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Capa
Folha de rosto
Sumário
1. Um lugar chamado fronteira
2. Guerra de pai, guerra de filho
3. Amor, sexo e suicídio
4. Teatro por paixão, música por acidente
5. “Cante como o Wilson Simonal!”
6. Um salto no escuro
7. Homem-pássaro
8. Mais forte que o Rei
9. Glória e insulto
10. A escalada da discórdia
11. Tempestade e libertação
12. Mandrix na selva
13. As Frenéticas e o guru
14. As três censuras
15. “Vem Cazuza, vem Cazuza”
16. Viado não, homem com H
17. Jonny e João
18. “Pro dia nascer feliz”
19. “O maior show de todos os tempos”
20. Rebolando para o heavy metal
21. Operação rpm
22. “O tempo não para”
23. Tocados pela maldita
24. Adeus, Marco
25. Um lugar chamado fronteira
Caderno de imagens
Entrevistados
Créditos das imagens
Sobre o autor
Créditos
A Zuza Homem de Mello
1. Um lugar chamado fronteira
Beíta de Souza Pereira era uma mulher miúda com olhos de índio e
uma personalidade que nem os coronéis de Bela Vista ousavam
contrariar. “Não brinca com ela, Matto Grosso”, avisava um tenente ao
perceber o rapaz se engraçar com a menina. “Mas ela é linda”, insistia o
soldado. “Esquece, tem outras em Bela Vista.” O primeiro recado do
pretendente veio por uma amiga. “Ele quer te conhecer.” E ela
respondeu: “Mas eu não quero saber nem de mato grosso nem de mato
fino”. Matto Grosso tinha vinte anos, e Beíta quinze. Mais preocupada
com as vacas que adorava recolher todas as tardes nos campos da
fazenda do pai, ela passou a evitar as investidas do jovem até o dia em
que seu pai-avô Simão a chamou. “Não corra de ninguém, você não
precisa ter medo. Se um dia ele fizer algo de que não goste, não abaixe
a cabeça e responda à altura.” O casamento foi marcado dias depois.
Ir para o altar com uma garota que tinha o poder de virar onça e uma
habilidade espantosa para acertar um tiro de revólver calibre .44 numa
latinha colocada num barranco a metros de distância seria um ato de
coragem também por outra razão. Os quartéis pediam aos recém-
incorporados que só se casassem depois de cumprirem ao menos cinco
anos no cargo, uma regra que o noivo decidiu burlar por impaciência.
Um cabo da região já havia sido punido com um mês de detenção pelo
matrimônio antes do prazo estabelecido. Sem querer correr riscos,
Matto Grosso olhou em linha reta e avistou, bem em frente à Bela Vista
do Mato Grosso, a paraguaia Bella Vista Norte, no outro lado do rio
Apa. “Por que não nos casamos na terra de sua avó?”, perguntou a
Beíta. Afinal, era de onde saíam as polcas e as valsas cantadas em
guarani e espanhol, a vila à qual um oficial amigo de seu pai, o
generoso tenente Gray, a levava para dar aulas de tiro ao alvo.
Incentivado a fazer a travessia às escondidas por Gray e outro militar
compadecido de suas urgências, João Pedro Gay, Matto Grosso
chamou uma parente para servir de testemunha, colocou sua eleita
numa canoa e consumou, horas depois de remar com força para vencer
as correntezas do Apa, o enlace celebrado em espanhol. Ao voltar,
prometeu pagar o silêncio de Gray e de Gay sobre sua transgressão
perante o comando militar de Bela Vista assim que os filhos
começassem a nascer.
O primeiro veio em 1938 e levou o nome de Gay, algo que deixou o
coronel João Pedro Gay honrado pela deferência e marcou com uma
até então impensável chancela sexista o menino que nasceu, Gay de
Souza Pereira, futuro galanteador e professor das primeiras proezas
sexuais dos irmãos. O segundo, em 1941, ganhou o nome de Ney,
inspirado por qualquer coisa que veio à cabeça de Beíta, esquecida das
promessas feitas pelo marido aos oficiais. Só dois anos depois, em
1943, elas seriam retomadas tão logo o terceiro levasse o nome de
Grey, com “e”, prestando homenagem ao tenente Gray.
O tempo mostraria a Matto Grosso que havia algo diferente com Gay
— o nome, não o menino. Traído por uma desconcertante ironia
semântica, o sargento tinha nomeado o primogênito com o termo que
começava a se popularizar pelo mundo como sinônimo de todas as
práticas e vivências sexuais que suas reservas homofóbicas
repudiavam. Gay já fora usado na Europa do século para designar
imoralidades de toda origem e, no , para se referir às prostitutas e
aos heterossexuais promíscuos. Homens com muitas mulheres eram
chamados de “gays”.
Só a partir de 1920 sua tradução mais literal do inglês, “alegre”,
passou a se referir também a homens que gostavam de outros homens.
Mulheres não levavam esse nome. Mas nada disso havia chegado a
Bela Vista até a década de 1940, quando Gay era apenas a
homenagem feita por Matto Grosso a um militar de bom coração. Anos
depois, quando julgou ter dado ao filho uma condenação moral, sugeriu
que Gay mudasse seus documentos para se livrar da injúria e recebeu
dele uma resposta inesperada: “Não precisa, pai. Quero que as
pessoas me respeitem com o nome que eu tenho”.
Antes de dizer sim ao pedido de casamento, Beíta, mesmo muito
nova, já havia delimitado um território importante para sobreviver
naquelas terras de culturas brutas onde mulheres não tinham voz.
Soldados de fronteira, tribos indígenas, fazendeiros e peões conviviam
com aventureiros de toda espécie que migravam para o Mato Grosso
ainda unificado da década de 1940 em busca da riqueza prometida pela
Marcha para o Oeste. O projeto de ocupação e demarcação do Centro-
Oeste e da Amazônia Meridional promovido pelo presidente Getúlio
Vargas queria tornar o interior do Brasil tão produtivo e povoado quanto
as cidades prósperas das rebarbas litorâneas. Os sertões de Euclides
da Cunha, ou a ideia de sertão que ele tinha revelado em 1902,
precisavam ser entendidos e desbravados para que a nação ideal de
Vargas fosse fortalecida.
Vila promovida a cidade por lei estadual em 1918, Bela Vista, na
porção sul do Mato Grosso, só viria a ser município pertencente ao
Mato Grosso do Sul em 1977, depois que o estado fosse oficialmente
dividido pelo governo de Ernesto Geisel com o argumento de ter uma
extensão territorial grande demais para ser administrada sob um
mesmo entendimento geopolítico. Seus dias de relativa paz haviam sido
conquistados depois de algumas cabeças cortadas e muitos tiros
disparados por detrás de barricadas erguidas por portugueses,
espanhóis, brasileiros e paraguaios lutando por interesses territoriais
desde a chegada dos primeiros sertanistas lusitanos, em 1531.
As piores histórias repassadas por gerações vinham da sangrenta
Guerra do Paraguai (1864-70), o maior conflito internacional da América
do Sul. Ao levar adiante seu projeto de mudar o mapa às margens da
estratégica bacia do rio da Prata, a sonhada saída para o Atlântico, e
criar um Grande Paraguai com a anexação de terras vizinhas, Solano
López, o comandante das forças armadas e líder inconteste de seu
país, chegou a invadir a região que hoje equivale a Corumbá, a 360
quilômetros de Bela Vista, executando civis e militares pelas ruas.
Homens de alta patente levavam mulheres para que elas saqueassem
casas de brasileiros rendidos, em busca de roupas e joias. Os
moradores que davam trabalho eram mortos a céu aberto.
O sul do Mato Grosso rompeu o novo século fazendo suas leis na
ponta da faca. O mesmo campo de trabalho promissor a comerciantes e
roceiros que vinham tocar gado e colher arroz, feijão, milho, mandioca e
alfafa para os senhores das terras era cada vez mais habitado por
ladrões, matadores de aluguel e fugitivos de um passado muitas vezes
assustador. Pois no ano de 1929, quando um homem de 23 anos,
magro, moreno e de olhar firme, usando bombacha, lenço e chapéu
gaúcho, chegou a Bela Vista depois de escapar de um presídio no Rio
Grande do Sul com dois ou três homicídios nas costas, nem fazendeiros
nem peões imaginaram estar diante de um criminoso.
Silvino Jacques tornou-se um incômodo grande demais para as
autoridades de Bela Vista pelo volume de confusões que passou a ser
registrado em sua ficha. Curiosa figura com inspiração para fazer
poesia à mulher amada enquanto esteve preso no Sul e tino para dar
cabo da vida de seus desafetos com uma crueldade de requinte
elevado, começou a agir com um bando criado nos moldes do de
Lampião que chegou a ter sessenta integrantes entre homens e
mulheres e a ser conhecido como o “terror da população matto-
grossense”, conforme noticiou o periódico O Jornal. Calmo e de boa
prosa, sentava-se sob as árvores da fazenda dos pais de Beíta para
travar conversas gauchescas com a família enquanto ela esquentava a
água e servia o tereré.
Os criminosos que atuavam em bando, os bandoleiros, ou como
mercenários solitários, matando por encomenda e por um bom punhado
de réis, eram subproduto de um Estado que decidiu incentivar o
armamento da população de fronteira desde os anos 1920 para que, na
ausência de um contingente policial, os próprios pais de família
protegessem seus lares. Mas a lógica da bala como defesa só
funcionou até os mosquetões passarem a fortalecer mais os que tinham
virtudes para manuseá-los — os criminosos — do que as indefesas
famílias de agricultores. No fim, as armas permitidas aos “cidadãos de
bem” acabavam abastecendo o mercado da matança. Mesmo numa
cidade em que se aprendia a atirar antes dos doze anos, como
acontecera com Beíta, quem puxava o gatilho com mais precisão era
sempre quem o fazia com mais frequência.
Assim que o Mato Grosso ferveu, o Exército foi designado para
desmilitarizar as famílias e eliminar os assassinos antes que o estatuto
do ferrolho se instalasse e o poder público entrasse em colapso.
Soldados saíram em revista pelas propriedades da grande Bela Vista e
descobriram um arsenal forte o suficiente para municiar várias divisões
de infantaria. Só na Fazenda Tororó, em Aquidauana, uma diligência
encontrou 22 fuzis alemães Mauser, 99 cartuchos, um carregador e
uma espada, “todos pertencentes ao Exército Brasileiro”, conforme
escreveu o relator da operação. Ao ser questionado sobre a
procedência da armaria em seus paióis domésticos, o fazendeiro José
Alves Ribeiro disse que tudo havia sido recolhido de inimigos em
assaltos e ações paramilitares a mando de seu ex-chefe, Silvino
Jacques.
Um dos crimes mais cruéis de Silvino foi praticado contra o cônsul
paraguaio e antigo desafeto Manoelito Coelho dos Santos. Baleado
pelos capangas do bandoleiro dentro de seu armazém, Manoelito
correu para o quintal ao lado da loja levando tiro até a mulher sair para
ampará-lo. Silvino chegou por último, caminhou até a vítima, encostou o
cano de um mosquetão em sua testa e disparou. A força da bala fez
partes do crânio de Manoelito grudarem no vestido da esposa. Depois
de se tornar o homem mais procurado da região, Silvino foi encontrado
e morto pelos policiais quando estava acampado com seu bando nas
margens de um córrego onde hoje fica Porto Murtinho. “Está, assim,
interrompido de maneira definitiva o rosário imenso de crimes iniciado
há mais de dez anos pelo ‘Lampião do Matto Grosso’”, publicou O
Jornal em 27 de maio de 1939, dois dias após sua morte.
Não era por acaso que a vocação beligerante dos adultos seria logo
passada às crianças de Beíta. Antes de saírem livres pelo cerrado, Ney,
Gay e Grey recebiam do avô Tancha uma faca para se defenderem de
algo que nem imaginavam o que poderia ser. Beíta havia nascido numa
fazenda no loteamento onde viviam muitos paraguaios, em Bela Vista,
chamado Nunca-Te-Vi, um dos primeiros assentamentos delimitados
por reforma agrária no país do qual Getúlio se orgulhava. A rara região
sem armas de fogo, cautelosamente proibidas e fiscalizadas para evitar
um levante separatista, tinha ruas de terra não menos perigosas
ocupadas por jovens que, por necessidade, se tornavam habilidosos ao
portarem qualquer objeto com uma lâmina na ponta.
O pai biológico de Beíta era Tancha, ou Paulo Coelho de Souza, e a
mãe, filha de uma índia das reservas do Chaco, no Paraguai, se
chamava Elisia. Logo depois do nascimento da filha, em 3 de outubro
de 1922, o casal seguiu o costume dos tempos e a entregou aos
cuidados dos pais de Tancha, avós da menina: Blaudemira Antonia
Silva, a Neneca, e seu marido, o fazendeiro Simão Coelho de Souza,
um dos coronéis mais ricos da região, dono de hectares sem fim,
milhares de cabeças de gado e colecionador de cavalos de raça que
disputavam as divertidas carreiradas de domingo. Beíta chamaria seus
pais de sangue, Tancha e Elisia, de “meu pai e minha mãe”. Simão e
Neneca, os afetivos, seriam para sempre “papai e mamãe”.
Beíta tinha dez anos em 1932 quando sentiu, pela primeira vez, quão
cruéis poderiam ser os homens de Bela Vista. Na mesma noite em que
Tancha e Simão partiram em seus cavalos para o campo diante do
quartel da vila dispostos a ajudar as tropas getulistas que se
defrontavam com os revoltosos de interesses constitucionalistas do sul
do Mato Grosso, combatentes das forças inimigas invadiram a fazenda
acordando mulheres e crianças para saquear os cômodos, incendiar o
assoalho, soltar os cavalos, metralhar o gado e envenenar a água do
poço. “Não bebam”, disse um deles. “Colocamos veneno.” Um
caminhão estacionou em frente e todos foram levados para uma casa
distante. Ao saber da represália, Tancha e Simão voltaram às pressas,
depois de vencer os rebeldes, e chegaram ao endereço onde as
esposas e os filhos haviam sido instalados. Quando ouviu o som dos
cascos de um cavalo se aproximando, Beíta abriu a porta e viu Simão.
Papai desceu do animal, tirou o lenço vermelho usado no confronto e o
ajeitou no pescoço da filha-neta olhando em seus olhos. Um presente
que ela guardaria, ao menos, pelos noventa anos seguintes.
Heróis e vilões poderiam conviver num mesmo homem quando as
histórias se davam nos limites do Oeste. O país ali se chamava
fronteira, um lugar entre dois, de território, idioma, leis e cultura
delimitados um dia por linhas de mapa e tratados imperiais que nunca
condiziam com a vida de quem tinha um pé em cada lado da cerca. Os
homens e as mulheres pareciam levar também dentro de si uma
fronteira nunca delimitada com precisão para separar o bem e o mal, o
certo e o errado, o legal e o criminoso. Quem vivia em Bela Vista sabia
que toda lei era relativa e definida por quem jamais soube o que era ter
de ignorá-la para sobreviver. Heróis para os filhos, vilões para os
desafetos, pessoas de bem matavam antes quando sabiam que
poderiam morrer, armavam-se sem medir esforços para defender a
família e lutavam pela terra, a única posse que as tornava realmente
fortes.
Simão Coelho, avô de Ney, era integrante do , o Partido
Republicano Conservador, e membro da Guarda Nacional que
colecionava inimigos e acusações de crimes pelas páginas do jornal O
Matto-Grosso, um órgão oficial do , o Partido Republicano Mato-
Grossense, rival do . Uma carta assinada pelo desafeto coronel
Militão Loureiro, do , que foi publicada na íntegra, afirmava que
Simão era responsável por homicídios e contrabandos na região. Além
de ser mandante do assassinato de um paraguaio chamado José
Caballero em Nunca-Te-Vi, era acusado de atravessar o rio Apa,
ilegalmente, com quinhentas cabeças de gado, para o Paraguai. Mais
uma acusação veio em outra carta que Militão informou ter recebido do
chefe de polícia da vizinha Bella Vista paraguaia e que fez questão de
enviar à redação. Segundo a denúncia, Simão havia comprado de um
contraventor chamado Fernando Rodrigues Overo armamentos
roubados.
“Vai buscá-lo”, disse Beíta ao marido, vendo o filho sumir pela via
larga que começava em frente à vila militar e levava ao centro de
Campo Grande. A violenta briga com o pai no banheiro de casa, a
chutes e socos transbordando sentimentos guardados havia anos, fez
Ney partir sem se despedir. Grey assustou-se com a força da discórdia
que tinha provocado ao falar da água que o irmão desperdiçava
naquela manhã e se desesperou, ameaçando seguir seus passos.
Arrumou a mala, despediu-se de Beíta e já tomava seu rumo quando foi
advertido pelo pai. “Não volte nem se sentir fome.” Grey, que não era
Ney, voltou para o quarto. Enquanto desfazia a mala, o irmão chegava à
casa de tio Nilo, homem bom e de uma compaixão só menor do que
seu temor a Matto Grosso. Ney explicou a situação e pediu ajuda, mas
o pai fora rápido em ligar ordenando à família que não desse abrigo a
um fugitivo.
Com o não de Nilo, o destino seguinte foi o estabelecimento de
Pavão, amigo da família e dono de um bar modesto, que se
compadeceu da situação de Ney, comprou a briga e fez sua oferta. Em
troca de teto e comida, queria um funcionário sem medo de trabalho. Os
primeiros dias de Ney alforriado seriam vividos ali, servindo cachaça e
tira-gosto a peões e boiadeiros no balcão de seu Pavão em horário
comercial e descobrindo todas as posições possíveis para dois corpos
num sexo incontrolável com uma colega de trabalho, morena de olhos
puxados e cabelos de índia, no banheiro, no quintal ao lado da bodega
e onde quer que eles conseguissem juntar-se longe dos olhos de
Pavão.
Na revisão intempestiva que os dezessete anos lhe cobravam como
um pedágio para seguir em frente, Ney tinha no pai um professor às
avessas, o modelo de tudo o que não queria ser. Machista, intolerante e
homofóbico, Matto Grosso era um homem de comportamento ainda
sem problematizações em 1958 que Ney tentaria contrariar não para
ser melhor do que a figura que repudiava, mas para ser o seu oposto.
Ele entendia cada vez mais o que o escritor Nelson Rodrigues queria
dizer nas linhas da coluna que publicava no jornal Última Hora, do Rio
de Janeiro, sob o título “A vida como ela é…”. Ainda criança, havia
pegado gosto pela escrita de Nelson e pelas histórias que lia nos
tempos em que a família vivera em Moça Bonita, no subúrbio do Rio.
Era como se aqueles contos fossem colhidos dentro de sua casa,
rompendo a hipocrisia dos adultos e violando sua ingenuidade. “Eu não
vou fazer parte disso”, dizia a si mesmo.
As características que percebia no pai impediram que Ney visse o
outro lado de um homem que nunca chegou por inteiro aos filhos nem à
mulher. Um militar orgulhoso de suas funções e de bravura e dedicação
exaltadas por superiores que viveram em sua companhia histórias que
jamais foram compartilhadas em família. Um dia, Matto Grosso
embarcou para longe a fim de combater em uma guerra, alguma grande
guerra, e isso era tudo o que Ney saberia dizer por muitos anos.
Cada vez mais livre dos fantasmas, Ney passou a ouvir música. Ela
chegava pelas ondas da Rádio Nacional, que um dia visitou de mãos
dadas com a mãe para ver Elvira Pagã cantando escandalosamente
seminua no auge de sua voz e no esplendor de sua indisciplina. Vestida
com tiras de pele de onça, a imagem da cantora se fixava nas
memórias mais profundas do menino, assim como os mais comportados
discos em 78 rotações de Francisco Alves e Sílvio Caldas que o pai
ouvia na sala.
Ney criava plateias fictícias. Ele abria a janela que dava para uma
goiabeira e cantava o que conseguia, imaginando ser o batente de
madeira o seu palco e a árvore, o público. Uma plateia calorosa que
cantava junto e o aplaudia de pé, como faziam com Elvira Pagã na
Rádio Nacional. Assim que teve a primeira chance de transportar a
cena para a realidade, inscreveu-se num concurso de cantores mirins
realizado num parque de diversões e seguiu vencendo, de etapa em
etapa, com a música “Jezebel”, de melodia tortuosa e vibratos que
criança em geral não cantava. Tudo certo até o dia em que cometeu
outro pecado que desconhecia, o da dança. Enquanto esperava sua vez
de se apresentar, começou a dançar contagiado pela música defendida
por um oponente. Ao vê-lo ao lado do palco, o apresentador ficou
furioso e partiu em sua direção dando broncas como se o condenasse
por um crime. Ney foi embora sem cantar e nunca mais voltou, mas fez
do ato de estar no palco uma questão de honra. Se Elvira Pagã existia,
ele também poderia existir. E se aquele palco era proibido, ele
encontraria o seu.
Insinuante demais na avaliação de um padre e pouco másculo para
os sonhos de um pai, Ney levou tempo até entender o que tornava sua
existência tão ameaçadora. Todas as questões proibidas pareciam
ligadas ao sexo e algo dizia que o seu sexo, por alguma razão, era mais
proibido que o sexo dos outros. Aos onze anos, ele se trancou no
banheiro decidido a libertar-se praticando sua primeira transgressão
ensinada pelo irmão. Desceu a mão à zona dos conflitos e acariciou-a
até ser dominado pelas vontades. Sentiu os batimentos acelerarem, as
pernas enfraqueceram e, nos segundos finais, um prenúncio levar para
o pau toda a energia que havia em seu corpo e expulsá-la com um jorro
que o assustou. Sua sensação foi a de morrer e voltar a viver instantes
depois, algo tão poderoso que ele passou a repetir todos os dias, por
mais de um ano, fechado no mesmo banheiro.
A temporada no Rio terminou quando seu pai decidiu voltar para o sul
do Mato Grosso e seguir para a Base Aérea de Campo Grande de peito
condecorado pelas medalhas da Campanha da Itália. Ney havia feito
bons amigos estudando numa escola de Realengo até, mais uma vez,
receber ordens de arrumar as malas para partir com a mãe, o pai, dois
irmãos e, agora, duas irmãs. Depois da segunda Cinara, a pequena
Naira assumia a posição de caçula, e dava a Ney uma base doméstica
feminina que equilibrava as forças dentro de casa e permitia que o
irmão, mesmo sentindo não pertencer a lugar algum, fosse um pouco
mais ele mesmo.
3. Amor, sexo e suicídio
Por tudo o que a vida lhe apontava desde a cena do rapaz afeminado
sendo apedrejado em Campo Grande, homem com homem não era
mais uma possibilidade. Isso até ali, mais precisamente na noite de
calor que fez Ney se levantar do beliche e deixar o alojamento para
tomar ar. Ao pisar na varanda em frente ao quarto, uma passarela
estreita com uma mureta onde alguns rapazes ficavam, viu dois
soldados fortes da turma dos praticantes de remo. O jovem sentado
acariciava o rosto do que estava em pé, aconchegado entre suas
pernas. Não havia beijo nem toques, mas olhares, gestos e uma
cumplicidade que parecia tornar indiferente tudo o que não pertencia
àquela cena. Ney voltou para a cama com a cabeça desorganizada.
Então, mais que fazer sexo, dois homens podiam se amar?
Dias depois, Ney se apaixonou por um soldado. Era um rapaz alto,
magro e de pele morena que havia chegado com a turma dos capixabas
para integrar as frentes da Polícia da Aeronáutica. Assim que o viu, Ney
se sentiu arrebatado por sua beleza, mas manteve-se cauteloso e
flertando à distância. O jovem percebeu e correspondeu aos olhares,
alimentando uma paixão quase platônica pela impossibilidade de ser
assumida sob tanta vigilância. Era tudo muito arriscado. O sistema
militar especificava a conduta de homossexuais como pederastia.
Jovens que alegassem preferência por pessoas do mesmo sexo eram
dispensados durante o recrutamento, levando o indigno carimbo de
“pederasta” na carteira de reservista, e a prática homossexual pelas
dependências do batalhão era considerada uma desonra punida com
expulsão.
Mas ainda que não demonstrassem, eles já estavam apaixonados.
Numa das poucas chances que tiveram para fazer confidências, o
soldado disse “eu te amo” e Ney afirmou que também o amava, mas
ninguém avançou além da frase e os dias se passaram sem que sequer
se tocassem. Um ano depois, quando as primeiras baixas começaram a
separar os colegas de corporação, dispensando-os em levas
escalonadas para regressarem a suas cidades, o rapaz convidou Ney
para seguirem juntos para o Espírito Santo. “Eu não tenho o que fazer
lá”, respondeu triste, minutos antes de o avião com os capixabas
decolar. Ney se aproximou, fez um carinho em seu braço e o deixou ir,
ficando com a certeza de que, assim como os soldados da varanda, era
possível viver um amor com outro homem.
A vida nas altas esferas do poder só interessava a Ney quando o
atropelava. Getúlio Vargas tinha mandado seu pai para as beiras da
guerra em 1945 assim como, agora, o presidente Jânio Quadros
perturbava seus últimos dias de ordem-unida com uma renúncia que
pegava civis e militares na contrabota. Vindo ao mundo na mesma
Campo Grande que Ney conhecia tão bem, Jânio velejava com
manobras radicais nos mares relativamente calmos de um regime
democrático. De vassoura em punho para varrer a corrupção do país,
fiscalizava repartições pessoalmente, mandava apurar desvios de
dinheiro público e, mesmo sendo anticomunista, abria canais de
negócio com mercados trancados por ideologias, como China, União
Soviética e Cuba.
A renúncia de Jânio fez chegar ao poder seu vice, João Goulart, o
Jango, um homem visto como um perigoso comunista pronto para tingir
a bandeira do Brasil de vermelho. A iminência de um golpe militar para
desviar o país de um destino considerado trágico pelas Forças Armadas
levou os quartéis a suspenderem as folgas para manter todo o
contingente a postos. Por alguns dias, até que as coisas se
acalmassem, ninguém entrava e ninguém saía do quartel. Ney visitava
uma tia no centro do Rio quando foi chamado de volta. Entre o ato, a
renúncia de Jânio e sua consequência final, o golpe de 1964, soldado
Pereira se livraria de qualquer serviço sujo ao concluir o serviço militar
ainda em 1961. Se o seu engajamento durasse mais, poderia ter vindo
a participar de uma cena inimaginável, sendo obrigado a desfazer
manifestações e conduzir prisioneiros políticos para a mesma masmorra
que o abrigou.
O boletim interno no 213 de 2 de outubro de 1961 oficializava o prazo
para a baixa do soldado Pereira, dando início à segunda e delicada fase
de seu plano. Como voltar para Mato Grosso estava fora de questão,
ele ficaria no Rio nem que, para isso, tivesse de dormir numa praça.
Ney tinha um tio de segundo grau, bem-educado e cheio de posses,
mas que havia mudado de ideia sobre oferecer teto e comida assim que
o sobrinho se desligasse da Aeronáutica. Dias antes da baixa, Ney o
visitou e foi recebido com outro discurso. Aquilo não daria mais certo,
disse o tio. Os tempos eram outros e, agora, havia trabalho além da
conta e horas de menos para ter um hóspede em casa. Ao sair do
Galeão pela última vez, o ex-soldado carregava a mesma mala que
usara para sair de casa com três peças de roupa. Depois de passar
duas noites num dos bancos da praça Serzedelo Correia, em
Copacabana, com mais medo da polícia que dos ladrões, se lembrou de
uma madrinha de sua mãe, Elvira, vizinha de vila em Moça Bonita e que
vivia a algumas ruas dali, na Figueiredo Magalhães.
Sujo, magro e com olhos fundos, Ney bateu à porta do apartamento
modesto de sala, quarto e cozinha de Elvira e falou o suficiente para
convencê-la de seu estado de indigência. Entrou, comeu, banhou-se e
ganhou um dos sofás da sala para passar quantas noites precisasse. O
outro sofá era de Diógenes, o Dodi, um dos dois filhos de Elvira que
andava colocando a cabeça a prêmio desde que tomara gosto por
entrar nos automóveis estacionados em Copacabana para tomá-los
emprestados por algumas horas. Ele se deitava sob o volante,
descascava uns fios e os religava para sair guiando s e Aero Willys
pela orla até o fim da tarde, quando os devolvia quase sem gasolina no
mesmo local. O irmão mais velho de Dodi era Demóstenes, o Titinho,
um médico que vivia na tão noticiada Brasília, a nova capital federal, e
que sempre visitava a mãe no Rio. Avisado das peripécias do irmão,
Titinho decidiu aliviar a mãe das preocupações. Chegou sem avisar
para passar um fim de semana e voltou para Brasília levando consigo
Dodi e, por tabela, Ney como aspirantes a candangos, como eram
conhecidos os forasteiros que iam ajudar na construção da cidade.
Quando Ney desembarcou no Distrito Federal, chamado pelos jornais
de “Capital da Esperança”, “Símbolo da Vitalidade” e “Fator de
Progresso da Nação”, ele apenas sentiu que estava num lugar vazio e
muito triste.
Um cinema, um teatro, alguns restaurantes e uma boate resumiam o
circuito da diversão. Em muitas partes, a cidade era um canteiro de
obras espalhado pela planície. A propaganda oficial falava numa vida
mais saudável do que nos centros congestionados e numa arquitetura
pensada para valorizar a vida humana, com mobilidade facilitada e um
silêncio restaurador. Mas, tirando o último quesito, poucos sonhos
pareciam ter saído da prancheta. Os serviços de comércio, quando
existiam, eram precários, e o abastecimento, deficiente. Enquanto a
polícia se estruturava, o medo tornava as ruas desertas e perigosas e,
sem efetivo para fiscalizar as leis de trânsito, o índice de acidentes
automobilísticos disparava.
O censo dizia que, entre funcionários do governo, comerciantes e
candangos que deitavam avenidas e erguiam prédios de Oscar
Niemeyer, 150 mil habitantes se ajeitavam pela região. Mas onde
estavam todos? O marasmo de uma cidade fantasma sobretudo nos
fins de semana, quando boa parte das pessoas voltava para suas
terras, se tornava a maior reclamação de moradores a jornalistas que
faziam matérias sobre a nova Brasília. Ney, que ouvia histórias de gente
que havia se suicidado de tristeza, não teria nenhum problema com a
solidão, mas muitos com os suicidas.
Seu primeiro destino profissional, com a ajuda de Titinho, foi o prédio
cheirando a tinta do Hospital de Base do Distrito Federal, inaugurado
para ser referência no país havia um ano, no aniversário do então
presidente Juscelino Kubitschek, em 12 de setembro de 1960. Depois
de se preparar por três meses num curso que o ensinou a manipular
lâminas usadas em biópsias com partículas de seres humanos em
busca de resposta para seus males, foi admitido no Laboratório de
Anatomia e sentiu o sabor de um salário razoável, bem acima do soldo
que recebia no quartel e o suficiente para pagar contas e garantir uma
mínima vida social. Mas, aos dezenove anos, o menino de Campo
Grande tinha a simpatia e a desenvoltura de um obelisco. Quando ia a
festas, entrava mudo, permanecia invisível e desaparecia calado. E
quando as festas iam a ele, como as que Titinho promovia em seu
apartamento, Ney, considerado novo demais para as cenas impróprias,
dormia na banheira.
O tempo livre numa cidade como Brasília poderia significar também
uma tortura. Assim, o excesso de horas vagas e o desejo de soltar as
travas que o impediam de ser alguém mais interessante o fizeram sair
em busca de novas experiências. Para vencer a timidez, matriculou-se
como integrante do coral de sessenta vozes do colégio Elefante Branco,
assistiu a aulas de técnica vocal com Wanda Oiticica, entrou na turma
de interpretação teatral de Sylvia Orthof e fumou a maconha mais pura
do cerrado que, diziam, pertencia aos indígenas.
O coral do Elefante Branco levou Ney a cantar para alguém pela
primeira vez. Classificado como tenor, ele fazia sua parte da melodia
para, depois, entrar cantando baixinho nas linhas femininas dos
contraltos, contrabandeando-se para um lugar que, em tese, não era o
seu mas que se tornava o único onde sua voz se sentia à vontade.
Certo dia, o regente o flagrou e interrompeu o grupo durante um ensaio.
“Esperem”, disse, aproximando-se de Ney. “Cante mais uma vez.” Ney
cantou e o regente fez sua observação: “Eu sempre pensei que isso
fosse coisa de adulto castrado”. Ney recebeu o comentário como um
elogio, mas nada mudou. Sem planos de ser cantor, só estava ali
porque, além de começar a se sentir mais seguro nas rodas de amigos,
pensava cada vez mais em ser ator. E, pelo que diziam, o canto o
ajudaria.
Assim que pôs os pés num palco pela primeira vez, Ney teve certeza
de que seu lugar era ali. O teatro que havia conhecido em peças
escolares, sempre escondido do pai, quando vivia em Moça Bonita,
abriu a caixa que fazia tudo se tornar possível. Era sobre um tablado
que histórias, personagens, figurinos, luzes e falas que nasciam nas
imaginações mais solitárias poderiam se tornar reais. O canto era um
adereço, a ferramenta que os bons atores deveriam dominar, e sua voz
dava sinais de que estava no bom caminho, segundo professores e
regentes entusiasmados com sua extensão. Sem desconfiar que Ney
fingia ler as notas e emitia o som que a intuição mandava enquanto
olhava as partituras sem entender nada, uma professora teve certeza
de que seu aluno deveria estudar para se transformar em uma estrela
do canto lírico. Aos poucos, a voz do cantor tomaria a frente do corpo
do ator naquela espécie de corrida, mesmo que o dono dos dois, por
paixão, desse uma boa vantagem ao segundo. Ney queria ser ator,
ainda que o destino dissesse não. E foi justamente com um não que o
ator começou a existir.
O teatro que havia procurado para destravar os modos diante dos
estranhos, dando uma chance às relações humanas apesar de ainda
sentir saudade dos pássaros e dos cães de Campo Grande, ganhava
outra dimensão. As sérias aulas com Wanda Oiticica na Escola
Brasiliense de Arte e Cultura, a Ebac, cobravam pela libertação dos
gestos uma boa carga de constrangimento. Wanda o colocava em
frente à turma e o apresentava como um exemplo de postura a ser
seguido usando frases como: “Vejam essas pernas, esses braços,
essas mãos. É tudo perfeito”. Colegas de curso decidiram aplicar o que
tinham aprendido e chamaram Ney para montarem uma peça com um
texto forte e contestador exatamente no ano em que o contestar havia
se convertido num ato passível de prisão. Nas barbas dos militares
recém-instalados em Brasília, o grupo se pôs a ensaiar para estrear A
invasão, peça de autoria de Dias Gomes. Comunista de carteira e alvo
de um regime repressor por seu irresistível mau comportamento e todas
as ideias de justiça social que o possuíam quando estava diante de uma
máquina de escrever, Dias havia criado o texto em 1960 inspirado na
história da Favela do Esqueleto, um edifício em construção, próximo ao
Maracanã, ocupado por vítimas de uma enchente.
Ney era Tonho, servente de pedreiro e filho de Santa e de Justino,
formando com duas irmãs, Malu e Rita, uma das famílias ocupantes do
prédio, todas exploradas pelo malandro Mané Gorila. Humilhados e
desiludidos, seus pais, depois de verem o filho mais novo morrer na
ocupação, juntam dinheiro para voltar para o Nordeste e saem
escondidos do território dominado por Gorila, mas o explorador promete
encontrá-los e acertar as contas matando-os. Ao saber das ameaças,
Tonho corre em defesa dos pais com uma faca e, furioso, luta com o
inimigo.
O primeiro ensaio é vibrante e tudo corre bem, mas Ney deixa sua
interpretação ultrapassar o realismo de Dias Gomes e, com a faca de
madeira, fere levemente o braço do ator que fazia Mané Gorila. Para
evitar novos imprevistos, fizeram-se alterações e a cena do
esfaqueamento foi transferida para o momento em que os dois não
lutavam mais no palco, mas atrás das coxias. Quando a peça estava
pronta, a temporada foi vetada, segundo souberam os atores, por
razões políticas. Eram os primeiros sinais da vida sob a censura do
golpe militar.
Os pedidos posteriores para encenar a peça voltariam sempre da
Divisão de Censura de Diversões Públicas com o carimbo de
“indeferido”. Um técnico da censura, Antônio de Pádua Carvalho Alves,
não teve dúvida em proibir um dos pedidos para sua montagem depois
de ler o argumento:
O autor mostra um deputado demagogo que se aproveita da ignorância dos favelados
para fazer sua campanha eleitoral; problemas da falta de emprego; uma criança de meses
que morre de inanição; um pai de família que se vê obrigado a aceitar o fato de sua
esposa e filha pedirem esmola, etc. Não bastando isto, procura também mostrar a
maneira pela qual vê a instituição policial, apresentando uma polícia subornada que se
presta a fazer encenações em troca de dinheiro e fazendo, nos diálogos dos personagens,
referências insidiosas sobre a mesma, além de uma menção inaceitável feita a um juiz de
Direito. Problemas e assuntos como o do presente tema não devem ser levados ao
público brasileiro no atual momento.
A São Paulo de 1967 não se parecia com nada do que Ney conhecia.
Sua única estada na cidade havia sido nos primeiros dias no ventre de
Beíta, quando foi concebido no quarto da pensão trêmula da praça da
Sé. Agora, aos 26 anos, chegava motivado pela colega Sara, que lhe
sugeriu viver na terra onde o teatro acontecia e pedia por alguém com
seus dotes. Até que algo o fizesse bater asas mais uma vez, Ney
poderia viver na casa da amiga. Um mês depois, ele já conseguia um
endereço mais confortável. Um sobrinho de Sara, artista plástico,
estava esvaziando seu ateliê na Bela Vista, no Centro, e Ney poderia
ficar com ele desde que assumisse o aluguel pago à família da
espanhola Angela. Eram dois cômodos com um banheiro no quintal.
Ney dormiria num deles e, no outro, montaria sua oficina.
São Paulo exigia persistência. Ney percebeu logo que,
diferentemente do que ocorria em Campo Grande, no Rio de Janeiro e
em Brasília, as pessoas usavam escudos quase sempre
intransponíveis. Mantinham suas vidas fechadas até o momento em que
davam uma chance ao estranho, colocando-o numa esteira de relações.
Se aprovado, um desconhecido tornava-se um conhecido que poderia
virar colega e, depois de anos, quem sabe, amigo. Mas, em geral, os
promovidos seriam amigos mesmo, não das simpatias de conveniência,
mas com os quais se poderia contar.
Os problemas aumentavam quando o estranho era Ney, um sujeito
mal-ajambrado de rabo de cavalo e roupas fora dos padrões que
caminhava pela rua Treze de Maio. O bairro de famílias católicas
italianas e espanholas fiéis a Nossa Senhora Achiropita, apesar de
concentrar teatros progressistas como o Oficina, não escondeu a má
vontade com o novo morador. Ney ouvia as janelas das casas baterem
com força assim que ele passava. Um dia, perguntou a Angela onde
poderia tomar sol e ela respondeu que ali mesmo, no quintal. Aliás,
tomar sol lhe pareceu uma boa ideia. Ney vestiu a sunga, Angela
esticou a toalha e os dois se deitaram diante do bater de janelas
envergonhadas da Bela Vista.
Sargento Matto Grosso só havia visto o filho uma vez desde sua
partida em 1958, quando decidira ir a Brasília sem fazer alarde. Numa
rápida estadia, soube com o que Ney trabalhava no Hospital de Base e
voltou para casa desapontado. “Beíta, ele tira pedaço de gente morta.”
A família seguia vivendo em Campo Grande: o pai, a mãe, Grey, Cinara
e Naira. Gay havia ido para Três Lagoas em busca de trabalho e Ney
cumpria a promessa de não pedir socorro nem nos dias de fome. Agora,
disposto a se reaproximar, Matto Grosso chegou a São Paulo com o
endereço do filho sem imaginar o teste que a vida lhe preparava. Pois
justamente naquele dia Ney receberia os amigos mais libertários —
artesãos, atores e hippies, quase todos gays — que se arrumariam em
sua casa antes de saírem para uma festa. Assustado, Matto Grosso se
manteve quieto até que todos partissem e ele fizesse uma última
tentativa: “Ney, volta pra casa que eu arrumo emprego pra você”. Mas o
filho respondeu: “Você não está entendendo. Eu sou feliz aqui e tenho
liberdade, não quero seu dinheiro”. Sentindo o golpe, o pai subiu o tom:
“Esses amigos são todos viados e putas”. E Ney rebateu: “Isso não
interessa. Na minha casa, você não tem direito de opinar sobre eles”.
Antes que um novo rompimento os separasse por mais dez ou quinze
anos, Matto Grosso retomou a calma e mudou de assunto. “Eu peguei
sua irmã agarrada a um namorado debaixo da árvore.” Mas era o
mesmo assunto. “Pai, você já conversou sobre sexo com ela?” “Mas
como é que vou falar sobre isso com uma menina?” “E a mãe,
conversou?” “Não, sua mãe também não fala disso.” “Então, ela vai
aprender na rua, como eu aprendi.” Muitas conversas interrompidas
vieram à tona naquele dia, até que o sargento se despediu marcando
um encontro com o filho no hotel onde estava hospedado.
Ao chegar na hora combinada, Ney percebeu que o pai analisava
suas roupas com uma atenção especial à calça justa cor de laranja: “Da
próxima vez, não venha com essa calça, por favor”. Nada havia
mudado. “O quê? Você está mais preocupado com a minha calça do
que comigo? Não se preocupe, não volto mais.” Antes que o militar
retornasse a Campo Grande, porém, pai e filho se falaram mais uma
vez e marcaram uma despedida em frente ao antigo prédio do jornal
Estadão, na rua Major Quedinho. Um encontro breve e de poucas
palavras, mas com um detalhe que viria a modificar a relação dos dois.
Ney, acostumado a beijar os amigos no rosto para se despedir, disse
tchau, abraçou o pai e lhe deu um beijo sem pensar no que estava
fazendo. Matto Grosso, que nunca tinha sido beijado por um homem,
reagiu desconcertado, olhando para os lados. Mas algo no coração do
pai se abriu e, a partir daquele dia, eles se beijariam em todos os
encontros.
Ney começou a profissionalizar seu artesanato com equipamentos
novos e uma bancada para atender aos pedidos que chegavam dos
donos de butiques da rua Augusta. Jamais fazia uma peça igual a outra,
reproduzindo, por exemplo, um mesmo cinto 150 vezes, mas até
aceitaria fazer 150 cintos diferentes. Um sócio entrou no negócio para
dividir lucros e despesas, mas o tempo de dois anos licenciado do
hospital em Brasília estava no fim. Ou Ney retornava para reassumir o
posto e o salário, uma fortuna equivalente a três vezes mais do que
ganhava como artesão, ou perderia a vaga do emprego com carteira
assinada. Depois de pensar muito, deixou as chaves do ateliê com o
sócio e partiu de volta para o Distrito Federal. Passado algum tempo,
entendendo que o parceiro não regressaria, o sócio fechou a oficina,
vendeu todos os equipamentos sem consultá-lo e sumiu.
Luli havia chegado de São Paulo feliz por fazer as pazes com suas
inspirações no quarto de um hotel e ansiosa por falar com Ney. Após o
vexame na Tupi e de algum desconforto na casa de Roberto Carlos,
sabia que estava prestes a encaixar duas peças importantes. Chamou o
amigo e contou de João Ricardo, do Kurtisso Negro e dos poemas
musicados. Ney disse “tudo bem” sem maior entusiasmo mesmo
quando Luli sugeriu que marcassem um encontro entre João e ele. Ela
ligaria para passar as coordenadas ao rapaz de São Paulo e acertaria
tudo. Ney aceitou, mas pediu que a reunião acontecesse depois de uma
viagem combinada entre amigos que queriam se encharcar de ácido em
uma temporada no santuário hippie de Búzios. Ney, Paulo Cesar e dois
colegas não imaginavam, mas estavam rumando para um rito de
passagem de um deles. Uma despedida ou, como Luli vira em quatro
cartas seguidas do tarô que abriu dias antes, a própria morte. Um Ney
iria morrer para que outro nascesse assim que ele voltasse para o Rio.
Búzios era a imagem da liberdade, quase não havia casas
atrapalhando a sequência de faixas que a natureza dispôs lado a lado.
Coisas que ácido nenhum parecia ser capaz de melhorar: o mar limpo,
as pedras, a vila de pescadores e, ao fundo, um campo verde com
cavalos cor de mel de rabos loiros correndo em volta de lagos e por
entre as pitangueiras. Ney se tornou amigo dos nativos e era levado por
eles para pescar e passar o dia comendo “o que o mato tiver”, como
diziam, caçando ostras e colhendo limão nas árvores plantadas pelos
moradores. Ao chegar com os amigos a uma praça, desembrulhou uma
pílula e a ingeriu para sua primeira experiência com um , a
substância que o levaria ao encontro com algo que jamais poderia
imaginar, uma sensação que o faria chorar e pronunciar a palavra
“Deus”.
Os efeitos do , a dietilamida do ácido lisérgico descoberta num
acidente de laboratório por dois cientistas suíços em 1938 quando
tentavam criar um analgésico para dor de cabeça, prometiam a viagem
sem garantir o destino. Tudo surgia da rebelião cerebral que a droga
provocava com delírios; exacerbação do estado de alerta; alucinação
auditiva e visual; distorção do senso de tempo e espaço; sinestesia,
quando as cores podem ter sons e os sons, textura; onirismo, a
sensação de sonhar acordado; e despersonalização, quando alguém se
sente estranho a si mesmo. Ney experimentou todas as percepções,
menos a última.
Vozes de crianças cantando como se flutuassem pelo ar chegaram
primeiro, uma música tão alta que Ney passou a reproduzi-la. Quando
se virou para saber de onde vinha, foi atraído para um arbusto que
escondia uma pedra cinza com uma concha cor-de-rosa saindo de seu
núcleo. Ele se pôs a chorar entendendo ter encontrado Deus. Mas
mesmo Deus visto por dezesseis horas contínuas num mundo em que o
mar tem ondas de chumbo e as vozes chegam em volumes
ensurdecedores leva à exaustão. O desespero veio por volta da 12a
hora de experiências sucessivas, quando Ney quis interromper o ciclo
chupando laranja e bebendo leite. No dia seguinte, ele saiu para mais
uma sessão de com os amigos numa praia próxima e um rapaz que
eles não conheciam começou a rodeá-los. “Etiene quer ver vocês”,
disse o jovem. “Quem é Etiene?”, Ney quis saber. “Vamos comigo.”
Os amigos o seguiram em direção a outra praia até chegarem a um
jovem deitado numa pedra com as mãos cruzadas sobre o peito,
rodeado por outros homens submissos à sua figura e uma mulher
agachada ao lado. Ney riu. “Ok, já me ganharam pela encenação.” E
Etiene disse: “Aqui só pode existir um chefe”. Àquela altura, parecia
haver mais malucos do que pescadores em Búzios. “Você toma ácido?”,
perguntou Etiene, ingerindo uma pílula. Ney tinha tomado sua dose,
mas aceitou outra. Dois s significavam praticamente uma viagem
sem volta, mas ele estava determinado a não fraquejar. Um dos
rapazes do grupo oposto feriu o braço como se praticasse um ritual e
Ney decidiu que era hora de partir. “Com sangue eu não brinco.” Mas
Etiene e seus asseclas passaram a circundá-lo quando um dos amigos
de Ney se desesperou e mergulhou no mar saltando de uma pedra a
muitos metros de altura para sair nadando com destino à praia. “Um dos
nossos pulou, agora é a vez de vocês”, disse Ney. Mas ninguém teve
coragem e, a partir daí, o xeique de Búzios começou a se comportar
como um súdito, voltando com o grupo de Ney para terminarem aquela
viagem de dormindo todos na mesma cama.
6. Um salto no escuro
Mas de católicos eles não tinham nada. Geraldo Filme, Zeca da Casa
Verde, Talismã e Toniquinho Batuqueiro vinham alinhados no vinco,
como regia o código dos malandros. Calça de linho, chapéu e sapato
lustrado. Fariam carreira de forma independente, mas, para dar força
televisiva, eram apresentados como Os Pagodeiros. Em outra sala
estavam Ednardo, Rodger e Tetty, chegados de Fortaleza. Faziam parte
de uma turma maior surgida em festivais dos anos 1960 que usava
colares, sandálias, camisetas psicodélicas e muito cabelo. Eram o
Pessoal do Ceará. Apesar de cearense, Belchior, 26 anos, andava
sozinho, esbarrando pelo corredor com outro conterrâneo, Raimundo
Fagner, três anos mais novo. E havia a baiana Simone Bittencourt, 23
anos, alta, sorrisão, voz grave e sem nenhum decote que a deixasse
vulnerável às investidas do meio. Moça de Salvador vivendo em Santos
que acabara de desistir de jogar basquete para gravar um disco e que,
no palco, era chamada apenas de Simone.
Assim que os Secos entraram para cantar no pequeno teatro diante
de efusivas 302 pessoas, Simone enxergou em Ney um homem-
pássaro, mágico, assustador e longe de tudo o que já vira. Diluído numa
programação bastante vasta, o grupo chegou como um desconhecido
exemplar do rock paulista e deixou nos diretores da atração uma
sensação de urgência. Nilton Travesso percebeu que era essencial
trazê-los de novo e Moracy teve a certeza de que o álbum deveria ser
gravado o mais rápido possível. Mas a censura também se alarmou e
passou a considerar Ney um risco à tranquilidade instalada nas s
desde o desmonte das “células subversivas” dos festivais.
Travesso começou a ir pessoalmente todas as quartas-feiras buscar o
certificado de liberação do Mixturação no Serviço de Censura de
Diversões Públicas, o , num escritório perto da Estação da Luz.
Havia uma atenção reforçada sobre as letras das músicas que seriam
cantadas pelo Pessoal do Ceará, alguma implicância com as canções
de Belchior e um foco obsessivo pela imagem de Ney que,
invariavelmente, fazia o diretor ouvir a mesma advertência dos militares:
“Estamos de olho. Vocês não podem incentivar viadagem na televisão”.
Por duas razões, ninguém soube das idas de Nilton Travesso ao
Departamento de Censura. O diretor acreditava que estaria ele mesmo
sendo uma espécie de censor se trouxesse as orientações para conter
Ney e temia que, diante das exigências, as performances dos Secos
nunca mais fossem as mesmas. Se dissesse metade do que escutava
dos censores, instalaria o terror e mataria o programa. Nilton era levado
a uma sala reservada para ser comunicado das possíveis sanções se
insistisse na propagação de libertinagem e na apologia à sem-
vergonhice feitas pelo cantor de danças eróticas que poderiam fazer
mal aos telespectadores com cenas sexualmente “cruéis e violentas”.
Ouvia que os pêndulos dos quadris de Ney eram imorais, que seu
convidado deveria vestir uma camiseta para esconder o peito, que o
rabo de cavalo que usava era feminino demais para um homem e que
seu olhar não era apropriado.
Seus argumentos de defesa eram artísticos. Nilton dizia que Ney
representava apenas um personagem de projeção e expressão corporal
muito particulares dentro de um grupo musical sem discurso político
algum e que tudo fazia parte de um grande teatro. Era uma tese difícil
de ser sustentada diante da mão pesada de uma repressão que
caminhava na mesma linha do fundamentalismo religioso em nome da
proteção à família brasileira. Mas, surpreendentemente, Nilton
conseguia sair com o certificado da censura liberando o Mixturação
para maiores de dezesseis anos a tempo de chegar à emissora e
colocar o programa no ar.
Sem saber da vigilância sobre Nilton, Moracy do Val também se
mexeu. Ao descobrir que o ministro da Educação do presidente Emílio
Garrastazu Médici, Jarbas Passarinho, tinha como secretária uma
colega de turma na Faculdade de Direito do largo São Francisco, Dalva
Assumpção, decidiu cercar-se de alguma garantia às vésperas da
gravação e pediu à amiga, tal qual a uma santa, que interviesse por
eles. Os Secos já ensaiavam pensando no álbum desde que Ney se
despedira do bigode na Casa de Badalação e as letras eram enviadas à
censura meses antes de os músicos entrarem no estúdio. As primeiras
liberações faziam crer em milagres por intercessão de santa Dalva.
Enviada em 23 de janeiro, “Sangue latino” seria um risco nas mãos de
um censor minimamente sagaz. Seu autor, Paulo Mendonça, fazia
confissões e deitava angústias nos versos que refletiam o fato de se
sentir um traidor de si mesmo por ter aceitado um emprego na Marinha,
onde trabalhara em 1968 como analista de sistemas e onde agora, aos
22 anos, chefiava a divisão de software.
Hippie de barba cheia, cabelo até as costas, tamanco e ideias
socialistas, Paulo Mendonça havia deixado um emprego para ganhar
cinco vezes mais numa corporação militar estrategicamente alinhada
com os ventos que sopravam dos Estados Unidos da América do Norte
desde o golpe de 1964. Agora, “Sangue latino”, com a música de João
Ricardo, soava como contrição. “Jurei mentiras/ E sigo sozinho./
Assumo os pecados./ Os ventos do norte/ Não movem moinhos,/ E o
que me resta/ É só um gemido// Minha vida, meus mortos,/ Meus
caminhos tortos./ Meu sangue latino./ Minh’alma cativa.” O carimbo de
“aprovado” do veio cheio de números, códigos e com o texto-
padrão escrito acima da assinatura do censor: “A presente letra musical
foi examinada pelo da do e liberada para gravação e
divulgação pública nos termos dos artigos 53 e 77 do decreto no 20493
de 24 de janeiro de 1946 sob o número 30028”.
Da mesma forma voltaram “Assim assado”, sem considerações sobre
o “guarda belo”, que não só parecia ser para eles mesmos, os
censores, como de fato era; “O patrão nosso de cada dia”, uma crítica
aos militares disfarçada de cantiga de amor (“Eu vivo preso/ À sua
senha/ Sou enganado// Eu solto o ar/ no fim do dia/ Perdi a vida”);
“Primavera nos dentes”, um morteiro sem disfarce (“Quem tem
consciência para ter coragem/ Quem tem a força de saber que existe/ E
no centro da própria engrenagem/ Inventa a contramola que resiste”);
“Rosa de Hiroshima”, um ataque à política bélica dos aliados do Norte
(“Pensem nas crianças/ Mudas telepáticas/ Pensem nas meninas/
Cegas inexatas”); e “Mulher barriguda”, pondo em dúvida o futuro de
uma criança a qual os censores não entenderam que representava uma
nação chamada Brasil (“Mulher barriguda que vai ter menino/ Qual o
destino/ que ele vai ter?/ Que será ele/ quando crescer?// Haverá guerra
ainda?/ Tomara que não”). Era inacreditável o fato de todas terem sido
aprovadas.
As canções não aprovadas seriam, ao longo da carreira, três. Com
letra e música de João Ricardo, “Tristeza militar”, cantada desde os
tempos da Casa de Badalação, não tinha subterfúgio poético algum ao
dizer “Não há mais hora H/ Ou medo de gritar/ Tristeza militar”. Já “Tem
gente com fome” fora feita sobre o poema de Solano Trindade, o
mesmo autor do texto de “Mulher barriguda”. Solano era poeta militante
pernambucano, filho de sapateiro, ator no filme A hora e vez de Augusto
Matraga e integrante do Movimento Negro que havia passado seu
último ano de vida nos radares da inteligência. “Mulher barriguda”, aos
olhos do , referia-se a uma pobre grávida inofensiva, mas “Tem
gente com fome” era o grito de um homem negro, criador da Frente
Negra Pernambucana, do Centro de Cultura Afro-Brasileiro, do Comitê
Democrático Afro-Brasileiro e do Teatro Experimental do Negro. Ou
seja, um explosivo a ser desativado.
A outra canção que não receberia aprovação na leva de 1974 para o
segundo disco seria “Pasárgada”, feita sobre o poema “Vou-me embora
pra Pasárgada”, que Manuel Bandeira publicou em 1930. “Em
Pasárgada tem tudo/ É outra civilização/ Tem um processo seguro/ De
impedir a concepção/ Tem telefone automático/ Tem alcaloide à
vontade/ Tem prostitutas bonitas/ Para a gente namorar.” O problema
não eram as prostitutas bonitas nem a possível liberdade irrestrita e
subversiva de Pasárgada, mas o tal “alcaloide à vontade”, algo que
pareceu tóxico demais. Na mente de um censor, o outro nome daquilo
era “entorpecente”.
Forjados pelo pensamento lógico militar, técnicos da censura eram
desafiados a interpretar textos artísticos. O problema é que poemas não
surgem de equações nem se compõem por ordem-unida. Assim, cada
interpretação poderia gerar decisões diferentes sobre um mesmo texto,
dependendo da sensibilidade e da carga cultural do censor. Outro
pedido feito pelo ator Leonardo Alves para reproduzir “Vou-me embora
pra Pasárgada” na peça Uni-Verso foi aprovado no mesmo ano em que
a música dos Secos havia sido proibida. Os alcaloides poderiam ser
usados à vontade, mas uma cena teve de ser mudada por ordens do
censor que assistiu ao ensaio da montagem com a prancheta no colo:
“Não permitimos o beijo boca a boca”.
Não havia dinheiro, mas, como nas histórias dos grandes álbuns,
havia magia. E com a capa não seria diferente. João Apolinário
conhecia um premiado fotógrafo de campo do jornal Última Hora
chamado Antonio Carlos, não por acaso, Rodrigues, primo de segundo
grau do escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues. Mesmo sem recursos,
Apolinário o envolveu pedindo que fizesse de graça as fotos para a
capa do disco que o grupo de seu filho iria lançar. A imagem lúdica dos
Secos & Molhados já sugeria um retrato pronto, um deleite para
qualquer câmera, mas Rodrigues, decidido a aproveitar a liberdade com
o amigo para fazer laboratório, não se contentou em colocá-los em
caras e bocas no estúdio e mostrou uma revista da empresa Fotoptica
com a ideia aproximada do que queria: uma perturbadora foto que ele
próprio havia feito exibindo a cabeça de sua mulher à época, Ceni
Câmara, maquiada e posta à mesa como se estivesse decapitada.
Antonio pediu que todos se maquiassem, como Ney já fazia, e ouviu
alguma reclamação apenas de Marcelo Frias. Algo do tipo: “Mas eu sou
músico, não sou palhaço”. Usando a ideia passada pelo nome da
banda, ele iria servir agora a cabeça dos quatro integrantes numa mesa
de armazém, ao lado de linguiça, feijão, cebola, pão e azeite. Antonio já
havia comprado tudo para montar a cena e marcou a sessão para uma
noite fria e num cenário desafiador. Quatro esferas foram abertas no
tampo de uma mesa de madeira para as cabeças passarem e, depois
de posicionadas, uma bandeja prateada foi encaixada em cada pescoço
por meio de uma abertura feita com um corte discreto no papelão. Os
músicos ficavam sentados por horas em blocos, sentindo o gelo da
madrugada por debaixo da mesa e, sobre ela, o calor dos refletores.
Cada expressão eternizada na foto, escolhida entre centenas de opções
registradas, era o retrato de quatro almas. Ney é o mais maquiado,
circunspecto, focado e com olhos vermelhos; João, com meia face
pintada, tem a expressão contrita e dramaticamente misericordiosa;
Gerson, naturalista e menos pintado, parece flagrado antes de assumir
uma pose definitiva; e Marcelo Frias, ao fundo, de cabelos longos e
ondulados, olha para o infinito desejando estar nele ou em qualquer
outro lugar bem distante daquele, à espera da desmoralização pública
por seu ato de sexualidade duvidosa.
Tão revolucionário nas ruas quanto conservador na cama, o rock
começara havia apenas um ano seu discurso de revolução sexual
andrógina pelos lábios pintados de David Bowie quando os Secos &
Molhados finalizavam o álbum. Assim, a falta de referências musicais
viris tornava Ney uma estranheza de risco elevado aos parceiros de
grupo. Seria necessário tanto rebolado, tanta maquiagem, tantas penas
de pavão? O que os pais diriam, que piadas ouviriam, que mancha
provocaria em suas carreiras? Os integrantes da banda de apoio não
estavam dispostos a pôr em questão a sobriedade aprendida com Jack
Bruce, Jimmy Page e Eric Clapton, e disseram não quando João os
convidou para se apresentarem também maquiados, como se fossem
um grupo só. Eles só não precisariam rebolar. Apenas Marcelo Frias
ficou de pensar no caso.
Ney havia se mudado provisoriamente da vila perto da rua Frei
Caneca para um quarto alugado no quintal da casa onde viviam
Marcelo Frias e sua mulher, Elaine, num sobrado na base da escarpada
rua Monte Alegre, em Perdizes, bairro classe média na Zona Oeste de
São Paulo. Uma mudança de ares feita mais pela amizade de Ney por
Elaine, hippie de muitos talentos e com gênio imperativo, do que por
afinidades com o baterista. Apesar de parceiros no grupo, Marcelo era
como Ney, reservado e de poucas palavras. A estada duraria somente
alguns dias, até Ney perceber que as coisas tinham ficado mais difíceis
para ele por ter se distanciado mais de três quilômetros dos teatros da
Bela Vista, onde toda a vida parecia acontecer.
Antes de voltar à vila, Ney sentiu que não havia um clima doméstico
muito favorável à transformação de Marcelo num integrante maquiado
dos Secos & Molhados. Elaine, com forte ascendência sobre o marido,
parecia questionar se o melhor não seria manter-se ganhando um
cachê fixo por show, como tinham decidido os outros instrumentistas.
Marcelo titubeou mas fez a foto das cabeças e só decidiu que não
suportaria o peso do personagem de sexualidade indefinida quando a
capa do disco já estava na gráfica. Chamou a banda e informou que
preferia seguir em frente na condição de músico de apoio. Depois do
repúdio de Moracy e de João Ricardo, o baterista quase deixou o grupo,
mas a poeira baixou e ele acabou ficando. Sua cabeça na capa do
álbum, no entanto, levaria o público e as primeiras matérias a
considerarem os Secos & Molhados um quarteto formado por Ney,
João, Gerson e Marcelo Frias.
O endereço para o qual Ney voltou era um lugar mágico que tinha
sediado a gênese dos Secos, servido de ateliê para ele e para um
amigo artista chamado Claudio e se tornado refúgio para a irmã de um
colega músico que, grávida antes dos dezoito anos, foi expulsa de casa
pelo pai. A generosidade com a garota quase custou sua liberdade
depois que uma denúncia anônima de prática de pedofilia e consumo
de tóxicos com menores no local, provavelmente feita com intuito
vingativo pela família da jovem, levou a polícia até lá. Grey, que visitava
o irmão em São Paulo, deixou os agentes entrarem e revistarem tudo. A
maconha, a única droga que Ney consumia desde que uma bad trip de
o fizera ver o chão do cemitério da Consolação se abrir e todas as
lápides começarem a derreter, estava bem escondida e não havia sinais
de bacanal. Ney não estava em casa e talvez, em razão do rabo de
cavalo e das roupas que usava em 1973, sua ausência o tenha salvado
do que poderia ter sido, no mínimo, uma noite bastante desagradável.
Ney se lembra de ter sido chamado por João e Gerson, alguns meses
antes do lançamento do disco, para um jantar do qual participaria
também Moracy do Val. Chegou sem saber que já existia uma pauta
definida, um assunto espinhoso que deveria surgir cautelosamente
entre risos e frivolidades. A questão não era pessoal, que Ney não os
entendesse mal, mas de posicionamento. Resumindo, as pessoas
estavam dizendo que os Secos & Molhados eram um grupo de
homossexuais e, se não fosse pedir muito, Ney deveria maneirar nos
trejeitos. Nada no projeto original falava em “grupo gay”, “grupo
andrógino” ou coisa parecida. Havia um desconforto com os exageros.
“Olha”, disse Ney, “então é só vocês falarem que não são
homossexuais e todos vão saber que o homossexual aqui sou eu.” Mas
os parceiros insistiram numa mudança de atitude e Ney respondeu:
“Então, tudo bem. Coloquem outra pessoa no meu lugar”.
O público que lotava os teatros de São Paulo foi o fiel da balança. Ao
mesmo tempo que a parte da plateia formada por roqueiros mais
tradicionais poderia ser afugentada, outra chegava com furor para ver
um ser que, fosse homem ou fosse mulher, era eletrizante justamente
por não se parecer com nada. Tanto João como Gerson, e Moracy mais
ainda, sabiam que não seria inteligente deixar Ney sair magoado
daquele restaurante e decidiram libertá-lo para fazer o que bem
entendesse no espaço de palco que lhe cabia.
Os primeiros shows antes do lançamento do álbum provavam que a
aceitação dos trejeitos de Ney poderia ser um bom preço a se pagar.
Um Brasil que ainda só conhecia Secos & Molhados pelo rádio estava
prestes a vê-los nos palcos, uma experiência que poderia ser
assustadora, divertida e transformadora. Willer José de Mattos, a quem
os amigos de infância chamavam de Butika, passou pela rua Treze de
Maio e ouviu o som que vinha de um ensaio num teatro fechado. O
segurança que estava à porta impediu sua entrada e ele ficou ali,
escutando as outras músicas, até Moracy aparecer. Butika o abordou,
se apresentou, entendeu que o grupo era novo, que não tinha lançado
nenhum disco e que ensaiava justamente para gravá-lo. Ainda assim,
insistiu em saber quem eram os rapazes e quem compunha aquelas
canções, decidido a partir para um convite apresentado e fechado num
diálogo de quatro frases. “Eu vou fazer um festival em Belo Horizonte.
Quer participar?”, disse Butika. “Festival com quem?”, sondou Moracy.
“Tim Maia, Raul Seixas, Mutantes, O Terço e Celly Campello.”
“Quando?”
Os Secos & Molhados haviam partido para Belo Horizonte três dias
antes de um dos shows no Teatro Itália. Era a primeira viagem
interestadual, antes mesmo de o Fantástico mostrá-los ao país. Um
bate e volta apertado, feito por Ney, João e Gerson de avião e pelos
músicos do grupo a bordo de uma Veraneio com muita maconha na
bagagem e um novo integrante: o baixista Gerson Tatini. Willy
Verdaguer tinha se desentendido com João ao pedir um cachê melhor.
Houve discussão, o clima pesou e ele proferiu o temível “parei no som”,
a forma dramática de um músico dizer adeus. Não era fácil estar sem o
dínamo da banda, dono de um baixo vivo e pulsante que pensava
acima dos marcadores de tempo que o rock produzia aos montes.
Gerson Tatini, um exuberante instrumentista da cena roqueira de São
Paulo, fã do inglês Chris Squire, do Yes, foi chamado às pressas, tirou
em pouco tempo as linhas de baixo criadas por Willy e seguiu com o
grupo.
O que os esperava em Belo Horizonte era o festival Rock Soul Pop,
anunciado para domingo 9 de setembro, a partir das 15h, no campo do
Cruzeiro, instalado no bairro colonizado por italianos do começo do
século e chamado não sem razão de Barro Preto. A argila escura
deitada pelo solo da região encostada ao centro da cidade emergia em
dias de chuva, produzindo algo muito parecido com o lamaçal que
Butika vira em Woodstock, em 1969, o que não era nada para quem
tinha à sua frente Joe Cocker, Richie Havens, Sly and The Family Stone
e Jimi Hendrix. Pois ali estava seu Woodstock particular resumido num
cartaz: Celly Campello, Banquete 93 de Cogumelo, Diana & Stul, Raul
Seixas, Os Mutantes, O Terço, Sá, Rodrix & Guarabyra, Secos &
Molhados e Tim Maia.
A Rede Globo entrou como parceira para ajudar Butika a promover o
espetáculo e, se quisesse, exibi-lo com exclusividade. Uma reunião foi
marcada na direção da Globo Minas, na rua Rio de Janeiro, perto do
Barro Preto, e iniciada com um pedido dos diretores. “Quem você acha
que poderia colocar no palco a tempo de ser mostrado no Fantástico?”,
perguntaram. Se tudo seguisse horários rígidos, sendo as imagens
captadas no palco do Cruzeiro até as 20h45, haveria tempo para que
elas fossem exibidas naquela mesma noite depois de pularem de
antena a antena, saindo do Barro Preto para a rua Rio de Janeiro, de lá
para a serra do Curral de Belo Horizonte e, então, para a sede no
Jardim Botânico, no Rio.
“Bem”, disse Butika, “temos o Tim Maia, o Raul Seixas, Os Mutantes
e o Sá, Rodrix e Guarabyra, tudo gente muito boa.” Eram nomes
frescos, exceto Tim e Os Mutantes, mas que já tinham sido assunto de
alguma forma, e a orientação que chegava do Rio, talvez influenciada
por um artigo contundente do jornalista Artur da Távola no jornal O
Globo pedindo mais frescor e menos naftalina na programação, era
para que o Fantástico, o Show da Vida, fizesse suas apostas no que
havia de realmente novo. E o que havia de novo? Butika falou da dupla
Diana & Stul. Ela, uma bela cantora de voz suave, e ele, um inventivo
baixista, ambos saídos do psicodélico Equipe Mercado, um grupo
desaparecido pouco depois de nascer, com dois compactos simples e
uma faixa na coletânea underground chamada Posições.
Ao sentir que seus interlocutores tinham gostado da sugestão, Butika
os poupou de tantas informações, mas havia uma observação a fazer.
Diana, segundo o produtor, se apresentava sem usar calcinha. Por ele,
tudo bem, mas algo lhe dizia que os diretores de uma emissora de
prestes a mostrá-la em horário nobre deveriam saber. “Tem mais
alguém?”, perguntaram. “Tem esse grupo de São Paulo, os Secos &
Molhados.” A sede já dispunha de um musical gravado com os Secos
pronto para ir ao ar naquele 9 de setembro de 1973, a tal participação
que espalharia o grupo pelos ares, mas a conversa seguiu como se a
filial de Minas não soubesse desse detalhe, ignorando até mesmo o
anúncio de letras minúsculas feito na seção “Hoje na ” do jornal O
Globo: “O surrealismo do conjunto Secos & Molhados em visões
fantásticas”.
Butika seguiu com o pouco que sabia: “Eles se apresentam todos
paramentados e o líder é um filho de português que gosta de fazer
música usando poemas de autores famosos”. A direção da Globo
aceitou a sugestão. Eles iriam filmar a parte dos Secos, mas havia mais
um pedido do produtor: tudo o que foi dito naquela sala deveria ser
mantido em segredo absoluto para que Butika não atraísse a fúria de
Tim Maia, Raul Seixas ou de qualquer outro artista não escolhido para
aparecer na . Tim foi mandado com um provimento de garrafas de
uísque e erva para baseado a um sítio na cidade vizinha de Nova Lima,
e os demais ficaram hospedados no hotel Amazonas Palace.
Os Secos ganharam o horário nobre das 20h30, antes de Raul e Tim
Maia, mas depois de todos os outros seis shows, incluindo o último da
história em que Sá & Guarabyra apareceriam em trio com Zé Rodrix.
Quando o grupo foi anunciado pelo apresentador Ademir Animasom, da
equipe do Big Boy, Ney surgiu num estranho estado de torpor,
sentindo tudo se mover muito mais rápido do que seu tempo interno.
Com um comportamento visivelmente diferente daquele das
apresentações nos teatros de São Paulo, apanhou um cano no canto do
palco e passou a girá-lo com movimentos sem sentido até que um grito
da plateia reabilitou suas sensações. “Ney, arrebenta. Você pode.” A
frase ficou na sua cabeça. “Você pode!” A repressão policial não
aliviava a vida dos universitários mineiros, e muitos já tinham aprendido
que a maconha que Ney havia usado aos montes nos bastidores, coisa
que nunca mais voltaria a fazer antes de um espetáculo, deveria ser
trocada pelo , sem odor, sem fumaça e, se tudo corresse bem, sem
boletim de ocorrência.
As imagens dos Secos & Molhados cantando para algo entre 25 mil e
30 mil pessoas, segundo o jornal Estado de Minas, seguiram para o Rio
pelas montanhas de Belo Horizonte. Sua exibição, no entanto, pode ter
sido no Jornal Hoje do dia seguinte, uma vez que o Fantástico já tinha o
especial gravado com o grupo. Enquanto elas faziam seu trajeto, os
músicos voltavam para São Paulo naquela mesma noite, de carro, para
não se arriscarem a perder a apresentação no Teatro Itália no dia 10.
Gerson Tatini achou descabida a correria e decidiu ficar em Belo
Horizonte para só retornar dois dias depois, de trem, com o saxofonista
Manito.
Mas, quando chegou a São Paulo, Tatini já estava fora da banda. A
pedido de João Ricardo, Willy Verdaguer havia reassumido o posto.
Houve um visível mal-estar entre os músicos e algum arrependimento
da parte de Tatini por ter perdido o que poderia ser a chance de sua
vida, mas nem tudo foi em vão. Sua passagem meteórica pelo grupo o
fez conhecer Moracy do Val. Passados alguns meses, ele procuraria o
empresário para falar do Moto Perpétuo, a banda de rock que tinha
formado com um jovem pianista com quem estudara, de aparência nerd
e arroubos geniais, chamado Guilherme Arantes. Uma outra história iria
começar.
Uma névoa densa e escura parecia entrar pelas portas antirruído das
salas do estúdio Sonima, na avenida Rio Branco, quando ali se reuniam
João, Gerson e Ney para a gravação do segundo álbum dos Secos &
Molhados, em junho de 1974. Uma tensão que a secretária da casa
percebeu e decidiu aliviar ensinando a Ney uma oração contra espíritos
obsessores que ele passou a fazer todos os dias sobre o calor de velas
acesas em cantos discretos do estúdio. João havia conseguido, mais
uma vez, juntar um material musical cheio de substância política e
poética ativado por mais de dois meses em ensaios na residência da
família de Emilio Carrera, na rua Fidalga. Diferentemente do que
Gerson esperava, apenas uma música teria sua assinatura, “Delírio…”,
em parceria com Paulo Mendonça, e ele via seus sonhos se
desintegrarem com o irreversível monopólio de João nas composições,
algo que se reverteria, todos sabiam, em mais dinheiro de direitos
autorais para um dos integrantes. Além disso, havia a certeza sigilosa
da parte de Ney de que ele fazia sua despedida com aquelas treze
faixas, e mesmo assim estava disposto a lhes entregar a alma como se
nada o atingisse.
Os Secos já tinham outro motor desde a série de shows do pós-
Maracanãzinho. O baterista Marcelo Frias havia parado no som após
uma discussão com Willy Verdaguer durante um ensaio. Seria uma
bobagem, uma virada de bateria qualquer que Willy, talvez falando duro
demais, acusou voltar fora do ritmo, mas Marcelo fez do detalhe uma
tormenta, jogando as baquetas para nunca mais voltar. Quem assumiu
seu lugar foi Norival D’Angelo, 25 anos, jovem que atuava com a Detroit
Blues Band numa casa chamada O Beco, na rua Bela Cintra, um antigo
boliche que o empresário Abelardo Figueiredo transformara em boate
com música ao vivo, e feito do mesmo material genético de Marcelo,
colhido de bateristas como Ginger Baker, Mitch Mitchell, Buddy Rich,
Bobby Elliott, o baterista dos Hollies, e Ringo Starr. Depois de seu
primeiro show com os Secos no suntuoso Buffet Colonial, na avenida
Indianópolis, Norival se juntou à tropa e seguiu com ela para
espetáculos em Uberaba, Uberlândia e tudo o que viria até a gravação
do álbum.
A nova configuração, que tinha também o violão técnico e afinado de
Jorge Omar, resultou num álbum fora do eixo denso estabelecido por
baixo e bateria no primeiro disco, de desenhos mais leves, com maiores
respiros, e de belezas breves e grandiosas. Ney e Omar fazem uma
faixa sozinhos, “O doce e o amargo”. João, Gerson e Ney cantam,
apenas com a flauta de Rosadas, a vinheta “Preto velho”. “Medo
mulato”, de João e Paulinho Mendonça, tem Norival nos timbales. “Não:
não digas nada”, de João para o poema de Fernando Pessoa, mostra
Ney seguido só de violão e flauta. “Angústia” tem muitos instrumentos,
mas abertos, de forma menos compacta, com um solo improvisado no
limite da distorção que John Flavin fez pensando no personagem
central do livro Angústia, de Graciliano Ramos. E “Caixinha de música
do João” é um instrumental com vocalises de Ney e piano de Emilio.
João desafiou ainda Ney a sair pela primeira vez dos agudos quando
mostrou “Oh, mulher infiel”. Ney aceitou e relaxou as cordas vocais para
chegar a graves que nunca havia explorado.
E lá estava também a banda cheia e pulsante de volta, com as linhas
do baixo de Verdaguer em alto-relevo, muitas vezes com a prolixidade
quase descontrolada da juventude, em convenções criadas pela
guitarra de John e pelo piano de Emilio. As colaborações de John Flavin
apareciam com força em arranjos para canções como “Flores astrais” e
“Delírio”, na reprodução da forma rítmica de “Mulher barriguda” em “O
hierofante”, na viajante decolagem em dois acordes de “Voo” e no
flamenco em espanhol “Tercer Mundo”, que João compôs para versos
de Julio Cortázar. O lado B trazia “Toada & rock & mambo & tango &
etc.”, que não era nada disso mas um blues, a única parceria de João e
Luli do disco. Embora acesas sobre mágoas e rancores, as velas para
todos os santos de Ney e a fé em todos os sons de João pareciam surtir
efeito, levando a magia a cair duas vezes no mesmo lugar. Os Secos &
Molhados faziam duas correntes paralelas de sons antagônicos — uma
linha de frente, delicada e acústica, e uma de fundo, agressiva e elétrica
— soarem como algo único.
Não houve tempo para os críticos escutarem o disco duas vezes.
Assim que o álbum saiu, o programa Fantástico, o mesmo que
apresentara o grupo ao país dezoito meses antes, não fazia ideia de
que agendava também seu funeral quando o colocou na grade do dia
11 de agosto de 1974. O fardo nas costas de Ney pesava agora por
toda palavra de João Apolinário, a quem ele não conseguia mais ver
sem mágoas. Moracy podia se atrapalhar nas finanças e algum dinheiro
até deveria escoar por frestas de contas malfeitas, mas Ney não via má-
fé no empresário que valesse sua destituição e passara a valorizá-lo
ainda mais quando fazia comparações.
Os planos de Moracy não tinham limite e Ney amava em especial um
dos que jamais seriam concretizados. O “encontro da Idade da Pedra
com a Era Tecnológica” era a forma como o empresário se referia ao
sonho de levar os Secos para se apresentarem num palco armado em
meio às tribos do Parque Indígena do Xingu. Uma aventura custosa e
sem nenhuma garantia de retorno financeiro. “Quando você precisar de
dinheiro, pare de pensar nele que ele virá”, dizia. Apolinário, por sua
vez, movia-se ao vento das conquistas. Afinal, em pouco tempo, Moracy
havia sido demitido por dinheiro e, enquanto Ney sofria com uma
Brasília bege que ele nunca conseguia manter parada nos faróis das
ladeiras de São Paulo antes que ela voltasse e batesse no carro de
trás, João cruzava as ruas num vistoso automóvel importado. O
problema de Ney não eram os bens de João, mas o que parecia ser um
desencontro de propostas.
Só faltavam alguns dias. Os Secos & Molhados seriam apresentados
mais uma vez com pompas na Globo, cantariam “Tercer Mundo” e
“Flores astrais”, e Ney, enfim, diria adeus a João, Gerson e Apolinário
para assinar contrato com outra companhia de discos ou voltar a ser o
hippie miseravelmente feliz a oferecer colares de miçanga em Ipanema.
Não seria bem assim, mas o importante era estar pronto para o que
fosse e, dias antes de embarcar para a gravação do Fantástico, Ney
desabafou com um de seus amigos íntimos, o jornalista Marco Antônio
Lacerda. “Não dá mais, Marco, vou sair do grupo”, disse ele, para
começar a desfiar lamentos envolvendo climas e condições financeiras
que considerava bem desalinhadas. Uma rara noite de descompressão
emocional feita a alguém que, além de ser um de seus bons ouvidos de
alcova, Ney se esqueceu, era um repórter. “Não posso mais ficar no
grupo”, dizia a Marco na casa da rua Fernando de Albuquerque.
Algum tempo depois da conversa, mais precisamente em 10 de
agosto de 1974, um dia antes de o Fantástico ir ao ar, o Jornal da
Tarde, em São Paulo, publicava a primeira notícia oficial da dissolução
do grupo numa matéria que Marco escreveu, mas não assinou, sob o
título “O Secos & Molhados perde a voz de Ney. A música brasileira
ganha um bom cantor”. A matéria tinha Ney como personagem central,
trazia aspas de Gerson, mas nela não havia frases de João Ricardo
para nenhuma defesa, mesmo sendo ele o alvo de muitas reclamações.
A abertura do texto criava uma certa comiseração:
Cem cruzeiros, uma nota de cinquenta, quatro de dez e duas de cinco. É todo o dinheiro
que Ney Matogrosso tem para passar esse fim de semana. Uma parte é para pagar a luz
de casa que a Light cortou desde quinta-feira passada. O que sobrar é o lucro de sua
carreira como cantor dos Secos & Molhados — o único conjunto brasileiro capaz de lotar o
Maracanãzinho, parar as cidades onde faz shows e, em alguns meses, vender mais
discos do que o invencível Roberto Carlos (800 mil cópias só no da estreia, segundo
informações do próprio grupo).
Gerson, procurado por Marco Lacerda para completar os desabafos
de Ney, aparecia na matéria contando em primeira mão uma história
estarrecedora. A gana de João Ricardo pelo domínio da cena, lembra
Gerson, havia chegado ao insuportável no dia em que, num dos últimos
espetáculos, a plateia teria pedido ao grupo que tocasse como bis
“Rosa de Hiroshima”, a única música do repertório que não era de
autoria de João. Gerson dizia que, assim que o show acabou e todos
seguiram para o camarim, o colega já estava possesso, chutando
cadeiras para ordenar que jamais começassem uma música de novo
sem a sua autorização. Ney terminava dizendo que passaria o melhor
fim de semana de sua vida com os tais cem cruzeiros. “Agora, estou de
novo no lugar de onde o João Ricardo me tirou: a sarjeta. Graças a
Deus, mas tenho dormido e até sonhado, o que não me acontecia há
um ano.”
Mas o texto comunicava uma falsa ideia: a de que Ney saía com as
mãos abanando por causa de uma injustiça contábil. Sim, Ney poderia
ter ganhado mais em sua aventura nos Secos & Molhados, porém,
como mostram os acertos registrados por Moracy, ele sabia dos valores
divididos entre as quatro partes e, ainda que não considerasse justa a
partilha, também ganhou muito dinheiro, bem mais que o suficiente para
pagar a conta da Light. A questão era outra. Por muito tempo, Ney não
teve conta em banco nem ambições que valessem as aporrinhações
dos cálculos e das previsões financeiras.
O dinheiro entrava, ele pagava as contas, satisfazia um ou dois
desejos palpáveis e o resto, o que representava sempre mais que a
soma de tudo o que gastara, era simplesmente dado. Não doado, mas
dado. Doações são feitas com indulgência e compaixão, mas seu ato
era mais próximo do desapego. Assim, Ney, ou aquele dinheiro que
surgia em sua vida sem que ele jamais o procurasse, pagava contas de
amigos, ajudava colegas de amigos e financiava sonhos de família.
Dona Beíta comprou terras no Mato Grosso graças às últimas rendas
dos Secos & Molhados.
O Fantástico de 1974 era o preço da liberdade. Ao perceber que João
Ricardo poderia ter posto um cunhado para vigiá-lo pelos camarins do
Teatro Fênix, da Globo, com o intuito de saber se ele falaria com
jornalistas ou algo do tipo, Ney se exaltou. Apanhou uma garrafa de
vinho na sala dos convidados e apontou para o rapaz, ameaçando
quebrá-la em sua cabeça se ele continuasse perseguindo-o. Cada um
em seu camarim, sem que se cruzassem, Ney, Gerson e João vestiram
suas extravagâncias para cantarem lado a lado pela última vez.
Uma tristeza de olhares e braços cansados parecia abater “Flores
astrais” para além do que diziam os poucos versos que João Apolinário
havia feito para a melodia de João Ricardo. “Um grito de estrela/ Vem
do infinito/ E um bando de luz/ Repete o grito// Todas as cores/ E outras
mais/ Procriam flores/ Astrais.” A canção, em cuja execução o piano de
Emilio Carrera buscava vida em Elton John e o slide guitar de John
Flavin trazia alguma aura de George Harrison, parecia durar o mesmo
tempo que a história vivida em menos de dois anos, de ensaios
cuidadosos, experiências sonoras, incômodos militares, shows lotados,
viagens, hotéis, fuga de fãs, brigas em estúdio, tremores no palco,
músicas em rádio, programas de , Roberto Carlos e crianças, muitas
crianças. A despedida dos três jovens saídos de duas Belas Vistas
muito diferentes, uma o bairro central de São Paulo e outra na fronteira
do Brasil com o Paraguai, se dava como um grito de estrelas no tempo
infinito de 4min10s.
O Fantástico fazia água na própria festa de lançamento que
patrocinava anunciando, depois de mostrá-los cantando “Flores astrais”,
o fim do grupo. A informação soava como alívio para Ney e,
provavelmente, como justiça divina para Moracy do Val, vingado pelo
destino. João Apolinário afirmou aos repórteres que iria voltar para o
jornalismo, “o lugar de onde nunca deveria ter saído”, e João Ricardo
recebeu a imprensa ao lado de dois advogados na sala de reuniões da
produtora para contar que só soube da dissolução do grupo junto
com todos os jornalistas que estavam naquela sala. O fim repentino
surpreendeu também Willy, Emilio, Rosadas e Norival e desencadeou
uma grave crise emocional no guitarrista John Flavin. Se Ney tinha cada
vez mais a segurança de saber o que queria e o que não queria aos 32
anos, àquela altura já em retiro no Rio de Janeiro, o jovem John, aos
vinte, despencava dos sonhos usando doses maiores de .
Ainda sem entender o que havia se passado, ele procurou Ney para
tentar uma vaga em seu novo grupo, qualquer grupo que pensasse ter.
Ney disse que montaria um time em breve e que John seria sempre
bem-vindo, mas fez uma ressalva: a rebeldia e o precisavam ficar
de fora. O próprio John acabou reconhecendo que não estava bem e
decidiu não se entregar a nada naquele momento. Alguns dias depois,
ele não encontrou sua guitarra Les Paul preta em casa e se pôs a
procurá-la em praças e ruas até passar em frente a uma casa amarela
da vizinhança e ter a certeza trazida por seus delírios de que o
instrumento estava escondido ali. Os moradores estranharam e
chamaram a polícia. John foi levado para averiguações e solto logo em
seguida, mas começou a ir todos os dias à delegacia para perguntar se
tinham encontrado seu instrumento.
Mais alguns dias e o jovem resolveu incendiar o passado. Entrou no
quarto, empilhou tudo o que não era de seu gosto, incluindo peças de
roupa, livros e outros objetos, e ateou fogo. Enquanto as chamas
subiam e os vizinhos chamavam os bombeiros, ele olhava para o fogo
tocando bandolim de pé. Sua mãe o levou para o Sanatório Bela Vista,
no Itaim, onde ficou internado por um mês até sair, viajar para o Rio e
sofrer uma forte abstinência por falta do uso das medicações. Ao voltar,
levaram-no para outro hospital, o Instituto de Psiquiatria Comunitária,
onde foi amparado pelo Comitê de Recepção, quando os próprios
internos recebem os novatos. Assim que entrou na sala, dois homens o
esperavam. O mais novo era um advogado vítima de traumatismo
craniano que o havia deixado com o aspecto e as ideias de um Dom
Quixote e o mais velho, um interno elegante que adorava ouvir Mahler,
pintar e fumar cigarros franceses chamado Olavo de Carvalho, o
ensaísta e autoproclamado filósofo que se tornaria guru da direita
ultraconservadora quase cinquenta anos depois.
De volta ao Rio de Janeiro, Ney sentiu que havia chegado sua vez.
Queria agora gravar um álbum com as músicas e os músicos que
escolhesse, pensar figurinos, testar luzes, escrever roteiros e,
sobretudo, não receber ordens nem se submeter a aprovações. A
desforra da repressão de seus desejos por parte de João Ricardo, como
o de cantar “Barco negro”, por exemplo, tinha começado bem, pois a
Continental propusera contratá-lo para gravar três discos sem
interferências, pagando um adiantamento que lhe serviria para quitar a
conta da Light e se despedir da miséria, ao menos, por alguns meses.
Saiu logo em busca de um aluguel pelo Rio, mas sua primeira tentativa,
um bom apartamento no bairro da Lagoa, travou porque o dono
reconheceu quem seria seu inquilino. “Aqui não é lugar para bacanal”,
disse, encerrando a negociação. Ney acabou achando um apartamento
no térreo da rua Carlos Góis, no Leblon, e ali se estabeleceu para
passar a viver uma espécie de regime comunitário com homens e
mulheres de todas as preferências sexuais que uns podiam chamar de
território livre e outros usando a forma reducionista escolhida pelo
proprietário do imóvel da Lagoa.
A liberdade de Ney começou numa noite no Theatro Municipal do Rio,
onde se apresentava a lenda argentina e reformadora da tradição
portenha, o homem que havia colocado o bandoneon dos tangos nas
salas de concerto, o distinto senhor de 54 anos chamado Astor
Piazzolla. Ney adorava suas composições e era com uma delas que
queria iniciar sua vida de artista solo, mas a ideia de se dirigir ao
camarim depois do espetáculo, apresentar-se cerimoniosamente e
ousar pedir a Piazzolla uma música para gravar em seu primeiro disco o
aterrorizava. Ele então tomou banho, se vestiu e, antes de sair, ingeriu
meio comprimido de Mandrix, um desinibidor de línguas e destravador
de ideias que desde o princípio da década fazia parte dos dias de Ney e
de quem o rodeava.
Mandrix ou metaqualona era um sedativo depressor do sistema
nervoso central prescrito para os insones que os norte-americanos
conheciam como Quaalude, uma aglutinação de quiet interlude, ou
“interlúdio tranquilo”, e os ingleses como Mandrax. Vendido livremente
até 1984, seu uso passou a ser indiscriminado a partir dos anos 1970
por uma geração que queria exatamente o contrário do que dizia a bula.
Uma dosagem a mais e o que era para proporcionar um sono profundo
e restaurador depois de amenizar a ansiedade levava a uma euforia
amorosa equivalente a “doze cervejas em uma pílula só”, como
pacientes relataram nos Estados Unidos. A “droga do amor”, capaz de
fazer alguém se apaixonar por um poste, parecia sob medida para
hippies pregadores do Flower Power e astros do glam rock. David
Bowie a cantou na música “Time”, do álbum Aladdin Sane, em 1973, e
Frank Zappa em “Pygmy Twylyte”, do duplo gravado ao vivo Roxy &
Elsewhere, lançado em 1974. O veto à sua produção em muitos países,
na segunda metade da década de 1980, se deu quando a recreação
começou a virar caso de saúde pública. Boa parte dos usuários
apresentava sintomas de abstinência ao tentar interromper as dosagens
e os casos de overdose se tornaram frequentes.
Assim que o espetáculo de Piazzolla terminou, uma voz que já não se
sabia de que mundo era chamou Ney para o camarim. Acabrunhado,
ele se aproximava aos poucos quando o próprio argentino precipitou-se:
“Qual o seu nome?”. “Ney.” “Ney Matogrosso?” “Sim, você me
conhece?” “Claro, dos Secos & Molhados.” Ney tomou um susto. “Eu
queria muito gravar uma música sua.” E Piazzolla: “Eu tenho duas que,
creio, vão servir bem. Mas você não pode ir até meu estúdio, em Milão,
para gravarmos juntos?”. “Claro que posso.” Ney não podia, mas daria
um jeito. Saiu do Municipal num estado de êxtase tão irrefreável que
resolveu tomar mais um Mandrix e se entregar à noite. Na manhã
seguinte, ao acordar, viu um homem dormindo a seu lado e não
conseguiu lembrar como ele tinha ido parar ali: “Quem é você?”.
Ney foi à Continental já no dia seguinte mais para informar que para
pedir: ele iria para a Itália gravar duas músicas com Astor Piazzolla, a
companhia pagasse ou não. Se a resposta fosse não, haveria um
problema de custos que estava disposto a resolver nem que tivesse de
pedir empréstimo a amigos, mas a empresa bancou sua ida e ainda
mandou com ele Moracy do Val, mais como amigo do que como
empresário. Os dois ficaram alguns dias num hotel de Roma antes de
seguirem para Milão, onde Astor já preparava a música “As ilhas” no
estúdio, com uma letra que o argentino solicitara ao poeta brasileiro
Geraldo Carneiro, e “1964”, sobre um poema de Jorge Luis Borges.
Canções em tons menores que, ao contrário do rock, apontariam
qualquer descuido de afinação.
“As ilhas” colocava a voz de Ney numa região bastante grave, quase
desconfortável, para que ela subisse à aguda aos poucos
acompanhando uma escalada de tensão até que, no final, soltasse um
grito. “1964” é ainda mais dramática, com a caixa da bateria em rufos
militares que tanto agradavam a Piazzolla e uma frase que Ney repetia
com a alma incorporada de Borges: “Ya no seré feliz. Tal vez no
importa/ Hay tantas otras cosas en el mundo”. As duas canções mais
caras do que logo viria a ser o primeiro álbum solo de Ney delimitavam
um território: Piazzolla emprestava respeito, mas não garantia
popularidade, e popularidade era o que Ney menos buscava em sua
vida pós-“Vira”. As músicas impressionavam mais por serem de
Piazzolla do que por algum potencial de reverberação pop, mas foi com
elas que ele ganhou a atenção de seu novo comandante de tropa, o
trompetista Márcio Montarroyos, destacado para formar o conjunto. Ao
voltar para o Brasil, Ney mostrou o que havia conseguido e Montarroyos
se espantou: “Você já começou com Piazzolla?”.
Sair em busca de canções no Rio de 1974, uma terra provida de uma
deslumbrante malha de criadores ainda dispostos a fornecer canções,
era uma aventura. Com Paulo Mendonça, Ney venceu a timidez para ir
ao bairro Peixoto e entrar na casa de Milton Nascimento, que já era um
gigante. Ney não o conhecia, mas Paulinho sim, e os dois foram bem
recebidos ao lado do lustroso piano da sala e das músicas que Milton
tocaria nele: primeiro “San Vicente”, que havia sido lançada em 1972,
no álbum Clube da Esquina, e depois uma pérola com letra de Ruy
Guerra chamada “Bodas”, inédita mas que Milton acabaria gravando
antes de Ney, em Milagre dos peixes ao vivo. Quando foram embora,
Milton ligou interessado nas letras de Paulinho Mendonça. Queria saber
se ele poderia mandar material para comporem algo juntos. Mas Paulo
travaria sempre que sentasse para compor e pensasse que poderia
estar criando uma parceria com Milton Nascimento.
A Luiz Carlos Sá, Ney pediu para ficar com “Homem de Neanderthal”,
lembrança dos anos em que todos a cantavam na garagem de Luli, e do
amigo Paulo Cesar, um ex-bancário que viraria hippie e sumiria no
mundo, não sendo localizado nem para receber seus direitos autorais, a
escolhida foi “Pedra de rio”, mostrada a Ney pela coautora Luli numa
tarde em que ela a tocou no violão dentro da piscina vazia de sua casa
em Filgueiras. A acústica dos azulejos havia criado um efeito
impressionante na sonoridade de uma canção que já era naturalmente
bela. O caldo engrossava. Outro achado era “Açúcar candy”, enviada
por Sueli Costa, que a compusera com Tite de Lemos, uma lascívia
orgástica mostrada pela primeira vez em 1970 num espetáculo nada
infantil chamado Alice no país divino maravilhoso, regada a viagens
químicas e com versos que fariam um bom barulho ao saírem da boca
de Ney: “Tua pistola dispara baunilha/ Na minha boca, no meu dorso/
Ai, precipício/ Que poço de delícias/ Ai, que vertigem/ Ai, que desmaio”.
Um amigo de Ilha Solteira havia presenteado Ney com um que
trazia a música “Mãe Preta”, uma toada dos sambistas gaúchos Caco
Velho e Antônio Amábile, o Piratini, lançada em 1943 pelo Conjunto
Tocantins e, curiosamente, pela mesma Continental. Uma canção de
história tão atribulada que levaria a um erro. A letra não é de Piratini,
como se lê no álbum, mas do escritor e poeta português David Mourão-
Ferreira. “Mãe Preta”, em sua origem, tinha outra letra. Ela narrava a
tragédia pessoal de uma escrava que embalava o filho branco de seu
senhor enquanto seu amor, que poderia ser seu próprio filho ou seu
marido, apanhava na senzala. “Era assim que Mãe Preta fazia/ Criava
todo o branco com muita alegria/ Porém lá na sanzala o seu pretinho
apanhava/ Mãe Preta mais uma lágrima enxugava.” Depois da gravação
do Tocantins, com “senzala” trazendo “a” no lugar do “e”, a fadista
portuguesa Maria da Conceição a lançou em Portugal e, em 1955,
Amália Rodrigues a regravou com outra letra numa versão que foi
usada no filme francês Os amantes do Tejo, de Henri Verneuil. Ainda
criança, Ney estava sozinho numa sala de cinema de Bangu, no Rio,
quando assistiu petrificado às cenas com a voz de Amália ao fundo.
A música que Amália cantava tinha a mesma melodia de Caco Velho,
mas a letra era do poeta David Mourão-Ferreira e o título havia sido
mudado para “Barco negro”. A história de Mãe Preta saía para entrarem
as angústias de uma mulher que via seu homem partir pelo oceano
numa embarcação sem nenhuma garantia de retorno. De negro, só
sobrara o barco. “De manhã, que medo/ Que me achasses feia/ Acordei
tremendo, deitada n’areia/ Mas logo os teus olhos disseram que não/ E
o sol penetrou no meu coração.”
Amália diria por toda a vida que “Barco negro” foi a razão de sua
popularidade no mundo, mas havia uma questão racial por trás das
mudanças. Denunciar a surra de um negro diante dos olhos tristes de
Mãe Preta soava como algo subversivo à censura da ditadura
portuguesa salazarista, e essa foi apontada como uma das mais
prováveis razões do sumiço de Mãe Preta da canção. Sem saber da
história, Ney gravou aquilo que o arrebatou na sala de cinema e, ao
mesmo tempo, pela voz de uma vizinha portuguesa que cantava “Barco
negro” a plenos e saudáveis pulmões em Moça Bonita. Ou seja, gravou
não a letra de Piratini, mas a de David Mourão-Ferreira.
“Barco negro” era tão forte que Ney decidiu ir contra a prática dos
intérpretes da época, de adaptar o eu lírico ao sexo de quem cantava, e
preservar o narrador feminino para repetir frases como “de manhã, que
medo que me achasses feia”. Já seria o suficiente para alguns ouvintes
estranharem, mas havia ainda o final, que Ney resolveu fazer
produzindo um choro quase convulsivo de uma mulher abandonada.
Ney diz se lembrar de ter lido uma das primeiras críticas ao álbum
classificando sua interpretação como se fossem “choros de uma
rameira”, o mesmo que dizer “lágrimas de uma prostituta”. De qualquer
forma, a experiência nos Secos já tinha garantido carta branca e uma
boa dose de confiança por parte dos empresários do disco. Se calara as
desconfianças de Byington e desbancara Roberto Carlos com seu canto
feminino, quem seriam os críticos para mudarem o curso de sua voz?
Sem produtores que lhe tomassem as rédeas, Ney seguia em frente.
João Bosco e Aldir Blanc, bons caçadores de intérpretes que eram,
foram à casa de Paulo Mendonça mostrar o que tinham para Ney. João
tocou “Caça à raposa”, mas guardou o doce de volta logo depois ao
lembrar que a canção já estava reservada a Elis Regina. E ninguém
podia mexer com Elis. Ney ficou com a consolação de “Corsário” e
começou a entender um pouco do mundo em que pisava. Existiam
códigos entre compositores e cantores, e Elis era sempre um ponto de
tensão. Ao mesmo tempo que ninguém poderia tocar no que ela
gravaria, regravar algo que ela havia cantado era desaconselhável pela
ideia da impossibilidade de fazer algo que viesse, pelo menos, com o
mesmo impacto. Ney esperaria anos para cantar qualquer música
gravada por Elis para evitar comparações desfavoráveis, e nunca se
esqueceria do dia em que a cantora o chamou de canto depois de
assistir a um dos shows de lançamento do disco. “Você ainda tem muito
chão pela frente. Quero te ver daqui a sete anos.”
O conjunto preparado por Montarroyos era uma potência. Além do
próprio trompetista, de talento lapidado na Berklee College of Music e
com atuações ao lado de Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan, havia o
baixista nova-iorquino radicado no Brasil Bruce Henri; o guitarrista
argentino de blues rock Claudio Gabis, que a revista Rolling Stone
classificaria como um dos cinco melhores de seu país; o percussionista
Don Chacal; dois remanescentes dos Secos, Sérgio Rosadas e Jorge
Omar; o baterista Elber Bedaque; e um jovem de 24 anos que transitava
entre as artes visuais e a música de vanguarda e que tinha passado em
1970 pela mostra internacional Information, no MoMA de Nova York,
chamado Guilherme Vaz. Sua habilidade em acessar sons de outras
dimensões, tocando sintetizadores e um instrumento que ninguém
conhecia muito no Brasil, o mellotron, faria de Vaz a alma experimental
do grupo.
Ney queria levar uma floresta para o disco. Em vez de silêncio entre
as faixas, usaria estrondos de trovoadas, pássaros em revoada,
murmúrios de riacho e guinchos de macacos misturados aos tecidos
climáticos criados pelos sintetizadores de Vaz. Só na abertura havia
1min57s sem música apenas com a trilha da natureza. Em seguida a
voz de Ney surgia trombeteando a vida depois do fim: “Eu sou o homem
de Neanderthal!”, bradava, estendendo a última sílaba até que ela se
tornasse uma anunciação primal. Um instrumental poderoso criava a
sensação de que algo destruidor estava para acontecer até o universo
se acalmar e só os pássaros continuarem cantando mesmo após a
última nota. E então, o sitar de Claudio Gabis e a tabla de Chacal
davam forma ao início indiano de “Corsário” como se Ney já estivesse
no outro lado do mundo. No fim, um rápido silêncio e começava “Açúcar
candy”, um rock feérico que rompia com tudo o que havia antes para
elevar o êxtase ao ponto de fazer Ney terminar exaurido depois de
simular um orgasmo.
Bruce estranhou a proposta de Ney para o final de “Açúcar candy”:
“Você precisa gozar comigo, Bruce”. No momento em que começasse a
cena — o que nos shows seria feito com intenso realismo quando Ney
montasse num cano — o baixo de Bruce também deveria se
descontrolar. Tudo isso e eles estavam só na terceira música. Havia
ainda duas latinidades: “América do Sul”, com mais gritos de guerra,
como “Desperta América do Sul/ Deus salve essa América Central”, que
Paulo Machado, amigo dos tempos de Brasília, tinha enviado a Ney em
uma fita cassete, e a rumba “Coubanakan”, mais um portal aberto para
sua infância em Moça Bonita. O conjunto da obra apontava para um
show sem limites, com Vicente Pereira livre para jamais repetir cenários
e com uma agenda de espetáculos pelo país. Mais uma vez, era preciso
muito dinheiro para pôr tudo de pé, e ele viria de um jovem empresário
que se interessou pela empreitada chamado George Ellis.
Ellis, que empresariava Milton Nascimento, havia passado por apuros
recentes ao trazer os Jackson 5 ao Brasil, em setembro de 1974. Houve
confusão de logística, casas vazias, mais de vinte pessoas na equipe,
irritação com jornalistas por parte do centralizador pai dos meninos, Joe
Jackson, e quebra-quebra num show cancelado no Ginásio Presidente
Médici, em Brasília. Agora, Ellis queria se livrar do trauma e decidiu
colocar 500 mil cruzeiros nos shows de Ney. Uma aposta generosa que,
se tudo desse certo, retornaria em dobro, com toda a bilheteria que a
aventura prometia render.
Ney abriu as comportas. Vicente queria todos os materiais possíveis
para o cenário: ferro, cobre, ossos de baleia, cordas, couro, palha,
madeira, aves empalhadas, queixada de boi e um caldeirão. Ricardo
Zambelli, ator que um dia gravaria o filme Menino do Rio, o ajudaria a,
além de criar peças para os músicos, realizar a transformação do ser
andrógino de outra galáxia no homem da Idade da Pedra. Sobre os
ombros e a cabeça havia um manto feito com crinas de cavalo de raça
importadas de Portugal. Acima dos olhos e descendo pelo nariz, uma
máscara produzida com ossos de tartaruga. E, saindo das costas, dois
chifres de carneiro que os feiticeiros africanos usavam contra os maus
espíritos. Maquiagem só preta, nos lábios e nos olhos, deixando todo o
corpo livre para que brotassem ossos, pelos e couros de maneira que
não houvesse mais dúvidas de que, agora, Ney tinha abandonado
quase todos os resquícios da forma humana.
Os ensaios para a gravação e para os shows que logo deveriam
surgir seguiam sem muita organização no Teatro da Lagoa, perto do
Leblon, onde as ideias fervilhavam na cabeça dos músicos o tempo
todo, eram construídas e desconstruídas a cada sessão, surpreendendo
Ney com novidades em partes que já haviam sido resolvidas na
véspera. Era incrível acompanhar o processo criativo de músicos tão
talentosos, mas a demora em definir os arranjos começou a incomodar.
“Eu preciso que vocês fechem isso”, disse Ney. O tempo passava e o
repertório continuava em construção, lentamente, com interferências
incontroláveis, como uma visita-surpresa ao estúdio feita por Astor
Piazzolla e sua mulher, Amelita Baltar, e outras de ordem química,
como as alterações de andamento das músicas provocadas muitas
vezes pelo consumo de drogas. Ney percebia uma dinâmica quase
sempre certeira: se alguém fizesse o ritmo correr, tinha usado cocaína.
Se tocasse mais lento, maconha.
George Ellis sentiu o drama. Até então, Ney não precisara se
preocupar em liderar músicos. João Ricardo e Willy assumiam essa
tarefa nos Secos, João no front e Willy na retaguarda. Agora, não. Ney
tinha um grande time formado por Montarroyos mas nenhuma
ascendência sobre ele. Quando iam para o terceiro mês de ensaio, Ellis
resolveu intervir com estratégia. Pediu ao amigo espanhol Daniel Más,
jornalista e autor de novelas, que trouxesse alguém com poder de
assumir o controle com mão de ferro e alguma ternura. Más encontrou
em Nova York o colega argentino Billy Bond, produtor e importante
músico da cena roqueira de Buenos Aires, amigo dos velhos tempos de
Marcelo Frias e Willy Verdaguer, com conhecimento para argumentar
com músicos nos mesmos códigos e pouca paciência para, se
necessário, argumentar usando o código da força. No primeiro ensaio
sob seu comando, não deu outra.
O horário de chegada era oito da manhã, mas o primeiro que
apareceu veio às dez, dichavando um torrão de maconha e esticando a
seda para um baseado matinal. Billy Bond esperou que todos se
acomodassem e explicou as novas diretrizes. Não haveria mais
tolerância com atrasos. O tecladista Guilherme Vaz se alterou e, depois
de mostrar-se indignado com as exigências de Bond, soltou alguns
palavrões, ouviu outros e partiu para a briga. Os dois trocaram socos
até serem apartados pelos colegas e restabelecerem seus limites. Bond
trazia também boas notícias. Em troca da profissionalização do grupo,
os músicos seriam fidelizados com um salário mensal pago por Ellis. A
prática não enriqueceria ninguém, mas era um luxo, já que o normal na
praça era receber por hora de gravação ou por show realizado. Em
poucos dias, o grupo estava organizado e as datas da estreia,
fechadas: 15 e 16 de março, no Teatro do Hotel Nacional.
O local com 1400 poltronas vermelhas revestidas de veludo,
inaugurado dois anos antes, de frente para a praia de São Conrado,
havia sido adaptado para se transformar numa selva, com caixas de
som avançadas para que se ouvissem macacos e pássaros antes
mesmo que o espetáculo começasse e os canhões de 120 spots
fossem acionados para formar a luz controlada por Bond. O slogan do
show era “toda a técnica a serviço da magia de Ney Matogrosso”, mas
Ney queria mais. Seu último desejo era o de que se espalhasse pelo
teatro cocô de vaca seco para ativar o olfato das pessoas que
adentrassem sua mata, antes que ele entrasse em cena. No entanto,
cocô de vaca era demais para a opulência do Hotel Nacional, e pela
primeira vez desde que saíra dos Secos & Molhados Ney teve que
desistir de uma ideia.
Mas o controle ainda estava em suas mãos. O disco batizado de
Água do céu — Pássaro seria lançado com um mimo: um compacto
para abrigar apenas as duas canções de Piazzolla. Ney decidiu levar
para o show também “Tercer Mundo”, do desafeto João Ricardo, com
poema de Julio Cortázar, que os Secos só tinham mostrado no
Fantástico. Um texto escrito nas páginas do programa distribuído na
sala tentava responder antecipadamente a uma pergunta da plateia:
afinal, o que uma canção dos Secos & Molhados fazia no primeiro show
de Ney? Não era para ser uma ruptura com o que havia antes,
sobretudo por esse antes lhe trazer lembranças de episódios tão
desagradáveis? O texto dizia: “As pessoas a ouviram no segundo disco
dos Secos & Molhados. Na época em que o conjunto gravou o disco,
Ney gostava especialmente de ‘Tercer Mundo’. Como não deu para
fazer no palco, Ney faz agora”. Nelson Motta resolveu veicular uma
análise mais sentimental em sua coluna do Globo: “A dúvida: uma tardia
declaração de amor ou uma volta por cima? Opinião de quem conhece
razoavelmente, gosta muito e admira demais Ney e João Ricardo: a
primeira opção”.
Os shows lotaram, boa parte da plateia se levantava no final para
aplaudir e muitos dos jornais elogiaram. André Midani, o homem mais
poderoso do mercado fonográfico, responsável pela efervescência da
gravadora Philips e que nunca se conformou com o fato de os Secos
terem acabado por causa de uma “briga de garotos”, lamentava não ter
sido rápido o suficiente para levar o grupo para sua companhia.
“Fantástico, fantástico”, dizia aos jornalistas na saída, mais extasiado
que os austeros Piazzolla e Amelita, que aproveitaram uma viagem ao
Brasil para assistirem ao show. As colunas sociais registravam ainda,
nas melhores poltronas, Milton Nascimento, Gal Costa, Chico Buarque,
Elis Regina, Luiz Carlos Sá e o empresário Guilherme Araújo, entre
vários casais de homens eretos em vinco e senhoras em longo. Ao
cantar Milton, João Bosco, Sueli Costa, Amália Rodrigues e Astor
Piazzolla, Ney entrava numa festa na qual os Secos haviam sido
barrados por surgirem autossuficientes demais, grandes demais,
atrevidos demais e, com exceção de Vinicius de Moraes assinando à
sua revelia a autoria de “Rosa de Hiroshima” com Gerson Conrad, sem
pedir a bênção a nenhum santo brasileiro, como fizeram os Novos
Baianos dois anos antes com João Gilberto para gravar “Acabou
chorare”. Um lugar das elites chamado de pela imprensa desde a
Era dos Festivais.
Caetano Veloso não se juntou ao coro dos que saíam contentes do
Hotel Nacional. Sua ligação com o show que passou a ser conhecido
como Homem de Neanderthal era mais próxima do que parecia — ele
tinha se prontificado a produzir o álbum e só não ganhou o posto
porque a ideia chegou tarde, quando tudo já estava nos trilhos —, mas
se decepcionou ao ver Ney de maneira tão dura, tão marcada, tão
teatral. De fato, havia uma grande preocupação do cantor com a forma
como a estreia solo seria recebida pelos críticos e essa tensão foi
percebida no excesso de marcação no palco, nos movimentos de corpo
e na falta de interatividade com o público. Depois da apresentação,
Caetano foi ao camarim dizer que era preciso ter mais abertura com a
plateia, que ele parecia muito distanciado. Mas Ney entendeu que
aquele era o momento de Caetano, não o seu, e que, se ele estava
duro, era por ter acabado de sair dos Secos & Molhados. Ney iria ouvir
Caetano, sim, mas só dali a um ano, quando deixasse de virar bicho
para começar a se tornar gente.
Samba era um território impensável para Ney até a Globo pedir a ele
que gravasse para a novela Saramandaia o samba de latada “Pra não
morrer de tristeza”, de João Silva e K-Boclinho, que acabou saindo num
compacto com a música “Bodas” do outro lado. Ney gostou do que fez,
deixou de achar que poderia ser acusado de apropriar-se de algo que
não era seu e resolveu colocar a música na lista de Bandido. Mais uma.
Se era hora de tirar o peso de tudo, resolveu peitar também a opinião
dos críticos, intelectuais e gente da própria classe artística, e escolheu
“Cante uma canção de amor”, de Odair José. Odair vinha sendo
alvejado desde 1972, quando “Eu vou tirar você desse lugar” estourou,
e 1973, quando “Uma vida só”, conhecida como “Pare de tomar a
pílula”, foi vetada. Grande vendedor de discos, gravá-lo era como tocar
na desonra e sucumbir ao mais popularesco e repulsivo de um artista
que atendia ao “gosto das empregadas domésticas”. Arriscado até para
Caetano, que tinha sido vaiado ao cantar com o Odair no festival Phono
73, em São Paulo. Ney pensou sobre o quanto as mesmas pessoas que
militavam pelo suposto bom gosto se omitiam diante dos militares e teve
sua epifania: “Foda-se a inteligência, foda-se a ditadura, foda-se o
ditador e fodam-se todos. Eu só vou me submeter à minha consciência”.
Assim, a canção “A gaivota”, de Gilberto Gil, era mais um foda-se. Gil
havia sido preso em julho, acusado de portar e consumir substâncias
ilícitas durante a passagem do quarteto Doces Bárbaros, formado por
ele, Caetano, Gal e Maria Bethânia, pela cidade de Florianópolis.
Agentes de uma blitz feita no hotel onde eles estavam chegaram a seu
quarto revirando bolsas e gavetas. Ao pedirem a Gil que abrisse a
carteira, se depararam com um cigarro de maconha, um troféu para o
delegado Elói Gonçalves de Azevedo, conhecido como “o terror dos
maconheiros”. O que parecia não ser nada poderia ser tudo na ficha
policial de um artista que já fora preso e exilado por motivos políticos
pelo mesmo regime que, em janeiro, tinha assassinado no cárcere o
operário Manoel Fiel Filho e, no ano anterior, “suicidara” o jornalista
Vladimir Herzog. Gil assumiu a contravenção, o porte do baseado, mas
disse que não sabia que fumá-lo era contra a lei. Acabou sentenciado a
um ano de prisão, com pena revertida em internação num hospital
psiquiátrico da cidade. Quatro dias depois, seria transferido para uma
clínica em Botafogo, no Rio de Janeiro, e, em um mês, posto em
liberdade para prosseguir com o tratamento.
Quando Gil ainda estava preso, porém, uma emissora de rádio no Rio
recebeu Ney em seus estúdios para uma entrevista corriqueira.
Passado algum tempo, o locutor surpreendeu o convidado ao perguntar
se ele teria coragem de falar com Gil, por telefone, direto do
confinamento. Era uma cilada, entendeu Ney. Queriam saber, na
verdade, se um maconheiro em potencial, como todos achavam que
Ney fosse, daria apoio em público a um subversivo derrotado pelo vício
e preso pelo implacável herói da direita da capital de Santa Catarina.
Pois foi justamente o que Ney fez assim que o locutor lhe deu o sinal
para falar. “Gil, eu queria que você soubesse que todos nós estamos
com você aqui fora, e que nada mudou. Continue firme.” O baiano
agradeceu e desligou, emocionado. Dias depois, vendo o voo das
gaivotas de Florianópolis pela janela do Hospital Psiquiátrico de São
José, conseguiu um violão, conjugou o verbo “gaivotar” para as almas
livres e compôs “A gaivota”.
E então foi assim, prensado entre a censura da elite intelectual que
defenestrava Odair José, a das palavras que proibia Chico Buarque e a
da força policial, que encarcerava Gil, que Ney definiu um nome
proibido para seu desterro, Bandido, uma foto proibida para sua capa,
na qual segurava um punhal com olhar ameaçador, e um lugar proibido
para lançá-lo no dia 21 de outubro de 1976: a temida Penitenciária
Lemos de Brito, no centro do Rio. O nome do disco era a metade do
título da canção de Rita Lee e a foto que ele queria para a capa foi
parar no encarte por autocensura da gravadora.
Mas o show na Lemos de Brito, um ato sem precedentes na , se
tornaria uma saga. A verdade é que os presos já haviam escolhido o
“bandido Ney” numa enquete interna que perguntava qual artista eles
gostariam de ver no entusiástico auditório da penitenciária. Quando
soube que tinha sido o mais votado, Ney aceitou sem negociar, abrindo
uma espécie de pré-estreia de Bandido para os encarcerados que
ocupariam os 1800 lugares da plateia, entre eles homicidas, latrocidas,
sequestradores e ladrões de banco. Seu novo grupo, já batizado
apropriadamente de Terceiro Mundo, foi acionado para a missão e Ney
entrou com Guilherme Araújo, Regina Chaves, Luisinho, Roberto de
Carvalho, Jorge Omar e todo o equipamento de som pelos portões
laterais da muralha número 401 da rua Frei Caneca, que continuava
exatamente como d. Pedro ordenara que fosse erguida em 1850 para
conter a balbúrdia das ruas cariocas.
Assim que chegou, Ney foi levado por um agente para uma sala que
fora transformada em camarim, não muito próxima do auditório. A
ordem era deixá-lo em paz, mas os detentos começaram a bater na
porta até o cantor desistir de qualquer privacidade e abri-la. Eles
queriam conversa, ouvir histórias de Ney e contar passagens pessoais
sem muitos detalhes sobre um passado de crimes que, diziam, não
importava mais. Enquanto prestava atenção no que falavam, Ney
imaginava o quanto ele, sempre nos andares mais baixos de uma
sociedade mantida sob ordens militares, era exatamente igual a todos
que estavam ali. Quando os detentos sentiram que já eram quase uma
família, resolveram descontrair com um ou dois baseados, mas Ney
pediu que fumassem do lado de fora, já que pretendia, por melhor que
fosse a hospedagem da Lemos de Brito, voltar para casa após o show.
Todos entenderam e saíram, exceto um jovem que ficou pela sala
visivelmente interessado em uma abordagem mais ousada.
Ney o achou atraente, mas, na falta de contexto para terem algo além
de uma boa conversa, passou-lhe o telefone de seu escritório, pediu
licença e rumou para o auditório a fim de começar o show, mas tomou
um caminho estranho que o levou a uma galeria vazia e sem saída.
Desnorteado, deu meia-volta e se deparou com o mesmo rapaz vindo
em sua direção. ‘Não, por favor”, disse Ney, percebendo que seria
agarrado. “Se você me abraçar ou me beijar, vai borrar a minha
maquiagem e eu não vou poder fazer esse show.” O moço assentiu e
Ney seguiu para os aplausos de sua entrada triunfal com uma
sequência de “San Vicente”, “Sangue latino” e “Cante uma canção de
amor”. A revista Veja chegou às bancas na semana seguinte com uma
pequena crítica do show, sem assinatura. O repórter contava que o
“rebolativo” artista, aclamado por alguns detentos como “a Carmen
Miranda do xilindró”, saiu do presídio exibindo “várias marcas roxas,
produto de beliscões aplicados por espectadores mais afoitos”. Pela
primeira vez, Ney redigiu uma carta endereçada a um órgão de
imprensa. “As marcas roxas e beliscões só podem estar na cabeça
doente de quem editou essa matéria”, escreveu. A Veja publicou a carta
sem a parte que se referia à cabeça doente do editor e Ney reforçou em
suas entrevistas: “Nunca fui tão bem tratado em um show”.
O Rio, congestionado de grandes espetáculos, só teria um palco para
Bandido no final de janeiro de 1977, o que levaria o grupo Terceiro
Mundo a ganhar tempo para ensaiar detalhes da estreia, já que o show
da penitenciária havia sido mais compacto, e Ney, como diria Gil, a
gaivotar com suas longas asas pelo verão que chegava às areias de
Ipanema. O álbum fora gravado durante as madrugadas com a
presença no estúdio de uma amiga cada vez mais íntima, Sônia Braga.
Sônia via Ney colocar voz nas canções, admirava sua entrega sensível
e, de um canto, o seguia com os olhos castanhos enormes de Gabriela
que o Brasil cobiçava desde o ano anterior, quando a Globo os exibira
na novela baseada na obra de Jorge Amado.
Num dia, Sônia trouxe de presente um mensageiro do vento feito de
conchas. “Isso deve ser trabalho de macumba pra te amarrar”, disse
Luisinho, rindo. No outro, mandou flores. E foi então que Ney decretou a
vitória de seu estilo de sedução discreta mesmo nas noites de tentação
em que ficavam lado a lado em seu carro. Agora, depois das flores, era
dar o segundo passo. Antes de levar Sônia do estúdio para casa em
sua Brasília, Ney fez o convite final: “Vamos pro meu apartamento?”.
Mas Sônia se mostrou surpresa e disse não, talvez apostando numa
insistência galanteadora que não veio. Se esperava mais do que aquilo,
refletiu Ney, Sônia Braga vivia na década errada.
André Midani via tudo isso como um ativo de seu novo contratado da
Warner, um reduto artístico de ação política e comportamental por
debaixo de uma dança erotizada e provocante, longe da sisudez
nascida com a na Era dos Festivais. Até então, os artistas eram ou
da guerra — Elis Regina, Edu Lobo, Chico Buarque, Gil, Caetano,
Taiguara, Geraldo Vandré, Belchior, Os Mutantes, Rita Lee, Raul
Seixas… — ou da paz — Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Wanderléa,
Jair Rodrigues, Wilson Simonal, Luiz Gonzaga, Sidney Magal… Ao
misturar guerra e paz, cantando as letras mais profundas como se
estivesse num teatro de revista dos anos 1930, Ney embaralhava as
cabeças fantasiando desejos tanto em quem só queria levá-lo para a
cama como naqueles que se inspiravam por sua liberdade irrestrita.
Midani, que adorava provocar um milico desde os anos de Philips,
mandaria prensar o novo disco de Ney com a sugestão de um nu
gigantesco no encarte do álbum. Um álbum que começava a ser
produzido naquele instante com o nome de Feitiço para ser lançado um
ano depois de o cantor encerrar sua trajetória na Continental com o
pouco exigente Pecado, feito sobretudo com sobras do repertório do
show Bandido.
A pessoa destacada para entender o que Ney queria, conhecer o que
não queria e convencê-lo do que deveria querer era Marco Mazzola,
jovem trazido da Philips com um cartel respeitável de produções que
incluíam Raul Seixas, Belchior, Rita Lee e Elis Regina. Seu primeiro
diagnóstico identificava um ajuste a ser feito no posicionamento do
artista, cercado por um bloqueio que, apesar de todo o seu trânsito
popular, não lhe permitia romper os limites das tais 300 mil cópias
vendidas. O homem dançava bem, tinha uma expressão corporal forte,
vivia em especiais da Globo, mas seguia numa redoma cult quase
intransponível.
A chave do mistério poderia estar no arranjo, algo que deveria
transcender os limites dos próprios estúdios brasileiros para que suas
músicas deixassem a atmosfera de Bandido e passassem a soar com a
modernidade eletrônica que a chegada da década de 1980 anunciava.
Os embalos da disco music faziam As Frenéticas chegarem às 500 mil
cópias de seu primeiro e o embalo das Frenéticas fez Mazzola levar
o case para inaugurar sua relação com Ney Matogrosso. Gravar Chico
Buarque era sempre bom, mas, dessa vez, seria diferente. “Não existe
pecado ao sul do equador”, escolhida por Ney, era o som perfeito para
ser trabalhado de uma forma inédita e num lugar onde ele jamais tinha
gravado.
O terreno era delicado, mas Mazzola, treinado pelas tempestades
irascíveis de Elis, só pisava nas pedras que não ameaçassem afundar.
Para ele, o repertório de Ney era, em geral, complicado demais para se
espalhar pelas rádios como deveria, mas isso era o que não poderia ser
dito. O que poderia, ele disse: “Vamos gravar pelo menos uma faixa nos
Estados Unidos? O Brasil não tem equipamentos para o som que
podemos fazer”. Ney respondeu que não queria viajar de avião, o que
era também só metade do que pensava. Para ele, gravar nos Estados
Unidos não passava de ostentação e deslumbre terceiro-mundista. A
boa sonoridade de seus álbuns anteriores, dizia, provava isso. Mazzola
insistiu, alegando que até poderia ir sozinho gravar as bases e voltar
para que a voz fosse colocada no Brasil, mas alertou que seu cliente
poderia não gostar do resultado. Ney cedeu, perguntando: “E como
faremos isso?”. E Mazzola conseguiu sua primeira vitória, respondendo:
“Deixa comigo”, sem saber que nem tudo estaria sob seu controle assim
que os dois aterrissassem em Los Angeles.
Os músicos norte-americanos contratados pela Warner atuariam
diante das partituras escritas pelo saxofonista e arranjador John
D’Andrea, devidamente orientado por Mazzola. A harmonia não deveria
ser alterada nem em um centésimo de nota para não enfurecer Chico
Buarque, um compositor que não aturaria mudanças aleatórias, e a
sonoridade deveria pender mais para os latinos e menos para os
negros, mais para a salsa e menos para o soul. Um som que poderiam
chamar de latin disco se quisessem. O baterista era Jeff Porcaro, que
tinha gravado com Diana Ross, Etta James e Paul Anka e que, em
1982, gravaria no álbum Thriller, de Michael Jackson. O baixista era o
texano David Hungate, integrante da banda Toto desde 1977. O
guitarrista era Jay Graydon, de trabalhos prestados ao Air Supply, Ray
Charles, Cher, Joe Cocker e Marvin Gaye. O tecladista à frente do
Fender Rhodes era o canadense David Vincent Foster, de Donna
Summer, Earth, Wind & Fire e uma lista longa que só estava no início.
E, na percussão, estava um brasileiro que já fazia história nos estúdios
norte-americanos, Paulinho da Costa. Todos a postos esperando o
cantor às nove horas da manhã seguinte à sua chegada.
A questão é que entre a tarde da chegada e a manhã seguinte havia
uma noite e, mesmo hospedados confortavelmente no hotel Holiday Inn
para se recuperarem da viagem, Ney e Mazzola não poderiam negar o
convite para uma festa numa mansão de Beverly Hills promovida por
um tubarão da indústria fonográfica. Atores e atrizes muito famosos de
Hollywood que Ney não conhecia badalavam pela casa falando uma
língua que ele não falava mas consumindo todas as drogas que já
tinham passado por sua corrente sanguínea, desde a cocaína servida
em bandejas na entrada até os ácidos ingeridos nos banheiros.
Ney ficou por ali, flanando entre drinques e comprimidos até que um
trio de músicos mexicanos caracterizados como mariachis surgiu para
tocar e ele, apresentado por Mazzola como um cantor brasileiro, foi
chamado ao palco. Ney subiu e cantou “Dos cruces”, do espanhol
Carmelo Larrea, que já havia escolhido para gravar. Uma canção doída
e introspectiva, sem nenhum clima de esbórnia hollywoodiana, mas que
deve ter saído muito bem porque Ney atraiu todas as atenções de
Hiram Keller, um dos mais belos atores da temporada, de 33 anos, que
em 1969 tinha trabalhado como um dos personagens principais no filme
Satyricon, de Federico Fellini. Quando a festa terminou, foram embora
juntos para uma noite a dois no Holliday Inn.
A má notícia era que a manhã chegaria dali a pouco e, por volta das
6h, Mazzola, que tinha saído mais cedo da festa, já passava um bilhete
por debaixo da porta: “Seu Pereira, não esquece: gravação às 9h”. Sem
sinal de vida até 8h20, o produtor voltou ao quarto disposto a chamá-lo.
“Vamos, os músicos estão esperando.” Ney acordou sem Hiram, que já
havia deixado o hotel, e disse que não tinha nenhuma condição de
cantar naquela manhã. Mazzola saiu pelo Hollywood Boulevard, entrou
na primeira farmácia que avistou e pediu qualquer medicação capaz de
eliminar ressacas. “Se não funcionar esse, use esse”, disse o
farmacêutico, entregando dois potes coloridos de comprimidos. Ney
tomou a primeira cápsula ainda no hotel enquanto Mazzola pegava um
táxi para chegar antes ao estúdio e ganhar tempo. Mesmo tonto, Ney
apareceu no horário e foi estrategicamente preservado num canto
enquanto as partituras eram abertas.
A precisão dos músicos norte-americanos era quase intimidadora.
Eles passaram os olhos pelas notas em poucos minutos, tocaram juntos
uma só vez, e estava pronto. Era como se Chico Buarque tivesse
nascido na pista da Dancin’ Days, com uma introdução cujas seis ou
sete notas iniciais lembravam muito “Não quero dinheiro”, de Tim Maia.
Mazzola percebeu Ney ainda aéreo antes de se levantar e assumir o
microfone e partiu para a dose de emergência. Ao tomar o outro
comprimido, Ney estalou os olhos em poucos minutos. Além de colocar
a voz em “Não existe pecado” de primeira, refez os vocais de
“Bandolero”, de Luli e Lucina, e de “O tic-tac do meu coração”, de Alcir
Pires Vermelho e Walfrido Silva, gravada por Carmen Miranda e
Benedito Lacerda em 1935. As duas últimas, usando as bases que já
haviam sido registradas no Brasil. Um técnico cochichou com Mazzola
ao vê-lo cantando e dançando daquela forma às 9h30 da manhã: “O
cara é doido?”. “Não, ele é assim mesmo.” Na verdade, não era, e
talvez aquela tenha sido a única vez que Ney gravou turbinado por
drogas sintéticas compradas em farmácia. Quando tudo terminou, ele
só conseguiu fazer um pedido antes de desabar: “Por favor, me leve pro
hotel”.
Gravar um baião era mais difícil. Por mais sedutores que a condução
das sílabas os tornasse, jogando com tempos e contratempos para criar
um molho de fazer tudo ao redor dançar também, os ritmos nordestinos
não deixavam de ser um quintal em que Ney só havia brincado de
intruso uma vez, quando cantou “Napoleão”. Gonzaguinha ouvia atento.
“Nunca vi rastro de cobra/ Nem couro de lobisomem/ Se correr o bicho
pega/ Se ficar o bicho come// Porque eu sou é home/ Porque eu sou é
home/ Menino eu sou é home/ Menino eu sou é home// E como sou.”
A opinião sincera que muitas vezes poderia ser até dolorida do filho
do Rei do Baião valia muito. Seria autêntico Ney cantar algo do
paraibano Antônio Barros, gravado por Jackson do Pandeiro, Marinês e
pelo próprio pai de seu consultor, Luiz Gonzaga? Seria ele, Ney,
acusado de oportunismo por gravar um gênero em alta mas tão distante
de seu ? “Homem com H” já havia sido lançada pelo grupo Hydra
de forma tímida e sem divulgação pelo selo Copacabana, em 1974, e,
da mesma maneira, pelos paraibanos do trio de Campina Grande, Os
Três do Nordeste, também em 1974, no disco É proibido cochilar, da
. Mas ninguém naquele estúdio sabia disso.
Assim que conheceu a música por meio da paraibana Elba Ramalho,
com quem trabalhava desde o início de sua carreira de cantora,
Mazzola reservou a canção para Ney como um diamante. Se ficasse
como imaginava, com a voz em algum lugar entre a diversão e a
provocação, eles teriam um primeiro estouro na Ariola. Mas, logo que
ouviu a proposta, Ney disse não. “Eu, cantar isso? Você está louco?”
Uma rápida discussão começou no estúdio, o produtor insistindo e Ney
negando, até um acordo ser fechado. “Eu vou fazer a base e você
coloca a voz. Se não gostar, a gente tira”, disse Mazzola. “Mas se eu
não gostar, não vou gravar”, reforçou Ney. O produtor cumpriu o
combinado e Ney gravou a música e até se soltou um pouco mais,
como fizera em “Não existe pecado”. Quando a fita do teste ficou
pronta, Mazzola pediu a Ney que refletisse sobre o assunto e mostrasse
o resultado aos amigos. E não havia amigo melhor que Gonzaguinha
para essa missão.
Gonzaguinha ouviu e disse: “Se você não gravar essa música,
ninguém mais pode fazer isso”. Se soubesse do histórico de “Homem
com H” antes de procurar o amigo, no entanto, Ney teria poupado
tamanha agonia. Antônio Barros fez o xote em 1973, logo depois de
assistir a uma apresentação dos Secos & Molhados na . Teve uma
epifania vendo Ney cantar “O vira” e começou a compor algo com a
mesma vibração, transpondo o espírito do acordeom português para a
sanfona nordestina. Quem sabe, um dia, não poderia ser gravado pelo
rapaz de rosto pintado. Quando ainda fazia a letra, após alguns dias,
Antônio Barros sintonizou a Globo e se deparou com o personagem
Odorico Paraguaçu, da novela O Bem-Amado, vivido por Paulo
Gracindo, dizendo a Dirceu Borboleta ao ter sua coragem contestada
diante de Zeca Diabo: “Olhe, seu Dirceu. Eu nunca vi rastro de cobra
nem couro de lobisomem!”. E assim, com um quinhão de autoria
indireta reservada para Dias Gomes, o autor do texto de O Bem-Amado,
“Homem com H” esperou por Ney durante quase dez anos.
Com a aprovação de Gonzaguinha, Ney ligou para Mazzola e disse
“você venceu” a seu modo, já querendo tratar dos passos seguintes:
“Eu quero voltar amanhã ao estúdio para refazer ‘Homem com H’”. O
produtor festejou. Ao menos para a gravadora, a música despontava
como uma aposta do álbum para um sucesso comercial, o que de fato
aconteceu. Assim que ela foi lançada e começou a tocar centenas de
vezes por dia, o telefone da produtora não parou de chamar e Ney
entendeu o que Gonzaguinha queria dizer. Só ele poderia subverter um
típico deboche sexista nordestino convertendo-o em provocação,
confundindo cabeças homofóbicas e constrangendo as reações
machistas mesmo se sua intenção fosse apenas cantar. Uma reflexão
de costumes demolidora mas protegida pelo invólucro da diversão que
expunha e ridicularizava não os trejeitos gays de quem cantava, mas as
ideias dos próprios homens com H que o criticavam. E quem mais
poderia dizer isso sem se tornar uma caricatura? Gil, Caetano, Elis,
Chico? Ney gravou a música sem pensar em nenhuma dessas teorias.
O que ele queria era soar bem e fazer as pessoas dançarem, mas
aqueles dois minutos e 57 segundos mudariam sua vida mais uma vez.
O nascia. Mazzola conseguia seus créditos com Ney para voltar a
interferir no repertório, nada com o poder de virar o leme para um
horizonte ao qual o cantor se recusasse a ir, mas com boas sugestões
que vinham com um olho no gosto de Ney e outro nas expectativas das
rádios. “Vida, vida”, de Moraes Moreira, com Zeca Barreto e Guilherme
Maia, entraria para a trilha da novela Jogo da Vida, da Globo,
provocando ciúmes até em Moraes, que gravou a música em seu disco
lançado no mesmo ano sem obter nenhuma repercussão. “Mata virgem”
trazia um lado mais lírico de seu autor, Raul Seixas, numa parceria com
a mulher, Tânia Menna Barreto, de 1978. E “Deixa a menina” fazia um
retorno gaiato e festivo ao campo de Chico Buarque, que abordou Ney
para lhe confidenciar, bem-humorado: “Minhas filhas só gostam das
minhas músicas quando você canta”.
E havia ainda “Folia no matagal”, de Eduardo Dusek e Luís Carlos
Góis; “Viajante”, que a compositora Thereza Tinoco mostrou ao violão e
à luz de velas numa noite sem energia elétrica no Leblon; e o choro
“Espinha de bacalhau”, de 1937, de Severino Araújo e letra de Fausto
Nilo, em que Gal Costa ia às notas mais agudas de seus agudos e Ney
a graves difíceis que tiravam o brilho de sua voz, tudo acompanhado
pela Orquestra Tabajara. Cantar “Espinha de bacalhau” no tom original
da Tabajara tinha sido uma forma de poupar o grupo da transposição de
tonalidades para tantos instrumentos, mas Gal e Ney sofreram para
encarar regiões tão ingratas para suas extensões e acabaram
entregando uma gravação de muitos exageros. Ao ouvir o resultado,
Gal ficou indignada com Ney. “Mas como você pode deixar passar uma
coisa assim?” E Ney respondeu: “Isso foi coisa do Mazzola”.
Outro potencial hit não entrou no álbum porque seu autor, Guilherme
Arantes, preferiu quebrar o acordo feito com Mazzola e lançá-lo ele
mesmo no Festival da Nova Música Popular Brasileira da Globo, o
Shell, de 1981. Meses antes, Guilherme estava à procura de um novo
abrigo fonográfico. Suas baixas vendagens anteriores já o tinham
colocado na marca dos dispensados na Warner quando foi a Mazzola
pedir que o levasse para a Ariola. O produtor respondeu que não havia
vagas, mas fez uma contraproposta. Ney preparava repertório para um
novo disco e pensava em fazer uma homenagem à Amazônia, algo que
não ocorreu. Guilherme pediu então que o tema água fosse guardado
para ele, saiu do encontro e correu para casa. A água rondava seus
pensamentos desde que ele começara a frequentar casas de umbanda
e candomblé com devoção, incorporando pretos velhos e buscando a
orientação de sua orixá maior, mamãe Oxum, rainha das águas
paradas. Para ele, ser filho de Oxum explicava os choros fáceis, a força
da alma feminina e sua própria sensibilidade artística. Ao chegar em
casa, sentou-se ao piano e, em vinte minutos, compôs “Planeta Água”.
Ney, imaginou, seria o intérprete perfeito.
Uma das primeiras pessoas a ouvir a música na casa de Guilherme
foi o amigo e jornalista Okky de Souza. Arrebatado pela intensidade dos
versos e da melodia, Okky o aconselhou a guardá-la para ele mesmo a
defender no grande festival da Globo que aconteceria entre março e
setembro. Aquela era uma joia valiosa demais para ser entregue a
alguém, mesmo se esse alguém fosse Ney Matogrosso. Guilherme
concordou e, sem voltar a Mazzola, inscreveu a música no concurso.
“Planeta Água” provocou a maior euforia do festival transmitido pela
direto de um Ginásio do Maracanãzinho lotado, mas acabou perdendo
para “Purpurina”, de Jerônimo Jardim, interpretada por Lucinha Lins. Os
fãs de “Planeta Água” investiram uma vaia histórica contra a cantora
durante sua apresentação final e a fizeram deixar o ginásio
transtornada.
Outra grande perda do novo de Ney seria uma canção inédita que
o cantor ganhara de Tom Jobim chamada “Borzeguim”, um belo
exemplar da poética ecológica de Tom. Apesar de Mazzola não gostar
da ideia da gravação por considerá-la fora do contexto do álbum, foi o
pianista João Donato quem desfez o sonho de Ney de gravar, pela
primeira vez, uma canção inédita de Jobim. O compositor ensaiou em
sua casa com Ney por dois dias e indicou Donato para criar o arranjo.
Mas, ao chegar ao estúdio, João Donato falou com os músicos, tocou
“Borzeguim” ao piano uma ou duas vezes e se levantou em seguida: “A
gente continua amanhã, pessoal”. Nunca mais apareceu.
Uma figura importante no estúdio, convidada por Mazzola e que
poderia ter resolvido “Borzeguim” se não houvesse sido desconsiderada
por Jobim, era Cesar Camargo Mariano, responsável pelos teclados,
piano e arranjos de cinco canções: “Deixa a menina”, “Viajante”, “Mata
virgem”, “Vida, vida” e “De Marte”, das invencíveis Luli e Lucina. Cesar
não vivia seus melhores dias com Elis Regina. Havia traição na história
e ele estava bem perto de romper o casamento com sua companheira
de trabalho e mãe de dois de seus filhos, mas decidiu atender ao
telefone do estúdio e reagiu constrangido quando todos que estavam
por ali, incluindo Ney, ouviram o grito de Elis do outro lado da linha: “E
agora você vai ficar aí tocando com viado, porra?”.
Viado não, homem com H. Ney, Cesar, Mazzola, Gal e toda a tropa
de choque escalada para um disco pontuado por ao menos três
momentos pop, “Homem com H”, “Vida, vida” e “Viajante”, e embalado
por uma imagem de capa extraterrena que não dizia muito sobre o
conteúdo. Uma foto que mostrava Ney pairando sobre o planeta como
uma espécie de líder espiritual com uma águia pousada na cabeça e
seu nome formado logo acima pelas luzes de dois refletores. A águia
era, na verdade, um legítimo exemplar da espécie gavião-real, sagrado
em algumas tribos indígenas. Esquisito, mas tudo ideia de Ney. O
pássaro seria usado também no cenário do show e Ney diria nas
entrevistas que, ao chegar aos quarenta, sentia o momento de olhar
para as almas, o que não parecia fazer muita diferença na escolha das
canções. “Estou preocupado com o espírito, algo que nunca me tocou
antes. Sabia que, na hora certa, iria me voltar para esse lado”, disse ao
jornal Folha de S.Paulo talvez arranjando para si uma explicação para a
existência daquela águia, ou gavião-real. Olhar para o espírito era tudo
o que ele tinha feito nos últimos quarenta anos.
Águias, gaviões-reais, santos e orixás deveriam mesmo andar ao
lado de Ney no ano em que, embora sem querer, ele tornaria a viver
dias de superstar, pela primeira vez desde “O vira”. Homem com H lotou
a agenda de shows comercializados agora por Manoel Poladian. Depois
de se aproximar durante a turnê de Seu tipo, Poladian havia feito uma
oferta à então empresária do artista, Carmela Forsin, e comprara cerca
de quinze shows de Ney que já estavam vendidos na praça a preços
bem razoáveis. Ao mudar de empresário, Ney poderia ter renegociado o
valor dos próprios shows entregues com defasagem por Carmela antes
do estouro de Homem com H, mas sua exígua vontade de lidar com
números o levou a deixar tudo como estava. Sorte de Poladian, que
herdava um dos artistas mais rentáveis do país com uma interessante
margem de lucro, e de Ney que, de qualquer forma, passava a ter a seu
lado um dos negociadores mais habilidosos do showbiz. De Homem de
Neanderthal para Homem com H, ele saía das cavernas para se
transformar em uma potência.
Nove milhões de cruzeiros investidos, 42 pessoas na produção e um
tempo até curto, de uma hora e quinze minutos de duração, no qual Ney
visitava a si mesmo num passado nem tão distante assim. O diretor
Amir Haddad o queria solto e sem nostalgias desde a abertura, quando
três bailarinos muito jovens do Theatro Municipal, preparados pelo
coreógrafo Ciro Barcelos, surgiam num salto espetacular maquiados
como se fossem integrantes dos Secos & Molhados, pouco antes de
Ney entrar com uma máscara cantando “Mulher barriguda”, a mesma
com que os Secos iniciavam os shows. Seguia então indo e vindo no
tempo com “Ando meio desligado”, “Coubanakan”, “Deixa a menina”,
“Bandido corazón”, “Mata virgem”, “Três caravelas” e, claro, “Homem
com H”.
O striptease tinha seu momento previsível, como diria a crítica. Mas
era por sua antítese, a contrição de “Viajante”, em que apenas uma luz
iluminava o rosto do cantor, que o show receberia os maiores elogios.
“Ney levantou a multidão que inundava a sala”, afirmou Wilson Cunha,
na Manchete. “Não estaria por aí um caminho? Quebrar as cercas do
exibicionismo em que insiste se defender e mostrar, no maior ardor, o
extraordinário intérprete?” O crítico Zuza Homem de Mello, do Estadão,
escreveria uma análise sob o título “O melhor de sua carreira”:
Afinal, em que consiste o show de Ney: dança com música ou música com dança? Aí é
que está: na fortíssima projeção que assume no palco, com gestos, requebros, voos e
expressões, ele consegue embaralhar com total dignidade o nu e o vestido, o masculino e
o feminino, o estranho e o comum, o claro e o escuro, o metal e o couro, a voz e o
movimento, ou seja, como consequência de tudo, a música com a dança.
Apenas três meses e quinze dias depois, Ney dirigia seu Escort a
caminho da casa de Mário Troncoso, em Itaipu, quando a programação
do rádio foi interrompida para que se noticiasse a morte de Elis. Ela
havia sido encontrada desacordada naquela manhã, no quarto de seu
apartamento, em São Paulo, e levada ao Hospital das Clínicas. Chegou
a ser socorrida e teve o peito submetido à alta voltagem dos
desfibriladores cardíacos, porém não resistiu. A causa ainda era
apurada, mas já se falava informalmente em ingestão de cocaína
misturada a bebida alcoólica. Ney sentiu primeiro como se alguém ou
algo tivesse batido em seu carro. Depois, enquanto o locutor seguia
com os detalhes da notícia e ele já não ouvia mais nada, foi como se
uma tristeza imobilizadora atravessasse seu corpo e retirasse suas
forças. Ele estacionou no acostamento e ficou ali por algum tempo em
silêncio, antes de voltar à estrada.
17. Jonny e João
O Ney que refletia sobre o Brasil, exibido no Canal Livre, que sabia
cantar sem usar o corpo, como havia feito com João Gilberto, e que,
apesar de nunca se dirigir verbalmente à plateia em seus shows,
assumia posturas cada vez mais incômodas sobre os mecanismos de
censura era descoberto pela imprensa. Os jornalistas perceberam o
potencial de suas frases no início dos anos 1980 e passaram a procurá-
lo não mais ou não apenas pela música que fazia, mas para voltarem à
redação com capas garantidas para seus cadernos de cultura. “A
propósito, como você está vendo a censura, hoje?”, quis saber uma
repórter do Jornal do Commercio. “Acho que ela está de novo fazendo
presença. A censura é estúpida, desconexa e não tem critério. Ela tem
o poder, a força, e por isso é arbitrária”, disse. “A censura não marca
você sob pressão, devido ao seu jeito de se apresentar no palco,
seminu?” “Não. Agora, se quiserem me impedir de existir, têm que me
prender, amarrar, ou jogar no mar. Porque eu sou desse jeito e não há
lei no mundo que me impeça de ser assim. E para impedir que me
vejam, só prendendo, porque se eu estiver amarrado numa cadeira e
me deixarem cantar, os meus olhos garanto que vou revirar e mostrar
tudo que estou passando.”
O mesmo Ney descoberto por João, Jobim e Vinicius continuava
conhecendo seus amores e seus destinos sob o sol do Posto 9 de
Ipanema. E foi numa dessas colheitas de verão que chegou Leonardo
Jaime, um novo amigo que se tornaria colaborador de canções. Sagaz
e bem-humorado, o goiano radicado em São Paulo sabia que o melhor
lugar para alguém que quisesse se sentir vivo no Rio dos primeiros
anos da década de 1980 era bem ali, na praia, em frente ao hotel Sol
Ipanema, esbarrando em Eduardo Dusek, Fernanda Abreu, Regina
Casé, Luiz Fernando Guimarães, Pedro Bial, Deborah Colker, Cazuza,
Marco de Maria e Ney Matogrosso.
Leo havia formado a banda Nota Vermelha, da qual os amigos da
Blitz tiraram um dia a bailarina Fernanda Abreu, e fora convidado para
cantar num grupo inspirado nos Rolling Stones com nome de
personagem de desenho animado, piloto de caça alemão ou algo do
gênero. A história se deu no dia em que o guitarrista Roberto Frejat viu
Leo cantar no bar Emoções Baratas, aberto pelo humorista Cláudio
Manoel para arrecadar dinheiro em prol da criação do jornal Casseta
Popular, e imaginou que sua voz seria perfeita para cantar as músicas
do Barão Vermelho. Mas Leo, compromissado com dois grupos, o Nota
e outro já cheio de demandas chamado João Penca e Seus Miquinhos
Amestrados, agradeceu, explicou a situação e indicou uma pessoa que
poderia dar conta do recado: Cazuza.
Mas, para Ney, Leo levaria um rock considerado pelo regime como
sendo de alta periculosidade e, segundo a visão persecutória dos
militares, arquitetado para macular a imagem do presidente João
Batista Figueiredo atingindo primeiro o seu filho, Johnny. Uma
conspiração ardilosa por trás de um ataque moral que punha em dúvida
a sexualidade do herdeiro do general e que circulava pelas areias e
calçadões de Ipanema, curiosamente, sem jamais ter passado pela
cabeça dos próprios autores da canção, Leo Jaime e Tavinho Paes,
nem por quem a cantaria pela primeira vez, Ney Matogrosso. “Johnny
B. Goode”, escrita em 1955 e lançada em 1958 por Chuck Berry, era um
rock clássico do qual Leo e Tavinho decidiram fazer sua versão em
português de humor sexista intitulada “Jonny pirou”, a história de um
torcedor do Flamengo que vai ao Maracanã assistir a um Fla-Flu da
geral. O torcedor, assim como o filho de Figueiredo, se chamava Jonny,
mas sem “h”, e trabalhava numa multinacional.
Sobre a vida sexual do Johnny real não se sabia nada, mas, sobre o
da música, Leo cantava: “Jonny é executivo de uma multilegal/ E mora
em suíte presidencial/ Mas naquela tarde tudo, tudo mudou/ Quando um
negão sua cintura agarrou/ E com uma voz muito grossa em seu ouvido
gritou:/ Foi gol…”. As primeiras desconfianças de que os censores
haviam associado os dois Johnnys, o da música e o filho do presidente,
surgiram assim que saiu o resultado da análise solicitada pela
gravadora para que a canção pudesse constar no de Ney. “Gravação
liberada com proibição apenas para rádio e .”
O relatório da Divisão de Censura trazia argumentos um pouco piores
do que uma proibição baseada em um revanchismo militar: “Verificamos
que em seus versos o autor deixa claro um envolvimento homossexual.
Devido a tais implicações, acreditamos ser inviável a liberação da
referida obra com base no que dispõe o artigo 77 do decreto 20493/46”,
assinou a técnica Maria Angélica R. de Resende. O problema não era
falar do filho do presidente, mas de todo e qualquer homossexual.
O jurídico da gravadora trabalhou duro para liberar a música,
enviando sucessivos pedidos de reexame à Polícia Federal. Uma nova
decisão saiu em 2 de abril de 1982, assinada pela técnica Jeanete M.
Farias:
A letra musical em epígrafe aborda um conteúdo revestido de comicidade em que explicita
a paixão de um executivo que, durante uma partida de futebol, apaixona-se por um
“negão”. Considerando que em seus versos a composição musical insinua a existência de
um relacionamento homossexual, aspecto totalmente inadequado para as execuções
fonográficas, opinamos pela .
Um dos preços mais altos pagos por estar na ciranda dos negócios
do disco nos anos 1980 era lidar com as demandas da própria ciranda,
que obrigava os artistas, por contrato, a entregar um novo a cada
ano. E se um novo deveria ser lançado com um novo show, toda
uma estrutura criada havia menos de 365 dias deveria ser demolida
para que a nova chegasse e tudo se reiniciasse. Escolha de repertório,
estúdio de gravação, show de lançamento, entrevistas e estrada. Bom
para quem tinha fracassado no ano anterior, ruim para quem ainda
corria o país cheio de lenha para queimar.
A turnê de Homem com H ainda estava fresca quando o sino do
contrato tocou para que um novo álbum e o novo show começassem a
ser levantados. À nova coleção, que trazia “Jonny pirou”, “Uai, uai” e
“Por debaixo dos panos”, se juntaram “Tanto amar”, de Chico Buarque;
“Promessas demais”, de Moraes Moreira com Zeca Barreto e Paulo
Leminski; “Aquela fera”, de Sá e Guarabyra; “Alegria Carnaval”, de
Nilton Barros e Jorge Aragão; o rock “Não faz sentido”, de Marcelo
Sussekind, Pedrão e Sérgio Araújo; e o baião, agora para ser gravado
sem medo, “Primeiro de abril”, de Roderiki e Antonio Brasileiro, que Ney
ouviu saindo de uma bodega quando fazia um passeio de barco pelo
interior do Maranhão.
A equipe da turnê anterior foi chamada para os shows do disco
batizado Mato Grosso, que trazia na capa a imagem de Ney de sunga
submerso num rio de águas cristalinas do Pantanal Mato-Grossense. A
mesma foto que havia sido usada para anunciar os shows nos outdoors
de São Paulo e do Rio e que a censura proibira de ser exibida em
espaços públicos sem saber das dificuldades para fazê-la. O fotógrafo
Luís Fernando focava a cena montado num cavalo para conseguir o
ângulo ideal, de cima para baixo, enquanto Ney prendia a respiração
deitado no rio de peito para cima entre as algas até ter o rosto coberto
pela correnteza. O perigo nadava ao lado e não aparece na foto. Os
jacarés da região só não atacavam porque eram vigiados por um
capataz contratado para fazê-los entender que ninguém estava ali para
ser devorado.
Markito voltava aos figurinos, Marcos Flaksman aos cenários, uma
banda de treze músicos comandados pelo guitarrista Piska aos arranjos
e Amir Haddad, mesmo contrariado por suspender Homem com H em
tão pouco tempo, à direção-geral. O show abria com o palco tomado de
fumaça colorida e um Ney de adereços indígenas sobre a cabeça e um
tapa-sexo sumário cantando “Metamorfose ambulante”, “Notícias do
Brasil”, “Uai, uai” e “Primeiro de abril”. A estreia no Canecão do Rio teve
na plateia Tony Ramos, Simone, Caetano, Milton, Cauby Peixoto,
Ângela Maria, John Neschling, Lucélia Santos, Regina Duarte, Maria
Zilda e Roberto Talma. “Ney vai fazer uns pequenos ajustes, nem tudo
funcionou como esperava”, dizia Regina no camarim. “Seria bom
inverter a ordem de alguns blocos”, sugeria Roberto Talma. “Foi fumaça
demais, vou mandar diminuir”, avaliava Ney numa noite repleta de
comparações com algo que, também para ele, não deveria ter acabado
tão cedo.
O show seguiu recebendo elogios da crítica. Obcecado com ensaios,
Ney projetava-se com mais fé nas marcações de palco desde a
temporada anterior. A voz também avançava. A falta de médios e
graves ainda provocava certa fragilidade quando essas regiões eram
acessadas e manter a afinação nas notas longas ainda exigia esforço.
Apesar de ter parte de sua escola na Era do Rádio, Ney apostava num
canto mais naturalista e com vibratos muito sutis que poderiam não
protegê-lo de possíveis desafinações em voos maiores. E muitas delas
acabaram registradas nos álbuns. As fraquezas começaram a ser
vencidas com aulas de canto e pela robustez que a prática passou a
oferecer para corrigir atrasos técnicos de quem só havia se tornado
cantor depois dos trinta anos. Aos quarenta, Ney fez sua previsão ao
dar outra entrevista ao jornal O Globo: “Pode ser que continue ligado à
arte, mas não fazendo esse tipo de coisa [cantar]. Não quero ficar
velhinho cantando. A voz, com o tempo, perde o vigor. Quero deixar nas
pessoas uma imagem bonita e alegre”.
18. “Pro dia nascer feliz”
Pela tinta do carimbo com o nome Josué Guedes sob os três versos e
um refrão da letra datilografada em folha de sulfite sem rasuras nem
advertências, uma raridade quando a canção era de autoria de Leo
Jaime, aquele “aprovado” da Divisão de Censura havia saído com gosto
e satisfação. A canção original era “Tell Me Once Again”, feita pelo
cantor e guitarrista B. Anderson e gravada em 1972 pelo grupo de 1
milhão de cópias vendidas, Light Reflections, formado por integrantes
brasileiros com nomes gringos que cantavam baladas em inglês e
conquistavam fãs aos montes no Brasil e em países da América Latina.
Era tudo o que se tinha de “Tell Me Once Again” até o dia em que Leo
Jaime, Leandro Verdeal e Sérgio Abreu, já sabendo como fazer com
que as esculhambações de seus vinte anos virassem música, davam
uma volta de carro quando começaram a transformar “Tell Me Once
Again” em “Calúnias ou Telma, eu não sou gay”.
Embora seguisse seu caminho sem o grupo João Penca e Seus
Miquinhos Amestrados, que se mantinha com três dos nove amigos
originais, Leo ainda trabalhava para que o conjunto desse certo e
conseguiu levá-lo para a Ariola/Polygram. Quando Mazzola ouviu
“Telma, eu não sou gay”, imaginou que a história de conversão de um
gay à heterossexualidade, um deleite para os moralismos da censura,
faria um sucesso imediato. Alguém pensou em convidar Agnaldo
Timóteo para gravar a música com o grupo, mas não houve voluntário
que se dispusesse a ir até a casa de Timóteo para mostrar os versos
que ele deveria cantar: “Diz que vai dar, meu bem/ Seu coração pra
mim/ Eu deixei aquela vida de lado/ E não sou mais um transviado/
Telma, eu não sou gay/ O que falam de mim são calúnias/ Meu bem, eu
parei”.
A segunda opção, Ney Matogrosso, lidava melhor com o assunto e já
havia entendido a força do deboche desde “Homem com H”. Leo
explicou a Ney o contexto despudorado do primeiro dos Miquinhos
Amestrados e o convidado aceitou colocar sua voz na faixa por
amizade. Quando o álbum dos Miquinhos produzido por Ronaldo
Bastos saiu, o sucesso foi tão avassalador que o executivo da
gravadora, Peter Klam, chamou Ney à sua sala para ouvir uma proposta
ou, dependendo da resposta, uma ameaça. Depois de cantar “Telma”
com os Miquinhos, Ney deveria lançar a mesma gravação em seu disco
… Pois é. Era só pegar a faixa pronta e incluí-la no . Como o artista
disse não, justificando com o argumento de que “Telma” fazia sentido no
contexto dos Miquinhos mas não em seu álbum, o diretor avançou: “Se
‘Telma, eu não sou gay’ não for para seu disco, eu mando recolher o
dos Miquinhos”.
Peter Klam era um alemão alto, corpulento e de sotaque duro, que
havia estado ao lado de Ney em poucas ocasiões. Na única vez em que
iriam viajar juntos para um compromisso pela gravadora, conversavam
no saguão do aeroporto do Galeão, no Rio, quando um grupo de fãs se
aproximou e cercou Ney com pedidos de abraços e autógrafos. Ágil
como um segurança, Klam pulou à frente do artista pedindo a todos que
saíssem de perto, mas o grupo era grande e ninguém se intimidou. “Ele
é nosso, seu gringo!” A discussão esquentou e um dos fãs deu um tapa
no rosto de Klam, que ficou desnorteado. A cena tinha sido
constrangedora demais até para ser contada a Mazzola e Ney decidiu
silenciar. Agora, por um grupo que lançava seu primeiro disco e pela
amizade com Leo Jaime, ele iria guardar um segundo silêncio sobre
Peter Klam.
“Você não pode fazer isso”, disse Ney diante da ameaça. “Posso e
vou fazer”, disse Klam, levantando-se. Se Ney não aceitasse incluir a
gravação em seu álbum, os Miquinhos poderiam terminar a carreira ali.
Ney achou melhor não apostar num possível blefe do diretor, o que
certamente era. Cedeu à chantagem e guardou segredo sobre “Telma,
eu não sou gay” em todas as entrevistas que deu na época do
lançamento. Assim que … Pois é saiu, “Telma” com Ney passou a tocar
tanto quanto “Pro dia nascer feliz”, mas, apesar de o sucesso levar a
canção a se tornar até vinheta de um quadro que apresentava cantores
travestis no Programa do Bolinha, ela caiu em desgraça no repertório
do artista. Ney jamais a cantou ao vivo e, anos depois, conseguiu um
documento assinado pela gravadora que garantia desaparecer com
“Telma, eu não sou gay” de todas as possíveis reedições do álbum.
Uma parte do mundo que ouvia os discos de Ney sem saber muito
bem quem ele era iria vê-lo de perto pela primeira vez dois meses
depois, quando Mazzola o levasse para ser uma das atrações
brasileiras no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, ao lado de
Caetano Veloso e João Bosco. Antes, Ney foi a Tel Aviv para subir ao
grande palco montado no maior estádio de futebol de Israel, o
Bloomfield, sede do campeão de 1982, Hapoel Tel Aviv, e fazer um
show de cinco horas intercalando-se com Caetano, Elba Ramalho e
Djavan para um público de 15 mil pessoas. O crítico de música do jornal
Yedioth Ahronoth chamou a noite de “Woodstock do samba” e o
cronista do Davar disse que Ney deveria ser “o showman número um do
Brasil”, mas encrencou com Caetano, que em seu show teria
apresentado “baladas que não servem mais para serem cantadas num
estádio”.
Antes de seguir para a Suíça, Ney foi convidado para fazer um show
solo no suntuoso Palácio de Cultura de Tel Aviv, um espaço mais usado
para recitais de música clássica, demolindo a ideia que se tinha de um
conservadorismo radical da sociedade israelense. Isso se alguém da
equipe do artista ainda tivesse tal ideia. Em Tel Aviv, um casal de
jornalistas chegou para entrevistar Ney em busca de fotos sensuais e
declarações de impacto erótico. A foto escolhida para a matéria foi a
que mostrava o zíper da calça completamente aberto.
O Festival de Montreux era um templo que fora erguido em 1967 às
margens do lago Léman pelo ex-aprendiz de padeiro e gaitista de blues
nas horas vagas Claude Nobs, um lugar por onde já tinham passado Bill
Evans, Nina Simone, Miles Davis, Ella Fitzgerald e todos os monarcas
da nova geração ou remanescentes da Era de Ouro do jazz dos anos
1950. Havia uma noite reservada aos brasileiros, organizada por
Mazzola desde 1978 e que Ney conhecera em 1981, quando subiu ao
palco para dar uma canja ao lado do guitarrista Hélio Delmiro sem
imaginar que, dois anos depois, faria no mesmo teatro do cassino uma
de suas maiores conquistas territoriais. Uma noite aberta por um bravo
João Bosco amansando a expectativa ruidosa de 3 mil jovens, seguida
por uma ligeira elevação de temperatura com o show de Caetano
Veloso e finalizada por um Ney disposto a fixar-se na memória dos
europeus por um bom tempo.
Tudo começou com sinais de fogo, uma nuvem de fumaça espessa
devorando a banda, Ney, seu cocar indígena e toda a entrada
ritualística do show Mato Grosso. Assim como havia ocorrido na estreia
da temporada no Canecão, o operador da máquina de gelo-seco liberou
fumaça além da conta e só não gerou pânico porque a banda, mesmo
invisível, não parou de tocar por um segundo a introdução que já soava
sugestiva de “Metamorfose ambulante”. O cassino de Montreux, de teto
baixo e vias estreitas, não tinha um bom histórico com fumaças desde
1971, quando os roqueiros do Deep Purple assistiam a um show de
Frank Zappa e um incêndio provocado pelo disparo de um sinalizador
da plateia por um fã encerrou o espetáculo, tendo o próprio Claude
Nobs ajudado as pessoas a deixarem o local. Um ano depois, Nobs,
que estava como espectador no show de Zappa, era citado no clássico
“Smoke on the Water”, que o Deep Purple lançaria no álbum Machine
Head, inspirado no episódio. A fumaça de Ney indicava outro tipo de
fogo.
Aos olhos de 3 mil pessoas, sobretudo franceses, ingleses, alemães
e suíços, Ney surgia como um brasileiro diferente do que esperavam e
com um “samba” distante do que conheciam. Uma espécie indefinida
com um pouco de tudo o que deveria existir pelas florestas tropicais da
América do Sul, capaz de suscitar uma vibração terrena poderosa que
os jornalistas internacionais classificariam em seus textos com um
generalista “exótico”. Um índio seminu com adereços que Ney comprou
na sede da Funai, em Manaus, cantando moda de viola debochada em
“Uai, uai”; mostrando um rock and roll de Chuck Berry sobre futebol ao
mesmo tempo que bandeiras do Flamengo e do Fluminense
tremulavam nas laterais do palco em “Jonny pirou”; entoando um pop
africano de Gilberto Gil com dança tribal em “Andar com fé”; e, no fim, e
um pouco mais perto das ideias que faziam de um brasileiro em 1983,
voltando para um bis com o frevo de Dusek, “Folia no matagal”, de
braços dados com Caetano e João Bosco.
Quase duas horas de trepidação foram cessadas uma única vez por
“Rosa de Hiroshima” até que Ney e os músicos agradeceram e se
dirigiram ao camarim. Mas as pessoas se recusavam a deixar o
cassino, mesmo diante de um palco vazio por muitos minutos, e quando
os gritos pela volta do artista aumentaram, Claude Nobs precisou agir.
Pegou o microfone e fez os agradecimentos como quem indica
gentilmente a porta de saída até começar a ser vaiado e se dar conta
da enrascada. Ney foi socorrê-lo sem maquiagem e enrolado numa
toalha vermelha para pedir, em tom exausto: “Estamos muito cansados
e não temos mais nada ensaiado. Fizemos tudo o que podíamos,
obrigado”. Mas o público continuou exatamente onde estava.
Apesar de não ser mais o garoto que vendia livros para sobreviver na
Zona Norte do Rio, Jorge Fernando se viu diante da maior aventura de
sua vida atual e da mais clara conexão com uma de suas vidas
passadas, segundo afirmou um mapa astral feito dias antes de Ney
chegar com o convite para a direção. Em outra encarnação Jorge teria
sido um homem feliz trabalhando com crianças num circo no interior da
França, uma descoberta que só aumentou sua euforia com a
oportunidade de erguer um espetáculo num picadeiro.
Inspirado, saiu de madrugada e se dirigiu sozinho ao Tihany
enquanto ele ainda estava vazio. Sentou-se no chão e ficou por horas
olhando para cima e imaginando o que poderia fazer para retribuir a
Ney aquela oportunidade cármica. Pensou em mil cenas e mil músicas,
de naves espaciais a obras de autores alemães, mas nem tudo
funcionou. Fazer Ney surgir em meio às águas dançantes cantando
“Vereda tropical” foi uma proeza digna de aplausos em todas as
sessões, mas incluir versões do compositor Kurt Weill soou um tanto
descabido. Pedir as interações espirituosas do Placa Luminosa durante
o show foi outro acerto, mas sugerir que Ney chegasse ao palco a
bordo de um disco voador, algo que em dois anos seria usado pela
apresentadora Xuxa em seu programa, da Globo, seria de
desestabilizar até os elefantes.
Ney sonhou com a participação dos elefantes e desejou ao menos
um deles para subir em seu lombo e fazer uma entrada triunfal. Animais
eram parte do cenário no tempo em que os circos podiam usá-los como
personagens do espetáculo, mas, por segurança, nem tudo era
recomendável. Além de alugar a lona de vinte toneladas e toda a
estrutura que ia abaixo dela, Poladian conseguiu algumas espécies
para expor em jaulas enfileiradas na entrada como forma de dar boas-
vindas ao público. E lá estavam um elefante, seis macacos, três
leopardos e dois tigres cuja participação na abertura também chegou a
ser cogitada, até o bom senso dos tratadores falar mais alto. Nenhum
animal suportaria docilmente oitocentos watts de luz disparados em
seus olhos e os ruídos de mais de 4 mil pessoas.
Uma última ideia abortada nas vésperas da estreia dizia respeito à
grua. A máquina alugada por um bom dinheiro por Poladian, mais
usada em canteiros de obras do que em circos ou shows, teria uma
cobra cenográfica entrelaçada à sua estrutura de metal e serviria de
base para Ney surgir, a seis metros de altura, vestindo uma tanga de
pele de onça verdadeira e cantando “O Rei das Selvas” enquanto os
músicos dançavam no palco como se fossem uma tribo de pigmeus.
Mas os ensaios mostraram alguns impedimentos técnicos. A grua
soltava fumaça, fazia um barulho infernal e, conforme Ney disse nos
limites da tensão de uma estreia, parecia “uma pica gigante e
desengonçada”. Poladian lamentou o desperdício e a retirou. A grua
saía, mas a tanga de onça, a dança dos pigmeus e a música de Dusek
e Góis ficavam. Às 21h de quarta-feira 11 de julho de 1984, Ney surgiu
seminu e reluzente de gel num trapézio que o colocava a onze metros
de altura para ser visto por 4200 pessoas incrédulas. Vivia o começo da
primeira noite que se tornaria o maior espetáculo de sua vida.
Sem saber bem o que Ney poderia aprontar num circo, a censura
tachou não o show, ao qual não havia assistido, mas o artista, a quem
conhecia bem, liberando o espetáculo para maiores de dez anos. Dias
depois, percebeu o exagero e reduziu o limite para cinco. E ainda, numa
terceira decisão, deixou a entrada livre aos domingos. Na outra ponta
das faixas etárias que se misturavam sob a lona do Tihany, uma
senhora de 92 anos ia às sessões acompanhada do bisneto quase
todos os fins de semana. Ao avistá-la dançando na plateia, Ney ficava
em êxtase. O mundo se acostumava a vê-lo com pouca roupa e o
ambiente do circo diluía qualquer erotismo.
As músicas compunham blocos com alucinantes trocas de figurino e
cenário que conectavam todas as suas faces. Uma cortina transparente
trazia a ideia de uma floresta tropical, palmeiras enormes apareciam
para ilustrar a série caribenha do repertório e duas portas metálicas
gigantes se abriam com um gesto de mão para mostrar uma noite
estrelada enquanto Ney cantava rocks, boleros, ritmos nordestinos,
música de cabaré, tango e moda de viola.
Ao menos três canções do espetáculo nunca seriam gravadas por
Ney e se converteriam, pela beleza de suas versões, em joias perdidas:
“Ave”, lançada por Dusek em 1981, no disco Olhar brasileiro; “Amo esta
isla”, uma defesa da vida em Cuba contraposta ao congestionamento
humano dos continentes, do cubano Pablo Milanés; e o pop rock “Pelo
interfone”, lançado pelo incensado Ritchie, que havia feito sucesso com
Voo de coração, um álbum de 1,2 milhão de cópias vendidas. A
sequência tinha o tango “Retrato marrom”, de Rodger Rogério e Fausto
Nilo, gravado por Fagner em Ave noturna, de 1975, e por Ney no disco
Pecado, e “Vereda tropical”, do mexicano Gonzalo Curiel. A Globo
recrutou “Vereda tropical” para a abertura de sua novela das sete, que
usava o mesmo nome, com estreia prevista para doze dias depois do
primeiro show. Mas, na versão que as pessoas ouviriam todos os dias
na , um trecho suprimido tirava o sentido dos versos, para indignação
de Ney.
“Amo esta isla” foi um desafio. Sua melodia típica dos soneros de
Cuba era feita sobre um ritmo intrincado e ardiloso, como os cubanos
gostavam de criar para pegar intérpretes desatentos. O tempo original
quebrado num compasso de sete por quatro, preservado pelo Placa
Luminosa, deixava Ney perdido nos ensaios. Os músicos sugeriram
então uma alteração, colocando a canção no chão com uma marcação
em seis por oito que não a tiraria do universo latino e a aproximaria das
guarânias de fronteira que Ney conhecia bem. Criou-se assim uma de
suas grandes interpretações nunca gravadas, ao menos, oficialmente.
Um áudio com uma suposta reprodução da íntegra do show foi
oferecido em Nova York alguns anos depois da turnê e Poladian tentou
comprá-lo, mas os vendedores sumiram, talvez, por cautela. E nunca
mais voltaram a oferecê-lo.
A cortina subia e um cronômetro disparava uma cadeia de ações
coordenadas nos bastidores com marcações sem tolerância para
falhas. Assim que Ney começava a cantar o segundo verso de “Pelo
interfone”, por exemplo, um de seus produtores mergulhava dois
comprimidos do energizante Targifor num copo de água e o deixava no
mesmo local estratégico de todas as noites. A duração do restante da
música levava o exato tempo que os efervescentes precisavam para se
diluírem.
Ney saía do palco, tomava a solução num gole e voltava a cantar.
Tomava também um composto de mel, própolis e guaraná, que poderia
segurá-lo ativo até as três da manhã se necessário, mesmo depois de
uma perda de três quilos por noite eliminados em jorros de suor que
banhavam as pessoas das primeiras cadeiras. Outro assessor colocava
um colar para esquentar em uma secadora de louças minutos antes de
Ney usá-lo para que não houvesse risco de que o frio do metal
prejudicasse sua voz.
Mas nem tudo poderia estar sempre sob controle. Numa tarde em
que o Placa Luminosa passava o som, antes do show, uma onça fugiu
da área reservada e foi dar um passeio pelas dependências do Circo
Cósmico. Quando o guitarrista Ribah Nascimento ouviu um grito
avisando que a onça estava solta, correu com o bandolinista Ney
Marques para um dos contêineres usados como camarim. Houve um
pouco mais de desespero porque a porta estava trancada, mas logo
conseguiram abri-la, entraram na sala e só saíram quando o animal
retornou à jaula.
O maior imprevisto da temporada se daria por razões mais técnicas e
seria testemunhado por um circo lotado. As falhas de microfone já
haviam acontecido por três noites seguidas e os técnicos tinham sido
devidamente advertidos quando Ney se posicionou mais uma vez para
começar a cantar “Retrato marrom”. A música pedia concentração para
que a entrada saísse firme e precisa na pausa seca feita pelo grupo
após a introdução instrumental. Mas quando Ney soltou a voz com toda
a fúria que o tango pedia, o microfone, mais uma vez, não funcionou.
Impetuoso, Ney arremessou o objeto no lago da fonte à sua frente e
continuou o show. O aparelho importado de quinhentos dólares só seria
reposto quando o baterista Luiz Gadelha, o Luizão, trouxesse um novo
dos Estados Unidos.
Uma imagem que Jorge Fernando via todos os dias durante os
espetáculos parecia maior do que os contratempos. Ao olhar para Ney,
ele percebia que uma fumaça saía de seu corpo para formar duas
pequenas nuvens que entendia ser de “energia condensada” sobre
seus ombros. Nunca disse isso a Ney, talvez por achar que a magia
poderia estar só em seus olhos, mas pensava, ao ver a cena, estar
diante do que chamaria de “a coisa mais grandiosa” que o artista havia
feito na vida. Até o dia em que o espetáculo migraria com todas as suas
ferragens acondicionadas em 32 carretas para o início da temporada de
São Paulo, no terreno ao lado do Shopping Center Norte, em Santana,
Destino de aventureiro teria sido visto por 160 mil pessoas só no Rio.
O Brasil do dia seguinte não seria tão novo assim e o próprio Rock in
Rio apareceria nos relatórios do Serviço Nacional de Informações, o
. Num deles, os agentes relatavam ações panfletárias do -8, o
Movimento Revolucionário 8 de Outubro, um grupo de orientação
marxista ativo na luta armada contra os governos militares. Um panfleto
da ala jovem trazendo o texto intitulado “Rock in Rio — Explosão de paz
e alegria” estava sendo distribuído a estudantes secundaristas e
universitários com um trecho que atestava o poder do rock na
mobilização das massas:
É com imensa satisfação e alegria que a juventude do Movimento Revolucionário Oito de
Outubro vê a realização desta grande festa do rock no Rio de Janeiro no exato momento
em que nosso país ingressa em uma nova etapa de sua história. Isso não ocorre por
acaso. A força da juventude e do rock é que fizeram com que as coisas acontecessem e
se articulassem dessa forma. Não é exagero dizer que a juventude e o rock tomaram a
primazia de batizar a Nova República brasileira.
A vida após o Rock in Rio começou com um desafio que Ney não
conseguiu vencer. Viajar com Destino de aventureiro como ele queria,
levando o circo inteiro com todas as ferragens, a lona, as luzes, o som,
os cenários, camarins, figurinos e animais, além dos onze músicos,
maquiador, cenógrafo, produtores e empresário, durou até o primeiro
destino da trupe fora do Rio e de São Paulo. A estrutura de ferro
assustou os empregados contratados para a montagem numa cidade
do interior paulista e muitos desistiram do serviço. O que pesava mais
eram os custos e, por maior que fosse o histórico de Ney em fazer
shows apenas para pagá-los, Destino de aventureiro não levaria o
próprio nome tão ao pé da letra.
Assim, Ney e Poladian decidiram, em vez de pegar a estrada,
retornar ao Rio para uma segunda e derradeira temporada naquele
início de 1985. A reestreia levou muita gente que já tinha visto o show a
voltar à plateia e aqueles que não tinham conseguido vê-lo a
comemorarem. A última noite do espetáculo deixou nos músicos a
sensação de que havia ainda muita lenha para queimar, e isso ficou
claro em pelo menos duas cartas enviadas a Ney por remetentes
comovidos com o que presenciaram.
O húngaro Franz Czeisler Tihany, o sr. Tihany, nem sempre viu com
bons olhos o fato de ter sob suas lonas um cantor. Assim como casas
de show não eram para palhaços, trapezistas e mágicos mesmo que
fossem como ele, premiado com quatro medalhas de ouro em festivais
circenses pelo mundo, circos não deveriam ser para bateristas,
guitarristas e cantores, por mais performáticos que fossem. Mas
negócios eram negócios e Poladian era um bom pagador. Quando o
mágico Tihany esteve na estreia da primeira temporada, em 1984, um
código chegou a ser combinado com sua produção para que o tirassem
da plateia logo após o início. Ao primeiro sinal de tédio pesando sobre
seus 68 anos, um assessor iria até a mesa chamá-lo para atender a um
“telefonema internacional” e ele jamais voltaria. Mas, quando Ney
apareceu cantando “O Rei das Selvas”, algo o fez perceber que os
mundos não eram tão distantes assim e o dispositivo do telefonema
internacional foi dispensado.
Ao saber da última noite sob suas estruturas, Tihany escreveu uma
carta a Ney, guardada por todos esses anos no envelope timbrado que
chegou pelo correio:
Meu querido amigo e colega Ney Matogrosso. Estava trabalhando em meu novo
espetáculo em São Paulo quando lembrei-me de que hoje, 10 de fevereiro de 1985,
finalizavas tua temporada em nosso circo e vim urgente para abraçar-te e dizer-te o prazer
que tive em ter um carismático artista de nível internacional no Tihany. Ney, orgulhei-me
de poder vê-lo em meu circo. Rogo a Deus para que você tenha saúde e que as pirâmides
te protejam e iluminem tua passagem pelo nosso mundo. E que ainda tenhas muitas
glórias, pois profissionais iguais a você conto nos meus dedos. Lamento não poder
saudar-te pessoalmente. Motivo: um pequeno acidente com meu elefante e eu tive que
voar de volta para São Paulo em busca de meu médico. Receba o meu abraço carinhoso,
que Deus te abençoe.
Ney voltava a fazer valer suas ideias de disco sem eixo, cantando por
um discurso oscilante entre o novo e o velho, o rock e o mambo, o
samba e a canção, a austeridade e o cabaré. Ao ouvir uma música de
Luli e Lucina, um blues chamado “Selva universal”, acabou sendo pego
pela sonoridade da primeira palavra, “bugre”, e laçado por seu
significado no dicionário: “Sujeito arredio, pessoa desconfiada, índio
bravo”. Ou seja, algo que definia ele mesmo, um bugre. Decidiu que o
nome do seria esse, pediu a Luli e Lucina que trocassem o título de
“Selva universal” por “Bugre” e chamou o compositor paranaense Arrigo
Barnabé para pensar nos arranjos da canção. Mas Arrigo, um
entortador de melodias por natureza e dono de um pensamento musical
fora dos instintos mais previsíveis, não oferecia os serviços à mesa com
facilidade. Cantá-lo exigia esforço e, para o azar de Ney, ele disse sim.
Arrigo se reaproximava de Ney dez anos depois de ir ao Rio como um
completo aventureiro, anônimo e cheio de sonhos, querendo saber
onde era a casa do artista. Antes de ter um disco lançado, e antes
mesmo de mostrar suas criações a qualquer outro intérprete, o jovem
autor de 25 anos tinha a sensação de que o cantor saído havia pouco
tempo dos Secos & Molhados poderia gostar de suas músicas. Só não
sabia como encontrá-lo. O grupo Doces Bárbaros, de Gil, Caetano, Gal
e Bethânia, faria um show no Canecão naquela noite e, sem dinheiro
para o ingresso, Arrigo plantou-se à porta e ficou ali até o último artista
sair.
Assim que Caetano surgiu, ele o abordou em busca da única
resposta que lhe interessava: “Você sabe onde é a casa do Ney
Matogrosso?”. Caetano não gostou do tom: “E eu lá vou saber de Ney
Matogrosso?”. Mas Gil, cheio de benevolência, acudiu o rapaz: “Vá ali
na Carlos Góis, no Leblon. Pergunte que todos o conhecem”. E para lá
foi Arrigo no dia seguinte. Ele, suas ideias atonais e uma carta de
apresentação assinada pelo maestro Rogério Duprat certificando que o
garoto era talentoso. Ney o ouviu com atenção, gostou de algumas
músicas, mas não escolheu nenhuma delas para gravar.
Tempos depois, em 1984, Arrigo lançou o Tubarões voadores pela
mesma gravadora de Ney, a Ariola, e Marco Mazzola providenciou uma
aproximação entre os dois. Ney se interessou muito pelo álbum Clara
Crocodilo, de 1980, e adoraria cantar “Clara Crocodilo”, a música, mas
antes, como havia sugerido Mazzola, a submeteria aos tratamentos
sonoros do produtor Lincoln Olivetti. E todos sabiam o que uma música
se tornava ao passar pelos teclados de Olivetti, o maior preparador de
hits radiofônicos da década. Arrigo, temendo pelo pior resultado, disse
não. Sua composição poderia ser gravada desde que ele tivesse
autonomia sobre o arranjo. Ney o respeitou mas, na impossibilidade de
misturar Olivetti a Arrigo, deixou “Clara Crocodilo” para uma outra
ocasião. Passaram-se dois anos, e, agora, estavam ali, Arrigo
entregando uma das construções musicais mais desafiadoras da
carreira de Ney, e Ney lutando para não desistir de gravá-la.
“Bugre” voltou com os tempos e a melodia cheios do teor
experimental do pianista e uma série de teclados sequenciados
enlouquecedores para quem, como Ney, necessitava de um chão que o
amparasse para não sair do ritmo. Arrigo sugeriu ainda outra canção
para o disco, uma bossa nova chamada “O gato”, feita com seu parceiro
Roberto Riberti, mas Ney, ainda em conflito com as ideias da música
“Bugre” e indisposto desde sempre com qualquer bossa nova — um
gênero que ele jamais conseguiu entender como superior na
representação do país no exterior —, estranhou um intervalo de terça
menor na melodia e preferiu deixá-la de fora. “Bugre” já tinha
estranhezas demais e ele começava a se sentir aprisionado às ideias
levadas todas para o campo do arranjador. Não era o que havia
pensado. Gostaria de ter mais espaço para mover sua voz dentro das
harmonias aprazíveis de Luli e Lucina com mais sabor de veneno, mas
sem precisar observar os gráficos rígidos de Arrigo. E assim a toada
seguiu até que, uma hora, a gravação saiu. Luli odiou o resultado e Ney
jamais cantou a canção ao vivo.
Os dissabores pairavam pelos ares do Estúdio Transamérica, e
mesmo um samba dos vibrantes Jorge Aragão e Nilton Barros descia
amargo. “História do Brasil” chegou com uma letra combativa,
percebendo que o Brasil da democracia sob os mandos de José Sarney
e melancólico pela morte de Tancredo Neves ainda não tinha muito a
festejar. Seu nome original era “Meninos, eu vi” e uma das estrofes
dizia: “Eu vi/ Quase tudo dar certo/ A alegria tão perto/ Que parecia um
sonho/ Tristonho/ Hoje vejo que o povo/ Enganado de novo/ Segue só”.
E vinha o refrão: “Preciso tentar/ Quero ser mais feliz/ Não vou me
conformar/ Conheço o meu país”.
Embora tivesse gostado, Ney sentiu a dureza da fala. Era o início de
1986 e entre o dia 4 de fevereiro, quando o samba deu entrada na
ainda ativa e vigilante Divisão de Censura de Diversões Públicas, e 3 de
março, quando o liberaram, o presidente José Sarney anunciou as
diretrizes do Plano Cruzado, em 28 de fevereiro, congelando os preços
para conter a inflação herdada dos escombros do Brasil deixado pelos
militares e conclamando as donas de casa a agirem como “fiscais do
Sarney”, denunciando reajustes nos supermercados com uma tabela de
preços na mão e um broche verde e amarelo preso à roupa. Tudo seria
em vão, os produtos sumiriam dos mercados para forçar o aumento dos
preços e a volta da inflação derrubaria os cruzados de Sarney a golpes
de machado e tornaria o plano que instituía uma nova moeda no país o
cruzado um dos maiores fiascos econômicos da história. Mas, ali, havia
esperança.
Ney falou com Mazzola sobre o fato de sentir o samba no
contratempo do otimismo do país, por mais verdadeiro que fosse. Só
não iria pedir ajustes ao autor porque não era de seu feitio.
Simplesmente gravava ou não gravava. Mas Mazzola, amigo e produtor
do sambista Jorge desde sua saída do grupo Fundo de Quintal, foi a ele
sem dramas, explicou a situação e o sondou sobre a possibilidade de
mexer em algumas partes. Dias depois, a música voltou com os versos
acariciados e de sentidos invertidos a ponto de lembrar a prosaica letra
de “Eu te amo meu Brasil”, de Dom e Ravel. O título “Meninos, eu vi” foi
trocado por “História do Brasil” e o verso antes engajado foi reescrito
com um miraculoso toque capaz de transformar lutas sociais das mais
inegociáveis num festejo nacionalista: “Eu vi/ Quase tudo deu certo/
Quem viu não chegou perto/ Mas nos legou um sonho/ Risonho/ Hoje
vejo meu povo/ Merecendo de novo/ Ser feliz”. E o novo refrão: “Agora
é lutar/ Por tudo que ele quis/ É hora de mudar/ Conheço o meu país”. A
questão é que os demais versos não foram alterados, como os que
dizem: “Eu vi/ Das planícies e serras/ Dos confins desta terra/ Elevar-se
um anseio/ Tão forte, mas calou como veio/ Quando a sombra da
morte/ Encobriu todos nós”. O samba bipolar acabou gravado por Ney
sem crença no que cantava, com uma interpretação apenas automática.
Maria Alice, mulher de Paulinho Mendonça, enviou uma fita cassete a
Ney com a gravação de uma canção dos Mutantes, de 1972, dizendo
que tudo ali parecia ter sido feito para ele. “Balada do louco”
representava o amigo dos tempos de hippie em cada uma das frases. A
fé apenas nele mesmo: “Dizem que sou louco/ Por pensar assim/ Se eu
sou muito louco/ Por eu ser feliz/ Mas louco é quem me diz/ E não é
feliz/ Não é feliz”. Todas as renúncias: “Se eles têm três carros/ Eu
posso voar/ Se eles rezam muito/ Eu já estou no ar”. E a busca pelo
sagrado: “Eu juro que é melhor/ Não ser o normal/ Se eu posso pensar/
Que Deus sou eu”. Ney gostou do que ouviu e pensou que, de fato,
poderia gravá-la. Uma bela canção que não tinha tocado nas rádios,
adormecida no álbum dos Mutantes intitulado Mutantes e Seus
Cometas no País do Baurets. Mas “Balada do louco” não só estava no
repertório dos shows de Cida Moreira havia dois anos, como a cantora
gravava a música para sair em seu próximo álbum, com participação do
mutante Sérgio Dias, um dos autores, na guitarra.
Ao ouvi-la tomando as rádios na voz de Ney pouco antes de seu
ser lançado, chegando a tocar vinte vezes por dia em apenas uma
emissora, Cida sentiu-se devastada. Àquela altura, era como se a
música fosse mais dela que dos próprios Mutantes e a aposta de quem
a cercava era a de que “Balada do louco” se tornaria a primeira canção
de seu repertório a alcançar grande abrangência no país. Com o
sucesso na voz do cantor, ela adiou o lançamento do álbum e viu os
bastidores se encherem de falas indignadas a seu favor que se
resumiam a uma ideia: Ney havia lançado a música antes e às pressas
por saber que ela também o faria.
O que Ney conta sobre o episódio vai em outra direção. Até ocorrer
uma mudança de estratégia na gravadora, a música a ser trabalhada,
segundo ele, seria “Dívidas de amor”, uma parceria que assinava como
compositor ao lado de Leoni. Ele diz que não sabia que a canção que
não havia feito sucesso algum com Os Mutantes poderia fazer em sua
voz assim como não fazia ideia de que Cida a cantava em seus shows
e que estava prestes a lançá-la. E o que faria se soubesse? A mesma
coisa: lançaria “Balada do louco” como estava previsto assim como
lançou “Pro dia nascer feliz” antes que saísse no álbum do Barão
Vermelho, mesmo sob protestos de Cazuza, ajudando a banda a ser
descoberta pelas rádios do país. Para Ney, cada voz poderia levar uma
mesma canção a percorrer histórias completamente diferentes.
Havia ainda a latinizada “Las muchachas de Copacabana”, de Chico
Buarque; “Pro John”, de Fábio Agra e Antônio Ventura, uma
homenagem a John Lennon com toda a fé na impostação que “História
do Brasil” não tinha; “Povo do ar”, de Luiz Carlos Sá & Zé Rodrix, com a
base do , ou seja, Paulo Ricardo no baixo, Fernando Deluqui na
guitarra, Luiz Schiavon nos teclados e Pagni, que nos créditos saiu
“Piá”, na bateria; e duas aventuras menores de Ney como letrista,
prontas para serem esquecidas: “Dívidas de amor”, com Leoni, e
“Vertigem”, com Paulo Ricardo. “Mente, mente”, de Robinson Borba, já
tivera outra versão registrada com Arrigo para a trilha sonora do filme
Cidade oculta, lançado naquele mesmo ano, e “Fratura (não) exposta”,
de Ezequiel Neves, Piska e Cazuza, tinha uma letra que Cazuza
renegava por sensatamente achar aquém de tudo o que fizera e
detestar em especial as repetições do termo “fratura exposta” no refrão.
Algumas músicas tocariam um pouco nas rádios, mas apenas “Balada
do louco” seria bastante executada e se acomodaria na faixa das
canções de elite de seu repertório. Considerado um fracasso pela
gravadora, Bugre representaria o ponto que levaria Ney, mais uma vez,
e quando parecia não haver mais espaço para isso, a decretar o
começo de outra fase em sua vida.
22. “O tempo não para”
Era preciso remar com pouca força, apenas para fazer o pequeno
barco se mover pelas águas mais calmas de Pokhara, de onde se via a
cordilheira em que reina o monte Everest e o pôr do sol de toda tarde.
Uma puxada suave e compassada em direção à margem do lago
Phewa, a 150 quilômetros da capital Katmandu, que apenas Mauro, o
irmão mais velho, se esforçava para manter. “Você podia me ajudar com
isso.” Marco, na outra ponta, não se movia. Uma indisposição o pegou
logo depois de chegarem para uma aventura prevista para durar mais
de trinta dias nas terras de onde saía boa parte de tudo o que realmente
lhe importava no mundo: Índia, Nepal e Tailândia. Mas estar ali, de
repente, parecia algo indiferente diante da certeza de sentir a morte
mais perto do que nunca.
No fim daquela tarde, Marco entrou calado no hotel em que estava
hospedado com Mauro. Deitou-se encolhido na cama do quarto e puxou
as cobertas enquanto o irmão foi para o banho. Passados alguns
minutos, Mauro o chamou pronto para saírem pela noite, mas Marco
não se animava. Uma médica do hotel havia dito dias antes que seus
vômitos esporádicos vinham certamente de uma virose estomacal muito
comum entre turistas, nada de grave. “Eu te espero lá embaixo”, disse
Mauro, e desceu. Meia hora depois, voltou, impaciente. Chamou,
insistiu, puxou a coberta e recebeu uma resposta breve mas que dizia
tudo pelo sofrimento com que foi dada: “Poxa, como você é insensível”.
Mauro sentiu que havia alguma coisa errada e sentou-se na cama.
Antes de ser paciente, Marco era médico, e já tinha seu próprio
diagnóstico: “Está se manifestando, Mauro”.
Ao sair de casa para a longa viagem com o irmão, Marco havia
deixado uma sensação de perda em seu companheiro. Pela primeira
vez nos dez anos em que estavam juntos, como se algo tivesse partido
o fio que os ligava, Ney não se sentiria próximo a ele mesmo à
distância. Um vazio que nada tinha a ver com falta de amor ou com a
possibilidade de alguma traição. Apesar de Marco estar vivo, o que Ney
sentiu no Brasil enquanto os irmãos viajavam foi uma espécie de luto.
“Eu estou com aids.” Ao ouvir a frase ser dita por Marco, Mauro
perdeu as palavras e sentiu remorso pela insistência em tentar tirá-lo da
cama. Logo em seguida, sem contestar sua certeza nem partir para
deambulações que tentassem desviar seus pensamentos da dor que a
doença traria, tomou a única decisão que vinha de seu coração naquele
pequeno hotel de Pokhara e fez uma promessa: “Eu juro que nós
vamos estar juntos nisso”.
Mesmo sendo o cenário da notícia mais aterradora que poderia ser
dada a um jovem em 1989, a Índia ainda parecia ser o lugar certo para
Marco estar. A partir daquele dia, as febres e os vômitos ficariam mais
intensos e levariam os irmãos a antecipar a volta ao Brasil, mas até
então cada local em que haviam pisado os aguardara com uma
revelação. A mais forte delas chegou quando conheceram o artista
plástico indiano Ram Babul no saguão de um hotel próximo ao Taj
Mahal. Ram deu perfumes a Marco, trocou algumas palavras com ele e
explicou que fazia o último dia de seu ekadashi, o jejum indiano, mas
que estava pronto para honrar os irmãos recebendo-os em sua casa no
dia seguinte.
Convite aceito, Marco e Mauro partiram para a humilde região das
malocas no subúrbio de Agra, onde ficava a casa de um metro e meio
de altura em que Ram vivia com pais, avós, irmãos e filhos, sem
geladeira, cama ou sofá e com canaletas abertas nas laterais do chão
de terra de cada cômodo a fim de servirem de galeria para a passagem
dos ratos. Depois de fazerem juntos a quebra do jejum e entoarem um
mantra, Marco foi apresentado a um cunhado do artista que se
comunicava em sânscrito e que se mostrou intrigado por algo que só
ele parecia saber.
Ram Babul leu as mãos dos visitantes e, juntando suas percepções a
tudo o mais que ele entendia das palavras ditas pelo cunhado, informou
que Marco era dono de uma evolução espiritual avançada. A leitura
revelava que, em vidas passadas, ele havia levitado por sessenta anos
na posição de lótus, um feito praticamente sobrenatural. Foi então que
todos na família passaram a tratá-lo com deferências de realeza. Já
exausto, Marco fez apenas um pedido quando insistiram que ele os
deixasse realizar um de seus desejos: queria um canto para se deitar.
Uma irmã de Ram se dirigiu rapidamente ao quarto e preparou o
chão, forrando, batendo o solo e limpando as canaletas. Ao retornar,
chamou Marco, mas se retraiu com espanto e decepção quando ouviu
um “muito obrigado”. Ninguém deveria retribuir um favor com a desonra
de um agradecimento. Quem fazia o favor é que deveria agradecer e
quem o recebia precisava ter humildade para aceitar a ajuda sem
esvaziá-la com um “obrigado”. Uma lição que os irmãos levaram para a
vida.
Mara passava alguns dias em São Tomé das Letras, em Minas
Gerais, quando os irmãos voltaram para o Brasil. Sem notícias desde o
começo da viagem, soube por instinto que Marco precisava de ajuda.
“Preciso ir até a cidade fazer uma ligação”, pediu ao marido. No centro,
ligou para o irmão de um telefone público. Marco atendeu, ouviu suas
preocupações e perguntou: “Como é que você sabe que eu não estou
bem?”. Ele disse que não gostaria de contar nada, mas, como ela
pressentira, era isso mesmo: ele estava com aids.
Ney o recebeu de volta preocupado com sua aparência e não teve
dúvidas de que o namorado havia se contaminado ao perceber alguns
sinais físicos que já conhecia de Cazuza: os cabelos rareavam, ficavam
lisos e os pelos do rosto mudavam de cor; da barba loira de Marco
despontavam fios pretos e grossos. Mesmo já sendo conhecedores dos
sintomas da doença e com um longo histórico de sexo livre, Ney e
Marco entenderam que deveriam se submeter a um teste de para
enfrentar o que havia de ser enfrentado. Marco disse a Ney ter quase
certeza de haver sido contaminado não por Cazuza, mas por um jovem
norte-americano com quem transara uma ou duas vezes. Por mais
certezas que também começava a ter de seu próprio contágio, Ney
preferiu não fazer o teste para estar inteiro no momento de cuidar de
Marco. Um dia, cuidaria de si.
Havia sempre uma esperança no engano. Uma bactéria, uma
disfunção hormonal, um mal qualquer que o Ocidente desconhecia
contraído nos ares ou nos pratos da Índia, da Tailândia ou do Nepal.
Mas, a partir do instante em que Marco saiu do laboratório com o
envelope nas mãos, abriu a porta do carro e sentou-se ao lado de Ney,
não existiria mais fuga. Sua vida seria definida por uma palavra e ele foi
até o fim, retirando a folha até o campo em que se lia “positivo”. Ney
manteve-se calmo, mas Marco despencou. Havia casos suficientes no
mundo para que todos soubessem o que acontecia a um infectado.
Ao lado de Ney, Marco, um estudioso da medicina, previa trêmulo
seus próximos dias. Ele iria emagrecer, a temperatura do corpo se
elevar sobretudo à noite e a pele sofrer com as manchas escuras que
denunciavam os “aidéticos” e os isolavam da sociedade. Então, os
cabelos iriam cair, os olhos afundar e algumas feridas, se não tratadas,
poderiam causar perigosas infecções. Alguns pacientes tinham ainda
dores de cabeça tão fortes que desmaiavam, apresentavam doenças
pulmonares crônicas, crises de vômito e, em razão do uso do ,
sofriam com alucinações. Mas a dor maior talvez se desse quando
todas as pessoas se afastassem pelo medo do contágio e os deixassem
agonizar. Mais do que sofrer todos os males físicos da aids, Marco se
apavorou com a ideia do abandono e perguntou a Ney: “Você jura que
vai ficar comigo?”. E Ney respondeu: “Eu vou ficar com você até o fim”.
O brincava de Deus operando breves milagres em regime de
tréguas, detendo as ações do e restabelecendo algum ânimo
durante os períodos em que a vida, depois de andar pelos últimos
suspiros, parecia voltar ao normal. No caso de Marco, levou quase um
ano para que os sintomas da infecção e os reflexos negativos do ,a
cura temporária que poderia se tornar a própria morte se a medicação
fosse ministrada de forma ininterrupta, se intensificassem. Ney decidiu
cuidar do namorado em tempo integral e de perto. Falou com a família
de Marco, o tirou da Carlos Góis e o levou para viverem juntos em sua
casa, na rua Cupertino Durão, onde havia menos escadas e uma
enfermaria particular poderia ser montada.
Nos primeiros dias, os dois dormiram na mesma cama, abraçados
como faziam quando viviam juntos, até que a necessidade de cuidados
aumentou e Marco preferiu ficar no quarto de hóspedes. “Só não me
deixe morrer em um hospital”, pedia. O quarto foi equipado com um
reservatório de oxigênio e duas enfermeiras foram contratadas para se
revezarem, além dos serviços de Helena, a funcionária que já estava
com Ney havia dez anos.
A mãe, Araceles, e a irmã, Mara, chegaram de São Paulo. Elas
passavam o dia oferecendo a Marco a paz e a confiança na rotina das
medicações que ele não conseguia sentir ao lado das enfermeiras e, à
noite, iam tirar duas ou três horas de sono no apartamento que havia
ficado vazio, na Carlos Góis. O irmão, Mauro, também se mobilizou e
fez tudo suavemente para não transparecer nenhum esforço que
preocupasse Marco. Encerrou seus negócios imobiliários no litoral
paulista e partiu para ficar ao lado da família. Ao perceberem que as
despesas de Ney haviam triplicado com a alimentação, os remédios e o
staff de auxiliares, eles tentaram ajudar. Mara pegou todo o dinheiro que
possuía e o colocou sobre a cama de Ney, mas ele não aceitou. Mauro
vendeu alguns de seus bens e se dispôs a colaborar, ao menos, com o
custo dos medicamentos.
Como se a batalha de um valesse pela vida do outro, Marco e
Cazuza queriam saber de notícias sobre suas lutas e recaídas. Cazuza
perguntava por Marco e Marco por Cazuza com um interesse particular
menos por compaixão e mais por sobrevivência. Às vezes, Ney deixava
Marco sob os cuidados da família para caminhar algumas quadras até a
Prudente de Morais, em Ipanema, entregar o leite de cabra que trazia
do sítio para Lucinha, e que Cazuza adorava, e subir ao quarto para
massagear os pés do amigo recorrendo às memórias, o único lugar
onde a vida permanecia intacta. Sobre santo-daime, lembravam do dia
em que Cazuza resolveu tomar várias doses antes de um show,
ignorando qualquer sentido espiritual e esquecendo-se da parte dos
vômitos. Claro que foi uma tragédia. Sobre Mário Troncoso, falavam da
ocasião em que Ney o levava de carro até o sítio do guru quando
descobriu uma garrafa de cachaça escondida por Cazuza debaixo do
banco do passageiro. Ney parou no meio da estrada e apenas disse:
“Desce!”. Mas se arrependeu logo depois de arrancar com o carro, fez o
retorno, parou a seu lado e mandou: “Entra!”. Mário Troncoso… Foi no
sítio do mestre que Ney reforçou sua paixão ao ver Cazuza sair da
piscina em uma noite fria, com os cachos molhados e sorrindo enquanto
uma fumaça de vapor subia de seu corpo. Ney o olhava com tamanha
ternura que Troncoso percebeu, abaixou-se e comentou a seu ouvido:
“Você está apaixonado, né?”.
Com a nova rotina estabelecida, Ney decidiu parar de adiar a
realização de um teste de e lidar, ele também, com a doença que
estava certo de ter. Acordou pela manhã, vestiu-se e seguiu em direção
ao laboratório. Dias depois, retornou para retirar o resultado enquanto
Mara e Araceles cuidavam de Marco. Na recepção, identificou-se e
recebeu o envelope com o diagnóstico: “Negativo”. Voltou para casa e
contou friamente a Marco sem esboçar nenhum sentimento em
especial. Não haveria alívio nem comemoração enquanto as pessoas
que amava estivessem tombando a seu lado. Uma devastação que
estava só no começo.
Aos 51 anos, Ney sabia o que não queria e olhava para o lado com
uma intolerância que poucas vezes deixou transparecer até ser
entrevistado pelo jornal O Globo em novembro de 1992. “Para falar a
verdade, eu estou perdendo o meu saco. Eu olho para o mundo e acho
tudo tão medíocre. As artes estão de uma mediocridade que amola. E o
que está no comando de toda a mediocridade é o dinheiro. Aos trinta
anos eu já sabia disso, mas tinha um fogo que me permitia passar por
cima disso. Aos 51, eu já não tenho mais saco. Até quando o dinheiro
vai continuar no comando?”, disse ao jornalista Mauro Ferreira.
E o que havia ao lado? Ney não cita nomes na entrevista, mas, com
um rápido giro no botão dos aparelhos de rádio naquele ano, passava-
se pelo menos por dois pagodes do grupo Raça Negra, “Cigana” e
“Cheia de manias”, dois sucessos estrondosos dos irmãos sertanejos
Leandro e Leonardo, “Temporal de amor” e “Não olhe assim”, e um
samba-reggae que abria as comportas do país para a chegada do
terceiro império, a música baiana de massa, na voz de Daniela Mercury,
“O canto da cidade”. Assim, o pagode, o sertanejo e a axé-music
firmavam os três dutos milionários e mais avassaladores da história do
pop brasileiro, tomando s, programas de , investimentos das
gravadoras, casas de show e todo o espaço aéreo disponível para a
propagação do som por dez ou quinze verões seguidos. Nada disso
atormentava Ney, que continuava lotando teatros com suas temporadas
de shows e vendendo marcas previstas de discos, até o dia em que ele
se veria abandonado e sem apoio técnico para a estreia de um
espetáculo que seria realizado no pior dia de sua vida.
O fato de fazer o show antes de lançar o novo disco com o Aquarela
Carioca, um combo de sonoridade original e com alto poder de fogo
suspenso entre o instrumental e o pop, ou o rock, o choro e o jazz, ou
qualquer coisa que o baixista Paulo Brandão, o violoncelista Lui
Coimbra, o saxofonista Mario Sève, o guitarrista Paulo Muylaert e o
percussionista Marcos Suzano decidissem fazer, deveria potencializar
as surpresas do espetáculo batizado As aparências enganam. Depois
de uma longa temporada de projetos camerísticos, os ensaios
revelavam um Ney de volta aos ímpetos roqueiros sem fazer rock ou às
sutilezas instrumentais sem fazer jazz. Ele voaria sobre baixo, guitarra
distorcida e pandeiro para cantar “ Rebeldia”, de Alceu Valença,
mostrada por Marcos Suzano; se entregaria ao charango andino, baixo
e pandeiro na versão de “Sangue latino”, dos Secos & Molhados; e se
livraria de qualquer intenção política para cantar a seu modo “Pavão
mysteriozo”, do cearense Ednardo. De Caetano, havia “A tua presença
morena” e “O ciúme”; de Milton Nascimento e Fernando Brant, “Notícias
do Brasil” e “Fruta boa”; outra de Alceu, “Cheiro de saudade”; um
andamento mais ágil para “Pedra de rio”, de Luli e Paulo Cesar; e um
arranjo distante do original de “Las muchachas de Copacabana”, de
Chico Buarque. Ney vencia a onipresença ameaçadora de Elis Regina
— algo que o levou a retardar por treze anos a gravação de “As
aparências enganam”, de Tunai e Sérgio Natureza, desde que a ouviu
no álbum Essa mulher, de 1979 — e a cantava também com lágrimas.
E faria sua única visita a Jorge Ben apropriando-se de “O vendedor de
bananas”, o que Jorge usaria para chamá-lo por um vocativo particular:
“E aí, vendedor de bananas!”.
Era raro ver seu rosto como se viu assim que Mazzola o apresentou
no palco do Festival de Jazz de Montreux em 1994, depois do show de
Daniela Mercury e antes do de Jorge Ben Jor. “Ele se juntou com o
grupo Aquarela Carioca para esse trabalho maravilhoso, considerado
pela revista Billboard o maior show dos Estados Unidos de música
latina. Então, com vocês, Ney Matogrosso e Aquarela Carioca!” Apenas
os olhos estavam contornados de preto, mas tinham suavidade, e não a
tensão que os arregalava, e um sorriso de ternura se abria enquanto ele
erguia os braços como se abraçasse a plateia.
Apesar de suspeito ao apresentar um artista que ele continuava
produzindo em estúdio, Marco Mazzola, o curador da noite brasileira de
Claude Nobs, não mentia. A imprensa local via um Ney diferente
daquele que estivera no país, em 1983, ainda explosivo e exótico, e se
juntava aos jornalistas norte-americanos e a outros europeus que
haviam escrito com respeito sobre ele ao vê-lo nas últimas temporadas
em Nova York, Miami, Barcelona, Paris, Lisboa e pelos interiores da
Itália. Pouco depois de seu show começar em Montreux, a seleção da
Suíça entrou em campo contra a Espanha pelas oitavas de final da
Copa do Mundo dos Estados Unidos e a parcela dos espectadores
locais deixou seus lugares para se dirigir à área em que a partida era
transmitida num telão. Quando a Espanha fez o segundo gol
desclassificando definitivamente os suíços do torneio, que seria vencido
pelo Brasil, o público voltou a encher a pista a tempo de ver Ney
descendo para provocar e receber carícias ousadas das mulheres
enquanto cantava “O vendedor de bananas”.
Ao retornar para casa, Ney, aos 53 anos, começaria uma nova fase,
contida, reverencial e revisionista. Suas fontes estavam no passado e
até o final da década os shows não contariam mais com produções
volumosas. Ângela Maria, Chico Buarque e Villa-Lobos com Tom Jobim
seriam cantados em três álbuns consecutivos, cada um chegando com
a força de uma época: a Ângela do rádio da infância e das primeiras
vontades de cantar, o Chico das ousadias verbais dos anos proibidos,
fazendo com as palavras o que ele, Ney, fazia com o corpo, e Tom e
Villa das construções melódicas que ele ouvia como se visse a própria
natureza. Quando já havia decidido iniciar a tríade com Chico, Ney
sentiu a necessidade de gravar o álbum sobre Ângela Maria. Ele tinha
sido convidado para dirigir o 6o Prêmio Sharp de Música pelo amigo
José Maurício Machline e submergiu como nunca no repertório cantado
pela cantora e por Cauby, os homenageados do ano. “Como ninguém
nunca regrava essas músicas?”, perguntou a Machline. “E por que você
não faz isso?”, sugeriu o produtor. Quando saiu da cerimônia no
Theatro Municipal, a decisão já estava tomada.
Os arranjos foram colocados nas mãos do pianista Leandro Braga e,
para o repertório, vieram obras como o desconsolo radical de
“Abandono”, de Nazareno de Brito e Presyla de Barros; “Estava escrito”,
a canção de Lourival Faissal que daria nome ao disco; toda a picardia
permitida nos anos 1950 com a graciosa “Amendoim torradinho”, de
Henrique Beltrão; a “prece por um país melhor” de “Ave Maria”, de
Vicente Paiva; e, apesar de evitá-la até o fim por sua previsibilidade,
“Babalu”, da cubana Margarita Lecuona, sucesso maior na voz da
Sapoti. Ao lado de Ângela, ele cantava “Só vives pra lua”, de Ricardo
Galeno e Othon Russo.
Ney estreou a temporada de shows sob a falsa ideia dos críticos de
que havia chegado para salvar a cantora de um certo ostracismo, em
razão da conversão que transformara todo o legado produzido pela Era
do Rádio até o final da década de 1950 em “cafonice”, um conceito
ironicamente iniciado a partir da Era dos Festivais e da geração das
rupturas da chamada música brasileira moderna que tanto cultuava
Ângela, Cauby, Sílvio Caldas e Chico Alves, como Elis, Caetano, Gil,
Chico e Milton Nascimento. De repente ficaram eles, os modernos, e,
no passado, os cafonas. Com uma dívida de 23 mil dólares a ser
quitada em dez vezes pela compra de um novo apartamento na
Cupertino Durão, Ney não poderia fracassar. E, então, foi assim: uma
plateia ávida para vê-lo com aquele repertório lotou cada uma das
sessões do Metropolitan, na Barra da Tijuca, e o cantor, ajudado pela
força de Ângela Maria, pagou todas as parcelas em dia. “Estava escrito
me salvou”, disse.
Chico veio em seguida. Cuidadoso com tudo o que era regravado de
seu repertório, o autor acompanhou a escolha das músicas para o show
e o álbum e aceitou a ponderação de Ney: não havia mais contexto
político ou social para uma regravação de “Deus lhe pague”. A canção
tinha sido lançada em 1971, no disco Construção, depois de passar por
todas as tesouradas da censura de Médici que, escolada nas
artimanhas poéticas do autor, considerava que ela parecia “um ‘recado’
com duplicidade de sentido, que tanto pode ser dirigido a alguém ou
algo abstrato.” Os versos eram entendidos como “barra-pesada demais”
por Chico e por Ney: “Por esse pão pra comer, por esse chão pra
dormir/ A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir/ Por me deixar
respirar, por me deixar existir/ Deus lhe pague// Pelo prazer de chorar, e
pelo ‘estamos aí’/ Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir/ Um crime
pra comentar e um samba pra distrair/ Deus lhe pague”.
Uma situação curiosa: Chico e Ney, dois dos artistas mais vigiados
durante os anos de ditadura, concordavam que uma canção ficasse de
fora do disco por parecer politicamente tensa demais para aqueles
tempos. Mas qual era o Brasil de 1996 em que viviam? Depois de dois
anos e 289 dias da gestão de Fernando Collor de Mello e de mais dois
de seu vice, Itamar Franco, o país era conduzido havia um ano por
Fernando Henrique Cardoso. O ex-ministro da Fazenda de Itamar tinha
virado o jogo nas eleições contra as vantagens das intenções de voto
em Lula e se fortalecido pela aceitação popular à estabilização
econômica atingida pelo Plano Real que elaborou com sua equipe para
Itamar Franco ainda em 1994. Mas se “Deus lhe pague” parecia
excessivamente ranzinza num Brasil sem um inimigo tão visível pela
primeira vez desde 1964, como poderia haver no mesmo show letras
igualmente denunciativas como “Construção”, “Roda viva” e “Cala a
boca, Bárbara”?
Ney dizia ter conseguido suavizá-las e até transformar “Cala a boca,
Bárbara”, parceria de Chico e Ruy Guerra para a peça Calabar, de
1973, numa “bela canção de amor”. “Construção” e “Roda viva”
mantinham o fogo baixo, com todas as sofisticações da guitarra de
Ricardo Silveira e da bateria de Wilson das Neves, e, apesar de o show
abrir com três ou quatro dramas, estava claro que Ney, usando chapéu
e terno de seda com círculos dourados desenhados pelo estilista
Ocimar Versolato, queria mais os malandros do que as lamúrias. Depois
de ver o ensaio e cantar com Ney “Até o fim” num clipe que mostrava os
olhares maliciosos de um enfrentando a timidez do outro, o autor
elogiou o poder do cantor em regravar com personalidade músicas
como “Construção” e “A banda”. Para Chico, a habilidade de Ney o
transformava em “um coautor”.
Um brasileiro, o nome do álbum, seria o derradeiro produzido por
Marco Mazzola depois de catorze discos sob seu comando. Mazzola
vinha se distanciando nos últimos trabalhos e dividindo as funções de
estúdio com outros profissionais ao menos desde À flor da pele. Agora,
Ney queria deixar de ser o canário que chegava ao estúdio com tudo
pronto para que sua voz fosse colocada. Queria participar mais do
pensamento musical e ficar mais próximo dos músicos. Com a indústria
do ainda em ebulição, remava contra todas as correntes fazendo
álbuns cada vez mais distantes dos interesses industriais. Das
cinquenta músicas mais tocadas nas s de 1997, axé, sertanejo e
pagodes dominavam as principais posições. As rádios, definitivamente,
já não eram um espaço a ser disputado.
O terceiro tributo foi para Villa-Lobos e Tom Jobim e teve direção de
Zé Nogueira e João Mário Linhares, que se tornaria o mais longevo
empresário de Ney. As melodias exigiam preparo e, pela primeira vez,
Ney ensaiava intensamente antes de entrar em estúdio. Apesar de a
autoridade artística dos compositores sugerir regravações respeitosas,
arranjos nada ortodoxos usavam as possibilidades do grupo mineiro
Uakti e nenhum instrumento elétrico seria banido pelos pudores de
tradição. A guitarra de Ricardo Silveira pontuava a melodia de “Cair da
tarde”, de Villa com letra de Dora Vasconcellos; “Veleiros” se convertia
num filme, bela, poderosa e imagética; e o baião “Pato preto” fazia o
álbum mais clássico da trilogia terminar numa casa de reboco.
Se não tivesse morrido três anos antes, Jobim teria calafrios ao ver
os amplificadores ligados no estúdio para a gravação de uma
controversa versão de “Águas de março”. Ele havia partido sem gostar
das “aporrinholas eletrônicas”, como chamava baixos, guitarras e
sobretudo teclados, mesmo depois de Elis Regina e Cesar Camargo
Mariano dobrarem seu conservadorismo e fazerem do álbum Elis &
Tom, com todo o aumento do consumo na conta de luz do estúdio, um
clássico. Ney não queria cantar “Águas de março” por achar os arranjos
mal resolvidos e chegou a falar de suas ressalvas ao produtor Zé
Nogueira, mas acabou cedendo a um argumento: “Não liga, Ney, essa é
para os músicos”. De fato, “Águas de março”, como saiu, se tornou,
como o próprio Ney reconheceria, a pior regravação de uma música de
Jobim em sua discografia.
O cair da tarde seria lançado com um dos shows mais caros e
ambiciosos da carreira de Ney. Ele queria que o palco — de
preferência, o do Theatro Municipal do Rio — se transformasse em uma
ilha rodeada por um lago o mais próximo possível do real e que
algumas aves cenográficas passassem voando sobre sua cabeça.
Cláudio Tovar cuidaria das cenas e duas formações instrumentais, uma
camerística e outra elétrica, seriam colocadas ao fundo. Um sonho que
durou até começarem os estudos de logística. Seria preciso ter piscinas
enormes para reproduzir o lago e, a exemplo das limitações na
mobilidade do Circo Tihany para viajar com Destino de aventureiro pelo
Brasil, nada garantiria que se poderia carregar a estrutura para outras
cidades. Ney desistiu do show e O cair da tarde se tornou órfão de
palco.
Cantar para as memórias o satisfazia, mas voltar aos figurinos
afrontosos e às canções de vanguarda já era uma necessidade.
Quando quis saber até onde sua voz poderia chegar sozinha, sem o
personagem sedutor das maquiagens e das provocações, impôs a si
um teste gravando Pescador de pérolas. E tudo o que veio depois, ao
lado de Raphael Rabello, do Aquarela Carioca, ou cantando Ângela
Maria e Chico Buarque até alcançar os limites do popular de Villa-Lobos
e Jobim, havia sido fruto de uma autoconfiança que nem sempre existiu.
Ney vacilou antes de gravar seu primeiro samba e seu primeiro baião
por se considerar inabilitado, jamais gostou de improvisos e sua
afinação sempre careceu de foco e vigilância para ser mantida. Agora
que tinha percorrido os caminhos que queria, mesmo ao preço de
romper com gravadoras ou ter discos retaliados por companhias que os
lançavam com o mais profundo descaso — como mais uma vez
acontecia com O cair da tarde —, Ney atendia a uma sensação que
parecia não ser só sua. O país recusava-se a tê-lo como um cantor do
passado.
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou
em vigor no Brasil em 2009.
Capa
Alceu Chiesorin Nunes
Pesquisa iconográfica
Ana Laura Souza
Preparação
Márcia Copola
Checagem
Érico Melo
Revisão
Angela das Neves
Jane Pessoa
Versão digital
Rafael Alt
978-65-5782-257-9