-o, como se fosse uma relíquia de
outra civilização. Pensei brevemente naquele rapaz de calções castanhos, a
sair, saltitante, no seu último dia na escola, o queixo erguido num gesto
triunfante ao imaginar o admirável mundo novo que estava prestes a ser-lhe
apresentado. Abri o fecho, levei-o ao nariz, inalei o cheiro das aparas de lápis
e da inocência; a seguir, enfiei-o nas minhas leggings para mais tarde o
esconder no meu quarto.
Encontrei um vestido de baile da minha mãe. Encontrei as espingardas do
meu pai. Encontrei os collants e o tutu de ballet da minha irmã, sem
conseguir compreender a razão de os terem guardado.
E então, na terceira caixa, encontrei as pastas de arquivo do meu pai: pastas
cinzentas marmoreadas com argolas metálicas no interior. Puxei para fora
uma que tinha escrito de lado: «Assuntos de Casa» e folheei rapidamente o
seu conteúdo.
E lá estava, a última vontade e testamento de Henry Roger Lamb e Martina
Zeynep Lamb. Enfiei-os também no cós das minhas leggings. Iria lê-los, em
silêncio, no meu próprio quarto. Ouvi a respiração de Birdie tornar-se mais
rápida e vi a sua perna estremecer. Rapidamente, puxei outra caixa para
mim. Ali estavam os passaportes. Segurei-os e verifiquei as suas páginas: o
meu, o da minha irmã, os dos meus pais. Senti uma onda de fúria crescer
dentro de mim. Os nossos passaportes! Este homem até nos tinha tirado os
passaportes! Aquilo quase parecia superar a pura crueldade de nos trancar
na nossa própria casa. Roubar o passaporte de outro ser humano, o seu meio
de fugir, de se aventurar, explorar, aprender, aproveitar o mundo – o meu
coração batia com força, enraivecido. Reparei que o meu passaporte tinha
expirado e que o da minha irmã ainda tinha mais seis meses de validade.
Para nós agora era inútil.
Ouvi David murmurar baixinho.
O entorpecimento temporário tinha sido demasiado temporário e eu não
tinha certeza se conseguiria voltar a persuadi-los a beber, uma vez mais, um
«chá novo» especial. Esta poderia ser a minha única oportunidade de
descobrir os segredos enterrados neste quarto.
Encontrei uma embalagem de paracetamol. Um pacote de rebuçados para a
tosse. Um pacote de preservativos. E encontrei, por baixo de tudo isso, uma
pilha de dinheiro. Passei os dedos pelos lados das notas. O seu restolhar era
satisfatório, sugerindo uma boa quantia. Calculei que seriam umas mil
libras. Talvez mais? Peguei em algumas notas de dez libras do topo da pilha
e dobrei-as, metendo-as no meio da papelada enfiada no meu cós elástico.
Birdie gemeu.
David gemeu.
Endireitei-me, com o testamento do meu pai, o meu estojo e cinco notas de
dez libras apertadas firmemente contra o estômago.
Saí do quarto em bicos dos pés, fechando a porta silenciosamente atrás de
mim.
52

Lucy sente a cabeça andar à roda. As feições do homem parecem surgir


focadas e desfocadas. Por um momento, parece-se com uma pessoa, no
momento seguinte com outra. Pergunta-lhe quem é.
– Sabes quem sou – diz ele.
A voz é simultaneamente familiar e estranha.
Stella atravessou o quarto e está agarrada à perna da mãe.
Lucy consegue ver Marco, alto e forte, ao seu lado.
O cão aceita alegremente o carinho do homem, deitando-se de costas para
permitir que ele lhe faça cócegas na barriga.
– Quem é um bom menino? – pergunta o homem. – Quem é um lindo
menino?
Ele olha para Lucy e empurra os óculos mais para cima do nariz com a
ponta do dedo indicador.
– Eu adorava ter um cão – diz. – Não é justo deixá-lo em casa todo o dia
quando vamos trabalhar, não é? Por isso tenho apenas gatos – suspira. De
seguida, endireita-se e examina-a de cima a baixo. – Já agora, adoro o teu
estilo. Nunca imaginaria que irias ter esse ar boémio.
– És…? – Lucy semicerra os olhos.
– Não te vou dizer – declara, em tom de brincadeira. – Tens de adivinhar.
Lucy suspira. Está tão cansada. Veio de tão longe. A sua vida tem sido tão
longa, tão dura, nunca nada foi fácil. Nem por um segundo. Tomou decisões
terríveis e acabou em lugares maus com pessoas más. Ela é, como tantas
vezes já se sentiu, um fantasma, o mero esboço de uma pessoa que um dia
podia ter existido, mas que fora apagada pela vida.
E agora aqui está ela: uma mãe, uma assassina, uma imigrante ilegal que
invadiu uma propriedade que não lhe pertence. Tudo o que quer é ver a
bebé e fechar o círculo da sua existência. Mas agora está ali um homem e ela
acha que pode ser o seu irmão. Mas como pode ser o seu irmão e ao mesmo
tempo não ser o seu irmão? E porque está com medo dele?
Levanta os olhos para o homem, vê a sombra das suas longas pestanas
contra as maçãs do rosto. É Phin, pensa. É Phin. Mas depois olha para baixo,
para as suas mãos: pequenas e delicadas, com os pulsos estreitos.
– És o Henry – diz –, não és?
53

Chelsea, 1992

Após o anúncio da gravidez, fui ter com a minha mãe e disse-lhe:


– Deixaste a tua filha fazer sexo com um homem da mesma idade que tu.
Isso é doentio.
– Não tive nada que ver com isso. Só sei que um bebé vai chegar e que todos
devemos ficar muito felizes – limitou-se a responder.
Até hoje, nunca me senti tão completamente só como nesse momento. Já
não tinha mãe nem pai. Não tínhamos visitas. A campainha nunca tocou. O
telefone fora desligado há muitos meses. Houve uma altura, uns dias depois
de a minha mãe ter perdido o bebé, que alguém veio a nossa casa e bateu à
porta, com força, todos os dias durante meia hora e ao longo de quase uma
semana. Fomos mantidos nos nossos quartos enquanto a pessoa batia à
porta. Mais tarde, a minha mãe disse que tinha sido o seu irmão, o meu tio
Karl. Eu gostava dele, era o tipo de tio jovem turbulento que atirava as
crianças para a piscina e que contava piadas impróprias que deixavam todos
os adultos atrapalhados. A última vez que o vimos foi no seu casamento, em
Hamburgo, quando eu tinha uns dez anos. Ele usava um fato de três peças
com um padrão de flores. A ideia de que ele tinha estado à nossa porta e que
não o tínhamos deixado entrar partiu outra pequena parte do meu coração.
– Mas porquê? – perguntei à minha mãe. – Porque não o deixámos entrar?
– Porque ele não iria compreender a forma como escolhemos viver. Ele é
demasiado frívolo e vive uma vida sem sentido.
Não respondi, porque não havia resposta possível. Ele não iria compreender.
Ninguém compreenderia. Pelo menos isso ela conseguia ver.
Os legumes eram entregues numa caixa de cartão uma vez por semana; o
dinheiro era deixado num envelope escondido junto à porta da frente. Uma
vez por outra, o homem que trazia os legumes tocava à campainha, a minha
mãe levantava a pala da caixa de correio e o homem dizia: «Hoje não havia
cherovias, menina, substituí-as por nabiças, espero que não haja problema»,
e a minha mãe sorria e dizia: «Está bem assim, muito obrigada», e depois de
os corpos terem sido encontrados, esse homem iria à polícia e dir-lhes-ia
que pensava que aquele sítio era um convento fechado e que a minha mãe
era uma freira. Aliás, ele referia-se a esse ponto da sua rota de entregas como
o «convento das freiras». Disse que não fazia ideia de que naquela casa
moravam crianças. Que não fazia ideia de que havia lá um homem.
Por essa altura, eu estava muito sozinho. Tentei reavivar a minha amizade
(ou o que quer que se tenha assemelhado a uma amizade) com Phin, mas ele
ainda estava muito zangado comigo por tê-lo traído na noite em que ele me
empurrou para o rio. E sim, sei que era natural eu ter ficado furioso com ele
por me ter empurrado para o rio, mas tínhamos consumido drogas, e eu era
um chato – percebia que era um chato –, e de certa forma mereci ser
empurrado para a água e a minha fúria posterior estava mais relacionada
com o orgulho e os sentimentos feridos do que com qualquer convicção de
que ele me tivesse colocado numa situação de perigo mortal. Além disso, eu
estava apaixonado por ele e quando estamos apaixonados perdoamos
praticamente tudo. É um traço que, infelizmente, trouxe comigo para a
minha vida adulta. Apaixono-me sempre por pessoas que me odeiam.

Uma tarde, logo após o anúncio da gravidez da minha irmã, encontrei


Clemency na cozinha.
– Tu sabias? – perguntei.
Ela corou um pouco, obviamente porque ao longo dos anos mal nos
tínhamos falado e agora estávamos a falar da sua melhor amiga fazer sexo
com o pai dela.
– Não. Não fazia ideia – respondeu.
– Mas vocês são tão próximas. Como é que não sabias?
– Pensei apenas que iam fazer ginástica – disse, encolhendo os ombros.
– O que pensas disso?
– Acho que é nojento.
Acenei com a cabeça, veementemente, como que para dizer, ótimo, estamos
em sintonia.
– O teu pai já alguma vez tinha feito uma coisa destas?
– Estás a falar de…?
– De bebés. Ele já antes tinha engravidado outras pessoas?
– Oh – respondeu ela, suavemente –, não. Apenas a minha mãe.
Disse-lhe para vir ao meu quarto e ela pareceu assustada por um minuto, o
que feriu os meus sentimentos, mas depois pensei que isso até era bom. Era
bom sentir medo, já que eu ia vencer David e tirar-nos a todos daquela casa.
No meu quarto, afastei o colchão da parede e peguei nos objetos que tinha
encontrado no quarto de David e Birdie. Espalhei-os pelo chão e deixei que
ela os visse. Disse-lhe onde os encontrara.
– Mas como é que lá entraste? – perguntou.
– Não te posso dizer – respondi.
Vi uma expressão de confusão passar-lhe pelo rosto enquanto observava os
objetos.
– O teu estojo?
– Sim. O meu estojo de lápis. E havia tantas outras coisas. – Falei-lhe das
cuecas de seda, do uísque e das pilhas de dinheiro. E, à medida que lhe ia
contando, percebi que ela começava a ceder. Foi como no dia em que contei
a Phin que tinha visto o seu pai a beijar Birdie. Tinha-me esquecido de que
estava a falar a uma criança do seu pai, de que havia uma ligação profunda
de material genético partilhado, de memórias, de afinidade e de que eu
estava a destruir tudo isso com as minhas palavras.
– Ele tem-nos estado sempre a mentir! – disse ela, esfregando os olhos com
as palmas das mãos. – Pensei que estávamos a fazer tudo isto pelos pobres!
Não compreendo. Não compreendo!
Olhei-a nos olhos com firmeza.
– É simples. O teu pai tirou aos meus todas as coisas de valor e agora
também quer a casa deles. Legalmente, esta casa será para mim e para a
minha irmã, quando tivermos vinte e cinco anos, e entretanto ficará a ser
administrada por um trust. Mas olha – mostrei-lhe o testamento que tinha
tirado da caixa, ao qual tinha sido acrescentado um codicilo com a caligrafia
de David. Em linguagem legal, declarava agora que, em caso de morte dos
meus pais, a casa passaria diretamente para David Sebastian Thomsen e os
seus descendentes. Este codicilo foi testemunhado e contra-assinado pela
minha mãe e por Birdie. Não teria a mínima possibilidade de se fazer valer
em tribunal, mas a sua intenção era bem clara. – E ele quer ter um bebé para
garantir o seu quinhão na casa.
Clemency não disse nada durante algum tempo. A seguir, perguntou:
– O que vamos fazer?
– Ainda não sei – respondi, esfregando o queixo como se aí tivesse a barba
de um homem sábio, muito embora não tivesse nada que se parecesse. Até
aos meus vinte anos não consegui deixar crescer uma barba e mesmo assim
era bastante insignificante. – Mas vamos fazer alguma coisa.
– OK – respondeu, olhando para mim, com os olhos arregalados.
– Mas – prossegui, com firmeza –, tens de me prometer que este é o nosso
segredo. – Fiz um gesto na direção dos objetos que tinha roubado do quarto
de David e Birdie. – Não contes ao teu irmão. Não contes à minha irmã. Não
contes a ninguém, OK?
– Prometo – assentiu. Ficou em silêncio por um instante e depois olhou para
mim e disse: – Ele já fez isto antes.
– O quê?
Clemency baixou os olhos para o colo.
– Tentou convencer a sua avó a ceder-lhe a casa. Quando ela já estava senil.
O meu tio descobriu e expulsou-nos. Foi nessa altura que nos mudámos
para França. – Olhou para mim. – Achas que devemos contar à polícia? –
perguntou. – Dizer-lhes o que ele anda a fazer?
– Não – respondi, de imediato. – Não. Porque, na verdade, ele não infringiu
a lei, pois não? Precisamos é de um plano. Temos de sair daqui. Ajudas-me?
Ela aquiesceu.
– Estás disposta a fazer o que for preciso?
Clemency assentiu novamente.
Na verdade, era como uma bifurcação na estrada. Em retrospetiva, vejo que
havia tantas outras maneiras de superar todo aquele trauma, mas com todas
as pessoas que eu mais amava no mundo afastadas de mim, escolhi a pior
opção possível.
54

Libby e Miller deixam o consultório de Sally dez minutos depois.


– Estás bem? – pergunta-lhe ele quando emergem no calor sufocante.
Ela ainda consegue esboçar um sorriso, mas logo a seguir percebe que está
prestes a chorar e não consegue fazer nada para o impedir.
– Oh, meu Deus! – exclama Miller. – Oh, então. Vá lá, vá lá.
Leva-a até um pequeno jardim tranquilo, para um banco por baixo de uma
árvore. Ele tateia os bolsos.
– Desculpa, não tenho lenços.
– Tudo bem – diz ela. – Eu tenho.
Ela tira da mala um maço de pacotes de lenços. Miller sorri.
– És exatamente o tipo de pessoa que costuma andar com pacotes de lenços.
– O que é que isso quer dizer? – pergunta, olhando para ele.
– Quer dizer… quer apenas dizer… – As suas feições suavizam-se. – Nada –
declara. – Significa apenas que és muito organizada. Só isso.
Ela acena com a cabeça. Ela sabe.
– Tenho mesmo de ser – diz ela.
– Porquê? – pergunta Miller.
Libby encolhe os ombros. Não é da sua natureza falar de questões pessoais.
Mas dado aquilo por que passaram nos últimos dois dias, ela sente que os
limites que definem as suas habituais preferências em termos de conversa
deixaram de fazer sentido.
– A minha mãe. A minha mãe adotiva. Ela era um pouco… bem, é um
pouco caótica. Muito, muito querida. Mas era o meu pai que a mantinha nos
eixos. E ele morreu quando eu tinha oito anos, e depois disso… eu chegava
sempre atrasada a tudo. Nunca tinha as coisas certas para a escola. Não
costumava mostrar-lhe os arranhões e nódoas negras que fazia, porque não
valia a pena. Marcou umas férias a meio dos meus exames do secundário.
Emigrou para Espanha quando eu tinha dezoito anos. – Encolhe os ombros.
– Por isso eu tinha de ser a adulta. Sabes como é.
– A guardadora de lenços?
Ela ri-se.
– Sim. A guardadora de lenços. Lembro-me de uma vez ter caído no parque
infantil e ter feito um golpe no cotovelo e de a minha mãe andar à procura
de alguma coisa com que o limpar na sua mala, até que outra mãe se
aproximou com uma mala exatamente do mesmo tamanho e de lá tirou uns
toalhetes antisséticos e uma embalagem de pensos rápidos. Nessa altura,
pensei apenas: «Uau, quero ser uma pessoa com uma mala mágica», sabes?
– E estás a ir muito bem – diz Miller, sorrindo-lhe. – Sabes disso, não sabes?
Ela ri nervosamente.
– Estou a tentar – diz ela. – Estou a tentar fazer o melhor que posso.
Por um momento, deixam-se ficar sentados em silêncio. Os seus joelhos
tocam-se brevemente, voltando a afastar-se logo de seguida.
– Bem, isto foi uma perda de tempo, não foi? – diz Libby finalmente.
Miller lança-lhe um olhar maroto.
– Bem – diz –, não foi uma completa perda de tempo. A miúda. Lola? É neta
de Sally.
Libby sobressalta-se.
– Como sabes?
– Porque vi uma fotografia sobre a secretária de Sally onde ela estava com
uma mulher mais jovem que segurava um recém-nascido. E depois vi outra
fotografia na parede de Sally com uma jovem de cabelo louro. E reparei
também num desenho de criança emoldurado na parede que dizia: «Amo-
te, avó». – Encolhe os ombros. – Juntei tudo e pronto. – Inclina-se para
Libby e mostra-lhe algo no telemóvel.
– O que é isso? – pergunta ela.
– É uma carta dirigida a Lola. Estava a espreitar da mala dela, por baixo da
secretária. Realizei a manobra clássica de me ajoelhar-para-apertar-os-
atacadores. Click.
Libby olha para ele com admiração.
– Mas o que te fez pensar…
– Libby. Eu sou jornalista de investigação. É isto que eu faço. E se a minha
teoria estiver correta, Lola deve ser filha de Clemency. O que significa que
Clemency deve viver por aqui. E, portanto, este endereço – aponta para o
ecrã do telemóvel – é também o endereço de Clemency. Acho que podemos
ter encontrado o segundo adolescente desaparecido.

Uma mulher aparece à porta do elegante bungalow. Ao seu lado está um


golden retriever bem-comportado, que abana a cauda preguiçosamente para
eles. A mulher tem um ligeiro excesso de peso. Tem a cintura larga e pernas
altas, um busto de aspeto pesado. O seu cabelo é muito escuro e tem um
corte bob. Usa umas argolas de ouro, calças de ganga azuis e um top de linho
rosa-pálido sem mangas.
– Sim?
– Oh, olá – cumprimenta Miller. – Clemency?
A mulher assente.
– Chamo-me Miller Roe. Esta é Libby Jones. Acabámos de falar com a sua
mãe. Na cidade. Ela disse que você morava perto e…
Ela olha para Libby com atenção.
– Você parece… Tenho a sensação de que a conheço.
Libby baixa a cabeça e deixa que Miller faça as honras.
– Esta é a Serenity – diz ele.
Clemency agarra a maçaneta da porta com ambas as mãos, por um instante.
A sua cabeça rola ligeiramente para trás e, por um momento, Libby acha que
ela está prestes a desmaiar. Mas ela recupera e estende as mãos na sua
direção.
– Claro! Claro! Vinte e cinco anos! Claro. Eu devia ter-me lembrado. Devia
ter calculado que virias. Oh, meu Deus. Entrem. Por favor, entrem.
O interior do bungalow é lindo: chão de madeira e pinturas abstratas, jarras
cheias de flores, o Sol a brilhar através de janelas de vitrais.
O cão senta-se aos pés de Libby enquanto Clemency vai buscar copos de
água. Ela acaricia-lhe o cimo da cabeça. Ele está ofegante com aquele ar
abafado e o seu bafo cheira mal, mas ela não se importa.
Clemency regressa e senta-se à frente deles.
– Uau – exclama, olhando para Libby. – Olha para ti! Tão bonita! E tão…
real.
Libby ri nervosamente.
– Quando eu parti, ainda eras apenas um bebé – diz Clemency. – Não tinha
fotografias tuas. Não fazia ideia para onde tinhas ido, de quem te tinha
adotado ou que tipo de vida acabaste por ter. E não conseguia imaginar-te.
Não conseguia. Só conseguia imaginar um bebé. Que mais parecia uma
boneca. Não era bem real. Nunca foi muito real. E oh… – Nesse momento,
os olhos dela enchem-se de lágrimas e diz, com a voz embargada: – Lamento
muito, muito mesmo. És… ? Foste…? Correu tudo bem contigo?
Libby assente. Pensa na sua mãe, com o homem a quem chama jovem
namorado (embora ele tenha apenas menos seis anos do que ela), estirada
no minúsculo terraço do seu apartamento de apenas uma cama em Dénia
(sem espaço para Libby ficar quando vai visitá-la), com um cafetã rosa-
choque, a explicar através do Skype que tinha estado demasiado ocupada
para marcar voos para ir visitá-la no seu aniversário e que, quando tivera
oportunidade de verificar online, já os mais baratos se tinham esgotado.
Pensa no dia em que enterraram o seu pai, a sua mão na mão da mãe,
olhando para o céu, perguntando-se se ele lá teria chegado em segurança,
preocupando-se por não saber como iria agora para a escola, já que a mãe
não sabia conduzir.
– Correu bem – responde. – Fui adotada por pessoas encantadoras. Tive
muita sorte.
O rosto de Clemency ilumina-se.
– Então, onde moras agora?
– Em St. Albans – responde.
– Oh! Isso é bom. E… és casada? Tens filhos?
– Não. Sou apenas eu. Solteira. Vivo sozinha. Sem filhos. Sem animais de
estimação. Trabalho em vendas de cozinhas de design. Estou muito… Bem,
não há muito a dizer sobre mim. Pelo menos até…
– Sim – diz Clemency. – Claro. Imagino que tenha sido tudo um choque.
– Para dizer o mínimo.
– E o que é que sabes? – pergunta, cuidadosa. – Sobre a casa. Sobre tudo o
que aconteceu.
– Bem – começa Libby –, é tudo um bocado complicado. Antes de mais,
havia o que os meus pais sempre me tinham dito, que os meus pais
biológicos tinham morrido num acidente de carro quando eu tinha dez
meses de idade. Depois, havia o que li no artigo de Miller, que os meus pais
eram membros de uma seita, que tinha havido uma espécie de pacto de
suicídio e que uns ciganos tinham cuidado de mim. E então, há duas noites,
Miller e eu estávamos na casa, em Cheyne Walk, quando um fulano
apareceu. Ele disse-nos… – faz uma pausa –, disse-nos que se chamava
Phin.
Clemency sobressalta-se e os seus olhos arregalam-se.
– Phin?
Libby acena com a cabeça, insegura.
– Tens a certeza? – pergunta Clemency, com os olhos cheios de lágrimas. –
Tens a certeza de que era Phin?
– Bem, ele disse-nos que era esse o seu nome. E disse que a Clemency era
irmã dele. Que há anos que não a via a si nem à vossa mãe.
– Mas ele estava tão doente quando o deixei na casa – ela abana a cabeça. –
Tão doente. Eu e a nossa mãe procurámo-lo por todo o lado. Por todo o
lado. Durante anos e anos. Fomos a todos os hospitais de Londres.
Vagueámos pelos parques, observando todos os sem-abrigo. Continuámos
sempre à espera que de repente ele aparecesse à nossa porta. Mas nunca o
fez e acabámos por… bem, assumir que tinha morrido. Caso contrário,
porque não voltava? Porque não vinha procurar-nos? Seria, certamente, o
que faria, ou não? – Clemency faz uma pausa. – Tens a certeza absoluta de
que era Phin? – pergunta de novo. – Diz-me como é que ele era.
Libby descreve os óculos com armação de tartaruga, o cabelo louro, as
longas pestanas, a boca carnuda.
Clemency acena com a cabeça.
E então Libby fala-lhe do luxuoso apartamento e dos gatos persas. Repete a
piada sobre o gato chamado Dick e Clemency abana a cabeça.
– Não – diz. – Isso não parece nada coisa do Phin. Nada mesmo. – Detém-se
por um instante, com os olhos percorrendo a sala, enquanto pensa. – Sabes
o que eu acho? – acaba por perguntar. – Acho que pode ser Henry.
– Henry?
– Sim. Ele estava apaixonado por Phin. E não era minimamente
correspondido. Era quase obsessivo. Passava a vida a olhar para ele. Vestia-se
como ele. Copiou os seus penteados. Uma vez até tentou matá-lo.
Empurrou-o para o rio e manteve-o debaixo de água. Felizmente, Phin era
mais forte do que Henry. Era maior. Conseguiu lutar contra ele. Sabias que
Henry matou a gata da Birdie?
– O quê?
– Envenenou-a. Cortou-lhe a cauda e atirou o resto do corpo para o rio.
Portanto, os sinais já lá estavam. De facto, é algo terrível de se dizer em
relação a uma criança, mas, na minha opinião, Henry tinha um traço de
pura maldade.
55

Chelsea, 1993

Eu não matei a gata da Birdie. Claro que não. Mas sim, de facto morreu por
minha culpa.
Eu estava a trabalhar noutra poção para dormir, algo com beladona, um
pouco mais forte do que aquela que tinha dado a David e a Birdie para
conseguir entrar no seu quarto. Algo que proporcionasse um
entorpecimento um pouco menos temporário. Testei-a na gata,
considerando que se não lhe fizesse mal, então provavelmente seria segura
para os humanos. Infelizmente, fez mal à gata. Aprendi a lição. Fiz a poção
seguinte muitíssimo mais fraca.
Quanto à cauda da gata, bem, parece duro exprimi-lo dessa maneira: cortar-
lhe a cauda. Fiquei com ela. Era linda, tão macia e com umas cores
extraordinárias. Lembrem-se de que, nessa época, eu não tinha nada, nada
macio, tudo nos fora retirado. Ela já não precisava da cauda. Por isso, sim,
fiquei com a cauda da gata. E – fake news – não atirei a gata para o Tamisa.
Como poderia tê-lo feito? Eu nem sequer podia sair de casa. Na verdade, a
gata permanece até hoje enterrada no meu jardim de plantas aromáticas.
Quanto a ter sido eu quem empurrou Phin para o Tamisa, e não o contrário:
bem, isso é categoricamente mentira. O que pode ser verdade é que Phin me
empurrou durante uma luta que se seguiu à minha tentativa de o empurrar
lá para dentro. Sim. Pode ter sido esse o caso. Ele disse que eu estava a olhar
fixamente para ele.
– Estou a olhar porque tu és lindo – justifiquei.
– O teu comportamento é estranho. Porque é que tens de ser sempre tão
estranho? – perguntou ele.
– Não percebes, Phin? Não vês que eu te amo?
(Antes de me julgarem com demasiada severidade, lembrem-se, por favor,
de que eu tinha tomado LSD. Não estava num estado normal.)
– Para com isso – disse ele. Estava embaraçado.
– Por favor, Phin – implorei. – Por favor. Amo-te desde o primeiro minuto
em que te vi… – E depois tentei beijá-lo. Os meus lábios roçaram os seus e,
por um instante, pensei que ele ia corresponder ao meu beijo. Ainda me
lembro da comoção, da maciez dos seus lábios, do pequeno sopro de ar que
passou da sua boca para a minha.
Pousei uma mão na sua face e então ele afastou-se e olhou para mim com
uma repugnância tão ostensiva que eu me senti como se uma espada me
tivesse trespassado o coração.
Ele empurrou-me e eu quase caí para trás. Por isso, empurrei-o e ele
empurrou-me e eu empurrei-o e ele empurrou-me e foi assim que caí, sei
que não foi deliberado. E, por isso, foi muito pior eu ter permitido que o pai
dele pensasse que ele me tinha empurrado de propósito, que eu tivesse
deixado que ele ficasse trancado no seu quarto durante todos aqueles dias e
nunca ter dito a ninguém que fora um acidente. Ele também nunca disse a
ninguém de que se tratara de um acidente, porque nesse caso teria de dizer-
lhes que eu o beijei. E, bem, claramente não havia confissão pior para se
fazer do que essa.
56

Chelsea, 1993

Numa noite de verão, em meados de junho, ouvi a minha irmã começar a


mugir.
Não havia outra palavra para isso.
Parecia exatamente uma vaca.
Aquilo continuou durante algum tempo. Ela estava no quarto sobresselente,
que fora preparado para ela. Clemency e eu fomos afastados da porta do
quarto e mandaram-nos ir para os nossos próprios quartos, até que nos
dissessem que podíamos sair.
Os mugidos continuaram durante muitas horas. Até que, cerca de dez
minutos depois da meia-noite, se ouviu um bebé a chorar.
E sim. Eras tu.
Serenity Love Lamb. Filha de Lucy Amanda Lamb (catorze anos) e David
Sebastian Thomsen (quarenta e um).
Só te consegui ver mais tarde nesse dia e devo confessar que gostei bastante
do teu aspeto. Tinhas o rosto de uma foca bebé. E olhaste para mim sem
pestanejar, de um modo que me fez sentir que era visto. Há muito tempo
que não me sentia visto. Deixei-te segurar o meu dedo na tua mãozinha e foi
estranhamente agradável. Sempre pensei que odiava bebés, mas afinal talvez
não odiasse.
E então, alguns dias depois, foste afastada da minha irmã e levada para o
quarto de David e Birdie. A minha irmã foi levada lá para cima, de volta ao
quarto que partilhava com Clemency. À noite, eu ouvia-te chorar lá em
baixo e ouvia a minha irmã a chorar na porta ao lado. Durante o dia
traziam-na para baixo para bombear o leite materno com uma engenhoca
de aspeto medieval, o qual era depois despejado em garrafas de leite. A
seguir, era-lhe dito para voltar para o quarto dela.
E assim tudo mudou novamente: as barreiras entre nós e os outros
mudaram em alguns graus, e a minha irmã voltou a ser uma de nós. E foi
esse ato final de crueldade que nos voltou a unir.
57

Lucy avança na sua direção.


O seu irmão.
O seu irmão mais velho.
Percebe isso agora.
Olha-o profundamente nos olhos e diz:
– Onde estiveste, Henry? Onde?
– Oh, sabes como é, aqui e ali.
Uma onda de fúria começa a envolvê-la. Tem estado sozinha durante todos
estes anos. Todo este tempo sem ninguém. E ali está Henry, alto, jovem,
bonito e loquaz.
Dá-lhe murros no peito com os punhos cerrados.
– Tu deixaste-a! – grita. – Deixaste ficar a bebé! Deixaste-a para trás!
Ele segura-lhe as mãos e diz:
– Não! Tu é que partiste! Foste tu! Fui eu quem ficou. O único que ficou!
Perguntas-me onde estive. E tu, onde raio estiveste?
– Eu estive… – começa, mas abre as mãos e deixa cair os braços. – Estive no
inferno.
Ficam em silêncio por um momento. Então, Lucy dá uns passos atrás e
chama Marco.
– Marco, este é o Henry. É teu tio. Henry, este é o meu filho, Marco. E esta é
a minha filha, Stella.
Marco olha da mãe para Henry e de novo para a mãe.
– Não entendo. O que tem isto que ver com a bebé?
– Henry estava… – suspira, recomeçando logo a seguir. – Havia uma bebé.
Vivia aqui com todos nós, quando éramos crianças. Tivemos de a deixar
aqui porque… bem, porque tivemos. E, tal como eu, Henry está aqui para a
ver, agora que está crescida.
– Hum – Henry pigarreia.
Lucy volta-se para olhar para ele.
– Eu já a conheci – diz ele. – Conheci a Serenity. Ela esteve aqui. Na casa.
Lucy suspira suavemente.
– Oh, meu Deus. Ela está bem?
– Está – responde. – Saudável, cordial e bonita como um quadro.
– Mas onde está? – pergunta Lucy. – Onde está agora?
– Bem, de momento está com a nossa velha amiga Clemency.
Lucy respira fundo.
– Clemency! Oh, meu Deus. Onde está? Onde mora?
– Mora, creio eu, na Cornualha. Aqui, olha. – Henry liga o telemóvel e
mostra-lhe um pequeno ponto a piscar num mapa. – É aí que está Serenity –
prossegue, apontando para o ponto. – No número doze de Maisie Way,
Penreath, Cornualha. Coloquei um pequeno dispositivo de localização no
telemóvel dela. Para não a voltarmos a perder.
– Mas como é que sabes que é aí que está a Clemency?
– Ah! – exclama Henry, fechando a aplicação que mostra o local em que
Serenity se encontra e abrindo outra.
Pressiona uma seta na barra de áudio. E, de repente, ouvem-se vozes. São
duas mulheres a conversar calmamente.
– É ela a falar? – pergunta Lucy. – É a Serenity?
Ele ouve com mais atenção.
– Sim, acho que é – responde, aumentando o volume.
Surge então outra voz.
– E esta – continua – é Clemency. Ora ouve.
58

Clemency pediu a Miller que as deixasse a sós. Quer contar a história a


Libby em privado. Por isso, Miller leva o cão para dar um passeio
e Clemency dobra as suas pernas compridas por baixo dela no sofá e começa
lentamente.
– O plano era resgatar a bebé. Henry drogaria os adultos com a tal poção
para dormir que tinha feito, nós roubávamos os sapatos que estavam em
caixas no quarto de David e Birdie, roubávamos algumas roupas normais,
pegávamos no dinheiro e na bebé, e depois tirávamos a chave da bolsa do
meu pai e corríamos para a rua, para encontrar um polícia ou um adulto
que parecesse de confiança, a quem contaríamos que havia pessoas na casa
que nos mantinham prisioneiros há anos. Depois, tentaríamos todos, de
alguma forma, encontrar o caminho até aqui, para vir ter com a minha mãe.
Ainda não tínhamos pensado bem em como a iríamos contactar: uma
cabine telefónica, a chamada a pagar no destinatário e a esperança de que
tudo corresse bem – Clemency sorriu ironicamente. – Como podes ver, de
facto não pensámos muito bem nas coisas. Só queríamos sair dali.
«E então, um dia, o meu pai anunciou que ia dar uma festa pelo trigésimo
aniversário de Birdie. Henry chamou-nos ao seu quarto. Nesta fase, ele era
uma espécie de nosso líder não oficial. E ele disse que tinha chegado o
momento. Seria durante a festa de aniversário de Birdie. Explicou que se iria
oferecer para cozinhar toda a comida. Pediu-me que lhe fizesse uma
bolsinha para ele enfiar nas leggings, para aí guardar os frasquinhos com a
poção para dormir. E todos deveríamos mostrar-nos muito entusiasmados
com a festa. Lucy e eu até aprendemos uma peça especial no violino para ela.
– E Phin? – pergunta Libby. – Qual foi a participação dele em tudo isso?
Clemency suspira.
– Phin geralmente mantinha-se fechado em si mesmo. E Henry não o queria
envolvido. Aqueles dois… – volta a suspirar. – A situação entre ambos era
um pouco tóxica. Henry amava Phin. Mas Phin odiava Henry. Além disso,
Phin estava doente.
– O que se passava com ele?
– Nunca se descobriu. Questionei-me se ele não teria um cancro ou algo do
género. É por isso que eu e a nossa mãe sempre pensámos que ele poderia…
bem, ter morrido.
«Seja como for, nesse dia estávamos tensos. Nós os três. Mas continuámos a
fingir que estávamos excitados com a maldita festa. E, de certa forma, claro
que até estávamos. Era a nossa festa da liberdade. Na sua outra extremidade
havia uma vida normal. Ou, pelo menos, uma vida diferente.
«Tocámos a peça de violino para Birdie, distraindo os adultos enquanto
Henry preparava a comida. Era extremamente bizarro o contraste entre o
meu pai e Birdie, e todos os outros. Parecíamos todos tão doentes, sabes?
Mas tanto Birdie como o meu pai brilhavam de vitalidade e satisfação. O
meu pai sentou-se com o braço em volta dos ombros dela e com aquela
expressão de total domínio no rosto. – Clemency aperta a almofada que tem
no colo. O seu olhar é duro e firme. – Era como se… – prossegue – … como
se ele tivesse «permitido» uma festa para a sua mulher, pela profunda
generosidade do seu coração, como se estivesse a pensar: Olhem para a
felicidade que eu criei. Olhem como eu posso fazer o que eu quiser e ainda
assim as pessoas continuarem a amar-me.»
A sua voz começa a falhar e Libby toca-lhe suavemente no joelho.
– Está bem? – pergunta.
Clemency assente.
– Nunca, nunca contei nada disto a ninguém – diz. – Nem à minha mãe,
nem ao meu marido, nem à minha filha. É difícil, sabes? Falar do meu pai.
Sobre o tipo de homem que ele era. E sobre o que lhe aconteceu. Porque,
apesar de tudo, ele era meu pai. E eu amava-o.
Libby toca-lhe delicadamente no braço.
– Tem a certeza de que não se importa de continuar?
Clemency assente e endireita os ombros.
– Normalmente, colocávamos os pratos no centro da mesa e servíamo-nos,
mas, naquela noite, Henry disse que queria servir todos, como se fossem
clientes num restaurante. Dessa forma poderia certificar-se de que cada
prato acabava na frente da pessoa certa. O meu pai fez um brinde. Ergueu o
copo olhando em volta da mesa para cada pessoa e disse: «Eu sei que a vida
nem sempre foi muito fácil para todos nós, em especial para aqueles que
sofreram uma perda. Sei que por vezes parece difícil manter a fé, mas o facto
de estarmos todos aqui, depois de todos estes anos, e continuarmos a ser
uma família, e agora, na verdade, uma família maior» – e, ao dizê-lo,
apontou para ti e tocou-te no cimo da cabeça – «só mostra como estamos
bem e a sorte que todos nós temos.» E depois virou-se para Birdie e disse…
– Clemency faz uma pausa e respira fundo. – Ele disse: «Meu amor, minha
vida, mãe do meu filho, meu anjo, minha razão de viver, minha deusa. Feliz
aniversário, querida. Devo-te tudo» e então beijaram-se e foi um beijo longo
e molhado e fizeram barulhos e eu lembro-me de ter pensado… – Para por
um momento e lança a Libby um olhar magoado. – Pensei: só espero que
vocês dois morram.
«Foram precisos cerca de vinte minutos para que a poção começasse a fazer
efeito. Três ou quatro minutos depois, todos os adultos estavam
inconscientes. A Lucy tirou-te do colo da Birdie e de imediato entrámos em
ação. Henry disse-nos que tínhamos cerca de vinte minutos, meia hora no
máximo, até que a poção deixasse de ter efeito. Deitámos os adultos no chão
da cozinha e eu procurei a bolsa de couro na túnica do meu pai. No cimo
das escadas atrapalhei-me imenso com o monte de chaves, até encontrar a
que abria a porta do quarto de Birdie e do meu pai.
«E, meu Deus, foi mesmo chocante. Henry tinha-nos dito o que esperar, mas
ainda assim, ver tudo aquilo ali; o que restava das belas coisas de Henry e
Martina, ali escondidas, as antiguidades, os perfumes, os produtos de beleza,
as joias, as bebidas alcoólicas. Henry disse: “Vejam. Olhem para tudo isto.
Ao passo que nós não temos nada. Isto é perverso. Estamos a olhar para o
puro mal.”
«Tinham já passado cinco dos trinta minutos estimados. Encontrei fraldas,
roupinhas de bebé, biberões. De repente, apercebi-me de que Phin estava
parado atrás de mim. Disse-lhe: “Depressa! Vai buscar umas roupas.
Precisas de estar quente. Está frio lá fora.”
«Ele respondeu: “Não me parece que consiga. Acho que estou demasiado
fraco.”
«E então eu disse: “Mas não te podemos deixar aqui, Phin.”
«“Não posso! Não consigo, OK?”, disse ele.
«Já tinham passado quase dez minutos e eu não podia perder mais tempo a
tentar persuadi-lo. Vi Henry a encher um saco com dinheiro e perguntei:
“Não seria melhor deixarmos isso como prova? Para a polícia?”
«Mas ele disse: “Não, é meu. Não o vou deixar ficar”.
«Entretanto, tu começaste a chorar, aos berros, e Henry gritou: “Fá-la calar-
se! Por amor de Deus!”
«E nesse momento ouvimos o som de passos nas escadas, atrás de nós. Um
segundo depois, a porta abriu-se e Birdie apareceu. Parecia completamente
desvairada e descoordenada. Entrou aos tropeções no quarto, os braços
estendidos na direção de Lucy, a berrar: “Dá-me a minha bebé! Dá-ma!”
«E Birdie atirou-se – prossegue Clemency –, diretamente sobre ti. Henry
ficou desorientado. Gritava freneticamente com todos. Phin continuava ali
parado a olhar, como se estivesse prestes a desmaiar. E eu fiquei ali, siderada.
Porque pensei que se Birdie estava acordada, todos os outros deveriam estar
também. Que o meu pai deveria estar acordado. Que a qualquer instante
todos iriam aparecer e íamos ficar trancados nos nossos quartos para o resto
das nossas vidas. O meu coração batia descontrolado. Eu estava
absolutamente aterrada. E então, não sei bem, ainda hoje não tenho a
certeza do que realmente aconteceu, mas de repente Birdie estava no chão.
Estendida no chão, com sangue como que a escorrer-lhe do canto do olho.
Como lágrimas vermelhas. E também da zona do cabelo, aqui mesmo. –
Clemency aponta para um sítio logo acima da orelha. – Estava escuro e
pegajoso. Olhei para Henry e vi que ele estava a segurar uma presa.
Libby olha para ela interrogativamente.
– Parecia uma presa. De um elefante. Ou um chifre. Algo desse género.
Libby pensa no vídeo pop que Phin lhes tinha mostrado. Pensa nas cabeças
dos animais penduradas nas paredes e nas raposas empalhadas e em pose,
como se ainda estivessem vivas, em cima de enormes mesas de mogno.
– E a presa tinha sangue, uma faixa de sangue. E estava na mão de Henry.
Parámos todos de respirar. Durante alguns segundos. Até mesmo tu. Ficou
tudo completamente silencioso. Estávamos a tentar ouvir os outros.
Estávamos a tentar ouvir a respiração de Birdie. Tinha-se tornado um pouco
ruidosa. Agora tinha parado. Uma minúscula gota de sangue escorria-lhe da
zona do cabelo, descendo pela têmpora, pelo olho… – Clemency aponta os
sítios no seu próprio rosto com a ponta do dedo. Eu perguntei: «Está
morta?», mas Henry respondeu apenas: «Cala-te. Fica calada e deixa-me
pensar.»
«Fui tentar ouvir o coração dela e Henry empurrou-me. De tal maneira que
caí para trás. “Deixa-a, deixa-a!”
«Ordenou-me: “Fica aqui. Não saias”, e desceu as escadas. Olhei para Phin.
Estava transpirado. Percebi que estava prestes a desmaiar. Levei-o para a
cama. Então, Henry voltou. Estava pálido. Disse apenas: «Aconteceu alguma
coisa. Algo correu mal. Não compreendo. Os outros. Estão todos mortos.
Todos.»
A última palavra de Clemency sai com um soluço. Os seus olhos enchem-se
de lágrimas e ela leva as mãos à boca.
– Todos. O meu pai. A mãe e o pai de Henry. Mortos. E Henry não parava
de dizer «Não compreendo, não compreendo. Não lhes dei praticamente
nada. Era uma quantidade tão pequena, não chegava sequer para matar um
gato. Não compreendo.»
«E, de repente, tudo aquilo, toda aquela incrível missão de resgate, aquilo
que íamos fazer para nos libertarmos, aprisionara-nos completamente.
Como é que agora poderíamos ir a correr pela rua para tentar encontrar um
polícia amigável? Tínhamos matado quatro pessoas. Quatro pessoas.
Clemency cala-se por um momento, tentando recuperar o fôlego. Libby
repara que ela tem as mãos a tremer.
– E tínhamos uma bebé de quem cuidar, e tudo isso… tudo isso era
simplesmente… Meu Deus, não te importas se formos para o jardim das
traseiras? Preciso de um cigarro.
– Não. Claro que não – diz Libby.
O jardim das traseiras de Clemency está cheio de canteiros de ardósia
lascada e tem sofás de verga. É o final da manhã e o Sol vai subindo no céu,
mas ali o ambiente está fresco e com sombras. Clemency tira um maço de
cigarros de uma gaveta na mesa de centro.
– É o meu esconderijo secreto.
Na parte lateral do maço há uma fotografia de alguém com um cancro na
boca. Libby mal aguenta olhar para ela. Porquê, pergunta-se, por que razão
as pessoas fumam? Quando sabem que podem morrer por isso? A sua mãe
fuma. «Os seus meninos», é como lhes chama. Onde estão os meus meninos?
Observa Clemency a levar um fósforo à extremidade do cigarro, a inalar, e
depois a soprar. As suas mãos param imediatamente de tremer.
– Onde é que eu ia? – recomeça.
59

Chelsea, 1994

Sei que parece que tudo foi apenas um terrível desastre. Claro que sim.
Qualquer situação envolvendo quatro corpos mortos está claramente longe
de ser ideal.
Mas o que ninguém parece perceber é que sem mim, Cristo Todo-Poderoso,
poderíamos ainda lá estar todos, esqueletos de meia-idade, com a vida
inteira perdida. Ou podíamos estar mortos. Sim, não nos podemos esquecer
de que poderíamos estar todos mortos. E sim, de facto, as coisas não
correram exatamente de acordo com o planeado, mas a verdade é que
saímos de lá. Saímos de lá. E mais ninguém tinha um plano, pois não?
Ninguém mais se chegou à frente. É fácil criticar. Não é fácil assumir o
controlo.
Não só tinha quatro cadáveres, um bebé e duas adolescentes com quem
lidar, como ainda tinha Phin. Ele estava a comportar-se de uma forma
delirante e acabava por ser mais um problema e então, só para facilitar as
coisas, tranquei-o no seu quarto.
Sim, eu sei. Mas eu precisava de pensar como deve ser.
Conseguíamos ouvi-lo chorar no seu quarto lá em cima. As raparigas
queriam ir ter com ele, mas eu disse:
– Não, fiquem aqui. Temos de trabalhar juntos. Não podem ir a lado
nenhum.
Parecia-me que Birdie era a primeira prioridade. Era bizarro vê-la ali, tão
pequena, aniquilada, a pessoa que controlara as nossas vidas durante tanto
tempo. Tinha vestido o top que Clemency lhe fizera para o seu aniversário e
tinha posto um fio que David lhe dera. O seu cabelo comprido estava preso
num coque. Os olhos claros estavam fixos numa parede. Um dos seus globos
oculares tinha uma cor vermelha brilhante. Os seus pés ossudos estavam
descalços, deixando ver as unhas muito compridas e ligeiramente amarelas.
Tirei-lhe o fio que tinha ao pescoço e guardei-o no meu bolso.
Clemency chorava.
– É tão triste – dizia. – Tão triste! Ela é filha de alguém! E agora está morta!
– Não é nada triste – disse eu, asperamente. – Ela merecia morrer.
Clemency e eu levámo-la para o sótão e depois para o telhado. Era muito
leve. Do outro lado do telhado plano, onde eu uma vez segurara a mão de
Phin, havia uma espécie de vala. Estava cheia de folhas mortas e ia até junto
do algeroz que descia pela lateral do edifício. Envolvemo-la em toalhas e
lençóis e enfiámo-la lá dentro. Depois cobrimo-la com punhados de folhas
secas e com alguns pedaços de madeira velha de um andaime que
encontrámos lá em cima.
A seguir, já na cozinha, olhei desapaixonadamente para os três cadáveres.
Não podia permitir que a minha mente se fixasse na realidade da situação.
Eu tinha matado os meus próprios pais. A minha linda e estúpida mãe e o
meu pobre e debilitado pai. Tive de me distanciar do facto de que, por
minha causa, a minha mãe nunca mais me passaria a mão pelo cabelo nem
me chamaria «seu lindo menino», nunca mais me sentaria num clube
reservado a membros com o meu pai, a beber limonada em silêncio. Não
haveria família para a qual voltar no dia de Natal, nem avós para quaisquer
filhos que eu pudesse vir a ter, nem ninguém com cujo envelhecimento
tivesse de me preocupar, ninguém para se preocupar comigo quando eu
fosse velho. Eu era um órfão. Um órfão e um assassino involuntário.
Mas não entrei em pânico. Mantive as minhas emoções controladas e olhei
para as três figuras estendidas no chão da cozinha. Parecem membros de um
culto, pensei. Qualquer pessoa que ali entrasse e os visse com aquelas túnicas
pretas a condizer pensaria que se tinham matado.
Nessa altura, tornou-se óbvio o que precisava de fazer. Tinha de preparar o
cenário de um pacto de suicídio. Transformámos a parafernália da festa em
algo que parecesse um pouco menos uma «festa frívola de trigésimo
aniversário» e mais uma «última ceia bastante séria». Livrámo-nos dos
pratos a mais. Lavámos todos os tachos e frigideiras e deitámos fora toda a
comida velha. Dispusemos os corpos de modo a que ficassem todos na
mesma direção. Pressionei as pontas dos seus dedos sobre os frasquinhos
vazios que, de seguida, pousei sobre a mesa, um em cada lugar, como se os
três tivessem tomado o veneno ao mesmo tempo.
Não falámos.
Parecia um ritual estranhamente sagrado.
Beijei o rosto da minha mãe. Estava muito frio.
Beijei a testa do meu pai.
E então olhei para David. Ali estava ele, o homem que, tal como Phin
previra meses antes, tinha arrasado a minha vida. O homem que nos
destruíra, nos batera, nos negara comida e liberdade, nos tirara os
passaportes, engravidara a minha mãe e a minha irmã e tentara ficar com a
nossa casa. Eu tinha acabado com a sua patética existência e sentia-me
triunfante. Contudo, ao mesmo tempo, sentia um nojo terrível.
Olha para ti, apetecia-me dizer, olha só para ti, para o completo falhado em
que te tornaste.
Apetecia-me desfazer-lhe a cara a pontapé e transformá-la numa polpa
sangrenta, mas resisti ao impulso e voltei para o quarto de Birdie e David.

Esvaziámos todas as caixas. Numa delas encontrámos uma série daqueles


estúpidos sacos com cordões da Birdie, que ela tinha feito para levar para o
mercado de Camden, e enchemo-los com o máximo de coisas que aí
conseguimos enfiar. Encontrámos quase sete mil libras em dinheiro e
dividimo-lo em quatro partes. Também encontrámos as joias da minha mãe,
os botões de punho de ouro do meu pai, os reforços de colarinho em platina
e uma caixa cheia de uísque. Despejámos o uísque no lava-louça e pusemos
as garrafas vazias juntamente com a garrafa de champanhe na porta da
frente. Guardámos as joias nas nossas bolsas. A seguir, desfizemos as caixas e
deixámo-las numa pilha.
Depois de a casa estar livre de qualquer coisa que pudesse suscitar dúvidas
sobre a hipótese de se tratar de um culto, saímos silenciosamente pela porta
da frente e seguimos em direção ao rio. Era de madrugada. Deviam ser cerca
de três horas. Passaram por nós alguns carros, mas ninguém abrandou nem
pareceu reparar em nós. Ficámos à beira-rio, no mesmo sítio em que Phin e
eu tínhamos lutado anos antes e onde eu tinha acabado por ficar debaixo de
água, a ver aparições no meio da escuridão. Eu estava suficientemente calmo
para apreciar os meus primeiros momentos de liberdade em dois anos. Após
deitarmos ao rio sacos cheios de pedras com os frasquinhos vazios, as
cuecas de seda, os frascos de perfume e os vestidos de noite, deixámo-nos
ficar ali por um momento. Eu conseguia ouvir a respiração de todos, a
beleza e a paz desse instante a ofuscar brevemente o horror de tudo o que
acontecera. O ar que vinha da superfície do rio, escura como aço, estava
impregnado de diesel e de força vital. Cheirava a todas as coisas que
tínhamos perdido desde o momento em que David Thomsen entrara na
nossa casa, desde o dia em que ele e a sua família vieram morar no andar de
cima.
– Sintam o cheiro – disse, virando-me para as raparigas. – Sintam.
Conseguimos. Conseguimos.
Clemency chorava em silêncio. Aspirou e limpou a ponta do nariz com a
palma da mão. Mas eu percebi que Lucy sentia a mesma coisa, o poder que
resultava do que tínhamos feito.
Se não fosses tu, Serenity, ela teria sido mais fraca. Estaria de luto pela mãe,
a fungar, como Clemency. Mas, como te tinha, ela sabia que havia mais em
jogo do que apenas as nossas identidades como filhos amados de uma mãe e
de um pai. A forma como inclinava o queixo demonstrava coragem, quase
rebeldia. Senti orgulho nela.
– Vamos ficar bem – disse-lhe. – Sabes disso, não sabes?
Ela assentiu e ainda permanecemos ali parados durante um minuto ou dois,
até vermos as luzes de um rebocador que vinha na nossa direção. Corremos
de novo, velozes, de volta à rua e em direção a casa.
E foi então que aconteceu.
Clemency fugiu.
Não estava a usar sapatos. Apenas meias. Ela tinha pés grandes e os sapatos
da minha mãe, que Birdie conservara, eram demasiado pequenos, ao passo
que os de David eram demasiado grandes.
Por um instante, fiquei a vê-la correr. Permaneci indeciso e imóvel uns
segundos, e depois sussurrei alto para Lucy:
– Volta para casa, volta para casa.
E dei meia-volta e fui atrás dela.
Porém, rapidamente percebi que ao fazê-lo estava a chamar a atenção para
mim mesmo. Algumas almas ainda deambulavam pelas ruas. Era uma noite
de quinta-feira, os jovens regressavam a casa nos autocarros noturnos na
King’s Road. Que explicação poderia dar, vestido com uma túnica preta, a
perseguir uma jovem apavorada, também de túnica preta e sem sapatos nos
pés?
Parei na esquina da Beaufort Street. O meu coração, que há muito tempo
não experimentava o choque de correr tanto, batia sob as minhas costelas
como um pistão, até que pensei que ia vomitar. Quase colapsei sobre mim
mesmo, ouvindo a minha respiração entrar e sair-me do corpo como um
animal estrangulado. Virei-me e dirigi-me lentamente a casa.
Lucy estava à minha espera no corredor. Tu estavas no seu colo, a mamar.
– Onde está Clemency? Onde está? – perguntou.
– Fugiu – respondi, ainda sem fôlego. – Ela fugiu…
60

Libby olha para Clemency.


– Para onde? – pergunta. – Para onde foi?
– Fui ao hospital. Segui as indicações para chegar às urgências. Vi pessoas a
olharem para mim, mas sabes que àquela hora da noite, num sítio desses,
ninguém repara realmente em nós. Parecia tudo louco, todos bêbados ou
descontrolados. Todos assustados e preocupados. Fui até ao balcão e disse:
«Acho que o meu irmão está a morrer. Precisa de ajuda médica.»
«A enfermeira olhou para mim e perguntou: “Quantos anos tem o teu
irmão?”
«“Tem dezoito anos”, respondi.
«“E onde estão os teus pais?”, perguntou e eu, simplesmente, fechei-me. Não
consigo explicar. Tentei dizer algumas palavras, mas elas não me saíram da
boca. Na minha mente, tinha a imagem do meu pai, morto, deitado como
um homem santo, bizarro. E Birdie no telhado, embrulhada como uma
múmia. Pensei: como posso dizer às pessoas para irem àquela casa? O que
iriam dizer? O que aconteceria com a bebé? O que aconteceria com Henry?
Por isso, voltei-me e saí dali. Passei a noite no hospital, a ir de uma cadeira
para a outra. Cada vez que alguém me deitava um olhar estranho ou parecia
estar prestes a dizer-me algo, eu mudava para outro lado.
«Na manhã seguinte, lavei-me na casa de banho e depois fui direita a uma
sapataria. Tinha um casaco vestido e prendera o cabelo atrás. Fui tão
discreta como é possível uma criança ser a andar sem sapatos no início de
abril. Tinha o meu saco cheio de dinheiro. Comprei uns sapatos. Vagueei
pela cidade. Ninguém olhou para mim. Ninguém reparou em mim.
Caminhei em direção à estação de Paddington, seguindo as indicações que
via na rua. Apesar de estar a viver em Londres há seis anos, não fazia a
mínima ideia de como funcionava. Mas consegui chegar lá. E comprei um
bilhete de comboio para a Cornualha. O que foi uma loucura, porque nem
sequer tinha o número de telefone da minha mãe. Não tinha um endereço.
Nem sequer sabia o nome da cidade onde ela morava. Contudo, tinha
memórias, coisas de que ela falara quando nos tinha visitado, logo depois de
se ter mudado para cá. Da última vez que a vimos, tinha feito referência
a um restaurante na praia onde nos levaria quando a viéssemos visitar, para
comermos gelado azul e bebermos granizados. Disse que havia muitos
surfistas e que os observava da janela do seu apartamento. Falou de um
artista excêntrico que morava ao lado e cujo jardim estava cheio de
esculturas fálicas feitas com mosaicos coloridos. Fez referência ao fish and
chips na esquina da sua rua, e a ter perdido o comboio rápido para Londres e
ter de apanhar outro que parou em dezoito estações.
«E por isso, sim, encontrei o caminho até ela. Para Penreath, para a sua rua,
para o seu apartamento.
Os olhos de Clemency enchem-se de lágrimas com esta lembrança e os seus
dedos regressam ao maço de cigarros à sua frente. Tira um novo. Acende-o e
aspira.
– E ela veio à porta e viu-me à sua frente. – A voz foge-lhe a cada palavra e
custa-lhe a respirar. – Puxou-me para dentro e abraçou-me… oh, durante
tanto tempo. E eu senti nela o cheiro de bebida rançosa e sabia que ela não
era perfeita e sabia porque não nos tinha ido buscar, mas também sabia, eu
sabia, que tudo tinha terminado. E que estava segura.
«Fez-me sentar no seu sofá. O apartamento estava uma confusão, com coisas
espalhadas por toda a parte. Já não estava habituada a isso. Estava habituada
a viver com o vazio, sem nada.
«Ela tirou as coisas que estavam sobre o sofá, para que eu tivesse mais
espaço para me sentar, e perguntou: “E o Phin? Onde está?”
«Nesse momento, claro, fiquei calada. Porque a verdade é que eu tinha
fugido e deixara-o lá, fechado no seu quarto. E se eu explicasse por que
razão ele estava ali trancado, então teria de explicar tudo o resto. Olhei para
ela e vi-a ferida, tão ferida como eu. Devia contar-lhe tudo. Mas,
simplesmente, não conseguia. Por isso, disse-lhe que os adultos se tinham
matado num pacto suicida. Que Henry, Lucy e Phin ainda estavam em casa
contigo. Que a polícia estaria a chegar. Que tudo ficaria bem. Sei que parece
ridículo. Mas lembra-te: lembra-te de onde estive e aquilo por que passei. As
minhas lealdades eram tão distorcidas. Durante anos, nós, crianças, não
tivemos ninguém, a não ser uns aos outros. Lucy e eu éramos inseparáveis,
tão próximas como podem ser verdadeiras irmãs… bem, até que ela ficou
grávida.
– Lucy? – pergunta Libby. – A Lucy ficou grávida?
– Sim – responde Clemency. – Pensava… Tu não sabias?
– Não sabia o quê? – O coração de Libby começa a bater com mais força.
– Que Lucy era…
Mas Libby já percebeu o que ela está prestes a dizer. Leva a mão à garganta e
pergunta:
– Que Lucy era o quê?
– Bem, que era a tua mãe.
Libby olha fixamente para a foto do cancro na boca, no maço de cigarros de
Clemency, e absorve cada pormenor, terrível e repugnante, tentando
bloquear a onda de náusea que quer apoderar-se dela. A sua mãe não é a
bonita socialite com o cabelo da Priscilla Presley. A sua mãe era uma
adolescente.
– E quem era o meu pai? – pergunta, após um momento.
Clemency olha para ela como quem pede desculpa e responde:
– Era… o meu pai.
Libby assente. De certa forma já o esperava.
– Que idade tinha a Lucy?
Clemency baixou a cabeça.
– Tinha catorze anos. O meu pai estava na casa dos quarenta.
Libby pestaneja, lentamente.
– E foi…? Ele…?
– Não – diz Clemency. – Não. Segundo a Lucy, não. Segundo ela, foi…
– Consensual?
– Sim.
– Mas ela era tão nova. Legalmente, isso é violação.
– Sim. Mas o meu pai… era muito carismático. Ele tinha uma maneira de
fazer com que uma pessoa se sentisse especial. Ou com que se sentisse uma
completa falhada. E era sempre melhor ser uma das especiais. Sabes, eu
consigo ver como isso aconteceu. Consigo ver… Mas isso não quer dizer que
não tivesse odiado o que aconteceu. Odiei. Odiei-o a ele e odiei-a a ela.
Ficaram em silêncio por um momento. Libby tentou assimilar as revelações
dos últimos minutos. A sua mãe era uma adolescente. Uma miúda que agora
era uma mulher quase de meia-idade, perdida algures no mundo. O seu pai
era um porco, um abusador de crianças, um animal. Centrada nesse
pensamento, Libby sobressalta-se com o som de uma notificação chegada ao
seu telemóvel. É uma mensagem de WhatsApp de um número que não
reconhece.
– Desculpe – diz a Clemency, enquanto pega no telefone. – Posso só…?
Há uma fotografia em anexo. A legenda diz: Estamos aqui à tua espera!
Volta!
Libby reconhece o local da fotografia. É a casa em Cheyne Walk. E ali,
sentada no chão, a levantar as mãos para a câmara está uma mulher: esguia,
de cabelo escuro, muito bronzeada. Veste um colete sem mangas e tem
algumas tatuagens em volta dos braços vigorosos. À sua esquerda, está um
rapazinho lindo, também bronzeado e de cabelo escuro, e uma menina
deslumbrante, com caracóis dourados, pele morena e olhos muito verdes.
No chão, aos seus pés, está um pequeno cão castanho, branco e preto,
ofegante com o calor.
E no primeiro plano da fotografia, a segurar a câmara com o braço esticado
e a sorrir para ela com uns dentes muito brancos, está o homem que se
chama a si mesmo de Phin. Libby vira o ecrã para Clemency.
– É …?
– Oh, meu Deus – Clemency aproxima a ponta do dedo do ecrã e aponta
para a mulher. – É ela! É Lucy.
Libby usa as pontas dos dedos para ampliar o rosto da mulher no ecrã. Lucy
é parecida com Martina, a mulher que durante algum tempo pensou ser a
sua mãe. Tem a pele bronzeada e o cabelo preto brilhante, mas com um tom
castanho cor de ferrugem nas pontas. A sua testa tem umas ligeiras rugas de
expressão. Tal como os de Martina, os seus olhos são castanhos-escuros.
Como os do filho. A sua pele parece curtida pelo Sol. Tem um ar cansado. É
lindíssima.

Cinco horas depois, chegam a Cheyne Walk.


À porta, Libby procura as chaves da casa na bolsa da sua mala. Podia,
simplesmente, entrar. Afinal, é a sua casa. Mas logo de seguida engole em
seco ao perceber. Não é a sua casa. De facto, não é a sua casa. A casa era para
o bebé de Martina e Henry. Um bebé que não chegou a nascer.
Volta a guardar as chaves na bolsa e liga para o número junto à mensagem
do WhatsApp.
– Olá?
É uma mulher. A sua voz é suave e melódica.
– É… a Lucy?
– Sim – responde a mulher. – Quem fala?
– Sou… a Serenity.
61

Lucy pousa o telemóvel e olha para Henry.


– Ela está aqui.
Dirigem-se juntos à porta da frente.
O cão começa a ladrar ao perceber que estão pessoas lá fora e Henry pega-
lhe ao colo e manda-o calar.
O coração de Lucy bate descontroladamente, enquanto a sua mão se estende
para a maçaneta da porta. Ajeita o cabelo. Força-se a sorrir.
E ali está ela. A filha que ela teve de deixar ficar para trás. A filha por quem
matou para poder regressar.
A sua filha tem estatura e constituição mediana, nada como a enorme e
rechonchuda bebé que deixou ficar no berço do Harrods. Tem o cabelo
louro e suave, sem caracóis. Tem olhos azuis, mas já não o azul-pálido da
bebé que teve de abandonar. Veste uns calções de algodão, uma blusa de
manga curta, umas sapatilhas de lona cor-de-rosa. Aperta uma mala verde-
relva contra o estômago. Usa umas pequenas argolas douradas com uns
pingentes brilhantes, uma em cada lóbulo da orelha. Não usa qualquer
maquilhagem.
– Serenity…?
Ela acena com a cabeça.
– Ou Libby. Para o meu trabalho – ri levemente.
Lucy ri-se também.
– Libby. Claro. És Libby. Entra. Entra.
Resiste ao impulso de a abraçar. Condu-la para o corredor apenas com uma
mão pousada sobre o seu ombro.
Atrás de Serenity está um homem com barba, grande e bonito. Ela
apresenta-o como sendo Miller Roe.
– Um amigo meu – diz.
Lucy leva-os para a cozinha onde os filhos estão sentados à espera, nervosos.
– Meninos – começa –, esta é a Serenity. Ou, na verdade, Libby. E Libby é…
– A bebé? – interrompe Marco, com os olhos arregalados.
– Sim, Libby é a bebé.
– Qual bebé, mamã? – pergunta Stella.
– É a bebé que eu tive quando era muito nova. A bebé que tive de deixar em
Londres. A bebé de quem nunca falei a ninguém, nunca. É a vossa irmã mais
velha.
Marco e Stella estão sentados e de boca aberta. Libby faz-lhes uma espécie
de aceno. Por um momento, a situação é estranha. Mas então Marco diz:
– Eu sabia! Eu percebi logo! Desde o minuto em que vi a mensagem no teu
telemóvel! Sabia que seria o teu bebé. Eu sabia!
Ele levanta-se e corre pela cozinha e, por um instante, Lucy pensa que ele vai
fugir, que está zangado com ela por ter um bebé secreto, mas na verdade ele
corre em direção a Libby e lança os braços em volta da sua cintura,
apertando-a com força. Por cima da cabeça do filho, Lucy vê os olhos de
Libby arregalados de surpresa, mas também de prazer. Ela afaga-lhe a cabeça
e sorri para Lucy.
Então, é claro, como Marco o fez, Stella segue o exemplo e abraça as ancas de
Libby. Ali estão, pensa Lucy. Os seus três bebés. Juntos. Finalmente. Tapa a
boca com as mãos e as lágrimas correm-lhe pelo rosto.
62

Chelsea, 1994

Eu não sou completamente insensível, Serenity, juro.


Lembras-te de como te deixei segurar no meu dedo no dia em que nasceste,
como olhei para ti e senti algo florescer dentro de mim? Voltei a sentir o
mesmo quando nos encontrámos aqui cara a cara, há duas noites. Para mim,
ainda eras aquela bebé. Ainda tinhas aquela inocência, aquela total falta de
malícia.
Mas tinhas algo mais.
Tinhas os seus olhos azuis, a sua pele macia, as suas pestanas escuras e
compridas.
Não te pareces muito com Lucy.
Não te pareces nada com David Thomsen.
Pareces-te com o teu pai.
E é ridículo, ao olhar para trás, eu não o ter visto, quando estava mesmo à
frente do meu nariz. Quando, além dos teus olhos azuis brilhantes e dos teus
lábios carnudos, apareceram os teus caracóis louros. Como é que David não
viu? Como é que Birdie não viu? Como é que ninguém viu? Creio que foi
por ser impossível de acreditar. Impossível até de conceber.
A minha irmã dormia com David e com Phin ao mesmo tempo.

Só descobri no dia a seguir à festa de aniversário de Birdie.


Lucy e eu ainda não tínhamos decidido o que fazer. Phin não parava de se
debater no seu quarto, por isso amarrei-o a um radiador, para o manter
seguro. Para o seu próprio bem.
Lucy ficou horrorizada.
– O que estás a fazer? – gritou ela.
– Ele vai-se magoar – respondi eu, com sinceridade. – É só até decidirmos o
que fazer com ele.
Ela estava contigo ao colo. Vocês não se separaram nem por um instante
desde que ela te tirou dos braços de Birdie na noite anterior.
– Precisamos de lhe arranjar ajuda.
– Sim. É verdade. Mas também precisamos de nos lembrar de que matámos
pessoas e podemos ir para a prisão.
– Mas foi um acidente – disse ela. – Nenhum de nós tinha a intenção de
matar alguém. A polícia vai perceber.
– Não, não vai. Não existem provas de qualquer abuso. De nada do que
aconteceu aqui. Só temos a nossa versão dos acontecimentos.
Mas então detive-me. Olhei para Lucy e para ti e pensei: ora aqui está. Aqui
está a prova de que precisamos, se decidirmos pedir ajuda, a prova do abuso
está aqui. Mesmo aqui.
– Lucy, a bebé – exclamei. – A bebé é a prova de que foste violada. Tens
quinze anos. Tinhas catorze anos quando a bebé nasceu. Eles podem fazer
um teste de ADN. Provar que David é o pai. Podes dizer que ele te violou,
vezes sem conta, desde que eras apenas uma criança. E podes dizer que
Birdie o encorajou. E que depois te roubaram a bebé. De qualquer forma, é
tudo praticamente verdade. E depois eu posso dizer… Posso dizer que
encontrei os adultos assim. E posso deixar um bilhete falso, a explicar que se
sentiam muito envergonhados com o que tinham feito. Com a forma como
nos trataram.
De repente, fui dominado pela sensação de que conseguiríamos sair desta
situação. Poderíamos sair daqui e não ir para a prisão, Phin poderia
melhorar, Lucy ficaria com a sua bebé e todos seriam bons para nós.
E então Lucy disse:
– Henry, sabes que a Serenity não é do David, não sabes?
Meu Deus, que idiota ingénuo, continuei a não ver. Lembro-me de pensar:
«Oh, bem, então de quem poderia ser?»
E, nesse momento, todas as peças se encaixaram. Primeiro, ri-me. E depois
só queria vomitar.
– A sério? Tu? E Phin? A sério? – perguntei, por fim.
Lucy assentiu.
– Mas como? – continuei. – Quando? Não compreendo.
– No quarto dele – disse, deixando cair a cabeça. – Só aconteceu duas vezes.
Não sei, foi como uma necessidade de conforto. Fui ter com ele porque
estava preocupada. Ele parecia tão doente. E depois demos por nós…
– Oh, meu Deus. És uma puta!
Ela tentou acalmar-me, mas eu empurrei-a.
– Afasta-te de mim. És nojenta. És uma pessoa doente e repugnante. És uma
puta. Uma puta nojenta.
Sim, excedi-me. Raramente me senti tão enojado com outro ser humano
como me senti com Lucy nesse dia.
Não conseguia olhar para ela. Não conseguia pensar direito. Sempre que
tentava pensar em alguma coisa, decidir o que fazer a seguir, a minha mente
enchia-se de imagens de Lucy e Phin: ele por cima dela, ele a beijá-la, as
mãos dele – as mãos que eu segurara naquele dia no telhado – pelo corpo
dela. Nunca senti uma raiva como aquela. Nunca senti tanto ódio, mágoa e
dor.
Eu queria matar alguém. E dessa vez queria fazê-lo de propósito.
Fui ao quarto de Phin. Lucy tentou impedir-me. Empurrei-a para longe de
mim.
– É verdade? – perguntei-lhe aos gritos. – É verdade que fizeste sexo com
Lucy?
Ele olhou para mim, sem expressão.
– É? – gritei de novo. – Diz-me!
– Não te digo nada – replicou –, até que me soltes.
Ele parecia exausto. Soava como se estivesse prestes a desaparecer.
Senti de imediato a minha raiva começar a dissipar-se e sentei-me aos pés da
sua cama.
Deixei cair a cabeça nas mãos. Quando a levantei, ele tinha os olhos
fechados.
Houve um momento de silêncio.
– Estás a morrer, Phin? – perguntei.
– Porra. Não sei.
– Temos de sair daqui – disse eu. – Tens de te recompor. A sério.
– Não consigo.
– Tens de conseguir.
– Merda, deixa-me ficar. Eu quero morrer.
Tenho de confessar que me passou pela cabeça pegar numa almofada e
pressioná-la contra o seu rosto, aproximar o meu próprio rosto para poder
inspirar o seu último suspiro, sussurrar-lhe palavras suaves ao ouvido,
dominá-lo, absorver a sua força vital, reter a sua energia. Mas lembra-te,
além do bebé da minha mãe que não chegou a nascer – e eu pesquisei o
assunto extensivamente ao longo dos anos e seria de facto muito difícil,
numa gravidez saudável, abortar usando salsa –, nunca matei ninguém
deliberadamente. Sou uma pessoa sombria, Serenity, sei disso. Não sinto do
mesmo modo que as outras pessoas sentem. No entanto, sou capaz de
grande compaixão e de grande amor.
E jamais amei outra pessoa como amei Phin.
Desprendi-lhe o pulso preso ao radiador e deitei-me ao seu lado.
– Alguma vez gostaste de mim? Mesmo que apenas por um minuto? –
perguntei.
– Sempre gostei de ti – respondeu. – Porque haveria de não gostar?
Refleti sobre a pergunta.
– Por eu gostar de ti? Demasiado?
– Irritante – disse ele, com uma nota de ironia na voz fraca. – Muito
irritante.
– Sim – admiti. – Percebo. Desculpa. Desculpa por ter deixado o teu pai
pensar que me empurraste para o Tamisa. Desculpa por te ter tentado beijar.
Desculpa por ser chato.
A casa rangia e gemia à nossa volta. Tu estavas a dormir. Lucy tinha-te
deitado no berço antigo no quarto de vestir dos nossos pais. Por essa altura,
eu já estava acordado há trinta e seis horas, e o silêncio, o som da respiração
de Phin, embalaram-me num sono imediato e arrebatador.
Quando acordei, duas horas mais tarde, Lucy e Phin tinham partido e tu
continuavas a dormir no teu berço.
63

Libby olha para Lucy, esta mulher rodeada por duas crianças amorosas que
trouxe de França para Inglaterra. E até trouxe o seu cãozinho. Claramente
não é o tipo de mulher que deixa para trás as pessoas que ama.
– Porque me deixou? – pergunta.
Lucy começa de imediato a abanar a cabeça.
– Não – responde. – Não. Não, eu não te deixei. Nunca te deixaria. Mas Phin
estava muito doente e tu estavas bem e muito saudável. Por isso, deitei-te no
berço, esperei que adormecesses e regressei ao quarto de Phin. Henry estava
a dormir e eu consegui persuadir Phin a levantar-se finalmente. Ele era tão
pesado; eu era tão fraca. Consegui tirá-lo de casa e dirigimo-nos à casa do
médico do meu pai, o Doutor Broughton. Lembrava-me de me levarem lá
quando era pequena, mesmo ao virar da esquina. A sua porta da frente era
vermelha e brilhante. Eu lembrava-me. Devia ser perto da meia-noite. Ele
veio abrir a porta de roupão. Disse-lhe quem era. E depois disse – ela ri-se
ironicamente com a lembrança – «Eu tenho dinheiro! Posso pagar-lhe!»
«A princípio, ele pareceu zangado. Mas então olhou para Phin, olhou-o
atentamente e disse: “Oh, meu Deus, oh, meu Deus.” Subiu as escadas
rapidamente, resmungando em voz baixa, e pouco depois voltou
completamente vestido, com camisa e calças.
«Levou-nos para o seu consultório. Todas as luzes estavam apagadas. Ele
acendeu-as, duas fileiras de luzes fluorescentes, que se iluminaram de uma
só vez. Tive de proteger os olhos. Deitou Phin numa marquesa, verificou
todos os seus sinais vitais e perguntou-me o que raio se passava. “Onde estão
os teus pais?”, inquiriu de seguida. Eu não fazia ideia do que dizer.
«“Foram embora”, acabei por responder. E ele olhou-me de soslaio. Como se
quisesse dizer “voltamos a esse assunto mais tarde”. Depois telefonou a
alguém. Ouvi-o a explicar a situação com muito jargão médico. Meia hora
mais tarde, chegou um homem novo. Era o enfermeiro do Doutor
Broughton. Entre ambos fizeram cerca de uma dúzia de testes. O enfermeiro
partiu a meio da noite, com um saco cheio de amostras para levar a um
laboratório. Fiquei dois dias sem dormir. Eu só via estrelas. O Doutor
Broughton preparou-me uma chávena de chocolate quente. Foi, por mais
louco que pareça, o melhor chocolate quente da minha vida. Sentei-me no
sofá do seu consultório e adormeci.
«Quando acordei eram cerca de cinco horas da manhã e o enfermeiro tinha
regressado do laboratório. Phin estava a receber soro. Tinha os olhos
abertos. O Doutor Broughton disse-me que ele sofria de desnutrição grave.
Explicou-me que, com bastantes líquidos e algum tempo de recuperação,
acabaria por ficar bem.
«“O pai dele morreu. Não sei onde vive a mãe. Nós temos uma bebé. Não sei
o que fazer”, limitei-me a dizer, abanando a cabeça.
«Quando lhe disse que tínhamos uma bebé, mostrou-se chocado. “Meu
Deus, quantos anos tens?”
«E eu respondi: “Tenho quinze anos.” Ele lançou-me um olhar estranho e
perguntou: “Onde está essa bebé?”
«“Está em casa. Com o meu irmão”, respondi.
«“E os teus pais? Onde estão?”
«“Morreram.”
«“Não fazia ideia”, disse ele, suspirando. “Lamento muito.” Depois
continuou: “Ouve. Eu não sei o que se passa aqui e não me quero envolver
em nada disto. Mas trouxeste este rapaz à minha porta e eu tenho o dever de
tratar dele. Portanto, vamos deixá-lo ficar aqui durante algum tempo. Tenho
um quarto onde ele se poderá instalar.”
«E então eu disse que queria ir embora, voltar para junto de ti, mas ele
ripostou: “Pareces anémica. Quero fazer-te alguns exames antes de te deixar
regressar. E dar-te alguma coisa para comer.”
«Por isso ele alimentou-me, dando-me uma tigela de cereais e uma banana.
Tirou-me um pouco de sangue, viu a minha tensão arterial e os meus dentes
e ouvidos, como um cavalo no mercado.
«Disse-me que eu estava desidratada e que precisava de ficar algum tempo
sob observação e a receber fluidos.
Nesse momento, Lucy levanta os olhos para Libby e diz:
– Lamento. Lamento muito. Mas quando ele me disse que eu estava bem e
que podia ir embora, já tudo tinha terminado. A polícia tinha ido lá, os
serviços sociais também e tu já não estavas em casa.
Os seus olhos encheram-se de lágrimas.
– Era demasiado tarde.
64

Chelsea, 1994

Fui eu quem cuidou de ti, Serenity. Fiquei para trás e dei-te bananas
esmagadas, leite de soja, papas de aveia e arroz. Troquei-te as fraldas. Cantei
para adormeceres. Passámos muitas horas juntos, nós dois. Tornou-se óbvio
que Lucy e Phin não iriam regressar e os corpos na cozinha começariam a
decompor-se se deixasse passar muito mais tempo. Suspeitei que, por essa
altura, já alguém poderia ter ido às autoridades. Sabia que estava na hora de
partir. Acrescentei mais algumas linhas ao bilhete de suicídio. «A nossa bebé
chama-se Serenity Lamb. Tem dez meses de idade. Por favor, assegurem-se
de que será entregue a boas pessoas.» Coloquei a caneta com que escrevera o
bilhete na mão da minha mãe, a seguir retirei-a e deixei-a em cima da mesa,
ao lado do bilhete. Dei-te de comer e vesti-te um babygro lavado.
Quando estava para sair, senti a pata de coelho de Justin no bolso do meu
casaco. Colocara-a aí para me dar sorte – não que eu acredite nessas coisas, e
é bastante óbvio que não me trouxe sorte nenhuma desde que a tirei do
quarto de Justin, mas eu queria o melhor para ti, Serenity. Eras a única
pessoa verdadeiramente pura naquela casa, a única coisa boa no meio de
tudo aquilo. Por isso, peguei na pata de coelho e deixei-a contigo.
Depois, beijei-te e disse: «Adeus, bebé querida».
Saí pelas traseiras da casa, com um dos antigos fatos Savile Row do meu pai
e um par dos seus sapatos da Jermyn Street. Pus o meu bolo tie em volta do
colarinho de uma das suas camisas velhas e penteei o cabelo deixando uma
franja de um dos lados. O meu saco estava cheio de dinheiro e joias. Saí para
o sol da manhã, sentindo-o dourado sobre a minha pele cansada. Encontrei
uma cabine telefónica e liguei para o 112. Disfarçando a voz, disse à polícia
que estava preocupado com os meus vizinhos. Que não os via há algum
tempo. Que ouvia um bebé a chorar.
Caminhei até à King’s Road. Todas as lojas estavam ainda fechadas.
Continuei a andar até chegar à Victoria Station e aí sentei-me na esplanada
de um café mal-arranjado, com o meu fato Savile Row, e pedi uma chávena
de café. Nunca tinha bebido café antes. Queria mesmo uma chávena. O café
chegou, mas quando o provei achei-o nojento. Pus-lhe dois pacotinhos de
açúcar e forcei-me a bebê-lo. Encontrei um hotel discreto e paguei três
noites. Ninguém me perguntou a idade. Quando assinei o registo usei o
nome Phineas Thomson. Thomson com um O. Não Thomsen com um E.
Queria ser quase o Phin. Mas não completamente.
Liguei a televisão no meu quarto de hotel. No final do noticiário vi uma
breve notícia. Três corpos. Um pacto de suicídio. Um culto. Encontrado um
bebé saudável e bem tratado. Crianças consideradas desaparecidas. A polícia
investigava. As fotografias que tinham eram as do nosso último ano na
escola primária. Eu tinha apenas dez anos e o cabelo curto. Lucy tinha oito e
um corte de cabelo à pajem. Estávamos irreconhecíveis. Não foi feita
qualquer menção a Phin ou a Clemency.
Suspirei de alívio.
E o que aconteceu depois? O que aconteceu entre o eu de dezasseis anos,
deitado de cuecas por cima de uma colcha de nylon, num quarto de hotel
barato, a assistir ao noticiário, e o atual eu de meia-idade?
Queres saber? Importas-te?
Bem, arranjei um emprego. A trabalhar numa loja de reparações de
materiais elétricos, em Pimlico. Era propriedade de uma família meio
maluca do Bangladesh, que não se podia importar menos com a minha
história, desde que eu aparecesse para trabalhar a horas.
Mudei-me para um estúdio. Comprei livros sobre programação e um
computador, e à noite estudava sozinho em casa.
Nessa altura já havia telemóveis e Internet com alguma qualidade, e eu
deixei a oficina de reparações e arranjei um emprego numa Carphone
Warehouse, na Oxford Street.
Mudei-me para um apartamento de um quarto em Marylebone, ainda antes
de esta zona se tornar inacessível. Comecei a pintar o cabelo de louro. Fiz
exercício. Ganhei corpulência. À noite ia a discotecas e fazia sexo com
estranhos. Apaixonei-me, mas ele bateu-me. Voltei a apaixonar-me, mas ele
deixou-me. Branqueei os dentes. Arranjei peixes tropicais. Eles morreram.
Consegui arranjar emprego numa nova empresa de Internet. A princípio,
éramos cinco. Três anos depois éramos cinquenta, eu ganhava seis dígitos e
tinha o meu próprio gabinete.
Comprei um apartamento com três quartos em Marylebone. Apaixonei-me.
Ele disse-me que eu era feio e que nunca mais ninguém me amaria e deixou-
me. Fiz uma cirurgia plástica ao nariz. Fiz extensões de pestanas. Fiz um
ligeiro preenchimento de lábios.
Depois, em 2008, procurei o advogado cujo nome constava no papel
timbrado do testamento original dos meus pais. Durante muito tempo
tentara colocar Cheyne Walk e o que lá aconteceu no fundo da minha
mente, procurando forjar uma nova vida com uma nova (ainda que
ligeiramente emprestada) identidade. Não queria ter nada que ver com o
patético Henry Lamb ou com a sua história. Para mim, ele estava morto.
Contudo, à medida que fui ficando mais velho, e mais estável, comecei a
pensar em ti, cada vez mais. Eu queria saber onde estavas, quem eras e se
eras feliz ou não.
Soube pelas notícias que tinham assumido que eras filha de Martina e Henry
Lamb. O meu «bilhete de suicídio» foi levado a sério e não fizeram qualquer
teste de ADN para refutar tal suposição. E recordando-me dos termos do
testamento dos meus pais, ocorreu-me que talvez um dia voltasses a entrar
na minha vida. Mas não fazia ideia se o trust que fora estabelecido ainda
estava depositado no escritório dos mesmos advogados. E, se estava, se
David teria feito alguma coisa para alterar os seus termos durante o tempo
em que teve a minha mãe completamente sob o seu controlo.
Eu estava agora na casa dos trinta. Era alto, louro, atraente e bronzeado.
Apresentei-me como sendo Phineas Thomson. Disse: «Procuro informações
sobre uma família que conheci. Creio que os seus advogados eram daqui. Os
Lambs. De Cheyne Walk.»
Uma jovem folheou alguns papéis, clicou em alguns botões no teclado do
computador, disse-me que de facto administravam um trust dessa família,
mas que não podia dizer-me mais nada.
Havia também um rapaz bonito. Percebi que lhe chamara a atenção quando
me sentei na receção. Esperei no exterior do escritório até à hora do almoço
e fui ter com ele quando saiu. Chamava-se Josh. Claro. Hoje em dia todos se
chamam Josh.
Levei-o ao meu apartamento, cozinhei para ele, enrolei-me com ele e, claro
está, como estava apenas a usá-lo, ele apaixonou-se completamente por
mim. Precisei de menos de um mês, a fingir que também o amava, para que
ele encontrasse os documentos, os fotocopiasse e mos entregasse. E lá estava,
preto no branco, tal como os meus pais tinham estabelecido quando eu era
ainda um bebé e Lucy nem sequer existia. A casa com o número dezasseis de
Cheyne Walk e todo o seu conteúdo deveriam ser mantidos em trust para os
descendentes de Martina e Henry Lamb até o mais velho completar vinte e
cinco anos de idade. Afinal, David não conseguiu pôr as mãos nele, nem, ao
que parecia, Lucy tinha reaparecido para reclamar a herança. O trust
continuava ali, tal como fora constituído, à espera de que tu fizesses vinte e
cinco anos. Alguém mais cínico do que tu poderá pensar que te procurei
apenas para pôr as mãos na minha própria herança. Na verdade, eu nem
sequer tinha provas de que era Henry Lamb e portanto não poderia
reivindicá-la, mas contigo na minha vida teria a possibilidade de conseguir o
que era meu por direito. Mas, sabes, não teve nada que ver com dinheiro. Eu
tenho muito dinheiro. Tinha que ver com uma necessidade de encerrar este
capítulo. E tinha que ver contigo, Serenity, e com a ligação que partilhámos.
Por isso, em junho deste ano, arrendei aquele Airbnb do outro lado do rio.
Comprei uns binóculos e fiquei de vigia no terraço.
Certa manhã, subi pelas traseiras da casa de Cheyne Walk e passei um dia
inteiro no telhado, a remover o esqueleto de Birdie do seu invólucro
mumificado. A separar os seus ossinhos minúsculos. A depositá-los num
saco de plástico preto. A coberto da escuridão da noite, deitei o saco para o
Tamisa. Era surpreendentemente pequeno. Passei a noite no meu velho
colchão e regressei ao Airbnb na manhã seguinte. E então, quatro dias mais
tarde, ali estavas tu. Tu e o teu advogado. A tirar o tapume. A abrir a porta.
A voltar a fechá-la atrás de ti.
Suspirei de alívio
Finalmente.
A bebé tinha voltado.
65

– O que aconteceu a Phin? – pergunta Libby, olhando para Lucy. – Depois


de o ter deixado com o Doutor Broughton? Ele melhorou?
– Sim – respondeu Lucy. – Melhorou.
– Ainda é vivo?
– Tanto quanto sei, sim.
Libby tapa a boca com as mãos.
– Oh, meu Deus – exclama. – Onde está?
– Não sei. Não o vejo praticamente desde os meus dezoito anos. Estivemos
juntos em França durante alguns anos, mas depois perdemos o contacto.
– Como é que foram os dois parar a França? – pergunta Libby.
– Foi o Doutor Broughton. Ou melhor, ele arranjou alguém conhecido para
nos levar. O Doutor Broughton parecia conhecer toda a gente. Ele era uma
dessas pessoas: um «facilitador»; creio que poderíamos chamar-lhe assim.
Tinha sempre um número de telefone para onde poderia ligar, um favor que
poderia cobrar, um homem que conhecia outro homem. Ele era o médico
particular de alguns criminosos de alto calibre. Acho que a meio da noite
anterior até tinha sido acordado para suturar no seu consultório uns
ferimentos provocados por tiros.
«E quando viu que aparecíamos nas notícias, só queria que nos puséssemos
dali para fora. Uma semana depois de eu ter ido bater à porta dele, o Doutor
Broughton disse que já estávamos suficientemente bem para podermos
partir. Um homem chamado Stuart espremeu-nos nas traseiras de uma
carrinha Ford Transit e conduziu-nos através do Eurotúnel até Bordéus.
Levou-nos para uma quinta e entregou-nos a uma mulher chamada Josette.
Mais um contacto do Doutor Broughton. Ela deixou-nos lá ficar durante
meses, em troca de trabalharmos na quinta. Não perguntou quem éramos
ou por que motivo estávamos ali.
«Phin e eu, nós não… tu percebes. O que aconteceu antes entre nós foi só
por causa da situação em que nos encontrávamos. Quando ficámos livres de
tudo aquilo, voltámos a ser apenas amigos. Quase como irmãos. Mas
estávamos sempre a falar de ti, a imaginar como estarias, quem teria ficado a
cuidar de ti, como eras bonita, como eras boazinha, como irias ser
extraordinária quando crescesses, como éramos inteligentes por te termos
tido.
– E alguma vez falaram em voltar por minha causa? – pergunta Libby,
pensativa.
– Sim – responde Lucy. – Sim. Falámos. Ou, pelo menos, eu falei. Phin era
mais circunspecto, mais preocupado com o seu futuro do que com o
passado. Não falávamos sobre aquele assunto. Não falávamos dos nossos
pais, nem do que tinha acontecido. Eu tentei, mas Phin não quis. Era como
se tivesse apagado tudo da sua memória. Como se se tivesse desligado.
Como se nada daquilo tivesse acontecido. E ele foi ficando muito bem ao
longo daquele primeiro ano. Estava bronzeado e em boa forma. Ambos
estávamos. E Josette tinha um velho violino que não tocava e deixava-me
usá-lo. No inverno, eu tocava para ela, e depois, no verão, quando a quinta
se enchia de estudantes e viajantes, tocava também para eles. Ela deixava-me
levar o violino até à cidade e eu tocava nas noites de sexta-feira e de sábado e
assim comecei a ganhar algum dinheiro. Comecei a poupá-lo, com a ideia de
que poderia vir a usá-lo, para que Phin e eu pudéssemos voltar a Londres,
para te encontrar.
«Até que uma manhã, cerca de dois anos mais tarde, quando acordei, Phin
tinha partido. Deixou-me um bilhete que dizia: “Fui para Nice.” – Lucy
suspira. – Fiquei em Bordéus até ao fim desse verão, poupando para ter
dinheiro suficiente para apanhar um autocarro para Nice. Depois, passei
semanas a dormir na praia à noite e a tentar encontrar Phin durante o dia.
Acabei por desistir. Tinha o violino de Josette. Tocava todas as noites. Fiz
dinheiro suficiente para arranjar um quarto numa pensão. Fiz dezanove
anos, vinte, vinte e um. E então conheci um homem. Um homem muito
rico. Apaixonei-me por ele. Casámos. Tive um bebé. Deixei o homem muito
rico e conheci um homem muito pobre. Tive outro bebé. O homem pobre
deixou-me e… – cala-se e Libby estuda a sua expressão. Há nela algo de
indecifrável, quase impensável. Mas a expressão passa e ela prossegue.
«E então chegou o teu aniversário e eu voltei.
– Mas porque não voltou antes? – pergunta Libby. – Quando fez vinte e
cinco anos? Não sabia do trust?
– Sim, sabia – responde. – Mas não tinha provas de que era Lucy Lamb. Não
tinha certidão de nascimento. O meu passaporte era falso. Tinha um
casamento absolutamente terrível com o pai de Marco. Foi tudo… – Lucy
suspira. – E então pensei que se Henry não tinha reivindicado a casa, e eu
também não, então ela passaria automaticamente para a bebé, para ti,
porque todos pensavam que eras filha dos meus pais, percebes? Por isso
decidi que era o que iria fazer. Esperar até que tivesses vinte e cinco anos,
para te encontrar. Quando tive o meu primeiro smartphone, há alguns anos,
a primeira coisa que fiz foi colocar um lembrete no calendário, para garantir
que não me iria esquecer. E desde então tenho estado a aguardar, a cada
minuto de cada dia. Estive à espera para voltar.
– E Phin? – pergunta Libby, num tom desesperado. – O que lhe aconteceu?
Lucy suspira.
– Só posso presumir que foi para algum lugar onde achou que não iria ser
encontrado. Que era esse o seu desejo.
Libby suspira de novo. Ali está. Finalmente. A história completa. Com
exceção de uma peça.
O seu pai.
IV
66

Libby está sentada, com o polegar em cima do ecrã do telemóvel. Tem aberta
a aplicação do banco e tem estado a atualizar o seu saldo a cada quinze
minutos, desde as nove horas dessa manhã.
É o dia em que termina todo o processo da casa de Cheyne Walk.
Venderam-na há um mês, finalmente. Após meses sem visitas, quando
baixaram o preço receberam de imediato uma enxurrada de ofertas, além de
duas tentativas frustradas de contrato, até que, por fim, fecharam negócio
com um comprador da África do Sul, ficando tudo tratado e assinado em
duas semanas.
Sete milhões e quatrocentas e cinquenta mil libras.
Mas o seu saldo permanece nas trezentos e dezoito libras. O que resta do seu
último ordenado.
Suspira e volta ao ecrã do computador. O seu último projeto de cozinha.
Pequena e bonita, pintada no estilo shaker, com puxadores de cobre e uma
bancada de mármore. A primeira casa dos recém-casados. Vai ficar linda.
Gostaria de ainda estar por perto para vê-la. Mas nunca a verá. Agora não.
Hoje é o seu último dia na Northbone Kitchens.
É também o seu vigésimo sexto aniversário. O seu verdadeiro vigésimo sexto
aniversário. Afinal, não é a dezanove de junho, mas sim a catorze de junho.
Portanto, é cinco dias mais velha do que pensava. Isso é bom. Cinco dias é
um pequeno preço a pagar por sete milhões de libras, uma mãe, um tio e
dois meios-irmãos. E agora que não está a seguir um falso caminho na sua
mente para algum aniversário infundado, quem se importa se ela lá chegar
cinco dias antes do previsto?
Volta a pressionar o botão para atualizar.
Trezentas e nove libras. Um pagamento de PayPal que fez há uma semana
saiu da sua conta.
Está um lindo dia. Olha para Dido.
– Vamos almoçar? Sou eu que convido.
Dido olha para ela por cima dos seus óculos de leitura e sorri.
– Claro que sim!
– Dependendo se o pagamento vem até lá ou não, serão sanduíches e Coca-
Cola, ou lagosta e champanhe.
– A lagosta é sobrevalorizada – declara Dido, antes de ajeitar os óculos e
voltar a olhar para o ecrã do computador.
Às onze horas, o telefone de Libby vibra. É uma mensagem de Lucy. Vemo-
nos logo! Reservámos para as vinte horas!
Lucy mora agora com Henry no seu elegante apartamento em Marylebone.
Ao que parece, não se estão a dar lá muito bem. Henry, que vive sozinho há
vinte e cinco anos, não tem paciência para partilhar o seu espaço com
crianças e, além disso, os seus gatos odeiam o cão. Lucy tem andado à
procura de casa. Em St. Albans. A própria Libby está de olho num belo chalé
georgiano num terreno com mais de dois mil metros quadrados, na periferia
da cidade.
Pressiona novamente a tecla para atualizar.
Trezentas e nove libras.
Verifica o seu e-mail, para o caso de ter havido algum tipo de notificação ou
de algo ter corrido mal, mas não há nada.
O dinheiro será dividido em três partes, depois de deduzirem os impostos.
Ela dispôs-se a renunciar a qualquer valor da herança. A casa não é sua. Ela
não é irmã deles. Mas eles insistiram. Ela disse: «Eu não preciso de um terço.
Alguns milhares será mais do que suficiente.» Mas ainda assim eles
insistiram.
– És neta deles – argumentara Lucy. – Tens tanto direito como nós.
Às treze horas, sai com Dido do showroom.
– Receio que tenham de ser sanduíches.
– Ótimo – diz ela. – É o que me apetece comer.
Dirigem-se ao café do parque e sentam-se na esplanada, ao sol.
– Nem acredito que vais embora – diz Dido. – Vai ficar tudo tão… bem, eu
ia dizer sossegado, embora tu também nunca tenhas sido propriamente
barulhenta, mas sem ti vai ficar tão… desprovido de Libby. E sem o teu
lindo cabelo. E as tuas pilhas organizadas.
– As minhas pilhas organizadas?
– Sim, as tuas… – Faz com as mãos a mímica de uma pilha quadrada de
papel. – Tu sabes. Com todos os cantos alinhados. – Sorri. – Vou ter
saudades tuas. Essa é que é a verdade.
Libby olha para ela e pergunta:
– Tu nunca pensaste em partir? Depois de teres ficado com o chalé? E com
todas as outras coisas? Com certeza não precisas de trabalhar, pois não?
Dido encolhe os ombros.
– Acho que não. E há momentos em que me apetecia desistir de tudo e
passar o dia todo nos estábulos com Spangles, antes que ele morra. Mas, ao
fim e ao cabo, eu não tenho mais nada. Mas tu… tu agora tens tudo. Tudo o
que as cozinhas não te podem oferecer.
Libby sorri. É verdade.
Não é apenas o dinheiro. De maneira nenhuma.
São as pessoas a quem agora está ligada, a família que a envolveu tão
completamente. E é a pessoa que descobriu que estava por baixo de todas
aquelas pilhas bem arrumadas e do planeamento cuidadoso. Ela nunca foi
realmente essa pessoa. Apenas se transformou nela para contrabalançar as
inconsistências da sua mãe. Para se integrar na escola. Para se integrar num
grupo de amigos cujos valores, na verdade, nunca partilhou. Ela é bem mais
do que amizades distantes e requisitos estupidamente proibitivos do Tinder.
Ela é o produto de pessoas melhores do que os seus pais biológicos de
fantasia, o designer gráfico e a relações públicas de moda com o carro
desportivo e cães pequeninos. Que falta de imaginação a sua.
Distraidamente, volta a pressionar atualizar no seu telemóvel.
Olha novamente. É um número estúpido o que ali está escrito. Um número
que não faz o mínimo sentido. Tem demasiados zeros, é demasiado. Volta o
ecrã do telemóvel para Dido.
– Oh. Meu. Deus!
Dido tapa o rosto com as mãos e arqueja. Vira-se na direção da frente do
café.
– Por favor – chama –, duas garrafas do vosso melhor Dom Pérignon. E treze
lagostas. E depressa.
Claro que não está ali nenhum empregado e as pessoas da mesa ao lado
lançam-lhes um olhar estranho.
– A minha amiga – continua Dido – acabou de ganhar a lotaria.
– Oh – exclama a mulher. – Que sorte!
– Sabes – diz Dido, voltando-se para Libby –, depois disto, não precisas de
regressar ao trabalho. É o teu aniversário. E acabas de receber zilhões de
libras esterlinas. Se quiseres, podes tirar o resto do dia de folga.
Libby sorri, amarrota o guardanapo de papel e deixa-o cair sobre a bandeja
de plástico.
– Não – diz ela. – Nem pensar. Não sou uma desistente. Além disso, tenho a
certeza de que deixei alguns papéis um pouco tortos.
Dido sorri-lhe.
– Então, vamos. Mais três horas e meia de normalidade. Vamos lá terminar
o trabalho, sim?
67

Lucy fica com o apartamento só para si durante mais uma hora. Aproveita
para tomar banho, pintar as unhas, secar o cabelo com um secador,
deixando-o bem penteado sobre os ombros, para se hidratar e maquilhar.
Ainda não toma nada disso como garantido. Já passou um ano desde que
Henry a encontrou na casa em Cheyne Walk, desde que levou Serenity até
eles, desde que se voltaram a reunir. Durante um ano, Lucy viveu com
Henry no seu apartamento imaculado em Marylebone, onde dormiu numa
cama de casal por baixo de lençóis de algodão macios, sem ter mais nada
para fazer a não ser passear o cão e preparar refeições deliciosas. Ela e
Clemency encontram-se uma vez por mês, bebem champanhe e falam dos
filhos, de música, das idiossincrasias de Henry e de qualquer coisa, exceto
do que aconteceu com ambas quando eram jovens. Nunca serão tão
próximas como tinham sido antes, mas continuam a ser as melhores amigas.
Marco tem agora treze anos e está matriculado numa escola particular
moderna em Regent’s Park, paga por Henry, e onde, aparentemente, «todos
fumam vapes e tomam quetamina». Perdeu completamente o sotaque
francês e, como costuma dizer, «agora identifico-me como sendo um
verdadeiro londrino».
Stella tem seis anos e está no primeiro ano de uma boa escola primária em
Marylebone onde tem duas melhores amigas, ambas chamadas Freya.
Ontem Lucy apanhou o metro para Chelsea e foi até à casa. O tapume foi
retirado e a placa de venda do lado de fora foi substituída por outra a dizer
vendida. Em breve a casa voltará a ganhar vida, com o som de berbequins e
de martelos, à medida que as obras vão destruindo e reconstruindo tudo,
para satisfazer os gostos e necessidades de outra família. Em breve, alguém
chamará àquela casa o seu lar e nunca saberá, nunca suspeitará por um
minuto sequer, o que realmente aconteceu dentro daquelas paredes tantos
anos antes, como quatro crianças tinham estado presas, subjugadas, tendo
depois sido lançadas ao mundo, feridas, incompletas, perdidas e
destroçadas. É difícil para Lucy lembrar-se da menina que era então, difícil
aceitar uma assunção de si própria tão desesperada por atenção que fora
capaz de dormir com pai e filho. Por vezes olha para Stella, a sua menina tão
pequena e perfeita, e tenta imaginá-la com treze anos e a entregar-se dessa
maneira, apenas para se sentir amada. Isso fá-la sentir uma dor
inimaginável.
O telemóvel toca e, como sempre acontece e decerto continuará a acontecer,
ela sente um arrepio de inquietação. O assassínio de Michael não foi
resolvido, mas foi amplamente aceite como tendo sido consequência de
alguma dívida que não tinha sido paga aos seus sócios no submundo do
crime. Viu uma menção a si mesma num jornal francês, logo depois de o
crime ter chegado às manchetes:

Segundo parece, Rimmer, que foi casado duas vezes, teria um filho com a
sua primeira mulher, uma britânica conhecida apenas pelo nome de
«Lucy». De acordo com a sua governanta, ele e a ex-mulher tiveram
recentemente um breve reencontro, não sendo esta, contudo, considerada
suspeita.

Ainda assim, Lucy nunca ficará completamente descansada mediante a


possibilidade de vir a ser procurada por algum jovem detetive recente no
cargo e desesperado por mostrar a sua competência. Receia nunca mais
conseguir estar verdadeiramente relaxada.
Mas não se trata de uma mensagem de um detetive novato, e sim de Libby:
uma captura de ecrã de uma página do seu extrato bancário acompanhado
da palavra: Trocos!
Aqui está, pensa Lucy, percorrida por um arrepio de alívio. O fim desta fase
da sua vida. O princípio da seguinte. Agora pode comprar uma casa para si.
Finalmente. Um sítio para si, para os seus filhos e para o cão. Um lugar para
sempre, que ninguém lhe poderá tirar. E então, pensa, nessa altura será
capaz de descobrir exatamente o que deverá fazer com a sua vida. Gostaria
de estudar violino. De ser música profissional. E agora não há barreiras no
seu caminho.
A primeira metade da vida de Lucy foi manchada e escura, com uma luta a
seguir à outra. A segunda metade será dourada.
Responde à mensagem de Libby.
Champanhe para todos! Até logo, querida. Mal posso esperar para comemorar
contigo. Tudo.
Libby responde: Também mal posso esperar. Amo-te.
Também te amo, termina Lucy, acrescentando ainda uma longa linha de
beijos, antes de desligar o telefone.
A sua filha é extraordinária: uma alma gentil e carinhosa, em muitos aspetos
uma mistura de Stella e Marco, mas também muito filha do seu pai, ao
percorrer o seu próprio caminho e fazer as suas próprias regras, ao ser
totalmente ela própria. E Lucy está a crescer e a mudar imenso, deixando
para trás alguns dos tiques e compulsões que a retinham, e permitindo que a
vida lhe mostre o seu caminho, ao invés de lho impor. Ela compensa cada
segundo terrível que viveu entre o momento em que a deixou no seu berço e
o momento em que a voltou a encontrar. É um anjo.
Lucy volta a pegar no telemóvel e procura até chegar à letra G. Escreve uma
mensagem:

Querido Giuseppe. Sou a sua Lucy. Sinto muito a sua falta. Queria apenas
que soubesse que estou feliz e saudável, assim como as crianças e Fitz.
Não vou voltar a França. Agora tenho uma nova vida maravilhosa e quero
criar raízes. Mas lembrar-me-ei sempre de si e ser-lhe-ei eternamente grata
por me ter apoiado quando a minha vida estava descontrolada. Sem si, eu
estaria perdida.

Com toda a minha estima, a sua Lucy.


68

Nessa noite, num restaurante em Marylebone, a família de Libby espera-a.


Lucy, Marco, Stella e Henry.
Marco cumprimenta-a com uma espécie de abraço desajeitadamente
dramático, com a cabeça a bater na clavícula dela.
– Feliz aniversário, Libby – diz.
– Feliz aniversário, Libby. Adoro-te – diz também Stella, abraçando-a
gentilmente.
Estas duas crianças, o seu irmão e a sua irmã, foram os maiores presentes de
todos.
São crianças maravilhosas e Libby atribui inteiramente o crédito à mulher
que os criou. Ela e Lucy tornaram-se muito próximas, muito rapidamente. A
pequena diferença de idades significa que muitas vezes Lucy acaba por ser
mais como uma nova grande amiga do que como a mulher que a deu à luz.
Lucy levanta-se. Envolve o pescoço de Libby com os braços e beija-a
ruidosamente nas proximidades da orelha.
– Feliz aniversário – diz ela. – Um aniversário como deve ser. Foi há vinte e
seis anos. Meu Deus. Pensei que me ia partir ao meio.
– Sim – concorda Henry. – Ela mugia como uma vaca. Durante horas.
Tínhamos de tapar os ouvidos com as mãos – acrescenta, dando-lhe um dos
seus abraços cautelosos.
Libby ainda não sabe bem o que pensar de Henry. Por vezes lembra-se de
Clemency a dizer-lhe que achava que ele tinha um traço de pura maldade, e
sente-se percorrida por um arrepio. Pensa no que ele fez, na execução de
quatro pessoas, na mumificação do corpo de uma jovem, na mutilação de
um gato. Mas matar nunca fora sua intenção e Libby ainda acha que, se
nessa noite, as quatro crianças se tivessem entregado à polícia local e
explicado o que tinha acontecido, como tinham sido tão maltratadas, presas,
como tudo tinha sido um terrível acidente, teriam acreditado nelas e
estariam reabilitadas. Mas não foi isso o que aconteceu e converteram-se a si
mesmas em fugitivas, conduzindo as suas vidas por tangentes inimagináveis.
Henry é estranho, mas ao mesmo tempo é bastante aberto em relação ao
facto de ser estranho. Continua a garantir que, naquela noite, não os trancou
intencionalmente no quarto de hóspedes do seu apartamento Airbnb, que
não pegou nos telemóveis deles nem apagou a gravação de Miller.
– Bem, se o fiz, devia estar ainda mais bêbado do que pensava – disse.
E, de facto, Libby nunca encontrou um dispositivo de localização ou de
escuta no seu telemóvel. Mas, por outro lado, também nunca mudou a
password do telefone.
Ele também nega que tenha feito procedimentos estéticos para ficar
parecido com Phin.
– Por que razão haveria de querer parecer-me com Phin? Estou com
bastante melhor aspeto do que ele alguma vez teve.
Sente-se impaciente com as crianças e um pouco perturbado pelo súbito
afluxo de pessoas ao seu pequeno mundo rigidamente controlado, muitas
vezes está mal-humorado, mas noutras ocasiões é hilariante. Ele tem uma
vaga noção da verdade e parece viver um pouco na fronteira da realidade. E
como pode Libby culpá-lo? Depois de tudo o que ele passou? Se a sua
própria infância tivesse sido tão traumática como a dele, decerto ela também
viveria nos limites da realidade.
Abre o cartão que ele lhe deu e lê: «Querida Libby Jones, tenho muito
orgulho em chamar-te minha sobrinha. Amei-te logo que te vi e irei amar-te
sempre. Feliz aniversário, minha linda.»
Ele olha para ela com um leve rubor de vergonha, mas desta vez ela não
aceita um dos seus abraços cautelosos. Desta vez, ela lança-lhe os braços em
volta do pescoço e aperta-o, até que ele a aperte também.
– Eu também te amo – diz-lhe ela ao ouvido. – Obrigada por me teres
encontrado.
Nesse momento, Miller aparece.
Dido tinha razão.
Há ali qualquer coisa.
Apesar do facto de o apelido Roe combinar horrivelmente com Jones, a mãe
dele ser bastante distante, o seu estômago balançar, ele ter muitos pelos
faciais, não ter animais de estimação e ter uma ex-mulher, havia ali algo que
contava bastante mais do que tudo isso. E o que é uma tatuagem senão um
desenho na pele? Não é uma ideologia. É um rabisco.
Miller abandonou a sua história por Libby. Depois da noite no verão
passado, quando ela se reuniu com a sua família, ele pegou no bloco de
notas e arrancou-lhe todas as páginas.
– Mas – ripostara ela –, esse é o teu sustento, a tua carreira. Podias ter
ganhado tanto dinheiro.
Ele silenciou-a com um beijo e disse:
– Não te vou tirar a tua família. Merece-los muito mais do que eu mereço
um furo jornalístico.
Libby senta-se no lugar vazio ao lado dele e cumprimenta-o com um beijo.
– Feliz aniversário, Lamb – sussurra-lhe ele ao ouvido.
É a alcunha que ele lhe dá. Ela nunca teve uma alcunha antes.
Miller entrega-lhe um envelope gordo.
– O que é isso? – pergunta ela.
– Sugiro que abras para descobrir – diz ele, sorrindo.
É uma brochura, brilhante e grossa, de um alojamento de cinco estrelas e
um safári no Botswana chamado Chobe Game Lodge.
– Isto é…?
Miller sorri.
– Bem… parece que sim. De acordo com o homem bastante comunicativo
com quem falei na receção, o guia principal é um homem de quarenta e
poucos anos chamado Phin. Mas agora escrito com um F. Finn. Finn
Thomsen.
– E é? É ele?
– Tenho noventa e nove por cento de certeza que sim. Mas só há uma
maneira de o confirmarmos.
Tira do bolso do casaco um papel impresso e entrega-lho. É um e-mail de
confirmação de uma reserva de um quarto deluxe para dois no Chobe Game
Lodge.
– Se não quiseres ir, posso levar a minha mãe – diz ele. – Ela sempre quis
fazer um safári.
Libby abana a cabeça.
– Não – replica Libby. – Eu quero ir. Claro que sim.
Ela folheia os papéis e depois regressa à brochura. E, então, o seu olhar é
atraído para uma fotografia: um jipe cheio de turistas a olhar para uma
alcateia de leões. Examina-a mais de perto. Repara no guia turístico sentado
na frente do jipe, virando-se para sorrir para a câmara. Tem uma espessa
cabeleira loura, a cor acentuada pelo Sol. O rosto tem uma expressão franca
e o seu sorriso é como o Sol a brilhar.
Parece o homem mais feliz do mundo.
Parece-se com ela.
– Achas que é ele? – pergunta.
– Não sei – diz Miller. Olha para Henry e Lucy do outro lado da mesa e vira
a brochura para eles. Aproximam os rostos enquanto examinam a fotografia.
Então, Lucy leva o punho à boca, enquanto Henry se recosta na cadeira.
Lucy acena veementemente com a cabeça.
– Sim – diz ela, com a voz embargada. – Sim, é ele. É Phin. Está vivo. Olhem
para ele! Está vivo.
69

Está vivo. Phin está vivo. O meu coração dispara, agita-se. Sinto-me tonto.
Ele é lindo de morrer. Olho para ele, com o seu bronzeado, as suas calças
com múltiplos bolsos e o seu sorriso largo e confiante, sentado num jipe, em
África, sem preocupações de espécie alguma. Aposto que nunca pensa em
mim, que nunca pensa em nenhum de nós. Sobretudo não pensa em ti,
Serenity. Não pensa em ti. Não estava interessado em ti quando vivias na
nossa casa. Também não vai estar interessado em ti agora.
Lucy estava sem dúvida a mentir quando disse que falavam constantemente
em ti quando moravam em França. Phin não se interessa por bebés. Não é
um «tipo de família». Vive numa concha. É um solitário. A única vez, a
única vez em que consegui tirá-lo da sua concha foi quando tomámos o
ácido. O momento em que demos as mãos, quando o senti a passar para
dentro de mim, quando me tornei Phin. Claro que ele não se transformou
em mim – quem quereria fazê-lo? Mas eu transformei-me nele. Costumava
escrevê-lo por toda a casa, sempre que podia, com gritos silenciosos em
cantos e recantos e lugares escondidos. «EU SOU PHIN».
Mas como poderia eu ser Phin, se Phin estava ali a lembrar-me,
constantemente, de que eu não era Phin? A cada movimento descuidado da
sua franja, a cada encolher de ombros e olhar pensativo através de um
quarto vazio. Uma página de um romance de culto virada lentamente.
Começou como uma poção de amor. Deveria fazê-lo amar-me. Não
funcionou. Tudo o que fez foi diminuí-lo. Torná-lo mais fraco. Menos
bonito. E quanto mais fraco ele ficava, mais forte eu me tornava. Portanto,
continuei a dar-lhe a tintura. Não para matá-lo, nunca foi essa a minha
intenção, mas apenas para atenuar a sua luz, para que eu pudesse ficar um
pouco mais brilhante. E nessa noite, a noite da festa de aniversário dos trinta
anos de Birdie, quando Lucy me disse que Phin era o pai do seu bebé, entrei
no seu quarto para matá-lo.
Mas quando me pediu para desamarrá-lo, eu disse:
– Só se me deixares beijar-te. – E beijei-o. Com a mão dele ainda amarrada
ao tubo do radiador, o seu corpo quase a desfalecer, eu beijei-o, nos lábios,
no rosto. Ele não ripostou. Deixou-me fazê-lo. Beijei-o durante um longo
minuto. Levei um dedo aos seus lábios, passei as mãos pelo seu cabelo, fiz
tudo o que sonhara fazer, desde o primeiro minuto em que entrou em nossa
casa, quando eu tinha onze anos, quando eu não sabia que alguma vez iria
querer beijar alguém.
Esperei que ele me empurrasse. Mas ele não o fez. Foi complacente.
Depois, quando achei que o tinha beijado o suficiente, desamarrei-o e deitei-
me ao seu lado.
Pus um braço sobre o seu corpo quente.
Fechei os olhos.
Adormeci.
Quando acordei, Phin tinha partido.
Procurei-o desde então.
Mas agora ele foi encontrado.
Eu sabia que o grande urso da Libby iria encontrá-lo.
E conseguiu.
Olho para Miller; olho para ti.
Ponho o meu melhor sorriso alegre de tio Henry e pergunto:
– Há espaço para mais um?
Agradecimentos

Agradeço a um trio de editoras incríveis. À minha editora do Reino Unido,


Selina Walker, que trabalhou em fins de semana e durante longas noites para
emendar, polir e retrabalhar o meu manuscrito, tornando-o algo legível. A
Lindsay Sagnette, nos EUA, que lhe adicionou uma nova perspetiva e maior
clareza. E, por último, a Richenda Todd, que foi muito além do papel de
revisora e me fez trabalhar em inúmeras questões problemáticas que eu
tentara ignorar, porque não conseguia descobrir como resolvê-las. As três
proporcionaram-me uma masterclass, evidenciando a diferença que um bom
editor pode fazer. Obrigada ao meu extraordinário agente, Jonny Geller, que
não me permitiu lançar o livro para o mundo sem que fosse o melhor que
poderia ser. Quanto maior o esforço a trabalhar numa edição, mais os
nossos editores se interessam por nós e pelo nosso trabalho. Tenho muita,
muita sorte por vos ter a todos.
Obrigada a Najma Finlay, a minha extraordinária responsável pelo
marketing e RP no Reino Unido, que entrou recentemente em licença de
maternidade e que só regressará quando já tivermos o próximo livro para
divulgar; aproveite cada minuto do seu tempo com o seu lindo bebé.
Obrigada a Deborah Schneider, a minha incrível agente nos EUA, por…
bem, sabe porquê! Que ano!
Agradeço a Coco Azoitei pelo jargão técnico de que eu precisava para
explicar o que acontece quando alguém experimenta um violino que acabou
de ser consertado, e obrigada a todos no Facebook que me ofereceram
informações sobre trusts. Quaisquer erros em relação a qualquer uma destas
temáticas são inteiramente da minha responsabilidade.
Obrigada às minhas equipas editoriais no Reino Unido, nos EUA e em todo
o mundo por tratarem tão bem do meu trabalho – e de mim! –, com um
agradecimento especial a Ariele e a Haley, nos EUA, a Pia e Christoffer, na
Suécia, a Oda, na Noruega, e a Elisabeth e a Tina, na Dinamarca.
Obrigada a todos os meus editores de áudio e aos estúdios de gravação, que
produzem trabalhos de tão elevada qualidade, e obrigada a todos os atores e
locutores que leram as minhas palavras de forma tão agradável.
Agradeço aos bibliotecários, às livrarias, aos organizadores de feiras do livro
e encontros de escritores e a todos os que me ajudaram a colocar os meus
livros nas mãos dos leitores.
Obrigada à minha família (incluindo os meus animais) que me manteve os
pés no chão, em todos os momentos.
E, finalmente, obrigada pelos dois vodca tónicos duplos que me
acompanharam nos três últimos capítulos deste livro, numa noite, já tarde,
de sexta-feira, e que me ajudaram a encontrar as últimas linhas que eu sabia
estarem escondidas algures. Saúde!
Planeta de Livros Portugal
Calçada Ribeiro Santos, n.º 37 – 2.º
1200-789 Lisboa • Portugal

Reservados todos os direitos


de acordo com a legislação em vigor

© 2019, Lisa Jewell


© 2023, Planeta de Livros Portugal

Título original: The Family Upstairs

Design da capa: Ceara Elliot

Imagem da capa: © Getty (ref. 904783778)

Edição em epub: Setembro de 2023

Conversão para epub: Segundo Capítulo

ISBN: 978-989-777-788-2 (epub)

www.planetadelivros.pt
Reservados todos os direitos sobre esta obra. É proibido proceder a cópia, reprodução, publicação ou distribuição, total ou parcial,
bem como a sua incorporação em sistema informático e/ou a transmissão, utilização, modificação, sob qualquer forma ou por
qualquer meio, incluindo eletrónico, digital ou em suporte físico, nomeadamente por fotocópia, gravação ou qualquer outro
método, salvo consentimento prévio e por escrito do Editor. A infração ao aqui disposto constitui crime, nos termos do disposto no
Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (artigos 195.º e 224.º).

Você também pode gostar