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O nome «Cerian Tahany» foi-me dado por uma Cerian Tahany da vida real,
uma das vencedoras deste ano da campanha Get In Character.
CLIC Sargent é a principal instituição de caridade para o cancro do Reino
Unido para crianças e jovens. A sua missão é mudar o significado de se ser
diagnosticado com cancro quando se é jovem. Acredita que as crianças e
jovens com esta doença têm direito ao melhor tratamento, cuidado e apoio
possíveis, ao longo de todo o percurso da doença, e também posteriormente.
A campanha Get In Character tem vindo a realizar-se desde 2014 e tem sido
apoiada por muitos dos autores mais conhecidos do Reino Unido. Até à
data, a campanha arrecadou mais de 40 000 libras.
Tem sido um prazer apoiar a campanha Get In Character ao longo dos anos.
Poderá encontrar mais informações em www.clicsargent.org.uk
Seria inexato dizer que, antes de eles chegarem, a minha infância era
normal. Estava longe de ser normal, mas era o que me parecia, porque era
tudo o que eu conhecia. Só agora, com décadas de retrospetiva, consigo ver
o quão estranha era.
Eu tinha quase onze anos quando eles chegaram, e a minha irmã nove.
Viveram connosco durante mais de cinco anos e tornaram tudo muito,
muito negro. Eu e a minha irmã tivemos de aprender a sobreviver.
E quando eu tinha dezasseis anos e a minha irmã catorze, o bebé chegou.
I
1
Libby pega na carta caída sobre o tapete de entrada e revira-a entre as mãos.
Parece bastante formal. O envelope é de cor creme, em papel de muito boa
qualidade e ao tato dá até a sensação de ser de tecido. O carimbo postal
indica «Smithkin Rudd & Royle Solicitors, Chelsea Manor Street SW3».
Leva a carta para a cozinha e pousa-a sobre a mesa, enquanto enche a
chaleira e coloca um saquinho de chá numa caneca. Tem a certeza de que
sabe o que está no envelope. Fez vinte e cinco anos no mês passado. No seu
subconsciente, tem estado à espera desta carta. Mas agora que está ali, já não
tem a certeza de conseguir abri-la.
Pega no telefone e liga para a mãe.
– Mãe – diz –, chegou. A carta dos trustees1.
Ouve um silêncio do outro lado da linha. Imagina a mãe na sua própria
cozinha, a mais de mil e quinhentos quilómetros de distância, em Dénia:
armários brancos imaculados, acessórios de cozinha com combinações de
verde-limão, portas deslizantes de vidro que dão para um pequeno terraço
com uma vista distante para o Mediterrâneo, o telefone com uma capa
cravejada de brilhantes – a que ela se refere como o seu glamoroso – colado
ao ouvido.
– Oh – disse ela. – OK. Caramba. Já abriste?
– Não. Ainda não. Vou primeiro tomar uma chávena de chá.
– OK – diz a mãe, novamente. Depois, pergunta: – Queres que fique em
linha? Enquanto a abres?
– Sim – responde Libby. – Por favor.
Sente um pouco de falta de ar, como por vezes acontece quando está prestes
a levantar-se para fazer uma apresentação de vendas no trabalho, como se
tivesse tomado um café forte. Tira a saqueta de chá da caneca e senta-se.
Passa os dedos por um canto do envelope e respira fundo.
– OK– diz para a mãe. – Vou abri-la. Agora mesmo.
A mãe sabe o que está ali. Ou, pelo menos, faz uma ideia, embora nunca lhe
tenham dito formalmente o que havia nesse trust2. Como ela sempre disse,
bem pode tratar-se de um bule de chá e de uma nota de dez libras.
Libby pigarreia e desliza o dedo por baixo da dobra do envelope. Retira uma
folha de papel creme espesso e dá-lhe uma vista de olhos rápida:
1
Trustee é a entidade incumbida de administrar os bens que posteriormente serão entregues àquele a
favor de quem o trust foi estabelecido (beneficiário), geralmente ao atingir uma certa idade. (N. da T.)
2
Um trust é uma figura jurídica existente no direito anglo-saxónico (que não se encontra incorporada
no nosso ordenamento jurídico), que se define, no essencial, como uma relação fiduciária através da
qual os bens são transmitidos a uma pessoa (trustee) para que esta os administre em benefício de um
terceiro (beneficiário) e em conformidade com o objetivo estabelecido no ato constitutivo. (N. da T.)
3
Cadeia de lojas de departamentos com diversos tipos de produtos, desde roupa a artigos para a casa.
(N. da T.)
4
Grupo britânico de grandes armazéns. (N. da T.)
2
O meu nome, tal como o do meu pai, é Henry. Esta duplicação foi a causa de
confusões ocasionais, mas como a minha mãe chamava querido ao meu pai,
a minha irmã chamava papá e praticamente todas as outras pessoas lhe
chamavam Sr. Lamb ou senhor, sobrevivemos.
O meu pai foi o único beneficiário da fortuna do seu próprio pai, feita com
um negócio de slot machines. Nunca conheci o meu avô, que era já muito
velho quando o meu pai nasceu, era de Blackpool e chamava-se Harry. O
meu pai nunca trabalhou um dia em toda a sua vida, limitando-se a ficar à
espera de que Harry morresse para poder ser rico por direito próprio.
Comprou a nossa casa em Cheyne Walk, em Chelsea, no próprio dia em que
pôs as mãos no dinheiro. Já andava à procura de casa durante os últimos
dias de Harry e tinha ficado de olho naquele sítio durante algumas semanas,
apavorado com a possibilidade de alguém poder fazer uma oferta antes de
ele conseguir reivindicar a sua herança.
Quando a comprou, a casa estava vazia e ele passou anos e milhares de libras
a enchê-la com aquilo que designava por objetos: cabeças de alce a assomar
de paredes apaineladas, espadas de caça cruzadas por cima das portas,
tronos de mogno com costas estofadas, uma mesa de banquete de estilo
medieval para dezasseis pessoas, repleta de cicatrizes e buracos de caruncho,
armários cheios de pistolas e chicotes, uma tapeçaria de seis metros,
sinistros retratos a óleo de antepassados de outras pessoas, montes de livros
encadernados em pele com gravações a ouro, que nunca ninguém leria, e
um canhão de tamanho real no jardim da frente. Na nossa casa não havia
cadeiras confortáveis nem recantos acolhedores. Ali, tudo era madeira e
couro, ou metal e vidro. Tudo era difícil. Especialmente o meu pai.
Ele levantava pesos na nossa cave e bebia Guinness do seu barril privado, no
seu bar privado. Usava fatos de oitocentas libras, feitos à mão em Mayfair,
que mal acomodavam os seus músculos e o seu perímetro. Tinha o cabelo
da cor de moedas velhas, mãos com um aspeto áspero e os nós dos dedos
avermelhados. Conduzia um Jaguar. Jogava golfe, apesar de odiar, porque
não era feito para balançar um taco de golfe; ele era demasiado sólido,
demasiado inflexível. Aos fins de semana, ia à caça: aos sábados de manhã,
desaparecia, vestido com um casaco de tweed justo e a mala do carro cheia
de armas, e regressava a casa à noite, no domingo, com um par de pombos-
torcazes numa caixa de gelo. Uma vez, quando eu tinha uns cinco anos,
trouxe para casa um bulldog inglês, que tinha comprado a um homem na
rua usando as notas fresquinhas de cinquenta libras que guardava enroladas
no bolso do casaco. Disse que o fazia lembrar-se de si próprio. Depois, o cão
fez caca num tapete antigo e o meu pai livrou-se dele.
A minha mãe era uma beleza rara.
As palavras não são minhas. Eram do meu pai.
A tua mãe é uma beleza rara.
Ela era meio-alemã, meio-turca. Chamava-se Martina. Era doze anos mais
nova do que o meu pai e nessa altura, antes de virem para cá, era um ícone
da moda. Colocava um par de óculos escuros e ia até à Sloane Street para
gastar o dinheiro do meu pai em lenços de seda brilhante, batons em
embalagens douradas e perfume francês intenso, e por vezes era fotografada
com os pulsos rodeados com as pegas dos sacos e embrulhos com papéis
chiques. Diziam que era uma socialite. Na verdade, não era. Ia a festas
glamorosas e usava roupas lindas, mas quando estava em casa era apenas a
nossa mãe. Não a melhor mãe, mas também não a pior, e sem dúvida um
elemento relativamente suave na nossa mansão de Chelsea enorme,
masculina e decorada com machetes.
Durante cerca de um ano, teve um emprego em que apresentava pessoas
importantes da moda umas às outras. Ou, pelo menos, era essa a minha
impressão. Tinha na mala uns pequenos cartões de visita prateados, com as
palavras «Martina Lamb Associates» em rosa-choque. Tinha um escritório
em King’s Road, um escritório no loft luminoso por cima de uma loja, com
uma mesa de vidro, cadeiras de couro e um telex, cabides de roupa em
plástico transparente e um vaso de lírios brancos sobre um pedestal. Nas
férias escolares, levava-nos, a mim e à minha irmã, para o trabalho e dava-
nos pilhas de papel incrivelmente branco, de uma resma que tinha dentro de
uma caixa, e um punhado de marcadores Magic Markers. O telefone tocava
ocasionalmente e a mamã dizia: «Bom dia, Martina Lamb Associates.» De
vez em quando, um visitante fazia-se anunciar através do intercomunicador,
e eu e a minha irmã lutávamos para saber de quem era a vez de pressionar o
botão para abrir a porta. Os visitantes eram mulheres esganiçadas e muito
magras, que só queriam falar sobre roupas e pessoas famosas. Não havia
«associados», apenas a nossa mãe e por vezes uma adolescente de olhos
arregalados a trabalhar à experiência. Não sei o que aconteceu a tudo isso.
Só sei que o escritório no loft desapareceu, bem como os cartões de visita
prateados, e a mamã voltou a ser dona de casa.
A minha irmã e eu fomos para a escola em Knightsbridge – possivelmente a
escola mais cara de Londres. Nessa época, o nosso pai não tinha medo de
gastar dinheiro. Adorava gastá-lo. Quanto mais, melhor. O nosso uniforme
era castanho cor de caca e amarelo bílis, e os rapazes usavam calças curtas.
Felizmente, quando eu já tinha idade suficiente para poder ser humilhado
por causa delas, o meu pai já não tinha dinheiro para pagar as mensalidades
escolares, quanto mais para as calças de veludo cotelê do uniforme escolar,
compradas no Harrods.
Depois de eles chegarem, tudo aconteceu tão devagar, mas ao mesmo tempo
tão extraordinariamente depressa: a mudança nos nossos pais, na nossa
casa, nas nossas vidas. Porém, naquela primeira noite, quando Birdie
apareceu nos degraus da nossa porta com duas malas grandes e um gato
numa caixa de vime, nunca poderíamos ter imaginado o impacto que ela
iria ter, as pessoas que iria trazer para as nossas vidas e que tudo acabaria da
forma como acabou.
Pensávamos que ela tinha vindo apenas para ficar durante o fim de semana.
4
Libby consegue ouvir todos os sussurros que esta sala já ouviu em cada
momento da sua existência, sentir a respiração de cada pessoa que ali
mesmo se sentou, onde ela está agora.
– Mil setecentos e noventa e nove – respondera o Sr. Royle à sua pergunta
anterior. – Um dos mais antigos escritórios de advocacia da capital.
O Sr. Royle olha-a do outro lado da sua secretária meticulosamente
encerada.
– Bem, bem. Isto é que é um presente de aniversário, não? – diz, com um
sorriso a aflorar-lhe os lábios.
Libby sorri nervosamente.
– Ainda não estou convencida de que seja realmente verdade – replica. –
Estou sempre à espera de que alguém me venha dizer que tudo não passou
de uma grande brincadeira.
A sua escolha de palavras – grande brincadeira – parece desajustada naquele
cenário venerável e antigo. Ela gostaria de ter usado uma expressão
diferente. Mas o Sr. Royle não parecia preocupado. Enquanto se inclinava
para a frente e passava a Libby uma pilha de papelada, o seu sorriso
mantinha-se inalterado.
– Posso garantir-lhe que não é brincadeira nenhuma, menina Jones. Aqui –
diz, puxando algo do monte de papel. – Eu não tinha a certeza se deveria
dar-lhe isto agora. Ou talvez lho devesse ter enviado juntamente com a
carta. Não sei, é tudo muito estranho. Estava na pasta e por isso guardei-o,
só para o caso de surgir alguma questão. Mas agora parece a coisa certa a
fazer. Portanto, aqui está. Não sei o que é que os seus pais adotivos lhe
contaram sobre a sua família biológica, mas talvez valha a pena ler isto.
Ela desdobra o bocado de papel de jornal e pousa-o sobre a secretária, à sua
frente.
Chelsea, 1988
5
Programa de entretenimento britânico de formato reality show, transmitido pelo canal público
televisivo E4, que segue a vida de jovens ricos que residem em zonas chiques de Londres, como
Chelsea. (N. da T.)
8
Marco e Lucy acabaram por passar a noite na praia. A chuva parara por
volta das duas da manhã e eles tinham reunido as suas coisas e percorrido os
vinte minutos pela cidade até à Promenade des Anglais, onde desenrolaram
os seus tapetes de ioga sobre as pedras molhadas, aconchegaram-se sob os
seus sarongues e observaram os fragmentos de nuvens cinzentas de chuva
que se perseguiam à frente de uma enorme lua cor-de-rosa, até o Sol
começar a aparecer na linha entre o céu e o mar.
Às oito horas, Lucy juntou todos os cêntimos que tinha no fundo da sua
mochila e da sua mala e descobriu que era suficiente para comprar croissants
e um café. Comeram-nos sentados num banco, ambos apáticos pela falta de
sono e pela terrível noite que tinham passado. A seguir, atravessaram a
cidade de regresso ao apartamento de Samia para irem buscar Stella, e Samia
não os convidou para almoçar, apesar de ser meio-dia e de eles não terem,
claramente, dormido em camas. Stella tinha tomado banho e estava vestida
com roupas limpas, os seus caracóis suaves tinham sido penteados e presos
atrás com molas cor-de-rosa fofinhas e, ao atravessarem a cidade mais uma
vez, Lucy pensou que provavelmente parecia que ela e Marco a tinham
raptado.
– Posso ficar com ela mais uma noite – dissera Samia, com a mão pousada
no ombro da neta. Lucy apercebera-se de que, de forma quase impercetível,
a filha encolhera o ombro ao sentir a mão da avó, e abanara ligeiramente a
cabeça.
– É muito gentil da sua parte, mas arranjei um sítio para dormirmos esta
noite. – Sentiu o olhar de Marco a queimar-lhe o ombro pela sua mentira. –
Mas estou-lhe muito, muito grata. A sério.
Samia inclinou ligeiramente a cabeça e semicerrou os olhos, digerindo
alguma observação silenciosa sobre a situação de Lucy. Sustendo a
respiração, Lucy esperou alguma declaração contundente sobre a sua
aparência, a sua maneira de educar os filhos, o papel que desempenhou na
fuga do seu precioso filho. Porém, ao invés, Samia foi lentamente até à mesa
a meio do corredor e tirou um pequeno porta-moedas da sua mala a
tiracolo. Espreitou lá para dentro e retirou uma nota de vinte euros, que lhe
entregou.
– É tudo o que tenho – disse. – Não há mais.
Lucy pegou na nota e então inclinou-se para Samia e abraçou-a.
– Obrigada. Deus a abençoe.
Agora, ela, as crianças e o cão estão a passear ao longo da Promenade des
Anglais sob o Sol escaldante da tarde, com um saco cheio de roupas limpas
da lavandaria e a barriga cheia de pão, queijo e Coca-Cola. Dirigem-se a um
dos muitos clubes de praia que orlam as praias ali em Nice: o Beach Club
Bleu et Blanc.
Lucy já tinha comido ali, no passado. Sentara-se a todas aquelas mesas com
o pai de Marco, por entre pilhas de fruits de mer, com uma taça de
champanhe ou um spritzer de vinho branco ao seu lado, enquanto ia
arrefecendo com os esguichos intermitentes de água gelada lançados pelos
pequenos animais. Agora, aqueles velhos e cansados empregados, com os
seus incongruentes polos de cor azul e branca, não a reconheceriam. Doze
anos antes, ela tinha sido um colírio para os olhos.
À entrada do restaurante, uma mulher está sentada numa posição mais
elevada. É loura, daquela forma como só as mulheres no sul da França
podem ser, algo decerto relacionado com o contraste entre o cabelo baunilha
e a pele extremamente bronzeada. Olha com indiferença para a aparência de
Lucy, Marco e o cão, antes de voltar a fixar os olhos no ecrã do computador.
Lucy finge que está à espera de alguém que vem da praia para se juntar a
eles, protegendo os olhos com uma mão e olhando para o horizonte, até que
a mulher se distrai com um grupo de cinco pessoas que chega para almoçar.
– Agora – sussurra. – Agora.
Pega no cão nos braços e empurra Stella para a sua frente. O seu coração
dispara enquanto caminha o mais despreocupadamente possível pela
plataforma de madeira por trás do restaurante, em direção à zona dos
chuveiros. Olha em frente.
– Continua a andar – sibila para Stella quando a criança para,
inexplicavelmente, a meio do caminho. Por fim, chegam ao espaço escuro e
húmido do bloco de chuveiros.
«Reservado exclusivamente aos clientes do Beach Club Bleu et Blanc»,
dizem várias placas pregadas às paredes de madeira. O chão de cimento tem
areia e está húmido sob os seus pés; o ar está abafado. Lucy conduz Stella
para a direita. Se conseguirem passar para os chuveiros pelas portas vaivém
de madeira sem serem vistos, não terão problema.
E então entram. Os chuveiros estão vazios. Ela e Marco despem a roupa pela
primeira vez em quase oito dias. Ela encontra o caixote do lixo para pôr as
cuecas. Nunca mais quer voltar a usá-las. Tira da mochila champô e
amaciador, uma barra de sabão, uma toalha. Leva consigo o cão, massaja-lhe
o champô por todo o pelo, por baixo da cauda, da coleira, atrás das orelhas.
Ele permanece calmo e quieto, quase como se soubesse que é necessário. De
seguida, passa-o a Stella, que está à espera do lado de fora. Ele sacode-se e
Stella ri enquanto é salpicada pelas gotas do seu pelo. Lucy fica então por
baixo do fluxo de água morna e deixa-a correr sobre a sua cabeça, pelos seus
olhos e ouvidos, debaixo dos braços, entre as pernas e dedos dos pés,
sentindo que o inferno da semana anterior começa a dissolver-se
juntamente com a poeira, a lama e o sal. Lava o cabelo com champô,
passando os dedos por todo o comprimento, até chiar. Passa a embalagem a
Marco, por baixo do compartimento. Observa as espumas de ambos que se
encontram no espaço entre eles, e a sua cor, cinzenta e triste.
– Lava bem o cabelo na parte de trás do pescoço, Marco – diz. – Está todo
emaranhado. E debaixo dos braços. Lava bem debaixo dos braços.
Depois, sentam-se lado a lado num banco de madeira, embrulhados em
toalhas. Através de frestas na madeira conseguem ver as pessoas que passam
do outro lado e fatias de céu azul cintilante, e sentem o cheiro da madeira
aquecida pelo Sol e o odor de alho frito. Lúcia suspira. Sente-se quase
aliviada, mas ainda não totalmente preparada para a próxima etapa.
Vestem roupas limpas e põem desodorizante, Lucy espalha creme hidratante
no rosto e dá às crianças protetor solar. No fundo da sua nécessaire tem um
pequeno frasco de perfume que borrifa atrás das orelhas e no decote. Enrola
o cabelo húmido na parte de trás da cabeça e prende-o com uma mola de
plástico. Olha-se ao espelho. Quase quarenta anos. Sem casa. Solteira. Sem
um tostão. Nem sequer é quem diz ser. Até o seu nome é falso. É um
fantasma. Um fantasma vivo, que respira.
Põe um pouco de rímel, um pouco de brilho nos lábios e ajusta o pingente
do seu colar de ouro, para que fique centrado no decote bronzeado pelo sol.
Olha para os filhos. São lindos. O cão está bonito. Todos cheiram bem.
Comeram. Há muitos dias que as coisas não corriam tão bem.
– Muito bem – diz, virando-se para Marco, enfiando a sua roupa suja na
mochila e voltando a fechá-la. – Vamos visitar o teu pai.
9
Chelsea, 1988
Eu tinha estado a observar das escadas, por isso já sabia. Um homem com
caracóis escuros, um chapéu de aba, um donkey jacket6, calças de tweed
enfiadas em grandes botas de atacadores, malas velhas que pareciam
adereços de um filme de outros tempos e uma transportadora de gatos em
vime, presa com uma tira de couro desgastada. E Birdie de pé ao seu lado,
com um vestido que parecia uma camisa de noite.
– Querido! – Ouvi a minha mãe chamar o meu pai. – Vem conhecer
o Justin!
Vi o meu pai a sair da sala de estar. Tinha um charuto preso entre os dentes
e vestia um pulôver verde e peludo.
– Então – disse ele, apertando a mão do homem com demasiada força –, é o
namorado da Birdie?
– Companheiro – interrompeu Birdie. – Justin é meu companheiro.
O meu pai olhou-a do mesmo modo que fazia quando achava que alguém
estava deliberadamente a fazê-lo de parvo, como se estivesse a pensar em
recorrer à violência. Porém, o olhar passou rapidamente e vi-o a afastá-lo
com um sorriso.
– Sim – disse. – Claro. São os tempos modernos, não é?
A Birdie tinha dito à minha mãe que ela e o seu companheiro precisavam de
um sítio para ficar durante uns dias. O senhorio pusera-os a andar, porque
eles tinham um gato – que tipo de idiota arranja um gato sem verificar as
condições de arrendamento? Eu nem sequer tinha ainda onze anos, nunca
tinha morado numa casa arrendada e sabia disso –, e Birdie não sabia a
quem mais recorrer. Agora, como homem adulto de quarenta e um anos, já
muitas vezes usei este refrão para levar as pessoas a fazerem o que eu quero
que façam. Não sabia a quem mais recorrer. Não dá a mínima saída à pessoa
a quem se está a tentar manipular. A única opção que tem é capitular. Que
foi exatamente o que a minha mãe fez.
– Mas temos tantos quartos – disse ela, quando reclamei por causa dessa
combinação. – E é apenas por alguns dias.
Na minha opinião, a minha mãe só queria uma estrela pop a morar na sua
casa.
A minha irmã passou por mim na escada e teve um frémito quando viu a
transportadora do gato no corredor.
– Como se chama? – perguntou, ajoelhando-se para espreitar através da
pequena grade.
– É uma fêmea. Chama-se Suki – respondeu Birdie.
– Suki – repetiu ela, dobrando os dedos entre as barras. A gata encostou-se à
sua mão e ronronou alto.
O homem chamado Justin pegou na sua mala rígida de palco e perguntou:
– Onde pomos as nossas coisas, Martina?
– Temos um quarto encantador para vocês lá em cima. Meninos, mostrem
aos nossos convidados o quarto amarelo, sim?
A minha irmã liderou o caminho. Era, de longe, a mais sociável de nós os
dois. Eu achava os adultos relativamente assustadores, enquanto ela parecia
gostar bastante deles. Ela estava de pijama verde. Eu vestia um roupão
axadrezado e calçava uns chinelos de feltro azul. Eram quase nove horas e
estávamos em contagem decrescente para a hora de ir dormir.
– Oh – exclamou Birdie, quando a minha irmã abriu a porta escondida nos
lambris de madeira que dava para a escada de acesso ao piso superior. –
Onde diabo nos levas?
– É a escada dos fundos – explicou a minha irmã. – Para o quarto amarelo.
– Queres dizer a entrada dos empregados? – perguntou Birdie, dando uma
fungadela.
– Sim – respondeu a minha irmã com entusiasmo, porque embora fosse
apenas um ano e meio mais nova do que eu, era demasiado jovem para
compreender que nem todos achavam que dormir em quartos secretos ao
cimo de uma escada secreta fosse uma aventura; que algumas pessoas
poderiam achar que mereciam quartos maiores e mais adequados e,
portanto, em tais circunstâncias ficariam ofendidas.
No cimo da escada secreta, havia uma porta de madeira que levava a um
longo e estreito corredor onde as paredes pareciam pouco sólidas
e irregulares e as tábuas do soalho estavam deformadas e oscilantes, dando a
sensação de se caminhar num comboio em movimento. O quarto amarelo
era o mais bonito dos quatro lá de cima. Tinha três janelas de teto e uma
cama grande com uma capa de edredão também amarela, a combinar com o
papel de parede Laura Ashley amarelo e modernos candeeiros de mesa com
abajures de vidro azul. A nossa mãe tinha disposto tulipas amarelas e
vermelhas num vaso. Observei o rosto de Birdie enquanto absorvia tudo
aquilo, com uma espécie de inclinação relutante do queixo, como se dissesse:
acho que terá de servir.
Deixámo-los ali e eu fui atrás da minha irmã enquanto ela descia as escadas,
passava pela sala de estar e entrava na cozinha.
O pai estava a abrir uma garrafa de vinho. A mãe tinha colocado um avental
de folhos e preparava uma salada.
– Quanto tempo vão estas pessoas cá ficar? – perguntei, sem pensar. Vi uma
sombra passar pelo rosto do meu pai ao notar um certo tom de insolência
que não consegui disfarçar.
– Oh. Não vão ficar muito tempo. – A minha mãe voltou a colocar a rolha
na garrafa de vinagre de vinho tinto e pô-la de lado, sorrindo suavemente.
– Podemos ficar acordados? – perguntou a minha irmã, sem noção do
panorama geral, sem ver para além do nariz na sua cara.
– Esta noite não – respondeu a minha mãe. – Talvez amanhã, que é fim de
semana.
– E nessa altura eles vão embora? – perguntei, roçando muito levemente a
linha entre mim e a paciência do meu pai comigo. – A seguir ao fim de
semana?
Virei-me, ao sentir o olhar da minha mãe a desviar-se para algum ponto por
cima do meu ombro. Birdie estava parada à porta com a gata nos braços. Era
branca e castanha e tinha um ar de rainha egípcia.
– Não vamos ficar muito tempo, rapazinho. Só até Justin e eu encontrarmos
o nosso próprio espaço – declarou Birdie, olhando para mim.
– Chamo-me Henry – disse, extremamente surpreendido por um adulto me
ter acabado de chamar «rapazinho» na minha própria casa.
– Henry – repetiu Birdie, olhando-me de um modo intenso. – Sim, claro.
A minha irmã olhava, ansiosa, para a gata e Birdie perguntou:
– Queres pegar nela?
Ela assentiu e a gata foi pousada nos seus braços, onde de imediato deu uma
volta de 180 graus, saltando como um elástico e fugindo, deixando-a com
um horrível arranhão vermelho na parte interna do braço. Vi os seus olhos
encherem-se de lágrimas e a boca contorcer-se num sorriso corajoso.
– Estou bem – disse, enquanto a minha mãe se aproximava, preocupada, e
lhe passava um pano molhado sobre o braço.
– Henry, podes ir buscar Germolene ao meu armário da casa de banho, por
favor?
Ao passar, lancei um olhar a Birdie, desejando que ela percebesse que eu
sabia que ela não tivera cuidado suficiente ao passar a gata à minha irmã. Ela
olhou para mim, os olhos tão pequenos que mal conseguia distinguir-lhes a
cor.
Eu era um rapaz estranho. Agora consigo ver isso. Já conheci rapazes que
eram tal como eu era: levavam tempo a sorrir, eram intensos, cautelosos e
vigilantes. Suspeito que Birdie deve ter sido uma rapariga muito estranha.
Talvez ela se tenha reconhecido em mim. Mas, mesmo nessa altura,
consegui perceber que ela me odiava. Era óbvio. E totalmente recíproco.
Ao atravessar o corredor, passei por Justin. Segurava uma caixa amassada de
chocolates Black Magic e parecia perdido.
– Os teus pais estão por aí? – perguntou, apontando na direção da cozinha.
– Sim – respondi. – Estão na cozinha. Por aquele arco.
– Merci beaucoup – disse ele, e eu, apesar de ter apenas dez anos, já tinha
idade suficiente para perceber que ele estava a ser pretensioso.
Fomos mandados para a cama pouco depois, a minha irmã com um
curativo na parte interna do braço, eu com o início de uma dor de estômago.
Eu era uma daquelas crianças: as minhas emoções faziam-se sentir na
minha barriga.
Mais tarde, nessa noite, conseguia ouvi-los a arrastarem-se lá por cima. Pus
uma almofada por cima da cabeça e voltei a dormir.
Nesse dia, foi quase um alívio ir para a escola, sentir-me normal durante
algumas horas. Tinha começado o meu último período da escola primária7.
Eu faria onze anos no mês seguinte, era um dos rapazes mais novos do meu
ano, e depois passaria para uma escola maior, mais perto de casa, onde não
teria de usar as calças curtas. Nesta fase, eu estava bastante centrado nesse
aspeto. Já estava demasiado avançado para a escola das calças curtas, bem
como em relação a todas as crianças com quem cresci. Percebia que era
diferente. Totalmente diferente. Não havia ali ninguém como eu e fantasiava
sobre a ida para a escola grande e sobre a possibilidade de me ver rodeado
de pessoas como eu. Tudo seria melhor na nova escola. Só teria de aguentar
mais dez semanas, a seguir um longo e chato verão, e depois seria um novo
começo.
Eu não fazia ideia, absolutamente nenhuma, de como o panorama da minha
vida seria diferente no final daquele verão e de como todas as coisas pelas
quais ansiara em breve pareceriam sonhos distantes.
6
Casaco de lã grossa, geralmente com um pedaço de couro ou de plástico na região dos ombros,
habitualmente usado por operários no Reino Unido. (N. da T.)
7
No Reino Unido, a educação primária começa aos cinco anos e continua até aos onze,
compreendendo diversas fases. (N. da T.)
10
Libby está sentada à mesa da cozinha. A porta das traseiras está aberta para
o pátio, que fica na sombra apesar do sol de fim de tarde, mas ainda
demasiado húmido para lá se poder sentar. Tem junto de si um copo cheio
de gelo com Diet Coke e está descalça, depois de ter atirado para o lado as
sandálias assim que entrou no seu apartamento. Abre a tampa do
computador portátil rosa-dourado e abre o navegador Chrome. Quase fica
surpreendida ao ver que a última coisa que pesquisou, quatro dias atrás,
antes de a carta ter chegado e virado tudo de pernas para o ar, fora aulas
locais de salsa. Mal consegue imaginar o que lhe passou pela cabeça. Supõe
que tivesse que ver com a possibilidade de conhecer homens.
Abre uma nova janela no computador e devagar, nervosamente, digita as
palavras Martina e Henry Lamb.
Encontra de imediato um link para um artigo do Guardian de 2015. Clica
nele. O artigo intitula-se: «O Misterioso Caso de Serenity Lamb e da Pata de
Coelho».
Serenity Lamb, pensa, era eu, sou eu. Eu sou Serenity Lamb. E também sou
Libby Jones. Libby Jones vende cozinhas em St. Albans e quer frequentar
aulas de salsa. Serenity Lamb está deitada num berço pintado, num quarto
com painéis de madeira em Chelsea, e com uma pata de coelho enfiada no
meio do seu cobertor.
Acha difícil localizar o ponto de sobreposição, em que uma se torna a outra.
Imagina que seja quando a mãe adotiva a segura pela primeira vez nos seus
braços. Mas, nessa altura, ainda não era senciente. Não tinha consciência da
transição de Serenity para Libby, da torção e destorção silenciosa dos
filamentos da sua identidade.
Bebe um gole da Coca-Cola e começa a ler.
11
8
Uma tortura chinesa que consiste em torcer a pele do pulso ou do braço de alguém em duas direções
diferentes em simultâneo. (N. da T.)
12
9
O Aperol é um aperitivo de baixo teor alcoólico, ligeiramente amargo, feito com laranjas amargas,
genciana e uma mistura secreta de plantas e raízes. O seu sucesso deve-se à receita do mítico cocktail
veneziano, o Spritz, uma mistura de Aperol e Prosecco com uma pitada de água com gás. (N. da T.)
13
Naquela noite, dormem os três numa pequena cama de casal, num quarto
escuro nas traseiras da casa, onde o som de pneus a chiar sobre o asfalto
quente do lado de fora entra em competição com o ranger de uma ventoinha
de plástico de má qualidade ao rodar, com a televisão das pessoas no quarto
ao lado e com uma mosca presa algures entre as cortinas e a janela. Stella
tem um punho sobre o rosto de Lucy, Marco geme suavemente no seu sono
e o cão ressona. Porém, pela primeira vez em mais de uma semana, Lucy
dorme longa e profundamente.
10
Um efeito que ocorre por vezes neste e em outros instrumentos de cordas, em que a nota soa como
o uivo de um lobo. (N. da T.)
11
Originalmente, townhouse referia-se à residência que um membro da nobreza ou da pequena
nobreza tinha na cidade, normalmente em Londres, em oposição à sua residência no campo –
geralmente conhecida como casa de campo ou casa senhorial. (N. da T.)
14
Chelsea, 1988
Esse dia, 8 de setembro de 1988, deveria ter sido o meu segundo dia na
escola grande, mas provavelmente por agora já devem ter adivinhado que
nesse ano não consegui ir para a minha tão desejada nova escola, aquela
onde iria conhecer as minhas almas gémeas, os meus amigos para toda a
vida, a minha gente. Naquele verão, fui perguntando com regularidade à
minha mãe: «Quando é que vamos ao Harrods comprar o meu uniforme?»,
e ela respondia: «Vamos esperar até ao fim das férias, para o caso de dares
um salto de crescimento.» E então o fim das férias aproximava-se e ainda
não tínhamos ido ao Harrods.
Nem tínhamos ido à Alemanha. Geralmente íamos por uma semana ou
duas visitar a minha avó na sua grande e arejada casa na Floresta Negra,
com a sua piscina elevada e fria e as agulhas de pinheiro sob os pés. Mas este
verão aparentemente não podíamos suportar essa despesa. E, se não
podíamos voar até à Alemanha, perguntei-me, como iríamos pagar as
propinas escolares?
No início de setembro, os meus pais já estavam a preencher candidaturas a
escolas públicas locais e a colocar os nossos nomes nas listas de espera.
Nunca tinham dito, especificamente, que tínhamos problemas financeiros,
mas era óbvio que tínhamos. Tive dores de estômago durante dias,
preocupado com a possibilidade de vir a ser intimidado por rufias numa
dessas escolas com todo o tipo de alunos.
Oh, preocupações mesquinhas e insignificantes. Preocupações frívolas. Olho
para trás e penso em mim com onze anos: um rapaz um pouco estranho, de
estatura média, compleição magra, os olhos azuis da minha mãe, o cabelo
castanho do meu pai, joelhos como batatas presas em paus, lábios finos
apertados em jeito de reprovação, uma atitude ligeiramente arrogante, um
menino mimado convencido de que os capítulos da sua vida já tinham sido
cuidadosamente escritos e bastaria segui-los em conformidade. Olho para
trás, para ele, e apetece-me dar-lhe uma chapada naquela carinha estúpida,
presunçosa e sonhadora.
Justin estava agachado no jardim, a mexer nas plantas que tinha semeado.
– Ervas medicinais; o plantio, o crescimento e o seu uso – explicou-me na
sua forma de falar lenta, quase comatosa. – As grandes empresas
farmacêuticas estão dispostas a dar cabo do planeta. Daqui a vinte anos
seremos uma nação de viciados em drogas prescritas e o Serviço Nacional
de Saúde estará de joelhos a tentar pagar pelos «rebuçados» de uma nação
doente. Quero voltar atrás no tempo e usar o que o solo oferece para tratar
as doenças do dia a dia. Não precisamos de oito tipos de produtos químicos
diferentes para curar uma dor de cabeça. A tua mãe diz que quer parar de
tomar comprimidos e começar a usar as minhas tinturas.
Olhei para ele. Nós éramos uma família de consumidores de
comprimidos. Para a rinite alérgica, para constipações, para dores de barriga
e dores de cabeça, para dores de crescimento e ressacas. A minha mãe até
tinha comprimidos para aquilo a que chamava de «sentimentos de tristeza».
O meu pai tinha comprimidos para o coração e também para evitar a queda
de cabelo. Comprimidos por todo o lado. E agora, aparentemente, íamos
passar a cultivar ervas e a fazer os nossos próprios medicamentos.
Inacreditável.
Durante as férias de verão, o meu pai teve um pequeno AVC, que o deixou a
coxear e a falar com uma ligeira dificuldade. De certa forma, de um modo
simplista, poder-se-ia dizer que já não era o mesmo. Vê-lo diminuído
daquela maneira fez-me sentir estranhamente desprotegido, como se agora
houvesse uma brecha, pequena, mas significativa, nas defesas da família.
O seu médico, o Dr. Broughton, um homem bastante seco e de idade
indeterminada, que vivia e tinha o seu consultório num edifício de seis
andares mesmo ao virar da esquina, veio visitá-lo depois de ele ter passado
uma noite no hospital. Fumaram charutos no jardim e falaram do seu
prognóstico.
– Henry, eu diria que o que precisa é dos serviços de um bom fisioterapeuta
de reabilitação. Infelizmente, todos os que conheço são horríveis.
Riram-se e o meu pai disse:
– Já não sei, não tenho certeza em relação a nada. Mas gostava de
experimentar. Tentar qualquer coisa, para voltar a ser eu mesmo.
Birdie estava a tratar do jardim de plantas medicinais de Justin. Estava calor
e ela vestia um top de musselina através do qual os seus mamilos estavam
perfeitamente visíveis. Tirou o chapéu de lona flexível e parou à frente do
meu pai e do médico.
– Eu conheço alguém – disse, de mãos nas ancas. – Conheço uma pessoa
espetacular. Faz autênticos milagres. Trabalha com energias. Ele consegue
fazer fluir o chi pelo corpo das pessoas. Já curou várias que conheço de dores
nas costas. De enxaquecas. Vou pedir-lhe que nos faça uma visita.
Ouvi o meu pai começar a protestar. Mas Birdie disse apenas:
– Não. A sério, Henry. É o mínimo que posso fazer. O mínimo. Vou ligar-
lhe agora mesmo. Chama-se David. David Thomsen.
Naquela manhã, eu estava na cozinha com a minha mãe, a vê-la fazer scones
de queijo, quando a campainha tocou. A minha mãe secou as mãos no
avental, ajeitando nervosamente as pontas do cabelo com permanente e um
corte de estilo bob.
– Ah, devem ser os Thomsens.
– Quem são os Thomsens? – perguntei, sem me lembrar da recomendação
de Birdie da semana anterior.
– Amigos – respondeu, animada. – Da Birdie e do Justin. O marido é
fisioterapeuta. Ele vai trabalhar com o teu pai, para tentar que ele volte a
ficar em forma. E a mãe é uma professora experiente. Vai dar-vos aulas em
casa a ambos, só durante um pequeno período. Não é bom?
Não tive a oportunidade de pedir à minha mãe que, antes de ir abrir a porta,
me desse mais pormenores sobre esse chocante desenvolvimento, tão
abruptamente apresentado.
De boca ligeiramente entreaberta, observei-os a entrar.
Primeiro, uma menina, com cerca de nove ou dez anos. Cabelo preto com
um corte bob, um macacão curto, os joelhos arranhados, uma mancha de
chocolate na bochecha, um leve ar de energia reprimida. Pelos vistos,
chamava-se Clemency.
Depois, um rapaz da minha idade, talvez mais velho, louro, alto, com
pestanas escuras que roçavam as suas maçãs do rosto bem definidas, as
mãos nos bolsos de uns calções azuis elegantes, uma franja que afastava
facilmente dos olhos e com um certo estilo. Chamava-se Phineas. Segundo
nos disseram, Phin, para abreviar.
A mãe deles entrou a seguir. De ossos largos, pálida, peito liso, cabelo louro
comprido e uma atitude um pouco nervosa. Como viria a descobrir, era
Sally Thomsen.
E atrás de todos eles, alto, de ombros largos, magro, bronzeado, com o
cabelo preto curto, olhos azuis intensos e uma boca carnuda, vinha o pai.
David Thomsen. Cumprimentou-me, agarrando a minha mão com força e
pousando a outra mão por cima.
– Prazer em conhecer-te, jovem – disse, em voz baixa e suave.
Largou-me a mão e levantou os braços.
Sorriu a cada um de nós e disse:
– É um prazer conhecer-vos a todos.
Nessa noite, David insistiu em levar-nos a todos a jantar fora. Era uma
quinta-feira, e a temperatura ainda estava amena. Passei bastante tempo a
aprimorar a minha aparência, não apenas da maneira como habitualmente o
fazia, para garantir que as minhas roupas estavam limpas, a risca do cabelo
bem feita e os punhos direitos, mas com snobismo. Para mim, o rapaz,
Phineas, era fascinante, não só por causa da sua grande beleza, mas também
pelo seu modo de vestir. Além dos calções azuis casuais, vestia um polo
vermelho com riscas brancas na gola, umas sapatilhas Adidas de um branco
brilhante e meias brancas pelos tornozelos. Nessa noite, revirei o meu
guarda-roupa em busca de algo igualmente descontraído. Todas as minhas
meias chegavam à barriga das pernas; só a minha irmã usava meias pelo
tornozelo. Todos os meus calções eram feitos de lã e todas as minhas
camisolas tinham botões. Por um momento até pensei usar o meu antigo
conjunto de educação física, mas rapidamente pus a ideia de lado quando
percebi que ainda estava metido no respetivo saco, desde a última aula.
Acabei por optar por uma T-shirt azul lisa, calças de ganga e sapatilhas.
Tentei fazer com que uma madeixa de cabelo me caísse sobre a testa, como
acontecia com Phineas, mas ela recusou-se, teimosamente, a sair do lugar.
Antes de sair do quarto, olhei para mim mesmo durante vinte segundos,
odiando o horror da minha cara estúpida, a simplicidade da minha T-shirt, o
corte triste das minhas calças de ganga John Lewis para rapazes. Fiz um som
estrangulado, dei um pontapé na parede e desci as escadas.
Phin estava ali, no corredor, sentado num dos dois enormes cadeirões de
madeira de cada um dos lados das escadas, a ler um livro. Por um momento,
olhei para ele através da balaustrada, antes de fazer a minha entrada. Ele era,
realmente, a coisa mais linda que eu já tinha visto na vida. Senti-me corar,
enquanto absorvia as linhas do seu rosto: o contorno delicado de uma boca
que parecia ter sido moldada com o barro mais macio e mais vermelho,
como se a ponta de um dedo pudesse deixar nela uma marca. A sua pele
assemelhava-se a uma camurça estendida sobre as maçãs do rosto que quase
parecia poderem rasgá-la. Tinha até uma emocionante sugestão de um
bigode.
Ele atirou de novo a franja para o lado e olhou para cima, para mim,
desinteressadamente, enquanto eu descia, baixando de imediato os olhos
para o seu livro. Queria perguntar-lhe o que estava a ler, mas não o fiz.
Sentia-me estranho, sem saber o que fazer ou onde ficar. Mas os outros
apareceram logo a seguir. Primeiro os meus pais, a seguir a rapariga
chamada Clemency, que estava com a minha irmã, as duas conversando já
entre si com facilidade, depois Sally, seguida de Justin e Birdie e, por fim,
virtualmente envolto num círculo de luz no cimo da escada, David
Thomsen.
Chelsea, 1988
Devo dizer que fiquei devastado com a presença dos Thomsens. Por um
lado, eles estavam a atravancar a minha casa. Não com objetos propriamente
ditos, mas com eles mesmos, as suas formas humanas, os seus sons, os seus
cheiros, a sua alteridade. A minha irmã e Clemency tinham-se juntado
numa espécie de união profana mais barulhenta ainda. Corriam pela casa
desde manhã até à hora de ir dormir, envolvidas em estranhos jogos de faz-
de-conta que pareciam implicar fazer o máximo barulho possível. Além
disso, Birdie andava a ensinar as duas a tocar violino, o que era
absolutamente insuportável.
E depois, está claro, havia David Thomsen, cuja presença carismática parecia
permear cada recanto da nossa casa. Além do seu quarto no andar de cima,
ele também se apropriara, de alguma forma, da nossa sala da frente, onde
estava instalado o bar do meu pai, como uma espécie de espaço de exercício,
onde uma vez o observei, através de uma fresta na porta, a tentar levantar
todo o corpo do chão usando apenas as pontas dos dedos.
E no outro extremo de tudo aquilo estava Phin. Phin, que se recusava até a
olhar para mim, quanto mais falar. Phin, que se comportava como se eu não
estivesse ali. E quanto mais ele agia como se eu não estivesse ali, mais eu me
sentia capaz de morrer por ele se recusar a olhar para mim.
E então, finalmente, naquele dia, aconteceu. Eu saíra da cozinha depois de
ter ficado estabelecido que Sally e David iriam ficar e quase esbarrei com ele,
que vinha do outro lado. Vestia uma sweatshirt desbotada com letras e calças
de ganga com rasgões nos joelhos. Parou quando me viu e, pela primeira
vez, os seus olhos encontraram os meus. Sustive a respiração. Procurei entre
os meus pensamentos emaranhados algo para dizer, mas não encontrei
nada. Movi-me para a esquerda; ele moveu-se para o seu lado direito. Pedi
desculpa e fui para a minha direita. Achei que ele iria seguir em frente, em
silêncio, mas nesse momento ele disse:
– Sabes que estamos aqui para ficar, não sabes?
– Desculpa?
– Podes ignorar qualquer coisa que os meus pais digam em relação a mudar.
Não vamos para mais lado nenhum. Ficámos naquela casa, na Bretanha,
durante dois anos, sabes? – prosseguiu. – Era suposto termos ficado apenas
durante um feriado. – Fez uma pausa e ergueu uma sobrancelha.
Eu deveria, sem dúvida, responder de alguma maneira, mas estava
estupefacto. Nunca tinha estado tão perto de alguém assim tão bonito. E o
seu hálito cheirava a hortelã.
Ele olhou para mim e eu vi uma sombra de desilusão passar pelo seu rosto,
ou talvez não fosse sequer desilusão, mas antes resignação, como se eu
estivesse simplesmente a confirmar o que ele já desconfiava em relação a
mim, que eu era aborrecido e sem interesse, e portanto não merecia a sua
atenção.
– Porque é que não têm a vossa própria casa? – perguntei, por fim.
Ele encolheu os ombros.
– Porque o meu pai está demasiado apertado para conseguir pagar uma
renda.
– Nunca tiveram a vossa própria casa?
– Sim. Uma vez. Ele vendeu-a para que pudéssemos viajar.
– Então e a escola?
– O que é que tem?
– Quando é que vais à escola?
– Não vou à escola desde os seis anos. A minha mãe ensina-me.
– Uau – disse eu. – Então e amigos?
Olhou-me com uma expressão de desconfiança.
– Não sentes falta de ter amigos?
Estreitou os olhos.
– Não – respondeu, simplesmente. – Nem um bocadinho.
Parecia estar prestes a afastar-se. Eu não queria que ele fosse embora. Queria
sentir o seu hálito a hortelã e saber mais sobre ele. Os meus olhos pousaram
sobre o livro que ele tinha nas mãos.
– O que estás a ler? – perguntei.
Ele baixou os olhos e virou o livro para cima. Chamava-se The Dice Man, de
Luke Rhinehart, um romance do qual eu não ouvira falar, mas que desde
então li para aí umas trinta vezes.
– É bom?
– Todos os livros são bons – respondeu.
– Isso não é verdade – retorqui. – Já li livros mesmo muito maus. – Estava a
pensar concretamente no livro Anne das Empenas Verdes, que fomos
forçados a ler no último período e que era o livro mais estúpido e irritante
que já tinha lido.
– Não eram livros maus – retrucou Phin, pacientemente. – Eram livros de
que não gostaste. Não é, de modo algum, a mesma coisa. Os únicos livros
maus são aqueles que estão tão mal escritos que ninguém os publica.
Qualquer livro publicado será um «bom livro» para alguém.
Acenei com a cabeça. Não podia refutar a sua lógica.
– Estou quase a acabar – disse ele, olhando para o livro. – Podes lê-lo a
seguir, se quiseres.
Anuí mais uma vez.
– Está bem. Obrigado.
Ele seguiu caminho, mas eu fiquei onde estava, a sentir a minha cabeça a
latejar, as palmas das mãos húmidas, o coração cheio de algo extraordinário
e novo.
18
Miller Roe levanta-se assim que Libby se aproxima. Ela reconhece-o pela sua
fotografia na Internet, embora ele tenha deixado crescer a barba e também
tenha ganho algum peso. Está a meio de uma sanduíche já um pouco
desconjuntada e tem um bocado de molho amarelo na barba. Limpa os
dedos num guardanapo antes de pegar na mão de Libby para a
cumprimentar.
– Libby, uau, é um prazer conhecê-la! – Tem um sotaque londrino e os olhos
azuis-escuros. A mão dele em volta da dela é enorme. – Aqui, por favor,
sente-se. O que posso trazer-lhe? As sanduíches são excelentes.
Ela deita uma olhadela à sua sanduíche amassada e diz:
– Acabei de tomar o pequeno-almoço.
– Chá, café?
– Um cappuccino seria bom. Obrigada.
Observa-o ao balcão daquele café da moda em West End Lane, onde ele
sugeriu que se encontrassem, como um ponto intermédio entre St. Albans e
South Norwood. Tem vestidas umas calças de ganga de cintura baixa e uma
T-shirt desbotada, um casaco verde de algodão e botas de caminhada. Tem
uma grande barriga e uma cabeça também grande e coroada por espesso
cabelo castanho-escuro. É impressionante olhar para ele, com o seu ar um
pouco ursino, mas nada desagradável.
Ele traz o cappuccino e pousa-o na frente dela.
– Fico-lhe muito grato por ter vindo ter comigo. A sua viagem foi boa? –
pergunta, empurrando a sanduíche para o lado, como se não tivesse
intenção de comer mais.
– Sem problema – responde ela. – Quinze minutos e é direto.
– De St. Albans, certo?
– Sim.
– É um sítio agradável.
– Sim – concorda ela. – Eu gosto.
– Então – diz ele, olhando-a com atenção –, é a bebé.
– Parece que sim – ri, nervosamente.
– E herdou aquela casa?
– Sim.
– Uau. Que grande mudança.
– Enorme – concorda Libby.
– Já a viu?
– A casa?
– Sim.
– Sim, umas duas vezes.
– Meu Deus. – Ele deixa-se cair na cadeira. – Esforcei-me tanto para que me
deixassem entrar na casa. Quase ofereci o meu primogénito ao fulano da
firma de advogados. Uma noite ainda tentei assaltar a casa.
– Então nunca a viu?
– Não. Infelizmente não – ri com ironia. – Espreitei pelas janelas. E tentei
convencer os vizinhos das traseiras para que me deixassem olhar pelas suas
janelas. Mas nunca consegui entrar na casa. Que tal é?
– Escura – responde ela. – Tem imensos painéis de madeira. É esquisita.
– Presumo que vá vendê-la?
– Sim, vou. Mas… – Passa as pontas dos dedos pela borda da sua chávena
enquanto prepara as próximas palavras. – Primeiro quero saber o que ali
aconteceu.
Miller Roe faz uma espécie de rosnado e esfrega a barba com a mão,
desalojando a partícula de molho amarelo.
– Meu Deus, queremos ambos. Aquele artigo tirou-me dois anos de vida,
dois anos obcecados, insanos e lixados da minha vida. Destruí o meu
casamento e ainda não encontrei as respostas que procurava. Nem sequer
cheguei perto.
Ele sorri-lhe. Ela acha que ele tem um rosto agradável. Tenta adivinhar a sua
idade, mas não consegue. Pode ter qualquer idade entre os vinte e cinco e os
quarenta anos.
Ela procura na sua mala e tira as chaves de Cheyne Walk, pousando-as sobre
a mesa, à sua frente.
O olhar dele cai sobre elas e Libby apercebe-se de um brilho de ansiedade
nos seus olhos. Ele estende a mão.
– Oh, meu Deus. Posso?
– Claro – diz ela. – À vontade.
Ele olha para cada uma das chaves à vez, acaricia-as.
– A chave de um Jaguar? – pergunta, olhando para ela.
– Pelos vistos.
– Sabe, quando era jovem, Henry Lamb, o seu pai, era um pouco impetuoso
e convencido. Costumava escapulir-se para ir caçar aos fins de semana, e nas
noites de escola ia divertir-se para o Annabel’s.
– Eu sei – responde ela, entusiasmada. – Eu li o seu artigo.
– Pois, claro que leu – diz ele.
Faz-se um breve silêncio. Miller pega num bocado da sanduíche e mete-o na
boca. Libby bebe um gole do cappuccino.
– Então, e agora? – pergunta ele.
– Quero encontrar os meus irmãos – responde ela.
– Eles nunca tentaram entrar em contacto consigo?
– Não. Nunca. Qual é a sua teoria?
– Tenho milhões de teorias. Mas a grande questão é: eles sabem que a casa
lhe iria ser entregue? E, em caso afirmativo, sabem que tomou posse dela
agora?
– Não sei – Libby suspira. – O advogado disse que o trust foi estabelecido
anos antes, quando o meu irmão nasceu. A casa iria para ele quando fizesse
vinte e cinco anos. Porém, nunca veio reivindicá-la. A seguir, para a nossa
irmã, mas ela também nunca a reivindicou… e claro que os advogados não
tinham meio de entrar em contacto com qualquer um deles. Mas sim, acho
que há uma hipótese de eles saberem que acabaria por vir para mim.
Partindo do princípio que… – Ia dizer que ainda estão vivos, mas deteve-se.
– E o fulano – prosseguiu –, o homem que morreu com os meus pais. No
artigo dizia que seguiu uma série de pistas que não levaram a lado nenhum.
Nunca conseguiu descobrir quem era?
– Não. Foi muito frustrante, mas não. – Miller coçou a barba. – Apesar de
ter surgido um nome. Tive de desistir da minha busca. Mas é algo que me
incomoda desde então. David Thomsen.
Libby lança-lhe um olhar interrogativo.
– Havia iniciais na nota de suicídio, lembra-se? ML, HL, DT. Por isso pedi à
polícia os nomes de pessoas desaparecidas com as iniciais DT. David
Thomsen foi um dos trinta e oito nomes que eles desenterraram. Trinta e
oito pessoas desaparecidas com as iniciais DT. Dez na mesma presumida
faixa etária. E um a um, eliminei-os a todos.
»Mas este, em particular, fascinou-me. Não sei porquê. Havia algo na sua
história que parecia fazer sentido. Um tipo de quarenta e dois anos de
Hampshire. Uma educação normal. Porém, desde que regressou ao Reino
Unido vindo de França, em 1988, com a mulher, chamada Sally, e dois filhos,
Phineas e Clemency, não se encontrou mais nenhum registo dele. Vieram de
ferry de Saint-Malo para Portsmouth, em… – Folheia um livro de notas por
um instante – … setembro de 1988. E a partir daí não há, literalmente,
qualquer vestígio de algum deles: não há registos médicos, não há impostos,
não há registos escolares, idas ao hospital, nada. As suas famílias
descreveram-nos como «solitários»; havia desacordos e ressentimentos, uma
enorme desavença por causa de alguma questão de herança. Por isso,
ninguém se perguntou onde estariam. Durante anos e anos. Até que a mãe
de David Thomsen, ao chegar ao fim da vida, decide que quer uma
reconciliação no seu leito de morte e declara o filho e a sua família como
pessoas desaparecidas. A polícia conduz algumas buscas superficiais, não
encontra vestígios de David ou da sua família; entretanto, a mãe de David
morre e mais ninguém faz perguntas sobre o casal. Até eu ter surgido, há
três anos – Miller suspira. – Esforcei-me tanto para encontrá-los. Phineas.
Clemency. Nomes invulgares. Se andassem por aí, teria sido relativamente
fácil descobri-los. Mas nada. Nem o mínimo vestígio. E eu precisava de
concluir o artigo, precisava que mo pagassem, e por isso tive de desistir –
abana a cabeça. – Percebe agora? Percebe porque é que levou dois anos, por
que razão quase me matou? O motivo para a minha mulher me ter deixado?
Esta investigação tinha-me transformado num autêntico zombie. Só falava e
só pensava nisso.
Suspira e passa os dedos pelo conjunto de chaves.
– Mas sim. Vamos fazê-lo. Vamos descobrir o que aconteceu a todas essas
pessoas. Descobrir o que lhe aconteceu a si.
Ele estende-lhe a mão para que ela a aperte.
– Vamos a isso, Serenity Lamb?
– Sim – diz Libby, apertando-lhe a mão. – Vamos a isso.
Chelsea, 1989
Passaram-se meses e meses. Phineas fez treze anos e ficou com uma enorme
maçã de Adão e um pequeno bigode louro. Eu cresci cerca de dois
centímetros e meio e finalmente o meu cabelo ficou suficientemente
comprido para poder ficar caído como o dele. A minha irmã e Clemency
iam ficando cada vez mais insanamente ligadas, partilhando uma linguagem
secreta e passando horas numa toca feita com lençóis e cadeiras viradas para
cima no quarto vazio no piso do sótão. A banda de Birdie lançou um single
horrível que chegou ao número 48 nas tabelas e, num acesso de raiva, ela
deixou o grupo, mas ninguém na imprensa musical pareceu importar-se ou
sequer reparar e ela começou a ensinar violino profissionalmente na sala de
música.
Entretanto, Justin transformou o jardim do meu pai numa empresa
comercial, vendendo os seus remédios à base de ervas através de anúncios
classificados nas últimas páginas dos jornais, Sally dava-nos aulas a todos,
durante quatro horas por dia, em volta da mesa da cozinha, e David dava
três aulas semanais das suas terapias alternativas num salão da igreja, no
World’s End, e voltava para casa com os bolsos cheios de dinheiro.
Phin estava absolutamente certo na previsão que fizera tantos meses antes.
Os Thomsen não iam para mais lugar nenhum.
Recordo esses anos na casa de Cheyne Walk com os Thomsens e vejo com
precisão os momentos de viragem, os pontos sobre os quais o destino deu
uma reviravolta e seguiu outra direção, em que o enredo se distorceu tão
horrivelmente. Recordo-me do jantar no Chelsea Kitchen e de ver o meu pai
a perder uma luta pelo poder, luta essa que já tinha começado, embora ele
estivesse demasiado fraco para o perceber. E lembro-me da minha mãe a
evitar David, recusando-se a brilhar, por medo de que ele a desejasse.
Recordo-me de quando tudo começou, mas não faço ideia de como
passámos dessa noite até ao ponto a que chegámos, nove meses depois,
quando estranhos tinham tomado conta de cada canto da nossa casa e os
meus pais permitiram.
O meu pai simulava interesse pelo que se ia passando. Deambulava pelo
jardim com Justin, fingindo ficar fascinado com as suas fileiras de ervas e
plantas. Todas as noites, às dezanove horas, deitava dois dedos de uísque em
dois grandes copos e sentava-se com David à mesa da cozinha, onde tinham
conversas tensas sobre política e assuntos mundiais, com os olhos
ligeiramente esbugalhados pelo esforço de tentar parecer que fazia ideia do
que estavam a falar. (Todas as opiniões do meu pai eram pretas ou brancas;
as coisas eram certas ou erradas, boas ou más. Na sua perspetiva do mundo,
não havia nuances. Era embaraçoso.) Por vezes, sentava-se junto a nós
durante as aulas na cozinha e mostrava-se extremamente impressionado
com a inteligência de todos. Eu não percebia o que lhe tinha acontecido. Era
como se Henry Lamb tivesse saído de casa, mas deixado ficar o corpo.
Eu queria desesperadamente falar com ele sobre tudo o que estava a
acontecer, a reviravolta do meu mundo, mas receava que fosse como
arrancar-lhe uma crosta do que ainda lhe restava do seu valor enquanto
pessoa. Parecia tão vulnerável, tão frágil. No início do verão, vi-o à hora do
almoço a segurar o seu boné de mohair e o casaco, enquanto verificava o
conteúdo da carteira, junto à porta da frente. Tínhamos terminado as aulas
do dia e eu sentia-me aborrecido.
– Aonde vais? – perguntei.
– Ao meu clube – respondeu.
Ah, o clube dele. Uma série de salas cheias de fumo numa rua secundária
junto a Piccadilly. Eu tinha lá ido uma vez, quando a minha mãe estava fora
e a nossa babysitter não dera sinais de vida. Em vez de ficar preso em casa, a
ter de entreter duas crianças pequenas e chatas, enfiara-nos no banco
traseiro de um táxi preto e levara-nos até ao seu clube. Lucy e eu ficámos
sentados a um canto com copos de limonada e amendoins, enquanto o meu
pai se sentava a fumar charutos e a beber uísque com homens que eu nunca
tinha visto antes. Eu tinha ficado encantado com aquilo, desejara nunca
mais sair dali e rezara para que as nossas babysitters nunca mais
aparecessem.
– Posso ir?
Ele olhou para mim sem expressão, como se lhe tivesse feito uma pergunta
difícil de matemática.
– Por favor, eu fico sossegado. Não falo.
Ele olhou de relance para o cimo das escadas, como se a solução para o seu
enigma pudesse estar prestes a aparecer no patamar.
– Acabaste a escola?
– Sim.
– Está bem.
Esperou, enquanto eu vestia o casaco. A seguir, fomos para a rua e ele
mandou parar um táxi.
Não encontrou ninguém conhecido no clube, e enquanto esperávamos que
nos trouxessem as bebidas, olhou para mim e perguntou:
– Então, como estás?
– Confuso – respondi.
– Confuso?
– Sim. Por causa do modo como as nossas vidas estão a correr. – Sustive a
respiração. Aquele era exatamente o tipo de abordagem insolente que no
passado teria levado o meu pai a fazer uma careta, voltando o olhar para a
minha mãe e perguntando-lhe sombriamente se ela achava que aquele tipo
de comportamento era aceitável, se era esse o tipo de filhos que estavam a
criar.
Mas ele olhou para mim com olhos azuis lacrimejantes e disse
simplesmente:
– Sim.
O seu olhar afastou-se de imediato do meu.
– Também estás confuso?
– Não, filho, não. Eu não estou confuso. Sei exatamente o que se passa.
Não percebi se ele queria dizer que sabia o que estava a acontecer e que
tinha tudo sob controlo, ou que sabia o que estava a acontecer, mas não
podia fazer nada para o evitar.
– E então… o que se passa? – perguntei. – O que se passa?
As nossas bebidas chegaram: uma limonada sobre uma base de papel branco
para mim e uísque e água para o meu pai. Ele não tinha respondido à minha
pergunta e pensei que decerto não o faria. Porém, ele suspirou e disse:
– Filho, há momentos na vida em que chegamos a uma encruzilhada. Eu e a
tua mãe chegámos a uma bifurcação na estrada. Ela queria ir para um lado,
eu queria ir para o outro. Ela ganhou.
Ergui uma sobrancelha.
– Queres dizer que a mamã quer todas aquelas pessoas lá em casa? Ela quer
mesmo que eles fiquem?
– Quer? – perguntou num tom severo, como se a minha pergunta fosse de
alguma forma ridícula quando, claramente, não era.
– Ela quer morar com todas aquelas pessoas?
– Meu Deus, eu não sei. Já não sei o que ela quer. E ouve o meu conselho.
Nunca cases com uma mulher. Podem ter boa aparência, mas irão destruir-
te.
Nada daquilo fazia sentido. O que é que casar com uma mulher – o que eu
não tinha a mínima intenção de alguma vez vir a fazer, mas também era algo
ao que não me parecia haver outra opção; se não casasse com uma mulher,
com quem casaria? – tinha a ver com as pessoas que viviam no andar de
cima?
Olhei para ele, desejando que dissesse algo que fosse claro e esclarecedor.
Mas o meu pai não tinha inteligência emocional nem, na verdade, o seu
vocabulário era claro ou esclarecedor desde o AVC. Tirou um charuto do
bolso do casaco e passou algum tempo a prepará-lo para ser fumado.
– Então, não gostas muito deles? – perguntou, finalmente.
– Não – respondi. – Não gosto. Eles nunca mais vão embora?
– Bem, se fosse por mim…
– Mas é a tua casa. Claro que tens tudo que ver com isso.
Recuperei o fôlego, preocupado com a possibilidade de ter ido demasiado
longe.
Porém, ele limitou-se a suspirar.
– Seria de pensar que sim, não é verdade?
A sua obtusidade estava a dar cabo de mim. Tinha vontade de gritar.
– Não podes, simplesmente, dizer-lhes para irem embora? – perguntei. –
Diz-lhes que queremos a nossa casa de volta. Que queremos voltar a ir à
escola. Que não os queremos mais aqui.
– Não – replicou o meu pai. – Não. Não posso.
– Mas porquê?
A minha voz subira uma oitava e vi o meu pai recuar.
– Já te disse – disparou. – É a tua mãe. Ela precisa deles. Precisa dele.
– Ele? – perguntei. – David?
– Sim. David. Aparentemente, ele fá-la sentir-se melhor em relação à sua
vida inútil. Aparentemente, ele dá um «sentido» à sua vida. Agora –
resmungou, abrindo o jornal –, disseste que não irias falar. E se mantivesses
a tua palavra?
21
Chelsea, 1990
Numa tarde de verão de 1990, quando eu tinha acabado de fazer treze anos,
encontrei a minha mãe no patamar. Estava a pôr pilhas de roupa de cama
limpa no armário aberto. Anteriormente, a nossa roupa era recolhida uma
vez por semana por uma pequena carrinha com letras douradas pintadas na
lateral, que alguns dias depois a entregava em embrulhos imaculados atados
com uma fita, ou pendurados em cabides de madeira sob invólucros de
plástico.
– O que aconteceu com o serviço de lavandaria? – perguntei.
– Qual serviço de lavandaria?
O seu cabelo estava muito comprido. Tanto quanto me tinha apercebido, ela
já não o cortava desde que as outras pessoas tinham passado a viver
connosco, dois anos antes. Birdie usava o cabelo comprido, bem como Sally.
A minha mãe costumava usar o cabelo num puxo. Agora já lhe passava dos
ombros e tinha uma risca ao meio. Questionei-me se ela estaria a tentar ser
como as outras mulheres, da mesma forma que eu estava a tentar ser como
Phin.
– Não te lembras? Daquele velhote que vinha na carrinha branca recolher as
nossas roupas, que era tão pequeno que tu ficavas preocupada que ele não
fosse capaz de carregar tudo aquilo?
O olhar da minha mãe desviou-se lentamente para a esquerda, como se
estivesse a recordar-se de um sonho, e ela disse:
– Ah, sim. Tinha-me esquecido dele.
– Como é que ele já não vem?
Ela esfregou as pontas dos dedos e eu olhei para ela, alarmado. Eu sabia o
que esse gesto significava, e era algo de que já suspeitava há muito tempo,
mas foi a primeira vez que mo confirmaram. Estávamos pobres.
– Mas o que aconteceu a todo o dinheiro do pai?
– Chiiu.
– Mas não compreendo.
– Chiiu – repetiu ela. E então puxou-me com delicadeza pelo braço até ao
seu quarto e fez-me sentar em cima da cama. Segurou-me uma mão entre as
dela e olhou-me fixamente. Reparei que não estava a usar qualquer
maquilhagem nos olhos e perguntei-me quando teria deixado de o fazer.
Tantas coisas tinham mudado tão lentamente durante um período de tempo
tão longo, que por vezes era difícil determinar o ponto em que algo se
modificara.
– Tens de prometer, prometer mesmo, que não falas disto a mais ninguém –
disse. – Nem à tua irmã. Nem às outras crianças. Nem aos adultos. A
ninguém, está bem?
Assenti com veemência.
– Só te estou a contar porque confio em ti. Porque és sensível. Portanto, não
me deixes ficar mal, OK?
Assenti ainda com mais veemência.
– O dinheiro do pai esgotou-se há já muito tempo.
Engoli em seco.
– O quê, todo?
– Praticamente.
– Então como é que vivemos?
– O pai tem andado a vender ações e quotas. Ainda temos umas contas
poupança. Se conseguirmos viver com trinta libras por semana,
aguentaremos pelo menos mais um par de anos.
– Trinta libras por semana? – Arregalei os olhos. A minha mãe costumava
gastar trinta libras por semana só em flores frescas. – Mas isso é impossível!
– Não é. David sentou-se connosco e arranjou uma solução.
– David? Mas o que percebe ele de dinheiro? Ele nem sequer tem uma casa!
– Chiu – pôs um dedo nos lábios e olhou, cautelosa, para a porta do quarto.
– Vais ter de confiar em nós, Henry. Nós somos os adultos e tu tens de
confiar em nós. Birdie ganha dinheiro com as aulas de violino. O David
ganha dinheiro com as aulas de exercícios. E Justin está a ganhar imenso
dinheiro.
– Está bem, mas não estão a dar-nos nenhum desse dinheiro, pois não?
– Bem, sim. Todos contribuem. Estamos a fazer com que tudo funcione.
E foi nesse momento que a verdade me atingiu. Pura e dura.
– Isto agora é uma comuna? – perguntei, horrorizado.
A minha mãe riu-se, como se fosse uma ideia totalmente descabida.
– Não! – respondeu. – Claro que não!
– O pai não pode simplesmente vender a casa? – perguntei. – Podíamos ir
morar para um pequeno apartamento em algum lugar. Seria muito bom. E
assim já teríamos muito dinheiro.
– Mas não se trata apenas de dinheiro, percebes isso, não percebes?
– E então? – perguntei. – De que se trata?
Ela suspirou, baixinho, e massajou a minha mão com os polegares.
– Bem, suponho que tem que ver comigo. Sobre o modo como me sinto em
relação a mim mesma, a tristeza que sinto há tanto tempo e como tudo isto
– fez um gesto em volta do grande quarto, com as suas cortinas esvoaçantes
e o lustre brilhante – não me deixa feliz, nada mesmo. E então David chegou
e mostrou-me outra forma de viver, menos egoísta. Temos demasiado,
Henry. Consegues ver isso? Demasiado e, quando isso acontece, arrasta-nos
para baixo. E agora que o dinheiro praticamente acabou, é um bom
momento para mudar, para pensar naquilo que comemos, no que vestimos,
no que gastamos e de que modo preenchemos os nossos dias. Temos de dar
alguma coisa ao mundo e não estar constantemente a retirar coisas dele.
Sabes, David… – quando ela pronunciou o nome dele, a sua voz soou como
uma colher contra um copo de vinho –, ele dá quase todo o seu dinheiro
para a caridade. E agora, sob a sua orientação, estamos a fazer o mesmo. Dar
aos necessitados é muito bom para a alma. E a vida que levávamos antes era
um verdadeiro desperdício. Estava tudo tão errado. Estás a perceber? Mas
agora, com o David aqui para nos guiar, podemos começar a restabelecer o
equilíbrio.
Dei a mim mesmo um momento para absorver todo o significado do que
fora dito.
– Então, eles vão ficar – acabei por dizer. – Para sempre?
– Sim – respondeu, com um pequeno sorriso. – Sim. Espero que sim.
– E somos pobres?
– Não. Não somos pobres, querido. Estamos aliviados. Estamos livres.
24
As fezes do Fitz ainda ali estão. Têm em cima o dobro das moscas varejeiras.
Acha essa imagem estranhamente reconfortante.
Michael abre a porta. Tem os óculos de sol na cabeça e veste uns calções
largos e uma T-shirt branca brilhante. Ele pega-lhe no saco com compras, os
tomates, o pão e as anchovas que ela comprou pelo caminho, e aproxima-se
para lhe dar um beijo em ambas as faces.
Lucy consegue sentir o cheiro a cerveja no seu hálito.
– Estás mesmo bonita – diz ele. – Uau. Entra, entra.
Segue-o até à cozinha. Sobre o balcão estão dois bifes em cima de um papel,
e uma garrafa de vinho num balde de gelo prateado. Está a ouvir Ed Sheeran
no seu sistema de som Sonos e parece muito animado.
– Deixa-me preparar-te uma bebida – diz ele. – O que queres? Gin tónico?
Bloody Mary? Vinho? Cerveja?
– Pode ser uma cerveja, obrigada.
Ele entrega-lhe uma Peroni e ela bebe um gole. Lucy apercebe-se de que
deveria ter tomado um bom pequeno-almoço, já que sente esse primeiro
gole a subir-lhe diretamente à cabeça.
– Saúde – brinda ele, encostando a sua garrafa à dela.
– Saúde – repete ela. No balcão há uma tigela com as suas batatas fritas
favoritas e ela pega num grande punhado. Precisa de estar suficientemente
sóbria para manter o controlo, mas suficientemente bêbada para levar a cabo
o que foi ali fazer.
– Então… – Tira uma tábua de cortar de uma das gavetas, uma faca de outra
e pega nos tomates que estão no saco de compras. – Como está a correr a
escrita?
– Meu Deus, nem perguntes – responde ele, revirando os olhos. – Digamos
apenas que não foi uma semana muito produtiva.
– Acho que isso acontece muito, não é? É uma questão psicológica.
– Hmm – diz, passando-lhe um prato. – Por um lado. Por outro lado, todos
os bons escritores conseguem avançar. É como decidir não ir correr, porque
está a chover. É apenas uma desculpa. Portanto, tenho de me esforçar mais –
sorri e, por um instante, parece quase humilde, quase real, e por um
momento ela acha que talvez hoje as coisas não corram como ela pensou
que iriam correr, que talvez almocem apenas e conversem e a seguir ele lhe
dê os passaportes e a deixe ir com um simples abraço junto à porta.
– Parece-me bem – comenta ela, sentindo a faca superafiada de Michael a
deslizar pelos tomates macios como se fossem manteiga. – Acho que é um
trabalho como outro qualquer. Tens de avançar e acabar o que começaste.
– Exatamente – concorda ele. – Exatamente. – Acaba de beber a segunda
metade da cerveja e deita a garrafa vazia no caixote de reciclagem. Tira outra
do frigorífico e estende também uma a Lucy. Ela abana a cabeça e mostra-
lhe a sua garrafa, ainda quase cheia.
– Bebe – diz ele. – Tenho ali um Sancerre maravilhoso a refrescar para ti. O
teu favorito.
– Desculpa – diz ela, levando a garrafa aos lábios. – Já não bebo há muito
tempo.
– Não?
– Não intencionalmente – explica. – Só porque não tenho dinheiro para isso.
– Bem, vamos chamar-lhe «Operação Tirar Lucy da Abstinência». Que tal?
Vá lá. Bebe.
E ali está, aquele ponto, tão perto do amigável, mas apenas a um pequeno
passo da agressão. Não é um pedido despreocupado, mas uma ordem. Ela
sorri e bebe metade da garrafa.
Ele observa-a com atenção.
– Linda menina – elogia –, linda menina. Agora o resto.
Ela sorri sombriamente e engole a cerveja restante, quase se engasgando
com o líquido a descer tão depressa.
Ele sorri, como um tubarão.
– Oh, linda menina. Linda menina.
Tira-lhe a garrafa vazia e depois volta-se para tirar dois copos de vinho de
um armário.
– Vamos? – pergunta, fazendo um gesto em direção à porta que dá para o
jardim.
– Deixa-me só acabar isto – pede Lucy, apontando para os tomates, apenas
meio cortados.
– Acabas isso depois – ordena. – Vamos primeiro tomar um copo.
Ela segue-o até ao pátio, segurando a tigela de batatas fritas e a sua mala.
Ele serve dois copos grandes de vinho e empurra um sobre a mesa, na
direção dela. Brindam de novo e, então, ele prende-lhe o olhar.
– Então, Lucy Lou, vá, conta-me tudo. O que tens feito nos últimos dez
anos?
– Ah! – exclama ela, num tom um pouco estridente. – Por onde queres que
comece?
– Que tal começares pelo homem que te deu uma filha?
O estômago de Lucy dá uma reviravolta. Desde o momento em que Michael
pusera os olhos em Stella que sabia que ele iria ficar a pensar no facto de ela
ter sexo com outro homem.
– Oh, não há grande coisa para contar. Foi um desastre. Mas tenho Stella.
Sabes como é.
Ele inclina-se na sua direção, fixando-a com os seus olhos castanhos. Sorri,
mas o sorriso não lhe chega aos olhos.
– Não, na verdade não sei. Quem era? Onde o conheceste?
Ela pensa nos passaportes, que estarão em algum lugar daquela casa. Não se
pode dar ao luxo de o enfurecer. Não lhe pode dizer que o pai de Stella era o
amor da sua vida, o homem mais lindo que já tinha visto, que era um
pianista extraordinário, cuja música a levava às lágrimas, que ele lhe partira
o coração e que ela continuava a carregar consigo os pedaços partidos,
mesmo agora, três anos desde a última vez que o vira.
– Ele era um idiota – responde. Faz uma pausa e bebe um longo trago de
vinho. – Apenas um rapaz bonito, um criminoso, sem nada entre as orelhas.
Tive pena dele. Ele não me merecia e, acima de tudo, não merecia Stella –
fala com convicção, porque enquanto olha Michael diretamente nos olhos,
ele não imagina sequer que ela o está a descrever.
Essa descrição parece saciar Michael por um momento. O seu sorriso
suaviza-se e ele parece novamente sincero.
– E onde está agora, esse idiota?
– Fugiu. Voltou para a Argélia. Despedaçou o coração da mãe. E ela culpa-
me – encolhe os ombros. – Mas, de qualquer maneira, ele iria sempre
desiludi-la. Iria sempre desiludir todos. Era esse género de pessoa.
Ele volta a inclinar-se para ela.
– Amava-lo?
Ela sopra, sarcástica.
– Meu Deus – exclama, pensando apenas em Michael. – Não.
Ele assente com a cabeça, como se estivesse a dar a sua aprovação.
– E houve mais alguém? Ao longo dos anos?
Ela abana a cabeça. É outra mentira, mas esta mais fácil de contar.
– Não – responde. – Ninguém. Limito-me a sobreviver com duas crianças
pequenas. Sabes, mesmo que eu tivesse conhecido alguém, nunca teria
funcionado. Do ponto de vista logístico. – Volta a encolher os ombros.
– Sim, estou a ver. Sabes, Lucy – olha para ela, sério –, eu teria ajudado
sempre que me pedisses. Só tinhas de pedir.
Ela abana a cabeça, triste.
– Pois. Eu sei. Demasiado orgulhosa.
Está tão longe da verdade que chega a ser engraçado, mas ela acena com a
cabeça, conscientemente.
– Conheces-me tão bem – diz, e ele ri-se.
– Em muitos aspetos, éramos a pior, a pior combinação de pessoas possível.
Jesus, lembras-te do que fazíamos? Éramos loucos! Mas, em outros aspetos,
éramos absolutamente incríveis, não é verdade?
Lucy obriga-se a sorrir e aquiesce, em sinal de concordância, mas não
consegue forçar-se a dizer «sim».
– Talvez nos devêssemos ter esforçado mais – diz ele, enchendo o seu copo e
depois o de Lucy, ainda que ela apenas tivesse bebido uns dois goles.
– Por vezes, a vida simplesmente acontece – diz, sem qualquer sentido.
– É bem verdade, Lucy – concorda, como se ela tivesse dito algo muito
profundo. Dá um grande gole no vinho e pede: – Conta-me tudo sobre o
meu filho. É inteligente? É desportista?
É gentil? pergunta ela, silenciosamente. É bom? Cuida bem da irmãzinha?
Faz-me manter os pés no chão? Cheira bem? Sabe cantar? Faz belos retratos de
pessoas? Merece melhor do que uma pessoa como eu e do que a vida de merda
que lhe proporcionei?
– É bastante inteligente – responde. – É médio a matemática e ciências, e
excelente em línguas, artes, inglês. E não, não é do tipo desportivo.
Absolutamente nada.
Olha para ele com firmeza, procurando uma sombra de deceção no seu
olhar. Mas ele parece pragmático.
– Não se pode ser bom em tudo – diz Michael. – E ele é realmente muito
bonito. Já se interessa por miúdas?
– Ele só tem doze anos – diz Lucy, de forma um pouco brusca.
– Já é idade suficiente – replica ele. – Meu Deus, não achas que ele pode ser
gay, pois não?
Tem vontade de atirar o vinho à cara de Michael e de partir. Ao invés,
limita-se a dizer:
– Quem sabe? Não há sinais disso. Mas, tal como disse, ele ainda não está
interessado nesse tipo de coisas. Bem – continua, mudando de assunto –,
tenho de voltar à panzanella. Ainda precisa de repousar um bocado antes de
a comermos.
Levanta-se. Ele levanta-se também e diz:
– E eu vou preparar o churrasco.
Ela dirige-se para a cozinha mas, antes de conseguir avançar, ele agarra-lhe
nas mãos e vira-a para ele. Lucy percebe que os olhos dele parecem não se
conseguir focar e ainda é apenas uma e meia. Ele pousa-lhe as mãos nas
ancas e puxa-a para si. Depois, afasta-lhe o cabelo da orelha, inclina-se para
ela e sussurra:
– Nunca deveria ter-te deixado ir.
Os seus lábios roçam os dela, brevemente, e a seguir dá-lhe uma palmadinha
no rabo e fica a observá-la, enquanto ela entra na cozinha.
26
Chelsea, 1990
Pouco depois de a minha mãe me ter contado que David nos obrigava a
doar todo o nosso dinheiro à caridade e que iria morar connosco para
sempre, vi-o a beijar Birdie.
Nessa altura, para mim isso era algo repugnante, a vários níveis.
Em primeiro lugar, como sabem, eu achava Birdie fisicamente repulsiva. A
ideia dos seus pequenos lábios duros contra a boca grande e generosa de
David, as mãos dele nas ancas ossudas dela, a sua língua nojenta
perseguindo a dele dentro da caverna húmida formada pelas duas bocas.
Ugh.
Em segundo lugar, eu era uma espécie de tradicionalista e achava a visão do
adultério chocante.
E terceiro: bem, a terceira coisa terrível não me atingiu de imediato. Na
verdade, não poderia, porque as implicações do que eu tinha visto sem
querer não eram totalmente óbvias. Mas, sem dúvida, senti algo semelhante
a medo ao ver David e Birdie juntos, uma sensação inata de que poderiam
despertar um no outro coisas que seria melhor ficarem enterradas.
Aconteceu num sábado de manhã. Sally estava fora, a tirar fotografias num
local de filmagens algures. Justin tinha ido montar uma barraquinha num
mercado, para vender os seus remédios à base de ervas. Os meus pais
estavam sentados no jardim com os seus roupões, a ler os jornais e a beber
chá em canecas. Eu tinha dormido até às oito e meia, o que para mim era
tarde. Sempre fui madrugador. Raramente dormia para além das nove horas,
mesmo durante a adolescência. Mal esfregara o sono dos olhos e saíra do
meu quarto quando os vi, agarrados um ao outro, à porta do quarto de
David. Ela tinha uma camisa de noite de musselina. Ele um robe curto de
algodão preto atado com um cinto. A perna dela estava presa entre os
joelhos dele. Os corpos unidos. Ele tinha uma mão sobre o pálido pescoço
dela. Ela tinha uma mão na nádega esquerda dele.
Retirei-me imediatamente para o meu quarto, com o coração a bater
desenfreado, o estômago totalmente revirado. Pus as duas mãos na garganta,
tentando reprimir a náusea e o horror. Silenciosamente, sussurrei a palavra
foda-se. Depois, voltei a repeti-la, com todas as letras. Abri uma fresta da
minha porta um momento depois e eles já tinham desaparecido. Não sabia o
que fazer. Precisava de contar a alguém. Precisava de contar a Phin.
Phin comprou-nos sanduíches num hotel chique com vista para o parque.
Vinham servidas em pratos com rebordos prateados e acompanhadas de
faca e garfo. Sentámo-nos junto a uma janela alta e perguntei-me como os
outros nos veriam: o jovem alto e bonito e o seu pequeno amigo com cara de
bebé e um casaco de malha desleixado.
– O que achas que os adultos estão a fazer agora? – perguntei.
– Estou-me a cagar – respondeu Phin.
– Podem ter chamado a polícia.
– Eu deixei um bilhete.
– Oh – exclamei, surpreendido com esse gesto atencioso. – O que
escreveste?
– Escrevi eu e o Henry vamos sair. Voltamos mais tarde.
Eu e o Henry. O meu coração deu um salto.
– Contas-me o que aconteceu na Bretanha? – perguntei. – Porque vieram
todos embora?
Ele abanou a cabeça.
– Não vais querer saber.
– Não. Eu quero saber. O que aconteceu?
– Foi o meu pai – suspirou. – Ficou com uma coisa que não era dele.
E depois disse que pensava que era suposto partilharem tudo, mas aquilo era
uma relíquia de família. Valia cerca de mil libras. Levou-a para a cidade,
vendeu-a, e depois fingiu ter visto «alguém» a assaltar a casa e a roubá-la.
Manteve o dinheiro escondido. O pai daquela família descobriu através de
rumores. Foi um autêntico pandemónio. Fomos expulsos no dia seguinte –
encolheu os ombros. – E houve mais coisas. Mas esta foi a principal.
De súbito, percebi por que razão ele não sentia culpa por tirar o dinheiro ao
pai.
David afirmava estar a ganhar muito dinheiro com as aulas de ginástica, mas
quanto dinheiro poderia realmente ganhar com um punhado de hippies no
salão de uma igreja, duas vezes por semana? Teria vendido alguma coisa
nossa debaixo dos nossos narizes? Ele já fizera uma lavagem cerebral à
minha mãe para que o deixasse tratar das nossas finanças. Talvez até
estivesse a levantar dinheiro diretamente da nossa conta bancária. Ou talvez
este fosse o dinheiro que a minha mãe pensava que ia para a caridade, para
ajudar os pobres.
Todas as minhas dúvidas em relação a David Thomsen começaram
a transformar-se em algo concreto e real.
– Gostas do teu pai? – perguntei, brincando com o raminho de agrião na
beira do prato.
– Não – respondeu, simplesmente. – Desprezo-o.
Assenti com a cabeça, mais descansado.
– E tu? – perguntou. – Gostas do teu pai?
– O meu pai é um fraco – respondi, sabendo com total clareza que isso era
verdade.
– Todos os homens são fracos – disse Phin. – É esse o grande problema do
mundo. Demasiado fracos para amar devidamente. Demasiado fracos para
errar.
A força desta declaração fez-me suster a respiração. Soube de imediato que
era a maior verdade que já tinha ouvido. A fraqueza dos homens está na raiz
de todas as coisas más que já aconteceram.
Observei Phin enquanto tirava duas notas de dez libras do maço para pagar
aquelas sanduíches caras.
– Desculpa não te poder pagar – disse-lhe.
Ele abanou a cabeça.
– O meu pai vai ficar com tudo o que vocês têm e depois vai destruir a vossa
vida. Isto é o mínimo que eu posso fazer.
13
Um bolo tie, ou bootlace tie (Reino Unido), é um cordão que passa por baixo do colarinho de uma
camisa e que é preso à frente por uma peça decorativa de metal, abaixo do pescoço. É um ornamento
originalmente norte-americano, cujo uso se estendeu a outros países. (N. da T.)
27
Libby, Dido e Miller saem, trancam a casa e vão até um bar. É o pub que
Libby viu do telhado da casa. Está apinhado, mas conseguem encontrar uma
mesa alta na esplanada e arrastam até ela bancos de outras mesas.
– Quem acham que é? – pergunta Dido, mexendo o seu gin tónico com a
palhinha.
– Não é nenhum sem-abrigo. Não há por ali tralha suficiente – responde
Miller. – Se alguém estivesse realmente a viver ali, haveria muito mais coisas.
– Então acha que é alguém que só aparece de vez em quando? – pergunta
Libby.
– Acho que sim.
– Então havia realmente alguém lá em cima quando ali estive no sábado?
– É também o que acho.
Libby estremece.
– Ouçam – continua Miller –, sabem o que eu penso? Nasceu em junho de
1993, certo?
– Dezanove de junho. – Sente um arrepio ao dizer a data. Como é que
alguém sabe realmente? Talvez isso tenha sido inventado. Pelos serviços
sociais? Pela sua mãe adotiva? Sente que as suas certezas em relação a si
mesma começam a resvalar.
– Certo. Então os seus irmãos conheceriam a sua data de nascimento, já que
quando nasceu eles eram adolescentes. E se, de alguma forma, ficaram a
saber que a casa lhe estava destinada no seu vigésimo quinto aniversário,
poderia fazer sentido que eles tentassem regressar a casa. Para a conhecer…
Libby sobressalta-se.
– Então acha que pode ser o meu irmão?
– Acho que pode ser Henry, sim.
– Mas se ele estava na casa e sabia que era eu, porque é que não desceu para
me ver?
– Bem, isso não sei.
Libby pega no seu copo de vinho, aproxima-o brevemente dos lábios, mas
volta a pousá-lo.
– Não – diz ela, vigorosamente. – Isso não faz sentido.
– Talvez ele não te quisesse assustar? – sugere Dido.
– E não me teria deixado um bilhete? – replica. – Não teria entrado em
contacto com o advogado, dizendo-lhe que queria encontrar-se comigo? Em
vez disso, esconde-se no sótão como um esquisitoide.
– Bem, talvez ele seja mesmo um esquisitoide – declara Dido.
– O que descobriu sobre ele? – pergunta Libby a Miller. – Para além de ser
meu irmão?
– Na verdade, praticamente nada – responde Miller. – Sei que frequentou a
Portman House School dos três aos onze anos. Os seus professores diziam
que era um rapaz inteligente, mas um pouco convencido. Não tinha amigos.
E depois saiu em 1988, foi-lhe oferecida uma vaga no St. Xavier College, em
Kensington, mas não a aproveitou. E essa foi a última vez que alguém ouviu
falar dele.
– Não percebo – insiste Libby. – Andar por ali a espreitar, esgueirando-se
entre túneis e arbustos, escondendo-se no andar de cima, quando sabia que
eu estava lá em baixo. Tem a certeza de que é Henry?
– Bem, não, claro que não. Mas quem mais poderia saber que a Libby lá ia
estar? Quem mais saberia como entrar na casa?
– Um dos outros – responde ela. – Talvez seja um dos outros.
28
Chelsea, 1990
Michael está na cave e Lucy esteve a limpar durante mais de uma hora. Pega
num saco de lixo que está junto à porta da frente. Está cheio de papel de
cozinha encharcado de sangue, um par de luvas de látex de Joy e todos os
vestígios da sua refeição: garrafas de vinho vazias, garrafas de cerveja,
guardanapos, a panzanella que sobrou. Tratou os cortes nas costas com
pensos rápidos que encontrou na casa de banho de Michael e na sua carteira
estão três mil euros, que retirou de uma gaveta da mesa de cabeceira.
Dá uma olhadela ao Maserati, ao passar por ele no acesso à garagem. Sente
uma estranha onda de tristeza: Michael nunca mais guiará um carro potente
como aquele. Nunca mais irá reservar um voo para Martinica, de um
momento para o outro, nem fazer saltar a rolha de mais uma garrafa de
champanhe vintage. Nunca acabará de escrever o seu estúpido livro, nunca
mais saltará para a sua piscina com a roupa vestida, nunca dará a uma
mulher uma centena de rosas vermelhas, nunca mais fará sexo, nem beijará
ninguém…
Nunca mais magoará ninguém.
A sensação passa. Deita o saco de lixo num enorme caixote municipal junto
à praia. A adrenalina corre através dela, mantendo-a concentrada e forte.
Compra dois sacos cheios de snacks e bebidas para as crianças. Às dezassete
horas, Marco envia-lhe uma mensagem. Onde estás?
Nas compras, responde. Não demoro.
– Esta noite fico na casa – declara Miller, pousando o seu copo de cerveja
vazio sobre a mesa. – Se não se importar…
– E onde vai dormir?
– Não vou dormir. – O seu rosto tem uma expressão determinada.
– Está bem – assente Libby. – Se é o que quer.
Regressam à casa e Libby volta a destrancar o cadeado e a afastar o tapume
de madeira. Entram. Ficam parados por um momento, de olhos voltados
para cima, atentos a qualquer movimento. Porém, a casa está silenciosa.
– Bem – diz Libby, olhando para Dido –, acho que será melhor irmos
andando.
Dido acena com a cabeça e Libby aproxima-se da porta da frente.
– Vai ficar bem? Aqui sozinho? – pergunta.
– Ei, olhe para mim – diz Miller. – Pareço-lhe o género de pessoa que tem
medo de ficar sozinha numa casa escura e vazia, onde morreram três
membros de um culto vestidos com uma túnica preta?
– Quer que eu fique também?
– Não. Vá para casa, para a sua bela cama confortável. – Tem os dedos
espalmados sobre a barba e olha para ela com o olhar suplicante de um
cãozinho.
– Quer que eu fique, não quer? – pergunta Libby, sorrindo.
– Não. Não, não e não.
Libby ri-se e olha para Dido.
– Importas-te? – pergunta. – Amanhã de manhã, lá estarei. Prometo.
– Fica – diz Dido. – E amanhã podes chegar quando quiseres. Não há pressa.
Começa a escurecer quando Libby regressa à casa, depois de acompanhar
Dido até à estação de metro. Absorve a atmosfera de uma noite quente de
verão em Chelsea, a multidão de adolescentes loiros em calções de ganga
rasgados e enormes sapatilhas, as vistas de belos quartos através de janelas
de guilhotina. Por um momento, fantasia em morar ali, fazer parte daquele
mundo elitista; ser, realmente, uma rapariga de Chelsea. Imagina a casa de
Cheyne Walk cheia de antiguidades, lustres de cristal e arte moderna.
Porém, no momento em que abre a porta do número dezasseis, a fantasia
dissipa-se. A casa está manchada, deteriorada.
Miller está sentado à grande mesa de madeira da cozinha. Assim que ela
entra, ele levanta os olhos e diz:
– Depressa, veja isto. Veja.
Ele está a usar o telemóvel como lanterna e a olhar para alguma coisa dentro
da gaveta. Ela espreita lá para dentro.
– Veja – repete Miller.
Mesmo ao fundo da gaveta, escrito a lápis preto, alguém rabiscou as
palavras: «eu sou phin».
32
Chelsea, 1990
Sally deixou a nossa casa poucas semanas depois. Alguns dias mais tarde,
Birdie mudou-se para o quarto de David. Mas Justin não se mudou.
Manteve-se no quarto que tinha partilhado com Birdie.
Eu nunca cheguei a ser castigado pelo incidente da trip com ácido, e Phin
também não. Mas, ficou bem claro que ele sentiu que a perda da mãe era
pior do que qualquer castigo que o pai pudesse ter inventado. Primeiro que
tudo, culpou-se a si mesmo. A seguir, culpou Birdie. Desprezava-a e referia-
se a ela como «coisa». Depois, culpou o pai. E por fim, infelizmente, e de um
modo subliminar, culpou-me a mim. Afinal, fora eu quem lhe transmitira a
terrível e fatal bala de conhecimento que ele usara para, inadvertidamente,
destruir o casamento dos pais. Se eu não lhe tivesse contado, nada daquilo
teria acontecido: a ida às compras, o ácido, a hedionda tarde das revelações
dos beijos à porca. E, assim, aquele vínculo que tínhamos criado no telhado,
naquele dia, não só se desvaneceu, como ainda pareceu arder numa nuvem
de fumo de veneno tóxico.
Era difícil não admitir que fui eu quem provocou tudo isso. Quando pensei
na minha intenção ao contar-lhe o que tinha visto, na minha ânsia de
escandalizar e impressionar, na minha falta de empatia ou compreensão de
como isso podia fazê-lo sentir, não pude deixar de perceber a minha
responsabilidade pessoal. E, de facto, paguei o preço. Porque, ao destruir
involuntariamente o casamento dos seus pais, destruí involuntariamente
toda a minha vida.
Pouco depois de Sally sair de casa, encontrei Justin sentado à mesa no
terraço do jardim, classificando pilhas de ervas e flores. O facto de ele ter
permanecido sob o mesmo teto que a sua namorada adúltera pareceu-me
triste e até um pouco subversivo. Ele continuou como antes, a cultivar e a
tratar das suas plantas, transformando-as em pós dentro de saquinhos de
lona e em tinturas em minúsculos frascos de vidro, colocando-lhes
pequenas etiquetas onde se lia «The Chelsea Apothecary»14. Continuava a
usar as mesmas roupas e a deambular por ali da mesma maneira; não havia
sinais exteriores de qualquer turbulência interna ou desgosto. Sofrendo com
o meu próprio coração destroçado devido ao meu breve relacionamento
com Phin, senti curiosidade em entrar um pouco na sua cabeça. E com a
partida de Sally e a nova relação entre Birdie e David, para não mencionar
os meus próprios pais, que se iam tornando sombras cada vez mais
pequenas do que eram antes, estranhamente ele acabava por parecer uma
das pessoas mais normais da casa.
Sentei-me à sua frente e ele olhou-me com simpatia.
– Olá, miúdo. Como vão as coisas?
– Está tudo… – Eu estava prestes a dizer que estava tudo bem, mas depois
lembrei-me de que não estava mesmo nada bem. Então respondi: –
Estranho.
Ele olhou-me com mais atenção.
– Bem – disse ele. – Lá isso é verdade.
Ficámos em silêncio por um momento. Observei-o enquanto recolhia
delicadamente os rebentos dos ramos e os colocava num tabuleiro.
– Porque é que ainda vive aqui? – Acabei por perguntar. – Agora que a
Birdie…?
– Boa pergunta – disse, sem olhar para mim. Colocou mais um rebento no
tabuleiro, esfregou as pontas dos dedos e pousou as mãos no colo. – Acho
que é porque, mesmo já não estando com ela, Birdie continua a ser uma
parte de mim. Aquele amor que não tem que ver com sexo não morre
automaticamente, sabes? Ou, pelo menos, isso não acontece
necessariamente.
Acenei com a cabeça. Isso era totalmente verdade no meu caso. Embora
fosse muito provável que eu nunca mais tivesse a possibilidade de voltar a
segurar na mão de Phin, ou até mesmo de ter outra conversa mais profunda
com ele, isso não diminuiu os meus sentimentos por ele.
– Acha que pode voltar a ficar com ela?
– Sim – suspirou. – Talvez. Ou talvez não.
– O que acha do David?
– Oh.
A sua linguagem corporal mudou subtilmente. Ergueu os ombros e
entrelaçou os dedos.
– Ainda não sei bem – disse, por fim. – Em certos aspetos acho-o
espetacular. Noutros… – abanou a cabeça – assusta-me.
– Sim – exclamei mais alto e com mais fervor do que pretendia. – Sim –
disse novamente, agora num tom mais baixo. – Ele também me assusta.
– De que forma, mais concretamente?
– Ele é… – Levantei os olhos para o céu, procurando a palavra certa. –
Sinistro.
Justin soltou uma gargalhada ruidosa.
– Ah, sim, é isso mesmo – concordou. – Sinistro. Toma – passou-me um
punhado de pequenas flores amarelas parecidas com margaridas e um rolo
de fio. – Ata-as em pequenos feixes, pelos caules.
– Como se chamam?
– Calêndula. Para aliviar os problemas de pele. São ótimas.
– E aquilo? – Apontei para o tabuleiro com pequenos rebentos amarelos.
– É camomila. Para fazer chá. Ora cheira. – Passou-me um botão de
camomila, que pus por baixo do nariz. – Não é um cheiro tão bom?
Assenti, enquanto enrolava o fio nos caules da calêndula, amarrando-os com
um laço.
– Está bem assim?
– Ótimo. Muito bem. Então, ouvi falar do que aconteceu contigo e com
Phin. Na semana passada. Aquilo da droga.
Corei.
– Caramba – exclamou. – Eu só toquei em drogas quando tinha quase
dezoito! E tu, que idade tens? Doze?
– Treze – respondi com firmeza. – Tenho treze anos.
– Tão novo! – disse ele. – Tiro-te o chapéu.
Não percebi aquela postura. O que eu tinha feito era, sem dúvida alguma,
uma coisa má. Ainda assim, sorri.
– Sabes – prosseguiu, num tom de conspiração –, posso aqui cultivar
qualquer coisa. Qualquer coisa. Percebes o que isso significa?
Abanei a cabeça.
– Eu não me limito a cultivar coisas que são boas para a saúde. Também
posso plantar outras coisas. Qualquer coisa de que gostes.
Acenei com a cabeça, sério.
– Quer dizer, coisas como drogas?
Riu-se com vontade.
– Sim, acho que se pode dizer que sim. Das boas – deu uma pancadinha no
nariz. – E das más também.
Nesse momento, a porta das traseiras abriu-se. Voltámo-nos ambos, para ver
quem era.
Eram David e Birdie. Tinham os braços cruzados na cintura um do outro.
Olharam brevemente na nossa direção e foram sentar-se do outro lado do
jardim. O ambiente mudou. Como se uma nuvem estivesse a passar à frente
do Sol.
– Tudo bem consigo? – murmurei para Justin.
– Tudo bem – assentiu.
Permanecemos sentados durante algum tempo sob o manto abafado da sua
presença, conversando sobre diferentes ervas e plantas e os seus efeitos.
Perguntei a Justin sobre venenos e ele falou-me da Atropa belladonna, ou
beladona mortal, que, segundo a lenda, foi usada pelos soldados de Macbeth
para envenenar o exército inglês que chegava, e da cicuta, usada para matar
Sócrates após a sua condenação. Falou-me também do uso de ervas
afrodisíacas e com poderes mágicos para feitiços, como a Gingko biloba.
– Como aprendeu tudo isso? – perguntei.
– Acima de tudo, dos livros – respondeu Justin, encolhendo os ombros. – E
a minha mãe também gosta de jardinagem. Sabes, fui criado no meio das
plantas e da terra. Portanto… na verdade, é uma evolução natural.
Desde que Sally partira, nunca mais tínhamos tido um único dia de aulas.
Nós, as crianças, cirandávamos livremente pela casa, entediados e inquietos.
«Lê um livro» era a lengalenga para quem se queixasse de que não tinha
nada para fazer. «Faz umas contas.»
Portanto, acho que estava pronto para aprender algo novo, e tudo o que
havia disponível fora dali eram os estranhos exercícios de David ou o violino
de Birdie.
– Existem plantas que levam as pessoas a fazer coisas… contra a sua
vontade?
– Bem, claro que há alucinogénicos, cogumelos mágicos e outras coisas do
género.
– E também pode plantá-los? – perguntei. – Num jardim como este?
– Posso cultivar praticamente qualquer coisa, miúdo, em qualquer lugar.
– Eu posso ajudar? – perguntei. – Ajudá-lo a plantar coisas?
– Claro – disse Justin. – Podes ser o meu jovem aprendiz. Vai ser bom.
Não sei que tipo de conversa de travesseiro aconteceu atrás da sinistra porta
do quarto de David e Birdie. Não gostava de pensar muito sobre o que quer
que ali acontecesse. Ouvi coisas que ainda agora, quase trinta anos depois,
me fazem estremecer ao pensar nelas. Todas as noites, eu dormia com a
minha almofada por cima da cabeça.
De manhã, eles desciam as escadas juntos, com um ar de superioridade e
parecendo satisfeitos consigo mesmos. David estava obcecado com o cabelo
de Birdie, que lhe dava pela cintura. Tocava-lhe constantemente. Enrolava-o
nos seus dedos e apertava-o entre as mãos; passava as mãos ao longo do seu
cabelo, fazendo girar uma madeixa enquanto falavam os dois. Uma vez até o
vi pegar-lhe num pedaço de cabelo e segurá-lo por baixo das narinas,
inspirando profundamente.
– O cabelo da Birdie não é maravilhoso? – perguntou um dia, olhando para
a minha irmã e para Clemency, que usavam o cabelo cortado pelos ombros.
– Não gostavam de ter um cabelo assim, meninas?
– Sabem – disse Birdie –, em muitas religiões, o facto de as mulheres usarem
o cabelo comprido, é encarado como algo extremamente espiritual.
Apesar de não serem nada religiosos, nos primeiros tempos da sua relação,
David e Birdie falavam muito sobre religião. Discutiam sobre o sentido da
vida e a terrível facilidade com que tudo se descartava. Falavam sobre
minimalismo e feng shui. Perguntaram à minha mãe se poderiam voltar a
pintar o seu quarto de branco, se podiam pôr a cama de metal num outro
quarto e colocar o colchão no chão. Abominavam as latas de aerossol, fast
food, produtos farmacêuticos, fibras artificiais, sacos de plástico, carros e
aviões. Já falavam sobre a ameaça do aquecimento global e preocupavam-se
com o impacto das suas pegadas de carbono. Olhando agora para trás, do
ponto de vista do cenário apocalítico que atualmente ocorre com esta
sinistra onda de calor de 2018, com o oceano cheio de criaturas marinhas
sufocadas por plásticos e ursos polares a escorregarem pelas calotas polares
derretidas, eles estavam bem à frente do seu tempo. Contudo, no contexto
de 1990, quando o mundo ainda estava a despertar para tudo o que a
tecnologia moderna e a cultura de produtos descartáveis tinham para
oferecer, eles eram uma aberração.
E eu até poderia ter tido algum respeito por David e Birdie e pela força do
seu empenho em relação ao planeta se não fosse o facto de David esperar
que todos vivessem de acordo com a sua vontade. Para eles, dormirem em
colchões no chão não era suficiente. Todos devíamos dormir em colchões no
chão. Não lhe bastava que ele e Birdie evitassem carros e aspirinas e
douradinhos. Todos nós deveríamos fazê-lo. Para mim ficou bem claro que
aquilo que previra subliminarmente, há várias semanas, quando vira David e
Birdie a beijarem-se, acontecera. Ela desbloqueara algo terrível em David e
agora queria que ele controlasse tudo.
Ao que parecia, já não éramos livres.
14
Herbalista de Chelsea. (N. da T.)
33
Só anoitece já perto das vinte e duas horas. Libby e Miller conversam à mesa
do jardim, sem perceberem que a escuridão os vai invadindo, até que já nem
sequer conseguem ver o branco dos olhos um do outro. Então, acendem
velas cujas chamas saltitam e dançam ao sabor da brisa. Passaram a última
hora de luz do dia a vasculhar a casa e é disso que falam: das coisas que
encontraram.
Além da frase «eu sou phin» rabiscada no interior da gaveta da mesa,
encontraram as mesmas palavras garatujadas na parte de baixo da banheira
do sótão, na moldura da porta de um dos quartos e no interior de um
roupeiro embutido, num dos quartos do primeiro andar. Encontraram um
punhado de cordas de instrumentos musicais numa das salas de visitas do
rés do chão e uma estante de partituras atirada para um louceiro de canto.
No guarda-roupa do quarto onde Libby foi descoberta deitada no seu berço,
encontraram uma pilha de fraldas felpudas limpas, alfinetes de ama, creme
para fraldas e babygros. Encontraram uma pilha de livros num baú no
corredor das traseiras, bolorentos e acinzentados, livros sobre as
propriedades curativas das ervas e das plantas, livros sobre bruxaria
medieval e livros de feitiços. Estavam embrulhados num cobertor velho e
tapados com almofadas estofadas que, em tempos, deveriam ter adornado
mobiliário de jardim.
Encontraram um fino anel de ouro preso entre o chão de madeira e o
rodapé. Tinha uma marca de contraste que Miller fotografou com a sua
máquina e que depois ampliou. Quando pesquisaram no Google,
descobriram que tinha sido gravado em 1975, o ano do casamento de Henry
e Martina. Um objeto minúsculo, perdido para o mundo, a salvo dos olhos
de saqueadores e detetives no seu esconderijo escuro durante vinte e cinco
anos ou mais.
Libby usa agora o anel, no dedo anelar da mão esquerda. O anel da sua mãe.
Serve-lhe perfeitamente. Roda-o enquanto falam.
Param de falar a cada dois minutos, tentando ouvir o som de passos sobre a
vegetação rasteira. De vez em quando, Miller vai até ao fundo do jardim,
procurando sombras, sinais de que alguém entrou pelo portão do muro de
trás. Levam as almofadas estofadas que encontraram no baú, apagam as
velas e sentam-se no canto do relvado mais distante da porta das traseiras.
Falam por entre sussurros quando, de repente, Miller arregala os olhos e leva
um dedo aos lábios. Chiuu. Então, os olhos dele voltam-se para a parte de
trás do jardim. Está ali alguma coisa. Ela senta-se direita. Ali, no fundo do
jardim. E, enquanto observam, veem alguém a caminhar pelo relvado, um
homem alto e magro, de cabelo curto, óculos a refletir a luz do luar,
sapatilhas brancas, um saco a tiracolo. Veem-no a atirar primeiro o saco
para o cimo do bunker e depois a subir também. Ouvem-no trepar pelo
algeroz até a um rebordo do primeiro andar. Ambos se movem muito
silenciosamente, observando-o enquanto ele desaparece no telhado.
Libby sente o seu coração martelar.
– Oh, meu Deus – sussurra. – Oh, meu Deus. O que vamos fazer?
– Não faço a mínima ideia – sussurra Miller, por sua vez.
– Será melhor confrontá-lo?
– Não sei. O que acha?
Ela abana a cabeça. Está meio apavorada e meio desesperada para ver este
homem cara a cara.
Olha para Miller. Ele mantê-la-á segura. Ou, pelo menos, dá a impressão de
ser capaz de a manter segura. O homem que viram era mais pequeno do que
ele e usava óculos. Acena com a cabeça e diz:
– Sim, vamos entrar. Vamos falar com ele.
Miller parece ficar ligeiramente petrificado, mas depressa recupera.
– Sim. Está bem – diz.
A casa está escura, apenas tenuemente iluminada pelas luzes da rua e pelo
brilho prateado da Lua no rio. Libby segue Miller, sentindo-se tranquilizada
pela sua figura sólida. Param junto à escada. Sobem cada degrau de forma
lenta e segura, até chegarem ao patamar do primeiro andar. Aqui, a
claridade é maior, já que a Lua é visível através da grande janela que dá para
a rua. Ambos olham para cima e depois um para o outro.
– Está tudo bem? – sussurra Miller.
– Sim – responde Libby.
O alçapão no teto do sótão está aberto e a porta da casa de banho está
fechada. Conseguem ouvir o som da urina a cair na sanita, as interrupções
até terminar, a torneira que se abre, o pigarrear. Então, a porta abre-se e um
homem sai. É giro. É esse o primeiro pensamento de Libby. Um tipo giro,
com o cabelo louro bem cortado, um rosto jovem e bem barbeado, braços
com músculos bem definidos, uma T-shirt cinzenta, jeans pretos justos,
óculos modernos, boas sapatilhas.
Dá um salto e agarra o peito quando os vê ali parados.
– Oh, porra, caraças – exclama.
Libby também dá um salto. Tal como Miller.
Entreolham-se por um instante.
– É…? – Acaba por perguntar o homem, no preciso momento em que Libby
pergunta o mesmo.
– É…?
Apontam um para o outro e depois voltam-se os dois para Miller, como se
ele pudesse ter uma resposta para eles. A seguir, o homem volta-se de novo
para Libby e pergunta:
– É a Serenity?
Libby assente.
– É o Henry?
Durante um segundo, o homem olha para ambos, inexpressivo, mas então o
seu rosto parece mais seguro e ele diz:
– Não, não sou o Henry. Sou o Phin.
II
34
Chelsea, 1990
Sendo alemã, a minha mãe sabia muito bem como preparar um bom Natal.
Era a sua especialidade. Logo no início de dezembro, a casa foi enfeitada
com decorações caseiras feitas com laranjas cristalizadas, tecidos com
quadradinhos vermelhos e pinhas pintadas e sentia-se o aroma do pão de
gengibre, do stollen15 e do vinho quente com açúcar e canela. Para ela não
havia nada de fitas decorativas de mau gosto ou grinaldas de papel, nem
latas de Quality Street16 ou caixas de chocolates de seleção da Cadbury.
Até o meu pai gostava do Natal. Tinha uma roupa de Pai Natal que usava em
todas as vésperas de Natal quando éramos pequenos, e ainda hoje não sei
explicar como poderia eu saber que era ele, mas ao mesmo tempo não fazer
ideia de que era ele. Ao olhar agora para trás, percebo que era o mesmo tipo
de terrível desilusão que todos sentíamos em relação a David Thomsen. As
pessoas podiam olhar e ver apenas um homem, mas, com o mesmo olhar,
viam a resposta para todos os seus problemas.
Nessa véspera de Natal, o meu pai já não usou a roupa. Ele disse que
estávamos demasiado velhos para isso, e provavelmente tinha razão. Mas
também disse que não se sentia lá muito bem. De qualquer maneira,
a minha mãe organizou a habitual celebração da véspera de Natal. Sentámo-
nos em volta de um pinheiro nórdico (mais pequeno do que o habitual) e
desembrulhámos os presentes (menos do que era habitual), enquanto no
rádio se ouviam canções natalícias e o fogo crepitava na lareira. Cerca de
meia hora depois, mesmo antes do jantar, o meu pai disse que precisava de
se ir deitar por um bocado, porque tinha uma terrível dor de cabeça.
Trinta segundos mais tarde, estava no chão da sala de estar, com uma
apoplexia.
Nessa altura não sabíamos que era um AVC. Pensávamos que ele estava a ter
algum tipo de ataque. Talvez um ataque cardíaco. O Dr. Broughton,
o médico particular do meu pai, veio vê-lo, ainda com a sua roupa natalícia
de lã vermelha com decote em V e um laço estampado. Lembro-me da cara
dele quando o meu pai disse que já não tinha seguro de saúde e da rapidez
com que ele saiu da nossa casa, do modo como pôs de lado o seu habitual
comportamento untuoso. Mandou-o diretamente para o hospital numa
ambulância do Serviço Nacional de Saúde e saiu sem se despedir.
O meu pai voltou para casa no Boxing Day17.
Disseram que ele estava bem, que durante uns tempos poderia ter algumas
dificuldades cognitivas, alguns problemas motores, mas que o seu cérebro
recuperaria e que ele voltaria ao normal dentro de semanas. Talvez mais
cedo.
Mas, tal como acontecera com o primeiro AVC, ele nunca recuperou
devidamente. Agora havia ali um vazio ainda maior. Usava as palavras
erradas. Ou nem sequer conseguia encontrá-las. Passava dias inteiros
sentado na poltrona do seu quarto a comer biscoitos, muito devagar. Por
vezes, ria-se em momentos inapropriados. Outras vezes, nem entendia uma
piada.
Movia-se lentamente. Evitava as escadas. Deixou de sair de casa de uma vez
por todas.
E quanto mais fraco o meu pai se tornava, mais David Thomsen se ia
impondo.
Quando fiz catorze anos, em maio de 1991, já tínhamos regras. Não apenas
as regras familiares normais, como não pôr os pés em cima dos móveis, ou
fazer os trabalhos de casa antes de ir ver televisão. Não o tipo de regras que
toda a vida tivéramos.
Não, agora tínhamos regras loucas, despóticas, escritas com marcador preto
num grande cartaz que foi colado na parede da cozinha. Ainda me lembro
delas:
Esta lista de regras começara curta, mas fora sendo acrescentada, à medida
que o controlo de David sobre a nossa casa ia aumentando.
Nesta fase, Sally ainda costumava vir à casa uma ou duas vezes por semana,
para levar as crianças a tomar chá. Estava a dormir num sofá em casa de
uma amiga, em Brixton, enquanto tentava desesperadamente encontrar
algum tipo de acomodação com espaço suficiente para todos viverem.
Depois de passar tempo com a mãe, Phin ficava extremamente carrancudo.
Fechava-se no seu quarto e faltava às refeições seguintes. Na verdade, foi por
causa dele que muitas das regras foram implementadas. David achava
insuportável o seu estado de humor. Não aguentava ver a comida
desperdiçada, ou a porta que ele não podia abrir à vontade. Não suportava
que alguém fizesse alguma coisa que não correspondesse diretamente à sua
própria visão do mundo. Não suportava adolescentes.
Foram acrescentadas duas novas regras:
Certa manhã, pouco depois da quinta vez que Phin regressara após ter
passado a tarde com a mãe e ter violado a regra: «Nada de portas
trancadas», fui ao andar de cima e encontrei David a retirar a fechadura do
lado de dentro da porta de Phin, de maxilares cerrados e com os dedos
apertados em volta do cabo de uma chave de fendas.
Phin estava sentado na cama, de braços cruzados com força à frente do
peito, a observar.
Quando à hora do jantar Phin continuava sentado na sua cama com os
braços cruzados, silencioso e com uma expressão mortífera, David arrastou-
o pelos braços – ainda cruzados – e fê-lo sentar-se numa cadeira.
Empurrou a cadeira para o seu lugar e serviu-lhe uma tigela grande de caril
de tutano e arroz. Phin permaneceu de braços cruzados. David levantou-se,
apanhou um pouco do caril com uma colher e empurrou-a contra os lábios
do filho. Phin apertou os lábios. Eu conseguia ouvir a colher a bater-lhe nos
dentes. O ambiente era chocante. Nessa época, Phin já tinha quinze anos e
meio, mas parecia bastante mais velho. Era alto e forte. A situação parecia
poder tornar-se violenta de um momento para o outro. Mas Phin manteve-
se firme, com um olhar que parecia capaz de fazer um buraco na parede
oposta, todo o seu rosto rígido de raiva e determinação.
Por fim, David desistiu de tentar enfiar a colher na boca do filho e atirou-a
pela sala, fazendo com que o caril deixasse uma feia marca amarela na
parede, e a colher produzisse um grito metálico raivoso ao atingir o chão.
– Vai para o teu quarto! – gritou David. – Já! – Uma veia latejava na sua
têmpora. Tinha o pescoço tenso e arroxeado. Eu nunca tinha visto um ser
humano tão enraivecido como David naquele momento.
– Com prazer – sibilou Phin.
David levantou a mão. Então, quase em câmara lenta, bateu-lhe na parte de
trás da cabeça, quando o filho passou por ele. Phin virou-se. Os seus olhos
encontraram os do pai, e vi neles uma expressão de verdadeiro ódio.
Phin continuou a andar. Ouvimos os seus passos, seguros e firmes, na
escada. Alguém pigarreou. Vi Birdie e David trocarem um olhar. O olhar de
Birdie, tenso e reprovador, dizia: Estás a perder o controlo. Faz alguma coisa.
O olhar de David, sombrio e furioso, dizia: É o que tenciono fazer.
Ainda está escuro quando Lucy sai da Casa Azul na manhã seguinte. As
crianças estão silenciosas e com um olhar vítreo. Sustém a respiração
quando entrega o dinheiro para os bilhetes de comboio para Paris a uma
mulher que parece conhecer todos os seus segredos mais profundos.
Sustém-na novamente enquanto entram no comboio, e também quando
o revisor entra na sua carruagem e pede para ver os bilhetes. Sempre que o
comboio reduz a velocidade ela sustém a respiração e examina as zonas em
volta, em busca do brilho azul de uma sirene ou do quépi azul-marinho de
um polícia. Em Paris, senta-se com os filhos e o cão no cantinho mais
sossegado do café mais silencioso, enquanto esperam pelo comboio para
Cherbourg. E, então, ele surge de novo: aquele medo absurdo em cada etapa,
a cada momento. À hora do almoço, quando entram no comboio seguinte,
imagina Joy na casa de Michael, começando a interrogar-se sobre onde
poderia ele estar, e sente a adrenalina a circular pelo seu corpo com tanta
força e rapidez que acha que pode morrer. Mentalmente, faz uma
panorâmica pela casa de Michael, tentando perceber se algo terá ficado
esquecido, o enorme sinal vermelho que dirá a Joy para procurar de
imediato na cave. Mas não, ela tem a certeza, a certeza absoluta de que não
deixou qualquer pista, nem um único vestígio. Ganhou algum tempo. Pelo
menos um dia. Talvez até três ou quatro. E, de qualquer maneira, diria Joy
alguma coisa sobre ela à polícia, a simpática mulher chamada Lucy, a mãe
do filho de Michael, que os levasse a considerá-la suspeita de alguma forma?
Não, Joy falar-lhes-ia dos contactos que Michael mantinha com o submundo
sombrio, dos homens grosseiros que por vezes apareciam à porta para falar
de «negócios». Ela encaminhá-los-ia para uma direção totalmente diferente
e quando eles finalmente percebessem que tinham chegado a um beco sem
saída, Lucy já não poderia ser encontrada.
Quando o comboio chega a Cherbourg, já é noite, a sua frequência cardíaca
abrandou e ela encontra apetite suficiente para comer o croissant que
comprou em Paris.
Na fila de táxis, entram para o banco de trás de um Renault Scenic
maltratado e ela pede ao motorista que os leve a Diélette. O cão senta-se ao
seu colo e pousa a cabeça na janela entreaberta. É tarde. Ambas as crianças
adormecem.
Diélette é uma pequena cidade portuária, verde e montanhosa. As únicas
pessoas que apanham o último ferry para Guernsey são turistas britânicos,
principalmente famílias com filhos pequenos. Lucy segura os passaportes
com força, com as mãos suadas. São passaportes franceses, mas ela é inglesa.
Os filhos têm apelidos diferentes dos dela nos respetivos passaportes. Stella
tem até uma cor diferente da dela. Levam enormes mochilas sujas e estão tão
cansados que parecem indispostos. E os seus passaportes são falsos. Lucy
está absolutamente convencida de que irão fazê-los parar, serão chamados à
parte e interrogados. Ela planeou esta longa e sinuosa jornada de regresso a
Londres de forma a diluir o seu rasto, mas ainda assim, enquanto mostra os
passaportes ao inspetor no porto dos ferrys, o seu coração bate com tal força
que ela acha que ele vai conseguir ouvi-lo. Ele folheia-os, olhando da
fotografia para a pessoa e depois em sentido inverso, devolve-os e manda-os
seguir apenas com um olhar.
Finalmente estão no mar, com a agitação e a espuma acinzentada do Canal
da Mancha, e França fica para trás.
Senta Stella no colo, na parte de trás do ferry, para que a criança possa ver a
terra onde nasceu, o único lar que conheceu a transformar-se numa grinalda
iluminada por fadas brilhando no horizonte.
– Adeus, França – diz Stella, acenando com a mão –, adeus.
36
18
O nome Dick é também usado em calão para designar pénis. (N. da T.)
37
Chelsea, 1991
Sally ficou durante umas duas horas. O ambiente era tóxico. Birdie não
desceu do quarto, mas eu conseguia ouvi-la tossir ostensivamente, a suspirar
e a andar de um lado para o outro. Quando, finalmente, Sally foi embora,
Birdie precipitou-se pelas escadas e atirou-se para os braços de David,
sussurrando melodramaticamente:
– Estás bem, meu querido?
– Estou – assentiu David, estoicamente. E, de seguida, fixando Phin,
semicerrou os olhos e proferiu as palavras que marcaram o início do
verdadeiro pesadelo.
– As coisas vão mudar por aqui. Toma nota do que digo.
A primeira coisa que mudou foi Phin passar a ser trancado no seu quarto
sempre que David ou Birdie não o podiam vigiar. De alguma forma, os
adultos mostravam-se conluiados para nos persuadir de que isso era normal,
compreensível e até saudável. É para sua própria segurança, era o mantra.
Ele estava autorizado a sair para tomar banho, cuidar do jardim, ajudar na
cozinha, ter aulas de violino, estar presente às refeições e participar nas aulas
de ginástica.
Uma vez que já passávamos a maior parte do tempo livre nos nossos
quartos, a princípio isto não pareceu tão sinistro como parece, escrito desta
maneira. Ao olhar para trás, é muito estranho ver como as crianças são
capazes de aceitar mesmo os cenários mais estranhos. Mas ainda assim, ao
olhar agora para a situação, a preto e branco, é realmente bastante chocante.
Um dia, pouco depois de Phin ter voltado acompanhado pela mãe, eu estava
sentado na minha cama, de pernas cruzadas, a ler um livro que ele me
emprestara algumas semanas antes. Dei um salto quando o vi, porque já era
de noite e eu assumira que, por essa altura, a sua porta estaria trancada.
– Como…? – comecei.
– Depois do jantar, Justin trouxe-me para cima – disse. – «Sem querer»,
esqueceu-se de fechar devidamente o cadeado.
– Bom e velho Justin – comentei. – O que vais fazer? Não vais fugir, pois
não?
– Não – respondeu. – Agora já não interessa. Na próxima semana a minha
mãe vai mudar-se para o tal apartamento e eu vou morar com ela. Esta
merda vai acabar.
Foi como se ele me tivesse dado um soco na garganta. A minha voz falhou
quando respondi:
– Mas, o teu pai… ele vai deixar?
– Estou-me a borrifar se deixa ou não. Em dezembro faço dezasseis anos. Eu
quero ir morar com a minha mãe. Não há muito que ele possa fazer em
relação a isso.
– E Clemency?
– Ela também vai.
– E achas que o teu pai e Birdie também se irão mudar? Já que tu
e Clemency não estarão cá?
Riu-se asperamente.
– Hum. Não. Nem pensar. Ele está aqui bem firme. Conseguiu que tudo
corresse como queria.
Um breve silêncio instalou-se entre nós. Então, Phin disse:
– Lembras-te daquela noite? Quando subimos ao telhado? Quando
tomámos o ácido?
Acenei com a cabeça efusivamente. Como poderia esquecer?
– Sabes que temos outro. Que ainda está lá em cima…?
– Outro…?
– Mais uma tira. De ácido. O tipo do mercado de Kensington deu-me dois e
só tomámos um.
Assimilei a informação por um momento.
– Estás a dizer que…?
– Sim. Todos acham que estou trancado em segurança. As raparigas estão a
dormir. Agora já ninguém vai subir. Podes ir lá abaixo, dizes a todos que te
vais deitar e trazes um copo de água. Eu fico aqui à espera.
Claro que fiz exatamente o que ele me disse.
Agarrámos num cobertor e vestimos camisolas. Fui o primeiro a passar pelo
alçapão. Phin entregou-me a água e depois avançou atrás de mim.
Estávamos em julho, mas o ar estava húmido e fresco. Phin foi buscar o
saquinho ao sítio onde o tinha deixado, num vaso de plantas. Na verdade, eu
não queria nada daquilo. Esperava que de alguma forma tivesse perdido a
sua toxicidade durante os muitos meses em que esteve ali fora, sujeito aos
elementos. Tinha esperança de que uma repentina rajada de vento o levasse
dali para fora. Ou que Phin o voltasse a pôr no mesmo sítio, dizendo:
– Não precisamos disto. Temo-nos um ao outro.
Sacudimos as folhas secas caídas sobre as cadeiras de plástico e sentámo-nos
lado a lado.
Phin colocou o quadradinho na palma da mão.
O céu estava espetacular. Azul-real, âmbar torrado, batom cor-de-rosa. O
efeito refletia-se na superfície do rio. À distância, a ponte Battersea brilhava.
Vi que Phin também observava o céu. O ambiente parecia diferente da
última vez que ali tínhamos estado. Phin também estava diferente. Mais
pensativo, menos rebelde.
– O que achas que vais acabar por fazer? – perguntou-me. – Quando fores
adulto?
– Algo relacionado com computadores – respondi. – Ou fazer filmes.
– Ou talvez os dois? – sugeriu.
– Sim – concordei alegremente. – Fazer filmes com computadores.
– Fixe – disse ele.
– E tu?
– Quero ir viver para África. Ser guia de safáris.
– De onde veio essa ideia? – perguntei, rindo-me.
– Fizemos um safári quando andávamos a viajar. Eu tinha seis anos. Vimos
hipopótamos a fazer sexo. É aquilo de que melhor me lembro. Mas também
me recordo muito bem do guia. Era um tipo inglês muito fixe. Chamava-se
Jason.
Nesse momento, percebi uma pontada de saudade na sua voz. E isso fez-me
sentir mais próximo dele de uma forma que eu não conseguia entender
plenamente.
– Lembro-me de dizer aos meus pais que era isso que queria fazer quando
crescesse. O meu pai disse que eu nunca faria fortuna a conduzir turistas
num Land Rover. Como se o dinheiro fosse a única coisa que importasse…
Suspirou e olhou para a palma da mão.
– Então, vamos? – perguntou.
– Só um bocadinho – disse eu. – Um pedacinho mesmo minúsculo.
As horas seguintes desenrolaram-se como um sonho lindo. Observámos o
céu até que todas as diferentes cores se consolidaram em preto. Falámos
sobre o sentido da vida de um modo incrivelmente absurdo. Rimo-nos até
ficarmos com soluços.
– Quando me mudar para Hammersmith, tens de me ir visitar de vez em
quando. Tens de ir e ficar lá a dormir – disse Phin, a determinada altura.
– Sim. Por favor.
E então, num outro momento, perguntei:
– O que farias se eu te beijasse?
E Phin riu e riu e riu até que teve um ataque de tosse. Ele estava dobrado de
tanto rir e eu fiquei a observá-lo com um sorriso amarelo, tentando
compreender o significado da sua reação.
– Não, a sério – insisti. – O que farias?
– Empurrava-te deste telhado – respondeu, ainda a sorrir. Abriu os dedos e
disse: – Plaft.
– Ah, ah, que engraçado – forcei-me a rir.
– Vem, vamos embora daqui – disse ele.
– Para onde?
– Já te mostro. Segue-me.
E segui-o. Eu era um rapaz estúpido, mesmo estúpido. Segui-o enquanto
voltávamos ao patamar do sótão e depois saíamos por uma janela, descendo
por um dos lados da casa, num ato de insana temeridade, causador de medo
e náusea.
– O que estás a fazer? – ia eu perguntando, com as unhas cravadas nos
tijolos nus e as pernas das calças a rasgarem-se nas saliências da alvenaria. –
Onde vamos?
– É o meu caminho secreto! – respondeu ele, olhando-me com uma
expressão selvagem. – Vamos até ao rio! Ninguém vai saber!
No momento em que aterrámos no relvado, eu estava a sangrar em três
sítios diferentes, mas não me importei. Segui-o através das sombras até um
portão que eu não fazia ideia que existia, ao fundo do nosso jardim. De
repente, como em Nárnia, estávamos no jardim de outra pessoa e então
Phin agarrou-me na mão, arrastando-me de uma esquina para a outra,
através da escuridão mágica de Chelsea Embankment, atravessando quatro
faixas de tráfego até chegarmos à beira-rio. Aí, largou-me a mão. Durante
um momento, permanecemos ali parados, em silêncio, lado a lado, a
observarmos os vermes dourados e prateados que se contorciam pela
superfície da água. Continuei a olhar para ele, que no escuro ainda parecia
mais bonito do que nunca, sob a luz ténue em movimento.
– Para de olhar para mim – disse-me.
Olhei-o ainda com mais intensidade.
– Estou a falar a sério – disse. – Para de olhar.
Mas eu continuei a olhar para ele com a mesma intensidade.
E então ele empurrou-me com força, com as duas mãos, fazendo-me cair na
água escura. De repente, eu estava debaixo de água e os meus ouvidos
enchiam-se de bolhas que ecoavam e as minhas roupas ficavam pesadas e
prendiam-se-me à pele. Eu tentava gritar, mas em vez disso engolia água e as
minhas mãos procuravam o muro do rio e as minhas pernas batiam no
nada, espesso e pegajoso. E então os meus olhos abriram-se e vi rostos: uma
constelação de rostos enegrecidos em volta do meu e tentei falar-lhes, pedir-
lhes que me ajudassem, mas todos se afastaram e de súbito eu estava a subir,
com uma dor em volta do meu pulso, o rosto de Phin mais acima,
arrastando-me pelos degraus de pedra até à margem.
– Sacana maluco – disse ele, rindo-se, como se eu tivesse escolhido cair no
Tamisa, como se tudo fosse apenas diversão.
– Filho da mãe! – empurrei-o, gritando, com a minha voz ainda adolescente
a soar estridente e insuportável. – Grande filho da mãe!
Passei por ele determinado e atravessei as quatro faixas de tráfego, fazendo
alguém buzinar-me, em direção à porta da frente da casa.
Phin foi atrás de mim e aproximou-se já junto à porta, sem fôlego.
– Que merda estás a fazer?
Eu devia ter-me detido naquele momento, devia mesmo. Devia ter respirado
fundo e avaliado a situação, para tomar uma decisão diferente. Mas estava
tão cheio de raiva, não apenas por ter sido empurrado para o frio e imundo
Tamisa, mas por todos aqueles anos em que Phin ora me dava alguma
atenção, ora me ignorava por completo, oferecendo-me pequenas migalhas
quando era do seu interesse fazê-lo e ignorando-me totalmente quando não
era. Olhei para ele, que estava seco e bonito, enquanto eu estava molhado e
feio, e então virei-me e pressionei com firmeza a campainha com a ponta do
dedo.
Ele olhou para mim. Percebi que hesitava entre ficar ou fugir. Mas, um
segundo depois, a porta abriu-se. Era David e ele olhou de um para o outro
e os seus ombros levantaram-se, a sua boca apertou-se e ele parecia um
animal enjaulado prestes a atacar. Com uma voz lenta e retumbante, ele
disse:
– Entrem imediatamente.
Então, Phin voltou-se e começou a correr, mas o seu pai era mais alto e
estava mais em forma. Apanhou-o ainda antes de ele conseguir chegar à
esquina da rua e deitou-o ao chão. Assisti à cena com o queixo erguido
defensivamente, com os dentes a bater dentro do meu crânio de criança e os
braços em volta do corpo.
A minha mãe apareceu à porta.
– O que se passa? – perguntou, espreitando por cima da minha cabeça. – O
que é que andaram a fazer?
– O Phin atirou-me ao rio – gaguejei, com os dentes ainda a bater.
– Meu Deus – exclamou ela, puxando-me para dentro de casa. – Meu Deus.
Entra. Vai despir essa roupa. Que raio…?
Não entrei nem despi a minha roupa. Fiquei ali, a ver David arrastar o seu
filho já crescido pelo passeio, como uma presa recém-capturada.
Pronto, pensei comigo mesmo, já está.
38
Na manhã seguinte, Libby acorda com a luz brilhante do Sol. Passa a mão
pelo chão ao lado da cama e, em seguida, por cima da mesa de cabeceira,
tentando encontrar o telemóvel. Não está ali. A noite parece-lhe densa e
indefinida. Senta-se rapidamente e examina o quarto. É uma pequena
divisão branca e ela está deitada numa cama de madeira muito baixa com
um colchão enorme. E Miller também.
Instintivamente, puxa o lençol sobre o peito, antes de perceber que está
vestida. Tem o top que usava na noite anterior, e a roupa interior. Lembra-se
vagamente de ter despido os calções enquanto Miller estava na casa de
banho e de se ter escondido por baixo da colcha. Lembra-se vagamente de
ter lavado os dentes com pasta dentífrica e ainda sente alguns resquícios a
eles agarrados. Lembra-se vagamente de muitas coisas.
Está no apartamento de Phin.
Está na cama com Miller.
Estão ambos vestidos e deitados um ao lado do outro.
Na noite passada, Phin serviu-lhes um copo de vinho atrás de outro. E
insistiu, quase ao ponto de se tornar um pouco estranho, para que ficassem.
– Não vão – pediu. – Por favor. Acabei de a encontrar. Não quero perdê-la
de novo.
– Não me irá perder. Agora somos praticamente vizinhos. Veja! – diz Libby,
apontando para o outro lado do rio, para a fileira de casas aristocráticas
onde fica o número dezasseis.
– Por favor – prosseguiu, sedutor, com as suas longas pestanas a roçarem as
sobrancelhas perfeitamente penteadas. – É certamente melhor do que ficar
ali a dormir naqueles colchões velhos e sujos. Vá lá. De manhã preparo-vos
um pequeno-almoço delicioso! Tenho abacate. É disso que vocês,
millennials, gostam, não é?
– Eu prefiro ovos – respondeu Miller.
– Você é realmente um millennial? – perguntou Phin, de olhos
semicerrados, num tom ligeiramente malicioso.
– Por pouco – respondera Miller. – Mas prescindo da parte do abacate.
Libby vê as horas no despertador da mesa de cabeceira e calcula que se sair
dentro de oito minutos conseguirá estar no trabalho às nove da manhã.
Embora para ela seja tarde, não é problemático em termos de telefonemas
ou de clientes a entrarem na loja.
Volta a vestir os calções e iça-se da cama baixa.
Miller mexe-se.
Olha para ele.
Apercebe-se da sugestão de uma tatuagem na parte de cima do braço dele,
onde a manga da T-shirt subiu. Ela não suporta tatuagens. O que torna o
namoro particularmente estranho nos dias de hoje. Mas não pode deixar de
observar que ele tem um ar doce. Suave e atraente.
Desvia o olhar da forma adormecida e vai em bicos dos pés para a casa de
banho, da qual se recorda vagamente de ter usado já muito tarde na noite
anterior. Ao espelho, parece razoavelmente ilesa. Ter usado o secador na
manhã anterior permitiu-lhe sobreviver a todas as aventuras subsequentes.
Usa de novo a pasta de dentes e gargareja com água da torneira. Puxa o
cabelo para trás num rabo de cavalo e encontra uma lata de desodorizante
no armário da casa de banho.
Quando regressa ao quarto, Miller está acordado.
– Bom dia – cumprimenta ele, com um sorriso. Estica os braços acima da
cabeça e ela vê a extensão da tatuagem. É uma coisa qualquer celta. Podia ser
pior.
– Tenho de ir – diz Libby, pegando na mala de mão.
– De ir onde?
– Trabalhar – responde.
– Oh, a sério? Não acha que a sua chefe lhe dá folga esta manhã?
Para. Claro que ela lhe daria folga. Mas Libby não funciona dessa maneira.
Fica nervosa só de pensar nisso.
– Não – replica. – Quero ir trabalhar. Tenho um dia importante. Algumas
reuniões marcadas com clientes.
– Não quer desiludir as pessoas?
– Não, não quero.
– Bem – diz ele, atirando o lençol para trás e revelando estar a usar uns
boxers de algodão vermelhos e azuis e umas pernas sólidas de jogador de
râguebi –, dê-me trinta segundos e eu vou consigo.
– Por acaso não sabe onde está o meu telemóvel? – pergunta-lhe Libby.
– Não faço ideia – responde, levantando-se da cama e vestindo as calças.
O seu cabelo está na maior confusão. A barba também. Ela reprime um
sorriso.
– Vai… vai ver-se ao espelho?
– Devo ir? – Ele parece confuso.
Ela pensa nas horas e diz:
– Não, está bem assim. Vamos procurar os nossos telemóveis e sair daqui.
Põe a mão sobre a maçaneta da porta e empurra-a. A porta não se abre.
Volta a empurrar. Mais uma vez, a porta não abre. Insiste mais quatro vezes.
Então, volta-se para Miller e diz:
– Está trancada.
40
Chelsea, 1991
Justin desapareceu dois dias depois. Não disse a ninguém que ia embora e
saiu tão cedo que nem sequer David tinha ainda acordado. Tendo aprendido
a lição com o que acontecera com Phin em relação a contar histórias, não
falei a ninguém da pequena propriedade galesa. Fiquei com a impressão de
que ele não queria que alguém soubesse para onde ia. Mais tarde, fui ao seu
quarto. Ele chegara com muito pouco, e partira ainda com menos. Fui até ao
parapeito da janela onde todos os seus livros estavam dispostos numa fila.
Um Guia Moderno de Bruxaria e Magia;
Wicca para Principiantes;
Livro Wicca de Feitiços com Plantas.
Tive a certeza de que ele os deixara para mim.
Espreitei para o corredor e, depois de me certificar de que não havia
ninguém por perto, escondi os livros por baixo da minha camisola.
Estava prestes a correr de volta ao meu quarto, quando vislumbrei outra
coisa na sua mesa de cabeceira que me chamou a atenção. Algo pequeno e
peludo. A princípio, pensei que era um rato morto, mas depois descobri que
era uma pata de coelho presa a uma pequena corrente. Eu tinha uma vaga
ideia de que servia para dar sorte, tal como a urze e os trevos de quatro
folhas. Enfiei-a rapidamente no bolso e corri para o meu quarto onde
escondi tudo por baixo do colchão.
Libby bate com os punhos na porta. Miller faz o mesmo. É uma sólida porta
corta-fogo. Ele vai até à janela para ver se há alguma forma de escapar dali,
mas está hermeticamente fechada e simplesmente equivaleria a uma queda
de uma altura de dez andares.
Procuram mais uma vez os telemóveis por todo o quarto, mas não os
conseguem encontrar.
Após meia hora, param de bater e, derrotados, sentam-se no chão com as
costas encostadas aos pés da cama.
– E agora? – pergunta Libby.
– Vamos esperar mais meia hora e, nessa altura, tentarei deitá-la abaixo.
– Porque não tenta agora?
– Sabe que não tenho tanta força como parece. Tenho uma antiga lesão nas
costas. Preciso de ter cuidado.
– Dez minutos então – diz ela.
– OK, dez minutos.
– O que raio acha que ele tem em mente? – pergunta Libby.
– Não faço a mínima ideia.
– Acha que ele nos vai matar?
– Oh, duvido.
– Então, por que motivo nos trancou aqui?
– Talvez tenha sido acidental?
– Não acredita realmente nisso, pois não? – Libby olha para ele, incrédula. O
despertador marca 7h37. Ainda está a tentar calcular quanto tempo chegará
atrasada ao trabalho quando se ouve uma porta a bater e os dois se sentam
direitos. Ouvem uma voz. É a voz de Phin, a dirigir-se a um dos gatos.
Ouvem sons de beijinhos. Levantam-se de um salto e começam novamente a
bater na porta do quarto.
Um momento depois, a porta abre-se e Phin espreita.
– Oh, meu Deus – exclama, tapando a boca com a mão. – Meu Deus. Sinto
muito. Tenho este terrível problema de sonambulismo. Já antes entrei em
quartos de hóspedes… Na verdade, uma vez até tentei deitar-me com eles na
cama. Por isso, tranquei-vos antes de ir para a cama. E depois, esta manhã,
acordei estupidamente cedo e decidi sair para ir correr. Esqueci-me
completamente de vocês. Lamento imenso. Venham. Venham, por favor.
Vamos tomar o pequeno-almoço.
– Não posso tomar o pequeno-almoço. Estou atrasada para o trabalho.
– Oh, ligue-lhes e diga o que aconteceu. De certeza que vão compreender.
Vá lá. Tenho sumo de laranja acabado de fazer e tudo o mais. Está outro dia
lindo. Podemos comer no terraço. Por favor.
Estava a fazê-lo de novo, aquela espécie de sedução que já tinha feito na
noite anterior. Libby sentiu-se encurralada.
– Porque não nos contou – disse ela –, ontem à noite? Porque não nos disse
que ia trancar a porta? Ou, pelo menos, podia ter-nos dito para a
trancarmos por dentro.
– Já era muito tarde – respondeu –, e eu estava muito bêbado, e muito
estúpido.
– Assustou-nos a sério, sabe? Eu fiquei realmente apavorada. – Libby sente a
sua voz falhar, apesar da tensão dos últimos momentos ter começado a
desaparecer.
– Por favor, perdoem-me – pediu. – Sou um idiota. Não pensei como devia.
Vocês estavam a dormir e eu não quis acordar-vos. Limitei-me a trancá-la.
Sem pensar. Vá lá. Venham comer qualquer coisa.
Libby e Miller trocam um olhar. Ela percebe que ele quer ficar. Acena com a
cabeça.
– Então está bem, mas tem de ser rápido. Phin?
Ele olha para ela docemente.
– Onde estão os nossos telemóveis?
– Oh, não estão no vosso quarto?
– Não – responde ela. – Nenhum deles.
– Bem, devem tê-los deixado lá fora à noite. Vamos procurá-los.
Seguem-no ao longo do corredor até à sala de estar de plano aberto.
– Oh – diz ele, suavemente. – Estão aqui. Deixaram-nos a carregar na
cozinha. Ontem à noite devíamos estar todos muito, muito bêbados. Vá –
prossegue –, vão sentar-se no terraço. Já vos levo o pequeno-almoço.
Sentam-se lado a lado no sofá. O Sol brilha na margem do outro lado do rio,
incidindo sobre as janelas das casas de Cheyne Walk.
Sente Miller aproximar-se dela.
– Não pega – sussurra-lhe ao ouvido. – Não vou na história «estava bêbado e
por isso tranquei-vos no quarto sem vos dizer nada». E também não
acredito naquilo do telemóvel. Na noite passada, eu estava bêbado, mas
ainda me lembro de ter o telefone na mão quando nos fomos deitar. Cheira-
me a esturro.
Libby acena em concordância.
– Pois. Alguma coisa não bate certo.
Pega no telemóvel e liga para Dido. Vai diretamente para o voicemail.
– É uma longa história – começa a explicar –, mas ainda estou em Chelsea.
Podes pedir à Claire para falar com os Morgans quando eles chegarem, às
dez? Ela tem todas as informações. E os novos orçamentos estão no sistema.
Basta imprimi-los. E eu estarei a caminho antes da minha próxima reunião.
Prometo. Desculpa, explico-te tudo quando nos virmos. E se eu não estiver
aí às dez e meia, liga-me. Se eu não atender – olha rapidamente para trás e
vê que Phin ainda está atrás do balcão da cozinha, a cortar pão –, estou em
Battersea, num bloco de apartamentos precisamente do lado oposto à casa.
OK? Não sei qual é o número. Mas deve ser por volta do décimo andar. Até
já. Desculpa. Adeus.
Desliga e olha para Miller.
Ele olha para ela pelo canto do olho e sorri suavemente.
– Eu não vou deixar que nada de mal te aconteça – diz. – Vou certificar-me
de que chegas a tempo da tua próxima reunião. Viva. OK?
Sente-se inundada por uma onda de afeto. Sorri e acena com a cabeça.
Phin aparece com um tabuleiro e coloca-o à frente deles. Ovos mexidos,
abacate esmagado polvilhado com sementes, uma pilha de torradas em pão
de centeio escuro, um pouco de manteiga branca e um jarro de sumo de
laranja gelado.
– Que tal vos parece? – pergunta, distribuindo os pratos.
– Parece excelente – responde Miller, esfregando as mãos, antes de começar
a empilhar torradas no seu prato.
– Café? – oferece Phin. – Chá?
Libby pede café e acrescenta-lhe leite de um jarro. Pega numa torrada, mas
percebe que não tem apetite.
Olha para Phin. Quer fazer-lhe umas perguntas sobre a história que ele lhes
contou na noite passada, mas ainda não conseguiu recompor-se totalmente e
as ideias parecem confusas e distantes, difíceis de apreender. Era qualquer
coisa relacionada com uma mulher chamada Birdie que tocava violino.
Qualquer coisa relacionada com um gato. Qualquer coisa relacionada com
uma lista de regras e um sacrifício pagão e algo muito mau relacionado com
Henry. Mas, na verdade, parece-lhe tudo tão vago que é quase como se ele
não lhes tivesse contado nada. Portanto, pergunta-lhe apenas:
– Tem alguma fotografia de todos vocês quando eram crianças?
– Não – responde, com um ar de pena. – Nenhuma. Lembre-se de que
quando saímos não havia nada na casa. O meu pai vendeu tudo, até ao
último objeto. E o que não vendeu, entregou a lojas de caridade. Mas… –
Faz uma pausa. – Lembra-se de uma canção dos anos oitenta chamada…
Não, é claro que não se lembra, é demasiado nova. Mas havia uma canção de
um grupo chamado Original Version. Esteve em primeiro lugar nos tops
durante semanas, no verão, antes de irmos viver para a casa. Birdie, a
mulher de quem vos falei na noite passada, esteve nesse grupo durante uns
tempos. Aliás, a Birdie e o Justin. E o vídeo da canção foi filmado em
Cheyne Walk. Quer vê-lo?
Libby suspira. Além da fotografia dos pais em traje de noite, no artigo de
Miller no Guardian, isso será o mais perto que conseguirá chegar para ter
uma noção do lugar de onde veio.
Passam para a sala de estar e Phin liga o telemóvel à enorme televisão com
ecrã de plasma. Faz uma pesquisa no YouTube e carrega no play.
Libby reconhece imediatamente a música. Nunca soubera como se chamava
nem quem a cantava, mas conhece-a muito bem.
O vídeo começa com o grupo a atuar em frente ao rio. Estão todos vestidos
de forma semelhante em tweed, com suspensórios, bonés e botas DM. São
muitos, devem ser cerca de dez membros ao todo. Dois deles são mulheres,
uma das quais toca violino, a outra algum tipo de tambor em pele.
– Aqui – diz Phin, parando o vídeo e apontando para o ecrã. – Esta é a
Birdie. A que tem o cabelo comprido.
Libby observa a mulher no ecrã. Esquelética, com um queixo fraco e uma
expressão séria. Segura o violino firmemente contra o queixo e olha para a
câmara, arrogante.
– Essa é que é a Birdie? – pergunta. Não consegue imaginar aquela mulher
frágil e de aparência inexpressiva como a mulher da história que Phin lhes
contou na noite anterior, a mulher sádica que presidiu a uma casa onde
imperava a crueldade e o abuso.
Phin acena com a cabeça.
– Sim. A cabra malévola.
Carrega de novo no play e o grupo está agora dentro de uma casa, uma casa
gloriosa e turbulenta, cheia de pinturas a óleo e um mobiliário exagerado,
tronos de veludo vermelho, espadas e painéis polidos, cortinas esvoaçantes,
cabeças de alce, raposas empalhadas e candelabros brilhantes. A câmara
segue o grupo enquanto os seus membros vão andando pela casa com os
respetivos instrumentos, fazendo pose numa escadaria esculpida, correndo
por corredores com painéis de madeira, lutando com as espadas, usando o
capacete de um cavaleiro, montando o canhão colocado no jardim da frente
e junto a uma enorme lareira de pedra repleta de troncos a arder.
– Oh, meu Deus – exclama Libby. – Era linda.
– Era – diz Phin num tom seco –, não é verdade? E aquela vadia e o meu pai
destruíram-na sistematicamente.
O olhar de Libby regressa à imagem no ecrã da televisão. Dez pessoas
jovens, uma casa cheia de vida e de dinheiro, de energia e de calor.
– Não percebo como tudo pôde acabar dessa maneira – diz baixinho.
42
Chelsea, 1992
A minha mãe cresceu de uma forma que eu nunca imaginei ser possível. De
repente, ela, que sempre fora tão esbelta, com as suas ancas salientes e
cintura alta e estreita, era agora a maior pessoa da casa. Alimentavam-na
constantemente e diziam-lhe para não fazer nada.
Aparentemente, o «bebé» precisava de mil calorias suplementares por dia e
enquanto todos nos sentávamos a comer biryanis19 com cogumelos e sopas
de cenoura, a minha mãe empanturrava-se com esparguete e mousse de
chocolate. Já mencionei como estávamos todos magros nessa altura? Não
que algum de nós já antes tivesse peso a mais, com exceção do meu pai. Mas
nessa altura em que a minha mãe estava a ser engordada como um cabrito
cerimonial estávamos nitidamente magros. Eu, com quase quinze anos,
ainda continuava a usar roupas que me serviam quando tinha onze.
Clemency e a minha irmã pareciam sofrer de distúrbios alimentares e Birdie
era basicamente um ramo de árvore. Digo-vos desde já que a comida vegana
passa a direito por nós; não vai nada para os lados. Contudo, quando esse
tipo de alimentos nos é oferecido em porções médias e nos dizem
constantemente para não sermos gulosos e não pedirmos mais, quando um
cozinheiro odeia manteiga e, por isso, nunca há gordura suficiente (e as
crianças devem comer gordura), outro odeia sal e, por isso, nunca há sabor
suficiente, e outro ainda se recusa a comer trigo, porque faz com que o
estômago inche como uma almofada de puns, então nunca há alimentos
com amido ou mais saciantes, o que, claro, tem como resultado pessoas
muito magras e malnutridas.
Pouco depois de os corpos serem encontrados e de a imprensa deambular
pela nossa casa com microfones e câmaras de mão, uma noite, uma das
nossas vizinhas apareceu no noticiário fazendo referência a como todos
parecíamos magros. «Até me perguntei», dissera ela (quem eu nunca antes
vira), «se seriam devidamente tratados. Fiquei um pouco preocupada. Eram
todos terrivelmente magros. Mas uma pessoa não gosta de interferir, não é
verdade?»
Não, vizinha misteriosa, sem dúvida que não gosta.
Assim, enquanto nós definhávamos, a minha mãe ia crescendo, crescendo.
Birdie fez-lhe umas túnicas de grávida com uma peça de tecido de algodão
preto que meses antes tinha comprado barato numa feira de tecidos com o
intuito de fazer bolsas de tiracolo para serem vendidas no mercado de
Camden. Tinha vendido duas, uma quantidade impressionante, antes de ser
expulsa por outros feirantes que possuíam as devidas licenças, e desistira
instantaneamente do projeto. Mas agora costurava com todo o fervor,
desesperada por fazer parte do que estava a acontecer com a minha mãe.
Pouco depois, David e Birdie começaram também a usar as túnicas pretas
feitas por Birdie. Deram todas as suas outras roupas para a caridade.
Ficavam totalmente ridículos.
Eu deveria ter adivinhado que não iria tardar muito para que nós, crianças,
tivéssemos também de nos vestir dessa forma.
Um dia, Birdie entrou no meu quarto com sacos de lixo.
– Vamos doar todas as nossas roupas à caridade – disse ela. – Há pessoas
que precisam delas mais do que nós. Vim ajudar-te a empacotá-las.
Ao olhar para trás, nem consigo acreditar na facilidade com que capitulei.
Nunca me rendi ao ethos de David, mas tinha medo dele. Vira-o atirar Phin
ao chão no exterior da nossa casa, naquela noite terrível do ano anterior.
Vira-o bater-lhe. Eu sabia que ele era capaz de mais e de pior. E tinha
igualmente medo de Birdie. Fora ela quem libertara o monstro dentro dele.
Por isso, embora muitas vezes eu me queixasse ou resmungasse, nunca
recusei nada. E, assim, dei por mim às três horas da tarde de uma terça-feira,
no final de abril, a esvaziar as minhas gavetas e armários para dentro de
sacos de lixo. Lá se foram as minhas calças de ganga preferidas, lá se foi a
camisola com capuz da H&M que o Phin me tinha dado quando a admirei.
Lá se foram as minhas T-shirts, camisolas de lã e os meus calções.
– Mas então o que vou usar quando sair? – perguntei. – Não posso ir nu.
– Aqui tens – disse ela, entregando-me uma túnica preta e um par de
leggings pretas. – Daqui em diante, é o que todos vamos usar. É o que faz
sentido.
– Não posso sair com isto – exclamei horrorizado.
– Vamos conservar os nossos sobretudos – acrescentou ela. – Também
praticamente nem sais.
Era verdade. Eu era uma espécie de recluso. Com todas as «regras
domésticas», o facto de «não ir à escola» e de também não ter para onde ir,
mal saía de casa. Peguei nas roupas que ela segurava. Ela olhou-me,
expressiva.
– Vá – disse Birdie. – O resto.
Olhei para baixo. Ela estava a referir-se à roupa que eu tinha vestida.
– Posso ter alguma privacidade, por favor? – perguntei, com um suspiro.
Ela olhou-me com desconfiança, mas depois saiu do quarto.
– Rápido – gritou do outro lado da porta. – Tenho muito que fazer.
Despi as roupas o mais depressa que pude e dobrei-as descuidadamente
num rolo.
– Posso ficar com as cuecas? – perguntei.
– Sim, claro que podes – respondeu ela, impaciente.
Enfiei aquela estúpida túnica negra e as leggings e observei-me ao espelho.
Parecia um monge muito pequeno e muito magro. Reprimi a vontade de rir
em voz alta. Então, muito rapidamente, passei uma mão pelo fundo das
minhas gavetas, à procura de algo. Os meus dedos encontraram-no e
observei-o por um momento. O bolo tie que tinha comprado no mercado de
Kensington dois anos antes. Nunca o usara. Mas não suportava a ideia de
nunca o vir a usar. Enfiei-o por baixo do colchão, juntamente com os livros
de bruxaria de Justin e a sua pata de coelho, e fui abrir a porta. Entreguei a
Birdie as minhas roupas dobradas.
– Lindo menino – disse. Por um momento, pareceu que ia tocar no meu
cabelo, mas limitou-se a sorrir e repetiu: – Lindo menino.
Parei por um momento, questionando-me se poderia fazer a pergunta cuja
resposta queria desesperadamente saber, já que naquele momento ela
parecia mais branda. Sustive a respiração e deixei escapar.
– Não tem ciúmes? – perguntei. – Não está com ciúmes por causa do bebé?
Por uma fração de segundo, pareceu abalada. Senti-me como se de repente
conseguisse ver dentro dela, mesmo dentro da gema amarela que escorria do
seu âmago. Ela vacilou, mas recompôs-se de imediato.
– Claro que não – respondeu. – David quer um bebé. Fico grata à tua mãe
por lho poder proporcionar.
– Mas para isso ele não teve de ter… sexo com ela?
Eu não tinha a certeza absoluta de alguma vez ter dito a palavra sexo em voz
alta e senti o meu rosto começar a corar.
– Claro – respondeu, num tom afetado. – Claro que sim.
– Mas ele não é seu namorado?
– Companheiro – corrigiu. – Ele é meu companheiro. Não é minha
propriedade. Eu não sou propriedade dele. Tudo o que importa é a sua
felicidade.
– Sim – disse, pensativo. – Então e a sua?
Ela não respondeu.
A minha irmã fez treze anos alguns dias depois do anúncio da gravidez da
nossa mãe. Embora não seja propriamente uma área da minha
especialidade, eu diria que ela se estava a tornar uma rapariga muito bonita.
Era alta, como a mãe, e agora, um ano desde a implementação da regra «não
há cortes de cabelo», o seu cabelo escuro chegava-lhe até à cintura, além de
que, ao contrário do de Clemency e do de Birdie, que era fino e com as
pontas espigadas, o dela era espesso e brilhante. Era magra, tal como todos
nós, mas notava-se que era elegante. Eu conseguia imaginar (não que
passasse muito tempo a fazê-lo, posso garanti-lo) que, se estivesse arranjada
de outra maneira, teria uma figura espetacular. E havia um rosto
interessante com um certo charme travesso a começar a emergir por baixo
do rosto de bebé que eu estava habituado a ver. Quase belo.
Menciono tudo isto, não por achar que precisam de saber o que eu pensava
do aspeto da minha irmã, mas para o caso de ainda a imaginarem como
uma miudinha. Ela já não era uma miudinha.
Quando aconteceu a coisa seguinte, ela estava muito perto de se tornar uma
mulher.
19
Prato de arroz típico da Índia e do Paquistão. (N. da T.)
44
Libby chega ao trabalho, sem fôlego, dois minutos atrasada para o seu
encontro com Cerian Tahany. Cerian é uma DJ local e uma pequena
celebridade que está a gastar cinquenta mil libras numa cozinha nova e cuja
entrada no showroom parece desencadear sempre uma espécie de zumbido
elétrico. Normalmente, Libby estaria bem preparada para a receber, teria a
papelada pronta, bem como uma chávena de café, ter-se-ia visto ao espelho,
comido um rebuçado de menta e endireitado a saia. Hoje, quando Libby
chega, Cerian já se encontra sentada, a olhar, tensa, para o telemóvel.
– Sinto muito, muito mesmo – diz ela. – Desculpe.
– Não há problema – responde Cerian, desligando o telemóvel e metendo-o
na mala. – Vamos avançar, sim?
Durante uma hora, Libby não tem tempo para pensar nos acontecimentos
do dia anterior. Agora só consegue pensar em bancadas em mármore
Carrara, gavetas para talheres, exaustores e candeeiros pendentes de cobre
versus candeeiros pendentes esmaltados. Para ela, é reconfortante. Adora
falar sobre cozinhas. É boa nessa área. Então, de repente, termina e Cerian
guarda os seus óculos de leitura na mala e despede-se de Libby com um
abraço. Com a sua partida, o ambiente no showroom parece descontrair-se.
Dido chama-a ao escritório.
– Então – começa, segurando a argola de uma lata de Coca Diet –, o que raio
aconteceu?
Libby pestaneja.
– Não sei bem. Foi totalmente bizarro.
Conta-lhe como tinham encontrado Phin no patamar superior das escadas,
como tinham atravessado a ponte de Albert até ao seu deslumbrante
apartamento à beira-rio, em Battersea, com vista direta para a casa. Conta a
Dido o que se lembra da história que Phin lhes relatou no terraço. E a seguir
conta-lhe como acordou naquela manhã, deitada ao lado de Miller numa
grande cama de casal.
– Bem, eu já te podia ter dito que isso ia acontecer – diz Dido.
Libby olha para ela de soslaio.
– O quê?
– Tu e Miller. Vocês têm uma afinidade.
– Não, não temos.
– Têm sim. Confia em mim. Sou ótima nestas coisas. Previ três casamentos
praticamente antes de os casais se conhecerem. A sério.
– Estávamos bêbados e caímos na cama com todas as nossas roupas
vestidas – diz Libby, ignorando aquele absurdo. – E acordámos esta manhã
ainda com todas as nossas roupas. Ah, e ele tem uma tatuagem e eu não
gosto de tatuagens.
– Achei que hoje em dia toda a gente gostava de tatuagens.
– Sim, tenho certeza de que sim, mas eu não.
Nesse momento, o seu telemóvel vibra e ela atende.
– Fala-se no diabo… – diz, vendo o nome de Miller surgir no ecrã.
– Olá!
– Ouve – começa ele, num tom de urgência –, há aqui algo de muito
estranho. Acabei de abrir o meu ficheiro de ontem à noite, com a gravação
da história de Phin. Desapareceu.
– Desapareceu?
– Sim. Foi apagado.
– Onde estás?
– Estou num café em Victoria. Ia agora começar a transcrevê-lo e não está lá.
– Mas… tens a certeza de que estava lá? Talvez não tenhas pressionado
devidamente o botão para gravar?
– Claro que o pressionei devidamente. Lembro-me bem. Eu confirmei. E
ouvi a gravação. Estava lá. Até dei um nome ao ficheiro.
– Então, achas…?
– Só pode ter sido o Phin. Lembras-te de ter dito que achavas que tinhas o
telefone contigo quando te foste deitar? Eu também achava o mesmo. E o
meu telemóvel funciona com reconhecimento da impressão do meu polegar.
Portanto, ele deve ter entrado no nosso quarto quando estávamos a dormir e
ligou o meu telemóvel, usando o meu polegar. E também levou o teu
telemóvel. E depois trancou-nos. E há mais ainda. Pesquisei-o no Google.
Phin Thomsen. Não há qualquer vestígio dele na Internet. Também
pesquisei no Google o apartamento em que mora. É um Airbnb. De acordo
com o sistema, está reservado desde meados de junho. Basicamente desde…
– Desde o meu aniversário.
– Desde o teu aniversário – Miller suspira e passa a mão pela barba. – Não
faço ideia de quem seja este tipo. Mas é duvidoso como tudo.
– A história… consegues lembrar-te dela? O suficiente para descobrirmos a
verdade?
Ele faz uma breve pausa.
– Está um bocado enevoada – admite ele. – Consigo lembrar-me da maior
parte. Mas mais para o fim ficou realmente…
– Eu também – atalha ela. – Ficou realmente nebuloso. E dormi…
– Como um morto – finaliza Miller.
– E durante todo o dia, senti-me…
– Muito, muito estranho.
– Muito estranha – concorda Libby.
– E começo a pensar…
– Sim – interrompe ela –, eu também. Acho que ele nos drogou. Mas
porquê?
– Não faço ideia – diz Miller. – Mas será melhor verificares o teu telemóvel.
Tens password?
– Tenho.
– Qual é?
– É a minha data de nascimento – suspira, deixando descair os ombros.
– Está bem – diz Miller. – Bom, é melhor veres se há alguma coisa estranha
no teu telemóvel. Ele pode ter lá deixado algo. Spyware ou algo do género.
– Spyware?
– Quem sabe? Ele é estranho. Na noite passada, tudo foi estranho. Ele
invadiu a tua casa. Drogou-nos…
– Pode ter-nos drogado.
– Pode ter-nos drogado. Pelo menos, entrou no nosso quarto enquanto
dormíamos, usou a minha impressão digital para aceder ao meu telemóvel,
tirou o teu telefone da tua mala e depois trancou-nos. Eu não poria as mãos
no fogo por ele.
– Não – concorda ela, suavemente. – Não, tens razão. Vou ver o meu
telemóvel. Na verdade, ele até pode estar a ouvir-nos neste preciso
momento.
– Sim. Pois pode. Amiguinho, se estás a ouvir, estamos em cima de ti, seu
sacana sinistro. – Ela ouve-o respirar fundo, antes de continuar. – Devíamos
voltar a encontrar-nos. Em breve. Estive a pesquisar a Birdie Dunlop-Evers.
Tem um historial interessante. E acho que também descobri mais alguma
coisa sobre aquele outro fulano que lá morava: Justin, o namorado da Birdie.
Quando estás disponível?
A pulsação de Libby acelera com a perspetiva de novos desenvolvimentos na
história.
– Hoje à noite – responde, sem fôlego. – Bem, se calhar… – olha para Dido
que a observa com atenção. – Agora? – dirige a pergunta a Dido, que acena
com a cabeça freneticamente e sussurra, vai, vai.
– Podemos encontrar-nos agora. Em qualquer lugar.
– No nosso café? – pergunta ele.
Ela sabe exatamente a qual ele se refere.
– Sim – responde. – No nosso café. Posso lá estar daqui a uma hora.
Depois de ela desligar, Dido olha para ela e observa:
– Sabes, acho que esta seria uma boa ocasião para tirares umas férias.
– Mas… – Libby faz uma careta.
– Mas nada. Eu trato dos Morgans e da Cerian Tahany. Dizemos que estás
doente. O que se está aqui a passar é mais importante do que cozinhas.
Libby começa a abrir a boca para dizer algo a favor da importância das
cozinhas. As cozinhas são importantes. As cozinhas fazem as pessoas felizes.
As pessoas precisam de cozinhas. As cozinhas e as pessoas que as compram
têm sido a sua vida nos últimos cinco anos. Mas ela sabe que Dido tem
razão.
Portanto, faz um gesto de concordância e diz apenas:
– Obrigada, Dido.
Arruma a sua secretária, responde a dois novos e-mails, configura a sua
conta para a resposta automática «fora do escritório» e sai da St. Albans
High Street, em direção à estação de comboios.
45
Chelsea, 1992
Quando Libby entra no café, em West End Lane, Miller está a comer.
– O que é isso? – pergunta, pendurando a mala nas costas da cadeira
e sentando-se.
– Um wrap de frango e chouriço – responde ele, limpando um pouco
de molho do canto da boca. – É tão bom. Tão, tão bom.
– São quatro da tarde – diz ela. – Que refeição é essa?
Ele pondera por um momento.
– Um almoço tardio? Ou um jantar antecipado? Um «almar»? Um
«jantoço»? Já comeste?
Ela abana a cabeça. Não come desde o pequeno-almoço no terraço de Phin
nessa manhã, nem tem vontade.
– Não estou com fome – responde.
Ele encolhe os ombros e dá mais uma trincadela no seu wrap.
Libby manda vir um bule de chá e espera que Miller acabe de comer.
Há algo de extremamente atraente no apetite dele. Come como se não
houvesse mais nada que preferisse estar a fazer. Ela repara que ele come com
atenção.
– Então – diz Miller, abrindo o seu portátil, digitando algo e virando-o, de
seguida, para Libby –, apresento-te a Birdie Dunlop-Evers. Ou Bridget
Elspeth Veronica Dunlop-Evers, que é o seu nome completo. Nasceu em
Gloucestershire, em abril de 1964. Mudou-se para Londres em 1982 e
estudou violino no Royal College of Music. Costumava tocar na rua aos fins
de semana e depois juntou-se a uma banda chamada Green Sunday, com o
seu namorado de então, Roger Milton. Este viria a ser, aliás, vocalista dos
Crows.
Miller olha para ela com expectativa.
– Eles são famosos? – pergunta Libby, olhando-o, inexpressiva.
Ele revira os olhos.
– Isso não importa – responde ele. – Bem, ela continuou a tocar violino
durante alguns anos antes de fazer uma audição para uma banda chamada
Original Version. Começa então um relacionamento com um homem
chamado Justin Redding e leva-o para o grupo como percussionista.
Segundo entrevistas da época, ela era bastante controladora. Ninguém
gostava dela. No verão de 1988, o grupo chegou a ser número um nas
tabelas e depois ainda lançou mais um single com ela e Justin, mas quando a
coisa começou a correr mal, ela culpou toda a gente, fez uma fita e saiu do
grupo, levando Justin consigo. E esse é o fim da história da vida de Birdie
Dunlop-Evers na Internet. Não há mais nada. Apenas… – Faz um gesto com
a mão para descrever algo a cair de um penhasco.
– Então e os pais dela?
– Nada. Ela era uma de oito filhos, de uma grande família católica de classe
alta. Tanto quanto sei, os pais ainda estão vivos... pelo menos, não encontrei
nada que sugira o contrário; e há dezenas de pequenos e chiques Dunlop-
Everses por aí a tocar instrumentos musicais e a gerir serviços de entregas de
produtos veganos ao domicílio. Por alguma razão, a família dela não
reparou, ou talvez apenas não quisesse saber, que a sua quarta filha
desapareceu da face da Terra em 1994.
– E o namorado dela? Justin?
– Nada. Um par de menções durante a sua breve fase como percussionista
nos dois singles de sucesso dos Original Version. Mas mais nada.
Libby faz uma pausa para absorver tudo aquilo. Como é possível as pessoas
desaparecerem, como se tivessem deixado de existir? Como é possível que
ninguém tenha dado por isso?
Ele volta a virar o ecrã para si mesmo e digita alguma coisa.
– Então – prossegue Miller –, a seguir comecei a pesquisar Phin. Entrei em
contacto com o proprietário do Airbnb e expliquei-lhe que estava a
investigar um caso de homicídio e que precisava do nome da última pessoa
que arrendara o seu apartamento. Ele foi bastante acessível e claramente
estava ansioso por participar num caso tão excitante. O nome do
arrendatário era Justin Redding.
Libby olha para ele, chocada.
– O quê?
– Phin, ou quem quer que esse tipo seja, usou o nome do ex-namorado de
Birdie para se hospedar num Airbnb.
– Oh – exclama ela. – Uau.
– Não é? – digita outra coisa no portátil. – E por último, mas não menos
importante, apresento-te Sally Radlett.
Volta a virar o ecrã para ela. A imagem é de uma mulher mais velha, de
cabelo prateado cortado em forma de capacete, óculos com armações
espessas, uns olhos azuis aquosos, uma sugestão de sorriso, uma blusa azul-
clara desabotoada até ao terceiro botão, pescoço pálido, ecos de beleza nos
ângulos do rosto. Por baixo da fotografia está escrito «Terapeuta de Vida e
Coach. Penreath, Cornualha».
– A cidade certa. A idade certa. Parece uma carreira na área adequada a uma
terapeuta. É o tipo de treta que ela poderia acabar por fazer, não é? Se fosse
realmente a Sally Thomsen?
Olha para Libby, triunfante.
– O que achas? – pergunta. – É ela, não é?
– Bem, sim, acho que pode ser – responde Libby, encolhendo os ombros.
– E aqui está o endereço dela – aponta para o ecrã e ela pode ver a pergunta
nos seus olhos.
– Achas que devemos ir?
– Acho que sim.
– Quando?
Ele levanta uma sobrancelha, sorri e marca um número no seu telemóvel.
Pigarreia e diz:
– Olá, é Sally Radlett?
Consegue ouvir uma voz dizer sim do outro lado da linha.
Depois, tão repentinamente como fez a ligação, Miller desliga. Olha para
Libby e pergunta:
– Agora?
– Mas… – Libby parece prestes a começar a procurar um motivo para não
poder ir de imediato, mas lembra-se de que não tem nenhum. – Preciso de
tomar um banho – consegue dizer.
Ele sorri, vira de novo o computador para si mesmo e começa a digitar.
– Bed & Breakfast ou Premier Inn? – pergunta Miller.
– Premier Inn.
– Excelente. – Com mais alguns cliques, ele reservou-lhes dois quartos num
Premier Inn em Truro. – Podes tomar um banho quando lá chegarmos. –
Fecha o computador, desliga-o da tomada e coloca-o numa mala de nylon. –
Preparada?
Ela levanta-se estranhamente excitada ante a perspetiva de passar o resto do
dia com ele.
– Preparada.
47
Eu decidi que o bebé que estava a chegar era a causa de todos os nossos
males. Vi a minha mãe a engordar, enquanto todos nós íamos ficando mais
magros. Vi David a agitar as penas da cauda, vaidoso e empertigado. A cada
quilo que a minha mãe ganhava, sempre que o bebé dava pontapés ou se
remexia, David desenvolvia mais uma camada de enjoativa autoconfiança.
Tentei agarrar-me ao que Phin me contara no dia em que fomos ao mercado
de Kensington, sobre David ter sido expulso da última casa em que se
infiltrara tentando assumir o controlo. Tentei imaginar a humilhação de ter
sido apanhado em flagrante a roubar os seus anfitriões. Tentei recordar-me
de que o homem que aparecera sem teto e sem um tostão à nossa porta
quatro anos antes era o mesmo que agora se pavoneava pela minha casa
como um peru inchado.
Eu não podia suportar a ideia da existência daquele bebé. Sabia que David
iria usá-lo para consolidar o seu papel como deus do nosso pequeno
universo distorcido. Se o bebé não viesse, a minha mãe poderia parar de
estar sempre a comer, e já poderíamos trazer germes para dentro de casa. E,
mais importante ainda, não haveria absolutamente razão nenhuma para
termos mais qualquer coisa que ver com David Thomsen. Não haveria nada
a ligar-nos, nada.
Sabia o que tinha de fazer e isso não me permite ser visto sob uma luz mais
benevolente. Mas eu era uma criança. Estava desesperado. E estava a tentar
salvar-nos a todos.
As drogas eram surpreendentemente fáceis de administrar. Certifiquei-me
de cozinhar o mais possível para a minha mãe. Fiz-lhe os seus chás de
plantas e sumos de vegetais. Envolvia tudo o que lhe dava com os elementos
que vinham listados no capítulo do livro de Justin que se intitulava: «Pôr
Termo a Uma Gravidez Indesejada de Forma Natural». Toneladas de salsa,
canela, artemísia, sementes de sésamo, camomila e óleo de prímula.
Quando eu lhe dava um copo de sumo, ela acariciava-me a mão e dizia:
– Tens sido tão bom menino, Henry. Sinto-me abençoada por te ter a cuidar
de mim.
E eu corava um pouco e não respondia porque, de certa forma, eu estava a
cuidar dela. Estava a certificar-me de que ela não ficava amarrada a David
para sempre. Mas, por outro lado, não estava realmente a cuidar dela.
Até que um dia, quando estava com cerca de cinco meses de gravidez e o
bebé era real e já tinha começado a dar pontapés e a mexer-se, a minha mãe
desceu as escadas e eu ouvi-a falar com Birdie na cozinha.
– O bebé não se está a mexer – queixava-se. – Pelo menos hoje ainda não se
mexeu.
Ao longo do dia, a consternação foi aumentando e eu sentia um enjoo
sinistro e terrível no fundo do estômago, porque sabia o que vinha a seguir.
Claro que não chamaram um médico, nem a levaram a um serviço de
urgência. Aparentemente, David Thomsen era um ginecologista qualificado,
para além das suas outras múltiplas capacidades. Era ele quem se
encarregava de tudo, mandando alguém apressar-se a ir buscar toalhas, água
e tinturas homeopáticas inúteis.
Só ao fim de cinco dias, depois de ter morrido, o bebé saiu.
A minha mãe chorou durante horas. Permaneceu no seu quarto com David
e Birdie e o bebé, a fazer sons que se ouviam por toda a casa. Nós, as quatro
crianças, mantínhamo-nos juntas no sótão, em silêncio, incapazes de
assimilar devidamente o que acabara de acontecer. Até que, finalmente,
bastante mais tarde nesse dia, a minha mãe trouxe o bebé para baixo
embrulhado num xaile preto e David preparou uma sepultura para ele na
extremidade do jardim. O bebé foi enterrado na escuridão da noite com
velas acesas a toda a volta.
Nessa noite, procurei a companhia do meu pai. Sentei-me na sua frente e
perguntei:
– Sabias que o bebé morreu?
Ele virou-se e olhou para mim. Sabia que ele não iria responder à pergunta,
porque não conseguia falar. Mas achei que nos seus olhos poderia haver algo
que me permitisse saber o que pensava sobre o que acontecera nesse dia.
Contudo, tudo o que vi nos seus olhos foi medo e tristeza.
– Era um rapazinho – disse eu. – Chamaram-lhe Elijah. Estão agora
a enterrá-lo, no jardim das traseiras.
Continuou a olhar para mim.
– Provavelmente, é melhor assim, não é? Não achas?
Eu procurava redenção pelos meus pecados. Decidi entender o seu silêncio
como sinal de aprovação.
– Quero dizer, o mais certo era ter morrido de qualquer forma, não é? Sem
assistência médica? Ou, pior ainda, a mamã podia ter morrido. Por isso
talvez tivesse sido melhor assim. – Olhei para o meu reflexo no vidro escuro
da janela atrás do meu pai. Eu parecia jovem e tolo. – Era muito pequeno.
A voz falhou-me nesta última palavra. O bebé era tão pequenino, como uma
boneca esquisita. Doeu-me o coração ao vê-lo. O meu irmãozinho.
– Seja como for, foi o que aconteceu. E agora suponho que todos nós
podemos tentar voltar ao normal.
Mas era esse o problema. Não havia um normal. A vida do meu pai não era
normal. A nossa existência não era normal. O bebé tinha partido, mas eu
continuava a não ter sapatos. O bebé tinha partido, mas o meu pai
continuava sentado numa cadeira durante todo o dia, a fixar uma parede. O
bebé tinha partido, mas não havia escola, nem férias, nem amigos, nem
mundo exterior.
O bebé tinha partido, mas David Thomsen continuava ali.
48
Adormece já depois das três da manhã, uma vez que a sua mente se recusara
teimosamente a desligar durante várias horas. De repente, está a sonhar.
E então, com a mesma rapidez, acorda de novo. Senta-se direita. Marco
senta-se também. O seu telemóvel diz-lhe que todos estiveram a dormir até
tarde.
Ouvem-se passos lá em cima.
Lucy põe uma mão sobre a de Marco e toca nos lábios com a ponta do dedo
indicador.
Volta tudo a ficar em silêncio e ela começa a relaxar. Mas depois ouve de
novo, o som nítido de passos, as tábuas do chão a ranger.
– Mãe…
Ela aperta-lhe a mão e levanta-se lentamente. Dirige-se à porta em bicos dos
pés. O cão acorda e levanta a cabeça, desenrosca-se do corpo de Stella
e segue Lucy até à porta. As unhas das suas patas ressoam sobre as tábuas do
chão de madeira e ela pega-lhe ao colo. Apercebe-se de um rosnado
a formar-se na parte de trás da garganta do animal e manda-o calar-se.
Marco está mesmo atrás e ela consegue ouvir a sua respiração intensa
e pesada.
– Fica aí – sussurra.
O rosnado na garganta de Fitz começa a intensificar-se cada vez mais. Ouve-
se um novo rangido por cima das suas cabeças e então Fitz já não se
controla.
O rangido para.
Mas logo a seguir ouvem o som de passos, seguros e firmes, que descem a
escada de madeira que leva aos quartos do sótão. Ela para de respirar. O cão
recomeça a ladrar e debate-se para se libertar dos seus braços. Empurra bem
a porta e pressiona o corpo contra ela.
Stella está acordada e arregala os olhos na direção da porta.
– O que se passa, mamã?
– Nada, querida – sussurra, do outro lado do quarto. – Nada. É só o Fitz que
está a ser tolinho.
A porta para o patamar do primeiro andar range e depois é fechada com
força.
A adrenalina percorre-lhe o corpo.
– É a bebé? – pergunta Marco num sussurro urgente, com os olhos
arregalados de terror.
– Não sei – responde. – Não sei quem é.
Os passos avançam pelo patamar e então ouvem alguém respirar do outro
lado da porta. O cão fica quieto, com as orelhas para trás, os dentes
arreganhados. Lucy desencosta-se da porta e abre apenas uma fresta. Então,
o cão salta dos seus braços e abre caminho por entre o espaço que aí ficou.
Está um homem do lado de fora do quarto e o cão ladra e agita-se em volta
dos seus tornozelos. O homem olha para baixo, para o cão, com um
pequeno sorriso, e estende-lhe a mão, para ele a farejar. Fitz acalma-se,
cheira-lhe a mão e deixa o homem afagar-lhe a cabeça.
– Olá, Lucy – cumprimenta o homem. – Que cão simpático.
III
49
Chelsea, 1992
Nessa noite, o rosto doía-me no sítio onde David me tinha batido, o meu
estômago roncava e eu não conseguia dormir. Fiquei toda a noite acordado a
olhar para as nuvens a passarem à frente da Lua, a ver as formas escuras dos
pássaros no topo das árvores, a ouvir a casa a ranger e a suspirar.
Creio que, no decurso da semana que se seguiu, enlouqueci um pouco.
Arranhei as paredes com as unhas até as pontas dos dedos sangrarem. Bati
com a cabeça no chão. Fiz barulhos de animais. Vi coisas que não existiam.
Acho que a ideia de David era que eu saísse da minha prisão subjugado e
pronto para um novo começo. Mas não foi esse o caso.
Quando, uma semana depois, a porta foi finalmente destrancada e fui
autorizado a voltar a andar pela casa, não me senti, de modo algum,
subjugado. Senti-me monstruosamente consumido por uma ira justa. Ia
acabar com David, de uma vez por todas.
Ao recuperar, por fim, a minha liberdade, havia algo mais no ar, um grande
segredo a flutuar na atmosfera, levado pelas partículas de poeira e raios
solares, preso nos fios das teias de aranha nos cantos altos das divisões da
casa.
Quando me juntei a todos à mesa do pequeno-almoço, nessa primeira
manhã depois do isolamento, perguntei a Phin:
– O que se passa? Porque estão todos a comportar-se de forma tão estranha?
– Não é assim que todos se comportam sempre por aqui? – disse Phin,
encolhendo os ombros.
– Não. É mais estranho do que habitualmente. Como se algo se passasse –
insisti.
Nessa altura, para mim tornou-se óbvio que Phin já estava doente. A sua
pele, antes tão macia e perfeita, parecia agora acinzentada e manchada. O
seu cabelo caía, oleoso, para um lado. E tinha um cheiro um pouco estranho,
um pouco azedo.
Disse-o a Birdie.
– Phin parece doente.
– Phin está ótimo. Precisa apenas de mais exercício – respondeu ela, de um
modo afetado.
Através da porta da sala de ginástica, eu ouvia o pai dele a implorar-lhe que
se esforçasse mais.
– Mais. Tu consegues. Empurra. Força. Vá lá! Nem sequer estás a tentar!
Vi Phin sair da sala de ginástica, com aspeto pálido e enjoado, e começou a
subir lentamente as escadas que conduziam ao sótão, como se cada degrau
lhe provocasse uma dor.
– Devias vir comigo ao jardim. O ar fresco ajuda – disse-lhe.
– Não quero ir a lugar nenhum contigo – replicou.
– Bem, não tens de vir comigo. Podes ir ao jardim sozinho.
– Não percebes? – perguntou. – Nada nesta casa me poderá fazer bem. A
única coisa que me ajudaria seria não estar aqui. Preciso de ir embora.
Preciso de ir embora – disse e os seus olhos pareciam perfurar os meus.
Eu sentia que a casa estava a morrer. Primeiro foi o meu pai a enfraquecer,
depois a minha mãe, agora Phin. Justin tinha-nos abandonado. O bebé
estava morto. De facto, eu já não conseguia ver qual era o sentido de tudo
isto.
Então, uma tarde, ouvi o som de gargalhadas vindo lá de baixo. Espreitei
para o corredor e vi David e Birdie a saírem da sala de exercício. Ambos
resplandeciam de saúde. David passou um braço em volta dos ombros de
Birdie e puxou-a para si, beijando-a com força nos lábios com um som de
muah repugnante. Eram eles. Via-o com toda a clareza. Eram eles que
esgotavam a casa, como vampiros, consumindo toda a sua energia, todo o
seu amor, vida e bondade, ficando com tudo para si, banqueteando-se com a
nossa infelicidade e os nossos espíritos destroçados.
Então olhei à minha volta, para as paredes nuas onde as pinturas a óleo
outrora estiveram penduradas, para os cantos vazios onde antes estavam
belas peças de mobiliário. Pensei nos candelabros que ali tinham brilhado
com a luz do Sol. A prata, o bronze e o ouro que tinham cintilado em todas
as superfícies. Pensei no guarda-vestidos da minha mãe, com roupas de
design e malas, nos anéis que lhe adornavam os dedos, os brincos de
diamante e os pingentes de safira. Agora, tudo desaparecera. Fora tudo para
a suposta «caridade», para ajudar os «pobres». Estimei o valor de todos esses
bens perdidos. Suspeitava que seria de milhares de libras. Muitos milhares
de libras.
Depois olhei de novo para David, para o seu braço em volta dos ombros de
Birdie, ambos tão livres e despreocupados com tudo o que se passava
naquela casa. Pensei: não és um messias, um guru ou um deus, David
Thomsen. Não és um filantropo nem um benfeitor. Não és um homem
espiritual. És um criminoso. Vieste à minha casa e saqueaste-a. E também
não és um homem de compaixão. Se fosses um homem de compaixão,
estarias agora sentado com a minha mãe enquanto ela chora o seu bebé
perdido. Arranjarias uma forma de ajudar o meu pai a sair da sua vida
infernal. Levarias o teu filho ao médico. Não estarias a rir-te com Birdie.
Estarias demasiado sobrecarregado pela infelicidade de todos os outros.
Portanto, se não sentes compaixão, isso significa que não tens dado o nosso
dinheiro aos pobres. Só podes tê-lo guardado para ti mesmo. Deve ser o tal
«esconderijo» de que Phin me falou há tantos anos. E, se for esse o caso,
então onde está? E o que estás a planear fazer com ele?
51
Chelsea, 1992
Chelsea, 1992
Chelsea, 1993
Eu não matei a gata da Birdie. Claro que não. Mas sim, de facto morreu por
minha culpa.
Eu estava a trabalhar noutra poção para dormir, algo com beladona, um
pouco mais forte do que aquela que tinha dado a David e a Birdie para
conseguir entrar no seu quarto. Algo que proporcionasse um
entorpecimento um pouco menos temporário. Testei-a na gata,
considerando que se não lhe fizesse mal, então provavelmente seria segura
para os humanos. Infelizmente, fez mal à gata. Aprendi a lição. Fiz a poção
seguinte muitíssimo mais fraca.
Quanto à cauda da gata, bem, parece duro exprimi-lo dessa maneira: cortar-
lhe a cauda. Fiquei com ela. Era linda, tão macia e com umas cores
extraordinárias. Lembrem-se de que, nessa época, eu não tinha nada, nada
macio, tudo nos fora retirado. Ela já não precisava da cauda. Por isso, sim,
fiquei com a cauda da gata. E – fake news – não atirei a gata para o Tamisa.
Como poderia tê-lo feito? Eu nem sequer podia sair de casa. Na verdade, a
gata permanece até hoje enterrada no meu jardim de plantas aromáticas.
Quanto a ter sido eu quem empurrou Phin para o Tamisa, e não o contrário:
bem, isso é categoricamente mentira. O que pode ser verdade é que Phin me
empurrou durante uma luta que se seguiu à minha tentativa de o empurrar
lá para dentro. Sim. Pode ter sido esse o caso. Ele disse que eu estava a olhar
fixamente para ele.
– Estou a olhar porque tu és lindo – justifiquei.
– O teu comportamento é estranho. Porque é que tens de ser sempre tão
estranho? – perguntou ele.
– Não percebes, Phin? Não vês que eu te amo?
(Antes de me julgarem com demasiada severidade, lembrem-se, por favor,
de que eu tinha tomado LSD. Não estava num estado normal.)
– Para com isso – disse ele. Estava embaraçado.
– Por favor, Phin – implorei. – Por favor. Amo-te desde o primeiro minuto
em que te vi… – E depois tentei beijá-lo. Os meus lábios roçaram os seus e,
por um instante, pensei que ele ia corresponder ao meu beijo. Ainda me
lembro da comoção, da maciez dos seus lábios, do pequeno sopro de ar que
passou da sua boca para a minha.
Pousei uma mão na sua face e então ele afastou-se e olhou para mim com
uma repugnância tão ostensiva que eu me senti como se uma espada me
tivesse trespassado o coração.
Ele empurrou-me e eu quase caí para trás. Por isso, empurrei-o e ele
empurrou-me e eu empurrei-o e ele empurrou-me e foi assim que caí, sei
que não foi deliberado. E, por isso, foi muito pior eu ter permitido que o pai
dele pensasse que ele me tinha empurrado de propósito, que eu tivesse
deixado que ele ficasse trancado no seu quarto durante todos aqueles dias e
nunca ter dito a ninguém que fora um acidente. Ele também nunca disse a
ninguém de que se tratara de um acidente, porque nesse caso teria de dizer-
lhes que eu o beijei. E, bem, claramente não havia confissão pior para se
fazer do que essa.
56
Chelsea, 1993
Chelsea, 1994
Sei que parece que tudo foi apenas um terrível desastre. Claro que sim.
Qualquer situação envolvendo quatro corpos mortos está claramente longe
de ser ideal.
Mas o que ninguém parece perceber é que sem mim, Cristo Todo-Poderoso,
poderíamos ainda lá estar todos, esqueletos de meia-idade, com a vida
inteira perdida. Ou podíamos estar mortos. Sim, não nos podemos esquecer
de que poderíamos estar todos mortos. E sim, de facto, as coisas não
correram exatamente de acordo com o planeado, mas a verdade é que
saímos de lá. Saímos de lá. E mais ninguém tinha um plano, pois não?
Ninguém mais se chegou à frente. É fácil criticar. Não é fácil assumir o
controlo.
Não só tinha quatro cadáveres, um bebé e duas adolescentes com quem
lidar, como ainda tinha Phin. Ele estava a comportar-se de uma forma
delirante e acabava por ser mais um problema e então, só para facilitar as
coisas, tranquei-o no seu quarto.
Sim, eu sei. Mas eu precisava de pensar como deve ser.
Conseguíamos ouvi-lo chorar no seu quarto lá em cima. As raparigas
queriam ir ter com ele, mas eu disse:
– Não, fiquem aqui. Temos de trabalhar juntos. Não podem ir a lado
nenhum.
Parecia-me que Birdie era a primeira prioridade. Era bizarro vê-la ali, tão
pequena, aniquilada, a pessoa que controlara as nossas vidas durante tanto
tempo. Tinha vestido o top que Clemency lhe fizera para o seu aniversário e
tinha posto um fio que David lhe dera. O seu cabelo comprido estava preso
num coque. Os olhos claros estavam fixos numa parede. Um dos seus globos
oculares tinha uma cor vermelha brilhante. Os seus pés ossudos estavam
descalços, deixando ver as unhas muito compridas e ligeiramente amarelas.
Tirei-lhe o fio que tinha ao pescoço e guardei-o no meu bolso.
Clemency chorava.
– É tão triste – dizia. – Tão triste! Ela é filha de alguém! E agora está morta!
– Não é nada triste – disse eu, asperamente. – Ela merecia morrer.
Clemency e eu levámo-la para o sótão e depois para o telhado. Era muito
leve. Do outro lado do telhado plano, onde eu uma vez segurara a mão de
Phin, havia uma espécie de vala. Estava cheia de folhas mortas e ia até junto
do algeroz que descia pela lateral do edifício. Envolvemo-la em toalhas e
lençóis e enfiámo-la lá dentro. Depois cobrimo-la com punhados de folhas
secas e com alguns pedaços de madeira velha de um andaime que
encontrámos lá em cima.
A seguir, já na cozinha, olhei desapaixonadamente para os três cadáveres.
Não podia permitir que a minha mente se fixasse na realidade da situação.
Eu tinha matado os meus próprios pais. A minha linda e estúpida mãe e o
meu pobre e debilitado pai. Tive de me distanciar do facto de que, por
minha causa, a minha mãe nunca mais me passaria a mão pelo cabelo nem
me chamaria «seu lindo menino», nunca mais me sentaria num clube
reservado a membros com o meu pai, a beber limonada em silêncio. Não
haveria família para a qual voltar no dia de Natal, nem avós para quaisquer
filhos que eu pudesse vir a ter, nem ninguém com cujo envelhecimento
tivesse de me preocupar, ninguém para se preocupar comigo quando eu
fosse velho. Eu era um órfão. Um órfão e um assassino involuntário.
Mas não entrei em pânico. Mantive as minhas emoções controladas e olhei
para as três figuras estendidas no chão da cozinha. Parecem membros de um
culto, pensei. Qualquer pessoa que ali entrasse e os visse com aquelas túnicas
pretas a condizer pensaria que se tinham matado.
Nessa altura, tornou-se óbvio o que precisava de fazer. Tinha de preparar o
cenário de um pacto de suicídio. Transformámos a parafernália da festa em
algo que parecesse um pouco menos uma «festa frívola de trigésimo
aniversário» e mais uma «última ceia bastante séria». Livrámo-nos dos
pratos a mais. Lavámos todos os tachos e frigideiras e deitámos fora toda a
comida velha. Dispusemos os corpos de modo a que ficassem todos na
mesma direção. Pressionei as pontas dos seus dedos sobre os frasquinhos
vazios que, de seguida, pousei sobre a mesa, um em cada lugar, como se os
três tivessem tomado o veneno ao mesmo tempo.
Não falámos.
Parecia um ritual estranhamente sagrado.
Beijei o rosto da minha mãe. Estava muito frio.
Beijei a testa do meu pai.
E então olhei para David. Ali estava ele, o homem que, tal como Phin
previra meses antes, tinha arrasado a minha vida. O homem que nos
destruíra, nos batera, nos negara comida e liberdade, nos tirara os
passaportes, engravidara a minha mãe e a minha irmã e tentara ficar com a
nossa casa. Eu tinha acabado com a sua patética existência e sentia-me
triunfante. Contudo, ao mesmo tempo, sentia um nojo terrível.
Olha para ti, apetecia-me dizer, olha só para ti, para o completo falhado em
que te tornaste.
Apetecia-me desfazer-lhe a cara a pontapé e transformá-la numa polpa
sangrenta, mas resisti ao impulso e voltei para o quarto de Birdie e David.
Chelsea, 1994
Libby olha para Lucy, esta mulher rodeada por duas crianças amorosas que
trouxe de França para Inglaterra. E até trouxe o seu cãozinho. Claramente
não é o tipo de mulher que deixa para trás as pessoas que ama.
– Porque me deixou? – pergunta.
Lucy começa de imediato a abanar a cabeça.
– Não – responde. – Não. Não, eu não te deixei. Nunca te deixaria. Mas Phin
estava muito doente e tu estavas bem e muito saudável. Por isso, deitei-te no
berço, esperei que adormecesses e regressei ao quarto de Phin. Henry estava
a dormir e eu consegui persuadir Phin a levantar-se finalmente. Ele era tão
pesado; eu era tão fraca. Consegui tirá-lo de casa e dirigimo-nos à casa do
médico do meu pai, o Doutor Broughton. Lembrava-me de me levarem lá
quando era pequena, mesmo ao virar da esquina. A sua porta da frente era
vermelha e brilhante. Eu lembrava-me. Devia ser perto da meia-noite. Ele
veio abrir a porta de roupão. Disse-lhe quem era. E depois disse – ela ri-se
ironicamente com a lembrança – «Eu tenho dinheiro! Posso pagar-lhe!»
«A princípio, ele pareceu zangado. Mas então olhou para Phin, olhou-o
atentamente e disse: “Oh, meu Deus, oh, meu Deus.” Subiu as escadas
rapidamente, resmungando em voz baixa, e pouco depois voltou
completamente vestido, com camisa e calças.
«Levou-nos para o seu consultório. Todas as luzes estavam apagadas. Ele
acendeu-as, duas fileiras de luzes fluorescentes, que se iluminaram de uma
só vez. Tive de proteger os olhos. Deitou Phin numa marquesa, verificou
todos os seus sinais vitais e perguntou-me o que raio se passava. “Onde estão
os teus pais?”, inquiriu de seguida. Eu não fazia ideia do que dizer.
«“Foram embora”, acabei por responder. E ele olhou-me de soslaio. Como se
quisesse dizer “voltamos a esse assunto mais tarde”. Depois telefonou a
alguém. Ouvi-o a explicar a situação com muito jargão médico. Meia hora
mais tarde, chegou um homem novo. Era o enfermeiro do Doutor
Broughton. Entre ambos fizeram cerca de uma dúzia de testes. O enfermeiro
partiu a meio da noite, com um saco cheio de amostras para levar a um
laboratório. Fiquei dois dias sem dormir. Eu só via estrelas. O Doutor
Broughton preparou-me uma chávena de chocolate quente. Foi, por mais
louco que pareça, o melhor chocolate quente da minha vida. Sentei-me no
sofá do seu consultório e adormeci.
«Quando acordei eram cerca de cinco horas da manhã e o enfermeiro tinha
regressado do laboratório. Phin estava a receber soro. Tinha os olhos
abertos. O Doutor Broughton disse-me que ele sofria de desnutrição grave.
Explicou-me que, com bastantes líquidos e algum tempo de recuperação,
acabaria por ficar bem.
«“O pai dele morreu. Não sei onde vive a mãe. Nós temos uma bebé. Não sei
o que fazer”, limitei-me a dizer, abanando a cabeça.
«Quando lhe disse que tínhamos uma bebé, mostrou-se chocado. “Meu
Deus, quantos anos tens?”
«E eu respondi: “Tenho quinze anos.” Ele lançou-me um olhar estranho e
perguntou: “Onde está essa bebé?”
«“Está em casa. Com o meu irmão”, respondi.
«“E os teus pais? Onde estão?”
«“Morreram.”
«“Não fazia ideia”, disse ele, suspirando. “Lamento muito.” Depois
continuou: “Ouve. Eu não sei o que se passa aqui e não me quero envolver
em nada disto. Mas trouxeste este rapaz à minha porta e eu tenho o dever de
tratar dele. Portanto, vamos deixá-lo ficar aqui durante algum tempo. Tenho
um quarto onde ele se poderá instalar.”
«E então eu disse que queria ir embora, voltar para junto de ti, mas ele
ripostou: “Pareces anémica. Quero fazer-te alguns exames antes de te deixar
regressar. E dar-te alguma coisa para comer.”
«Por isso ele alimentou-me, dando-me uma tigela de cereais e uma banana.
Tirou-me um pouco de sangue, viu a minha tensão arterial e os meus dentes
e ouvidos, como um cavalo no mercado.
«Disse-me que eu estava desidratada e que precisava de ficar algum tempo
sob observação e a receber fluidos.
Nesse momento, Lucy levanta os olhos para Libby e diz:
– Lamento. Lamento muito. Mas quando ele me disse que eu estava bem e
que podia ir embora, já tudo tinha terminado. A polícia tinha ido lá, os
serviços sociais também e tu já não estavas em casa.
Os seus olhos encheram-se de lágrimas.
– Era demasiado tarde.
64
Chelsea, 1994
Fui eu quem cuidou de ti, Serenity. Fiquei para trás e dei-te bananas
esmagadas, leite de soja, papas de aveia e arroz. Troquei-te as fraldas. Cantei
para adormeceres. Passámos muitas horas juntos, nós dois. Tornou-se óbvio
que Lucy e Phin não iriam regressar e os corpos na cozinha começariam a
decompor-se se deixasse passar muito mais tempo. Suspeitei que, por essa
altura, já alguém poderia ter ido às autoridades. Sabia que estava na hora de
partir. Acrescentei mais algumas linhas ao bilhete de suicídio. «A nossa bebé
chama-se Serenity Lamb. Tem dez meses de idade. Por favor, assegurem-se
de que será entregue a boas pessoas.» Coloquei a caneta com que escrevera o
bilhete na mão da minha mãe, a seguir retirei-a e deixei-a em cima da mesa,
ao lado do bilhete. Dei-te de comer e vesti-te um babygro lavado.
Quando estava para sair, senti a pata de coelho de Justin no bolso do meu
casaco. Colocara-a aí para me dar sorte – não que eu acredite nessas coisas, e
é bastante óbvio que não me trouxe sorte nenhuma desde que a tirei do
quarto de Justin, mas eu queria o melhor para ti, Serenity. Eras a única
pessoa verdadeiramente pura naquela casa, a única coisa boa no meio de
tudo aquilo. Por isso, peguei na pata de coelho e deixei-a contigo.
Depois, beijei-te e disse: «Adeus, bebé querida».
Saí pelas traseiras da casa, com um dos antigos fatos Savile Row do meu pai
e um par dos seus sapatos da Jermyn Street. Pus o meu bolo tie em volta do
colarinho de uma das suas camisas velhas e penteei o cabelo deixando uma
franja de um dos lados. O meu saco estava cheio de dinheiro e joias. Saí para
o sol da manhã, sentindo-o dourado sobre a minha pele cansada. Encontrei
uma cabine telefónica e liguei para o 112. Disfarçando a voz, disse à polícia
que estava preocupado com os meus vizinhos. Que não os via há algum
tempo. Que ouvia um bebé a chorar.
Caminhei até à King’s Road. Todas as lojas estavam ainda fechadas.
Continuei a andar até chegar à Victoria Station e aí sentei-me na esplanada
de um café mal-arranjado, com o meu fato Savile Row, e pedi uma chávena
de café. Nunca tinha bebido café antes. Queria mesmo uma chávena. O café
chegou, mas quando o provei achei-o nojento. Pus-lhe dois pacotinhos de
açúcar e forcei-me a bebê-lo. Encontrei um hotel discreto e paguei três
noites. Ninguém me perguntou a idade. Quando assinei o registo usei o
nome Phineas Thomson. Thomson com um O. Não Thomsen com um E.
Queria ser quase o Phin. Mas não completamente.
Liguei a televisão no meu quarto de hotel. No final do noticiário vi uma
breve notícia. Três corpos. Um pacto de suicídio. Um culto. Encontrado um
bebé saudável e bem tratado. Crianças consideradas desaparecidas. A polícia
investigava. As fotografias que tinham eram as do nosso último ano na
escola primária. Eu tinha apenas dez anos e o cabelo curto. Lucy tinha oito e
um corte de cabelo à pajem. Estávamos irreconhecíveis. Não foi feita
qualquer menção a Phin ou a Clemency.
Suspirei de alívio.
E o que aconteceu depois? O que aconteceu entre o eu de dezasseis anos,
deitado de cuecas por cima de uma colcha de nylon, num quarto de hotel
barato, a assistir ao noticiário, e o atual eu de meia-idade?
Queres saber? Importas-te?
Bem, arranjei um emprego. A trabalhar numa loja de reparações de
materiais elétricos, em Pimlico. Era propriedade de uma família meio
maluca do Bangladesh, que não se podia importar menos com a minha
história, desde que eu aparecesse para trabalhar a horas.
Mudei-me para um estúdio. Comprei livros sobre programação e um
computador, e à noite estudava sozinho em casa.
Nessa altura já havia telemóveis e Internet com alguma qualidade, e eu
deixei a oficina de reparações e arranjei um emprego numa Carphone
Warehouse, na Oxford Street.
Mudei-me para um apartamento de um quarto em Marylebone, ainda antes
de esta zona se tornar inacessível. Comecei a pintar o cabelo de louro. Fiz
exercício. Ganhei corpulência. À noite ia a discotecas e fazia sexo com
estranhos. Apaixonei-me, mas ele bateu-me. Voltei a apaixonar-me, mas ele
deixou-me. Branqueei os dentes. Arranjei peixes tropicais. Eles morreram.
Consegui arranjar emprego numa nova empresa de Internet. A princípio,
éramos cinco. Três anos depois éramos cinquenta, eu ganhava seis dígitos e
tinha o meu próprio gabinete.
Comprei um apartamento com três quartos em Marylebone. Apaixonei-me.
Ele disse-me que eu era feio e que nunca mais ninguém me amaria e deixou-
me. Fiz uma cirurgia plástica ao nariz. Fiz extensões de pestanas. Fiz um
ligeiro preenchimento de lábios.
Depois, em 2008, procurei o advogado cujo nome constava no papel
timbrado do testamento original dos meus pais. Durante muito tempo
tentara colocar Cheyne Walk e o que lá aconteceu no fundo da minha
mente, procurando forjar uma nova vida com uma nova (ainda que
ligeiramente emprestada) identidade. Não queria ter nada que ver com o
patético Henry Lamb ou com a sua história. Para mim, ele estava morto.
Contudo, à medida que fui ficando mais velho, e mais estável, comecei a
pensar em ti, cada vez mais. Eu queria saber onde estavas, quem eras e se
eras feliz ou não.
Soube pelas notícias que tinham assumido que eras filha de Martina e Henry
Lamb. O meu «bilhete de suicídio» foi levado a sério e não fizeram qualquer
teste de ADN para refutar tal suposição. E recordando-me dos termos do
testamento dos meus pais, ocorreu-me que talvez um dia voltasses a entrar
na minha vida. Mas não fazia ideia se o trust que fora estabelecido ainda
estava depositado no escritório dos mesmos advogados. E, se estava, se
David teria feito alguma coisa para alterar os seus termos durante o tempo
em que teve a minha mãe completamente sob o seu controlo.
Eu estava agora na casa dos trinta. Era alto, louro, atraente e bronzeado.
Apresentei-me como sendo Phineas Thomson. Disse: «Procuro informações
sobre uma família que conheci. Creio que os seus advogados eram daqui. Os
Lambs. De Cheyne Walk.»
Uma jovem folheou alguns papéis, clicou em alguns botões no teclado do
computador, disse-me que de facto administravam um trust dessa família,
mas que não podia dizer-me mais nada.
Havia também um rapaz bonito. Percebi que lhe chamara a atenção quando
me sentei na receção. Esperei no exterior do escritório até à hora do almoço
e fui ter com ele quando saiu. Chamava-se Josh. Claro. Hoje em dia todos se
chamam Josh.
Levei-o ao meu apartamento, cozinhei para ele, enrolei-me com ele e, claro
está, como estava apenas a usá-lo, ele apaixonou-se completamente por
mim. Precisei de menos de um mês, a fingir que também o amava, para que
ele encontrasse os documentos, os fotocopiasse e mos entregasse. E lá estava,
preto no branco, tal como os meus pais tinham estabelecido quando eu era
ainda um bebé e Lucy nem sequer existia. A casa com o número dezasseis de
Cheyne Walk e todo o seu conteúdo deveriam ser mantidos em trust para os
descendentes de Martina e Henry Lamb até o mais velho completar vinte e
cinco anos de idade. Afinal, David não conseguiu pôr as mãos nele, nem, ao
que parecia, Lucy tinha reaparecido para reclamar a herança. O trust
continuava ali, tal como fora constituído, à espera de que tu fizesses vinte e
cinco anos. Alguém mais cínico do que tu poderá pensar que te procurei
apenas para pôr as mãos na minha própria herança. Na verdade, eu nem
sequer tinha provas de que era Henry Lamb e portanto não poderia
reivindicá-la, mas contigo na minha vida teria a possibilidade de conseguir o
que era meu por direito. Mas, sabes, não teve nada que ver com dinheiro. Eu
tenho muito dinheiro. Tinha que ver com uma necessidade de encerrar este
capítulo. E tinha que ver contigo, Serenity, e com a ligação que partilhámos.
Por isso, em junho deste ano, arrendei aquele Airbnb do outro lado do rio.
Comprei uns binóculos e fiquei de vigia no terraço.
Certa manhã, subi pelas traseiras da casa de Cheyne Walk e passei um dia
inteiro no telhado, a remover o esqueleto de Birdie do seu invólucro
mumificado. A separar os seus ossinhos minúsculos. A depositá-los num
saco de plástico preto. A coberto da escuridão da noite, deitei o saco para o
Tamisa. Era surpreendentemente pequeno. Passei a noite no meu velho
colchão e regressei ao Airbnb na manhã seguinte. E então, quatro dias mais
tarde, ali estavas tu. Tu e o teu advogado. A tirar o tapume. A abrir a porta.
A voltar a fechá-la atrás de ti.
Suspirei de alívio
Finalmente.
A bebé tinha voltado.
65
Libby está sentada, com o polegar em cima do ecrã do telemóvel. Tem aberta
a aplicação do banco e tem estado a atualizar o seu saldo a cada quinze
minutos, desde as nove horas dessa manhã.
É o dia em que termina todo o processo da casa de Cheyne Walk.
Venderam-na há um mês, finalmente. Após meses sem visitas, quando
baixaram o preço receberam de imediato uma enxurrada de ofertas, além de
duas tentativas frustradas de contrato, até que, por fim, fecharam negócio
com um comprador da África do Sul, ficando tudo tratado e assinado em
duas semanas.
Sete milhões e quatrocentas e cinquenta mil libras.
Mas o seu saldo permanece nas trezentos e dezoito libras. O que resta do seu
último ordenado.
Suspira e volta ao ecrã do computador. O seu último projeto de cozinha.
Pequena e bonita, pintada no estilo shaker, com puxadores de cobre e uma
bancada de mármore. A primeira casa dos recém-casados. Vai ficar linda.
Gostaria de ainda estar por perto para vê-la. Mas nunca a verá. Agora não.
Hoje é o seu último dia na Northbone Kitchens.
É também o seu vigésimo sexto aniversário. O seu verdadeiro vigésimo sexto
aniversário. Afinal, não é a dezanove de junho, mas sim a catorze de junho.
Portanto, é cinco dias mais velha do que pensava. Isso é bom. Cinco dias é
um pequeno preço a pagar por sete milhões de libras, uma mãe, um tio e
dois meios-irmãos. E agora que não está a seguir um falso caminho na sua
mente para algum aniversário infundado, quem se importa se ela lá chegar
cinco dias antes do previsto?
Volta a pressionar o botão para atualizar.
Trezentas e nove libras. Um pagamento de PayPal que fez há uma semana
saiu da sua conta.
Está um lindo dia. Olha para Dido.
– Vamos almoçar? Sou eu que convido.
Dido olha para ela por cima dos seus óculos de leitura e sorri.
– Claro que sim!
– Dependendo se o pagamento vem até lá ou não, serão sanduíches e Coca-
Cola, ou lagosta e champanhe.
– A lagosta é sobrevalorizada – declara Dido, antes de ajeitar os óculos e
voltar a olhar para o ecrã do computador.
Às onze horas, o telefone de Libby vibra. É uma mensagem de Lucy. Vemo-
nos logo! Reservámos para as vinte horas!
Lucy mora agora com Henry no seu elegante apartamento em Marylebone.
Ao que parece, não se estão a dar lá muito bem. Henry, que vive sozinho há
vinte e cinco anos, não tem paciência para partilhar o seu espaço com
crianças e, além disso, os seus gatos odeiam o cão. Lucy tem andado à
procura de casa. Em St. Albans. A própria Libby está de olho num belo chalé
georgiano num terreno com mais de dois mil metros quadrados, na periferia
da cidade.
Pressiona novamente a tecla para atualizar.
Trezentas e nove libras.
Verifica o seu e-mail, para o caso de ter havido algum tipo de notificação ou
de algo ter corrido mal, mas não há nada.
O dinheiro será dividido em três partes, depois de deduzirem os impostos.
Ela dispôs-se a renunciar a qualquer valor da herança. A casa não é sua. Ela
não é irmã deles. Mas eles insistiram. Ela disse: «Eu não preciso de um terço.
Alguns milhares será mais do que suficiente.» Mas ainda assim eles
insistiram.
– És neta deles – argumentara Lucy. – Tens tanto direito como nós.
Às treze horas, sai com Dido do showroom.
– Receio que tenham de ser sanduíches.
– Ótimo – diz ela. – É o que me apetece comer.
Dirigem-se ao café do parque e sentam-se na esplanada, ao sol.
– Nem acredito que vais embora – diz Dido. – Vai ficar tudo tão… bem, eu
ia dizer sossegado, embora tu também nunca tenhas sido propriamente
barulhenta, mas sem ti vai ficar tão… desprovido de Libby. E sem o teu
lindo cabelo. E as tuas pilhas organizadas.
– As minhas pilhas organizadas?
– Sim, as tuas… – Faz com as mãos a mímica de uma pilha quadrada de
papel. – Tu sabes. Com todos os cantos alinhados. – Sorri. – Vou ter
saudades tuas. Essa é que é a verdade.
Libby olha para ela e pergunta:
– Tu nunca pensaste em partir? Depois de teres ficado com o chalé? E com
todas as outras coisas? Com certeza não precisas de trabalhar, pois não?
Dido encolhe os ombros.
– Acho que não. E há momentos em que me apetecia desistir de tudo e
passar o dia todo nos estábulos com Spangles, antes que ele morra. Mas, ao
fim e ao cabo, eu não tenho mais nada. Mas tu… tu agora tens tudo. Tudo o
que as cozinhas não te podem oferecer.
Libby sorri. É verdade.
Não é apenas o dinheiro. De maneira nenhuma.
São as pessoas a quem agora está ligada, a família que a envolveu tão
completamente. E é a pessoa que descobriu que estava por baixo de todas
aquelas pilhas bem arrumadas e do planeamento cuidadoso. Ela nunca foi
realmente essa pessoa. Apenas se transformou nela para contrabalançar as
inconsistências da sua mãe. Para se integrar na escola. Para se integrar num
grupo de amigos cujos valores, na verdade, nunca partilhou. Ela é bem mais
do que amizades distantes e requisitos estupidamente proibitivos do Tinder.
Ela é o produto de pessoas melhores do que os seus pais biológicos de
fantasia, o designer gráfico e a relações públicas de moda com o carro
desportivo e cães pequeninos. Que falta de imaginação a sua.
Distraidamente, volta a pressionar atualizar no seu telemóvel.
Olha novamente. É um número estúpido o que ali está escrito. Um número
que não faz o mínimo sentido. Tem demasiados zeros, é demasiado. Volta o
ecrã do telemóvel para Dido.
– Oh. Meu. Deus!
Dido tapa o rosto com as mãos e arqueja. Vira-se na direção da frente do
café.
– Por favor – chama –, duas garrafas do vosso melhor Dom Pérignon. E treze
lagostas. E depressa.
Claro que não está ali nenhum empregado e as pessoas da mesa ao lado
lançam-lhes um olhar estranho.
– A minha amiga – continua Dido – acabou de ganhar a lotaria.
– Oh – exclama a mulher. – Que sorte!
– Sabes – diz Dido, voltando-se para Libby –, depois disto, não precisas de
regressar ao trabalho. É o teu aniversário. E acabas de receber zilhões de
libras esterlinas. Se quiseres, podes tirar o resto do dia de folga.
Libby sorri, amarrota o guardanapo de papel e deixa-o cair sobre a bandeja
de plástico.
– Não – diz ela. – Nem pensar. Não sou uma desistente. Além disso, tenho a
certeza de que deixei alguns papéis um pouco tortos.
Dido sorri-lhe.
– Então, vamos. Mais três horas e meia de normalidade. Vamos lá terminar
o trabalho, sim?
67
Lucy fica com o apartamento só para si durante mais uma hora. Aproveita
para tomar banho, pintar as unhas, secar o cabelo com um secador,
deixando-o bem penteado sobre os ombros, para se hidratar e maquilhar.
Ainda não toma nada disso como garantido. Já passou um ano desde que
Henry a encontrou na casa em Cheyne Walk, desde que levou Serenity até
eles, desde que se voltaram a reunir. Durante um ano, Lucy viveu com
Henry no seu apartamento imaculado em Marylebone, onde dormiu numa
cama de casal por baixo de lençóis de algodão macios, sem ter mais nada
para fazer a não ser passear o cão e preparar refeições deliciosas. Ela e
Clemency encontram-se uma vez por mês, bebem champanhe e falam dos
filhos, de música, das idiossincrasias de Henry e de qualquer coisa, exceto
do que aconteceu com ambas quando eram jovens. Nunca serão tão
próximas como tinham sido antes, mas continuam a ser as melhores amigas.
Marco tem agora treze anos e está matriculado numa escola particular
moderna em Regent’s Park, paga por Henry, e onde, aparentemente, «todos
fumam vapes e tomam quetamina». Perdeu completamente o sotaque
francês e, como costuma dizer, «agora identifico-me como sendo um
verdadeiro londrino».
Stella tem seis anos e está no primeiro ano de uma boa escola primária em
Marylebone onde tem duas melhores amigas, ambas chamadas Freya.
Ontem Lucy apanhou o metro para Chelsea e foi até à casa. O tapume foi
retirado e a placa de venda do lado de fora foi substituída por outra a dizer
vendida. Em breve a casa voltará a ganhar vida, com o som de berbequins e
de martelos, à medida que as obras vão destruindo e reconstruindo tudo,
para satisfazer os gostos e necessidades de outra família. Em breve, alguém
chamará àquela casa o seu lar e nunca saberá, nunca suspeitará por um
minuto sequer, o que realmente aconteceu dentro daquelas paredes tantos
anos antes, como quatro crianças tinham estado presas, subjugadas, tendo
depois sido lançadas ao mundo, feridas, incompletas, perdidas e
destroçadas. É difícil para Lucy lembrar-se da menina que era então, difícil
aceitar uma assunção de si própria tão desesperada por atenção que fora
capaz de dormir com pai e filho. Por vezes olha para Stella, a sua menina tão
pequena e perfeita, e tenta imaginá-la com treze anos e a entregar-se dessa
maneira, apenas para se sentir amada. Isso fá-la sentir uma dor
inimaginável.
O telemóvel toca e, como sempre acontece e decerto continuará a acontecer,
ela sente um arrepio de inquietação. O assassínio de Michael não foi
resolvido, mas foi amplamente aceite como tendo sido consequência de
alguma dívida que não tinha sido paga aos seus sócios no submundo do
crime. Viu uma menção a si mesma num jornal francês, logo depois de o
crime ter chegado às manchetes:
Segundo parece, Rimmer, que foi casado duas vezes, teria um filho com a
sua primeira mulher, uma britânica conhecida apenas pelo nome de
«Lucy». De acordo com a sua governanta, ele e a ex-mulher tiveram
recentemente um breve reencontro, não sendo esta, contudo, considerada
suspeita.
Querido Giuseppe. Sou a sua Lucy. Sinto muito a sua falta. Queria apenas
que soubesse que estou feliz e saudável, assim como as crianças e Fitz.
Não vou voltar a França. Agora tenho uma nova vida maravilhosa e quero
criar raízes. Mas lembrar-me-ei sempre de si e ser-lhe-ei eternamente grata
por me ter apoiado quando a minha vida estava descontrolada. Sem si, eu
estaria perdida.
Está vivo. Phin está vivo. O meu coração dispara, agita-se. Sinto-me tonto.
Ele é lindo de morrer. Olho para ele, com o seu bronzeado, as suas calças
com múltiplos bolsos e o seu sorriso largo e confiante, sentado num jipe, em
África, sem preocupações de espécie alguma. Aposto que nunca pensa em
mim, que nunca pensa em nenhum de nós. Sobretudo não pensa em ti,
Serenity. Não pensa em ti. Não estava interessado em ti quando vivias na
nossa casa. Também não vai estar interessado em ti agora.
Lucy estava sem dúvida a mentir quando disse que falavam constantemente
em ti quando moravam em França. Phin não se interessa por bebés. Não é
um «tipo de família». Vive numa concha. É um solitário. A única vez, a
única vez em que consegui tirá-lo da sua concha foi quando tomámos o
ácido. O momento em que demos as mãos, quando o senti a passar para
dentro de mim, quando me tornei Phin. Claro que ele não se transformou
em mim – quem quereria fazê-lo? Mas eu transformei-me nele. Costumava
escrevê-lo por toda a casa, sempre que podia, com gritos silenciosos em
cantos e recantos e lugares escondidos. «EU SOU PHIN».
Mas como poderia eu ser Phin, se Phin estava ali a lembrar-me,
constantemente, de que eu não era Phin? A cada movimento descuidado da
sua franja, a cada encolher de ombros e olhar pensativo através de um
quarto vazio. Uma página de um romance de culto virada lentamente.
Começou como uma poção de amor. Deveria fazê-lo amar-me. Não
funcionou. Tudo o que fez foi diminuí-lo. Torná-lo mais fraco. Menos
bonito. E quanto mais fraco ele ficava, mais forte eu me tornava. Portanto,
continuei a dar-lhe a tintura. Não para matá-lo, nunca foi essa a minha
intenção, mas apenas para atenuar a sua luz, para que eu pudesse ficar um
pouco mais brilhante. E nessa noite, a noite da festa de aniversário dos trinta
anos de Birdie, quando Lucy me disse que Phin era o pai do seu bebé, entrei
no seu quarto para matá-lo.
Mas quando me pediu para desamarrá-lo, eu disse:
– Só se me deixares beijar-te. – E beijei-o. Com a mão dele ainda amarrada
ao tubo do radiador, o seu corpo quase a desfalecer, eu beijei-o, nos lábios,
no rosto. Ele não ripostou. Deixou-me fazê-lo. Beijei-o durante um longo
minuto. Levei um dedo aos seus lábios, passei as mãos pelo seu cabelo, fiz
tudo o que sonhara fazer, desde o primeiro minuto em que entrou em nossa
casa, quando eu tinha onze anos, quando eu não sabia que alguma vez iria
querer beijar alguém.
Esperei que ele me empurrasse. Mas ele não o fez. Foi complacente.
Depois, quando achei que o tinha beijado o suficiente, desamarrei-o e deitei-
me ao seu lado.
Pus um braço sobre o seu corpo quente.
Fechei os olhos.
Adormeci.
Quando acordei, Phin tinha partido.
Procurei-o desde então.
Mas agora ele foi encontrado.
Eu sabia que o grande urso da Libby iria encontrá-lo.
E conseguiu.
Olho para Miller; olho para ti.
Ponho o meu melhor sorriso alegre de tio Henry e pergunto:
– Há espaço para mais um?
Agradecimentos
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