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Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
1. Um lugar chamado fronteira
2. Guerra de pai, guerra de filho
3. Amor, sexo e suicídio
4. Teatro por paixão, música por acidente
5. “Cante como o Wilson Simonal!”
6. Um salto no escuro
7. Homem-pássaro
8. Mais forte que o Rei
9. Glória e insulto
10. A escalada da discórdia
11. Tempestade e libertação
12. Mandrix na selva
13. As Frenéticas e o guru
14. As três censuras
15. “Vem Cazuza, vem Cazuza”
16. Viado não, homem com H
17. Jonny e João
18. “Pro dia nascer feliz”
19. “O maior show de todos os tempos”
20. Rebolando para o heavy metal
21. Operação rpm
22. “O tempo não para”
23. Tocados pela maldita
24. Adeus, Marco
25. Um lugar chamado fronteira

Caderno de imagens
Entrevistados
Créditos das imagens
Sobre o autor
Créditos
A Zuza Homem de Mello
1. Um lugar chamado fronteira

Eram 1500 bombeadas todas as tardes, até que a água do poço


enchesse a caixa no alto da casa. Uma tarefa que Ney desempenhava
contando cada movimento para tentar diluir o ódio das lembranças.
“Menino, levanta”, gritava o pai com um puxão nas cobertas antes de
amanhecer. “E venha limpar minhas unhas.” A água subia e com ela
chegavam as memórias. Ele só tinha cinco anos quando foi deixado de
castigo nu no jardim onde todos podiam vê-lo. Uma criança assustada
que buscava encobrir as vergonhas esfregando no corpo a terra do
chão. A bomba era pressionada com golpes de raiva. Se pudesse,
mataria aquele homem. “Ele não chora”, admirava o irmão. “Eu não
quero filho viado”, dizia o pai. “Matto Grosso ainda acaba com esse
garoto”, comentava um vizinho. “Deixa o menino em paz”, pedia a mãe.
Naquela tarde de 1958, aos dezessete anos, Ney encheria a caixa pela
última vez.
Havia algo de errado com o mundo que o jovem observava no interior
da vila militar cercada por muros brancos onde vivia com o pai, a mãe e
os irmãos, vigiada pelos soldados da Base Aérea de Campo Grande.
Um lugar de ordens e homens camuflados muito menos interessantes
do que o lago, os cães, as corujas, as cobras e os pássaros da mata
que se abria como um portal nos limites da base. O céu recebia naves
extraterrestres de luz própria em forma de bolas de fogo só avistadas
pelo irmão mais velho, a terra escondia potes de ouro que ninguém
encontrava e o além enviava fantasmas como o espírito de um sargento
que havia se enforcado numa figueira e que só aparecia em dias de
chuva. Um sertanismo fantástico que surgia todos os dias a partir da
uma hora da tarde, depois da escola e do almoço, quando Ney
desaparecia no verde cuja extensão ia até uma pista de aviões da e
que terminava quando o sol envelhecia e o pai voltava do trabalho,
tenso e sempre com a mesma ordem. “Ney, vá encher a caixa-d’água.”
Foi com a água dos Pereira que tudo começou a mudar numa manhã
em que Ney se aprontava para o colégio escovando os dentes com a
torneira aberta. “Fecha, está gastando tudo”, disse Grey, predileto do
pai e um aliado nas delações do irmão. “Grey, quem enche essa caixa
sou eu e eu gasto a água que eu quiser.” Matto Grosso entrou no
banheiro. “Faça o que ele mandou, feche a torneira.” E foi nesse
momento que Ney tomou o caminho sem volta: “Você não pode falar
nada, pai. Eu pego até a água que você usa para lavar os pés”.
Sargento Antonio Matto Grosso Pereira: praça alistado na
Aeronáutica em 1o de novembro de 1936, desembarcado em Nápoles,
Itália, em 26 de abril de 1945 para se juntar ao Grupo de Aviação de
Caça da , condecorado com a medalha de Campanha durante a
Segunda Guerra Mundial. Com tantas insígnias, não admitia ser
desafiado dentro de casa por um filho que prometia traí-lo em tudo.
Nem militar, nem engenheiro, nem médico e, ao que parecia, nem
homem. “Como é que é?” Cheio de uma fúria que parecia reunir todas
as suas frustrações, partiu para cima de Ney e o jogou atravessado na
banheira.
A mãe gritou e os irmãos tentaram segurá-lo, mas foi em vão. Matto
Grosso armava um soco para dar no filho caído quando levou um chute
no peito que o arremessou para o outro lado. Assustado, se recompôs e
baixou aos gritos seu último decreto: “Saia da minha casa”. “Saio”, disse
Ney, “e com prazer, porque eu tenho nojo de olhar pra sua cara.” Em
seguida, enfiou três camisas numa sacola e partiu, algo que faria
sempre que testassem seu poder de desapego. Saiu sem informar o
destino, deixando um pai a quem queria esquecer, uma mãe de quem
queria cuidar e quatro irmãos, dois homens e duas mulheres, dos quais
nunca mais estaria próximo. Sua partida abalou a família e deflagrou
uma crise conjugal. Se havia a autoridade militar do sargento Matto
Grosso, havia também a determinação de Beíta, uma força de equilíbrio
e proteção instintiva ao filho diante das perseguições do pai. Ela não
chorou ao vê-lo sair, mas olhou para o marido e fez um juramento: “Se
você não o trouxer de volta, eu prometo que corto suas partes e faço
picadinho”.

Beíta de Souza Pereira era uma mulher miúda com olhos de índio e
uma personalidade que nem os coronéis de Bela Vista ousavam
contrariar. “Não brinca com ela, Matto Grosso”, avisava um tenente ao
perceber o rapaz se engraçar com a menina. “Mas ela é linda”, insistia o
soldado. “Esquece, tem outras em Bela Vista.” O primeiro recado do
pretendente veio por uma amiga. “Ele quer te conhecer.” E ela
respondeu: “Mas eu não quero saber nem de mato grosso nem de mato
fino”. Matto Grosso tinha vinte anos, e Beíta quinze. Mais preocupada
com as vacas que adorava recolher todas as tardes nos campos da
fazenda do pai, ela passou a evitar as investidas do jovem até o dia em
que seu pai-avô Simão a chamou. “Não corra de ninguém, você não
precisa ter medo. Se um dia ele fizer algo de que não goste, não abaixe
a cabeça e responda à altura.” O casamento foi marcado dias depois.
Ir para o altar com uma garota que tinha o poder de virar onça e uma
habilidade espantosa para acertar um tiro de revólver calibre .44 numa
latinha colocada num barranco a metros de distância seria um ato de
coragem também por outra razão. Os quartéis pediam aos recém-
incorporados que só se casassem depois de cumprirem ao menos cinco
anos no cargo, uma regra que o noivo decidiu burlar por impaciência.
Um cabo da região já havia sido punido com um mês de detenção pelo
matrimônio antes do prazo estabelecido. Sem querer correr riscos,
Matto Grosso olhou em linha reta e avistou, bem em frente à Bela Vista
do Mato Grosso, a paraguaia Bella Vista Norte, no outro lado do rio
Apa. “Por que não nos casamos na terra de sua avó?”, perguntou a
Beíta. Afinal, era de onde saíam as polcas e as valsas cantadas em
guarani e espanhol, a vila à qual um oficial amigo de seu pai, o
generoso tenente Gray, a levava para dar aulas de tiro ao alvo.
Incentivado a fazer a travessia às escondidas por Gray e outro militar
compadecido de suas urgências, João Pedro Gay, Matto Grosso
chamou uma parente para servir de testemunha, colocou sua eleita
numa canoa e consumou, horas depois de remar com força para vencer
as correntezas do Apa, o enlace celebrado em espanhol. Ao voltar,
prometeu pagar o silêncio de Gray e de Gay sobre sua transgressão
perante o comando militar de Bela Vista assim que os filhos
começassem a nascer.
O primeiro veio em 1938 e levou o nome de Gay, algo que deixou o
coronel João Pedro Gay honrado pela deferência e marcou com uma
até então impensável chancela sexista o menino que nasceu, Gay de
Souza Pereira, futuro galanteador e professor das primeiras proezas
sexuais dos irmãos. O segundo, em 1941, ganhou o nome de Ney,
inspirado por qualquer coisa que veio à cabeça de Beíta, esquecida das
promessas feitas pelo marido aos oficiais. Só dois anos depois, em
1943, elas seriam retomadas tão logo o terceiro levasse o nome de
Grey, com “e”, prestando homenagem ao tenente Gray.
O tempo mostraria a Matto Grosso que havia algo diferente com Gay
— o nome, não o menino. Traído por uma desconcertante ironia
semântica, o sargento tinha nomeado o primogênito com o termo que
começava a se popularizar pelo mundo como sinônimo de todas as
práticas e vivências sexuais que suas reservas homofóbicas
repudiavam. Gay já fora usado na Europa do século para designar
imoralidades de toda origem e, no , para se referir às prostitutas e
aos heterossexuais promíscuos. Homens com muitas mulheres eram
chamados de “gays”.
Só a partir de 1920 sua tradução mais literal do inglês, “alegre”,
passou a se referir também a homens que gostavam de outros homens.
Mulheres não levavam esse nome. Mas nada disso havia chegado a
Bela Vista até a década de 1940, quando Gay era apenas a
homenagem feita por Matto Grosso a um militar de bom coração. Anos
depois, quando julgou ter dado ao filho uma condenação moral, sugeriu
que Gay mudasse seus documentos para se livrar da injúria e recebeu
dele uma resposta inesperada: “Não precisa, pai. Quero que as
pessoas me respeitem com o nome que eu tenho”.
Antes de dizer sim ao pedido de casamento, Beíta, mesmo muito
nova, já havia delimitado um território importante para sobreviver
naquelas terras de culturas brutas onde mulheres não tinham voz.
Soldados de fronteira, tribos indígenas, fazendeiros e peões conviviam
com aventureiros de toda espécie que migravam para o Mato Grosso
ainda unificado da década de 1940 em busca da riqueza prometida pela
Marcha para o Oeste. O projeto de ocupação e demarcação do Centro-
Oeste e da Amazônia Meridional promovido pelo presidente Getúlio
Vargas queria tornar o interior do Brasil tão produtivo e povoado quanto
as cidades prósperas das rebarbas litorâneas. Os sertões de Euclides
da Cunha, ou a ideia de sertão que ele tinha revelado em 1902,
precisavam ser entendidos e desbravados para que a nação ideal de
Vargas fosse fortalecida.
Vila promovida a cidade por lei estadual em 1918, Bela Vista, na
porção sul do Mato Grosso, só viria a ser município pertencente ao
Mato Grosso do Sul em 1977, depois que o estado fosse oficialmente
dividido pelo governo de Ernesto Geisel com o argumento de ter uma
extensão territorial grande demais para ser administrada sob um
mesmo entendimento geopolítico. Seus dias de relativa paz haviam sido
conquistados depois de algumas cabeças cortadas e muitos tiros
disparados por detrás de barricadas erguidas por portugueses,
espanhóis, brasileiros e paraguaios lutando por interesses territoriais
desde a chegada dos primeiros sertanistas lusitanos, em 1531.
As piores histórias repassadas por gerações vinham da sangrenta
Guerra do Paraguai (1864-70), o maior conflito internacional da América
do Sul. Ao levar adiante seu projeto de mudar o mapa às margens da
estratégica bacia do rio da Prata, a sonhada saída para o Atlântico, e
criar um Grande Paraguai com a anexação de terras vizinhas, Solano
López, o comandante das forças armadas e líder inconteste de seu
país, chegou a invadir a região que hoje equivale a Corumbá, a 360
quilômetros de Bela Vista, executando civis e militares pelas ruas.
Homens de alta patente levavam mulheres para que elas saqueassem
casas de brasileiros rendidos, em busca de roupas e joias. Os
moradores que davam trabalho eram mortos a céu aberto.
O sul do Mato Grosso rompeu o novo século fazendo suas leis na
ponta da faca. O mesmo campo de trabalho promissor a comerciantes e
roceiros que vinham tocar gado e colher arroz, feijão, milho, mandioca e
alfafa para os senhores das terras era cada vez mais habitado por
ladrões, matadores de aluguel e fugitivos de um passado muitas vezes
assustador. Pois no ano de 1929, quando um homem de 23 anos,
magro, moreno e de olhar firme, usando bombacha, lenço e chapéu
gaúcho, chegou a Bela Vista depois de escapar de um presídio no Rio
Grande do Sul com dois ou três homicídios nas costas, nem fazendeiros
nem peões imaginaram estar diante de um criminoso.
Silvino Jacques tornou-se um incômodo grande demais para as
autoridades de Bela Vista pelo volume de confusões que passou a ser
registrado em sua ficha. Curiosa figura com inspiração para fazer
poesia à mulher amada enquanto esteve preso no Sul e tino para dar
cabo da vida de seus desafetos com uma crueldade de requinte
elevado, começou a agir com um bando criado nos moldes do de
Lampião que chegou a ter sessenta integrantes entre homens e
mulheres e a ser conhecido como o “terror da população matto-
grossense”, conforme noticiou o periódico O Jornal. Calmo e de boa
prosa, sentava-se sob as árvores da fazenda dos pais de Beíta para
travar conversas gauchescas com a família enquanto ela esquentava a
água e servia o tereré.
Os criminosos que atuavam em bando, os bandoleiros, ou como
mercenários solitários, matando por encomenda e por um bom punhado
de réis, eram subproduto de um Estado que decidiu incentivar o
armamento da população de fronteira desde os anos 1920 para que, na
ausência de um contingente policial, os próprios pais de família
protegessem seus lares. Mas a lógica da bala como defesa só
funcionou até os mosquetões passarem a fortalecer mais os que tinham
virtudes para manuseá-los — os criminosos — do que as indefesas
famílias de agricultores. No fim, as armas permitidas aos “cidadãos de
bem” acabavam abastecendo o mercado da matança. Mesmo numa
cidade em que se aprendia a atirar antes dos doze anos, como
acontecera com Beíta, quem puxava o gatilho com mais precisão era
sempre quem o fazia com mais frequência.
Assim que o Mato Grosso ferveu, o Exército foi designado para
desmilitarizar as famílias e eliminar os assassinos antes que o estatuto
do ferrolho se instalasse e o poder público entrasse em colapso.
Soldados saíram em revista pelas propriedades da grande Bela Vista e
descobriram um arsenal forte o suficiente para municiar várias divisões
de infantaria. Só na Fazenda Tororó, em Aquidauana, uma diligência
encontrou 22 fuzis alemães Mauser, 99 cartuchos, um carregador e
uma espada, “todos pertencentes ao Exército Brasileiro”, conforme
escreveu o relator da operação. Ao ser questionado sobre a
procedência da armaria em seus paióis domésticos, o fazendeiro José
Alves Ribeiro disse que tudo havia sido recolhido de inimigos em
assaltos e ações paramilitares a mando de seu ex-chefe, Silvino
Jacques.
Um dos crimes mais cruéis de Silvino foi praticado contra o cônsul
paraguaio e antigo desafeto Manoelito Coelho dos Santos. Baleado
pelos capangas do bandoleiro dentro de seu armazém, Manoelito
correu para o quintal ao lado da loja levando tiro até a mulher sair para
ampará-lo. Silvino chegou por último, caminhou até a vítima, encostou o
cano de um mosquetão em sua testa e disparou. A força da bala fez
partes do crânio de Manoelito grudarem no vestido da esposa. Depois
de se tornar o homem mais procurado da região, Silvino foi encontrado
e morto pelos policiais quando estava acampado com seu bando nas
margens de um córrego onde hoje fica Porto Murtinho. “Está, assim,
interrompido de maneira definitiva o rosário imenso de crimes iniciado
há mais de dez anos pelo ‘Lampião do Matto Grosso’”, publicou O
Jornal em 27 de maio de 1939, dois dias após sua morte.
Não era por acaso que a vocação beligerante dos adultos seria logo
passada às crianças de Beíta. Antes de saírem livres pelo cerrado, Ney,
Gay e Grey recebiam do avô Tancha uma faca para se defenderem de
algo que nem imaginavam o que poderia ser. Beíta havia nascido numa
fazenda no loteamento onde viviam muitos paraguaios, em Bela Vista,
chamado Nunca-Te-Vi, um dos primeiros assentamentos delimitados
por reforma agrária no país do qual Getúlio se orgulhava. A rara região
sem armas de fogo, cautelosamente proibidas e fiscalizadas para evitar
um levante separatista, tinha ruas de terra não menos perigosas
ocupadas por jovens que, por necessidade, se tornavam habilidosos ao
portarem qualquer objeto com uma lâmina na ponta.
O pai biológico de Beíta era Tancha, ou Paulo Coelho de Souza, e a
mãe, filha de uma índia das reservas do Chaco, no Paraguai, se
chamava Elisia. Logo depois do nascimento da filha, em 3 de outubro
de 1922, o casal seguiu o costume dos tempos e a entregou aos
cuidados dos pais de Tancha, avós da menina: Blaudemira Antonia
Silva, a Neneca, e seu marido, o fazendeiro Simão Coelho de Souza,
um dos coronéis mais ricos da região, dono de hectares sem fim,
milhares de cabeças de gado e colecionador de cavalos de raça que
disputavam as divertidas carreiradas de domingo. Beíta chamaria seus
pais de sangue, Tancha e Elisia, de “meu pai e minha mãe”. Simão e
Neneca, os afetivos, seriam para sempre “papai e mamãe”.
Beíta tinha dez anos em 1932 quando sentiu, pela primeira vez, quão
cruéis poderiam ser os homens de Bela Vista. Na mesma noite em que
Tancha e Simão partiram em seus cavalos para o campo diante do
quartel da vila dispostos a ajudar as tropas getulistas que se
defrontavam com os revoltosos de interesses constitucionalistas do sul
do Mato Grosso, combatentes das forças inimigas invadiram a fazenda
acordando mulheres e crianças para saquear os cômodos, incendiar o
assoalho, soltar os cavalos, metralhar o gado e envenenar a água do
poço. “Não bebam”, disse um deles. “Colocamos veneno.” Um
caminhão estacionou em frente e todos foram levados para uma casa
distante. Ao saber da represália, Tancha e Simão voltaram às pressas,
depois de vencer os rebeldes, e chegaram ao endereço onde as
esposas e os filhos haviam sido instalados. Quando ouviu o som dos
cascos de um cavalo se aproximando, Beíta abriu a porta e viu Simão.
Papai desceu do animal, tirou o lenço vermelho usado no confronto e o
ajeitou no pescoço da filha-neta olhando em seus olhos. Um presente
que ela guardaria, ao menos, pelos noventa anos seguintes.
Heróis e vilões poderiam conviver num mesmo homem quando as
histórias se davam nos limites do Oeste. O país ali se chamava
fronteira, um lugar entre dois, de território, idioma, leis e cultura
delimitados um dia por linhas de mapa e tratados imperiais que nunca
condiziam com a vida de quem tinha um pé em cada lado da cerca. Os
homens e as mulheres pareciam levar também dentro de si uma
fronteira nunca delimitada com precisão para separar o bem e o mal, o
certo e o errado, o legal e o criminoso. Quem vivia em Bela Vista sabia
que toda lei era relativa e definida por quem jamais soube o que era ter
de ignorá-la para sobreviver. Heróis para os filhos, vilões para os
desafetos, pessoas de bem matavam antes quando sabiam que
poderiam morrer, armavam-se sem medir esforços para defender a
família e lutavam pela terra, a única posse que as tornava realmente
fortes.
Simão Coelho, avô de Ney, era integrante do , o Partido
Republicano Conservador, e membro da Guarda Nacional que
colecionava inimigos e acusações de crimes pelas páginas do jornal O
Matto-Grosso, um órgão oficial do , o Partido Republicano Mato-
Grossense, rival do . Uma carta assinada pelo desafeto coronel
Militão Loureiro, do , que foi publicada na íntegra, afirmava que
Simão era responsável por homicídios e contrabandos na região. Além
de ser mandante do assassinato de um paraguaio chamado José
Caballero em Nunca-Te-Vi, era acusado de atravessar o rio Apa,
ilegalmente, com quinhentas cabeças de gado, para o Paraguai. Mais
uma acusação veio em outra carta que Militão informou ter recebido do
chefe de polícia da vizinha Bella Vista paraguaia e que fez questão de
enviar à redação. Segundo a denúncia, Simão havia comprado de um
contraventor chamado Fernando Rodrigues Overo armamentos
roubados.

Sargento Matto Grosso não trazia uma bagagem familiar menos


bélica. Seu pai, o capitão Fausto Ismael Pereira e Souza, nascido em
Paraty, no Rio de Janeiro, era primo do tenente-coronel Joaquim Luiz
Pereira de Souza, pai do homem que, em 1926, se tornaria o 13o
presidente do Brasil, Washington Luís. Ambos papa-goiabas, como
eram chamadas as famílias nascidas ou estabelecidas na região de
Macaé, também no estado do Rio, pela quantidade de goiabeiras que
havia em seus campos, Fausto e Joaquim poderiam ser amigos não
fossem as discordâncias políticas que explicavam o diferencial “e”
adotado por Fausto no sobrenome. Ao se encontrarem, digladiavam em
torno de questões que iam da necessidade de ter ou não o asfalto
ligando o país de ponta a ponta às custas da destruição do verde até o
fato de louvar a abolição dos escravos de 1888, postura de Fausto, ou
revê-la para que os fazendeiros donos dos negros libertos recebessem
indenizações do Estado. Fausto partiu de Macaé para seguir carreira
também de político e advogado, mesmo na extremidade ideológica
oposta, até chegar a São Paulo batendo panelas antigovernistas. O
Partido Republicano Paulista, , dos oligarcas que mandavam no
Estado desde o fim do Império, já fraudava o voto popular escolhendo
com os mineiros o nome que ocuparia o poder nas eleições seguintes.
A sombra de Washington Luís perseguia Fausto e, por sorte, São
Paulo não era mais sua terra prometida quando o político chegou para
governá-la pelo , em 1920. Sete anos antes, em 1913, Fausto
embarcara para o sul do Mato Grosso pronto para assumir o cargo de
juiz suplente em Bela Vista e eleger-se vereador um ano depois. Foi
preciso bravura para continuar também atuando como advogado de
causas incorrigíveis provocadas por tiros e golpes de foice. O jornal O
Matto-Grosso, de janeiro de 1919, o desmoralizou ao noticiar o
homicídio triplo do fazendeiro Antônio Correia da Costa, seu filho e um
peão na vila vizinha de Porteira, cometido por um assassino que não
negava o crime, Agostinho Blev. Fausto seguiu para colher o
depoimento do acusado, ouvir testemunhas e abrir o inquérito. Segundo
a imprensa que cobriu o caso, o criminoso declarou que não tinha
receio do processo porque era rico e que Fausto, na verdade, era o seu
defensor. Blev assistiu aos depoimentos sentado ao lado do advogado e
das testemunhas com um brilhoso .44 na cintura.
Apesar de se estender até onde viria a ser a cidade de Dourados,
Bela Vista tinha menos de 9 mil habitantes e ali a luz elétrica só
substituiria os lampiões de gás 22 anos depois da chegada de Fausto
Pereira. Ele casou-se com Elisabeth em 18 de novembro de 1919 e,
como prova de força política da família, a cerimônia foi noticiada pelo
jornal O Matto-Grosso com chamada de primeira página. Uma
detalhada reportagem informava que “o escol bela-vistense” havia
comparecido ao “baile no palacete de residência do cel. Fausto”. Ainda
que soubesse ser alvo de inimigos poderosos capazes de eliminá-lo por
pendengas políticas e jurídicas, Fausto considerava Bela Vista o melhor
lugar para viver desde seus tempos de papa-goiaba. Assim, em
gratidão, decidiu colocar nos filhos que nascessem naquelas terras o
sobrenome Matto Grosso com os dois “tt” que a gramática permitia para
fins suntuosos. Sargento Matto Grosso, um de seus herdeiros, jovem
que devotaria a existência à vida militar por paixão e se casaria com
Beíta por impulso, seria um deles.

As balas continuaram perseguindo Beíta e duas delas só não a


atingiram porque se recusaram a sair do tambor de um revólver calibre
.44 empunhado às suas costas por um tio. Sua morte havia sido
encomendada por uma irmã de Tancha, uma tia preocupada com a
parte que a filha-neta de Simão poderia receber da herança do patriarca
dos Coelho, ainda dono das muitas posses que voltaram a seu poder
depois que as forças constitucionalistas foram derrotadas. Ao perceber
o afeto de Simão por Beíta, a tia disse ao marido que se ele não desse
fim à provável herdeira, ela mesma o faria.
O homem saiu de arma na cintura e a encontrou num armazém
fazendo compras com Matto Grosso. Sem tino de matador, esperou que
seu alvo virasse de costas e sacou a arma, mas as mãos tremiam e,
quando apertou o gatilho e o primeiro tiro não saiu, se desequilibrou
assustado e caiu sobre uma gôndola de garrafas. Ao se recompor, deu
outro disparo, mas a arma travou pela segunda vez. Matto Grosso se
abrigou com Beíta atrás de uma prateleira enquanto o tio fugiu em
direção ao Apa. Antes de chegar às margens para atravessá-lo e
descambar pelo Paraguai, tentou se esconder de um militar que,
desconfiando de seus gestos, mandou capturá-lo.
Marcada pela brutalidade, Beíta jurou a si mesma jamais intimidar-se.
Dias antes do casamento, por brincadeira ou por teste, Matto Grosso
deu um tapa em seu rosto e ela o surpreendeu, devolvendo o golpe
com força. “Era brincadeira, mulher. Sabia que em rosto de homem não
se bate?”, disse o marido, desconcertado. “E no de mulher se bate?”,
revidou ela, possessa. Era 1937 e Beíta, aos quinze anos, sentiu o
momento de evocar o ensinamento de Simão: “Se algum dia você me
encostar a mão de novo, eu juro que vai ser um homem morto”. O
militar não tocaria mais em Beíta, mas desviaria sua energia
intimidadora, um dia, para o filho que parecia o mais frágil.
2. Guerra de pai, guerra de filho

“Vai buscá-lo”, disse Beíta ao marido, vendo o filho sumir pela via
larga que começava em frente à vila militar e levava ao centro de
Campo Grande. A violenta briga com o pai no banheiro de casa, a
chutes e socos transbordando sentimentos guardados havia anos, fez
Ney partir sem se despedir. Grey assustou-se com a força da discórdia
que tinha provocado ao falar da água que o irmão desperdiçava
naquela manhã e se desesperou, ameaçando seguir seus passos.
Arrumou a mala, despediu-se de Beíta e já tomava seu rumo quando foi
advertido pelo pai. “Não volte nem se sentir fome.” Grey, que não era
Ney, voltou para o quarto. Enquanto desfazia a mala, o irmão chegava à
casa de tio Nilo, homem bom e de uma compaixão só menor do que
seu temor a Matto Grosso. Ney explicou a situação e pediu ajuda, mas
o pai fora rápido em ligar ordenando à família que não desse abrigo a
um fugitivo.
Com o não de Nilo, o destino seguinte foi o estabelecimento de
Pavão, amigo da família e dono de um bar modesto, que se
compadeceu da situação de Ney, comprou a briga e fez sua oferta. Em
troca de teto e comida, queria um funcionário sem medo de trabalho. Os
primeiros dias de Ney alforriado seriam vividos ali, servindo cachaça e
tira-gosto a peões e boiadeiros no balcão de seu Pavão em horário
comercial e descobrindo todas as posições possíveis para dois corpos
num sexo incontrolável com uma colega de trabalho, morena de olhos
puxados e cabelos de índia, no banheiro, no quintal ao lado da bodega
e onde quer que eles conseguissem juntar-se longe dos olhos de
Pavão.
Na revisão intempestiva que os dezessete anos lhe cobravam como
um pedágio para seguir em frente, Ney tinha no pai um professor às
avessas, o modelo de tudo o que não queria ser. Machista, intolerante e
homofóbico, Matto Grosso era um homem de comportamento ainda
sem problematizações em 1958 que Ney tentaria contrariar não para
ser melhor do que a figura que repudiava, mas para ser o seu oposto.
Ele entendia cada vez mais o que o escritor Nelson Rodrigues queria
dizer nas linhas da coluna que publicava no jornal Última Hora, do Rio
de Janeiro, sob o título “A vida como ela é…”. Ainda criança, havia
pegado gosto pela escrita de Nelson e pelas histórias que lia nos
tempos em que a família vivera em Moça Bonita, no subúrbio do Rio.
Era como se aqueles contos fossem colhidos dentro de sua casa,
rompendo a hipocrisia dos adultos e violando sua ingenuidade. “Eu não
vou fazer parte disso”, dizia a si mesmo.
As características que percebia no pai impediram que Ney visse o
outro lado de um homem que nunca chegou por inteiro aos filhos nem à
mulher. Um militar orgulhoso de suas funções e de bravura e dedicação
exaltadas por superiores que viveram em sua companhia histórias que
jamais foram compartilhadas em família. Um dia, Matto Grosso
embarcou para longe a fim de combater em uma guerra, alguma grande
guerra, e isso era tudo o que Ney saberia dizer por muitos anos.

A Alemanha de Hitler havia acabado de enviar 750 mil homens para


tomar a França, a Bélgica, os Países Baixos e Luxemburgo quando
Beíta saiu de Bela Vista e chegou a São Paulo sob uma garoa sem
trégua, desviando-se dos bondes para se juntar ao marido que não via
fazia meses, desde que ele fora admitido pela Polícia Especial da
capital. Instalados numa pensão na praça da Sé, um treme-treme
chefiado por uma portuguesa corpulenta e de poucas palavras chamada
Maria, eles abriam a janela e se deparavam com uma monumental
construção que, diziam os jornais, seria logo batizada de Catedral da
Sé. Entre a fé dos paulistas e a guerra no mundo, Beíta e Matto Grosso
se aninharam naquela primeira noite para resolverem as saudades e
conceberem um segundo filho homem que Beíta batizaria, apenas para
rimar com o mais velho, como Ney.
A vida militar enviaria Matto Grosso muitas vezes e para muitas
cidades sem levar em conta o tamanho de sua família. Depois da rápida
passagem por São Paulo, eles se mudaram para uma casa de frente
ampla em Bela Vista, com quatro quartos grandes, janelas e portas
altas de madeira escura e um quintal com grandes árvores ao fundo.
Ney chutou o ventre da mãe antes da hora. Era quase noite, 1o de
agosto de 1941, quando as contrações começaram. Beíta se deitou e
uma parteira foi chamada para trazer à luz um Ney prematuro, no oitavo
mês, pesando um quilo e meio e medindo cinquenta centímetros.
Mesmo sofrendo com uma apendicite que surgiu na semana do parto,
Beíta precisava amamentá-lo. “Ou isso ou o menino não vinga”, disse o
médico do Exército levado pelo marido. A mamada devia ser reforçada
com aveia fervida e leite condensado, um coquetel de fibras e glicose
que, em um ano, deixaria Ney pronto para a exigente dinâmica errante
dos Pereira.
A trajetória militar de Matto Grosso sofria ocorrências curiosas
devidamente anotadas em seus históricos. Aos 21 anos, ele montou
sem permissão no lombo do cavalo de um superior, como aponta um
prontuário de 2 de novembro de 1937, e seis anos depois, em 26 de
abril de 1943, abandonou o posto de trabalho sem justificativa, quando
já era cabo. Apesar das consequências — no primeiro caso, uma
repreensão verbal; no segundo, quatro dias de prisão no quartel —,
permanecia com o status de bom comportamento. Um documento do
Ministério da Guerra de janeiro de 1937, dos tempos de serviço em Bela
Vista, sugere um episódio de maior audácia. “Elogio o soldado 960,
Antonio Matto Grosso Pereira, que, mesmo sendo ferido, lutava com
bravura ao lado de seus superiores fazendo-se assim não só merecedor
de elogios, mas também da confiança e estima por parte de seus
superiores e camaradas”, escreveu o superior.
Militar com especialidade de escrevente, Matto Grosso tinha um perfil
de praça leal e destemido, mas sem maiores credenciais que o
preparassem para se desviar da pesada artilharia alemã. Depois de
tomar alguns rumos distintos sob ordens superiores, levantando
acampamento de cidade em cidade com um contingente doméstico
então composto de uma escudeira fiel e três meninos pequenos, o mais
velho deles, Gay, deixado em Bela Vista para ser criado pelos avós,
recebeu a missão que esperava fazia três anos. Seus dois pedidos
anteriores para combater na Segunda Guerra Mundial haviam sido
negados pelo comando até, enfim, chegar a carta com o carimbo de
deferido, o que o fez vibrar como se não tivesse uma família a perder.
Matto Grosso deixava instalados em Salvador uma esposa já
desiludida dos afetos de um marido e dois filhos pequenos que ainda
não conheciam os carinhos de um pai. Antes de serem deslocados para
a Bahia, eles viveram por uma breve temporada no Recife, o suficiente
para Matto Grosso conseguir se ajustar, às escondidas da mulher e do
comando das Forças Armadas, como dono de um bordel. A Beíta,
justificava suas saídas noturnas dizendo ter muitas patrulhas a fazer. A
pousada dos prazeres de Matto Grosso funcionava num endereço
alugado por ele mesmo e tinha como gerente, em sua ausência, uma
mulher que respondia pelo nome de Argentina.
A casa da luz vermelha começou a cair no dia em que o militar deu o
endereço de uma irmã para que Argentina se correspondesse
discretamente com ele, enviando cartas com informações sobre a
movimentação dos clientes. Pois a sogra dessa irmã, desavisada da
operação, reuniu correspondências fechadas mandadas por Argentina e
as levou a Beíta pensando ser ela a destinatária. “Acho que essas
cartas não são pra mim”, disse a mãe de Ney depois de ler algumas e
fechá-las novamente. A descoberta ameaçava causar um colapso
familiar até que, surpreendentemente refeita, Beíta decidiu manter a
família unida.
Matto Grosso seguiu para o Rio de Janeiro a fim de se juntar a outros
dez militares, dois tenentes e oito sargentos que formavam uma das
últimas turmas enviadas à Europa. Eles atravessariam os céus do
Atlântico torcendo para não serem abatidos, até desembarcarem em
Nápoles, no sul da Itália, onde as tropas norte-americanas que se
mantinham firmes no avanço através dos territórios ocupados pelas
forças do Eixo lhes dariam orientações. Primeiro, era necessário ficar
alguns dias aquartelado na base da Força Aérea Brasileira recebendo
treinamento e tomando as vacinas que o protocolo de guerra exigia. A
uma semana da partida, o comandante pediu para buscar os parentes
que quisessem se despedir dos praças na Base Aérea de Salvador, por
onde passariam antes de seguir para o teatro de operações. Beíta
chegou com Ney caminhando e Grey no colo. O marido se aproximou
deles em silêncio, pegou Grey nos braços e deixou que ele brincasse
com seu quepe até ouvir o chamado de embarque. Imediatamente se
recompôs, arrancou a cobertura das mãos do filho e disse adeus. No
momento em que o avião decolava, Grey ainda chorava de susto e Ney,
em silêncio, segurava a mão da mãe.
O sargento chegou a Nápoles para avançar no dia seguinte até Pisa
sabendo de um saldo preocupante mesmo para sua euforia juvenil. Até
aquele abril de 1945, haviam tombado em território italiano de um lado
60 mil aliados e, do outro, 50 mil alemães. Quando se contabilizavam
mortos, feridos e desaparecidos na temível condição de prisioneiros de
guerra, o número subia para 320 mil entre Aliados e 658 mil militares do
Eixo. Dentre os brasileiros, tinham caído 450 praças, treze oficiais e oito
pilotos. Se não emocionava ninguém, a função de escrevente trazia
uma blindagem natural contra os males provocados pelos fuzis
alemães. Além de efetuar pagamentos e datilografar escalas de
trabalho, Matto Grosso atuaria como apoio ao chamado “pessoal de
terra”, mecânicos, armeiros, intendentes e enfermeiros, e só se
aproximaria de um inimigo em pensamento, desejando que todos se
tornassem pó enquanto ajudava a colocar nos compartimentos das
aeronaves as bombas que seriam lançadas sobre eles.
A fumaça ainda subia dos escombros das casas destruídas em
Montese, a 467 quilômetros ao norte do ponto de desembarque de
Nápoles, quando Matto Grosso chegou à região para reforçar o 1o
Grupo de Aviação de Caça. Em quatro dias de combate, de 14 a 17 de
abril, forças brasileiras haviam experimentado os horrores do corpo a
corpo para o qual nunca foram treinadas. O bom desempenho das
tropas, no entanto, condecorava a atuação brasileira diante dos bem
preparados aliados norte-americanos e elevava o moral dos futuros
companheiros de Matto Grosso a ponto de inspirá-los a iniciar um
ataque quase insano cinco dias depois. A chuva de bombas
arremessadas pelo 1o Grupo de Aviação de Caça da cairia numa
manhã de nevoeiro denso, cortado a partir das oito e meia, em
intervalos de cinco minutos, por três esquadrilhas dispostas a sufocar o
inimigo bloqueando vias para impedir seu abastecimento.
Quase duas horas depois de pontes, balsas e veículos alemães irem
pelos ares em San Benedetto, outra frente de reconhecimento armado
brasileira explodiu mais de oitenta caminhões carregados de provisões
e munição. Os números apresentados no final do dia fizeram brilhar os
olhos do comando norte-americano pela precisão das missões. Apenas
naquele 22 de abril, 44 investidas individuais abateram mais de cem
alvos, definindo a retomada do território italiano. Até 4 de maio, o 1o
Grupo de Aviação de Caça faria 2550 missões individuais em 5465
horas de voo em combate. O serviço estava feito. Matto Grosso
desembarcava, praticamente, para abrir o champanhe.

A guerra particular de Beíta era travada a 8082 quilômetros dali, em


Salvador, com Ney e Grey pequenos, um marido que mandava poucas
notícias, e olhares cada vez mais descrentes sobrevoando seu
matrimônio. Um sargento fazia com que algum dinheiro enviado por
Matto Grosso chegasse a suas mãos, mas as finanças não eram o
problema. Depois de superar as infidelidades conjugais, Beíta descobria
agora, por meio do médico que a atendia na Base Aérea da cidade, que
nem ela nem os filhos seriam herdeiros caso Matto Grosso morresse
em combate. O testamento assinado pelo militar antes da partida, algo
comum em tempos de guerra, contemplava apenas duas irmãs do
marido. Beíta se indignou, mas respirou fundo, sem fazer barulho,
deixando o senso de justiça do sogro, Fausto, falar por seus
sentimentos. Diante das duas filhas contempladas, ele disse: “O Antonio
deixou vocês como herdeiras, mas ele tem filhos e tem a Beíta. São
eles que têm esse direito. Se ele morrer na guerra, entreguem a eles
tudo o que receberem”.
Matto Grosso estava longe dos perigos, respirando os ares da vitória
e colhendo a louvação de um povo que via nos brasileiros seus
libertadores. E havia os beijos e as carícias que as jovens italianas
distribuíam em troca de chocolates, como ele mesmo contaria à mulher.
Garboso no uniforme da , de óculos escuros e farda engomada,
desfilava charme, e até o emprestava quando solicitado, como fez para
um amigo, o mecânico de aviões e sargento Nilo Maciel Leite. Ao se
casar em território italiano, Nilo teve as bênçãos do padrinho Matto
Grosso, que aparece praticamente em posição de sentido numa foto na
cerimônia ao lado do casal. Quase três meses depois de sua chegada à
Itália, não havia mais razão para estar ali desde o dia 8 de maio,
quando a Europa ocupada celebrou a rendição alemã. O retorno foi
marcado para 18 de julho e o sargento Matto Grosso passou a articular
uma vida nova assim que pisasse em terras brasileiras sem saber que
um combatente mais desafiador do que as tropas alemãs o esperava de
mamadeira em riste. Com as primeiras palavras ditas com sotaque
baiano, o pequeno Ney aprendia a abater silenciosamente tudo o que
ameaçasse suas vontades.

Antes de sair da Itália, Matto Grosso mandou a Beíta as instruções


sobre um novo destino. Ela deveria pegar as crianças e a babá, deixar
Salvador de avião e partir para o Rio de Janeiro. Já havia um endereço
esperando-a em Marechal Hermes, um dos primeiros bairros operários
do Brasil, criado em 1913, no subúrbio norte. Com medo dos ares, Beíta
preferiu ir de navio, mesmo advertida do risco que seria entrar numa
embarcação na costa brasileira com o Japão ainda no páreo da guerra,
sendo ameaçado pelos Estados Unidos caso continuasse negando a
derrota. Até que a última bandeira branca fosse hasteada, ninguém
sabia de onde poderia vir o tiro nem o torpedo, e os mares brasileiros já
tinham sido cenário de conflito. Ajudada pela babá da família, Beíta se
alojou com Ney e Grey numa das cabines do navio e rezou para
sobreviver.
As luzes deveriam ficar apagadas para não atrair as bombas dos
submarinos inimigos e a velocidade reduzida faria a viagem levar ao
menos um dia a mais que o normal. No segundo, Beíta deixou as
crianças com a babá e decidiu respirar o ar puro do convés, saindo pela
primeira vez do compartimento. Sozinha, olhando o horizonte, atraiu a
atenção de um soldado, que se aproximou cheio de cordialidades. “A
essa altura, ainda vejo gente nova por aqui. Onde você embarcou,
moça?” Se era um cortejo, a ideia não foi boa: “Como assim? Se o
navio saiu de Salvador, ou eu embarquei lá ou eu caí do céu”. Não teve
clima e o rapaz se foi. Ney começou a enjoar no último dia, vomitando o
que comia e o que pensava em comer. “Pode deixar que eu trago um
almoço especial pra você”, disse um camareiro sensibilizado pela falta
de cor do menino, mas Ney já mostrava que as semelhanças com a
mãe iam além dos olhos felinos: “Não quero, sua comida é ruim”. O
militar trouxe um copo de leite.

Marechal Hermes era um alívio depois da viagem tensa e exaustiva.


Uma casa simples, mas de jardim amplo e com uma vizinhança
confiável habitada por praças e oficiais que Matto Grosso conheceu na
Itália. Não havia nada do glamour da Zona Sul mítica do sol, do mar e
do Copacabana Palace de que tanto falavam no Nordeste e soavam
pela Rádio Nacional, nem da euforia da Urca e seu majestoso cassino,
um Rio que estava bem distante dos Pereira. Os dias em Marechal
Hermes seriam poucos, mas o suficiente para deixar em Ney ao menos
uma lembrança dos tempos em que tudo parecia se alterar com o
retorno do pai. O fim da guerra poderia amansar a cigania do homem
disposto a morrer por suas causas, fechando seu ciclo desbravador.
Com o dever cumprido, apostava Beíta, sua alma estaria em paz. Uma
aposta errada.
Sargento Matto Grosso voltou o mesmo ou, aos olhos da mulher, um
pouco pior. Ela dizia que o marido tinha agora “traumas da guerra” e
que se alterava ao ouvir barulhos que lembrassem tiros. Com Ney, seu
comportamento passou a ser de intolerância. Certa tarde, ao retornar de
um compromisso, Beíta ouviu da rua o choro do menino. Por um motivo
que a família nunca soube, o pai expôs o filho de cinco anos sem
roupas no jardim em frente à casa como um castigo, deixando-o ali aos
prantos para ser visto por quem passasse. A ordem era só sair quando
fosse permitido. Ney chorava enquanto pegava punhados de terra no
chão e os esfregava sobre a região do pênis para tentar escondê-la, um
gesto contrário a tudo o que faria assim que começasse a subir nos
palcos.
Outra casa mais espaçosa apareceu a 12,5 quilômetros dali, em
Moça Bonita. O recanto verde descoberto pela família naquela segunda
metade da década de 1940, com Realengo de um lado e Bangu do
outro, sinalizava uma infância feliz. Os Pereira se instalaram na porção
mais urbanizada dos trilhos do trem que cortava o bairro fazendo
parada na recém-inaugurada Estação Ferroviária de Moça Bonita. Do
outro lado, uma pequena comunidade começava a ocupar a área antes
pantanosa de Vila Vintém e o samba se organizava para, em 1955,
ganhar uma quadra verde e branca batizada Grêmio Recreativo Escola
de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel. Mas isso só
quando o bairro mudasse de nome, deixando de ser Moça Bonita, a
senhorita voluptuosa que chamava a atenção dos cadetes da Escola
Militar do Realengo nos anos 1930, e se tornasse Padre Miguel, o
sacerdote espanhol progressista que criava colégios, catequizava nos
engenhos e exibia filmes em telões improvisados na comunidade. Ney,
com o despertar dos desejos sexuais e o pouco talento para freá-los,
logo estaria mais com as moças do que com os padres.
O Rio abria-se para uma infância desprendida, de crianças de pouca
roupa soltas pela vila de terra que subiam em mangueiras e jogavam
bola nos terrenos de antigas fazendas, sob os cuidados ora de Deus,
ora do diabo. O problema era saber onde o diabo poderia estar. “Dona
Beíta, posso levar seu filho para falar com o padre?”, perguntou
Lourdes, uma professora particular contratada para dar aulas a Ney
durante a temporada no Rio. Beíta e o marido se alinhavam com as
crenças da doutrina espírita, mas não viam mal na Igreja católica. “Vá
com ela, filho.”
Ney gostou da ideia de ingressar na turma para fazer a primeira
comunhão, mas algo o havia intrigado na conversa inicial com o
sacerdote. Depois de reparar que o garoto o olhava com alguma
admiração, o padre advertiu: “Esta criança é muito perigosa”. No
caminho de volta, Lourdes lançou broncas contra um menino que não
conseguia entender o mal que tinha feito. Passado algum tempo, na
preparação para a primeira comunhão, Ney foi ao confessionário
purificar-se do que poderia carregar de pecado naquele corpo tão
pequeno e ouviu o padre perguntar: “Você já fez saliência com
meninas?”. “Não”, disse ele, entendendo por saliência a coisa proibida
dos adultos. “E com os meninos?” Meninos? Na volta para casa, Ney
não conseguia parar de pensar como seria, afinal, fazer saliências com
meninos.

A família Pereira conhecia as duas formas de chegar ao inferno:


homens com homens numa guerra na Itália e meninos com meninos em
Moça Bonita. Se fazia pouca ideia do que seria salientar-se com
garotas, Ney não havia pensado na possibilidade de alguma troca de
carícias entre pessoas do mesmo sexo até o dia em que um padre fez
soar algo que lhe pareceu religiosamente condenável e irresistivelmente
proibido. Ainda era cedo, Ney tinha cinco anos, e suas percepções
corporais só iriam começar mais tarde, mas alguns sinais já existiam.
Ao ir buscar uma rosca portuguesa chamada cavaca no armazém onde
trabalhava o irmão da professora Lourdes, o rapaz abriu o bolso da
calça dizendo que bastava colocar a mão ali e pegá-la, deixando o
pênis para ser apalpado. Ney não entendeu. Outra vez, mais atento,
enquanto andava por um caminho na mata, se deparou com um casal
transando de pé. “Sai daqui, seu moleque”, disse o rapaz. Ele voltou no
dia seguinte, mais curioso, e os reencontrou na mesma posição. “O que
você quer, menino?”, disse o jovem. E Ney respondeu: “Eu quero
aprender”. Diferentemente do que pensava o padre, as primeiras
saliências da “criança perigosa” não se dariam com homens nem com
mulheres, mas com ele mesmo, logo que o irmão lhe ensinasse a magia
do “flutuar ao toque das próprias mãos”.

Ao mesmo tempo que vivia suas prematuras descobertas sexuais,


Ney era absorvido pela presença assustadora da morte. A perda de
Cinara, sua irmã mais nova, o devastou e o lançou numa obsessão para
descobrir o que haveria depois da vida. A sensação de não poder ter de
volta a primeira criatura a quem amou extinguiu também a esperança
de construir um mundo melhor e mais delicado. A pequena Cinara tinha
sido adotada por Beíta. Sua mãe biológica era a senhora que ajudava a
família nos afazeres de casa e que entregou a filha recém-nascida a
Beíta para que esta, em melhores condições financeiras, cuidasse de
sua saúde. A criança chegou bastante fragilizada e com a alma
protegida por uma vela acesa no dia de sua partida. Nada a curava do
crupe nem de todas as complicações respiratórias de uma doença que
matava muito naqueles anos 1950. Ney contribuía para alimentá-la nas
horas certas.
Mas Cinara acabou sendo levada pelos males de outra enfermidade,
a difteria, que encerrava um ciclo letal pelo mundo, iniciado na década
de 1920, tendo matado por insuficiência respiratória, cardíaca ou renal
50% das pessoas que a contraíram. Quando sua saúde melhorou e a
família contou que ela sairia do hospital e iria direto para a casa de
Beíta, Cinara teve uma piora súbita e morreu. Ney fechou-se em seu
mundo e começou a dormir e a andar com um dos sapatos da irmã no
bolso. Dias depois do enterro, ele foi visto no cemitério do Murundu
beirando a sepultura de Cinara. Um dos funcionários desconfiou e
mandou avisar Beíta de que seu filho agia como se quisesse abrir uma
das covas. A família, preocupada, sumiu com o sapato da menina.
A morte se tornou fixação para o menino, que passou a ver
cadáveres com olhos de legista. Ao saber de um falecimento na
vizinhança, corria para o cemitério. “Alguém viu Ney?”, perguntou Beíta
numa manhã de sábado. “Ele disse que ia ver o enterro de um moço lá
em Realengo”, respondeu uma vizinha. Uma amiga de Beíta que
visitava o túmulo de um filho com frequência, percebeu a predileção
dele por epitáfios e pôs-se a levá-lo toda semana ao cemitério. Os
passeios duraram até o dia em que Ney entrou numa das salas de
velório, viu um caixão lacrado e se dirigiu a um funcionário da
administração: “O senhor pode abrir pra eu ver o morto?”.
Mesmo antes de perder Cinara, Ney já tinha um forte interesse por
corpos e coisas que a terra havia de comer. Sua mãe se lembra do
encantamento do filho pelas batidas do próprio coração e do temor ao
saber que um dia ele poderia parar de funcionar. A fixação por mortos
tomaria alguns anos de sua infância, até ser curada por dois remédios
naturais. Uma manga azeda apanhada numa árvore do Murundu o fez
refletir depois de cuspir a primeira mordida. O gosto de fruta ruim só
poderia ser dos corpos em decomposição que, cumprindo o ciclo da
natureza, se diluíam pela terra, nutriam a mangueira e terminavam em
sua boca. Dias mais tarde, a ideia de que a feição serena dos mortos
era prova da existência do paraíso seria desfeita quando, durante um
enterro, um caixão foi aberto para mostrar a ele a imagem do inferno. O
rosto de um homem sangrando pelos poros dizia a Ney que, ao
contrário do que os padres pregavam, não havia descanso para as
almas.
O deserto deixado pela irmã começou a ser preenchido na tarde em
que o pai entrou em casa dizendo que ele e Beíta iriam buscar uma
encomenda entregue pela cegonha no endereço errado. A mesma
mulher que tinha oferecido a filha aos patrões se tornou mãe de menina
pela segunda vez e, de novo, pedia a eles que a ajudassem. Assim que
retornaram com a nova irmã de Ney no colo, Beíta e Matto Grosso
disseram seu nome: Cinara. Uma segunda Cinara, saudável e
sorridente, que por anos não saberia a verdade sobre sua história.

Cada vez mais livre dos fantasmas, Ney passou a ouvir música. Ela
chegava pelas ondas da Rádio Nacional, que um dia visitou de mãos
dadas com a mãe para ver Elvira Pagã cantando escandalosamente
seminua no auge de sua voz e no esplendor de sua indisciplina. Vestida
com tiras de pele de onça, a imagem da cantora se fixava nas
memórias mais profundas do menino, assim como os mais comportados
discos em 78 rotações de Francisco Alves e Sílvio Caldas que o pai
ouvia na sala.
Ney criava plateias fictícias. Ele abria a janela que dava para uma
goiabeira e cantava o que conseguia, imaginando ser o batente de
madeira o seu palco e a árvore, o público. Uma plateia calorosa que
cantava junto e o aplaudia de pé, como faziam com Elvira Pagã na
Rádio Nacional. Assim que teve a primeira chance de transportar a
cena para a realidade, inscreveu-se num concurso de cantores mirins
realizado num parque de diversões e seguiu vencendo, de etapa em
etapa, com a música “Jezebel”, de melodia tortuosa e vibratos que
criança em geral não cantava. Tudo certo até o dia em que cometeu
outro pecado que desconhecia, o da dança. Enquanto esperava sua vez
de se apresentar, começou a dançar contagiado pela música defendida
por um oponente. Ao vê-lo ao lado do palco, o apresentador ficou
furioso e partiu em sua direção dando broncas como se o condenasse
por um crime. Ney foi embora sem cantar e nunca mais voltou, mas fez
do ato de estar no palco uma questão de honra. Se Elvira Pagã existia,
ele também poderia existir. E se aquele palco era proibido, ele
encontraria o seu.
Insinuante demais na avaliação de um padre e pouco másculo para
os sonhos de um pai, Ney levou tempo até entender o que tornava sua
existência tão ameaçadora. Todas as questões proibidas pareciam
ligadas ao sexo e algo dizia que o seu sexo, por alguma razão, era mais
proibido que o sexo dos outros. Aos onze anos, ele se trancou no
banheiro decidido a libertar-se praticando sua primeira transgressão
ensinada pelo irmão. Desceu a mão à zona dos conflitos e acariciou-a
até ser dominado pelas vontades. Sentiu os batimentos acelerarem, as
pernas enfraqueceram e, nos segundos finais, um prenúncio levar para
o pau toda a energia que havia em seu corpo e expulsá-la com um jorro
que o assustou. Sua sensação foi a de morrer e voltar a viver instantes
depois, algo tão poderoso que ele passou a repetir todos os dias, por
mais de um ano, fechado no mesmo banheiro.
A temporada no Rio terminou quando seu pai decidiu voltar para o sul
do Mato Grosso e seguir para a Base Aérea de Campo Grande de peito
condecorado pelas medalhas da Campanha da Itália. Ney havia feito
bons amigos estudando numa escola de Realengo até, mais uma vez,
receber ordens de arrumar as malas para partir com a mãe, o pai, dois
irmãos e, agora, duas irmãs. Depois da segunda Cinara, a pequena
Naira assumia a posição de caçula, e dava a Ney uma base doméstica
feminina que equilibrava as forças dentro de casa e permitia que o
irmão, mesmo sentindo não pertencer a lugar algum, fosse um pouco
mais ele mesmo.
3. Amor, sexo e suicídio

Seres humanos já não pareciam mais uma alternativa à solidão


quando a família chegou à pequena casa de número 28 da rua Capitão
Silas Cerqueira Leite, uma das residências padronizadas para receber
praças e oficiais que entravam para as fileiras da Base Aérea de Campo
Grande. Peregrinar com a família pelo país sem tempo de criar raízes
ensinava quão inúteis eram os esforços de deixar o conforto dos seus
pensamentos para tentar construir pontes que o conduzissem a novos
amigos. Por melhores que fossem, seriam todos apagados assim que o
pai decidisse, mais uma vez, buscar o futuro em outro quartel. A casa
da Base Aérea, no entanto, trazia uma sensação diferente. Instalada na
última rua da vila, servia de fronteira entre a vida e o sonho. Dois
passos à direita e lá estava o campo vasto a ser explorado em cada
árvore. Os problemas começavam nos passos à esquerda, sempre
levando a algum lugar onde Ney não gostaria de estar.
A escola era um deles. Sem ter os desejos profissionais de seus
amigos, que muitas vezes seguiam os desejos dos pais, Ney não se
deslumbrava com nada que havia entre os muros de um colégio com
alunos uniformizados, alinhados e disciplinados diante de um superior,
uma dinâmica que conhecia bem do ambiente militar. Ele estava ali por
obrigação, uma condição que com o tempo só iria piorar. O primeiro
colégio foi o particular Oswaldo Cruz, que aceitou o garoto no início de
1956. Suas notas finais poderiam ser interpretadas como reflexo de um
ano de adaptação: português, 6,43; latim, 4,92; francês, 5,01;
matemática, 4,60; história geral, 7,62; trabalhos manuais, 7,39;
desenho, 6,02; e, o mais curioso, a aula de coral chamada no boletim
de canto orfeônico: 5,94. Uma média global anual de 6,10, apenas o
suficiente para ir adiante. Mas a performance mediana persistiu em
1957, piorando em português (5,31), latim (4,10), geografia (4,38) e
canto orfeônico (5,16), e melhorando em matemática (5,36), trabalhos
manuais (8,12) e desenho (8,26). A nota final raspava o fracasso, 5,96,
e alertava que algo poderia estar errado.
O Colégio Estadual Campograndense havia sido inaugurado em 1954
como uma vedete do ensino público do estado, já que, além de oferecer
um ensino forte, tratava-se do único projeto do arquiteto Oscar
Niemeyer na região: sua fachada lembrava um livro aberto, uma torre
branca remetia a um lápis e um corredor interno se inspirava numa
régua. Por razões financeiras e de alinhamento pedagógico com uma
instituição que parecia pôr desajustados nos trilhos, o sargento Matto
Grosso escreveu uma carta para pedir à direção que aceitasse seu filho
na terceira série ginasial fazendo duas promessas nas quais
transparecia sua rigidez militar: “Declaramos: 1) Aceitar as
responsabilidades, direitos e deveres contidos em seu regulamento e
regimento interno. 2) Colaborar com tudo o que for necessário para o
seu desenvolvimento intelectual, moral e cívico”.
Mas os boletins logo espelhariam a tensão entre Ney e o mesmo pai
que havia jurado colaborar com o que fosse necessário para que o filho
entrasse na linha. As piores notas de sua trajetória escolar foram
registradas nessa época. Português, 4,3; latim, 2,8; francês, 4,7; inglês,
2,1; matemática, 1,1; ciências naturais, 5,1; história geral, 5,4;
geografia, 5,2; desenho, 2,8; e canto orfeônico, 4,0. Mesmo faltando
poucas vezes e seguindo o rito das recuperações em cada matéria, o
jovem estava em transformação e a escola, definitivamente, não era
uma prioridade. “Reprovado”, dizia o carimbo azul no canto direito do
boletim, ao lado da média global: 3,75. Um acidente moral e cívico aos
olhos do pai quando comparado com o desempenho de colegas de sala
promissores como José Garibaldi da Rosa Neto, que um dia assumiria o
posto de prefeito de Bela Vista. A reprovação não era só nos boletins.
“Por que você vai deixar o exercício em branco?”, quis saber uma
professora, percebendo o aluno distante. E ele disse: “Eu só estou aqui
porque meu pai obriga”.

As tardes no quintal passaram a ser solitárias por escolha, depois de


uma única vez em que Ney levou amigos floresta adentro e percebeu
quão desinteressante lhes pareceu seu refúgio particular. Por mais que
matas, pássaros e lagos fossem comuns num lugar chamado Campo
Grande, aquele era especial por permitir que ficasse em silêncio, longe
das ordens do pai e dos riscos de ser repreendido nas ruas do Mato
Grosso, como acontecia quando andava com pouca roupa e toda a
liberdade que aprendera ter em Moça Bonita.
Certo dia, Ney caminhava pela mata quando um jovem vestido em
trapos surgiu na sua frente. O rapaz tinha por volta de dezenove anos e,
pelo que se via entre as folhagens, estava tenso e agia como um
foragido. Os cabelos sujos e a roupa surrada compunham, em sua
imaginação, a figura de um bandido que escapara de um presídio
próximo por uma passagem secreta. Ao tempo que Ney delirava, o
rapaz o desejava, descendo e subindo os olhos maliciosamente por seu
corpo. Separados por uma curta distância, Ney também passou a
desejá-lo e a sentir uma vontade de entrega tão incontrolável que só
poderia ter a ver com as saliências proibidas pelo padre. Eles andaram
em silêncio e em linhas paralelas pela mata enquanto se admiravam,
até o fugitivo desaparecer sem dizer nada.
Mais do que paixão, aquilo era sensação. Algo que ia contra tudo o
que ensinavam a Igreja, a escola, a família e as ruas. Quem fazia seu
mundo parar pela primeira vez era outro homem. A informação não o
assustava nem delimitava um novo território de ação sexual. Ao
contrário, o expandia. Ney não tentou frear seus desejos nem descartar
possibilidades de desbravá-los independentemente do gênero de quem
os despertasse. Tanto que, dias depois do encontro na mata, ele seguiu
para os braços das profissionais do sexo da casa de prostituição
Rendez-Vous, nas ruas do baixo meretrício de Campo Grande. Quando
Gay o chamou para irem secretamente conhecer os poderes das
meninas do lugar, ele não hesitou em entregar sua virgindade a uma
delas.
Ao chegar ao prostíbulo, Gay procurou primeiro pela experiência de
uma senhora que a clientela conhecia como Maria das Vacas, uma
vizinha da Base Militar que ordenhava gado por prazer e homens por
profissão. Como ela não estava, o irmão mais velho acabou pedindo
que uma garota assumisse a missão e desse cabo da virgindade do
jovem cliente com todas as carícias extras no quarto mais confortável.
Ao fechar a porta, a moça escolhida pela gerente da casa iniciou os
ritos preliminares até sentir o melhor momento de tirar a roupa. Mas
havia sangue de menstruação em suas partes íntimas e Ney se
assustou quando o viu, arrependendo-se de estar ali pelo sangue, pela
tensão e pela dureza de um ato que imaginara ser tão mais prazeroso.
Ele se vestiu, agradeceu a moça pelas boas intenções e chamou o
irmão. “Nunca mais me traga aqui”, disse, enquanto voltavam para
casa.
Passados alguns dias, Ney percebeu que o prazer poderia ser jogado
sem as regras previsíveis e mercantilistas dos bordéis. Ele, o sexo,
aparecia agora com gosto de perigo nas coxas sinuosas de uma prima
de segundo grau quatro anos mais velha que se insinuava nas costas e
à frente dos adultos quando os dois brincavam pela fazenda do avô
Tancha, não muito distante da Vila Militar. Como ninguém imaginava
que Ney já vinha se iniciando nos prazeres da carne, não havia perigo
de despertar a desconfiança dos mais velhos. Com tufos de barba
desfiados na altura da bochecha, Tancha era severo com as crianças e
tinha uma expressão assustadoramente felina, mas sua presença
marcava Ney por outra razão. Ele foi o primeiro homem que empunhou
um violão na sua frente para cantar guarânias e polcas fronteiriças em
guarani, português e espanhol. Era também um namorador convicto.
Aos setenta anos, saía para encontrar as amantes depois de ser
arrumado pela própria mulher e receber dela, quando já estava
montado no cavalo, um buquê de flores colhidas no quintal de casa.
“Leve, ela vai gostar”, dizia-lhe a esposa. Ney via a cena maravilhado
com a avó e sua fé no destino. Ela o amava se recusando a tratá-lo
como posse.
A fazenda abria-se como um segundo paraíso depois de seu quintal,
com um verde abundante, árvores enormes, cachorros, cavalos,
boiadas e homens livres de egos e de fardas que percebiam em Ney
algo diferente desde o dia em que o garoto sumiu no lombo de um
cavalo. A pedido de um tio, Ney saiu pela mata sobre o petiço branco, o
potro que ganhara do avô, para levar almoço aos roceiros em farnéis.
No caminho, o animal, conduzido por um montador sem talento para
ordens, conquistou autoridade e sentiu-se senhor do próprio destino.
Após mais de duas horas, os homens, famintos, encontraram Ney sobre
o animal com todas as marmitas frias num gramado, esperando o
cavalo terminar sua refeição.
A prima estabeleceu com Ney uma rotina insuspeita para as transas
secretas. Protegidos pela ingenuidade da família, que não via maldade
no garoto calado demais para a lascívia, os dois deitavam-se na mesma
cama, cobrindo-se com mantas mesmo em noites de calor para
cobrirem-se de corpos logo depois, assim que as luzes se apagassem e
os adultos fossem dormir. Ney ia para o quarto primeiro e fingia pegar
no sono até a moça chegar, sempre bem-disposta. Seu sangue agora
fervia antes mesmo que ela viesse lhe ensinar posições de prazer a
cada noite, retirando-o da infância e conduzindo-o de muitas formas ao
mundo dos homens.
Depois de pensar em abrir-se para meninos e meninas, Ney sentiu
segurança ao se entender com a prima e passou a sufocar as vontades
que poderia sentir por alguém do mesmo sexo. O que havia acabado de
acontecer só deveria ser consumado entre homens e mulheres e Ney,
ao menos por um tempo, se pôs a pedir a Deus de joelhos que o
matasse se houvesse alguma probabilidade de ele se tornar o que as
pessoas nas ruas de Campo Grande chamavam de “viado”. O pavor do
que poderia ser seu próprio destino veio depois que ele se estarreceu
com uma cena vista na cidade. Um jovem de trejeitos afeminados
seguia de cabeça baixa e a passos acelerados pela rua em direção ao
trabalho num hotel vizinho à casa de uma tia de Ney enquanto os
garotos lhe atiravam pedras e gritavam os piores nomes. “Meu Deus,
não deixe acontecer isso comigo”, pedia Ney, nos raros casos em que
rezava por algo. “Prefiro morrer.”
Havia tensão na casa dos Pereira. Matto Grosso andava
inconformado com as recusas do Estado-Maior em reconhecer seus
direitos de promoção, de sargento para segundo-tenente e, de imediato,
para primeiro-tenente. A possibilidade tinha amparo numa atualização
regimental de 1957 que estendia aos subtenentes e sargentos que
haviam participado da Segunda Guerra o benefício de sair da condição
de praças e se tornarem oficiais. No entanto, os pedidos às instâncias
superiores batiam e voltavam com negativas e alegações de que Matto
Grosso, mesmo tendo sido agraciado com duas medalhas pela
Campanha da Itália, não tinha no currículo os cursos exigidos para a
elevação de cargo. Superiores tentavam ajudá-lo, escrevendo cartas
que valorizavam seu espírito militar, mas a luta para ir para a reserva
com um salário melhor não vingava. O ano de 1958 ficaria um pouco
pior assim que o filho chegasse da escola com o carimbo de
“reprovado”.
Se a infância no Rio havia sido de descobertas, a adolescência em
Campo Grande se mostrava sufocante. As regras da escola e do pai já
não cabiam num rapaz de dezessete anos em confronto cada vez mais
direto com Matto Grosso, um homem frustrado com aquilo em que o
filho começava a se transformar, um jovem sem rumo e de
masculinidade suspeita, e com aquilo que ele não conseguia ser, um
herói de guerra reconhecido pelo Estado.

Ney começou a arquitetar um plano de fuga mais consistente logo


que saiu de casa na manhã em que a água da bomba transbordou,
rompendo o último fio que ligava pai e filho. Depois de poucos dias
trabalhando no bar de seu Pavão, ele cruzou com Matto Grosso na
calçada de uma avenida e passou pelo pai como se este fosse um
desconhecido. O sargento, sentindo-se estranho ao próprio filho,
acusou o golpe e, passados alguns dias, fez chegar a Ney a notícia de
que Beíta estava doente e que o pior poderia acontecer se ele não
retornasse. O pai blefou ao perceber seu distanciamento e ao ouvir o
ultimato da mulher ressoar forte. “Se ele não voltar, faço picadinho de
você.” Ney voltou, mas por pouco tempo.
A decisão estava tomada e seria surpreendente para quem vivia aos
mandos e desmandos do pensamento militar desde a infância. A
primeira fuga de um castigo paterno, meses antes, poderia ter acabado
em tragédia se Grey não tivesse se adiantado e corrido para avisá-lo:
“Volta, o pai está vindo com o revólver atrás de você”. Agora, era
irreversível. Ele decidia se alistar na Aeronáutica, algo inimaginável
para um garoto arredio à rigidez coletiva e cujo comportamento não se
categorizava em gêneros. Ao escolher servir à pátria, no entanto, fazia
com que a pátria servisse como um primeiro passo que daria em
direção à liberdade. A mãe não morreria de desgosto, o pai, quem sabe,
poderia apoiá-lo, e as regras militares, a parte desagradável do plano,
só precisariam ser acatadas por, no máximo, dois anos. Assim que
desse baixa e se livrasse dos coturnos, teria conhecimento e idade para
tocar a vida de forma independente, seja lá o que isso poderia significar.
As andanças do pai haviam ensinado o quão longe era possível
chegar nas asas de um avião da , e esse detalhe era fundamental. A
vida, definitivamente, não estava mais dentro das cercanias do Mato
Grosso. Logo depois de se alistar, Ney contou com o auxílio de um ex-
comandante de Campo Grande que tinha sido deslocado para a Polícia
da Aeronáutica do Galeão, no Rio de Janeiro, e pediu transferência sem
avisar o pai. Dona Beíta foi buscar ajuda para o filho com outro militar,
que conseguiu colocar o garoto num voo da com destino direto ao
Galeão. O sargento descobriu a operação só quando a mala estava
pronta. “Que história é essa de passagem para o Rio?”, perguntou a
Beíta. “Não interessa. Ele vai servir na Aeronáutica”, disse. O pai foi ao
filho, num diálogo não menos objetivo: “Você não vai embora”. “Eu vou.”
“Então, saiba que eu nunca vou ajudá-lo com nada.” “Não se preocupe,
eu não vou precisar.”
E Ney partiu para o Rio sabendo que pegava um voo sem volta. A
Base Aérea do Galeão fazia da vila militar de Campo Grande um canto
em miniatura, trocando o charme das casinhas brancas dispostas em
cinco ou seis ruas estreitas de pedra por grandes espaços abertos em
tapetes de asfalto quente para as tropas se enfileirarem em exercícios
físicos e ordem-unida. O horizonte, antes verde, tinha agora o azul do
Atlântico que batia na cabeceira da pista, trazendo aos alojamentos um
vento de sal que Ney sentia como se fosse o gosto da liberdade. Era
um pouco cedo para estar ali, alguns meses antes da chegada da nova
turma, mas o seu contato, o ex-comandante de Campo Grande, agiu
para deixá-lo aguardar o tempo de incorporação no próprio quartel, à
paisana, montando e desmontando armas e participando dos exercícios
com os veteranos. Casa e comida em troca da devoção a um discurso
que parecia tão distante, jurado numa cerimônia realizada aos pés da
bandeira do Brasil e ao lado de uma centena de homens no dia 2 de
fevereiro de 1960.

Ney de Souza Pereira, soldado Pereira, número 596004, era


incorporado à turma de recrutas do 1o Esquadrão do 2o Grupo de
Transporte da Aeronáutica sob um lema altivo escrito no teto do
batalhão: “Orgulho ao entrar, amor ao servir e saudade ao sair”.
Nenhum dos três sentimentos seria experimentado nem durante os
quase dois anos de caserna nem depois, e a única sensação que o
dominou assim que chegou, olhou para os lados e viu tantos homens
dividindo o mesmo espaço foi o pavor. Ney tinha problemas com o
corpo desde que as transformações da adolescência o fizeram um
estranho a si mesmo. Ele não gostava das suas mãos, tinha horror aos
pés e jamais tirava a camisa em público. O banho coletivo em chuveiros
sem separação e lado a lado com outros garotos seria incontornável, e
o primeiro deles, um terror. Os rapazes que estavam ali havia um ano,
os temíveis veteranos, se aglomeravam para fazer o batismo dos
recrutas zombando do tamanho do pênis, das nádegas e gritando por
“carne nova no pedaço”. Só aos poucos, ao perceber que ninguém se
preocupava com suas formas mais do que ele mesmo, Ney foi
superando o constrangimento.
A vida regrada da Aeronáutica começava bem cedo, com exercícios
físicos que incluíam aulas de jiu-jítsu e um mergulho no mar antes do
almoço para que cada um assumisse seu posto e nada fugisse ao
controle, o que, evidentemente, se mostrava impossível. Ney, como
todo recruta sem especialidades, puxava horas a fio como sentinela
portando uma pistola Colt .45 que aprendeu a desmontar, limpar,
montar e manusear em sessões de tiro e pavor. Numa delas, recebeu
uma arma abastecida com munição de festim preparada ardilosamente
pelos veteranos para ser acionada ao mínimo toque. Quando o tiro saiu
acidentalmente e o estampido ressoou, os soldados simularam a morte
de um amigo e gritaram: “Assassino!”. Ney entrou em pânico e assim
ficou até ver os colegas gargalhando.
Com menos testemunhas e sem oficiais por perto, soldado Pereira
estava de serviço com um amigo numa guarita de madeira quando
resolveu acabar com os pernilongos que os jantavam mesmo por cima
da farda. Juntos, decidiram espantá-los pondo fogo no capinzal seco
que havia em frente. Assim que as chamas subiram, eles voltaram ao
posto e fecharam a porta sem lembrar que, como capim e mosquito,
madeira também pegava fogo. As labaredas já consumiam a cabine
quando os dois saíram correndo para não serem incinerados.
Ney se deu pior no dia em que tentou ser mais esperto que a tropa
lançando mão do golpe do cinturão. Os soldados de serviço,
identificados por um cinto especial e um bracelete branco da , tinham
prioridade na hora de se servirem no rancho, o refeitório dos militares.
Mesmo não estando de serviço, Ney entrou em formação usando os
ornamentos a fim de enganar o oficial de dia e ser dispensado para
almoçar antes da turma. Mas o comandante da tropa desconfiou da
trama, lavrou a farsa, mandou o recruta sair de forma e anotou: “O
soldado Ney de Souza Pereira, do 1o/2o , fica preso por quatro dias
por ter tentado ludibriar o oficial de dia durante a formatura do rancho
(nos 70 e 82 do artigo 10)”.
Protegendo-se até ali sob uma discrição quase inabalável que os
veteranos chamam de “moita”, Ney virou notícia. Foram quatro dias
numa das celas da temível E-017, a ala que abrigava os criminosos
militares presos pela , a mesma que nos anos de ditadura serviria
para encarcerar presos políticos apreendidos pelo regime e, na década
de 2000, para enjaular militares da reserva que se tornariam criminosos
milicianos. Um quarto com pouca luz, um buraco no chão para as
necessidades e uma cama, sem direito a visitas. Quatro dias
intermináveis que só não foram piores porque os homens que
guardavam as celas não tinham nada contra o detento. Um mês e meio
depois de ser posto em liberdade, em 12 de setembro de 1960, Ney
pegou trinta dias de férias relativas ao ano de 1959 e fez com elas tudo
o que poderia fazer naquela época em que não contava com nenhuma
ajuda financeira: ficou no quartel.
A turma que convivia diretamente com Ney dividindo o mesmo
alojamento era formada por muitos soldados. Quarenta homens
dormindo, comendo e tomando banho juntos por dois anos. A virilidade
era algo que parecia ter de ser confirmado sempre com discursos que o
confundiam. “Vamos sair para comer uns viados, quem vai?”, diziam.
“Mas quem come viado é o quê?”, pensava Ney. Aos poucos, entre
toques e olhares, o alojamento se tornava um balão de testosterona. Ao
acordar certa noite sentindo que uma mão acariciava seu corpo, Ney só
teve tempo de ver um vulto sair pela porta. As bolinações passaram a
ser tantas que o comando ordenou aos soldados que isolassem a área
dos novatos com uma barreira de armários de ferro para proteger a
turma dos abusos e determinou que um recruta ficasse de sentinela por
toda a madrugada.
Ney dirigiu-se ao Hospital da Aeronáutica por três vezes, como
mostram os registros oficiais guardados nos arquivos das Forças
Armadas. Entre 18 e 21 de março, teve uma inflamação na garganta.
Medicado, mas não curado, retornou para se submeter a uma cirurgia
para a retirada das amígdalas no dia 25 de abril, uma experiência que
deixou lembranças de dor. Após a operação, passou a noite sangrando
sem perceber. Ao se levantar e olhar no espelho pela manhã,
desmaiou, e ganhou um prazo maior para se recuperar. Em 12 de julho,
voltou ao serviço de saúde com uma unha do pé encravada que já fazia
aparecer indícios de infecção. Depois de aplicar uma anestesia local, os
enfermeiros a retiraram.
As notícias chegavam à família pelos contatos com os oficiais do
Galeão. Quando fazia um ano que Ney entrara na Aeronáutica, seu pai
resolveu ir ao Rio para falar com os responsáveis. O filho, sem a
virilidade dos militares, deveria estar em apuros. Sargento Matto Grosso
adentrou o batalhão, sentou-se na sala do comando e ouviu algo que
levaria dias para digerir: “Sargento, em poucas palavras, se eu tivesse
cem homens como o seu menino, meu batalhão seria perfeito. Ele
nunca chega para pedir dispensa, nunca atrasa. É um escravo do
horário”. Ao voltar para casa e contar a conversa a Beíta, foi dormir
depois de ouvi-la dizer: “Pois é, hoje você quebrou a cara”.
Mas o comando não sabia de tudo. Foi no quartel que Ney conheceu
a maconha, no dia em que um soldado se aproximou com a erva pronta
para resolver uma questão alimentar. “Dizem que isso aqui é bom pra
dar fome.” E ter fome ajudava a encarar o que era servido na bandeja
pelos rapazes do rancho, à revelia de preferências e apetites, em
porções sarcasticamente generosas demais. A saída do refeitório era
vigiada por um sargento nomeado como fiscal de sobras e resíduos e
por quem os soldados deveriam passar com o prato raspado e os
bolsos vazios, sem peles ou gorduras escondidas nas calças. Ney não
precisava fumar para comer, mas fumou, esquecendo-se de que, depois
do almoço, deveria comparecer a uma junta do Ministério da
Aeronáutica para retirar sua identidade militar. Fardado, tomou um
ônibus no Galeão em direção ao Centro e no caminho sentiu bater algo
estranho que o fez flutuar, amolecendo os músculos e derretendo os
pensamentos.
As vozes de duas mulheres que conversavam no banco de trás, de
repente, tomaram uma proporção enorme, como se fossem tampas de
panela sendo batidas atrás de sua cabeça. Quando ele chegou ao
prédio, passou pelos militares da entrada sem saber onde estava. Sabia
que deveria falar com alguém sobre algo, talvez um documento, mas
não lembrava se já havia falado ou não. E qual documento? A confusão
mental o deixou perdido entre oficiais de muitas estrelas no pior lugar
para um soldado surgir sob os efeitos da Cannabis. Se descoberto,
pagaria pelo ato com a expulsão sumária, realizada na época com um
ritual humilhante, em geral diante da tropa. Ney andava de olhos
vermelhos pelas repartições até que um amigo percebeu e o tirou do
prédio. “O que você faz aqui?”, perguntou. “Não sei. Eu fumei muita
maconha.”

Por tudo o que a vida lhe apontava desde a cena do rapaz afeminado
sendo apedrejado em Campo Grande, homem com homem não era
mais uma possibilidade. Isso até ali, mais precisamente na noite de
calor que fez Ney se levantar do beliche e deixar o alojamento para
tomar ar. Ao pisar na varanda em frente ao quarto, uma passarela
estreita com uma mureta onde alguns rapazes ficavam, viu dois
soldados fortes da turma dos praticantes de remo. O jovem sentado
acariciava o rosto do que estava em pé, aconchegado entre suas
pernas. Não havia beijo nem toques, mas olhares, gestos e uma
cumplicidade que parecia tornar indiferente tudo o que não pertencia
àquela cena. Ney voltou para a cama com a cabeça desorganizada.
Então, mais que fazer sexo, dois homens podiam se amar?
Dias depois, Ney se apaixonou por um soldado. Era um rapaz alto,
magro e de pele morena que havia chegado com a turma dos capixabas
para integrar as frentes da Polícia da Aeronáutica. Assim que o viu, Ney
se sentiu arrebatado por sua beleza, mas manteve-se cauteloso e
flertando à distância. O jovem percebeu e correspondeu aos olhares,
alimentando uma paixão quase platônica pela impossibilidade de ser
assumida sob tanta vigilância. Era tudo muito arriscado. O sistema
militar especificava a conduta de homossexuais como pederastia.
Jovens que alegassem preferência por pessoas do mesmo sexo eram
dispensados durante o recrutamento, levando o indigno carimbo de
“pederasta” na carteira de reservista, e a prática homossexual pelas
dependências do batalhão era considerada uma desonra punida com
expulsão.
Mas ainda que não demonstrassem, eles já estavam apaixonados.
Numa das poucas chances que tiveram para fazer confidências, o
soldado disse “eu te amo” e Ney afirmou que também o amava, mas
ninguém avançou além da frase e os dias se passaram sem que sequer
se tocassem. Um ano depois, quando as primeiras baixas começaram a
separar os colegas de corporação, dispensando-os em levas
escalonadas para regressarem a suas cidades, o rapaz convidou Ney
para seguirem juntos para o Espírito Santo. “Eu não tenho o que fazer
lá”, respondeu triste, minutos antes de o avião com os capixabas
decolar. Ney se aproximou, fez um carinho em seu braço e o deixou ir,
ficando com a certeza de que, assim como os soldados da varanda, era
possível viver um amor com outro homem.
A vida nas altas esferas do poder só interessava a Ney quando o
atropelava. Getúlio Vargas tinha mandado seu pai para as beiras da
guerra em 1945 assim como, agora, o presidente Jânio Quadros
perturbava seus últimos dias de ordem-unida com uma renúncia que
pegava civis e militares na contrabota. Vindo ao mundo na mesma
Campo Grande que Ney conhecia tão bem, Jânio velejava com
manobras radicais nos mares relativamente calmos de um regime
democrático. De vassoura em punho para varrer a corrupção do país,
fiscalizava repartições pessoalmente, mandava apurar desvios de
dinheiro público e, mesmo sendo anticomunista, abria canais de
negócio com mercados trancados por ideologias, como China, União
Soviética e Cuba.
A renúncia de Jânio fez chegar ao poder seu vice, João Goulart, o
Jango, um homem visto como um perigoso comunista pronto para tingir
a bandeira do Brasil de vermelho. A iminência de um golpe militar para
desviar o país de um destino considerado trágico pelas Forças Armadas
levou os quartéis a suspenderem as folgas para manter todo o
contingente a postos. Por alguns dias, até que as coisas se
acalmassem, ninguém entrava e ninguém saía do quartel. Ney visitava
uma tia no centro do Rio quando foi chamado de volta. Entre o ato, a
renúncia de Jânio e sua consequência final, o golpe de 1964, soldado
Pereira se livraria de qualquer serviço sujo ao concluir o serviço militar
ainda em 1961. Se o seu engajamento durasse mais, poderia ter vindo
a participar de uma cena inimaginável, sendo obrigado a desfazer
manifestações e conduzir prisioneiros políticos para a mesma masmorra
que o abrigou.
O boletim interno no 213 de 2 de outubro de 1961 oficializava o prazo
para a baixa do soldado Pereira, dando início à segunda e delicada fase
de seu plano. Como voltar para Mato Grosso estava fora de questão,
ele ficaria no Rio nem que, para isso, tivesse de dormir numa praça.
Ney tinha um tio de segundo grau, bem-educado e cheio de posses,
mas que havia mudado de ideia sobre oferecer teto e comida assim que
o sobrinho se desligasse da Aeronáutica. Dias antes da baixa, Ney o
visitou e foi recebido com outro discurso. Aquilo não daria mais certo,
disse o tio. Os tempos eram outros e, agora, havia trabalho além da
conta e horas de menos para ter um hóspede em casa. Ao sair do
Galeão pela última vez, o ex-soldado carregava a mesma mala que
usara para sair de casa com três peças de roupa. Depois de passar
duas noites num dos bancos da praça Serzedelo Correia, em
Copacabana, com mais medo da polícia que dos ladrões, se lembrou de
uma madrinha de sua mãe, Elvira, vizinha de vila em Moça Bonita e que
vivia a algumas ruas dali, na Figueiredo Magalhães.
Sujo, magro e com olhos fundos, Ney bateu à porta do apartamento
modesto de sala, quarto e cozinha de Elvira e falou o suficiente para
convencê-la de seu estado de indigência. Entrou, comeu, banhou-se e
ganhou um dos sofás da sala para passar quantas noites precisasse. O
outro sofá era de Diógenes, o Dodi, um dos dois filhos de Elvira que
andava colocando a cabeça a prêmio desde que tomara gosto por
entrar nos automóveis estacionados em Copacabana para tomá-los
emprestados por algumas horas. Ele se deitava sob o volante,
descascava uns fios e os religava para sair guiando s e Aero Willys
pela orla até o fim da tarde, quando os devolvia quase sem gasolina no
mesmo local. O irmão mais velho de Dodi era Demóstenes, o Titinho,
um médico que vivia na tão noticiada Brasília, a nova capital federal, e
que sempre visitava a mãe no Rio. Avisado das peripécias do irmão,
Titinho decidiu aliviar a mãe das preocupações. Chegou sem avisar
para passar um fim de semana e voltou para Brasília levando consigo
Dodi e, por tabela, Ney como aspirantes a candangos, como eram
conhecidos os forasteiros que iam ajudar na construção da cidade.
Quando Ney desembarcou no Distrito Federal, chamado pelos jornais
de “Capital da Esperança”, “Símbolo da Vitalidade” e “Fator de
Progresso da Nação”, ele apenas sentiu que estava num lugar vazio e
muito triste.
Um cinema, um teatro, alguns restaurantes e uma boate resumiam o
circuito da diversão. Em muitas partes, a cidade era um canteiro de
obras espalhado pela planície. A propaganda oficial falava numa vida
mais saudável do que nos centros congestionados e numa arquitetura
pensada para valorizar a vida humana, com mobilidade facilitada e um
silêncio restaurador. Mas, tirando o último quesito, poucos sonhos
pareciam ter saído da prancheta. Os serviços de comércio, quando
existiam, eram precários, e o abastecimento, deficiente. Enquanto a
polícia se estruturava, o medo tornava as ruas desertas e perigosas e,
sem efetivo para fiscalizar as leis de trânsito, o índice de acidentes
automobilísticos disparava.
O censo dizia que, entre funcionários do governo, comerciantes e
candangos que deitavam avenidas e erguiam prédios de Oscar
Niemeyer, 150 mil habitantes se ajeitavam pela região. Mas onde
estavam todos? O marasmo de uma cidade fantasma sobretudo nos
fins de semana, quando boa parte das pessoas voltava para suas
terras, se tornava a maior reclamação de moradores a jornalistas que
faziam matérias sobre a nova Brasília. Ney, que ouvia histórias de gente
que havia se suicidado de tristeza, não teria nenhum problema com a
solidão, mas muitos com os suicidas.
Seu primeiro destino profissional, com a ajuda de Titinho, foi o prédio
cheirando a tinta do Hospital de Base do Distrito Federal, inaugurado
para ser referência no país havia um ano, no aniversário do então
presidente Juscelino Kubitschek, em 12 de setembro de 1960. Depois
de se preparar por três meses num curso que o ensinou a manipular
lâminas usadas em biópsias com partículas de seres humanos em
busca de resposta para seus males, foi admitido no Laboratório de
Anatomia e sentiu o sabor de um salário razoável, bem acima do soldo
que recebia no quartel e o suficiente para pagar contas e garantir uma
mínima vida social. Mas, aos dezenove anos, o menino de Campo
Grande tinha a simpatia e a desenvoltura de um obelisco. Quando ia a
festas, entrava mudo, permanecia invisível e desaparecia calado. E
quando as festas iam a ele, como as que Titinho promovia em seu
apartamento, Ney, considerado novo demais para as cenas impróprias,
dormia na banheira.
O tempo livre numa cidade como Brasília poderia significar também
uma tortura. Assim, o excesso de horas vagas e o desejo de soltar as
travas que o impediam de ser alguém mais interessante o fizeram sair
em busca de novas experiências. Para vencer a timidez, matriculou-se
como integrante do coral de sessenta vozes do colégio Elefante Branco,
assistiu a aulas de técnica vocal com Wanda Oiticica, entrou na turma
de interpretação teatral de Sylvia Orthof e fumou a maconha mais pura
do cerrado que, diziam, pertencia aos indígenas.
O coral do Elefante Branco levou Ney a cantar para alguém pela
primeira vez. Classificado como tenor, ele fazia sua parte da melodia
para, depois, entrar cantando baixinho nas linhas femininas dos
contraltos, contrabandeando-se para um lugar que, em tese, não era o
seu mas que se tornava o único onde sua voz se sentia à vontade.
Certo dia, o regente o flagrou e interrompeu o grupo durante um ensaio.
“Esperem”, disse, aproximando-se de Ney. “Cante mais uma vez.” Ney
cantou e o regente fez sua observação: “Eu sempre pensei que isso
fosse coisa de adulto castrado”. Ney recebeu o comentário como um
elogio, mas nada mudou. Sem planos de ser cantor, só estava ali
porque, além de começar a se sentir mais seguro nas rodas de amigos,
pensava cada vez mais em ser ator. E, pelo que diziam, o canto o
ajudaria.

A diferença entre a maconha de Brasília e a do Rio era o contexto. Se


no quartel um flagrante poderia levá-lo à expulsão, em Brasília seu
porte era tão aceitável quanto caminhar pelas ruas com uma garrafa de
Crush. A erva dos índios, diziam, era curtida dentro de frutas e podia
ser conseguida em qualquer parte da cidade. Vizinhos fumavam
cuidando do jardim, jovens fumavam dirigindo carros e velhos fumavam
pelas praças sabendo que a polícia jamais agiria. Afinal, qualquer um
poderia ser ministro, senador, deputado, assessor do presidente ou um
de seus filhos. Ney foi a uma festa no apartamento de funcionários do
Itamaraty e fumou tudo o que podia num canto com poltronas
preparadas especialmente para convidados tragarem baseados. A um
certo instante, o efeito da droga lhe deu a sensação de que estava
despencando em um precipício. Ney se levantou, partiu sem se
despedir e pegou um elevador no sexto andar que pareceu levar cinco
horas para chegar ao térreo. Saiu sozinho pela W3 e andou até parar
em frente à loja Bi Ba Bô e avistar uma onça empalhada na vitrine. Os
olhos do animal pareciam enfeitiçá-lo quando o amigo Vicente passou e
o reconheceu. “Ney, o que está fazendo?” “Não sei”, disse, ainda tonto.
“Eu acho que fumei muita maconha.”
Quando Titinho decidiu se casar, Ney teve de procurar outro lar. Com
dinheiro suficiente para se bancar, aceitou a oferta de Tonho Cabral, ex-
colega de coral e funcionário da Câmara dos Deputados. Tonho estava
alugando um dos quartos de seu confortável apartamento e, em meio
às negociações, disse que gostaria de apresentar a Ney um amigo de
São Paulo que chegaria a Brasília depois de passar alguns anos em
Paris. Marcou um jantar num bom restaurante e chamou os dois. Alto,
moreno, 22 anos mais velho e de cultura refinada, Eugênio era a
pessoa com quem Ney sentiu poder viver uma paixão. Já nos primeiros
minutos, teve a certeza de estar diante do que poderia chamar de um
amor.
Eugênio e Ney ficaram distantes por quase um ano sem nunca
deixarem de pensar um no outro. Eles se reencontraram depois de uma
noite em que Eugênio se segurou para não bater na porta do quarto de
Ney ao visitar a casa de Tonho. “Eu ia chamá-lo, mas Tonho disse que
você estava resfriado.” Ney, que havia se resguardado sexualmente por
todo aquele tempo esperando pela sua volta, abriu a guarda, com
malícia: “Você poderia ter entrado”. E Eugênio entendeu o convite:
“Então, amanhã eu entro”. A frase permaneceu nos pensamentos de
Ney durante todo o dia de trabalho, despertando várias incertezas de
ordem técnica. Ele sabia que fariam sexo mesmo sendo o primeiro de
seus encontros íntimos. Só não fazia ideia de como agir.
Havia um roteiro a seguir? Onde, como e o que deveria entrar
primeiro? Um homem na sua cama, o ato saliente, o toque proibido, a
bicha de Campo Grande, o padre, a professora, o pai, o apresentador
do parque de diversões. Ney resolveu se acalmar pensando que era só
fazer o que o parceiro fizesse. Quando a noite chegou, Eugênio estava
lá e Ney deixou o corpo se mover pelo desejo. Depois de terminarem,
os dois ficaram em silêncio até Eugênio, visivelmente incomodado,
perguntar: “Você já transou com muitos homens?”. Ney sabia que
poderia ser um elogio, outra forma de dizer que ele transava bem, mas
a desconfiança o indignou. Afinal, ele o tinha esperado como uma noiva
que aguarda pela noite de núpcias.
Eugênio deu sinais de que algo não ia bem alguns meses mais tarde,
quando as crises de ciúme começaram a ficar perigosas. Se sua mão
não passasse pela cintura da calça do namorado, a roupa de Ney
deveria ser trocada por peças mais largas. Um olhar mais demorado
para alguém e o clima esquentava. A insegurança foi piorando e as
brigas aumentando até que, certa vez, após uma grave discussão, Ney
o viu correr em direção à janela para saltar do quinto andar num
desatino inesperado, sendo salvo pelo parapeito. Quando se recompôs
e voltou para o quarto, Ney exigiu que ele fosse embora. Eugênio se foi,
mas não por muito tempo. Dias depois, mesmo com a relação esfriada,
eles tornaram a se ver e passaram uma estranha noite juntos. Antes do
amanhecer, Eugênio saiu em silêncio e sem avisar, deixando o
passaporte posicionado para ser visto por Ney assim que ele
acordasse. Era sua forma de dizer adeus.
Ney se assustou ao ver o documento. Sabia que havia ali uma
mensagem e, com os piores pressentimentos, seguiu com Tonho para a
casa de Eugênio. A porta estava trancada e, antes de tentar arrombá-la,
decidiram entrar pelo basculante do banheiro. Tonho não conseguiu
passar pela abertura, mas Ney espremeu-se até cair dentro do
apartamento. Havia sangue, vidros quebrados, móveis fora do lugar e
remédios pelo chão. Eugênio tinha tomado muitos deles e se cortado.
Ney encontrou a chave sobre a mesa e abriu a porta para Tonho. Com
esforço, eles levaram Eugênio para o hospital, o mesmo onde Ney
trabalhava e, naquela noite, Titinho dava plantão. Eugênio foi atendido
às pressas, teve os ferimentos tratados e o efeito dos remédios
controlado. Na manhã seguinte, Ney, o único acompanhante do
paciente rico e conhecido até por políticos influentes de Brasília, tinha
seu nome ventilado pelos bares e salões da cidade.
Mesmo sentindo os olhares de reprovação ao romance revelado pela
ameaça de uma tragédia, Ney decidiu acompanhar Eugênio até sua
recuperação. Com a alta médica, ele o levou para casa, escondeu as
facas, os espelhos e os remédios e contratou uma senhora de oitenta
anos para ficar com Eugênio nas horas em que estivesse trabalhando.
Um mês depois, com a melhora de Eugênio, ligou para a família do
parceiro, contou o que havia acontecido e pediu que fossem buscá-lo.
Os parentes o levaram e Ney sentiu alívio por alguns meses. Quando
começava a esquecer do namorado, a campainha tocou. Era Eugênio
mais uma vez, pronto para começar tudo de novo numa nova cidade:
“Eu voltei para te buscar, Ney. Vamos pra São Paulo?”.
Ney sentiu que Eugênio ainda não estava emocionalmente
equilibrado e o convidou para entrar. Não, ele não iria sair de Brasília, e
disse isso da melhor maneira que conseguiu. Conversaram um pouco e,
minutos depois, transaram. Eugênio ficou e as coisas correram
relativamente bem até o momento em que um rapaz que alugava o
quarto ao lado, no mesmo apartamento de Tonho, passou por eles
usando uma camiseta de Ney. Eugênio, imaginando que os dois haviam
transado, enfureceu-se, mas esperou para agir. À noite, quando se
deitaram, ele segurou o parceiro pelo pescoço e ameaçou enforcá-lo.
“Você está transando bem porque está transando com outros”, Ney o
encarou: “Você quer me matar faz tempo, não é? Então, mate agora”.
Eugênio o largou e desatou num choro convulsivo antes de pegar as
coisas e partir mais uma vez. Foi a última noite que se viram. Meses
mais tarde, Ney recebeu a notícia de que Eugênio tinha cometido
suicídio. Abriu o gás da cozinha e colocou a cabeça no forno para
morrer lentamente.
4. Teatro por paixão, música por acidente

Criada para romper com os modelos de centros populosos do final


dos anos 1950, Brasília era pensada para ter sua imagem, tanto pela
arquitetura de traços infinitos como pela busca de novos conceitos em
educação, saúde e mobilidade, ligada à ideia de modernidade. A capital
recém-inaugurada deveria ser vibrante, arejada e estar à frente do
pensamento das antigas metrópoles, algo que passou a ser percebido
pelos mais jovens como uma espécie de território livre. Valia quase tudo
nas terras do cerrado: de caçar discos voadores e buscar curas
mediúnicas no Vale do Amanhecer a andar de carro pela avenida W3
com o traseiro exposto na janela. De procurar homens e mulheres na
estação rodoviária para alívios sexuais a consumir drogas com os
funcionários do poder. Valia quase tudo naquelas terras, só não valia
ser gay.
Vicente Pereira sentiu que só eliminando o hospedeiro conseguiria
extirpar o mal que o fazia desejar outros garotos. Foi para o quarto,
trancou a porta, abriu a gaveta da escrivaninha, apanhou os
medicamentos usados pelo irmão mais velho para o tratamento de uma
disritmia cerebral e tomou todos ao mesmo tempo. Quando a mãe o
chamou, ninguém respondeu. Vitinho, o irmão, saiu pela sacada,
caminhou no parapeito e entrou pela janela do quarto para encontrá-lo
desacordado.
Seu fim acabaria com a angústia de um jovem de vinte anos incapaz
de reproduzir qualquer referência de homem que conhecia até ali. Ele
nunca seria como o irmão, conquistador, viril, carismático e a quem
garotos afeminados como ele deveriam ser uma aberração punida com
desprezo e humilhação. Também não teria a coragem de Bossa Negra,
empregado doméstico, negro e homossexual, que pagava caro por ter
assumido sua natureza feminina desviando-se das pedras atiradas
pelos meninos da Asa Sul. Vicente, com a sensibilidade do pai, não
tinha alternativa. Os comprimidos que tomou não foram suficientes para
matá-lo e, por isso, ele tentou mais uma vez dias depois, da mesma
forma, e também em vão. Sem talento para morrer, começou a viver no
dia em que caminhava em direção a um jovem de quem não gostava e
não fazia a menor questão de passar a gostar.
De santos e demônios que não se davam desde que um amigo
comum os apresentara numa festa, Ney e Vicente alimentavam um pelo
outro o mesmo grau de repulsa. Ney, silencioso, objetivo e de pouca
paciência para questões filosóficas que justificassem a decrepitude
humana, não se conformava em ver num rapaz tão interessante a
imagem da derrota. Era niilismo demais e vida de menos. Vicente, no
lado oposto, percebia vazio e insensibilidade no pragmatismo de Ney.
Assim, passaram um bom tempo evitando-se toda vez que se viam até
a noite em que caminhavam um em direção ao outro pela mesma
calçada da W3. Sem poderem atravessar a via movimentada, já
estavam próximos quando levaram um grande susto. Dois carros em
alta velocidade se chocaram numa batida violenta e estrondosa. Não
houve vítimas fatais, mas um dos automóveis desgovernados quase os
atingiu antes de bater numa árvore. Místicos, talvez a única
característica que tinham em comum, Ney e Vicente acreditavam que o
acidente havia quebrado toda a energia negativa que existia entre eles
para que algo novo começasse, tornando-os irmãos a partir daquele
instante.
Vicente levou Ney para casa, o apresentou à família e viu o amigo ser
recebido com carinho pela mãe, dona Odete. Afinal, além da aparente
fragilidade e do fato de não ter uma mãe por perto, Ney chegava com o
mesmo sobrenome do filho, Pereira. Agora inseparáveis, os amigos
decidiram fazer um pacto de sangue. Depois de abrir um pequeno corte
no braço de Ney com uma lâmina de barbear, Vicente fez o mesmo em
si e juntou os ferimentos. Odete, usando o amor pelo filho que quase
havia perdido para entender até o que não tinha explicação, atendeu
seu pedido e abençoou o ritual com o sinal da cruz.

Assim que pôs os pés num palco pela primeira vez, Ney teve certeza
de que seu lugar era ali. O teatro que havia conhecido em peças
escolares, sempre escondido do pai, quando vivia em Moça Bonita,
abriu a caixa que fazia tudo se tornar possível. Era sobre um tablado
que histórias, personagens, figurinos, luzes e falas que nasciam nas
imaginações mais solitárias poderiam se tornar reais. O canto era um
adereço, a ferramenta que os bons atores deveriam dominar, e sua voz
dava sinais de que estava no bom caminho, segundo professores e
regentes entusiasmados com sua extensão. Sem desconfiar que Ney
fingia ler as notas e emitia o som que a intuição mandava enquanto
olhava as partituras sem entender nada, uma professora teve certeza
de que seu aluno deveria estudar para se transformar em uma estrela
do canto lírico. Aos poucos, a voz do cantor tomaria a frente do corpo
do ator naquela espécie de corrida, mesmo que o dono dos dois, por
paixão, desse uma boa vantagem ao segundo. Ney queria ser ator,
ainda que o destino dissesse não. E foi justamente com um não que o
ator começou a existir.
O teatro que havia procurado para destravar os modos diante dos
estranhos, dando uma chance às relações humanas apesar de ainda
sentir saudade dos pássaros e dos cães de Campo Grande, ganhava
outra dimensão. As sérias aulas com Wanda Oiticica na Escola
Brasiliense de Arte e Cultura, a Ebac, cobravam pela libertação dos
gestos uma boa carga de constrangimento. Wanda o colocava em
frente à turma e o apresentava como um exemplo de postura a ser
seguido usando frases como: “Vejam essas pernas, esses braços,
essas mãos. É tudo perfeito”. Colegas de curso decidiram aplicar o que
tinham aprendido e chamaram Ney para montarem uma peça com um
texto forte e contestador exatamente no ano em que o contestar havia
se convertido num ato passível de prisão. Nas barbas dos militares
recém-instalados em Brasília, o grupo se pôs a ensaiar para estrear A
invasão, peça de autoria de Dias Gomes. Comunista de carteira e alvo
de um regime repressor por seu irresistível mau comportamento e todas
as ideias de justiça social que o possuíam quando estava diante de uma
máquina de escrever, Dias havia criado o texto em 1960 inspirado na
história da Favela do Esqueleto, um edifício em construção, próximo ao
Maracanã, ocupado por vítimas de uma enchente.
Ney era Tonho, servente de pedreiro e filho de Santa e de Justino,
formando com duas irmãs, Malu e Rita, uma das famílias ocupantes do
prédio, todas exploradas pelo malandro Mané Gorila. Humilhados e
desiludidos, seus pais, depois de verem o filho mais novo morrer na
ocupação, juntam dinheiro para voltar para o Nordeste e saem
escondidos do território dominado por Gorila, mas o explorador promete
encontrá-los e acertar as contas matando-os. Ao saber das ameaças,
Tonho corre em defesa dos pais com uma faca e, furioso, luta com o
inimigo.
O primeiro ensaio é vibrante e tudo corre bem, mas Ney deixa sua
interpretação ultrapassar o realismo de Dias Gomes e, com a faca de
madeira, fere levemente o braço do ator que fazia Mané Gorila. Para
evitar novos imprevistos, fizeram-se alterações e a cena do
esfaqueamento foi transferida para o momento em que os dois não
lutavam mais no palco, mas atrás das coxias. Quando a peça estava
pronta, a temporada foi vetada, segundo souberam os atores, por
razões políticas. Eram os primeiros sinais da vida sob a censura do
golpe militar.
Os pedidos posteriores para encenar a peça voltariam sempre da
Divisão de Censura de Diversões Públicas com o carimbo de
“indeferido”. Um técnico da censura, Antônio de Pádua Carvalho Alves,
não teve dúvida em proibir um dos pedidos para sua montagem depois
de ler o argumento:
O autor mostra um deputado demagogo que se aproveita da ignorância dos favelados
para fazer sua campanha eleitoral; problemas da falta de emprego; uma criança de meses
que morre de inanição; um pai de família que se vê obrigado a aceitar o fato de sua
esposa e filha pedirem esmola, etc. Não bastando isto, procura também mostrar a
maneira pela qual vê a instituição policial, apresentando uma polícia subornada que se
presta a fazer encenações em troca de dinheiro e fazendo, nos diálogos dos personagens,
referências insidiosas sobre a mesma, além de uma menção inaceitável feita a um juiz de
Direito. Problemas e assuntos como o do presente tema não devem ser levados ao
público brasileiro no atual momento.

Enquanto o ator não vingava, o cantor surgia. O coral de sessenta


vozes do Elefante Branco levava Ney para fazer desde um auto de
Natal que inauguraria a sala cirúrgica do Hospital Sarah Kubitschek até
pequenas turnês em cidades como Recife e Fortaleza. Quando não
pôde ir a uma apresentação importante do grupo que aconteceria no
interior de Minas Gerais, um substituto assumiu seu posto. Na viagem,
o ônibus se envolveu num acidente e o rapaz que iria substituí-lo
morreu. Mas era com outro grupo, o Madrigal Renascentista, formado
por homens que cantavam músicas em francês, inglês e alemão
compostas entre os anos 1400 e 1600, que o “homem com voz de
mulher” começaria a ganhar alguma fama.
O amigo Márcio Oberlaender viu em Ney toda a liberdade que queria
para sua vida, apesar do luxo que as empresas do pai e a herança
familiar prometiam. Afeiçoados instantaneamente, eles passaram a
andar juntos e a gerar desconfianças. Uma cantora, ao ver Márcio
buscando Ney de carro na porta da Universidade de Brasília depois de
um ensaio, disse ao pai do rapaz que ele andava com o jovem de
masculinidade suspeita. “Ou você para de sair com ele, ou sai de casa”,
decretou o empresário. Márcio saiu de casa. Voltou logo, mas jamais
deixou de ser amigo de Ney. Uma tarde, Ney lhe mostrou a capa de um
de Caetano Veloso e disse algo que só diria uma vez e em relação a
um único artista: “Eu ainda vou ser como o Caetano”.
A admiração veio da imagem que nunca lhe saiu da cabeça. Caetano
deixava com Gil um hotel em Brasília rumo a um show na cidade
patrocinado pela empresa Rhodia vestido com roupas cor-de-rosa dos
pés à cabeça. Naquele instante, o artista se tornava um ídolo por tudo o
que sua atitude libertária dizia em plena ditadura. Por ora, Ney tentava
ser Jair Rodrigues. Quando o programa O Fino da Bossa, da Record,
virou febre entre os jovens, despertou em Márcio uma adoração por Elis
Regina, que o apresentava recebendo convidados ao lado de Jair e do
Zimbo Trio. Assim, sempre que estavam sozinhos, Márcio e Ney
interpretavam, respectivamente, Elis e Jair cantando e dançando diante
do espelho do quarto.
O Madrigal Renascentista, oficialmente Madrigal da Rádio Educadora
de Brasília, liderado pelos irmãos Geraldo e Alexandre Torres, levava
Ney a fazer recitais mais íntimos, como uma apresentação realizada a
um casal de alemães no apartamento de Tonho. As destrezas do futuro
cantor chegaram aos ouvidos de Paulo Machado, um estudante de
arquitetura nascido em Niterói que se colocava à frente dos fervos
culturais da Universidade de Brasília. Inspirado pelos festivais
televisivos do Rio e de São Paulo, ele decidiu organizar um show
coletivo no campus, com talentos locais e sem caráter competitivo, para
receber uma turma de alunos que chegava de Minas. Paulo já tinha os
músicos e a canção, “Só tinha de ser com você”, de Tom Jobim e
Aloysio de Oliveira. Faltava a voz.
Era a primeira vez que Ney cantaria em público uma música popular.
Minutos depois de começar o show, bastante centrado nas dificuldades
da melodia de Jobim, ele já havia passado da primeira parte quando
ouviu um grito na plateia. “Bicha!” O som ecoou pelo ginásio e o rapaz
que gritara acabou sendo localizado. Ney o encarou, fez um gesto para
a banda segurar o volume e o fulminou: “O que foi que você disse?”.
Sem resposta, ele ainda insistiu: “Repete o que você falou”. Diante do
silêncio, retomou a canção, seguiu seguro até o fim e recebeu muitos
aplausos. Não foram os trejeitos, as danças nem os figurinos a razão da
primeira rejeição homofóbica que Ney sentiu num palco. O alvo era a
sua voz.

Além da de Gil, Caetano, Chico e Gal, o rock que chegava a


Brasília naquela segunda metade da década de 1960 era rapidamente
consumido pelos jovens da UnB. Ney estava entre eles, assistindo às
aulas que queria como ouvinte e aos concertos gratuitos de grandes
orquestras na condição de curioso. Por volta de 1966, percebeu a
disputa cada vez mais polarizada entre os Beatles, que se despediam
da adolescência com o álbum Revolver, e os Rolling Stones, que faziam
de Aftermath o primeiro só com canções de Mick Jagger e Keith
Richards. Ney, por tudo o que ouvia nas casas dos amigos, tomou
posição e ficou com os Stones, mais pervertidos e abusados ou,
simplesmente, menos dissimulados que Paul McCartney e John
Lennon.
Crosby, Stills, Nash & Young eram a redenção folk com uma divisão
de vozes doce e familiar, dos tempos de coral. O Yes era de um
virtuosismo mais admirável que encantador, e o Pink Floyd, um caso à
parte. Sem conseguir colocá-los ao lado de outra banda, Ney ficaria
perturbado com aquele som que Vicente Pereira lhe mostraria anos
depois, ao voltar de uma viagem a Amsterdam. A banda de Roger
Waters e David Gilmour o situava num estágio permanente de levitação
sujeita a turbulências mentais, com sons que o transpassavam e se
hospedavam em sua cabeça provocando uma quebra de dimensões
que, temia ele, poderia levá-lo a lugares sem volta. Ele só conheceria
algo parecido anos depois, ao descobrir o .
Ameaçado de ficar sem moradia quando Tonho pediu o apartamento
para outros fins, Ney foi socorrido por Wanda Oiticica. A professora
ofereceu sua casa na Asa Sul para que passasse o tempo que fosse
preciso e ele permaneceu ali por pouco mais de um ano, vivendo com
uma das cantoras líricas mais atuantes de Brasília, de palcos suntuosos
e repertório digno de Cláudio Santoro. Bem relacionada, Wanda fazia
jantares para receber colunáveis em sua residência e, sempre que
possível, pedia para ouvir a voz de Ney. Se houvesse alguma inclinação
do ex-aluno para a música erudita, aquele seria seu momento da virada,
mas a admirada voz camerística de Ney não traduzia seu espírito. Certo
dia, ao chegar do trabalho, Wanda não escondeu a frustração ao
encontrá-lo cantando música popular enquanto Paulo Machado tocava
o piano da sala. Para ela, aquele era um caso de desperdício, uma voz
privilegiada sucumbindo ao descartável. Ney, dizia Wanda, deveria
estudar em vez de se entregar às bobagens do canto fácil.
A segunda reprovação de Wanda se deu em outro campo, quando
Ney passou a namorar um rapaz mais novo e tão apaixonado por ele
que, depois de dois meses, não suportou a ideia de ter vivido apenas
uma aventura. Para Ney, Wanda, que não gostava do jovem
procurando-o com tanta insistência, estava enciumada. Mas o flerte
entre os dois rapazes durou pouco e mostrou que a professora tinha
razão. Sem aceitar o fim do relacionamento, o garoto se pôs a rondar a
casa. Logo que teve certeza de que a história dos dois havia terminado,
ele chamou Ney, de caso pensado, para uma última conversa.
Aproveitou sua presença para, diante do amor impossível, ingerir vários
comprimidos antidepressivos ao mesmo tempo, disposto a morrer.
Assim que os efeitos começaram a derrubá-lo, Ney o mandou sair. Iria
acompanhá-lo, mas, se caísse no caminho, agonizaria só. Ao chegarem
à casa do rapaz, seu irmão, um padre, atendeu à porta. “Ele tentou
suicídio”, disse Ney, antes de virar as costas e partir.

Depois de ver Ney cantar Jobim no festival da UnB, Paulo Machado o


queria na . Cheio de conexões com artistas do Rio e de São Paulo,
Paulinho, como era conhecido, idealizou um programa e levou a ideia à
Brasília, emissora dos Diários Associados de Assis Chateaubriand
fundada no dia da inauguração da cidade. O Dimensão era um musical
dirigido por Machado e inspirado nos entretenimentos da Record. Trazia
também matérias gravadas por uma apresentadora, como um especial
sobre a história do samba, mas o foco natural se tornou o Grupo
Missão. O conjunto tinha Paulinho Machado como pianista e Ney como
um dos cantores, mas também Lena, a “mulher de voz masculina”;
Glória Maria, uma sambista experiente, de canto delicado e suingue de
passista; e Sebastião Macedo, o Tião, com os graves e o charme de um
Dorival Caymmi do cerrado.
O cenário era preenchido por um relógio ao fundo e as gravações
ocorriam no estúdio cedido pela emissora uma vez por semana, mas
apenas durante a madrugada, o que pode ter levado uma de suas
primeiras convidadas, Elis Regina, a dizer não. Elis já havia dito o
seguinte ao conhecer o programa pela : “Vocês estão fazendo em
Brasília o que eu ainda não vi igual nem melhor, em capitais fora do Rio
e de São Paulo”. O Dimensão estreou bonito, com duas horas de
duração em horário nobre, às 19h30 dos sábados com reprise aos
domingos, e o sucesso fez com que ele passasse a ser distribuído para
cidades como Belo Horizonte. O Correio Braziliense, dos Diários
Associados, comemorou o feito por meio das palavras de seu colunista
Bahiense Freitas: “Seja o fato, amigos, o prenúncio de uma nova etapa
a se cumprir no Planalto. Fazermo-nos respeitar lá fora”.
O Grupo Missão tinha como estrela maior Lena, sobre quem o
Correio dizia: “Desculpem, canta não. Ela vive cada frase, cada
mensagem”. Glória Maria era descrita como “a cantora que flutua sobre
o samba”. Ney e Tião ganhavam menos espaço nas matérias, apenas
com rápidas menções, mas havia elogios para o “encontro de vozes tão
distintas”. Um dos segmentos mais esperados do programa era a
apresentação do convidado especial, que poderia ser tanto um artista
local como um visitante. Um deles, Luiz Carlos Sá, jovem de 21 anos
cheio de canções autorais, fora levado por Paulo Machado direto da
casa Cangaceiro, em Copacabana. Paulo passava as férias da UnB ao
piano da boate carioca, muitas vezes tocando para três ou quatro
garçons. Numa delas, Sá sentou-se a uma das mesas e passou a
desafiá-lo pedindo que tocasse peças difíceis como “Noa Noa”, de
Sérgio Mendes. Desafiava e perdia todas. Impressionado com a
habilidade e o conhecimento do pianista, o procurou depois do show
para contar sobre suas composições. Assim, seis anos antes de formar
com Guttemberg Guarabyra e Zé Rodrix o trio Sá, Rodrix & Guarabyra,
Sá embarcava para Brasília como convidado do Dimensão.
Ney sentia o poder de uma emissora de pelo aumento
considerável de sua popularidade, mas a lua de mel com a música
estava prestes a acabar. Assim que adentrou, por suas portas estreitas,
a pequena casa A La Cave des Rois na superquadra 212, lojas 6 e 7,
localizada sobre uma galeteria do mesmo dono, o italiano Giovanni, ele
deu início àquela que seria a primeira e última temporada de sua vida
em uma boate.
A Cave se dividia entre restaurante com especialidade em churrasco
na brasa, estrogonofe e frango assado no andar de baixo e, no superior,
boate com música ao vivo e algum charme para receber políticos e
personalidades influentes como Jaime Teixeira Neto, Otto Burlier da
Silveira, Helena Mansenha e Tito Mondin. Ainda sob a aura da Bossa
Nova, que no Rio já via seus barquinhos fulminados pela estridência da
Era dos Festivais, Giovanni anunciava as noites de seu estabelecimento
como “um pedaço do Rio num canto de Brasília” soando graças a um
“moderno sistema sonoro com fitas magnéticas das mais frequentadas
boates da Guanabara”. Numa cidade com hábitos noturnos também em
construção, a Cave estendia noites até as três horas da manhã.
Glória Maria, Tião e Lena, juntos ou separados, podiam ser vistos na
Cave cantando músicas de Geraldo Vandré, Edu Lobo e Tom Jobim.
Certa noite, depois de Tião mostrar sua versão de “Maria do Maranhão”,
de Carlos Lyra, Ney subiu ao palco e fez sinal para os músicos
começarem “Upa neguinho”, seu primeiro hit pessoal, inspirado em Elis.
A casa estava cheia, com jornalistas, deputados, senadores e artistas,
mas nada que viesse do palco parecia atingi-los. A música perdia-se no
barulho dos copos e das gargalhadas até o momento em que Ney
cantava o trecho que mencionava a palavra “liberdade”. Só aí as
pessoas lhe davam atenção, mas apenas pelo tempo de esbravejarem
contra o regime gritando alto para, logo em seguida, virarem as costas e
retomarem seus assuntos de botequim. Ney fez três apresentações na
Caverna dos Reis. A quarta, que também seria paga com um dos
galetos de Giovanni, nem existiu. Qualquer teatro de esquina deveria
ser melhor do que aquilo.
O que Ney não sabia era que, entre copos e ruídos, dois atores
hospedados na cidade para gravar as últimas cenas do filme Amor e
desamor, de Gerson Tavares, o viam de uma das mesas cheios de
admiração. Leonardo Villar e Leina Krespi saíram da Cave extasiados.
Ao voltar para o Rio e dar sua primeira entrevista, Leina falou da
surpresa que teve ao ouvir na noite de Brasília um rapaz magro que
cantava lindamente “com uma voz de mulher”, Ney, e uma moça
excepcional que fazia “Carcará” como um tenor enfurecido, Lena.
Encantado com o que viu, Leonardo Villar abordou Ney depois do show,
assim que ele desceu do palco.
Villar já era um ator consagrado pelos prêmios recebidos com o
personagem central Zé do Burro de O pagador de promessas, de 1962,
dirigido por Anselmo Duarte, indicado ao Oscar de Melhor Filme
Estrangeiro e único brasileiro a levar a Palma de Ouro no Festival de
Cannes. Dezoito anos mais velho que Ney, era discreto, atraente,
talentoso e com muitos assuntos em comum. Afinal, tanto suas vitórias
com O pagador como as derrotas de Ney com A invasão haviam saído
do mesmo criador, Dias Gomes. A noite terminou no quarto do hotel
onde o ator estava hospedado, com sexo, afeto e reflexões. Cada vez
mais, o caminho em que corriam juntos teatro e música se distanciava,
exigindo de Ney uma decisão. “Eu não quero ser cantor, quero ser ator”,
desabafou a Leonardo. Sem vê-lo atuar, mas já sabendo como cantava,
Leo, mesmo atraído pelo jovem que acabara de conhecer, não
respondeu o que ele gostaria de ouvir: “Não lute contra isso, Ney. Você
é um cantor”.
Aos 25 anos, Ney sentia que a procura pelo papel perfeito não havia
acabado. Ele já estava em Brasília fazia cinco anos e experimentara
nesse tempo uma liberdade que as duas décadas anteriores tinham
negado. Sexo, drogas, rock and roll, música renascentista, Dias Gomes,
Elis Regina, O pagador de promessas, “Só tinha de ser com você”,
Grupo Missão. A euforia dos produtores do Dimensão havia esfriado
sete meses após a estreia, com a transferência do musical para
horários e dias de exibição menos nobres até terminar antes de
completar um ano. Shows em bares, depois da passagem pela Cave,
também saíram dos planos. Quando percebeu que o ciclo Brasília
poderia ter sido fechado, fez o que estava habituado a fazer sempre
que se sentia perdido desde que deixara a casa dos pais: perdeu-se um
pouco mais. Foi à chefia do Hospital de Base e pediu uma licença não
remunerada. Ao tirá-la, ou retornava em dois anos para reocupar o
cargo ou perdia a vaga. Assim, esvaziou a gaveta, encheu a mochila,
comprou uma passagem para o Rio e embarcou sem nenhuma certeza
do que faria por lá além de um favor à amiga Lena, do Missão. Ao
passar pela Tijuca, ele deveria entregar uma encomenda para uma
mulher chamada apenas Luli, ainda sem o h, que adotaria a partir de
2006.

O Rio de 1966 não era mais o de 1960. No Brasil do marechal


Castelo Branco, o primeiro da série de militares no poder iniciada em
1964 e que seria marcada por um desfile de atos institucionais
decretados para apertar os freios, Copacabana parecia desbotada só
até alguém ligar o rádio. Havia uma clara ruptura geracional no ar com a
troca de turno de hits dos anos 1960, de gente como Miltinho sambando
ao ritmo de “Mulher de trinta”, Dolores entregando a alma em “A noite
do meu bem” e Cauby Peixoto latinizando o rock com “Marina”, por
estouros que juntavam agora nomes de dentro e de fora do país,
misturando “Quero que vá tudo pro inferno”, com Roberto Carlos;
“Yesterday”, com os Beatles; e “The More I See You”, de Chris Montez,
um cantor norte-americano de voz frágil, com uma facilidade estupenda
de fazer dinheiro com canções de amor simples e prestes a cruzar o
caminho de Ney logo que Ney cruzasse o caminho de Luli.
Assim que chegou ao Rio, Ney voltou à casa de Elvira, a madrinha de
Beíta que o havia resgatado da indigência nos dias de pós-quartel.
Seria uma hospedagem breve até que, como sempre acontecia, algo o
fizesse colocar as roupas na mochila e partir. No dia seguinte, Ney ligou
para Luli e marcou um horário para lhe entregar a encomenda de Lena.
Entrava-se na casa da Tijuca em que morava a amiga da cantora por
uma garagem ao lado da porta principal, que não demorou a abrir
quando ele tocou a campainha. “Ney?” Magra, pequena e com uma voz
que não parecia ser sua, Luli tinha os olhos luminosos contornados por
cachos vermelhos que desciam desorganizados sobre as sardas de um
rosto redondo e um sorriso generoso. Uma feiticeira de atração
desconcertante. “Quer entrar?” Mas Ney também a arrebatou. Magro e
de pouca altura, trazia uma gentileza suave que parecia bem conviver
com sua vontade de devorar o mundo. “Quero.”
A casa era espaçosa e sem ostentação, com sinais de uma
prosperidade vivida num passado não muito recente. Caçula de quatro
irmãs criadas com um chofer que lhes abria a porta do carro usando
luvas brancas, Luli viu as paredes desabarem na manhã seguinte ao
derrame que deixou o pai numa cadeira de rodas. As mulheres foram
trabalhar para pagar as contas e a mãe iniciou o desmonte do pequeno
império, demitindo o chofer e vendendo o carro. Na partilha, a filha ruiva
pediu apenas a garagem para dar aulas de violão, que seriam simples
aulas de violão se a professora não tivesse poderes mágicos. Além de
acreditar que seres extraterrenos e gnomos existiam, e que duendes
poderiam ser atraídos pelo som de um apito, Luli passaria a receber em
sua garagem humanos com uma capacidade criativa de outro mundo,
uma gente batizada por Ivan Lins, João Bosco, Luiz Carlos Sá, Sidney
Miller, Sérgio Ricardo, João do Vale e Gonzaguinha.
Se a Bossa Nova havia tido o apartamento de Nara Leão, um dos
focos cariocas da tinha a garagem de Luli. “Você canta?”, ela
perguntou a Ney já sabendo de suas atuações em Brasília. “Sim”,
respondeu, talvez querendo dizer não. Luli pegou o violão e procurou
tonalidades que se acomodassem à sua voz, remontando acordes e
surpreendendo-se com uma extensão que parecia não ter fim. Um
elástico que, quanto mais tensionado era, mais brilho e cores emitia,
entrelaçando-se ao violão de forma indivisível.
Depois de cantarem algumas canções, Luli seguiu investigando.
“Você toca?” “Não”, disse Ney, com jeito de quem gostaria de dizer sim.
Na verdade, jamais havia tentado. Ela pôs o violão em seu colo e
ensinou alguns acordes até perceber as mãos do rapaz pingando de
suor, o que interpretou como um sinal de mediunidade. Era como se os
dois estabelecessem uma dimensão própria, compartilhando música e
crenças. A conversa fluía quando Ney disse que precisava de um
emprego antes que suas economias acabassem. Luli se lembrou de
que a Tupi fazia testes para cantores e prometeu levá-lo aos
estúdios da Urca. Ganhar a vida como cantor estava longe de ser um
plano, e se ele fosse mesmo até a Tupi, seria apenas para não
contrariar a nova amiga.
Ainda com as fichas no teatro, Ney seguiu sem expectativas para o
teste. Outra das emissoras dos mesmos Diários Associados que já lhe
haviam pagado cachês pelo Dimensão, a Tupi usava o slogan “a
emissora da família” e tinha um indiozinho como vinheta. Era poderosa
diante da concorrência de Globo e Excelsior e até uma vaga
conseguida para o coral de reclame do Repórter Esso já seria uma
vitória. Ney entrou no prédio do canal 6, que abrigara o Cassino da Urca
quando cassinos eram permitidos, para ser recebido por um produtor de
pouca paciência.
Ao ser chamado para o estúdio, encheu o peito e entregou-se para
cantar o doloroso “Réquiem para Matraga”, que Geraldo Vandré havia
composto para o filme A hora e vez de Augusto Matraga, de 1965, com
Luli reproduzindo a levada flamenca ao violão. Era uma longa canção
de poucos acordes e versos tristes e, como tudo o que Vandré fazia até
seu transformador exílio de 1968, criada para assombrar os militares.
Ney cantava ideias revolucionárias como “se alguém tem que morrer,
que seja pra melhorar” no estúdio de uma emissora que, como todas,
estava sendo rigorosamente vigiada pela censura. O clima pesou, os
técnicos se entreolharam e o produtor responsável pelos testes decidiu
derrubar o candidato antes que lhe cortassem a cabeça: “Ok, Ney. Você
pode agora cantar igual ao Chris Montez?”.
Chris Montez. Não era nada contra o jovem que já tinha excursionado
com Smokey Robinson, The Platters e Sam Cooke e que, em 1962, fez
shows na Inglaterra com Tommy Roe abertos por uma banda iniciante
de Liverpool chamada The Beatles. O problema era que para cantar
canções como “Let’s Dance” nem precisava ter voz. “Não, eu não sei
cantar igual ao Chris Montez”, disse Ney, antes de dar as costas e se
preparar para deixar o estúdio. “O que eu sei fazer é isso.” Ele já havia
escutado o suficiente para voltar a ter certeza de que o seu palco não
era aquele.

Da casa de Elvira, em Copacabana, Ney seguiu para viver por uns


tempos na residência de Renate Maretzki, amiga indicada por Luli e a
quem ele passaria a chamar de Renata Beija-Flor. Um abrigo pelo
período que fosse necessário até que, mais uma vez, alguma coisa o
fizesse levantar voo. Ao levá-lo ao ateliê de colegas, Renate colocou
Ney no segundo lugar onde ele mais gostaria de estar. Inspirado, viu
bolinhas de couro jogadas no chão e perguntou o que as pessoas
faziam com elas. “É lixo”, disseram. Além das bolas, lhe deram um
pedaço de couro com o qual ele se pôs a fazer na mesma noite anéis e
pulseiras usando cola e verniz. O nome daquilo era artesanato, algo
que, no final dos anos 1960, começava a ganhar um valor material e
outro ideológico.
“Artesanato”, do latim ars, ou “capacidade de fazer algo”, se tornou
base de uma economia de subsistência criada por jovens desiludidos de
governos, descrentes de guerras e exaustos de repressão. A vida era
mais simples e só precisava de um pouco de couro, verniz, cola, um
violão e um punhado de maconha. Os hippies começavam a aparecer
com força, virando as costas para toda forma de poder e, assim,
iniciando uma proposta de existência centrada na liberdade e na
essência dos seres. Uma alienação consciente e uma resistência
amorosa prestes a ecoar através de plataformas poderosas no fim da
década. Os festivais de rock eram um movimento mundial de cuja
existência Ney não fazia ideia. Ele só queria vender seu artesanato
quando percebeu que seus adereços passaram a ter mais potencial de
retorno do que o teatro. Sua preocupação agora era ganhar o suficiente
para ajudar Renate com as despesas da casa. Agregadora incansável e
inconformada com os desperdícios de talento ao redor, Luli preparou
mais uma investida: “Arrume suas peças, Ney. Vamos fazer umas
vendas na casa do Roberto Carlos”.
As conexões de Luli foram feitas nas aulas de violão. Uma de suas
alunas era Sarah Clark, secretária de uma gravadora e amiga da mulher
de Roberto, Cleonice. Nice e Roberto tinham pouco tempo de casados
e, apesar de morarem em São Paulo, passavam temporadas no Rio
para os compromissos do cantor. Roberto já era imenso e milionário,
consagrado por sua versão iê-iê-iê desde os primeiros dias com Erasmo
e Wanderléa à frente do programa Jovem Guarda e por sua reinvenção
romântica com o primeiro lugar no Festival de San Remo cantando
“Canzone per te”. Se quisessem ouvi-lo, bastava ligar o rádio e escolher
entre “Se você pensa” e “Ciúme de você”. Se quisessem vê-lo, uma ida
à banca mostraria sua coleção de carros importados, a nova mansão no
Morumbi e suas viagens pelo mundo nas capas da revista Fatos &
Fotos.
Ney era um artesão sem destino, um franciscano sem religião. Cada
vez mais imerso na filosofia hippie, o estilo de vida que parecia ter sido
criado sob medida para justificá-lo num mundo sempre pronto a torná-lo
um desajustado, acreditava na transformação do mundo por uma via
que não contemplava bens materiais, deuses, carros importados,
viagens nem ídolos pop, e costumava se lembrar de dinheiro em
momentos pontuais, como, por exemplo, quando as paredes do
estômago se colavam umas nas outras. Não mendigava por vergonha e
por Beíta, mas, nas piores fomes, entrava em um bar, pedia um copo de
água e, discretamente, o adoçava abrindo o açucareiro do balcão para
roubar duas colheres. Era sua refeição. Se quisessem vê-lo ou ouvi-lo,
lá estava ele, na casa de Luli, fazendo miçangas no tempo útil e, no
livre, atendendo aos pedidos da amiga para cantar.
A casa de Roberto era grande e mal se via sua frente quando se
chegava pelas ruas arborizadas do condomínio Jardim Pernambuco, no
Alto Leblon. Luli, de violão no estojo, tinha um pretexto oficial e um
propósito secreto para levar o amigo ao castelo do Rei. O oficial era
fazer negócios com Nice vendendo peças para uma cliente que
compraria um caminhão delas se quisesse. E o secreto, algo que não
disse nem a Ney, era fazer Roberto ouvi-lo e torcer para que a natureza
cuidasse do resto. Quando todos estivessem felizes entre vinhos, anéis
e colares, Luli posicionaria o violão e diria algo como “Neyzinho, cante
aquela”.
Ney cantaria e, ao ouvi-lo, Roberto se deixaria afundar em seu
Chesterfield, pronto para levá-lo à gravadora de discos mais próxima
antes que a noite terminasse. A primeira parte deu certo. Nice amou as
peças feitas por Ney e comprou muitas delas, pagando o equivalente a
um mês de trabalho. A segunda, nem tanto. Ney não via em Roberto
um Caetano Veloso, mas sabia de seu tamanho e o admirava como
cantor romântico. Juntando o respeito ao fato de não se julgar ele
mesmo um cantor, acuou-se sentado no braço do sofá e cantou travado
e sem alma, apenas para atender a dois ou três pedidos. Ao voltar para
casa, era o mesmo Ney, com a diferença de que trazia no bolso
algumas notas a mais.
A fama de artesão cresceu e o devolveu à trilha do teatro. Um amigo
que sabia de seu jeito com os adereços o indicou à cenógrafa Sara
Feres, que participava da montagem de O coronel de Macambira, de
Joaquim Cardozo. O elenco amador contava com 36 universitários
dirigidos por Amir Haddad, entre eles uma carioca de vinte anos em
começo de carreira chamada Renata Sorrah. A trilha sonora, de Sérgio
Ricardo, era inspirada na cultura nortista do bumba meu boi e todas as
matérias nos jornais saudavam a “primeira produção do Tuca Rio”, o
Teatro Universitário Carioca. Apesar das entrelinhas, nas quais a
perseguição do coronel ao lavrador simboliza o estrangulamento de
uma nação, a censura pré- -5 não entendeu que o papo era com ela e
liberou a montagem. Embora Ney trabalhasse dias e noites nos
acessórios usados pelos atores, seu nome não aparecia na ficha
técnica e o retorno financeiro, como de praxe numa organização teatral
estudantil, era apenas simbólico. Mas foi assim, conhecendo Sara
Feres, que ele deu o passo seguinte: São Paulo.

A São Paulo de 1967 não se parecia com nada do que Ney conhecia.
Sua única estada na cidade havia sido nos primeiros dias no ventre de
Beíta, quando foi concebido no quarto da pensão trêmula da praça da
Sé. Agora, aos 26 anos, chegava motivado pela colega Sara, que lhe
sugeriu viver na terra onde o teatro acontecia e pedia por alguém com
seus dotes. Até que algo o fizesse bater asas mais uma vez, Ney
poderia viver na casa da amiga. Um mês depois, ele já conseguia um
endereço mais confortável. Um sobrinho de Sara, artista plástico,
estava esvaziando seu ateliê na Bela Vista, no Centro, e Ney poderia
ficar com ele desde que assumisse o aluguel pago à família da
espanhola Angela. Eram dois cômodos com um banheiro no quintal.
Ney dormiria num deles e, no outro, montaria sua oficina.
São Paulo exigia persistência. Ney percebeu logo que,
diferentemente do que ocorria em Campo Grande, no Rio de Janeiro e
em Brasília, as pessoas usavam escudos quase sempre
intransponíveis. Mantinham suas vidas fechadas até o momento em que
davam uma chance ao estranho, colocando-o numa esteira de relações.
Se aprovado, um desconhecido tornava-se um conhecido que poderia
virar colega e, depois de anos, quem sabe, amigo. Mas, em geral, os
promovidos seriam amigos mesmo, não das simpatias de conveniência,
mas com os quais se poderia contar.
Os problemas aumentavam quando o estranho era Ney, um sujeito
mal-ajambrado de rabo de cavalo e roupas fora dos padrões que
caminhava pela rua Treze de Maio. O bairro de famílias católicas
italianas e espanholas fiéis a Nossa Senhora Achiropita, apesar de
concentrar teatros progressistas como o Oficina, não escondeu a má
vontade com o novo morador. Ney ouvia as janelas das casas baterem
com força assim que ele passava. Um dia, perguntou a Angela onde
poderia tomar sol e ela respondeu que ali mesmo, no quintal. Aliás,
tomar sol lhe pareceu uma boa ideia. Ney vestiu a sunga, Angela
esticou a toalha e os dois se deitaram diante do bater de janelas
envergonhadas da Bela Vista.

Sargento Matto Grosso só havia visto o filho uma vez desde sua
partida em 1958, quando decidira ir a Brasília sem fazer alarde. Numa
rápida estadia, soube com o que Ney trabalhava no Hospital de Base e
voltou para casa desapontado. “Beíta, ele tira pedaço de gente morta.”
A família seguia vivendo em Campo Grande: o pai, a mãe, Grey, Cinara
e Naira. Gay havia ido para Três Lagoas em busca de trabalho e Ney
cumpria a promessa de não pedir socorro nem nos dias de fome. Agora,
disposto a se reaproximar, Matto Grosso chegou a São Paulo com o
endereço do filho sem imaginar o teste que a vida lhe preparava. Pois
justamente naquele dia Ney receberia os amigos mais libertários —
artesãos, atores e hippies, quase todos gays — que se arrumariam em
sua casa antes de saírem para uma festa. Assustado, Matto Grosso se
manteve quieto até que todos partissem e ele fizesse uma última
tentativa: “Ney, volta pra casa que eu arrumo emprego pra você”. Mas o
filho respondeu: “Você não está entendendo. Eu sou feliz aqui e tenho
liberdade, não quero seu dinheiro”. Sentindo o golpe, o pai subiu o tom:
“Esses amigos são todos viados e putas”. E Ney rebateu: “Isso não
interessa. Na minha casa, você não tem direito de opinar sobre eles”.
Antes que um novo rompimento os separasse por mais dez ou quinze
anos, Matto Grosso retomou a calma e mudou de assunto. “Eu peguei
sua irmã agarrada a um namorado debaixo da árvore.” Mas era o
mesmo assunto. “Pai, você já conversou sobre sexo com ela?” “Mas
como é que vou falar sobre isso com uma menina?” “E a mãe,
conversou?” “Não, sua mãe também não fala disso.” “Então, ela vai
aprender na rua, como eu aprendi.” Muitas conversas interrompidas
vieram à tona naquele dia, até que o sargento se despediu marcando
um encontro com o filho no hotel onde estava hospedado.
Ao chegar na hora combinada, Ney percebeu que o pai analisava
suas roupas com uma atenção especial à calça justa cor de laranja: “Da
próxima vez, não venha com essa calça, por favor”. Nada havia
mudado. “O quê? Você está mais preocupado com a minha calça do
que comigo? Não se preocupe, não volto mais.” Antes que o militar
retornasse a Campo Grande, porém, pai e filho se falaram mais uma
vez e marcaram uma despedida em frente ao antigo prédio do jornal
Estadão, na rua Major Quedinho. Um encontro breve e de poucas
palavras, mas com um detalhe que viria a modificar a relação dos dois.
Ney, acostumado a beijar os amigos no rosto para se despedir, disse
tchau, abraçou o pai e lhe deu um beijo sem pensar no que estava
fazendo. Matto Grosso, que nunca tinha sido beijado por um homem,
reagiu desconcertado, olhando para os lados. Mas algo no coração do
pai se abriu e, a partir daquele dia, eles se beijariam em todos os
encontros.
Ney começou a profissionalizar seu artesanato com equipamentos
novos e uma bancada para atender aos pedidos que chegavam dos
donos de butiques da rua Augusta. Jamais fazia uma peça igual a outra,
reproduzindo, por exemplo, um mesmo cinto 150 vezes, mas até
aceitaria fazer 150 cintos diferentes. Um sócio entrou no negócio para
dividir lucros e despesas, mas o tempo de dois anos licenciado do
hospital em Brasília estava no fim. Ou Ney retornava para reassumir o
posto e o salário, uma fortuna equivalente a três vezes mais do que
ganhava como artesão, ou perderia a vaga do emprego com carteira
assinada. Depois de pensar muito, deixou as chaves do ateliê com o
sócio e partiu de volta para o Distrito Federal. Passado algum tempo,
entendendo que o parceiro não regressaria, o sócio fechou a oficina,
vendeu todos os equipamentos sem consultá-lo e sumiu.

Brasília de 1968, exceto pelos generais que se revezavam em suas


cadeiras, era a mesma de 1966. Mas Ney não era. Estava decidido a
não voltar a cantar na noite nem a atuar. Adeus, grupos vocais,
programas de , festivais universitários, La Cave des Rois, namorados
suicidas. Vicente Pereira comemorou o retorno do amigo e dona Odete,
comovida com o que o filho postiço havia aprendido a fazer no Rio,
cedeu o quintal de casa para ele montar seu ateliê. O foco estaria agora
no Hospital de Base por no mínimo mais dois anos quando, se nada
desse certo, ele tiraria uma nova licença não remunerada por outros
dois anos e cairia no mundo. Ney solicitou troca de setor, do
Departamento de Cardiologia para a ala infantil. Queria trabalhar com
as crianças, os únicos seres em Brasília que pareciam adorar seu novo
visual hippie, muitas delas internadas em estado terminal, abandonadas
pelos pais ou vítimas de violência doméstica. A área que os
profissionais em geral evitavam pelo desgaste emocional que causava
era a que ele queria transformar. Com parte do salário, comprava tinta,
barro e argila em cidades vizinhas para dar a pequenos pacientes a
sensação de ver objetos nascerem de suas mãos.
Ney ganhou uma sala vazia para recreação ao lado de um bosque de
eucaliptos onde deixava as crianças tomarem sol. Sozinho, levou-as ao
zoológico, conduzindo sem ajuda as que precisavam de cadeira de
rodas. Seu apego crescia. Ao ver enfermeiros manipulando agulhas e
sondas sem delicadeza, exigia mais cuidado. O instante, como no
teatro, era só o que importava para crianças que poderiam partir no dia
seguinte.
Uma menina de quatro anos chamada Luzinete deu entrada no
hospital com metade do rosto deformada pela violência dos pais.
Recebeu os cuidados de Ney e foi devolvida à família assim que teve
alta. Dias depois, Luzinete foi encontrada quase morta, num capinzal,
com o corpo tomado por formigas. Havia sido estuprada pelo pai. Ney
queria matar o homem que a machucou. Foi atrás de informações sobre
seu paradeiro e descobriu apenas que ele vivia numa das cidades-
satélites mais afastadas e vulneráveis da região. E que estava foragido.
Quando Luzinete voltou aos seus braços para ser tratada mais uma
vez, o tio hippie entendeu que a vida da menina importava mais do que
a vingança.
Os dois anos de devoção aos pequenos pacientes pareceram breves
e o tempo se abriu mais uma vez, tornando a atrair Ney para as
fantasias do teatro, o lugar onde tudo dava a impressão de ser
imensamente mais suportável. Seus amigos do Rio mandavam notícias.
Havia a energia catalisadora de Luli, morando agora em Santa Teresa e
casada com o fotógrafo Luiz Fernando; Renata Beija-Flor e sua
generosidade de emergências; a leal Elvira e seu aconchego de
Copacabana; novas oportunidades de trabalho; e o desconhecido,
aquele que sempre aparecia para oferecer as melhores condições. Ney
decidiu retornar ao Rio mesmo enfrentando uma despedida difícil.
Luzinete ficaria aos cuidados do hospital até se curar, mas ninguém
sabia responder se ela corria o risco de, um dia, voltar aos braços dos
pais. Foi a única dor que Ney sentiu ao partir.
5. “Cante como o Wilson Simonal!”

Ney entrou na casa do Jardim Botânico como um homem de


negócios. Vinha arrumado em trajes sérios até onde o espírito hippie
permitia e trazia uma maleta 007 que não combinava com o resto do
conjunto. O rapaz de Brasília havia chegado à residência de Gilda
Vandenbrande e Sonia Hirsch depois de um ator assegurar que ele
tinha talentos de artesão e poderia ajudar com os adereços da peça que
elas estavam produzindo. Ney abriu a mala e começou a retirar dali
amostras do que sabia fazer. Enquanto ele falava, Gilda avaliava seu
rosto. Aqueles olhos pareciam capazes de expressar várias emoções e
a abertura entre os dentes da frente o fazia quase que um personagem
natural. Mal ele terminou, Gilda quis saber: “Você atua?”. Ney contou do
curso em Brasília e da peça de Dias Gomes, mas confessou jamais ter
estado diante de uma plateia de teatro. “E não interessa tentar?”
Gilda Vandenbrande havia começado a criar canções para Dom
Chicote Mula Manca e seu fiel companheiro Zé Chupança a pedido da
atriz Cleyde Yáconis. A peça era uma adaptação infantil bem-humorada
de Oscar von Pfuhl para o clássico de Cervantes, Dom Quixote de la
Mancha. Cleyde desistiu da montagem quase ao mesmo tempo que
outra atriz, Regina Duarte, se interessou por ela. De passagem pela
casa de Gilda, Regina ouviu as músicas quase prontas e pediu para
participar do projeto assim que tudo estivesse certo. Com a ajuda da
amiga jornalista Sonia Hirsch, o espetáculo foi ficando de pé e o ator
Paulo Lara foi chamado para dirigi-lo. Além de contar com a projeção
dos desenhos de Henfil, necessitariam de adereços para o figurino, e
era por eles que Ney estava ali. Mas sua fala delicada, o sorriso quase
infantil no rosto fino e os cabelos presos como se fossem a última
resistência de alguma ordem naquela criatura abriram uma segunda
possibilidade. Ney era o próprio espantalho.
O ator perfeito para encarnar um dos mais ricos personagens da
adaptação: foi assim que Gilda o viu. Era só ficar imóvel, deixar o olhar
distante, os braços frouxos e o corpo entregue mas não morto até que o
momento chegasse. O rei ordenara a Dom Chicote, interpretado por
Gilberto Bartholo, que fosse procurar pelas ovelhas roubadas ao lado
de seu escudeiro, Zé Chupança, vivido por Regina Duarte. O foco da
peça, uma crítica às corrosões da ética provocadas pelo poder que a
ditadura não interceptou por falta de compreensão, era a viagem de
Chicote, alucinante e perigosa. Ao avistar o espantalho, o cavaleiro, em
seus delírios, pensa tratar-se de um gigante. Os dois precisam duelar,
mas o espantalho não tem armas. Zé Chupança, então, entrega uma
lança ao personagem de Ney que, sem jeito, tenta equilibrá-la enquanto
monta em seu cavalo imaginário, movendo-se como se desenhasse
gestos no ar e simulando com o peso quase insuportável de sua única
arma um estonteante balé de pernas e braços antes de se ajustar e sair
para o combate. As crianças vibravam no Teatro Casa Grande e, da
coxia, Gilda e Sonia se emocionavam ao ver a transformação do
artesão em espantalho.
Regina Duarte voltava ao teatro depois de tê-lo deixado havia algum
tempo para estrelar algumas das primeiras novelas brasileiras. Sua
escalada tinha começado em 1965 com Malu, de A Deusa Vencida, da
Excelsior; passara por Regina Célia, de Legião dos Esquecidos, que
teve sua estreia em 1968; e chegara à Globo com Andreia, de Véu de
Noiva, iniciada em 1969. De tanta doçura que colocava nas mocinhas
que vivia, a atriz acabara de ser batizada de “a namoradinha do Brasil”
graças ao personagem Patrícia, da novela das sete também da Globo,
escrita por Vicente Sesso, Minha Doce Namorada, exibida entre abril de
1971 e janeiro de 1972. Mesmo chorando pelo mocinho Cláudio Marzo,
sua imagem fervia. Minha Doce Namorada havia estreado menos de
dois meses antes do início de Dom Chicote e, por isso, as duas sessões
da peça nos fins de semana lotavam a plateia de quinhentos lugares.
Por causa das gravações, Regina ensaiou algumas vezes de
madrugada, após os espetáculos, observando curiosa os adereços que
Ney criava em silêncio, no camarim, quando não estava atuando.
Ney de Souza, como seu nome aparecia na ficha técnica, também
fazia os papéis menores de mercador e secretário do rei, mas era como
espantalho que recebia os aplausos mais demorados. Ainda nos
ensaios, a preparação do momento em que ele cantaria sozinho havia
intrigado Gilda. Ao passarem a música, ela só conseguia encaixar sua
voz em tonalidades muito altas. No fim, o que seria uma vinheta para
um personagem secundário cresceu e criou desconforto para quem não
queria ofuscar a vedete Regina Duarte. Sozinho, o espantalho
derramava a voz pela sala: “Para ser um espantalho, não precisa muito
não/ Basta fazer três caretas e ficar de prontidão/ Acordar antes que o
sol seja forte de queimar/ Antes que os passarinhos venham para a
horta estragar”. Ingênuo e pueril, mas infalível para deixar o teatro em
festa.

Decidido a voltar para Brasília a fim de pedir as contas no hospital,


Ney seguia em busca de caminhos que permitissem seu sustento. O
teatro garantia muitos prazeres, mas ainda não cobria nem as despesas
básicas. Um amigo que trabalhava na equipe da Sala Cecília Meireles,
na Lapa, disse que havia uma vaga de iluminador de espetáculos. “E o
que é um iluminador?”, perguntou Ney. “É fácil. Você só precisa segurar
um canhão de luz e mirá-lo no artista.” Ney subiu no alto de uma das
torres para fazer um teste com o canhão, sem nenhuma paixão pelo
ofício até entender que a luz que segurava tinha o poder de mudar uma
canção e transformar um texto. Semanas depois de sua estreia na
função que assumia de maneira informal e esporádica, colocou no foco
artistas que participavam de um festival de novos compositores. Estava
indo bem até o instante em que Caetano Veloso entrou em cena e a luz
tremeu.
Num dos dias em que não iria trabalhar, Ney saiu da casa de Luli e
seguiu para a porta da Sala Cecília Meireles a fim de encontrar o amigo
que lhe havia conseguido a vaga para darem uma volta por
Copacabana. Ao perceber que ele demorava, Ney se aproximou de
uma turma de rapazes e perguntou se sabiam dizer a que horas a sala
fecharia. Os homens o mediram, repararam em suas roupas,
desdenharam de seu cabelo e pediram documentos. Sem carteira de
trabalho e com dois cruzeiros no bolso, Ney se tornou suspeito aos
rapazes logo identificados como policiais. “Você não tem vergonha de
andar só com isso?”, perguntaram. “Mas é só o que eu preciso pra
pegar o ônibus”, disse Ney. Eles então o colocaram no chiqueirinho do
camburão Veraneio ao lado de um bicheiro e de uma prostituta
apreendidos na mesma noite e tocaram para o 7o Distrito Policial de
Santa Teresa.
A prostituta chegou chorando e o bicheiro dizendo que já tinha
pagado 20 mil cruzeiros de suborno para um homem chamado Coronel
França naquela semana. Os dois foram logo liberados, mas Ney acabou
sendo levado para uma sala onde começou a ouvir ameaças: “O
delegado vai chegar, pegar você pelo cabelo e jogá-lo na parede”, disse
um policial. “Os presos vão adorar quando você entrar na jaula”, disse
outro. Não havia justificativa para Ney estar ali à espera de um
delegado que, ao que tudo indicava, iria espancá-lo sumariamente
antes de trancá-lo numa cela para ser currado por uma dezena de
presos. Afinal, torturas de potenciais subversivos nem precisavam de
justificativa em 1971. Se era assim, nada também o obrigava a
continuar sendo ético. Ao perceber que os policiais falavam sério,
resolveu dar uma carteirada em nome do pai pela única vez na vida:
“Meu pai é militar e vocês vão ter que explicar isso. Quem manda no
país são eles”. O tom dos policiais mudou e um deles perguntou quase
gentilmente se Ney gostaria de fazer uma ligação. Ele pediu que
chamassem pela amiga Renate Maretzki, namorada de um almirante, e
deu o número. Na manhã seguinte, estava livre.
Apesar do brilho de estreante no teatro, Ney continuava sendo um
ator anônimo, mal pago e posicionado ao fundo das fotos de matérias
que o identificavam só como Nei, com “i” e sem sobrenome. O talento
para criar objetos o fez aumentar a produção de artesanatos e a vender
peças numa feira hippie da Zona Sul na barraca de um amigo artesão.
Ney seguia indiferente aos elogios à sua voz, mas já se sentia
perseguido por um destino que nunca fez parte de seus planos. A
música voltava a ser uma possibilidade depois que amigos o indicaram
para colocar voz em algumas canções que fariam parte da trilha sonora
de um filme. Sem entusiasmo, tomou um ônibus e foi até a Lapa fazer
sua primeira gravação num estúdio profissional. Chegou acuado e
tenso, e passou a contar os minutos para tudo terminar assim que ouviu
o primeiro grito do produtor. “Você precisa relaxar!”
Era a primeira vez que Ney via um microfone como aquele a um
palmo de seus lábios, uma peça grande, intimidadora, típica dos anos
1950. “Você precisa cantar mais relaxado, ter suingue”, pedia a voz que
saía nas caixas. Era tudo muito mais fácil na casa de Luli. “Assim, você
nunca será um cantor!”, insistia o chefe. Sem conseguir o que queria,
Jorge Abicalil, o experiente dono da produtora Tape Spot, responsável
pela gravação e conhecido por não ter diplomacia nem controle do
volume com o qual as palavras saíam de sua boca, deixou a sala
técnica irritado. Aproximou-se de Ney e o chacoalhou pelos ombros.
“Mais solto, rapaz. Você precisa se soltar. Cante igual ao Simonal!” Ney
estava ali para gravar um compacto de quatro músicas que seriam
usadas no filme Pra quem fica… tchau!, com texto, direção e dinheiro
do ator Reginaldo Faria. Paulo Mendonça, o assistente de direção,
sabia do potencial de Ney desde as tardes de sarau na casa de Luli.
Cláudio Tovar, o diretor de arte, conhecia seus agudos desde os saraus
na casa de Paulo Mendonça. E Reginaldo Faria já havia ficado
impressionado durante um sarau em seu próprio apartamento. Mas, ali,
Neyzinho, como os amigos de todos os saraus o chamavam, dava
muito trabalho para Abicalil.
O lirismo nas sílabas pronunciadas com clareza e os laços melódicos
fechando com doçura cada período das canções valiam para as
cantigas de amor, mas não para as de escárnio que Abicalil imaginava
para o filme. A história pedia mais malandragem do que sensibilidade:
Lui, um primo do interior, vivido com palmas da crítica por um ator de
dezessete anos vindo de Goiás chamado Stepan Nercessian, chegava
ao Rio para morar com o bon vivant Didi, feito por Reginaldo Faria, mas
acabava invadindo um campo perigoso ao se apaixonar por Maria, uma
bela mulher, casada e bem mais velha, interpretada por Rosana
Tapajós.
Ao perceber que as canções não sairiam com o molho que havia
imaginado, Abicalil sugeriu passá-las a outro intérprete. Ney estava
ainda mais travado desde que soube que, ao menos naquela tarde,
deveria cantar “igual ao Simonal”. Assim, o suingado tema de abertura,
composto por Jorge Omar, e “A motocicleta”, de Omar e Roberto
Abramson, foram gravados pelo músico de estúdio Leonardo Bruno,
quatro anos mais novo do que Ney, filho do clarinetista Abel Ferreira e
com trabalhos prestados a Gilberto Gil e Erlon Chaves. Leonardo
entregou a encomenda conforme o pedido de Abicalil, partindo para
uma imitação declarada de Wilson Simonal nas duas faixas. No fim,
providencialmente, preferiu creditar seu nome na contracapa usando
um fictício Bill Rivas.
Ney não levava jeito para imitações nem para a chamada soul music
brasileira, utilizada também para atrair jovens às salas de cinema, como
havia mostrado o diretor Roberto Farias, irmão de Reginaldo, ao tornar
Roberto Carlos e o diamante cor-de-rosa o filme brasileiro mais visto de
1970, com 3 milhões de espectadores. Se já não sonhava com a vida
de cantor, Ney se calava definitivamente quando não era tocado pela
letra de algo que lhe pediam para cantar. Assim, o impasse no estúdio
foi resolvido deixando para ele “A estrada azul”, de Reginaldo e Paulo
Mendonça, usada como fundo para algumas cenas de paixão, e “Tema
de Maria”, um vocalise de autoria de Reginaldo para os mesmos fins.
Existe ainda uma terceira música gravada por Ney, um samba de Jorge
Omar e Billy Blanco que diz “olha, meu companheiro, sei a tua dor, tiro
certeiro quem foi que atirou…”. Ela não foi inserida no álbum e a fita
com a gravação se perdeu logo depois de Abicalil vender sua produtora
a um comprador que, sem conhecimento, passou o material adiante
como sucata. Assim, o samba sem nome só pode ser ouvido a partir
dos 45min50s do filme.
Ao retornar para casa de carona com Reginaldo Faria após a
conturbada sessão no estúdio, Ney, abatido, olhou para o céu e se
lembrou de algo. Ele estava em Brasília quando um ponto de luz surgiu
num horizonte não muito distante e passou a segui-lo, como se o
observasse. “E aquele ponto me acompanhou por muito tempo como se
quisesse dizer alguma coisa, até eu chegar ao meu destino”, contou
Ney a Reginaldo, com os olhos fixos em alguma estrela. “Ney”, disse
Reginaldo. “Eu queria pedir desculpas pela forma como o Abicalil falou
hoje com você.” “Tudo bem, eu já entendi como ele funciona”,
respondeu. Ao ouvi-lo falar da luz, Reginaldo, embora nunca tenha
contado a Ney, teve a certeza de que algo grande estava reservado ao
amigo.
A volta ao Rio também recolocava Ney em contato com a turma de
Luli. A casa de Santa Teresa tinha o mesmo magnetismo da garagem
da Tijuca, deixando-o à vontade para criar artesanatos, pintar quadros,
seu novo passatempo, e cantar com a amiga quando faltasse algum
aluno de violão. Luli acabara de retornar de uma construtiva temporada
no quarto de um hotel no centro de São Paulo, onde o marido, Luiz
Fernando, trabalhou com o diretor Roberto Farias no filme Roberto
Carlos a 300 km por hora. Tinha sido uma viagem libertadora. Luli não
cantava profissionalmente desde que a gravadora Philips lançou seu
primeiro álbum, em 1965, com arranjos dos quais discordava e letras
com pouco da contestação que ela havia proposto no material original.
O trauma do interditou sua inspiração até aquele instante, quando
novas músicas jorraram no quarto do Othon Palace, no viaduto do Chá.
Luli esperava o marido escrevendo, compondo e fumando maconha,
à qual creditava boa parte do seu desbloqueio criativo. Numa de suas
saídas, aceitou o convite de um amigo de Luiz Fernando que trabalhava
na equipe de Roberto Farias e foi com ele e alguns colegas até o
número 500 da rua Almirante Marques de Leão, no Bexiga. Entrou
pelas portas apertadas do Kurtisso Negro, chamando a atenção com
seus cabelos vermelhos, e vibrou com o típico inferninho da São Paulo
de 1970, que tinha entre seus sócios o húngaro Péter Thomas
Szenttamásy.
A casa antiga de fachada estreita e janelas de madeira, como quase
todas as construções da região erguidas por imigrantes italianos no
início do século , era um ambiente para artistas livres que usavam as
paredes para expor quadros e o palco para mostrar canções autorais
tocadas em pequenas formações acústicas. Seu frescor cool atraía
nomes como Pedro Albarran, um pintor de 23 anos que investia numa
espécie de surrealismo erótico, e uma plateia constituída por jornalistas,
decoradores e, em algumas noites, até pelo milionário conde Francisco
Matarazzo.
O nome Kurtisso Negro ia se justificando a cada passo que se dava
em direção ao salão principal. Os clientes chamavam de terreiro o
quintal interno, que era disputado nas noites quentes com mesas e
bancos rústicos e, no inverno, com latas de carvão para serem acesas.
O que valia mesmo, segundo os boêmios, era o som. Szenttamásy
adquiria bons amplificadores para criar uma qualidade sonora que se
sobrepusesse aos ruídos da vizinhança.
Sua programação valorizava trabalhos autorais, mas não desprezava
grupos de rock cover no ano em que os jovens não precisavam de mais
que duas guitarras, baixo e bateria para serem felizes. Depois de o
Creedence Clearwater Revival estourar a balada “Who’ll Stop The
Rain”; o quarteto Crosby, Stills, Nash & Young imortalizar o álbum Déjà
Vu; e James Taylor lançar “Fire and Rain”, o mundo parecia se resumir
a um violão e uma gaita. E foi justamente esse o mundo que abraçou
Luli quando ela sentou a poucos metros do palco para ver um jovem
barbudo com sotaque português cantando de pé, com um violão de
doze cordas colado ao peito e uma gaita no pescoço, de nome João
Ricardo.
João e seu grupo, chamado Secos & Molhados, dividiam as noites de
sexta a domingo com os cantores Leo, que se acompanhava ao violão,
e Eleuda. À esquerda do intérprete, um pouco à frente, ficava o
percussionista Fredy agachado diante de um bongô e, do lado esquerdo
de Fredy, Pitoco, apelido de Antonio Carlos de Lima, cantor e violeiro
apontado como o destaque do trio pelo jornalista Wladimir Soares: “O
mais profissional dos três, que acaba de gravar duas composições na
Chantecler”. Ele se referia a um compacto que trazia de um lado a
canção de um acorde só intitulada “Que saudades tenho do meu largo
da matriz” e, do outro, “Marta”, ambas com arranjos do mentor
tropicalista Rogério Duprat. A primeira consideração mais profunda
publicada na imprensa sobre os Secos & Molhados, nome inspirado no
letreiro de um armazém que João viu numa viagem a Ubatuba, foi
escrita por Wladimir, em 21 de abril de 1971: “João e Pitoco cantam e
compõem e o conjunto só executa músicas próprias. O som dos
meninos é realmente fantástico e empolga os frequentadores. Sua
música é agressiva e suave ao mesmo tempo, num estilo bastante novo
e diferente do que temos visto por aí”.
Assim que o show terminou, Luli e João se cruzaram no salão e logo
se tornaram amigos. Fãs dos mesmos ídolos, os dois tinham canções
guardadas que gostariam de mostrar. Conversaram um pouco e
combinaram de continuar se encontrando nos dias seguintes. Do hotel
onde estava, Luli saía para passar as tardes no prédio da alameda
Ribeirão Preto onde a mãe do colega fazia bacalhoadas e ele, com um
corte de cabelo imitando John Lennon, cantava músicas dos Beatles.
João lhe mostrava também composições suas ainda sem letra. Luli
levou uma delas para o hotel e a devolveu dias depois com o nome de
“Fala”. Outra, um rock bem-humorado que remetia às origens lusitanas
do pai de João, o poeta e jornalista português João Apolinário, se
transformou, com os versos de Luli inspirados no jargão usado por
amigos à mesa dos bares com um copo de cerveja na mão, “O vira”.
João Ricardo falou sobre sua ideia de musicar poemas conhecidos de
Vinicius de Moraes, Cassiano Ricardo e Manuel Bandeira para driblar a
sanha da censura, uma vez que todos já teriam sido publicados, e Luli
achou genial.
Mas João tinha um problema. Sua banda mal existia e já sofria uma
baixa considerável quando Pitoco entendeu duas coisas: os Secos &
Molhados e o Kurtisso Negro eram pequenos demais para suas
ambições. E talvez qualquer grupo fosse pequeno demais para ele e
João Ricardo, dois líderes natos. Sentindo os ventos a favor, com o
elogio de seu compacto por pequenas matérias de jornal e o anúncio
por algumas notas de que ele já tinha dezessete canções prontas para
virarem , Pitoco informou sua saída e disse adeus para não voltar
mais aos Secos & Molhados nem chegar a lugar algum, já que seu
jamais foi lançado e sua carreira naufragou, tornando seu único
compacto uma raridade de colecionador. Meses antes, João havia
perdido outro parceiro, um jovem que conheceu com uma provocação
enquanto jogava pingue-pongue num prédio vizinho. Depois de vencer
várias partidas, João olhou para os garotos que esperavam sentados
para jogar com o vencedor e prescreveu o futuro com uma soberba
indisfarçável: “E aí? Tem mais alguém?”.
Gerson Conrad se levantou para vingar a honra do Edifício São
Roberto. “Tem eu.” Apanhou a raquete, posicionou-se à mesa e tudo
começou a se definir bem rápido, com uma série de saques de João
convertidos em pontos diretos ou, quando rebatidos, contra-atacados
com cortadas de uma velocidade indefensável. Na quinta derrota,
Gerson decidiu assumir as fraquezas e mudou de assunto até
passarem a falar de música e o jogo virar a seu favor naquele embate
de garotos que se conheciam demarcando territórios.
Violão era o saque e a cortada de Gerson, instrumento que dominava
com alguma técnica e dedilhado espanhol. Não era um Paco de Lucía,
mas tinha conhecimento teórico e havia estudado com um senhor vindo
da Espanha como exilado político e falante de um castelhano arcaico
com o qual se dizia discípulo de Andrés Segovia. Um mestre que
passou a ver Gerson como um seguidor com tanta determinação que,
aos poucos, tornou as aulas impraticáveis. Se João admirava o folk
inglês de Donovan, Gerson dizia apenas respeitá-lo. Se João defendia a
audácia dos Rolling Stones, Gerson não a negociava com a sagacidade
dos Beatles. Mas, se João queria mesmo formar um grupo e procurava
por um guitarrista com boas intenções, ali havia um, ele, Gerson
Conrad.
Vizinhos de prédios que ficavam a poucos metros de distância na
mesma calçada, João e Gerson passaram a se alimentar das forças
que um percebia no outro. João era criativo e dono de uma linguagem
que reunia fragmentos de seus ídolos. Gerson sabia de acordes, tinha
ideias abrangentes, ouvidos generosos e abertura para identificar uma
boa ideia mesmo quando ela não fosse sua. Sem técnica e com o
reduzido conhecimento em acordes, João surgiu com uma música feita
em poucos dias para a namorada. “Como ele consegue?”, pensou
Gerson. Havia um ensinamento ali. Canções podem ser compostas com
três acordes quando existe uma boa dose de fé no próprio talento.
Enquanto João precisava de pouco para servir seu banquete, Gerson
dispunha dos ingredientes, mas precisava aprender a pôr a mesa. João
acreditava em si com uma certeza inquestionável, que Gerson ainda
não tinha, mas essa poderia ser também daquelas virtudes pendulares,
úteis para o bem e para o resto.
Confissões musicais entre garotos dos anos 1970 podiam ser
sentimentalmente tão poderosas quanto pactos de sangue, mas João e
Gerson, ainda que respirando sobre os mesmos s, guardavam-se
detrás de barreiras emocionais que nunca seriam transpostas. A não
ser por uma noite de fim de ano em que João, tendo tomado alguns
goles de vinho, falou do vazio que sentia pela separação dos pais,
Gerson nunca enxergou a alma do amigo. Assim que precisou decidir
entre o que a família esperava de seu futuro e o futuro do trio Erick
Expedição, o grupo que formara com João e outro amigo na percussão,
Gerson decidiu pela honra dos Conrad. Deixou João Ricardo com os
sonhos e foi atender às convocatórias dos dezoito anos. Do Exército,
acabou dispensado por excesso de contingente quando já amarrava o
segundo coturno, no dia em que começaria a servir aos comandos do
presidente-general Emílio Garrastazu Médici. Já o curso de arquitetura,
primeiro na e mais tarde na Braz Cubas de Mogi das Cruzes,
seguiu até o fim.
João trazia a fervura do pai, João Apolinário, português que fazia de
seus poemas plataformas de discursos por uma liberdade incondicional.
Escritor, jornalista e crítico de teatro, ele chegou ao Brasil no final de
1963, depois que as palavras que escrevia começaram a lhe cobrar um
preço alto demais e a repressão de seu país passou a asfixiá-lo. Seu
livro Morse de sangue, de 1955, trazia versos com um punhado de
inconveniências políticas como “é preciso avisar toda a gente/
Transmitindo este Morse de dores/ É preciso imperioso e urgente/ Mais
flores mais flores mais flores” e “Quem tem consciência para ter
coragem/ Quem tem a força de saber que existe/ E no centro da própria
engrenagem/ Inventa a contramola que resiste”.
Apolinário não deu sorte na escolha do exílio, caindo numa terra às
vésperas do início de uma tenebrosa parada militar que duraria 21
anos. E, ao mesmo tempo, deu. Já treinado em língua portuguesa na
arte de escrever pelas casamatas dos textos de jornais, serviu à
assustada imprensa brasileira com profissionalismo e rudeza e aos
anseios do filho português como farol. Afinal, se o país fosse o arauto
da democracia na América do Sul, o que diriam as bandas de rock? A
ideia de João Ricardo de musicar poemas, incluindo os do pai, havia
deixado Luli extasiada, mas, sem Pitoco e Gerson Conrad, tudo voltava
aos rascunhos. João sabia que precisava de boas peças para compor
seu tabuleiro e, depois de agradecer aos elogios de Luli no Kurtisso,
revelou sua busca. Ele iria tentar convencer Gerson a voltar, já que as
questões que o fizeram sair deveriam estar resolvidas, e procurar por
um cantor de voz aguda. “Uma mulher?” Não, mas um homem que
chegasse aos cantos aos quais só as vozes femininas conseguiam
chegar. Luli sabia onde encontrá-lo.
“Nestor, você disse que me pagaria.” “Hoje não, Ney, não dá.” “Mas
ontem você disse pra eu voltar hoje.” “Não enche, Ney, não tenho
dinheiro.” “Então faz o seguinte: quando tiver, enfia o dinheiro no meio
do seu cu.” Ney espumava em frente a Nestor de Montemar, ator e
produtor que havia lhe encomendado os adereços da peça Tem piranha
na Lagoa depois de saber de seus trabalhos em Dom Chicote. Mesmo
com as críticas positivas do jornal O Globo e com o ótimo público que
comparecia ao teatro New Catacumba, na lagoa Rodrigo de Freitas,
Montemar seguia firme em sua estratégia de vencer o cobrador pelo
cansaço. Quando Ney vinha, ele dizia “passe amanhã”. Se voltasse,
dizia “não enche”. Tem piranha na Lagoa contava com um elenco que
não deveria estar ali por um sanduíche de mortadela. Além de
Montemar fazer uma imitação de Gal Costa carregada nos trejeitos,
havia Sonia Mamede, Nena Álvaro Moreira, Lígia Diniz, irmã de Leila, e
Vera Setta, que surgia com uma peruca de miolos de fitas cassete feita
por Ney e completamente nua, a primeira mulher nua que Ney via em
cena e pensava como ela conseguia aquilo em plena ditadura. O texto
era de Oduvaldo Vianna Filho e a direção de Paulo Afonso Grisolli.
Com cada vez menos reservas além do que ganhava vendendo
peças na feira de Ipanema, onde viu Janis Joplin entornar uma garrafa
da cachaça Fogo Selvagem, e vivendo na casa do amigo baiano ex-
bancário classe média e novo hippie Paulo Cesar, em Copacabana, Ney
só queria receber o combinado pelo trabalho de aderecista, mas a
estratégia de Montemar havia funcionado mais uma vez e ele voltou
para casa sem nada.
A era do esplendor hippie oferecia bons discursos à vida de Ney, mas
ele evitava legitimar sua sobrevivência na linha do suportável usando o
charme dos desapegados, uma postura que não mudou nem depois de
ele ver pela 400 mil jovens descamisados cantarem por três dias
quase sempre chuvosos numa fazenda nos arredores de Nova York
com Joe Cocker e Jimi Hendrix pedindo paz universal, amor livre, não
ao racismo e não à Guerra do Vietnã. Mesmo assinando embaixo de
tudo o que soube a respeito do Festival de Woodstock, Ney não se
engajava em causas que viessem em bloco. Seu estado hippie era
íntimo e vivido silenciosamente, com indignações e ativismos pessoais.
A sorte era que todos, por alguma razão, o queriam por perto. Além de
Luli carregá-lo para casa, uma nova paragem era estabelecida agora na
moradia de Paulo Mendonça e sua mulher, Maria Alice. Um
apartamento no Jardim de Alah, no estreito entre o Leblon e Ipanema,
que Ney já poderia chamar de seu segundo ou terceiro lar.
Sustentado por um fogão capaz de operar o milagre da multiplicação
dos peixes e dos pães em dias de lotação, e por um violão com o poder
de manter afinado até o anfitrião Paulo, que tinha grandes dons para
compor e poucos para cantar, o espaço de setenta metros quadrados
abrigava uma turma que vinha com ideias de teatro, cinema, música e
política. Jovens como Mauro Rasi, Reginaldo Faria, Carlos Vereza,
Stepan Nercessian, Berilo Faccio, Regina Chaves, Márcio Oberlaender,
Lígia Diniz, Wagner Mello, Jorge Omar, André Adler, a própria Luli e
Luiz Fernando em aparições mais raras, e dois egressos de Brasília que
chegavam numa miséria de dar pena: Ney e Cláudio Tovar, baiano
estudante de arquitetura também decidido a ser ator que negociava o
almoço para pagar o jantar. Agora, com um disco gravado, ou meio
compacto, Ney concordou com os amigos que precisava de um nome
maior. Ainda que não fosse importante, era necessário parecer que era
e Paulinho Mendonça, Maria Alice, Cláudio Tovar e André Adler
estavam dispostos a ajudá-lo a resolver o problema.
A ideia viria numa viagem abastecida por muita maconha a Filgueiras,
no Rio, onde Luli e Luiz Fernando tinham uma casa. Ney de Souza
Pereira não compunha nada com coisa alguma e combinações como
Ney de Souza, Ney Souza e Ney Pereira soavam tão fracas quanto
apenas Ney. André Adler olhou para Cláudio Tovar, que se achava em
estado crítico provocado pelas drogas alucinógenas, e disse: “Ney
Tovar”. Com muitos primos e irmãos na família baiana, Cláudio
estranhou, mas riu, que era tudo o que conseguia fazer no momento.
Enquanto ria, alguém se opôs a Ney Tovar, e Adler, mais radical e
apostando na incapacidade de Cláudio de oferecer resistência, foi além:
“Então, Ney passa a ser Cláudio Tovar”. Claudio ficou sério. “Ele vai
usar o meu nome?” “Sim”, explicou Adler. “Você não se chama Cláudio
Antonio Ferreira Tovar? Então, fique com Antonio Ferreira e deixe
Cláudio Tovar com Ney.” Tovar sentiu que estavam roubando sua alma.
“Não!” E ameaçou entrar em pânico. “Não posso ficar sem o meu
nome!” Os amigos riram até que alguém se virou para Ney: “Qual o
nome do seu pai?”. “Antonio Matto Grosso Pereira.” Para Adler e Paulo,
o assunto estava encerrado: “Então pronto, Ney Matogrosso”.
Havia algo de estupendo e reparador no nome Matogrosso, uma
força que levou Ney a usá-lo imediatamente. Foi com ele que o avô
Fausto batizou os filhos nascidos em Bela Vista, fazia parte de sua
história. Ney Matogrosso. O fato de escrevê-lo com apenas um “t” e
numa só palavra não significava rompimento com o pai, mas um acaso.
Ninguém no Rio, em Brasília ou em São Paulo falava do Centro-Oeste
até aquele início dos anos 1970 e, por alguma razão, Ney sentiu que
poderia fazer as pessoas olharem para o outro Brasil. Mais até,
Matogrosso representava não um nome, mas um estado de coisas. Era
selvagem, indígena e místico, algo que poderia defini-lo e explicar sua
facilidade de abrir portas para tudo o que não parecesse ser deste
mundo.
As mensagens de uma leitora de destinos que Paulo Mendonça fez
questão de apresentar a Ney poderiam ser um sinal. Ao ser convidado
para saber do futuro, Ney foi honesto. “Eu não tenho dinheiro pra pagar
essa mulher.” “Eu pago”, insistiu Paulo. Diante dos búzios, a senhora
disse algo que ele já tinha escutado de uma mãe de santo em Brasília:
“Você vai ser um grande cantor”. Mas agora havia mais detalhes e
quase uma data para tudo acontecer. Sua vida, nas lidas da senhora,
estava pronta para passar por uma transformação. Ele iria ganhar
dinheiro, ser famoso e lembrar, em algum sentido, a cantora Carmen
Miranda. Ney saiu descrente da sessão. Carmen Miranda? Ela não
poderia estar falando sério.

Luli havia chegado de São Paulo feliz por fazer as pazes com suas
inspirações no quarto de um hotel e ansiosa por falar com Ney. Após o
vexame na Tupi e de algum desconforto na casa de Roberto Carlos,
sabia que estava prestes a encaixar duas peças importantes. Chamou o
amigo e contou de João Ricardo, do Kurtisso Negro e dos poemas
musicados. Ney disse “tudo bem” sem maior entusiasmo mesmo
quando Luli sugeriu que marcassem um encontro entre João e ele. Ela
ligaria para passar as coordenadas ao rapaz de São Paulo e acertaria
tudo. Ney aceitou, mas pediu que a reunião acontecesse depois de uma
viagem combinada entre amigos que queriam se encharcar de ácido em
uma temporada no santuário hippie de Búzios. Ney, Paulo Cesar e dois
colegas não imaginavam, mas estavam rumando para um rito de
passagem de um deles. Uma despedida ou, como Luli vira em quatro
cartas seguidas do tarô que abriu dias antes, a própria morte. Um Ney
iria morrer para que outro nascesse assim que ele voltasse para o Rio.
Búzios era a imagem da liberdade, quase não havia casas
atrapalhando a sequência de faixas que a natureza dispôs lado a lado.
Coisas que ácido nenhum parecia ser capaz de melhorar: o mar limpo,
as pedras, a vila de pescadores e, ao fundo, um campo verde com
cavalos cor de mel de rabos loiros correndo em volta de lagos e por
entre as pitangueiras. Ney se tornou amigo dos nativos e era levado por
eles para pescar e passar o dia comendo “o que o mato tiver”, como
diziam, caçando ostras e colhendo limão nas árvores plantadas pelos
moradores. Ao chegar com os amigos a uma praça, desembrulhou uma
pílula e a ingeriu para sua primeira experiência com um , a
substância que o levaria ao encontro com algo que jamais poderia
imaginar, uma sensação que o faria chorar e pronunciar a palavra
“Deus”.
Os efeitos do , a dietilamida do ácido lisérgico descoberta num
acidente de laboratório por dois cientistas suíços em 1938 quando
tentavam criar um analgésico para dor de cabeça, prometiam a viagem
sem garantir o destino. Tudo surgia da rebelião cerebral que a droga
provocava com delírios; exacerbação do estado de alerta; alucinação
auditiva e visual; distorção do senso de tempo e espaço; sinestesia,
quando as cores podem ter sons e os sons, textura; onirismo, a
sensação de sonhar acordado; e despersonalização, quando alguém se
sente estranho a si mesmo. Ney experimentou todas as percepções,
menos a última.
Vozes de crianças cantando como se flutuassem pelo ar chegaram
primeiro, uma música tão alta que Ney passou a reproduzi-la. Quando
se virou para saber de onde vinha, foi atraído para um arbusto que
escondia uma pedra cinza com uma concha cor-de-rosa saindo de seu
núcleo. Ele se pôs a chorar entendendo ter encontrado Deus. Mas
mesmo Deus visto por dezesseis horas contínuas num mundo em que o
mar tem ondas de chumbo e as vozes chegam em volumes
ensurdecedores leva à exaustão. O desespero veio por volta da 12a
hora de experiências sucessivas, quando Ney quis interromper o ciclo
chupando laranja e bebendo leite. No dia seguinte, ele saiu para mais
uma sessão de com os amigos numa praia próxima e um rapaz que
eles não conheciam começou a rodeá-los. “Etiene quer ver vocês”,
disse o jovem. “Quem é Etiene?”, Ney quis saber. “Vamos comigo.”
Os amigos o seguiram em direção a outra praia até chegarem a um
jovem deitado numa pedra com as mãos cruzadas sobre o peito,
rodeado por outros homens submissos à sua figura e uma mulher
agachada ao lado. Ney riu. “Ok, já me ganharam pela encenação.” E
Etiene disse: “Aqui só pode existir um chefe”. Àquela altura, parecia
haver mais malucos do que pescadores em Búzios. “Você toma ácido?”,
perguntou Etiene, ingerindo uma pílula. Ney tinha tomado sua dose,
mas aceitou outra. Dois s significavam praticamente uma viagem
sem volta, mas ele estava determinado a não fraquejar. Um dos
rapazes do grupo oposto feriu o braço como se praticasse um ritual e
Ney decidiu que era hora de partir. “Com sangue eu não brinco.” Mas
Etiene e seus asseclas passaram a circundá-lo quando um dos amigos
de Ney se desesperou e mergulhou no mar saltando de uma pedra a
muitos metros de altura para sair nadando com destino à praia. “Um dos
nossos pulou, agora é a vez de vocês”, disse Ney. Mas ninguém teve
coragem e, a partir daí, o xeique de Búzios começou a se comportar
como um súdito, voltando com o grupo de Ney para terminarem aquela
viagem de dormindo todos na mesma cama.
6. Um salto no escuro

Animais e pessoas sobem as ladeiras de Santa Teresa, entre a Zona


Sul e o centro do Rio, por muitas razões desde 1620. Homens
escravizados fugitivos, anunciados em cartazes que divulgavam
generosas recompensas por informações, se sentiam mais seguros nas
chamadas Matas do Desterro. Mais de dois séculos depois,
portugueses usavam seus casarões inspirados pela arquitetura
francesa como esconderijo, imaginando que os mosquitos da febre
amarela não teriam asas fortes o suficiente para voarem até as colinas
de Santa Teresa. E antes disso, em 1877, pobres burros começaram a
puxar os bondes do bairro e suaram o lombo por dezenove anos, até os
veículos elétricos chegarem para rendê-los. Pois quando parecia não
haver mais notícia que retumbasse a memória de santa Teresa, a
padroeira dos professores, João Ricardo e Gerson Conrad chegaram
com seus violões numa manhã de outubro de 1971, pararam em frente
ao sobrado de três andares da rua Joaquim Murtinho e bateram palmas.
O encontro estava marcado para o início da tarde, mas os rapazes
haviam surpreendido a dona da casa com uma serenata à janela perto
das sete da manhã, depois de uma viagem de trem de quase oito horas
em poltronas simples. João vinha sério, com um punhado de músicas e
um projeto de vida. Gerson, um pouco mais apreensivo, fazia sua
primeira viagem para fora de São Paulo. Luli abriu o portão e os
conduziu até o segundo andar pelas escadas. Os três sentaram-se na
sala diante do grande vitral de cinco metros de altura por dois de largura
e passaram a cantar as músicas que Luli e João fizeram nos dias de
Kurtisso Negro.
Ney chegou um pouco mais tarde. Usava bigode largo de pontas
mexicanas, uma barba cerrada mais por abandono que por estilo e
roupas que pareciam ser um número menor que o dele, ressaltando as
articulações. Ao olhar para os rapazes, deu um sorriso e quase não
falou, dizendo estar ali mais para ouvir. Enquanto João explicava a
proposta do grupo com argumentos e canções que tocava com Gerson,
uma voz lhe veio à cabeça, a mesma voz que escutara por outras
razões no quintal da Vila Militar, em Moça Bonita e no quartel da
Aeronáutica. Dessa vez, ela dizia algo que o espantava por um grau de
certeza que parecia bombear alguma substância do peito para todas as
partes de seu corpo, criando uma sensação de euforia enquanto ouvia
os rapazes cantarem “Rosa de Hiroshima”: “Chegou a hora”.
Ele também estava sendo admirado. Sem dúvida tratava-se da voz
que os rapazes de São Paulo procuravam, com um brilho e um alcance
que nem os agudos mais inspirados de Pitoco conseguiam atingir.
Havia um equilíbrio naquele encontro. Se João e Gerson precisavam de
Ney, um rubi escondido em Santa Teresa, Ney tinha a chance de
mostrar um talento só conhecido pelos amigos fazendo algo diferente
de tudo. Em um ano de ouvir Roberto Carlos cantar “Amada amante” e
Toquinho e Vinicius fazerem sucesso com “A Tonga da Mironga do
Kabuletê”, o som dos Secos & Molhados não era o rock dos Mutantes, a
bossa de Jobim, a dos festivais, o romantismo de Roberto, o soul
de Tim Maia, nem a pilantragem de Simonal. Ninguém na sala de Luli
sabia o que seria, mas todos sentiam alguma coisa especial.
A tarde teria sido perfeita não fosse o fato de certas falas de João
terem deixado em Ney um desagradável estado de vigilância. Por algo
que ninguém entendeu, João tratou Luli com uma rispidez curiosamente
canalizada apenas a ela, a dona da casa e responsável por estarem
todos ali. Uma dureza que usava com Luli talvez para dizer a todos
quem mandava no território, o que criou uma indignação que Ney
guardou para entender assim que ajustasse a vida com os
compromissos assumidos no teatro, se despedisse dos amigos e
partisse para São Paulo.
Alguns meses após a visita dos rapazes, Ney sentiu o momento de se
lançar na aventura com os Secos & Molhados quando a produção de
Dom Chicote Mula Manca agendou a estreia da temporada em São
Paulo mesmo sem a participação de Regina Duarte, impossibilitada de
deixar o Rio por compromissos com a Globo. Ao passar na casa de
Paulo Mendonça para se despedir, ganhou uma calça de veludo para se
proteger do frio com um remendo nos fundilhos feito pela mãe de Maria
Alice depois que Paulo sofreu um acidente de moto. Ney se trocou ali
mesmo, jantou, aceitou um dinheiro para comer algo na viagem e
seguiu para a rodoviária. Da janela do apartamento, Paulo e Maria Alice
sentiram o peito apertar enquanto o viam partir pela noite como se tudo
fosse um sonho.

Com uma escova de dentes e uma muda de roupa na mochila, Ney


estava de volta a São Paulo no limite de suas possibilidades. Ele tinha
comprado a passagem de ônibus graças à venda de um despertador de
estimação em Búzios e sua moradia seria um quarto alugado na casa
da amiga de outros carnavais, Sara Feres, no início da rua Amaral
Gurgel. Apesar dos ensaios já marcados com João e Gerson, ele sabia
que a música não pagaria as contas e decidiu continuar no teatro
enquanto os shows não vinham. Na segunda manhã, foi à casa de João
Ricardo seguindo as coordenadas anotadas num papel. João ainda
dormia, mas sua mãe abriu a porta e o deixou ir até o quarto.
Sonolento, João disse bom-dia e ouviu Ney verbalizar aquilo que as
sete horas de viagem no banco sem inclinação de um ônibus até a
Estação da Luz haviam marinado: “Eu vim pra fazer esse som, mas se
você fizer comigo o que eu vi você fazer com a Luli, apanho minhas
coisas e vocês nunca mais vão me ver”. De lá, foi à casa de Gerson e
teve com ele uma conversa mais amistosa. “E então? Vamos
trabalhar?”

Os roteiros de espetáculos publicados nos grandes jornais não


mencionavam o nome de Ney no elenco de Dom Chicote, mas ele
estava lá. Seguia firme fazendo as crianças rirem como o espantalho
que contracenava agora com Débora Duarte e Lourival Pariz. Um
personagem afiado em seus movimentos, porém cada vez mais magro
pelo peso da vida nômade. Depois do Rio, a temporada paulistana
obedecia a um ritmo alucinante, e cortinas subiam e desciam em
inacreditáveis duas sessões diárias, às 9h e às 14h, voltadas para
estudantes, e mais aos sábados, às 16h, e aos domingos, às 10h30.
Ney trabalhava e nem sempre recebia, o que o levava a almoçar e nem
sempre jantar. A sessão das 9h o fazia acordar em horário de soldado
raso, às sete, se arrumar e chegar ao Teatro Anchieta, na Consolação,
a poucas ruas de sua casa, ao menos uma hora antes do espetáculo.
Ao saber que a produção procurava por um diretor musical, Ney
indicou o amigo com quem ensaiava nas horas vagas, Gerson Conrad.
Gerson aderiu aos laboratórios experimentais que o diretor Paulo Lara
gostava de fazer com os atores nos ensaios e se aproximou de Débora
Duarte. Ele estava no lugar certo também no dia em que chegou uma
garota miúda e cheia de desenvoltura para os seus catorze anos. “Eu li
no jornal que havia um teste para uma peça infantil, mas só estou
vendo adultos por aqui.” Era Lucélia Santos, com um brilho que não
precisava de texto. “Ah, não se preocupe que damos um jeito”, disse
Gerson.
Depois de ouvi-la e se convencer de seu talento, Gerson pediu a
Paulo Lara que a incluísse no elenco. Paulo concordou que Lucélia era
um achado, mas lamentou a falta de espaço, já que o único
personagem possível de ser interpretado por uma garota, Zé Chupança,
estava reservado a Débora Duarte. Para não deixar de testemunhar o
nascimento de uma atriz, algo que todo o elenco percebeu, o diretor
criou uma figura que não existia no texto original, um ser da floresta
vestido de legume, para ser narrador da história. Assim que Débora
recebeu convite para gravar novelas e precisou viajar para o Rio,
Lucélia foi promovida a Zé Chupança.
Mesmo com a diferença de idade de quinze anos entre Ney e Lucélia,
os sentimentos da garota a fulminavam sempre que os dois se
cruzavam. Apaixonada por Ney, ela o tinha como uma luz de carisma
sem esforço e ternura reconfortante. Alguma coisa em Lucélia também
o atingia com a mesma força que deixara o elenco perplexo, uma vida
abundante numa menina tão nova e que ele próprio procurava muitas
vezes em si. Havia nascido uma amizade capaz de sobreviver ao dia a
dia de uma montagem e até ao nu que Ney exibia nos camarins do
Teatro Anchieta diante de todos. Um nu que nunca chamou a pequena
Lucélia ao sexo, mas à liberdade.
O estômago doía depois de um jejum forçado de dois dias sem
dinheiro quando Ney, sofrendo com o atraso de pagamentos, chegou
para uma das sessões da manhã. Ele estava no limite e, ao cruzar com
Paulo Lara, deu o ultimato: “Se você não me pagar hoje, não atuo
mais”. A resposta de Paulo mexeu com seus brios: “Você não tem
moral. Isso é hora de me cobrar?”. A discussão foi feia. Ney subiu ao
palco e fez o que deveria fazer, mas saiu decidido a não voltar.
Passados alguns dias, o diretor pediu a uma produtora que fosse à sua
casa negociar o retorno com a promessa de que os atrasos seriam
ajustados. Ney confiou, retomou seus personagens e ganhou um aliado.
Em poucos dias, o diretor iria estrear outro espetáculo infantil no vizinho
Teatro Zaccaro. A menina que viu o Brasil nascer, ou Rosinha no túnel
do tempo, era um musical com texto de Jurandyr Pereira que fazia parte
da programação na cidade em virtude da comemoração dos 150 anos
da Independência do país. Ney e Lucélia ficaram com os papéis
principais.

Um cientista maluco, Dr. Silva, cria uma máquina do tempo capaz de


mandar a menina Rosinha de volta a 1822 para testemunhar os
bastidores da proclamação da Independência. Ney era Dr. Silva e
Lucélia, Rosinha. Cena 1: Surge Dr. Silva de cabelos bagunçados em
seu laboratório, diante de um computador de luzes piscantes e um túnel
do tempo em formato espiral. Ele atravessa o laboratório de um lado a
outro com uma fala desconexa e transtornada e logo sai de cena. Vem
então a menina Rosinha, da plateia ou de um dos lados do palco,
sorridente, falante, pulando amarelinha e, a cada salto, dizendo uma
sílaba da palavra “independência”. Depois de um tempo, Silva retorna
com suas falas atravessadas e, ao ouvir a voz de Rosinha mas sem vê-
la, diz: “Quem fala?”.
A partir daí, começava um diálogo entre Ney e Lucélia que só viu
quem esteve nas tardes de sábado de 1972 no Teatro Anchieta: “Eu,
oras! Não está me vendo, não?”, respondia o personagem de Lucélia.
“Estou. Eu enxergo muito bem. Eu estou vendo muito bem”, dizia o de
Ney, procurando algo nos bolsos. “Cadê meus óculos?” A menina
ajustava sobre o nariz os óculos que estavam apoiados em sua testa.
“Ah, aqui estão”, dizia Ney. Depois de um início de amizade conturbado,
Rosinha insistia: “O que quer dizer ‘independência’?”. “Independência é
uma coisa que eu preciso ter para trabalhar sossegado”, dizia Silva. “E
o senhor não tem?” “Se você for embora, eu tenho.” “E não dá pro
senhor ter agora, só pra eu ver como é?” “Dá, sim. Dá, sim.” Ele então a
empurrava para fora do laboratório: “Pronto. Agora eu tenho”. E a
plateia gargalhava.
A peça era um sucesso nos momentos em que Ney e Lucélia
contracenavam, mas, mesmo quando o salário estava em dia, Ney
enfrentava desafios. No início de uma das apresentações, ao fazer um
movimento de pernas mais longo, ele tropeçou em si próprio, perdeu o
equilíbrio e caiu no tablado, mas se levantou com um pulo e retomou o
ritmo antes que alguém percebesse que o seu mal era fraqueza. Nos
milésimos de segundo entre o tombo e o pulo, ele conversou com Deus
em pensamento. “Você está me testando? Eu não vou desistir.”
Depois de indicar Gerson para cuidar da direção musical de Dom
Chicote, Ney havia falado com Paulo sobre João Ricardo, o outro
colega com quem ensaiava nas horas vagas, para criar a trilha de
Rosinha no túnel do tempo. João juntava partes do texto de Jurandyr
com algumas melodias novas e outras aproveitadas das canções que
preparava com os Secos & Molhados, cantadas por Lucélia, Ney e os
demais atores. Ainda que suas indicações aumentassem seu grau de
influência sobre Paulo Lara, as contas de sua sobrevivência não
esperariam pela vinda de um grupo que, até ali, só existia na cabeça de
três rapazes. Ney tentava se manter em cena em pelo menos dois
espetáculos ao mesmo tempo e, por isso, quando Dom Chicote
encerrou sua temporada, ele foi tentar um lugar em Missa leiga, uma
produção de Ruth Escobar sobre texto de Chico de Assis e direção de
Ademar Guerra.
A bancada de avaliadores pediu primeiro a Ney que ele cantasse
“Meu limão, meu limoeiro”, algo que jamais imaginou que fossem
solicitar na audição de uma peça construída sobre as profundidades do
sagrado e do profano, uma canção bucólica escrita por José Carlos
Burle nos anos 1930 e que tinha voltado a fazer sucesso desde 1966,
com uma gravação cheia de suingue de Wilson Simonal. Ney, que
precisava acreditar na poesia, dizia “uma vez esquindô lelê, outra vez
esquindô lalá” com toda a emoção que poderia surgir de um pé de
jacarandá. A bancada fez algumas perguntas, entre elas, “você tem
religião?”, algo que ele também jamais pensou que poderia surgir no
teste de uma peça chamada Missa leiga. A resposta foi não e Ney foi
reprovado.
Mas outra produção grandiosa da mesma Ruth Escobar, A viagem,
inspirada em Os Lusíadas, de Camões, oferecia a Ney o papel de
marinheiro. Ruth havia destruído a sala de espetáculos no final de 1969
para encenar O balcão, do francês Jean Genet. A história se passava
num bordel frequentado por políticos, policiais, padres e juízes com
textos e situações que o encenador argentino Victor García usava como
metáfora para falar das ditaduras. Com o fim de O balcão, Ruth
entregou a adaptação de A viagem a Carlos Queiroz Telles e o cenário
a Helio Eichbauer. Com quase setenta atores em cena, a peça era vista
em todas as sessões por 366 pessoas que lotavam o prédio da rua dos
Ingleses. Assim como tinha sido com Rosinha no túnel do tempo, A
viagem, dirigida por Celso Nunes, era feita sob a aura festiva dos 150
anos da Independência, o que, nas mãos de Ruth, não imunizava o
texto contra as críticas aos militares. Na entrada, o público encontrava
alguns atores já na escada que levava ao subsolo, onde a peça
começava com saltimbancos e marinheiros embarcando num navio
diante do choro de suas mulheres.
A viagem de Vasco da Gama rumo à descoberta de um caminho das
Índias seguia repleta de confrontos em passagens pelo cabo da Boa
Esperança, Mombaça e Calicute, e Ney, para aproximar sua imagem da
de um marinheiro português, aparecia de bigode ao lado dos outros
soldados, criando um coro que comentava trechos da história e agia
nas cenas de batalha. Os marujos do grupo de Ney disparavam armas
contra os inimigos de Vasco da Gama ao mesmo tempo que repetiam
dizeres como “rompe-corta-arrasa-talha”. Nas partes em que saía de
cena, Ney procurava um canto escuro da coxia para, enquanto
esperava o momento de voltar, praticar um balé solitário olhando para a
própria sombra ao som da trilha sonora roqueira tocada ao vivo pelo
conjunto. Não era exatamente uma dança clássica, e ele jamais
aprenderia os passos de nenhuma dança, mas a tentativa de reproduzir
o som que ouvia, deixando-se levar por um tempo interno livre e
desorganizado.
A história se repetia e Ney sofria com os atrasos de pagamento
também do novo empregador. Ao terminar uma das sessões, ele saiu
transtornado à procura dos responsáveis pelos cachês e chegou à sala
da produção do teatro sem saber com quem falar. Pegou um cinzeiro de
ferro que estava sobre uma mesa e fez todos ouvirem sua voz: “Eu vou
quebrar tudo se vocês não me pagarem hoje”. Deu certo. Ele recebeu
os atrasados e seguiu até o final da temporada, com seu nome e
sobrenome publicados sem erro na seção de peças teatrais de um
grande jornal, o Estadão: “Ney Matogrosso”.
Cientista maluco criador de um túnel do tempo de dia e marujo
português de Vasco da Gama à noite, Ney via nos Secos & Molhados o
desafio de desenvolver seu personagem mais complexo. Viver à frente
de um grupo era algo impensável bem pouco tempo antes, mas os
caminhos das peças e dos shows passaram a convergir para que a
ideia saísse da planilha de João Ricardo no final de 1972. São Paulo
era imensa, mas o mundo do teatro cabia na Bela Vista e era de suas
criaturas que os Secos começavam a emergir com uma rede de
conexões que, em alguns dias, poderia mudar até os planos mais
sólidos de João.
Tato Fischer era um ator e pianista de encher os olhos, gentil no trato
e com um estilo exuberante do tamanco dos pés ao turbante na cabeça.
Havia conhecido Ney e João Ricardo nos bastidores de Rosinha no
túnel do tempo, impressionando com sua agilidade de raciocínio
musical, e estava também em A viagem, no papel de um padre. Ney,
que passava em sua casa, na rua Maria Antônia, para subirem juntos
até o Ruth Escobar, na rua dos Ingleses, conheceu lá o companheiro de
apartamento de Tato, o flautista Sérgio “Gripa” Rosadas, e logo tratou
de levá-lo a João. Assim sendo, o que era trio virou quinteto, ou o que
era Crosby, Stills & Nash se tornou, ao menos na cabeça de um grupo
de jovens de 1972, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, com todas
as cores a mais que um piano e uma flauta poderiam trazer.
Sem uma base definida, qualquer canto de sala poderia se converter
num estúdio em potencial. Depois dos apartamentos de João e de
Gerson, a nova morada de Ney, uma casa de vila próxima à rua Frei
Caneca, tinha três vezes mais espaço que o cômodo de Sara Feres e a
vantagem de possuir uma vizinhança que jamais se incomodaria com o
barulho, o cemitério da Consolação. João, Gerson, Ney, Tato e Sérgio
começaram a levantar ali e na casa de Tato, ao lado de um piano de
armário, o repertório, criando e lapidando detalhes que já eram
ensaiados em trio desde o primeiro semestre do ano. Da parceria com
Luli havia “Fala” e “O vira”. “Fala” chegou aos ouvidos de Tato como um
rock acelerado, parecido com “O vira”, feito num lote com outras três ou
quatro canções. Mas, ao perceber o quanto de beleza a velocidade
desperdiçava, o pianista sugeriu ralentar seu andamento para reforçar
as nuances da melodia até transformá-la numa balada. Antes de
mostrá-la a João, chamou Ney para fazer a ideia ganhar força na
prática. Uma passada pela voz do vocalista na nova levada e a música
nunca mais voltou a ser o que era.
Os poemas musicados pensados por João eram geniais na ideia, já
haviam sido lustrados pelo trio, mas não eram intocáveis. “As
andorinhas”, uma canção desenvolvida a partir de um poema de
Cassiano Ricardo, “As andorinhas de António Nobre”, tinha uma única
linha melódica sem refrão que deveria ser repetida, nas contas de Tato,
por 35 vezes. Algo que parecia colidir com a sensatez do repertório.
Sua sugestão foi minimalista e definitiva: “Por que não fazemos só uma
vez?”. As vinhetas tinham poderes mágicos nos álbuns de rock. João
aceitou e “As andorinhas”, curta como um voo de bem-te-vi, coube em
55 segundos.
“O patrão nosso de cada dia” foi feita por João sobre um poema de
Fernando Pessoa, com versos que caminhavam no limite da
compreensão de um censor. Afinal, frases como “Eu vivo preso/ À sua
senha/ Sou enganado” ou “Eu solto o ar/ No fim do dia/ Perdi a vida”
seriam de amor ou de escárnio? João chegou à casa de Ney eufórico
pela parceria póstuma com Pessoa, uma bela melodia num folk rock
que também poderia se tornar mais delicado. Gerson, violão no colo,
ouvia João cantar até ter uma ideia e pedir a ele que repetisse o
começo algumas vezes. “Espere aí, mais lento.” Ao cantar de novo,
obedecendo aos arpejos da introdução que Gerson havia herdado da
escola espanhola, João entendeu a proposta. A flauta de Sérgio entrou
com uma frase melódica curta e um solo no final, e algumas vozes
foram abertas para responderem à de Ney. Mais uma canção estava
pronta.
As buscas de João e Gerson por inspiração os levavam a
compartilhar livros. Vinicius de Moraes havia chegado primeiro a João
por meio de um exemplar de Antologia poética, mas num momento em
que ele não tinha tempo para destrinchá-lo. Então, Gerson o carregou
para casa. Folheou algumas páginas, distraiu-se e deixou o livro sobre
a mesa da cozinha até passar novamente por ali e percebê-lo aberto
num poema intitulado “A rosa de Hiroshima”, de 1954. Foi como levar
um choque: “Pensem nas crianças/ Mudas telepáticas/ Pensem nas
meninas/ Cegas inexatas/ Pensem nas mulheres/ Rotas alteradas/
Pensem nas feridas/ Como rosas cálidas”. A dor de uma tragédia maior
do que a própria bomba de Hiroshima, lançada pelos Estados Unidos
para convencer o Japão a dar a Segunda Guerra por terminada às
custas do derretimento de milhares de inocentes, era sentida em cada
palavra. Gerson foi para a cama pouco depois da uma da manhã, e leu
mais: “Mas oh não se esqueçam/ Da rosa da rosa/ Da rosa de
Hiroshima/ A rosa hereditária/ A rosa radioativa/ Estúpida e inválida/ A
rosa com cirrose/ A antirrosa atômica/ Sem cor sem perfume/ Sem rosa
sem nada”.
Ao se levantar, na manhã seguinte, já estava decidido a compor uma
canção para o poema de Vinicius, mas no sentido oposto ao que os
versos pareciam pedir. Em vez de buscar inspiração na revolta, ele
queria a delicadeza de uma melodia suave, breve e capaz de responder
com um ato de amor coletivo ao arremesso de uma bomba de urânio
sobre uma cidade inteira. Já entendendo como jogar com a voz de Ney
e o estilo de João, deixou o lirismo de seu violão ibérico agir para criar
uma música poderosa. Ao terminar, imaginou como seria se o próprio
Vinicius a ouvisse. E ele ouviu. Assim que conseguiu abordá-lo, Gerson
pediu alguns minutos e tocou sua versão. “Esse meu poema estava
perdido, quase ninguém conhece. Agora, tenho certeza de que essa
música vai eternizá-lo. Obrigado”, disse Vinicius.
Antes de qualquer show, Ney, Gerson e João testaram canções em
reuniões e festas de aniversário. Iam à paisana levando violões e
esperavam a deixa para cantar o que haviam acabado de ensaiar. Se
não conquistassem uma sala, jamais chegariam a um estádio. Ainda na
fase dos experimentos, conseguiram usar o espaço e os equipamentos
do Teatro Treze de Maio ao menos uma vez para um raro ensaio cheio,
em quinteto. A atriz Leina Krespi, que tinha visto Ney na boate A La
Cave des Rois, em Brasília, foi pega de surpresa enquanto andava pela
coxia depois de ensaiar para uma peça. Ela esperou o final de uma
música, reconheceu Ney e foi falar com ele: “Eu tenho certeza de que
isso vai dar certo”.
Mesmo sentindo que algo novo estava por começar, Ney seguia
muitas vezes se movendo pelo chamado dos amigos. Antes de estrear
com os Secos, recebeu de Paulinho Mendonça o convite para tomar um
ônibus e ir ao Rio apenas para gravar uma canção. “A casa tomada”, de
Mendonça e Jorge Omar, com a voz de Ney e o violão de Omar,
entraria na trilha do filme feito pelo amigo Mendonça, inspirado pelo
conto de mesmo nome do escritor argentino Julio Cortázar. Ney gravou,
pegou uma praia e voltou para São Paulo sem ganhar cachê. Tudo por
amizade.

João Ricardo foi ver Ney em A viagem e acabou conhecendo mais do


que a montagem sobre o texto do conterrâneo Luís de Camões. A
banda que tocava no fosso, para a qual quase ninguém olhava, fazia a
trilha do diretor musical Paulo Herculano se tornar algo monumental.
João já conhecia o espaço de outras peças, mas o terceiro andar era
um lugar único, um recanto soturno, de teto baixo e para não mais de
oitenta pessoas, cujo nome Ruth decidiu trocar, de Teatro do Meio, para
o ainda mais ambíguo Casa de Badalação e Tédio, a fim de abrigar
pequenas ambições que poderiam garantir badalação ou tédio, desde
que os artistas não viessem com exigências de diva. O Teatro do Meio
tinha um histórico estrelado. Isaura Garcia havia cantado na
inauguração e Ângela Maria na sequência, com Odete Lara, Walmor
Chagas e o pianista João Carlos Martins na plateia. Sete meses antes
de sua morte, Ciro Monteiro, o Formigão, mesmo distante da glória, era
acompanhado pelo Regional de Caçulinha.
A intenção da casa, agora, era redirecionar a programação,
substituindo nomes da velha guarda por cantores jovens e bandas
underground que tomavam os palcos pequenos e escuros de São
Paulo. Os shows, em geral, deveriam começar entre 23h e meia-noite,
depois da encenação das peças, o que levava a plateia a ganhar um
reforço de parte do público, que subia do teatro e emendava os dois
programas.
A plateia não poderia ser chamada de convencional nem para os
padrões de Ruth Escobar, acostumada aos mundos nada convencionais
do teatro e da Bela Vista. Atraído por uma divulgação de guerrilha, com
lambe-lambes colados por Gerson, Ney e João nos muros do bairro,
notas de pé de página em roteiros de jornal e muito boca a boca entre
os atores que queriam ver o marinheiro português Ney se transformar
em cantor de rock, o público lotaria fácil os oitenta lugares para ver um
show dos Secos & Molhados, até porque alguns seriam
estrategicamente reservados. Assim, João usou seus contatos de
jornalista iniciante já seguindo os passos do pai no jornal Última Hora, e
conseguiu chegar ao programador José Alberto para agendar uma data:
quinta, 7 de dezembro de 1972.
Alguns músicos da banda de A viagem, os argentinos Marcelo Frias,
baterista, e Willy Verdaguer, baixista, mais o pianista Emilio Carrera,
tinham seus nomes na lista de convidados. Frias e Verdaguer se
achavam dois ou três níveis acima de qualquer sonho de João, tanto
pelo som vigoroso que faziam quando estavam juntos como por sua
história. Eles haviam tocado no mítico reduto da vanguarda portenha
dos anos 1960, o La Cueva, de Buenos Aires, e deixado amigos e
família na Argentina para, a partir do dia em que acompanharam
Caetano Veloso na música “Alegria alegria”, no 3o Festival de Música
Popular Brasileira da Record, em 1967, acender o pavio da Tropicália.
Ou seja, eram eles os integrantes da banda Beat Boys, e o underground
universitário os louvava.
O guitarrista da turma que João conhecia no Ruth Escobar era John
Flavin. Ele tinha dezenove anos, uma Giannini com cordas São Gonçalo
e a capacidade de fazer solos tão limpos, precisos e viajantes quanto o
de qualidade que levava no bolso. Era filho de mãe irlandesa e,
entre Jimi e Jimmy, preferia ser Jimmy, o Page, já que Jimi Hendrix
morrera dois anos antes sem deixar uma única nota que pudesse ser
copiada com a mesma intensidade. E o pianista era Emilio Carrera, que
tinha se entrosado com a banda depois de fazer com ela duas
temporadas da peça A vida escrachada de Joana Martini e Baby
Stompanato, um fracasso de Marília Pêra no Teatro São Pedro, em São
Paulo, mas com trajetória um pouco mais vitoriosa no Teatro Ipanema,
do Rio. Apesar de o grupo já contar com pianista, Tato Fischer, Carrera
estava na plateia da casa por curiosidade. Havia ainda um ingresso em
nome de um homem que não tocava instrumento algum mas possuía
faro de empresário, costeletas de roqueiro inglês e ideias de bruxo:
Moracy do Val.
As portas da Casa de Badalação e Tédio se abriram enquanto Ney
ainda combatia os inimigos de Vasco da Gama no andar de baixo.
Anete, irmã de Gerson, acendia incensos para evocar deuses e
demônios na plateia, e Tato Fischer, que faria a abertura, vestia sua
túnica, erguia uma crina nos cabelos loiros e passava no pescoço as
catorze voltas de seu colar de miçangas. Ney seguiu às pressas para o
camarim, abriu a mochila e tirou três vidros de purpurina trazidos da
última viagem que fizera ao Rio como presente de Maria Alice. Só,
diante do espelho, tinha pouco tempo para livrar-se do marinheiro e de
tudo o que havia antes a fim de se tornar qualquer criatura que saísse
de sua imaginação. Olhou-se em silêncio, lavou o rosto e se pôs a
distribuir três cores de purpurina em desenhos bem delineados:
dourado por toda a face, vermelho nos lábios que restavam sob o
bigode e azul ao redor dos olhos. Vestiu a calça de cetim branca com
esforço até abaixo da virilha, deixou o torso nu e colocou na cabeça
uma grinalda de rosas. Ao voltar ao espelho, a criatura sem nome, sem
fala e sem rosto, e sem sexo, idade nem cor, já não era ele. Ao lado de
João e Gerson, ainda sem uma identidade visual definida, Ney
começava a impor seu personagem.
O refletor procurou primeiro por Tato Fischer, que caminhou até o
piano com uma rosa vermelha no cabelo, sentou-se sem olhar para a
plateia e cantou e tocou o tango abolerado feito pelo irmão Iso Fischer e
por João Carlos Gilli Martins chamado “Foi só por amor (Ou por um
copo de pinga)”. No final, levantou-se, tirou a flor do cabelo, avançou
alguns passos e a ofereceu a uma pessoa da plateia.
Antes que o calor dos aplausos esfriasse, Ney, Gerson, João e Gripa,
com Tato de volta ao piano, já estavam posicionados para dar início a
“Mulher barriguda” como um susto, contrapondo à melodiosa música
anterior o rock mais furioso que tinham até ali, ainda que numa versão
mais acústica, com João na gaita e no violão de doze cordas, Gerson
no violão de seis fazendo as linhas de baixo e Gripa na flauta, além de
Tato e Ney. Um Secos & Molhados mais seco, sem guitarra, baixo ou
bateria. Entre uma canção e outra, o ator Rubens de Araújo se levantou
cambaleando de álcool e para ir ao banheiro, esbarrou em Ney no
caminho e justificou-se falando ao microfone algo que até Ruth Escobar
dever ter ouvido: “Vou mijar e já volto”.
O que Ney fazia em seu espaço delimitado dentro de dois metros
quadrados de palco não era exatamente uma dança. Assim como havia
praticado sozinho na penumbra das coxias, ele deixava o corpo se
mover. Ao mesmo tempo que os olhos eram de animal, a voz saía como
um cristal que acomodava cada sílaba na nota em que deveria estar.
Ney era um paradoxo assombroso. Ao atravessá-lo, as músicas com
estruturas de canção bem definidas por João Ricardo, de ciclos
harmônicos curtos, poética robusta e uma sutileza que até poderia
render o rótulo de folk se elas não fossem mais que isso, surgiam do
outro lado dizendo não só o que estava nas letras. Era como se “Fala”,
“Rosa de Hiroshima”, “O patrão nosso de cada dia”, “Amor”, “Mulher
barriguda”, “O vira” e tudo o que era despejado sobre a pequena plateia
da Casa de Badalação dissessem também “libertem-se”.
Moracy do Val estava na plateia por insistência de João, que o
conhecia do jornalismo e o vira dias antes saindo da peça A viagem.
“Você precisa ver o meu grupo.” Com as credenciais que tinha — estar
na turma de atores que fundou o Teatro Oficina, em 1958, estar na
turma que pôs de pé o jornal Notícias Populares, em 1963, estar na
turma que criou o programa Ensaio Geral da Excelsior, em 1965, e,
como produtor, estar ao lado de Duke Ellington, Oscar Peterson e Sarah
Vaughan assim que eles desceram as escadas dos aviões para tocar e
cantar em São Paulo, na década de 1960 —, Moracy era um
termômetro qualificado.
Depois de passar o show imaginando quanto aquele grupo poderia
render artística e financeiramente em suas mãos, ele estava ainda
controlando os nervos quando encontrou João no camarim: “Posso ser
o empresário de vocês?”. Eles apertaram as mãos, sonharam um pouco
juntos e traçaram os primeiros movimentos. João tinha gravado uma fita
cassete durante um ensaio dos Secos que vinha sendo ignorada
sumariamente por várias gravadoras. Uma das cópias foi entregue por
João Apolinário ao produtor J. C. Botezelli, o Pelão, que em 1974
lançaria os primeiros s de Cartola e Adoniran Barbosa. Rock não era
seu forte, mas por amizade a Apolinário e por realmente achar que tudo
soava muito redondo no som dos rapazes, Pelão levou a fita até Osmar
Zan, diretor da Victor. “Obrigado, Pelão, mas já temos os Pholhas”,
respondeu Osmar antes mesmo de ouvi-la, referindo-se ao grupo
formado em 1969 que havia acabado de lançar um compacto. Moracy
decidiu usar a influência que tinha junto à heroica Continental, uma
companhia de discos de São Paulo criada no início dos anos 1920
como aposta do industrial Alberto Byington Junior, que mandava discos
de 78 rotações para o interior do Brasil no lombo de jumentos e que
tinha a música sertaneja de Tonico & Tinoco e Milionário & José Rico
em seu código genético.
Com as portas abertas na brejeira Continental desde que passara a
editar o jornal interno da empresa por indicação de Walter “Pica Pau”
Silva, o Curtisom, Moracy decidiu usar o cartucho que tinha levando a
fita para a segunda geração do velho Byington, o presidente Alberto
Byington Neto. “Você precisa ouvir isto”, disse, colocando o cassete na
mesa do chefe. Antes de qualquer resposta, reforçou: “Se você não
lançar, outra gravadora lança”. Diante de tanta certeza, Byington
perguntou: “E como seria essa gravação?”.
7. Homem-pássaro

O ano de 1973 principiou com Ney diante do espelho. Minutos antes


de voltar ao palco para iniciar uma curta temporada com os Secos na
mesma Casa de Badalação em que haviam surgido no final de 1972,
passou a conversar com a própria imagem e percebeu que o bigode
largo usado por anos não tinha mais razão de existir. Ao entrar no
camarim para a segunda noite, decidiu tirá-lo e trocar o colorido das
purpurinas por uma forma mais austera, inspirada nas figuras do teatro
japonês kabuki que conhecia de suas andanças pela Liberdade, o bairro
oriental de São Paulo. Começou a experimentar desenhos pretos
maquiados sobre uma base branca que subiam dos olhos para a testa e
que jamais se repetiriam. Um fauno sinistro, assustador e muito distante
da sugestão de João e Gerson, que queriam se apresentar usando
boinas militares revolucionárias como se fossem três Che Guevaras. No
terceiro e último show naquele mês de janeiro, Ney fixou uma pena de
pavão na testa e cobriu o corpo com uma pele de jacaré, deixando o
rabo se arrastar pelo palco.
Mesmo quem estava ao lado de Ney poderia se assustar com o que
via, e isso incluía João Ricardo, Gerson Conrad, atores e músicos da
Bela Vista, e todos os jovens cultos e invariavelmente criados por
famílias conservadoras da classe média branca paulistana que
passavam a segui-lo. Ao experimentar pela primeira vez o poder de
uma máscara, Ney descobria uma coragem que ele não sabia ter, a
força de outro ser que permitia qualquer enfrentamento e que nada
tinha a ver com o Ney que, duas horas depois do show, sairia do teatro
de calça jeans e camiseta gasta torcendo para não ser reconhecido nas
ruas.
A dona da Casa de Badalação, Ruth Escobar, viu na gente estranha
que começou a entrar em seu estabelecimento um risco para sua
reputação. A noite em que Ney passou por ela sob o manto de jacaré,
seguido por um público não menos exótico, atingiu o limite de sua
permissividade e a fez mandar um recado por meio de seu gerente:
aquele não era um lugar para drogados. Mas não haveria tempo nem
para réplica. Os Secos & Molhados estavam de partida para atender a
uma agenda que começava a ser criada. Ao perceber que a música se
impunha sobre sua paixão maior, o teatro, Tato Fischer resolveu deixar
o grupo. Ninguém sabia a dimensão que a história ganharia a partir
daquele instante e Tato, anos mais tarde, diria que nunca se arrependeu
da decisão.
Pouco tempo depois de sair do Ruth Escobar, o grupo foi escalado
para o show de abertura do Alpha Centauri no moderno palco do teatro
do Masp, o Museu de Arte de São Paulo, na avenida Paulista. O Alpha
era um coletivo que evitava todos os caminhos apontados pelo rock dos
anos 1970, criando um conceito original com a flauta e a viola de
Serginho, a mistura de percussão e bateria de Mestre Dinho, as vozes
de Edu Rocha, Ina e Vera Veríssimo e, após a saída do contrabaixista
Itiberê Zwarg para integrar o grupo de Hermeto Pascoal, o baixo de
Paulo Campos. Um ponto perdido na história do rock subterrâneo de
São Paulo que deixaria como rastro apenas algumas matérias de jornal,
um álbum nunca concluído que poderia ter sido gravado pela mesma
Continental dos Secos, uma nota no jornal Folha de S.Paulo e um
anúncio nos classificados do Estadão: “Show de Música Pop com Alpha
Centauri e Secos & Molhados no 2o Concerto à Integração. Dia 15 —
domingo — 16h30”. A inversão de postos aconteceria em poucos dias.
Os Secos, uma banda de cujo vocalista ninguém sabia o nome, tomaria
o país ao mesmo tempo que o Alpha, a atração principal que fazia a fila
de fãs caminhar por bons metros a partir do Masp, aos poucos, sumiria
do mapa.

A Record não estava acostumada à fragmentação pela qual


passava a música brasileira naquele início de 1973. Até o fim dos anos
1960, as novidades eram represadas em coletivos com códigos
semelhantes que facilitavam o entendimento do telespectador e faziam
girar uma cadeia saudável. Afinal, o que seria de Roberto Carlos sem a
Jovem Guarda em 1965? Como entender Elis Regina fora da ?O
que fazer com Gil, Caetano e Os Mutantes sem abrir sobre eles o
guarda-chuva da Tropicália em 1967? Mesmo fora dos domínios da
emissora de Paulo Machado de Carvalho, a música se movia em blocos
desde a Era do Rádio e, sobretudo, a partir da Bossa Nova. Isso até o
-5 colocar a ideia do coletivo no alvo em 1968, aconselhando seus
integrantes mais tóxicos a deixarem o país, conduzindo outros até a
escada de voos com destino à Europa e amansando com ameaças de
calabouço a revolta dos que ficavam. As cenas eram desmobilizadas e
os festivais, último reduto da resistência cultural de massa, lentamente
sufocados.
Mas os homens da do passado ainda estavam vivos e sonhavam
com a volta dos bons tempos. Walter Silva, produtor, radialista,
jornalista e crítico musical, conseguiu emplacar na Record, ao lado do
diretor Nilton Travesso, um programa semanal em horário quase nobre,
às 22h30 das quartas, chamado Mixturação, como o nome da música
lançada no princípio do ano por Walter Franco. A exemplo do que havia
ocorrido com o Fino da Bossa ou o Jovem Guarda, o musical queria dar
luz a novos artistas, parindo cantores e compositores diante das
câmeras e criando uma cena, fosse qual fosse a língua que falassem
seus integrantes. A ideia era romper muros e juntar turmas. Sambistas
da Casa Verde, neotropicalistas do Ceará, cantores da Bahia, roqueiros
das periferias. Ajudado por bons espaços de divulgação no jornal Folha
de S.Paulo, onde Walter fazia matérias sobre o programa, o Mixturação
anteviu os Secos & Molhados não por faro ou mediunidade, mas pela
amizade entre Walter e Moracy do Val. Moracy falou, Walter acreditou, e
lá estavam os Secos escalados para as primeiras gravações sob o
comando de Nilton Travesso.
A Record era a casa de tudo o que se tornava música pop desde
1965, mas nem Paulo Machado de Carvalho nem seu filho Paulinho ou
qualquer outro diretor de um dos canais concedidos pelo Estado para
reforçar os valores da família brasileira tinham visto nada parecido com
o que surgiu no palco do Teatro Record-Augusta naquele começo de
1973 como atração de um programa anunciado nos jornais como “um
novo esforço da Record — Canal 7 a favor da música popular
brasileira”. Perto de Ney e sua virilha persuasiva, com olhos
ameaçadores e pelos que subiam pelo torso até serem contidos no
pescoço por um colar feito com ossos de animal, todos os que estavam
no camarim esperando a chamada para entrar em cena pareciam fazer
parte da Liga das Senhoras Católicas.

Mas de católicos eles não tinham nada. Geraldo Filme, Zeca da Casa
Verde, Talismã e Toniquinho Batuqueiro vinham alinhados no vinco,
como regia o código dos malandros. Calça de linho, chapéu e sapato
lustrado. Fariam carreira de forma independente, mas, para dar força
televisiva, eram apresentados como Os Pagodeiros. Em outra sala
estavam Ednardo, Rodger e Tetty, chegados de Fortaleza. Faziam parte
de uma turma maior surgida em festivais dos anos 1960 que usava
colares, sandálias, camisetas psicodélicas e muito cabelo. Eram o
Pessoal do Ceará. Apesar de cearense, Belchior, 26 anos, andava
sozinho, esbarrando pelo corredor com outro conterrâneo, Raimundo
Fagner, três anos mais novo. E havia a baiana Simone Bittencourt, 23
anos, alta, sorrisão, voz grave e sem nenhum decote que a deixasse
vulnerável às investidas do meio. Moça de Salvador vivendo em Santos
que acabara de desistir de jogar basquete para gravar um disco e que,
no palco, era chamada apenas de Simone.
Assim que os Secos entraram para cantar no pequeno teatro diante
de efusivas 302 pessoas, Simone enxergou em Ney um homem-
pássaro, mágico, assustador e longe de tudo o que já vira. Diluído numa
programação bastante vasta, o grupo chegou como um desconhecido
exemplar do rock paulista e deixou nos diretores da atração uma
sensação de urgência. Nilton Travesso percebeu que era essencial
trazê-los de novo e Moracy teve a certeza de que o álbum deveria ser
gravado o mais rápido possível. Mas a censura também se alarmou e
passou a considerar Ney um risco à tranquilidade instalada nas s
desde o desmonte das “células subversivas” dos festivais.
Travesso começou a ir pessoalmente todas as quartas-feiras buscar o
certificado de liberação do Mixturação no Serviço de Censura de
Diversões Públicas, o , num escritório perto da Estação da Luz.
Havia uma atenção reforçada sobre as letras das músicas que seriam
cantadas pelo Pessoal do Ceará, alguma implicância com as canções
de Belchior e um foco obsessivo pela imagem de Ney que,
invariavelmente, fazia o diretor ouvir a mesma advertência dos militares:
“Estamos de olho. Vocês não podem incentivar viadagem na televisão”.
Por duas razões, ninguém soube das idas de Nilton Travesso ao
Departamento de Censura. O diretor acreditava que estaria ele mesmo
sendo uma espécie de censor se trouxesse as orientações para conter
Ney e temia que, diante das exigências, as performances dos Secos
nunca mais fossem as mesmas. Se dissesse metade do que escutava
dos censores, instalaria o terror e mataria o programa. Nilton era levado
a uma sala reservada para ser comunicado das possíveis sanções se
insistisse na propagação de libertinagem e na apologia à sem-
vergonhice feitas pelo cantor de danças eróticas que poderiam fazer
mal aos telespectadores com cenas sexualmente “cruéis e violentas”.
Ouvia que os pêndulos dos quadris de Ney eram imorais, que seu
convidado deveria vestir uma camiseta para esconder o peito, que o
rabo de cavalo que usava era feminino demais para um homem e que
seu olhar não era apropriado.
Seus argumentos de defesa eram artísticos. Nilton dizia que Ney
representava apenas um personagem de projeção e expressão corporal
muito particulares dentro de um grupo musical sem discurso político
algum e que tudo fazia parte de um grande teatro. Era uma tese difícil
de ser sustentada diante da mão pesada de uma repressão que
caminhava na mesma linha do fundamentalismo religioso em nome da
proteção à família brasileira. Mas, surpreendentemente, Nilton
conseguia sair com o certificado da censura liberando o Mixturação
para maiores de dezesseis anos a tempo de chegar à emissora e
colocar o programa no ar.
Sem saber da vigilância sobre Nilton, Moracy do Val também se
mexeu. Ao descobrir que o ministro da Educação do presidente Emílio
Garrastazu Médici, Jarbas Passarinho, tinha como secretária uma
colega de turma na Faculdade de Direito do largo São Francisco, Dalva
Assumpção, decidiu cercar-se de alguma garantia às vésperas da
gravação e pediu à amiga, tal qual a uma santa, que interviesse por
eles. Os Secos já ensaiavam pensando no álbum desde que Ney se
despedira do bigode na Casa de Badalação e as letras eram enviadas à
censura meses antes de os músicos entrarem no estúdio. As primeiras
liberações faziam crer em milagres por intercessão de santa Dalva.
Enviada em 23 de janeiro, “Sangue latino” seria um risco nas mãos de
um censor minimamente sagaz. Seu autor, Paulo Mendonça, fazia
confissões e deitava angústias nos versos que refletiam o fato de se
sentir um traidor de si mesmo por ter aceitado um emprego na Marinha,
onde trabalhara em 1968 como analista de sistemas e onde agora, aos
22 anos, chefiava a divisão de software.
Hippie de barba cheia, cabelo até as costas, tamanco e ideias
socialistas, Paulo Mendonça havia deixado um emprego para ganhar
cinco vezes mais numa corporação militar estrategicamente alinhada
com os ventos que sopravam dos Estados Unidos da América do Norte
desde o golpe de 1964. Agora, “Sangue latino”, com a música de João
Ricardo, soava como contrição. “Jurei mentiras/ E sigo sozinho./
Assumo os pecados./ Os ventos do norte/ Não movem moinhos,/ E o
que me resta/ É só um gemido// Minha vida, meus mortos,/ Meus
caminhos tortos./ Meu sangue latino./ Minh’alma cativa.” O carimbo de
“aprovado” do veio cheio de números, códigos e com o texto-
padrão escrito acima da assinatura do censor: “A presente letra musical
foi examinada pelo da do e liberada para gravação e
divulgação pública nos termos dos artigos 53 e 77 do decreto no 20493
de 24 de janeiro de 1946 sob o número 30028”.
Da mesma forma voltaram “Assim assado”, sem considerações sobre
o “guarda belo”, que não só parecia ser para eles mesmos, os
censores, como de fato era; “O patrão nosso de cada dia”, uma crítica
aos militares disfarçada de cantiga de amor (“Eu vivo preso/ À sua
senha/ Sou enganado// Eu solto o ar/ no fim do dia/ Perdi a vida”);
“Primavera nos dentes”, um morteiro sem disfarce (“Quem tem
consciência para ter coragem/ Quem tem a força de saber que existe/ E
no centro da própria engrenagem/ Inventa a contramola que resiste”);
“Rosa de Hiroshima”, um ataque à política bélica dos aliados do Norte
(“Pensem nas crianças/ Mudas telepáticas/ Pensem nas meninas/
Cegas inexatas”); e “Mulher barriguda”, pondo em dúvida o futuro de
uma criança a qual os censores não entenderam que representava uma
nação chamada Brasil (“Mulher barriguda que vai ter menino/ Qual o
destino/ que ele vai ter?/ Que será ele/ quando crescer?// Haverá guerra
ainda?/ Tomara que não”). Era inacreditável o fato de todas terem sido
aprovadas.
As canções não aprovadas seriam, ao longo da carreira, três. Com
letra e música de João Ricardo, “Tristeza militar”, cantada desde os
tempos da Casa de Badalação, não tinha subterfúgio poético algum ao
dizer “Não há mais hora H/ Ou medo de gritar/ Tristeza militar”. Já “Tem
gente com fome” fora feita sobre o poema de Solano Trindade, o
mesmo autor do texto de “Mulher barriguda”. Solano era poeta militante
pernambucano, filho de sapateiro, ator no filme A hora e vez de Augusto
Matraga e integrante do Movimento Negro que havia passado seu
último ano de vida nos radares da inteligência. “Mulher barriguda”, aos
olhos do , referia-se a uma pobre grávida inofensiva, mas “Tem
gente com fome” era o grito de um homem negro, criador da Frente
Negra Pernambucana, do Centro de Cultura Afro-Brasileiro, do Comitê
Democrático Afro-Brasileiro e do Teatro Experimental do Negro. Ou
seja, um explosivo a ser desativado.
A outra canção que não receberia aprovação na leva de 1974 para o
segundo disco seria “Pasárgada”, feita sobre o poema “Vou-me embora
pra Pasárgada”, que Manuel Bandeira publicou em 1930. “Em
Pasárgada tem tudo/ É outra civilização/ Tem um processo seguro/ De
impedir a concepção/ Tem telefone automático/ Tem alcaloide à
vontade/ Tem prostitutas bonitas/ Para a gente namorar.” O problema
não eram as prostitutas bonitas nem a possível liberdade irrestrita e
subversiva de Pasárgada, mas o tal “alcaloide à vontade”, algo que
pareceu tóxico demais. Na mente de um censor, o outro nome daquilo
era “entorpecente”.
Forjados pelo pensamento lógico militar, técnicos da censura eram
desafiados a interpretar textos artísticos. O problema é que poemas não
surgem de equações nem se compõem por ordem-unida. Assim, cada
interpretação poderia gerar decisões diferentes sobre um mesmo texto,
dependendo da sensibilidade e da carga cultural do censor. Outro
pedido feito pelo ator Leonardo Alves para reproduzir “Vou-me embora
pra Pasárgada” na peça Uni-Verso foi aprovado no mesmo ano em que
a música dos Secos havia sido proibida. Os alcaloides poderiam ser
usados à vontade, mas uma cena teve de ser mudada por ordens do
censor que assistiu ao ensaio da montagem com a prancheta no colo:
“Não permitimos o beijo boca a boca”.

Com a escassa verba recebida da Continental, Moracy alugou o


Estúdio Prova, na alameda Joaquim Eugênio de Lima, nos Jardins, a
um preço camarada para usar não mais do que quatro canais. Havia
romantismo em torno dos quatro canais desde que George Martin, em
1967, fez maravilhas com os Beatles ao extrair de uma mesa de som
primitiva o monumental Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band.
Os Secos remavam com charme contra a lógica dos grandes
investimentos do mercado de discos e entravam num estúdio com
poucos recursos para saírem de lá com uma heroica peça concebida
nas limitações. A Continental era uma gravadora parceira, mas estava
longe de esbanjar a pujança de uma Philips; Moracy do Val era um
empresário apaixonado, mas distante das articulações de Marcos
Lázaro; Ney era um cantor nas fraldas perto de Roberto Carlos; e João
Ricardo, por muitas vezes, precisava de John Flavin para afinar seu
violão. Sem produtor musical ou artístico, João delegava a elaboração
de arranjos aos músicos. Assim, alguns detalhes eram pensados nos
ensaios, mas a maioria deles saía mesmo na base do improviso.
A famosa linha de baixo de “Sangue latino” foi criada sob a pressão
do relógio de Moracy. Já estava definido que o violão de João faria a
introdução da música precipitando-se sozinho, como nas clássicas
entradas dos anos 1970. Mas, assim que o dedo mindinho de Willy
Verdaguer caiu sobre a corda ré na sétima casa do braço largo de seu
Fender Jazz Bass, arrastou-se por dois espaços e entregou o serviço
para o indicador fechar um envolvente desenho de três notas, todos
tiveram a sensação de que algo majestoso estava para acontecer. Sem
se deixar levar pelo primeiro instinto, o das entradas explosivas,
Marcelo Frias desmembrou a marcação de Willy usando o bumbo e um
caxixi combinado com uma meia-lua de som metálico que mantinham o
suspense da canção até o violão de João surgir para convidar a voz de
Ney.
Willy faria os arranjos gravitarem em torno de seu baixo ao menos em
outra canção, “Amor”, quando voltava a ser o protagonista com uma
linha sedutora, funkeada e de contágio imediato. As ideias dos músicos
não surgiam de epifanias mediúnicas. Elas estavam pelo ar, frescas,
fracionadas e sopradas por ídolos do rock inglês e norte-americano que
viviam sua melhor forma e lançavam álbuns históricos. João Ricardo
gostava do escocês Donovan; Willy recebia influências que iam do
baixo selvagem de Jack Bruce, arrasador no Cream ao lado de Eric
Clapton e Ginger Baker, às composições de Andrew Lloyd Webber;
John tinha um dos olhos em Jimmy Page e o outro no Grand Funk
Railroad; Emilio Carrera amava Led Zeppelin, Steppenwolf e o pianista
britânico Nicky Hopkins; e Marcelo Frias admirava a liberdade que havia
na bateria de Ringo Starr.
As marcas desses ídolos, de forma mais ou menos sutil, apareciam
por todo lado. “Mulher barriguda” tem uma introdução feita com um
pensamento rítmico inspirado em Grand Funk. O boogie-woogie que
entra depois, executado por Emilio, faz uma quase reverência a Nicky
Hopkins. “O vira” é puxado por John Flavin inspirado pela introdução de
“Octopus’s Garden”, que os Beatles lançaram no Abbey Road, de
1969, mesmo ano de fabricação de sua guitarra Les Paul Custom. Já
“Prece cósmica” é entrecortada pelos solos de sua brava Giannini
Stratosonic, nacional até a alma, mas sagazmente regulada nos graves
para reproduzir o feeling country que Duane Allman usava no southern
rock dos Allman Brothers. E “Primavera nos dentes”, a única viagem
mais extensa de solo permitida nos trinta minutos e 54 segundos do
álbum, tem o piano dialogando com a guitarra por dois minutos e 52
segundos, uma eternidade para os padrões dos Secos. Marcelo Frias
ajudava nos vocais abrindo vozes com Ney, João e Gerson para, no fim
de cada ciclo, fechar com um grito levemente descalibrado.
John Flavin não gravava uma nota de seus solos sem estar com as
percepções abertas pelo . Aos dezenove anos, ele assumia os
riscos da vida de seus heróis para ser identificado como um deles na
glória e nas derrotas. Era contra distorções e outros efeitos sonoros
que, para ele, denotavam fraqueza no vocabulário de alguns
instrumentistas, mas nunca deixou de ser adepto do simulador de
lamentos dos guitarristas chamado wah-wah, um pedal que Hendrix
eternizou em 1968 ao gravar “Voodoo Child”. Sem dinheiro para
comprar a peça original, registrou o solo de “Primavera nos dentes” com
um similar nacional da marca Sound, quinze vezes mais barato e
menos preciso.
Apenas na música “O vira” aparece um som de guitarra com
distorção, por uma razão independente de sua vontade. Foi o único
momento em que John deixou a sala de gravação por causa de algum
problema técnico e teve de ligar o instrumento direto na mesa de som.
“Ficou incrível, pode deixar assim”, disse o entusiasmado produtor
convidado para ajudar nos arranjos e nas gravações, Zé Rodrix.
Com sugestões legitimadas por uma respeitável ficha que incluía o
trio formado com Sá e Guarabyra e a criação da música “Casa no
campo”, gravada por Elis Regina, Zé trazia cores novas à massa
clássica do rock and roll dos Secos, de baixo, violões, guitarra, bateria e
piano, além da flauta de Gripa. Ao longo dos quinze dias de gravação,
contados minuto a minuto para não estourar o orçamento, ele tocou
sanfona para tornar “O vira” um vira; teclado Moog para colocar a
segunda parte de “Fala” em outra dimensão; um sintetizador simulando
violino em “Prece cósmica”; e uma ocarina, uma prima da flauta doce 10
mil anos mais velha, para fazer graça em “Assim assado”.
Se o rock dos Secos surgia de um mundo rico em referências pop e
heróis por todo lado, a voz de Ney vinha do deserto. Sua existência de
privações, com sonhos ajustáveis ao bolo de notas que levava no bolso,
impedia que ele vivesse os prazeres de fãs e construísse uma
identidade artística nas idolatrias que todos os jovens que estavam
naquela sala haviam desfrutado desde adolescentes.
Aos 31 anos, Ney nunca tinha comprado um , nunca tinha assistido
a um show de rock e seu primeiro toca-discos só seria adquirido dali a
alguns meses. Como um jovem sem era um jovem sem ídolos, e um
jovem sem ídolos jamais havia entrado num estúdio para gravar um
disco, Ney sentia-se estranho até perceber que seu trunfo estava
justamente no fato de não querer se parecer com nada. Uma voz que
não buscava como referência os graves dos homens negros norte-
americanos do blues nem os agudos dos homens brancos ingleses do
rock. Uma voz que nem sequer buscava ser a voz de um homem. Ney
gravava pensando apenas nos dias em que invadia os territórios das
contraltos e das sopranos nos corais de Brasília.
A reduzida vivência com o rock o fez levar uma única sugestão para o
repertório. Ney queria cantar “Banho de lua”, lançada por Celly
Campelo, mas numa versão debochada e com arranjo mais pesado.
João não perdeu mais que alguns segundos escutando a proposta
antes de lhe dar as costas. A semelhança que Ney percebia com o som
de outros grupos da época ao ouvir o resultado das gravações o
incomodava. Ao sentir que os parceiros buscavam inspirações em
demasia nos vocais de Crosby, Stills, Nash & Young, por exemplo,
tentou protestar, mas desistiu assim que entendeu que sua crítica soava
como uma blasfêmia. A religião dos roqueiros, da qual nunca foi adepto,
possuía imagens sagradas que, naquele grupo, apenas para ele não
significavam nada.

Não havia dinheiro, mas, como nas histórias dos grandes álbuns,
havia magia. E com a capa não seria diferente. João Apolinário
conhecia um premiado fotógrafo de campo do jornal Última Hora
chamado Antonio Carlos, não por acaso, Rodrigues, primo de segundo
grau do escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues. Mesmo sem recursos,
Apolinário o envolveu pedindo que fizesse de graça as fotos para a
capa do disco que o grupo de seu filho iria lançar. A imagem lúdica dos
Secos & Molhados já sugeria um retrato pronto, um deleite para
qualquer câmera, mas Rodrigues, decidido a aproveitar a liberdade com
o amigo para fazer laboratório, não se contentou em colocá-los em
caras e bocas no estúdio e mostrou uma revista da empresa Fotoptica
com a ideia aproximada do que queria: uma perturbadora foto que ele
próprio havia feito exibindo a cabeça de sua mulher à época, Ceni
Câmara, maquiada e posta à mesa como se estivesse decapitada.
Antonio pediu que todos se maquiassem, como Ney já fazia, e ouviu
alguma reclamação apenas de Marcelo Frias. Algo do tipo: “Mas eu sou
músico, não sou palhaço”. Usando a ideia passada pelo nome da
banda, ele iria servir agora a cabeça dos quatro integrantes numa mesa
de armazém, ao lado de linguiça, feijão, cebola, pão e azeite. Antonio já
havia comprado tudo para montar a cena e marcou a sessão para uma
noite fria e num cenário desafiador. Quatro esferas foram abertas no
tampo de uma mesa de madeira para as cabeças passarem e, depois
de posicionadas, uma bandeja prateada foi encaixada em cada pescoço
por meio de uma abertura feita com um corte discreto no papelão. Os
músicos ficavam sentados por horas em blocos, sentindo o gelo da
madrugada por debaixo da mesa e, sobre ela, o calor dos refletores.
Cada expressão eternizada na foto, escolhida entre centenas de opções
registradas, era o retrato de quatro almas. Ney é o mais maquiado,
circunspecto, focado e com olhos vermelhos; João, com meia face
pintada, tem a expressão contrita e dramaticamente misericordiosa;
Gerson, naturalista e menos pintado, parece flagrado antes de assumir
uma pose definitiva; e Marcelo Frias, ao fundo, de cabelos longos e
ondulados, olha para o infinito desejando estar nele ou em qualquer
outro lugar bem distante daquele, à espera da desmoralização pública
por seu ato de sexualidade duvidosa.
Tão revolucionário nas ruas quanto conservador na cama, o rock
começara havia apenas um ano seu discurso de revolução sexual
andrógina pelos lábios pintados de David Bowie quando os Secos &
Molhados finalizavam o álbum. Assim, a falta de referências musicais
viris tornava Ney uma estranheza de risco elevado aos parceiros de
grupo. Seria necessário tanto rebolado, tanta maquiagem, tantas penas
de pavão? O que os pais diriam, que piadas ouviriam, que mancha
provocaria em suas carreiras? Os integrantes da banda de apoio não
estavam dispostos a pôr em questão a sobriedade aprendida com Jack
Bruce, Jimmy Page e Eric Clapton, e disseram não quando João os
convidou para se apresentarem também maquiados, como se fossem
um grupo só. Eles só não precisariam rebolar. Apenas Marcelo Frias
ficou de pensar no caso.
Ney havia se mudado provisoriamente da vila perto da rua Frei
Caneca para um quarto alugado no quintal da casa onde viviam
Marcelo Frias e sua mulher, Elaine, num sobrado na base da escarpada
rua Monte Alegre, em Perdizes, bairro classe média na Zona Oeste de
São Paulo. Uma mudança de ares feita mais pela amizade de Ney por
Elaine, hippie de muitos talentos e com gênio imperativo, do que por
afinidades com o baterista. Apesar de parceiros no grupo, Marcelo era
como Ney, reservado e de poucas palavras. A estada duraria somente
alguns dias, até Ney perceber que as coisas tinham ficado mais difíceis
para ele por ter se distanciado mais de três quilômetros dos teatros da
Bela Vista, onde toda a vida parecia acontecer.
Antes de voltar à vila, Ney sentiu que não havia um clima doméstico
muito favorável à transformação de Marcelo num integrante maquiado
dos Secos & Molhados. Elaine, com forte ascendência sobre o marido,
parecia questionar se o melhor não seria manter-se ganhando um
cachê fixo por show, como tinham decidido os outros instrumentistas.
Marcelo titubeou mas fez a foto das cabeças e só decidiu que não
suportaria o peso do personagem de sexualidade indefinida quando a
capa do disco já estava na gráfica. Chamou a banda e informou que
preferia seguir em frente na condição de músico de apoio. Depois do
repúdio de Moracy e de João Ricardo, o baterista quase deixou o grupo,
mas a poeira baixou e ele acabou ficando. Sua cabeça na capa do
álbum, no entanto, levaria o público e as primeiras matérias a
considerarem os Secos & Molhados um quarteto formado por Ney,
João, Gerson e Marcelo Frias.
O endereço para o qual Ney voltou era um lugar mágico que tinha
sediado a gênese dos Secos, servido de ateliê para ele e para um
amigo artista chamado Claudio e se tornado refúgio para a irmã de um
colega músico que, grávida antes dos dezoito anos, foi expulsa de casa
pelo pai. A generosidade com a garota quase custou sua liberdade
depois que uma denúncia anônima de prática de pedofilia e consumo
de tóxicos com menores no local, provavelmente feita com intuito
vingativo pela família da jovem, levou a polícia até lá. Grey, que visitava
o irmão em São Paulo, deixou os agentes entrarem e revistarem tudo. A
maconha, a única droga que Ney consumia desde que uma bad trip de
o fizera ver o chão do cemitério da Consolação se abrir e todas as
lápides começarem a derreter, estava bem escondida e não havia sinais
de bacanal. Ney não estava em casa e talvez, em razão do rabo de
cavalo e das roupas que usava em 1973, sua ausência o tenha salvado
do que poderia ter sido, no mínimo, uma noite bastante desagradável.

Depois de cinco anos sem ver os pais, desde a visita de Matto


Grosso a São Paulo, havia chegado a hora de avisá-los das
transformações da vida antes que a televisão o fizesse. O Mixturação
não fora um risco, mesmo porque apenas o Rio de Janeiro contava com
sua retransmissão. Mas, agora, seria questão de tempo até que os
convites para a gravação de programas-família exibidos em rede
nacional, alguns deles aguardados com euforia na sala dos Pereira,
começassem a surgir. Assim, antes de se pintar e cobrir o sexo com
uma sunga por baixo das tiras de uma saia transparente para cantar “O
vira” no Almoço com as Estrelas, de Aírton e Lolita Rodrigues, ou
“Amor”, no Programa de Hebe Camargo, Ney pegou um ônibus até Ilha
Solteira, na divisa com o Mato Grosso do Sul, onde o pai tinha
arranjado emprego. Chegou pela manhã com o aspecto de um
andarilho e chamou a mãe no portão.
O cabelo de mais de um ano sem corte estava preso, o corpo,
coberto por uma túnica indiana branca, e nos pés, na impossibilidade de
comprar um par de sapatos dias antes, usava um tamanco de madeira.
“Mãe?”, disse Ney, olhando para Beíta, desconfiada, na porta da casa.
“Que mãe?”, disse Beíta, suspeitando do sujeito estranho. “Ney?” Mãe e
filho entraram e sentaram-se na sala ao lado de Matto Grosso, trocando
poucas palavras até Ney abordar o assunto: “Eu vim avisar que estou
fazendo um trabalho diferente agora, e acho que pode ser meio
escandaloso”.
Após um silêncio, ele retomou: “Mas não se assustem”. Antes que o
marido dissesse qualquer coisa, Beíta precipitou-se. “Susto vai tomar
você quando me vir sentada na poltrona do seu show.” Ney sorriu, mas
decidiu ser mais enfático, temendo não ter chegado aonde queria.
“Mãe, eu vou aparecer pelado na .” O pai ouviu calado e Ney
percebeu que ele olhava fixamente para seus tamancos. “Você não tem
sapato?”, perguntou. Matto Grosso trabalhava agora como chefe de
polícia. Já tinha revistado bolsos de muitos jovens maconheiros da
sociedade local e sabia como eles se comportavam. Os olhos de Ney
não estavam vermelhos e não havia cheiro em suas roupas que o
denunciasse, mas algo no jeito do filho chamou sua atenção.
Ney tinha tomado um no ônibus, horas antes. “Você usou
drogas?” “Já tomei ácido.” “E já fumou maconha também?” “Sim.” O pai
passou a falar como policial: “Você sabia que isso é contra a lei?”. E
Ney desafiou: “Que lei? A dos militares? Eu não respeito essas leis”.
Mas um armistício surgiu do pai. “Você quer um sapato?” Ney disse que
não precisava. Matto Grosso levantou-se e buscou um par de óculos
escuros para amenizar a fotofobia que fazia Ney sofrer com a claridade
e, se algum dia fosse necessário, esconder os olhos vermelhos do filho.
8. Mais forte que o Rei

Extasiado pela direção macia e de resposta rápida de seu compacto


Chevette branco 73, um sedã que a Chevrolet havia acabado de lançar
no Brasil com o apelido de Tubarão, Emilio Carrera cruzava as ruas da
Vila Madalena quando ligou o rádio e sentiu o carro ainda mais leve a
partir do instante em que uma emissora tocou “Sangue latino”. Gerson
Conrad esperava pelo almoço em família sentado na sala quando o
rádio de pilha que a empregada ouvia na cozinha começou a tocar
“Sangue latino”. Paulo Mendonça trabalhava na Eletrosul, na rua da
Alfândega, no Rio de Janeiro, quando foi tomado por uma euforia ao
ouvir soar, da loja de discos que ficava em frente, “Sangue latino”.
“Sangue latino” tomou as rádios do país em poucos dias e, talvez, só
John Flavin não sentiu a mesma emoção ao ouvi-la. Ele tirou o do
plástico, pôs na vitrola e escutou tudo com a sensação de que o
resultado geral da gravação, ou ao menos da gravação de sua guitarra,
estava péssimo.
O álbum foi lançado com uma tiragem experimental de 1500 cópias e
uma ambiciosa estratégia de campo criada por Moracy do Val. “Você
nunca vai conseguir alguma coisa se não tiver a imprensa do seu lado”,
dizia aos músicos. Quinhentas delas foram mandadas para emissoras
de rádio, críticos e outras personalidades influentes, e apenas mil
destinadas à venda — um sinal de que Byington, mesmo confiando em
Moracy, precisava ver para crer. O primeiro termômetro foram as rádios,
muitas ainda operando nas turvas ondas das amplitudes moduladas, as
s, já que os sinais em alta-fidelidade das frequências moduladas, as
s, apenas iniciavam o desbravamento do território espacial no país.
Ney estava na casa de Sara Feres quando tocaram as primeiras notas
de “Sangue latino”. Sara havia torcido por todo teste de teatro feito pelo
amigo, vibrado por cada colar vendido desde sua primeira passagem
por São Paulo e, agora, só conseguia lhe dirigir um olhar paralisado.
Pouco depois de a música terminar, ela foi para o quarto levando o
aparelho e logo outra estação tocou “Sangue latino”. Sara deu um grito
e Ney teve a certeza de que, enfim, alguma coisa começava a valer a
pena.
As rádios do segundo semestre de 1973 eram disputadas cabeça a
cabeça por artistas nacionais e internacionais e conquistadas por
nomes que realmente sensibilizavam os ouvintes. O jabaculê ou jabá, o
dinheiro que as gravadoras pagariam para que um cantor fosse mais
executado que outro, ainda não existia como prática corrente, tornando
o fato de um artista estar na programação de uma emissora uma vitória
definida pelo gosto de fãs que exerciam seu poder ao ligar e fazer
pedidos que poderiam ser atendidos ou não. O problema de ignorá-los
era perdê-los, o que derrubaria a audiência e afastaria os anunciantes.
Assim, os Secos assumiam seu lugar na terra de gigantes em que Billy
Paul cantava “Me and Mrs. Jones”; Roberto Carlos esticava seus
domínios com “Proposta”; Gilberto Gil visitava o sertão de
Dominguinhos em “Eu só quero um xodó”; e Michael Jackson, aos
quinze anos, fazia os apaixonados soluçarem com “Music and Me”.
“Sangue latino” vinha subindo degraus a cada semana até ser alvejado
pelo fogo amigo de “O vira” e tudo deixar de ser apenas uma aventura
para se transformar em insanidade.
As vendas do álbum superaram as expectativas em duas semanas,
esgotando as mil cópias e ganhando fôlego a cada nova canção que
pulava do vinil para o rádio: “Rosa de Hiroshima”, “Primavera nos
dentes”, “Mulher barriguda”, “Fala”, “O patrão nosso de cada dia”. A
Continental correu para dar conta dos pedidos dos lojistas, pondo fogo
na caldeira de suas prensas até a semana em que 5 mil cópias sumiram
das lojas. Ainda sem uma contagem precisa de mercado, a aferição era
imposta pela demanda: se o que ia para a loja não voltava, a
quantidade de discos prensados era igual à quantidade de discos
vendidos.
Uma das cópias foi parar nas mãos da dupla Luís Carlos Miele e
Ronaldo Bôscoli, produtores dos tempos da Bossa Nova, descobridores
de Elis Regina no Beco das Garrafas e criadores dos especiais de fim
de ano de Roberto Carlos. Eles respondiam pelos musicais de uma
nova revista semanal da Globo de audiência estratosférica, o
Fantástico, e, na mesma semana em que riram vendo as cabeças
decepadas na capa do disco, precisavam de qualquer ideia para levar à
reunião de pauta do programa. “Que tal o disco das cabeças?”, sugeriu
Bôscoli. Além de ser uma boa capa, era tudo o que eles tinham. Assim,
sem ouvir nenhuma faixa, disseram que tudo era espetacular quando o
diretor Augusto César Vannucci quis saber detalhes. Autorizados a
convidá-los, Miele e Bôscoli chamaram o grupo para cantar em
playback dois números rápidos e demolidores: “Sangue latino” e “O
vira”.
Ney se recorda de que, para cantar “Sangue latino”, ele, João e
Gerson reproduziam a capa do disco numa cena pensada pelos
produtores, cantando com as cabeças enfiadas nos buracos de uma
mesa estilizada no estúdio. Já para “O vira”, apenas Ney subia na
mesma mesa para fazer a performance. Ele se lembra ainda de que
ficou encantado com Sandra Bréa, uma das apresentadoras do quadro,
e desferiu todos os olhares que podia para seduzi-la, mas não teve
resposta. As cruzadas de pernas dadas à sua frente no camarim, ao
contrário do que imaginou, não eram um convite.
O Fantástico recebeu o grupo que saía dos subterrâneos de São
Paulo fazendo shows em teatros com não mais que 2 mil lugares e o
projetou para um país com 102 milhões de pessoas em exatos
4min19s. Sem entrevista nem material gravado, o trio cantava e Ney
desrespeitava a norma estabelecida pela produção de não olhar para as
câmeras. Ele preferia se comunicar com os telespectadores como nos
shows. Sua força já estava se definindo por uma conduta física natural
estranha aos adultos e cativante às crianças.
Apenas um mês antes, a realidade era outra. Empolgado com as
preliminares que indicavam um estouro de público no show de estreia,
Moracy alugou o Teatro Aquarius, com capacidade para 1800 pessoas,
e viu algumas cadeiras permanecerem vazias nas primeiras noites.
Mesmo tendo o “lançamento oficial do disco dos Secos & Molhados”
sido divulgado em notas e anúncios pagos em jornais, Jura, produtor e
amigo de Moracy, chegou a ficar na calçada convidando pessoas para
entrarem no teatro. O importante era evitar um vexame. Ney vivia as
últimas levezas de um anônimo.
No dia 12 de setembro, três dias depois de o Fantástico ir ao ar,
quem estava na fila que partia da entrada do Teatro Itália, na esquina da
avenida Ipiranga com a São Luís, ouvia um camelô de sotaque
espanhol oferecer pôsteres dos Secos & Molhados a preços módicos
que ainda poderiam ser negociados se o cliente levasse dois. Santiago
Malnati era o Mister Sam na Argentina, onde havia discotecado em
1963 na mesma La Cueva, de Marcelo Frias e Willy Verdaguer. Recém-
chegado ao Brasil, tentava sobreviver usando como vendedor de
pôsteres o mesmo faro que o levaria a ganhar dinheiro descobrindo e
produzindo artistas na década seguinte. Mister Sam sabia que os Secos
eram uma “banda quase argentina” e tinha escutado pela primeira vez
“Sangue latino” e “O vira” num dos dias da gravação do graças a
contatos que lhe permitiam entrar e sair dos estúdios. Vendendo fotos
em frente ao Teatro Itália lotado, via a fila aumentar e muitos jovens
voltarem para casa sem conseguir ver o show. Mais pôsteres
precisavam ser feitos às pressas.
Moracy percebia que os 320 lugares do Itália não seriam suficientes.
Apesar do marketing positivo na imagem da longa fila de fãs à espera
de um assento na plateia, as crianças levadas pelos pais poderiam
atrair a atenção da polícia, já que a Censura Federal havia limitado a
idade mínima para o show em catorze anos por ver riscos na exposição
de menores diante de Ney. Era preciso um novo espaço e ele estava
bem perto: o maior e mais confortável Treze de Maio. Seria ali a
temporada com shows a um preço único e acessível, 25 cruzeiros, e
com uma plateia definitivamente alucinada e tão inclassificável e diversa
quanto os três rapazes no palco.
Adolescentes ao lado de seus pais queriam ver o grupo do “Vira” e
jovens universitários, a nova banda de rock paulista. Atores do Bexiga
iam por Ney e músicos tropicalistas, por Willy Verdaguer. Intelectuais
queriam os poemas, hippies gostavam das roupas e todos eles —
intelectuais, hippies, atores e músicos — buscavam tudo o que poderia
expandir as sensações liberadas pelo e pelas canções de João
Ricardo.
Foi um susto quando Ney apareceu depois de um número
instrumental, um vigoroso tema composto por Willy que deslumbrou a
plateia. Após a introdução, João e Gerson surgiram da entrada aberta
no chão do palco com maquiagens nada parecidas com as que usavam
no disco, ajustaram seus violões e se posicionaram deixando o centro
para Ney. Ele também parecia diferente do que se via na , talvez com
um olhar mais perturbador, uma postura mais agressiva, e mais penas e
pelos à mostra do que se imaginava.
Quando Ney caminhou para a beira do palco, enquanto os parceiros
dançavam ao fundo, alguém da plateia gritou “bicha!”. Houve um pouco
de tensão e expectativa para saber qual seria a reação da banda até
que outra voz se ergueu a favor de Ney e o show foi retomado. No início
algumas pessoas sentiam medo da figura do cantor, mas, minutos
depois, elas poderiam chorar com “Rosa de Hiroshima” e se levantar
para dançar como crianças em “O vira”. Os músicos do grupo também
observavam Ney. John Flavin não se acostumava com o que via. “Como
ele consegue fazer isso?”, pensava.
Logo em uma das primeiras noites, uma senhora foi acomodada na
plateia estrategicamente ao lado de outra mais corpulenta. Se a
pequena desmaiasse, a maior a seguraria. Era Beíta, pagando a
promessa de que um dia veria o filho em ação. Uma fã do grupo achou
melhor avisar: “A senhora não se assuste, porque Ney vai sair de um
buraco, viu? E vai estar um pouco pelado”. João Ricardo a olhava do
palco talvez preocupado enquanto Gerson e Ney pareciam não vê-la.
Depois do show, todos ficaram curiosos. “A senhora é mãe do Ney?”,
queriam saber, com tanto espanto que faziam Beíta devolver outra
pergunta: “Por quê? Ele não pode ter mãe?”.
A escalada das vendas de s desenhava uma curva não menos
espantosa. Antes de completar três meses do lançamento, o número
batia as 350 mil cópias e dava a entender que chegaria fácil às 500 mil.
O jornalista Nelson Motta, percebendo o que a marca significava,
escreveu em sua coluna do jornal O Globo que os Secos & Molhados
se aproximavam “perigosamente da marca do ‘Rei’ Roberto Carlos”. Às
vezes 480 mil, outras 550 mil. Era por esses patamares que rondava o
homem que mais vendia s no Brasil, o mesmo que Ney tinha visitado
no Rio como artesão para oferecer colares de miçanga e para quem
cantou envergonhado, sentado no braço do sofá. Exatamente o mesmo
que, agora, era ameaçado pelo grupo em que Ney, o ex-cuidador de
crianças, hippie, artesão, aderecista, iluminador freelancer, ator e
crooner nas horas vagas, cantava fazia menos de um ano.
Se o sinal amarelo acendeu para Roberto, um outro tocou na
Continental. Com a crise mundial da matéria-prima do vinil, o petróleo,
foram arrancados selos de discos guardados em estoque, com ou sem
defeito, para serem derretidos, voltarem às prensas e se tornarem vinis
dos Secos & Molhados. Uma operação extraordinária para atender a
uma demanda inédita. Antes do Fantástico, o ranking mensal de vendas
no Rio de Janeiro era liderado pela gravadora Som Livre, que havia
acabado de colocar nas lojas a trilha internacional da novela Carinhoso,
da Globo, com Regina Duarte e Cláudio Marzo, com hits como “Music
and Me”, de Michael Jackson, e “Skyline Pigeon”, de Elton John. Em
seguida, vinha uma coletânea também da Som Livre, Sua paz mundial,
que o disc jockey Big Boy, da Rádio Mundial, produzia com faixas
interligadas e cuja primeira música, no lado A, era novamente “Skyline
Pigeon”. Depois, em terceiro, mais um coletivo, da , intitulado As
14 mais Volume 27, que não tinha Elton John mas tinha Roberto Carlos
cantando “O show já terminou”. E, em quarto, Martinho da Vila e seu
Origens. Os Secos apareciam em quinto lugar.
Assim que o ano de 1973 se aproximou do fim, a configuração dos
mais vendidos ficou bem diferente. A poderosa trilha internacional da
novela da Globo O Semideus, com Etta James, Stevie Wonder, Marvin
Gaye e Kool & The Gang, segurava o quinto lugar. Maria Bethânia
cantando “Como vai você”, de Antonio Marcos, em Drama — 3o ato, da
Philips, o quarto. Os sambas de enredo das escolas de samba do grupo
1, da Top Tape, estimulados pelas proximidades do Carnaval, em
terceiro. E então, aquilo que poderia parecer uma das delirantes
empolgações de Moracy do Val plantadas nos jornais por seus amigos
da imprensa: Roberto Carlos com o disco lançado em dezembro de
1972 aparecia em segundo, abaixo dos Secos & Molhados.
Mesmo com os Secos na condição de líder de vendas e de execução
em rádio, quando “O vira” tocava do Rio Grande do Sul ao do Norte e
era dançado ao lado de aparelhos de rádio por netos de coronéis em
Brasília, como atestou o jornal Correio Braziliense, e por povos
ribeirinhos no Amazonas, como testemunhou Luli, Ney ainda era um
homem sem rosto e sem nome que podia subir a rua Augusta como um
desconhecido, entrando e saindo das lojas sem ser importunado. Na
companhia do colega Darby Daniel, passou pela Hi-Fi Discos e deixou
Darby se divertir com as vendedoras. “Como está a venda do disco dos
Secos?”, perguntava ele, ao lado de Ney. “Está vendendo bastante”,
uma das moças dizia, sem reconhecer o artista. “E o que você acha do
cantor?” “Eu adoro o que rebola na frente. Será que ele é viado?” Os
dois saíam rindo, caminhavam alguns metros e entravam em outra loja.
As vitrines aumentavam e as pedras que poderiam quebrá-las também.
Gal Costa deu uma entrevista à revista Manchete e respondeu assim
sobre o que achava do grupo do “Vira”: “Eu gosto muito daquela voz
fina do Ney Matogrosso, mas não há como negar que eles criam uma
imagem para o consumo”. Guerra Peixe, compositor, violinista,
arranjador e respeitável mediador dos universos sinfônico e popular, foi
menos delicado ao Diario de Pernambuco: “A maior picaretagem
surgida na música brasileira é esse tal de Secos & Molhados”. Luiz
Gonzaga, Rei do Baião, saiu-se carinhoso em entrevista ao mesmo
jornal: “Essas vanguardas sempre existiram. Houve a época do jazz,
dos tangos infernais, a loucura do rock, e agora aparece o ‘movimento
nu’, a mistura de música e sexo. Olhe o Secos & Molhados aí. Que
barato!”. Baden Powell não pareceu desdenhar do grupo diante da
repórter da editora Bloch quando lhe devolveu um olhar curioso à
pergunta: “O que acha dos Secos & Molhados?”. “Nunca ouvi falar.”
Os críticos tentavam entender o fenômeno. “Às vezes um produtor
consegue reunir alguns compositores e letristas de talento, bons
músicos e arranjos que não comprometam, mas também não
ambicionam muito. E está feito um disco apresentável”, publicou O
Globo. “Algo macio, brejeiro, faceiro. Se você gosta de algo assim (e
quem não gosta?), procure ouvir o long play do Secos & Molhados, um
novo conjunto musical que surge vigorosamente. São quatro rapazes,
entre eles um vocalista andrógino”, escreveu José Carlos Oliveira no
Jornal do Brasil. Walter Silva, amigo de Moracy, atestava à Folha de
S.Paulo: “Donos de um bom gosto incrível para um conjunto por muitos
rotulado como pop. […] Impuseram todo um novo comportamento ao
jovem que compra discos”.
Quando o caiu nas mãos do padre Emir Calluf, que assinava uma
coluna no Diario do Paraná, a coisa ficou mais séria. Calluf não falava
só por ele, mas por boa parte da comunidade religiosa ligada à Igreja
católica que via Ney, João e Gerson como um mal a ser evitado em
nome de Cristo: “Secos & Molhados é nome dum conjunto que tem sido
promovido com todo o estardalhaço. Não me pronunciarei sobre o valor
musical deles e sim sobre o exemplo sexual. O que significa homens se
vestirem, cantarem e se rebolarem como mulheres? Apenas uma
coisa:”, e usava então a única palavra com todas as letras maiúsculas
do texto, “ ”. O sacerdote seguia: “Pior: o que significa
glorificarmos, promovermos, apresentarmos aos jovens que estão
procurando se definir sexualmente gente que os confunde, que triunfa
justamente por não se definir, por inverter aquilo que nunca devia ser
invertido: a masculinidade do homem e a feminilidade da mulher?”.

O fato de estar na música não significava ser da música e, mesmo


quando tudo parecia querer fazer dele um ídolo, Ney corria para os
amigos vindos do lugar onde ele realmente se sentia bem, o teatro. No
momento em que percebeu que seu mundo tremia, mudou-se para um
sobrado na rua Fernando de Albuquerque, na Consolação, e criou sua
comunidade particular. Chamou os dois melhores parceiros de Brasília
para morarem com ele, Márcio Oberlaender e Vicente Pereira, que faria
a cenografia para alguns shows dos Secos, e dividiu a casa em três. O
quarto dos fundos ficou para Vicente e seu namorado, um dramaturgo
iniciante de vinte anos chamado Mauro Rasi; o da frente para Márcio
instalar-se com seu colchão de água; e um terceiro para Ney e os dois
primeiros objetos caros que ele havia comprado na vida graças aos
dividendos trazidos pelos Secos & Molhados: um aparelho de som três
em um estéreo com toca-discos, rádio / e toca-fitas e uma cama
king size que logo teria grande utilidade. A casa de Ney estava prestes
a abrigar muitos amigos, assim que ele decidisse investir todo o
dinheiro que ganhava na produção de uma peça teatral.
Vivendo entre tapas e carícias, Vicente Pereira e Mauro Rasi
escreveram o roteiro da comédia nonsense Ladies na madrugada e
mostraram o resultado a Ney. A história se passava no navio S.S.
Rachele Mussolini, que transportava a cantora Carmen Miranda, a ser
representada por Duse Nacaratti; a milionária tcheca Dana de Teffé,
interpretada por Rubens de Araújo; e a cantora argentina Libertad
Lamarque, papel que deveria ser entregue a um ator de dezoito anos
chegado de Buenos Aires, Patricio Bisso. O próprio Vicente interpretaria
um xeique e Mauro tocaria piano numa das cenas, e havia também Luís
Carlos Góis, Lenah Ferreira e Davi Pinheiro. Eles tinham o texto, o
elenco e até o teatro, o Treze de Maio. Só faltava o dinheiro. Ney disse
que poderiam usar tudo o que ele ganhasse com os shows e não
gastasse para sobreviver, o que somava a pequena fortuna de 60 mil
cruzeiros, cerca de 50 mil reais em 2021. A produção fez a farra
comprando o que podia e não podia para criar cenários e figurinos e
levou a peça adiante, marcando os ensaios e a estreia. A casa da
Fernando de Albuquerque conheceu dias de lotação com a chegada
dos atores que moravam no Rio para os ensaios. Eles dividiam espaço
com os quatro habitantes originais, um ou outro jornalista de passagem
e as reuniões esporádicas dos Secos.
Sargento Matto Grosso estava em São Paulo acompanhando o
tratamento de um irmão doente em um hospital próximo à casa de Ney
e resolveu fazer uma surpresa ao filho em sua nova morada. Sem tocar
a campainha, entrou, foi ao quarto de onde saíam alguns risos e abriu a
porta lentamente para ver algo que ele pode ter levado alguns anos
para entender. Só de cueca, Ney girava como um rolo compressor, indo
e vindo sobre os corpos de cinco homens esticados lado a lado em sua
grande cama. Uma brincadeira que ele fazia para acordá-los. O que
Matto Grosso pensou nunca se soube, até porque ele fechou a porta
em silêncio e aguardou o filho na sala.
Fosse pelas frequentes tensões entre os autores namorados Vicente
e Mauro ou pelo excesso de relaxamento de muitos amigos
inexperientes juntos, o fato é que a estreia de Ladies na madrugada foi
um retumbante fracasso. A crítica desancou cada fala desencontrada
dos personagens e os próprios atores, sentindo que nada havia dado
certo, decidiram não retornar ao palco para os agradecimentos finais.
Mesmo contando com o auxílio financeiro de Ney, Rubens de Araújo,
vestido de Dana de Teffé, e Patricio Bisso, também travestido, se
divertiram até mesmo no momento de ajudar a pagar os anúncios
publicados no Jornal da Tarde apresentando um espetáculo numa boate
gay da rua Augusta. Mas a graça acabou assim que Ney teve sinais de
que apostara em um navio condenado ao naufrágio. O marceneiro que
fazia reparos no cenário o chamou de lado: “Essas pessoas não são do
ramo, seu Ney. Estão comprando madeira de lei para fazer cenário, isso
não existe”. O diretor Amir Haddad foi chamado para socorrer a
montagem e conseguiu reverter parte da má impressão dos críticos e
da plateia. Mas, então, Ney não seria mais o produtor e Vicente e
Mauro não seriam mais um casal.
O dinheiro começava a chegar rápido demais às mãos de um homem
que não sabia lidar com ele. De repente, da vida que ganhava com
colares feitos pedra a pedra e com os cachês insuficientes do teatro,
passava a acompanhar prestações e contas de números de público
multiplicados por preços de ingresso, números de s vendidos
multiplicados por preços de lojistas e valores de cachês multiplicados
por eles mesmos quando a súbita alta da demanda dos contratantes de
shows fez Moracy aumentar o preço das apresentações, equiparando-o
aos 100 mil cruzeiros cobrados por Roberto Carlos. Em poucos dias,
passou a faltar espaço sob o colchão para as notas que Ney trazia na
mochila, e ele decidiu seguir os conselhos dos amigos: abrir uma conta
no banco. Amarrou o cabelo, vestiu o macacão, ajustou uma pulseira no
antebraço, calçou o tamanco e caminhou até a agência mais próxima
com um pacote de papel cheio de cruzeiros em notas e moedas. “Eu
quero abrir uma conta”, disse ao caixa.
O funcionário disse bom-dia, recebeu o pacote, olhou para Ney,
fechou o pacote e pediu um instante. Voltou com outro funcionário e
chamou o cliente para uma sala reservada. “Sr. Ney, onde o senhor
conseguiu esse dinheiro?”, quiseram saber. “Ora, consegui
trabalhando”, disse Ney. “Como, trabalhando?”, insistiram. “Vocês já
viram os Secos & Molhados? Pois é, eu sou aquele camarada que está
na se requebrando, o cantor do ‘Vira’.” Os bancários ameaçaram rir.
“E eu estou aqui para abrir uma conta.” “O senhor só pode abrir uma
conta se tiver um fiador”, disse um deles. “Mas eu não tenho fiador”,
respondeu Ney. “Então, lamentamos”, finalizaram. Ney voltou com o
dinheiro para casa. Ao chegar, colocou todas as notas e moedas num
grande saco aberto num canto da sala e avisou aos amigos: “Quem
precisar de dinheiro é só pegar”.
Gostasse ou não das regras do jogo, o carrossel entrava numa
rotação cada vez mais frenética e a agenda de shows começava a
atravessar os perímetros de São Paulo. Moracy marcava compromissos
por regiões, aproveitando uma data em Campinas ou Ribeirão Preto
para combinar apresentações em uma ou duas cidades vizinhas. Como
os shows eram curtos, se tornava possível fazer um às 20h, outro às
23h e ainda, se possível, um último às duas da manhã. Gerson tinha
uma contabilidade própria, que indicaria mais de trezentos shows em
dez meses. Saíam assim dos teatros da Bela Vista e de clubes
tradicionais da classe média alta, como A Hebraica e Pinheiros, onde
Ney havia desarmado um coro de “bicha” levando uma rosa na boca até
a plateia e oferecendo-a a um dos detratores, para se apresentarem no
interior do estado e em muitas capitais do Brasil, com compromissos de
terça a domingo. Carros, ônibus, aviões, escoltas, camburões, hotéis,
pousadas, casas de amigos, fãs, jornalistas, seguranças e histeria. Os
Secos & Molhados estavam na estrada. João dava entrevistas de forma
assertiva e confiante e, assim como Gerson, rendia-se à exuberância de
uma figura que, até poucos dias antes, ameaçava a reputação de suas
famílias, Ney Matogrosso.
9. Glória e insulto

Ney se lembra de ter sido chamado por João e Gerson, alguns meses
antes do lançamento do disco, para um jantar do qual participaria
também Moracy do Val. Chegou sem saber que já existia uma pauta
definida, um assunto espinhoso que deveria surgir cautelosamente
entre risos e frivolidades. A questão não era pessoal, que Ney não os
entendesse mal, mas de posicionamento. Resumindo, as pessoas
estavam dizendo que os Secos & Molhados eram um grupo de
homossexuais e, se não fosse pedir muito, Ney deveria maneirar nos
trejeitos. Nada no projeto original falava em “grupo gay”, “grupo
andrógino” ou coisa parecida. Havia um desconforto com os exageros.
“Olha”, disse Ney, “então é só vocês falarem que não são
homossexuais e todos vão saber que o homossexual aqui sou eu.” Mas
os parceiros insistiram numa mudança de atitude e Ney respondeu:
“Então, tudo bem. Coloquem outra pessoa no meu lugar”.
O público que lotava os teatros de São Paulo foi o fiel da balança. Ao
mesmo tempo que a parte da plateia formada por roqueiros mais
tradicionais poderia ser afugentada, outra chegava com furor para ver
um ser que, fosse homem ou fosse mulher, era eletrizante justamente
por não se parecer com nada. Tanto João como Gerson, e Moracy mais
ainda, sabiam que não seria inteligente deixar Ney sair magoado
daquele restaurante e decidiram libertá-lo para fazer o que bem
entendesse no espaço de palco que lhe cabia.
Os primeiros shows antes do lançamento do álbum provavam que a
aceitação dos trejeitos de Ney poderia ser um bom preço a se pagar.
Um Brasil que ainda só conhecia Secos & Molhados pelo rádio estava
prestes a vê-los nos palcos, uma experiência que poderia ser
assustadora, divertida e transformadora. Willer José de Mattos, a quem
os amigos de infância chamavam de Butika, passou pela rua Treze de
Maio e ouviu o som que vinha de um ensaio num teatro fechado. O
segurança que estava à porta impediu sua entrada e ele ficou ali,
escutando as outras músicas, até Moracy aparecer. Butika o abordou,
se apresentou, entendeu que o grupo era novo, que não tinha lançado
nenhum disco e que ensaiava justamente para gravá-lo. Ainda assim,
insistiu em saber quem eram os rapazes e quem compunha aquelas
canções, decidido a partir para um convite apresentado e fechado num
diálogo de quatro frases. “Eu vou fazer um festival em Belo Horizonte.
Quer participar?”, disse Butika. “Festival com quem?”, sondou Moracy.
“Tim Maia, Raul Seixas, Mutantes, O Terço e Celly Campello.”
“Quando?”
Os Secos & Molhados haviam partido para Belo Horizonte três dias
antes de um dos shows no Teatro Itália. Era a primeira viagem
interestadual, antes mesmo de o Fantástico mostrá-los ao país. Um
bate e volta apertado, feito por Ney, João e Gerson de avião e pelos
músicos do grupo a bordo de uma Veraneio com muita maconha na
bagagem e um novo integrante: o baixista Gerson Tatini. Willy
Verdaguer tinha se desentendido com João ao pedir um cachê melhor.
Houve discussão, o clima pesou e ele proferiu o temível “parei no som”,
a forma dramática de um músico dizer adeus. Não era fácil estar sem o
dínamo da banda, dono de um baixo vivo e pulsante que pensava
acima dos marcadores de tempo que o rock produzia aos montes.
Gerson Tatini, um exuberante instrumentista da cena roqueira de São
Paulo, fã do inglês Chris Squire, do Yes, foi chamado às pressas, tirou
em pouco tempo as linhas de baixo criadas por Willy e seguiu com o
grupo.
O que os esperava em Belo Horizonte era o festival Rock Soul Pop,
anunciado para domingo 9 de setembro, a partir das 15h, no campo do
Cruzeiro, instalado no bairro colonizado por italianos do começo do
século e chamado não sem razão de Barro Preto. A argila escura
deitada pelo solo da região encostada ao centro da cidade emergia em
dias de chuva, produzindo algo muito parecido com o lamaçal que
Butika vira em Woodstock, em 1969, o que não era nada para quem
tinha à sua frente Joe Cocker, Richie Havens, Sly and The Family Stone
e Jimi Hendrix. Pois ali estava seu Woodstock particular resumido num
cartaz: Celly Campello, Banquete 93 de Cogumelo, Diana & Stul, Raul
Seixas, Os Mutantes, O Terço, Sá, Rodrix & Guarabyra, Secos &
Molhados e Tim Maia.
A Rede Globo entrou como parceira para ajudar Butika a promover o
espetáculo e, se quisesse, exibi-lo com exclusividade. Uma reunião foi
marcada na direção da Globo Minas, na rua Rio de Janeiro, perto do
Barro Preto, e iniciada com um pedido dos diretores. “Quem você acha
que poderia colocar no palco a tempo de ser mostrado no Fantástico?”,
perguntaram. Se tudo seguisse horários rígidos, sendo as imagens
captadas no palco do Cruzeiro até as 20h45, haveria tempo para que
elas fossem exibidas naquela mesma noite depois de pularem de
antena a antena, saindo do Barro Preto para a rua Rio de Janeiro, de lá
para a serra do Curral de Belo Horizonte e, então, para a sede no
Jardim Botânico, no Rio.
“Bem”, disse Butika, “temos o Tim Maia, o Raul Seixas, Os Mutantes
e o Sá, Rodrix e Guarabyra, tudo gente muito boa.” Eram nomes
frescos, exceto Tim e Os Mutantes, mas que já tinham sido assunto de
alguma forma, e a orientação que chegava do Rio, talvez influenciada
por um artigo contundente do jornalista Artur da Távola no jornal O
Globo pedindo mais frescor e menos naftalina na programação, era
para que o Fantástico, o Show da Vida, fizesse suas apostas no que
havia de realmente novo. E o que havia de novo? Butika falou da dupla
Diana & Stul. Ela, uma bela cantora de voz suave, e ele, um inventivo
baixista, ambos saídos do psicodélico Equipe Mercado, um grupo
desaparecido pouco depois de nascer, com dois compactos simples e
uma faixa na coletânea underground chamada Posições.
Ao sentir que seus interlocutores tinham gostado da sugestão, Butika
os poupou de tantas informações, mas havia uma observação a fazer.
Diana, segundo o produtor, se apresentava sem usar calcinha. Por ele,
tudo bem, mas algo lhe dizia que os diretores de uma emissora de
prestes a mostrá-la em horário nobre deveriam saber. “Tem mais
alguém?”, perguntaram. “Tem esse grupo de São Paulo, os Secos &
Molhados.” A sede já dispunha de um musical gravado com os Secos
pronto para ir ao ar naquele 9 de setembro de 1973, a tal participação
que espalharia o grupo pelos ares, mas a conversa seguiu como se a
filial de Minas não soubesse desse detalhe, ignorando até mesmo o
anúncio de letras minúsculas feito na seção “Hoje na ” do jornal O
Globo: “O surrealismo do conjunto Secos & Molhados em visões
fantásticas”.
Butika seguiu com o pouco que sabia: “Eles se apresentam todos
paramentados e o líder é um filho de português que gosta de fazer
música usando poemas de autores famosos”. A direção da Globo
aceitou a sugestão. Eles iriam filmar a parte dos Secos, mas havia mais
um pedido do produtor: tudo o que foi dito naquela sala deveria ser
mantido em segredo absoluto para que Butika não atraísse a fúria de
Tim Maia, Raul Seixas ou de qualquer outro artista não escolhido para
aparecer na . Tim foi mandado com um provimento de garrafas de
uísque e erva para baseado a um sítio na cidade vizinha de Nova Lima,
e os demais ficaram hospedados no hotel Amazonas Palace.
Os Secos ganharam o horário nobre das 20h30, antes de Raul e Tim
Maia, mas depois de todos os outros seis shows, incluindo o último da
história em que Sá & Guarabyra apareceriam em trio com Zé Rodrix.
Quando o grupo foi anunciado pelo apresentador Ademir Animasom, da
equipe do Big Boy, Ney surgiu num estranho estado de torpor,
sentindo tudo se mover muito mais rápido do que seu tempo interno.
Com um comportamento visivelmente diferente daquele das
apresentações nos teatros de São Paulo, apanhou um cano no canto do
palco e passou a girá-lo com movimentos sem sentido até que um grito
da plateia reabilitou suas sensações. “Ney, arrebenta. Você pode.” A
frase ficou na sua cabeça. “Você pode!” A repressão policial não
aliviava a vida dos universitários mineiros, e muitos já tinham aprendido
que a maconha que Ney havia usado aos montes nos bastidores, coisa
que nunca mais voltaria a fazer antes de um espetáculo, deveria ser
trocada pelo , sem odor, sem fumaça e, se tudo corresse bem, sem
boletim de ocorrência.
As imagens dos Secos & Molhados cantando para algo entre 25 mil e
30 mil pessoas, segundo o jornal Estado de Minas, seguiram para o Rio
pelas montanhas de Belo Horizonte. Sua exibição, no entanto, pode ter
sido no Jornal Hoje do dia seguinte, uma vez que o Fantástico já tinha o
especial gravado com o grupo. Enquanto elas faziam seu trajeto, os
músicos voltavam para São Paulo naquela mesma noite, de carro, para
não se arriscarem a perder a apresentação no Teatro Itália no dia 10.
Gerson Tatini achou descabida a correria e decidiu ficar em Belo
Horizonte para só retornar dois dias depois, de trem, com o saxofonista
Manito.
Mas, quando chegou a São Paulo, Tatini já estava fora da banda. A
pedido de João Ricardo, Willy Verdaguer havia reassumido o posto.
Houve um visível mal-estar entre os músicos e algum arrependimento
da parte de Tatini por ter perdido o que poderia ser a chance de sua
vida, mas nem tudo foi em vão. Sua passagem meteórica pelo grupo o
fez conhecer Moracy do Val. Passados alguns meses, ele procuraria o
empresário para falar do Moto Perpétuo, a banda de rock que tinha
formado com um jovem pianista com quem estudara, de aparência nerd
e arroubos geniais, chamado Guilherme Arantes. Uma outra história iria
começar.

A Bahia conhecia dias de um silêncio nervoso desde que Gil e


Caetano, as duas forças que a colocaram no centro do que passou a
ser chamado de , foram presos pelo regime e compelidos a sair do
Brasil pela inconveniência política de seus discursos, vivendo uma
longa e simbólica temporada em Londres, de 1969 a 1972. O cala boca
mais contundente da era vigiada serviu de recado a quem foi e a quem
ficou, e o povo baiano, mesmo orgulhoso de saber da energia que ainda
tinha para produzir algo do tamanho criativo dos Novos Baianos e da
capacidade de oferecer ao mundo a malcriação redentora de Raul
Seixas, não imaginava àquela altura ver nada parecido com a sensação
produzida no palco por Ney, João e Gerson.
Quando Ney soube que iria cantar em Salvador, Caetano foi a
primeira coisa que lhe veio à mente. Enfim, a Bahia do homem de rosa
que o fez querer ser artista. Diante do espelho do camarim da Concha
Acústica, ele se aprontava para o combate, como se ficasse mais forte
quanto mais nu estivesse, despindo-se de outra camada ao usar
apenas uma saia de tiras colocada sobre o tapa-sexo que cobria menos
que o necessário na frente e passava como um fio dental atrás.
Assim que a banda terminou o número instrumental e preparou a
entrada do trio, Ney surgiu correndo ao lado de João e de Gerson sem
saber que o palco de granito estava molhado pela chuva que tinha
lavado Salvador à tarde. Ney percebeu que iria cair, endureceu os pés e
deslizou por um espelho de água até conseguir se reequilibrar, rumar
para a beira do fosso que circundava o palco e mirar um ponto fixo na
plateia para cantar “Sangue latino”. Cantou depois “Mulher barriguda”
deitado no palco, se contorceu em outras músicas deixando as partes
nuas aparecerem de propósito e se entregou à lavagem das almas
baianas naquela que seria uma de suas mais ousadas performances
com o grupo.
Muito perto do palco, seguindo-o com os olhos, uma menina de
catorze anos, Virgínia Campana, estudava cada traço de seu rosto,
tentava decifrar cada um dos seus sexos e cantava “Rosa de
Hiroshima” com emoção, assim como faziam, nos anéis mais altos,
Caetano e sua mulher, Dedé Gadelha, Gil e sua mulher, Sandra
Gadelha, Gal Costa e cerca de 4 mil pessoas que estavam ao redor. A
imagem de Caetano fazendo o que Ney fazia tinha sempre um desfecho
trágico na cabeça de um baiano dos anos 1970. “Se Caetano fizesse
isso, seria preso na hora”, pensava Virgínia. Caetano e Dedé, e mais
Jorge Mautner e seu parceiro, Nelson Jacobina, viram Ney no dia
seguinte, quando se encontraram usando sungas minúsculas na praia
de Itapuã, uma cena quase tão chocante para as revistas que
publicaram fotos do grupo quanto o show dos Secos & Molhados. Ney
conhecia sua referência Caetano e Caetano se escandalizava ao ver
Ney vestido com “roupas normais”.
O Rio de Janeiro veria os Secos & Molhados pela primeira vez em
duas únicas e tumultuadas apresentações no Tereza Rachel, uma
seguida da outra, no dia 26 de novembro do ano de 1973. A
disseminação das figuras de Ney, João e Gerson em tão pouco tempo
promovida nos atos mágicos e instantâneos dos programas de auditório
com audiências avassaladoras, como Hebe Camargo, Moacyr Franco,
Almoço com as Estrelas e a pia batismal Fantástico, que os mostraria
em outras ocasiões, dava a Moracy confiança para pensar em
temporadas mais elásticas e numa mesma casa em vez de seguir com
as longas viagens pelos interiores e litorais do Brasil. O Tereza Rachel
parecia perfeito, mas pedia um teste. Afinal, como seria a aceitação no
Rio, um mercado tão específico? Como o carioca solar perceberia o
rock dos subterrâneos de São Paulo? Qualquer membro da Polícia
Militar destacado para se dirigir às pressas para a porta do teatro na
noite de 26 de novembro de 1973 encontraria a resposta.
Instalado no segundo piso do Shopping Cidade Copacabana, o teatro
já tinha seiscentos lugares tomados quando as escadas rolantes foram
desligadas para que a fila dos que não conseguiram entrar descesse
por elas e saísse pela rua Siqueira Campos. Os mesmos jornais que na
véspera noticiavam que o grupo chegaria à cidade com 500 mil cópias
vendidas do disco, superando as vendas pré-natalinas de Roberto
Carlos, diriam na manhã seguinte que as 2 mil pessoas que se
acumulavam do lado de fora do Tereza Raquel haviam tentado entrar à
força e quebrado a bilheteria, levando a polícia a reagir. Ao mesmo
tempo que o grupo se preparava para subir ao palco às 21h, Moracy
contornava a situação abrindo um segundo horário de show, às 23h. Os
instrumentistas dos Secos surgiram confiantes perante uma plateia
bastante jovem, que um jornalista chamaria de “sessão Tom & Jerry”,
fizeram um número instrumental da abertura e receberam Ney, João e
Gerson para seguirem com todas as canções do numa apresentação
fluida pela euforia na plateia e uma certa repetição no palco.
No final da primeira seção, os três tinham pouco tempo para comer
qualquer coisa em uma lanchonete no térreo e voltar, algo que, mesmo
sem maquiagem, só conseguiram fazer com escolta policial. Ney, João
e Gerson retornaram para o segundo show diante de um novo público
que nunca os tinha visto e de uma fileira com críticos de jornais e
revistas empunhando blocos e canetas como se fossem armas. Flávio
Marinho, da revista Manchete, reportou o que viu naquela noite: “A
maior parte do que acontece no palco não passa do conhecido ‘encher
linguiça’. Além disso, as apresentações de corpo presente não têm a
mesma força da gravação”. Depois de desmontar outras partes,
encerrava: “Até o delicioso e irreverente ‘O vira’ […] é mais curioso em
acetato — longe das poucas curvas e muitos requebros de
Matogrosso”. Luiz Gleiser, do Jornal do Brasil, abria seu texto
considerando que a guitarra e o baixo “poucas vezes se entendem”. E
continuava: “João Ricardo, diretor musical e compositor do grupo, não
tenta explorar o potencial de uma apresentação ao vivo, mantendo a
duração de cada canção exatamente como o público já as conhece de
rádio e vitrola, sem adicionar nada além de uns lances coreográficos, e
deixar para Ney, o vocalista, a tarefa de carregar o espetáculo com sua
voz e seu corpo”.
Mary Ventura, também do Jornal do Brasil, fez elogios à voz de Ney,
dizendo ser ela “a grande vedete do conjunto”, mas também ressalvas à
sua postura corporal “de efeito fácil”, como sua “quase sempre
exagerada expressão (ou contorção) corporal mais próxima de uma
Maria Antonieta Pons do que de um Alice Cooper, provocando nos
melhores momentos vagas evocações andróginas e, nos piores,
duvidosas e incontidas associações”. Ela enaltecia o “grande nível
poético do seu repertório”, lamentava a “ultrapassada concepção
dramática”, apontava o “excesso de luzes e contorcionismos” e a “falta
de novidades no repertório, que repete o disco”. E concluía: “Limitado a
uma hora sem intervalo, o espetáculo dura o suficiente para manter um
certo clima mágico, para não levar à exaustão os próprios artistas e
para deixar no público mais crítico a impressão de que não está diante
de um grupo revolucionário, mas certamente de um curioso fenômeno
de comunicação, configurado não em um conjunto de oito elementos,
mas em um cantor e seus acompanhantes”.
O discurso dos críticos, fundamentados em bases diferentes,
chamava a atenção para um incômodo recorrente: os shows dos Secos
& Molhados eram mal dirigidos. Havia comentários feitos por outros
jornalistas à postura corporal de João e Gerson, com movimentos que
não expressavam a mesma verdade que se percebia em Ney, e a uma
certa disputa desconexa de atenção na difusa linha de frente. O
jornalista Nelson Motta, do Globo, foi um dos poucos a sair em defesa
de João, dizendo em sua coluna que era justamente a brevidade da
apresentação, pensada estrategicamente pelo mentor do grupo, uma de
suas armas, algo que fazia com que as plateias saíssem querendo
voltar no dia seguinte. O fato é que a passagem pelo Tereza Rachel
ganhou os jornais também pelo tumulto da entrada e pelo assombro da
novidade, deixando as portas abertas para a longa temporada desejada
por Moracy do Val assim que o ano de 1974 começasse. Antes, mais
quilômetros estavam previstos para serem percorridos até o Rio Grande
do Sul, terra de um dos públicos mais roqueiros do país.
A voz de Cascalho Contursi soava com uma euforia que parecia
rachar os alto-falantes do Gigantinho. O locutor da Rádio Continental de
Porto Alegre, popular apresentador do programa Cascalho Time,
ocupava o centro do estrado montado na boca do túnel da casa do
Sport Club Internacional diante de 7 mil pessoas para anunciar uma
grande conquista, como ele mesmo espalhava pelo ar: “É isso aí,
magrinhos, vamos prestigiar os organizadores porque, de agora em
diante, a cidade vai ter até show de artista internacional. Alguém aí
conhece o Led Zeppelin?”. Então, aproveitava o furor da plateia e virava
o assunto para a principal atração da noite: “Foi difícil pra burro tirar
eles de São Paulo!”.
Cascalho não tinha uma grande estrutura, mas tinha méritos.
Enquanto muitas outras cidades só conheceriam os Secos & Molhados
no ano seguinte, ele agradecia aos céus e aos patrocinadores
Continental e Pepsi por fechar o ano com os paulistas no elenco de seu
festival. Por quinze cruzeiros, o fã gaúcho poderia ver no mesmo palco
o progressivo viajante do Saudade Instantânea, o hard rock viajante do
Terço, o rock rural viajante de Sá & Guarabyra e o grupo do “Vira”, de
“Sangue latino” e, mais recentemente, de “Rosa de Hiroshima”. “Vamos
cooperar com a Brigada Militar, gente?”, dizia Cascalho, entre uma e
outra troca de palco. “Até agora, eles não espancaram ninguém.”
Guarabyra entendeu que, mais do que ao grupo novato com poucas
músicas conhecidas, o encerramento da noite caberia a eles, Sá &
Guarabyra, experientes e com mais estrada. De volta ao formato dupla
das origens, depois de caminharem em trio pelos anos 1972 e 1973 ao
lado de Zé Rodrix, eles tinham um álbum lançado, mais estofo e
Guarabyra havia criado o jingle da patrocinadora Pepsi, “Só tem amor
quem tem amor pra dar”. Assim, para não ter confusão com ninguém,
era só não ter conversa. Após a passagem de som da tarde, Guarabyra
foi para o hotel com o baterista Luís Moreno, pediu uma garrafa de
uísque no quarto e só saiu de lá quando estava bem perto do horário da
última apresentação. A ideia era não aparecer para que os Secos
fossem obrigados a fazerem o primeiro show, deixando o horário nobre
para ele e o parceiro, Sá. Logo que chegaram ao Gigantinho, viram
Ney, João e Gerson saírem do palco suados, levando com eles também
boa parte de um público que parecia não precisar de mais nada naquela
noite.

Mil novecentos e setenta e três, o ano mais louco dentre todos os 32


loucos anos vividos por Ney Matogrosso até ali, reservaria loucuras até
seu último segundo, a partir do momento em que João Ricardo lhe
pedisse um favor no entardecer de 31 de dezembro. João tinha um
problema que desafiava as leis da física — ele não poderia estar em
dois lugares ao mesmo tempo — e solicitou a Ney a gentileza de fazer
companhia por algumas horas à garota com quem trocava carícias
quando não estava em companhia da namorada. Depois da meia-noite,
João deixaria a namorada em casa e passaria para buscar a amiga,
uma bela e interessante atriz da cena underground de São Paulo.
Ney, que não tinha programado nada de especial além de um brinde
na casa de Sara Feres, disse que não havia problema, a moça ficaria
com ele e Sara até João voltar, pelo tempo que precisasse. Mas, assim
que os dois se acharam sozinhos no quarto, a garota tirou do bolso dois
comprimidos de . Ney não via um daqueles desde o início do ano,
quando jurara nunca mais tomar ácido depois da tal bad trip em que viu
um terremoto engolir o cemitério da Consolação, mas decidiu que ali, na
noite de Ano-Novo, última do ano que havia mudado sua vida, nada
seria proibido, nem a viagem de nem um beijo na boca da garota
que o amigo lhe apresentou.
João bateu na porta tarde demais, por volta das quatro da
madrugada, num momento em que seria muito trabalhoso desenlaçar
tantas pernas e braços. Entregues aos beijos e aos fluxos de seus
corpos, Ney e a atriz resolveram não parar de fazer o que faziam nem
mesmo quando as batidas ficaram mais fortes. A garota aumentou o
volume de seus prazeres para que os gritos atravessassem as paredes
e atingissem os ciúmes de João, mas Ney não gostou da cena ao
perceber que era armada e pediu silêncio para retomarem o sexo do
ponto em que estavam antes das batidas. Assim, amanheceram em
1974 sem se importarem com nada que havia do outro lado da porta.

O outro lado da porta logo estaria tomado por camelôs vendendo


artigos dos Secos & Molhados para o Carnaval. Um jornal de São Paulo
dizia que os preços das barracas na rua Direita eram os melhores:
camisetas estampadas com os rostos do trio ou apenas o de Ney
custavam entre oito e nove cruzeiros e competiam com peças que
traziam a figura do casal Tarcísio Meira e Glória Menezes, da novela O
Semideus, da Globo. O Rio ousava mais. Além das camisetas,
vendedores ofereciam máscaras com o rosto de Ney e réplicas de
penas como brinde para os foliões cantarem “O vira” na versão
marchinha. O escultor espanhol Armando Vales, especialista em
máscaras desde suas rentáveis apostas nas da Pantera Cor-de-Rosa,
em 1972, e do ratinho Topo Gigio, em 1973, criou para 1974 uma
reprodução da face do cantor e pôs a fábrica que atendia suas
encomendas, em São Gonçalo, para trabalhar a todo vapor, com
remessas previstas para São Paulo, Recife, Salvador, Curitiba e
Manaus.
Se alguns dos militares de alta patente que acompanhavam as
festividades de encerramento da Colônia de Férias Militar no Distrito
Federal não sabiam o que era Secos & Molhados, tiveram de se
informar assim que deixaram o ginásio de esportes da cidade naquela
manhã de fevereiro de 1974. Pois sob as barbas bem-feitas do
presidente de saída Emílio Garrastazu Médici e o espectro do que
estava para chegar, Ernesto Geisel; na presença de representantes do
ministro da Educação, Jarbas Passarinho, e de sua excelentíssima
companheira, Ruth Passarinho; aos pés das bandeiras do Brasil, do
Distrito Federal e de todos os estados da Federação, contritos pelas
preces do pastor evangélico Ernesto e pelas bênçãos do arcebispo de
Brasília, d. José Newton de Almeida Batista; endurecidos pelos
discursos do reitor da Universidade de Brasília, Amadeu Cury, e do
general Viana Moog; e diante das 5700 crianças vindas da colônia de
férias que àquela hora, entediadas, já gostariam de desaparecer do
Ginásio Presidente Médici, houve um momento de êxtase. Depois da
apresentação protocolar de um grupo indígena e de algumas danças
folclóricas, quatro crianças fantasiadas de integrantes dos Secos &
Molhados apareceram para dublar e dançar ao som de “O vira” no único
instante em que, segundo o jornal Correio Braziliense, o público do
Ginásio, de fato, vibrou.
O Rio do Pré-Carnaval e do verão esperava pela volta dos Secos
para uma temporada de fôlego no mesmo Tereza Rachel do ano
anterior. Ney, com algum dinheiro no bolso, deu-se ao luxo de, pela
primeira vez, alugar um apartamento em Ipanema. Chegava para ficar
oficialmente por mais de um mês, de 6 de janeiro até as primeiras
semanas de fevereiro, e, apesar de conhecer todos os hippies entre
Copacabana e Santa Teresa, não queria estar acompanhado o tempo
todo. Ainda podia andar pelas ruas com relativa tranquilidade e adorava
ir à praia sozinho, escolher seu canto e ouvir as conversas trazidas
pelos ventos do Posto 9. Num desses dias, duas moças falavam ao sol,
muito perto de onde ele estava: “Você viu que está tendo o show dos
Secos & Molhados?”. “Sim, mas será que aquele cantor é viado?”
“Minha filha, viado ou não, eu tenho certeza de que ele está comendo
carne todo dia.” Ney se importou mais com a parte da carne do que com
a do viado, presumindo com certa culpa que o país, ao contrário dele
em sua bonança particular, não vivia os melhores dias. Em outra tarde,
caminhava pela orla quando viu um caminhão de limpeza urbana
passar levando atrás um gari forte, largo como um armário, que cantava
“O vira” tão alto, entre sacos e papelões, que Copacabana inteira
parecia ouvir. “Agora sim, passamos pro lado de lá”, pensou Ney.
A temporada do Tereza Rachel, fixa na grade de shows dos jornais e
no boca a boca da noite carioca, tornou-se um sedutor ponto de
passagem. A cantora Wanderléa, depois de seu primeiro disco solo pós-
Jovem Guarda, foi saber de perto, afinal, quem eram os rapazes de São
Paulo que haviam destronado o amigo Roberto Carlos. Zé Ramalho,
ainda mais paraibano do que carioca e a um ano de ser lançado seu
primeiro disco com Lula Côrtes, o psicodélico Paêbirú, impressionou-se
com a libido exposta do trio e saiu do teatro entendendo que, mesmo
sob armas, era possível ter alguma ousadia. Mick Taylor, meses antes
de brigar com Mick Jagger e Keith Richards e deixar de ser o guitarrista
dos Rolling Stones, passou pelo Rio e foi ver a banda que tinha como
cantor o homem que parte da imprensa dizia se maquiar para imitar
Alice Cooper.
Alguns fãs iam saudar o grupo no camarim enquanto outros, mais
famosos, saíam antes do encerramento do show para evitar os
repórteres. Certa noite, um admirador esperou o momento em que
todos os músicos foram embora para se aproximar de Ney. Era um
rapaz jovem, moreno, de conversa fácil e com uma beleza que
desestabilizou Ney nos poucos minutos em que conversaram na
calçada em frente ao Shopping Cidade Copacabana, na saída do teatro.
Eram noites em que muitas possibilidades de sexo surgiam depois dos
shows e Ney, em geral, não as deixava escapar. Ele chamou o rapaz
para caminharem pela orla até Ipanema e o levou ao quarto onde
estava hospedado para ficarem juntos até o final da temporada carioca.

A sanha empresarial ambiciosa de Moracy do Val dobrava as apostas


a cada vitória e foi durante as lotações seguidas do Tereza Rachel que
ela atingiu seu pico. Moracy passou a querer lançar o grupo em outros
países da América Latina, começando pelo México, materializar a cena
que frequentava seus sonhos fazia algum tempo com uma
apresentação redentora nos Estados Unidos e armar palcos em lugares
nos quais, ao menos até onde ele soubesse, nenhuma banda de rock
havia estado, como o Parque Indígena do Xingu, ao norte de Mato
Grosso. Antes de tudo, porém, como estavam todos no Rio de Janeiro e
“Sangue latino” só perdia para “O vira” na programação das rádios, o
próximo monte a ser escalado seria o Ginásio do Maracanãzinho. Se
tinha acontecido no Gigantinho dos gaúchos e no Barro Preto dos
mineiros, levando-se em conta o fato de que se dera em festivais com
outras atrações, poderia acontecer no Rio. João Ricardo procurou José
Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, diretor-geral da Globo, com uma
proposta de parceria e o álbum dos Secos & Molhados debaixo do
braço. Já que o grupo era praticamente cria da casa, a Globo poderia
ter os direitos de exibição em troca de apoio na publicidade. A emissora
entrou na jogada apresentando matérias que promoviam o grupo e
destacando uma equipe de cinegrafistas para registrar as imagens. O
primeiro show de uma atração solo da história do Maracanãzinho ficou
marcado para 10 de fevereiro de 1974, e para divulgá-lo um avião
monomotor alugado por Moracy cruzava os céus desde o Leblon até a
baía de Guanabara com uma faixa que dizia “Secos & Molhados no
Rio”.
Euforia e tensão pairavam sobre as 20 mil pessoas que entraram no
ginásio naquela noite, entre elas um destacamento da para orientar
o fluxo, bombeiros e enfermeiros para eventuais emergências e todos
os técnicos e músicos que habitavam o pequeno camarim montado
numa área elevada. Moracy do Val vibrava quando disse ao trio que,
para cada fã que entrava, um ficava de fora. Ou seja, eram 20 mil
dentro e 20 mil fora, um número baseado em suas razões motivacionais
mas que, de fato, pareceu funcionar, deixando João Ricardo falante e
inflado minutos antes do show. Havia realmente muitas pessoas do lado
de fora, mas nunca se soube quantas. “É isso mesmo que nós
queremos, há muito tempo que nós queremos isso”, dizia João, quase
que atropelando as palavras.
A despeito da descrença do amigo Paulo Mendonça com relação à
aventura de Moracy, Ney também estava confiante. Havia entendido o
desafio, estava disposto a enfrentá-lo e sentiu a grandiosidade da noite
em tudo o que ela poderia ter de monumental e de calamitoso mal
começou a cantar a primeira música. A frente do palco, um lugar onde
caberiam mais 5 mil pessoas, tinha sido interditada por barreiras depois
que o comando da operação policial considerou, por qualquer razão,
que seria mais seguro assim. Ninguém na pista. Mas, logo que as
laterais e os anéis superiores lotaram, algumas pessoas passaram a
burlar as restrições e correram para o meio do ginásio. Os policiais as
perseguiram aos puxões e cacetadas diante de Ney que, tomado de
raiva, não mediu nenhuma das palavras que gritou no microfone.
“Parem com essa merda!” Queria falar mais, mas seu áudio foi
desligado e de um canto dos bastidores uma voz lhe ordenou: “Canta!”.
Ney pôs os braços para trás em sinal de que não daria continuidade ao
show até que todos se acomodassem. Muito rapidamente, como se
movidos por um instinto de sobrevivência depois de sentirem a
proximidade de uma tragédia, os policiais permitiram que alguns fãs
ficassem por ali, as pessoas se acalmaram e Ney retomou o show
ciente de que sairia do palco direto para uma prisão.
O som que chegava a seus ouvidos era uma massa disforme, de tons
e afinações oscilantes e com dois ou três tempos diferentes
entrelaçados uns aos outros pelo caminho que percorriam desde que
saíam das caixas poderosas alugadas da empresa Transasom, batiam
no concreto do teto altíssimo e nos corpos dos fãs e voltavam
misturados a gritos e assobios. Uma temeridade acústica que levava
Ney a tentar achar a entrada das canções com sua intuição. Mas a
força do grupo resistia à desafinação de um dos violões e às distorções
de um baixo estourado que chegava à plateia mais alto que tudo. Havia
uma compensação nos belos acordes rearranjados por Emilio Carrera
para a versão ao vivo de “Fala”, na rendição unânime da plateia para
cantar “Rosa de Hiroshima” e nas ousadias instrumentais progressivas
de Willy e John Flavin em “Mulher barriguda” e “Assim assado”. No final,
“O vira”, o que boa parte do público esperava, com o acordeom tocado
por Emilio, fazia a voz de Ney praticamente desaparecer sob os ruídos
do Maracanãzinho.
Apesar do êxtase promovido pela cobertura da Globo, da sensação
de missão cumprida e do saco de dinheiro resultante da partilha feita
logo após o show pela calculadora de Moracy do Val — 20 mil pessoas
vezes o preço das entradas a dez e quinze cruzeiros: dava para pagar
os custos e fazer a festa —, Ney saiu frustrado do ginásio. Não sabia
até ali, depois de um show em condições sonoras tão adversas, que um
palco poderia causar também muito desprazer e passou a ponderar se
realmente valia a pena fazer 20 mil pessoas se divertirem mesmo
quando ele, o cantor, não conseguia ouvir em que tom estava a música.
Mas a Globo havia se impressionado com a vitalidade do grupo a ponto
de Boni conjecturar a possibilidade de Ney apresentar um programa
infantil que usaria “O vira” como tema de abertura. Ao discutir a
possibilidade com seus executivos, entendeu que levá-lo para a frente
das câmeras todas as semanas provocaria uma espécie de perigo
duplo: a audiência mais conservadora da emissora e a Divisão de
Censura de Diversões Públicas jamais o veriam com os olhos de uma
criança. “Vão dizer que ele não é assunto para menores”, concluiu, e
guardou a ideia.
Uma bandeira fincada no alto do Maracanãzinho expandia territórios
e simbolizava uma nova conquista no calor da derrocada de Roberto
das vendas do ano anterior, sempre lembrada pelos jornais, e no
esplendor do Carnaval prestes a ganhar as ruas do país ao som do
“Vira” em ritmo de marcha. A ambição resultante da equação que
envolvia dinheiro e fama dava os primeiros sinais de contágio e, em
oposição à solidez interna do grupo sustentada sobretudo por João nas
entrevistas, um explosivo era silenciosamente armado. Ney, sentindo
algo no ar, sugeriu que eles se dividissem para gravar seus trabalhos
individuais e, depois, voltassem para um segundo álbum juntos, mas
João rechaçou a ideia. O material para o segundo disco começou a ser
reunido enquanto a agenda seguia o que era fechado por Moracy. Havia
Recife marcado para 20 de fevereiro, Brasília para 22 de março, um
show de Alice Cooper para assistirem juntos em São Paulo no dia 30 e
um Globo de Ouro para participarem ao lado de Roberto Carlos e vários
outros artistas em 3 de abril. Definitivamente, aquele não era um
momento para tirar férias.

Wilson Simonal acusou o golpe. De alguma forma, os Secos &


Molhados tinham desidratado também uma de suas façanhas ao levar o
Maracanãzinho a cantar por pouco mais de uma hora. Segundo os
registros históricos do ginásio, era de Simonal o maior coro feito ao vivo
com um artista da música brasileira, quando 30 mil pessoas cantaram
com ele cinco anos antes, no mesmo local, durante uma apresentação
em que era convidado do pianista Sérgio Mendes. Ou seja, além de a
façanha não ter acontecido num show só dele, Simonal perdera sua
posição.
Talvez incomodado com a mudança de paradigmas na música pop,
um dia ditado pela “pilantragem” que representou sozinho e com tantos
sucessos, e já vivendo seus instantes finais antes de submergir num
implacável ostracismo, Simonal respondeu a seu modo, esculachando
Ney e o grupo numa paródia de exageros preparada para o show
Circus, que estrearia em junho, e gravando para seu próximo álbum a
música “A pesquisa”.
Ney, que tinha sido compelido, na primeira gravação em estúdio de
sua vida, a imitar Simonal, era agora o objeto da imitação tresloucada e
de propósitos menos nobres feita pelo próprio Simonal. Além de
exagerar nos trejeitos afeminados durante a temporada de shows no
Canecão, o artista destilava seu desdém aos “purpurinados” gravando
uma canção assinada por três pessoas, sua mulher, Teresa, João
Roberto Kelly e Adilson Manhães. “A pesquisa” narrava os esforços de
um aspirante a cantor em se tornar um pop star colando estrelinhas na
testa, comprando uma túnica bordada e filosofando nas letras. Se havia
alguma dúvida sobre quem era o alvo, o refrão esclarecia: “Vira vira,
vira homem, vira vira/ Vira vira lobisomem, vira vira…”.
O apresentador Chacrinha também virou as armas para Ney usando
suas colunas publicadas nos jornais Tribuna da Imprensa e O
Fluminense para arrasar o homem que como ele, e alguns críticos já
haviam escrito isso, era um filho artístico e tropicalista de Carmen
Miranda. Incomodado com a patrulha da censura e dos telespectadores
mais conservadores diante da seminudez das chacretes em horário
familiar, justificava a pouca roupa de suas meninas comparando-a com
a liberdade irrestrita das aparições de Ney nos shows e em outros
programas de .
Sob o título “O Ney…”, Abelardo Barbosa, o Chacrinha, escreveu:
“Vocês reparem, observem e tirem suas conclusões: o Ney Matogrosso
é péssimo cantor e pior ainda bailarino. E está lá, fazendo das suas. Ele
só consegue ser notado porque canta nu e com trejeitos daqueles
jeitos… Pois muito bem: se uma chacrete dançar como o Ney, vai logo
receber advertência… Como é que pode?”. No trecho de outra nota,
mais deboche: “O tal do Ney Mato Fino, que não deveriam permitir que
cantasse seminu, envolto em cordinhas e barbantes, rebolando mais do
que a bailarina”. Chacrinha pedia aos militares que cuidassem de Ney
com a devida intolerância dos tempos. Para ele, o artista “deveria ser
proibido pela censura e pelo juizado de menores” porque era
“rebolativo, erótico e muito do bichânico”. Enfim, um ser “mais
comprometedor [e] mais erótico do que qualquer travesti”.
Uma saraivada de nove notas em dias quase seguidos publicadas no
jornal O Fluminense, na coluna “Chacrinha se comunica”, queria colocar
Ney e os Secos & Molhados na mira das armas. Os títulos falavam por
si. A nota “Estranho privilégio! Secos & Molhados podem tirar a roupa!”
indignava-se com o fato de Ney não ser censurado pela mesma
moralidade que se impunha contra as chacretes e as passistas das
escolas de samba. Assim escrevia um dos maiores comunicadores do
país, com um programa em horário nobre: “Se o Matogrosso vai até a
dança do ventre (é só entender!) e fica naquele do seminu, por que se
proibir que as jovens, bonitas (e autênticas, afinal de contas!…) não
possam bailar, na , com as suas bonitas pernas e fazendo o
charminho próprio do belo sexo? Esse privilégio dos Secos & Molhados
já está fazendo a gente coçar o queixo”.
E em “Como é que pode? Nudez dos Secos & Molhados é ilusão”,
Chacrinha abusava da ironia:
Aquela dança do ventre do Ney Matogrosso […] não existe. É que a gente vê os gestos
lascivos do dito cujo, ouve a sua voz em falsete, pensa que aquilo tudo é travesti e, vai-se-
ver, não é. Pela simples razão de que travestis (e similares) estão proibidos de
apresentação na . Ora, se aquilo que os Secos & Molhados fazem não é consentido em
, logicamente o que se está vendo — e a tem mostrado, tanto e tanto!, é pura ilusão.
De ótica. É um ufo, um óvni, coisa assim.
Os ataques passaram a ser direcionados aos shows. “Debandada”
dizia que as plateias se frustravam e acabavam indo embora das
apresentações.

Nenhum outro território espelhou melhor a explosão da idolatria aos


Secos & Molhados do que o Recife. O espaço de tempo entre o instante
em que o avião pousou no aeroporto dos Guararapes, enquanto rádios
e jornais anunciavam os integrantes do grupo, até o momento em que,
dois dias depois, o voo de retorno decolou com destino a São Paulo foi
o suficiente para que Ney, João, Gerson, os músicos e Moracy
vivessem o roteiro de um típico filme sobre uma banda de rock dos
anos 1970.
A escolta de policiais militares que esperavam o grupo no aeroporto
para conduzi-lo até o Hotel São Domingos não bastou para conter os
fãs que faziam vigília cantando “O vira”. Assim que os carros se
aproximaram, a multidão os cercou e passou a balançá-los. A situação
estava por um fio, e se repetiria na chegada ao Geraldo Magalhães, o
Geraldão, onde 20 mil pessoas se abanavam como podiam para afastar
o calor que os jornais descreveriam como sufocante, “provocando
desmaios e fazendo o serviço de enfermaria trabalhar sem descanso”.
O palco era formado por tábuas de praticáveis aproximadas umas das
outras, e elas foram se abrindo durante o show. Ney olhou para baixo,
viu crianças por todo lado e pensou algo tão alto que deve ter virado
uma fala: “Vai morrer gente aqui!”.
Quando o espetáculo terminou, os policiais pediram a Ney que não
passasse no camarim. “Se você decidir trocar de roupa, não podemos
garantir a sua integridade física”, disse um oficial. Ney e os demais
integrantes foram colocados num camburão que rumou para o hotel,
mas a perseguição dos fãs não havia terminado. Muitos já estavam em
frente ao São Domingos, aos gritos. Ney, ainda vestido com o figurino
do show, desceu do carro e correu para o hotel. Subiu às pressas para
o quarto e se aprontou enquanto os policiais o aguardavam para
conduzi-lo ao aeroporto. “Uma criança nasceu durante o show de
vocês”, contou um deles.
No Guararapes, dois agentes da Delegacia de Costumes estavam a
postos para exigir explicações de Moracy do Val. Afinal, perguntavam, o
que o tinha levado a destratar duas senhoras da alta sociedade
pernambucana que lhe pediram tão gentilmente para assistirem ao
show mesmo sem ter ingresso? Segundo a queixa das mulheres, o
empresário havia olhado para elas com “desprezo”, dissera que “não
faria concessão a ninguém” e afirmara que “minha mercadoria é
importante e vendo ingresso a quem quero”. Moracy negou o fato e
desafiou as senhoras a apresentarem uma testemunha sequer que
pudesse confirmá-lo. Sem provas que justificassem uma prisão, o
delegado João Francisco resolveu punir o grupo a seu modo,
segurando todo mundo na discussão até que o voo saísse e eles
fossem obrigados a ficar na cidade e esperar o seguinte, uma decisão
que o jornal Diario de Pernambuco chamou de “castigo”. Ao serem
liberados, ainda no aeroporto, os Secos & Molhados passaram no meio
de um corredor formado por policiais que já não pareciam estar ali para
protegê-los. “Isso aí que é homem lá no Sul?”, disse um deles,
apontando para Ney e rindo com os demais.

A temperatura fora dos palcos havia passado a subir no ritmo dos


shows depois do Maracanãzinho e a deixar visível uma tensão que
todos sentiam desde o início mas que, em nome dos sonhos, preferiram
silenciar. Ao saber que poderia estar recebendo menos que os outros,
Ney decidiu cobrar João e ouviu que a diferença dizia respeito aos
ganhos referentes aos direitos autorais, o que fazia sentido. Propôs
então que ele, Ney, por ser o cantor principal, ganhasse alguma
porcentagem a mais nos shows como forma de compensação, mas a
ideia foi rejeitada. Outro episódio opôs ainda mais as duas forças
internas do grupo: João pediu a Ney que não desse mais entrevistas.
Só ele deveria falar pelos Secos. Mas foi a vez de Ney recusar: “Se
vierem falar comigo, falo sim. Eu não sou retardado”.
As coisas ficavam mais estranhas, com conversas e silêncios ásperos
a ponto de os jornalistas passarem a retratar em suas análises o clima
que percebiam durante as entrevistas, quase estabelecendo um prazo
para a aventura acabar. O principal jornal de Brasília, Correio
Braziliense, resolveu noticiar com todas as letras que, apesar dos
relatos de desentendimento entre os artistas, o show dos Secos &
Molhados marcado para o Ginásio Presidente Médici seria realizado
com o grupo completo. E o grupo completo, para sorte ou azar das
senhoras que acompanhariam os servidores do alto escalão do governo
Geisel nos camarotes verdes, significava um Ney quase nu.
Se existia algum sabor especial em voltar a Brasília na condição de
astro, Ney não o sentiu. Assim que chegou para se hospedar com o
grupo no Eron Hotel, soube que havia na cidade uma agressiva
promoção para aqueles que abrissem contas com a caderneta de
poupança Inca em Brasília e Taguatinga. Os jornais anunciavam que
haveria dois shows dos Secos, sendo um deles exclusivo para os
clientes Inca. Apesar do apoio do Correio Braziliense na divulgação, a
procura não foi tão grande e os beneficiados acabaram sendo recebidos
no dia 23 junto com o público pagante, estimado em 15 mil pessoas. Só
quem teria direito a uma apresentação exclusiva seriam os militares, os
agentes da Censura Federal e todos os amigos e parentes que eles
poderiam levar, incluindo crianças. Sentindo-se manobrado em meio
aos joguetes comerciais da Inca e às diversões corporativas dos
militares, Ney subiu ao palco à tarde, quando foi feita a passagem de
som obrigatória para a censura, disposto a ser, ao menos ali, uma
completa decepção. Cantou a voz guia sem nenhuma vontade,
caminhou para os lados a fim de fazer as marcações e seguiu para o
hotel sem dizer nada.
O grupo voltou para o show das 21h e encontrou Moracy do Val
inquieto. Havia um pedido do delegado regional para que o cantor não
subisse ao palco sem camisa. A tribuna estaria tomada por senhoras
distintas, esposas e acompanhantes de majores, coronéis e executivos
da Inca, sendo especialmente uma delas, a mulher do ministro das
Minas e Energia, admiradora do grupo. Ney, João, Gerson e Moracy
entenderam que não faria sentido mudar o figurino em nome do
capricho de um homem que decerto falava mais por si e sua
autocensura do que por algum superior. Se houvesse incômodos, eles
teriam aparecido na passagem de som feita para os agentes. Assim,
Ney respondeu ao delegado abrindo o peito mais nu do que nunca,
ajustando a calça de franjas numa linha da cintura mais abaixo que o
habitual e surgindo para uma plateia ansiosa por ouvir “Sangue latino”,
envolvida por “Rosa de Hiroshima” e infantilmente encantada por aquela
que já tinha se tornado o escudo dos Secos & Molhados diante de todas
as ameaças que poderiam existir dentro e fora de um ginásio chamado
Presidente Médici. Afinal, como um general explicaria aos netos que o
grupo que cantava “O vira” tinha desaparecido?
10. A escalada da discórdia

Longe dos censores latino-americanos, Vincent Damon Furnier se


preocupava apenas em posicionar bem a cadeira na qual costumava
ser eletrocutado em frente aos fãs. Antes disso, estrangularia bonecas,
teria um dente extraído à força e deixaria uma cobra passear
lentamente por seu pescoço certo de que, mesmo sobrevivendo a tudo
enquanto sua banda tocava o rock mais alto que um jovem brasileiro
ouvira até então, uma guilhotina desceria para o serviço final. Vincent
assumia o nome e o espírito do grupo que começou a consagrá-lo em
1969, Alice Cooper, e havia acabado de chegar ao Brasil com a turnê
do disco Muscle of Love para fazer um dos primeiros grandes
espetáculos de rock no país com seu teatro de horror.
O show de estreia em março de 1974, no Parque Anhembi, para
cerca de 158 mil pessoas, segundo o jornal Estadão, provocou tumultos
que deixaram ferimentos leves em alguns fãs e nos policiais militares
posicionados à beira do palco. A mesma apresentação se repetiria na
noite seguinte, no vizinho Palácio das Convenções do Anhembi, para
3200 pessoas sentadas numa plateia com direito a lugares s
guardados por um cordão que separava fãs ardorosos de convidados
apenas curiosos, como Gerson, Ney e Moracy do Val.
Moracy havia sido procurado dias antes pelo produtor dos shows no
Brasil com uma proposta instigante: ele queria os Secos & Molhados
para as apresentações de abertura de Alice Cooper. Afinal, informações
confirmavam os vultosos números de público da banda e, ademais, os
Secos tinham um cantor que se maquiava à semelhança de Cooper.
Moracy decidiu não levar a proposta para discutir com os rapazes e
disse não por si próprio. “Somos melhores do que o Alice Cooper”,
respondeu rindo, depois de justificar que havia uma agenda apertada a
ser cumprida. Coube então a outro grupo trabalhado pela mesma
Continental, Som Nosso de Cada Dia, mais progressivo e com um
instrumental poderoso, fazer a abertura. Ainda assim, o empresário
ganhou convites para levar quem quisesse às primeiras poltronas do
Anhembi e acessar o camarim após o show. Ao ver Alice Cooper em
ação, Ney teria certeza do que jamais faria em cima de um palco.
Alice Cooper, aos olhos de Ney, era a negação das sutilezas de
Beatles, Stones, Donovan, Crosby, Stills, Nash e todos os roqueiros de
1970 que ele conhecia. Sua sonoridade era algo agressivo, compacto e
interpretado muitas vezes no limite do esforço físico, um conjunto que
fez Ney se desinteressar do show logo na segunda música. Uma
pessoa sentada na fileira de trás pediu a ele que parasse de conversar
com Gerson durante o show. Gerson, então, passou a estudar os
detalhes de um cantor muito mais baixo do que havia imaginado, com
uma maquiagem muito menos trabalhada do que esperava e um
discurso sonoro que lhe pareceu bem mais linear do que aquele que
eles estavam fazendo com os Secos & Molhados. A Ney, tudo soava
além da conta e pesado demais, mas foi a participação de uma cobra
embrenhando-se pelo corpo do vocalista que o fez sentir vontade de ir
embora mais cedo. Alice e Ney viviam sob maquiagens semelhantes,
mas seus teatros eram incomunicáveis.
Os Secos & Molhados se apresentavam constantemente na , por
mais constrangedor que um playback pudesse parecer sobretudo aos
músicos do grupo, defensores de suas verdades artísticas e que
acabavam vendo de casa Ney dublando e fazendo sua dança com João
e Gerson nem sempre confortáveis nas laterais. O violão os protegia,
dando-lhes alguma função de cena, mas, sem ele, restava improvisar,
olhar para a câmera, esticar um dos braços, jogar uma das pernas e
coisas do tipo.
Os Secos & Molhados eram o bem e o mal das s. Elas os queriam
pela audiência, sabiam que as famílias se juntariam com suas crianças
em frente aos aparelhos, mas, ao mesmo tempo, e pelas mesmas
crianças, precisavam conter os exageros. Além da censura oficial,
aquela com poderes para empurrar programas com algum grau de
periculosidade moral para horários cada vez mais tardios,
despencando-os intencionalmente no Ibope e prejudicando seu
faturamento com anunciantes, havia mentes conservadoras em muitas
famílias, prontas para escreverem cartas às emissoras, aos jornais e
até ao próprio ministro da Justiça com denúncias de nudez, apologia
sexual e outras transgressões.
Alguns militares falavam nas reuniões internas como se quisessem a
cabeça de Ney exatamente como ela aparecia na capa do disco dos
Secos & Molhados, numa bandeja de prata. Aldir Blanc esteve nas
dependências do Catete por três vezes para tentar liberar “O mestre-
sala dos mares”, composição dele com o parceiro João Bosco gravada
por Elis Regina em 1974. Havia dois nomes possíveis para a canção,
“O navegante negro” ou “O Almirante Negro”, ambos recusados pelos
censores. “De negro não se fala nem bem nem mal, simplesmente não
se fala”, disse um oficial a Aldir depois de ouvi-lo explicar quem era o
Almirante Negro na história, o militar João Cândido Felisberto, herói do
episódio conhecido como Revolta da Chibata, de 1910.
Ao chegar ao Catete pela terceira vez, já disposto a mudar o nome da
canção para que ela fosse aprovada, Aldir sentou-se numa carteira de
madeira do tipo escolar, e já estava ali fazia algum tempo quando ouviu
gritos vindos da sala ao lado. “Precisamos matar o Ney Matogrosso,
precisamos matar aquele cara.” Conseguiu a liberação de sua música e
deixou o palácio estarrecido, com a sensação de que os gritos haviam
saído de uma encenação com dois propósitos: acovardá-lo para que
refletisse mais antes de compor outra música e fazê-lo levar as
ameaças até Ney para que o cantor repensasse suas atitudes no palco.
Se eram mesmo esses os objetivos dos militares, nenhum funcionou.
Aldir não mudaria uma vírgula do que diria em suas letras e jamais
contaria a Ney o que se passara naquele dia.
Assim que chegou à Tupi, em 1974, para participar do Programa
Hebe, Ney sentiu que, apesar da doçura da apresentadora Hebe
Camargo, sua produção se mostrava preocupada. A apresentação de
uma das canções escolhidas, “Amor”, ocorreria sem maiores restrições,
embora em alguns momentos a luz parecesse bem mais baixa que o
normal, com João de plumas coloridas e óculos escuros e Gerson de
calça e camisa toleravelmente aberta no peito.
Toda a carga de transgressão parecia reservada a Ney, que vestia
apenas uma sunga branca sob a saia de tiras soltas deixando quase
todos os pelos do corpo à mostra. A segunda canção seria a obrigatória
“O vira”, para a qual já havia uma estratégia pensada. Eles cantariam à
frente de um fundo neutro e seriam cobertos por um pano do pescoço
para baixo, de forma que seus corpos desaparecessem e apenas as
três cabeças fossem exibidas na . Era a famosa técnica do chroma-
key, um tanto psicodélica demais para os lares brasileiros mas que
trazia uma solução rápida para as ousadias de Ney.
Silvio Santos mandou convidar os Secos para seu programa ainda na
Globo, antes de partir para a Tupi. Já prevendo que seria
entrevistado, Ney avisou a produção de que não abriria mão de uma
condição: se estivesse maquiado, e naturalmente estaria, não daria
entrevista. Aquela era uma cláusula pétrea desde a criação de seu
personagem. Se a criatura que aparecia maquiada à frente do grupo
não era humana, ela não falava, nem no palco nem fora dele. Ney
jamais havia feito concessão a jornalistas e não faria ao Homem do
Baú. Mas Silvio, sagaz, deixou que eles cantassem para atacá-lo no
momento certo e, assim que terminaram “Sangue latino”, se aproximou.
Ney se armou ao perceber sua disposição para romper o combinado e
desfazer seus mistérios. Olhando para a estranha figura do cantor, o
apresentador fez uma pergunta sobre roupa, maquiagem ou algo assim,
mas Ney apenas olhou para ele com uma expressão de animal
assustado e não respondeu. Silvio Santos insistiu na pergunta, mas Ney
se manteve em silêncio. Antes de parecer desconcertado, o
apresentador sorriu e pediu os comerciais.
O Globo de Ouro era um programa teoricamente regido pelo hit
parade das rádios, um musical mensal para receber na os dez
artistas mais tocados naqueles trinta dias. Um conjunto de músicos
contratados pela emissora executava as canções e os artistas eram
chamados de acordo com a posição ocupada pela música que
defendiam, em ordem decrescente, até finalizar com o primeiro
colocado. Antes de chegarem para o Globo de Ouro de 3 de abril de
1974, os Secos já haviam passado por ali duas vezes, em 3 de outubro
de 1973 e em 6 de março de 1974. Na primeira, cantaram “O vira”
depois de ouvirem Gilberto Gil interpretar “Eu só quero um xodó”, de
Dominguinhos e Anastácia; “a internacional” Sally Baldwin cantar “Music
and Me”; Vanusa e Antonio Marcos lançarem “Manhãs de setembro” e
“O homem de Nazaré”; Odair José mostrar “Cadê você”; e Wanderley
Cardoso fazer uma versão de “Skyline Pigeon”, de Elton John. Na
segunda vez, voltaram com “Sangue latino”, antes da exibição da
novela O Semideus, para se misturarem a Antonio Marcos, Tim Maia,
Edy Star, Pery Ribeiro, Benito di Paula e “o falso grupo internacional”
Light Reflections, de “Tell Me Once Again”, que um dia se tornaria outra
canção na voz de Ney.
Mas a terceira noite seria, ou deveria ser, a mais especial. Depois de
verem Jair Rodrigues mostrando “A festa do Divino”, Elizeth Cardoso
cantando “Serenou”, Antônio Carlos e Jocafi com “Teimosa”, Raul
Seixas com “Metamorfose ambulante”, Edy Star com “Ai de mim”, Tim
Maia com “Gostava tanto de você” e Erasmo Carlos com “O comilão”,
Ney, João e Gerson teriam a chance de conhecer aquele que os jornais
ainda mencionavam como o grande oponente dos Secos & Molhados
nas lojas de disco, o homem que já havia reconhecido em entrevista um
desconforto ao ser destronado das vendagens pela primeira vez e o
mesmo que Ney, apesar de qualquer rivalidade, considerava um dos
maiores cantores da música brasileira, Roberto Carlos.
Os ventos diziam que Roberto só iria a um Globo de Ouro se fosse
para defender o primeiro lugar, uma conversa de coxia sem confirmação
mas que colocava um fio de suspeita na legitimidade dos mais tocados.
Os próprios artistas não pareciam levar aquilo como uma disputa e
sabiam que estar na Globo no horário nobre das quartas-feiras já seria
uma vitória. Os Secos estavam ali para cantar “Rosa de Hiroshima” sem
se importar muito com a posição que ela ocupava e Ney, se possível,
também para dizer um olá ao Rei. Mas houve uma reação inesperada.
Antes de surgir no palco para cantar “Rotina” e “Proposta”, Roberto, de
cachimbo aceso, aparentemente se mostrou incomodado ao ver Ney e
os outros rapazes do grupo nos bastidores. Disfarçou e mudou de rumo,
deixando Ney amargar uma certa frustração. Afinal, e isso parecia
inacreditável, Roberto Carlos se importunava com o que os jornais
noticiavam.

Havia outro programa de a ser feito, em terras mais distantes, o


primeiro que não falava português, marcado para o fim de maio de 1974
como fruto de uma conjunção favorável dos astros e das ambições de
Moracy do Val para pôr em prática seu plano de expansão territorial. A
conquista do mundo começaria pelo México, subiria pelos Estados
Unidos, cruzaria o Atlântico rumo à Alemanha Ocidental, sede da Copa
do Mundo daquele ano, se espalharia pelos países europeus e
terminaria em Hiroshima, no Japão. Um giro digno dos grandes astros
do rock. De certo mesmo havia um convite do apresentador Raúl
Velasco, amigo de Silvio Santos, que, em passagem pelo Brasil, se
impressionara ao ver os Secos na . A roda iria girar a partir de Raúl,
que queria exibir o grupo em seu próprio programa, o popular Siempre
en Domingo, no ar desde 1969 para uma audiência média de 30
milhões de mexicanos que sintonizavam o canal 4 do Telesistema
Mexicano de , o Televisa. No mais, era acreditar na força da máxima
de Moracy, “pensou, tá feito”, que aqueles que o conheciam aprendiam
a respeitar.
Seria a aventura redentora, com poderes para restaurar as relações
de um grupo com desgastes cada vez mais visíveis entre João e Ney,
João e Gerson e João e Moracy do Val desde que uma nova figura
havia surgido para dar as cartas e refundar a lógica de negócios no
império Secos & Molhados: João Apolinário. O pai jornalista chegava
para tomar as rédeas das operações e definir os passos seguintes do
grupo. Ao perceber que aquilo que parecia estar ruim poderia piorar,
Ney ficou tenso. “Não pense que eu não estou vendo, você está sendo
conivente com o seu pai”, disse a João Ricardo. O colega chorou como
se também estivesse sendo pressionado, mas nada mudou. A ideia de
criar um selo Secos & Molhados para lançar artistas independentes
como Jorge Omar, Eduardo Dusek e Ronaldo Resedá, que seria
gerenciado por Paulo Mendonça, tinha naufragado na ocasião em que
Apolinário recebeu como resposta de Mendonça a um de seus muitos
mandos um sonoro “vai tomar no cu”. Um agravante aos incômodos de
Ney. Sua irritação com o pai de João Ricardo só aumentou no dia em
que o jornalista o chamou de “pombinha” e o fez entender a forma de
vida inofensiva como o via no mundo.
A escalada das discórdias já estava em curso e o fechamento do
quadrimestre de 1974 anterior à viagem, anotado minuciosamente nas
planilhas de Moracy do Val, dava sinais de que um desequilíbrio nada
saudável se instalaria a curto prazo. Entre 10 de janeiro e 18 de abril, o
total da receita bruta levantada pelo grupo, contando o que havia
entrado com o fabuloso show do Maracanãzinho, ficou em 1218998,70
cruzeiros, o que equivaleria, em 2020, a 5321647,31 reais.
Descontados 680644,50 cruzeiros em gastos, restaram livres, a serem
divididos em quatro partes iguais, 538349,20, o que garantiu para cada
um a bela soma de 134587,30 cruzeiros, algo como 587552,84 reais em
2020. Os vales retirados por Gerson Conrad no mesmo quadrimestre
somaram 100967,90 cruzeiros; os de Moracy, 117310,70; e os de Ney,
98582,50, todos abaixo do que poderiam retirar, o que os deixava com
saldos a receber. João Ricardo, por sua vez, aparece como único
devedor depois de somar 221488,10 em vales sacados, ficando com
um déficit de 86900,80 cruzeiros.
O México parecia o lugar certo para curar as feridas e dar ao menos
uma sobrevida a um conjunto com forças antagônicas mas talentosas e
complementares em suas fases áureas, criativa e econômica, se não
revelasse ser também a cortina de fumaça para uma estratégica
tomada de comando no Brasil. No dia 22 de abril, Moracy do Val
assinou o que viria a ser o seu último documento como “agente
exclusivo dos Secos & Molhados”, transferindo para o mexicano José
Ángel Rota, diretor da gravadora Orfeon Videovox, uma autorização
para que ele pudesse negociar por um ano a venda do grupo no
México. A investida para um lançamento fora do Brasil estava bem
amarrada, com todas as possibilidades de a temporada se estender a
outros países, até que tudo começou a desabar.
Poucos dias antes de seguir para o México, Ney recorda-se, assinou
com João e Gerson papéis timbrados da produtora dos Secos, a ,
para que João Apolinário cuidasse dos negócios na ausência de Moracy
do Val, já que, teoricamente, Moracy também estaria na viagem que
poderia durar até nove meses. Se lesse as letras menores, no entanto,
Ney saberia daquilo que João já sabia: a assinatura estava aprovando a
destituição definitiva de Moracy como empresário e a posse de João
Apolinário como o novo tutor dos Secos. Apesar de a operação México
ter sido articulada por Moracy, assim como resultou de sua habilidade a
conquista da simpatia de algumas rádios norte-americanas por meio de
um compacto distribuído pela Warner para disc jockeys com “O patrão
nosso de cada dia”, ela simbolizava, na prática, a inauguração da nova
administração, algo que Ney e Gerson só descobririam quando
voltassem para o Brasil.
As rádios mexicanas falaram de Secos y Mojados por duas semanas,
nas quais ouvintes ligavam para os locutores e pediam “Sangue latino”
e “O vira” enquanto outros queriam saber, ao vivo, se o cantor brasileiro
era mesmo um maricón. Ney ouvia tudo nos táxis enquanto se
deslocava do hotel Sheraton Maria Isabel, onde os Secos se
hospedaram em suítes presidenciais, para dar entrevistas nas mesmas
emissoras que, minutos antes, se divertiam com seu nome. O convite
para uma aparição no Siempre en Domingo foi logo estendido para
outra visita, no domingo seguinte, assim que o apresentador Raúl e o
chefão da gravadora Rota entenderam que haviam tocado num pote de
ouro. Rota trabalhou rápido para lançar o álbum dos Secos no México
mudando apenas a capa, sem tempo para fazer nenhuma regravação
em espanhol, o que significava uma atitude rara e corajosa o
lançamento de um álbum inteiramente em português no mercado
mexicano.
Havia um compacto gravado no Brasil para os países da América do
Sul, lançado na Argentina, com a versão em espanhol de “Sangue
latino”, “Sangre latina”, mas o público, ao menos no México, preferia as
canções na sua língua original. Entre um programa e outro, onde
cantaram duas músicas a cada visita sob os simpáticos comentários de
Velasco, 10 mil discos foram vendidos em uma semana, o que levou a
gravadora a prensar mais 30 mil cópias, que também evaporariam em
poucas semanas. Ney dava entrevistas individuais e participava de
coletivas, e se dividia entre passeios em trio, como o que fez com João
e Gerson às Pirâmides de Teotihuacán, a 48 quilômetros da capital
mexicana, e caminhadas solitárias pelas ruas do Centro, quando
percebeu a quantidade de famílias que viviam de esmolas pelas
calçadas.
Gerson e Ney começaram a notar um comportamento evasivo e
distante da parte de João Ricardo, com muitas idas ao telefone da
recepção, no qual se podiam fazer as chamadas interurbanas. Uma vez
Gerson o viu falando com o pai e percebeu seu desconcerto ao ser
flagrado em tom confidencial. Ainda sem saber de nada, Ney e Gerson
decidiram brincar com as intolerâncias de João chamando-o à suíte
presidencial onde estava Ney. Assim que ele entrou e viu os dois na
banheira, virou-se e saiu do quarto. Já nos últimos dias, um empresário
mexicano acompanhado por uma mulher carregada de maconha para
oferecer aos músicos procurou Ney para marcar um encontro.
Dois homens norte-americanos se apresentaram como executivos e
disseram que gostariam de falar com o cantor brasileiro que tinham
visto na . Ney disse que não falava inglês, mas o empresário
mexicano garantiu que faria a tradução. Na reunião a portas fechadas,
sem a presença de João e Gerson, Ney ouviu uma proposta: eles
queriam lançá-lo nos Estados Unidos. Sua imagem era boa para a cena
glitter daquele início de década, mas, para dar certo, seria necessária
uma nova banda capaz de sustentar um som mais pesado. Ney se
mostrou desinteressado, disse que não tinha nenhum plano de deixar o
Brasil e lembrou de Carmen Miranda, desmerecida e patrulhada em seu
próprio país depois de se lançar nos Estados Unidos. João e Gerson
contam que uma reunião com dois executivos norte-americanos foi feita
com os três integrantes do grupo, com a mesma proposta de carreira
internacional, mas Ney diz que nunca esteve nesse encontro.
A aparição mundial do Kiss na mesma época levou Ney a uma
conjectura de ordem pessoal, estimulada por fãs e por Zé Rodrix. Para
eles, a banda de Nova York havia sido criada à imagem e semelhança
dos Secos & Molhados. Depois que ouviram o não de Ney, os dois
homens sem nome que surgiram no Sheraton da Cidade do México
teriam chamado Gene Simmons e Paul Stanley para formarem o grupo
nos moldes visuais dos Secos & Molhados. Seria mesmo uma história
incrível, mas tudo girou em torno de uma das coincidências do universo
do rock and roll, em que pessoas de diferentes lugares do mundo
apanham no ar ideias semelhantes. O fato de o próprio Simmons se
pronunciar sobre o caso anos mais tarde comparando os que
acreditavam “na lenda da América do Sul” com aqueles que falam de
discos voadores poderia ainda ser algo contestável aos que creem
fortemente na ligação dos dois grupos. Por alguma razão, Simmons
poderia talvez querer negar a inspiração de seu visual num grupo do
Brasil. Mas, além das palavras, existem os fatos.
O Kiss fez seu primeiro show no dia 30 de janeiro de 1973, um ano e
meio antes de os Secos & Molhados pisarem no México, num
calabouço subterrâneo do Queens chamado Coventry, em Nova York. A
sonoridade pesada e as maquiagens em seus rostos foram evoluindo
aos poucos ao longo dos primeiros shows. Tudo o que queriam era
combinar a potência sonora de bandas como Slade, Humble Pie e Who,
conforme relatam seus integrantes na biografia Nothin’ To Lose: A
formação do Kiss, do pesquisador Ken Sharp, com a teatralidade
sombria de Alice Cooper, a aura andrógina de David Bowie e o
espetáculo das trevas mais profundas encenado por um grupo inglês de
rock psicodélico surgido em 1967, The Crazy World of Arthur Brown,
cujo líder, Arthur Brown, usava uma maquiagem preta em volta dos
olhos e dos lábios e um chifre de metal acoplado à cabeça que pegava
fogo durante as apresentações. Cooper desde 1969, Bowie pelo menos
desde seu terceiro álbum, The Man Who Sold the World, em 1970, e
Arthur Brown a partir de 1967. Um empresário maldoso teria
argumentos para dizer que os Secos & Molhados é que haviam se
inspirado em qualquer um desses artistas em 1973, o que não seria
nenhum demérito.
Assim que a aventura mexicana acabou sem que fosse estendida a
nenhum outro país, o conjunto ainda não sabia, mas já estava com seus
dias contados. Gerson e Ney descobriram, ao voltar para São Paulo,
que Moracy não só havia sido retirado dos negócios como também era
acusado por João pai e João filho de má gestão e pouca habilidade com
as finanças. Uma humilhação publicada nos jornais. A antiga empresa
aberta para cuidar das burocracias, contratos e recebimentos, a
(que nada queria dizer a não ser, como João brincava com Gerson, Sua
Puta Porca e Suja), era substituída pela Produções Artísticas,
instalada numa sede espaçosa e bem aparelhada de dois andares, na
alameda Itu, nos Jardins: se era para conquistar o mundo, que a
conquista se desse sob o comando do criador.
E o criador dos Secos & Molhados, por mais que o mundo
ameaçasse esquecer disso, era João Ricardo. João e Gerson estavam
na origem de tudo, mas foi João quem levou o grupo à frente com
Pitoco quando Gerson deixou a primeira formação. João tinha
conhecido Luli no Kurtisso Negro — e, sem Luli, não haveria Ney. João
tinha construído o conceito dos poemas musicados, convidado os
músicos, batizado o grupo, composto as canções, e poderia se
considerar importante até mesmo em “Rosa de Hiroshima” por ter
colocado a Antologia poética de Vinicius de Moraes nas mãos de
Gerson. João conduziu os ensaios com apuro e detalhismo, viu um
empresário em Moracy e fez contatos significativos para que o
Fantástico e o show do Maracanãzinho se tornassem reais. João estava
por todos os lugares e sua mão pesava sobre todas as conquistas,
exceto o detalhe que não havia imaginado e que cada vez mais se
impunha sobre todas as coisas. Toda a virtude de um grupo
conceitualmente impecável e musicalmente brilhante migrava para a
valorização de uma única figura, Ney Matogrosso.
11. Tempestade e libertação

Havia argumentos fortes para convencer Ney de que deixar o grupo


naquele momento seria como rasgar dinheiro, mas as promessas de
riqueza material só surtiriam algum efeito se os executivos da
Continental não estivessem falando com um hippie. A portas fechadas,
Ney dizia a Byington, em reunião na gravadora, que nada o faria mudar
de ideia e que ele poupasse seu tempo. Antes de se despedir do único
fenômeno de vendas com o qual tinha trabalhado na companhia, o
executivo resignou-se e fez um último pedido: Ney deveria gravar o
segundo disco com o grupo e esperar o lançamento para só depois
anunciar a saída. E que guardasse bem a notícia até o momento de
divulgá-la, para não atrapalhar as vendas. Ney aceitou a condição, mas
a história vazou por meio de seu amigo confidente, Paulinho Mendonça,
que a levou por boas causas a Vitor Martins, compositor que então
cuidava das mais recentes contratações da gravadora -Victor no
Brasil.
Vitor procurou Ney com uma senhora proposta: um caminhão de
dinheiro em troca de seu passe. Já que o grupo se desintegrava
rapidamente, Ney poderia cumprir sua palavra com Byington e, assim
que o segundo álbum fosse lançado, deixaria a Continental para ser
recebido com louros pela . Ney gostou do que ouviu e saiu confiante
depois de aceitar um segundo encontro, dessa vez com a presença de
outros executivos da gravadora, para tratarem de cifras e detalhes num
restaurante da alameda Barros. Ao retornar à empresa, Vitor comunicou
com euforia aquela que seria a mais preciosa conquista da companhia
na temporada e avisou seus superiores da reunião com Ney. Mas,
quando a data do novo encontro se aproximava, ele foi demitido sem
maiores justificativas.
O executivo voltou até Ney, contou o que tinha acontecido e se
despediu após sua resposta: “Tudo bem, Vitor, eu sei o que vou fazer”.
Ney chegou ao restaurante no dia marcado, sentou-se à mesa onde o
aguardavam os representantes da e perguntou: “Cadê o Vitor?”.
Um dos homens mentiu: “Ele está no Rio, precisou ir resolver alguns
compromissos”. E Ney encerrou uma das reuniões mais breves de sua
vida com apenas uma frase: “Então ok. Vocês falam com ele, marquem
uma nova reunião e me chamem de volta”. Dias depois, o telefone de
Vitor tocou: “Rapaz”, disse um dos executivos que o havia dispensado,
“vamos deixar essa história de lado, você precisa voltar a trabalhar com
a gente”. E Vitor encerrou uma das ligações mais breves de sua vida
com apenas uma pergunta: “Claro, e por que é que você não vai tomar
no seu cu?”.
A sorrateira dispensa de Moracy do Val havia sido a gota para
transbordar em Ney a certeza de que a história dos Secos & Molhados,
ao menos para ele, tinha terminado. O primeiro show marcado na volta
do México, sob a administração de Apolinário, foi cercado de
articulações controversas que só o faziam querer desaparecer o quanto
antes. Apolinário fechou uma data, 16 de junho, no Ginásio
Independência de Osasco, no bairro de Presidente Altino, com preços
divulgados como acessíveis, quinze cruzeiros na geral e trinta nas
cadeiras de pista. A ponte México-Osasco fora planejada pelo novo
empresário por meio de seus contatos pessoais, como a professora
Wilma Leal de Lira e os responsáveis pelo jornal local Municípios em
Marcha, o MM, do vereador Vrejhi Sanazar. O periódico de Sanazar,
com a permissão de Apolinário, criou também uma campanha do
agasalho, trocando cem ingressos por roupas de frio, e o contato com
Wilma, ainda segundo o jornal, garantiu “algumas colheres de chá,
superando imposições dos Secos & Molhados, como os preços, que
sofreram uma redução considerável”. Parte da renda seria destinada,
de acordo com a publicação, a “uma entidade beneficente de Osasco”
divulgada assim, sem nome nem .
Ney via aquilo tudo como “o triste fim dos Secos & Molhados”.
Apolinário, para ele, usava um discurso humanitário condizente com
alguém de formação socialista, ligado a campanhas do agasalho e
shows beneficentes por regiões menos abastecidas de espetáculos,
mas que colidiam diretamente com o que ele, Ney, percebia em sua
gestão centralizadora. O show de Osasco, o último de Ney ao lado de
João e Gerson, se tornou, assim, um calvário vivido no palco de uma
apresentação humilhante e devastadora. Ney chegava para entregar o
seu pior. Ao aparecer em cena, veio de quatro, engatinhando, e seguiu
fazendo movimentos desconexos que jamais havia feito, com chutes
para o alto e esperneios pelo chão num desleixo à altura de sua
indignação.
Poucos dias depois, no caldo das reformas administrativas impostas
por João Apolinário, Ney recebeu em casa um office boy portando um
documento oficial da Produções Artísticas para ser lido, firmado e
devolvido ao mesmo portador. Alerta após a sordidez do episódio com
as assinaturas às cegas acontecido antes da viagem ao México,
resolveu ler com atenção e quantas vezes fosse necessário todas as
letras até estar certo de que o que lia era aquilo mesmo: a partir do
instante em que escrevesse seu nome na linha pontilhada, ele deixaria
de ser um integrante dos Secos & Molhados, com direito a votos, vetos
e aos 25% dos shows, e se tornaria, assim como Gerson, uma espécie
de assalariado contratado da empresa. Ney não atirou no mensageiro,
mas quase. “Você me faz um favor?”, disse, enquanto rasgava a folha:
“Você leva esse documento de volta e manda eles enfiarem no cu”.

Uma névoa densa e escura parecia entrar pelas portas antirruído das
salas do estúdio Sonima, na avenida Rio Branco, quando ali se reuniam
João, Gerson e Ney para a gravação do segundo álbum dos Secos &
Molhados, em junho de 1974. Uma tensão que a secretária da casa
percebeu e decidiu aliviar ensinando a Ney uma oração contra espíritos
obsessores que ele passou a fazer todos os dias sobre o calor de velas
acesas em cantos discretos do estúdio. João havia conseguido, mais
uma vez, juntar um material musical cheio de substância política e
poética ativado por mais de dois meses em ensaios na residência da
família de Emilio Carrera, na rua Fidalga. Diferentemente do que
Gerson esperava, apenas uma música teria sua assinatura, “Delírio…”,
em parceria com Paulo Mendonça, e ele via seus sonhos se
desintegrarem com o irreversível monopólio de João nas composições,
algo que se reverteria, todos sabiam, em mais dinheiro de direitos
autorais para um dos integrantes. Além disso, havia a certeza sigilosa
da parte de Ney de que ele fazia sua despedida com aquelas treze
faixas, e mesmo assim estava disposto a lhes entregar a alma como se
nada o atingisse.
Os Secos já tinham outro motor desde a série de shows do pós-
Maracanãzinho. O baterista Marcelo Frias havia parado no som após
uma discussão com Willy Verdaguer durante um ensaio. Seria uma
bobagem, uma virada de bateria qualquer que Willy, talvez falando duro
demais, acusou voltar fora do ritmo, mas Marcelo fez do detalhe uma
tormenta, jogando as baquetas para nunca mais voltar. Quem assumiu
seu lugar foi Norival D’Angelo, 25 anos, jovem que atuava com a Detroit
Blues Band numa casa chamada O Beco, na rua Bela Cintra, um antigo
boliche que o empresário Abelardo Figueiredo transformara em boate
com música ao vivo, e feito do mesmo material genético de Marcelo,
colhido de bateristas como Ginger Baker, Mitch Mitchell, Buddy Rich,
Bobby Elliott, o baterista dos Hollies, e Ringo Starr. Depois de seu
primeiro show com os Secos no suntuoso Buffet Colonial, na avenida
Indianópolis, Norival se juntou à tropa e seguiu com ela para
espetáculos em Uberaba, Uberlândia e tudo o que viria até a gravação
do álbum.
A nova configuração, que tinha também o violão técnico e afinado de
Jorge Omar, resultou num álbum fora do eixo denso estabelecido por
baixo e bateria no primeiro disco, de desenhos mais leves, com maiores
respiros, e de belezas breves e grandiosas. Ney e Omar fazem uma
faixa sozinhos, “O doce e o amargo”. João, Gerson e Ney cantam,
apenas com a flauta de Rosadas, a vinheta “Preto velho”. “Medo
mulato”, de João e Paulinho Mendonça, tem Norival nos timbales. “Não:
não digas nada”, de João para o poema de Fernando Pessoa, mostra
Ney seguido só de violão e flauta. “Angústia” tem muitos instrumentos,
mas abertos, de forma menos compacta, com um solo improvisado no
limite da distorção que John Flavin fez pensando no personagem
central do livro Angústia, de Graciliano Ramos. E “Caixinha de música
do João” é um instrumental com vocalises de Ney e piano de Emilio.
João desafiou ainda Ney a sair pela primeira vez dos agudos quando
mostrou “Oh, mulher infiel”. Ney aceitou e relaxou as cordas vocais para
chegar a graves que nunca havia explorado.
E lá estava também a banda cheia e pulsante de volta, com as linhas
do baixo de Verdaguer em alto-relevo, muitas vezes com a prolixidade
quase descontrolada da juventude, em convenções criadas pela
guitarra de John e pelo piano de Emilio. As colaborações de John Flavin
apareciam com força em arranjos para canções como “Flores astrais” e
“Delírio”, na reprodução da forma rítmica de “Mulher barriguda” em “O
hierofante”, na viajante decolagem em dois acordes de “Voo” e no
flamenco em espanhol “Tercer Mundo”, que João compôs para versos
de Julio Cortázar. O lado B trazia “Toada & rock & mambo & tango &
etc.”, que não era nada disso mas um blues, a única parceria de João e
Luli do disco. Embora acesas sobre mágoas e rancores, as velas para
todos os santos de Ney e a fé em todos os sons de João pareciam surtir
efeito, levando a magia a cair duas vezes no mesmo lugar. Os Secos &
Molhados faziam duas correntes paralelas de sons antagônicos — uma
linha de frente, delicada e acústica, e uma de fundo, agressiva e elétrica
— soarem como algo único.
Não houve tempo para os críticos escutarem o disco duas vezes.
Assim que o álbum saiu, o programa Fantástico, o mesmo que
apresentara o grupo ao país dezoito meses antes, não fazia ideia de
que agendava também seu funeral quando o colocou na grade do dia
11 de agosto de 1974. O fardo nas costas de Ney pesava agora por
toda palavra de João Apolinário, a quem ele não conseguia mais ver
sem mágoas. Moracy podia se atrapalhar nas finanças e algum dinheiro
até deveria escoar por frestas de contas malfeitas, mas Ney não via má-
fé no empresário que valesse sua destituição e passara a valorizá-lo
ainda mais quando fazia comparações.
Os planos de Moracy não tinham limite e Ney amava em especial um
dos que jamais seriam concretizados. O “encontro da Idade da Pedra
com a Era Tecnológica” era a forma como o empresário se referia ao
sonho de levar os Secos para se apresentarem num palco armado em
meio às tribos do Parque Indígena do Xingu. Uma aventura custosa e
sem nenhuma garantia de retorno financeiro. “Quando você precisar de
dinheiro, pare de pensar nele que ele virá”, dizia. Apolinário, por sua
vez, movia-se ao vento das conquistas. Afinal, em pouco tempo, Moracy
havia sido demitido por dinheiro e, enquanto Ney sofria com uma
Brasília bege que ele nunca conseguia manter parada nos faróis das
ladeiras de São Paulo antes que ela voltasse e batesse no carro de
trás, João cruzava as ruas num vistoso automóvel importado. O
problema de Ney não eram os bens de João, mas o que parecia ser um
desencontro de propostas.
Só faltavam alguns dias. Os Secos & Molhados seriam apresentados
mais uma vez com pompas na Globo, cantariam “Tercer Mundo” e
“Flores astrais”, e Ney, enfim, diria adeus a João, Gerson e Apolinário
para assinar contrato com outra companhia de discos ou voltar a ser o
hippie miseravelmente feliz a oferecer colares de miçanga em Ipanema.
Não seria bem assim, mas o importante era estar pronto para o que
fosse e, dias antes de embarcar para a gravação do Fantástico, Ney
desabafou com um de seus amigos íntimos, o jornalista Marco Antônio
Lacerda. “Não dá mais, Marco, vou sair do grupo”, disse ele, para
começar a desfiar lamentos envolvendo climas e condições financeiras
que considerava bem desalinhadas. Uma rara noite de descompressão
emocional feita a alguém que, além de ser um de seus bons ouvidos de
alcova, Ney se esqueceu, era um repórter. “Não posso mais ficar no
grupo”, dizia a Marco na casa da rua Fernando de Albuquerque.
Algum tempo depois da conversa, mais precisamente em 10 de
agosto de 1974, um dia antes de o Fantástico ir ao ar, o Jornal da
Tarde, em São Paulo, publicava a primeira notícia oficial da dissolução
do grupo numa matéria que Marco escreveu, mas não assinou, sob o
título “O Secos & Molhados perde a voz de Ney. A música brasileira
ganha um bom cantor”. A matéria tinha Ney como personagem central,
trazia aspas de Gerson, mas nela não havia frases de João Ricardo
para nenhuma defesa, mesmo sendo ele o alvo de muitas reclamações.
A abertura do texto criava uma certa comiseração:
Cem cruzeiros, uma nota de cinquenta, quatro de dez e duas de cinco. É todo o dinheiro
que Ney Matogrosso tem para passar esse fim de semana. Uma parte é para pagar a luz
de casa que a Light cortou desde quinta-feira passada. O que sobrar é o lucro de sua
carreira como cantor dos Secos & Molhados — o único conjunto brasileiro capaz de lotar o
Maracanãzinho, parar as cidades onde faz shows e, em alguns meses, vender mais
discos do que o invencível Roberto Carlos (800 mil cópias só no da estreia, segundo
informações do próprio grupo).
Gerson, procurado por Marco Lacerda para completar os desabafos
de Ney, aparecia na matéria contando em primeira mão uma história
estarrecedora. A gana de João Ricardo pelo domínio da cena, lembra
Gerson, havia chegado ao insuportável no dia em que, num dos últimos
espetáculos, a plateia teria pedido ao grupo que tocasse como bis
“Rosa de Hiroshima”, a única música do repertório que não era de
autoria de João. Gerson dizia que, assim que o show acabou e todos
seguiram para o camarim, o colega já estava possesso, chutando
cadeiras para ordenar que jamais começassem uma música de novo
sem a sua autorização. Ney terminava dizendo que passaria o melhor
fim de semana de sua vida com os tais cem cruzeiros. “Agora, estou de
novo no lugar de onde o João Ricardo me tirou: a sarjeta. Graças a
Deus, mas tenho dormido e até sonhado, o que não me acontecia há
um ano.”
Mas o texto comunicava uma falsa ideia: a de que Ney saía com as
mãos abanando por causa de uma injustiça contábil. Sim, Ney poderia
ter ganhado mais em sua aventura nos Secos & Molhados, porém,
como mostram os acertos registrados por Moracy, ele sabia dos valores
divididos entre as quatro partes e, ainda que não considerasse justa a
partilha, também ganhou muito dinheiro, bem mais que o suficiente para
pagar a conta da Light. A questão era outra. Por muito tempo, Ney não
teve conta em banco nem ambições que valessem as aporrinhações
dos cálculos e das previsões financeiras.
O dinheiro entrava, ele pagava as contas, satisfazia um ou dois
desejos palpáveis e o resto, o que representava sempre mais que a
soma de tudo o que gastara, era simplesmente dado. Não doado, mas
dado. Doações são feitas com indulgência e compaixão, mas seu ato
era mais próximo do desapego. Assim, Ney, ou aquele dinheiro que
surgia em sua vida sem que ele jamais o procurasse, pagava contas de
amigos, ajudava colegas de amigos e financiava sonhos de família.
Dona Beíta comprou terras no Mato Grosso graças às últimas rendas
dos Secos & Molhados.
O Fantástico de 1974 era o preço da liberdade. Ao perceber que João
Ricardo poderia ter posto um cunhado para vigiá-lo pelos camarins do
Teatro Fênix, da Globo, com o intuito de saber se ele falaria com
jornalistas ou algo do tipo, Ney se exaltou. Apanhou uma garrafa de
vinho na sala dos convidados e apontou para o rapaz, ameaçando
quebrá-la em sua cabeça se ele continuasse perseguindo-o. Cada um
em seu camarim, sem que se cruzassem, Ney, Gerson e João vestiram
suas extravagâncias para cantarem lado a lado pela última vez.
Uma tristeza de olhares e braços cansados parecia abater “Flores
astrais” para além do que diziam os poucos versos que João Apolinário
havia feito para a melodia de João Ricardo. “Um grito de estrela/ Vem
do infinito/ E um bando de luz/ Repete o grito// Todas as cores/ E outras
mais/ Procriam flores/ Astrais.” A canção, em cuja execução o piano de
Emilio Carrera buscava vida em Elton John e o slide guitar de John
Flavin trazia alguma aura de George Harrison, parecia durar o mesmo
tempo que a história vivida em menos de dois anos, de ensaios
cuidadosos, experiências sonoras, incômodos militares, shows lotados,
viagens, hotéis, fuga de fãs, brigas em estúdio, tremores no palco,
músicas em rádio, programas de , Roberto Carlos e crianças, muitas
crianças. A despedida dos três jovens saídos de duas Belas Vistas
muito diferentes, uma o bairro central de São Paulo e outra na fronteira
do Brasil com o Paraguai, se dava como um grito de estrelas no tempo
infinito de 4min10s.
O Fantástico fazia água na própria festa de lançamento que
patrocinava anunciando, depois de mostrá-los cantando “Flores astrais”,
o fim do grupo. A informação soava como alívio para Ney e,
provavelmente, como justiça divina para Moracy do Val, vingado pelo
destino. João Apolinário afirmou aos repórteres que iria voltar para o
jornalismo, “o lugar de onde nunca deveria ter saído”, e João Ricardo
recebeu a imprensa ao lado de dois advogados na sala de reuniões da
produtora para contar que só soube da dissolução do grupo junto
com todos os jornalistas que estavam naquela sala. O fim repentino
surpreendeu também Willy, Emilio, Rosadas e Norival e desencadeou
uma grave crise emocional no guitarrista John Flavin. Se Ney tinha cada
vez mais a segurança de saber o que queria e o que não queria aos 32
anos, àquela altura já em retiro no Rio de Janeiro, o jovem John, aos
vinte, despencava dos sonhos usando doses maiores de .
Ainda sem entender o que havia se passado, ele procurou Ney para
tentar uma vaga em seu novo grupo, qualquer grupo que pensasse ter.
Ney disse que montaria um time em breve e que John seria sempre
bem-vindo, mas fez uma ressalva: a rebeldia e o precisavam ficar
de fora. O próprio John acabou reconhecendo que não estava bem e
decidiu não se entregar a nada naquele momento. Alguns dias depois,
ele não encontrou sua guitarra Les Paul preta em casa e se pôs a
procurá-la em praças e ruas até passar em frente a uma casa amarela
da vizinhança e ter a certeza trazida por seus delírios de que o
instrumento estava escondido ali. Os moradores estranharam e
chamaram a polícia. John foi levado para averiguações e solto logo em
seguida, mas começou a ir todos os dias à delegacia para perguntar se
tinham encontrado seu instrumento.
Mais alguns dias e o jovem resolveu incendiar o passado. Entrou no
quarto, empilhou tudo o que não era de seu gosto, incluindo peças de
roupa, livros e outros objetos, e ateou fogo. Enquanto as chamas
subiam e os vizinhos chamavam os bombeiros, ele olhava para o fogo
tocando bandolim de pé. Sua mãe o levou para o Sanatório Bela Vista,
no Itaim, onde ficou internado por um mês até sair, viajar para o Rio e
sofrer uma forte abstinência por falta do uso das medicações. Ao voltar,
levaram-no para outro hospital, o Instituto de Psiquiatria Comunitária,
onde foi amparado pelo Comitê de Recepção, quando os próprios
internos recebem os novatos. Assim que entrou na sala, dois homens o
esperavam. O mais novo era um advogado vítima de traumatismo
craniano que o havia deixado com o aspecto e as ideias de um Dom
Quixote e o mais velho, um interno elegante que adorava ouvir Mahler,
pintar e fumar cigarros franceses chamado Olavo de Carvalho, o
ensaísta e autoproclamado filósofo que se tornaria guru da direita
ultraconservadora quase cinquenta anos depois.

Sem saber dos infortúnios de John, Ney estava na casa de Paulo


Mendonça, no Rio, fugindo da sanha dos jornalistas que buscavam pela
primeira entrevista pós-rompimento. Passados alguns dias, viajou para
São Paulo a fim de resgatar a cama, a Brasília bege e algumas dezenas
de fotos que haviam ficado na casa da Fernando de Albuquerque. A
cama foi desmontada e colocada no carro, mas as fotos
desapareceram. Ele voltou para o Rio e seguiu escondido dos
repórteres até decidir viajar para talvez o único lugar onde ninguém o
encontraria: a casa dos pais em Ilha Solteira, no interior de São Paulo.
Mas foi descoberto e, depois de três dias sem atender telefone nem sair
à rua, resolveu isolar-se ainda mais. Apanhou um ônibus para percorrer
mais 440 quilômetros e se reconectar com suas origens nas terras de
Tancha, em Campo Grande.
O avô recebeu orgulhoso o neto cantor, o único na família que
pareceu absorver algo nas rodas de guarânia dos velhos tempos. Ney
passou dias tranquilos como não vivia desde sua saída de Campo
Grande, fazia quase quinze anos. Pouco antes de completar um mês de
retiro, um senhor bem-vestido e rodeado por uma comitiva de
simpatizantes bateu palmas na porteira da fazenda. O prefeito da
cidade, em franca campanha pela reeleição, estava ali para
homenagear o filho pródigo de Campo Grande e reconhecer sua
importância num ato oficial para moradores que haviam dançado “O
vira” muitas vezes. Mas, assim que o homem se pôs a discursar entre
os aplausos dos seguidores, Ney, visivelmente contrariado, o
interrompeu: “Muito obrigado, senhor, mas eu não quero isso”. A vida de
silêncios e contemplações deixada um dia em Mato Grosso não seria
mais a mesma depois do caminho tomado com os Secos & Molhados.
Ney entendeu que deveria arrumar as malas e voltar para o Rio o
quanto antes para começar tudo de novo, dessa vez, sozinho.
12. Mandrix na selva

De volta ao Rio de Janeiro, Ney sentiu que havia chegado sua vez.
Queria agora gravar um álbum com as músicas e os músicos que
escolhesse, pensar figurinos, testar luzes, escrever roteiros e,
sobretudo, não receber ordens nem se submeter a aprovações. A
desforra da repressão de seus desejos por parte de João Ricardo, como
o de cantar “Barco negro”, por exemplo, tinha começado bem, pois a
Continental propusera contratá-lo para gravar três discos sem
interferências, pagando um adiantamento que lhe serviria para quitar a
conta da Light e se despedir da miséria, ao menos, por alguns meses.
Saiu logo em busca de um aluguel pelo Rio, mas sua primeira tentativa,
um bom apartamento no bairro da Lagoa, travou porque o dono
reconheceu quem seria seu inquilino. “Aqui não é lugar para bacanal”,
disse, encerrando a negociação. Ney acabou achando um apartamento
no térreo da rua Carlos Góis, no Leblon, e ali se estabeleceu para
passar a viver uma espécie de regime comunitário com homens e
mulheres de todas as preferências sexuais que uns podiam chamar de
território livre e outros usando a forma reducionista escolhida pelo
proprietário do imóvel da Lagoa.
A liberdade de Ney começou numa noite no Theatro Municipal do Rio,
onde se apresentava a lenda argentina e reformadora da tradição
portenha, o homem que havia colocado o bandoneon dos tangos nas
salas de concerto, o distinto senhor de 54 anos chamado Astor
Piazzolla. Ney adorava suas composições e era com uma delas que
queria iniciar sua vida de artista solo, mas a ideia de se dirigir ao
camarim depois do espetáculo, apresentar-se cerimoniosamente e
ousar pedir a Piazzolla uma música para gravar em seu primeiro disco o
aterrorizava. Ele então tomou banho, se vestiu e, antes de sair, ingeriu
meio comprimido de Mandrix, um desinibidor de línguas e destravador
de ideias que desde o princípio da década fazia parte dos dias de Ney e
de quem o rodeava.
Mandrix ou metaqualona era um sedativo depressor do sistema
nervoso central prescrito para os insones que os norte-americanos
conheciam como Quaalude, uma aglutinação de quiet interlude, ou
“interlúdio tranquilo”, e os ingleses como Mandrax. Vendido livremente
até 1984, seu uso passou a ser indiscriminado a partir dos anos 1970
por uma geração que queria exatamente o contrário do que dizia a bula.
Uma dosagem a mais e o que era para proporcionar um sono profundo
e restaurador depois de amenizar a ansiedade levava a uma euforia
amorosa equivalente a “doze cervejas em uma pílula só”, como
pacientes relataram nos Estados Unidos. A “droga do amor”, capaz de
fazer alguém se apaixonar por um poste, parecia sob medida para
hippies pregadores do Flower Power e astros do glam rock. David
Bowie a cantou na música “Time”, do álbum Aladdin Sane, em 1973, e
Frank Zappa em “Pygmy Twylyte”, do duplo gravado ao vivo Roxy &
Elsewhere, lançado em 1974. O veto à sua produção em muitos países,
na segunda metade da década de 1980, se deu quando a recreação
começou a virar caso de saúde pública. Boa parte dos usuários
apresentava sintomas de abstinência ao tentar interromper as dosagens
e os casos de overdose se tornaram frequentes.
Assim que o espetáculo de Piazzolla terminou, uma voz que já não se
sabia de que mundo era chamou Ney para o camarim. Acabrunhado,
ele se aproximava aos poucos quando o próprio argentino precipitou-se:
“Qual o seu nome?”. “Ney.” “Ney Matogrosso?” “Sim, você me
conhece?” “Claro, dos Secos & Molhados.” Ney tomou um susto. “Eu
queria muito gravar uma música sua.” E Piazzolla: “Eu tenho duas que,
creio, vão servir bem. Mas você não pode ir até meu estúdio, em Milão,
para gravarmos juntos?”. “Claro que posso.” Ney não podia, mas daria
um jeito. Saiu do Municipal num estado de êxtase tão irrefreável que
resolveu tomar mais um Mandrix e se entregar à noite. Na manhã
seguinte, ao acordar, viu um homem dormindo a seu lado e não
conseguiu lembrar como ele tinha ido parar ali: “Quem é você?”.
Ney foi à Continental já no dia seguinte mais para informar que para
pedir: ele iria para a Itália gravar duas músicas com Astor Piazzolla, a
companhia pagasse ou não. Se a resposta fosse não, haveria um
problema de custos que estava disposto a resolver nem que tivesse de
pedir empréstimo a amigos, mas a empresa bancou sua ida e ainda
mandou com ele Moracy do Val, mais como amigo do que como
empresário. Os dois ficaram alguns dias num hotel de Roma antes de
seguirem para Milão, onde Astor já preparava a música “As ilhas” no
estúdio, com uma letra que o argentino solicitara ao poeta brasileiro
Geraldo Carneiro, e “1964”, sobre um poema de Jorge Luis Borges.
Canções em tons menores que, ao contrário do rock, apontariam
qualquer descuido de afinação.
“As ilhas” colocava a voz de Ney numa região bastante grave, quase
desconfortável, para que ela subisse à aguda aos poucos
acompanhando uma escalada de tensão até que, no final, soltasse um
grito. “1964” é ainda mais dramática, com a caixa da bateria em rufos
militares que tanto agradavam a Piazzolla e uma frase que Ney repetia
com a alma incorporada de Borges: “Ya no seré feliz. Tal vez no
importa/ Hay tantas otras cosas en el mundo”. As duas canções mais
caras do que logo viria a ser o primeiro álbum solo de Ney delimitavam
um território: Piazzolla emprestava respeito, mas não garantia
popularidade, e popularidade era o que Ney menos buscava em sua
vida pós-“Vira”. As músicas impressionavam mais por serem de
Piazzolla do que por algum potencial de reverberação pop, mas foi com
elas que ele ganhou a atenção de seu novo comandante de tropa, o
trompetista Márcio Montarroyos, destacado para formar o conjunto. Ao
voltar para o Brasil, Ney mostrou o que havia conseguido e Montarroyos
se espantou: “Você já começou com Piazzolla?”.
Sair em busca de canções no Rio de 1974, uma terra provida de uma
deslumbrante malha de criadores ainda dispostos a fornecer canções,
era uma aventura. Com Paulo Mendonça, Ney venceu a timidez para ir
ao bairro Peixoto e entrar na casa de Milton Nascimento, que já era um
gigante. Ney não o conhecia, mas Paulinho sim, e os dois foram bem
recebidos ao lado do lustroso piano da sala e das músicas que Milton
tocaria nele: primeiro “San Vicente”, que havia sido lançada em 1972,
no álbum Clube da Esquina, e depois uma pérola com letra de Ruy
Guerra chamada “Bodas”, inédita mas que Milton acabaria gravando
antes de Ney, em Milagre dos peixes ao vivo. Quando foram embora,
Milton ligou interessado nas letras de Paulinho Mendonça. Queria saber
se ele poderia mandar material para comporem algo juntos. Mas Paulo
travaria sempre que sentasse para compor e pensasse que poderia
estar criando uma parceria com Milton Nascimento.
A Luiz Carlos Sá, Ney pediu para ficar com “Homem de Neanderthal”,
lembrança dos anos em que todos a cantavam na garagem de Luli, e do
amigo Paulo Cesar, um ex-bancário que viraria hippie e sumiria no
mundo, não sendo localizado nem para receber seus direitos autorais, a
escolhida foi “Pedra de rio”, mostrada a Ney pela coautora Luli numa
tarde em que ela a tocou no violão dentro da piscina vazia de sua casa
em Filgueiras. A acústica dos azulejos havia criado um efeito
impressionante na sonoridade de uma canção que já era naturalmente
bela. O caldo engrossava. Outro achado era “Açúcar candy”, enviada
por Sueli Costa, que a compusera com Tite de Lemos, uma lascívia
orgástica mostrada pela primeira vez em 1970 num espetáculo nada
infantil chamado Alice no país divino maravilhoso, regada a viagens
químicas e com versos que fariam um bom barulho ao saírem da boca
de Ney: “Tua pistola dispara baunilha/ Na minha boca, no meu dorso/
Ai, precipício/ Que poço de delícias/ Ai, que vertigem/ Ai, que desmaio”.
Um amigo de Ilha Solteira havia presenteado Ney com um que
trazia a música “Mãe Preta”, uma toada dos sambistas gaúchos Caco
Velho e Antônio Amábile, o Piratini, lançada em 1943 pelo Conjunto
Tocantins e, curiosamente, pela mesma Continental. Uma canção de
história tão atribulada que levaria a um erro. A letra não é de Piratini,
como se lê no álbum, mas do escritor e poeta português David Mourão-
Ferreira. “Mãe Preta”, em sua origem, tinha outra letra. Ela narrava a
tragédia pessoal de uma escrava que embalava o filho branco de seu
senhor enquanto seu amor, que poderia ser seu próprio filho ou seu
marido, apanhava na senzala. “Era assim que Mãe Preta fazia/ Criava
todo o branco com muita alegria/ Porém lá na sanzala o seu pretinho
apanhava/ Mãe Preta mais uma lágrima enxugava.” Depois da gravação
do Tocantins, com “senzala” trazendo “a” no lugar do “e”, a fadista
portuguesa Maria da Conceição a lançou em Portugal e, em 1955,
Amália Rodrigues a regravou com outra letra numa versão que foi
usada no filme francês Os amantes do Tejo, de Henri Verneuil. Ainda
criança, Ney estava sozinho numa sala de cinema de Bangu, no Rio,
quando assistiu petrificado às cenas com a voz de Amália ao fundo.
A música que Amália cantava tinha a mesma melodia de Caco Velho,
mas a letra era do poeta David Mourão-Ferreira e o título havia sido
mudado para “Barco negro”. A história de Mãe Preta saía para entrarem
as angústias de uma mulher que via seu homem partir pelo oceano
numa embarcação sem nenhuma garantia de retorno. De negro, só
sobrara o barco. “De manhã, que medo/ Que me achasses feia/ Acordei
tremendo, deitada n’areia/ Mas logo os teus olhos disseram que não/ E
o sol penetrou no meu coração.”
Amália diria por toda a vida que “Barco negro” foi a razão de sua
popularidade no mundo, mas havia uma questão racial por trás das
mudanças. Denunciar a surra de um negro diante dos olhos tristes de
Mãe Preta soava como algo subversivo à censura da ditadura
portuguesa salazarista, e essa foi apontada como uma das mais
prováveis razões do sumiço de Mãe Preta da canção. Sem saber da
história, Ney gravou aquilo que o arrebatou na sala de cinema e, ao
mesmo tempo, pela voz de uma vizinha portuguesa que cantava “Barco
negro” a plenos e saudáveis pulmões em Moça Bonita. Ou seja, gravou
não a letra de Piratini, mas a de David Mourão-Ferreira.
“Barco negro” era tão forte que Ney decidiu ir contra a prática dos
intérpretes da época, de adaptar o eu lírico ao sexo de quem cantava, e
preservar o narrador feminino para repetir frases como “de manhã, que
medo que me achasses feia”. Já seria o suficiente para alguns ouvintes
estranharem, mas havia ainda o final, que Ney resolveu fazer
produzindo um choro quase convulsivo de uma mulher abandonada.
Ney diz se lembrar de ter lido uma das primeiras críticas ao álbum
classificando sua interpretação como se fossem “choros de uma
rameira”, o mesmo que dizer “lágrimas de uma prostituta”. De qualquer
forma, a experiência nos Secos já tinha garantido carta branca e uma
boa dose de confiança por parte dos empresários do disco. Se calara as
desconfianças de Byington e desbancara Roberto Carlos com seu canto
feminino, quem seriam os críticos para mudarem o curso de sua voz?
Sem produtores que lhe tomassem as rédeas, Ney seguia em frente.
João Bosco e Aldir Blanc, bons caçadores de intérpretes que eram,
foram à casa de Paulo Mendonça mostrar o que tinham para Ney. João
tocou “Caça à raposa”, mas guardou o doce de volta logo depois ao
lembrar que a canção já estava reservada a Elis Regina. E ninguém
podia mexer com Elis. Ney ficou com a consolação de “Corsário” e
começou a entender um pouco do mundo em que pisava. Existiam
códigos entre compositores e cantores, e Elis era sempre um ponto de
tensão. Ao mesmo tempo que ninguém poderia tocar no que ela
gravaria, regravar algo que ela havia cantado era desaconselhável pela
ideia da impossibilidade de fazer algo que viesse, pelo menos, com o
mesmo impacto. Ney esperaria anos para cantar qualquer música
gravada por Elis para evitar comparações desfavoráveis, e nunca se
esqueceria do dia em que a cantora o chamou de canto depois de
assistir a um dos shows de lançamento do disco. “Você ainda tem muito
chão pela frente. Quero te ver daqui a sete anos.”
O conjunto preparado por Montarroyos era uma potência. Além do
próprio trompetista, de talento lapidado na Berklee College of Music e
com atuações ao lado de Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan, havia o
baixista nova-iorquino radicado no Brasil Bruce Henri; o guitarrista
argentino de blues rock Claudio Gabis, que a revista Rolling Stone
classificaria como um dos cinco melhores de seu país; o percussionista
Don Chacal; dois remanescentes dos Secos, Sérgio Rosadas e Jorge
Omar; o baterista Elber Bedaque; e um jovem de 24 anos que transitava
entre as artes visuais e a música de vanguarda e que tinha passado em
1970 pela mostra internacional Information, no MoMA de Nova York,
chamado Guilherme Vaz. Sua habilidade em acessar sons de outras
dimensões, tocando sintetizadores e um instrumento que ninguém
conhecia muito no Brasil, o mellotron, faria de Vaz a alma experimental
do grupo.
Ney queria levar uma floresta para o disco. Em vez de silêncio entre
as faixas, usaria estrondos de trovoadas, pássaros em revoada,
murmúrios de riacho e guinchos de macacos misturados aos tecidos
climáticos criados pelos sintetizadores de Vaz. Só na abertura havia
1min57s sem música apenas com a trilha da natureza. Em seguida a
voz de Ney surgia trombeteando a vida depois do fim: “Eu sou o homem
de Neanderthal!”, bradava, estendendo a última sílaba até que ela se
tornasse uma anunciação primal. Um instrumental poderoso criava a
sensação de que algo destruidor estava para acontecer até o universo
se acalmar e só os pássaros continuarem cantando mesmo após a
última nota. E então, o sitar de Claudio Gabis e a tabla de Chacal
davam forma ao início indiano de “Corsário” como se Ney já estivesse
no outro lado do mundo. No fim, um rápido silêncio e começava “Açúcar
candy”, um rock feérico que rompia com tudo o que havia antes para
elevar o êxtase ao ponto de fazer Ney terminar exaurido depois de
simular um orgasmo.
Bruce estranhou a proposta de Ney para o final de “Açúcar candy”:
“Você precisa gozar comigo, Bruce”. No momento em que começasse a
cena — o que nos shows seria feito com intenso realismo quando Ney
montasse num cano — o baixo de Bruce também deveria se
descontrolar. Tudo isso e eles estavam só na terceira música. Havia
ainda duas latinidades: “América do Sul”, com mais gritos de guerra,
como “Desperta América do Sul/ Deus salve essa América Central”, que
Paulo Machado, amigo dos tempos de Brasília, tinha enviado a Ney em
uma fita cassete, e a rumba “Coubanakan”, mais um portal aberto para
sua infância em Moça Bonita. O conjunto da obra apontava para um
show sem limites, com Vicente Pereira livre para jamais repetir cenários
e com uma agenda de espetáculos pelo país. Mais uma vez, era preciso
muito dinheiro para pôr tudo de pé, e ele viria de um jovem empresário
que se interessou pela empreitada chamado George Ellis.
Ellis, que empresariava Milton Nascimento, havia passado por apuros
recentes ao trazer os Jackson 5 ao Brasil, em setembro de 1974. Houve
confusão de logística, casas vazias, mais de vinte pessoas na equipe,
irritação com jornalistas por parte do centralizador pai dos meninos, Joe
Jackson, e quebra-quebra num show cancelado no Ginásio Presidente
Médici, em Brasília. Agora, Ellis queria se livrar do trauma e decidiu
colocar 500 mil cruzeiros nos shows de Ney. Uma aposta generosa que,
se tudo desse certo, retornaria em dobro, com toda a bilheteria que a
aventura prometia render.
Ney abriu as comportas. Vicente queria todos os materiais possíveis
para o cenário: ferro, cobre, ossos de baleia, cordas, couro, palha,
madeira, aves empalhadas, queixada de boi e um caldeirão. Ricardo
Zambelli, ator que um dia gravaria o filme Menino do Rio, o ajudaria a,
além de criar peças para os músicos, realizar a transformação do ser
andrógino de outra galáxia no homem da Idade da Pedra. Sobre os
ombros e a cabeça havia um manto feito com crinas de cavalo de raça
importadas de Portugal. Acima dos olhos e descendo pelo nariz, uma
máscara produzida com ossos de tartaruga. E, saindo das costas, dois
chifres de carneiro que os feiticeiros africanos usavam contra os maus
espíritos. Maquiagem só preta, nos lábios e nos olhos, deixando todo o
corpo livre para que brotassem ossos, pelos e couros de maneira que
não houvesse mais dúvidas de que, agora, Ney tinha abandonado
quase todos os resquícios da forma humana.
Os ensaios para a gravação e para os shows que logo deveriam
surgir seguiam sem muita organização no Teatro da Lagoa, perto do
Leblon, onde as ideias fervilhavam na cabeça dos músicos o tempo
todo, eram construídas e desconstruídas a cada sessão, surpreendendo
Ney com novidades em partes que já haviam sido resolvidas na
véspera. Era incrível acompanhar o processo criativo de músicos tão
talentosos, mas a demora em definir os arranjos começou a incomodar.
“Eu preciso que vocês fechem isso”, disse Ney. O tempo passava e o
repertório continuava em construção, lentamente, com interferências
incontroláveis, como uma visita-surpresa ao estúdio feita por Astor
Piazzolla e sua mulher, Amelita Baltar, e outras de ordem química,
como as alterações de andamento das músicas provocadas muitas
vezes pelo consumo de drogas. Ney percebia uma dinâmica quase
sempre certeira: se alguém fizesse o ritmo correr, tinha usado cocaína.
Se tocasse mais lento, maconha.
George Ellis sentiu o drama. Até então, Ney não precisara se
preocupar em liderar músicos. João Ricardo e Willy assumiam essa
tarefa nos Secos, João no front e Willy na retaguarda. Agora, não. Ney
tinha um grande time formado por Montarroyos mas nenhuma
ascendência sobre ele. Quando iam para o terceiro mês de ensaio, Ellis
resolveu intervir com estratégia. Pediu ao amigo espanhol Daniel Más,
jornalista e autor de novelas, que trouxesse alguém com poder de
assumir o controle com mão de ferro e alguma ternura. Más encontrou
em Nova York o colega argentino Billy Bond, produtor e importante
músico da cena roqueira de Buenos Aires, amigo dos velhos tempos de
Marcelo Frias e Willy Verdaguer, com conhecimento para argumentar
com músicos nos mesmos códigos e pouca paciência para, se
necessário, argumentar usando o código da força. No primeiro ensaio
sob seu comando, não deu outra.
O horário de chegada era oito da manhã, mas o primeiro que
apareceu veio às dez, dichavando um torrão de maconha e esticando a
seda para um baseado matinal. Billy Bond esperou que todos se
acomodassem e explicou as novas diretrizes. Não haveria mais
tolerância com atrasos. O tecladista Guilherme Vaz se alterou e, depois
de mostrar-se indignado com as exigências de Bond, soltou alguns
palavrões, ouviu outros e partiu para a briga. Os dois trocaram socos
até serem apartados pelos colegas e restabelecerem seus limites. Bond
trazia também boas notícias. Em troca da profissionalização do grupo,
os músicos seriam fidelizados com um salário mensal pago por Ellis. A
prática não enriqueceria ninguém, mas era um luxo, já que o normal na
praça era receber por hora de gravação ou por show realizado. Em
poucos dias, o grupo estava organizado e as datas da estreia,
fechadas: 15 e 16 de março, no Teatro do Hotel Nacional.
O local com 1400 poltronas vermelhas revestidas de veludo,
inaugurado dois anos antes, de frente para a praia de São Conrado,
havia sido adaptado para se transformar numa selva, com caixas de
som avançadas para que se ouvissem macacos e pássaros antes
mesmo que o espetáculo começasse e os canhões de 120 spots
fossem acionados para formar a luz controlada por Bond. O slogan do
show era “toda a técnica a serviço da magia de Ney Matogrosso”, mas
Ney queria mais. Seu último desejo era o de que se espalhasse pelo
teatro cocô de vaca seco para ativar o olfato das pessoas que
adentrassem sua mata, antes que ele entrasse em cena. No entanto,
cocô de vaca era demais para a opulência do Hotel Nacional, e pela
primeira vez desde que saíra dos Secos & Molhados Ney teve que
desistir de uma ideia.
Mas o controle ainda estava em suas mãos. O disco batizado de
Água do céu — Pássaro seria lançado com um mimo: um compacto
para abrigar apenas as duas canções de Piazzolla. Ney decidiu levar
para o show também “Tercer Mundo”, do desafeto João Ricardo, com
poema de Julio Cortázar, que os Secos só tinham mostrado no
Fantástico. Um texto escrito nas páginas do programa distribuído na
sala tentava responder antecipadamente a uma pergunta da plateia:
afinal, o que uma canção dos Secos & Molhados fazia no primeiro show
de Ney? Não era para ser uma ruptura com o que havia antes,
sobretudo por esse antes lhe trazer lembranças de episódios tão
desagradáveis? O texto dizia: “As pessoas a ouviram no segundo disco
dos Secos & Molhados. Na época em que o conjunto gravou o disco,
Ney gostava especialmente de ‘Tercer Mundo’. Como não deu para
fazer no palco, Ney faz agora”. Nelson Motta resolveu veicular uma
análise mais sentimental em sua coluna do Globo: “A dúvida: uma tardia
declaração de amor ou uma volta por cima? Opinião de quem conhece
razoavelmente, gosta muito e admira demais Ney e João Ricardo: a
primeira opção”.
Os shows lotaram, boa parte da plateia se levantava no final para
aplaudir e muitos dos jornais elogiaram. André Midani, o homem mais
poderoso do mercado fonográfico, responsável pela efervescência da
gravadora Philips e que nunca se conformou com o fato de os Secos
terem acabado por causa de uma “briga de garotos”, lamentava não ter
sido rápido o suficiente para levar o grupo para sua companhia.
“Fantástico, fantástico”, dizia aos jornalistas na saída, mais extasiado
que os austeros Piazzolla e Amelita, que aproveitaram uma viagem ao
Brasil para assistirem ao show. As colunas sociais registravam ainda,
nas melhores poltronas, Milton Nascimento, Gal Costa, Chico Buarque,
Elis Regina, Luiz Carlos Sá e o empresário Guilherme Araújo, entre
vários casais de homens eretos em vinco e senhoras em longo. Ao
cantar Milton, João Bosco, Sueli Costa, Amália Rodrigues e Astor
Piazzolla, Ney entrava numa festa na qual os Secos haviam sido
barrados por surgirem autossuficientes demais, grandes demais,
atrevidos demais e, com exceção de Vinicius de Moraes assinando à
sua revelia a autoria de “Rosa de Hiroshima” com Gerson Conrad, sem
pedir a bênção a nenhum santo brasileiro, como fizeram os Novos
Baianos dois anos antes com João Gilberto para gravar “Acabou
chorare”. Um lugar das elites chamado de pela imprensa desde a
Era dos Festivais.
Caetano Veloso não se juntou ao coro dos que saíam contentes do
Hotel Nacional. Sua ligação com o show que passou a ser conhecido
como Homem de Neanderthal era mais próxima do que parecia — ele
tinha se prontificado a produzir o álbum e só não ganhou o posto
porque a ideia chegou tarde, quando tudo já estava nos trilhos —, mas
se decepcionou ao ver Ney de maneira tão dura, tão marcada, tão
teatral. De fato, havia uma grande preocupação do cantor com a forma
como a estreia solo seria recebida pelos críticos e essa tensão foi
percebida no excesso de marcação no palco, nos movimentos de corpo
e na falta de interatividade com o público. Depois da apresentação,
Caetano foi ao camarim dizer que era preciso ter mais abertura com a
plateia, que ele parecia muito distanciado. Mas Ney entendeu que
aquele era o momento de Caetano, não o seu, e que, se ele estava
duro, era por ter acabado de sair dos Secos & Molhados. Ney iria ouvir
Caetano, sim, mas só dali a um ano, quando deixasse de virar bicho
para começar a se tornar gente.

Homem de Neanderthal passaria por São Paulo, em pequena


temporada no familiar Treze de Maio, seguiria para Santo André,
esticaria até Belo Horizonte, no aprazível Francisco Nunes, e faria uma
volta para temporadas maiores no Rio de Janeiro, uma delas no
Canecão. A trajetória só seria quebrada por uma pausa depois de São
Paulo, quando os músicos entrariam em estúdio para finalizar a
gravação do disco. Billy Bond decidiu fechar com um estúdio em
Pinheiros, a contragosto dos cariocas, para não correr riscos de, mais
uma vez, perder o controle.
Ney também havia brigado por isso, desde que esteve num velho
estúdio no Rio, reservado pela Continental para a gravação do disco.
Entrou, sentiu o cheiro do pó, saiu e foi falar com a direção da
companhia: “Se vocês querem um bom disco, eu preciso de um bom
estúdio”. Bond marcou as datas no Vice-Versa, de Rogério Duprat e
Guarabyra, pagando a pequena fortuna de setecentos cruzeiros por
hora, e alugou equipamentos caros na empresa Transasom, elevando a
qualidade dos timbres às alturas, com um Ampeg para o baixo de Bruce
e um Fender Twin Reverb para a guitarra de Gabis.
Mas o dream team de Ney começou a ruir no dia em que Ellis decidiu
fechar as torneiras. Agora, em vez de seguirem assalariados, os
músicos ganhariam por show. Márcio Montarroyos alegou outras
agendas e partiu, logo depois de tocar em Belo Horizonte. Don Chacal
também. Guilherme Vaz deixou o grupo em seguida, dizendo-se
insatisfeito com um som tão marcado, domesticando as
experimentações que ele preferia fazer. Em seu lugar, para cumprir
alguns shows, entrou Tenório Jr., o pianista que, no ano seguinte,
quando estaria em Buenos Aires para acompanhar Vinicius e Toquinho
em uma apresentação, seria abordado pelo serviço secreto da Marinha
argentina para nunca mais ser visto.
Mesmo quem ficou não parecia muito satisfeito com a perda do
salário fixo e, assim que o grupo voltou de Belo Horizonte para o Rio,
seus integrantes fizeram duas ou três reuniões de ímpeto sindical.
Claudio Gabis assumiu uma frente natural nas conversas e levou o
assunto a George Ellis, dando um arriscado passo à frente sem saber
que os que haviam permanecido na retaguarda o deixariam falando
sozinho. Sem apoio, Gabis ficou marcado como uma espécie de agente
tóxico num coletivo que, naquele instante, precisava se unir. Ellis levou
o caso a Ney e Ney, como a autoridade final, ligou para Gabis e o
demitiu: “Não vamos poder aceitar a sua posição, infelizmente”. Gabis
entendeu a situação, agradeceu a Ney pelos dias felizes e seguiu seu
caminho, partindo em poucos meses para estudar música na Berklee,
nos Estados Unidos. Mais uma vaga era aberta às vésperas de um
show.

A urgência fez Ney se lembrar de um guitarrista de 23 anos indicado


com entusiasmo pelo jornalista Ezequiel Neves, que já havia tocado
com Jorge Mautner. Um carioca por quem mulheres e homens
suspiravam conhecido no meio por Zezé, talvez pelo Zenóbio de seu
segundo nome, algo que ele desprezaria para se apresentar apenas
como Roberto de Carvalho. O “índio branco”, como Ney o via, assumiu
os últimos compromissos de Homem de Neanderthal ao mesmo tempo
que começou a trabalhar no repertório do disco seguinte.
Ney o chamou para tocar no show sem saber de uma grande
coincidência. Roberto tinha gravado com João Ricardo aquele que
ficaria conhecido como Álbum rosa, o primeiro projeto de João depois
do fim dos Secos & Molhados. Mas Roberto sentia-se sem rumo desde
que o show de estreia do álbum se revelou um fracasso. Ao lado de
Ney, ele faria primeiro algumas apresentações no Rio e seguiria com o
grupo para São Paulo, onde tinham um show agendado na casa O
Beco. Seria uma noite especial não por tudo o que aconteceria no
palco, mas pela plateia. A ruiva magra, risonha e coberta de sardas que
desprezava o último nome, Jones, para se apresentar apenas como
Rita Lee adorava Ney, mas não conseguia tirar os olhos do guitarrista.
Rita havia conhecido Ney no Festival de Saquarema, produzido por
Nelson Motta. Ela como uma das atrações do evento, saída dos
Mutantes e em voo com a banda Tutti Frutti, e ele como plateia, saído
dos Secos & Molhados e em voo consigo mesmo. Para os dois, era
como olhar no espelho. Andróginos em suas formas, poderiam ser tudo
no palco, homem, mulher ou bicho. Antes do show, abriram o coração
sobre suas ex-bandas, curtindo o veneno das memórias com doses de
Mandrix. Ney e Rita reconfortavam-se na sensação de que, enfim,
encontravam alguém surgido da mesma espaçonave.
Ao ver Ney, Rita tinha a sensação de que, sim, grupos como os
Secos, Os Mutantes e, em breve, o próprio Tutti Frutti, ficavam sempre
pequenos para almas tão livres. Ela se entusiasmou com o novo amigo
e o convidou para participar do show que se iniciaria em minutos,
improvisando algo que se provaria imprudente demais. Quando Rita
estivesse no palco, Ney deveria surgir de surpresa com uma faca nos
dentes, tomá-la nos braços e começar a cantar o rock “Com a boca no
mundo”. Seria forte, com potencial para pôr Saquarema abaixo, mas
faltou avisar os seguranças. Assim que Ney ameaçou subir portando a
faca cenográfica, foi barrado e afastado de Rita, mesmo depois de dizer
que seu nome era Ney Matogrosso.
Quando deu início ao périplo em busca de canções para o segundo
disco, ainda com Homem de Neanderthal na estrada, Ney bateu à porta
de Rita. Ela topou se tornar uma de suas fornecedoras e se livrou da
modéstia para inspirar-se na ideia de que tinham sido os dois, ela e
Ney, os integrantes mais expressivos em seus respectivos trios. Ao
olhar para Ney, a roqueira olhava para si mesma e gostava mais do que
via. Assim, o rock rumba “Bandido corazón” acabaria ganhando uma
letra que falava dos dois ao mesmo tempo: “Eu já sou um cara meio
estranho/ Alguém me disse isso uma vez/ Meu coração é de cigano/
Mas o que salva é a minha insensatez”. Quando a música começou a
ser trabalhada para o álbum seguinte, Ney mandou para Rita uma fita
cassete com a gravação inacabada e a guitarra chamou sua atenção.
Não havia nenhum grande solo, mas Roberto de Carvalho pontuava o
arranjo de forma criativa. Meses depois, Rita, Roberto e Ney estariam
no mesmo local, o do Rio, onde Ney iria se apresentar. Uma
tempestade cancelou o show, mas proporcionou o encontro entre Rita e
Roberto num barzinho à luz de velas ao lado do museu.
Agora, eles iriam dividir o mesmo pequeno espaço do Beco, um lugar
de onde, teoricamente, não haveria saída. Rita juntava as peças e via
no palco o rapaz que conhecera no e o guitarrista que fizera o solo
de “Bandido corazón”. Eram a mesma pessoa. Ela foi vê-lo depois do
show disposta a levá-lo para longe com um convite íntimo assim que
Ney fizesse as honras de camarim. Mas outra mulher precipitou-se nas
segundas intenções, sentou-se no colo do guitarrista e Rita adiou os
planos. Antes de partir, a roqueira foi estratégica e convidou o grupo
para jantar em sua casa na noite seguinte. Ney percebeu a manobra e
cumpriu as coordenadas, mas decidiu ser ainda mais gentil e apareceu
apenas com Roberto. Chegou, sentou-se e ficou por ali somente pelo
tempo de vê-los sorrindo um para o outro antes de sair discretamente
para deixá-los tocando juntos o piano da sala pelos próximos cinquenta,
sessenta ou setenta anos.
George Ellis procurou Ney preocupado com Carlos Imperial. Figura
candidata a virar lenda em vida, Imperial fazia uma campanha atroz
contra Ney na coluna que assinava no jornal Última Hora, do Rio. Além
de insistir, com um discurso muito próximo ao de Chacrinha, que a
existência do cantor manchava a classe artística, escrevia notas como
pílulas de maldade sobre relacionamentos supostamente imorais e que
não existiam, com conteúdos como “Ney, esqueça o rapaz loiro porque
ele é casado”. Ellis procurou Imperial para saber o que movia tanto ódio
e ouviu uma proposta para pôr fim aos desvarios. Algo equivalente a 2
mil reais por mês em sua conta e ele não falaria mais de Ney. Quando
Ellis levou a sugestão a seu artista com um tom que o mostrava
inclinado a pagar o preço pela paz, Ney o interrompeu antes que
concluísse a frase. “Se eu souber que deu um centavo ao Imperial, você
não vai me ver nunca mais.”
Mesmo sem fazer negócio com Imperial, os dias de Ellis ao lado de
Ney estavam terminando. A estrada trazia demandas que pediam outro
perfil de empresário e Ellis, se era o homem do dinheiro, não era, ao
menos para Ney, o homem da ação. Havia sempre encrencas a resolver
em shows distantes aos quais ele nem sequer comparecia. Ney marcou
uma reunião para demiti-lo, ou, se fosse o caso, demitir-se. “Prefiro que
a gente não trabalhe mais juntos, George”, disse. “Ok, mas eu coloquei
500 mil cruzeiros no seu show, como fica?”, respondeu Ellis. “Não se
preocupe, eu vou pagar”, prometeu Ney. A partir desse dia, tudo o que
ganhasse com os shows seria para quitar a dívida. Pagaria os músicos,
os técnicos e todas as despesas com os deslocamentos, reservando a
quantia excedente para ser depositada mensalmente na conta de
George Ellis. No fim da temporada, esgotado e constatando que não
poderia honrar as duas últimas parcelas, falou com o empresário. “Não
consigo mais, paguei a você tudo o que podia.” E Ellis, por indulgência,
perdoou o restante da dívida, percebendo que Ney terminaria sua
primeira turnê com nada além da Brasília que trouxera de São Paulo.

Ainda que entre mortos e sobreviventes, haveria mais memórias boas


do que más quando o tempo de Homem de Neanderthal chegasse ao
fim. Um show no Teatro Treze de Maio recebeu na plateia, pela primeira
vez, o pai, sargento Matto Grosso, ao lado de Naira e Cinara. A mulher
e os filhos já tinham visto, as filhas comentavam e todos na cidade
mostravam algum conhecimento, o que pode ter pesado na decisão de
Matto Grosso em entrar num ônibus em Ilha Solteira e ir para São Paulo
disposto a ver o que é que seu rapaz aprontava num palco. Naira e
Cinara vinham preparadas para socorrê-lo, com dois ou três
comprimidos de calmante que seriam colocados sem que ele soubesse
em um copo de suco antes do show. Ney soube que o pai viria e falou
com a mãe naquela semana: “Agora ele vai saber quem eu sou”.
Matto Grosso sentou-se anonimamente com as filhas à frente de uma
mulher que só parou de gritar “gostoso” para Ney em “Barco negro”.
Sem olhar para os lados, mas observado pela vigilância de suas
guardiãs, viu quando o filho simulou uma masturbação em “Açúcar
candy”, quando chorou em desespero pelo homem amado que se foi
em “Barco negro”, quando rebolou em “Homem de Neanderthal” e
quando tudo enlouqueceu em “América do Sul”, assim que um hippie se
levantou da plateia com uma melancia nas mãos e se dirigiu dançando
até a beira do palco. Segundos antes do refrão “Deus salve a América
do Sul”, depositou a fruta no palco para, num ato que parecia ensaiado,
Ney a golpear com a caveira de boi que levava nas mãos. O líquido
vermelho explodiu do verde da melancia e quem estava nas primeiras
fileiras correu para se lambuzar passando os pedaços da fruta pelo
corpo como se estivesse num ritual satânico. Naira apertou o braço do
pai para dizer “seja forte” e ele, por efeito do calmante ou do choque,
seguiu firme. Ao voltar para casa, sem fazer muitos comentários,
perguntou a Beíta onde estava o em que aparecia a cabeça do filho
na capa e o pôs para girar na vitrola sobre a faixa “Sangue latino”.

Quando chegou julho e a temporada no Teatro Treze de Maio


acabou, Ney se ajeitou no banco de trás do Fusca do jornalista José
Márcio Penido ao lado de um cearense amigo de Belchior e de todos os
cearenses que havia conhecido do programa Mixturação. Raimundo
Fagner já era um grande nome. Ele ganhara relevância com Manera
Fru Fru, manera, de 1973, cantando “Mucuripe” e “Último pau de arara”,
e estava para lançar Ave noturna pela mesma gravadora de Ney, a
Continental.
Mas, antes de qualquer sucesso, Ney se desnorteou por Fagner
durante uma festa. Viu em sua figura moura uma beleza épica e na voz
que cantava com trinados ibéricos um portal que o conduzia às arábias.
Os dois cantaram algumas vezes juntos ao se encontrarem em festas
de forma não premeditada e tudo se deu com tamanha força que
sentiram o dever de premeditar algo. Fagner mostrou duas músicas a
Ney, “Ponta do lápis” e “Postal de amor”, e, em poucos dias, os dois
estariam com tanta vontade de mostrá-las ao mundo que se
submeteram a uma carona com Penido por quase oito horas de estrada
e sacolejos em direção a Belo Horizonte.
Ney e Fagner viajaram cantando tudo o que vinha à cabeça. Ângela
Maria, Luiz Gonzaga, Nelson Gonçalves, Sílvio Caldas, Carmen
Miranda, tudo amaciado pela acústica do teto de couro ovalado do
Fusca. As vozes inventavam caminhos paralelos, se enlaçavam,
brincavam de trocar regiões. Fagner subia com um falsete exuberante
para Ney descer com seus médios limpos.
A revista Pop, que cobria o evento e oferecia desconto aos seus
leitores, e a própria produção do 1o Camping Pop de Inverno de Minas
Gerais, uma espécie de Woodstock de butique, com barracas
organizadas e reservadas a sessenta cruzeiros por três dias de shows
no luxuoso Serra Verde Camping Club, pareciam mais empenhadas em
anunciar as atrações noturnas O Terço, Os Mutantes, Som Nosso de
Cada Dia, Lô Borges, Novos Baianos e Caetano Veloso do que em
colocar holofotes em Fagner e Ney. Até porque, para muitos, quem era
Ney? Seria a primeira vez desde o estouro dos Secos & Molhados que
ele subiria sem maquiagem a um palco, um marco do qual só Ney e
Fagner pareciam saber.
No grande palco ao ar livre, de frente para os 80 mil metros
quadrados de área verde do clube de camping, Fagner cantou primeiro
sozinho para então chamar Ney, vestido como um caubói, de chapéu-
panamá e calça Lee. Eles mostraram as duas canções que haviam
ensaiado e que, conforme anunciaram, estariam em breve num
compacto simples. As pessoas da plateia só ligariam o Ney do palco ao
Ney de suas memórias quando ouvissem o timbre da voz. Depois de
cantarem juntos para 3 mil pessoas, voltaram de trem para o Rio
fechados numa das cabines, cantando, rindo e cultivando uma nuvem
de maconha tão intensa que parecia entrar em estado sólido e que
tomaria todo o vagão assim que alguém abrisse a porta. Fagner ficou
hospedado em um quarto na casa de Ney por três dias, o tempo que
precisavam para gravar o compacto. Uma matéria de revista usou a
expressão “celebrou-se a união” para falar da junção das duas vozes.
Ney achou graça, Fagner não.

Fazer vídeos com artistas flanando em helicópteros não era


exatamente uma novidade em 1975, desde que Roberto Carlos tinha
sobrevoado o Rio de Janeiro em um deles numa sequência espetacular
do filme Roberto Carlos em ritmo de aventura, de 1967. Mas Nilton
Travesso, que agora respondia pelos musicais da Globo, queria mais.
Sua obsessão como um dos diretores do Fantástico era sincronizar na
gravação a voz do artista com a imagem do vídeo para que ele
dublasse a música de maneira precisa e no tempo certo.
A limitação técnica levava o programa a exibir clipes com imagens
externas nas quais os artistas nunca apareciam cantando. A ideia de
Travesso — apontar para o cantor um alto-falante em forma de corneta
saindo de um toca-fitas na hora da gravação — soou tão paleolítica que
a Globo lhe deu as costas. O padrão de qualidade da emissora não
poderia ser maculado por um tacape pré-histórico. Travesso não
desistiu. Ao cruzar com Boni, sacou as comendas de quem já havia
feito muito pela brasileira desde o primeiro Fantástico e contou sua
ideia. “Pô, se der certo vai ser demais”, disse Boni. “E quanto vai custar
isso?” Essa era a melhor parte: “Só vou precisar de uma corneta e um
toca-fitas”, disse Travesso.
Havia duas possibilidades para fazer a engenhoca funcionar naquela
semana. Uma delas seria a filmagem do clipe de Fafá de Belém
cantando “Filho da Bahia”, um dos temas da novela Gabriela. Mas Fafá,
sua volúpia e toda aquela melodia levavam o diretor a imaginar um
bordel que não precisava de cenas externas para existir. A outra era a
gravação do clipe de “América do Sul”, com Ney, algo que soou logo na
primeira audição como um roteiro pronto e acabado para a situação
com que o diretor sonhava. Os versos de “América do Sul”
demandavam cenas aéreas, planos abertos, muito verde, matas e um
horizonte filmado do céu. Nilton Travesso pediu à Globo que alugasse
um helicóptero, sem entrar em detalhes técnicos desnecessários, como
o de que iria retirar a porta da aeronave, amarrar Ney com cordas da
cintura para baixo e colocar luz, som, gravador e cinegrafista, além do
próprio Ney, do piloto e dele mesmo, numa cabine de pouco menos de
dois metros de diâmetro. Depois de escolher locações aéreas pela orla
da Zona Sul e terrestres no Parque da Cidade e em descampados de
São Conrado, em que Ney usaria crinas, ossos e as maquiagens do
show, Travesso ordenou que levantassem voo.
Ney se equilibrou nos limites do ângulo que o piloto precisou atingir
para que sua imagem tivesse o oceano ao fundo. Uma manobra
perigosa que o obrigava a segurar numa corda com a mão direita para
não despencar pela porta. A corneta de Travesso, saída de um toca-
fitas de mão movido a pilha, tocava a música para guiar a voz, mas os
ruídos do motor e os ventos forçavam Ney a usar mais os instintos do
que a audição. Numa das tomadas seguintes, Travesso o colocou em
terra, no meio de um capinzal, e pediu ao piloto do helicóptero que
levantasse voo bem próximo para criar a ventania na mata enquanto
Ney reagia como um guerreiro indígena atacado por colonizadores. No
Parque da Cidade, na Gávea, escolheram a maior pedra que puderam e
solicitaram a Ney que cantasse lá de cima, mas o frio era intenso, a
roupa era pouca, e o queixo começou a bater. A produção trouxe um
litro de conhaque para fins térmicos, mas Ney, sem traquejo com álcool,
bebeu até sentir tremer a pedra e toda a América do Sul que havia sob
ela.
Quando voltou ao solo depois de mais algumas cenas aéreas,
Travesso tinha o que precisava, mas descobriu uma falha técnica na
ilha de edição. As pilhas do toca-fitas eram rapidamente consumidas
durante o liga e desliga das gravações e, com o passar do tempo, a fita
cassete começava a girar mais lentamente. Assim, com trechos da
música em tempos diferentes de andamentos, a montagem,
acompanhada com curiosidade pelo também diretor Roberto Talma,
levou catorze horas. Havia momentos em que era necessário pegar o
início de uma frase que Ney cantava fora de sincronia, por ter seguido o
áudio mais lento, reduzir o andamento da imagem e acertar os
ponteiros. Um trabalho cirúrgico.
Sem saber os detalhes do procedimento, Ney nunca desconfiou de
que sua voz tinha dado tanto trabalho numa mesa de edição, mas
percebeu, logo que viu o programa no ar, um timbre ligeiramente
diferente, mais metalizado, como se estivesse com a velocidade
alterada. O chamado clipe sincronizado foi usado no primeiro Fantástico
em cores, ganhou prêmios em dois festivais, um na Espanha e outro
nos Estados Unidos, e virou estudo de caso até para o cantor Johnny
Mathis, que pediu a sua equipe que assistisse à loucura daqueles
brasileiros e parasse de mandar caminhões de estúdio móvel para suas
locações.
Homem de Neanderthal terminava com vitórias e desgastes. Ao
mesmo tempo que valia como o raro bilhete de um ex-roqueiro à
antessala da , a expectativa pelo primeiro ato de Ney sem os Secos
& Molhados tinha se transformado num fantasma e levado ao palco um
homem duro, tenso, distante e, muitas vezes, frio, como lhe disse
Caetano. Sua alma estava em guerra. “Era eu brigando com o público,
querendo provar que eu era eu, que eu podia fazer o que eu quisesse”,
disse, em entrevista ao jornal O Globo quando já pensava em dar os
passos seguintes. Havia clipe no Fantástico, rosto nas revistas e um
show que lotava teatros, mas o assoalho da Brasília bege que a
maresia do Leblon começava a devorar lembrava que, sem George
Ellis, Ney vivia extremos difíceis de entender: ele estava famoso e
miserável.
13. As Frenéticas e o guru

Ao assumir a função de empresário de si mesmo num ato de rebeldia


contra os interesses do mercado, Ney não tinha a dimensão da agonia
que o posto poderia trazer. Cuidar de agenda com contratantes,
negociar valores, pensar em logística e definir estratégias de marketing
pediam todos os atributos que ele não tinha. Aos poucos, definharia
altivo, orgulhoso e falido se os bons ventos soprados de uma das
poltronas do Hotel Nacional não lhe trouxessem Guilherme Araújo. Foi
no show de estreia de Homem de Neanderthal que Guilherme, a cabeça
estrategista por trás dos baianos Gil e Caetano durante a Tropicália,
mentor de Gal, do próprio Caetano e com um olhar midiático de
carreiras artísticas modernas treinado em viagens internacionais, viu
Ney como um artista que precisava de orientação. Guilherme o faria
não apenas ganhar dinheiro, mas guardá-lo; dar importância não só à
mídia, mas sobretudo à ; e, para começar, ter um telefone em casa.
Uma festa que pareceria interminável, regada a sexo, Mandrix,
rumba, rock, discoteca, homens, mulheres e todos os derivados, estava
para começar assim que 1976 se livrasse da tensão de Homem de
Neanderthal e abrisse as portas do Frenetic Dancin’ Days Discotheque
num shopping da Gávea. Foi em torno da ideia de Nelson Motta, a de
criar uma discoteca onde seis garçonetes usando saltos imponentes e
espartilhos sumários servissem clientes até as 22h para então ocupar o
palco de uma noite sem precedentes num país precisando de oxigênio,
que o espírito dos anos 1970 baixou no Brasil. Mesmo quem não
bebesse diretamente na disco music sentiria os ares da súbita felicidade
emanada pelo Abba cantando “Dancing Queen” e os Bee Gees
delirando em “You Should Be Dancing”. Ney não era exatamente um
candidato a John Travolta, mas estava pronto para cair na gandaia em
seu disco seguinte. Não seria também um frequentador assíduo do
Dancin’ Days, e nem precisava. Duas das seis lindas mulheres que
todas as noites subiam ao palco de Nelson Motta moravam em seu
Dancin’ Days particular, e uma delas em sua própria cama, no
apartamento do andar térreo alugado no edifício número 55 da rua
Carlos Góis.
Ney e a frenética Regina Chaves tinham um pelo outro tesão,
admiração, carinho, empatia e amizade, compartilhando da mesma
situação de sobrevivência com poucos recursos no apartamento 101,
vizinho da casa de distensões sexuais Termas Leblon. Os clientes da
sauna chegavam e saíam sem deixar de olhar pela janela sempre
aberta que garantia uma visão privilegiada dos aposentos dos
moradores. Uma passagem de ar que, na eventualidade de a porta
estar trancada, poderia facilmente ter o vidro retirado e ser transposta,
como de fato foi por um ex-namorado de Ney. “Como você entrou
aqui?”, quis saber na manhã em que viu o moço a seu lado. “Pela
janela”, disse o rapaz. Ney gostou da ousadia e nunca mais recolocou o
vidro.
Regina via com piedade o arquiteto Paulo Mendes da Rocha,
morador da cobertura, chegar muitas noites tateando o buraco da
fechadura do portão sem um porteiro que o socorresse. Gente de todo
canto tocava a campainha com a mala na mão decidida a ficar mesmo
sem convite e ao menos um deles ficou para sempre. Luís Clericuzzi,
Luisinho para íntimos e desconhecidos, foi salvo por Ney. Neto de
italianos, 23 anos, ele viera do interior de Pernambuco disposto a nunca
mais tornar a usar terno e gravata para ser secretário de banqueiros.
Deixou a família classe média, incluindo os cincos irmãos, para, no Rio,
morar com um namorado tão tomado de paixão que, quando Luís
demorava a voltar, a porta da casa era trancada por ciúmes às dez da
noite, deixando-o ao relento.
Ao saber da situação vulnerável de Luisinho, Ney lhe ofereceu o
pequeno quarto que deveria ser ocupado por uma empregada e o
recebeu sem custos no seu apartamento. Sagaz e divertido, diligente e
cativante, Luís, que nunca se preocupou em esconder sua
homossexualidade, foi conquistando espaço e se tornando um
secretário particular depois de ouvir uma importante observação do
chefe: “Nunca confunda as coisas”. Outra amiga de Ney também
chegou de mudança. Sandra Pêra, irmã da atriz Marília Pêra, era uma
das frenéticas do Dancin’ Days que, como Regina, pulava de casa em
casa até ser amparada pelas benevolências da República da Carlos
Góis. “Venha morar com a gente”, chamou Regina. Ela foi, e ninguém a
advertiu de nada quando colocou seus pertences no chão, ao lado da
cama de Luisinho. O amante Gonzaguinha sempre ia matar as
saudades entrando sorrateiro pela janela sem vidro.
Ney, Luisinho, duas frenéticas, um gato e uma macaca vivendo entre
névoas de maconha e brisas de Mandrix. O gato era Oto, um inquilino
leal e observador de uma família original de três felinos. Quando Ney
teve de escolher entre alimentar a si mesmo e alimentar os animais,
despachou os outros dois para a casa de dona Beíta, em Ilha Solteira, e
poupou Oto. A macaca era a pequena Vitória, trazida da Bahia e que
Sandra achava ser a encarnação do diabo no corpo da fêmea de um
mico. Mas Ney tinha por ela um amor incondicional que resistia às
maiores provações, como no dia em que Vitória, desaparecida, o fez
vasculhar a casa até encontrá-la nadando dentro de uma panela de
feijão.
As despesas eram pagas pela exígua receita que entrava das
sobrevivências de Ney lidando com sua recuperação financeira e dos
ganhos de Sandra e Regina como garçonetes de luxo que trabalhavam
a semana toda, exceto às segundas, na boate de Nelson Motta.
Ninguém ainda sabia, mas a escassez tinha seus dias contados tanto
para Ney, que aprendia a ser um artista rentável com Guilherme Araújo,
como para as Frenéticas, que em dois anos seriam um estrondo pelo
país assim que o autor Gilberto Braga se inspirasse no clima do filme
Os embalos de sábado à noite e criasse para a Globo a novela Dancin’
Days, que trazia uma das músicas da trilha sonora cantada pelas
garotas chamada, só para reforçar a ideia, “Dancin’ Days”. De uma
alegria colorida e aparentemente inofensiva, a letra de Motta era
colocada como bucha no canhão sonoro fabricado em estúdio por
Ruban Barra, com poder de lançar uma canção até o outro lado do
Atlântico e arrasar Portugal, como de fato aconteceu. Havia mensagens
subliminares naqueles versos, mas só quem vivia em 1978 e sabia
quem era Ernesto Geisel podia detectar. “Abra suas asas/ Solte suas
feras/ Caia na gandaia/ Entre nessa festa/ E leve com você/ Seu sonho
mais lou, ou, ou, ou, louco/ Eu quero ver seu corpo/ Lindo, leve e solto.”
A gandaia de Ney, Regina e Sandra já tinha começado, e cada
caminhada que davam em turma usando sungas e maiôs minúsculos
pela orla até a altura do hotel Sol Ipanema se transformava em
peripécia. Sandra chegou a uma roda de amigos na praia quando
alguém acendia um cigarro de haxixe, passado de mão em mão como
uma espécie de aquecimento para o baseado tamanho-família que viria
em seguida, feito com seda amarela e nas dimensões de um charuto
cubano. Sandra, já aérea, entendeu que se ela segurasse o baseado
exatamente como se segura um cigarro, equilibrado delicadamente
entre os dedos médio e indicador, ninguém desconfiaria de nada.
Deitou-se ao sol e ficou ali, tragando. Quando abriu os olhos, os amigos
haviam sumido e um homem musculoso de sunga cavada lhe mostrava
uma carteira aberta com o símbolo da Polícia Civil. O policial Santos
queria levá-la para a delegacia no ato, e Sandra, no estado em que se
achava, disse o que conseguiu dizer: “Seu Santos? Qual o seu signo?”.
“Áries”, ele respondeu. “É o signo da minha mãe.”
A roda de amigos tinha evaporado, mas Ney não. “Comadre, tudo
bem?”, se aproximou. Sandra apresentou Ney a Santos e Santos a Ney,
e pôs o amigo a par dos últimos minutos de sua vida. Ney, também
aéreo, começou outra conversa com o policial sobre os malefícios do
álcool e do cigarro versus os benefícios da maconha até perguntar, no
estado em que se achava, o que conseguiu perguntar: “Qual o seu
santo, Santos?”. “Xangô”, respondeu o policial. “É um santo muito
justo”, disse Ney. “Se eu não fosse justo”, disse Santos, “pegaria a
moça do jeito que está vestida aqui e a levaria para a delegacia. E o
delegado faria o que está acostumado a fazer nesses casos.” E
encerrou a conversa com Sandra. “Avisa seus amigos que fazemos
ronda aqui todos os dias, e eu tenho um colega louco para prender
alguém.” Quando já haviam se despedido, Santos se aproximou de
Sandra um tanto desajeitado. “Escuta, aquele é o Ney Matogrosso?”
“Sim”, disse ela. “Então, se vocês precisarem de segurança algum dia,
podem falar comigo.” E lhe deu um cartão.
Em outro dia de calor, Sandra e Ney saíram pela avenida Atlântica na
Brasília sofrida com a pouca habilidade do condutor em entender a
lógica entre acelerador, freio e embreagem. Sandra queria tomar um
sorvete na lanchonete Americana da avenida Rainha Elizabeth, em
Copacabana, mas, antes de sair, Ney tinha sugerido que fizessem um
desjejum à base de Mandrix, um e meio para cada, coisa leve. A voz
dos dois começou a amolecer no caminho. “Comadre, você precisa
fazer carreira solo”, dizia ele, enquanto fazia um retorno para parar num
farol antes de entrar na rua que daria acesso à Rainha Elizabeth.
Ficaram assim, com o carro parado, falando o que viesse à cabeça, até
que se perguntaram, afinal, o que faziam ali por tanto tempo. Não havia
farol e a Brasília estava parada na contramão em plena avenida
Atlântica.
Antes de Ney conseguir acertar o pé no acelerador, uma viatura da
polícia os flagrou. “Fica aqui que eu falo com o guarda”, disse ele, com
a voz pastosa. Sandra obedeceu e ficou ligando e desligando o rádio
para disfarçar o nervosismo quando outro automóvel passou em alta
velocidade e deu uma freada alguns metros adiante. A porta se abriu e
Márcia Mendes, a jornalista da Globo, desceu sem lembrar muito da
elegância com que apresentava os telejornais da emissora. Trançando
as pernas, caminhou até a viatura no instante em que Ney era
interrogado e pediu licença. Deu um beijo na boca de Ney, um beijo na
boca do policial e seguiu até a Brasília para dar um beijo na boca de
Sandra.
Uma terceira frenética chegou à Carlos Góis quando todos os
espaços já pareciam ocupados. Lidoka ficou com um terceiro quarto
minúsculo, que passou a ser conhecido como “a maloca da Lidoka”. As
bocas aumentavam e a comida simplesmente surgia ou não, já que os
habitantes costumavam se preocupar apenas com o que fariam num
arco de tempo que compreendia não mais que as duas horas seguintes.
Uma das visitantes era a mãe de Sandra, que saía do apartamento
rezando para que a filha sobrevivesse às consequências de uma
possível inanição.
Num dia de geladeira vazia, Regina chamou Ney para irem até a
esquina comer algo no restaurante dinamarquês Helsingør. “E eu vou
pagar com o quê?”, perguntou Ney. “Eu pago a sua.” Chegaram,
ocuparam uma mesa, pediram dois lanches e ficaram ali até serem
abordados por Nilton Travesso. O diretor, admirador do trabalho de Ney,
queria fazer com ele um segundo clipe para o Fantástico depois do
sucesso de “América do Sul”. Mais alguns meses e estariam no set
produzindo um vídeo para “Coubanakan”, ainda do repertório do
primeiro álbum, o que traria um cachê bom o suficiente para pagar os
próprios lanches e ser usado até que seu novo disco fosse lançado e
ele começasse a virar, mesmo que nunca se sentisse assim, um
homem rico.
Seria a primeira vez que Ney não se tornaria no palco nenhum outro
bicho além dele mesmo, sem máscaras maquiadas, penas de pavão,
crinas de cavalo e ossos de tartaruga. Seu álbum também seria efusivo,
solar e dançante, como o verão do Leblon ao lado das Frenéticas, tudo
o que o disco anterior e todo o tempo ao lado dos Secos & Molhados
não haviam sido.
A canção “Bandido corazón”, de Rita Lee, apontava o caminho do
desbunde, uma latinidade de cabaré que dispensava os brados de
“Deus salve a América do Sul”. Ney procurou a experiente
instrumentista e produtora Rosinha de Valença para dirigir suas ideias e
ouviu dela a pergunta mais importante que alguém poderia lhe fazer
naquele momento: “O que você quer? Prestígio ou sucesso?”. Sua
resposta foi “Os dois”, e Rosinha entendeu o recado. Seria um passo à
frente com relação ao disco anterior, algo que tivesse relevância aos
ouvidos da inteligência constituída da , ao mesmo tempo que fosse
capaz de planar pelas ruas e frequentar todas as bocas. E foi assim que
Ney se lançou em mais uma aventura em busca de novas canções,
acenando para a profundidade de Chico Buarque, de quem ganharia
“Mulheres de Atenas”, e, mais uma vez, à farra das lembranças de
infância com “Trepa no coqueiro”, a embolada que o jornalista Ari
Kerner fez no final dos anos 1920 e que não saía do rádio da casa de
Ney no início dos 1950.
Chico pareceu João Bosco quando disse que a música que Ney
queria, “Gota d’água”, já tinha dona. E uma dona brava, Bibi Ferreira, a
Elis Regina da vez, que também não aceitaria ser traída por alguém
cantando algo que ela gostaria de mostrar em primeira mão. Ney
encontrou Chico por acaso num restaurante da Zona Sul. Eles já se
conheciam desde que o compositor o visitara no camarim após o show
Homem de Neanderthal, no Canecão. Ney se apaixonou por “Gota
d’água” depois de ver justamente Bibi cantando a canção na peça de
mesmo nome, um ano antes. Mas havia outra música, disse Chico, uma
composição feita também para o teatro com o dramaturgo Augusto
Boal, para uma peça que nunca havia sido encenada. Uma letra
engenhosa, épica, solene e que andava confundindo meio mundo antes
mesmo de ser lançada. “Mulheres de Atenas” era o seu nome, e Ney
decidiu gravá-la assim que a ouviu sem saber que, naquele instante,
uma junta de militares a analisava com lupa, bisturi, dicionários e livros
de história grega. Chico não disse a Ney, mas ele mesmo iria lançá-la
naquele ano, e sua gravadora, a Philips, já tinha mandado a letra para
os censores.
O primeiro veredicto da Divisão de Censura sobre “Mulheres de
Atenas” saiu em 19 de maio de 1976, uma longa análise que a técnica
Marina Brum Duarte fez depois de ler os versos de Chico e Boal:
“Mirem-se no exemplo/ Daquelas mulheres de Atenas/ Despem-se pros
maridos,/ Bravos guerreiros de Atenas/ Quando eles se entopem de
vinho/ Costumam buscar o carinho/ De outras falenas/ Mas no fim da
noite, aos pedaços/ Quase sempre voltam pros braços/ De suas
pequenas Helenas”. Marina foi aos livros Cidade antiga, do historiador
francês Fustel de Coulanges, e A aventura grega, de Pierre Lévêque,
para construir sua tese. Primeiro, ela pergunta a qual mulher de Atenas
a letra se refere. Se for a do passado, escreve, não há qualidade
alguma que a faça merecedora das conclamações do autor. “A mulher
ateniense, da burguesia, era praticamente reclusa, um objeto não
político, de obediência cega ao pai ou marido, senhora do lar
exclusivamente e um objeto sexual (nisto os autores deixam entrever)
naquela sociedade patriarcal.” E se for a atual, escreve Marina, pior
ainda.
Chico poderia estar usando de seu poder de camuflagem poética
para exortar a artista grega refugiada em Paris “Mercoulis ou Mercouri”,
relata a técnica da censura, “carregada em triunfo após a vitória”. A
censora se referia a Melina Mercouri, uma atriz, cantora e ativista
política grega que se tornaria, em 1981, a primeira ministra da Cultura
na Grécia. Ou seja, o relatório dizia que a mulher deveria ser respeitada
pelos autores desde que ela não fosse um risco ao sistema político.
Marina adverte sobre os perigos de Mercouri: “Esta artista incentivou as
alas femininas ao processo revolucionário na deposição aos generais”.
A resposta ao pedido de gravação depois de todos esses e mais dois
ou três argumentos, era, naturalmente, “vetado”.
Ney ganhou “Mulheres de Atenas” e Chico ganhou um aliado, já que,
agora, a Continental também entraria com o pedido de liberação da
letra. Mas a vitória não seria fácil. Menos acadêmica do que a colega de
tesoura Marina Brum, a técnica de censura Selma Chaves apenas
seguiu seu coração ao entender que a mensagem da letra era “sejam
subservientes como as mulheres de Atenas”, mesmo depois de Chico
explicar que queria dizer o contrário, “não sejam como as mulheres de
Atenas”. Tendo lido a letra uma vez, Selma desceu a caneta pela honra
da espécie no dia 24 de maio: “Por considerarmos apologia ao
relacionamento homem e mulher em comportamento decadente
naquela época da Grécia, opinamos pela interdição da letra ora em
exame”. Philips e Continental apelariam da decisão e conseguiriam a
liberação para a gravação nos dois discos, primeiro em Bandido, de
Ney, em outubro, e em seguida em Meus caros amigos, de Chico, em
dezembro. Ney não sabia dos detalhes desses trâmites até porque,
enquanto a letra de Chico entrava e saía das mesas de corte da Divisão
de Censura, ele continuava sua busca por mais canções.

Samba era um território impensável para Ney até a Globo pedir a ele
que gravasse para a novela Saramandaia o samba de latada “Pra não
morrer de tristeza”, de João Silva e K-Boclinho, que acabou saindo num
compacto com a música “Bodas” do outro lado. Ney gostou do que fez,
deixou de achar que poderia ser acusado de apropriar-se de algo que
não era seu e resolveu colocar a música na lista de Bandido. Mais uma.
Se era hora de tirar o peso de tudo, resolveu peitar também a opinião
dos críticos, intelectuais e gente da própria classe artística, e escolheu
“Cante uma canção de amor”, de Odair José. Odair vinha sendo
alvejado desde 1972, quando “Eu vou tirar você desse lugar” estourou,
e 1973, quando “Uma vida só”, conhecida como “Pare de tomar a
pílula”, foi vetada. Grande vendedor de discos, gravá-lo era como tocar
na desonra e sucumbir ao mais popularesco e repulsivo de um artista
que atendia ao “gosto das empregadas domésticas”. Arriscado até para
Caetano, que tinha sido vaiado ao cantar com o Odair no festival Phono
73, em São Paulo. Ney pensou sobre o quanto as mesmas pessoas que
militavam pelo suposto bom gosto se omitiam diante dos militares e teve
sua epifania: “Foda-se a inteligência, foda-se a ditadura, foda-se o
ditador e fodam-se todos. Eu só vou me submeter à minha consciência”.
Assim, a canção “A gaivota”, de Gilberto Gil, era mais um foda-se. Gil
havia sido preso em julho, acusado de portar e consumir substâncias
ilícitas durante a passagem do quarteto Doces Bárbaros, formado por
ele, Caetano, Gal e Maria Bethânia, pela cidade de Florianópolis.
Agentes de uma blitz feita no hotel onde eles estavam chegaram a seu
quarto revirando bolsas e gavetas. Ao pedirem a Gil que abrisse a
carteira, se depararam com um cigarro de maconha, um troféu para o
delegado Elói Gonçalves de Azevedo, conhecido como “o terror dos
maconheiros”. O que parecia não ser nada poderia ser tudo na ficha
policial de um artista que já fora preso e exilado por motivos políticos
pelo mesmo regime que, em janeiro, tinha assassinado no cárcere o
operário Manoel Fiel Filho e, no ano anterior, “suicidara” o jornalista
Vladimir Herzog. Gil assumiu a contravenção, o porte do baseado, mas
disse que não sabia que fumá-lo era contra a lei. Acabou sentenciado a
um ano de prisão, com pena revertida em internação num hospital
psiquiátrico da cidade. Quatro dias depois, seria transferido para uma
clínica em Botafogo, no Rio de Janeiro, e, em um mês, posto em
liberdade para prosseguir com o tratamento.
Quando Gil ainda estava preso, porém, uma emissora de rádio no Rio
recebeu Ney em seus estúdios para uma entrevista corriqueira.
Passado algum tempo, o locutor surpreendeu o convidado ao perguntar
se ele teria coragem de falar com Gil, por telefone, direto do
confinamento. Era uma cilada, entendeu Ney. Queriam saber, na
verdade, se um maconheiro em potencial, como todos achavam que
Ney fosse, daria apoio em público a um subversivo derrotado pelo vício
e preso pelo implacável herói da direita da capital de Santa Catarina.
Pois foi justamente o que Ney fez assim que o locutor lhe deu o sinal
para falar. “Gil, eu queria que você soubesse que todos nós estamos
com você aqui fora, e que nada mudou. Continue firme.” O baiano
agradeceu e desligou, emocionado. Dias depois, vendo o voo das
gaivotas de Florianópolis pela janela do Hospital Psiquiátrico de São
José, conseguiu um violão, conjugou o verbo “gaivotar” para as almas
livres e compôs “A gaivota”.
E então foi assim, prensado entre a censura da elite intelectual que
defenestrava Odair José, a das palavras que proibia Chico Buarque e a
da força policial, que encarcerava Gil, que Ney definiu um nome
proibido para seu desterro, Bandido, uma foto proibida para sua capa,
na qual segurava um punhal com olhar ameaçador, e um lugar proibido
para lançá-lo no dia 21 de outubro de 1976: a temida Penitenciária
Lemos de Brito, no centro do Rio. O nome do disco era a metade do
título da canção de Rita Lee e a foto que ele queria para a capa foi
parar no encarte por autocensura da gravadora.
Mas o show na Lemos de Brito, um ato sem precedentes na , se
tornaria uma saga. A verdade é que os presos já haviam escolhido o
“bandido Ney” numa enquete interna que perguntava qual artista eles
gostariam de ver no entusiástico auditório da penitenciária. Quando
soube que tinha sido o mais votado, Ney aceitou sem negociar, abrindo
uma espécie de pré-estreia de Bandido para os encarcerados que
ocupariam os 1800 lugares da plateia, entre eles homicidas, latrocidas,
sequestradores e ladrões de banco. Seu novo grupo, já batizado
apropriadamente de Terceiro Mundo, foi acionado para a missão e Ney
entrou com Guilherme Araújo, Regina Chaves, Luisinho, Roberto de
Carvalho, Jorge Omar e todo o equipamento de som pelos portões
laterais da muralha número 401 da rua Frei Caneca, que continuava
exatamente como d. Pedro ordenara que fosse erguida em 1850 para
conter a balbúrdia das ruas cariocas.
Assim que chegou, Ney foi levado por um agente para uma sala que
fora transformada em camarim, não muito próxima do auditório. A
ordem era deixá-lo em paz, mas os detentos começaram a bater na
porta até o cantor desistir de qualquer privacidade e abri-la. Eles
queriam conversa, ouvir histórias de Ney e contar passagens pessoais
sem muitos detalhes sobre um passado de crimes que, diziam, não
importava mais. Enquanto prestava atenção no que falavam, Ney
imaginava o quanto ele, sempre nos andares mais baixos de uma
sociedade mantida sob ordens militares, era exatamente igual a todos
que estavam ali. Quando os detentos sentiram que já eram quase uma
família, resolveram descontrair com um ou dois baseados, mas Ney
pediu que fumassem do lado de fora, já que pretendia, por melhor que
fosse a hospedagem da Lemos de Brito, voltar para casa após o show.
Todos entenderam e saíram, exceto um jovem que ficou pela sala
visivelmente interessado em uma abordagem mais ousada.
Ney o achou atraente, mas, na falta de contexto para terem algo além
de uma boa conversa, passou-lhe o telefone de seu escritório, pediu
licença e rumou para o auditório a fim de começar o show, mas tomou
um caminho estranho que o levou a uma galeria vazia e sem saída.
Desnorteado, deu meia-volta e se deparou com o mesmo rapaz vindo
em sua direção. ‘Não, por favor”, disse Ney, percebendo que seria
agarrado. “Se você me abraçar ou me beijar, vai borrar a minha
maquiagem e eu não vou poder fazer esse show.” O moço assentiu e
Ney seguiu para os aplausos de sua entrada triunfal com uma
sequência de “San Vicente”, “Sangue latino” e “Cante uma canção de
amor”. A revista Veja chegou às bancas na semana seguinte com uma
pequena crítica do show, sem assinatura. O repórter contava que o
“rebolativo” artista, aclamado por alguns detentos como “a Carmen
Miranda do xilindró”, saiu do presídio exibindo “várias marcas roxas,
produto de beliscões aplicados por espectadores mais afoitos”. Pela
primeira vez, Ney redigiu uma carta endereçada a um órgão de
imprensa. “As marcas roxas e beliscões só podem estar na cabeça
doente de quem editou essa matéria”, escreveu. A Veja publicou a carta
sem a parte que se referia à cabeça doente do editor e Ney reforçou em
suas entrevistas: “Nunca fui tão bem tratado em um show”.
O Rio, congestionado de grandes espetáculos, só teria um palco para
Bandido no final de janeiro de 1977, o que levaria o grupo Terceiro
Mundo a ganhar tempo para ensaiar detalhes da estreia, já que o show
da penitenciária havia sido mais compacto, e Ney, como diria Gil, a
gaivotar com suas longas asas pelo verão que chegava às areias de
Ipanema. O álbum fora gravado durante as madrugadas com a
presença no estúdio de uma amiga cada vez mais íntima, Sônia Braga.
Sônia via Ney colocar voz nas canções, admirava sua entrega sensível
e, de um canto, o seguia com os olhos castanhos enormes de Gabriela
que o Brasil cobiçava desde o ano anterior, quando a Globo os exibira
na novela baseada na obra de Jorge Amado.
Num dia, Sônia trouxe de presente um mensageiro do vento feito de
conchas. “Isso deve ser trabalho de macumba pra te amarrar”, disse
Luisinho, rindo. No outro, mandou flores. E foi então que Ney decretou a
vitória de seu estilo de sedução discreta mesmo nas noites de tentação
em que ficavam lado a lado em seu carro. Agora, depois das flores, era
dar o segundo passo. Antes de levar Sônia do estúdio para casa em
sua Brasília, Ney fez o convite final: “Vamos pro meu apartamento?”.
Mas Sônia se mostrou surpresa e disse não, talvez apostando numa
insistência galanteadora que não veio. Se esperava mais do que aquilo,
refletiu Ney, Sônia Braga vivia na década errada.

Na Carlos Góis viviam todos os errados na década certa. Quando


surgiu um segundo apartamento no mesmo prédio, na parte de trás,
Ney conseguiu alugá-lo para dividir um pouco o contingente. As
Frenéticas ficavam no antigo e ele iria para o novo com o secretário,
Luisinho, e mais Vitória e Oto, a macaca e o gato. Sua relação com
Regina se firmava no amor mais livre que os anos 1970 inspiravam, até
que as garotas tomassem seus rumos com o estouro de Dancin’ Days.
As camas seguiam ocupadas ou desarrumadas e as pessoas
continuavam chegando e saindo por portas e janelas. Quando Ney
acordava, nunca solitário, por volta das três da tarde em sua grande
cama com capacidade para abrigar outros cinco ou seis corpos como o
dele, a cozinheira Joana, recém-contratada para ajudar no dia a dia,
lidava com um dilema. Afinal, quantos sucos deveria levar ao quarto?
Uma simples manhã no apartamento 104, relatada pelo jornalista
Marco Antônio Lacerda para o Jornal da Tarde, começava bem antes de
Ney acordar, e as ligações eram atendidas e anotadas pacientemente
por Luisinho. Márcio Braga, presidente do Flamengo, ligou para
convidar para o jogo Flamengo e Botafogo, no Maracanã. A socialite
Kiki Garavaglia queria confirmar a presença do artista numa festa de
aniversário. Uma moça que não revelou o nome deixou o recado de que
estava esperando Ney para tomar o licor de morango que haviam
combinado. Luisinho atendia também a campainha. Uma fã apareceu
para presentear o cantor com uma Mobilete depois de saber que tinham
roubado a que ele ganhou de uma garota em São Paulo, seu transporte
do hotel para o Teatro Brigadeiro na época dos shows de Bandido. Uma
delegação gay power passou para oferecer um relógio de presente a
Ney “como recompensa por sua incansável batalha”. Um amigo o
chamou para ir à praia. Lidoka, do apartamento da frente, foi pedir uma
xícara de fubá e grampos de cabelo. Guilherme Araújo chegou quase
na mesma hora que um estudante de letras, uma repórter e um
fotógrafo. Quando veio a madrugada, Luisinho atendeu a porta. Um
homem barbudo cheirando a álcool pedia para falar urgentemente com
Ney. Mas Ney dormia e Luisinho não quis acordá-lo para receber um
bêbado, mesmo sabendo que o bêbado era Raul Seixas.
O número do telefone havia sido mudado três vezes por Luisinho,
mas sempre voltava às agendas de uma gente insaciável e disposta a
sair de Ipanema ou da Baixada Fluminense para ter uma tarde na
Carlos Góis. Muita vida era compartilhada num tempo em que
estranhos eram bem-vindos, e o mais interessante deles apareceu
numa festa de aniversário organizada por Ney. Zé, cujo sobrenome
metade do Rio esqueceu por esquecimento e a outra metade por
precaução, era o filho de cachos loiros e olhos azuis de uma das
famílias mais ricas da cidade. Um garoto dez anos mais novo do que
Ney, de uma sede pelo dia e pela noite que não cabia nos projetos da
família milionária. Mais uma vez, tudo começou com Ney pelo olhar e só
chegou à voz quando ele percebeu que o rapaz iria embora. “Você já
vai?”, perguntou Ney. “Sim, mas posso voltar?” “Claro.” E Zé voltou
naquela mesma madrugada, quando o dia já amanhecia, para ficar por
perto pelos dois anos seguintes. Alguns dias depois, foi Ney quem
recebeu um convite: “Posso te sequestrar?”. “Pode.” “Então, pegue a
escova de dentes que já passo aí.” E se foram para a casa de inverno
da família rica, na região serrana, vigiados apenas pelos pássaros e por
um jardineiro.
Zé e Ney formavam um casal protegido por um pequeno grupo de
amigos e longe dos radares de uma família que lutava para resgatar o
herdeiro das influências mundanas de pessoas como Ney que,
acreditavam, o faziam sempre voltar ao fundo do poço. Zé tinha
acabado de retornar de Amsterdam, para onde os pais o mandaram na
esperança de que se curasse dos vícios do Terceiro Mundo. Amsterdam
já não era exatamente uma colônia de reabilitação em 1976, ano em
que a política de liberação do consumo da Cannabis em lugares
públicos era implantada nos Países Baixos. Zé jamais apresentou Ney a
seus pais e Ney nunca lhe cobrou formalidades. Eles estavam
apaixonados e só queriam se divertir, fazer amor, viajar, ir a shows,
tomar o Mandrix de Ney e todas as drogas que Zé sugerisse. Quando
visitava o filho na Carlos Góis, dona Beíta o via feliz e, assim, amava
também seu namorado, preparando suco de laranja para os dois pela
manhã. Um dia, Ney decidiu levar o rapaz para a casa de praia de um
guru espiritual em Itaipu, a vinte quilômetros do centro de Niterói. Um
homem sob o qual, segundo Vicente Pereira, todos poderiam se
encontrar e encontrar o Deus que havia neles se seguissem os sete
raios solares.
Seu nome era Mário Troncoso, um amazonense filho de espanhóis de
pouco mais de quarenta anos e cabelos rareando que, aos sete, já lia
nas cartas a procedência dos mortos e o amanhã dos vivos. Quando viu
um raio ultravioleta sair de um pingo de água numa das flores de seu
sítio, Troncoso começou a criar seu templo, que batizou de Gotas de
Orvalho. Às segundas, recebia pessoas de todas as origens para os
rituais de energia dos quais participava um mestre indiano que se
comunicava num idioma usado pelos fenícios no ano 300 a.C. Troncoso
explicava sobre cores, raios e incensos e incorporava os mestres
falando línguas estranhas. A cada mês, a posição dos astros mudava e
a cor da luz, ou chama-luz, também, numa lógica em que eram
saudados os quatro elementos da vida: terra, fogo, água e ar. Uma
mística cromática que havia atingido em cheio o transcendentalismo
sem nome de Ney desde que a amiga e cantora Simone, chamada por
ele de Cigarra e protegida como um totem pelo guru, o levou àquele
lugar.
Ney passou a frequentar a sede do Gotas de Orvalho, em Botafogo,
devidamente paramentado, com vestes brancas e guia azul. Assim que
chegou com Simone, ficou sabendo que sua energia era regida pelo
sétimo raio, o raio violeta, a luz transmutadora de Saint Germain, e,
fosse lá o que fosse isso para um leigo, ele respeitava as orientações
mantendo os olhos bem fechados e o pensamento firme. Sentados em
roda, os praticantes mentalizavam o poder das cores e o enviavam a
hospitais, hospícios, presídios e, no caso de alguém ficar de fora, ao
planeta inteiro. Houve uma sessão em que Ney sentiu uma bola de fogo
se aproximar pelas costas. Sem abrir os olhos, vislumbrou a imagem de
Mário Troncoso dentro da esfera, sereno e reconfortante, como se fosse
um pai. O guru adotou Ney e Simone com empatia e os convidou para
passarem alguns dias em sua casa de praia, pondo-os para dormir
juntos em duas camas de solteiro coladas uma à outra. “Mário, não
somos crianças”, advertiu Ney na primeira noite. “Vamos dormir assim
de novo?”, advertiu na segunda. Na terceira, deu-se o enredo. Era
madrugada quando Ney e Simone acenderam suas chamas internas e
caíram em tentação.

Agora era Ney que levava Zé para o vale energético de Mário


Troncoso, chegando para se hospedar justamente no dia em que o guru
receberia um militar de alta patente do Exército para um tratamento
espiritual. Um militar sob o mesmo teto de Ney e Zé em 1976 poderia
dar muito errado se os namorados não fossem para a cama mais cedo
e se comportassem como adultos. Eles foram, tomaram seus Mandrix e
logo dormiram, mas um estrondo na madrugada acordou Ney ao
mesmo tempo que Mário surgiu assustado pedindo a ele que corresse
até a varanda para conter Zé. O rapaz estava nu, gritando e soltando
fogos de artifício alucinadamente, o que tinha perturbado o militar a
ponto de ele ficar de arma em punho, temendo um atentado comunista
ou coisa parecida. Ney controlou o namorado e o levou para a cama.
No dia seguinte, Zé não se lembrava de nada.

O ano de 1977 estava para começar com o primeiro desafio já


marcado para o dia 20 de janeiro, quando Ney esperava ao menos lotar
os cem lugares do Teatro Ipanema com uma temporada de shows que
reuniria tudo o que ele havia aprendido a ser até ali. Depois de passar
um ano pagando o preço da ambição por um espetáculo sem limites, o
dispendioso Homem de Neanderthal, Ney queria fazer tudo ao contrário
com Bandido. Um teatro pequeno, um cenário simples, uma banda
menos eletrificada e um figurino terreno para uma maquiagem
subversiva. Seu rosto estaria à mostra, mas apenas com os olhos
pintados de preto e a boca de batom vermelho. O álbum ia bem, no
entanto ainda longe do olimpo que Ney só conhecera com os Secos &
Molhados. Nos últimos meses de 1976, as “Mulheres de Atenas” de
Chico venciam com folga as de Ney, ajudando a colocar o álbum Meus
caros amigos em primeiro lugar enquanto Bandido ficava entre a
décima e a nona posição na lista de mais vendidos. “Cante uma canção
de amor”, aviltada pela crítica e adorada pelas rádios, tinha sido
gravada por sugestão de Guilherme Araújo, que comprovava seu faro
para levar Ney a audiências menos elitizadas. Outra canção de amor
acabou adormecendo nos arquivos da Divisão de Censura mesmo
tendo sido aprovada. Assinada por Caetano Veloso, “Pássaro
estrelado”, editada pela produtora de Guilherme, cairia no esquecimento
de Ney e do próprio Caetano. Sem registros, a melodia e a harmonia se
perderiam, restando para a história apenas a letra arquivada pelos
censores: “Dentro de mim mora um monstro/ Que é um pássaro
estrelado/ Que é uma porção de macacos/ Que por sua vez se perdeu/
Naquilo de que eu sou não// E esse pássaro apagado/ Que pareço ser
quem falo/ À exceção quando canto/ E exceto quando me calo/ Dentro
do meu coração// Quero dizer que te amo/ Quero dizer que te mato/
Quero que te despedaço/ Quero-te desesperado/ De amor, ciúme e
paixão”.
Não havia dinheiro, mas havia ideias e um empresário que adorava
dizer “faça” para tudo o que parecesse loucura. Ney olhou para o palco
vazio e começou a arquitetar o roteiro de suas transgressões. O show
iria se iniciar com a entrada de um dos músicos, sozinho, que jogaria
um fósforo aceso dentro de um grande tacho com material inflamável de
onde as chamas se levantariam. Os outros chegavam, apanhavam seus
instrumentos e se punham a tocar “San Vicente”, de Milton Nascimento
e Fernando Brant. A primeira luz era acesa mirando uma árvore
cenográfica, de onde saía uma perna para, aos poucos, surgir o corpo
todo de Ney, que se dirigia ao centro tocando castanholas. Um biombo
de madeira, aproveitado de uma sessão de fotos, era colocado em
frente a um espelho oval trazido da Carlos Góis, estrategicamente
posicionado para a cena de um ou dois crimes.
No primeiro deles, enquanto a banda fazia a introdução de “Com a
boca no mundo”, de Rita Lee, Ney se aproximava do espelho para
beijar a própria boca simulando uma ereção ao empunhar a fivela do
cinto, ilustrada com o desenho de uma cabeça de leão, até chegar ao
orgasmo. O segundo começava quando ele ia para detrás do biombo,
onde trocava de roupa, deixando a nudez frontal protegida por um tapa-
sexo e as nádegas nuas refletidas no mesmo espelho. A cena passou a
provocar furor principalmente no público feminino, que descobria um
símbolo sexual de seus prazeres secretos. A hipersexualização não era
um artifício de cena. Ney ia à forra de suas vontades querendo transar
muitas vezes por dia com homens, mulheres, amigos, parceiros e
desconhecidos, e era isso que ele transportava para o palco. Ao ver a
plateia à sua frente, enxergava um ser único de muitos braços, pernas e
bocas, desejando penetrá-la fisicamente e também ser transpassado
numa transa voraz e real.
No Recife, antes de um show, Ney procurou Guilherme Araújo: “Estou
com vontade de tirar a roupa toda para cantar ‘Boneca cobiçada’. O que
você acha?”. Depois de trocar o tapa-sexo preto por um branco, ele se
refrescaria com um abano de metal rústico e cantaria a brejeirice
sertaneja que a dupla Palmeira e Biá gravou em 1956. Guilherme disse
apenas: “Faça” e Ney fez, levando a plateia recifense ao êxtase e dois
policiais à porta de seu camarim. Assim que o espetáculo terminou, Ney
os recebeu sem roupa, apenas com uma toalha sobre o colo. Como
haveria outra apresentação na cidade, os policiais queriam negociar
uma forma de tornar menos maliciosa a parte da sombra do pênis, na
verdade uma ilusão de óptica criada pela luz que iluminava a peça de
metal do cinto adornada em sua virilha. Aquilo era um teatro de revista,
disse, e a malícia fazia parte do jogo.
Eles então perguntaram quantas vezes era feito o pecaminoso
vaivém com a cintura suportando o falo de metal. Ney nunca havia
contado, mas inventou um número qualquer para encerrar o assunto e
ouviu uma última recomendação dos agentes: “Então, faça a metade”.
Não era fácil entender como aqueles policiais do Recife, depois de o
agredirem na saída dos Secos & Molhados da cidade, o marcavam
novamente. Nem parecia o mesmo lugar onde toda vez que ia à praia
ele era cercado por homens que elogiavam suas pernas e o chamavam
para sair.
Antes de viajar o país com Bandido, Ney e a banda Terceiro Mundo
lotaram todas as sessões do Teatro Ipanema, o que os obrigou a
procurar um espaço maior até encontrarem o Teatro Carlos Gomes. O
repertório trazia novidades além do que estava no álbum, como o
providencial apego ao passado com “Sangue latino”, uma primeira visita
a Raul Seixas com “Metamorfose ambulante”, as memórias da parceria
com Fagner em “Postal de amor”, um segundo desbunde de Rita Lee
em “Com a boca no mundo” e o encerramento com o que ainda havia
de mais grandiloquente em seu repertório, apesar de ter dito ao jornal O
Globo que não precisaria mais cantar aquele refrão para valorizar a
América Latina, “América do Sul”. Quando o show começou a se
movimentar de norte a sul do país, ganhando críticas elogiosas em São
Paulo e provocando a formação de uma pequena e estranha procissão
de fãs que caminhavam em silêncio às suas costas durante uma
passagem por Teresina, no Piauí, a falta de dinheiro deixou de ser um
problema e o sexo, turbinado pelo Mandrix, se tornou um vício. Como
marinheiros que largam um amor em cada porto, Ney vivia transas por
transas e por paixão com homens e com mulheres em todas as cidades
pelas quais passava. Conhecia um momento sexualmente ainda mais
intenso do que as muitas aventuras que experimentara a três, quando
dormia com um produtor e uma aeromoça ao mesmo tempo durante as
turnês dos Secos & Molhados.
14. As três censuras

O álbum e o show Bandido faziam os ventos soprarem a favor como


nunca, na cama e nas ruas. Apesar de não ser um estouro, 300 mil
cópias vendidas não era uma quantidade desprezível. Nada perto da
montanha de 1 milhão de discos comercializados por Roberto Carlos,
mas dentro de uma zona de segurança que Ney entendeu logo como
funcionava. Tudo era uma questão de referência. A partir do dia em que
se tornasse um titã de 1 milhão de cópias, 800 mil seriam um fracasso.
O público feminino chegava com furor, aumentando sua base de fãs e
reforçando a confiança de que sua persona não mais selvagem, mas
sexualizada, acertava um alvo universal.
Uma senhora circunspecta, bem-vestida e de cabelos grisalhos que o
viu chegar ao Teatro Ipanema tinha dado o sinal do que estava por vir:
“Então é você quem está enlouquecendo as mulheres?”. “Estou? Não
sabia disso”, ele respondeu, realmente curioso. Ao desejar homens e
mulheres sem cair em clichês héteros ou caricaturas homossexuais,
Ney passava a usar a sedução não como adereço, mas como
mensagem, e a construir uma imagem baseada no “ser aquilo que se
é”, uma postura que seria historicamente confundida com militância de
gênero. Bandido o fez encontrar um espaço de atuação entre a
afirmação e a diversão e transitar nas duas camadas, desnorteando um
sistema de censura que não sabia muito bem como categorizar o
fenômeno que via.
Um relatório enviado ao gabinete do Ministério do Exército contendo
informações sobre “elementos cassados e esquerdistas” dava sinais
dessa confusão. As conversas eram colhidas por meio de
interceptações de chamadas telefônicas nas linhas de Francisco
Teixeira, um brigadeiro que servira com destaque na costa brasileira
durante a Segunda Guerra Mundial, ajudara a implantar os aviões de
caça P-40 e atuara como chefe de gabinete do ministro da Aeronáutica
e subchefe do Estado-Maior das Forças Armadas, mas que havia
despencado em desgraça desde que tinha se recusado a participar do
golpe de 1964. Ao chefe do Serviço Nacional de Informações ( ), o
relator das conversas se mostra preocupado com o fato de Francisco
Teixeira “continuar mantendo contato” com o advogado e político
mineiro Lisânias Maciel, do , que já havia assumido a defesa de
presos políticos da ditadura. Além de relatar as conversas com Lisânias,
o agente entregava os nomes dos artistas citados pelo espionado a
seus interlocutores nessas conversas, fazendo uma rápida observação
sobre cada um: “Eles tecem considerações sobre artistas de esquerda:
Chico Buarque (esquerda festiva), Ney Matogrosso (considerado muito
bom), Caetano Veloso (considerado muito bom) e Roberto Carlos —
apolítico (direita festiva)”.
Um telespectador da Globo chamado Alcides Barbosa da Cunha não
concordaria com o espião do . Ele decidiu despejar toda a sua fúria
numa carta dirigida aos homens mais poderosos da nação quando
assistiu a uma aparição de Ney no programa Brasil Pandeiro, em 20 de
outubro de 1978. Ney, para ele, era uma aberração moral e a censura
“que existe neste país” deveria aniquilá-lo a todo custo. Exibido às
sextas, Brasil Pandeiro recebia vários artistas num ambiente de teatro
de revista apresentado por Betty Faria e com textos de Ronaldo Bôscoli
e Ruy Castro. Um dia depois de ver Ney com peitos e pelos de fora
cantando “Bandido corazón”, “Boneca cobiçada” e “O tic-tac do meu
coração”, Alcides, usando de todo o juridiquês de que sua profissão de
advogado o munira, colocou a primeira das cinco laudas na máquina de
escrever e redigiu uma carta de rompantes e neologismos criados pelo
ódio endereçada ao “Sr. Redator do Jornal do Brasil” e ao “Sr. Ministro
da Justiça da República Federativa do Brasil”, com cópias para o “Sr.
Presidente da República”, para os três ministros militares e para o “Sr.
Secretário de Segurança” do Rio de Janeiro:
Ilmo. Sr.
Redator do Jornal do Brasil
Av. Rio Branco, 135
Rio de Janeiro.
Prezado Senhor
Formulo a presente para manifestar de público, através desse conceituado jornal, o meu
mais veemente protesto contra o escandaloso, aviltante e afrontoso programa de televisão
posto no ar pela Globo, no dia 19 do mês em curso, no horário nobre das 21h, no qual
foi exibido um infeliz rapaz de maneiras afeminadas, cognominado “Ney Mato Grosso”,
cuja triste e deplorável coreografia eivada de deboches e sandices despudoradas chocou,
creio eu, a grande maioria do público que teve a desventura de vê-lo.
Diante de tão insólita afronta à população, somos forçados a interrogar a todos os
pulmões: ? Em caso positivo, que tipo de
censores são esses que não se apercebem ou simplesmente toleram tamanho
amesquinhamento e ameaça à estrutura da família? Como criar e educar filhos diante de
tanta depravação? Sem dúvida, os quesitos acima são irrespondíveis. Por isso, não
devemos e não podemos ficar de braços cruzados à espera do pior, temos que nos opor
com todas as forças e sem vacilações a essas idiotices mórbidas, que tanto deturpam e
desmoralizam os costumes e os preceitos de respeitabilidade.
É inconcebível fazer-se uso de um canal de televisão para aviltar de maneira tão
chocante toda a sociedade, subestimando a reação da grande maioria, bem assim, da
autoridade repressora, que tem o dever de preservar a ordem e os costumes.
Como se vê diariamente, existe uma gama de publicidades de corrompimento que vem
deixando os pais em completo desespero, face ao dever de criar e educar condignamente
os filhos, incólumes dessas degenerescências.
Sendo a televisão o mais fabuloso meio de comunicação, deveria ser utilizada de
preferência para educar e transmitir tudo o que fosse de mais proveitoso para a população
e para o país. Porém, com algumas exceções, acontece exatamente o contrário. Curioso,
é que muitos dos apologistas dessa situação de pervertimento alardeiam a todos os
ventos o “slogan” de liberdade a fim de poderem dar vazão a sua mediocridade mórbida.
Ora, liberdade não é dar direito a qualquer portador de anomalia cerebral para ultrajar a
tudo e a todos.
Temos visto nos últimos tempos em nossa terra uma avalanche de divulgações
vulgares, nitidamente destinada à desmoralização de todos os princípios sadios, que
constituem o elo do amor, da disciplina e da fraternidade, procurando reduzir a pessoa
humana ao desfibramento e, portanto, tornando-a presa fácil de todos os vícios e
submissão.
Apesar de tudo, porém, sabemos que ainda há uma boa parcela da nossa gente imune
a essas mazelas e que cultua o princípio da dignidade como bússola da melhor regra de
conduta. Portanto, o transgressor dessa norma revela-se um pernicioso virulento, inimigo
da sociedade, pelo que deveria ser levado ao banco dos réus, visto que suas atividades
despudoradas são capazes de gerar males imprevisíveis, atingindo preferencialmente as
crianças e os jovens de todas as classes. […]
Essas ignomínias se nos afiguram com tanta gravidade que, provavelmente, os próprios
diretores das emissoras venham sofrendo traições por parte de alguém responsável por
esse tipo de divulgações […]. Onde quer que se encontre o homem, aí está, para todos
sentirem na própria carne, gerando por toda a parte a insensatez, o desamor, a
desagregação da família e a descrença em tudo o que é legítimo e dignificante. Urge,
portanto, que seja manipulado um remédio, sem perda de tempo, capaz de fulminar esse
vírus, inimigo comum, antes que seja tarde demais.
A falta de segurança que ultimamente vem imperando em nossa terra, sem dúvida
alguma, decorre em grande parte da obra escarnecedora desses algozes da perversão,
que não medem consequências na prática de divulgações de tudo que injuria e corrompe,
desde que lhes proporcione o lucro fácil.
Assim, torna-se necessário e indispensável que haja um “ ” em tudo isso, e
somente a nós brasileiros compete empunhar a bandeira contra o flagelo desse inimigo
comum, a fim de salvarmos o que ainda resta, em proveito das gerações futuras. É
indispensável também que haja o concurso da imprensa sadia, em cooperação com o
povo e com o Governo, e estou certo de que, se assim acontecer, voltaremos, sem
dúvida, a respirar novamente uma atmosfera livre de tantas impurezas, profundamente
degradantes.

Não há evidências comprovadas de que o Jornal do Brasil ou o


Ministério do Exército tenham tomado alguma atitude específica depois
de lerem a carta de Alcides. O assunto rendeu mais na seção de cartas
dos leitores do próprio JB, após a publicação, pelo jornal, de apenas
uma parte da missiva do advogado, incluindo seu clamor aos militares
para banir de cena o “infeliz rapaz de maneiras afeminadas”. Dias mais
tarde, a leitora Maria Anita Cavalcante Medeiros escreveu a sua carta,
intitulada “Televisão nua”: “Acho que foi um dos melhores programas da
série Brasil Pandeiro, exatamente pela apresentação desse artista”.
Soava como um prelúdio em defesa da livre expressão ou algo
parecido, mas ela só virava os canhões para outros alvos: “Afronta à
população e ameaça à estrutura familiar, como disse o sr. Cunha, é um
programa como o do Chacrinha, onde as garotas dançam seminuas. E
o programa do Carlos Imperial? E o Planeta dos Homens, onde
qualquer tema é pretexto para apresentar garotas seminuas?
Realmente, quando a censura se faz necessária, não dá sinais de vida.
Somente aparece nos momentos mais inconvenientes”.
Mais dois dias e chega outra carta, esta assinada pelo leitor Sérgio
Kós. Para ele, nem Maria Anita nem Alcides Cunha estavam certos:
Sou obrigado a discordar de ambos, pois se obviamente existe algo de desastroso na
programação da televisão brasileira, não seriam os rebolados de um cantor e as pernas
de dançarinas e atrizes, mas a pouca criatividade e a falta de respeito à família, atingida
diretamente em seu âmago através de certos programas, principalmente novelas, em que
maridos fogem com amantes, garotos são seduzidos por senhoras e vice-versa, e onde a
moral familiar é simplesmente esquecida em favor do sensacionalismo barato.

O único ponto inquestionável na carta dos três telespectadores da


Globo era a importância da existência da própria censura, e Ney
figurava nas listas de suas três formas — a militar, promovida pelo
regime oficial; a civil, alimentada pelas famílias conservadoras; e a
corporativa privada, exercida com instinto de sobrevivência dentro de
jornais e emissoras de .

André Midani via tudo isso como um ativo de seu novo contratado da
Warner, um reduto artístico de ação política e comportamental por
debaixo de uma dança erotizada e provocante, longe da sisudez
nascida com a na Era dos Festivais. Até então, os artistas eram ou
da guerra — Elis Regina, Edu Lobo, Chico Buarque, Gil, Caetano,
Taiguara, Geraldo Vandré, Belchior, Os Mutantes, Rita Lee, Raul
Seixas… — ou da paz — Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Wanderléa,
Jair Rodrigues, Wilson Simonal, Luiz Gonzaga, Sidney Magal… Ao
misturar guerra e paz, cantando as letras mais profundas como se
estivesse num teatro de revista dos anos 1930, Ney embaralhava as
cabeças fantasiando desejos tanto em quem só queria levá-lo para a
cama como naqueles que se inspiravam por sua liberdade irrestrita.
Midani, que adorava provocar um milico desde os anos de Philips,
mandaria prensar o novo disco de Ney com a sugestão de um nu
gigantesco no encarte do álbum. Um álbum que começava a ser
produzido naquele instante com o nome de Feitiço para ser lançado um
ano depois de o cantor encerrar sua trajetória na Continental com o
pouco exigente Pecado, feito sobretudo com sobras do repertório do
show Bandido.
A pessoa destacada para entender o que Ney queria, conhecer o que
não queria e convencê-lo do que deveria querer era Marco Mazzola,
jovem trazido da Philips com um cartel respeitável de produções que
incluíam Raul Seixas, Belchior, Rita Lee e Elis Regina. Seu primeiro
diagnóstico identificava um ajuste a ser feito no posicionamento do
artista, cercado por um bloqueio que, apesar de todo o seu trânsito
popular, não lhe permitia romper os limites das tais 300 mil cópias
vendidas. O homem dançava bem, tinha uma expressão corporal forte,
vivia em especiais da Globo, mas seguia numa redoma cult quase
intransponível.
A chave do mistério poderia estar no arranjo, algo que deveria
transcender os limites dos próprios estúdios brasileiros para que suas
músicas deixassem a atmosfera de Bandido e passassem a soar com a
modernidade eletrônica que a chegada da década de 1980 anunciava.
Os embalos da disco music faziam As Frenéticas chegarem às 500 mil
cópias de seu primeiro e o embalo das Frenéticas fez Mazzola levar
o case para inaugurar sua relação com Ney Matogrosso. Gravar Chico
Buarque era sempre bom, mas, dessa vez, seria diferente. “Não existe
pecado ao sul do equador”, escolhida por Ney, era o som perfeito para
ser trabalhado de uma forma inédita e num lugar onde ele jamais tinha
gravado.
O terreno era delicado, mas Mazzola, treinado pelas tempestades
irascíveis de Elis, só pisava nas pedras que não ameaçassem afundar.
Para ele, o repertório de Ney era, em geral, complicado demais para se
espalhar pelas rádios como deveria, mas isso era o que não poderia ser
dito. O que poderia, ele disse: “Vamos gravar pelo menos uma faixa nos
Estados Unidos? O Brasil não tem equipamentos para o som que
podemos fazer”. Ney respondeu que não queria viajar de avião, o que
era também só metade do que pensava. Para ele, gravar nos Estados
Unidos não passava de ostentação e deslumbre terceiro-mundista. A
boa sonoridade de seus álbuns anteriores, dizia, provava isso. Mazzola
insistiu, alegando que até poderia ir sozinho gravar as bases e voltar
para que a voz fosse colocada no Brasil, mas alertou que seu cliente
poderia não gostar do resultado. Ney cedeu, perguntando: “E como
faremos isso?”. E Mazzola conseguiu sua primeira vitória, respondendo:
“Deixa comigo”, sem saber que nem tudo estaria sob seu controle assim
que os dois aterrissassem em Los Angeles.
Os músicos norte-americanos contratados pela Warner atuariam
diante das partituras escritas pelo saxofonista e arranjador John
D’Andrea, devidamente orientado por Mazzola. A harmonia não deveria
ser alterada nem em um centésimo de nota para não enfurecer Chico
Buarque, um compositor que não aturaria mudanças aleatórias, e a
sonoridade deveria pender mais para os latinos e menos para os
negros, mais para a salsa e menos para o soul. Um som que poderiam
chamar de latin disco se quisessem. O baterista era Jeff Porcaro, que
tinha gravado com Diana Ross, Etta James e Paul Anka e que, em
1982, gravaria no álbum Thriller, de Michael Jackson. O baixista era o
texano David Hungate, integrante da banda Toto desde 1977. O
guitarrista era Jay Graydon, de trabalhos prestados ao Air Supply, Ray
Charles, Cher, Joe Cocker e Marvin Gaye. O tecladista à frente do
Fender Rhodes era o canadense David Vincent Foster, de Donna
Summer, Earth, Wind & Fire e uma lista longa que só estava no início.
E, na percussão, estava um brasileiro que já fazia história nos estúdios
norte-americanos, Paulinho da Costa. Todos a postos esperando o
cantor às nove horas da manhã seguinte à sua chegada.
A questão é que entre a tarde da chegada e a manhã seguinte havia
uma noite e, mesmo hospedados confortavelmente no hotel Holiday Inn
para se recuperarem da viagem, Ney e Mazzola não poderiam negar o
convite para uma festa numa mansão de Beverly Hills promovida por
um tubarão da indústria fonográfica. Atores e atrizes muito famosos de
Hollywood que Ney não conhecia badalavam pela casa falando uma
língua que ele não falava mas consumindo todas as drogas que já
tinham passado por sua corrente sanguínea, desde a cocaína servida
em bandejas na entrada até os ácidos ingeridos nos banheiros.
Ney ficou por ali, flanando entre drinques e comprimidos até que um
trio de músicos mexicanos caracterizados como mariachis surgiu para
tocar e ele, apresentado por Mazzola como um cantor brasileiro, foi
chamado ao palco. Ney subiu e cantou “Dos cruces”, do espanhol
Carmelo Larrea, que já havia escolhido para gravar. Uma canção doída
e introspectiva, sem nenhum clima de esbórnia hollywoodiana, mas que
deve ter saído muito bem porque Ney atraiu todas as atenções de
Hiram Keller, um dos mais belos atores da temporada, de 33 anos, que
em 1969 tinha trabalhado como um dos personagens principais no filme
Satyricon, de Federico Fellini. Quando a festa terminou, foram embora
juntos para uma noite a dois no Holliday Inn.
A má notícia era que a manhã chegaria dali a pouco e, por volta das
6h, Mazzola, que tinha saído mais cedo da festa, já passava um bilhete
por debaixo da porta: “Seu Pereira, não esquece: gravação às 9h”. Sem
sinal de vida até 8h20, o produtor voltou ao quarto disposto a chamá-lo.
“Vamos, os músicos estão esperando.” Ney acordou sem Hiram, que já
havia deixado o hotel, e disse que não tinha nenhuma condição de
cantar naquela manhã. Mazzola saiu pelo Hollywood Boulevard, entrou
na primeira farmácia que avistou e pediu qualquer medicação capaz de
eliminar ressacas. “Se não funcionar esse, use esse”, disse o
farmacêutico, entregando dois potes coloridos de comprimidos. Ney
tomou a primeira cápsula ainda no hotel enquanto Mazzola pegava um
táxi para chegar antes ao estúdio e ganhar tempo. Mesmo tonto, Ney
apareceu no horário e foi estrategicamente preservado num canto
enquanto as partituras eram abertas.
A precisão dos músicos norte-americanos era quase intimidadora.
Eles passaram os olhos pelas notas em poucos minutos, tocaram juntos
uma só vez, e estava pronto. Era como se Chico Buarque tivesse
nascido na pista da Dancin’ Days, com uma introdução cujas seis ou
sete notas iniciais lembravam muito “Não quero dinheiro”, de Tim Maia.
Mazzola percebeu Ney ainda aéreo antes de se levantar e assumir o
microfone e partiu para a dose de emergência. Ao tomar o outro
comprimido, Ney estalou os olhos em poucos minutos. Além de colocar
a voz em “Não existe pecado” de primeira, refez os vocais de
“Bandolero”, de Luli e Lucina, e de “O tic-tac do meu coração”, de Alcir
Pires Vermelho e Walfrido Silva, gravada por Carmen Miranda e
Benedito Lacerda em 1935. As duas últimas, usando as bases que já
haviam sido registradas no Brasil. Um técnico cochichou com Mazzola
ao vê-lo cantando e dançando daquela forma às 9h30 da manhã: “O
cara é doido?”. “Não, ele é assim mesmo.” Na verdade, não era, e
talvez aquela tenha sido a única vez que Ney gravou turbinado por
drogas sintéticas compradas em farmácia. Quando tudo terminou, ele
só conseguiu fazer um pedido antes de desabar: “Por favor, me leve pro
hotel”.

A criação de Feitiço seguia fazendo justiça ao nome do álbum, com o


surgimento de uma das músicas por capricho dos espíritos. Mauro
Kwitko, um jovem de trinta anos formado em medicina com
especialização em pediatria, era também compositor de boas letras e
melodias e um músico da noite, muito atuante na recepção do Hotel
Barão de Tefé, próximo ao centro do Rio. Amigo de um amigo de Ney,
ouvia sempre que o cantor precisava conhecer suas canções e acabou
conseguindo uma audiência de violão em punho com o próprio, na rua
Carlos Góis. Mauro ficou ali por um tempo mostrando tudo o que tinha
até fazerem uma pausa para um lanche e o compositor voltar a tocar
mais canções que Ney ouvia formalmente. Mauro agradeceu a
gentileza, guardou o violão e partiu sem nenhum sinal de arrebatamento
que garantisse sua presença no repertório de Feitiço ou de qualquer
álbum de Ney. Assim que chegou em casa e percebeu que estava
sozinho, sem nenhum dos amigos músicos que viviam com ele, sentou-
se no chão da sala, sacou o violão da capa, apanhou um caderno e, a
partir desse instante e pelos quinze ou vinte minutos seguintes, tudo se
apagou.
Quando recobrou a consciência, havia uma canção pronta e acabada
na sua frente, inegavelmente escrita com a sua letra mas falando sobre
coisas cujo significado ele entenderia apenas depois de lê-la algumas
vezes. “Sou um homem, sou um bicho/ Sou uma mulher/ Sou a mesa e
as cadeiras/ Deste cabaré/ Sou o seu amor profundo/ Sou o seu lugar
no mundo.” E assim seguiam outras três estrofes vindas de um lugar do
qual Mauro só teria pistas mais tarde, quando decidisse consultar os
orixás. Ao tocar o violão, os versos se aninhavam numa melodia que
saía lapidada, sem gorduras nem arestas. Ali, diante do que entendeu
ser um sinal, recolocou o violão na capa e correu até o telefone público.
“Ney, acabei de compor uma música, preciso te mostrar.” Apanhou o
ônibus de volta para o Leblon e chegou com uma euforia que não havia
mostrado na primeira vez. Sentou-se e tocou a canção até o fim. Ney,
em silêncio, se levantou para pegar um gravador e uma fita cassete,
voltou e pediu a Mauro para tocá-la de novo. Quando terminaram, o
cantor quis saber se a música tinha nome. “Pode dar o nome se quiser”,
disse Mauro. Ney pensou alguns minutos e escolheu “Mal necessário”.
O conjunto de Feitiço ganhou corpo com “Fé menino”, presente de
Gil, uma letra com toda a ambiguidade sexual de seus “três modos de
Deus”, inspirada pelos tempos de Dancin’ Days, e uma ala introspectiva
se formou com “Sensual”, de Belchior e Tuca, e “Angra”, de João Bosco
e Aldir Blanc, além de “Dos cruces”. O tango de abandono “Rejeição”,
de Ricardo Pavão, foi surpreendentemente vetado pela censura e
apenas a última linha da última estrofe poderia justificar algum corte:
“Rejeição… Sentimento contramão/ Que me faz refugiar no medo/
Refugiar na incerteza que aí está”.
Midani não aceitou perder para um possível mal-entendido uma das
canções mais fortes do álbum e, por meio do advogado da gravadora,
Oscar Müller Filho, se dirigiu aos militares pedindo que reavaliassem a
proibição. “Tal letra musical foi vetada por esse Serviço sem nada que
se vislumbre, de sua simples leitura, qualquer motivo a justificar o veto.
Assim, vem o suplicante à presença de V. Sa. para pedir que seja
reconsiderado o despacho que vetou a letra musical referida, agindo V.
Sa., dessa forma, com muita sabedoria.” Uma súplica que os censores
atenderam depois de lerem a letra pela segunda vez.
Com todos os esforços de produção artística e executiva, Feitiço não
seria um disco que colocaria mais de três hits no rádio nem venderia
mais que o esperado. Sozinha, “Não existe pecado” não teria força para
movimentar Ney em direção às massas, como queria Mazzola, mas o
produtor havia acabado de conquistar com ela um território relevante.
Não fosse por sua insistência, o álbum não teria como único canhão
realmente pop a composição de Chico e Ruy Guerra feita originalmente
para o musical Calabar: O elogio da traição, a qual a Globo usaria ainda
como tema da novela Pecado Rasgado, de um autor em começo de
carreira chamado Silvio de Abreu. A letra que Ney gravou já tinha sido
modificada por Chico por ordens superiores. Quando o lote das músicas
de Calabar foi entregue à Divisão de Censura, em 1973, a canção dizia:
“Vamos fazer um pecado safado debaixo do meu cobertor”. Mas um
traço de caneta preta sublinhou o trecho que ia de “safado” a “cobertor”
com uma observação curta e objetiva: “cortar”. O pedido foi atendido às
pressas por Chico, para não perder tempo na liberação, e os versos
originais foram trocados por: “Vamos fazer um pecado rasgado, suado,
a todo vapor”. Por alguma razão, o pecado rasgado e a todo vapor, para
a censura, era menos pecado que o pecado safado debaixo do
cobertor. Ney entendeu que o importante era pecar e não viu prejuízo
em lançar a versão alterada.
Ainda que todos fossem santos ao sul do equador, a Galeria Alaska
continuaria a queimar no fogo do inferno. Conjunto de metros
quadrados mais maldito do Rio, com shows de strippers, vigilância de
cafetões e serviços de sexo fácil, rápido e sem poesia oferecidos por
toda sorte de autônomos abençoados apenas em seus cartões de visita
— avenida Nossa Senhora de Copacabana, 1241 —, a Alaska tentava
reerguer suas estruturas gastas desde as noites proibidas da década de
1950. As reformas do teatro que existia no lugar de uma sala de filmes
gemidos dos anos 1960, com a plateia mantida num ângulo tão íngreme
quanto os montes do próprio Alasca, haviam sido concluídas no instante
em que era anunciado o lançamento de Feitiço no Rio de Janeiro. Não
deu outra. Vingança dos amores marginais, desforra do sexo livre, Ney
Matogrosso não pensou duas vezes ao ser procurado para fazer ali o
primeiro show carioca.
Para quem já havia lançado um álbum num presídio, a Alaska tinha
seu charme. E se Ney contava com um público cativo e lúcido de suas
intenções, um caldo cultural de bem-nascidos que incluía jornalistas,
escritores, cenógrafos, universitários, decoradores, estilistas, atores,
atrizes, artistas plásticos, performers e músicos, o que impediria uma
gente tão esclarecida de entrar numa galeria como aquela em
Copacabana? Era hora de testá-los. Minutos antes da estreia na noite
de chuva fina, a plateia, segundo o testemunho de um crítico solitário do
jornal O Estado de S. Paulo, era formada por “caciques Jurunas de
Copacabana”, “madames com cachorrinhos enfeitados de fitas” e
garotas vestidas como “pinups da década de 40”. Fotógrafos, diga-se,
eram historicamente impedidos de entrarem na Alaska em nome da
preservação de famílias e reputações. Ao lado do cenógrafo Fernando
Pinto, Ney pensou num show alasquiano dividido em duas partes e,
mais uma vez, inspirado no teatro de revista.
Ele vinha iluminado no alto de uma escada cantando “Yes, nós temos
banana”, de lenço na testa, braceletes, cinturão e colar, tudo cravejado
de moedas douradas, e vestindo uma calça amarela de cetim
circundada de babados leves e bem distribuídos que o faziam levitar
como um bailarino egípcio. Depois de fazer sua maior rendição a
Carmen Miranda, Ney descia a escada equilibrando um balaio de frutas
na cabeça e começava “O vendedor de bananas”, de Jorge Ben, para
fechar em seguida sua entrada tropical com “Bandolero”. Após algumas
músicas, saía do palco, decorado com uma bananeira cenográfica, e
retornava de luvas pretas, miniblusa prateada e uma calça de couro
mais erótica do que a própria nudez para cantar “Jardins da Babilônia”,
de Rita Lee e Lee Marcucci. Então, tirava as luvas e as jogava para trás
levando a plateia a precipitar-se num ensaio de gritos premonitórios que
seriam calados por um choque segundos depois, quando a calça fosse
desabotoada e a mão esquerda deslizasse em direção à rigidez de seu
pênis. Os gritos voltavam e as luzes se apagavam num blecaute de
milésimos para Ney se abaixar e apanhar uma banana posicionada no
canto do palco. Assim que as luzes eram acesas, ela estava lá,
acariciada e descascada para ser devorada em poucas mordidas e com
todos os simbolismos que a Galeria Alaska merecia para, pelo menos
naquela noite, não ter medo de ser livre.
Antes da bênção final à transgressão com “Não existe pecado ao sul
do equador”, haveria “Foi assim”, de Paulo André e Ruy Barata, lançada
por Fafá de Belém no disco Água; “Circo Marimbondo”, de Milton
Nascimento e Ronaldo Bastos; “Você não entende nada”, de Caetano
Veloso; mais lembranças de Secos & Molhados, dessa vez com “Rosa
de Hiroshima”; e, no caminho para o fim, Pixinguinha e João de Barro
levados à Alaska com uma versão de “Carinhoso”. O preço da entrada
era alto, 150 cruzeiros, mas as sessões de terça a domingo lotavam e
Ney conseguia configurar ainda mais seu novo show e sua nova banda,
que mantinha o nome Terceiro Mundo mas contava com integrantes
novos como o guitarrista Aristides Mendes no lugar de Roberto de
Carvalho, previsivelmente convocado para os palcos, os estúdios e a
vida de Rita Lee.

O álbum seria oficialmente lançado com um material feito pela


fotógrafa Marisa Alvarez Lima, amiga de Ney, que o havia registrado
sem constrangimentos, completamente nu, sobre tules e rosas brancas
espalhados numa cama. A capa trazia um close de rosto; a contracapa
vinha com as letras e a ficha técnica e o encarte mostrava uma grande
seminudez em página dupla. Mais do que qualquer canção do disco e
qualquer performance na Alaska, era o corpo exposto de Ney o que,
dessa vez, provocaria a zanga das vigias militares e a fúria das
patrulhas civis.
Assim que um radialista avisou que o novo de Ney Matogrosso
tinha chegado a Fortaleza, a dona de casa Joana Albuquerque deixou o
que fazia e saiu a pé em direção ao Center Um Shopping, conforme
contaria ao sociólogo Flávio de Araújo Queiroz, da Universidade
Federal do Ceará. Joana chegou à loja com o dinheiro contado e
estranhou a quantidade de fãs organizados em fila pelos funcionários.
Seu primeiro susto naquela tarde se deu ao ver que o álbum vinha
lacrado num plástico escuro, algo insólito até para os atendentes. Ela
pagou, recebeu o e foi abri-lo trêmula, sentada num banco de praça
perto da loja. “O Ney está nu!”, gritou quando tirou o lacre, querendo
dividir o que via com quem passasse. Dias depois de o chegar às
prateleiras do Rio e de São Paulo, onde os discos eram lançados
primeiro, a censura mordeu a isca e impôs limites ao encarte. Se
quisesse ter seu despacho de macumba exposto nas lojas de novo, e
esse era o termo que os detratores usavam para se referir à imagem
interna do disco, a Warner deveria recolher seus produtos e ensacá-los
em material de cor escura e inviolável. A saga do de Ney comprado
por Joana, do mesmo modo que a saga de muitos s de Ney
comprados desde 1975, ainda não havia terminado.
Depois de receber amigos em casa para uma festa, Joana constatou
que seu tinha sido violentado. O rosto e a área próxima à genitália de
Ney foram agredidos com raiva. Os olhos, assim como as nádegas,
riscados com caneta vermelha, um chifre despontava de sua cabeça e
um gigantesco xis cobria o artista de cima a baixo repetindo com ainda
mais virulência a censura dos censores. E havia também as palavras,
como as observações dos censores, escritas no encarte pelos amigos
de Joana com a mesma caneta vermelha dos riscos: “pederasta”, “viado
sujo”, “mata esse baitola”, “bicho asqueroso”, “sem-vergonha”, “cabra
safado” e “toma jeito de homem”. Ao ser exposto quase nu nas maiores
lojas do país, como a Mesbla, em São Paulo, e os shoppings que
começavam a se espalhar pelas capitais, Ney voltava a irritar militares,
parte dos civis e parte da imprensa justamente pela incapacidade de
frearem algo que, por não ser movido por um discurso apenas político,
não poderia ser simplesmente silenciado. O que fazer com Ney? Ignorá-
lo, pensou o editor-chefe do Jornal do Brasil, Walter Fontoura.

Uma jornalista que tinha entrevistado Ney em sua casa procurou a


produção do artista dias depois para dizer que a matéria não iria mais
sair por imposição de Fontoura. O editor não queria saber de matérias
sobre um homem com voz de mulher e que não era considerado por ele
apto a figurar nas páginas do Caderno B, o caderno de cultura do JB,
conforme relato da biógrafa Denise Pires Vaz, autora do livro Um cara
meio estranho, de 1992. Ney entendeu que seu nome fora proibido por
um período de dois anos de aparecer nas linhas do JB. Fontoura, morto
em 2017, confirmou sua indisposição com o artista, mas não disse ter
proibido que seus jornalistas escrevessem a respeito dele. Tárik de
Souza, crítico do jornal na época, diz não ter lembranças de nenhuma
ordem interna para não falar de Ney e, nos arquivos do próprio JB, não
existe um período de dois anos seguidos sem matérias acerca do
cantor. Havia da parte de Fontoura uma restrição a matérias sobre Ney,
como a da jornalista que nunca pôde publicar sua entrevista, mas o
veto, ao que tudo indica, teve seu tamanho potencializado por ajustes
da memória do cantor.
Ney soube que sua imagem criaria problemas assim que abriu o
álbum. Mas foi dessa maneira que radicalizou o próprio nu, ainda que
ele se revelasse mais sugerido que explícito sob o plástico da vergonha,
e decidiu, pela primeira vez, usar a censura em seu benefício. “Sabe o
que acontece com o que a censura implica? Só serve de promoção,
divulga mais ainda. É ótimo”, disse, em entrevista à jornalista Ana Maria
Bahiana. As primeiras matérias, de fato, abordaram mais o caso do
“lacrado pretão”, como O Globo se referia ao , do que o repertório.
Uma tarde de autógrafos no Rio, numa simples loja de discos no centro,
rendeu 150 assinaturas em menos de uma hora, iniciando uma
vendagem que não bateria nenhuma marca histórica mas que chegaria
aos 31 mil s em vinte dias. Ney dividia as reações diante de si entre o
deslumbre dos que o viam como uma necessidade social e a repulsa de
quem o queria longe de suas famílias. Uma existência que deixava de
ser artística para se tornar política com uma nudez que passava pelo
desbunde para lembrar que nada deveria ser proibido.
Gostar ou não de Ney era como dizer de que lado se estava em 1978
e, assim, até as irmãs Filhas de Jesus que haviam fundado o Colégio
Stella Maris, em 1935, ao pé do morro do Vidigal e com vista para o
Atlântico, decidiram se posicionar quando o chamaram para cantar no
teatro da escola. O valor de ingresso do show fora estipulado pelas
freiras para ajudar pessoas da favela vizinha que estavam em situação
de despejo ou que precisavam de benfeitorias básicas que iam de
canos para redes de esgoto, tijolos e telhas até algum dinheiro para a
refeição do dia seguinte. Sem iluminação, figurinos e as bananas
sugestivas de Feitiço, mas com a banda completa e todo o equipamento
de som profissional, Ney e a Terceiro Mundo se dirigiram à estrada do
Vidigal para a apresentação que começaria às 21h. Muitos na plateia,
gente da comunidade convidada pela direção, assistiam a um show
pela primeira vez. Dias depois, uma das ruas ao lado do colégio
amanheceu com uma placa improvisada pendurada num poste, e que
mais tarde estaria em todos os outros postes, trazendo um nome que,
mesmo grafado separadamente, dizia de que lado estavam as Filhas de
Jesus e o morro do Vidigal: “Rua Ney Mato Grosso”.
15. “Vem Cazuza, vem Cazuza”

Ipanema, 1973. Uma mulher em seus quarenta anos se aproxima


enquanto Ney aprecia as conchas e os colares à venda em uma
pequena loja de artesanato do bairro. Seu sorriso é fácil e luminoso.
“Você não é o Ney Matogrosso? Eu sou sua fã, adoro a sua voz. Olha, o
meu filho tem quinze anos e está usando um rabo de cavalo igual ao
seu. Minha sogra olha para ele e diz: ‘Dança, meu Ney Matogrosso’.”
Ney usava de tudo naqueles anos de Secos & Molhados, mas nunca
um rabo de cavalo. De qualquer forma, não conseguiria devolver nada
que não fosse algo caloroso para aquela senhora tão simpática. Seu
nome era Maria Lúcia, Lucinha, e seu filho, Agenor de Miranda, que o
país conheceria como Cazuza e Ney, inebriado de paixão, chamaria de
Caju.
Ipanema, 1979. O coração da Zona Sul do Rio já pulsa no Posto 9,
para onde ia quem era ou se considerava militante da mais pura
linhagem vanguardista daquele fim de década. Caetano, Gil, Gal, Zezé
Motta, Jorge Mautner, Nelson Motta, Nara Leão, Fernando Gabeira,
cantores, atores, jornalistas, escritores, poetas, surfistas e eles, Ney
Matogrosso e Agenor “Cazuza” de Miranda. Magro e com a pele cor de
sol, cabelos cacheados, dentes alinhados e um rosto desenhado pelos
mesmos traços da mãe, Cazuza era o “filho do João Araújo”, um
homem respeitado tanto pela imponência de sua testa franzida como
por sua escalada heroica desde a base da indústria fonográfica, como
vendedor de discos, até o topo, quando criou a portentosa gravadora
Som Livre, mostrando à Globo que suas novelas poderiam faturar muito
mais do que publicidade atraída por números de audiência. Cazuza e
Ney se viram pela primeira vez no Posto 9, com interesses mútuos e
silenciosos. Chegaram a ser apresentados por uma amiga em comum,
Yara Neiva, mas disfarçaram suas intenções até a tarde em que Ney
recebeu Yara sem saber que Cazuza também estava lá.
A casa de Ney não era mais na Carlos Góis. Com o bom dinheiro da
Warner e tudo mais que sobrava de shows e vendas de discos, ele tinha
se livrado do aluguel e comprado uma construção de três andares que
havia sido do ator Jardel Filho, na rua Sambaíba, no mesmo Leblon.
Um quarto para os hóspedes e outro para Luisinho no térreo, uma
grande sala que servia para as festas e um jardim no segundo andar e
um terceiro piso com outros dois quartos, banheiro e outra área ao ar
livre muito recomendada para a macaca Vitória, o gato Oto e os hábitos
recreativos dos visitantes. Um espaço sem quadros nas paredes nem
qualquer sinal de ostentação além dos apegos à natureza, como peles
de animais e lembranças de cenários. A única novidade para quem
conhecia Ney desde 1975 era o Escort 3 vermelho estacionado na
garagem no lugar da Brasília, vendida por um punhado de cruzeiros.
Yara resolveu contar algo enquanto Ney enrolava um baseado:
“Cazuza está aí”. “Como, está aqui?” “Ele está lá embaixo. Não disse
para subir porque achei que você poderia se incomodar.” “Imagina,
chame ele.” Ela o chamou e o filho de João Araújo chegou com uma
intimidade arrebatadora para ser recebido com uma meiota de Mandrix
e um trago de maconha. Por um tempo, ficaram assim, os três rindo à
toa e filosofando absurdos, Ney espalhado na cama e Cazuza sentado
no chão com as costas apoiadas no guarda-roupa. Quando Ney não
esperava, Cazuza se levantou subitamente, projetou o corpo sobre o de
Ney e perguntou: “Você me beija?”. Um disparo respondido com a
mesma velocidade: “Por que não?”. Grudaram os lábios e os corpos por
um bom tempo de duração, fazendo juras e mentiras sinceras nas quais
resolveram acreditar e viver a partir daquele instante.
Por um capricho do acaso, o território estava livre fazia pouco tempo,
desde que Zé, o namorado de Ney, havia conhecido outro rapaz e
terminado a relação mesmo depois de ouvir o parceiro dizer que eles
poderiam continuar juntos, apostando em uma relação aberta. Zé já
estava longe, mas se estivesse por perto seria certamente descartado
pelo turbilhão emocional que Cazuza trouxe assim que entrou por
aquela porta. Garoto de 21 anos nascido no Leblon e criado por um
período sob os preceitos católicos do Colégio Santo Inácio, onde as
famílias ricas do Rio protegiam seus filhos das influências mundanas,
Cazuza acessava em Ney um ponto mais profundo.
Aos 37 anos e acostumado a se apaixonar sem abalos e a se apegar
sem posses, Ney viu um Cazuza que muitos viam e do qual não
gostavam, mimado, egoísta, destemperado e insuportavelmente
inconsequente, e outro que se revelava o oposto de tudo isso, aquele
que deveria deixar homens e mulheres apaixonados por onde passava:
delicado, doce, amoroso, inseguro, sagaz e deliciosamente pervertido.
Mal assistiu a sua partida naquela tarde, Ney já queria vê-lo no dia
seguinte e no outro nem que, para isso, tivesse que ficar em casa
praticando uma mentalização até que a campainha tocasse: “Vem
Cazuza, vem Cazuza…”.
Cazuza veio e as noites não foram mais as mesmas. Depois de um
dia juntos, os dois saíram para jantar e dançar na mistura de
restaurante espanhol com boate selvagem Real Astoria, o , no
pequeno perímetro noturno conhecido como Baixo Leblon, mais
noticiado nas páginas policiais do Jornal do Brasil, que trazia detalhes
de batidas para prender vendedores de cocaína superfaturada nas
calçadas da Ataulfo de Paiva, do que nas colunas sociais, que
costumavam fotografar a suas mesas Tom Jobim, Chico Buarque e
Hélio Oiticica. Ney chegou usando uma camiseta com o rosto de
Cazuza e Cazuza usando uma camiseta com o rosto de Ney. Os dois
felizes, sem medo da infâmia nem das represálias de João Araújo, o pai
que Cazuza chamava de mafioso, sentindo que faziam uma entrada
triunfal. Quando não havia o amoroso Mandrix de Ney ou a instantânea
cocaína de Cazuza, eles continuavam se alimentando um do outro com
uma energia sexual inesgotável.
Yara Neiva estava sempre por perto. Cazuza tinha estabelecido com
ela uma conexão instantânea nas mesmas areias de Ipanema no dia
em que sua filha de quatro anos começou a brincar com o cachorro
perdido do cantor e ele se aproximou para buscá-lo. Saíram da praia
juntos, almoçaram num restaurante e Cazuza passou em sua casa, na
Lagoa. Ficaram grandes amigos, algo que, ainda no início dos anos
1980, significava muitas vezes transar sem expectativas amorosas, e
chegaram a se apaixonar por algum tempo.
Embora jovem, Yara era uma empresária milionária fundadora com o
ex-marido da marca Zoomp e que, afastada dos negócios, tinha voltado
para o Brasil depois de um período de um ano e meio em Paris. Sua
relação com Cazuza ganhou força no espírito do sexo aventureiro com
que conduzia a vida. Ela conta que estava ao seu lado na madrugada
em que a expressão “segredos de um liquidificador” foi forjada. Eram
tantas as pessoas que habitavam as fofocas da dupla que a conversa
parecia misturar num liquidificador as histórias proibidas. E teria sido ela
também quem recebeu não mil, mas algumas dezenas de rosas
roubadas da cesta de um homem que vendia flores pela noite do Baixo
Leblon. Yara via tudo o que se passava entre Cazuza e Ney com olhos
menos românticos e, talvez, um tanto tocados pelo ciúme. Quando
estavam a sós, ela ouvia Cazuza contemporizar sobre sua relação com
Ney, dizendo que não queria nada com ele além de amizade e que não
gostava muito quando transavam. Segredos de um liquidificador que, na
intimidade, poderiam significar também uma estratégia de sedução e de
diluição de algum mal-estar diante de Yara.
Muitos medos surgiam em Cazuza nos instantes em que Ney poderia
ser apenas seu. Recebê-lo na cama para ser penetrado não era algo
fácil e talvez houvesse fragmentos de uma herança católica ainda
depositados no fundo de sua alma rebelde que só seriam eliminados no
futuro. Ao mesmo tempo, penetrar Ney trazia muitas vezes dilemas
diante de um parceiro mais velho e experiente. Era aquilo mesmo? Não
era pouco? Ele estava indo bem? Ney o queria sempre e dizia que
Cazuza precisava se libertar das preocupações, entendendo que entre
os dois não deveria haver limites. O amor, para Ney, só se fazia pleno
nas liberdades do sexo e sem os territórios que separavam ímpetos
ativos e passivos. Aos poucos, a entrega se tornava mais ousada e
alguns dias na grande casa que a família de Cazuza tinha no
condomínio Fazenda Inglesa, na região de Petrópolis, no Rio, serviriam
para derrubar muros.
Cazuza e Ney viveram dias intensos, fumando, bebendo e transando
em todos os cantos da casa, sobretudo na banheira e na sauna.
Estavam também com Yara Neiva, e, no último dia, antes de voltarem
para o Rio, resolveram fazer mais uma das divertidas sessões de foto,
cada um com sua máquina, quando Cazuza descobriu que seu
equipamento estava sem filme. Ney abriu o dele e viu que o filme tinha
sido retirado. O de Yara também. “Isso só pode ser coisa do ‘mafioso’”,
disse Cazuza, com a certeza de que o pai, João Araújo, havia ordenado
aos funcionários que sumissem com qualquer vestígio de imoralidade.
Uma história nunca confirmada, mas que ganharia força nas sensações
persecutórias de Cazuza assim que João e Lucinha oferecessem ao
filho uma viagem para a estação de esqui em Megève, na França, com
passagens por Paris e Nova York, em companhia de uma namorada.
Cazuza disse a Ney que o pai deveria ter descoberto a relação dos dois
e que, com a viagem, queria separá-los. “Ele está querendo me tirar de
perto de você.” Ney entendeu que o parceiro deveria ir e fez uma
promessa: “Aproveita. Quando você voltar, eu estarei aqui”. Cazuza
aceitou o convite e chamou a amiga Patrícia Casé. Deixou seu carro
com a antena do rádio quebrada na garagem de Ney e partiu.

A nudez de Ney, ou a ideia de uma nudez sempre impedida de se


concretizar pelos dois últimos botões de sua calça, já não parecia ter a
mesma força em 1979. Ele havia sido intenso desde 1975, em seu
primeiro disco solo, com simulações de orgasmo, reflexos no espelho e
bananas audaciosas. Uma parte mais ponderada da crítica apontara
certa previsibilidade nos shows de Feitiço com relação aos anteriores e
outra, menos tolerante, dizia que Ney usava a transgressão com
esperteza e oportunismo pop. Se havia uma hora de mudar, ela parecia
ter chegado e Seu tipo, o novo álbum, tinha tudo para represar aquele
momento. Era o primeiro a nascer sob a aura de uma paixão, Cazuza,
com um conjunto de canções mais amorosas e as fotos mais bem-
comportadas de sua vida na capa e na contracapa, as primeiras sem
maquiagem, com jeans justo, camiseta regata e, no máximo, um
abdômen à mostra no encarte duplo. Parecia a ideia de um álbum que
deveria ser gravado para marcar a existência de um novo Ney,
pressionado pelas críticas, sucumbido à gravadora ou reavaliado por si
mesmo. Apenas parecia.
Assim que Mazzola se deparou com as músicas escolhidas por Ney,
soube que não teria direito a cota na escolha do repertório. Os créditos
conquistados com o sucesso de “Não existe pecado” não pareciam ser
levados em conta e havia uma dificuldade em entender aonde o seu
artista queria chegar. A gravadora cobrava por vendas melhores e
estranhava a aparente guinada careta de Ney, mas não existia abertura
para interferências externas além da direção no estúdio. Ao perceber
que um fracasso de vendas se aproximava, o produtor decidiu alertá-lo:
“Você sabe que esse disco não vai vender como o outro, né?”. E Ney
respondeu: “Não ligo, Mazzola. Eu não quero ser repetitivo”.
Sem a força radiofônica que a gravadora esperava, Seu tipo também
não significava um rompimento com uma discografia baseada no “tudo
pode” apontado pelo tropicalismo de Gil, Caetano e Os Mutantes. A
falta de um conceito que acabava se tornando o próprio no qual a
música seguinte poderia interditar o caminho que a anterior indicava e
ditar um novo que a próxima estaria pronta para interromper. Ao negar
que alguém o dirigisse, Ney não buscava uma unidade para os tantos
Neys que apareciam num mesmo álbum e não criava uma embalagem
que o faria chegar ao mercado mais fácil e, o que também interessava à
Warner, mais vendável. Vendo Mazzola trabalhar sem alcançar um
resultado tão promissor, Midani tentou uma cartada sutil ao perceber
Ney aparentemente migrando naquele instante para as canções de
amor: “Sabia que você poderia se tornar um grande cantor romântico?”.
Mas o artista desconversou, disse que a mudança não lhe interessava e
voltou às gravações.
Além de atuar nos detalhes, Mazzola sugeriu uma abertura radical
para que viessem outros produtores, quase um por faixa, e contratou os
melhores músicos da praça, eliminando, ao menos no estúdio, a banda
Terceiro Mundo. Sem poder acessar o repertório de Ney ou entender o
disco que estava em sua cabeça, se juntava a ele abrindo os cofres da
Warner para fazer um álbum com uma coleção considerável de ótimos
músicos e arranjadores. Por mais livre que fosse o conceito, também
havia peças recorrentes no tabuleiro de Ney. A canção de cabaré da
vez era “Seu tipo”, abrindo as portas para um fornecedor novo e
desconhecido, Eduardo Dusek, ainda sem dois esses no sobrenome,
parceiro de Luís Carlos Góis. Um fox elegante com dois jogadores do
time de Elis Regina nas bases, Hélio Delmiro na guitarra e Paulinho
Braga na bateria, além do piano de Lincoln Olivetti, que já desenhava a
linguagem musical dos anos 1980.
A canção de fronteira da vez, andina e festiva, era “Último drama”, de
Mauro Kwitko, sobre um poema de amor enviado numa carta pela
namorada, Carmen Seixas. Ao perceber que haveria um novo momento
de Luli e Lucina no álbum, Mazzola tentou interferir. Ele sabia da
predileção de Ney pelas meninas, de sua ligação espiritual com Luli e
do afeto por Lucina, que um dia havia sido namoro, mas entendia
também que naquele disco não existia lugar para a canção “Me rói” e
que Ney não deveria se sentir obrigado a incluir as autoras em todos os
álbuns. “Você não gosta delas, não é?”, disse Ney. Mazzola não insistiu
e chamou Oswaldinho do Acordeon para fazer a aposta do cantor valer
a pena. O peso-pesado Tom Jobim aparecia com “Falando de amor”,
arranjada por Dori Caymmi, e, de Carmen Miranda, era escolhido o
choro “Cachorro vira-lata”, de Alberto Ribeiro, gravada em 1937 e com
arranjos e bandolim de Pepeu Gomes, um afoxé bastante tímido de
Baby Consuelo e Abel Ferreira num clarinete mais que extrovertido.
Caetano tocava violão para sua própria versão de “Nature Boy”,
rebatizada de “Encantando”, de Eden Ahbez, um dos primeiros hippies
do mundo, e a afirmação sexual da vez respondia por “Ardente”, que
Joyce fez de maneira magistral. Os Secos & Molhados, que sempre
tinham vez, eram evocados em dois momentos: no belo arranjo latino-
americano de Joyce para “Rosa de Hiroshima”, executado pelo Grupo
Água, e na gravação de “Tem gente com fome”, que João Ricardo
compusera sobre os versos do poeta Solano Trindade, em 1975.
Censurada na época dos Secos, era liberada agora por força da
persuasão do departamento jurídico de Midani. Ela sairia também no
disco de João lançado no mesmo ano, Musicar.
Como a aura dos três Secos & Molhados rondava o estúdio — na
versão da música de João Ricardo, que recebeu solos da guitarra do
Mutante Sérgio Dias, e em “Rosa de Hiroshima”, de Gerson Conrad —,
Mazzola pensou na possibilidade de juntá-los fisicamente para a
gravação de alguma faixa, o que seria um acontecimento de grande
repercussão, mas Ney não aceitou a proposta. De qualquer forma, “Tem
gente com fome” se tornou um destaque no disco e ganhou um clipe
produzido pela Globo em que Ney, sem camisa, com os seus 53 quilos
bem visíveis, se equilibra em cima de um vagão de trem em movimento
por estações da Baixada Fluminense deixando ainda mais real o refrão
“Tem gente com fome”.

O retorno de Cazuza jogou Ney de volta às perdições e fez de


“Ardente” uma apropriada trilha sonora. “Procuro alguém tão singelo
como eu/ Que não se esconda das coisas naturais/ Não tenha medo do
fogo/ Nem do vento que carrega/ Pois afinal os elementos são todos
iguais.” Mas Cazuza parecia preocupado ao reencontrar um Ney
apaixonado, esperando-o conforme o prometido. Assim como já havia
dito a Patrícia Casé sobre a impossibilidade de entregar-se a alguém
quando lhe escreveu “não posso continuar porque você me ama ao
cubo e eu te amo ao quadrado, não posso te dar menos do que você
merece”, Cazuza também não queria criar falsas expectativas em
“paizinho”, como passou a chamar o namorado. Por sua vez, Ney sentiu
o parceiro inseguro com o rumo que a história poderia tomar e
esclareceu que, por ele, a liberdade continuaria sendo imprescindível.
Eles poderiam ter um ao outro e quem mais desejassem. Cazuza,
aparentemente mais aliviado, e Ney, entregue a alguém como nunca,
viveriam cada segundo sem firmarem nenhum acerto com o amanhã
até que o amanhã se tornasse um lugar insuportável.
Um almoço com duas amigas em um restaurante na Zona Sul poderia
ser vitimado pelas tempestades de Cazuza. Após três ou quatro doses
de vodca, ele achou a conversa careta e começou a se portar da forma
mais degradante possível, espumando, mudando a voz e encenando
um teatro ruim e constrangedor. Dias depois, já era a mais adorável
companhia do Rio para acompanhar Ney a uma das festas que
Guilherme Araújo promovia no alto do Pão de Açúcar, a Sugar Loaf
Carnival Ball, enquanto subiam em direção ao Cristo Redentor se
divertindo no bugue sem capota que Ney havia comprado meses antes.
A Sugar Loaf era uma noite para poderosos, ricos, famosos e quem
mais conseguisse um dos disputados ingressos com Guilherme para
assumirem fantasias das mais proibidas na pista de dança e em seus
arredores. Grace Jones, Gal Costa, Lauro Corona, Caetano Veloso, Ísis
de Oliveira, Boni, Danuza Leão, Ursula Andress, Franz Beckenbauer.
Todos eram logo reconhecidos pelos colunistas sociais. Cazuza chegou
vestido de bebê segurando uma mamadeira abastecida com cachaça e
abraçado a um Ney já desnorteado por todas as substâncias que
percorriam seu organismo e que em pouco tempo o fariam deixar de ser
ele mesmo: “O senhor é segurança?”, disse para o homem de terno que
o observava dançar. “Então me segura que vou cair.”
Segundo as sensibilidades de Lucinha, uma mãe que começava a
lidar com a possibilidade de seu filho gostar de homens, Cazuza e Ney
guardavam sentimentos além de admiração e amizade. As paixões de
seu filho por mulheres sempre pareceram autênticas, as relações com
garotos não passavam de boas amizades e não existiam gestos que
colocassem a masculinidade do herdeiro de João Araújo em suspeição.
Mas havia algo quando Cazuza bebia, uma fala, um riso, uma
delicadeza de mãos. Lucinha precisava saber mais para adentrar a
zona cinzenta do filho sem ser destroçada por ele nos primeiros
segundos e uma pista veio pela , quando Ney surgiu numa entrevista
vestindo a camiseta sem manga, listrada em branco e vermelho e com
o pequeno símbolo da marca Dolphin que ela comprara para o filho
numa viagem aos Estados Unidos. Antes de confrontar Cazuza com
suas desconfianças, ela foi a João Araújo. “Cazuza e Ney? Você está
maluca, mulher?”, disse o marido antes de, como fazia quando
discordavam, ameaçar interná-la. Ela então abordou o filho: “Me diz
uma coisa: você é viado?”. E Cazuza respondeu: “Mãe, por acaso eu
ando de quatro com uma galhada na cabeça?”. “Não.” “Então eu diria
que sou bissexual, gosto de meninos e meninas. Aliás, vou avisar uma
coisa: você não tem nada a ver com a minha vida.” Lucinha saiu do
quarto repassando os últimos vinte anos de mãe, ligando pontos e
criando culpas até encontrar o único pensamento que parecia confortá-
la em sua desolação: “Bem, melhor estar com Ney do que com um
vagabundo qualquer”.
Ninguém poderia livrar Cazuza dos males que circundavam seus
vícios e era justamente por um deles que os dias com Ney estariam
contados. Após três meses juntos, Caju sumiu. Ficou longe três ou
quatro dias até retornar à casa da Sambaíba cheirando a álcool, com as
roupas sujas e na companhia de um rapaz que Ney não conhecia e
entendeu ser um traficante. “Aí já é demais”, começou Ney. “Você some
e volta com esse cara!” “Ah, paizinho, você é mesmo muito careta.”
“Sim, eu sou, e você sabe que eu não gosto de cocaína.” Cazuza
cuspiu em Ney e recebeu um tapa no rosto no mesmo instante. “Saiam
da minha casa!”, disse Ney. A história, ou parte dela, terminava ali.
Cazuza e Ney não seriam mais um casal, mas permaneceriam ligados
por algum sentimento que, como suspeitava Lucinha, ia bem além das
roupas emprestadas.

Aberta por um hippie vendedor de colares de couro em Ipanema e


ator diletante em peças de um teatro infantil tão fofo quanto
depauperado, a década de 1970 fechava com Ney ganhando o Troféu
Villa-Lobos de melhor cantor de 1978, por Feitiço, e um cachê médio
por show estimado em 250 mil cruzeiros, igual aos de Caetano e
Alcione, maior que os de Jorge Ben (230 mil), Beth Carvalho (200 mil) e
Clara Nunes (150 mil), e menor que os de Maria Bethânia (350 mil),
Fagner (500 mil), Rita Lee (700 mil) e do nunca mais atingível Roberto
Carlos (acima de 1,1 milhão). O prêmio chamado na imprensa de “o
Oscar da música brasileira”, com um júri formado por jornalistas
renomados, era uma aposta da Associação Brasileira dos Produtores
de Discos e seus vencedores seriam apresentados num especial Sexta
Super em horário nobre da Globo. Ney batia um concorrente que tanto
havia escutado no rádio de casa, Agnaldo Timóteo, e subia no mesmo
pódio que teria Gal Costa (melhor cantora), Zé Ramalho e Renato
Teixeira (cantores revelação) e Zezé Motta (cantora revelação).
Agraciado na categoria “álbum mais vendido do ano”, Roberto Carlos e
a cifra de 1715280 cópias deixavam incrédulos os próprios
organizadores.
Seu tipo, realizado com todos os compassos que Ney queria, atingiria
a pior vendagem de um disco solo do artista, embora “Seu tipo”, a
canção, fosse bem nas rádios. Quando o ciclo de vendas do
terminasse com o início da era do , nos anos 1990, ele teria vendido
290 mil cópias. Sentinela, de Milton Nascimento, lançado em janeiro de
1980 e também produzido por Mazzola, encerraria o mesmo percurso
com 800 mil. Havia nos corredores da Warner uma expectativa de que,
depois das primeiras semanas animadoras de Feitiço, que bateria as
750 mil cópias no final da contagem dos s, Ney pisaria a terra dos
gigantes com seu primeiro milhão de cópias vendidas de um disco solo.
Mas, entre a cobiça dos executivos da companhia e a inegociável
postura de Ney, que não aceitava gravar nada que não lhe parecia fazer
sentido, Mazzola distraía os primeiros e fechava com o segundo. Cifras,
números, rankings e comentários feitos em salas de reunião nunca
eram repassados a Ney. O produtor já sabia qual era a resposta do
artista para rebater qualquer estratégia de mercado proposta pela
gravadora: “Vender 1 milhão para nunca mais poder vender menos do
que isso? Estou fora”.
A primeira decisão de Ney em 1980 foi dispensar o empresário
Guilherme Araújo antes de colocar Seu tipo na estrada. Depois de cinco
anos juntos, sentia a relação desgastada por assuntos ligados a
dinheiro. O mais grave havia acontecido na Bahia, quando Guilherme o
levou para cantar o repertório de Feitiço na Concha Acústica de
Salvador mesmo advertido de que, naquela época do ano, as chuvas,
como ocorrera com os Secos & Molhados, poderiam castigar o
espetáculo. Pois choveu, o público não compareceu e o show se tornou
um fiasco de bilheteria. Guilherme propôs a Ney dividirem o prejuízo e
tomou uma invertida. O cantor não assumiria nenhum centavo da dívida
contraída por algo de que havia alertado. Agora, com o fim de uma
temporada e início de outra, Carmela Forsin, profissional que tinha
trabalhado ao lado de Guilherme, passava a cuidar da sua carreira,
começando por erguer um show num Teatro Carlos Gomes maltratado
do teto às últimas fileiras. Ney comprou um escritório no Leblon para
abrir a Matogrosso Produções e foi às obras. Tirou do próprio bolso 300
mil cruzeiros para refazer a pintura e reformar as cadeiras, o que era
muito, mas quase nada perto do 1,6 milhão investido no figurino
desenhado pelo costureiro Hugo Rocha, no pagamento dos músicos da
banda Terceiro Mundo, que voltava à ativa nos palcos, na iluminação de
Jorge Carvalho e no cenário de Cláudio Tovar. Ney assumiu a direção
sem saber que seria ela o alvo das críticas mais pesadas assim que
subissem as cortinas do Carlos Gomes.
O jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, da Veja, escreveu na crítica
sobre a estreia de Seu tipo a observação de que, como cantor, Ney era
sempre excelente. E de bom, foi só: “Neste show de cenário triste — em
que um artista sensível busca o que pode fazer de melhor e não se fixa
em nada —, Ney não consegue sequer um bom roteiro musical”.
Antonio Chrysostomo, do Globo, também focou a direção depois de
alguns elogios. “Mal alinhavadas, as músicas vão se desenrolando —
em alguns momentos melhor seria dizer se atropelando — sem
qualquer aparente ordem que sirva à transmissão de ideias, emoções
ou até mesmo do mínimo que se pode pedir de um roteiro de show
musical.” Quando chegasse a São Paulo para uma temporada no Tuca,
a partir de 5 de novembro, o show seria melhor compreendido.
Desde a angústia pelas observações negativas ao show de 1975,
Homem de Neanderthal, quando estava realmente inseguro, Ney tinha
deixado de considerar os críticos, ou a parte dos críticos que não
gostava de seus espetáculos, por sentir que o que faria não seria
entendido por eles e por perceber a distância que havia entre o que
saía nos jornais e o que se vivia diante de uma plateia. O Carlos Gomes
lotava sessões a trezentos cruzeiros a entrada, “duzentos pelo show e
cem pela sauna que o público é obrigado a fazer no calor insuportável”,
como escreveu O Globo. O sucesso levaria Ney a seguir até o fim da
temporada com o mesmo roteiro, a mesma luz e a mesma direção
contestados pela crítica.

As apostas de que viria agora um Ney convertido e amansado,


redimindo-se dos pecados ao estilo banquinho e violão, terminavam
assim que ele retirava o paletó do falso terno branco sumindo também
com a falsa camisa e deixando as costas nuas e apenas um colete
sobre o dorso. Após um tempo, refugiava-se no biombo do cenário para
meter-se numa calça justa de malha branca desenhada com um abrigo
para seu pênis definindo um volume que nem aos bailarinos clássicos
era permitido assumir com tamanha insolência. Uma perturbação
mesmo para os héteros imperturbáveis da plateia. Israel Klabin, prefeito
do Rio, pareceu um deles ao pedir ao Jornal do Brasil que desmentisse
uma nota sobre o fato de ter comparecido à plateia de Seu tipo. “Está
desmentido”, anotou o colunista Zózimo Barroso do Amaral. “Mas ao
mesmo tempo fica registrado que o proprietário do Teatro Carlos
Gomes, sr. Paschoal Segretto, foi quem abriu a entrada lateral para que
o prefeito entrasse de carro na garagem sem ser incomodado e que o
administrador da casa, sr. Eduardo Wagner, foi quem conduziu o casal
até seus lugares.” E fechava: “Das duas uma: ou o prefeito tem agindo
na cidade um sósia perfeito ou se está diante de um misterioso caso de
ubiquidade”.
As músicas de Seu tipo estavam no espetáculo, curiosamente, em
meio a muitas outras inéditas na voz de Ney, como “Um índio”, de
Caetano Veloso, “Doce vampiro”, de Rita Lee, e “Ando meio desligado”,
dos Mutantes. Uma delas, merecedora de elogios até de Joaquim
Ferreira, no entanto, nunca havia sido gravada antes e não o seria
depois a pedidos de seu próprio autor, um nacionalista que não queria
seu nome envolvido com as diabólicas gravadoras multinacionais.
Geraldo Vandré já era uma espécie de lenda viva, reclusa e um tanto
mitológica em sua figura de sobrevivente às torturas pela postura
subversiva de suas composições. Ele havia se retirado de cena
escondido para não ser preso durante o Carnaval de 1969 e retornara
ao Brasil em julho de 1973 direto para um controverso interrogatório
numa sala do Dops no Rio de Janeiro. A partir daí, nada é confirmado
nem desmentido, mas a sedução da ideia de uma verdade, muitas
vezes, vale mais do que a própria: Vandré teria sido torturado, sofrido
uma invasão cerebral chamada lobotomia e, logo depois, enlouquecido.
E foi esse o homem que mandou chamar Ney Matogrosso para ir até
sua casa.
Ney estava em São Paulo durante a turnê de Feitiço quando foi ao
apartamento de Vandré, no Centro, perto da rua Augusta, convidado por
um amigo que tinham em comum. Entrou, se acomodou nas gentilezas
do anfitrião, aceitou suas fatias de pão e fez até um esforço para
acompanhá-lo numa taça de vinho. Estavam à vontade falando de
música e amenidades quando Vandré se transformou em algo que não
era ele. Começou a se contorcer, mudar a voz, rir e dizer frases
desconexas com uma teatralidade tão inverossímil que Ney se sentiu
obrigado a avisá-lo. “Vandré, pode parar. Isso comigo não vai colar.” Ele
então sorriu sem jeito e voltou a ser quem era num sinal inconsciente do
quanto o próprio artista que sempre afirmou nunca ter sido torturado
pode ter alimentado a lenda e até se divertido com ela. Mas, depois de
assistir ao teatro de Vandré, Ney resolveu dizer o que o levara até ali.
Ele queria uma canção. O compositor mostrou “Marina marinheira”, que
viraria “Carta aberta”, uma homenagem à Marinha em versos como:
“Nosso amor e o mar atento/ Nosso coração nas suas cores/ Carta
aberta ao pensamento/ Mas aquela luz dos olhos dela/ Que detém
qualquer tormento”. Ney poderia cantar, mas jamais gravar.

Tudo pareceu entrar em transe quando os números do calendário


viraram de 1979 para 1980. Um país de 120 milhões de habitantes era
governado por seu quinto presidente militar desde 1964, João Batista
Figueiredo, que assumira o posto sob as juras de seguir com a
reabertura política iniciada por Ernesto Geisel enquanto a Divisão de
Censura continuava canetando músicas, novelas, filmes e peças de
teatro. A inflação anual bateria os 99,2% rumo ao recorde de 242% em
1985, uma crise que Ney viu nascer em 1973, quando o aumento de
400% no preço do barril do petróleo derreteu qualquer ideia de “milagre
econômico”. Inflação, desemprego, dívida externa, censura e, na ponta,
o , mais uma vez, pagando a conta.
A probabilidade de quem sintonizava uma emissora de rádio em
1980, em São Paulo ou no Rio, se deparar com a dupla Air Supply
cantando “Lost in Love”, David Gilmour fazendo o solo de “Another Brick
in the Wall”, do Pink Floyd, ou com o Queen e sua estupenda “Crazy
Little Thing Called Love” era de 70%, e só de 30% a de encontrar
qualquer vestígio de música brasileira. Das cem canções mais
executadas, segundo um boletim da empresa de medição Informasom,
apenas 29 eram em português. A coleção da cota radiofônica nacional
lançada entre 1979 e 1980 não fazia feio: “Medo de avião”, de Belchior;
“Admirável gado novo”, de Zé Ramalho; “Começar de novo”, de Ivan
Lins, na gravação de Simone; “O bêbado e a equilibrista”, de João
Bosco e Aldir Blanc, com Elis Regina, sobre o retorno dos exilados
políticos anistiados por Figueiredo; e ela, “Seu tipo”. Se os tempos
ficavam difíceis para quem vendia arroz, que dizer para as lojas de s.
Alguns especialistas debatiam se não era o momento de aderir ao
formato do disco de dez polegadas, menor, para oito canções e não
mais doze, como discutiu um artigo da revista SomTrês: “Menor número
de faixas exige menos tempo de estúdio. Menor tempo de estúdio
representa número menor de horas pagas aos músicos para gravar”. A
vida não estava fácil, mas para os artistas brasileiros que não fossem
contratados pela alemã Ariola poderia ficar um pouco pior.

A Ariola chegou ao Brasil com uma estratégia para montar um casting


poderoso, pescando com rede num mar de tubarões. “Quanto?”,
perguntava de cheque em punho, pronta para tirar de qualquer
gravadora quem quer que simbolizasse equilíbrio entre lucro e catálogo,
ou seja, lucro contínuo. Assim, aparentemente com montanhas de
cruzeiros num momento de crise no mercado, tirou Chico Buarque da
Philips e Milton Nascimento da Odeon, abrindo a porteira em seus
primeiros anos para Elba Ramalho, João Bosco, Moraes Moreira,
Carlinhos Vergueiro, Toquinho, Marina Lima e Geraldo Azevedo
migrarem também. Mais que reunir um elenco competitivo, a Ariola
interferia num ecossistema instalado com mecanismos lícitos e ilícitos.
As chamadas luvas, o agrado que oferecia aos artistas para seduzi-los,
foi algo que, de pontual, se tornou usual para outras empresas. Azar
das gravadoras, sorte dos artistas, que passaram a ganhar, quando não
dinheiro, até carros importados para trocar de casa ou, simplesmente,
ficar onde estavam. E a propina que as companhias pagavam às
emissoras de rádio e aos programas de para que seus discos
fossem executados e seus artistas expostos em quantidades industriais
foi multiplicada por até cinco vezes. As outras gravadoras reagiram
decidindo parar de pagar o jabá e denunciaram os envolvidos
provocando demissões. Mas os programadores de s reagiram à
reação tocando, por vingança, mais Air Supply, Pink Floyd e Queen do
que Elis, Zé Ramalho e Ney Matogrosso.
A aquisição mais estratégica da empresa em terras brasileiras havia
sido ele, Marco Mazzola, o homem que coordenaria o setor artístico
identificando e convidando nomes relevantes e vendedores. Um
caprichoso ato do destino o tirara da Warner para colocá-lo nos braços
da nova companhia: infeliz com o rumo burocrático que sua vida
profissional ganhava, Mazzola blefou, dizendo ao chefe André Midani
que tinha sido convidado para trabalhar em outra empresa. Queria na
verdade forçar seu superior a rever as funções que exercia, cada vez
mais dentro de salas de reunião do que em estúdios de gravação.
Midani pediu algumas horas para pensar, o chamou e disse: “Ok, pode
tomar o seu caminho”. Surpreso, Mazzola saiu da sala desnorteado,
mas sua condição de desempregado durou apenas duas semanas.
Ramón Segura, um espanhol que se apresentava como presidente da
Ariola, gravadora que pertencia ao conglomerado gigante de mídia
alemão Bertelsmann, estava no telefone com uma proposta financeira
irrecusável para tê-lo como o operador dos sonhos dos investidores
europeus. Apesar de terem de lidar com as leis retrógradas de um país
antidemocrático na América do Sul que impactavam na produção de
discos, como a que obrigava as companhias a enviar lotes com todas
as letras das músicas a serem gravadas para que pessoas que
poderiam mal saber ler as aprovassem ou não, o Brasil era um dos
maiores mercados no mundo da música tanto pela quantidade de
compradores como pela qualidade dos compositores.
Mazzola aceitou o convite e chegou com carta branca. A estratégia
das sedutoras “luvas”, como o adiantamento financeiro aos artistas no
ato do contrato ficou conhecido, foi estabelecida depois que o produtor
colocou o departamento financeiro da empresa para fazer contas. Na
Ariola, os artistas ganhariam mais royalties, a porcentagem paga pela
vendagem dos discos. Algo em torno de 18% contra o máximo de 14%
que a concorrência concedia. E receberiam “luvas” com o dinheiro que
seria retirado da verba prevista para a divulgação dos discos. Se
apostasse mais na venda do álbum, o que acontecia em muitos casos,
a empresa mandava esse acordo às favas e investia mais para divulgá-
lo, mesmo já tendo feito seus vultosos adiantamentos.
A lista de contratados de Mazzola incluía, naturalmente, Ney
Matogrosso. Por valores bem menores do que os oferecidos a Chico
Buarque e Milton Nascimento, a Ariola o levaria mais por razões
emocionais do que financeiras. Embora mantivesse sob seus cuidados
a escolha do repertório, Ney já se sentia à vontade em deixar a
produção e a seleção de músicos e arranjadores nas mãos de seu
produtor. Mas, agora, Mazzola intuía uma chance maior de abertura em
sua relação com o artista. “Ney, temos de fazer um disco porreta aqui
na Ariola pra mostrar serviço, tudo bem?” “Ok”, disse Ney, “mas eu não
vou fazer nada que não me agrade.” Uma frase de Ney iniciada com
“ok” valia muito e, naquele contexto, poderia significar um primeiro
avanço no terreno das escolhas de canções assim que eles
resolvessem um último porém. Por contrato com a Warner, Ney deveria
gravar um terceiro disco para André Midani.
Sujeito estranho, feito com um quinto do investimento colocado no
álbum anterior, foi produzido por Guti Carvalho e continha todas as
músicas que não estavam no álbum Seu tipo mas que haviam sido
cantadas no show. A mesma estratégia usada em 1977 para a gravação
de Pecado, em sua despedida da Continental. Ou seja, tanto Ney como
a Warner cumpririam seus respectivos compromissos contratuais sem
maiores esforços. Haveria bons resultados, como a própria canção
“Sujeito estranho”, do iniciante Oswaldo Montenegro, arranjada por
Miguel Cidras, e o xaxado “Napoleão” e a fronteiriça “Coração
aprisionado”, de Luli e Lucina. Entravam também uma versão mais
despudorada de “Ando meio desligado”; “Um índio”, de Caetano; e duas
músicas de Angela Ro Ro, “Balada da arrasada” e “Não há cabeça”.
Mas a falta de investimento na produção cobrou seu preço na qualidade
do som, algo bastante perceptível para quem havia gravado Feitiço com
tecnologia de ponta nos Estados Unidos e Seu tipo repleto de
participações suntuosas. O disco com a imagem de Ney de terno e
gravata na capa não tocou e as vendas totais ficaram ainda abaixo de
Seu tipo.
16. Viado não, homem com H

Existiam bons argumentos para decretar vida nova naquele começo


de década, e o maior deles nada tinha a ver com mudança de
gravadora, troca de empresário, figurino, críticos, inflação, crise do ,
censura ou quantas vezes havia se tornado prudente rebolar num show.
As atenções de Ney estavam no dono do par de pernas que passou em
direção ao mar com o amigo Luiz Fernando Guimarães numa tarde de
sol no Posto 9. Ney as desejou até vê-las sumir num mergulho. “Vai ter
festa hoje, topa ir com a gente?”, perguntou Luiz, ao voltar. “Se aquelas
pernas forem, eu vou”, disse Ney.
As pernas foram e o seu dono, apesar de estar acompanhado por
uma garota visivelmente interessada em cada palavra que saía de sua
boca, era ainda melhor que elas. Marco Antônio de Maria, dezenove
anos, loiro, olhos azuis, quase um metro e oitenta e aluno de medicina,
percebeu o interesse de Ney e o retribuiu. Assim que o viu sozinho
sentado no chão e encostado a uma parede, Marco se aproximou sem
a garota e sentou-se também. Os joelhos se encostaram durante a
conversa e as vontades cresceram até que os dois partiram para
terminar a noite na cama de Ney.
A cama de Ney era um ato político que considerava os ciúmes
exacerbados, os sentimentos de posse e qualquer tentativa de se
enquadrar o afeto uma afronta a uma liberdade conquistada a muito
custo. Assim, para a geração que trazia as marcas dos anos 1960 nas
costas, trair não era ficar com outro alguém, mas não ficar com
qualquer um com quem se compartilhasse vontades. Na única vez em
que interrompeu o curso de sua natureza para ter uma relação selada
pela fidelidade com Eugênio, nos tempos de Brasília, Ney aprendeu
como o amor monogâmico entregue às mãos erradas poderia se tornar
um desastre. Agora, com Marco, um universitário vinte anos mais jovem
que apontava para o lado oposto ao de Cazuza, Ney ouvia uma voz
dizer que tudo estava prestes a mudar. Nele e no mundo.
Dias depois da primeira noite, Marco voltou para Campos dos
Goytacazes, no interior do Rio de Janeiro, onde estudava na Faculdade
de Medicina de Campos. Não deu uma semana e Ney foi encontrá-lo
com Luiz Fernando, que, enquanto dirigia, percebia um brilho na fala do
amigo. Metade dos alunos que conheciam Marco entendeu logo do que
se tratava enquanto outra metade perguntava o que o cantor Ney
Matogrosso fazia trancado com um estudante num dos quartos do
alojamento. Marco arrebatava Ney trazendo um universo maior do que
o circuito Posto 9-Baixo Leblon-Dancin’ Days. Um prodígio intelectual,
sonhador e focado, decidido a curar pessoas usando conhecimentos
científicos entrelaçados com descobertas espirituais. Ao traçar uma
linha do tempo pessoal, Ney concluía que Cazuza, com toda a potência
que representava, teria sido apenas uma preparação para a chegada de
Marco, o único homem que o faria pôr em risco o próprio amor livre ao
chamá-lo para viver sob o mesmo teto.
Quem conhecia Ney e notava seu entusiasmo já se perguntava,
afinal, quem era Marco. Marco Antônio de Maria seria apenas Marco de
Maria se o parto de sua mãe não tivesse sido a vitória dos médicos
contra o cordão umbilical que insistia em prendê-lo ao ventre materno
pelo pescoço. Quando ouviu seu primeiro choro, uma freira se lembrou
de que estavam em junho, mês de santo Antônio, e pediu aos pais da
criança que oferecessem o batismo ao santo. Marco Antônio vivia sob o
signo das virtudes desde a adolescência. Seu pai havia desenhado a
própria casa em que a família vivia e criara a concessionária de carros
Vimave, vendida para o empresário Silvio Santos. Bons tempos que
Marco não desperdiçou. Depois de um ano em intercâmbio escolar no
Canadá, voltou para o Brasil e iniciou a vida universitária aos
dezessete. Aprendeu a pintar quadros por observação, escrever
poemas por solidão e falar idiomas por mera curiosidade. Uma
recorrência de histórias pitorescas com personagens famosos como
coadjuvantes deixava a família perplexa, como se não fosse Marco
quem precisasse buscar o mundo, mas o mundo quem insistisse em
procurá-lo.
Sua sexualidade havia sido assumida para poucos, depois de dúvidas
e tentativas com pessoas do sexo oposto na adolescência. A irmã,
Mara, sua maior confidente, estava lá quando chegaram as primeiras
incertezas que só poderiam ter respostas na prática: meninas foram
logo descartadas. A mãe, uma companheira amorosa, o tinha como um
totem, mas o pai não lidava bem com a ideia de que seu filho poderia
gostar de homens e, se soube de algo, o soterrou sob toneladas de
silêncio. Mauro, o irmão, levou um susto quando soube. Eles estavam
juntos num voo de São Paulo para o Rio dispostos a passar alguns dias
num sítio que Ney havia comprado em Itaipu quando Marco contou que
era homossexual e que Ney não era um amigo, mas seu namorado.
Assim que se formou, Marco abriu um consultório no Rio, conseguiu
uma clientela cativa e firmou com Ney uma relação estável morando no
triplex da Sambaíba. Ney não sabia muito sobre seu trabalho até o dia
em que, gripado, aceitou ser atendido por ele. Deitado na cama do
consultório, fechou os olhos e relaxou por alguns minutos até sentir tudo
em sua volta começar a girar numa velocidade que aumentava cada
vez mais. Ele nunca soube o que se passou naquele dia, mas se lembra
de ter voltado bem melhor para casa.
Conviver com a capacidade de desapego emocional de Ney, no
entanto, poderia ser um sofrimento vivido solitariamente. Da mesma
forma que ele permitia a Marco uma vida sexual livre e sem cobranças,
não admitiria que alguém o aprisionasse. Na tarde em que viu o
parceiro acompanhado por um rapaz perto do calçadão do Leblon, Ney
parou, cumprimentou os dois e continuou a caminhar, inabalável. Se a
história se invertesse no dia seguinte, ninguém poderia cobrá-lo de
nada.
Mara percebia que o irmão, ao chegar do Rio para ficar uns dias com
a família, estava mais calado que o normal e entendia que algumas de
suas tristezas tinham a ver com ciúme, um sentimento que parecia doer
ainda mais em Marco pela impossibilidade de existir no universo de
Ney. Para quem lutava pelo amor livre, ciúme era um resquício do
mundo machista pré-revolução sexual, uma fraqueza mesquinha e fora
de época. Havia vinte anos de distância entre Marco e Ney, com o
transformador 1968 no meio, vivido quando eles tinham idades bem
diferentes. Uma fenda geracional que cobrava seu preço.

Cazuza também desejou Marco e Marco desejou Cazuza assim que


os dois se viram pela primeira vez. Ao perceber que estavam prestes a
ir para a cama juntos, o filho de João Araújo, que Ney já chamava com
amor de Cruz, a cruz que ele carregava, se aproximou para pedir a
bênção antes de pecar: “Ele é gostoso, paizinho?”. “É.” “Então eu vou
namorar o Marquinho, pode?” “Pode.” No dia seguinte, Cazuza voltou
coberto de glórias. “Transei com o Marquinho.” E Ney sorriu: “Eu sei, ele
já me contou”. Um tempo depois, Marco disse aos irmãos que havia
ficado com Cazuza para tirá-lo de Ney. Uma estratégia que,
naturalmente, não daria certo. Anos mais tarde, foi a vez de Marco levar
um terceiro elemento para a relação. Um rapaz de codinome Cacá, livre
e solto, que em poucos dias teria sua escova de dentes guardada no
armário de um dos banheiros e os braços enlaçando o pescoço de Ney
com uma insistência que começou a se tornar perturbação na cabeça
de Marco. O amor livre também dava sinais de fraqueza.
Uma cadeia movida pelo ciúme começou a desmontar o trio a partir
do momento em que Ney e Cacá seguiram para uma temporada de
shows em São Paulo. Marco sentiu Ney dominado pelo novo integrante
da relação, ou se deixando dominar, e, tomado de raiva, rompeu o
pacto, comprou uma passagem para São Paulo e viajou sem avisar. Ao
mesmo tempo, Ney sentia Cacá brincar com suas expectativas
marcando encontros e desaparecendo nas horas combinadas sem
avisar. Decidiu então ignorá-lo diante da fartura de pretendentes que
surgiam nos jantares que oferecia em sua suíte presidencial, todas as
noites após os shows, sempre com pratos pedidos no Famiglia Mancini
para não menos que dez pessoas.
Quando Marco apareceu de surpresa no hotel, Cacá não estava mais
na história. Mas, assim como os ciúmes, estar ou não na história não
era um argumento aceitável numa época em que essa condição era
sempre muito relativa. “Eu tenho vontade de dar uma porrada na sua
cara”, disse Marco no momento em que entrou na suíte e se deparou
com Ney cortando as unhas com um alicate: “Se eu fosse você eu teria
mais cuidado com esses olhos azuis aí”, ameaçou Ney. Marco partiu no
mesmo dia para refugiar-se por um tempo no colo da mãe, dona
Araceles. “Eu vou me separar do Ney, mãe.” Mas Araceles não precisou
saber dos detalhes para ter sua certeza: “Não faça isso, meu filho. A
gente sempre volta pra quem a gente ama”. Logo que terminou a
temporada de shows, Ney retornou ao Rio e não viu as coisas do
namorado. Marco já estava morando num apartamento na rua Carlos
Góis, no quarteirão paralelo ao de Ney. Cada um viveria em sua própria
casa sem terem um a chave do outro para descobrirem, depois do
casamento, os encantos de um bom namoro.

Se havia alguém que poderia cantar os versos de “Homem com H”


em 1981, esse alguém era Ney Matogrosso. Gonzaguinha não teve
dúvidas depois de ir ao estúdio para ouvir a canção e ajudar a tirar os
grilos da cabeça do amigo. Ney estava aflito. A ideia de entrar num
mundo sonoro que não lhe pertencia, o do baião, o assustava mais que
os deboches sexistas dos versos. Isso, aliás, era o que não o
assustava. Ney ia à Globo quantas vezes o chamassem para participar
do programa Os Trapalhões, mesmo quando os amigos lhe pediam que
não fosse em repúdio ao escárnio aos gays feito pelos humoristas. Ele
não conseguia ver maldade no jeito de Renato Aragão imitar sua dança
e preferia não cobrar correção de quem fazia as pessoas rirem.
Diante de Didi, Dedé, Mussum e Zacarias, Ney só conseguia dar
muita risada. Dedé Santana era um fã. Depois de ver com espanto as
aparições dos Secos & Molhados em 1974, acompanhou a carreira solo
de Ney bem de perto, indo aos seus shows desde a temporada de
Homem de Neanderthal. Chegava sozinho à bilheteria, comprava o
ingresso, pegava a fila e, mesmo já sendo o Dedé dos Trapalhões,
sentava-se como um anônimo em meio à plateia. Adriano Stuart, diretor
do programa, já havia sinalizado sua predileção por fazer esquetes
levando às gravações nomes da Globo como Tony Ramos, Fernanda
Montenegro e Eva Wilma. Assim, Dedé tomou coragem e escreveu um
quadro cujo convidado seria Ney Matogrosso. “Será que ele vai
aceitar?”, perguntou ao diretor. “Difícil, mas tenta”, respondeu Adriano.
No quadro de pouco mais de onze minutos, Didi, Dedé, Mussum e
Zacarias vivem juntos no mesmo apartamento. Dedé, Mussum e
Zacarias incumbem Didi de preparar uma imitação de Ney para ser
apresentada no show de talentos que haverá numa festa do
condomínio. A contragosto, Didi se põe a ensaiar sozinho ao mesmo
tempo que o Ney real chega para passar alguns dias na casa de um
vizinho dos Trapalhões, vivido pelo ator José de Abreu. Mas Zé, sem
espaço para acomodar o amigo, leva Ney para o apartamento ao lado,
onde os dois aparecem quando Didi está ensaiando. Sem saber que
Ney é Ney, o humorista pede ao amigo de Zé que faça um favor: já que
se parece tanto com Ney, que o imite na festa do prédio. O Ney real
disfarça, diz que não leva jeito para o negócio, mas Didi insiste e
começa — e aí o quadro fica impagável — a ensinar Ney a ser Ney.
Tudo o que Ney faz para ser Ney dá errado, segundo a avaliação de
Didi. Quando ele põe na vitrola a música “Las muchachas de
Copacabana”, Ney começa a dançar na sala mexendo os ombros
freneticamente. “Não, para”, diz Didi. “Aí tá mais pra galinha recebendo
santo. Ney Matogrosso é um artista no parco, ele entra firme, você já
entrou sem firmeza.” Põe o disco de novo e Ney, então, dança até se
aproximar e colar suas costas às dele. Didi tira o disco de novo. “Pode
parar, pode parar”, diz, enquanto Ney gargalha. “Você não encostou
legal, não fica legal. Mais uma vez.” Ele pede a Ney que dance abrindo
as pernas, com os pés esticados, como se fosse um bailarino, e põe
outra vez o disco, mas o tira assim que vê Ney exagerar um movimento:
“Aí você parece que está apagando ponta de cigarro no chão”.
De todos os quadros que escreveu para os Trapalhões, e eles seriam
muitos entre 1966 e 1995, Dedé guardaria o de Ney como uma de suas
três maiores realizações. Depois de sua exibição mais longa e de maior
sucesso como convidado do programa, cantores e mesmo artistas da
casa resguardados pela produção com pudores passaram a ser
chamados aos montes. Luiz Caldas, Sidney Magal e Ney Matogrosso
batiam sempre as melhores marcas de audiência.

Gravar um baião era mais difícil. Por mais sedutores que a condução
das sílabas os tornasse, jogando com tempos e contratempos para criar
um molho de fazer tudo ao redor dançar também, os ritmos nordestinos
não deixavam de ser um quintal em que Ney só havia brincado de
intruso uma vez, quando cantou “Napoleão”. Gonzaguinha ouvia atento.
“Nunca vi rastro de cobra/ Nem couro de lobisomem/ Se correr o bicho
pega/ Se ficar o bicho come// Porque eu sou é home/ Porque eu sou é
home/ Menino eu sou é home/ Menino eu sou é home// E como sou.”
A opinião sincera que muitas vezes poderia ser até dolorida do filho
do Rei do Baião valia muito. Seria autêntico Ney cantar algo do
paraibano Antônio Barros, gravado por Jackson do Pandeiro, Marinês e
pelo próprio pai de seu consultor, Luiz Gonzaga? Seria ele, Ney,
acusado de oportunismo por gravar um gênero em alta mas tão distante
de seu ? “Homem com H” já havia sido lançada pelo grupo Hydra
de forma tímida e sem divulgação pelo selo Copacabana, em 1974, e,
da mesma maneira, pelos paraibanos do trio de Campina Grande, Os
Três do Nordeste, também em 1974, no disco É proibido cochilar, da
. Mas ninguém naquele estúdio sabia disso.
Assim que conheceu a música por meio da paraibana Elba Ramalho,
com quem trabalhava desde o início de sua carreira de cantora,
Mazzola reservou a canção para Ney como um diamante. Se ficasse
como imaginava, com a voz em algum lugar entre a diversão e a
provocação, eles teriam um primeiro estouro na Ariola. Mas, logo que
ouviu a proposta, Ney disse não. “Eu, cantar isso? Você está louco?”
Uma rápida discussão começou no estúdio, o produtor insistindo e Ney
negando, até um acordo ser fechado. “Eu vou fazer a base e você
coloca a voz. Se não gostar, a gente tira”, disse Mazzola. “Mas se eu
não gostar, não vou gravar”, reforçou Ney. O produtor cumpriu o
combinado e Ney gravou a música e até se soltou um pouco mais,
como fizera em “Não existe pecado”. Quando a fita do teste ficou
pronta, Mazzola pediu a Ney que refletisse sobre o assunto e mostrasse
o resultado aos amigos. E não havia amigo melhor que Gonzaguinha
para essa missão.
Gonzaguinha ouviu e disse: “Se você não gravar essa música,
ninguém mais pode fazer isso”. Se soubesse do histórico de “Homem
com H” antes de procurar o amigo, no entanto, Ney teria poupado
tamanha agonia. Antônio Barros fez o xote em 1973, logo depois de
assistir a uma apresentação dos Secos & Molhados na . Teve uma
epifania vendo Ney cantar “O vira” e começou a compor algo com a
mesma vibração, transpondo o espírito do acordeom português para a
sanfona nordestina. Quem sabe, um dia, não poderia ser gravado pelo
rapaz de rosto pintado. Quando ainda fazia a letra, após alguns dias,
Antônio Barros sintonizou a Globo e se deparou com o personagem
Odorico Paraguaçu, da novela O Bem-Amado, vivido por Paulo
Gracindo, dizendo a Dirceu Borboleta ao ter sua coragem contestada
diante de Zeca Diabo: “Olhe, seu Dirceu. Eu nunca vi rastro de cobra
nem couro de lobisomem!”. E assim, com um quinhão de autoria
indireta reservada para Dias Gomes, o autor do texto de O Bem-Amado,
“Homem com H” esperou por Ney durante quase dez anos.
Com a aprovação de Gonzaguinha, Ney ligou para Mazzola e disse
“você venceu” a seu modo, já querendo tratar dos passos seguintes:
“Eu quero voltar amanhã ao estúdio para refazer ‘Homem com H’”. O
produtor festejou. Ao menos para a gravadora, a música despontava
como uma aposta do álbum para um sucesso comercial, o que de fato
aconteceu. Assim que ela foi lançada e começou a tocar centenas de
vezes por dia, o telefone da produtora não parou de chamar e Ney
entendeu o que Gonzaguinha queria dizer. Só ele poderia subverter um
típico deboche sexista nordestino convertendo-o em provocação,
confundindo cabeças homofóbicas e constrangendo as reações
machistas mesmo se sua intenção fosse apenas cantar. Uma reflexão
de costumes demolidora mas protegida pelo invólucro da diversão que
expunha e ridicularizava não os trejeitos gays de quem cantava, mas as
ideias dos próprios homens com H que o criticavam. E quem mais
poderia dizer isso sem se tornar uma caricatura? Gil, Caetano, Elis,
Chico? Ney gravou a música sem pensar em nenhuma dessas teorias.
O que ele queria era soar bem e fazer as pessoas dançarem, mas
aqueles dois minutos e 57 segundos mudariam sua vida mais uma vez.
O nascia. Mazzola conseguia seus créditos com Ney para voltar a
interferir no repertório, nada com o poder de virar o leme para um
horizonte ao qual o cantor se recusasse a ir, mas com boas sugestões
que vinham com um olho no gosto de Ney e outro nas expectativas das
rádios. “Vida, vida”, de Moraes Moreira, com Zeca Barreto e Guilherme
Maia, entraria para a trilha da novela Jogo da Vida, da Globo,
provocando ciúmes até em Moraes, que gravou a música em seu disco
lançado no mesmo ano sem obter nenhuma repercussão. “Mata virgem”
trazia um lado mais lírico de seu autor, Raul Seixas, numa parceria com
a mulher, Tânia Menna Barreto, de 1978. E “Deixa a menina” fazia um
retorno gaiato e festivo ao campo de Chico Buarque, que abordou Ney
para lhe confidenciar, bem-humorado: “Minhas filhas só gostam das
minhas músicas quando você canta”.
E havia ainda “Folia no matagal”, de Eduardo Dusek e Luís Carlos
Góis; “Viajante”, que a compositora Thereza Tinoco mostrou ao violão e
à luz de velas numa noite sem energia elétrica no Leblon; e o choro
“Espinha de bacalhau”, de 1937, de Severino Araújo e letra de Fausto
Nilo, em que Gal Costa ia às notas mais agudas de seus agudos e Ney
a graves difíceis que tiravam o brilho de sua voz, tudo acompanhado
pela Orquestra Tabajara. Cantar “Espinha de bacalhau” no tom original
da Tabajara tinha sido uma forma de poupar o grupo da transposição de
tonalidades para tantos instrumentos, mas Gal e Ney sofreram para
encarar regiões tão ingratas para suas extensões e acabaram
entregando uma gravação de muitos exageros. Ao ouvir o resultado,
Gal ficou indignada com Ney. “Mas como você pode deixar passar uma
coisa assim?” E Ney respondeu: “Isso foi coisa do Mazzola”.
Outro potencial hit não entrou no álbum porque seu autor, Guilherme
Arantes, preferiu quebrar o acordo feito com Mazzola e lançá-lo ele
mesmo no Festival da Nova Música Popular Brasileira da Globo, o
Shell, de 1981. Meses antes, Guilherme estava à procura de um novo
abrigo fonográfico. Suas baixas vendagens anteriores já o tinham
colocado na marca dos dispensados na Warner quando foi a Mazzola
pedir que o levasse para a Ariola. O produtor respondeu que não havia
vagas, mas fez uma contraproposta. Ney preparava repertório para um
novo disco e pensava em fazer uma homenagem à Amazônia, algo que
não ocorreu. Guilherme pediu então que o tema água fosse guardado
para ele, saiu do encontro e correu para casa. A água rondava seus
pensamentos desde que ele começara a frequentar casas de umbanda
e candomblé com devoção, incorporando pretos velhos e buscando a
orientação de sua orixá maior, mamãe Oxum, rainha das águas
paradas. Para ele, ser filho de Oxum explicava os choros fáceis, a força
da alma feminina e sua própria sensibilidade artística. Ao chegar em
casa, sentou-se ao piano e, em vinte minutos, compôs “Planeta Água”.
Ney, imaginou, seria o intérprete perfeito.
Uma das primeiras pessoas a ouvir a música na casa de Guilherme
foi o amigo e jornalista Okky de Souza. Arrebatado pela intensidade dos
versos e da melodia, Okky o aconselhou a guardá-la para ele mesmo a
defender no grande festival da Globo que aconteceria entre março e
setembro. Aquela era uma joia valiosa demais para ser entregue a
alguém, mesmo se esse alguém fosse Ney Matogrosso. Guilherme
concordou e, sem voltar a Mazzola, inscreveu a música no concurso.
“Planeta Água” provocou a maior euforia do festival transmitido pela
direto de um Ginásio do Maracanãzinho lotado, mas acabou perdendo
para “Purpurina”, de Jerônimo Jardim, interpretada por Lucinha Lins. Os
fãs de “Planeta Água” investiram uma vaia histórica contra a cantora
durante sua apresentação final e a fizeram deixar o ginásio
transtornada.

Outra grande perda do novo de Ney seria uma canção inédita que
o cantor ganhara de Tom Jobim chamada “Borzeguim”, um belo
exemplar da poética ecológica de Tom. Apesar de Mazzola não gostar
da ideia da gravação por considerá-la fora do contexto do álbum, foi o
pianista João Donato quem desfez o sonho de Ney de gravar, pela
primeira vez, uma canção inédita de Jobim. O compositor ensaiou em
sua casa com Ney por dois dias e indicou Donato para criar o arranjo.
Mas, ao chegar ao estúdio, João Donato falou com os músicos, tocou
“Borzeguim” ao piano uma ou duas vezes e se levantou em seguida: “A
gente continua amanhã, pessoal”. Nunca mais apareceu.
Uma figura importante no estúdio, convidada por Mazzola e que
poderia ter resolvido “Borzeguim” se não houvesse sido desconsiderada
por Jobim, era Cesar Camargo Mariano, responsável pelos teclados,
piano e arranjos de cinco canções: “Deixa a menina”, “Viajante”, “Mata
virgem”, “Vida, vida” e “De Marte”, das invencíveis Luli e Lucina. Cesar
não vivia seus melhores dias com Elis Regina. Havia traição na história
e ele estava bem perto de romper o casamento com sua companheira
de trabalho e mãe de dois de seus filhos, mas decidiu atender ao
telefone do estúdio e reagiu constrangido quando todos que estavam
por ali, incluindo Ney, ouviram o grito de Elis do outro lado da linha: “E
agora você vai ficar aí tocando com viado, porra?”.

Viado não, homem com H. Ney, Cesar, Mazzola, Gal e toda a tropa
de choque escalada para um disco pontuado por ao menos três
momentos pop, “Homem com H”, “Vida, vida” e “Viajante”, e embalado
por uma imagem de capa extraterrena que não dizia muito sobre o
conteúdo. Uma foto que mostrava Ney pairando sobre o planeta como
uma espécie de líder espiritual com uma águia pousada na cabeça e
seu nome formado logo acima pelas luzes de dois refletores. A águia
era, na verdade, um legítimo exemplar da espécie gavião-real, sagrado
em algumas tribos indígenas. Esquisito, mas tudo ideia de Ney. O
pássaro seria usado também no cenário do show e Ney diria nas
entrevistas que, ao chegar aos quarenta, sentia o momento de olhar
para as almas, o que não parecia fazer muita diferença na escolha das
canções. “Estou preocupado com o espírito, algo que nunca me tocou
antes. Sabia que, na hora certa, iria me voltar para esse lado”, disse ao
jornal Folha de S.Paulo talvez arranjando para si uma explicação para a
existência daquela águia, ou gavião-real. Olhar para o espírito era tudo
o que ele tinha feito nos últimos quarenta anos.
Águias, gaviões-reais, santos e orixás deveriam mesmo andar ao
lado de Ney no ano em que, embora sem querer, ele tornaria a viver
dias de superstar, pela primeira vez desde “O vira”. Homem com H lotou
a agenda de shows comercializados agora por Manoel Poladian. Depois
de se aproximar durante a turnê de Seu tipo, Poladian havia feito uma
oferta à então empresária do artista, Carmela Forsin, e comprara cerca
de quinze shows de Ney que já estavam vendidos na praça a preços
bem razoáveis. Ao mudar de empresário, Ney poderia ter renegociado o
valor dos próprios shows entregues com defasagem por Carmela antes
do estouro de Homem com H, mas sua exígua vontade de lidar com
números o levou a deixar tudo como estava. Sorte de Poladian, que
herdava um dos artistas mais rentáveis do país com uma interessante
margem de lucro, e de Ney que, de qualquer forma, passava a ter a seu
lado um dos negociadores mais habilidosos do showbiz. De Homem de
Neanderthal para Homem com H, ele saía das cavernas para se
transformar em uma potência.
Nove milhões de cruzeiros investidos, 42 pessoas na produção e um
tempo até curto, de uma hora e quinze minutos de duração, no qual Ney
visitava a si mesmo num passado nem tão distante assim. O diretor
Amir Haddad o queria solto e sem nostalgias desde a abertura, quando
três bailarinos muito jovens do Theatro Municipal, preparados pelo
coreógrafo Ciro Barcelos, surgiam num salto espetacular maquiados
como se fossem integrantes dos Secos & Molhados, pouco antes de
Ney entrar com uma máscara cantando “Mulher barriguda”, a mesma
com que os Secos iniciavam os shows. Seguia então indo e vindo no
tempo com “Ando meio desligado”, “Coubanakan”, “Deixa a menina”,
“Bandido corazón”, “Mata virgem”, “Três caravelas” e, claro, “Homem
com H”.
O striptease tinha seu momento previsível, como diria a crítica. Mas
era por sua antítese, a contrição de “Viajante”, em que apenas uma luz
iluminava o rosto do cantor, que o show receberia os maiores elogios.
“Ney levantou a multidão que inundava a sala”, afirmou Wilson Cunha,
na Manchete. “Não estaria por aí um caminho? Quebrar as cercas do
exibicionismo em que insiste se defender e mostrar, no maior ardor, o
extraordinário intérprete?” O crítico Zuza Homem de Mello, do Estadão,
escreveria uma análise sob o título “O melhor de sua carreira”:
Afinal, em que consiste o show de Ney: dança com música ou música com dança? Aí é
que está: na fortíssima projeção que assume no palco, com gestos, requebros, voos e
expressões, ele consegue embaralhar com total dignidade o nu e o vestido, o masculino e
o feminino, o estranho e o comum, o claro e o escuro, o metal e o couro, a voz e o
movimento, ou seja, como consequência de tudo, a música com a dança.

Depois de três semanas no Rio, concluídas com um show para 15 mil


pessoas no Maracanãzinho que o Jornal do Brasil descreveu como “um
transe coletivo”, Ney chegou pesando 51 quilos para a temporada de
São Paulo, no Palácio das Convenções do Anhembi. Seu peso médio
era sessenta, mas nem a água dos quatro cocos que tomava por dia, as
três colheres de mel e as quatro pílulas importadas dos Estados Unidos,
uma delas à base de alfafa, conseguiam repor as perdas do palco e de
fora dele. Uma insaciável busca da mídia por entrevistas e participações
em programas o levou a lugares que projetaram ainda mais sua figura.
No dia 26 de julho, gravou para a Globo, no Teatro Fênix, a Série
Grandes Nomes, um musical produzido por Daniel Filho, para uma
plateia de atores e atrizes estrelados da emissora que rendia na grade
de entretenimento uma das maiores audiências da casa. Ney aparecia
em grande forma vocal e física, dono da cena e com uma consciência
de palco que fazia a plateia de famosos morder os lábios. A base seria
o show do Canecão com algumas adaptações e, conforme perceberia
só no final, muitos cortes.
A Globo pediu a inclusão, como convidada, da atriz Marília Pêra, que
chegou de Carmen Miranda cor-de-rosa para cantar as marchas “Taí” e
“Eu dei” depois de Ney apresentá-la como “uma das pessoas que tem
mais coragem de viver que eu conheço”. Uma coragem que ele não viu
dos produtores quando assistiu ao programa. Afinal, onde estava o
momento em que havia cantado “Vida, vida” deitado de costas coladas
com um dos bailarinos que usava só um tapa-sexo? Onde estava a
parte em que cantava com outros dois dançarinos também seminus,
que tiravam seu figurino até deixá-lo como eles? E onde estavam os
mesmos bailarinos que não apareceram na edição final acendendo sua
cigarrilha antes que ele cantasse “Bandido corazón”? Ney sentiu-se
censurado por talvez ter esquecido de que, apesar de uma aparente
alforria promovida por censores que não souberam o que fazer com
“Homem com H”, ainda era 1981 e a reabertura anunciada pelo
presidente João Batista Figueiredo não passava de uma promessa.
Uma semana antes da estreia em São Paulo, outra aparição na
provocou surpresa em quem pensava que Ney acordava, tomava café e
saía de casa para passar o dia nas ruas vestido de sunga e com uma
pena de pavão-do-congo colada à testa. O programa de entrevistas
Canal Livre não deixava de ser uma espécie de complemento ao que
havia mostrado o Grandes Nomes. Depois de só cantar na Globo, ele
teria tempo e espaço para falar na Bandeirantes, sem maquiagem nem
figurino e diante dos entrevistadores Caetano Veloso, o psicanalista
Eduardo Mascarenhas, a escritora Margarida Autran, o publicitário
Washington Olivetto e o cineasta Neville d’Almeida. Ney, pela primeira
vez, aparecia numa emissora de falando de si e do mundo que
percebia à sua volta com mais profundidade. Mais de uma hora de
programa em que, entre muitas reflexões, revelava a Caetano que vê-lo
naquela tarde em Brasília, vestido com roupas cor-de-rosa dos pés à
cabeça saindo de um hotel com Gil, o fez ter certeza do que queria para
sua vida.
Mas Ney estava nervoso e disse mais do que devia a Caetano, numa
espécie de atropelo de ideias. Ao falar de censuras, afirmou que fez
pelo país o que Caetano havia tentado fazer. O “tentado” pegou mal e
Caetano, um tanto indignado, sorriu tenso como se Ney não soubesse o
que dizia. “‘Tentado’ é ótimo”, disse o baiano, preso e exilado nos piores
momentos da ditadura. O entrevistado procurou justificar-se, mas não
houve jeito. Apesar de saber que ia longe em suas afrontas ao sistema,
não queria deixar a impressão de não reconhecer o que Caetano
realizara e o quanto pagara com a própria liberdade por suas maiores
realizações.
As vendas do disco subiam a esferas mais altas depois dos números
tímidos de Seu tipo e Sujeito estranho. Da marca de 205 mil cópias,
elas voavam para 620 mil com Homem com H. De São Paulo, onde a
temporada seria prorrogada por força dos ingressos esgotados para
todas as sessões, o show migraria para Porto Alegre, Curitiba, Salvador
e Fortaleza até chegar ao Recife com cuidados contratuais inéditos para
os padrões de Ney: um esquema planejado com seis seguranças,
camarim com espelho rodeado por luzes, trinta garrafas de Coca-Cola,
trinta de água mineral e, para os trajetos, um Ford Galaxie com ar-
condicionado, uma sala de estar sobre rodas.

“Agora, com vocês, a mentirinha de Ney Matogrosso: ‘Homem com


H’!” Um dos locutores do Recife criou quase que um bordão para que
outros o imitassem quando anunciavam a música nas emissoras locais.
E Ney, com um bom histórico de imprevistos em suas passagens pela
capital pernambucana, voltava ao Geraldão com seu nome, mais uma
vez, nas páginas policiais. O Sindicato e a Ordem dos Músicos de
Pernambuco ameaçavam embargar o show. Segundo eles, o contrato
assinado pelo empresário Manoel Poladian trazia valores subfaturados.
Uma matéria no Diario de Pernambuco informava que Ney aparecia
apenas como músico e que receberia 10 mil cruzeiros quando, na
verdade, ganharia 1,6 milhão pela apresentação. Suspeitavam que as
cifras vinham menores para que a mordida das taxas, obrigatórias por
lei, também fosse menor.
Poladian ameaçava processar os representantes por crime de
extorsão e garantia aos jornalistas que haveria show de qualquer
maneira. Ney, conforme o Diario de Pernambuco, não tinha sido
avisado do imprevisto para não se desgastar emocionalmente. Uma
segunda reportagem no mesmo jornal no dia seguinte, o dia da
apresentação, sob o título “Matogrosso paga diferença que devia aos
músicos”, falava em vexame, dizia não haver sentido em um grupo
cobrar oitocentos cruzeiros o ingresso para um show que seria visto por
15 mil pessoas e declarar que Ney receberia apenas 10 mil de cachê. O
caso fora encerrado poucas horas depois da denúncia e a tempo de
manter a apresentação de pé. A produção reconhecera os erros nos
valores — o cachê real do cantor seria de fato de 1,6 milhão de
cruzeiros —, refizera as contas e pagara a taxa de 1% que devia ao
sindicato pelo espetáculo. Mas o preço da fama mandaria outro boleto
ainda antes da meia-noite. Quando o show estava para começar, a
Polícia Militar sentiu cheiro de tragédia e decidiu fechar os portões do
Geraldão mesmo sob os protestos das 2 mil pessoas com bilhetes nas
mãos do lado de fora. E lá se foram muitas delas registrar suas agonias
na delegacia.
As rádios tocavam “Homem com H”, “Viajante”, “Deixa a menina” e
“Vida, vida” aos montes. Ao sair para receber por Ney os direitos
autorais mensais de intérprete, Luisinho usava botas para esconder em
seus canos altos os maços de notas pagos pelas execuções. A revista
Veja, que havia acabado com Seu tipo, fazia agora um balanço com os
melhores shows da temporada: Elis Regina suportava seus fantasmas
pessoais para subir ao palco do Canecão, de São Paulo, e apresentar o
espetáculo Trem azul, Caetano Veloso conquistava as “plateias mais
jovens” com a temporada de Outras palavras, e Ney, com quase cem
apresentações e visto por mais de 150 mil pessoas, exibia, segundo a
revista, “uma voz amadurecida e pleno domínio do espaço cênico”.

As vidas de Ney e de Elis voltaram a se cruzar nos camarins de um


palco montado em um campo de futebol de Taguatinga, no Distrito
Federal: o Estádio Elmo Serejo Farias, o Serejão, ou Boca do Jacaré.
Os dois e mais os sanfoneiros Luiz Gonzaga e seu herdeiro em
preparação Dominguinhos haviam sido contratados para fazerem os
shows de encerramento do Fico, o Festival Interno do Colégio
Objetivo, que apresentaria no início da tarde os alunos cantores e
compositores vencedores da temporada. Mas um dia chuvoso
afugentou a plateia de não mais que 6 mil pessoas, um quinto de sua
capacidade, embora a entrada fosse gratuita. Ainda assim, Elis entrou
em choque ao ouvir seu nome ser chamado pelo apresentador.
Com os olhos arregalados e uma garrafa de uísque nas mãos, dizia,
parada no corredor, que não poderia fazer aquilo. Ney a viu, se
aproximou e a segurou pelos braços ao lado do secretário Luisinho.
Depois de um tempo tentando acalmá-la, decidiu ser mais enfático:
“Você vai entrar lá e vai arrebentar”. A frase surtiu algum efeito e Elis se
acalmou e se dirigiu ao palco. De fato, e apesar das falhas no som
durarem mais da metade do show, ela cantou seis músicas de Milton
Nascimento e fez um descarrego emocional tão poderoso em “Se eu
quiser falar com Deus”, de Gilberto Gil, que Ney nunca mais se
esqueceria daquela noite.
Quando chegaram ao hotel em que estavam hospedados, em
Brasília, Elis pediu a Ney que fosse a seu quarto para passarem a
madrugada só os dois, sem testemunhas, contando histórias, trocando
aflições, rindo e ouvindo música. Ele foi, ainda perplexo com o que vira
no Serejão, e Elis contou que já tinha gravado a canção de Gil, mas
que, por falta de liberação, a faixa não havia entrado em seu último .
Aos poucos, os dois se soltavam mais e se divertiram lembrando da
forma como a mídia explorava até as suas sexualidades. Elis gargalhou
jogando a cabeça para trás quando Ney disse que não era só dele que
falavam: “A sua fama lá em São Paulo é de que você pega mulher,
Elis”. Ela então foi até a bolsa, apanhou a caixinha com uma fita
cassete e a colocou para tocar em um aparelho que havia no quarto.
Sua voz surgiu cantando um bolero sem pressa que deixou Ney
extasiado mais uma vez. Era “Me deixas louca”, do mexicano Armando
Manzanero, que Elis tinha acabado de gravar e que estava ali, com
seus documentos, pronta para ser ouvida sempre que a vida parecesse
mais nublada. Quando já estavam íntimos, Elis foi até a mesa preparar
duas carreiras de cocaína para cheirarem, uma para ela e outra para
Ney. E assim seguiram, ouvindo músicas, rindo e cheirando até a
madrugada.
Ney foi para o seu apartamento e adormeceu. Pela manhã, quando
se preparava para o café, viu um bilhete no chão passado por debaixo
da porta:
Ney, gracinha querida! Adorei te encontrar. Ter estado mais próxima da sua beleza e da
sua alma que antevi grande e generosa. Sem enganos. Espero que esta noite marque o
começo de uma relação mais forte e mais intensa entre a gente. Mesmo. Gosto de você
não é de hoje e esperei muito a hora de nos acercarmos. E foi linda essa hora, obrigada!
Sempre que você tiver vontade e/ou necessidade, me procure que encontrará uma
pessoa que te quer bem e que será solidária e terna. Disponível. Beije Luisinho por mim.
Adorei tudo. Amei ter estado com vocês. Até sempre. Um abraço amigo e companheiro da
Elis.

Apenas três meses e quinze dias depois, Ney dirigia seu Escort a
caminho da casa de Mário Troncoso, em Itaipu, quando a programação
do rádio foi interrompida para que se noticiasse a morte de Elis. Ela
havia sido encontrada desacordada naquela manhã, no quarto de seu
apartamento, em São Paulo, e levada ao Hospital das Clínicas. Chegou
a ser socorrida e teve o peito submetido à alta voltagem dos
desfibriladores cardíacos, porém não resistiu. A causa ainda era
apurada, mas já se falava informalmente em ingestão de cocaína
misturada a bebida alcoólica. Ney sentiu primeiro como se alguém ou
algo tivesse batido em seu carro. Depois, enquanto o locutor seguia
com os detalhes da notícia e ele já não ouvia mais nada, foi como se
uma tristeza imobilizadora atravessasse seu corpo e retirasse suas
forças. Ele estacionou no acostamento e ficou ali por algum tempo em
silêncio, antes de voltar à estrada.
17. Jonny e João

Eram sempre dois Neys, o da voz e o do corpo, e os dois atingiam um


ponto mais equilibrado desde o começo da temporada do show que
ficou conhecido como Homem com H, no Canecão, sem que nenhum
traço defenestrado pelos críticos, como os arroubos eróticos que eles
consideravam cada vez mais desnecessários, fosse retirado de cena.
Quase 1 milhão de pessoas havia assistido ao espetáculo pelo país e a
Associação Paulista de Críticos de Arte, , julgou aquela a melhor
apresentação de 1981 enquanto Djavan levou o prêmio de melhor
compositor, Gal Costa o de melhor cantora, e uma dupla improvável,
Ney e João Gilberto, juntos, o de melhores cantores. A crítica, ou boa
parte dela, se rendia a Ney por força do universo que havia a seu redor.
De repente, ficava difícil tratar como “uma rameira” o mesmo homem
que tinha sido elogiado por Tom Jobim, cantara com João Gilberto e
fora convocado para gravar a pedido de Vinicius de Moraes. Um dos
últimos pedidos de Vinicius.
Depois de duas semanas trabalhando com Toquinho para musicar os
poemas do livro A Arca de Noé, que seriam lançados em um
produzido por Fernando Faro e formariam o musical que daria à Globo
um primeiro Emmy, entregue pela Academia de Artes e Ciências
Televisivas dos Estados Unidos, Vinicius passou a madrugada
finalizando a canção “São Francisco” já sabendo que seu pedido seria
atendido: Ney iria cantá-la. De todos os artistas que estariam no álbum,
entre eles Chico Buarque, -4, Milton Nascimento, Alceu Valença,
Moraes Moreira, Fábio Jr. e Walter Franco, apenas Ney havia sido
escolhido por Vinicius. Às 4h30 da manhã daquele 9 de julho de 1980,
tendo repassado o repertório do álbum e afinado os versos de “São
Francisco”, o poeta se despediu de Toquinho e se deitou. Às 6h,
começou a passar mal e uma vizinha médica o socorreu, mas era tarde.
Antes que a ambulância chegasse, Vinicius de Moraes, 66 anos, não
resistindo ao edema que levava nos pulmões, partiu.
Os críticos e o país inteiro logo veriam Ney pela ao lado de João
Gilberto. Um especial da Bandeirantes dirigido pelo mesmo Fernando
Faro juntava os opostos em dois banquinhos e um violão para cantar o
samba “Curare”, do compositor dos anos 1930 Bororó, durante o
musical chamado João Gilberto — A arte e o ofício de cantar. A outra
convidada era a filha do baiano, Bebel Gilberto, que estava preparada
para cantar o samba-canção “Linda flor (Ai, ioiô)”, de Henrique Vogeler,
Luís Peixoto e Marques Porto. Seriam duas noites de gravação com
plateia no Teatro Cultura Artística, em São Paulo, e, apesar de os
convidados não terem de pagar um centavo para estarem ali e saberem
que tudo deveria girar controladamente em torno de uma gravação para
a , muitos se comportavam com as expectativas, a disposição e a
impaciência de quem aguardava um concerto no Theatro Municipal.
Às 21h30, com os trinta minutos de atraso começando a pesar nos
ares do Cultura Artística, Ney caminhava pelos bastidores pronto, de
calça bege sóbria e jaqueta marrom sobre uma camiseta branca,
quando passou pelo camarim de João e percebeu a porta
imperturbavelmente trancada. Imaginou que João estivesse rezando.
Uma hora depois, às 22h30, quando não havia mais dúvidas de que
nem o desfiamento de um rosário demoraria tanto tempo, Ney sondou o
camarim mais uma vez e constatou que a porta continuava trancada. A
agonia diante do atraso aumentava e Ney não entendia o que levava
João a agir daquele modo sabendo que um teatro inteiro o esperava.
Mas quem entendia João? Quem poderia julgá-lo? As pessoas sabiam
quem estavam vaiando? João não era deste mundo e isso tinha ficado
claro num passado não muito distante, no dia em que o baiano tocou a
campainha de Ney com o violão nas mãos e um punhado de maconha
no bolso.
João Gilberto chegou para uma visita-surpresa ao triplex da
Sambaíba. Sabia o endereço desde o dia em que Ney fora a sua casa
salvá-lo com um gravador numa tarde estranha. Ney levou o aparelho,
ensinou-lhe como fazê-lo funcionar e permaneceu calado num canto da
sala durante horas enquanto João gravava alguma canção tocando e
ouvindo o que havia acabado de tocar para voltar a fita e começar a
gravar tudo de novo por muitas vezes. Quando quis acender um cigarro,
Ney pediu permissão e João apontou a janela sem dizer nada.
Agora, era João quem ia à sua casa não por afinidades musicais —
suas visitas nunca tiveram interesses artísticos — mas por puro prazer.
O triplex de Ney, alguém lhe disse, era um achado, o lugar perfeito para
tocar violão olhando a floresta do Alto Leblon se derramar sobre os
cômodos dos fundos e desfrutando de uma paz que não seria
interrompida por ninguém. Um tempo depois de recebê-lo e acomodá-lo
numa cadeira ao ar livre, Ney entendeu que o que quer que fosse
acontecer ali levaria horas e disse que tinha de sair, mas o visitante não
se incomodou. João despediu-se de Ney com um “vá com Deus” e ficou
um bom período ao lado de Luisinho defumando sequências de acordes
em nuvens de maconha.
A porta do camarim se abriu às 23h e João seguiu para o palco.
Alinhado em terno cinza, camisa riscada de branco e azul e sapatos e
meias pretas, sentou-se no centro, ajustou o violão e pediu um som um
pouco mais redondo do que aquele que os microfones de captação
direcionada da produziam. Antes de começar a testar seu
instrumento, percebeu um ruído vindo da sala sem nenhum tratamento
acústico e descobriu que, na verdade, se tratava de uma vaia. “Vocês
estão me vaiando?”, perguntou. Um espectador disse: “Sim, estamos!”,
e ele se retirou enquanto os protestos cresciam. Depois de uma
debandada do público, só restava um terço da plateia quando João
voltou como se nada tivesse acontecido. Sereno e concentrado, iniciou
uma apresentação sem interrupções. Cantou “Brasil pandeiro”,
“Amélia”, “Feitiço da Vila”, “Bahia com H”, “Rosa Morena”, “Valsa do
adeus” e “Anoiteceu” para então executar a introdução de “Curare”
olhando apenas para a mão esquerda no braço do instrumento
enquanto Ney chegava ao palco por trás e sentava-se ao seu lado. Sem
ganhar nenhum olhar e nenhum aceno, o cantor sentiu a harmonia se
aquietar sobre o ritmo e o volume da música baixar como se João o
recebesse com um beijo.

O Ney que refletia sobre o Brasil, exibido no Canal Livre, que sabia
cantar sem usar o corpo, como havia feito com João Gilberto, e que,
apesar de nunca se dirigir verbalmente à plateia em seus shows,
assumia posturas cada vez mais incômodas sobre os mecanismos de
censura era descoberto pela imprensa. Os jornalistas perceberam o
potencial de suas frases no início dos anos 1980 e passaram a procurá-
lo não mais ou não apenas pela música que fazia, mas para voltarem à
redação com capas garantidas para seus cadernos de cultura. “A
propósito, como você está vendo a censura, hoje?”, quis saber uma
repórter do Jornal do Commercio. “Acho que ela está de novo fazendo
presença. A censura é estúpida, desconexa e não tem critério. Ela tem
o poder, a força, e por isso é arbitrária”, disse. “A censura não marca
você sob pressão, devido ao seu jeito de se apresentar no palco,
seminu?” “Não. Agora, se quiserem me impedir de existir, têm que me
prender, amarrar, ou jogar no mar. Porque eu sou desse jeito e não há
lei no mundo que me impeça de ser assim. E para impedir que me
vejam, só prendendo, porque se eu estiver amarrado numa cadeira e
me deixarem cantar, os meus olhos garanto que vou revirar e mostrar
tudo que estou passando.”
O mesmo Ney descoberto por João, Jobim e Vinicius continuava
conhecendo seus amores e seus destinos sob o sol do Posto 9 de
Ipanema. E foi numa dessas colheitas de verão que chegou Leonardo
Jaime, um novo amigo que se tornaria colaborador de canções. Sagaz
e bem-humorado, o goiano radicado em São Paulo sabia que o melhor
lugar para alguém que quisesse se sentir vivo no Rio dos primeiros
anos da década de 1980 era bem ali, na praia, em frente ao hotel Sol
Ipanema, esbarrando em Eduardo Dusek, Fernanda Abreu, Regina
Casé, Luiz Fernando Guimarães, Pedro Bial, Deborah Colker, Cazuza,
Marco de Maria e Ney Matogrosso.
Leo havia formado a banda Nota Vermelha, da qual os amigos da
Blitz tiraram um dia a bailarina Fernanda Abreu, e fora convidado para
cantar num grupo inspirado nos Rolling Stones com nome de
personagem de desenho animado, piloto de caça alemão ou algo do
gênero. A história se deu no dia em que o guitarrista Roberto Frejat viu
Leo cantar no bar Emoções Baratas, aberto pelo humorista Cláudio
Manoel para arrecadar dinheiro em prol da criação do jornal Casseta
Popular, e imaginou que sua voz seria perfeita para cantar as músicas
do Barão Vermelho. Mas Leo, compromissado com dois grupos, o Nota
e outro já cheio de demandas chamado João Penca e Seus Miquinhos
Amestrados, agradeceu, explicou a situação e indicou uma pessoa que
poderia dar conta do recado: Cazuza.
Mas, para Ney, Leo levaria um rock considerado pelo regime como
sendo de alta periculosidade e, segundo a visão persecutória dos
militares, arquitetado para macular a imagem do presidente João
Batista Figueiredo atingindo primeiro o seu filho, Johnny. Uma
conspiração ardilosa por trás de um ataque moral que punha em dúvida
a sexualidade do herdeiro do general e que circulava pelas areias e
calçadões de Ipanema, curiosamente, sem jamais ter passado pela
cabeça dos próprios autores da canção, Leo Jaime e Tavinho Paes,
nem por quem a cantaria pela primeira vez, Ney Matogrosso. “Johnny
B. Goode”, escrita em 1955 e lançada em 1958 por Chuck Berry, era um
rock clássico do qual Leo e Tavinho decidiram fazer sua versão em
português de humor sexista intitulada “Jonny pirou”, a história de um
torcedor do Flamengo que vai ao Maracanã assistir a um Fla-Flu da
geral. O torcedor, assim como o filho de Figueiredo, se chamava Jonny,
mas sem “h”, e trabalhava numa multinacional.
Sobre a vida sexual do Johnny real não se sabia nada, mas, sobre o
da música, Leo cantava: “Jonny é executivo de uma multilegal/ E mora
em suíte presidencial/ Mas naquela tarde tudo, tudo mudou/ Quando um
negão sua cintura agarrou/ E com uma voz muito grossa em seu ouvido
gritou:/ Foi gol…”. As primeiras desconfianças de que os censores
haviam associado os dois Johnnys, o da música e o filho do presidente,
surgiram assim que saiu o resultado da análise solicitada pela
gravadora para que a canção pudesse constar no de Ney. “Gravação
liberada com proibição apenas para rádio e .”
O relatório da Divisão de Censura trazia argumentos um pouco piores
do que uma proibição baseada em um revanchismo militar: “Verificamos
que em seus versos o autor deixa claro um envolvimento homossexual.
Devido a tais implicações, acreditamos ser inviável a liberação da
referida obra com base no que dispõe o artigo 77 do decreto 20493/46”,
assinou a técnica Maria Angélica R. de Resende. O problema não era
falar do filho do presidente, mas de todo e qualquer homossexual.
O jurídico da gravadora trabalhou duro para liberar a música,
enviando sucessivos pedidos de reexame à Polícia Federal. Uma nova
decisão saiu em 2 de abril de 1982, assinada pela técnica Jeanete M.
Farias:
A letra musical em epígrafe aborda um conteúdo revestido de comicidade em que explicita
a paixão de um executivo que, durante uma partida de futebol, apaixona-se por um
“negão”. Considerando que em seus versos a composição musical insinua a existência de
um relacionamento homossexual, aspecto totalmente inadequado para as execuções
fonográficas, opinamos pela .

Outra decisão divulgada no mesmo dia, e agora já se tratava de uma


junta de técnicos debruçados sobre a letra, ia pelo mesmo caminho,
assinada pela avaliadora Odila Geralda Valadares: “O texto examinado
coloca em pauta assunto de interesse geral, ou seja: do futebol. E
aspectos da conduta dos torcedores, ensejando conotação maliciosa e
grosseira”. O caso de Jonny foi parar no Conselho Superior de Censura,
que, no dia 23 de abril, escreveu três páginas de análise para manter a
decisão anterior, liberando a gravação em disco mas justificando a
interdição de execução na mídia. Ao tomar conhecimento das
interdições, Ney gravou a música mesmo ciente de que ela não poderia
ser tocada nem nas rádios nem nas s.
Mais de um ano depois, com a canção ainda trancafiada nos arquivos
da Censura, Leo Jaime decidiu lançar uma nova ofensiva antes de
colocá-la em seu primeiro disco, batizado com um nome que refletia sua
sensação diante das tesouras de Brasília e que, naturalmente, também
seria censurado: Phodas C. Para tentar liberar “Jonny pirou”, Leo retirou
o refrão que repetia “pirou, o negão pirou”, sua versão para “go Johnny
go, go”, de Chuck Berry, e mandou de volta a música gravada numa fita
cassete.
Diante de uma nova negativa, sua gravadora, a , escreveu um
apelo sem mais nada a perder:
A sátira sempre foi a tônica das composições de Leo Jaime, sem agredir ou atentar contra
a moral e os bons costumes. Leo Jaime é produto típico de uma geração de jovens
extrovertidos e contestadores de formação musical eminentemente roqueira […]. Egresso
do grupo Miquinhos Amestrados, Leo Jaime está tentando gravar seu primeiro como
solista e vem encontrando dificuldades em terminar seu trabalho face aos arbítrios
cometidos pela como o caso da composição “Jonny pirou”, objeto desse recurso.
Acatando determinação da o autor modificou os versos em toda a sua estrutura e os
reapresentou à , quando não foi a sua e a nossa surpresa ao ver o veto mantido.
Convenhamos, senhor presidente, que houve um critério rigoroso com a composição em
questão, pois, ao analisarmos a letra e a música achamos que mais uma vez a foi
injusta e arbitrária ao vetar “Jonny pirou”, mais uma irreverência do polêmico Leo Jaime
ao satirizar o original de Chuck Berry, “Johnny B. Goode”.

Por incrível que pudesse parecer, a estratégia do confronto deu certo


e, em 14 de dezembro de 1983, um ano e nove meses depois do
primeiro pedido feito pela Ariola, os conselheiros superiores de censura,
Renato Pompeu de Sousa Brasil e Geraldo Sobral Rocha, reverteram a
decisão: “Não vemos, eu e o conselheiro Geraldo, razão, hoje como
ontem, para não liberar incondicionalmente a letra da presente música.
Considero livre para gravação como para divulgação por qualquer
veículo de diversão pública a letra da música ‘Jonny pirou’”, assinou
Renato Pompeu. Mas, então, quem já não queria mais saber de gravar
“Jonny” era Leo Jaime, que acabou deixando a canção de fora de seu
primeiro disco, com o nome Phodas C reduzido a um selo na capa e
com uma advertência: “Proibido para menores de 18 anos”.

Outra música escolhida por Ney perturbava a ciosa equipe de Arésio


Teixeira Peixoto, um dos chefes do Serviço de Censura. “Uai, uai”, que
Rita Lee e Roberto de Carvalho mandaram numa fita cassete, e que
havia feito Ney rir muito ao ouvi-la pela primeira vez, seria considerada
maldosa demais sobretudo pelos versos que os técnicos captavam
como se fossem disfarçadamente simplórios e ditos com um sotaque
caipira sorrateiramente ingênuo. Eles terminavam sempre com a frase
“tá com ‘arguma’ coisa errada” repetida três vezes depois de versos
como “burro que não gosta de capim”, “doente que foge do hospitar”,
“criança que não quer obedecer”, “estudante que só pensa em
passear”, “jogador da seleção que não faz gol”.
Figura conhecida da Polícia Federal desde 1976, quando foi levada
por porte de maconha e cumpriu prisão domiciliar durante um ano, Rita
Lee era um nome a ser mantido sob vigilância. Assim, para proteger o
país de suas estripulias verbais, o diretor-geral do Departamento de
Polícia Federal decidiu proibir a execução pública em rádio e televisão
não só de “Uai, uai”, mas também de outras quatro canções de um lote
enviado ao governo pela gravadora Som Livre: “Favorita”,
“Galinhagem”, “Afrodite” e “Barriga da mamãe”. “Verificamos que
exploram em seus versos termos chulos, frases de conotação
maliciosa, grosseira, bem como insinuações de relação sexual. Nessas
condições, somos pela não liberação das referidas obras”, assinou
Maria Angélica de Resende.
Além de ter sido vetada pela birra dos militares à autora, “Uai, uai”
pode ter sido barrada por duas partes: a que diz que “Zé das Cove vai
pro interrogatório”, não apontada nos laudos dos censores, e, no final,
quando fala “ai, ai, ai, ai, se o pau não tá bem duro entorta e cai”. Esta
última era a única justificativa para que a canção fosse considerada
“grosseira e chula”. Mais uma vez, porém, Ney abria mão da veiculação
de uma música e não só gravava “Uai, uai” com a própria Rita Lee na
segunda voz como contava com um tour de force para tornar o
sertanismo roqueiro de Rita um acontecimento: Cesar Camargo
Mariano no piano, Márcio Montarroyos num dos três trompetes, Piska
na guitarra, Leo Gandelman no sax alto, e os arranjos de orquestra nas
mãos de Erich Bulling.
Ocupados em submeter a brejeirice de “Uai, uai” aos altos escalões
de Brasília e “Jonny pirou” a pelo menos sete censores diferentes, entre
técnicos e conselheiros, os observadores das diversões públicas não
perceberam que uma das maiores contestações ao sistema político-
militar de 1982 estava em outra canção pronta para levar o novo de
Ney às alturas. “Por debaixo dos panos”, do mesmo Antônio Barros de
“Homem com H”, era, essa sim, um torpedo cheio de veneno escondido
no duplo sentido erótico que subiria ao topo das músicas mais
executadas do ano. A letra dizia que era por debaixo dos panos que se
cometiam todos os enganos sem ninguém saber e se entrava pelo cano
sem ninguém ver. E se ainda pairassem dúvidas sobre o alvo daquelas
palavras, um clipe feito pela Globo, em que Ney vivia um corrupto de
terno e gravata, reforçava a ideia do submundo das negociatas nas
barbas dos militares.

Um dos preços mais altos pagos por estar na ciranda dos negócios
do disco nos anos 1980 era lidar com as demandas da própria ciranda,
que obrigava os artistas, por contrato, a entregar um novo a cada
ano. E se um novo deveria ser lançado com um novo show, toda
uma estrutura criada havia menos de 365 dias deveria ser demolida
para que a nova chegasse e tudo se reiniciasse. Escolha de repertório,
estúdio de gravação, show de lançamento, entrevistas e estrada. Bom
para quem tinha fracassado no ano anterior, ruim para quem ainda
corria o país cheio de lenha para queimar.
A turnê de Homem com H ainda estava fresca quando o sino do
contrato tocou para que um novo álbum e o novo show começassem a
ser levantados. À nova coleção, que trazia “Jonny pirou”, “Uai, uai” e
“Por debaixo dos panos”, se juntaram “Tanto amar”, de Chico Buarque;
“Promessas demais”, de Moraes Moreira com Zeca Barreto e Paulo
Leminski; “Aquela fera”, de Sá e Guarabyra; “Alegria Carnaval”, de
Nilton Barros e Jorge Aragão; o rock “Não faz sentido”, de Marcelo
Sussekind, Pedrão e Sérgio Araújo; e o baião, agora para ser gravado
sem medo, “Primeiro de abril”, de Roderiki e Antonio Brasileiro, que Ney
ouviu saindo de uma bodega quando fazia um passeio de barco pelo
interior do Maranhão.
A equipe da turnê anterior foi chamada para os shows do disco
batizado Mato Grosso, que trazia na capa a imagem de Ney de sunga
submerso num rio de águas cristalinas do Pantanal Mato-Grossense. A
mesma foto que havia sido usada para anunciar os shows nos outdoors
de São Paulo e do Rio e que a censura proibira de ser exibida em
espaços públicos sem saber das dificuldades para fazê-la. O fotógrafo
Luís Fernando focava a cena montado num cavalo para conseguir o
ângulo ideal, de cima para baixo, enquanto Ney prendia a respiração
deitado no rio de peito para cima entre as algas até ter o rosto coberto
pela correnteza. O perigo nadava ao lado e não aparece na foto. Os
jacarés da região só não atacavam porque eram vigiados por um
capataz contratado para fazê-los entender que ninguém estava ali para
ser devorado.
Markito voltava aos figurinos, Marcos Flaksman aos cenários, uma
banda de treze músicos comandados pelo guitarrista Piska aos arranjos
e Amir Haddad, mesmo contrariado por suspender Homem com H em
tão pouco tempo, à direção-geral. O show abria com o palco tomado de
fumaça colorida e um Ney de adereços indígenas sobre a cabeça e um
tapa-sexo sumário cantando “Metamorfose ambulante”, “Notícias do
Brasil”, “Uai, uai” e “Primeiro de abril”. A estreia no Canecão do Rio teve
na plateia Tony Ramos, Simone, Caetano, Milton, Cauby Peixoto,
Ângela Maria, John Neschling, Lucélia Santos, Regina Duarte, Maria
Zilda e Roberto Talma. “Ney vai fazer uns pequenos ajustes, nem tudo
funcionou como esperava”, dizia Regina no camarim. “Seria bom
inverter a ordem de alguns blocos”, sugeria Roberto Talma. “Foi fumaça
demais, vou mandar diminuir”, avaliava Ney numa noite repleta de
comparações com algo que, também para ele, não deveria ter acabado
tão cedo.
O show seguiu recebendo elogios da crítica. Obcecado com ensaios,
Ney projetava-se com mais fé nas marcações de palco desde a
temporada anterior. A voz também avançava. A falta de médios e
graves ainda provocava certa fragilidade quando essas regiões eram
acessadas e manter a afinação nas notas longas ainda exigia esforço.
Apesar de ter parte de sua escola na Era do Rádio, Ney apostava num
canto mais naturalista e com vibratos muito sutis que poderiam não
protegê-lo de possíveis desafinações em voos maiores. E muitas delas
acabaram registradas nos álbuns. As fraquezas começaram a ser
vencidas com aulas de canto e pela robustez que a prática passou a
oferecer para corrigir atrasos técnicos de quem só havia se tornado
cantor depois dos trinta anos. Aos quarenta, Ney fez sua previsão ao
dar outra entrevista ao jornal O Globo: “Pode ser que continue ligado à
arte, mas não fazendo esse tipo de coisa [cantar]. Não quero ficar
velhinho cantando. A voz, com o tempo, perde o vigor. Quero deixar nas
pessoas uma imagem bonita e alegre”.
18. “Pro dia nascer feliz”

Um homem sem nome e sem passado chegou ao consultório


dermatológico da dra. Valéria Petri em setembro de 1982. Ele sabia do
trato livre de julgamentos de Valéria para com os pacientes gays, como
os homossexuais e bissexuais começavam a ser chamados, mas
preferiu primeiro indicar um amigo francês para se certificar de sua
conduta antes de marcar uma consulta. “Agora, é a minha vez.” Ainda
cauteloso enquanto tirava os sapatos, contou apenas que era artista
plástico, que havia morado nos Estados Unidos por alguns anos e,
agora, estava ali por conta de uma ferida roxa que crescia entre os
dedos de um dos pés sem responder a remédio algum. Apontou o
vermelhão e disse: “Espero que não seja a bolha assassina”. Valéria
pediu os exames e, quando viu os resultados, não teve dúvidas: era
sarcoma de Kaposi. O homem saiu do consultório aparentemente
tranquilo, mas ligou de madrugada para a casa de Valéria sem nenhum
controle das palavras: “Você não tem o direito de decretar a minha
morte!”.
As notícias que vinham dos Estados Unidos diziam que a forma de
cancro degenerativo prenunciava uma agonia incurável à qual os jornais
se referiam de duas maneiras: “peste gay” e “câncer gay”. Algo que os
hemofílicos contraíam por azar, os haitianos por mistério, os viciados
em drogas injetáveis por destino e os gays por castigo bíblico,
passando-o uns aos outros em relações sexuais pecaminosas que
levavam seus corpos sem imunidade à decomposição em vida,
corroídos por todos os males que chegavam pelo ar e relegados a um
isolamento social que afastava amigos, família e os próprios médicos.
Imagens publicadas numa matéria da revista Manchete mostravam
pacientes sendo tratados dentro de bolhas por médicos que usavam
máscaras e trajes de astronauta.
Os gays nos Estados Unidos foram para as ruas pedir providências
sanitárias e respeito quando entenderam que, antes mesmo de
apresentarem algum sintoma, já estavam sendo mantidos à distância.
Uma associação de dentistas aconselhou seus afiliados a usarem
máscaras protetoras para tratar de pessoas “sexualmente suspeitas” e
uma prisão de Nova York afastou detentos homossexuais dos postos na
cozinha. Mas tudo parecia muito distante no Brasil mesmo no início de
1983, quando a Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro
afirmou que o governo tinha outras prioridades, como a doença de
Chagas, a tuberculose e os parasitas intestinais, e que qualquer
indivíduo com traços de aids que procurasse a rede pública receberia o
mesmo tratamento de quem tivesse câncer de pele.
Ainda intrigada com o diagnóstico de sarcoma de Kaposi em seu
paciente, a dra. Valéria Petri foi ao Congresso Ibero Latino-Americano
de Dermatologia, em abril, na Escola Paulista de Medicina, e sentou-se
ao lado do dr. Nelson Mendes. Quando as primeiras notícias da
síndrome da imunodeficiência adquirida começaram a ser ventiladas,
Mendes avisou Valéria que casos de aids certamente deveriam chegar
a seu consultório, um raro espaço clínico que ganhara a confiança da
comunidade gay pelo fato de a doutora ter se transformado numa
espécie de defensora de seus direitos, algo que quase ninguém era em
1983. “Apareceu um rapaz gay, Nelson. E ele tinha o sarcoma”, disse,
aos cochichos, durante o congresso. “Eu não disse? Você deve ter o
primeiro caso do país.” Valéria saiu do encontro direto para a biblioteca
da , Escola Paulista de Medicina, em busca de artigos que
trouxessem qualquer luz. Aids, para ela, era uma sigla que soava como
se alguém estivesse pedindo socorro.
Num domingo, 12 de junho de 1983, o Jornal do Brasil noticiou o
assunto pela primeira vez com uma chamada na capa: “Brasil já registra
dois casos de câncer gay: A síndrome da deficiência imunológica
adquirida, conhecida como câncer gay, chegou mesmo ao Brasil, que
se torna o primeiro país da América Latina a ter pessoas infectadas pela
doença”. A Globo fez sua primeira matéria sobre o assunto
acionando o jornalista Hélio Costa em Nova York, e o Brasil começou a
despertar. Quase um mês após a reportagem do JB, no dia 4 de junho,
quando os Estados Unidos totalizavam 3 mil casos da doença e mais de
1200 mortes, Marcus Vinícius Resende Gonçalves, o Markito, um dos
maiores nomes da moda brasileira, estilista de Maitê Proença, Sônia
Braga, Christiane Torloni, Marília Pêra, Simone, Gal Costa, e criador da
exuberante calça bordada de canutilhos transparentes e de todas as
outras peças que Ney usou em sua recente turnê, foi a primeira vítima
pública no Brasil depois de chegar aos cinquenta quilos agonizando de
várias enfermidades e sofrendo os limites do sarcoma de Kaposi.
Ao saber que Cazuza poderia estar dentro do que os médicos
chamavam de grupo de risco, Lucinha Araújo o alertou com o pouco
que ela e todo o mundo conhecia sobre o assunto: “Filho, essa é uma
doença perigosa que só dá em gay. Preste atenção, por favor”. Ele se
ofendeu: “Eu não sou promíscuo, não se preocupe”. Cazuza sabia que
sim, ele participava como nunca de todas as irresponsabilidades
autodestrutivas abençoadas pelo rock e ficou preocupado com o que
leu sobre o avanço da “peste gay”. Estava saudável e cheio de uma
vida criativa e útil pela primeira vez, rodeado de amigos interessantes
do Posto 9 e à frente de uma banda com pessoas que falavam sua
língua e amavam fazer música para suas letras autobiográficas. Mas,
ao passar em frente ao espelho, parou e disse olhando nos próprios
olhos: “Você vai morrer dessa maldita”.
Quando Cazuza contou a Ney o que dissera a si mesmo, ouviu outra
séria advertência: “Você nunca deveria ter feito isso”. Por mais que
duvidasse da existência de um vírus mortal que escolhia vítimas por
orientações sexuais, Ney acreditava no poder dos pensamentos. As
palavras tinham força e, ao dizê-las, as pessoas abriam portais
energéticos que poderiam abduzi-las. “Nunca mais faça isso”, insistiu.
Dias depois, ele próprio, Ney, daria um exemplo de sua teoria. Nem as
rádios conheciam o segundo do Barão Vermelho — na verdade,
poucas sabiam que existia um primeiro — quando Cazuza deixou uma
cópia do disco na casa do amigo. À noite, Ney resolveu ouvi-la sem
expectativas. Tudo o que sabia da voz do filho de João Araújo era dos
dias em que estavam juntos, no carro ou em casa, e ele cantava um
samba de Cartola ou outro de Nelson Cavaquinho.

O Cazuza cantor estava agora ao toque de uma agulha, e ela


deslizou primeiro pelos três minutos e 37 segundos de um rock
chamado “Carne de pescoço”, pouco original mas cheio de energia,
como todos os rocks potentes feitos por bandas que gostavam dos
Rolling Stones. Em seguida, como num susto, começou uma introdução
vigorosa criada por uma massa de teclado, guitarra, baixo e bateria que
Ney sentiu como se ela anunciasse não a próxima música de um ,
mas o início de uma nova história.
Ninguém mais do que Ney sabia do preço de cada linha que ele ouvia
em “Pro dia nascer feliz”. Aquilo era Cazuza em estado puro, sem
regras nem culpas, esvaziando os dramas e passando por cima de
todos os dilemas do romantismo como quem quer viver todas as noites
até o fim só para sentir os dias nascendo felizes. Era Cazuza e era Ney
também: “Todo dia a insônia/ Me convence que o céu/ Faz tudo ficar
infinito/ E que a solidão/ É pretensão de quem fica/ Escondido, fazendo
fita”. A solidão era uma escolha. “Todo dia é dia/ E tudo em nome do
amor/ Ah, essa é a vida que eu quis/ Procurando vaga/ Uma hora aqui,
a outra ali/ No vaivém dos teus quadris.” E o sexo, uma obsessão. “O
mundo inteiro acordar/ E a gente dormir/ Pro dia nascer feliz.”
Ainda era manhã quando Ney chegou à casa de Cazuza, no Leblon.
A empregada abriu a porta e ele entrou rápido, subiu até o quarto, o viu
dormindo e se jogou sobre seu corpo com uma euforia invejável para
tempos em que boa parte dos gays começava a acreditar no
apocalipse. “Acorda, Cruz, acorda pra ganhar dinheiro!” Não era um
pedido, mas um comunicado: ele iria gravar “Pro dia nascer feliz” em
seu próximo . Cazuza não gostou da ideia de ter um concorrente do
tamanho de Ney cantando a música que havia sido pensada para ser a
maior aposta do Barão Vermelho, porém Ney estava decidido, e não
parecia ser apenas por ele. O Barão precisava de ajuda para que o
levassem a sério e, se havia uma voz naquele início de 1983 que
poderia ser a bala de prata capaz de fazer o mainstream aceitar uma
banda de rock underground, essa voz era a de Ney. E seu último ato de
1982, diante de 40 mil pessoas, confirmava isso.

Quase dez anos depois de os Secos & Molhados fazerem o primeiro


show de uma única atração no Ginásio do Maracanãzinho, Ney
desafiou o atraso tecnológico e o pessimismo meteorológico para se
tornar o primeiro artista a fazer um show solo no monumental Estádio
do Morumbi, a maior arena de São Paulo, com capacidade para 120 mil
pessoas. Quarenta mil tiveram coragem de sair de casa numa semana
de chuvas torrenciais e apareceram no Morumbi para viverem uma
noite que tinha as mãos do empresário Manoel Poladian por toda parte.
Mais de oitocentos homens faziam a segurança no estádio e 150
agentes cuidavam das imediações. Um telão de 35 metros quadrados
seria usado pela primeira vez num show nacional para mostrar detalhes
tanto da chegada do artista como do próprio espetáculo. Ney sairia
numa limusine do hotel Maksoud Plaza, chegaria ao Morumbi e iria
direto para os camarins. O placar eletrônico do estádio anunciaria o
nome das músicas antes da apresentação e também durante o show, e
uma máquina de luz operada por uma equipe de técnicos produziria um
arco-íris gigante e outros efeitos especiais de raio laser quando Ney
estivesse no palco. A noite terminaria com uma queima de fogos
formando no céu o nome Ney Matogrosso e a frase “Feliz Natal”.
Os portões foram abertos às 15h, mas Ney só apareceu às 21h,
depois das apresentações da Banda Grama e do Rádio Taxi, um grupo
jovem, com um álbum de estreia recém-lançado nas rádios e a música
“Garota dourada” nos primeiros lugares. A chuva que caía até o começo
da tarde cessou, as nuvens se dissiparam e uma lua crescente já
brilhava sem ameaças antes das 19h. Os jornalistas escreveriam
surpresos a respeito da plateia. “A partir de agora, fica ainda mais difícil
traçar um perfil do público de Ney Matogrosso”, publicou a Folha de
S.Paulo. Crianças acompanhadas dos pais que foram ao show por
“Homem com H”, senhoras de idade espremidas na grade de proteção
que seguiam Ney desde Bandido, e casais de meia-idade que haviam
dançado “O vira” dez anos antes e agora bailavam passos de bolero
com “Tanto amar”.
A base do repertório eram as canções do show que estava na
estrada, além de inserções como “Andar com fé”, de Gil, e “Rosa de
Hiroshima” que, como no Maracanãzinho, valeria o maior coro de vozes
da noite. Uma energia que poderia compensar até as deficiências
acústicas que chegavam ao público da geral. Ainda assim, as
estratégias empresariais de Poladian pensadas para estádios e grandes
ginásios não teriam vida longa. Apesar de contar com um retorno
financeiro maior e uma exposição de mídia respeitosa, Ney aceitaria
pisar em grandes arenas por apenas mais três anos, quando entenderia
que, para divertir as pessoas, deveria ser o primeiro a se divertir. E
nada tirava tanto o prazer de uma noite como um som malfeito.

Mas as vitórias de Ney não convenceram Cazuza de que o melhor


seria deixá-lo gravar um de seus rocks preferidos e, assim que Ney
partiu com suas epifanias na manhã em que pareceu ver o dia nascer
mais feliz do que os outros, ele ligou para Frejat, parceiro de criação em
“Pro dia nascer feliz”: “Frejat, Ney quer gravar a música do nosso
disco”. “Isso é bom, deixa ele gravar”, respondeu o parceiro. “Mas será
que não vai brigar com a nossa versão?” “Cazuza, aqui entre nós, não
podemos exigir muito. Nossas músicas não tocam em lugar nenhum.”
Mas Ney queria mais. Depois de assistir ao primeiro show do Barão,
no Teatro Ipanema, teve a certeza de que deveria também dirigi-lo. O
grupo havia se encontrado no estúdio, produzindo um som ajeitado,
mas, ao vivo, ainda era impulsivo e inexperiente. Ney foi ao produtor
Ezequiel Neves, que persuadira João Araújo a vencer os pudores
antinepotistas e lançar um disco do próprio filho pela Som Livre antes
que qualquer outra gravadora o fizesse, e disse: “Zeca, bota na minha
mão que eu sei o que fazer com eles”. Ezequiel disfarçou e se foi sem
tocar mais no assunto, dando a entender que a razão do seu silêncio
era por ciúmes. Mas, na verdade, Ezequiel levou sim a conversa que
teve com Ney a Frejat com uma pequena liberdade poética usada
provavelmente por medo de perder espaço para Ney: “Cara, o Ney falou
que quer dirigir vocês e eu já disse que não. Rock não tem direção”.
Não tinha direção, mas tinha estratégia, e quando “Pro dia nascer
feliz” saiu na voz de Ney com uma ideia mais eletrônica do que
roqueira, a história do Barão Vermelho começou a ganhar outro
capítulo. As rádios passaram a tocar a canção como a maior aposta do
álbum … Pois é, que vinha com faixas medleys caríssimas gravadas
por Mazzola em Los Angeles, além de um belo arranjo para “Coração
civil”, de Milton Nascimento e Fernando Brant, e uma versão de
“Babalu” que seria cantada com a frenética Dhu Moraes se ela não
tivesse desistido da parceria.
Ao ouvirem a versão de Ney, alguns disc jockeys foram a seus
arquivos resgatar o vinil do Barão, que haviam dado como descartável,
para saber como era a música original e começaram a executá-la até
mais do que a nova versão. Antes disso, Caetano Veloso já havia
descoberto Cazuza e cantado “Todo amor que houver nessa vida”, no
Canecão, durante um show da temporada de Uns, para um quase
colapso emocional de Lucinha e João Araújo, sentados nas primeiras
cadeiras, além de ter convidado o Barão para tocar “Eclipse oculto” no
programa Bar Academia, da Manchete. Quando Cazuza foi assistir
ao show de Ney na plateia de … Pois é, ninguém sabia por que os dois
trocavam risos tão maliciosos na hora do refrão. Ney mudava a letra em
nome de todas as noites escondidas que ainda passavam juntos
oferecendo seus melhores bis e cantaria, em vez de “pro dia nascer
feliz”, “fodia pra ser feliz”.

Pela tinta do carimbo com o nome Josué Guedes sob os três versos e
um refrão da letra datilografada em folha de sulfite sem rasuras nem
advertências, uma raridade quando a canção era de autoria de Leo
Jaime, aquele “aprovado” da Divisão de Censura havia saído com gosto
e satisfação. A canção original era “Tell Me Once Again”, feita pelo
cantor e guitarrista B. Anderson e gravada em 1972 pelo grupo de 1
milhão de cópias vendidas, Light Reflections, formado por integrantes
brasileiros com nomes gringos que cantavam baladas em inglês e
conquistavam fãs aos montes no Brasil e em países da América Latina.
Era tudo o que se tinha de “Tell Me Once Again” até o dia em que Leo
Jaime, Leandro Verdeal e Sérgio Abreu, já sabendo como fazer com
que as esculhambações de seus vinte anos virassem música, davam
uma volta de carro quando começaram a transformar “Tell Me Once
Again” em “Calúnias ou Telma, eu não sou gay”.
Embora seguisse seu caminho sem o grupo João Penca e Seus
Miquinhos Amestrados, que se mantinha com três dos nove amigos
originais, Leo ainda trabalhava para que o conjunto desse certo e
conseguiu levá-lo para a Ariola/Polygram. Quando Mazzola ouviu
“Telma, eu não sou gay”, imaginou que a história de conversão de um
gay à heterossexualidade, um deleite para os moralismos da censura,
faria um sucesso imediato. Alguém pensou em convidar Agnaldo
Timóteo para gravar a música com o grupo, mas não houve voluntário
que se dispusesse a ir até a casa de Timóteo para mostrar os versos
que ele deveria cantar: “Diz que vai dar, meu bem/ Seu coração pra
mim/ Eu deixei aquela vida de lado/ E não sou mais um transviado/
Telma, eu não sou gay/ O que falam de mim são calúnias/ Meu bem, eu
parei”.
A segunda opção, Ney Matogrosso, lidava melhor com o assunto e já
havia entendido a força do deboche desde “Homem com H”. Leo
explicou a Ney o contexto despudorado do primeiro dos Miquinhos
Amestrados e o convidado aceitou colocar sua voz na faixa por
amizade. Quando o álbum dos Miquinhos produzido por Ronaldo
Bastos saiu, o sucesso foi tão avassalador que o executivo da
gravadora, Peter Klam, chamou Ney à sua sala para ouvir uma proposta
ou, dependendo da resposta, uma ameaça. Depois de cantar “Telma”
com os Miquinhos, Ney deveria lançar a mesma gravação em seu disco
… Pois é. Era só pegar a faixa pronta e incluí-la no . Como o artista
disse não, justificando com o argumento de que “Telma” fazia sentido no
contexto dos Miquinhos mas não em seu álbum, o diretor avançou: “Se
‘Telma, eu não sou gay’ não for para seu disco, eu mando recolher o
dos Miquinhos”.
Peter Klam era um alemão alto, corpulento e de sotaque duro, que
havia estado ao lado de Ney em poucas ocasiões. Na única vez em que
iriam viajar juntos para um compromisso pela gravadora, conversavam
no saguão do aeroporto do Galeão, no Rio, quando um grupo de fãs se
aproximou e cercou Ney com pedidos de abraços e autógrafos. Ágil
como um segurança, Klam pulou à frente do artista pedindo a todos que
saíssem de perto, mas o grupo era grande e ninguém se intimidou. “Ele
é nosso, seu gringo!” A discussão esquentou e um dos fãs deu um tapa
no rosto de Klam, que ficou desnorteado. A cena tinha sido
constrangedora demais até para ser contada a Mazzola e Ney decidiu
silenciar. Agora, por um grupo que lançava seu primeiro disco e pela
amizade com Leo Jaime, ele iria guardar um segundo silêncio sobre
Peter Klam.
“Você não pode fazer isso”, disse Ney diante da ameaça. “Posso e
vou fazer”, disse Klam, levantando-se. Se Ney não aceitasse incluir a
gravação em seu álbum, os Miquinhos poderiam terminar a carreira ali.
Ney achou melhor não apostar num possível blefe do diretor, o que
certamente era. Cedeu à chantagem e guardou segredo sobre “Telma,
eu não sou gay” em todas as entrevistas que deu na época do
lançamento. Assim que … Pois é saiu, “Telma” com Ney passou a tocar
tanto quanto “Pro dia nascer feliz”, mas, apesar de o sucesso levar a
canção a se tornar até vinheta de um quadro que apresentava cantores
travestis no Programa do Bolinha, ela caiu em desgraça no repertório
do artista. Ney jamais a cantou ao vivo e, anos depois, conseguiu um
documento assinado pela gravadora que garantia desaparecer com
“Telma, eu não sou gay” de todas as possíveis reedições do álbum.

O sonho da Ariola já tinha virado pó quando o disco de Ney chegou


às lojas. A aventura sul-americana do grupo alemão jogou as peças
certas, contratando sobretudo nomes estabelecidos no país que
garantissem retorno rápido, mas com uma expectativa equivocada de
tempo de retorno. Os acionistas sentiram que os altos investimentos
não seriam recuperados dentro de suas ambições e decidiram passar a
empresa adiante antes que o rombo aumentasse. Assim, depois de um
ano e meio de Brasil, a Ariola resolveu ceder à Polygram, pelo preço
simbólico de um dólar, todos os artistas que tinha, além do produtor
Marco Mazzola.
A pedido da Polygram, e para a sorte de Ney, Mazzola, mesmo
indignado com o surpreendente naufrágio da companhia, deveria seguir
produzindo os artistas que conhecia tão bem. Só era preciso avisá-los
da novidade em até 48 horas, antes que soubessem pela imprensa que
responderiam, agora, para a Polygram. Quando o telefone de Ney tocou
no quarto do Maksoud Plaza e um jornalista estava do outro lado da
linha, ele foi informado do seu destino: “Olá, Ney, gostaríamos de saber
o que você acha da compra da Ariola pela Polygram”. “Quem comprou
quem?” “A Polygram comprou o controle acionário da Ariola.” “Quer
dizer que agora eu sou da Polygram?”
Era, mas, na prática, não faria diferença. As negociações já estavam
concretizadas, Mazzola continuaria por perto, a Polygram tinha bases
sólidas e Ney não deixaria de gravar os discos que bem entendesse.
Uma renovação de contrato até melhorava sua vida, estendendo um
novo a cada quinze meses, não mais doze, o que lhe daria um tempo
um pouco maior para pensar em repertório e manter um bom show na
estrada. Também não haveria limites para fazer regravações da própria
obra. Mesmo sem vender quantidades estratosféricas, Ney era mantido
no time dos grandes como um dos artistas certos para estar à mesa no
dia em que o futuro fosse servido em pratos quentes. E ele foi, mais
precisamente às 20h do dia 12 de abril de 1983, num dos salões
luxuosos do hotel Rio Palace, na presença de produtores, radialistas,
engenheiros de som, técnicos, jornalistas e diretores da Philips.
Depois de um brinde com vinho e queijo, os convidados se ajeitaram
diante de um aparelho de para assistir por seis minutos a um vídeo
sobre o que era e como funcionava a pequena esfera metalizada de
doze centímetros de diâmetro tocada por um feixe de raio laser que, de
alguma forma, levava para as caixas de som da sala a música mais
limpa de ruídos que seus ouvidos poderiam escutar. O futuro visto por
olhos “curiosos e maravilhados”, como relatou O Globo, se chamava
, ou Compact Disc, uma tecnologia que vinha sendo desenvolvida
com mais refinamento pelos japoneses da Sony e pelos holandeses da
Philips desde meados dos anos 1970, e os resultados mais avançados
estavam ali, não apenas na exibição do que era um mas na
apresentação do primeiro com música brasileira na história. Com o
título de MPB, o minidisco operava o milagre de reunir inacreditáveis 76
faixas “de um lado só” com os principais artistas da Polygram em ordem
alfabética.
As músicas começavam ao toque de uma tecla, avançando e
voltando por Alceu Valença, Moraes Moreira, Caetano, Chico, Milton,
Sidney Magal, Jair Rodrigues, Emílio Santiago e Gal Costa, sem braço
nem agulha. Não era preciso rebobinar nem virar o disco, respondiam
os técnicos satisfeitos. Assim como Elba Ramalho, Marina Lima, Ivan
Lins e Erasmo Carlos, Ney estava presente, e o convidaram para fazer
um teste. Ele se levantou, foi até o moderno aparelho -200 e apertou
a tecla play várias vezes até que seu nome apareceu no pequeno visor
e sua voz saiu como um cristal. A revolução do laser, no entanto, levaria
mais alguns anos para se iniciar num país em crise econômica, com
desemprego alto e que cobrava taxas de importação fantasiosas: se
estivesse à venda, o fabuloso MPB custaria algo em torno de 340
mil cruzeiros, cerca de 9 mil reais em 2021, e seria jogado no lixo em
seguida, assim que o comprador se lembrasse de que não havia
nenhum aparelho no Brasil capaz de tocá-lo.

Uma parte do mundo que ouvia os discos de Ney sem saber muito
bem quem ele era iria vê-lo de perto pela primeira vez dois meses
depois, quando Mazzola o levasse para ser uma das atrações
brasileiras no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, ao lado de
Caetano Veloso e João Bosco. Antes, Ney foi a Tel Aviv para subir ao
grande palco montado no maior estádio de futebol de Israel, o
Bloomfield, sede do campeão de 1982, Hapoel Tel Aviv, e fazer um
show de cinco horas intercalando-se com Caetano, Elba Ramalho e
Djavan para um público de 15 mil pessoas. O crítico de música do jornal
Yedioth Ahronoth chamou a noite de “Woodstock do samba” e o
cronista do Davar disse que Ney deveria ser “o showman número um do
Brasil”, mas encrencou com Caetano, que em seu show teria
apresentado “baladas que não servem mais para serem cantadas num
estádio”.
Antes de seguir para a Suíça, Ney foi convidado para fazer um show
solo no suntuoso Palácio de Cultura de Tel Aviv, um espaço mais usado
para recitais de música clássica, demolindo a ideia que se tinha de um
conservadorismo radical da sociedade israelense. Isso se alguém da
equipe do artista ainda tivesse tal ideia. Em Tel Aviv, um casal de
jornalistas chegou para entrevistar Ney em busca de fotos sensuais e
declarações de impacto erótico. A foto escolhida para a matéria foi a
que mostrava o zíper da calça completamente aberto.
O Festival de Montreux era um templo que fora erguido em 1967 às
margens do lago Léman pelo ex-aprendiz de padeiro e gaitista de blues
nas horas vagas Claude Nobs, um lugar por onde já tinham passado Bill
Evans, Nina Simone, Miles Davis, Ella Fitzgerald e todos os monarcas
da nova geração ou remanescentes da Era de Ouro do jazz dos anos
1950. Havia uma noite reservada aos brasileiros, organizada por
Mazzola desde 1978 e que Ney conhecera em 1981, quando subiu ao
palco para dar uma canja ao lado do guitarrista Hélio Delmiro sem
imaginar que, dois anos depois, faria no mesmo teatro do cassino uma
de suas maiores conquistas territoriais. Uma noite aberta por um bravo
João Bosco amansando a expectativa ruidosa de 3 mil jovens, seguida
por uma ligeira elevação de temperatura com o show de Caetano
Veloso e finalizada por um Ney disposto a fixar-se na memória dos
europeus por um bom tempo.
Tudo começou com sinais de fogo, uma nuvem de fumaça espessa
devorando a banda, Ney, seu cocar indígena e toda a entrada
ritualística do show Mato Grosso. Assim como havia ocorrido na estreia
da temporada no Canecão, o operador da máquina de gelo-seco liberou
fumaça além da conta e só não gerou pânico porque a banda, mesmo
invisível, não parou de tocar por um segundo a introdução que já soava
sugestiva de “Metamorfose ambulante”. O cassino de Montreux, de teto
baixo e vias estreitas, não tinha um bom histórico com fumaças desde
1971, quando os roqueiros do Deep Purple assistiam a um show de
Frank Zappa e um incêndio provocado pelo disparo de um sinalizador
da plateia por um fã encerrou o espetáculo, tendo o próprio Claude
Nobs ajudado as pessoas a deixarem o local. Um ano depois, Nobs,
que estava como espectador no show de Zappa, era citado no clássico
“Smoke on the Water”, que o Deep Purple lançaria no álbum Machine
Head, inspirado no episódio. A fumaça de Ney indicava outro tipo de
fogo.
Aos olhos de 3 mil pessoas, sobretudo franceses, ingleses, alemães
e suíços, Ney surgia como um brasileiro diferente do que esperavam e
com um “samba” distante do que conheciam. Uma espécie indefinida
com um pouco de tudo o que deveria existir pelas florestas tropicais da
América do Sul, capaz de suscitar uma vibração terrena poderosa que
os jornalistas internacionais classificariam em seus textos com um
generalista “exótico”. Um índio seminu com adereços que Ney comprou
na sede da Funai, em Manaus, cantando moda de viola debochada em
“Uai, uai”; mostrando um rock and roll de Chuck Berry sobre futebol ao
mesmo tempo que bandeiras do Flamengo e do Fluminense
tremulavam nas laterais do palco em “Jonny pirou”; entoando um pop
africano de Gilberto Gil com dança tribal em “Andar com fé”; e, no fim, e
um pouco mais perto das ideias que faziam de um brasileiro em 1983,
voltando para um bis com o frevo de Dusek, “Folia no matagal”, de
braços dados com Caetano e João Bosco.
Quase duas horas de trepidação foram cessadas uma única vez por
“Rosa de Hiroshima” até que Ney e os músicos agradeceram e se
dirigiram ao camarim. Mas as pessoas se recusavam a deixar o
cassino, mesmo diante de um palco vazio por muitos minutos, e quando
os gritos pela volta do artista aumentaram, Claude Nobs precisou agir.
Pegou o microfone e fez os agradecimentos como quem indica
gentilmente a porta de saída até começar a ser vaiado e se dar conta
da enrascada. Ney foi socorrê-lo sem maquiagem e enrolado numa
toalha vermelha para pedir, em tom exausto: “Estamos muito cansados
e não temos mais nada ensaiado. Fizemos tudo o que podíamos,
obrigado”. Mas o público continuou exatamente onde estava.

Ninguém via, mas o mundo mudava rápido. Quando Ney voltou da


Europa, as coisas estavam um pouco piores, e a ciência perdia a briga
para a “peste gay”. Não havia resultados satisfatórios nas amostras de
sangue e de tecidos que, retiradas de pacientes infectados, eram
injetadas em animais ou semeadas em culturas de laboratório. As
cobaias continuavam saudáveis e os experimentos, inalterados. Os
pesquisadores norte-americanos, abastecidos por 20 milhões de
dólares do governo Ronald Reagan, ainda não tinham respostas para
as principais perguntas, porém começavam a desatar alguns nós e a
descobrir verdades terríveis que o planeta precisava conhecer.
A doença era agora chamada de síndrome da deficiência imunológica
e, recomendava-se, não se deveria mais usar o termo “peste gay”.
Hemofílicos pegavam por transfusão de sangue contaminado, usuários
de drogas injetáveis por agulhas infectadas, e muitos dos haitianos que
haviam aparecido em número considerável nas primeiras estimativas
contraíram a doença em relações sexuais com turistas norte-
americanos. Mas não era só: mulheres heterossexuais e monogâmicas,
até então fora de todos os grupos de risco, pegavam aids em relações
com os maridos. E, caso engravidassem, seus filhos tinham grandes
chances de nascerem contaminados.
O caso Markito deixou de parecer isolado quando outros brasileiros
começaram a ser registrados como infectados e nos Estados Unidos
ocorreram quase 2 mil óbitos. A Secretaria de Saúde de São Paulo,
mesmo sabendo pouco, abriu uma linha telefônica para dúvidas, o
Disque Aids, e nomeou o médico sanitarista Paulo Roberto Teixeira
para chefiar a primeira frente no país a lidar com o assunto, treinada
para evitar a propagação e conter uma segunda praga oportunista
espalhada com o mesmo potencial de destruição: o desprezo pelos
infectados. Milhares de folhetos passaram a ser distribuídos em saunas,
boates e no que consideravam “pontos de encontro gays” tentando
ensinar o que era possível sobre precauções, sintomas e solidariedade.
Doutor Paulo abrigou em sua casa, por quatro meses, um rapaz de
35 anos expulso do apartamento em que vivia com amigos assim que
souberam que ele fora contaminado. Muitos pacientes que toleravam os
primeiros sintomas: febre, inchaço dos gânglios linfáticos nas nádegas,
axilas e virilhas, desmaios inexplicáveis, tosse cadavérica e falta de ar,
além das manchas e das erupções que poderiam tomar órgãos inteiros,
não suportavam a evolução da doença ou agonizavam com a sentença
de morte. Um dia, horas depois de chegar ao trabalho num hospital de
São Paulo, o médico ouviu um barulho de vidro estilhaçado seguido de
um estrondo seco. Correu até a janela e identificou um corpo
estraçalhado no parapeito em frente à sala. Um de seus pacientes havia
se jogado do sétimo andar.

Ninguém via, mas Ney também mudava rápido e um vazio que se


tornava aterrador tirava pela primeira vez sua vontade de viver desde
que tudo havia começado. Não fazia sentido. Aos 42 anos, ele tinha
dinheiro suficiente para financiar todas as liberdades que almejava e um
patrimônio dos sonhos: sexo com quem desejasse, mais amigos do que
era possível cuidar, fãs amorosos, plateias lotadas, discos dos quais se
orgulhava e respeito da crítica. Cazuza era cada vez mais Cazuza com
o sucesso do Barão Vermelho e Marco de Maria cada vez mais seu
amor. O que havia então com o mundo tão bem construído pela força
de sua teimosia? Onde estava a graça? A vontade de estar nos palcos?
Em que momento a paz tinha ficado pelo caminho? “Será que estou
ficando maluco?”, perguntou a Vicente Pereira. Vicente, um caçador de
espiritualidades, rezador de todas as ervas e passageiro de todos os
ácidos, conhecia algo que poderia ajudá-lo. Um tratamento de alto
impacto chamado Fischer-Hoffman, da especialista Gilda Grillo, o
levaria a muitas respostas, como levara a ele, Vicente, desde que Ney
estivesse disposto a voltar no tempo para enfrentar o pai, a mãe, a si
mesmo e a todos os demônios que surgissem.
Havia algo em Ney além das turbulências emocionais de uma
suposta crise dos quarenta e talvez maior que o fato de sentir-se
aprisionado por um ciclo industrial implacável capaz de o transformar
num “funcionário público da música”, como disse a uma repórter,
lançando discos e viajando com shows pelas mesmas casas dentro de
períodos estabelecidos por empresários e gravadoras. Alguma peça de
seu circuito interno não respondia bem fazia tempo. Talvez pela falta
histórica de carinho físico dos pais, petrificava-se diante de toda
manifestação de calor humano. Abraços o travavam, carinhos o
endureciam, beijos o afugentavam e qualquer ato de amor ou
agradecimento que pedisse retribuição seria frustrado pelo silêncio. Não
era o que Ney queria ser e se ver assim o entristecia. Seus centros de
energia estavam ativos, o racional, o sexual e o fonético, exceto um: o
cardíaco.
19. “O maior show de todos os tempos”

Fischer-Hoffman: “Um curso de autoconhecimento e desenvolvimento


pessoal baseado num trabalho autobiográfico, uma tomada de
consciência e imersão na programação negativa da infância, onde
aprendemos e adotamos os padrões negativos dos pais, que são a
base inconsciente dos conflitos internos e das dificuldades nos
relacionamentos atuais”. Uma espécie de regressão para extirpar os
traumas pela raiz. “Oferecemos uma lista de comportamentos que os
alunos identificam e, depois de escrever sua própria história, fazem uma
limpeza emocional profunda, soltando e se libertando das causas de
seus conflitos interiores.” E, então, vinham os resultados: “Somente
depois, os alunos estarão aptos a vivenciar e a chegar a uma
compreensão profunda. E, finalmente, a um espaço de compaixão e
perdão pelos pais da infância e por si”. Pelas palavras de Gilda Grillo,
Ney estava pronto para começar.
As três semanas de vivência do processo incluíam um período que
Ney passaria numa antiga fazenda, dormindo com um cobertor e um
travesseiro sobre uma tábua na área de um galinheiro para acordar às
cinco da manhã, plantar uma bananeira e pular várias vezes seguindo
os passos da chamada ginástica caótica antes de comer qualquer
coisa. Uma das primeiras atividades foi uma reunião com pessoas da
turma anterior que estavam ali para falar de suas experiências e que
Ney odiou por fazê-lo sentir-se num encontro dos alcoólicos anônimos.
Mas, logo depois, ele ficou apenas com Gilda. Sentou-se, fechou os
olhos, relaxou e deixou o pensamento livre ser conduzido pelas frases
da especialista. “Você está deixando seu corpo aqui e seguindo por um
caminho. Descreva esse caminho.” E Ney descrevia. Árvores, plantas,
um lago. “Agora, você vai entrar em um lugar e encontrar um ser
luminoso, como ele é?” E descrevia também o ser à sua frente. Ney
entendeu que seu nível de espiritualidade estava sendo testado e todas
aquelas revelações surpreendiam a ele também. Até então, conexões
com outros mundos só haviam acontecido sob efeito do , o que
definitivamente não parecia ser a mesma coisa, ou como curioso,
quando lia os livros da prolífica escritora e filósofa ucraniana de dons
psíquicos incomuns do século , Helena Blavatsky.
Ney foi levado mais tarde a uma sala com cerca de quarenta pessoas
divididas em grupos para realizar atividades acompanhadas por
monitores. Ele deveria primeiro escrever em uma folha de papel todos
os defeitos que percebia durante a infância existirem em seu pai e em
sua mãe. Fez uma lista com dez de cada um e a apresentou a um
instrutor. “Isso não dá nem para começar. Não aceitamos menos do que
150 defeitos para cada”, disse o rapaz. Enquanto todos escreviam, Ney
não conseguia ir além. Numerar os desvios do pai era fácil, mas viver
aquilo de novo, não. E identificar os da mãe, que sempre esteve a seu
lado, era uma tarefa quase impossível. Ao erguer a cabeça e olhar para
a sala, Ney viu todas as pessoas em dobro e se levantou, assustado.
Caminhou trêmulo até a porta e, antes de sair, sentiu uma de suas
pernas travar de uma forma que só conseguia se mover em círculos.
Quando tentou pedir ajuda, teve uma crise de choro.
Um dos monitores o conduziu a um terreno onde havia um pneu
pendurado. Era seu pai, sargento Matto Grosso, ou Ney deveria
imaginar que fosse enquanto reunia tudo o que existia de ódio
depositado durante anos em sua alma para espancá-lo com golpes de
porrete. Cada aluno tinha um pneu que representava alternadamente o
pai e a mãe de cada paciente, e era para surrá-los que todos deveriam
trazer um pedaço de mangueira ou algo parecido de casa. Depois de
bater no “pai” até a exaustão, Ney deveria fazer o mesmo, dessa vez
imaginando estar diante de dona Beíta.
As pancadas saíam com força até os braços doerem e as roupas
ficarem molhadas de suor, mas o pneu não deixava de ser um pneu, e
isso era um problema. Ney foi falar com os professores sobre sua
incapacidade de odiar um pedaço de borracha e ouviu uma das
monitoras debochar de sua fraqueza. “Ah, ele não pode bater na
mamãe porque mamãe não deixa.” Ney seguiu explicando aos outros
tutores que não podia evoluir e que se sentia estacionado enquanto a
monitora continuava: “Filhinho da mamãe não pode”. Se não podia ver
os pais no pneu, Ney viu o pneu na monitora quando deu um salto em
sua direção e desceu-lhe um golpe de mangueira. As provocações,
percebeu, também faziam parte do processo.
Gilda perguntou se sua vontade era mesmo superar aquela fase e o
levou até uma parte mais densa da mata, apontou para um colchonete
no solo e pediu que se deitasse e relaxasse com os olhos fechados.
Alguns minutos depois, quando só se ouvia o som da mata, dois
homens jogaram outro colchão sobre seu corpo e pularam com
violência sobre sua barriga e seu peito tentando sufocá-lo, até Ney se
transformar em um animal. Ele gritou, se livrou dos colchões, mordeu
uma das mãos que o seguravam disposto a arrancá-la e se atracou com
um dos rapazes até despencar com ele por um barranco. Era aquele o
sentimento que procuravam, minado das profundezas e em abundância,
para ser usado contra o pai e a mãe e libertá-lo das angústias. O pneu
agora era espancado com ódio e aos gritos, extraídos de todo o peso
que Matto Grosso e Beíta nunca imaginavam, um dia, terem colocado
sobre os ombros do filho.
A filosofia do processo Fischer-Hoffman seguia em fases. Por três
meses, Ney revivia sua história realimentando as heranças que
considerava positivas e tentando entender, perdoar e transformar o que
poderia trazer de ruim depois de buscar as pistas do material humano
que formou sua essência nos primeiros anos de vida. As pessoas
apenas reproduzem ou negam seus ancestrais sem entender que os
dois caminhos aprisionam. Aceitar os pais seria reproduzi-los, e negá-
los, romper com seus padrões, o que não deixaria de ser uma corrente
poderosa presa a padrões de negação dos incontornáveis
comportamentos paternos. O chato na cadeia que pode definir atitudes
por gerações é que, em nenhuma das opções, você é você mesmo. A
não ser que se disponha a dirigir-se até a infância perdida para
identificar os fantasmas, eliminá-los pelo perdão e, de forma mais leve,
embarcar de volta para o futuro.
Uma vez mortos, pai e mãe deveriam ser enterrados numa cerimônia
simbólica. Ney entrou em uma sala com quatro velas acesas sobre uma
mesa e os imaginou sem vida, vítimas também da reprodução dos
equívocos inconscientes de seus próprios pais. No fim, não havia um
culpado. Ney deveria oferecer ao universo todo o amor que sairia de si
com o perdão e se preparar para receber o amor que o universo
enviaria em troca. Porém, mais uma vez, enquanto os outros alunos se
maravilhavam com o que sentiam, chorando suas epifanias, Ney seguia
impenetrável.
Ele queria entender por que, depois de tudo, não podia ver o que
todos viam e arrepiar-se também diante da grande transformação.
Investigou então suas memórias revolvidas dias antes até encontrar a
pista que tinha deixado ao escrever a lista com os defeitos de Matto
Grosso. Uma frase dita pelo pai quando ele era muito criança apenas
uma ou duas vezes havia sido o bastante para provocar estrago: “Você
não merece nada!”. Ney precisava perdoá-lo e aceitar que merecia, sim,
ser feliz sem culpa por ter dinheiro suficiente para financiar todas as
suas liberdades, praticar sexo como e com quem desejasse, ter mais
amigos do que era possível cuidar, fãs amorosos a cada esquina,
plateias lotadas, discos dos quais se orgulhava, respeito da crítica,
Cazuza sendo mais Cazuza que nunca e o amor de Marco de Maria.
O processo Fischer-Hoffman não havia operado a cura de todas as
angústias, mas poderia inspirar o primeiro passo para mudar o que
tanto incomodava. Ney deveria refletir e chegar a mais respostas
sozinho, ainda que, por algum tempo, evitasse o assunto ou só
conseguisse falar sobre a visita nada convencional a um passado com
mais de quarenta anos de distância sentindo um tremor incontrolável.

Depois de uma pausa sem um novo e vibrante espetáculo, Ney


chamou o empresário Manoel Poladian para dizer que, dessa vez, não
queria ginásios, estádios nem Canecão. Ele precisava testar algo
original e grandioso, com força para romper os vícios da estrada em
que rodava desde 1974 e garantir o item básico que tinha feito até os
Beatles decidirem nunca mais pisar num palco: uma qualidade de som
boa o suficiente para ouvir sua voz soar mais alta do que os gritos da
plateia.
A Globo o havia sondado para torná-lo um de seus artistas mantidos
sob contrato de exclusividade e administrados pela empresa de eventos
da companhia. Depois de Ney, Poladian foi chamado para uma reunião,
avaliou as propostas e orientou seu artista a não fechar com a
emissora. Aquilo, financeiramente, seria um desperdício e eles, Ney e
Poladian, não precisavam se prender a uma empresa para fazer o que
queriam. Ney já estava decidido a não aceitar a proposta mesmo
sabendo das limitações que uma negativa traria.
Com Globo e Canecão riscados da lista, um espetáculo dos sonhos
pareceu mais distante até o acaso começar a agir no dia em que
Poladian encontrou um administrador do Circo Tihany durante uma
viagem de avião. Em voz baixa, o homem contou que o clima na
empresa não ia lá muito bem e que, por algum tempo, o circo ficaria
guardado, até que tudo fosse resolvido. Poladian pediu para ver a lona
e tudo o que havia sob ela já cheio de ideias e se deslumbrou com o
espaço de 3,5 mil metros quadrados, uma parte toda em veludo e uma
estrutura de águas dançantes que poderia ser usada no espetáculo. Um
show no circo, tudo o que Elis Regina queria ter feito quando pensou
em montar Falso brilhante, em 1976, era um sonho e Ney o aceitou no
ato. Agora, precisavam erguê-lo.
A praça Onze, por suas dimensões, tinha um histórico de receber
grandes circos no Rio até dias antes da tarde em que Poladian decidiu
solicitar o espaço ao governador Leonel Brizola. Seria impossível, disse
Brizola. Uma decisão tomada por ele havia acabado de reservar o lugar
aos vendedores ambulantes para criar um camelódromo na região.
Então, o empresário foi com Ney apelar à sensibilidade do vice, o
antropólogo e escritor Darcy Ribeiro. Havia outro espaço, disse o
atencioso Darcy. Ficava na avenida Presidente Vargas, perto do viaduto
da praça da Bandeira e do prédio dos Correios, ao lado do Centro
Administrativo da Prefeitura. Um terreno perfeito, não fosse um porém:
parte do local era ocupado por barracos de uma comunidade com cerca
de vinte moradores. E Brizola, que sabia o preço político de uma
desapropriação, mandara avisar: “Se der confusão, a responsabilidade
é de vocês”.
Ney e Poladian se tornaram sócios na aventura, o que, na prática,
significava que tudo seria dividido meio a meio, os lucros da
prosperidade e o choro dos prejuízos. Enquanto Ney partiu para acionar
o lado artístico, Poladian foi às estruturas. Chamou os moradores e
negociou com cada um oferecendo uma quantia equivalente a duzentos
reais em 2020 e transporte para quem aceitasse deixar o lugar e se
estabelecer na região de Queimados, na Baixada Fluminense.
Aos poucos, entre os que topavam no ato e os que pediam mais, a
área foi sendo liberada. Quando o último morador partiu, um trator
derrubou as casas vazias que restavam e os operários chegaram para
asfaltar o terreno. As pontas da grande lona à prova de incêndio foram
içadas sobre as estruturas de ferro e aquilo que nem o húngaro Franz
Czeisler havia imaginado em 1951, quando saiu de Tihany, na Hungria,
para deitar seus picadeiros pelo Brasil a partir de Jacareí, no interior de
São Paulo, começou a ganhar forma: um espetáculo de música com
dimensões épicas erguido no universo do circo.
Os 150 milhões de cruzeiros investidos por Ney e Poladian eram
vistos em cada canto. Um palco com duzentos metros quadrados, uma
plateia com 4358 cadeiras numeradas, 525 refletores de luz, uma grua
capaz de elevar Ney a seis metros do solo e toda a liberdade de ação
para Ricardo Zambelli, o mesmo de Homem de Neanderthal, criar os
figurinos, Américo Issa desenhar três cenários gigantescos que fariam
os jornalistas chamarem o local de “a Hollywood do circo”, e Jorge
Fernando, um jovem diretor de 29 anos em alta por ter acabado de
dividir com Guel Arraes a direção da novela Guerra dos Sexos, na
Globo, pensar e aprovar o todo, desde que Ney concordasse. A
portentosa banda que tinha gravado as faixas feitas no Brasil de … Pois
é e desbravado a Europa em 1983, formada por Piska, Pedro Baldanza
e Sergio Della Mônica, já havia sido desmobilizada e, mais uma vez,
Cesar Camargo Mariano indicava os novos escudeiros. Agora, não
nome por nome, como Ney ou Mazzola faziam com todos os grupos
desde 1975, mas um pacote inteiro.
Seriam dessa vez onze músicos de um conjunto que tinha mais do
que um título oportuno para um picadeiro, o Placa Luminosa. Jovens de
trato fácil, eles improvisavam sem estrelismo, produziam uma base de
pulsar seus próprios corpos enquanto tocavam e vinham da poderosa
escola dos bailes de clubes e ginásios que muitos desmereciam sem
saber quanta fluência a noite lhes garantia.
Ney nem quis ouvi-los. Apenas enviou uma fita com o repertório do
show e pediu que marcassem os ensaios. Logo no primeiro encontro,
disse que iria usar seus movimentos em cena e avisou que todos iriam
se apresentar de calça, sem camisa e com o cabelo cortado bem baixo,
exceto o saxofonista Mário Lúcio e o vocalista e percussionista William
Santana, que cultivavam seus cabelos black power com amor à causa.
O show ganhou o nome de Destino de aventureiro, o mesmo da canção
de Eduardo Dusek e Luís Carlos Góis composta para a peça Galvez,
imperador do Acre, baseada num romance do jornalista Márcio Souza,
e as músicas começaram a ser trabalhadas com ideias de cena que
ficavam muito melhores debaixo da lona de um circo.
Os jornais do Rio trouxeram o anúncio do “maior show de todos os
tempos” com uma advertência em letras maiúsculas: seu início, às 21h
de quarta a domingo e às 18h aos domingos, seria, por ordens de Ney,
rigorosamente respeitado. O trânsito foi desviado nas imediações e os
flanelinhas, com a permissão de Poladian, assumiram a guarda dos
carros em troca da garantia de que zelariam para não haver nenhum
incidente no local. Uma turma com cerca de quinze cambistas,
desafiando os 120 seguranças particulares e os homens da Cavalaria
da Polícia Militar, correu também pontualmente para a entrada do
Tihany, rebatizado com luzes e letreiros brilhosos de Circo Cósmico.
Enquanto o Canecão cobrava 8 mil cruzeiros pela entrada mais barata,
Destino de aventureiro tinha faixas de preço a 4 mil, 6 mil, 8 mil e, nos
camarotes, 10 mil cruzeiros. Mas, assim que os ingressos acabavam, a
inflação do câmbio paralelo se mostrava implacável e os cambistas
aumentavam os bilhetes de 4 mil para 10 mil cruzeiros e os de 8 mil
para 20 mil.

Apesar de não ser mais o garoto que vendia livros para sobreviver na
Zona Norte do Rio, Jorge Fernando se viu diante da maior aventura de
sua vida atual e da mais clara conexão com uma de suas vidas
passadas, segundo afirmou um mapa astral feito dias antes de Ney
chegar com o convite para a direção. Em outra encarnação Jorge teria
sido um homem feliz trabalhando com crianças num circo no interior da
França, uma descoberta que só aumentou sua euforia com a
oportunidade de erguer um espetáculo num picadeiro.
Inspirado, saiu de madrugada e se dirigiu sozinho ao Tihany
enquanto ele ainda estava vazio. Sentou-se no chão e ficou por horas
olhando para cima e imaginando o que poderia fazer para retribuir a
Ney aquela oportunidade cármica. Pensou em mil cenas e mil músicas,
de naves espaciais a obras de autores alemães, mas nem tudo
funcionou. Fazer Ney surgir em meio às águas dançantes cantando
“Vereda tropical” foi uma proeza digna de aplausos em todas as
sessões, mas incluir versões do compositor Kurt Weill soou um tanto
descabido. Pedir as interações espirituosas do Placa Luminosa durante
o show foi outro acerto, mas sugerir que Ney chegasse ao palco a
bordo de um disco voador, algo que em dois anos seria usado pela
apresentadora Xuxa em seu programa, da Globo, seria de
desestabilizar até os elefantes.
Ney sonhou com a participação dos elefantes e desejou ao menos
um deles para subir em seu lombo e fazer uma entrada triunfal. Animais
eram parte do cenário no tempo em que os circos podiam usá-los como
personagens do espetáculo, mas, por segurança, nem tudo era
recomendável. Além de alugar a lona de vinte toneladas e toda a
estrutura que ia abaixo dela, Poladian conseguiu algumas espécies
para expor em jaulas enfileiradas na entrada como forma de dar boas-
vindas ao público. E lá estavam um elefante, seis macacos, três
leopardos e dois tigres cuja participação na abertura também chegou a
ser cogitada, até o bom senso dos tratadores falar mais alto. Nenhum
animal suportaria docilmente oitocentos watts de luz disparados em
seus olhos e os ruídos de mais de 4 mil pessoas.
Uma última ideia abortada nas vésperas da estreia dizia respeito à
grua. A máquina alugada por um bom dinheiro por Poladian, mais
usada em canteiros de obras do que em circos ou shows, teria uma
cobra cenográfica entrelaçada à sua estrutura de metal e serviria de
base para Ney surgir, a seis metros de altura, vestindo uma tanga de
pele de onça verdadeira e cantando “O Rei das Selvas” enquanto os
músicos dançavam no palco como se fossem uma tribo de pigmeus.
Mas os ensaios mostraram alguns impedimentos técnicos. A grua
soltava fumaça, fazia um barulho infernal e, conforme Ney disse nos
limites da tensão de uma estreia, parecia “uma pica gigante e
desengonçada”. Poladian lamentou o desperdício e a retirou. A grua
saía, mas a tanga de onça, a dança dos pigmeus e a música de Dusek
e Góis ficavam. Às 21h de quarta-feira 11 de julho de 1984, Ney surgiu
seminu e reluzente de gel num trapézio que o colocava a onze metros
de altura para ser visto por 4200 pessoas incrédulas. Vivia o começo da
primeira noite que se tornaria o maior espetáculo de sua vida.
Sem saber bem o que Ney poderia aprontar num circo, a censura
tachou não o show, ao qual não havia assistido, mas o artista, a quem
conhecia bem, liberando o espetáculo para maiores de dez anos. Dias
depois, percebeu o exagero e reduziu o limite para cinco. E ainda, numa
terceira decisão, deixou a entrada livre aos domingos. Na outra ponta
das faixas etárias que se misturavam sob a lona do Tihany, uma
senhora de 92 anos ia às sessões acompanhada do bisneto quase
todos os fins de semana. Ao avistá-la dançando na plateia, Ney ficava
em êxtase. O mundo se acostumava a vê-lo com pouca roupa e o
ambiente do circo diluía qualquer erotismo.
As músicas compunham blocos com alucinantes trocas de figurino e
cenário que conectavam todas as suas faces. Uma cortina transparente
trazia a ideia de uma floresta tropical, palmeiras enormes apareciam
para ilustrar a série caribenha do repertório e duas portas metálicas
gigantes se abriam com um gesto de mão para mostrar uma noite
estrelada enquanto Ney cantava rocks, boleros, ritmos nordestinos,
música de cabaré, tango e moda de viola.
Ao menos três canções do espetáculo nunca seriam gravadas por
Ney e se converteriam, pela beleza de suas versões, em joias perdidas:
“Ave”, lançada por Dusek em 1981, no disco Olhar brasileiro; “Amo esta
isla”, uma defesa da vida em Cuba contraposta ao congestionamento
humano dos continentes, do cubano Pablo Milanés; e o pop rock “Pelo
interfone”, lançado pelo incensado Ritchie, que havia feito sucesso com
Voo de coração, um álbum de 1,2 milhão de cópias vendidas. A
sequência tinha o tango “Retrato marrom”, de Rodger Rogério e Fausto
Nilo, gravado por Fagner em Ave noturna, de 1975, e por Ney no disco
Pecado, e “Vereda tropical”, do mexicano Gonzalo Curiel. A Globo
recrutou “Vereda tropical” para a abertura de sua novela das sete, que
usava o mesmo nome, com estreia prevista para doze dias depois do
primeiro show. Mas, na versão que as pessoas ouviriam todos os dias
na , um trecho suprimido tirava o sentido dos versos, para indignação
de Ney.
“Amo esta isla” foi um desafio. Sua melodia típica dos soneros de
Cuba era feita sobre um ritmo intrincado e ardiloso, como os cubanos
gostavam de criar para pegar intérpretes desatentos. O tempo original
quebrado num compasso de sete por quatro, preservado pelo Placa
Luminosa, deixava Ney perdido nos ensaios. Os músicos sugeriram
então uma alteração, colocando a canção no chão com uma marcação
em seis por oito que não a tiraria do universo latino e a aproximaria das
guarânias de fronteira que Ney conhecia bem. Criou-se assim uma de
suas grandes interpretações nunca gravadas, ao menos, oficialmente.
Um áudio com uma suposta reprodução da íntegra do show foi
oferecido em Nova York alguns anos depois da turnê e Poladian tentou
comprá-lo, mas os vendedores sumiram, talvez, por cautela. E nunca
mais voltaram a oferecê-lo.
A cortina subia e um cronômetro disparava uma cadeia de ações
coordenadas nos bastidores com marcações sem tolerância para
falhas. Assim que Ney começava a cantar o segundo verso de “Pelo
interfone”, por exemplo, um de seus produtores mergulhava dois
comprimidos do energizante Targifor num copo de água e o deixava no
mesmo local estratégico de todas as noites. A duração do restante da
música levava o exato tempo que os efervescentes precisavam para se
diluírem.
Ney saía do palco, tomava a solução num gole e voltava a cantar.
Tomava também um composto de mel, própolis e guaraná, que poderia
segurá-lo ativo até as três da manhã se necessário, mesmo depois de
uma perda de três quilos por noite eliminados em jorros de suor que
banhavam as pessoas das primeiras cadeiras. Outro assessor colocava
um colar para esquentar em uma secadora de louças minutos antes de
Ney usá-lo para que não houvesse risco de que o frio do metal
prejudicasse sua voz.
Mas nem tudo poderia estar sempre sob controle. Numa tarde em
que o Placa Luminosa passava o som, antes do show, uma onça fugiu
da área reservada e foi dar um passeio pelas dependências do Circo
Cósmico. Quando o guitarrista Ribah Nascimento ouviu um grito
avisando que a onça estava solta, correu com o bandolinista Ney
Marques para um dos contêineres usados como camarim. Houve um
pouco mais de desespero porque a porta estava trancada, mas logo
conseguiram abri-la, entraram na sala e só saíram quando o animal
retornou à jaula.
O maior imprevisto da temporada se daria por razões mais técnicas e
seria testemunhado por um circo lotado. As falhas de microfone já
haviam acontecido por três noites seguidas e os técnicos tinham sido
devidamente advertidos quando Ney se posicionou mais uma vez para
começar a cantar “Retrato marrom”. A música pedia concentração para
que a entrada saísse firme e precisa na pausa seca feita pelo grupo
após a introdução instrumental. Mas quando Ney soltou a voz com toda
a fúria que o tango pedia, o microfone, mais uma vez, não funcionou.
Impetuoso, Ney arremessou o objeto no lago da fonte à sua frente e
continuou o show. O aparelho importado de quinhentos dólares só seria
reposto quando o baterista Luiz Gadelha, o Luizão, trouxesse um novo
dos Estados Unidos.
Uma imagem que Jorge Fernando via todos os dias durante os
espetáculos parecia maior do que os contratempos. Ao olhar para Ney,
ele percebia que uma fumaça saía de seu corpo para formar duas
pequenas nuvens que entendia ser de “energia condensada” sobre
seus ombros. Nunca disse isso a Ney, talvez por achar que a magia
poderia estar só em seus olhos, mas pensava, ao ver a cena, estar
diante do que chamaria de “a coisa mais grandiosa” que o artista havia
feito na vida. Até o dia em que o espetáculo migraria com todas as suas
ferragens acondicionadas em 32 carretas para o início da temporada de
São Paulo, no terreno ao lado do Shopping Center Norte, em Santana,
Destino de aventureiro teria sido visto por 160 mil pessoas só no Rio.

As notas daqueles acordes soavam muitas vezes diferentemente do


que se ouvia no rádio e as letras das canções careciam de alguma
correção, mas nada era mais aguardado nas bancas por um garoto com
um violão nas mãos a partir do início dos anos 1970 do que a próxima
edição da revista Violão & Guitarra. A proeza editorial dos irmãos Vitor e
Oswaldo Biancardi Sobrinho partia de uma ideia simples: selecionar
algumas das músicas mais tocadas do mês, simplificar suas harmonias
e publicá-las com os devidos acordes e esquemas rítmicos baseados
em setas para cima e para baixo que só necessitavam de instinto e boa
vontade para funcionar. A Violão & Guitarra já tinha até apelido
carinhoso, Vigu, quando os Biancardi decidiram expandir os negócios e
criar uma revista mensal chamada Música para trazer reportagens
jornalísticas. Uma entrevista com George Harrison em 1979, feita numa
coletiva de imprensa que o ex-Beatle concedeu no Rio de Janeiro
depois de assistir ao Grande Prêmio de Fórmula 1 do Brasil, foi
comemorada pela equipe como um troféu. Assim, manter a
performance era preciso em matérias com Rita Lee, Zé Ramalho,
Martinho da Vila, A Cor do Som, Roberto Carlos e, sob os cuidados de
um dedicado repórter de vinte anos chamado Paulo Ricardo, Ney
Matogrosso.
Ney já era grande e andava um pouco maior naquele ano de 1982,
um depois do sucesso de Homem com H, quando Paulo chegou ao
Hotel Brasilton, em São Paulo, para entrevistá-lo, trazendo
estrategicamente uma fita cassete na bolsa para o caso de o artista,
nunca se sabe, perguntar: “E você? Toca?”. Paulo, também por instinto,
deixou os outros jornalistas à vontade para fazerem suas entrevistas
primeiro e ficou para o final.
Cobrir música brasileira não era o forte de um repórter que já havia
colaborado com matérias de pop rock para jornais segmentados como
Canja, Jornal da Música e Phonograma, traçado perfis publicados em
edições temáticas na revista SomTrês, com pôsteres de bandas
britânicas como Rolling Stones, Queen e Led Zeppelin, e que sonhava,
com alguns anos de atraso, ter sua própria banda de rock progressivo
com um vizinho tecladista fã dos cerimoniais galácticos de Rick
Wakeman e Keith Emerson. Mas, em todo caso, bastava lembrar que
seu entrevistado tinha começado tudo com uma banda que ele entendia
como sendo de um rock “semiprogressivo”, os Secos & Molhados. Além
de render um bom papo, Ney poderia dar uma força para uma banda
iniciante.
A entrevista fluía, os protocolos eram cumpridos e todas as perguntas
vinham seguidas por respostas generosas até que, em algum momento,
o encontro se transformou em uma conversa na qual não importava
mais quem era o artista e quem era o repórter. Paulo Ricardo tomou
coragem e se pôs a falar de seu grupo. Ele se chamava Aura e era
formado por Paulo no baixo e no vocal, Luiz Schiavon no teclado,
Eduardo Coelho na guitarra e um segundo Paulo Ricardo de sobrenome
Valenza na bateria.
O som que faziam era um jazz rock experimental de fôlego e solos
viajantes, muito mais rock do que jazz, apesar de alguma influência do
grupo Pau Brasil. As músicas tinham uma média de oito ou nove
minutos de duração, letras de pequenas estrofes, ciclos sem refrão e,
resumindo, Paulo gostaria muito que Ney fosse vê-los em ação. Não
havia nenhum show marcado, mas os ensaios numa casa alugada na
alameda Jaú eram muitos e já duravam quase três anos. Em todo caso,
Ney tinha agora a fita nas mãos para ouvi-los assim que tivesse um
tempo.
O tempo de Ney para o Aura nunca veio e o sonho progressivo de
Paulo Ricardo e Luiz Schiavon terminou antes de começar. Depois de
tentar uma segunda vez, criar novas músicas, gravar outra fita e fazê-la
chegar a Ezequiel Neves, que sugeriu a troca do nome do grupo para
Guevara, Paulo chegou a colocar um pé na gravadora , mas
desistiu. Suas letras não mereciam um . Deprimido com o próprio
talento, que parecia existir só no campo das ideias, encostou o baixo e
partiu para uma viagem com a namorada para Paris. Lá, o casal se
desentendeu e Paulo deixou a garota na casa dos amigos para seguir
sozinho até Londres, onde continuaria escrevendo uma coluna batizada
“Via aérea” para a revista SomTrês enquanto via o nascer da década de
1980 frequentando shows do Tears for Fears, U2 e David Bowie no
Estádio de Wembley.
Numa de suas idas ao lendário Marquee Club, Paulo viu um senhor
malvestido subir ao palco, soltar uns berros e ser longamente
aplaudido. Era Ian Gillan, do Deep Purple, que havia acabado de
influenciá-lo às avessas com sua performance ébria e decadente. Fazer
rock and roll no Brasil ou em qualquer lugar do planeta deixava de ser
heresia naquele instante para ganhar as bênçãos de Gillan.
Mais alguns meses e Paulo Ricardo estava de volta ao Brasil e à
casa de Schiavon, em Pinheiros. Depois de ouvir Eurythmics, Duran
Duran, Joy Division e David Bowie, as ideias do Aura soavam velhas,
como se passassem por um gramofone. A dupla começou então a usar
suas influências progressivas para compor algo mais orientado ao tecno
e ao new romantic. Eles gravaram uma fita demo, só os dois, com o
baixo e a voz de Paulo e os sintetizadores e a bateria eletrônica de
Schiavon, e batizaram o projeto de S.A., Sociedade Anônima, até que
outro nome aparecesse. Paulo levou uma cópia para Marcos Maynard,
diretor da gravadora , e, junto com o parceiro, preparou outra para
entregar a Ney Matogrosso, que estava hospedado no hotel Maksoud
Plaza.
Luiz Schiavon chegou ao encontro mais cedo, tenso e um pouco
desorientado. Ver o cantor dos Secos & Molhados sem deixar que sua
timidez estragasse tudo já era um desafio. Enquanto Paulo não vinha,
ele pediu ao recepcionista que avisasse no quarto de Ney sobre sua
presença no hall à espera do amigo para subirem juntos, mas Ney
respondeu dizendo para ele subir sozinho. Aos 25 anos, o tecladista
entrou nervoso em um dos luxuosos elevadores do Maksoud, chegou
ao quarto e tocou a campainha. Mal abriu a porta, Ney percebeu o
constrangimento do garoto e ofereceu um cigarro. Schiavon nunca
havia fumado, mas aceitou, tragando lentamente para não tossir e
aparando as cinzas com a mão para não sujar o tapete. Por uns
quarenta minutos ficaram assim, fumando e tentando conversar. Logo
que Paulo chegou com a fita, eles começaram a ouvi-la e Ney
acompanhou cada faixa em silêncio ao lado do aparelho do quarto.
“Rádio pirata”, “Revoluções por minuto”, “A cruz e a espada”, ainda sob
o título “Quatro ruas”, uma “Olhar 43” ainda não finalizada e uma faixa
que apenas dava uma ideia do que seria um dia “Louras geladas”. Ao
fim, Ney tinha seu veredicto: “As músicas são boas, mas a banda está
gelada”. E gelo era tudo o que o rock brasileiro não iria admitir a partir
daquele ano.
20. Rebolando para o heavy metal

Colocar um punhado de pombas brancas para voar no início de


“Rosa de Hiroshima” parecia uma tarefa relativamente tranquila perto de
tudo o que se passava nos 250 mil metros quadrados ao redor naquele
fim de tarde de 11 de janeiro de 1985. Fácil. Um baú seria aberto,
quinhentos símbolos da paz bateriam asas altivos e a multidão se
entregaria cantando a uma só voz. Mas, assim que a música começou,
o garoto William abriu a tampa, e nada. Como se soubessem da
profecia de Nostradamus espalhada dias antes pelos jornais, de que um
grande encontro de jovens na América do Sul terminaria em tragédia,
com a morte de milhares de pessoas, as aves se encolheram decididas
a continuar ali mesmo. William pediu ajuda e o percussionista Fabinho o
acudiu, tirando-as do baú e arremessando uma a uma em direção à
plateia. Os bichos atordoados planavam sem rumo até se depararem
com um mar de 100 mil cabeças assustadoras que as faziam dar meia-
volta e se esconder sobre amplificadores, barras de ferro e peças da
bateria enquanto “Rosa de Hiroshima” seguia, a plateia cantava e
William rezava para que nada mais desse errado.
Fazia vinte minutos que o mundo não era mais o mesmo. Diante de
uma das maiores concentrações de pessoas reunidas por algum motivo
no país, a maior em frente a um palco de música, Ney e o Placa
Luminosa deixavam de se apresentar para os 4358 fãs do Circo Tihany
para abrir o primeiro Rock in Rio, despencados num palco de 5600
metros quadrados como criaturas da selva liderados por um Tarzan de
53 quilos com uma tanga de onça e uma pena de gavião-real presa à
testa. Uma galáxia de metaleiros que, até as 3h42 da madrugada,
quando terminasse o show do Queen e já tivessem tocado Iron Maiden,
Whitesnake, que assumia a vaga aberta com a desistência do Def
Leppard, Erasmo Carlos, e Baby Consuelo com o marido Pepeu Gomes
na guitarra e o filho Kriptus Baby no ventre, chegaria a agrupar perto de
250 mil jovens. Uma batalha épica imposta a si mesmo pelo publicitário
Roberto Medina, disposto a desbravar um deserto de descrenças
empresariais, deficiências técnicas, ignorância logística e todas as
ingenuidades que faziam do Brasil um ponto que os radares dos
espetáculos internacionais não acusavam.
Um outro lado parecia mais estimulante. Ao mesmo tempo que
muitos agentes de artistas contatados por Medina nos Estados Unidos e
na Europa não conseguiam ver um festival de rock na América do Sul
sem imaginar cobras e macacos subindo por palcos armados numa
floresta tropical — uma ideia que, por sinal, Ney Matogrosso adoraria
—, duas nuvens cada vez mais carregadas e prestes a desabar
pairavam sobre um país de 135 milhões de habitantes. Uma delas trazia
o espírito libertário do rock: um ano após a campanha pelas Diretas Já,
a nação seria assumida pelo primeiro presidente não militar desde
1964, Tancredo Neves, por quem Ney havia até cantado “Rosa de
Hiroshima” no Comício da Sé um ano antes, em São Paulo. A história
não seria bem assim, com a morte de Tancredo e a posse de seu vice,
José Sarney, mas, até ali, ninguém sabia disso. A outra nuvem trazia o
próprio rock. Não mais o dos porões, maldito desde o fim da Jovem
Guarda, mas o de uma geração classe média absorvida rapidamente
pelo mainstream que tinha uma pequena parte prestes a pisar naquele
palco até o dia 20 de janeiro — com Barão Vermelho, Blitz, Paralamas
do Sucesso, Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens e Lulu Santos — e
outra ganhando musculatura em seus primeiros e segundos s, como
Titãs, Ira!, Ultraje a Rigor, Plebe Rude, Legião Urbana, Camisa de
Vênus e Capital Inicial. Quando a cena das adversidades se chocou
com a das vontades, quase sempre a segunda venceu.
Uma pesquisa publicitária mostrada por Medina à imprensa na
semana anterior à estreia apontava que 60% dos jovens brasileiros de
1985 tinham o rock como prioridade no que consumiam e um
levantamento geral atraía as atenções dos jornalistas com uma lista de
números superlativos. Por dez dias seguidos, seriam vistos 53 shows
de 28 grandes artistas que tocariam por um tempo equivalente à
audição dos dois lados de 130 s. De fora, além dos que estavam na
primeira noite, viriam George Benson, James Taylor, Al Jarreau, Rod
Stewart, / , Scorpions, Ozzy Osbourne, The Go-Go’s, Yes, B-52 e a
única que faria Ney descer à pista para assistir a um show se ele não
tivesse de sair da Cidade do Rock às pressas para retornar com a
temporada de Destino de aventureiro: a roqueira de Berlim Oriental,
Nina Hagen.
Talvez as coisas tenham começado a ficar um pouco mais
assustadoras na sexta-feira de manhã, quando o guitarrista Ribah
Nascimento leu a matéria do jornalista Pepe Escobar na Folha de
S.Paulo prevendo uma noite difícil. “Hoje tudo gira em torno do Maiden.
Ney Matogrosso é sério candidato a levar as primeiras vaias de 70 mil
watts. A garotada não vai ter saco.” Ribah, que seguia de avião com os
amigos do Placa de São Paulo para o Rio, sentiu o estômago revirar e
fechou o jornal. Ao chegarem para a passagem de som à tarde, os fãs
metaleiros já estavam grudados na grade de contenção.
O som da guitarra de John Sykes, do Whitesnake, saindo de duas
caixas Marshall de 250 watts cada, era tão alto que Ribah preferiu
esperar sua vez de fazer os testes na coxia, ao lado de seu pequeno
amplificador Cubo 100 da Roland. Minutos antes das 18h, Erasmo
Carlos entrou no camarim de Ney vestido de jaqueta de couro estilizada
e correntes prateadas trazendo uma rosa vermelha. “Aí, rapaziada, bom
show pra vocês.” Mazzola sugeriu no camarim que a abertura fosse
feita com “América do Sul”. Até então, a ideia de Ney, e isso explica seu
figurino meio Tarzan, meio homem das cavernas, era chegar cantando
“O Rei das Selvas”, como fazia no show Destino de aventureiro. Mas,
além de conseguir impacto maior com algo menos nebuloso, a troca de
músicas trazia um solitário simbolismo de resistência cultural. Fazer de
“Deus salve a América do Sul” a primeira frase do Rock in Rio, de
braços erguidos e com uma ossada numa das mãos diante da
curiosidade do guitarrista do Queen, Brian May, que via tudo das coxias,
e da massa de adoradores do heavy metal inglês, era como dizer “ok,
rapazes, vocês são legais, mas nós também existimos”. Medina temeu
pelo pior. O metal tem uma plateia rígida e conservadora e Ney não
parecia disposto a negociar nada em troca de simpatia. O show era
aquele e ele era aquilo.
Mas o Rock in Rio não era o Canecão e nem todos os que estavam lá
embaixo, na maioria jovens que aguardavam na chuva fraca e
intermitente desde as 14h à base de lanches do McDonald’s e do Bob’s,
usando camisetas pretas com mensagens nada amistosas, como a de
um rapaz que dizia “Matem o Al Jarreau”, sobre o cantor de jazz
incluído em outro dia da programação, não pareciam dispostos a
esperar mais. Antes que o segundo refrão de “América do Sul” soasse,
pessoas mais próximas ao palco começaram a jogar copos plásticos,
ovos cozidos e sacos com sobras de marmita em Ney. Alguns objetos
eram rebatidos com chutes de reflexo rápido, mas outros caíam a seu
lado. Depois de ver as pombas refugarem e ouvir o som dos
instrumentos chegar ao palco como se saísse de uma lata, William
Santana, percussionista e cantor de apoio no grupo, orava: “Deus, não
deixe nada pegar nele”.
Ney foi vítima de pelo menos três infortúnios de uma estreia que
podem ser enumerados por ordem dos acontecimentos: 1) Fazer o
primeiro show às 18h, quando o dia, mesmo nublado, se estenderia até
onde fosse possível no verão de Jacarepaguá, anularia qualquer efeito
de luzes — e o próprio Ney já havia tentado negociar, pedindo uma
semana antes a mudança do horário. 2) Junto com o primeiro festival
híbrido entre bandas nacionais e internacionais nascia a prática da
sabotagem: toda a qualidade de som para a entrada dos gringos e só o
suficiente para não deixar que as preliminares dos brasileiros
passassem de preliminares. Uma segunda vertente diria que o
problema estava nos operadores brasileiros da época. Ao contrário dos
técnicos estrangeiros, eles olhavam para as mesas de som de última
geração como se vissem o painel de controle do ônibus espacial
Challenger. 3) Por mais audaciosa que pudesse ser, a presença de Ney
na mesma noite de Whitesnake, Iron Maiden, Queen ou de qualquer
outro exemplar do rock and roll planetário não seria uma boa escolha.
Mas, num mundo em que ninguém tinha feito nada parecido, quem
poderia imaginar tal desfecho?
Apesar de as câmeras da Globo registrarem objetos caindo no palco
no instante em que Ney cantava “América do Sul”, a reação mais
agressiva se concentrou na faixa mais à frente. Só percebeu também o
incidente das pombas desorientadas quem conhecia o script original
que elas deveriam seguir, ou seja, os artistas. Quem não sabia, até se
emocionou. “Rosa de Hiroshima”, com seu instrumental delicado,
baixou a guarda e Ney ficou um pouco mais vulnerável às vaias que
ressurgiram. Alguns músicos do grupo já estavam tensos quando ele
voltou para repetir “Pro dia nascer feliz” no bis, depois de cantar “Cobra
Manaus”, “Por que a gente é assim”, “Com a boca no mundo” e
“Coração civil”. A sensação de Ribah e de William era a de que todos
perderiam o controle se a apresentação durasse três minutos a mais.
Da sala de imprensa, com a comunicação com as redações prejudicada
pelo rompimento dos cabos de energia que alimentavam os aparelhos
de telefone e de telegramas provocado por um trator, nenhum dos
jornalistas relatou esses fatos, mas quase todos apontaram em seus
textos uma frieza do público na maior parte do show.
Minutos depois de chegar ao camarim, Ney disse aos repórteres que
havia passado o começo da apresentação agressivo com os “típicos fãs
de heavy metal” que “ficavam fazendo gestos com os dedos como os
chifres do demônio”, mas que após a quinta música já tinha todos nas
mãos. A falta de retorno nas caixas também foi um problema que ele
levou a Medina e que o empresário reconheceu, citando a falta de
técnicos preparados.
Quando o ônibus com alguns músicos do Placa deixava Jacarepaguá
— Ney tinha ficado no camarim para assistir aos outros shows por um
aparelho de —, ouviu-se um estrondo de vaias realmente raivosas
ecoar na Cidade do Rock. Erasmo Carlos, mesmo com seus acenos
aos metaleiros e suas falas por Janis Joplin, Jimi Hendrix e Elvis
Presley antes de atacar uma seleção de rocks da Jovem Guarda, era
devorado vivo por toda a fúria acumulada de já quase 200 mil pessoas,
uma execração impetuosa da qual o roqueiro jamais se esqueceria. Era
o segundo show da noite, a exata posição em que Ney havia pedido
para estar uma semana antes.
Chovia quase todas as noites, lavando uma média diária de 200 mil
almas pelos dez dias de Rock in Rio. No final da primeira, Freddie
Mercury regeu o público para cantar “Love of My Life” e estendeu a
bandeira do Brasil ligada à do Reino Unido com o baterista Roger Taylor
segurando a outra ponta. As vaias pouparam poucos brasileiros. A
abertura do dia 15, com o Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens, foi
apresentada pelo ator Kadu Moliterno como “o primeiro show da
democracia brasileira”. Horas antes, Tancredo vencera Paulo Maluf no
Colégio Eleitoral e se tornara o primeiro presidente civil numa votação
ainda sem o povo mas já sob os ares da liberdade. A cantora Paula
Toller, do Kid Abelha, entrou aplaudida levando a bandeira do país e
deu início a um show animado até tudo começar a mudar. Sob uma
pressão da plateia cada vez maior, chegou a responder às hostilidades
com o dedo médio endurecido enquanto cantava “Pintura íntima”.
Eduardo Dusek, na sequência, teve uma saída mais honrosa. Ao sentir
que não poderia derrotar seus detratores nem se desviar da areia que
arremessavam, juntou-se a eles: “Eu vou contar até três e quero ouvir
uma grande vaia aqui, hein! Um, dois, três”. E um ruído gigantesco
tomou a Cidade do Rock. Mas Dusek não se contentou: “Ainda está
fraco. Eu vou contar mais forte: um, dois, três!”. E o estrondo dobrou de
tamanho. Sorrindo, o artista caminhou até o centro do palco e disse: “Às
vezes é ótimo ser vaiado”. O Barão Vermelho não sofreu com as vaias
e, como Ney, Cazuza encerrou com “Pro dia nascer feliz” dizendo a
seguinte frase: “Que o dia nasça lindo para todo mundo amanhã. Um
Brasil novo e com a rapaziada esperta”.

O Brasil do dia seguinte não seria tão novo assim e o próprio Rock in
Rio apareceria nos relatórios do Serviço Nacional de Informações, o
. Num deles, os agentes relatavam ações panfletárias do -8, o
Movimento Revolucionário 8 de Outubro, um grupo de orientação
marxista ativo na luta armada contra os governos militares. Um panfleto
da ala jovem trazendo o texto intitulado “Rock in Rio — Explosão de paz
e alegria” estava sendo distribuído a estudantes secundaristas e
universitários com um trecho que atestava o poder do rock na
mobilização das massas:
É com imensa satisfação e alegria que a juventude do Movimento Revolucionário Oito de
Outubro vê a realização desta grande festa do rock no Rio de Janeiro no exato momento
em que nosso país ingressa em uma nova etapa de sua história. Isso não ocorre por
acaso. A força da juventude e do rock é que fizeram com que as coisas acontecessem e
se articulassem dessa forma. Não é exagero dizer que a juventude e o rock tomaram a
primazia de batizar a Nova República brasileira.

Um dos últimos cortes a uma banda de rock na passagem do “Brasil


velho” para o “Brasil novo” foi feito em 10 de dezembro de 1984, um
pedido de alteração das duas palavras finais na expressão “aqui na
esquina cheiram cola”. Segundo o censor, a frase “poderia expressar
curiosidade nefasta no ouvinte infantojuvenil”. Os autores da música,
Paulo Ricardo e Luiz Schiavon, seguiam o conselho de Ney e
aumentavam a temperatura de suas composições antes de gravar o
primeiro do grupo que agora se chamava . Até que uma nova
decisão revogasse a anterior e a cola de sapateiro, um dos tóxicos mais
comuns nas mãos das crianças em situação de rua dos anos 1980,
voltasse ao verso, a gravadora enviou um pedido para a liberação
da canção prometendo a troca do trecho para “aqui na esquina jogam
bola”. Nada que impedisse o de se tornar em um ano, e com a
ajuda de Ney, o único exemplar do rock nacional a viver sua
beatlemania particular.

Antes de lidar com novas aventuras, Ney começou a ser procurado


por mães de supostos filhos que ele havia deixado pelo mundo. Depois
de falar a um jornal sobre um casal de gêmeos que soube ter nascido
em Campo Grande fazia muitos anos, fruto de suas descobertas
sexuais, algumas mulheres entraram em contato. Na história contada
ao jornal, uma moça engravidara e, após a partida de Ney para o Rio de
Janeiro, procurou dona Beíta com uma menina no colo dizendo que o
irmão gêmeo da criança tinha morrido nos primeiros dias de vida. Beíta
pediu para cuidar da bebê, mas a mulher se negou a deixá-la e sumiu
sem pedir nada. Só queria que ela soubesse da neta.
Alguns meses depois da entrevista, três mulheres de partes
diferentes do país apareceram dizendo ser filhas de Ney. A primeira, de
Minas Gerais, enviou uma carta contando saber de tudo por meio do
avô e afirmando que a mãe havia se suicidado. Apesar de estranhar a
história, sobretudo a do suicídio, Ney entendeu que deveria receber a
moça e a chamou para ir ao Rio. Ela foi com os filhos, seus supostos
netos, e partiram todos para os testes de . Após o resultado
negativo para a paternidade em exames feitos e refeitos, se despediram
e a moça retornou a Minas, mas manteve uma ligação com o quase pai
por anos, indo a todos os seus shows que passavam por Belo
Horizonte. Duas outras mulheres apareceram mais tarde e fizeram Ney
voltar aos testes de paternidade. Nenhum deu positivo.

A vida após o Rock in Rio começou com um desafio que Ney não
conseguiu vencer. Viajar com Destino de aventureiro como ele queria,
levando o circo inteiro com todas as ferragens, a lona, as luzes, o som,
os cenários, camarins, figurinos e animais, além dos onze músicos,
maquiador, cenógrafo, produtores e empresário, durou até o primeiro
destino da trupe fora do Rio e de São Paulo. A estrutura de ferro
assustou os empregados contratados para a montagem numa cidade
do interior paulista e muitos desistiram do serviço. O que pesava mais
eram os custos e, por maior que fosse o histórico de Ney em fazer
shows apenas para pagá-los, Destino de aventureiro não levaria o
próprio nome tão ao pé da letra.
Assim, Ney e Poladian decidiram, em vez de pegar a estrada,
retornar ao Rio para uma segunda e derradeira temporada naquele
início de 1985. A reestreia levou muita gente que já tinha visto o show a
voltar à plateia e aqueles que não tinham conseguido vê-lo a
comemorarem. A última noite do espetáculo deixou nos músicos a
sensação de que havia ainda muita lenha para queimar, e isso ficou
claro em pelo menos duas cartas enviadas a Ney por remetentes
comovidos com o que presenciaram.
O húngaro Franz Czeisler Tihany, o sr. Tihany, nem sempre viu com
bons olhos o fato de ter sob suas lonas um cantor. Assim como casas
de show não eram para palhaços, trapezistas e mágicos mesmo que
fossem como ele, premiado com quatro medalhas de ouro em festivais
circenses pelo mundo, circos não deveriam ser para bateristas,
guitarristas e cantores, por mais performáticos que fossem. Mas
negócios eram negócios e Poladian era um bom pagador. Quando o
mágico Tihany esteve na estreia da primeira temporada, em 1984, um
código chegou a ser combinado com sua produção para que o tirassem
da plateia logo após o início. Ao primeiro sinal de tédio pesando sobre
seus 68 anos, um assessor iria até a mesa chamá-lo para atender a um
“telefonema internacional” e ele jamais voltaria. Mas, quando Ney
apareceu cantando “O Rei das Selvas”, algo o fez perceber que os
mundos não eram tão distantes assim e o dispositivo do telefonema
internacional foi dispensado.
Ao saber da última noite sob suas estruturas, Tihany escreveu uma
carta a Ney, guardada por todos esses anos no envelope timbrado que
chegou pelo correio:
Meu querido amigo e colega Ney Matogrosso. Estava trabalhando em meu novo
espetáculo em São Paulo quando lembrei-me de que hoje, 10 de fevereiro de 1985,
finalizavas tua temporada em nosso circo e vim urgente para abraçar-te e dizer-te o prazer
que tive em ter um carismático artista de nível internacional no Tihany. Ney, orgulhei-me
de poder vê-lo em meu circo. Rogo a Deus para que você tenha saúde e que as pirâmides
te protejam e iluminem tua passagem pelo nosso mundo. E que ainda tenhas muitas
glórias, pois profissionais iguais a você conto nos meus dedos. Lamento não poder
saudar-te pessoalmente. Motivo: um pequeno acidente com meu elefante e eu tive que
voar de volta para São Paulo em busca de meu médico. Receba o meu abraço carinhoso,
que Deus te abençoe.

Outra missivista de páginas datilografadas foi Luli. Uma das poucas


amigas de abrigo nos anos em que Ney só tinha os artesanatos como
ganha-pão e a voz fina nas tardes de Santa Teresa como diversão
passou a fazer críticas de seus shows e enviá-las profissionalmente
pelo correio. Algo muito pessoal, de percepções repletas do misticismo
sincrético que Ney conhecia bem. A primeira chegou em setembro de
1984, sobre uma das noites de Destino de aventureiro: “Há um acordo,
uma reunião, um equilíbrio maduro de forças que te alimentam, te
fortalecem e tornam possível o milagre cotidiano que é fazer aquele
show. Como Rio é cidade de Oxóssi e porta de circo é lugar de Exu, me
surpreendi com a fortíssima vibração de Ogum ali fora, na entrada”.
Dois parágrafos à frente, ela falava dos músicos do Placa Luminosa:
“Eles são perfeitos, fortes e suaves, roqueiros de sangue, sambistas de
coração, eruditos na perícia, alegres dançarinos e te curtem de
verdade. Sua soltura não choca com a rigidez, como era com os
músicos anteriores. Eles fluem como uma equipe perfeita te seguindo,
te calçando e dando o apoio que precisa para voar”.
No final de três páginas, mandava seis versos de um poema
inspirado pela noite anterior intitulado, como o show, Destino de
aventureiro: “Devolvo um pouco do que você me deu nesse soneto que
fiz no dia seguinte ao show, impregnada ainda com a tua essência:
‘Tudo o que for dito será pouco/ E o que for calçado será tudo/ O fardo
será o fardo se pesado/ Ou leve carregado num sorriso mudo’”. Luli
mandaria outras cartas que jamais teriam resposta. Elas eram lidas e
guardadas na mesma gaveta em que Ney deixava para a posteridade
um recado de Gonzaguinha, uma declaração de amor de Cazuza e o
bilhete carinhoso de Elis Regina.
21. Operação

Um homem de fala baixa e bem-vestido, austero em seus 42 anos,


entrou pelas portas altas do casarão da rua Conselheiro Ramalho, 873,
como se procurasse por alguém importante. Havia dois anos que a
construção de esquina resistente como um velho soldado no mesmo
Bexiga que viu os Secos & Molhados nascerem se tornara o refúgio de
quem estava à margem das margens e sem nenhuma pretensão de
mudar isso. Nem dois Rock in Rio pareciam juntar tantas espécies por
metro quadrado com tamanho poder de convivência, talvez por terem
saído de um mesmo tronco genético: punks, skinheads, new waves,
góticos, rockabillies, darks, mods e progs, entre roqueiros iniciantes e
iniciados, compartilhando os mesmos odores, carícias desavisadas,
performances inesperadas, filas para aspirações regulares de cocaína
no banheiro e shows de bandas que realmente valiam a pena. Nau,
Inocentes, Fellini, Ira!, Velhas Virgens. Mas Poladian estava ali por outra
razão. Aquela seria a noite de um grupo que Ney indicou com
entusiasmo quando soube da intenção do empresário em contratar uma
banda com apelo pop e potencial para levar 40 mil pessoas a um
estádio, mais do que Titãs, Capital Inicial, Kid Abelha e todos os grupos
surgidos desde o início da década. O , segundo Ney, era o nome da
vez. Mas, segundo o que viam os olhos de Poladian no inferninho
Madame Satã, o , para ser ruim, precisava melhorar muito.
As rádios tocavam “Louras geladas” e o primeiro , lançado pela
, começava a ganhar as ruas. Depois de um show no Rio de
Janeiro, no Noites Cariocas, visto por Cazuza, Ney, Ezequiel Neves e
Nelson Motta, o grupo tinha seu nome ventilado aos poucos num
circuito ainda de casas pequenas e danceterias do Rio e de São Paulo.
Antes de vê-los em ação no Madame, Poladian ouviu “Louras geladas”
no rádio e gostou, mas, ali no palco daquele porão mal iluminado, seu
projeto para adentrar o universo das grandes arenas do rock parecia
desabar.
Os instrumentos do quarteto soavam estridentes e desafinados e o
som da bateria que ficava atrás do cantor o atropelava impetuosamente,
vazando no microfone e transformando tudo numa massa pastosa e
indiscernível. Se não havia rock bom sem ruídos e muitos decibéis na
cultura do Madame Satã, o empresário que primava pelo resultado
associava aquele estado de coisas à falta de profissionalismo. Poladian
se perguntou se não estaria fazendo suas apostas no cavalo errado,
mas a palavra de Ney devia ressoar mais forte que os alto-falantes
rachados dos inferninhos do Bexiga. Ao contrário de todos os líderes de
bandas do rock nacional, Paulo Ricardo tinha, além de saber cantar e
compor, um sex appeal natural, uma combinação que o Brasil parecia
se negar a produzir no único gênero adulto em que esse fato era
aceitável sem que as credibilidades fossem afetadas. Afinal, Mick
Jagger, David Bowie, Jim Morrison e Robert Plant não perdiam fãs por
serem bonitos e sensuais. Ney sabia que o personagem era forte e que,
se bem trabalhado, se tornaria esse símbolo sexual. O empresário só
precisava ligar para Paulo Ricardo, antes que alguém fizesse isso.
A voz de Poladian do outro lado da linha falando em contratar Paulo
Ricardo e seu grupo era quase inacreditável. O roqueiro sentia-se,
enfim, resgatado dos papéis de coadjuvante vividos desde os dias de
jornalista musical em São Paulo e os de plateia nos pubs de Londres e
colocado, enfim, como protagonista de alguma coisa. E especificamente
a voz de Manoel Poladian, empresário de Roberto Carlos, Rita Lee e
Ney Matogrosso, falando em produzir a banda de rock de um jovem de
23 anos soava como a ligação de um diretor de Hollywood dizendo a
um ator novato que ele estaria em Top Gun ao lado de Tom Cruise. Não
era exagero. “Você está sentado, Luiz?”, disse Paulo ao ligar logo em
seguida para o parceiro Schiavon. “O empresário do Roberto Carlos
quer contratar a gente!”
E não era um contrato qualquer. Além de um salário mensal de 2 mil
dólares para cada integrante, Poladian propunha um projeto de sucesso
para o qual desembolsaria 400 mil dólares sem contar com um centavo
da . Ao procurar os executivos da gravadora pedindo ajuda
financeira para dividir os custos, ouvira como resposta que o ciclo de
investimentos no álbum estava no fim. O belo rosto de Paulo Ricardo e
seus sussurros roucos e enlouquecedores a meninas de quinze anos e
o fato de suas canções radiofônicas soarem com referências mais
respeitáveis do que indicava “Louras geladas” aos garotos de vinte não
haviam ajudado nas vendas do álbum, estacionadas nas 15 mil cópias.
Se era assim, Poladian daria as cartas. Investiria pesado e sozinho,
mas não em uma banda de danceterias adolescentes da Vila Madalena
ou de casas de rock decaídas do Bexiga. Para fazê-la chegar aos
teatros e estádios com a embalagem de superprodução, algo que o rock
brasileiro nunca havia feito, precisava de um bom diretor de palco que
transformasse em popstars soltos e cativantes quatro rapazes travados
na sisudez do rock mais suntuoso dos anos 1970. Ao olhar para o lado,
Poladian viu a saída. “Ney, você dirige?” Ney aceitou a proposta, mas
fez uma observação: “Eu preciso de carta branca”.
E carta branca, todos sabiam, significava dinheiro. Não para ele, Ney,
que também receberia pelos serviços, mas para bancar tudo o que
julgasse necessário a partir do aluguel de um teatro apenas para os
ensaios. “Eu nunca faria isso a ninguém, mas vou fazer por você. Quero
ver esse milagre acontecer”, disse Poladian. Milagres na indústria de
shows não existiam mas, talvez, ensaiar no palco do Teatro
Bandeirantes por dois meses a portas fechadas entre quatro e seis
horas por dia usando uma boa estrutura de luz e som poderia ser um
bom começo. O teatro estava em reforma e, o que já parecia um sinal
dos céus, o gerente aceitou alugá-lo pelos sessenta dias que
solicitaram. Agora, era com Ney, o diretor.
E ele já estava lá, sentado numa das poltronas da plateia do teatro
vazio, quando chegaram Paulo, Schiavon, o guitarrista Fernando
Deluqui e o baterista Paulo Pagni. Era o primeiro ensaio e, exceto
por Ney, todos tinham se atrasado. Antes de ligar os instrumentos, eles
ouviram do diretor a primeira recomendação: “Eu não gosto de atrasos,
ok?”. Havia muito trabalho pela frente, a começar pela quebra na
linearidade das bandas que passam sua existência fazendo uma lista
aleatória, espetando guitarras nos amplificadores e só parando de tocar
horas depois.
Eles precisavam criar uma narrativa e transformar os quarenta
minutos de som que tinham em uma hora e quarenta seguindo um
gráfico emocional que já estava na cabeça de Ney: iniciar no pico e ficar
lá por três ou quatro músicas antes de descer suavemente até atingir
uma vibração mais calma para, então, e de maneira estratégica,
reiniciar a subida até um fim catártico e glorioso. E, sim, por um ou outro
instante, acionariam o dispositivo da sedução, mas isso também não
caía do céu: ter sex appeal não era o mesmo que conseguir assumi-lo
num palco.
Aos poucos, Ney observava os rapazes falando entre si, chegando ou
saindo dos ensaios, e percebia nos gestos de Paulo um charme natural.
Via também que Deluqui, mais tímido, tinha um porte físico que pedia
para ser exibido. Fazia calor, o teatro sob as luzes ficava mais quente, e
Ney aproveitou para entrar no delicado território dos corpos
descobertos. “Vocês poderiam tirar as camisas?” Mas, muito diferente
dos tempos de Secos & Molhados, roqueiros dos anos 1980 eram seres
recatados, resguardavam seus corpos com devoção e poderiam sentir
no peito desnudo o preço de quem vende a alma ao sistema. Paulo
aceitou logo trocar o peso dos paletós de ombreira por regatas,
deixando à mostra os ombros que encantariam Caetano Veloso.
Fernando Deluqui, depois de uma relutância gerada por sua timidez
quase patológica, passou a tocar nu da cintura para cima. E , atrás da
bateria, ficou de decidir a cada apresentação. Só não se negociou nada
com Schiavon, um fã do mago das teclas do Yes coberto por capas
douradas, Rick Wakeman, e do sempre austero Richard Wright, do Pink
Floyd. “Eu não queria ficar sem camisa, me sinto bem assim.” Ney
entendeu. Schiavon deveria, como um habitante de outra galáxia, entrar
de sobretudo e tirá-lo apenas após a terceira música, protegendo sua
reputação durante o resto do show com a camisa abotoada até o
pescoço.
Era preciso dar mais segurança a Deluqui e aparar alguns exageros
nos movimentos de Paulo Ricardo. Eles deveriam brincar mais, ocupar
os espaços de ponta a ponta no palco e curtir, mas acreditar nas
marcações e respeitá-las. Em vez do espetáculo com textos explicativos
antes de cada canção, como queriam Paulo e Schiavon, Ney os
convenceu de que as músicas falariam por si. E as luzes também.
Inspirado por cenas que tinha visto no filme Blade Runner, de 1982,
Ney desenhou uma “luz do futuro”, com direito a um cobiçado raio laser
e a um neon comprado por Poladian depois de vê-lo num show de
David Bowie. As luzes azuis iluminariam a base do palco onde ficavam
os artistas e só seriam acesas quando a fumaça produzida por um
sistema de gelo-seco chegasse evaporando da água escorrida pelo
chão. A imagem do neon aceso com as nuvens brancas subindo por
baixo era a de uma nave espacial sendo ativada diante da plateia — e
os anos 1980 amavam naves espaciais.
Todas as músicas do álbum estavam ali: “Louras geladas”,
“Revoluções por minuto”, “Olhar 43”, “Rádio pirata”. Mas o show
precisava ganhar corpo e os músicos escolheram incluir a combativa
“Alvorada voraz”, a instrumental “Naja” e, já que Ney estava por perto,
uma versão robusta de “Flores astrais”, dos Secos & Molhados. Havia
ainda um clarão a ser preenchido na linha do tempo do show por uma
canção pequena, acústica e melodiosa, feita com voz e piano e que
valesse como um único respiro de um espetáculo sustentado o tempo
todo por uma massa vigorosa de som e de luzes, exigindo, mesmo na
quase romântica “A cruz e a espada”, tudo nas alturas. Ney sugeriu que
fossem procurar algo no manancial da , uma maneira de saírem dos
clichês e alcançarem relevância, e eles elegeram “Conversando no bar”,
ou “Saudade dos aviões da Panair”, de Milton Nascimento e Fernando
Brant. Uma aposta densa, de melodia difícil e com certa tensão que
persistiria em qualquer formato. Não ficou bom. Carecia ser doce por
apenas três ou quatro minutos e eles seguiram em busca de alguma
ternura até Paulo trazer a ideia de fazerem “London, London”.
Mais do que ter o espírito das grandes baladas que Ney pedia, a
canção criada por Caetano durante seu exílio em Londres, gravada
primeiro por Gal Costa como um folk, em 1970, e ainda mais
melancolicamente pelo autor, um ano depois, teria agora a força das
memórias afetivas de outro tempo. Londres era a cidade das
descobertas de Paulo, onde todas as certezas haviam chegado e as
proezas de seu inglês colocadas em teste. E “London, London”, além de
trazer o gene da , vinha com um pensamento harmônico e melódico
do rock, simples e direta, deixando tudo mais fácil. No ensaio do dia
seguinte, Schiavon sentou-se ao piano e tocou uma introdução que
fizera na noite anterior, tão bela quanto a própria melodia, uma música
dentro de outra, imposta e definitiva na terceira nota.
Ney também se inspirou com o que ouviu e criou uma luz especial
para o momento de “London, London”, usando no cenário a técnica do
ciclorama, um efeito que produzia a sensação de fundo infinito
enquanto um facho de laser acertava os espelhinhos de um globo
giratório, enchendo o palco de estrelas e levando toda a plateia para
uma noite no espaço. Paulo e Schiavon mostravam a canção como Ney
havia planejado, só os dois, ocupando o ponto da apresentação
estudado para se tornar um descanso antes de voltarem para a batalha
seguinte em meio aos gritos das fãs. Alguns jornalistas que estiveram
nos primeiros shows, feitos por quatro noites no Teatro Bandeirantes,
em São Paulo, antes de partir para o teatro do Hotel Nacional, no Rio, e
ganhar o país com o mês tomado por vinte datas fechadas, escreveram
sobre o que consideravam um avanço nas estruturas do rock nacional.
Uma produção nunca vista no rock, bancada pelo empresário e dono de
cada holofote de luz e caixa de som que viam no palco, pensada por
alguém capaz de eliminar os trejeitos de uma banda de rock do
Madame Satã e, em sessenta dias, transformá-la em espetáculo de
teatro.
O não estava totalmente pronto e os primeiros shows revelariam
Deluqui ainda vacilante nas marcações, com passos interrompidos,
Schiavon mal posicionado atrás de teclados, tocando “London, London”
de costas para a plateia, e Paulo Ricardo ainda tímido numa
sensualidade que, àquela altura, já não era uma escolha. Ney fez
alguns acertos e os rapazes embarcaram no ônibus leito seguidos por
duas carretas carregadas de equipamentos. O gigante que criavam,
bem maior que o de qualquer sonho, seria acordado por um rádio ligado
no ônibus depois de um show no Ginásio Gigantinho, em Porto Alegre.
Eles nunca tinham gravado “London, London”. A música só havia
entrado no show, mas era ela que, misteriosamente, tocava no rádio até
sessenta vezes por dia. E assim foi depois de passarem por Manaus,
Fortaleza, Caxias do Sul ou qualquer outra cidade, sempre ao som de
“London, London”, que tocava mais do que “Louras geladas”. Captada
de forma ilegal no show de Porto Alegre, a música foi parar nas
emissoras e locais e nacionais e os ouvintes a pediam com uma
intensidade avassaladora.
A , que menos de um ano antes havia se recusado a ajudar nas
despesas do álbum, corria para estancar a sangria. Queria que a banda
fosse para o estúdio gravar um novo disco de imediato, porém Poladian
disse não. O clima ficou tenso, mas chegou-se a um acordo: eles
registrariam um álbum ao vivo, sem sair da estrada, com as músicas do
primeiro e as que tinham surgido no show, incluindo, obviamente,
“London, London”. O disco produzido por Mazzola, Rádio pirata ao vivo,
seria registrado em dois shows em São Paulo, no Palácio das
Convenções do Anhembi, mixado em Los Angeles e lançado ligeiro,
enquanto “London, London” estivesse quente.
Artista extremamente avesso à indústria da música brasileira, hippie
de viver de artesanato e dar aos amigos todo o dinheiro que ganhava
com os Secos & Molhados, Ney se tornava um dos responsáveis diretos
pelo projeto mais industrial do rock no país, ajudando o a quebrar o
recorde de vendas da história. A banda faturou 500 mil cópias em dois
meses e, em menos de um ano, chegou a inacreditáveis 2,5 milhões de
discos, na mesma temporada em que o Ultraje a Rigor venderia 350 mil,
os Paralamas do Sucesso 340 mil e ele próprio, Ney, não passaria dos
300 mil.
Com 28 shows por mês e 1 milhão de pessoas perfazendo o público
da turnê anual, os artistas foram obrigados a utilizar carros-fortes para
se deslocarem. Treze anos depois de viver aquilo ao lado dos Secos,
Ney via a história se repetir com alguns ajustes geracionais e
tecnológicos. E sua direção valia também como um resumo do que ele
mesmo era aos 45 anos, oferecendo a um grupo de garotos vinte anos
mais jovens tudo o que ninguém lhe havia ensinado. Falas no palco são
ruídos, corpos são parte do discurso, luzes valorizam canções,
substâncias da emprestam profundidade, roteiros bem construídos
mudam tudo e bons shows não são feitos só com boas músicas.
O sucesso do seguia assustadoramente rápido e trazia no vácuo
as maldades da superexposição de uma banda de rock em 1986.
Depois de ser capa de todas as revistas, ir a todos os programas de
auditório, do novo Xou da Xuxa ao velho Cassino do Chacrinha, e de
ser tema de um Globo Repórter, em que o jornalista Pedro Bial viajava
com a banda por vinte dias e mostrava prensas de vinil de outros países
da América Latina sendo usadas para dar conta da demanda da
gravadora no Brasil, o também virou alvo e Paulo Ricardo mordeu
a isca.
Uma jornalista da revista Amiga ligou para Ney querendo saber como
ele havia conhecido Paulo e ouviu toda a história do dia em que o
vocalista, quando ainda era um repórter da revista Música, foi
entrevistá-lo num hotel. Ela quis saber então se eles tiveram um caso e
Ney respondeu que não, que jamais investiram num affair, nem naquele
dia nem nos dois meses que trabalharam juntos nos ensaios do show.
Além de ser casado, Paulo era um amigo. Um amigo muito bonito, mas
só um amigo.
A ilação da repórter, no entanto, já dera a ela uma certeza
indestrutível e foi com a arapuca armada que resolveu ligar logo depois
para Paulo Ricardo: “Ney disse que teve um clima entre vocês no dia
em que se conheceram. É verdade?”. E Paulo, talvez tomando por
clima a empatia que houvera entre os dois ao falarem de música,
respondeu: “É, teve um clima”. Assim que a revista saiu com todo o seu
material inflamável sobre a ligação íntima entre Ney e Paulo, os
extremistas voltaram a atacar. Carros foram vistos circulando com um
adesivo que dizia: “Mate um Paulo Ricardo hoje e evite um Ney
Matogrosso amanhã” e uma frase pintada no asfalto por dois
quarteirões na rua onde morava o líder do soava como a denúncia
de um delito imperdoável: “Paulo Ricardo é viado”.
Os grandes jornais embarcaram na história e colocaram em suas
entrevistas com o cantor do a pergunta incontornável. “Você teve
um caso com o Ney Matogrosso?”, quis saber o Jornal do Brasil. E
Paulo respondeu: “Com quinze anos eu andava muito no baixo Bexiga,
ponto de marginais, homossexuais, atores etc. Tinha muitos amigos
gays. O rock tem o homossexualismo embutido nele. Eu curto não ter
essa coisa de ser super-hétero. Sou hétero mesmo, mas tenho uma
coisa superaberta com gays. É preciso ter um certo jogo de cintura. Não
estou nem aí para essa fofoca com o Ney. Dou muita risada”. Havia
margem para alguma dubiedade na resposta e Paulo, talvez inspirado
por Mick Jagger e David Bowie, que sabiam muito bem usar a imprensa
no jogo do showbiz entregando a ela uma sexualidade indefinida e
misteriosa, não cravava certezas. Mistérios também alimentavam o
espetáculo.
O seguiu sua estrada a bordo do ônibus de Poladian enquanto
Ney voltou para o estúdio, um território onde não pisava fazia dois anos.
Destino de aventureiro rendeu um em 1984, com três canções que
não estavam no show: um deboche chamado “Bate-boca”, com alguns
dos agudos mais altos de seus discos; “Namor”, inspirada no
personagem homem-peixe das lembranças de infância que Ney
representava em Destino usando barbatanas azuis sobre as orelhas; e
“Tão perto”. O novo álbum, outro produzido por Mazzola, faria agora a
ruptura mais radical que Ney experimentara até ali, com uma
sonoridade de orientação por vezes eletrônica e futurista e uma capa
que mostrava raios laser saindo dos olhos de uma máscara dourada.
Um projeto que havia sido instigante até o momento da gravação,
quando uma energia densa e pesada passaria a orbitar o estúdio.

Ney voltava a fazer valer suas ideias de disco sem eixo, cantando por
um discurso oscilante entre o novo e o velho, o rock e o mambo, o
samba e a canção, a austeridade e o cabaré. Ao ouvir uma música de
Luli e Lucina, um blues chamado “Selva universal”, acabou sendo pego
pela sonoridade da primeira palavra, “bugre”, e laçado por seu
significado no dicionário: “Sujeito arredio, pessoa desconfiada, índio
bravo”. Ou seja, algo que definia ele mesmo, um bugre. Decidiu que o
nome do seria esse, pediu a Luli e Lucina que trocassem o título de
“Selva universal” por “Bugre” e chamou o compositor paranaense Arrigo
Barnabé para pensar nos arranjos da canção. Mas Arrigo, um
entortador de melodias por natureza e dono de um pensamento musical
fora dos instintos mais previsíveis, não oferecia os serviços à mesa com
facilidade. Cantá-lo exigia esforço e, para o azar de Ney, ele disse sim.
Arrigo se reaproximava de Ney dez anos depois de ir ao Rio como um
completo aventureiro, anônimo e cheio de sonhos, querendo saber
onde era a casa do artista. Antes de ter um disco lançado, e antes
mesmo de mostrar suas criações a qualquer outro intérprete, o jovem
autor de 25 anos tinha a sensação de que o cantor saído havia pouco
tempo dos Secos & Molhados poderia gostar de suas músicas. Só não
sabia como encontrá-lo. O grupo Doces Bárbaros, de Gil, Caetano, Gal
e Bethânia, faria um show no Canecão naquela noite e, sem dinheiro
para o ingresso, Arrigo plantou-se à porta e ficou ali até o último artista
sair.
Assim que Caetano surgiu, ele o abordou em busca da única
resposta que lhe interessava: “Você sabe onde é a casa do Ney
Matogrosso?”. Caetano não gostou do tom: “E eu lá vou saber de Ney
Matogrosso?”. Mas Gil, cheio de benevolência, acudiu o rapaz: “Vá ali
na Carlos Góis, no Leblon. Pergunte que todos o conhecem”. E para lá
foi Arrigo no dia seguinte. Ele, suas ideias atonais e uma carta de
apresentação assinada pelo maestro Rogério Duprat certificando que o
garoto era talentoso. Ney o ouviu com atenção, gostou de algumas
músicas, mas não escolheu nenhuma delas para gravar.
Tempos depois, em 1984, Arrigo lançou o Tubarões voadores pela
mesma gravadora de Ney, a Ariola, e Marco Mazzola providenciou uma
aproximação entre os dois. Ney se interessou muito pelo álbum Clara
Crocodilo, de 1980, e adoraria cantar “Clara Crocodilo”, a música, mas
antes, como havia sugerido Mazzola, a submeteria aos tratamentos
sonoros do produtor Lincoln Olivetti. E todos sabiam o que uma música
se tornava ao passar pelos teclados de Olivetti, o maior preparador de
hits radiofônicos da década. Arrigo, temendo pelo pior resultado, disse
não. Sua composição poderia ser gravada desde que ele tivesse
autonomia sobre o arranjo. Ney o respeitou mas, na impossibilidade de
misturar Olivetti a Arrigo, deixou “Clara Crocodilo” para uma outra
ocasião. Passaram-se dois anos, e, agora, estavam ali, Arrigo
entregando uma das construções musicais mais desafiadoras da
carreira de Ney, e Ney lutando para não desistir de gravá-la.
“Bugre” voltou com os tempos e a melodia cheios do teor
experimental do pianista e uma série de teclados sequenciados
enlouquecedores para quem, como Ney, necessitava de um chão que o
amparasse para não sair do ritmo. Arrigo sugeriu ainda outra canção
para o disco, uma bossa nova chamada “O gato”, feita com seu parceiro
Roberto Riberti, mas Ney, ainda em conflito com as ideias da música
“Bugre” e indisposto desde sempre com qualquer bossa nova — um
gênero que ele jamais conseguiu entender como superior na
representação do país no exterior —, estranhou um intervalo de terça
menor na melodia e preferiu deixá-la de fora. “Bugre” já tinha
estranhezas demais e ele começava a se sentir aprisionado às ideias
levadas todas para o campo do arranjador. Não era o que havia
pensado. Gostaria de ter mais espaço para mover sua voz dentro das
harmonias aprazíveis de Luli e Lucina com mais sabor de veneno, mas
sem precisar observar os gráficos rígidos de Arrigo. E assim a toada
seguiu até que, uma hora, a gravação saiu. Luli odiou o resultado e Ney
jamais cantou a canção ao vivo.
Os dissabores pairavam pelos ares do Estúdio Transamérica, e
mesmo um samba dos vibrantes Jorge Aragão e Nilton Barros descia
amargo. “História do Brasil” chegou com uma letra combativa,
percebendo que o Brasil da democracia sob os mandos de José Sarney
e melancólico pela morte de Tancredo Neves ainda não tinha muito a
festejar. Seu nome original era “Meninos, eu vi” e uma das estrofes
dizia: “Eu vi/ Quase tudo dar certo/ A alegria tão perto/ Que parecia um
sonho/ Tristonho/ Hoje vejo que o povo/ Enganado de novo/ Segue só”.
E vinha o refrão: “Preciso tentar/ Quero ser mais feliz/ Não vou me
conformar/ Conheço o meu país”.
Embora tivesse gostado, Ney sentiu a dureza da fala. Era o início de
1986 e entre o dia 4 de fevereiro, quando o samba deu entrada na
ainda ativa e vigilante Divisão de Censura de Diversões Públicas, e 3 de
março, quando o liberaram, o presidente José Sarney anunciou as
diretrizes do Plano Cruzado, em 28 de fevereiro, congelando os preços
para conter a inflação herdada dos escombros do Brasil deixado pelos
militares e conclamando as donas de casa a agirem como “fiscais do
Sarney”, denunciando reajustes nos supermercados com uma tabela de
preços na mão e um broche verde e amarelo preso à roupa. Tudo seria
em vão, os produtos sumiriam dos mercados para forçar o aumento dos
preços e a volta da inflação derrubaria os cruzados de Sarney a golpes
de machado e tornaria o plano que instituía uma nova moeda no país o
cruzado um dos maiores fiascos econômicos da história. Mas, ali, havia
esperança.
Ney falou com Mazzola sobre o fato de sentir o samba no
contratempo do otimismo do país, por mais verdadeiro que fosse. Só
não iria pedir ajustes ao autor porque não era de seu feitio.
Simplesmente gravava ou não gravava. Mas Mazzola, amigo e produtor
do sambista Jorge desde sua saída do grupo Fundo de Quintal, foi a ele
sem dramas, explicou a situação e o sondou sobre a possibilidade de
mexer em algumas partes. Dias depois, a música voltou com os versos
acariciados e de sentidos invertidos a ponto de lembrar a prosaica letra
de “Eu te amo meu Brasil”, de Dom e Ravel. O título “Meninos, eu vi” foi
trocado por “História do Brasil” e o verso antes engajado foi reescrito
com um miraculoso toque capaz de transformar lutas sociais das mais
inegociáveis num festejo nacionalista: “Eu vi/ Quase tudo deu certo/
Quem viu não chegou perto/ Mas nos legou um sonho/ Risonho/ Hoje
vejo meu povo/ Merecendo de novo/ Ser feliz”. E o novo refrão: “Agora
é lutar/ Por tudo que ele quis/ É hora de mudar/ Conheço o meu país”. A
questão é que os demais versos não foram alterados, como os que
dizem: “Eu vi/ Das planícies e serras/ Dos confins desta terra/ Elevar-se
um anseio/ Tão forte, mas calou como veio/ Quando a sombra da
morte/ Encobriu todos nós”. O samba bipolar acabou gravado por Ney
sem crença no que cantava, com uma interpretação apenas automática.
Maria Alice, mulher de Paulinho Mendonça, enviou uma fita cassete a
Ney com a gravação de uma canção dos Mutantes, de 1972, dizendo
que tudo ali parecia ter sido feito para ele. “Balada do louco”
representava o amigo dos tempos de hippie em cada uma das frases. A
fé apenas nele mesmo: “Dizem que sou louco/ Por pensar assim/ Se eu
sou muito louco/ Por eu ser feliz/ Mas louco é quem me diz/ E não é
feliz/ Não é feliz”. Todas as renúncias: “Se eles têm três carros/ Eu
posso voar/ Se eles rezam muito/ Eu já estou no ar”. E a busca pelo
sagrado: “Eu juro que é melhor/ Não ser o normal/ Se eu posso pensar/
Que Deus sou eu”. Ney gostou do que ouviu e pensou que, de fato,
poderia gravá-la. Uma bela canção que não tinha tocado nas rádios,
adormecida no álbum dos Mutantes intitulado Mutantes e Seus
Cometas no País do Baurets. Mas “Balada do louco” não só estava no
repertório dos shows de Cida Moreira havia dois anos, como a cantora
gravava a música para sair em seu próximo álbum, com participação do
mutante Sérgio Dias, um dos autores, na guitarra.
Ao ouvi-la tomando as rádios na voz de Ney pouco antes de seu
ser lançado, chegando a tocar vinte vezes por dia em apenas uma
emissora, Cida sentiu-se devastada. Àquela altura, era como se a
música fosse mais dela que dos próprios Mutantes e a aposta de quem
a cercava era a de que “Balada do louco” se tornaria a primeira canção
de seu repertório a alcançar grande abrangência no país. Com o
sucesso na voz do cantor, ela adiou o lançamento do álbum e viu os
bastidores se encherem de falas indignadas a seu favor que se
resumiam a uma ideia: Ney havia lançado a música antes e às pressas
por saber que ela também o faria.
O que Ney conta sobre o episódio vai em outra direção. Até ocorrer
uma mudança de estratégia na gravadora, a música a ser trabalhada,
segundo ele, seria “Dívidas de amor”, uma parceria que assinava como
compositor ao lado de Leoni. Ele diz que não sabia que a canção que
não havia feito sucesso algum com Os Mutantes poderia fazer em sua
voz assim como não fazia ideia de que Cida a cantava em seus shows
e que estava prestes a lançá-la. E o que faria se soubesse? A mesma
coisa: lançaria “Balada do louco” como estava previsto assim como
lançou “Pro dia nascer feliz” antes que saísse no álbum do Barão
Vermelho, mesmo sob protestos de Cazuza, ajudando a banda a ser
descoberta pelas rádios do país. Para Ney, cada voz poderia levar uma
mesma canção a percorrer histórias completamente diferentes.
Havia ainda a latinizada “Las muchachas de Copacabana”, de Chico
Buarque; “Pro John”, de Fábio Agra e Antônio Ventura, uma
homenagem a John Lennon com toda a fé na impostação que “História
do Brasil” não tinha; “Povo do ar”, de Luiz Carlos Sá & Zé Rodrix, com a
base do , ou seja, Paulo Ricardo no baixo, Fernando Deluqui na
guitarra, Luiz Schiavon nos teclados e Pagni, que nos créditos saiu
“Piá”, na bateria; e duas aventuras menores de Ney como letrista,
prontas para serem esquecidas: “Dívidas de amor”, com Leoni, e
“Vertigem”, com Paulo Ricardo. “Mente, mente”, de Robinson Borba, já
tivera outra versão registrada com Arrigo para a trilha sonora do filme
Cidade oculta, lançado naquele mesmo ano, e “Fratura (não) exposta”,
de Ezequiel Neves, Piska e Cazuza, tinha uma letra que Cazuza
renegava por sensatamente achar aquém de tudo o que fizera e
detestar em especial as repetições do termo “fratura exposta” no refrão.
Algumas músicas tocariam um pouco nas rádios, mas apenas “Balada
do louco” seria bastante executada e se acomodaria na faixa das
canções de elite de seu repertório. Considerado um fracasso pela
gravadora, Bugre representaria o ponto que levaria Ney, mais uma vez,
e quando parecia não haver mais espaço para isso, a decretar o
começo de outra fase em sua vida.
22. “O tempo não para”

Aquele era um ano sem direção. Depois da vertiginosa sequência


pós-Fischer-Hoffman, com Circo Tihany, Rock in Rio e , Ney atuava
pela primeira vez num filme, uma trama delirante da diretora Ana
Carolina chamada Sonho de valsa, no pequeno papel de irmão
incestuoso do personagem Teresa, vivido por Xuxa Lopes. Ele não
sabia das contenções do cinema, opostas aos transbordamentos do
palco, e levou dias aprendendo que uma cena prosaica deveria ter
gestos lentos e pequenos e poderia demorar até cinco horas de
gravação para ser reduzida a poucos segundos. O tempo das
mudanças incluía ainda sua migração para a gravadora , seguindo
mais uma vez os passos de Mazzola, e, antes, um novo show. Bugre
seria bancado por ele mesmo e teria um ovo gigante e iluminado em
cena, que se abriria logo no começo para sua chegada triunfal. As
músicas do disco que não o agradavam, como “História do Brasil” e
“Bugre”, ficariam de fora e ele, como sempre fez, escolheria outras
inéditas para preencher o repertório.
A roda não parava de girar, mas nada mais era tão certo desde que
algo que não estava nos planos surgiu para se tornar o único plano. Os
jornalistas que entrevistavam Ney sobre um projeto iniciado antes
mesmo de Bugre, um show acústico e aparentemente sem maiores
pretensões, sentiam que sua voz ganhava brilho quando ele falava
sobre o assunto. Ele descrevia de forma apaixonada a experiência de
ter se apresentado fora do universo dos grandes espetáculos com o
renomado pianista clássico Arthur Moreira Lima. “Estou descobrindo o
grande prazer de cantar sem gritar, sem ter de concorrer, brigar com
quinze instrumentos eletrônicos. Estou podendo fazer o que eu nunca
fiz, curtir o ato de cantar”, disse ao jornalista Mauro Dias, do Globo.
“Nos meus discos de carreira aparece muito pouco do que sou capaz:
apenas a ponta do iceberg. […] [Estou] em plena euforia, como se fosse
um reinício.”
Ney e Arthur queriam se juntar desde a ocasião em que o pianista o
recebeu no programa Um Toque de Classe, da Manchete, em 1985.
Ali estava também um violonista de 25 anos já muito falado, Raphael
Rabello, ainda chamado nos jornais do Rio pelo seu primeiro nome
artístico, Rafael Sete Cordas, que não entendeu nada quando Arthur
contou que queria convidar Ney Matogrosso para gravar com ele uma
edição do Toque de Classe. “Você está louco?” Ney, para um
instrumentista formado ouvindo Garoto e Dino Sete Cordas, não
passava de um canário da espécie mais exibicionista e do qual não
sobraria uma pena assim que fosse retirado de seu habitat. Isso até o
dia da gravação, quando, conforme o próprio Raphael confessaria a
Ney, o violonista mudaria completamente de ideia.
Sair de seu universo era mesmo um ato insólito. Por todos os anos
desde 1973, Ney jamais havia deixado de usar figurinos e cenários em
suas turnês. Seu tipo, quando apareceu pela primeira vez de rosto
limpo, tinha se tornado, no final, um artifício, a não maquiagem como
variação das maquiagens, e um show equilibrado nas intenções sexuais
de sempre, ainda que neste elas surgissem deslocadas. Assim como
Raphael, alguns críticos se perguntavam o que sobraria do artista no
dia em que ele já não tivesse um corpo flexível para mostrar e até vinte
músicos por faixa pagos pelas gravadoras para acompanhá-lo. Esse dia
havia chegado.
Depois de aparecerem na Manchete juntos, Ney e Arthur foram
chamados pelo produtor Carlos de Andrade, o Carlão. Ele queria o duo
como atração do projeto À Luz do Solo, do Golden Room, do Hotel
Copacabana Palace, que já havia reunido Geraldo Azevedo com Naná
Vasconcelos e Caetano Veloso com ele mesmo numa temporada de
voz e violão, todos elevados por altos elogios da crítica. A dupla disse
sim e chamou reforços para conseguir mais cores: o violonista e
admirador convertido Raphael Rabello, o saxofonista e clarinetista
Paulo Moura, do samba, do jazz, do choro e dos bailes de gafieira
desde o fim dos anos 1950, e o percussionista dos ritmos brasileiros
Jovi Joviniano. Quatro músicos virtuosos vestindo ternos claros e bem
cortados. E nada mais.
Ney tremeu assim que Arthur tocou os primeiros acordes na noite de
estreia. O terno e o repertório pesavam mais do que ele tinha imaginado
e suas mãos começaram a suar. Seria mesmo um cantor à altura de
suas ambições? Seriam o luxo do Copa e a sofisticação da plateia que
ocupava suas mesas um universo adequado para sua interpretação
instintiva? Não era o mundo de fora que o apavorava, mas a ideia de
estar tentando colocar dentro de si um universo que não lhe cabia. A
tensão piorou e Ney decidiu falar com as pessoas logo depois da
primeira música. “Desculpem, eu estou muito nervoso. E estou me
sentindo um com essa roupa.” A plateia riu e ele se acalmou para
retomar o espetáculo de uma temporada que responderia às suas
dúvidas dizendo sim, tudo aquilo era seu também. Não havia nada que
lembrasse as grandes produções sob as quais parte da crítica alegava
que Ney se escondia.
O espetáculo vinha agora de outra forma, num balé de notas que
propunham uma coreografia a ser não apenas vista. A voz era abraçada
pelo piano extenso e generoso de Arthur em canções como a modinha
de 1859 “Quem sabe?”, de Carlos Gomes com letra do jornalista
Bittencourt Sampaio, para então trocar de parceiro, atender ao convite
dos arpejos de Raphael Rabello e se vestir de acordo com cada
canção: acriançada e doce em “Tristeza do Jeca”, como o próprio
personagem cantado por seu criador Angelino de Oliveira, em 1918;
exasperada e tensa no relampejante flamenco “Dos cruces”, que já
havia aparecido em Feitiço, de 1978; conselheira dura e veemente em
“O mundo é um moinho”, de Cartola; impiedosa com o amor fugido pela
janela de “Segredo”, de Herivelto Martins e Marino Pinto; e sexy num
sussurro e dois ou três discretos balanços de ombros do bolero
“Besame mucho”. O violão de Raphael então se distanciava e o
clarinete de Paulo pedia licença para conduzi-la em “Da cor do pecado”,
de Bororó. Era quando os corpos dançantes da voz e do instrumento se
separavam para seguirem livres com seus respectivos movimentos,
levando a canção como bem entendiam até se aproximarem
novamente, ficarem frente a frente e terminarem juntos.
As noites de À Luz do Solo se transformaram numa locomotiva de
vida própria. Diante da casa lotada, e do prazer que sentia em cada
recital, Ney olhou para todos os esforços que fazia com o empresário
Poladian para levar Bugre aos palcos e, mesmo já tendo investido 200
mil cruzados do bolso no cenário do ovo gigante e começado a ensaiar
com os músicos, não viu sentido em seguir adiante. Pagou os
envolvidos e os dispensou para pensar apenas no que seria seu
próximo disco e seus próximos shows.
Do Golden Room eles iriam para o bem mais espaçoso Teatro Carlos
Gomes, substituindo apenas o percussionista Jovi por Chacal, um velho
conhecido. O recital ganharia o nome de Pescador de pérolas, título da
ópera de Bizet da qual havia sido extraída a ária “Mi par d’udir ancora”,
que estava no repertório, e aquilo que viesse a mais, incluindo dinheiro,
seria lucro. Alguns jornalistas sugeriam que Ney enlouquecera ao jogar
tudo para o alto por um projeto que nada tinha a ver com sua genética e
os executivos da subiram pelas paredes da sala de reunião ao
saber por Mazzola do invendável conteúdo de Cartola, Angelino de
Oliveira e Herivelto Martins. “Isso vai ser um fracasso”, disseram juntos.
Pescador de pérolas, em dois meses, receberia Disco de Ouro por suas
mais de 100 mil cópias vendidas mesmo sem nenhum esforço de
divulgação da companhia.
O tempo apaziguava as feras e equilibrava as forças de um homem
que parecia estar sendo preparado desde o ano de 1981, quando ouviu
a voz do instinto ou de seu Deus particular dizendo “acalme-se”. O sexo
seguia latejante, mas não mais como uma condição básica de sua
existência, e tudo o que poderia ser realizado por um artista aparecia
em sua linha da vida desde os tempos dos Secos & Molhados. Uma
lista de feitos que um hippie com algum talento para ser ator e nenhum
para lidar com dinheiro jamais havia procurado e da qual tampouco se
vangloriava por nem sequer saber o que era uma lista de feitos. Depois
de ajudar a fazer dos Secos a primeira banda de rock a vender mais do
que Roberto Carlos, a tocar para 25 mil pessoas no Maracanãzinho e a
ganhar projeção avassaladora, sua vida nômade o colocou numa rota
nunca trilhada por outro artista. Ney cantou para criminosos esquecidos
na penitenciária Lemos de Brito e jazzistas europeus no Festival de
Montreux; travestis deserdados na Galeria Alaska e famílias tradicionais
no Circo Tihany; senhoras saudosas no Estádio do Morumbi e
metaleiros inconvertíveis no Rock in Rio. E toda a porção de fãs que
talvez não estivesse em nenhuma dessas plateias estava no Hotel
Nacional, no Teatro Carlos Gomes, no Canecão e em cada cidade onde
ele pisava. Os dias pareciam ter corrido para que, quando as bombas
começassem a cair, Ney soubesse o que fazer.
Depois de deixar o Barão Vermelho, em 1985, por incompatibilidade
de gênios e de aspirações com os outros integrantes do grupo, Cazuza
teve algumas febres esporádicas às quais ele mesmo chamava de
“baronite aguda”. No pior dia, quando a temperatura passou dos
quarenta graus, seu corpo deu saltos involuntários na cama e ele quase
perdeu a consciência. Foi internado no Hospital São Lucas, em
Copacabana, e submetido a um teste de que, segundo a família,
deu negativo. Cazuza se recuperou, teve alta e se pôs a erguer sua
carreira solo com o Exagerado enquanto o Barão Vermelho se
refazia das mágoas de sua saída para preparar o retorno com Roberto
Frejat no vocal. Ney soube da internação e, ao ver sua foto nos jornais,
teve a certeza de que o amigo estava com “a maldita”, mas não
comentou nada com ninguém. As vidas seguiram com Ney e Cazuza
próximos ou separados, transando a dois ou a três. “Não tenho mais
problema, agora faço de tudo com todo mundo”, disse sobre seus
territórios proibidos do passado. “Agora?”, respondeu Ney. “Agora não é
mais hora pra isso.”
Passados dois anos, Cazuza se sentiu mal novamente, foi ao médico
e se submeteu a outro teste de antes de voltar a trabalhar nos
ensaios para lançar Só se for a dois ao lado do produtor Ezequiel
Neves. Assim que o resultado saiu, o dr. Abdon Issa ligou para Lucinha
e pediu que ela e João Araújo fossem a seu consultório. O que ele tinha
a dizer precisava ser dito pessoalmente. “O filho de vocês foi tocado
pela aids.” João e Lucinha ficaram em silêncio enquanto o médico
tentava explicar o pouco que se sabia da doença e falar do único lugar
do mundo onde poderia haver algum tratamento para amenizar seus
estragos, os Estados Unidos. Eles se levantaram e, antes de sair,
fizeram um único pedido ao doutor: que ele mesmo chamasse Cazuza
para contar tudo. Os pais choraram às escondidas por três dias e
lidaram calados com a sentença de morte que o filho havia recebido.
O choque foi devastador. Minutos depois de receber a notícia,
Cazuza saiu da sala de Issa, passou por Ezequiel Neves, que resolvera
acompanhá-lo, e seguiu a pé em direção à praia. Ezequiel foi atrás do
amigo e sentaram os dois num banco de frente para o mar. “Vamos
voltar pro ensaio?”, pediu o produtor, tentando reanimá-lo. “Não”,
respondeu Cazuza. “Eu preciso ir pro lugar onde tudo começou, preciso
ir para o colo dos meus pais.” Não houve nenhuma palavra quando
Cazuza entrou em casa. João e Lucinha o abraçaram para chorar juntos
e profundamente um choro doído pela única vez em que fariam isso um
na presença do outro. Lucinha jurou que não deixaria mais o filho vê-la
assim, e João enxugou as lágrimas e se encheu de coragem para se
converter, a partir daquele instante, num “legítimo pai de Cazuza”: “Você
não vai morrer porque eu não vou deixar. Eu vendo a alma ao diabo,
peço esmola na rua, dou tudo que tenho, mas não deixo você morrer”.
Cazuza viveria uma agonia pública a partir do dia em que seu rosto
fosse exposto de forma assustadora na capa da revista Veja. Nos
piores dias do tratamento, ele chamaria João apenas para ouvi-lo
repetir a mesma frase: “Pai, vem me dizer aquilo?”. João saía do
trabalho, ia para casa e se postava ao lado da cama do filho: “Você não
vai morrer porque eu não vou deixar. Eu vendo a minha alma ao diabo,
peço esmola, dou tudo o que eu tenho, mas não deixo você morrer”.
A família seguiu as orientações e foi buscar ajuda nos Estados
Unidos, onde o cantor passou quase um mês internado no New
England Medical Center, ao lado de João, Lucinha e Ezequiel, oscilando
entre crises nervosas, febres, euforia e alguns momentos de paz. Ao
voltar para o Brasil, ele já vivia sob as benesses e os infernos do
antirretroviral , o maior passo em alguma direção que a ciência
anunciara dois anos antes, embora ainda distante da cura. Um
tratamento que o obrigava a ingerir doze comprimidos por dia e que
cobrava por todo minuto a mais de vida que garantia tentando conter a
replicação do vírus no organismo.
Cazuza emagrecia, tinha anemias profundas, perdia os cabelos, cada
vez mais ralos e lisos, e sofria alterações repentinas de humor. Os olhos
cansados pareciam se despedir aos poucos, cavando valas cada dia
mais profundas em seu rosto. Mas a imagem da morte escondia uma
transformação. Um homem lúcido em seus delírios e trazendo versos
ainda mais devastadores saía do mesmo lugar onde o outro morria,
pronto para retornar aos estúdios e ao palco afirmando, como num
devaneio de , que queria percorrer o país com um show dirigido por
uma das pessoas que mais entendiam sua alma. “Não precisa se
mexer, Cazuza. Só quero o seu pensamento”, dizia, já no primeiro
ensaio, Ney Matogrosso, o seu novo diretor.
A urgência de vida levou Cazuza a entrar no estúdio para gravar o
álbum Ideologia assim que voltou dos Estados Unidos, com algumas
das canções que se tornariam as mais potentes de seu repertório, como
“Brasil”, feita com George Israel e Nilo Romero, “Faz parte do meu
show”, com Renato Ladeira, e “Blues da piedade” e a própria
“Ideologia”, com Roberto Frejat. Álbum pronto, passou a arquitetar com
afinco o show de estreia e chamou Ney para dirigi-lo. Os dois nunca
conversaram sobre aids, morte, dias de tratamento no exterior ou a
respeito de qualquer sofrimento que não estivesse explícito nas letras
das canções. Ney entendia que tudo estava dito, a não ser que Cazuza
quisesse dizer mais, e que tinham agora um show para pôr de pé.
Tudo o que havia sido feito com Paulo Ricardo e Fernando Deluqui
no , sobre o uso da sensualidade e dos movimentos para ocupar
todos os espaços da cena, deveria ser pensado ao contrário. Nada dos
gestos exagerados do início, correrias desvairadas nem rebeldias de
um personagem forjado por seus ídolos do rock. Seria apenas o artista
de branco no centro do palco e diante de um microfone fixo no pedestal,
valendo-se mais dos movimentos das mãos do que do corpo. As luzes
seriam desenhadas para dançarem por sua figura, espalhando-se e
retraindo-se de forma a valorizá-la. “Só importa o seu pensamento”,
repetia Ney, justificando sua amorosa intenção de, na verdade,
resguardar as últimas energias do amigo. Ambos sabiam que estavam
se despedindo e queriam fazer isso da melhor maneira.
O corpo frágil de Cazuza dava a impressão de estar prestes a se
romper e se tornava uma arma poderosa, mais do que qualquer artifício
cenográfico que Ney pudesse empregar além do feixe largo de luz que
surgia do teto de onde o cantor parecia ter acabado de descer com
seus versos: “Disparo contra o sol/ Sou forte, sou por acaso/ Minha
metralhadora cheia de mágoas/ Eu sou o cara/ Cansado de correr/ Na
direção contrária/ Sem pódio de chegada ou beijo de namorada/ Eu sou
mais um cara/ Mas se você achar/ Que eu tô derrotado/ Saiba que
ainda estão rolando os dados/ Porque o tempo, o tempo não para”. Ao
dizer em seu novo físico: “Eu vou sobrevivendo sem um arranhão”,
Cazuza expunha uma força que talvez ele mesmo não conseguisse
dimensionar.
“O tempo não para” foi a última música a entrar no repertório, quando
a equipe já estava nos ensaios finais, pois havia dúvida em relação à
pertinência de sua execução. Ney deu seu voto: “Você tem que fechar
com ela”. Terminar o show que fazia uma espécie de retrospectiva de
sua carreira com uma canção que ainda poucos conheciam parecia
ousado e exigente demais, mas encontrou-se uma saída. O bis seria
feito com “Faz parte do meu show”.
Ney queria valorizar o discurso verbal reforçando a imagem chocante
de Cazuza e, para isso, pensou num figurino que assumisse seu estado
físico em vez de ocultar as marcas de uma maldição que a família ainda
não pronunciava em público e os jornais não tinham elementos para
cravar. O estilista Gregório Faganello desenhou uma camiseta de seda
fina e gola larga e uma calça também num molde generoso e
confortável. Assim que Ney jogasse um foco de luz por trás de Cazuza,
mostraria à plateia a impressionante silhueta de suas formas em um
contraluz.
O show ganhou o nome de O tempo não para e estreou em 17 de
agosto de 1988 em São Paulo, numa casa de rock do bairro de
Pinheiros chamada Aeroanta, para depois seguir por outros estados e,
só em outubro, aportar no Rio de Janeiro, onde teve algumas de suas
apresentações gravadas e transformadas em . Cazuza foi recebido
na primeira noite sob a comoção de quem sabia de sua luta, a família, e
a euforia dos que não sabiam, mas imaginavam ou simplesmente não
se importavam muito com nada além das canções por serem eles, de
fato, seus maiores fãs.
Sua voz soava limpa e sem fraquejos, num vibrato folgado e com
direito a algumas frases de improviso. Ney assistia à apresentação em
silêncio ao lado de João Araújo, perto dos iluminadores. Depois de
“Blues da piedade”, Cazuza ergueu os braços como haviam combinado
para que três refletores fossem acionados no alto e por trás, cruzando
os feixes em sua direção e criando a redentora imagem de um homem
preso a uma cruz de luz branca. João, emocionado ao ver o filho
crucificado à sua frente, olhou para Ney entendendo tudo: “Obrigado,
você fez uma luz transcendental”.
O show seguiu pelo país, com problemas de toda sorte surgindo em
cada cidade a começar pela própria noite de estreia. O feito foi
comemorado por Ney, João, Lucinha, Ezequiel e os músicos da banda
num restaurante de luxo em São Paulo, com todas as mesas
reservadas, mas terminaria na madrugada, quando Cazuza trocaria de
hotel depois de esbravejar contra a gerência e quebrar uma porta de
vidro. O , para ele, era o “soro da verdade”, a medicação que o fazia
dizer tudo o que pensava e que não diria em outro momento. Um portal
de alienação física e mental que ele oferecia a Ney como nos bons
tempos de Mandrix. “Toma um, paizinho. Vamos ficar na mesma onda.”
Quando finalmente reuniu os amigos em seu apartamento para contar
que tinha aids, Cazuza passou a se abrir sobre o assunto e, numa de
suas primeiras confissões a Ney, se mostrou arrependido por ter se
rebelado tantas vezes contra o pai e contra o dinheiro que ele ganhava
trabalhando na indústria fonográfica. “Eu falei tão mal do meu pai e
agora é o dinheiro dele que está me mantendo vivo.”
O mal do século, incurável e tirano como uma peste bíblica, já tinha
provado ser mais que um castigo às luxúrias do sexo proibido. Os casos
esporádicos de aids até 1983 se transformavam numa estimativa
desestabilizadora enquanto a cadeia produtiva de preservativos
aumentava em 100% seu lucro em dois anos e os planos de saúde
excluíam os infectados das coberturas hospitalares. Até 1989, a doença
definida agora como Síndrome de Imunodeficiência Adquirida registrava
no Brasil 6421 casos e 3201 mortes em todas as classes, sexos, idades
e perfis. Para quase 200 mil infectados nos 152 países ligados à
Organização Mundial da Saúde não existia o alento de um relato seguro
de cura, mas somente apostas inconsistentes de especialistas e
previsões de uma salvação que nunca chegava. “Vacina contra aids
deve estar pronta em seis meses”, publicou o jornal O Globo em 12 de
setembro de 1984. Cazuza era apenas um dos sacrificados entre os
que haviam desfrutado das noites dos dez anos anteriores. Ney tinha
certeza de que também era um deles.
Sua busca não pelas respostas filosóficas da essência humana, mas
por um encontro com o que quer que existisse dentro dele e que
pudesse fazê-lo transcender à superfície de um mundo que se recusava
a aceitar tal como se mostrava não tinha sido esgotada pelo processo
Fischer-Hoffman. A rota era outra. Se Gilda Grillo o havia ajudado a
encontrar uma parte dele mesmo no passado, nada ainda o havia
estremecido de verdade. Vicente Pereira continuava sendo o amigo das
inquietudes espirituais, e foi para ele que Ney ligou cansado de ler livros
de história, teosofia, teologia, doutrinas e religiões orientais e ocidentais
das mais alternativas. Mais do que antes, precisava se fortalecer na
prática. “Quero algo que balance as estruturas.”
Dias depois, Vicente ligou de Brasília com uma espécie de senha.
“Você quer mesmo balançar as estruturas? Então esteja aqui amanhã,
antes das seis da tarde.” E desligou. Ney comprou uma passagem e
embarcou no dia seguinte para chegar à casa do amigo no começo da
tarde. De lá, partiram sem nenhuma preleção para um terreno num
lugar ermo onde tudo parecia obedecer às diretrizes de uma seita sobre
a qual Ney não sabia de nada. De um lado, mulheres usando vestidos
longos, saias pregueadas e coroas de rainha sobre cabelos compridos
e trançados. De outro, homens resguardados em calças sociais e
camisas brancas de mangas longas com uma estrela presa à gola.
Ney já havia tomado a ayahuasca uma vez como um “líquido curativo
das tribos indígenas do Acre e do Amazonas” oferecido por Luli, mas
não sabia de sua dimensão religiosa. A partir do momento em que os
hinos começassem a ser entoados por vozes, violões e alguns
instrumentos de percussão, ele deveria se entregar dançando e
cantando ritmado no mesmo compasso binário em dois pra lá, dois pra
cá até o instante em que fossem servidas as primeiras doses do líquido
amazônico escuro, viscoso e fermentado extraído pelos indígenas do
cipó de mariri e das folhas da chacrona. Não importava que tudo fosse
estranho. Ney deveria apenas tomar todas as doses do chá e seguir
cantando e dançando por até doze horas, quando Brasília clareasse
com a lua se intimidando e o sol nascendo na outra extremidade do
mesmo céu.
Era muita informação e, talvez, Ney não estivesse preparado para
tanto. Desde que chegou à vila dos daimistas, tudo o que conseguiu
fazer foi julgar e se perguntar quem eram aqueles homens e mulheres
vestidos como religiosos cristãos evangélicos dos mais ortodoxos que já
o teriam queimado na fogueira se pudessem. Aquelas roupas de
séculos passados, um português mal falado, com uma conjugação
desencontrada, as músicas entediantes e aparentemente a mesma
arrogante pretensão das seitas e religiões que prometem Deus apenas
a seus fiéis excluindo o resto da humanidade.
Ney estava num culto do santo-daime, uma doutrina recebida de
forma mágica numa noite de lua cheia em meados de 1920 pelo
seringueiro maranhense Raimundo Irineu Serra, o Mestre Irineu, um
homem negro com pouco mais de dois metros de altura, de uma mulher
que lhe aparecia em visões apresentando-se como Clara, a Rainha da
Floresta, ou, conforme o próprio Irineu entendeu ser, de Nossa Senhora
da Conceição. Orientado pelas revelações de Clara, Irineu construiu as
bases do que se tornaria uma prática perpetuada pelo trabalho de seus
discípulos e que começava justamente na fase em que Ney estava
quando chegou ao culto. Era preciso ter coragem e se livrar dos
julgamentos para atingir o ponto das revelações.
O chá do santo-daime parecia, mas não era, o da selva. Muito
antes de Mestre Irineu surgir na história, indígenas na Amazônia se
referiam à bebida usando 42 nomes diferentes e a utilizavam como
curativo contra enfermidades, picadas de cobra e em trabalhos de
parto. Absorvida das tribos, transformou-se no cálice de um rito de
conotação teológico-cristã e teve seus poderes sacralizados e
organizados dentro de um texto religioso e hierarquizado — a parte que
Ney se esforçava para não repudiar.
O santo-daime era prescrito como a chave que abria as portas da
clarividência e da translucidez em direção ao Deus interior com todas as
revelações, curas, caminhos e respostas que integravam a experiência.
Um ato transformador que não seria realizado sem uma fé tripartite: em
si mesmo, no semelhante e no Deus que só seria encontrado com
coragem do lado de dentro — a parte de que Ney gostava. O efeito
purgante da ayahuasca, outro nome do chá, provocava vômitos e
evacuações que os daimistas chamavam de lavagens, as quais
poderiam ser demoradas e extenuantes. Era preciso ter força de
vontade, concentração e, para que a linha do consciente fosse
ultrapassada, se submeter a uma dieta rigorosa que excluía carne,
gordura, álcool, remédios e sexo numa abstinência de três dias antes e
três dias depois — a parte em que Ney, se ainda quisesse mesmo
balançar as estruturas, deveria se sacrificar.
Doze horas após rezas, hinos e muita ayahuasca no terreno daimista
de Brasília, Ney estava imóvel diante das portas abertas para alguma
outra dimensão, tocado a ponto de quase perder o controle dos
comandos e ser arrebatado por uma energia que havia ameaçado
tomar seus sentidos até o momento em que seus preconceitos contra
as pessoas que o cercavam passaram a impedi-lo de sentir o que os
outros sentiam, como se a história que vira se iniciar na véspera não
pudesse ser terminada. Ele queria saber o fim e, por isso, disse a
Vicente, dias depois, quando já estava com o amigo de volta ao Rio,
que gostaria de tentar de novo. Encheu-se de fé no mistério, a única
crença que parecia realmente ter desenvolvido, e chegou à igreja Céu
do Mar, uma sede construída nas encostas da serra cortada pela
estrada das Canoas, em São Conrado, com a mesma simplicidade das
vilas tradicionais do daime brotadas no Norte.
A igreja de madeira, que ficava no ponto mais alto do morro, tinha o
teto adornado por fitas azuis, brancas e lilás e fotos de mestres como o
Padrinho Sebastião, figura máxima do daime desde a morte de Irineu,
observando cada seguidor com sua grande barba grisalha. Os homens
chegavam pelo lado direito e as mulheres pelo esquerdo, todos
apostolicamente vestidos e acomodando-se num silêncio tão profundo
que só se ouviam os grilos da mata e o bufar dos ventiladores.
Começavam o trabalho com três pai-nossos e três ave-marias e, então,
partiam para os primeiros hinos até o momento de fazerem uma pausa
reflexiva de meia hora. Depois, todos se dirigiam à fila onde eram
servidas as primeiras doses do chá em copos de vidro. Um padrinho
sentado no centro tocava violão acompanhado por jovens de branco e a
igreja toda já cantava seguindo as letras nos folhetos que haviam sido
distribuídos.
Os hinos seriam muitos pelas próximas horas, de temática e divisão
tão lineares que logo teriam a função levitacional de um mantra. As
luzes eram apagadas, as velas acesas e as pessoas continuavam
intercalando cânticos, períodos cada vez maiores de silêncio e sessões
de chá até que as expressões se tornavam lívidas e penitentes. Mais
algum tempo e ocorriam as primeiras alterações de consciência ou,
como preferiam os mestres, os primeiros “sinais de manifestação do
sagrado”. Tudo muito discreto e pessoal até que os efeitos da
ayahuasca surgiam e alguns começavam a vomitar e evacuar jorros
incessantes. Ney passava por todas as etapas, mas ainda não
conseguia fazer a virada interior por olhar demais para o lado de fora.
Saía exausto e vazio depois de, por até doze horas, dançar, cantar e
tomar todos os copos de chá que eram permitidos. No final, entendeu
que nada faria sentido se não se submetesse sem contestação às
regras. Ou se despia do pensamento prepotente de que era melhor do
que as pessoas a seu lado ou seria mais um turista em busca de
aventuras espirituais ególatras.

Algumas noites depois, uma quadrilha de criminosos chegou ao sítio


que Ney havia comprado na região de Sampaio Correia, no Rio, com
duas casas simples e sem ostentação, uma para ele passar os dias de
folga e outra para a mãe sentir-se no Mato Grosso de suas origens,
cultivando hortas e criando galinhas. Sob as ordens de um chefe, um
homem de boa aparência e fala bem articulada, três assaltantes
amarraram os funcionários e renderam as pessoas que poderiam
oferecer resistência: dona Beíta, sessenta anos, dona Elisa, a avó de
Ney, noventa anos, e duas crianças. “Eu gosto do seu filho, mas fui
contratado para fazer isso”, disse um dos encapuzados. Outro deles
levou Beíta para que ela abrisse a casa de Ney e mostrasse onde
estavam os tesouros do filho. Revirou a sala e a cozinha, ensacou
panelas e discos de ouro sem saber que eram de plástico e rasgou
travesseiros numa busca frustrada por alguma riqueza. Na geladeira,
viu uma seringa usada para tratar animais e resolveu delatar o
proprietário: “Olha lá, senhora. Seu filho é viciado em drogas”. Beíta,
que já havia enfrentado índios nas cercanias de Bela Vista e decepado
cobras com facões, segurou-se em sua impaciência: “Deixa de ser
ignorante, rapaz, isso é injeção de cachorro”.
Assim que foi informado do assalto, Ney arquitetou a vingança numa
cadeia de ações insanas tomadas pelo ódio. Se os criminosos tivessem
encostado em alguém, o que não fizeram, ele pagaria aos policiais para
que prendessem os culpados, os levassem amarrados ao sítio e
deixassem o trabalho sujo para ele. Queria matar um por um com suas
próprias mãos. A poeira baixou após uns dias e o susto foi superado,
mas o pensamento parecia ter feito um estrago. Ao chegar à igreja do
daime, Ney contou tudo a Paulo Roberto da Silva, uma das autoridades
da doutrina, e seguiu no culto. Depois de tomar os chás, as reações
vieram com uma violência que ainda não havia sentido. Paulo o levou
para a mata e pressionou seu estômago a fim de que o vômito fosse
expelido, fazendo os líquidos escuros saírem em jatos densos por um
bom tempo, como se limpasse todos os seus órgãos internos. Passados
alguns minutos, exausto, Ney se recuperava quando olhou para cima e
viu uma grande árvore se inclinar sobre sua cabeça como se quisesse
protegê-lo.
As revelações que sentia serem muito próximas das alucinações
provocadas pelo , algo que jamais deveria dizer aos mestres
daimistas, que odiavam a comparação, aconteciam mesmo depois dos
cultos, quando ele já estava em casa se preparando para dormir. Numa
das mais fortes, vislumbrou a imagem de si mesmo aos treze anos, em
frente à casa dos pais, proferindo aquele que seria seu mantra de vida:
“Não preciso de amor de pai nem de amor de mãe. Eu posso viver
sozinho e quero que todos se fodam”. O amor, essa fraqueza da qual
abriu mão por nunca conseguir senti-lo no próprio lar, não iria derrubá-
lo. Seu coração estava protegido por uma placa de chumbo que cobria
o peito impedindo que o absorvesse ou o exalasse. Deitado na cama,
Ney viu uma luz verde jorrar de seu peito como se fossem lavas de um
vulcão em erupção e subir em direção ao teto de forma dolorosa e
extenuante. Quando a experiência acabou, sua sensação foi de leveza.
Cada vez mais envolvido com os efeitos do santo-daime, Ney
resolveu se tornar um fardado. Depois de vestir a indumentária
ritualística e receber a estrela, uma insígnia que simbolizava seu
engajamento na doutrina, ele se convertia num membro efetivo da casa
e dava um passo adiante, comprometendo-se com a, como definido
textualmente, “aceitação dos preceitos crísticos, numa afirmação de fé
na doutrina e num voto de obediência espiritual ao atual comando da
casa”. Só faltava conhecer o Céu do Mapiá, no Amazonas, a Jerusalém
dos daimistas, uma vila encravada numa área quase inacessível que
submete seus desbravadores às provações de um percurso de três dias
entre rios bloqueados por troncos e centenas de luzes brilhantes
emitidas à noite pelos olhos dos jacarés. Ney recrutou o namorado
Marco de Maria, o amigo Vicente Pereira e o ex-Dzi Croquettes Cláudio
Gaya e partiu em sua expedição ao coração enlevado da Amazônia.
Ney sentiu que os dias de viagem iam retirando as camadas de ego e
tornando as pessoas pequenas para que elas chegassem ao destino
minúsculas, no tamanho que deveriam sempre ser. As horas passadas
em um avião até o Acre e num barco a motor até o vilarejo amazônico,
se alimentando em paragens de sapê equipadas com fogões de pedra,
faziam parte da provação antes de conhecerem Padrinho Sebastião, o
mestre maior da doutrina, seringueiro e fazedor de barcos com a
madeira das árvores que ele mesmo derrubava. Concentrado e
rigoroso, Sebastião era visto por Ney com um amor que ele tentou
compartilhar uma vez sem ser muito bem entendido pelos ribeirinhos:
“Eu tenho vontade de morder aquelas bochechas”.
Assim que a primeira noite chegou, todos seguiram para um trabalho
de estrela, um ritual onde a quantidade de doses de ayahuasca
ingeridas é maior que de costume e no qual Ney teria sua clarividência
mais radical. Ao avistar a imagem de um lagarto de mercúrio,
desdenhou: “Eu vim até aqui para ver lagartos?”. Então, foi desafiado
por uma voz: “Você tem certeza de que quer ver mais?”. “Tenho”, ele
disse. E um dedo esticou-se à sua frente, alcançou o céu e o cortou de
ponta a ponta liberando enormes labaredas de fogo. Por um segundo
Ney foi tomado pelo medo, seus olhos tremeram e toda a experiência
alucinógena, que não se realiza quando a alma se retrai, se perdeu.
De volta ao Rio de Janeiro, Ney, como um bom fardado, levou
Cazuza a um dos cultos da Vila Céu do Mar. Cada vez mais fragilizado
pelo , e ainda mais magro do que no show de lançamento da turnê
O tempo não para, seus movimentos eram lentos e difíceis a ponto de
ele não conseguir subir sozinho as escadas que davam no galpão das
orações. Antes dos trabalhos, Ney disse que estaria a seu lado o tempo
todo. Avisou que os vômitos e as evacuações poderiam ser violentos e
que, se precisasse de algo, bastava encostar nele que teria ajuda.
A experiência o havia treinado para lidar com o transe. Dias antes de
Cazuza, foi o escritor e pesquisador espanhol J. J. Benítez, autor da
série Operação Cavalo de Troia e estudioso do Santo Sudário de Cristo,
um tema que o faria vender mais de 6 milhões de livros pelo mundo,
quem apareceu no Céu do Mar curioso para passar por todos os ritos.
Quando os vômitos vieram, Ney, que para o escritor era apenas um dos
auxiliares de branco com uma estrela na gola, ficou a seu lado com um
copo de água na mão. A cada jato escuro que saía de sua boca levando
suas energias, Benítez olhava para o fardado com a expressão de
quem vislumbrava um anjo descido para salvá-lo.
Talvez pela ação dos antirretrovirais, Cazuza apresentou uma
resistência à ayahuasca que a Vila Céu do Mar não havia
testemunhado em novato nenhum. Uma, duas, três, quatro doses e ele
ali, firme e impenetrável, tentando chegar a algum lugar enquanto
acompanhava os hinos seguidos pelos momentos de silêncio. Quando
os efeitos purgantes vieram, seus vômitos começaram a se intensificar
e num certo momento ele projetou o corpo para o lado em busca de
ajuda. Ao esbarrar em Ney — que àquela altura já estava pior do que
ele —, fez os dois despencarem um para cada lado e ficarem ali até que
outro ajudante os amparasse. Cazuza acabou conseguindo o que
pareceu ser sua vivência mais radical depois de uma longa noite,
quando um dos primeiros raios de sol tocou em seu semblante plácido e
ele quis saber de Ney, com um fio de voz e os olhos fechados: “É isso?
É só aceitar?”. E Ney respondeu: “É isso, aceite”. Cazuza partiu nesse
dia dizendo a Ney a mesma frase que dissera a Ezequiel Neves ao
descobrir que tinha aids: “Eu preciso falar com os meus pais”.

A e o santo-daime eram mundos incomunicáveis. Depois da


frustrante experiência com Pescador de pérolas, Ney se sentia livre
para fazer do seu segundo no selo o que bem entendesse. Sabia
que não teria a atenção daquela que já julgava a pior companhia de
discos em que punha os pés, na qual os diretores o olhavam com
empáfia e preconceito, e valorizavam como nunca apenas os números
de venda e as joias que usavam ostensivamente no pulso e no
pescoço. Assim, Ney começou a recolher todo o material que podia e,
mesmo sem fechar um conceito, se pôs a preparar o que viria a ser seu
disco mais introspectivo.
Não era um ato de devoção espiritual, como o de Tim Maia em 1975
ao lançar o álbum de dois volumes Tim Maia Racional, para proferir sua
fé na seita Universo em Desencanto, mas um sinal de suas reflexões
sobre um planeta que parecia cobrar cada vez mais os homens por
suas ações egoístas. O título do disco, Quem não vive tem medo da
morte, uma das frases da canção “Chavão abre porta grande”, do
compositor paulista Itamar Assumpção em parceria com Ricardo Guará,
dizia por onde andavam seus pensamentos. Itamar, descoberto com
deslumbramento por Ney e que passaria a ser uma de suas fontes mais
constantes, só fez um pedido: além de ele mesmo assumir o arranjo de
“Chavão abre porta grande”, queria que a banda que o acompanhava,
Isca de Polícia, gravasse a base da música. “Claro que sim”, disse Ney.
Quase todas as canções chegavam a algum nível de transcendência.
“Felicidade zen”, de Arnaldo Brandão e Tavinho Paes: “Não precisa
fazer sacrifício/ Nem disciplina de religião/ Não cai do céu nem vem do
paraíso/ É uma ciência que não tem razão”. “Um rei”, de Celso Fonseca
e Ronaldo Bastos: “Círculos falsos, miragens reais/ Linhas na palma da
mão/ Num labirinto de tramas fatais/ A indecifrável visão”. “Só”, de
Oswaldo Montenegro: “Valeu a orquestra, se valeu/ Agora é a flauta de
Pã/ Hoje é preciso a solidão/ Com a bênção do deus Tupã”. “Tudo é
amor”, de Cazuza e Laura Finocchiaro, com arranjos do Luiz
Schiavon: “Mesmo se for pra transformar/ Num inferno um céu
conformista/ Mesmo se for pra guerrear/ Escolha as armas mais
bonitas”. E a versão “Caro amigo”, da original “L’anno che verrà”, de
Lucio Dalla: “Mas tudo está tão estranho/ Que a terra até parece em
transe/ O que manda é a força da grana/ Que desaba sufocando o
homem”. Ainda teria “Recompensa”, um samba de Jorge Aragão e
Jotabê com arranjo de Raphael Rabello, juntando percussão de escola
de samba a arranjo de cordas; e “Todo sentimento”, de Chico Buarque e
Cristóvão Bastos, com o piano de João Carlos Assis Brasil. Com o disco
quase pronto, chegou a inédita “Dama do cassino”, de Caetano Veloso.
A estratégia de Ney para se livrar da veio logo depois de ele
entregar Quem não vive tem medo da morte, o álbum que se tornaria
um elo quase perdido de sua discografia. Apesar de investir dinheiro na
produção, com músicos de estúdio caros como Antonio Adolfo, Leo
Gandelman, Serginho Trombone, Wagner Tiso e Jaques Morelenbaum,
e na pós-produção, com sessões de mixagem no estúdio Power Station,
em Nova York, a gravadora não faria nenhum esforço extra de
divulgação. E por esforço de divulgação entendia-se fazer ao menos
tocar no rádio uma ou duas faixas do álbum por força do incontornável
jabá.
Ney foi à romper o silêncio com uma proposta pragmática. Como
ninguém gostava de ninguém naquela sala, ele gravaria um disco ao
vivo durante o show de lançamento de Quem não vive…, cumpriria o
contrato dos três álbuns e sumiria para sempre da vista de todos. Os
executivos não gostaram e insistiram num álbum trabalhado em estúdio,
invariavelmente mais vendável, até ouvirem do artista um argumento
um pouco mais persuasivo: “Ok, se vocês me prenderem aqui, eu fico
falando mal de vocês”. Os interlocutores entenderam que deveriam
ceder para o bem de seus empregos, certamente em risco se o que
quer que Ney pronunciasse à imprensa chegasse aos ouvidos da mãe
japonesa Sony Corporation, e liberou os técnicos para a gravação dos
shows marcados para os dias 11 e 12 de março de 1989, no Olympia,
em São Paulo. Mas que não houvesse ilusões. Se dependesse da ,
o novo trabalho seria tão divulgado quanto os dois anteriores. Ney, que
não tinha medo da morte, foi viver a segunda parte de sua pequena
vingança.
Ainda inconformado com o descaso da , decidiu não fazer o
trabalho que seria da competência da gravadora: divulgar o álbum.
Assim, num ato inédito de artista que boicota a si mesmo na indústria
da música, preparou um show de lançamento sem incluir nenhuma das
canções que constavam em Quem não vive…. Ele teria, então, uma
apresentação e um disco em branco para preencher como bem
entendesse. Criou uma seleção que funcionava como um pêndulo
temporal e cantou o que já havia passado por seu repertório —
“América do Sul”, “Bandolero”, “Viajante” — e o que, novo ou não, o
tocava por aqueles dias — “Comida”, dos Titãs; “O beco”, dos
Paralamas do Sucesso; “Morena de Angola”, de Chico Buarque; e
“Alegria Carnaval”, de Jorge Aragão e Nilton Barros. Infiltrada entre
rocks, sambas e rumbas, a canção “Oh! Lua”, assinada por Alfredo
Gregório, filho de Padrinho Sebastião, não se parecia com nada e nem
deveria parecer. Era um cântico retirado do hinário sacro do santo-
daime com a aprovação de seus mestres.
Seriam dois hinos se um deles não tivesse causado estranheza aos
fardados da Vila Céu do Mar. Depois de escolher “Oh! Lua” e um
segundo tema que ouviu nos cultos, Ney os gravou numa fita cassete
durante um ensaio e em seguida os mostrou aos mestres do santo-
daime. As preces da doutrina nunca haviam sido cantadas em shows ou
diante de grandes plateias. “Oh! Lua” vinha com um arranjo cheio, de
baixo, guitarra, flauta, teclado e percussão, mas mantinha a aura
flutuante das celebrações. Estava dentro dos preceitos. Já a outra,
cujos nome, versos e melodia foram esquecidos justamente por sua
execução não ter sido aceita, ia por um caminho diferente. Mais
agitada, tinha à frente de toda a instrumentação a força de uma
percussão africana que, para os mestres, parecia profanar o cântico
levando-o para um terreiro de candomblé. Embora Mestre Irineu fosse
filho de um ex-escravizado, sua narrativa na construção do santo-daime
fixou o cristianismo no centro da doutrina no momento em que ele
considerou a mulher de suas visões como sendo a mãe de Jesus
Cristo. Ou seja, nada de conversa com religiões de matriz africana. Ney
percebeu o desconforto e, mesmo com o arranjo da música já pronto,
desistiu de cantá-la.
Viver no santo-daime começou a se tornar um peso quando tudo
passou a girar ao redor de dogmas. Enquanto esteve na igreja e mesmo
depois de deixar suas dependências, Ney seguia acelerado, testando e
vivenciando forças mentais e espirituais de toda espécie pelas ruas, ao
lado dos amigos ou sozinho. Impedido de sair de um longo culto no
galpão da Céu do Mar para ir à casa de Luli, que o aguardava com
Lucina e o pianista João Carlos Assis Brasil para um ensaio, Ney
fechou os olhos e recorreu aos poderes da telepatia, firmando seu
pensamento na frase que ele gostaria que a amiga ouvisse: “Não posso
ir aí, não posso ir aí”. No dia seguinte, Ney ligou para se desculpar pela
falta e Luli contou que o ensaio havia sido cancelado assim que ela
sentiu o sinal. Enquanto o esperavam, Lucina ficou tonta e caiu,
perdendo temporariamente a visão. Para Luli e para Ney, aquele havia
sido um sinal de que algo não ia bem.
O chá do daime virou um hábito caseiro. Ao chegarem à casa de
Vicente, Ney e o ator e amigo Carlos Augusto Strazzer foram recebidos
com um garrafão de ayahuasca para tomarem juntos até as imagens
sinistras ganharem forma. A mais forte delas se revelou quando, de pé,
olhavam para um mesmo ângulo da sala e Ney teve a sensação de
poder enxergar por olhos que se abriam em sua nuca. “Não estamos
sozinhos”, ele disse ao ver três criaturas gigantes vestidas como se
fossem astronautas. Outro episódio ocorreu na festa do último
aniversário de Cazuza. Sentado ao lado de Caetano, Ney observava as
pessoas entorpecidas por álcool, ácido, cocaína e tudo o que poderia
amenizar a dor de uma despedida cada vez mais iminente quando viu
Cazuza passar com as pernas bambas, ameaçando despencar diante
dos convidados. De onde estava, usou mais uma vez o poder do
pensamento e ficou ali, concentrado, até vê-lo se reerguer. De pé,
Cazuza olhou para Ney, piscou e se aproximou para lhe agradecer
como se soubesse de tudo: “Eu te amo, paizinho”.
Um livro sobre a vida de santo Antão lido quando tudo parecia sair do
controle começou a apontar os próximos passos espirituais de Ney. No
final, a história do sacerdote egípcio que viveu no deserto não era sobre
temor a Deus, mas sobre o amor em Deus. Um ano e meio depois de
permanecer sob os auspícios do santo-daime, Ney sentiu que deveria
fazer uma escolha. Ou entraria numa caverna como santo Antão para
brigar com os demônios que existiam dentro dele e seguir os
mandamentos de uma religião, ou iria para o mundo levar o que tinha
absorvido em cada porta aberta pelos poderes da doutrina.
Alguns mestres entenderam que Ney sucumbia às fraquezas do
mundo exterior ao decidir deixar a doutrina e criticaram publicamente
seu desligamento do daime, dizendo que o medo de enlouquecer e a
sensação de não poder controlar o que sentia teriam sido mais fortes
que a sua fé. Mesmo o amigo Vicente Pereira resumiu sua decepção
afirmando que Ney tinha amarelado e fugido das exigências. Mas,
mesmo sem jamais buscar uma religião, era justamente o excesso de
coragem para assumir um engajamento espiritual sem limites no santo-
daime o que o esgotava. Tudo era experiência acumulada e Ney
preferia continuar livre para vivê-la sem submissões. O único pedido
que havia feito em todos os cultos antes de tomar cada dose de chá era
para ter aquilo que agora o fazia seguir seu rumo sozinho:
discernimento.
23. Tocados pela maldita

Era preciso remar com pouca força, apenas para fazer o pequeno
barco se mover pelas águas mais calmas de Pokhara, de onde se via a
cordilheira em que reina o monte Everest e o pôr do sol de toda tarde.
Uma puxada suave e compassada em direção à margem do lago
Phewa, a 150 quilômetros da capital Katmandu, que apenas Mauro, o
irmão mais velho, se esforçava para manter. “Você podia me ajudar com
isso.” Marco, na outra ponta, não se movia. Uma indisposição o pegou
logo depois de chegarem para uma aventura prevista para durar mais
de trinta dias nas terras de onde saía boa parte de tudo o que realmente
lhe importava no mundo: Índia, Nepal e Tailândia. Mas estar ali, de
repente, parecia algo indiferente diante da certeza de sentir a morte
mais perto do que nunca.
No fim daquela tarde, Marco entrou calado no hotel em que estava
hospedado com Mauro. Deitou-se encolhido na cama do quarto e puxou
as cobertas enquanto o irmão foi para o banho. Passados alguns
minutos, Mauro o chamou pronto para saírem pela noite, mas Marco
não se animava. Uma médica do hotel havia dito dias antes que seus
vômitos esporádicos vinham certamente de uma virose estomacal muito
comum entre turistas, nada de grave. “Eu te espero lá embaixo”, disse
Mauro, e desceu. Meia hora depois, voltou, impaciente. Chamou,
insistiu, puxou a coberta e recebeu uma resposta breve mas que dizia
tudo pelo sofrimento com que foi dada: “Poxa, como você é insensível”.
Mauro sentiu que havia alguma coisa errada e sentou-se na cama.
Antes de ser paciente, Marco era médico, e já tinha seu próprio
diagnóstico: “Está se manifestando, Mauro”.
Ao sair de casa para a longa viagem com o irmão, Marco havia
deixado uma sensação de perda em seu companheiro. Pela primeira
vez nos dez anos em que estavam juntos, como se algo tivesse partido
o fio que os ligava, Ney não se sentiria próximo a ele mesmo à
distância. Um vazio que nada tinha a ver com falta de amor ou com a
possibilidade de alguma traição. Apesar de Marco estar vivo, o que Ney
sentiu no Brasil enquanto os irmãos viajavam foi uma espécie de luto.
“Eu estou com aids.” Ao ouvir a frase ser dita por Marco, Mauro
perdeu as palavras e sentiu remorso pela insistência em tentar tirá-lo da
cama. Logo em seguida, sem contestar sua certeza nem partir para
deambulações que tentassem desviar seus pensamentos da dor que a
doença traria, tomou a única decisão que vinha de seu coração naquele
pequeno hotel de Pokhara e fez uma promessa: “Eu juro que nós
vamos estar juntos nisso”.
Mesmo sendo o cenário da notícia mais aterradora que poderia ser
dada a um jovem em 1989, a Índia ainda parecia ser o lugar certo para
Marco estar. A partir daquele dia, as febres e os vômitos ficariam mais
intensos e levariam os irmãos a antecipar a volta ao Brasil, mas até
então cada local em que haviam pisado os aguardara com uma
revelação. A mais forte delas chegou quando conheceram o artista
plástico indiano Ram Babul no saguão de um hotel próximo ao Taj
Mahal. Ram deu perfumes a Marco, trocou algumas palavras com ele e
explicou que fazia o último dia de seu ekadashi, o jejum indiano, mas
que estava pronto para honrar os irmãos recebendo-os em sua casa no
dia seguinte.
Convite aceito, Marco e Mauro partiram para a humilde região das
malocas no subúrbio de Agra, onde ficava a casa de um metro e meio
de altura em que Ram vivia com pais, avós, irmãos e filhos, sem
geladeira, cama ou sofá e com canaletas abertas nas laterais do chão
de terra de cada cômodo a fim de servirem de galeria para a passagem
dos ratos. Depois de fazerem juntos a quebra do jejum e entoarem um
mantra, Marco foi apresentado a um cunhado do artista que se
comunicava em sânscrito e que se mostrou intrigado por algo que só
ele parecia saber.
Ram Babul leu as mãos dos visitantes e, juntando suas percepções a
tudo o mais que ele entendia das palavras ditas pelo cunhado, informou
que Marco era dono de uma evolução espiritual avançada. A leitura
revelava que, em vidas passadas, ele havia levitado por sessenta anos
na posição de lótus, um feito praticamente sobrenatural. Foi então que
todos na família passaram a tratá-lo com deferências de realeza. Já
exausto, Marco fez apenas um pedido quando insistiram que ele os
deixasse realizar um de seus desejos: queria um canto para se deitar.
Uma irmã de Ram se dirigiu rapidamente ao quarto e preparou o
chão, forrando, batendo o solo e limpando as canaletas. Ao retornar,
chamou Marco, mas se retraiu com espanto e decepção quando ouviu
um “muito obrigado”. Ninguém deveria retribuir um favor com a desonra
de um agradecimento. Quem fazia o favor é que deveria agradecer e
quem o recebia precisava ter humildade para aceitar a ajuda sem
esvaziá-la com um “obrigado”. Uma lição que os irmãos levaram para a
vida.
Mara passava alguns dias em São Tomé das Letras, em Minas
Gerais, quando os irmãos voltaram para o Brasil. Sem notícias desde o
começo da viagem, soube por instinto que Marco precisava de ajuda.
“Preciso ir até a cidade fazer uma ligação”, pediu ao marido. No centro,
ligou para o irmão de um telefone público. Marco atendeu, ouviu suas
preocupações e perguntou: “Como é que você sabe que eu não estou
bem?”. Ele disse que não gostaria de contar nada, mas, como ela
pressentira, era isso mesmo: ele estava com aids.
Ney o recebeu de volta preocupado com sua aparência e não teve
dúvidas de que o namorado havia se contaminado ao perceber alguns
sinais físicos que já conhecia de Cazuza: os cabelos rareavam, ficavam
lisos e os pelos do rosto mudavam de cor; da barba loira de Marco
despontavam fios pretos e grossos. Mesmo já sendo conhecedores dos
sintomas da doença e com um longo histórico de sexo livre, Ney e
Marco entenderam que deveriam se submeter a um teste de para
enfrentar o que havia de ser enfrentado. Marco disse a Ney ter quase
certeza de haver sido contaminado não por Cazuza, mas por um jovem
norte-americano com quem transara uma ou duas vezes. Por mais
certezas que também começava a ter de seu próprio contágio, Ney
preferiu não fazer o teste para estar inteiro no momento de cuidar de
Marco. Um dia, cuidaria de si.
Havia sempre uma esperança no engano. Uma bactéria, uma
disfunção hormonal, um mal qualquer que o Ocidente desconhecia
contraído nos ares ou nos pratos da Índia, da Tailândia ou do Nepal.
Mas, a partir do instante em que Marco saiu do laboratório com o
envelope nas mãos, abriu a porta do carro e sentou-se ao lado de Ney,
não existiria mais fuga. Sua vida seria definida por uma palavra e ele foi
até o fim, retirando a folha até o campo em que se lia “positivo”. Ney
manteve-se calmo, mas Marco despencou. Havia casos suficientes no
mundo para que todos soubessem o que acontecia a um infectado.
Ao lado de Ney, Marco, um estudioso da medicina, previa trêmulo
seus próximos dias. Ele iria emagrecer, a temperatura do corpo se
elevar sobretudo à noite e a pele sofrer com as manchas escuras que
denunciavam os “aidéticos” e os isolavam da sociedade. Então, os
cabelos iriam cair, os olhos afundar e algumas feridas, se não tratadas,
poderiam causar perigosas infecções. Alguns pacientes tinham ainda
dores de cabeça tão fortes que desmaiavam, apresentavam doenças
pulmonares crônicas, crises de vômito e, em razão do uso do ,
sofriam com alucinações. Mas a dor maior talvez se desse quando
todas as pessoas se afastassem pelo medo do contágio e os deixassem
agonizar. Mais do que sofrer todos os males físicos da aids, Marco se
apavorou com a ideia do abandono e perguntou a Ney: “Você jura que
vai ficar comigo?”. E Ney respondeu: “Eu vou ficar com você até o fim”.
O brincava de Deus operando breves milagres em regime de
tréguas, detendo as ações do e restabelecendo algum ânimo
durante os períodos em que a vida, depois de andar pelos últimos
suspiros, parecia voltar ao normal. No caso de Marco, levou quase um
ano para que os sintomas da infecção e os reflexos negativos do ,a
cura temporária que poderia se tornar a própria morte se a medicação
fosse ministrada de forma ininterrupta, se intensificassem. Ney decidiu
cuidar do namorado em tempo integral e de perto. Falou com a família
de Marco, o tirou da Carlos Góis e o levou para viverem juntos em sua
casa, na rua Cupertino Durão, onde havia menos escadas e uma
enfermaria particular poderia ser montada.
Nos primeiros dias, os dois dormiram na mesma cama, abraçados
como faziam quando viviam juntos, até que a necessidade de cuidados
aumentou e Marco preferiu ficar no quarto de hóspedes. “Só não me
deixe morrer em um hospital”, pedia. O quarto foi equipado com um
reservatório de oxigênio e duas enfermeiras foram contratadas para se
revezarem, além dos serviços de Helena, a funcionária que já estava
com Ney havia dez anos.
A mãe, Araceles, e a irmã, Mara, chegaram de São Paulo. Elas
passavam o dia oferecendo a Marco a paz e a confiança na rotina das
medicações que ele não conseguia sentir ao lado das enfermeiras e, à
noite, iam tirar duas ou três horas de sono no apartamento que havia
ficado vazio, na Carlos Góis. O irmão, Mauro, também se mobilizou e
fez tudo suavemente para não transparecer nenhum esforço que
preocupasse Marco. Encerrou seus negócios imobiliários no litoral
paulista e partiu para ficar ao lado da família. Ao perceberem que as
despesas de Ney haviam triplicado com a alimentação, os remédios e o
staff de auxiliares, eles tentaram ajudar. Mara pegou todo o dinheiro que
possuía e o colocou sobre a cama de Ney, mas ele não aceitou. Mauro
vendeu alguns de seus bens e se dispôs a colaborar, ao menos, com o
custo dos medicamentos.
Como se a batalha de um valesse pela vida do outro, Marco e
Cazuza queriam saber de notícias sobre suas lutas e recaídas. Cazuza
perguntava por Marco e Marco por Cazuza com um interesse particular
menos por compaixão e mais por sobrevivência. Às vezes, Ney deixava
Marco sob os cuidados da família para caminhar algumas quadras até a
Prudente de Morais, em Ipanema, entregar o leite de cabra que trazia
do sítio para Lucinha, e que Cazuza adorava, e subir ao quarto para
massagear os pés do amigo recorrendo às memórias, o único lugar
onde a vida permanecia intacta. Sobre santo-daime, lembravam do dia
em que Cazuza resolveu tomar várias doses antes de um show,
ignorando qualquer sentido espiritual e esquecendo-se da parte dos
vômitos. Claro que foi uma tragédia. Sobre Mário Troncoso, falavam da
ocasião em que Ney o levava de carro até o sítio do guru quando
descobriu uma garrafa de cachaça escondida por Cazuza debaixo do
banco do passageiro. Ney parou no meio da estrada e apenas disse:
“Desce!”. Mas se arrependeu logo depois de arrancar com o carro, fez o
retorno, parou a seu lado e mandou: “Entra!”. Mário Troncoso… Foi no
sítio do mestre que Ney reforçou sua paixão ao ver Cazuza sair da
piscina em uma noite fria, com os cachos molhados e sorrindo enquanto
uma fumaça de vapor subia de seu corpo. Ney o olhava com tamanha
ternura que Troncoso percebeu, abaixou-se e comentou a seu ouvido:
“Você está apaixonado, né?”.
Com a nova rotina estabelecida, Ney decidiu parar de adiar a
realização de um teste de e lidar, ele também, com a doença que
estava certo de ter. Acordou pela manhã, vestiu-se e seguiu em direção
ao laboratório. Dias depois, retornou para retirar o resultado enquanto
Mara e Araceles cuidavam de Marco. Na recepção, identificou-se e
recebeu o envelope com o diagnóstico: “Negativo”. Voltou para casa e
contou friamente a Marco sem esboçar nenhum sentimento em
especial. Não haveria alívio nem comemoração enquanto as pessoas
que amava estivessem tombando a seu lado. Uma devastação que
estava só no começo.

Raphael Rabello ligou para o quarto de Ney. Eles estavam


hospedados no mesmo hotel, em São Paulo, para fazerem um dos
shows da turnê do espetáculo À flor da pele, que se tornaria um álbum
em 1991. “Posso ir aí?” Raphael e Ney haviam estabelecido, desde
Pescador de pérolas, uma amizade leve e prazerosa, de pouca fala e
muita cumplicidade. Minutos depois, o violonista bateu à porta com um
envelope nas mãos. Entrou sem dizer nada, o entregou ao amigo e
esperou um tempo até ver a incredulidade nos seus olhos. “É isso, Ney,
eu sou soropositivo.” Saber exatamente o que aquela notícia significava
fez com que ela ganhasse a força de um cataclismo, maior até do que
sentira ao tomar conhecimento dos diagnósticos de Cazuza e de Marco.
Ney, naquele instante, teve vontade de saltar pela janela do hotel.
A aids parecia apertar o cerco a Ney identificando e eliminando um a
um de seus amigos e amores com os mesmos requintes de crueldade.
Depois de Markito, Cazuza, Marco e Raphael, Ney recebeu a notícia de
que Carlos Augusto Strazzer e Cláudio Gaya tinham contraído a
doença. Das quatro pessoas que estiveram na expedição à Vila do
Mapiá, só ele, Ney, não testara positivo. Passado um tempo, soube que
Zé, sua primeira paixão no Rio, havia morrido e sido enterrado de forma
sigilosa pela família como mais uma vítima do .
Algum tempo depois viriam outros dois diagnósticos aterradores: o
secretário e guardião de todos os apuros de Ney, Luisinho, e seu irmão
de sangue, anfitrião das espiritualidades e confidente desde os dias
sem fama nem glamour de Brasília, Vicente Pereira, agonizavam do
mesmo mal. Luisinho seguiria a seu lado e perto de seus cuidados,
mas, antes de o vírus terminar seu trabalho, acabaria consumido por
um câncer. Vicente convalescia na casa dos pais, no Planalto Central,
para onde Ney viajou às pressas. Ao chegar, se deparou com uma
situação de precariedade sanitária que o deprimiu. Mesmo debilitado, o
amigo precisava subir escadas para chegar ao quarto em que vivia, nos
fundos da casa, e usar um chuveiro que nunca funcionava. Ney passou
a ir a Brasília com frequência para ajudar com as medicações, consertar
o chuveiro e dar banho no amigo.
Vicente Pereira morreu na noite em que Ney estava hospedado em
Nova York para fazer uma breve temporada de shows do álbum As
aparências enganam, lançado com o grupo Aquarela Carioca. Acordado
na madrugada por uma estranha sensação, ele foi até o quarto do
secretário Luisinho, que ainda tinha forças para segui-lo nos
espetáculos fora do Rio, e o despertou: “Luis, o Vicente morreu. Ele
veio aqui avisar”. Mal amanheceu o dia, ligaram para o Brasil, tiveram a
confirmação da morte e souberam de um detalhe que pode ter
abreviado sua vida. Ao puxar a cama para limpar o quarto, os pais
descobriram montes de comprimidos jogados pelo canto do colchão.
Vicente, um naturalista fiel à ayahuasca, crente nas luzes de Mário
Troncoso, adepto das viagens ao passado do Fischer-Hoffman,
passageiro do e entusiasta até mesmo da terapia do abraço,
preferiu morrer a se entregar a uma substância que não o levaria a
nenhum lugar melhor do que todos os que ele já conhecia.
Os corpos tombavam e Ney seguia entre eles como um soldado em
um campo de batalha. O tumor de Luisinho se alastrou por debaixo de
seu braço e tomou partes internas e externas do corpo até ele não
suportar mais. Sua morte levou um amigo leal e um secretário devoto
que teve a certeza de que lado estaria na vida no dia em que viu Ney
colocar, por alguma urgência, o figurino de Homem de Neanderthal no
banheiro do Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio. Ney se
maquiava concentrado e imperturbável, ajustando as crinas e vestindo a
tanga enquanto homens de terno entravam, o viam no espelho ao lado
e seguiam seus rumos em silêncio. A imagem fez Luisinho entender,
conforme contou em uma entrevista, que todo o respeito que se quer
deveria começar com o respeito que se dá. Minutos depois da morte do
amigo, Ney ligou para avisar os familiares de Pernambuco e, no dia
seguinte, os recebeu para o enterro. Assim que eles entraram, Ney
apontou para o cômodo onde o amigo vivia e guardava colares, anéis
de ouro e uma economia que somava cerca de 30 mil dólares. Apesar
dos pedidos de Luisinho para que o chefe ficasse com seus pertences,
Ney achou melhor deixá-los para a família: “Tudo o que está neste
quarto é de vocês. Podem levar”.
Um médico amigo de Marco chegou do interior do Rio dias depois
com uma missão. positivo, ele precisava de um bom sapato para ser
enterrado com dignidade. Sabia que morreria em menos de um ano e
resolveu preparar-se para o último ato. “Você me ajuda?”, pediu a Ney.
Os dois saíram caminhando pelas lojas do Centro até encontrarem um
modelo vistoso que não faria feio no caixão. Ney foi ao cemitério por
três vezes em apenas uma semana para enterrar amigos e amigos de
amigos consumidos pela aids. Depois de tantas perdas, sentiu que suas
forças se esgotavam e, pela primeira vez, não teve vontade de sair da
cama pela manhã. Ele sabia que poderia estar com depressão, mas
nem sequer pronunciava o nome da doença para não abrir espaço a
mais um mal em sua vida. Ney entendeu que tinha amigos para cuidar,
contas a pagar e shows a fazer, uma demanda que deveria colocá-lo de
pé todos os dias, mesmo depois da manhã de 7 de julho de 1990, um
sábado, quando as s anunciaram em seus primeiros plantões que
Cazuza estava morto.
Cazuza fez seu último pedido na noite de sexta: “Mãe, eu estou
morrendo”. “Meu filho, eu já disse, não fale de morte comigo.”
“Morrendo de fome, mãe, o que tem pra comer?” Ele devorou um
sanduíche, tomou um milk-shake e adormeceu. Na manhã seguinte,
Lucinha sentiu que a saúde do filho havia piorado e chamou o médico
para uma avaliação. A expressão do doutor, que deixou escapar um “tá
ruço”, mostrava que a hora da partida de Cazuza poderia estar
chegando. Lucinha saiu do quarto e foi até a varanda olhar para o mar.
A casa se encheu logo em seguida e os trâmites para o enterro no
cemitério São João Batista começaram a ser providenciados já que os
pais não tiveram coragem de comprar um túmulo antes. Antes que o
corpo de quarenta quilos fosse levado para que o vestissem com o
terno branco usado nos shows de O tempo não para, Lucinha o
abraçou, beijou, e chorou sobre seu menino toda a tristeza que guardou
por anos. Decidida a manter o caixão fechado no velório para que as
pessoas se lembrassem de um Cazuza que já não se reconhecia na
imagem consumida pela aids, Lucinha sentou-se ao lado do filho e ficou
em silêncio enquanto as pessoas traziam suas condolências. Quando
uma mão leve tocou seu ombro, ela olhou para o lado e viu Ney.

A morte de Cazuza afundou Marco na desesperança. Em períodos de


retração dos sintomas, com as doenças oportunistas controladas e a
volta do restabelecendo as forças quando isso parecia impossível,
ele chegava a sair da cama e até viajava, como na ocasião em que foi
passar uma semana na casa de Mauro, na Praia Grande. Um ambiente
cheio de confortos afetivos, com a areia, o calçadão, as bicicletas e as
lembranças de quando era possível subir nas amendoeiras sem medo
de cair. Um tempo em que tudo “era uma possibilidade” e em que dois
ou mais corpos, o seu e de todos os vírus que o consumiam naquele
instante, não podiam ocupar um mesmo lugar, como escreveria em
suas crônicas. Ney bloqueou a agenda de shows e se juntou a eles no
fim de semana sabendo que tinham pouco tempo. De repente, o golpe
sentido com a perda de Cazuza lembrava a impossibilidade de negociar
com a morte. Chegou um momento em que Marco disse a Mara o que
ela tanto temia ouvir: “Eu não aguento mais”. Ele queria morrer e, como
médico, sabia exatamente o que fazer para isso.
Era necessário estratégia para levá-lo até a banheira e segurá-lo sob
o chuveiro sabendo que suas pernas poderiam não suportar. Um banho
era um desafio e, muitas vezes, tudo o que Marco desejava. Ney sabia
conduzi-lo. Esfregava suas partes usando o peso do próprio corpo para
ampará-lo e chegava a se excitar. “Desculpe, eu não posso evitar”, dizia
Ney, sorrindo constrangido. Sexo entre os dois não existia desde o
diagnóstico, nem mesmo quando Ney sugeriu ajudá-lo ao perceber que
ele mandava fechar a porta do quarto para ter alguma privacidade.
“Vamos brincar, eu posso usar as mãos.” Mas Marco não queria
arriscar. Um tempo depois, uma ferida escura abriu-se na região abaixo
de sua genitália e, de uma forma que ninguém percebeu, muitas
formigas começaram a se concentrar ali. “Elas estão me comendo
vivo!”, gritou Marco quando acordou de madrugada sentindo as picadas.
A hipersensibilidade também provocava dores insuportáveis e só Mauro
conseguia massagear o irmão de maneira firme e delicada ao mesmo
tempo, como havia aprendido com ele, para que nenhum movimento se
tornasse uma tortura.

As frases na capa da revista Amiga gritavam para ser lidas mesmo


por quem caminhasse apressado pelas calçadas do Leblon nas
primeiras manhãs de agosto de 1990: “Pantanal: Tragédia no
casamento de Juma”; “Rainha da Sucata: A morte de Betinho”; “Enfim,
a verdade: Elvis Presley foi assassinado”; “Diário confirma: Marilyn
Monroe era bissexual”; “Grátis: Um pôster sexy da sereia Ingra
Liberato”. A foto da atriz Cristiana Oliveira vestida de noiva para ilustrar
a notícia sobre o matrimônio do personagem Juma Marruá na novela
Pantanal, uma produção que levava a Manchete a seus melhores
índices de audiência desde que fora criada, em 1983, vinha ao centro,
imponente e estrategicamente vendedora. Mas nada disso atraiu Ney
no instante em que ele passava em frente a uma das bancas da rua
Cupertino Durão mais do que o seu nome escrito em letras maiúsculas
ao lado do rosto de Juma: “ ,
”.
Ney parou, apertou os olhos e leu de novo a manchete de uma das
dezenas de revistas da edição de número 1057 da Amiga dispostas
lado a lado. Uma jornalista havia ligado da Editora Bloch dias antes.
Depois de algum rodeio, perguntou como ia sua saúde com um
interesse que não parecia fruto de nenhuma empatia cristã. Cazuza
morrera fazia um mês, Marco estava mal e eram tantos artistas
padecendo ao mesmo tempo que a repórter decidiu cravar o que sua
sensibilidade dizia: todos aqueles que pareciam ter, tinham. “Eu estou
bem, trabalhando sem parar. Você acha que estaria trabalhando tanto
se estivesse doente?”, respondeu Ney.
A manchete da revista, atestando a aids em três cantores que não
estavam contaminados pelo , não condizia com a matéria que havia
lá dentro. Sobre Ney, sua negativa com relação à doença tinha sido
respeitada e nada confirmava o contrário. Mas, para saber disso, era
preciso ler a matéria. Ou seja, e o que mais interessava à Editora Bloch,
comprar a revista. Ney ligou para consultar os advogados Paulo Cezar
Pinheiro Carneiro e Ricardo Araújo só para ter certeza do que iria fazer
contra a Editora Bloch, a revista Amiga e a Rede Manchete, que
veiculou uma propaganda com a capa da publicação: “Processa!”,
disseram.
Ney levava aos tribunais a mesma revista que havia sugerido
impunemente em 1985 um caso amoroso entre ele e Paulo Ricardo.
Agora, o valor da indenização pedida por danos morais era estabelecido
em 1 milhão de dólares e, olhando-se todas as provas reunidas,
entendia-se que se tratava de um caso ganho. Mas não foi bem assim.
Ao chegar para a audiência na 25a Vara Cível do Rio de Janeiro, Ney
sentiu algum desdém já nas antessalas do juiz Jadiel João antes
mesmo do início da sessão. E, em seguida, quando vieram as
indagações, a absurda ideia de que a lei poderia não estar a seu lado
começou a se tornar realidade.
O juiz perguntou primeiro se Ney havia perdido algum show por
causa da reportagem. “Não”, ele disse, num momento em que muitos
em seu lugar poderiam dizer sim. “E eu falei à repórter que estava
trabalhando como um louco por não estar doente.” O magistrado fez
uma leitura criteriosa da matéria. Entendeu que a chamada de capa e
os comerciais da Manchete eram mesmo despropositados, mas não
viu nada no conteúdo da reportagem que violasse a imagem, a moral, a
intimidade ou a honra do reclamante, conforme dizia o artigo , inciso
10 da Constituição Federal citado pela acusação. Antes de bater o
martelo pela improcedência da ação, Jadiel João afirmou: “Além do
mais, não é nenhuma desonra estar com aids”.
Ney apelou e o caso subiu ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio, o
, onde contaria com outro entendimento. Depois de dispensarem a
necessidade de um teste de , argumentando que o fato de estar ou
não com aids não mudaria em nada o que estava em jogo, a violação
da intimidade, deram ganho de causa à acusação feita por Ney e
estipularam uma indenização equivalente a 3 mil salários mínimos, na
época 126 milhões de cruzeiros ou 350 mil dólares. A defesa da Editora
Bloch também recorreu e o caso foi decidido em Brasília, mais uma vez
a favor do artista e com todos os requintes de urgência das últimas
instâncias. Se a Bloch não pagasse o que devia no tempo fixado, a
parte reclamante poderia confiscar das máquinas de escrever das
redações às prensas do parque gráfico. “E o que eu vou fazer com
isso?”, disse Ney.
O sr. Adolfo Bloch, dono da Manchete e de um conglomerado de
revistas que incluía Amiga, Fatos & Fotos, Manchete, Desfile e Sétimo
Céu, ligou como um negociador em apuros. Queria saber se poderia
pagar sua dívida em algumas prestações. “Que história louca, né?”,
disse, com um tom de surpresa, de quem não sabia dos procedimentos
editoriais tomados nos andares abaixo. E Ney respondeu: “É nisso que
dá contratar gente imbecil”.
Os 350 mil dólares de indenização só sairiam depois de quase três
anos de processo e, mesmo parcelados, seriam bem-vindos para ajudar
nos desfalques de uma fase de apertos de Ney sobretudo após os
gastos com os amigos contaminados pelo . Antes disso, porém, o
ano de 1990 — Cazuza morreria em julho e a revista Amiga sairia em
agosto — trazia um presságio das trevas anunciado por um homem de
quarenta anos que assumia o país na condição de primeiro presidente
eleito pelo voto direto depois de 21 anos de regime militar. Fernando
Collor de Mello, conhecido como “O Caçador de Marajás”, o vencedor
das eleições disputadas no segundo turno com o ex-sindicalista Luiz
Inácio Lula da Silva, mirava os especuladores do mercado financeiro e
acertava trabalhadores com um só disparo do projétil que ele chamou
de “bala de prata”: o Plano Collor.
24. Adeus, Marco

Collor tentava conter um cenário de inflação pré-apocalíptica na casa


dos 90% ao mês com um tratamento de choque que parecia aniquilar
no berço a própria democracia. Todo o dinheiro deixado em contas-
correntes, guardado em cadernetas de poupança ou investido em
aplicações especulativas como o overnight seria confiscado por dezoito
meses. Ney, longe do hippie que colocava o dinheiro num saco para ser
usado pelos amigos por se recusar a abrir uma conta no banco, sentiu o
baque ao ver todas as suas economias guardadas ou investidas
desaparecerem.
A receita conseguida com shows e porcentagens sobre vendas de
discos nas duas décadas anteriores não o transformara num milionário,
mas o havia deixado confortável a ponto de poupar e aplicar a parte dos
ganhos que sobrava de sua ajuda à mãe, às irmãs, aos amigos e a si
mesmo. De repente, com exceção de uma pequena quantia em dólar
que guardava em casa, tudo estava confiscado com a promessa de ser
corrigido sabe-se lá de que forma e, com sorte, devolvido, quiçá, algum
dia. Ney ligou para seus advogados só para ter certeza do que iria fazer
contra o presidente, Fernando Collor de Mello, sua ministra da
Economia, Zélia Cardoso de Mello, e todo o Estado: “Processa!”, ouviu
de novo. Ao lado de 900 mil brasileiros, ele entrou com uma ação na
Justiça para reaver seu dinheiro e, após uma longa batalha, recuperou
70% de suas economias.
Até o fim do ano, Ney não lançaria discos, mas subiria muitas vezes
ao palco para reequilibrar as contas. Uma de suas poucas compras na
época se tornaria outra lembrança inconveniente da era Collor. Com o
Escort 3 já bastante rodado, aproveitou os baixos preços dos
importados da soviética Lada e trocou de carro. O jipe Niva pareceu
uma boa opção mais pelo fato estético, a atração de Ney por
automóveis se resumia a jipes e bugues, do que por qualquer
especificação técnica do tipo tração nas quatro rodas em carroceria
monobloco. Um dia em que Ney passava pela rua José Linhares, todas
as trações possíveis de seu Niva enguiçaram. Sob o calor carioca de 38
graus com sensação térmica de 42, a tecnologia pensada para
desbravar realidades polares fez as peças se dilatarem e as rodas
travarem no meio da pista, acarretando xingações e buzinaços no
Leblon por mais de meia hora. Algumas pessoas saíram de um bar na
esquina e se juntaram a outras para erguerem o carro, o arrastarem aos
solavancos e liberarem a via. Se não existisse Raphael Rabello,
definitivamente, aquele seria um ano para esquecer.

Ao receber o convite para inaugurar um restaurante direcionado à alta


sociedade de Goiânia, com a possibilidade de levar apenas um músico
acompanhante a fim de que os dois coubessem no pequeno palco da
casa, Ney ligou para Raphael. De tudo o que vivera nos tempos de
Pescador de pérolas, era Raphael quem conseguia agir como um
organismo vivo e pulsante nas mesmas frequências que as suas. Arthur
Moreira Lima tinha charme e abria um universo respeitável em cada
arpejo de seu piano, mas sua agenda era implacável e as energias
poderiam ser bem diferentes. Eles permaneciam amigos cordiais, mas
se estranharam ao menos uma vez, quando chegou a Arthur sob a
condição do anonimato uma história de que Ney ganhava mais que os
músicos. “Soube que você é sócio do Poladian”, disse o pianista,
minutos antes do show. “Como?”, assustou-se Ney. “Sou tão contratado
quanto você!”, respondeu.
Confusão desfeita, se dirigiram ao palco e fizeram, como se nada
tivesse acontecido, uma das mais majestosas apresentações da
temporada. Quanto a Paulo Moura, Ney tinha a sensação de que havia
alguma rejeição pessoal por parte do saxofonista. Nada era dito, mas os
olhos, as palavras e as emoções nunca se encontravam além do que as
canções permitiam. Ou, algumas vezes, nem isso. Ney chegou a fazer
um pedido durante um ensaio: “Você poderia ao menos esbarrar na
melodia para eu não ficar tão perdido?”. Cantar com Paulo requeria
uma concentração absurda nos momentos em que a melodia do
instrumento se distanciava da voz, levando Ney a perder quase todas
as referências harmônicas. Ao mesmo tempo, nenhuma dificuldade
parecia ser percebida por quem ouvia a dupla. Quando Ney entrou num
táxi nos Estados Unidos anos depois, eram sua voz e o clarinete de
Paulo em “Da cor do pecado” que soavam alto na estação de rádio
sintonizada pelo motorista.
O recital em Goiânia valeria como uma espécie de avant-première
para uma longa estrada que não havia sido pensada por ninguém, mas
que resultaria num e em shows pelo Brasil por dois anos e meio.
Após a inauguração do restaurante feita em duas noites, Ney sentiu a
boa repercussão pelos ares da cidade e ligou para Poladian. “As
pessoas estão dizendo que foi um sucesso.” O empresário sugeriu que
fizessem um teste para saber das reações no Rio e em São Paulo antes
de definirem os passos seguintes. A temporada batizada À flor da pele
teve início no teatro do Hotel Nacional, onde ficaria por dois meses,
seguiu para a casa de espetáculos Scala, no Leblon, e partiu para São
Paulo, onde os quinze dias previstos no Palladium, reformado por
Abelardo Figueiredo, se tornaram três meses.
Era como se Ney sentisse redobrar a força de sua voz a cada
instrumento que eliminava. Depois de viver duas décadas de arranjos
povoados por todos os instrumentos que Mazzola sugeria e as
gravadoras bancavam, ele caminhava no sentido contrário, testando-se
sem a exuberância dos cenários, das coreografias e dos figurinos para
saber até onde chegaria ao lado de Raphael Rabello, um artista que
pactuava os mesmos valores, herdeiro de uma das linhagens de
Garoto, de fraseado ágil mas extremamente limpo e sem explosões, e
com um presságio quase mediúnico para entrelaçar-se à voz e costurar
com ela as teias de “As rosas não falam”, “Modinha”, “O mundo é um
moinho” e “Tristeza do Jeca”. Quando viu que o nome de Raphael
nunca aparecia nos cartazes, Ney exigiu que passassem a lhe dar o
mesmo destaque que seu nome recebia. Raphael era grande demais
para ser tratado como um acompanhante anônimo.

Aos 51 anos, Ney sabia o que não queria e olhava para o lado com
uma intolerância que poucas vezes deixou transparecer até ser
entrevistado pelo jornal O Globo em novembro de 1992. “Para falar a
verdade, eu estou perdendo o meu saco. Eu olho para o mundo e acho
tudo tão medíocre. As artes estão de uma mediocridade que amola. E o
que está no comando de toda a mediocridade é o dinheiro. Aos trinta
anos eu já sabia disso, mas tinha um fogo que me permitia passar por
cima disso. Aos 51, eu já não tenho mais saco. Até quando o dinheiro
vai continuar no comando?”, disse ao jornalista Mauro Ferreira.
E o que havia ao lado? Ney não cita nomes na entrevista, mas, com
um rápido giro no botão dos aparelhos de rádio naquele ano, passava-
se pelo menos por dois pagodes do grupo Raça Negra, “Cigana” e
“Cheia de manias”, dois sucessos estrondosos dos irmãos sertanejos
Leandro e Leonardo, “Temporal de amor” e “Não olhe assim”, e um
samba-reggae que abria as comportas do país para a chegada do
terceiro império, a música baiana de massa, na voz de Daniela Mercury,
“O canto da cidade”. Assim, o pagode, o sertanejo e a axé-music
firmavam os três dutos milionários e mais avassaladores da história do
pop brasileiro, tomando s, programas de , investimentos das
gravadoras, casas de show e todo o espaço aéreo disponível para a
propagação do som por dez ou quinze verões seguidos. Nada disso
atormentava Ney, que continuava lotando teatros com suas temporadas
de shows e vendendo marcas previstas de discos, até o dia em que ele
se veria abandonado e sem apoio técnico para a estreia de um
espetáculo que seria realizado no pior dia de sua vida.
O fato de fazer o show antes de lançar o novo disco com o Aquarela
Carioca, um combo de sonoridade original e com alto poder de fogo
suspenso entre o instrumental e o pop, ou o rock, o choro e o jazz, ou
qualquer coisa que o baixista Paulo Brandão, o violoncelista Lui
Coimbra, o saxofonista Mario Sève, o guitarrista Paulo Muylaert e o
percussionista Marcos Suzano decidissem fazer, deveria potencializar
as surpresas do espetáculo batizado As aparências enganam. Depois
de uma longa temporada de projetos camerísticos, os ensaios
revelavam um Ney de volta aos ímpetos roqueiros sem fazer rock ou às
sutilezas instrumentais sem fazer jazz. Ele voaria sobre baixo, guitarra
distorcida e pandeiro para cantar “ Rebeldia”, de Alceu Valença,
mostrada por Marcos Suzano; se entregaria ao charango andino, baixo
e pandeiro na versão de “Sangue latino”, dos Secos & Molhados; e se
livraria de qualquer intenção política para cantar a seu modo “Pavão
mysteriozo”, do cearense Ednardo. De Caetano, havia “A tua presença
morena” e “O ciúme”; de Milton Nascimento e Fernando Brant, “Notícias
do Brasil” e “Fruta boa”; outra de Alceu, “Cheiro de saudade”; um
andamento mais ágil para “Pedra de rio”, de Luli e Paulo Cesar; e um
arranjo distante do original de “Las muchachas de Copacabana”, de
Chico Buarque. Ney vencia a onipresença ameaçadora de Elis Regina
— algo que o levou a retardar por treze anos a gravação de “As
aparências enganam”, de Tunai e Sérgio Natureza, desde que a ouviu
no álbum Essa mulher, de 1979 — e a cantava também com lágrimas.
E faria sua única visita a Jorge Ben apropriando-se de “O vendedor de
bananas”, o que Jorge usaria para chamá-lo por um vocativo particular:
“E aí, vendedor de bananas!”.

Marco não estava bem desde a manhã do dia em que aconteceria a


estreia de As aparências enganam. Sua temperatura levemente elevada
tinha se tornado um suplício de quarenta graus subindo para 41 que
nenhum antitérmico combatia. Ney e Mauro chamaram um médico e,
até que ele chegasse, decidiram fazer o que o próprio Marco pediu.
Encheram a banheira com todo o gelo retirado das fôrmas do
congelador e o mergulharam ali, lentamente, tentando aliviar com as
massagens de Mauro as dores provocadas pelo contato de um corpo
debilitado e superaquecido com a água gelada por pedras de menos
dois graus centígrados.
Aos gemidos, Marco repetia para si os ensinamentos sobre
tratamentos que submetiam pessoas a baixas temperaturas, ligados à
circulação do sangue e à respiração, talvez como uma forma de manter
as funções cerebrais ativas e não desmaiar. Um tempo depois, o doutor
chegou pedindo que o retirassem da banheira e o pusessem de volta na
cama. Iria usar uma medicação para conter a febre e as dores, mas
seria preciso realizar um procedimento cirúrgico na região torácica com
anestesia local para a instalação de um catéter. Sem acessos venosos
seguros, Marco receberia a medicação por aquele tubo. A última cena
que Ney viu antes de ir para a estreia no Canecão foi a da preparação
do local que seria aberto pelo doutor.
Os apuros de Ney não ficariam na devastação que sentiu ao sair de
casa quando Marco estava prestes a ter o peito perfurado. Suas
memórias guardam também o momento em que, algumas horas antes,
pela tarde, chegou a informação de que seu empresário não poderia
enviar os equipamentos de luz e de som ao Canecão. Havia um show a
ser feito e, pela primeira vez, não haveria infraestrutura para ele. Ney
acionou as fontes que conhecia e pagou do próprio bolso o aluguel do
básico que conseguiu para que a apresentação não fosse cancelada.
O empresário Manoel Poladian nega o mal-estar e diz que todo o
incidente foi acertado, mas Ney rebate afirmando que os equipamentos
não foram enviados ao Canecão porque haviam sido mandados para
uma apresentação da cantora Daniela Mercury, a nova artista que
passava a atuar sob a produção de Poladian. Assim que o show
acabou, Ney voltou às pressas para casa e ficou aliviado ao ver Marco
bem, dormindo, sem febre e sem dores. Mas apanhou um papel e uma
caneta e redigiu uma carta ao empresário listando todas as razões que
o faziam tomar a decisão final: depois de sentir-se abandonado, ele
estava indignado e não o queria mais como seu empresário. Ney ligou a
máquina de fax acoplada ao telefone, discou o número e esperou até
ouvir o sinal contínuo do outro lado da linha. Ajustou a folha no aparelho
e deixou que ela corresse lentamente até que cada palavra que tinha
escrito chegasse ao destinatário ainda naquela noite.
Três meses depois, no dia 16 de fevereiro de 1993, a enfermeira
chamou Ney por volta das duas horas da manhã. “Está acontecendo
alguma coisa estranha.” Marco tinha sofrido três paradas
cardiorrespiratórias curtas e retornado de todas elas. Ney entrou no
quarto, deitou-se a seu lado e disse, suavemente, quase ao seu ouvido:
“Marco, chega. Não se esforce mais. Você já sofreu muito. O amor da
gente continua”. Ele o sentia persistindo sobretudo pela mãe, dona
Araceles, e, de alguma forma, também por ele. Araceles não queria
perder o filho, mas decidiu que era a hora de deixá-lo e o liberou para
partir. Aos 32 anos e com pouco mais de vinte quilos distribuídos em
1,80 metro, Marco fez um último movimento com a cabeça antes de
seus sinais vitais cessarem. “Graças a Deus, acabou”, disse Araceles,
com um suspiro profundo pelo filho que considerava sua dádiva. Dias
antes, Marco havia confidenciado a Mara dois desejos: ainda que não
seguisse nenhuma religião, queria que sua alma fosse recebida “pelos
braços de Nossa Senhora” e que o seu corpo fosse cremado.
Mauro acompanhou o carro funerário que saiu do Leblon na manhã
de 17 de fevereiro com o corpo do irmão até São Paulo, onde se daria a
cremação. As cartas que Marco escreveu com as sensações dos
últimos dias em que havia se sentido realmente vivo depois de passar a
breve temporada com ele e Ney na Praia Grande ficaram guardadas. O
título de uma delas é “Saudades”:
Saudade de quando o verde penetrante da amendoeira ao sol servia de abrigo para
minhas cabanas e minhas fantasias, do tempo em que eu olhava o mar de cima e, de
tardezinha, quando o sol não machucava mais, eu e meu amigo nadávamos e
nadávamos, íamos longe nesse mar, éramos levados pelas correntezas e saíamos da
água muito longe do lugar onde tínhamos entrado. Íamos os dois, um confiando na
confiança do outro, um ancorando o outro. Saudade do tempo em que eu era
possibilidade, o mar era possibilidade, minhas fantasias eram possibilidade, e eu era livre.
Agora vejo a amendoeira, não mais a que eu subia, mas uma amendoeira onde não posso
subir e construir cabanas. Vejo um mar tão longe de mim e das minhas corajosas
investidas de golfinho. O tempo me vendo passar, e o espaço pequeno demais para
aventuras reais. Os amigos cada vez mais distantes, os dias menos excitantes e sem a
bicicletinha que se impregnava de areia salgada das praias que eu e meu amigo
costumávamos visitar! Não há mais vento noroeste que impedia a gente de andar e
respirar; não há mais para mim microalgas nas noites de lua cheia nem banhos de mar
em água morna dos verões em que eu pulava a janela de madrugada e corria para a
praia; e nos temporais eu corria na chuva julgando aquele o ato de maior liberdade para
qualquer ser. Que saudade da liberdade! E depois da chuva, procurar cobras nos montes
de mato que a maré devolvia e procurar algo muito precioso que o tempo poderia me
ofertar. Saudade de voltar para casa, fechar as janelas para os insetos não entrarem e
dormir feliz. E amanhã cedo acordar para todas as possibilidades.

A velha morte, a mesma que Ney investigava quando criança


entrando pelos velórios de Moça Bonita sem ser convidado. Uma
sombra que o amedrontava nos outros e o desafiava, levando-o a cavar
a terra batida de uma cova com as próprias mãos para aliviar a vida de
um cadáver “sem ar” ou chamar a mãe para informar que seu coração
amanhecera “parado”. A ceifa odiosa do primeiro afeto, a irmã Cinara,
que se foi, deixando o sapatinho de lembrança, e representante das
injustiças divinas que fazia as crianças das quais ele cuidava no
hospital de Brasília não voltarem no dia seguinte. A morte seria uma
obsessão para toda a vida não por temor, mas por desafio. Ney só
queria entendê-la.
Ele já havia cantado “Rosa de Hiroshima” num lar espírita enquanto
uma médium incorporava almas de outro mundo. Cantava “pensem nas
crianças/ mudas telepáticas” ouvindo estarrecido os chamados dos
espectros. “Jaci está presente?”, dizia a incorporada. “Sim”, alguém
respondia. “Sua mãe diz que você deve ligar para sua tia que ela não
está bem.” Jaci dizia não ter o telefone da tia e a médium respondia:
“Anote aí então que ela vai passar o número”. Já havia também se
entregado à terapia do abraço do guru Carlos Pacini, de Goiás,
conhecido por seus seguidores como Mestre do Terceiro Milênio ou
Novo Avatar, um pregador da energização e da transmissão da paz às
pessoas por meio do abraço. Ney vislumbrou anjos e demônios no
santo-daime, foi atravessado pelas luzes mágicas de Mário Troncoso e
surrou os pais nos pneus do Fischer-Hoffman. A maconha o amansou,
a cocaína o frustrou, o Mandrix estendeu suas noites, o lança-perfume o
desnorteou e o abriu as percepções mais profundas. Ele procurou
algo em si por todos aqueles anos, insatisfeito com o pouco amor que
julgava ser capaz de doar. Depois de Marco partir, fechando o genocídio
afetivo praticado pela aids, sentiu-se profundamente solitário. Era como
se não houvesse mais referências, pessoas que o conheciam, o
refletiam e, ao mesmo tempo, tinham nele seus sonhos de vida
refletidos. Foi preciso um tempo para ele se acostumar a tantas
ausências, até que a alma retornasse fortalecida apenas pela morte,
sem subterfúgios de pós, comprimidos, rezas, gurus, deuses nem chás.
Dias em que Ney poderia ter morrido também se não decidisse seguir
adiante.

Era raro ver seu rosto como se viu assim que Mazzola o apresentou
no palco do Festival de Jazz de Montreux em 1994, depois do show de
Daniela Mercury e antes do de Jorge Ben Jor. “Ele se juntou com o
grupo Aquarela Carioca para esse trabalho maravilhoso, considerado
pela revista Billboard o maior show dos Estados Unidos de música
latina. Então, com vocês, Ney Matogrosso e Aquarela Carioca!” Apenas
os olhos estavam contornados de preto, mas tinham suavidade, e não a
tensão que os arregalava, e um sorriso de ternura se abria enquanto ele
erguia os braços como se abraçasse a plateia.
Apesar de suspeito ao apresentar um artista que ele continuava
produzindo em estúdio, Marco Mazzola, o curador da noite brasileira de
Claude Nobs, não mentia. A imprensa local via um Ney diferente
daquele que estivera no país, em 1983, ainda explosivo e exótico, e se
juntava aos jornalistas norte-americanos e a outros europeus que
haviam escrito com respeito sobre ele ao vê-lo nas últimas temporadas
em Nova York, Miami, Barcelona, Paris, Lisboa e pelos interiores da
Itália. Pouco depois de seu show começar em Montreux, a seleção da
Suíça entrou em campo contra a Espanha pelas oitavas de final da
Copa do Mundo dos Estados Unidos e a parcela dos espectadores
locais deixou seus lugares para se dirigir à área em que a partida era
transmitida num telão. Quando a Espanha fez o segundo gol
desclassificando definitivamente os suíços do torneio, que seria vencido
pelo Brasil, o público voltou a encher a pista a tempo de ver Ney
descendo para provocar e receber carícias ousadas das mulheres
enquanto cantava “O vendedor de bananas”.
Ao retornar para casa, Ney, aos 53 anos, começaria uma nova fase,
contida, reverencial e revisionista. Suas fontes estavam no passado e
até o final da década os shows não contariam mais com produções
volumosas. Ângela Maria, Chico Buarque e Villa-Lobos com Tom Jobim
seriam cantados em três álbuns consecutivos, cada um chegando com
a força de uma época: a Ângela do rádio da infância e das primeiras
vontades de cantar, o Chico das ousadias verbais dos anos proibidos,
fazendo com as palavras o que ele, Ney, fazia com o corpo, e Tom e
Villa das construções melódicas que ele ouvia como se visse a própria
natureza. Quando já havia decidido iniciar a tríade com Chico, Ney
sentiu a necessidade de gravar o álbum sobre Ângela Maria. Ele tinha
sido convidado para dirigir o 6o Prêmio Sharp de Música pelo amigo
José Maurício Machline e submergiu como nunca no repertório cantado
pela cantora e por Cauby, os homenageados do ano. “Como ninguém
nunca regrava essas músicas?”, perguntou a Machline. “E por que você
não faz isso?”, sugeriu o produtor. Quando saiu da cerimônia no
Theatro Municipal, a decisão já estava tomada.
Os arranjos foram colocados nas mãos do pianista Leandro Braga e,
para o repertório, vieram obras como o desconsolo radical de
“Abandono”, de Nazareno de Brito e Presyla de Barros; “Estava escrito”,
a canção de Lourival Faissal que daria nome ao disco; toda a picardia
permitida nos anos 1950 com a graciosa “Amendoim torradinho”, de
Henrique Beltrão; a “prece por um país melhor” de “Ave Maria”, de
Vicente Paiva; e, apesar de evitá-la até o fim por sua previsibilidade,
“Babalu”, da cubana Margarita Lecuona, sucesso maior na voz da
Sapoti. Ao lado de Ângela, ele cantava “Só vives pra lua”, de Ricardo
Galeno e Othon Russo.
Ney estreou a temporada de shows sob a falsa ideia dos críticos de
que havia chegado para salvar a cantora de um certo ostracismo, em
razão da conversão que transformara todo o legado produzido pela Era
do Rádio até o final da década de 1950 em “cafonice”, um conceito
ironicamente iniciado a partir da Era dos Festivais e da geração das
rupturas da chamada música brasileira moderna que tanto cultuava
Ângela, Cauby, Sílvio Caldas e Chico Alves, como Elis, Caetano, Gil,
Chico e Milton Nascimento. De repente ficaram eles, os modernos, e,
no passado, os cafonas. Com uma dívida de 23 mil dólares a ser
quitada em dez vezes pela compra de um novo apartamento na
Cupertino Durão, Ney não poderia fracassar. E, então, foi assim: uma
plateia ávida para vê-lo com aquele repertório lotou cada uma das
sessões do Metropolitan, na Barra da Tijuca, e o cantor, ajudado pela
força de Ângela Maria, pagou todas as parcelas em dia. “Estava escrito
me salvou”, disse.
Chico veio em seguida. Cuidadoso com tudo o que era regravado de
seu repertório, o autor acompanhou a escolha das músicas para o show
e o álbum e aceitou a ponderação de Ney: não havia mais contexto
político ou social para uma regravação de “Deus lhe pague”. A canção
tinha sido lançada em 1971, no disco Construção, depois de passar por
todas as tesouradas da censura de Médici que, escolada nas
artimanhas poéticas do autor, considerava que ela parecia “um ‘recado’
com duplicidade de sentido, que tanto pode ser dirigido a alguém ou
algo abstrato.” Os versos eram entendidos como “barra-pesada demais”
por Chico e por Ney: “Por esse pão pra comer, por esse chão pra
dormir/ A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir/ Por me deixar
respirar, por me deixar existir/ Deus lhe pague// Pelo prazer de chorar, e
pelo ‘estamos aí’/ Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir/ Um crime
pra comentar e um samba pra distrair/ Deus lhe pague”.
Uma situação curiosa: Chico e Ney, dois dos artistas mais vigiados
durante os anos de ditadura, concordavam que uma canção ficasse de
fora do disco por parecer politicamente tensa demais para aqueles
tempos. Mas qual era o Brasil de 1996 em que viviam? Depois de dois
anos e 289 dias da gestão de Fernando Collor de Mello e de mais dois
de seu vice, Itamar Franco, o país era conduzido havia um ano por
Fernando Henrique Cardoso. O ex-ministro da Fazenda de Itamar tinha
virado o jogo nas eleições contra as vantagens das intenções de voto
em Lula e se fortalecido pela aceitação popular à estabilização
econômica atingida pelo Plano Real que elaborou com sua equipe para
Itamar Franco ainda em 1994. Mas se “Deus lhe pague” parecia
excessivamente ranzinza num Brasil sem um inimigo tão visível pela
primeira vez desde 1964, como poderia haver no mesmo show letras
igualmente denunciativas como “Construção”, “Roda viva” e “Cala a
boca, Bárbara”?
Ney dizia ter conseguido suavizá-las e até transformar “Cala a boca,
Bárbara”, parceria de Chico e Ruy Guerra para a peça Calabar, de
1973, numa “bela canção de amor”. “Construção” e “Roda viva”
mantinham o fogo baixo, com todas as sofisticações da guitarra de
Ricardo Silveira e da bateria de Wilson das Neves, e, apesar de o show
abrir com três ou quatro dramas, estava claro que Ney, usando chapéu
e terno de seda com círculos dourados desenhados pelo estilista
Ocimar Versolato, queria mais os malandros do que as lamúrias. Depois
de ver o ensaio e cantar com Ney “Até o fim” num clipe que mostrava os
olhares maliciosos de um enfrentando a timidez do outro, o autor
elogiou o poder do cantor em regravar com personalidade músicas
como “Construção” e “A banda”. Para Chico, a habilidade de Ney o
transformava em “um coautor”.
Um brasileiro, o nome do álbum, seria o derradeiro produzido por
Marco Mazzola depois de catorze discos sob seu comando. Mazzola
vinha se distanciando nos últimos trabalhos e dividindo as funções de
estúdio com outros profissionais ao menos desde À flor da pele. Agora,
Ney queria deixar de ser o canário que chegava ao estúdio com tudo
pronto para que sua voz fosse colocada. Queria participar mais do
pensamento musical e ficar mais próximo dos músicos. Com a indústria
do ainda em ebulição, remava contra todas as correntes fazendo
álbuns cada vez mais distantes dos interesses industriais. Das
cinquenta músicas mais tocadas nas s de 1997, axé, sertanejo e
pagodes dominavam as principais posições. As rádios, definitivamente,
já não eram um espaço a ser disputado.
O terceiro tributo foi para Villa-Lobos e Tom Jobim e teve direção de
Zé Nogueira e João Mário Linhares, que se tornaria o mais longevo
empresário de Ney. As melodias exigiam preparo e, pela primeira vez,
Ney ensaiava intensamente antes de entrar em estúdio. Apesar de a
autoridade artística dos compositores sugerir regravações respeitosas,
arranjos nada ortodoxos usavam as possibilidades do grupo mineiro
Uakti e nenhum instrumento elétrico seria banido pelos pudores de
tradição. A guitarra de Ricardo Silveira pontuava a melodia de “Cair da
tarde”, de Villa com letra de Dora Vasconcellos; “Veleiros” se convertia
num filme, bela, poderosa e imagética; e o baião “Pato preto” fazia o
álbum mais clássico da trilogia terminar numa casa de reboco.
Se não tivesse morrido três anos antes, Jobim teria calafrios ao ver
os amplificadores ligados no estúdio para a gravação de uma
controversa versão de “Águas de março”. Ele havia partido sem gostar
das “aporrinholas eletrônicas”, como chamava baixos, guitarras e
sobretudo teclados, mesmo depois de Elis Regina e Cesar Camargo
Mariano dobrarem seu conservadorismo e fazerem do álbum Elis &
Tom, com todo o aumento do consumo na conta de luz do estúdio, um
clássico. Ney não queria cantar “Águas de março” por achar os arranjos
mal resolvidos e chegou a falar de suas ressalvas ao produtor Zé
Nogueira, mas acabou cedendo a um argumento: “Não liga, Ney, essa é
para os músicos”. De fato, “Águas de março”, como saiu, se tornou,
como o próprio Ney reconheceria, a pior regravação de uma música de
Jobim em sua discografia.
O cair da tarde seria lançado com um dos shows mais caros e
ambiciosos da carreira de Ney. Ele queria que o palco — de
preferência, o do Theatro Municipal do Rio — se transformasse em uma
ilha rodeada por um lago o mais próximo possível do real e que
algumas aves cenográficas passassem voando sobre sua cabeça.
Cláudio Tovar cuidaria das cenas e duas formações instrumentais, uma
camerística e outra elétrica, seriam colocadas ao fundo. Um sonho que
durou até começarem os estudos de logística. Seria preciso ter piscinas
enormes para reproduzir o lago e, a exemplo das limitações na
mobilidade do Circo Tihany para viajar com Destino de aventureiro pelo
Brasil, nada garantiria que se poderia carregar a estrutura para outras
cidades. Ney desistiu do show e O cair da tarde se tornou órfão de
palco.
Cantar para as memórias o satisfazia, mas voltar aos figurinos
afrontosos e às canções de vanguarda já era uma necessidade.
Quando quis saber até onde sua voz poderia chegar sozinha, sem o
personagem sedutor das maquiagens e das provocações, impôs a si
um teste gravando Pescador de pérolas. E tudo o que veio depois, ao
lado de Raphael Rabello, do Aquarela Carioca, ou cantando Ângela
Maria e Chico Buarque até alcançar os limites do popular de Villa-Lobos
e Jobim, havia sido fruto de uma autoconfiança que nem sempre existiu.
Ney vacilou antes de gravar seu primeiro samba e seu primeiro baião
por se considerar inabilitado, jamais gostou de improvisos e sua
afinação sempre careceu de foco e vigilância para ser mantida. Agora
que tinha percorrido os caminhos que queria, mesmo ao preço de
romper com gravadoras ou ter discos retaliados por companhias que os
lançavam com o mais profundo descaso — como mais uma vez
acontecia com O cair da tarde —, Ney atendia a uma sensação que
parecia não ser só sua. O país recusava-se a tê-lo como um cantor do
passado.

O Brasil de 1998 não era mais o de 1996 e talvez até a indignação de


“Deus lhe pague” já ressoasse melhor. Casos de corrupção em todas as
esferas do poder público colocavam o país no ranking das nações mais
roubadas do mundo, mesmo com a economia ainda equilibrada
rendendo a uma reeleição em primeiro turno. Certo dia, um homem
que se identificou como responsável pelo marketing de uma empresa
estatal de energia elétrica, com um de seus escritórios no centro do Rio,
chamou Ney e o empresário João Mário para uma reunião de negócios.
Ele queria falar com os dois sobre um possível patrocínio que a
companhia gostaria de oferecer ao artista no valor de 200 mil reais para
um novo espetáculo. Apesar de estranhar o convite para tratar de um
assunto que em geral era discutido com seus representantes, Ney foi. A
portas fechadas, ele e João ouviram o executivo expor seus planos para
o investimento e ficaram sem entender alguns termos burocráticos até
que a conversa caminhou para o fim com um indigesto combinado. Dos
200 mil que seriam destinados à produção, o funcionário embolsaria
algo entre 20 mil e 30 mil. Os dois agradeceram e se retiraram para não
voltarem mais.
Ao pedir ao amigo compositor Ronaldo Bastos que lhe mostrasse
talentos novos que valessem a pena ser gravados, Ney foi levado a um
show que o carioca Pedro Luis fazia numa casa no Humaitá. Depois da
sexta canção, disse a Ronaldo: “Até agora, eu gravaria todas”. Acabou
escolhendo “Fazê o quê” e “Miséria no Japão” para o álbum Olhos de
farol. “Somos tios da pobreza social/ Somos todos para-brisas do futuro
nacional/ Eu sou tio, ela é tia/ O pavio tá aceso, aqui é quente/ País é
quente/ O mundo é quente”, dizia “Miséria no Japão”. Na outra ponta,
fechava, depois de solicitar alterações pontuais na letra, como a retirada
do nome da dançarina Carla Perez, com a música “A cara do Brasil”, de
Celso Viáfora e Vicente Barreto: “O Brasil é uma foto do Betinho/ Ou um
vídeo da Favela Naval?/ São os Trens da Alegria de Brasília/ Ou os
trens de subúrbio da Central?”. Embora trouxesse retratos de sua era, o
disco, com o existencialismo de Paulinho Moska em “Gotas de tempo
puro” e “Poema”, uma letra que Cazuza tinha feito para a avó mas que
só fora musicada após a morte do cantor por Roberto Frejat, não era
um ato político, mas um grande arco sobre o tempo.
A estreia de Olhos de farol, em 8 de janeiro de 1999, no Metropolitan,
começara em algum lugar de 1973 e não tinha data para terminar. A
partir de então, Ney seguiria em cena por uma noite de duas ou três
décadas até que, um dia, talvez, o tempo o parasse. Não havia mais
Marco, Cazuza, Luisinho nem Vicente. A venda do Mandrix só era
permitida em poucos países da África, o diluído não surtia o mesmo
efeito e doutrina nenhuma poderia revelar mais criaturas do que seus
olhos conseguiram ver. Só havia sobrado o palco e era nele que Ney
juntaria todas as suas partes para recontar em canções a própria
história por muitas vezes.
“Sangue latino”, “Rosa de Hiroshima”, “Mulher barriguda” e “O vira”,
cantadas no show, era Ney nos Secos & Molhados, uma existência
mais forte do que as práticas de um país que acuava seus artistas com
prisão, tortura e exílio. Afinal, como uma ameaça aos valores da família
e dos bons costumes, delatada tantas vezes por leitores de jornais,
telespectadores do Fantástico e nomes influentes como Chacrinha e
Carlos Imperial, não tinha sido levada aos porões nem antes nem
depois de vender quase 1 milhão de discos? A resposta, talvez,
estivesse nos porões da alma irrevelável dos próprios militares e nos
relatórios dos censores comandados por eles. Mesmo sendo um
incômodo por provocar os pudores dos homens fiéis às suas
programações heterossexuais, Ney era respeitado.
O sexo que um dia desejou praticar com toda a plateia havia se
transformado em carícia. A sensualidade estava presente, era
mencionada nos figurinos, nas canções, nos gestos e nas trocas de
roupa em cena, mas não vinha com o mesmo furor dos anos 1970. O
tempo trazia a serenidade e fazia Ney usar o olhar e o físico com outras
intenções. Como lá, aqui também era a transposição da vida para o
palco. Depois da morte de Marco, Ney não viveria mais com alguém
sob o mesmo teto nem estabeleceria relações duradouras. As transas
se dariam basicamente com outros homens e numa frequência cada
vez menor. Contudo, o mesmo tempo tinha tornado seu corpo uma
marca artística tão forte quanto o seu canto, e vê-lo sedutor era algo
esperado pelos fãs mesmo quando ele chegasse aos oitenta anos.
Ney lembraria que seus desajustes morais vinham de mais longe e
eram eles que apareciam nas entrelinhas do álbum Batuque, de 2001.
Depois de ouvir Carmen Miranda cantar “Tico-tico no fubá” e “O que é
que a baiana tem?”, se perguntou por que não poderia cantar da
mesma forma. Por que era homem? “Você já fez saliência com
meninos?”, lembrou-se do padre tomando a confissão quando ainda
não tinha idade para saber o que era saliência. “Fica aí de castigo”, veio
a imagem do pai expondo sua nudez diante dos vizinhos para puni-lo de
algo sem imaginar que aquela sentença, na verdade, era uma estreia.
Sargento Matto Grosso, contudo, teve tempo de ser pai, de beijar o filho
e de vê-lo brigar com os médicos para que o tratassem com dignidade
antes de ser levado por um câncer, em 20 de dezembro de 1985. Matto
Grosso não era Cartola, mas quando Ney cantou a obra do sambista
num álbum-tributo de 2002, os conselhos que estavam em “O mundo é
um moinho” pareciam se acomodar perfeitamente ao dia em que
arrumou as malas e anunciou a partida de Campo Grande sabendo que
o único rumo que caberia em sua vida era o de um quartel da
Aeronáutica. Não havia sonhos, mas um vislumbre do que iria querer
para si ao mergulhar na subversão das subversões: foi dentro de um
batalhão que descobriu a possibilidade de amar alguém do mesmo
sexo.
Os moinhos giravam rápido com a entrada do novo milênio e diluíam
qualquer suporte físico necessário até ali para abrigar um conjunto de
canções. Aos poucos, novos artistas deixavam o conceito dos álbuns
ensinado na era dos s e aperfeiçoado com os s para lançarem na
internet singles soltos e s com quatro ou seis músicas prontas para
serem acessadas aleatoriamente, sem necessariamente obedecer a
uma linguagem de unidade pensada por um produtor. Ney dizia não aos
singles e a gravar faixas fora de seus discos, preferindo trabalhar com a
velha ideia dos s ainda que um dia eles não existissem mais. Ao
mesmo tempo, firmava-se como um prolífico colaborador de trabalhos
feitos pelas novas gerações, mantendo o traço observador que o fazia
levar esses jovens nomes também para o seu repertório, sem esquecer
dos autores que haviam estado a seu lado quando tudo começou.
Assim, o alimentava tanto gravar as descobertas de Pedro Luis e a
Parede no disco Vagabundo, de 2004, como voltar a Luli e Lucina com
uma nova versão para “Napoleão” no mesmo álbum. Luli, a amiga que
via tudo entre os sacis e as fadas, não sossegou até vê-lo cantar num
palco. “Quero te apresentar um amigo de São Paulo”, disse, em 1971.
O amigo era João Ricardo. Dias depois do fim dos Secos & Molhados,
Ney foi a sua casa exausto, com um sorriso de canto: “Luli, eu não sei
se eu te culpo ou te agradeço”.
A mística Luli, a mulher que se recusou a só ver o que os olhos
mostravam, havia recebido Lucina em seu casamento com o fotógrafo
Luiz Fernando para um legítimo amor a três. Suas críticas poéticas aos
shows de Ney foram escritas à mão ou em máquina de escrever e
enviadas por anos pelo correio mesmo depois que ela se conformou
com a falta de respostas e suas canções já atravessavam quatro
décadas nos discos do amigo. O mundo invisível de Luli nunca mais
sairia de Ney. “Isso é um apito para chamar gnomos, guarde com você”,
disse ela ao presenteá-lo pela última vez antes de partir para sua nova
morada, uma casa de madeira protegida por santos, fadas e orixás na
pequena cidade de Lumiar, na região serrana do Rio, onde viveu até ser
levada por uma legião de feiticeiras no dia 26 de setembro de 2018.

A noite sem fim seguiu com o álbum de 2005, Canto em qualquer


canto, e a canção que dava nome ao disco representava bem o Ney
dos silvos, assinada por Itamar Assumpção e Ná Ozzetti. “Tem gente
que pira e berra/ Eu já canto, pio e silvo/ Se fosse minha essa rua/ O pé
de ipê estava vivo.” A voz que ninguém entendia, aguda sem ser falsete
e contralto sem ser feminina, confundia os regentes dos corais em
Brasília e o havia impedido de fazer bons duetos com homens por toda
a vida, como a desencontrada atuação que marcaria sua apresentação
ao lado do grupo Nação Zumbi, no Rock in Rio de 2017. Mas não, Ney
não fora castrado como os meninos prometidos do Império Bizantino,
cujos testículos eram retirados para interromper a produção dos
hormônios que lhes dariam graves na idade adulta. Certo dia, ele se
espantou ao ler num jornal que a natureza de sua voz estava
relacionada ao fato de ele ter sido castrado na infância. Um absurdo
que seus figurinos estiveram sempre prontos para desmentir.
Ao voltar aos shows vestido mais uma vez por Ocimar Versolato,
talento reconhecido em Paris e convertido num tradutor fiel de sua alma
nos palcos, Ney vinha com uma banda pesada para esbravejar o rock
“Inclassificáveis”, de Arnaldo Antunes. Um canto brutal num país que,
mesmo governado desde 2003 por Luiz Inácio Lula da Silva, um
operário pernambucano de origem humilde, começava a sofrer o
avanço e o radicalismo de pensamentos racistas, homofóbicos e
sectários. A presença mais visível de gays, negros e pobres em lugares
que até então “não lhes pertenciam”, como universidades, shoppings e
aeroportos, criava resistência numa faixa robusta da sociedade. A
mesma que, em dez anos, viria a fazer parte de uma base política
extremista, ameaçadora e poderosa.
A letra antropofágica de Arnaldo Antunes cantada por Ney reforçava
a ideia de amálgama das raças num país sem tipos puros com um
refrão que afirmava “não há sol a sós” mas que se tornaria cada vez
mais distante na medida em que a prática do racismo levava os negros
a responderem com uma potente fala de afirmação. Assim, o ponto
pacífico da miscigenação era implodido pelos dois lados e os
inclassificáveis da letra precisavam se reclassificar na vida real
enquanto Ney cantava os versos de Arnaldo: “Que preto, que branco,
que índio o quê?/ Que branco, que índio, que preto o quê?/ Que índio,
que preto, que branco o quê? Aqui somos mestiços mulatos/ Cafuzos
pardos mamelucos sararás/ Crilouros guaranisseis e judárabes”.
Novos códigos obrigaram Ney a se libertar de uma das características
que marcaram muitos de seus figurinos. Desde o início dos anos 1990,
quando os primeiros grupos de defesa dos animais colocaram na mira a
presença de peles e couros em desfiles de moda, ele deixou de usar
peles, crinas e ossos de animais para evocar os povos indígenas e as
crenças africanas. Assim como havia começado a fazer em Olhos de
farol, Ocimar Versolato não precisou de uma pena de pombo para
converter a imagem de Ney numa figura exuberante, de brilhos e
formas alongadas.
Além de refletir sobre o risco de o uso dos artigos retirados de
animais incentivar pessoas a matarem os bichos para fazerem o
mesmo, algo que ele não fazia, ter seres da floresta vivendo em casa
passava a ser outro desvario. E sua fauna não foi pequena. Antes das
duas macaquinhas — Vitória, morta na década de 1990, e Garota, um
presente do então empresário Manoel Poladian oferecido havia trinta
anos e já dando sinais de estar prestes a partir de velhice em 2020 —,
ele tinha criado duas cobras. Primeiro um filhote de jiboia trazido de
Goiás nos anos 1970 mas doado assim que seu crescimento começou
a torná-lo assustador demais e, depois, uma falsa-coral, alimentada
diariamente com uma solução à base de Vitagold e gema de ovo batida
no liquidificador.
Desde que tinha comprado o que ele chama de sítio e os amigos de
fazenda num canto de terra na região de Saquarema, interior do Rio de
Janeiro, batizado de Serra Mato Grosso muito antes de sua chegada,
não fazia mais sentido levar os animais para o apartamento do Leblon.
Na área com cachoeira e três grandes lagos distribuídos por 148 mil
hectares protegidos por lei e descritos por ele como o único luxo que fez
questão de adquirir com o dinheiro de seu trabalho, havia 5 mil espécies
de aves, mamíferos e todos os descendentes das trinta jiboias que lá
chegaram, resgatadas de condições ilegais pelo Ibama para viverem
livres.

Um ano após a tensão de Inclassificáveis viria Beijo bandido, o


segundo feito na gravadora quando essas siglas já não significavam
muito. Ney seguia seu movimento pendular retraindo-se depois de se
expandir, rodeado por instrumentos acústicos e vestido com sobriedade
elegante: camisa branca aberta no peito, gravata com nó relaxado,
paletó com forro cor de sangue e calça justa. Mais uma vez o disco,
mesmo trazendo canções poderosas como “Fascinação”, na versão de
Armando Louzada gravada por Elis Regina, e “A bela e a fera”, de
Chico Buarque e Edu Lobo, não seria a única base para o repertório
dos shows. As casas lotadas o seguraram por quatro anos nos palcos,
um recorde pessoal até então, e renderam um registro ao vivo em 2011
com “Da cor do pecado”, de Bororó, cantada pela quarta vez depois de
constar em Pecado, Pescador de pérolas e À flor da pele, agora com
piano de Leandro Braga, violoncelo de Lui Coimbra e a onipresença
imaterial de Raphael Rabello.
Algo em “Da cor do pecado” seria sempre de Raphael por sua
estupenda interpretação. O músico havia sido um caso raro a
estabelecer com Ney uma relação fora dos palcos e o único a formar
com ele um longevo dueto. Era hora do almoço quando Raphael
chegou acompanhado por um rapaz de poucas palavras. “Quer
comer?”, ofereceu Ney. “Não, só vim me despedir antes de sua
viagem”, disse Raphael. Ney estava prestes a embarcar para um show
em Natal, a capital do Rio Grande do Norte, mas toda aquela deferência
sentimental soou estranha. Afinal, eles viviam indo e vindo pelo país
sem cerimônias, como se já fossem de todos os lugares. Mas o
violonista queria dar um abraço e entregar um isqueiro de lembrança
antes de se despedir.
Dias depois, em 27 de abril de 1995, Ney recebeu a notícia: Raphael
Rabello havia morrido. Internado para se desintoxicar do álcool e das
drogas em que se afundara ainda mais por saber que era soropositivo,
sofreu uma parada respiratória decorrente de uma crise de apneia. Ney
ficou em choque lembrando da frase dita tantas vezes pelo amigo com
uma certeza tirada sabe-se lá de onde: “Eu vou morrer antes dos 33
anos”. Ele tinha 32.

O país atingiu o ponto de ebulição em 2013, quatro meses depois de


Ney chegar com um show enérgico, intitulado Atento aos sinais, e ao
menos uma música que antecedia o espírito de uma das maiores ondas
de protestos populares da história. A partir da apresentação feita em 28
de fevereiro, no Cine-Theatro Central de Juiz de Fora, em Minas Gerais,
seriam cinco anos na estrada, uma das mais longas temporadas de um
artista brasileiro. E algo parecia prever o fervor das caldeiras quando
ele decidiu cantar o rock “Incêndio”, dos tempos em que Pedro Luis se
apresentava com a banda Urge, em 1992. Ela abria dizendo: “Fogo,
fogo, fogo, água/ Incêndio nas ruas/ Bomba, bomba, bomba, praça/
Vielas, ratos, figuras, nuas”, repetia “incêndio nas ruas!” por quatro
vezes e, então, a canção era tomada pelo som de um trompete e um
trombone simulando a sirene de viaturas policiais. A mesma sirene que
soaria tantas vezes a partir do dia 13 de junho, quando mais de 5 mil
pessoas seriam impedidas pela polícia de São Paulo de chegar a uma
manifestação na avenida Paulista.
A Batalha da Consolação, que resultou em ferimentos de onze
jornalistas e na detenção de duzentos civis, se tornou um símbolo do
ano em que, apenas entre 17 e 20 de junho, mais de 1,25 milhão de
pessoas foram às ruas em 140 cidades brasileiras. O rastilho de pólvora
havia sido o anúncio de um aumento de vinte centavos nas passagens
do transporte público, mas, quando o barril explodiu, mil revoltas
voaram pelos ares. Nos dias que se seguiram, prefeitos, governadores
e a presidente Dilma Rousseff, a qual enfrentava os piores índices de
popularidade desde a posse de 2011, atordoavam-se com as imagens
das massas sem líderes nem bandeiras partidárias tomando avenidas,
praças, viadutos e parando a nação. Em Brasília, 35 mil pessoas
ocuparam a Esplanada dos Ministérios. Em Belo Horizonte, 12 mil se
reuniram na praça Sete para fechar duas grandes vias. No Rio, mais de
100 mil populares ocuparam ruas e espaços como a avenida Rio
Branco, com confrontos em frente à Assembleia Legislativa. Dilma iria
governar até 2016, quando seria afastada por um processo de
impeachment apoiado por seu próprio vice, Michel Temer, pronto para
assumir o cargo.
25. Um lugar chamado fronteira

O relâmpago que vai atingi-lo na cabeça deve vir de frente, não de


cima. E precisa ser rápido, no tempo certo, assim que as cortinas forem
abertas por dois contrarregras e os músicos começarem a introdução
de clima misterioso feita para “Eu quero é botar meu bloco na rua”, de
Sérgio Sampaio. Com o rosto coberto por um capuz dourado fechado a
zíper, Ney caminha até o centro do palco com passos cuidadosos e
gestos de pássaro sob os raios de luzes brancas e amarelas. Chega ao
lugar marcado, abre o capuz e dança até o breque seco da banda
sinalizar sua entrada diante de uma plateia que, no show, estará quase
aflita.
Depois de repassar detalhes da iluminação e cantar três músicas
entregando-se a um público imaginário, ele volta ao camarim aspirando
o soro fisiológico de um algodão para liberar as vias nasais. Faz
exercícios vocais aprendidos com a fonoaudióloga mineira Janaína
Pimenta e senta-se diante do espelho para começar a maquiar os olhos
e a experimentar o figurino quando chega seu novo estilista, o paraense
Lino Villaventura. “Tira a asa do pé, Ney, tudo bem”, diz Lino, ao vê-lo
em dificuldades com detalhes da roupa. “Não, eu vou usar.”
Ocimar Versolato havia morrido. Seu maior estilista, de olhar e tino
certo para saber o que Ney queria dizer em cada show enquanto
costurava as peças no corpo dele, tinha feito todas as suas roupas
desde a temporada de Estava escrito, em 1994. Um dos primeiros
brasileiros a se posicionar com honras e destaque na alta-costura de
Paris, Ocimar procurou Ney para trabalharem juntos e contou que só
havia se tornado um estilista depois de vê-lo no palco, primeiro no show
Homem de Neanderthal e, mais tarde, em Bandido. Mesmo sem
referências ou conhecimento formal de alta-costura, no início de sua
carreira, Ney concebia o que vestia e, de algum modo, suas peças
começaram a libertar as ideias de uma geração de novos estilistas.
Muitos se aproximaram dizendo a mesma frase de Ocimar: “Eu sou o
que sou graças a você”.
A relação de confiança entre os dois havia se estabelecido de forma
imediata após as primeiras experiências com o figurino de Estava
escrito. Tanto que, para o show seguinte, Ney decidiu se encontrar com
Ocimar em Paris a fim de que ele fizesse o figurino de Um brasileiro, o
espetáculo sobre Chico Buarque, já que o estilista estava
impossibilitado de viajar para o Brasil. Ao chegar à França, Ney ficou
impressionado com a exposição que as suas criações ganhavam nas
vitrines das maiores lojas de Paris. Aos 56 anos, Ocimar saiu de
madrugada para comprar um medicamento na farmácia, a poucos
metros de sua residência, em São Paulo, quando se sentiu mal e
desmaiou na rua. Levado a um hospital, entrou em coma e muitos
amigos só souberam de seu estado dias depois, quando sua identidade
foi descoberta pelo estabelecimento.
Ney ligou para seu médico em São Paulo, dr. Sérgio Timerman, e
pediu a ele que fosse ver o amigo. Timerman foi e ligou de volta com
uma má notícia. Se sobrevivesse, Ocimar conseguiria se comunicar
apenas pelos olhos. Sentindo que não haveria tempo para sair do Rio e
chegar ao hospital antes da partida do amigo, Ney usou toda a
mentalização que havia aprendido para mandar uma mensagem. “Vai,
Ocimar, não será bom ficar. Vai em paz.” E ele foi, no dia 8 de
dezembro de 2017, deixando uma mala cheia de figurinos que tinha
começado a fazer para o próximo espetáculo de Ney.

Bloco na rua fez sua estreia no Rio em 11 de janeiro de 2019, com


todas as forças visíveis, nas canções e nas imagens exibidas no grande
telão colocado no fundo do palco, e com as invisíveis flutuando pelos
ares dez dias após a posse do 38o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro.
Apesar de cantar para um país rachado pelo ódio, Ney acreditava que
as músicas falavam por ele: “No beco escuro explode a violência/ Eu
estava acordado/ Ruínas, igrejas, seitas sem nome/ Paixão, insônia,
doença/ Liberdade vigiada”, dizia “O beco”, de Herbert Vianna. “Quero a
utopia, quero tudo e mais/ Quero a felicidade dos olhos de um pai/
Quero a alegria, muita gente feliz/ Quero que a justiça reine em meu
país”, falava “Coração civil”, de Milton Nascimento e Fernando Brant.
“Tem gente com fome, tem gente com fome, tem gente com fome, tem
gente com fome.” A frase de Solano Trindade, musicada por João
Ricardo, era repetida muitas vezes e atualizada 46 anos depois. Um
relatório elaborado com a participação da Organização das Nações
Unidas mostrava que, no instante em que Ney cantava, 3,4 milhões de
brasileiros passavam fome.
Dois meses depois, Regina Duarte, a primeira referência artística que
esteve ao lado de Ney havia quase cinquenta anos, em 1971, na peça
Dom Chicote Mula Manca e seu fiel companheiro Zé Chupança,
assumia a Secretaria Especial de Cultura do governo Bolsonaro a
convite do presidente. Ao vê-la discursar no dia da posse, em 4 de
março de 2020, Ney sentiu uma profunda tristeza. Um dia depois, ele foi
ao programa Metrópolis, da Cultura, e respondeu a uma pergunta do
jornalista Cunha Jr. sobre suas expectativas com a nova chefe da pasta
que comandaria a Cultura do Brasil: “Ela fez péssimo negócio. Se ela
pretendia fazer alguma coisa, não fará, não poderá fazer, o governo não
vai dar abertura”. Regina deixou o cargo após três meses sem realizar
nenhum feito na área, alegando estar com saudades da família e com a
promessa de assumir a direção da Cinemateca, a instituição
responsável pela preservação da produção audiovisual brasileira, em
São Paulo. O que nunca ocorreu.

O Brasil vivia o recrudescimento das mesmas práticas estimuladas


oficialmente por decisões e falas políticas que Ney passou a vida
combatendo com suas posturas. Homofobia, xenofobia, racismo,
machismo, tentativas de censura à liberdade artística e de expressão,
exaltação a torturadores do regime militar, liberação de terras indígenas
para exploração mineral e queimadas deliberadas na Amazônia
também para fins exploratórios. Apesar de sua indignação, ele nunca
discursou em seus shows para atacar verbalmente o que parecia tomar
o país como uma maldição determinada a implodir suas conquistas. Um
silêncio que se dava pelas mesmas razões que o fizeram não gritar em
cena frases como “fora Collor”, “fora ”, “fora Lula” ou “fora Temer” e
que, agora, o faziam não gritar “fora Bolsonaro”. No palco, lugar onde
pouco falava, Ney também não havia dito “abaixo a ditadura” assim
como, fora dele, recusava as chances de se tornar um ícone da
resistência + dizendo não aos convites para participar das
paradas de afirmação de gênero.
Sobre a postura de não verbalizar revoltas em espetáculos, o que
aparentemente o distanciava da vida real, Ney afirmaria que a praticava
como tática: “Enquanto não falo, posso fazer”. Uma estratégia de
combate apartidária que lhe permitia continuar atuando em gestos e em
letras mesmo sob fogo cruzado, investindo contra tudo o que o
estarrecia diante de uma plateia formada não apenas por pessoas que
pensavam como ele. Sua linguagem desafiadora e provocativa criada
sob a maquiagem dos Secos & Molhados poderia ser tão poderosa
quanto os discursos verbais mais inflamados. Sua existência ereta aos
oitenta anos, sem ceder em nenhuma de suas convicções, já era sua
principal revolução.
A frustração de quem o chamava para as batalhas de temática sexual
e não tinha o retorno que esperava poderia estar num ruído de
informação. Ney entendia a importância do que havia feito quando era
procurado por homens e mulheres de todas as orientações sexuais que
vinham lhe agradecer por inspirá-los a se revelarem ao mundo como
seus corações pediam que fossem e não conforme os planos da Igreja,
dos pais, dos vizinhos ou do universo. As histórias contadas com
lágrimas tinham dado força para ele seguir por um caminho cada vez
mais perigoso num mundo de torturas e prisões. Ainda assim, Ney não
queria lutar apenas como um representante de seus potenciais iguais,
reprimidos sexualmente desde a infância, mas por justiça social e uma
liberdade incondicional de todas as ideias humanistas.
Apontá-lo como “o gay do Brasil” era tudo o que os militares de 1970
queriam ter feito e seus resquícios na década de 2020 adorariam fazer
para esvaziar o incômodo de sua existência e minimizar as
inconveniências de sua fala. O homem-bicho que surgiu no palco em
1973 já gritava contra a devastação do planeta, a exploração dos povos
indígenas, o preconceito racial e todas as formas de mordaça antes
mesmo de sua imagem trazer mensagens de afirmação de gênero,
mais explícitas a partir de 1976, em Bandido. Aceitar agora um selo e
um cetro, pensava, seria o primeiro passo para reduzir o alcance de
suas palavras. “Não quero ser um estandarte gay”, repetia nas
entrevistas. “Me enquadrar como gay seria muito confortável para o
sistema. Que gay o caralho. Eu sou um ser humano, uma pessoa”,
disse, em 2017, ao repórter Marco Aurélio Canônico, do jornal Folha de
S.Paulo. “Eu não estou negando nada. Gosto de ser quem eu sou e de
viver como vivo, mas não quero que me reduzam, não quero ser esta
única referência”, respondeu ao repórter Pedro Bial num evento
promovido pelo produtor Marco Mazzola, em 2019.

Depois de rodar o Brasil por catorze meses, Ney saiu de cena em


2020, o ano em que o mundo parou. Quando fazia quatro meses que os
primeiros casos de uma nova infecção respiratória de grande poder letal
provocada por um vírus foram noticiados na cidade chinesa de Wuhan,
e que as ondas de contaminação começaram a varrer o mundo com
uma aterradora escalada de mortes, a Organização Mundial da Saúde
decretou uma epidemia planetária da doença batizada Covid-19. Mais
uma vez dividido, agora entre os que seguiriam as orientações médicas
de se manterem em isolamento para diminuir a propagação da peste e
os que pediam pela volta das atividades mesmo com a pandemia em
curso, o país sofria uma devastação confirmada pelos números. Até o
dia 25 de abril de 2021, 389609 pessoas no Brasil e 3119700 no planeta
haviam sido enterradas e cremadas como vítimas de uma das maiores
tragédias sanitárias da história.
Antes de decretar-se em isolamento, Ney decidiu ajudar cada um dos
24 profissionais de sua equipe de técnicos e músicos pagando por
algum tempo quantias mensais entre 1500 e 2500 reais e seguiu para
ficar alguns dias ao lado da mãe de 98 anos no sítio de Saquarema.
Sem filhos e prestes a completar oito décadas de vida, estabeleceu
uma quarentena revezada entre temporadas menores na mata e fases
mais longas trancado no apartamento do Leblon, acompanhado apenas
pela ajudante Helena e pela macaquinha Garota. Oto, o gato, morrera
dias depois de chegar ao sítio, no início dos anos 2000, ao sofrer o
ataque de um cão. Durante os dias passados no Leblon, Ney, em sete
meses, saiu duas vezes para cortar o cabelo, uma para ir à livraria e
outra para fazer um teste de Covid-19.
Ao contrário do , que misteriosamente não o infectou mesmo
depois de ele ter mantido relações sexuais com ao menos duas
pessoas contaminadas, Marco e Cazuza, o chamado novo coronavírus
entrou em seu organismo, mas ficou inativo, sem provocar sintomas.
Ainda assim, sabendo que já tinha sido “tocado pelo mal” e sobrevivido,
decidiu não acreditar na ideia difundida sem comprovação científica da
imunização natural e permaneceu afastado, vivendo uma situação de
recolhimento que nem os piores dias da aids haviam imposto. Com a
morte rondando o planeta, foi ao dr. Timerman autorizá-lo a não fazer
mais esforços do que seus olhos indicariam suportar se, um dia,
precisasse respirar por aparelhos. Ney não admitiria que espremessem
sua vida como espremeram a de Marco e a de Cazuza.
Ao perceber que suas últimas forças estavam sendo minadas por
notícias que chegavam pela sobre a mortandade irrefreável com o
surgimento de uma segunda onda da doença pelo mundo e sobre a
falta de políticas sanitárias no país, Ney decidiu não ligar mais o
aparelho. A combinação de dois sentimentos o consumia de forma
perigosa: uma profunda tristeza pelo luto das famílias e a revolta com o
descaso e o escárnio do presidente da República, Jair Bolsonaro, e de
seus filhos com relação às mortes e à necessidade de ações urgentes
do poder público. Para fugir da loucura, algo que sempre o assombrou,
passou a ouvir mantras, ler mais livros e seguir uma rotina de
alongamento, ginástica e musculação. Uma avaliação médica feita no
fim de 2020 dizia que sua idade corporal equivalia à de um homem de
55 anos, sem problemas de colesterol, glicose, pulmonares, ósseos ou
coronários. Seu peso, que diminuíra por causa da perda de musculatura
no início da pandemia, foi recuperado e estacionou nos 61,2 quilos
enquanto a pressão arterial se manteve em 12 por 8.
A voz se tornou uma dúvida. Depois de mais de um ano sem cantar
em shows, o maior período de silêncio de sua vida artística, não sabia
como as cordas vocais reagiriam quando voltassem ao trabalho. Pelo
esmero no acabamento de suas apresentações, decidiu ficar longe das
lives, as transmissões de shows caseiras e ao vivo que passaram a ser
a única saída para cantores e instrumentistas durante os dias de
isolamento. Ney, um artista dos figurinos, das luzes e dos movimentos,
entendia que tudo isso não caberia numa tela de celular e se recusou a
produzir um som que chegaria à plateia sem graves e, em geral,
distorcido.
O isolamento seria também a provação de suas emoções. E elas
estavam bem. Mesmo depois do oitavo mês longe de amigos, músicos,
namorados e de qualquer flerte com homens ou mulheres que poderiam
trazer o perigo do contágio de uma doença que Ney temia por ele e pela
mãe, Beíta, a única pessoa da família que mantinha por perto, sentia-se
emocionalmente estabilizado. As paixões de sua vida haviam sido três,
Zé, Cazuza e Marco de Maria, e ninguém mais ocuparia esses postos.
Com a alma trancada para o sentimento que sempre trazia o
descontrole, a paixão, percebeu que, apesar dos incômodos da
abstinência sexual de uma quarentena a que se submeteu com rigor,
era sem esse sentimento que gostaria de viver até o fim. Paixões o
deixavam frágil, inseguro, desorientado e revelavam nele os defeitos
que repudiava nos outros. Mesmo criado na liberdade dos anos 1970,
sentia que o mal dos apaixonados, a possessão, transpassava
gerações e continuava matando o que, um dia, poderia se tornar
sublime. O amor livre pelo qual brigou habitava um estágio superior e
ele acreditava em sua força. O problema em alcançá-lo estava na
nascente, a paixão, e, sendo assim, estava disposto a seguir sentindo o
único amor eterno, o amor das memórias.

As primeiras vacinas contra a Covid-19 chegaram ao Brasil no início


de 2021. Com o país reconhecido no exterior como gestor da pior
política sanitária do mundo no combate à doença, e a despeito do
negacionismo de seu mandatário, Jair Bolsonaro, com relação à
eficácia dos imunizantes, as doses compradas aos poucos pelo
Ministério da Saúde tiveram seus primeiros lotes reservados a grupos
de prioridade que incluíam os mais velhos. Ney, aos 79 anos, foi ao
posto de saúde no Planetário do Rio, na Gávea, no dia 1o de março de
2021, para receber a primeira das duas doses produzidas pelo
laboratório AstraZeneca e pela Universidade de Oxford, no Reino
Unido, e levou a mãe, Beíta, aos 99 anos, para ser imunizada com a
segunda dose no dia 13 de março de 2021. Ao sentir a picada no ombro
direito, Ney notou um relaxamento no cérebro, como se apenas uma de
suas metades estivesse protegida. Com a data marcada para a
segunda dose, saiu disposto a não mudar a postura de seguir em
isolamento social e usar máscara e álcool em gel, mas percebeu que
poderia voltar a ter esperança de ver o fim do pior pesadelo que viveu
em seus oitenta anos e, um dia, voltar a cantar sobre um palco.
Dias depois de retornar do sítio e passar um novo período no Leblon,
Ney aproveitou o calor e resolveu voltar para mais alguns dias de
refúgio ao lado da mãe, na Serra Mato Grosso. Anos depois de ganhar
de Luli o apito para chamar os seres da floresta, colocou o objeto na
mochila disposto a testá-lo. Ao chegar à mata, tomou banho de
cachoeira, molhou as plantas ao redor da casa e ouviu no celular
canções como “Beijos longos”, de Itamar Assumpção e Alzira
Espíndola, pensando em gravá-las num próximo álbum. Antes de
anoitecer, lembrou do apito mas já era tarde. Gnomos, sacis, fadas,
pavões ou qualquer criatura jamais surgiriam apenas para satisfazê-lo.
Era preciso estar no lugar e na hora certa, quando o sol não queimasse
mais, as árvores silenciassem e os vivos e os mortos, o fantástico e o
real, as memórias e o presente, o silêncio e as canções e os humanos,
os animais e todas as formas de amor se libertassem do medo para
habitarem o único lugar onde tudo poderia se misturar. Um lugar
chamado fronteira.
1. Aos três anos de idade, em Salvador, quando o pai integrava as forças brasileiras na Itália
durante a Segunda Guerra Mundial.
2. Com a mãe, Beíta, na mesma época, antes da viagem de navio para encontrarem o pai
Matto Grosso, no Rio de Janeiro.
3. O avô paterno de Ney, Fausto Ismael, que decidiu colocar nos filhos homens o sobrenome
Matto Grosso em homenagem à terra que o acolheu, com a mulher, Elisabeth.
4. As irmãs Naira (à esq.) e Cinara com o irmão Grey na vila militar de Campo Grande.
5. Sargento Matto Grosso: visão militarista colidiu com a natureza libertária do filho.
6. Ney brinca com sobrinhos em um Natal na casa dos pais, em Ilha Solteira, no interior de
São Paulo.
7. Na mesma festa, no início dos anos 1970, em meio aos pais, irmãos e sobrinhos.
8. Imagem com a modelo Ceni Câmara, mulher do fotógrafo Antônio Carlos Rodrigues,
usada como inspiração para a capa do primeiro álbum dos Secos & Molhados.
9. Ensaio em 1973 com João Ricardo no violão, Marcelo Frias na bateria e Willy Verdaguer
no baixo.
10. Ney, Gerson e João: as maquiagens nunca eram as mesmas.
11. A sensação era de assombro ao ver um ser meio homem, meio bicho.
12. O show no Maracanãzinho, sob um barulho ensurdecedor da plateia, simbolizou o auge
do grupo.
13. Atração do programa Siempre en Domingo no canal Televisa, México: início do fim.
14. Água do céu — Pássaro, a estreia tensa como artista solo.
15. O empresário Guilherme Araújo ensina o artista a lidar com a mídia.
16. Ney se refugia para descansar na casa do amigo jornalista Valdir Zwetsch, na praia do
Cacupé, Florianópolis, em 1976.
17. Uma paixão imediata pela voz e pela “figura moura” de Fagner.
18. Ensaio para o amigo Luiz Fernando nas águas do Pantanal Mato-Grossense.
19. No primeiro sítio que teve, em Itaipu, Niterói.
20. O olhar era tão temido pela censura dos anos 1970 quanto os seus rebolados.
21. Mesmo depois da fama, um eterno hippie caminha pelo Rio de Janeiro, em 1977.
22. As fotos para o álbum Feitiço, de 1978, chamaram a atenção dos militares.
23. Festa em uma boate carioca para comemorar os 28 anos de Cazuza, em 1986: um de
seus três amores.
24. Quase três anos depois, a mesma felicidade ao lado de “Caju”. Ao fundo, Paulo Ricardo.
25. Como diretor artístico do RPM, ajudou a conduzir o grupo a um estrelato sem igual no
rock brasileiro.
26. Desafiando os metaleiros que o vaiaram no Rock in Rio de 1985.
27. Levá-lo para ser fotografado em meio à natureza era um pedido constante dos fotógrafos.
28. No apartamento da rua Carlos Góis, no Rio.
29. Meados dos anos 1980, quando a aids começa a levar seus melhores amigos.
30. Show Destino de aventureiro, o mais ambicioso de sua carreira, iniciado em 1984 sob as
lonas do Circo Tihany.
31. Mais do que artifício de cena, o nu passou a ser um ato de afirmação.
32. Com Raphael Rabello, depois de um ensaio no apartamento do cantor.
33. O bilhete carinhoso escrito por Cazuza.
34. Bilhete de Elis Regina, passado por debaixo da porta de seu quarto de hotel, em Brasília,
depois de uma longa noite.
35. Marco era o oposto de Ney, e a única pessoa com a qual o artista aceitou dividir um lar.
36. Santo-daime: sentado entre os amigos Marco e Cláudio Gaya, com Vicente Pereira (o
segundo da esq. para a dir.) e Padrinho Sebastião (de barba) na Vila do Mapiá.
37. Cuidando de seu amor, Marco de Maria, até os últimos dias.
38. Ensaio fotográfico em uma região de Mata Atlântica nas adjacências de São Paulo.
39. Em 2016, como uma das principais atrações da Virada Cultural de São Paulo.
40. Show Beijo bandido feito em 2012, em São Paulo, para comemorar os 458 anos da
cidade.
41. Bloco na rua, de 2019, no Vivo Rio: a turnê foi interrompida pela pandemia de 2020.
Entrevistados

André Midani, Anete Conrad, Antônio Barros, Antônio Carlos


Rodrigues, Arrigo Barnabé, Augusto César Vannucci, Balduíno Coelho
de Sousa, Billy Bond, Boni, Brígido Ibanhes, Bruce Henri, Caetano
Veloso, Cecéu, Celso Coelho, Cida Moreira, Cinara Souza Pereira,
Claudio Gabis, Cláudio Tovar, Darbi Daniel, Dedé Santana, dona Beíta,
Eduardo Dussek, Emilio Carrera, Fagner, Fernanda do Val, Fernando
Moya, Frejat, Gerson Conrad, Gerson Tatini, Gilberto Bartholo, Gilberto
Gil, Gilda Grillo, Gilda Mattoso, Gilda Vandenbrande, Giovanna Macedo
Pereira, Guarabyra, Guilherme Arantes, Irlam Rocha Lima, Iso Fischer,
J. C. Botezelli (Pelão), João Mário Linhares, John Flavin, Jorge
Fernando, José Márcio Penido, José Telles, Jurandyr Pereira, Leo
Jaime, Leonardo Bruno, Lucélia Santos, Lucina, Lucinha Araújo, Luiz
Carlos Sá, Luis Francisco Wasilewski, Luiz Fernando Guimarães, Luiz
Schiavon, Luhli, Manoel Poladian, Mara de Maria, Marcelo Frias, Márcio
Oberlaender, Marco Antônio Lacerda, Marco Mazzola, Marina Oliveira,
Mauro de Maria, Mauro Kwitko, Miguel Cordeiro, Mister Sam, Moracy do
Val, Naira Souza Pereira, Nelson Motta, Nenê Quintana, Nilton
Travesso, Norival D’Angelo, Odair José, Paulo Campos, Paulo
Mendonça, Paulo Ricardo, Paulo Roberto da Silva, Paulo Roberto
Teixeira, Pena Schmidt (Peninha), Regina Chaves, Reginaldo Faria,
Ribah Nascimento, Rita Lee, Roberto de Carvalho, Roberto Medina,
Rubens de Araújo, Sandra Pêra, Selvagem Big Abreu, Sérgio Dias,
Simone, Sonia Hirsch, Tárik de Souza, Tato Fischer, Valéria Petri, Vera
Veríssimo, Virgínia Campana, Vitor Martins, Vitor Pereira Junior, Willer
José de Mattos (Butika), William Santana, Willy Verdaguer, Wladimir
Soares, Yara Neiva, Zé Maurício Machline, Zé Ramalho, Zuza Homem
de Mello. E Ney Matogrosso, em incontáveis vezes entre 2016 e 2021,
presencialmente e por telefone
Angela Azevedo, Arquivo da Aeronáutica na Base Aérea do Galeão,
Brígido Ibanhes, Claudia Roberta Sampaio, Colégios Campograndense
e Oswaldo Cruz, Daniela Tófoli, Danilo Casaletti, Debora Venturini,
Denise Marinho, Edmundo Leite, Eduardo Maria, Eduardo Santos
Maria, Emílio Pacheco, Fabiana Galvão, Fernanda do Val, Fernanda
Nunes Abreu, Fernando e Rachel Moya, Helena de Tófoli Maria,
Janaína Pimenta, João Marcello Bôscoli, João Mário Linhares, John
Flavin, José Telles, Josias José Maria Neto, Karina Maria, Lira Neto,
Marcelo Fróes, Marco Antonio Marcolin, Marco Mazzola, Maria Angela
de Oliveira Barros, Milton Sabbag, Naira Souza Pereira, Paula Lavigne,
Paulo Cesar Gomes, Paulo Mendonça, Ramiro Zwetsch, Renato Vieira,
Rita Vicente, Rosana Schoeps, Silvana Leal, Vitor Nuzzi, Zé Maurício
Machline, Zuza Homem de Mello
Jornais: Correio Braziliense, Diario do Commercio, Diário de Natal
( ), Diario de Noticias ( ), Diario de Pernambuco, Diario do Paraná,
O Fluminense, O Globo, O Estado do Matto Grosso, O Estado de S.
Paulo, Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, O Reppublicano, O Matto-
Grosso, O Pasquim, Última Hora ( ), Diário do Pará, A Gazeta, Jornal
do Commercio ( ), Tribuna da Imprensa
Revistas: Amiga, Contigo, Fatos & Fotos, Manchete, O Cruzeiro, Veja,
Zero
Sites: Hemeroteca Digital Brasileira, Sian (Sistema de Informações do
Arquivo Nacional), O Globo, Veja, Estadão, Folha de S.Paulo
Tese: Ney Matogrosso: Sentimento contramão, transgressão e
autonomia artística, de Flávio de Araújo Queiroz
Livros: As tais Frenéticas, de Sandra Pêra; Moracy do Val Show!, de
Celso Sabadin e Francisco Ucha; Ouvindo estrelas, de Marco Mazzola;
Ney Matogrosso: Um cara meio estranho, de Denise Pires Vaz;
Primavera nos dentes, de Miguel de Almeida; Só as mães são felizes,
de Lucinha Araújo; Nothing to Lose: A formação dos Kiss (1972-1975),
de Ken Sharp
Material fonográfico: Caixa Ney Matogrosso: Camaleão (2008),
produzida por Rodrigo Faour
Créditos das imagens

Todos os esforços foram feitos para reconhecer os direitos autorais


das imagens. A editora agradece qualquer informação relativa à autoria,
titularidade e/ou outros dados, se comprometendo a incluí-los em
edições futuras.

1-8, 15: Acervo pessoal de Ney Matogrosso


9: Antônio Carlos Rodrigues
10: Acervo / Folhapress
11: Jornal do Brasil
12: Madalena Schwartz/ Acervo Instituto Moreira Salles
13: Ronald Fonseca/ Agência O Globo
14: / Angel De La Vega/ Coleção Walter Silva/ Acervo Instituto
Moreira Salles
16, 19-21: Luiz Fernando Borges da Fonseca
17: Valdir Zwetsch
18: Adhemar Veneziano/ Abril Comunicações S.A.
22: Folhapress
23: / Marisa Alvarez Lima/ Coleção José Ramos Tinhorão/ Acervo
Instituto Moreira Salles
24: Antonio Nery/ Agência O Globo
25: Ana Carolina Fernandes/ Estadão Conteúdo
26: Arquivo / D. A. Press
27: U. Dettmar/ Folhapress
28-30, 32: Thereza Eugênia
31: Arquivo/ Agência O Globo
33: Bia Marques/ Agência O Globo
34, 35: Acervo pessoal de Ney Matogrosso
36-38: Acervo da família de Marco Maria
39: Paulo Kawall
40: Sergio Castro/ Estadão Conteúdo
41 (acima): Adriano Vizoni/ Folhapress
41 (abaixo): Ivan Guerra/ Estadão Conteúdo
42: Fabio Motta/ Estadão Conteúdo
nasceu em São Paulo, em 1973. É repórter e crítico de
música do jornal O Estado de S. Paulo há quinze anos. Foi repórter da
área musical e editor do Caderno de Variedades do Jornal da Tarde por
dez anos, além de ter colaborado como colunista e comentarista da Rádio
Eldorado e editado o Caderno 2 Mais Música entre 2010 e 2013. É autor
do livro Nada será como antes, biografia de Elis Regina que venceu, em
2015, o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).
Copyright © 2021 by Julio Maria

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou
em vigor no Brasil em 2009.

Capa
Alceu Chiesorin Nunes

Fotos de capa e quarta capa


Bob Wolfenson

Pesquisa iconográfica
Ana Laura Souza

Preparação
Márcia Copola

Checagem
Érico Melo

Revisão
Angela das Neves
Jane Pessoa

Versão digital
Rafael Alt

978-65-5782-257-9

Todos os direitos desta edição reservados à


. .
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04532-002 — São Paulo —
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Verdade tropical
Veloso, Caetano
9788543811031
456 páginas

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Vinte anos depois do lançamento de Verdade tropical – precioso


testemunho da vida cultural do Brasil na segunda metade do
século XX, com especial atenção para o tropicalismo –, Caetano
Veloso retorna ao livro em edição revista e ampliada.

Ao narrar sua formação cultural – que inclui música, cinema, artes


plásticas, literatura e filosofia –, Caetano Veloso não se limita a escrever
uma autobiografia. Nessa mistura de memórias, ensaio e história, tendo
como eixo central a eclosão do tropicalismo em meio aos anos de
chumbo, o autor esmiúça momentos decisivos da ditadura militar e os
nomes com quem travou apaixonadas conversas. Partindo de Santo
Amaro, na Bahia, onde leu Clarice Lispector, assistiu a La strada, ouviu
João Gilberto e teve sua primeira relação sexual, suas lembranças
atravessam a adolescência, a prisão em 1968, o exílio em Londres e
chegam ao fim da década de 1990 para compor um extraordinário
panorama do Brasil.
A nova edição de Verdade tropical, com projeto gráfico redesenhado,
inclui texto inédito escrito especialmente para este volume. Em "Carmen
Miranda não sabia sambar", Caetano pondera sobre as duas décadas
que se passaram entre o lançamento do livro, em 1997, e hoje. Aos 75
anos, ele se debruça sobre sua trajetória musical – e também literária –
para um acerto de contas com suas experiências pessoais, além de
analisar assuntos relacionados à cultura, política e identidade do país.
"Sou brasileiro e me tornei, mais ou menos involuntariamente, cantor e
compositor de canções", ele escreve. "Fui um dos idealizadores e
executores do projeto da Tropicália. Este livro é uma tentativa de narra
e interpretar o que se passou."

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Os donos do poder
Faoro, Raymundo
9786557823071
832 páginas

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Neste trabalho incontornável do pensamento social brasileiro,


Raymundo Faoro se debruça sobre o tema do patrimonialismo e
dos limites entre público e privado. Inclui prefácio e posfácios
inéditos, e fortuna crítica.

Em sua obra-prima, Raymundo Faoro examina quase seis séculos de


história para traçar as raízes do patrimonialismo brasileiro e a formação
do estamento burocrático, que se apropria dos aparatos políticos-
administrativos e usa o poder público em benefício próprio. Publicada
pela primeira vez em 1958, Os donos do poder utiliza conceitos da
sociologia weberiana — até então relativamente pouco difundida no
país — e converteu-se em um clássico de interpretação do Brasil,
destacando-se por sua análise original e erudita.
Esta edição inclui prefácio de José Eduardo Faria, posfácio de Bernardo
Ricupero e Gabriela Nunes Ferreira, além de três textos de fortuna
crítica, que demonstram como Faoro construiu um trabalho cuja
pertinência para a compreensão das relações entre Estado e sociedade
se estende até os dias de hoje.

"Pensar o Brasil passou a ser algo diferente a partir do livro clássico de


Faoro." — Celso Furtado

"Os donos do poder é uma análise admirável do funcionalismo como


fator decisivo não apenas na organização política e social do país, mas
da própria unidade nacional." — Antonio Candido

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O amanhã não está à venda
Krenak, Ailton
9788554517328
12 páginas

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As reflexões de um de nossos maiores pensadores indígenas


sobre a pandemia que parou o mundo.

Há vários séculos que os povos indígenas do Brasil enfrentam


bravamente ameaças que podem levá-los à aniquilação total e, diante
de condições extremamente adversas, reinventam seu cotidiano e suas
comunidades. Quando a pandemia da Covid-19 obriga o mundo a
reconsiderar seu estilo de vida, o pensamento de Ailton Krenak emerge
com lucidez e pertinência ainda mais impactantes.
Em páginas de impressionante força e beleza, Krenak questiona a ideia
de "volta à normalidade", uma "normalidade" em que a humanidade
quer se divorciar da natureza, devastar o planeta e cavar um fosso
gigantesco de desigualdade entre povos e sociedades. Depois da
terrível experiência pela qual o mundo está passando, será preciso
trabalhar para que haja mudanças profundas e significativas no modo
como vivemos.
"Tem muita gente que suspendeu projetos e atividades. As pessoas
acham que basta mudar o calendário. Quem está apenas adiando
compromisso, como se tudo fosse voltar ao normal, está vivendo no
passado […]. Temos de parar de ser convencidos. Não sabemos se
estaremos vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã."

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História da vida privada no Brasil – Vol. 3
Vários autores
9788554516963
600 páginas

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Terceiro volume da coleção História da Vida Privada no Brasil —


referência incontornável na historiografia nacional, agora em
edição de bolso — examina as mudanças nos costumes
provocadas pelo advento da República. Organizado por Nicolau
Sevcenko.

Depois de conhecermos o cotidiano dos brasileiros na América


portuguesa e no período imperial, este volume, organizado por Nicolau
Sevcenko, traz detalhes sobre o dia a dia na República. Os sete artigos
deste livro — que abrange desde o final do século XIX ao início do XX
— abordam os efeitos das transformações econômicas e tecnológicas
nos hábitos da sociedade brasileira, como ir ao cinema, lavar a própria
louça (ou remunerar uma pessoa para fazê-lo) e escovar os dentes.
Nunca houve tantas mudanças em tão pouco tempo: o declínio do
Império, a abolição, a chegada de imigrantes vindos do mundo todo, as
migrações internas, o adensamento populacional nas cidades. O
terceiro volume de História da vida privada no Brasil, agora disponível
nesta cuidadosa edição de bolso, delineia alguns dos primeiros traços
do país como o conhecemos hoje.

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Sejamos todos feministas
Adichie, Chimamanda Ngozi
9788543801728
24 páginas

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O que significa ser feminista no século XXI? Por que o feminismo é


essencial para libertar homens e mulheres? Eis as questões que
estão no cerne de Sejamos todos feministas, ensaio da premiada
autora de Americanah e Meio sol amarelo.
"A questão de gênero é importante em qualquer canto do mundo. É
importante que comecemos a planejar e sonhar um mundo diferente.
Um mundo mais justo. Um mundo de homens mais felizes e mulheres
mais felizes, mais autênticos consigo mesmos. E é assim que devemos
começar: precisamos criar nossas filhas de uma maneira diferente.
Também precisamos criar nossos filhos de uma maneira diferente."
Chimamanda Ngozi Adichie ainda se lembra exatamente da primeira
vez em que a chamaram de feminista. Foi durante uma discussão com
seu amigo de infância Okoloma. "Não era um elogio. Percebi pelo tom
da voz dele; era como se dissesse: 'Você apoia o terrorismo!'". Apesar
do tom de desaprovação de Okoloma, Adichie abraçou o termo e — em
resposta àqueles que lhe diziam que feministas são infelizes porque
nunca se casaram, que são "anti-africanas", que odeiam homens e
maquiagem — começou a se intitular uma "feminista feliz e africana que
não odeia homens, e que gosta de usar batom e salto alto para si
mesma, e não para os homens".
Neste ensaio agudo, sagaz e revelador, Adichie parte de sua
experiência pessoal de mulher e nigeriana para pensar o que ainda
precisa ser feito de modo que as meninas não anulem mais sua
personalidade para ser como esperam que sejam, e os meninos se
sintam livres para crescer sem ter que se enquadrar nos estereótipos de
masculinidade.

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