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Plantas Medicinais

e os cuidados com a
saúde:
contando várias histórias
Renata Palandri Sigolo (org.)

Plantas Medicinais
e os cuidados com a
saúde:
contando várias histórias

Florianópolis
NUPPe / UFSC
2015
Índice

Apresentação ........................................................................................................ 11
Renata Palandri Sigolo

A EJA Centro I Matutino/Vespertino e o Projeto Plantas Medicinais e os


Cuidados com a Saúde: Contando várias Histórias ..................................... 14
Regina Helena Seabra
Índice de ilustrações ............................................................................................. 15
1. Mundo verde na “terra preta”: a importância dos vegetais e das plantas
medicinais no antigo Egito ................................................................................ 16
Renata Palandri Sigolo

2. O uso de plantas medicinais na Medicina Ayurvédica .......................... 36


Bruno Vinícius Mützenberg e Diego Schibelinski

3. Medicina na China Antiga e o uso de Plantas Medicinais ...................54


Luis Fernando Bernardi Junqueira

4. Medicina, ervas e cultura na Grécia Antiga ............................................ 74


Beatriz Pereira Ribeiro e Júlia Pedrollo Albertoni

5. Plantas Medicinais na Idade Média: o nascimento da Farmácia .......... 90


João Luiz Fernandes Borghezan

6. Plantas Medicinais na Europa Moderna .................................................... 106


Larissa Bernardi e Márcia R. Valério

7. Saúde, Religiosidade e Cura: O uso de Plantas Medicinais nos primeiros


contatos entre portugueses e indígenas no Brasil ........................................122
Isaac Facchini Badinelli

8. Ewé, cura e magia: o uso das plantas medicinais no candomblé ....... 138
Diego Schibelinski

9. Usos e circulação de plantas medicinais nas navegações portuguesas . 160


Isaac Facchini Badinelli e Luis Fernando Junqueira

10. As plantas medicinais no Período Contemporâneo: entre saber científico


e popular ............................................................................................................ 178
João Luiz Fernandes Borghezan e Márcia Regina Valério

11. Plantas Medicinais no Brasil Contemporâneo: da “botica da natureza” à


“saúde em frascos” ........................................................................................... 196
Renata Palandri Sigolo
10
I’m really quite simple.
I don’t want to be in the business full time, because I’m a gardener.
I plant flowers and watch them grow. I don’t go out to clubs.
I don’t party. I stay at home and watch the river flow.1
George Harrison (I,Me, Mine, 1980)

APRESENTAÇÃO

Escrever sobre plantas medicinais é reativar um dos conhecimentos


mais utilizados em todo nosso caminhar como seres humanos ao longo do
tempo. O uso de ervas para fins curativos sempre foi uma constante na história
dos cuidados terapêuticos. Porém, o modo de utilizar a “botica da natureza”,
sempre dependeu do contexto histórico e social no qual seus usuários
estiveram inseridos. Este livro pretende analisar alguns destes momentos de
interação entre seres humanos e a flora medicinal, discutindo de que maneira
determinados contextos históricos contribuíram para a construção desta
relação e como se efetivaram diferentes lόgicas de interpretação em saúde e
doença.
Vários textos que compõem este livro foram desenvolvidos por alguns
dos estagiários em História da Universidade Federal de Santa Catarina que
participaram do projeto “Plantas Medicinais e os cuidados com a saúde:
contando várias histórias”. Nosso objetivo foi, durante estes quatro anos de
projeto de extensão, oferecer uma dupla contribuição social: enriquecer o
debate sobre história e usos de plantas medicinais no ensino básico e especial
e, ao mesmo tempo, oferecer aos nossos estagiários o contato com todas as
etapas que envolvem o processo escolar.
A experiência que resultou nesta publicação foi realizada,
principalmente, na Educação de Jovens e Adultos do núcleo Centro 1, em
Florianópolis. O contato entre nossa equipe e o conjunto de professores
do núcleo ocorreu quando, em visita à escola por ocasião de outro projeto,
constatamos a existência de uma horta e fomos informados de que o professor
Paulo era responsável por seu cuidado esmerado. Rapidamente, travamos
conhecimento com o coletivo de professores e começamos a construção das
oficinas de extensão junto à EJA.

1 Sou realmente muito simples.Eu não quero estar no mundo dos negócios o tempo todo, pois sou um
jardineiro. Planto flores e as vejo crescer.Não vou a clubes. Não faço festas. Fico em casa e vejo o rio
correr.

11
Mesmo com o bom acolhimento da escola, a começar pela Gerência de
Formação Permanente que muito nos auxiliou, inúmeros foram os percalços
ao longo do caminho. Muito do material de pesquisa precisou ser traduzido
de idiomas estrangeiros, houve alguma dificuldade em trabalhar com turmas
tão heterogêneas e flutuantes como é característica da Educação de Jovens e
Adultos e, inicialmente, nossa inabilidade em relação a um ensino dialogado,
através da pesquisa, foi um fator a ser superado, juntamente com nossa
tendência ao “academicês”. Porém, nada foi tão difícil quanto a transformação
pela qual a escola passou no ano de 2012 quando, por ocasião de um evento
de arquitetura e designer, tanto a equipe do LABHISS quanto professores e,
principalmente, alunos da EJA foram segregados da livre circulação e uso do
espaço escolar e da mostra.
Por ocasião deste evento a horta, que antes estava no coração da escola,
foi destruída para ser substituida por um jardim que não contou com a
participação de nenhum de nós. O projeto coletivo continuou a ser ameaçado
ainda este ano, uma vez que a EJA é constantemente pressionada a deixar o
espaço da Escola Silveira de Souza, para que seja ocupado “exclusivamente”
por uma escola de música. O ensino de EJA e seus participantes não são
suficientemente bons para ocuparem um “espaço nobre” da cidade? Quais
serão as consequencias de todos estes atos de segregação que o grupo vem
sofrendo e que representam um movimento muito maior que envolve toda a
sociedade?
Nosso projeto é bastante modesto e é uma gota no oceano, mas possui
um objetivo muito vasto. Não se trata de “levar o conhecimento” mas de
estimular a curiosidade pelo conhecimento e fornecer algumas ferramentas
para que ele possa ser cultivado. Neste livro, que pode ser utilizado não só por
alunos e professores de EJA, é possível encontrar três tipos de texto para cada
tópico: o texto de base, o texto “para saber mais”, que complementa o texto
principal e o “trabalhando com fontes históricas”. Este último é a transcrição
ou tradução de uma fonte referente ao tema do texto principal e que pode ser
utilizado em exercícios de interpretação e debate sobre o tópico tratado.
Não pretendemos oferecer todos os elementos necessários para
abordar, em sala de aula, os contextos que selecionamos: textos e fontes são
apenas o ponto de partida para pesquisas que devem ser desenvolvidas tanto
por professores quanto por estudantes, no objetivo de ampliar e partilhar
saberes. Além da linguagem escrita, pretendemos comunicar através de
imagens: por isso, o leitor vai encontrar desenhos compostos por nossos

12
ilustradores, Anderson, Phillipi e Tomás, que fornecem, ainda, uma outra
interpretação ao tema.
Este livro foi composto coletivamente, assim como tem sido o trabalho
no Laboratório de História, Saúde e Sociedade (LABHISS). Agradeço, em
especial, a todos os estagiários do LABHISS que se envolveram no projeto, aos
alunos e professores da EJA Centro 1 e ao MEC/PROEXT pelo apoio financeiro.
Um especial agradecimento ao Horto Didático de Plantas Medicinais do
HU, na pessoa do Dr. César Simionato e ao Núcleo de Permacultura/CFH,
na pessoa do Prof. Arthur Nanni. Porém, não tenho como expressar minha
gratidão a todas as pessoas que possibilitaram a realização deste projeto e que
acreditaram no que ele pode proporcionar não só ao ensino de história como,
também, para a construção de autonomia em relação aos cuidados com a
saúde e o autoconhecimento. Desejo que este livro possa beneficiar a todos
aqueles que buscam este tipo de experiência.

Renata Palandri Sigolo


LABHISS/UFSC

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A EJA Centro I Matutino/Vespertino e o Projeto Plantas
Medicinais e os Cuidados com a Saúde: Contando várias
Histórias
Professora Regina Helena Seabra
Núcleo EJA Centro 1/Florianόpolis

Desde 2011, trabalhamos coletivamente em parceria com a Professora


Renata do Departamento de História da UFSC no Projeto Plantas Medicinais
e os cuidados com a Saúde: contando várias histórias. O projeto se justifica
no currículo (post-factum) explícito e oculto que construímos com e para
Jovens, Adultos e Idosos da EJA Centro I Matutino/Vespertino.
Trabalhamos com a pesquisa como Princípio Educativo e decorre disso que nossos
estudantes são expostos diáriamente à estratégias pedagógicas que os estimulem e ajudem
no seu letramento própriamente dito, bem como na apropriação de conhecimentos
necessários para a sua formação como sujeitos cidadãos. Dessa forma, nosso ponto de
partida, como docentes, são os interesses, as necessidades dos sujeitos da Educação de
Jovens e Adultos que dão continuidade ou retornam aos seus estudos.
O Projeto Plantas Medicinais e os Cuidados com a Saúde: contando várias histórias
vem de encontro com o currículo Multidisciplinar que perseguimos com e para nossos
sujeitos, estudantes da EJA. Um currículo que, junto com os interesses e conhecimentos
desses sujeitos, quer possibilitar apropriação de novos conhecimentos pertinentes para a
vida, para a CONvivência, para SER social.
Como Professora com Licenciatura em Letras e Especialização em Práticas
Interdisciplinares, considero que esse conhecimento trazido pelo projeto é do campo
de interesse de todas as áreas, e que possibilita o planejamento de parcerias pedagógicas
interdisciplinares. O conhecimento, a partir das experiências de vida dos educandos, tem
sentido concreto e portanto, torna-se palpável a sua problematização e desencadeamento
de ações pedagógicas que que corroboram para a apropriação do Letramento dos sujeitos
Jovens, Adultos e Idosos.
Além disso, o Projeto de Plantas Medicinais, envolve os discentes e docentes do
Núcleo EJA Centro I Matutino/Vespertino, que acrescentam as suas experiências de vida
acumuladas, os seus saberes culturais, suas próprias histórias sobre as plantas medicinais.
A partir disso, novos saberes, novas histórias podem ser pesquisados/as, des-cobertos/as e
por consequência, apropriados/as.

14
Índice de ilustrações

Anderson Yoshiura
32, 54, 57, 59, 61, 66, 68, 83, 84, 86, 87, 88, 89, 100, 103, 104, 122, 132, 138,
147, 152, 157, 159, 160, 170, 172, 175, 177, 178, 182, 188, 193, 195, 207, 209,
210, 215 e contra-capa.

Phillipi Schmidt
74, 90, 106, 137 e 196

Tomás Honaiser Rostirolla


Capa, 16, 23, 24, 26, 31, 34, 36, 38, 43, 46, 52, 53, 114, 119 e 121

15
1. Mundo verde na “terra preta”: a importância dos vegetais
e das plantas medicinais no antigo Egito
Renata Palandri Sigolo

O Egito era, na antiguidade, um espaço bastante diverso do que é hoje.


Uma das diferenças mais marcantes está no fato dos egípcios identificarem
seu espaço com o termo kmt, que significa “terra preta”, em contraste com os
desertos vizinhos, identificados como dashret, ou seja, “terra vermelha”1. Esta
dualidade está presente em todos os aspectos do pensamento egípcio e irei
explorá-la em diferentes momentos neste texto. O mais evidente sinal deste
par de opostos é observável na paisagem egípcia e se deve, em grande parte,
à presença do rio Nilo.
A região do rio Nilo passou por muitas modificações climáticas no
período que vai de aproximadamente 5500 à 2350 a.C, quando algumas partes
dos atuais desertos próximos ainda eram habitadas por vários animais que
atraiam caçadores. Faixas de cerca de cinco a seis quilômetros de distância
em cada margem do rio Nilo eram ocupadas pela presença humana. Neste
intervalo de tempo, a partir de 3300 a.C, no período Pré-Dinástico, houve
uma grande queda na quantidade de chuvas que reduziu a fauna e a flora da
região, acentuando a dependência humana em relação às margens férteis do
rio2.
Com chuvas ausentes no Sul e muito diminutas no Norte3, o Egito
ficou condicionado ao regime fluvial do Nilo para o desenvolvimento de sua
agricultura. Uma das características do rio é a regularidade e previsibilidade de
suas cheias, muito maior do que a de outros rios importantes da antiguidade,
como o caso do Tigre e do Eufrates, que banhavam a Mesopotâmia. As águas
do rio Nilo dependem do derretimento das neves na atual Etiópia e das chuvas
nos países que hoje conhecemos por Uganda e Tanzânia4.
As cheias do Nilo, que irrigavam e fertilizavam a terra, ocorriam
anualmente e se iniciavam em junho5, em Assuã, dirigindo-se ao Norte
1. BAKOS, Margaret M. Fatos e mitos do antigo Egito. Porto Alegre: EDIPUCRS,1994.p.60.
2. CARDOSO, Ciro Flamarion. Sete olhares sobre a Antiguidade. Brasília: UNB, 1994. p. 18-19
3. HAGEN, Rose-Marie; HAGEN, Rainer. Egipto: pessoas, deuses, faraós. Lisboa: Tashen, 2003. p.
16.
4. CARDOSO, Op. Cit. p,18.
5. Os nomes dos meses correspondem à nossa nomenclatura e não a dos egípcios antigos. Para eles,
o ano era medido pelo tempo necessário para uma colheita e era dividido em três estações: akhit
(inundação), perit (emergência das terras) e chemu (colheita). Cf: MONTET, Pierre. O Egito no

17
e atingindo Mênfis cerca de três semanas depois.Em julho, as águas
ultrapassavam as margens do rio de uma altura de dois metros ou mais. Em
meados de agosto até setembro o vale ficava inundado, sendo que as cheias
diminuíam gradualmente e, no final de outubro, o nível das águas voltava ao
normal, deixando uma camada de terra negra rica em húmus e bastante fértil.
Após o retorno das águas ao nível normal, era possível observar bacias ou
depressões cheias de água, que era levada para regiões mais distantes do leito
através de um sistema de irrigação usando canais6.
Apesar de previsíveis, as cheias do rio Nilo poderiam ser irregulares,
causando escassez ou excesso de águas, sendo ambas as situações prejudiciais
para a agricultura. Era fundamental tentar prever o volume das enchentes:
para isso, os egípcios mediam a altura das águas nos nilômetros, em ao menos
vinte locais diferentes ao longo do rio. Além de estimar a possibilidade de
escassez de colheitas, este cálculo também auxiliava na cobrança de impostos7.
O período que se seguia às cheias era de intenso trabalho, a fim de
reparar diques e canais. Também a cava, a lavra e a sementeira eram efetuadas,
pois o plantio dependia dos sulcos feitos pelo arado puxado por bois ou por
enxadas na terra ainda úmida, que recebia as sementes. Após a semeadura,
o agricultor ainda precisava vigiar os campos para que nenhum animal
destruísse a plantação e inviabilizasse a colheita. Antes da colheita, durante o
processo de maturação das plantas, era indispensável irrigar a plantação com
água recolhida nas bacias e levada aos campos através de canais, que eram
regulados por barreiras e diques8.
O regime fluvial acentuava o contraste entre “terra negra” e “terra
vermelha” e demonstrava que nem sempre havia como garantir a prevalência
da primeira sobre a segunda. Esta dualidade – que Norman Cohn9 chamou
de Cosmos e Caos – sempre dependia de certa harmonia onde os pares
de opostos conviviam, não havendo a aniquilação de um pelo outro. Para
poder compreender esta visão de mundo, que pautava todas as atividades na
manutenção da “terra negra”, é preciso entender como os mitos operavam
entre os egípcios.

tempo de Ramsés. São Paulo: Cia das Letras, 1989. p. 39-42.


6. CAMINOS, Ricardo A. O camponês. In: DONADONI, Sérgio (org.). O homem egípcio. Lisboa:
Editorial Presença, 1994.p.17.
7. HAGEN, Rose-Marie; HAGEN,Rainer. Op.Cit, p.16.
8. CAMINOS, Ricardo. Op.Cit., p.20-21.
9. COHN, Norman. Caos, Cosmos e o mundo que virá. As origens das crenças no Apocalipse.São
Paulo: Cia das Letras, 1996.

18
Em primeiro lugar, precisamos ter clareza do que é mito. Muitas vezes,
a palavra mito é tomada, principalmente pelo senso comum, em oposição
à “verdade”. Se queremos compreender os mitos construídos por qualquer
sociedade, precisamos afastar este conceito que aproxima o mito a uma
“historinha inventada”, própria de sociedades que “ainda não conheciam” a
ciência ou o pensamento racional. Tomando as ideias de Mircea Eliade como
guia, compreendemos o mito como uma forma importante de revelar como
uma realidade veio a existir. Segundo o autor, “o mito descreve as diversas e
às vezes dramáticas irrupções do sagrado no mundo”10 e, assim, estabelece
modelos para todas as atividades mais importantes de uma sociedade.
Podemos observar estas duas funções apontadas por Eliade no mito
de criação que está profundamente ligado às condições geográficas do
antigo Egito. Eram diversas as versões do mito de origem; porém, a mais
conhecida foi a difundida pela cidade de Heliópolis. Nela, a primeira coisa
a existir foi o Nun, concebido como um oceano ilimitado. Em seu interior
indiferenciado, em estado latente, se encontrava a substância com a qual o
mundo seria formado. Nele também se encontrava o demiurgo, ou seja, o
deus que iria modelar o mundo a partir desta substância ou que iria provocar
a diferenciação e a definição de tudo.
Em uma das versões, a primeira manifestação do demiurgo ocorre
quando uma pequena ilha – o outeiro primordial – emerge das águas do
Nun, em uma referência direta ao retorno das águas do Nilo que, anualmente,
fertilizava suas margens, possibilitando a criação e manutenção da vida. Esta
“primeira ocasião” marca o aparecimento do demiurgo, graças ao qual “a
unidade se transformou em multiplicidade”11.
Para a cidade de Heliópolis, o deus sol Rá (ou Re), identificado com
um antigo deus tribal da região, Atum – que significa “o completado”- era
considerado o demiurgo. No mito heliopolitano, cansado de flutuar no
Nun, Ra sobe ao outeiro primordial e cria a primeira geração de deuses. Ele
também era análogo aos deuses Khépri e Hórus , além de ser identificado
com a maioria dos principais deuses de diversas cidades egípcias12. Esta
possibilidade de corresponder-se a outros deuses é chamada de kheperu
e pode ser interpretado como “a soma de personalidades passageiras e

10. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes,
1999.p.86.
11. COHN, Norman. Op.Cit., p.19.
12. Ibidem,p.20.

19
complementares, adotadas por uma divindade”13.
A dualidade complementar que fazia parte do pensamento egípcio
estava presente no trajeto diário feito por Rá, e que podia ser constatado
através da alternancia de dia e noite, luz e trevas. Todo o dia, quando o sol
se punha, Rá navegava com sua barca pelo mundo inferior, sendo ameaçado
pela serpente Apófis, que tentava bloquear a passagem bebendo as águas
do rio pelo qual passava a barca solar. Travava-se, então, uma luta entre o
cosmos, representado por Rá, e o caos, personificado por Apófis, onde este
era controlado, mas jamais aniquilado, uma vez que o combate recomeçava
a cada noite. O surgir do dia sinalizava a vitória de Rá, que tinha conseguido
sair triunfante e manifestar-se através de sua presença na terra durante o dia14.
Há outro mito igualmente importante que demonstra a presença
do divino no mundo e estabelece um modelo de comportamento entre os
egípcios, que é o conflito entre o deus Osíris e o deus Seth. Seth pertence à
terceira geração de deuses, sendo irmão de Osíris, Isis e Néftis; esta última, a
sua esposa.
Osíris, marido de Isis e filho mais velho dos deuses Geb (a terra) e
Nut (o céu), herda o governo da terra, obviamente aqui limitada pela “terra
negra”. Ele ensina aos seres humanos a agricultura, as leis e a civilização. Seth,
seu irmão, tem ciúmes de sua posição de soberano e engendra um plano para
assassiná-lo. Convida-o para um banquete e nele propõe um jogo: uma arca é
apresentada aos convidados que devem experimentá-la, recebendo o prêmio
aquele que nela caber. Obviamente, Seth havia feito a arca com as dimensões
exatas de seu irmão, que nela entra e é aprisionado.
Osíris, morto e preso na arca, é atirado ao rio Nilo e sua esposa, Isis,
parte em sua busca, encontrando-o no porto de Biblos. Ela consegue trazer
Osíris de volta ao Egito e concebe dele um filho, o deus Hórus. Porém, Seth
descobre o cadáver do irmão e o corta em pedaços que espalha pelo Egito.
Isis, com a ajuda de Néftis, consegue recolher suas partes e o reconstitui,
envolvendo seu corpo em faixas e produzindo a primeira múmia15. O deus
Toth lhe devolve a vida e Osíris passa a reinar no Duat, o mundo dos mortos.
O mito do assassinato de Osíris mostra, entre outras coisas, a noção
regenerativa que os egípcios tinham e que era observada no ciclo de dias e
noites, no regime de cheias do Nilo, na sequencia entre morte e vida e no
13. BELER, Aude Gros de. A mitologia egípcia. Lisboa:Gama, 2001.p.24.
14. COHN, Norman. Op.Cit.,p.38.
15. BELER, Aude Gros de. Op. Cit., p.74.

20
ciclo agrícola. Osíris era identificado com a semente que “morre” para dar
nascimento à planta: nos “Mistérios de Osíris”, se plantavam grãos em um
recipiente com o formato do deus, com o objetivo de estimular a regeneração
da natureza16. Esta concepção também está conectada à forma como os egípcios
concebiam a morte, ou seja, como a percebiam como uma “passagem” a uma
nova vida no Duat.
O que se plantava e colhia no antigo Egito? Antes mesmo de
considerarmos as culturas que dependiam do cuidado humano, precisamos
mencionar plantas que foram fundamentais para o registro da escrita,
meio importante para que pudéssemos compreender como os egípcios
viviam na antiguidade: o papiro (Cyperus papyrus) e o junco (Juncus spp.).
Com o primeiro se fazia o “papel” que recebia a escrita e com o segundo, o
instrumento com o qual se escrevia.
Outra presença vegetal marcante no cotidiano egípcio era representada
pelas plantas odoríferas, em especial aquelas destinadas às oferendas aos
deuses e ao fábrico de perfume. O olfato era uma sensação muito apreciada
entre os egípcios, tanto que o hieróglifo “nariz” aparecia nas palavras que
tivessem a conotação de “alegria” ou “êxito em ser feliz”17. O perfume era
representado por um deus específico, Neferten, “o senhor do nariz”, que tinha
como símbolo a flor de lótus (Faba ægyptiaca). O lótus, muito apreciado
para a confecção de perfumes, era um símbolo solar uma vez que suas flores
desabrocham pela manhã para se fechar novamente à noite.Também uma
das versões do mito que explicava o primeiro surgimento de Rá descreve o
aparecimento de uma flor de lótus no lago de templo de Hermópolis, de onde
surge o demiurgo em forma de criança18.
As plantas perfumadas também estavam presentes nos espaços
sagrados. Os egípcios acreditavam que a presença dos deuses era revelada
através de um perfume, “a transpiração divina”19. Nos templos, mirra
(Commiphora molmol) e incenso (Boswellia sacra) eram queimados em
oferenda aos deuses, sendo estas substâncias também utilizadas nos
embalsamamentos. Plantas cujo perfume era agradável também entravam na
composição de óleos e unguentos para esfregar no corpo, muito importantes
para manter a hidratação da pele em uma região onde o sol e o calor eram
constantes.
16. COHN, Norman. Op. Cit., p.44.
17. HAGEN, Rose-Marie; HAGEN,Rainer.Op. Cit.., p.129.
18. COHN, Norman. Op.Cit., p.21.
19. HAGEN, Rose-Marie; HAGEN,Rainer.Op. Cit.,p.129.

21
Em relação aos produtos agrícolas, as principais culturas eram de
cereais como o trigo (Triticum dicoccum) e cevada (Hordeum spp.). Seus
grãos eram moídos até se tornarem farinha, com a qual se faziam pães, bolos
e biscoitos e a palha que sobrava de sua colheita era aproveitada para ser
usada como forragem ou no fábrico de tijolos ou cestos20. Além do pão, estes
cereais entravam na preparação da cerveja, sendo ambos alimentos básicos
no cardápio egípcio. Eram vários os formatos e variedades de pães, cuja
preparação foi muito retratada nos túmulos egípcios21.
Outro produto bastante importante no Egito antigo era o linho (Linum
usitatissium). Este poderia ser colhido em diferentes períodos, dependendo
de seu uso para a tecelagem: as plantas mais tenras eram usadas para o fábrico
de tecidos finos enquanto que aquelas que atingiam seu crescimento máximo
eram aproveitadas para fazer tecidos resistentes, cestos, cordas e redes. As
sementes eram em parte separadas para as sementeiras e a outra se destinava
à extração de óleo e ao preparo de medicamentos22.
A separação entre medicamento e alimento não era evidente para os
egípcios, assim como para outras sociedades: vários vegetais que entravam
na composição de alimentos consumidos pelos egípcios também eram
medicinais. Os pães eram produzidos em larga escala, em locais apropriados
para sua fabricação e não menos importante era a pâtisserie egípcia. Uma
grande variedade de doces e biscoitos era fabricada a partir de ingredientes
animais e vegetais. Como adoçante, os egípcios usavam o mel ou então
xarope de frutas, passas ou tâmaras23. A indicação de um biscoito a base se
chufa, junça ou junco (Cyperus esculentus), que representa bem a união de
receita culinária e médica, foi encontrada no papiro médico de Ebers, sendo
utilizada para problemas digestivos:

20. CAMINOS, Ricardo A. Op.Cit.,p.22.


21. TALLET, Pierre. História da cozinha faraônica. A alimentação no Egito antigo.São Paulo:
SENAC,2005. p.78.
22. CAMINOS,Ricardo A. Op.Cit.,p.23.
23. TALLET, Pierre. Op. Cit., p.78.

22
Bolachas shayat ou bolachas de chufa
Segundo o papiro médico Ebers

Ingredientes
• 5 poções ro (300ml) de vinho tinto
• 1/32 (600ml) de mel
• 1/8(2,40l) de fruta cheny-ta (chufa)
• ¼(4,80l) de suco da planta djaret (algarobeira)
• ¼(4,80l) de resina (massa?) para bolachas shayat
• ¼(4,80l) de gordura de ganso

Preparação
Deve-se cozinhar tudo e preparar na forma de bolacha shayat; comer todo
o dia.24

A colheita obtida em hortas e pomares também entrava na composição


tanto de alimentos quanto de remédios. As hortaliças eram muito importantes
na dieta dos egípcios, que em sua maioria não tinham acesso à carne. As frutas,
ao contrário, eram consumidas pela camada mais abastada da sociedade
egípcia, uma vez que provinham de pomares pertencentes aos templos ou à
nobreza25. Várias representações iconográficas de jardins, hortas e pomares
chegaram até nós e retratam a importância deste espaço verde presente nas
residências mais ricas, formando um microcosmos da “terra negra”26.
Dentre as várias frutas disponíveis no Egito antigo, três merecem
destaque por serem usadas na culinária e com fins medicinais: a tâmara,
o figo e a uva. O fruto da tamareira (Phoenix dactylifera) era chamado de
bener pelos egípcios e quer dizer “doce e açucarado”. Sua árvore foi bastante
representada na iconografia e parece ter sido cultivada por todo o Egito e a
fruta aparece nos textos do Livro dos Mortos, como oferenda ao morto, e no
preparo de várias receitas27.
A tâmara era um dos adoçantes mais fáceis de se obter e se conservava por

24. Ibidem,p.84.
25. Ibidem,p.135.
26. NOBLECOURT, Christiane D. A mulher no tempo dos faraós. Campinas: Papirus, 1994.p.271.
27. TALLET, Pierre. Op. Cit. p.138-139.

23
um tempo considerável. Além do preparo de doces, cerveja e para aumentar o
teor alcoólico do vinho, também era utilizada para fins medicinais. No Papiro
de Ebers, existem várias receitas para o uso das tâmaras, especificamente para
“expulsar a secreção seryt que provoca a tosse”. Uma delas indica a utilização
das sementes reduzidas a pó:

Eb.311(53,12-15)
Outro (remédio): caroço(?) de tâmaras esmagados. (Isto) será colocado
em um pequeno saco de tecido, e este saco será colocado na chebet
durante o dia onde esta é colocada no fogo. A massa será retirada (do
fogo) e o saco limpo. Colocá-lo em um pote-henu, acrescentar água,
filtrar como se faz para a cerveja. (Isto) será bebido por quatro dias
seguidos.28

Outra fruta bastante utilizada pelos egípcios era o figo, embora a


figueira (Ficus carica) não fosse nativa da região. Para os egípcios, a fruta
tinha o formato dos seios da deusa Ísis, considerada exemplo de mãe e nutriz.
Era consumida ao natural ou seca, sendo indicada também assada para males
digestivos, em uma receita que é ao mesmo tempo sobremesa e remédio:

Remédio para dissipar as dores internas do corpo:


Segundo papiros médicos

Ingredientes
• figos torrados
• azeite de coco
• uvas passas
• fruta peret-sheny

Preparação
Pôr de molho em azeite de coco os figos, as passas e a fruta peret-
sheny. Misturar tudo até obter uma massa homogênea, que deve ser
ingerida por aquele que sentir dores no interior do corpo.29
28. BARDINET,Thierry. Les papyrus médicaux de l’Égypte pharaonique. Paris: Fayard, 1995. p.
299.
29. TALLET, Pierre. Op. Cit. p.140.

24
Por fim, a uva aireret era consumida no antigo Egito, sendo também
uma planta exótica. As vindimas eram mais constantes no Delta do Nilo,
principalmente para a fabricação de vinho, considerado “as lágrimas de
Hórus”30. O vinho era produzido por pisoteamento e era armazenado em
jarras onde se inscrevia o ano, aprodução e o nome dos vinhateiros31, mas seu
consumo não era tão difundido quanto a cerveja. As uvas poderiam também
serem consumidas in natura ou em passas, sendo utilizadas na confecção de
doces e também de medicamentos. Uma receita do Papiro de Ebers indica as
passas de uva misturada ao mel, zimbro e outras plantas para “colocar fim a
uma evacuação”, ou seja, para curar diarréia32.
Pierre Tallet cita a mandrágora (Mandragora officinarum) como
planta cujos frutos eram utilizados pelos egípcios a partir do Novo Império,
em um contexto religioso e simbólico33. Planta tóxica e com propriedades
alucinógenas, muito provavelmente era empregada em filtros mágicos ou
como narcótico, seu uso foi bastante retratado na Europa durante a Idade
Média34.
Dentre os legumes cultivados pelos egípcios e que tinham apelo
nutricional e medicinal se enquadram o alho(Allium spp) e a cebola(Allium
cepa). A cebola era um importante alimento para as camadas mais pobres da
sociedade, também fazendo parte do cardápio oferecido ao morto. O alho
foi descrito por Heródoto, juntamente com a cebola, como fazendo parte da
alimentação de operários em construções, juntamente com os rabanetes35.
O alho figurava em várias receitas médicas com diferentes indicações;
porém, a mais marcante é como medicamento contra mordidas de serpentes.
A planta que pensamos ser o alho é chamada hedjou, que significa “legume
branco” e tem as características do legume que conhecemos hoje. Apesar
de ter origem asiática, o alho parece ter chegado ao Egito bastante cedo,
sendo citado não só em obras médicas como também em rituais religiosos.
Dioscórides menciona o “alho das serpentes” existente em forma selvagem
no Egito, mas talvez esta planta tenha sido substituída por outras variedades
introduzidas na região36.
30. LAWS,Bill. 50 plantas que mudaram o rumo da História. Rio de Janeiro: Sextante, 2013. p. 202.
31. MONTET, Pierre. Op. Cit., p.113.
32. BARDINET, Thierry. Op. Cit., p.257.
33. TALLET,Pierre. Op. Cit., p. 151.
34. BILIMOFF, Michèle. Enquete sur les plantes magiques. Rennes: Éditions Ouest-France, 2003.
p. 41-45.
35. TALLET,Pierre. Op. Cit., p. 153.
36. BARDINET, Thierry. Op. Cit., p. 244-245.

25
Dentre todas as plantas que partilham igualmente a mesa e a cabeceira
do doente, as ervas aromáticas provavelmente são as mais numerosas. Tallet
cita cominho, canela, coentro, gergelim, feno-grego, identificados em túmulos
do Novo Império, além de mostarda, manjericão, salsinha, hortelã e anis37.
O cominho (Cuminum cyminum) e o coentro (Coriandrum sativum), por
exemplo, além de ingredientes culinários, eram usados no embalsamamento38
e largamente citados em textos médicos, como esta receita pertencente ao
Papiro de Ebers:

Eb.5(2 a,11-15)= H. 55
Outro(remédio), para o interior do corpo quando ele está
doloroso: cominho: 1/64; gordura de ganso:1/8; leite: 20 ro. (Isto)
será cozido, filtrado e depois absorvido.39

Quem tinha acesso às plantas medicinais no antigo Egito?


Provavelmente, seu conhecimento e uso não se restringia aos “profissionais em
medicina” da época, uma vez que muitas delas eram de alcance da população
em geral que as empregava também na alimentação, como vimos. Porém, o
maior número de fontes que as descreve provém dos papiros médicos, que
também nos ajudam a compreender qual era a lógica de seu uso e o papel dos
profissionais que as empregavam.
Vários papiros trazem textos médicos: Ebers, Berlim, Smith, Kahun,
Hearst, Londres, Chester Beatty, Brooklyn, Carlsberg, Leyde. Além deste
tipo de fonte, temos descrições de Heródoto, pinturas, estátuas e o exame
dos restos humanos. Apesar desta boa gama de fontes, muitas vezes é difícil
identificar quais plantas medicinais eram utilizadas pelos egípcios que possam
corresponder aquelas que conhecemos hoje. Esta variedade de fontes também
nos permite perceber que as concepções de doença dos egípcios antigos eram
bastante diferentes das nossas, o que nos alerta para o erro de querermos
diagnosticar, segundo o nosso olhar e a posteriori, os males que aflingiam os
habitantes da “terra negra”.
Novamente, para entendermos o que era doença para os antigos
37. TALLET, Pierre. Op. Cit., p. 171-172
38. LAÏS, Erika. L’ABC dairedes plantes aromatiques et médicinales. Paris: Flammario, 2001. p. 38.
39. BARDINET, Thierry. Op. Cit., p. 252.

26
egípcios, precisamos nos aproximar de sua visão de mundo, expressa em seus
mitos. Após a morte de Osíris e sua ida ao Duat como soberano do mundo
dos mortos, Seth, seu irmão e assassino, tenta herdar o trono, a despeito da
existência de Hórus. A disputa pelo trono é conhecida como “a contenda entre
Hórus e Seth”40 e nos conta como os dois deuses disputaram a sucessão do
trono de Osíris diante dos deuses liderados por Rá. Neste embate, a deusa Ísis
tem importante papel na defesa de seu filho Hórus, constantemente desafiado
pelo tio, Seth.
Seth representava as forças do caos, da desordem,da força física bruta,
do descontrole41 personificados também pela “terra vermelha” que contrastava
com a “terra negra” que era o Egito. No contexto do mito da contenda, Seth
demonstra como a força pode desbancar (ou ao menos, tentar) a herança por
direito ao trono do Egito. Porém, em outro contexto anteriormente citado,
Seth aparece como importante auxiliar: é ele quem transpassa a serpente
Apopis durante a travessia da barca solar, liberando as águas que permitem
com que Rá cumpra seu trajeto diário.
Esta característica do deus Seth – a de não ser completamente “mal”
ou “bom”, mas de ter em si ambas as potencialidades- está muito presente nas
ideias que os egípcios faziam sobre a origem das doenças. Para os egípcios,
a doença poderiam ser provocadas pela alimentação mas, geralmente, o mal
tinha uma origem externa ao doente. Poderia ser um sopro, um “demônio”,
uma substância ou ser animado por um vento patógeno. Poderia, ainda,
ocorrer devido a obstáculos ou alterações que impediam a passagem dos
líquidos e ventos no interior do corpo42.
É preciso atentar para a concepção de “demônio” utilizada no contexto
egípcio. Uma vez que não havia separação entre bem e mal, os “demônios”
devem ser interpretados como gênios emissários que, percorrendo o país,
levavam as doenças e se tornavam uma ameaça permanente43. Qualquer deus
poderia enviar estes emissários, mas o deus Seth, devido a suas características
já abordadas, era um dos maiores responsáveis pelas doenças, juntamente
com a deusa Sekmet.
Sekmet era a deusa com cabeça de leão de poder luminoso infinito
40. Uma versão do mito em português pode ser encontrada em: ARAÚJO, Emanuel. A Contenda
entre Hórus e Seth. In:_____. Escrito para a eternidade. A literatura no Egito faraônico. Brasília:
UNB,2000. p.152-171.
41. COHN, Norman. Op. Cit.,p.26.
42. BARDINET, Thierry. Op. Cit. p.13-14.
43. Ibidem,p.41.

27
e necessário, porém, instável. Quando em fúria, poderia espalhar doenças
através do hálito ou sopro de seus emissários, cabendo também a ela e a seus
adoradores o poder de curar estas doenças44. Dentre os agentes capazes de
apaziguar a deusa estava o sacerdote uâb, uma espécie de médico hábil que
poderia agir também de forma preventiva, acalmando Sekmet antes que ela
causasse danos45.
Apesar do importante papel da deusa Sekmet na etiologia das
doenças egípcias, Bardinet ressalta a importância do deus Seth nos processos
patológicos: “(...) a documentação médica mostra, sobretudo, a doença como
um processo ‘sethiano’. Entendemos por isso qualquer coisa que perturba
e ameaça a ordem estabelecida, uma desordem contra a qual é necessário
lutar”46.
Por outro lado, se Seth é o agente da desordem, causador da doença, o
médico é representante do cosmos, de Rá, Osíris e Hórus. Podemos peceber
a relação entre Rá e a ação do médico nesta fórmula encontrada no Papiro de
Ebers, denominada “Fórmula para colocar remédios sobre o local do corpo
de um homem”:

Eu saí de Heliópolis em companhia dos Grandes do Grande Templo,


os detentores dos meios de proteção, os soberanos da eternidade. Também
saí de Saís, em companhia da Mãe dos deuses. Eles me deram seus meios
de proteção. (Assim), possuo as palavras que criou o Mestre universal para
expulsar a atividade de um deus, de uma deusa, de um morto, de uma morta,
e assim por diante, que se manifesta nesta minha cabeça,neste meu pescoço,
nestes meus ombros, nesta minha carne, nestes meus locais do corpo, e (eu
possuo as palavras) para punir o Caluniador, o chefe,destes que fazem entrar
a desordem nesta minha carne, roendo estes meus lugares do corpo, entrando
nesta minha carne, nesta minha cabeça, nestes meus ombros, na minha carne
superficial, nos meus lugares do corpo. Eu perteço ao deus Rá. Ele disse:
- Sou eu que o protegerei de seus inimigos. Thot é seu guia, ele quem fez
que fale a escrita, quem fez as compilações médicas, e quem deu o poder aos
sábios e aos médicos que estão em sua companhia para livrar (os doentes).
Este que é amado do deus, ele (o deus) o guarda em vida. Eu sou aquele

44. MUSEÉ DU LOUVRE. L’Art du médecin égyptien.Muséé du Louvre. Disponível em : http://


www.louvre.fr/sites/default/files/medias/medias_fichiers/fichiers/pdf/louvre-dossier-thematique-
l039art-medecin.pdf. Acesso em: 26 dez. 2011.
45. BARDINET, Thierry. Op. Cit. p.240-241.
46. Ibdem, p.240.

28
que é amado do deus, ele me guardará em vida.
Palavras para recitar no momento de colocar uma medicação sobre o
local sofredor do corpo de um homem. Verdadeiramente eficaz, um milhão
de vezes.47

A fórmula acima era destinada a proteger o médico de ser atingido pelo


mal que tentava retirar do corpo do doente. O profissional estava exposto ao
perigo, uma vez que suas mãos eram colocadas sobre o local enfermo, repleto
de seres maléficos que ele tinha por objetivo expulsar e que também podiam
invadir seu corpo. Aqui, percebe-se que o médico se colocava como protegido
de Rá, seguindo as orientações de Thot, o deus da escrita, e, portanto, agindo
em conformidade com as forças do cosmos para controlar o caos.
A mesma lógica se encontra na forma de preparar os medicamentos,
cuja fórmula era composta por diferentes elementos, onde os vegetais tem
importante papel. Por exemplo, eram empregadas plantas ligadas à Osíris
pois sua ação era oposta à de seu assassino, o deus Seth. A este, por exemplo,
eram ligadas as substâncias vermelhas, uma vez que sua morada era a “terra
vermelha”. Por exemplo, contra o mal chepet, que podemos aproximar com
cuidado à “olhos vermelhos”, eram empregados “olhos de porco secos”
misturados com galena,mel e ocre. Os olhos de porco representavam os
olhos de Seth, também representado pelo vermelho do ocre e eram secos pois
deveriam retirar o humor nefasto e “sethiano” dos olhos do doente: assim,
Seth recolheria o humor patogênico que faltaria ao seu olho, reestabelecendo
a normalidade ao olho do moribundo. 48
A lógica mitológica estava presente em todo o pensamento egípcio,
numa tentativa de manter a “terra preta” estável diante da ameaça da
“terra vermelha” e o uso das plantas não poderia estar fora deste contexto.
Reconhecer o uso de plantas medicinais pelos egípcios que também são
nossas aliadas nos faz ter proximidade com seu saber herbário. Ao mesmo
tempo, perceber as peculiaridades que a visão de mundo egípcia nos mostra
pode nos fazer constatar que não há uma só maneira de tratar a doença e
recuperar ou manter a saúde.

47. Ibidem, p. 40-41.


48. Ibidem,p.54-55

29
BIBLIOGRAFIA
• ARAÚJO, Emanuel. A contenda entre Hórus e Seth. In:_____. Escrito
para a eternidade. A literatura no Egito faraônico. Brasília: UNB,2000.
p.152-171.
• BAKOS, Margaret M. Fatos e mitos do antigo Egito. Porto Alegre:
EDIPUCRS,1994.
• BARDINET,Thierry. Les papyrus médicaux de l’Égypte pharaonique.
Paris :Fayard,1995.
• BELER, Aude Gros de. A mitologia egípcia. Lisboa:Gama, 2001.
• BILIMOFF, Michèle. Enquête sur les plantes magiques. Rennes: Éditions
Ouest-France, 2003.
• CAMINOS, Ricardo A. O camponês. In: DONADONI, Sérgio (org.). O
homem egípcio. Lisboa: Editorial Presença, 1994.p.15-36.
• CARDOSO, Ciro Flamarion. Sete olhares sobre a Antiguidade. Brasília:
UNB, 1994.
• COHN, Norman. Caos, Cosmos e o mundo que virá. As origens das
crenças no Apocalipse.São Paulo: Cia das Letras, 1996.
• ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. A essência das religiões. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
• HAGEN, Rose-Marie; HAGEN,Rainer. Egipto: pessoas, deuses, faraós.
Lisboa: Tashen, 2003.
• LAÏS, Erika. L’ABCdaire des plantes aromatiques et médicinales. Paris :
Flammario, 2001.
• LAWS, Bill. 50 plantas que mudaram o rumo da História. Rio de Janeiro:
Sextante, 2013.
• MONTET, Pierre. O Egito no tempo de Ramsés. São Paulo: Cia das
Letras, 1989.
• MUSEÉ DU LOUVRE. L’Art du médecin égyptien. Muséé du Louvre.
Disponível em : <http://www.louvre.fr/sites/default/files/medias/medias_
fichiers/fichiers/pdf/louvre-dossier-thematique-l039art-medecin.pdf>.
Acesso em: 26 dez. 2011.
• NOBLECOURT, Christiane D. A mulher no tempo dos faraós. Campinas:
Papirus, 1994.

30
• TALLET, Pierre. História da cozinha faraônica. A alimentação no Egito
antigo. São Paulo: SENAC, 2005.

31
Para saber mais…
Renata Palandri Sigolo

Desde o Reino Antigo, cerca de 2.800 a.C,


os egípcios antigos usavam o termo sunu para
designar o médico e este era escrito com o hieróglifo de uma flecha, o
que pode significar que uma de suas atribuições era prestar assistência
aos feridos de guerra49. Já a palavra que se relacionava à atividade
médica era hemet, que pode ser traduzida por “arte, técnica, modo de
proceder” e é determinado pelo hieróglifo do livro que também tem
o sentido de “tratado, livro expondo a técnica médica”. Isto conecta o
conhecimento médico à necessidade da escrita.50
De fato, o ensino da profissão estava relacionado ao aprendizado
desenvolvido em oficinas nas dependências dos templos das divindades
ligadas à cura ou dos palácios. O aprendiz de médico deveria ser hábil
na arte da escrita, uma vez que deveria ser capaz de compreender
o conhecimento armazenado em papiros e depositado em locais
denominados de per-ankh. Os textos médicos eram recopiados
conforme o interesse e traziam descrições sobre quadros patológicos
assim como os procedimentos e medicamentos sugeridos.51
Os textos médicos geralmente não traziam autoria, o que sinaliza
a importância não do indivíduo na cura, mas do que ele representava.
Junto ao palácio, ou seja, ligados ao faraó, se reunia um conjunto
de médicos que tinha como função exercer a arte médica em nome
do soberano, o representante dos deuses no Egito. Cabia ao faraó,
o descendente de Hórus, assegurar na terra a
manutenção do sopro da vida que havia sido
dado aos humanos pelos deuses. Por isso, os
médicos, principalmente aqueles que estavam
ligados ao palácio, agiam a fim de garantir a
saúde, que era um dom do faraó.52
O médico poderia se proclamar “o de dedos
hábeis”, não só por ter a capacidade de fazer

49. MUSEÉ DU LOUVRE. Op. Cit.


50. BARDINET,Thierry. Op. Cit.p.34.
51. MUSEÉ DU LOUVRE. Op. Cit.
52. BARDINET,Thierry.Op. Cit.,p.36.

32
pequenas interveções cirúrgicas, mas por que a apalpação era muito
importante para se estabelecer o diagnóstico, além do sentido da visão.
Após estabelecer o diagnóstico, o médico poderia decidir se era capaz
ou não de agir diante da situação apresentada. Havia uma fórmula
consagrada para afirmar a possibilidade de tratamento de um doente:
“Então você dirá: uma doença que eu tratarei!”. A esta afirmativa se
seguia a ação terapêutica. Por outro lado,se o profissional percebesse
que sua intervenção tinha poucas chances de ser bem sucedida, ele
poderia “jogar por terra”, expressão que denotava um prognóstico fatal
ou a impossibilidade daquele médico oferecer tratamento.53
Devido às características de aprendizado e de sua função, o
médico pertencia a altas camadas da sociedade egípcia. A profissão
era organizada segundo uma hierarquia cujo topo era ocupado pelo
“Grande dos médicos do palácio”, ou seja, pelo médico pessoal do
faraó, que era o chefe de todos os médicos. Sua “equipe” era composta
de profissionais cujos títulos eram “oculista”, “dentista”, “médico do
abdômen” , embora estas “especializações” não expressem a mesma
ideia ou função das especialidades médicas contemporâneas. Tratava-
se mais de títulos que os médicos da corte detinham por se dedicarem
às doenças que mais grassavam entre os egípcios e sua função era a de
redigir tratados que pudessem servir aos médicos práticos, os sunu.54
Além da ação dos mortos e deuses, em especial de Seth, e sem os
excluirem, quatro fatores patógenos são elencados55: o âaâ, os setet,
os ukhedu e o sangue. O âaâ era caracterizado por um líquido que
existia naturalmente na cabeça: o termo designava uma substância
que poderia criar desordens no corpo humano. Apesar do termo ter
vários sentido, aquele que mais se aproxima dos textos médicos é o de
“secreção corporal”.
Os setet eram elementos vivos que poderiam causar uma dor que
se irradiava ao passar dentro do corpo humano. Quando morrem
dentro do organismo em algum lugar específico, se decompõem
provocando prejuízo geral ao corpo ou vermes intestinais.Por isso,
os procedimentos médicos nestes casos não visavam matar estes
elementos mas expulsá-los.

53. MUSEÉ DU LOUVRE.Op.Cit.


54. BARDINET,Thierry.Op. Cit.,p.36
55. Ibidem,p.121-137.

33
Os ukhedu tem uma ação contrária ao sangue. Enquanto este liga
os elementos fornecidos pela alimentação, aqueles tem a capacidade
de “roer” as mesmas substâncias. Uma teoria sobre a ação dos ukhedu
diz que eles estão ligados à alimentação, como um elemento natural
que dissolveria os alimentos, explicando a desagregação e putrefação
daquilo que o ser humano ingere e que está “desprovido de sopro
vital” (ou seja, morto). Os ukhedu causavam a doença quando se
encontravam em partes do corpo onde sua função de dissolver era
prejudicial como, por exemplo, no processo de cicatrização. Por fim, o
sangue pode ser patogênico, se ao invés de cumprir sua ação de “ligar”,
ele destrói ou “come”, como diziam os egípcios.

34
Trabalhando com fonte histórica

Papiro de Ebers (+- 1500 a.C)

BARDINET, Thierry. Les papyrus médicaux de l’Egypte pharaonique.


Paris: Fayard,1995. p. 357-358

Eb 763
Outro remédio e conjuração da exsusação rech
Escute, exsudação filha da exsudação rech, você que fratura os ossos, que
quebra a cabeça, que revira a moela da cabeça, que torna dolorosos os sete
buracos da cabeça dos servidores de Rá e dos adoradores de Thot. Você! Eu
trouxe o remédio que lhe concerne, contra você, a poção que lhe concerne,
contra você: leite de uma mulher que deu nascimento a um menino, goma
perfumada. Isto te afugentará! Isto te fará fugir! Desça até a terra, decomponha-
se, decomponha-se.
Deve-se dizer quatro vezes. Palavras que devem ser ditas sobre o leite de uma
mulher que deu nascimento a um menino e sobre a goma perfumada. Isto será
colocado no nariz.

Eb 766
Outro remédio para curar o ouvido.
a) Você irá curá-lo com um tratamento frio, pois ele não pode ser quente.
b) (…) você deve preparar: parte shepa da malaquita. Isto será esmagado
e aplicado por quatro dias. Depois, você deve preparar tampões vegetais
embebidos de : 2/3 de gordura/óleo, mel. Isto será aplicado em tratamentos
repetidos.
c) Se o orifício do ouvido está úmido, você deve preparar o seguinte para
polvilhar, que serve para secar uma ferida: folhas de acácia, folhas da árvore
nebes, sementes de salgueiro, cominho. Isto será esmagado e aplicado no
ouvido.

35
2. O uso de plantas medicinais na Medicina Ayurvédica
Bruno Vinícius Mützenberg e Diego Schibelinski

O subcontinente indiano foi uma região relativamente bem ocupada


nos períodos Mesolítico e Neolítico. Tendo se estabelecido sedentariamente,
por volta do oitavo milênio antes da era cristã, os povos ali presentes
desenvolveram-se, principalmente, através da agricultura e do comércio por
dezenas de séculos, o que permitiu a organização e a criação de gado bovino e
caprino. A primeira grande civilização indiana documentada organizou-se a
partir das cidades principais de Harappa e Mohenji-Daro, no vale do rio Indo.
Através da arqueologia, descobriram-se, nos sítios dessas cidades,
evidências de edifícios sólidos, ruas de traçado uniforme, com esquinas
em ângulos de 90 graus, sistemas de drenagem e de irrigação. Muito
provavelmente, as sociedades que emergiram nestas cidades desenvolveram
suas próprias formas de conservar a saúde e tratar as doenças, que depois
se miscigenaram aos arianos, povos seminômades que se estabeleceram na
região do Rio Ganges em cerca de 1800 a.C.1
As práticas médicas do Ayurveda têm suas origens reconhecidas nos
antigos textos litúrgicos dos Vedas: o Rig Veda (1500 a.C.) e Atharva Veda
(1000 a.C.). Nestes escritos, são encontradas descrições sobre a origem do
universo, o mundo natural, os seres humanos e a ordem social. O Atharva
Veda, por exemplo, apresenta uma listagem de plantas medicinais, dos órgãos
internos e intervenções cirúrgicas. Eles também estabelecem princípios
religiosos, morais e sociais, muito comuns e até hoje encontrados na sociedade
hindu2.
O Ayurveda possui um modelo preventivo de saúde, uma vez que
busca não só a cura da doença e a prescrição de remédios e entende o ser
humano como um conjunto formado por corpo, mente e espírito, baseando-
se no preceito de que só há saúde no equilíbrio desses elementos. A
filosofia ayurvédica percebe o homem como um microcosmo que reflete o
macrocosmo. Desta forma, assim como o universo, nosso corpo é constituído
a partir da combinação de cinco elementos: éter, ar, água, fogo e terra que,
como na natureza, em nosso organismo exercem funções específicas como

1. COHN, Norman. Cosmos, caos e o mundo que virá: As origens das crenças no apocalipse. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996.
2. BIVINS,Roberta. O corpo em equilíbrio. In:PORTER, Roy (org.) Medicina: a história da cura.
Lisboa, Centralivros,2002.p.94-117.

37
mobilidade, metabolismo e estrutura3.
O termo Ayurveda em sâncrito significa “ciência da vida”, onde
ayur significa vida e veda conhecimento ou sabedoria. Não é possível datar
com exatidão a origem do Ayurveda e existem diferentes versões de seu
surgimento. Uma delas conta que o deus Indra revelou ao sábio Bharadvaja
os segredos do Ayurveda, para que assim se pudesse ter uma vida longa,
cabendo a este importante mestre transmitir esse conhecimento aos homens.
Também o deus Dhavantari é considerado um dos fundadores do Ayurveda,
afinal, acredita-se que tenha sido ele que ofereceu aos homens o néctar da
imortalidade e o conhecimento sobre as ervas4.

Outra lenda conta que uma conferência foi realizada em uma caverna
nos confins da cordilheira do Himalaia e que nela reuniram-se todos os grandes
sábios da Índia, preocupados com o aumento das doenças e da miséria que
faziam com que as pessoas morressem cada vez mais rápido e as impediam
de atingir a iluminação espiritual. Os sábios discutiram e compararam seu
conhecimento sobre a arte da cura, uma vez que cada um deles possuía um
saber sobre as ervas de sua região e a aplicação delas em tratamentos contra
doenças, conforme seus pais lhes haviam ensinado. Acredita-se que nesse
grande encontro, eles teriam conseguido compilar o conhecimento oral que
cada um herdara, formando numa única tradição, a qual deram o nome de
Ayurveda, destinada a permitir que os homens vivessem o bastante para
conquistar a iluminação. A partir de então, os conhecimentos ayurvédicos
passaram a ser transmitidos de mestre para aprendiz, de forma oral, por
centenas de anos. Foi somente após 1500 a.C. que esse conhecimento passou
a ser registrado5.
3. DE LUCA, Márcia; BARROS, Lúcia. Ayurveda: cultura de bem viver. São Paulo: Editora Cultura,
2007
4. Idem.
5. Idem.

38
Entender de que forma nosso corpo funciona e de que maneira são
vistas as doenças sobre o olhar do Ayurveda nos exige conhecer alguns
fundamentos que são essenciais para a compreensão de seu conceito de saúde.
Um dos principais elementos corporais é Agni, o fogo digestivo, responsável
por metabolizar todo material recebido do ambiente externo pelo nosso
corpo, desde alimentos, sentimentos, sensações ou até mesmo notícias e
informações. Agni pode ser comparado a uma fogueira na qual joga-se lenha
molhada: se o fogo estiver fraco ela certamente irá se apagar; porém, se o fogo
estiver forte será capaz de queimar a madeira, mesmo esta estando molhada.
Se nosso Agni não está forte não somos capazes de digerir o que entra em
nosso corpo, gerando toxinas ou Ama.
Ama são as toxinas que se acumulam em nosso corpo devido a
incapacidade de digestão de Agni. Geralmente presentes em pequenas
quantidades, sua acumulação em nosso organismo polui nosso sistema vital,
bloqueando o fluxo natural e espontâneo de Ojas. Ojas, presente em grande
quantidade em nosso corpo, caracteriza-se como o alimento sutil da vida, a
seiva da vida. É ela quem relembra cada célula e tecido do corpo de que seu
objetivo principal é manter a unidade do todo. Sua falta nos leva à morte.
É através Srotas, uma rede de canais, que circulam a seiva da vida Ojas
e também Prâna. A obstrução desses canais devido ao acúmulo de Ama é,
para o Ayurveda, a principal causa das doenças. Há treze canais condutores
principais em nosso corpo, onde, três correspondem aos tratos respiratórios
e digestivos, sete conduzem a soma de Prâna e Ojas responsável por criar
todos os tecidos e três expelem suor, fezes e urinas. Prâna, por sua vez, é a
energia vital, que mantém o corpo físico funcionando: ela entra em nosso
corpo através de nossa respiração6.
São nos Chakras, vórtices de energia, que o prâna absorvido é
condensado, acumulado e que, depois de transformado, é distribuído pelo
corpo todo alimentando, assim, a chama da vida. É importante salientarmos
que para a medicina ayurvédica não existe uma anatomia ou fisiologia
semelhante a da biomedicina: os Chacras não podem ser descritos sob o
ponto de vista fisiológico pois são encontrados no corpo sutil, ligando este
ao corpo denso ou físico, permitindo que a energia flua de um corpo para o
outro. Os mais antigos textos referem-se a quatro Chakras; porém, é muito
comum falar-se em sete: coronário (pineal), frontal (pituitária), laríngeo
(tireóide), cardíaco (coração), plexo solar (baço), umbilical (supra-renais),

6. Idem.

39
raiz/básico (gônadas)7.
Para o Ayurveda, todas as doenças são consideradas desequilíbrios
ou desarmonias que, na maioria das vezes, tem sua origem no acúmulo
de toxinas, ou seja, o acúmulo de Ama. Uma doença já está em estágio
avançado quando finalmente aparecem os sintomas no corpo físico, pois
os três primeiros estágios de uma moléstia não se manifestam fisicamente
e sim no nível da consciência. O Ayurveda vê a doença como tendo seis
estágios: o acúmulo, que surge como resultado de escolhas incorretas e que
proporcionam o aumento de Ama em nosso organismo sendo a causa do
desequilíbrio ambientes, alimentos ou relacionamentos tóxicos; agravamento,
quando o acúmulo de toxinas progride, o organismo começa a ter suas funções
energéticas distorcidas ainda em nível sutil; disseminação, o desequilíbrio se
alastra e a pessoa passa a ter sintomas genéricos de que algo está errado, como
fadiga ou desconforto generalizado; localização, quando o desequilíbrio se
localiza, a área escolhida é propensa a acolher o mal; manifestação, se o
processo continua, uma óbvia disfunção é gerada: como, por exemplo, uma
infecção; erupção, totalmente instalada, a doença se manifesta plenamente8.
Não é apenas no conceito do que é a doença que o Ayurveda se
diferencia do modelo biomédico. Para este sistema médico, assim como todo
restante do universo, o corpo do homem é originário dos cinco elementos
criadores que, ao se organizarem em combinações e proporções únicas e
individuais são denominados Doshas9. Os três Doshas são Vata, Pitta e Kapha,
e são responsáveis por todas as funções psicológicas, biológicas e fisiológicas
de nosso corpo, regendo também aspectos de nossa mente e consciência.
Alcançar o equilíbrio entre os Doshas – que naturalmente desenvolvem
processos de desequilíbrio ao longo da vida - é alcançar o bem estar de corpo,
mente e espírito10.
Vata é a união de éter e ar, o principio da energia cinética, regula
todos os movimentos do corpo e da mente. Em sânscrito, significa “aquilo
que movimenta as coisas”.As pessoas deste Dosha são altas ou baixas, porém
sempre magras. Podem comer muito sem engordar, mas tendem a ganhar
peso na velhice. Tem apetite irregular. As juntas são secas, barulhentas e

7. MARQUES, Evair A. Medicina ayurvédica – tradicional arte de curar na Índia. Rio de Janeiro :
UERJ/IMS, 1993.
8. DE LUCA, Márcia; BARROS, Lúcia. Op. Cit.
9. CARNEIRO, Danili Maciel. Ayurveda: Saúde e longevidade na tradição milenar da Índia. São
Paulo : Editora Pensamento, 2009.
10. MARQUES,Evair. Op. Cit.

40
protuberantes. Os dentes são pequenos e também protuberantes. Tem pés e
mãos gelados e sentem muito frio. Em geral tem olhos pequenos e cabelos finos
e encaracolados. A pele é seca, dormem pouco, tem sono leve e acordam com
qualquer barulho. São superativas, mas se cansam com facilidade. Tendem a
ser alertas, tem uma mente ativa e aprendem rápido. Como o vento, pensam,
falam e andam muito rápido, mudando de ideia e de humor o tempo todo.
Em equilíbrio, as pessoas de Vata são felizes, entusiasmadas, criativas
e comunicativas. Fazem amigos rapidamente. Em desequilíbrio tornam-se
cansadas, angustiadas ansiosas e ficam sensíveis e inseguras na hora de tomar
decisões. Sofrem de insônia, prisão de ventre e gases. Para balancear Vata,
pede-se estabilidade emocional e amorosa, além de um ambiente agradável
sem muitas distrações. As pessoas com este Dosha devem manter a rotina,
descansar, praticar yoga, danças e caminhadas, além de evitar alimentos frios
e correntes de ar. No amor, Vata é inconstante e difícil de se comprometer.
Pitta é a junção de muito fogo e pouca água. Regula a fome e a sede,
e todos os processos de transformações do corpo. Em sânscrito, quer dizer
“aquilo que digere as coisas”. As pessoas deste Dosha geralmente são de
estrutura e composição corporal média. A pele é clara, muitas vezes com
sardas e com tendência a manchas. Sua temperatura é alta, por isso transpiram
e ruborizam com facilidade. Não gostam de calor, têm cabelos finos e sedosos,
normalmente loiros, olhos penetrantes. Tem tendência a serem grisalhos ou
carecas. Tem excelente digestão e grande apetite. Ficam irritadas se pulam
ou atrasam refeições. Costumam acordar no meio da noite com fome, sede
ou calor. Dormem profundamente por curtos períodos de tempo e tem forte
impulso sexual.
Pitta é o Dosha de maior inteligência e raiva. O raciocínio é rápido, tem
poder de foco e organização. São pessoas ordeiras, enérgicas e competitivas,
além de corajosas e independentes. Sabem falar bem em público, tem iniciativa
e costumam dominar a situação. Costumam julgar os outros. Em equilíbrio
são determinadas e com grande capacidade de liderança. São pessoa calorosas
e sabem tomar decisões certas. Em desequilíbrio, tornam-se impacientes,
frustradas e irritadas. Ficam com raiva e se comportam de forma agressiva
e intimidadora. O senso crítico torna-se desenfreado, tornam-se sarcásticas.
Sua busca pela perfeição as leva à intolerância. Ficam com erupções na pele e
sofrem de azia e indigestão.
Para balancear Pitta, é preciso aprender a controlar a raiva, descansar,

41
ter senso de humor, comer salas e tomar bebidas frias. A natação ajuda a
acalmar e deve-se evitar tudo que seja quente. No amor são apaixonadas mas
precisam aprender a serem humildes e pacientes para se relacionarem com
um companheiro. Seu maior desafio é unir sexo e coração.
Kapha mistura terra e água. Sua função é regular a energia, pode
acumular gorduras e água no corpo. Em sânscrito, significa “aquilo que
mantém as coisas juntas”. As pessoas deste Dosha tem facilidade de ganhar
peso, tendo muita dificuldade para emagrecer. A pele é clara e lustrosa, suave
e sedosa, e apresenta certa palidez. Têm lábios carnudos, dentes brancos e
fortes, bochechas fofas, olhos grandes e cílios longos, cabelo grosso, preto
e brilhante. Tem pouco apetite, lenta digestão e se sentem pesados após
comerem. Precisam dormir mais e seu sono é pesado e profundo. Transpiram
pouco e detestam tempo frio e úmido.
As pessoas de Kapha são lentas em todos os aspectos, aprendem devagar,
mas tem ótima memória. São amáveis, cheias de compaixão e conciliadoras,
costumando ser excelentes amigos e pais. Pensam muito antes de tomar
decisões e apegam-se fácil a pessoas e coisas. O passado faz parte de sua vida.
Em equilíbrio, são calmas e tranquilas, com bom nível de energia. Pacientes,
devotadas e amorosas, gostam de rotina e sabem economizar dinheiro. Em
desequilíbrio, apresentam preguiça, depressão e dificuldade de expressar
seus sentimentos. Tornam-se estúpidas e superprotetoras, desenvolvendo
tendência de dormir demais e não aceitando mudanças. Sofrem com o peso
e o nariz congestionado
Para balancear Kapha, deve-se praticar esportes como lutas marciais,
musculação, fazer massagens, jardinagem, arrumar a casa e cozinhar. No
amor, Kapha é responsável pela família, pelo lar e pelos relacionamentos
estáveis. Sensual, combina força masculina com suavidade feminina11.
Pelos conceitos ayurvédicos, diversos problemas de saúde são causados
pelo desequilíbrio de um ou mais Doshas e, certamente, todos os aspectos
da saúde são por eles influenciados. Um distúrbio em Pitta, por exemplo,
poderia resultar em problemas na visão, de metabolismo, febres, entre outros.
Também poderia, se não fosse neutralizado, resultar no agravamento de
outros princípios vitais, em efeito cumulativo.

11. CARNEIRO, Danili Maciel. Op; Cit.

42
As causas das doenças não são reduzidas apenas aos princípios
vitais: poderiam ser inatas, exógenas, ou psíquicas. As inatas seriam devido
ao desequilíbrio em Vata, Pitta e Kapha; as exógenas, devido a agentes
causadores externos, como parasitas, ar ou água poluída, venenos, etc.; as
de origem psíquica podem ser comparadas ao conceito “psicossomático”, da
medicina moderna: causadas por desejos não realizados ou enfrentamento do
indesejável. Novamente, existe interligação também nas três causas. Princípios
vitais desequilibrados tornam a pessoa mais suscetível a doenças exógenas,
por enfraquecer as defesas naturais do organismo (sistema imunológico).
Da mesma forma, princípios vitais agravados podem ameaçar a sanidade
e estabilidade psíquica. Em ambos os casos, a recíproca é verdadeira: tanto
agentes externos quanto estados mentais influenciam no equilíbrio tridosha12.
O sistema de diagnóstico no Ayurveda procura levar em conta
não apenas os sintomas da doença, mas também as circunstâncias de seu

12. MARQUES, Evair. Op.Cit.

43
aparecimento. Afinal, o objetivo desta analise é poder compreender a origem e
o mecanismo geral que tem produzido os distúrbios e desequilíbrios que, por
sua vez, acarretaram a doença. Assim, exames pela observação e entrevistas
detalhadas com o paciente fazem parte do diagnóstico que visa identificar e
determinar quais elementos do funcionamento vital do corpo do indivíduo
estão em desequilíbrio. Este sistema médico acredita que todos os distúrbios
de saúde são devido à desarmonia entre os Doshas e consequentemente
dos elementos da natureza que nos compõem. Uma vez identificado o
desequilíbrio e suas possíveis causas, o objetivo principal das práticas
terapêuticas é restabelecer o equilíbrio. Tal tarefa se dá, principalmente,
sobre a eliminação de toxinas, que podem ser de origens diversas, e que se
acumularam no organismo do doente. É preciso limpar o corpo antes de
medicá-lo13.
Dentro das possíveis opções terapêuticas apresentadas pelo Ayurveda
destacam-se a massagem terapêutica, a meditação, os exercícios físicos e
respiratórios (yoga, asanas e pranayamas), a alimentação terapêutica e o uso
de plantas medicinais. Nesta análise nos deteremos mais nas duas últimas
alternativas.
A fitoterapia ayurvédica afirma que cada planta medicinal possui
quatro importantes propriedades: o sabor (rasa), o efeito pós-digestivo
(vipaka), a energia (virya) e a potência especial (prabhava). O Ayurveda
acredita na existência de seis sabores (rasas) que apresentam qualidades
e propriedades medicinais importantes e diferentes: doce (úmido, frio e
pesado), ácido (úmido, quente e leve), salgado (úmido, quente e pesado),
picante (seco, quente e leve), amargo (seco, frio e leve) e adstringente (seco,
frio e pesado).
Já vipaka, o efeito pós-digestivo, é o que surge após a digestão
das plantas medicinais. São eles três: doce, acido e picante. Isso ocorre
porque doce e salgado têm um efeito pós-digestivo doce, o sabor
ácido apresenta após a digestão o mesmo sabor, ou seja, ácido e os sabores
picante, amargo e adstringente tornam-se picantes após a digestão.
A terceira propriedade é a energia da planta medicinal, virya, que quer
dizer vigor. Ela nada mais é do que a potência pela qual a ação do medicamento
acontece. E a última é a chamada potência especial ou prabhava, que ocorre
quando duas plantas têm sabor, energia e efeito pós-digestivo similares, porém
diferem em ação terapêutica, pois algumas substâncias têm propriedades

13. Idem.

44
especiais, exercendo reações divergentes daquelas que geralmente plantas
com aquela classificação exerceriam14.
A farmacopeia ayurvédica também classifica sistematicamente
as plantas em treze categorias. Tal classificação é feita de acordo com
características apresentadas como o sabor, os elementos, os efeitos
(refrescante, pós-digestivo) entre outras propriedades especiais que possam
vir a apresentar. Assim, as plantas podem limpar e purificar o sangue, ajudar
a eliminar vermes e parasitas, produzir a contração das mucosas e sensação
de secura, ser tônicas amargas que combatem a febre e limpam o organismo,
aliviar problemas intestinais, induzir a transpiração,ser diuréticas, promover
e regular a menstruação, ter propriedades expectorantes, agir como laxantes e
purgantes,fortalecer a atividade funcional do sistema nervoso, ser estimulantes
e digestivas e ter propriedades tônicas, nutritivas, rejuvenescedoras ou
afrodisíacas15.
É importante compreender que, dentro da perspectiva do Ayurveda,
a alimentação e a fitoterapia estão fortemente relacionadas, uma vez que a
alimentação é encarada como mais um dos elementos que compõem um
sistema de tratamento visando a manutenção do equilíbrio do organismo e
que deve ser administrado diariamente. Assim, plantas com propriedades
curativas não são recomendadas apenas em ocasiões específicas pois devem
fazer parte de uma dieta diária, devidamente construída em concordância
com o Dosha da pessoa, a fim de proporcionar o tão desejado equilíbrio.
Quando são receitados em forma de um tratamento específico para
determinada moléstia, as plantas podem assumir a forma de fitocomplexos,
ou seja, fórmulas com três a dez plantas ou mais. Além da flora, o Ayurveda
utiliza-se também de elementos animais e minerais.
Um aspecto interessante a ser destacado é que acredita-se que cerca
de 80% das plantas medicinais encontradas no sub-continente indiano
existem no Brasil, tornando possível sua utilização de acordo com a tradição
ayurvédica. Um bem exemplo seria o dos condimentos, tão populares, como
cravo, canela, gengibre, noz moscada, coentro e cominho.
O Ayurveda relaciona seu conceito de saúde diretamente à ideia de
equilíbrio entre corpo, mente e espírito. A manutenção deste equilíbrio
14. MANFRINI, André Maciel. Reconhecimento e Potencialidades de Plantas Medicinais Ayur-
védicas Utilizadas na Medicina popular pela Comunidade da Costa de Cima, Lagoa do Peri,
Florianópolis/SC. Trabalho de conclusão de curso – Curso de Ciências Biológicas. Florianópolis:
Universidade Federal de Santa Catarina, 2009.
15. Idem.

45
determina não somente a saúde, mas a felicidade, através de uma vida
balanceada. Visando felicidade e sucesso, um indivíduo precisa levar em
consideração, além de sua natureza fundamental, com o predomínio de
um ou mais Doshas, sua alimentação, idade, clima em que vive, diferentes
momentos do dia, tipo de trabalho, sono, pois quase tudo é passível
de influenciar o organismo. Assim sendo, determinados alimentos ou
medicamentos que possam ser benéficos para uma pessoa, em determinada
situação (local, rotina, horário) podem não o ser para outra pessoa em outra
situação, podendo até mesmo ser prejudicial.
O sistema medicinal ayurvédico atualmente tem encontrado cada vez
mais adeptos por todo o mundo. Na Índia, após sua independência na década
de 1940, o modelo, que quase havia caído no esquecimento, se fortaleceu e sua
prática nos dias de hoje é tão comum entre os indianos quanto a biomedicina.
No Brasil, desde meados da década de 1980, a medicina ayurvédica vem
ganhando destaque e difusão.
Apesar de ser conhecida como a ciência da longevidade, o objetivo
principal do Ayurveda não é acrescentar anos a nossa vida mas vida aos
nossos anos, conscientizando-nos de que nossa saúde é, também, uma
responsabilidade individual. Mais do que curar, o objetivo é nos ensinar a
respeitar os ritmos da natureza e a evitar tudo aquilo que possa nos fazer
mal. A saúde ou a falta dela é vista como resultado das nossas ações diárias e
é o espelho de nossos sentimentos, pensamentos e relacionamentos no nosso
cotidiano.

46
BIBLIOGRAFIA
• BIVINS, Roberta. O corpo em equilíbrio. In: PORTER, Roy (org.)
Medicina: a história da cura. Lisboa, Centralivros, 2002. p. 94-117.
• CARNEIRO, Danili Maciel. Ayurveda: Saúde e longevidade na tradição
milenar da Índia. São Paulo: Editora Pensamento, 2009.
• COHN, Norman. India Védica. In: ______ Cosmos, caos e o mundo que
virá: As origens das crenças no apocalipse. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
• D’ANGELO, E. & CÔETES, J. R. Ayurveda – A Ciência da Longa Vida.
São Paulo: Ed.
• Madras, 2008.
• DE LUCA, Márcia; BARROS, Lúcia. Ayurveda: cultura de bem viver. São
Paulo: Editora Cultura, 2007.
• LAD, D. Vasant. Ayurveda: a ciência da autocura – um guia prático. São
Paulo: Editora Ground, 1997
• MANFRINI, André Maciel. Reconhecimento e Potencialidades de
Plantas Medicinais Ayurvédicas Utilizadas na Medicina popular
pela Comunidade da Costa de Cima, Lagoa do Peri, Florianópolis/
SC. Trabalho de conclusão de curso – Curso de Ciências Biológicas.
Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2009.
• MARQUES, Evair A. Racionalidades Médicas: medicina ayurvédica –
tradicional arte de curar na Índia. Rio de Janeiro: UERJ/IMS, 1993.
• McINTYRE, Anne. Guia completo da fitoterapia: um curso estruturado
para alcançar a excelência profissional. São Paulo: Pensamento, 2011.
• VERMA, Vinod. Ayurveda: a medicina indiana que promove a saúde
integral. Rio de Janeiro: Record; Nova Era, 2003.

47
Para saber mais…
Renata Palandri Sigolo

Apesar de possuir raízes muito antigas, a medicina ayurvédica


tem sua matéria médica sistematizada a partir de dois tratados, o
Carakasamhitâ (coleção de Caraka) e o Suçrutasamhitâ (coleção de
Suçruta). A primeira obra afirma conter os ensinamentos do sábio
Atreya, recolhidos por seu discípulo Agniveça e reorganizado por
Caraka que talvez tenha vivido entre os séculos I e II da nossa era, mas
o texto que chega até nós sofreu acréscimos no século IX.16
O Suçrutasamhitâ é a principal obra relativa à cirurgia indiana,
cujo ensino era atribuído ao deus Dhanvantari, através de Divodâsa,
rei de Benares e do médico Suçruta, contemporâneo de Caraka. A
obra reune vários conhecimentos médicos de origem mais antiga e,
juntamente com o Carakasamhitâ, constitui o ponto de partida para o
aprendizado da medicina ayurvédica até hoje.17
Há vários paralelos entre o Ayurveda e a Medicina Hipocrática18.
Para ambas, diversos elementos são constitutivos do universo e, por
conseguinte, do ser humano; porém, quatro são os principais: água,
fogo, terra e ar. Ambas pensam a doença como um desequilíbrio no
organismo a nivel individual, ligado ao desequilíbrio no “organismo”
maior que é o macrocosmos. Assim, estações do ano, moradia,
estilo de vida e alimentação influenciam no estado do microcosmos
humano, pois ambos os “universos” são compostos pelos mesmos
elementos que, por sua vez, são interdependentes. Excesso ou falta de
um dos elementos no corpo humano ou então os pares de qualidades
opostas ligadas a eles, como quente/frio, seco/úmido são as causas das
doenças, sendo a terapia a ser seguida escolhida em função de sua ação
antagonista ao elemento em desequilíbrio.
Dentre as várias correspondências entre a teoria humoral de
Hipócrates e o Ayurveda, podemos elencar, também, a importância
dos “ventos” no corpo humano para ambas as doutrinas médicas.
Tanto o Carakasamhitâ quanto o Suçrutasamhitâ, além de outro

16. HUARD,Pierre; BOSSY,Jean; MAZARS, Guy. Les médicines de l’Asie. Paris : Éditions du
Seuil,1978. p. 20-21.
17. Idem.
18. SERGENT, Bernard. Genèse de l’Inde. Paris: Payot & Rivages,1997.p.355-369.

48
tratado indiano chamado Bhelasamhitâ possuem teorias similares aos
tratados gregos sobre o pneuma, mais especificamente o Peri Phusôn,
atribuido à Hipócrates (século V a.C)19. Se compararmos os textos
médicos indianos e gregos aos escritos persas, é possível encontrar
outras correlações. Uma das teorias para estas correspondências
repousa na ideia, ainda bastante debatida, de origens comuns mais
antigas às três sociedades citadas20.
O Ayurveda influenciou dois importantes sistemas médicos no
Oriente: o Unani Tibb e a Medicina Tibetana. O primeiro sistema
médico foi desenvolvido entre os séculos IX e XIII da nossa era, através
dos árabes. Ibn Sina (980-1037) reuniu várias informações sobre a
natureza das doenças e o papel das plantas medicinais provenientes de
diferentes fontes, como a medicina grega e o Ayurveda, acrescentando
suas próprias observações na obra Canon Medicinae21. Com a invasão
da Pérsia e da Ásia Central pelos mongóis, muitos praticantes da
medicina Unani Tibb se estabeleceram na India, sendo esta medicina
ainda praticada em Bangladesh, Paquistão, Sri Lanka, Irã, China,
possuindo várias faculdades em território indiano.
A palavra unani significa “jônico”, indicando a influência grega
neste sistema médico, enquato que tibb significa “conhecimento dos
estados do corpo humano na saúde e na doença”22. De acordo com a
medicina Unani, o corpo humano é constituído por sete componentes
responsáveis pela saúde, sendo a doença o desequilibrio provocado
pelo estilo de vida ou por fatores sociais ou ambientais que cercam
o indivíduo. Destes, quatro são os elementos (terra, água, fogo e ar)
que constituem os quatro humores corporais e que correspondem aos
humores hipocráticos.
O Unani Tibb vê os sintomas da doença como uma oportunidade
de purificação e equilíbrio nos diferentes níveis: físico, mental,
emocional e espiritual. Seus agentes de cura seguem códigos éticos
baseados no islamismo e procuram orientar as pessoas que estão
sob seus cuidados de forma individualizada, isto é, respeitando as
características de cada tipo de organismo. Dentre as várias formas
de se obter o reequilíbrio, podem ser prescritas plantas medicinais,
19. Ibdem,p.357.
20. Ibdem, p. 367 e 369.
21. McINTIRE, Anne. Op. Cit. p.16.
22. Idem.

49
metais e pedras preciosas: várias são as ervas utilizadas que também
são aplicadas pelas medicinas ayurvédica e tibetana23.
Já a Medicina Tibetana tem suas raízes em quatro sistemas
médicos: o Ayurveda, a Medicina Hipocrática, a Medicina Chinesa e o
Unani Tib. Tradicionalmente, seu conhecimento é atribuido à Sangye
Menla, o Buda da Medicina e sua introdução no Tibete foi feita em
meados do séculoVII, no reinado de Songtsen Gampo, no mesmo
momento em que o budismo foi difundido no país. Seus aspectos
principais estão contidos no tratado conhecido como Quatro Tantras
da Medicina (Gyud Zhi), do século XII.24
A Medicina Tibetana baseia seus princípios na noção de tsog-
lung ou força vital, e na compreensão das três forças vitais internas do
corpo: lung (ventos), tripa (calor) e bekan (lubrificação), que também
formam os três tipos constitucionais básicos. Estas forças tem relação
com os cinco elementos formadores do universo (terra, água, fogo, ar e
espaço) e percorrem o corpo através de canais existentes no corpo sutil
, sendo que os pontos onde se cruzam são denominados chakras.25
São quatro as causas principais das doenças: alimentação,
comportamento, mudanças sazonais e o karma. A doença física
também é vista, dentro da filosofia budista, como resultado dos três
venenos da mente que são a ignorância, o apego e a aversão. Estes, por
sua vez, também são responsáveis por desiquilibrar as três forças vitais.
A alimentação é um fator decisivo para a boa saúde segundo a
Medicina Tibetana, que classifica os alimentos segundo seus benefícios
para lung, tripa e bekan. Outras terapias empregadas consistem na
moxabustão, aplicação de ventosas e no emprego de mais de duas
mil fórmulas feitas através da combinação de plantas medicinais.26 A
matéria médica tibetana deriva, atualmente, do livro Jingzhu Bencao
(As Ervas Pérola), publicado em 1835 e, segundo os tantras médicos,
tudo na terra tem potencial medicamentoso.27

23. Ibdem,p.18 e 19.


24. Ibdem,p.20.
25. FORDE, Ralph Quinlan. O livro da Medicina Tibetana. São Paulo: Pensamento,2008.p.10 e 11
26. Ibdem, p. 13.
27. Ibdem, p. 102.

50
Trabalhando com fonte histórica

DASH, Vaidya Bhagwan; KASHYAP, Vaidya Lalitesh. Materia Medica


of Ayurveda; based on Ayurveda Saukhyam of Todarānanda. New
Delhi: Concept Publishing Company, 1980.p.352.

Capítulo 22
Sabor doce
O sabor doce é promotor da visão, é um agradável afrodisíaco e é
nutritivo. Cura rakta pitta (uma doença caracterisada pelo sangramento
de diferentes partes do corpo). É rejuvenescedor, pesado, refrescante e
untuoso.
Sabor ácido
O sabor ácido é untuoso, quente, leve e calmante de vāyu e da
corrupção do sangue. Produz viscosidade. É penetrante e laxativo.
Reduz o sêmen, a constipação e a visão.
Sabor salgado
O sabor salgado é purgativo, promotor do poder digestivo, aperitivo,
untuoso, quente e pesado.
Sabor picante
O sabor picante é karsana (que elimina pela força), leve e quente. Cura
krmi (infecção parasitária) e reduz o sêmen assim como kapha. É um
aperitivo, estimulante da digestão, provocador de pitta, chedi (que tem
o poder de penetrar por incisão), penetrante e produtor de secura
(sosa).
Sabor amargo
O sabor amargo acalma kapha tanto assim como pitta. Cura visa
(envenenamento), viscosidade (kleda), kadu (prurido), kustha
(persistentes doenças de pele, incluindo lepra) e jvara (febre). É
refrescante, leve e seco (sosana). Cura krmi (infecção parasitária) e
estimula o poder da digestão.

51
Sabor adstringente
O sabor adstringente é seco, stambhana (que causa retenção),
constipativo, cicatrizante e pidana (que causa dor). Acalma kapha, o
sangue e pitta. É refrescante e pesado.

Assim acaba a sessão dedicada aos atributos dos seis sabores.

Curcuma longa

52
53
3. Medicina na China antiga e o uso de plantas medicinais
Luis Fernando Bernardi Junqueira

A civilização chinesa, durante mais de três mil anos, desenvolveu uma


abundância de informações sobre o uso de substâncias naturais e substâncias
criadas pelos seres humanos para usos terapêuticos. Hoje esse conhecimento
continua vivo não apenas na China, mas em diversas partes do mundo, mesmo
com a introdução e o desenvolvimento da moderna farmacopeia biomédica
há mais de um século atrás. Imuneráveis médicos chineses continuam
prescrevendo medicamentos baseados em fórmulas que foram elaboradas há
muitos séculos, senão milênios1.
Em paralelo a uma viva tradição de mestre-aprendiz em relação aos
cuidados com a saúde que remota há milênios, um grande número de fontes
médicas persiste ainda hoje como a base da medicina chinesa, inclusive nos
próprios cursos de Medicina Tradicional Chinesa na China. Contudo, as
informações coletadas e publicadas nas farmacopeias chinesas representam
apenas uma fração desta modalidade terapêutica. Indivíduos que escreveram
e compilaram livros sobre fármacos escolheram entre focar no estudo de
apenas uma droga individual, ou descrever os usos de milhares de ervas,
minerais e animais. Como membros de uma elite letrada, variava de indivíduo
para indivíduo seus contatos com a farmacoterapia: alguns autores parecem
ter extraído todo seu conhecimento através de fontes médicas mais antigas,
enquanto outros experenciavam todo tipo de sacrifícios para, durante décadas,
visitar diferentes regiões da China e conversar com camponeses, trabalhadores
e mestres em busca de coletar e acumular o melhor conhecimento possível
sobre dos usos das drogas e de suas propriedades terapêuticas.2
Farmacopeias eram trabalhos que pretendiam transmitir
conhecimentos sobre drogas individuais. Esse gênero se refere não apenas
a visões, obtidas por dedução teórica ou experiência prática, sobre o efeito
medicinal das drogas, mas também a descrições parciais ou completas sobre
os processos de cultivo, colheita e manufatura até atingir um estado de
aplicabilidade medicinal. Isso poderia envolver plantas, ou partes de plantas,
animais, ou parte de animais, minerais, produtos químicos, objetos cotidianos
e mesmo substâncias do corpo humano. Contudo, nem todas as farmacopeias
tratavam desses assuntos da mesma forma: havia trabalhos enciclopédicos
1. UNSCHULD, Paul U. Medicine in China: a History of Pharmaceutics. California: University of
California Press, 1986, p. 1.
2. Idem.

55
que dificilmente deixavam uma questão sem resposta, assim como trabalhos
especializados em apenas um único problema3.
Desde a dinastia Han há documentos que evidenciam oficiais da corte
e funcionários públicos especializados em pesquisar, escrever e compilar
farmacopeias, o que, logicamente, não significa que anterior a esse período
as pessoas não tivessem conhecimento sobre os medicamentos escritos.
Além disso, desde o século XI, durante a dinastia Song, até o século XIV, no
começo da dinastia Ming, existia um sistema de farmácias sob supervisão
governamental. Contudo, não podemos dizer que os grupos que praticavam
atividades farmacêuticas eram institucionalizados, organizados como uma
classe, ou mesmo considerados importantes por parte do governo. O médico
“profissional”, aquele que vendia seu conhecimento médico e habilidades por
dinheiro, não era socialmente bem visto na China pré-dinastia Qing (1644-
1911). Podemos dizer o mesmo sobre os especialistas em vender drogas,
considerados nada mais do que simples mercadores4.
A posição social dos grupos que praticavam medicina para sobreviver
não deve, contudo, nos levar a conclusões precipitadas como o descaso dos
chineses com respeito aos cuidados com a saúde. Pelo contrário, a hesitação da
sociedade chinesa tradicional em não estimular o crescimento desses grupos
como profissão estava provavelmente relacionada a política confucionista em
não permitir que nenhum indivíduo com algum conhecimento específico se
elevasse socialmente como um grupo, já que isso poderia levar a tensões, crises
e mesmo restruturação social. Além disso, era postulado que cada indivíduo
deveria possuir conhecimento médico suficiente, inclusive farmacoterápico,
para prestar ajuda a si próprio e a seus familiares.
A maioria das farmacopeias chinesas foi escrita e publicada por
cidadãos privados por meio de sua própria iniciativa. Isso poderia incluir
médicos práticos ou membros da família imperial. Tanto altos oficiais, que
tiveram oportunidade de se familiarizar com diferentes plantas, animais e
minerais ao longo de suas viagens por outros países e províncias, assim como
daoístas que viviam em isolamento, que escreviam seus insights e experiências
em como nutrir uma vida longa sem envelhecimento físico e mental, ambos
escreveram farmacopeias. Filhos escreviam os conselhos de suas mães,
autores publicavam textos críticos buscando revelar a verdadeira origem e
uso de algumas plantas. Esses autores vinham de qualquer nível social de

3. Ibidem, p. 2.
4. Ibidem, p. 4.

56
indivíduos aptos a escrever, e não conseguimos encontrar casos de trabalhos
criticados simplesmente por terem sido escritos por não-especialistas na área
médica: o trabalho com fármacos fazia parte da educação geral de todas as
pessoas, consequentemente todos poderiam ter autoridade para publicar
obras deste tipo5.
Apenas alguns poucos trabalhos sobre a farmacoterapia chinesa antiga
foram compilados e publicados por meio de decretos imperiais6. Contudo,
especialmente durante a dinastia Song (960-1279), passando pela dinastia
Ming (1368-1644) e a dinastia Qing (1644-1911), grandes comitês foram
reunidos com o objetivo de criar volumosas farmacopeias. Nelas, o leitor
poderia encontrar informações sobre as peculiaridades internas e externas
das drogas, assim como suas características individiduais, sua composição
original, seus lugares de origem, compatibilidade com outros medicamentos,
contraindicações, possibilidades de adulteração, critérios para reconhecer
sua genuidade, preparo e prescrições. Alguns desses trabalhos continham
amplo conhecimento teórico, enquanto que a maioria continha detalhadas
informações sobre indicações e o efeito das drogas. Entretanto, essas
volumosas obras costumavam servir muito mais como enciclopédias do que
dando uma assistência mais concreta à prática médica diária7.
Na China antiga, dificilmente algum aspecto relacionado ao
conhecimento farmacoterapico foi totalmente abandonado. Tampouco não
cabe aplicar uma noção de progresso, como da especulação à observação,
das crenças à verdade, em relação a medicina chinesa. A dinâmica do
pensamento chinês, exemplificado na medicina, foi caracterizada, primeiro,
pela emergência de um grande número de diferentes tradições filosóficas, e
segundo pela ausência de instituições que suportassem o desenvolvimento
de um conhecimento padronizado e aceito pela maioria dos médicos e
praticantes8.

5. Ibidem, p. 5.
6. Idem.
7. Ibidem, p. 6.
8. Ibidem, p. 7.

57
Grande número das farmacopeias eram ilustradas. Alguns trabalhos,
especialmente durante a dinastia Song, continham ilustrações bem precisas
e detalhadas, difíceis de distinguir das nossas atuais enciclopédias botânicas,
enquanto outros, como o famoso Ben Cao Gang Mu 本草綱目, continham
apenas esboços, pobres em relação às definições botânicas. Frequentemente,
um mesmo desenho continuava sendo reproduzido por séculos, mesmo se
ilustrações de melhor qualidade já tivessem sido feitas9.
A estrutura que prevalecia na organização dos fármacos nas
farmacopeias consistiram primeiramente na divisão de suas origens naturais:
plantas, animais e minerais. Contudo, algumas exceções como o Ben Jing 本
經 e o Ben Cao Qiu Zhen 本草求真, ambos da dinastia Tang, classificaram
os fármacos em uma divisão de três classes que correspondiam aos conceitos
macrocósmicos de Céu TIAN 天, Terra DI 地 e Ser Humano REN 人. Outra
forma de classificação, presente em outros trabalhos, foi a das coisas menores
para as maiores (águas, fogos, solos, metais, minerais, ervas, grãos, vegetais,
frutas e árvores), e as que ascendiam do baixo ao sublime (vermes, animais
com escamas, crustéceos, aves, quadrúpedes e o ser humano).10
O mítico imperador Shen Nong 神農 esteve relacionado, especialmente
durante a dinastia Zhou e Han quando foram escritas as primeiras literaturas
farmacêuticas que temos notícia hoje, à prática da farmacoterapia. O filósofo
Mengzi 孟子 (372-289 AEC) mencionou Shen Nong 神農 como o modelo
de um certo grupo social da época relacionado à agricultura e à vida simples,
enquanto o Livro das Mutações Yi Jing 易經, escrito aproximadamente no
mesmo período que Mengzi 孟子, afirmava Shen Nong 神農 ser o inventor
do arado e fundador dos mercados. Contudo, a primeira referência a este
legendário herói relacionando-o a prática farmacoterápica foi encontrada em
HUAINANZI 淮南子, filósofo com inclinação daoísta que viveu no século 2
AEC11:

As pessoas da antiguidade consumiam ervas e bebiam água. Eles colhiam


as frutas das árvores e comiam carne de moluscos. Eles frequentemente sofriam de
doenças e envenenamentos. Então, Shen Nong ensinou-as pela primeira vez como
semear os cinco tipos de grãos, e observar se a terra estava seca ou úmida, fértil ou
pedregosa, localizada nas montanhas ou nas planícies. Ele testou o sabor de todas as
ervas e examinou se elas eram doces ou amargas. Assim, ele informou as pessoas sobre
o que elas deveriam evitar e onde deveriam ir. Nesse tempo, Shen Nong encontrou em
9. Ibidem, p. 7.
10. Ibidem, p. 8.
11. Ibidem, p. 11.

58
um dia setenta [ervas, líquidos, animais, minerais...] com efeitos medicinais.12

Embora possamos constatar muitas diferenças entre as diversas obras


médicas escritas na China antiga, a teoria geral presente em todas elas era
muito semelhante. O HUÁNG DÌ NÈI JĪNG 黃帝內經, um dos livros mais
antigos e influentes na medicina chinesa, escrito e compilado no mesmo
período da criação das primeiras farmacopeias, pode nos exemplificar duas
teorias básicas da medicina chinesa e, especialmente, da farmacoterapia: a
teoria YĪN YÁNG 陰陽 e a teoria dos Cinco Movimentos WǓ XÍNG五行.

Os antigos naturalistas chineses estavam convencidos de que viviam


em um ambiente regido por bem compreendidas leis naturais. Essas leis se
expressavam em gerações, atividades, transformações e desintegrações de
todos os seres e todos os aspectos da natureza, assim como de suas interações.
Eles identificaram e classificaram essas leis por meio de uma dualidade, a
qual chamaram de YĪN YÁNG 陰陽, e por meio de uma quíntupla, a qual
chamaram de Cinco Movimentos WǓ XÍNG 五行, ambas refletindo
percepções complexas do ser humano em um mundo dinâmico.
Embora não se saibam exatamente suas origens, a teoria dos Cinco
Movimentos WǓ XÍNG 五行 teve grande desenvolvimento especialmente

12. Ibidem, p. 11.

59
com os autores confucionistas da Dinastia Han (206 AEC-221 DEC), como
DǑNG ZHÒNGSHŪ 董仲舒13. Segundo esta teoria, todas as coisas no
universo poderiam ser classificadas em Cinco Movimentos WǓ XÍNG 五行.
Através de seus ciclos de Geração SHĒNG 生 e Controle KÈ 克, as qualidades
e as correspondências dos Cinco Movimentos WǓ XÍNG 五行 associadas à
Madeira MÚ, ao Fogo HUǑ 火, à Terra TǓ 土, ao Metal JĪN 金 e à Água
SHU Ǐ 水 eram visualizadas operando na natureza, no corpo humano e
nas desarmonias14:

O Sul gera o calor; o calor gera o fogo; o fogo gera o sabor amargo; o sabor amargo
gera o Coração XĪN 心; o Coração XĪN 心 gera o Sangue XUÉ 血; o Sangue XUÉ 血
gera o Baço PÌ 脾; o Coração XĪN 心 é o mestre da língua.
No Céu TIĀN 天 é o calor; na Terra DÌ 地 é o fogo; no ser humano é a Rede de
Animação MÀI 脈.
Dentre os Depósitos ZÀNG 臟 é o Coração XĪN 心; dentre as cores é o vermelho;
dentre os tons é o zhi; dentre os sons é o riso; dentre os movimentos de reação às
mudanças é a ansiedade; dentre os orifícios é a língua; dentre os sabores é o amargo,
dentre os estados mentais é a alegria15.

A teoria YĪN YÁNG 陰陽 é tão antiga quanto a teoria dos Cinco


Movimentos WǓ XÍNG 五行. Basicamente, ela expressa a ideia de uma
dualidade não-absoluta que está em contínua relação, transformação,
mudança e ressonância mútua16. YĪN YÁNG 陰陽, como aspectos dualistas
interdependentes, compõe uma unidade dialética que permeia todas as coisas,
todos os processos e todas as transformações tanto no microcosmo como
no macrocosmo17. Desta forma, é possível classificar infinitamente todos
os fenômenos em YĪN YÁNG 陰陽, já que este conceito só pode ser usado
quando há uma relação, sendo impossível qualquer categorização absoluta –
coisas sendo apenas YĪN 陰 ou apenas YÁNG 陽. Como foi dito em GUǍN
ZǏ 管子, um texto do século III AEC:
13. UNSCHULD, Paul U. Huang Di Nei Jing Su Wen: nature, knowledge, imagery in an ancient
Chinese medical text. Berkley, Los Angeles: University of California, 2003, p. 84.
14. BARSTED, Dennis W. V. L. Cosmologia Daoísta e Medicina Chinesa. In: NASCIMENTO,
Marilene Cabral do. As duas faces da montanha: estudos sobre medicina chinesa e acupuntura. São
Paulo: Hucitec, 2006, p. 68-69.
15. SÙ WÈN 素問, cap. 5. In: UNSCHULD, Paul U. (trad). Huang Di Nei Jing Su Wen: an annotated
translation of Huang Di’s inner classic – Basic Questions. 2 v. Berkley, Los Angeles: University of
California, 2011, p. 107.
16. LA VALLÉE, Elisabeth Rochat de; LARRE, Claude. Yin Yang in Classical Texts. s/l: Monkey
Press, 2006, p. 2.
17. BARSTED, Dennis W. V. L.Op. Cit., p. 51-52.

60
[A sequência das estações] primavera, outono, inverno e verão reflete a alternância
de YĪN YÁNG 陰陽.
A duração das estações reflete as operações de YĪN YÁNG 陰陽.
A alternância do dia e da noite reflete as transformações de YĪN YÁNG 陰陽18.

As categorizações YĪN YÁNG 陰陽 não foram utilizadas apenas para


classificar o universo mais amplo e o ambiente em que os seres humanos
estavam inseridos, mas também os elementos morfológicos e fisiológicos do
organismo humano:

YĪN 陰 é tranquilidade, YÁNG 陽 é agitação.


YÁNG 陽 dá a vida, YĪN 陰 estimula o crescimento19.

O Céu TIĀN 天 é YÁNG 陽, a Terra DÌ é YĪN 陰.


O sol é YÁNG 陽, a lua é YĪN 陰20.

Aquilo que sai é YĪN 陰; aquilo que entra é YÁNG 陽.


Aquilo que está quieto é YĪN 陰; aquilo que se move é YÁNG 陽.
Aquilo que é retardado é YĪN 陰; aquilo que é acelerado é YÁNG 陽21.

18. GUǍN ZǏ 管子, cap. CHÉNG MǍ 管子乘馬. XIN YI GUAN ZI DU BEN, vol. 1, p. 70. In:
UNSCHULD, Paul U. (2003). Op. Cit, p. 85.
19. SÙ WÈN 素問, cap. 5. In: UNSCHULD, Paul U. (trad).Op.Cit, p. 95.
20. Ibidem, p. 127- 163.
21. Ibidem, p. 137.

61
Falando-se do YĪN 陰 e YÁNG 陽 de um ser humano, a parte de fora é YÁNG 陽, a
parte de dentro é YĪN 陰.
Falando-se do YĪN 陰 e YÁNG 陽 do corpo humano, as costas são YÁNG 陽, o
abdômen é YĪN 陰.
Falando-se do YĪN 陰 e YÁNG 陽 dentre os Depósitos ZÀNG 臟 e os Palácios FǓ
腑 do corpo humano, os Depósitos ZÀNG são YĪN 陰, os Palácios FǓ 腑 são YÁNG
陽22.

Nenhum dos Cinco Movimentos WǓ XÍNG 五行 ou dos aspectos


YĪN 陰 e YÁNG 陽 em particular expressavam juízo de valor: qualquer
aspecto em excesso era considerado prejudicial, pois assim se perdia a
harmonia com o DÀO 道, com a ordem da natureza.
E quais as relações entre essas teorias e a prática da farmacoterapia
chinesa? Para ambas, cada medicamento possuía certas características,
especialmente relacionadas a sua Natureza XING 性 (se este era YĪN 陰,
YÁNG 陽 ou ambos) e a seu Sabor WEI 味 (Picante XING 辛, Doce GAN 甘,
Azedo SUAN 酸, Amargo KU 苦 e Salgado XIAN 咸).
A determinação do sabor, antigamente, se obtinha atrás da degustação,
pois naquele período não se podia explicar o sabor dos medicamentos por
meio de seus componentes químicos. Além disso, embora geralmente se falem
de Cinco Sabores WU WEI 五味, isso não quer dizer que existam apenas
exatamente cinco deles, já que pode haver nuances entre eles e um mesmo
medicamento pode ter mais de um sabor, ter sabor discreto ou também ter
sabor adstringente23. Também é importante lembrar que o Sabor WEI 味 se
desenvolveu de modo a expressar as características dos medicamentos na
prática, não significando necessariamente o sabor obtido pela degustação24.
Cada um dos Cinco Sabores WU WEI 五味possuia certas características
específicas:

• Picante XIN 辛: dispensar, fazer fluir o QI 氣, ativar o Sangue XUE 血,


umedecer e nutrir.
• Doce GAN 甘: tonificar, harmonizar e aliviar cólicas.
• Azedo SUAN 酸: efeito adstringente e de retenção.
• Adstringente SE 澀: efeito semelhante ao sabor azedo.
22. Ibidem, p. 89.
23. GUANG, Jiang You. Curso de farmacoterapia tradicional chinesa. Trad. Li Shih Min. Florianó-
polis: Ipe/MTC, 1998, p. 33.
24. Ibidem, p. 32.

62
• Amargo KU 苦: redução, sedação, efeito de secar.
• Salgado XIAN 咸: amolecer, desfazer, causar diarreia.
• Discreto DAN 淡: remover umidade, promover diurese.25

Em relação a Natureza XING 性 dos medicamentos, elas também


podiam ser classificadas de diversas formas, como: Muito Quente (muito
YÁNG 陽), Quente RE 熱 (YÁNG 陽), Morna WEN 溫 (pouco YÁNG 陽),
Muito Fria (muito YĪN 陰), Fria HAN 寒 (YĪN 陰), Fresca LIANG 涼 (pouco
YĪN 陰) e Neutro PING 平 (nem YĪN 陰 nem YÁNG 陽 se destacam)26. A
ideia básica desta teoria era harmonizar o organismo geralmente por meio
de seu oposto, por exemplo, medicamentos de Natureza Fria ou Fresca
eram utilizados para reduzir ou eliminar síndromes relacionadas ao Calor,
enquanto medicamentos de Natureza Quente ou Morna eram utilizados para
síndromes de Frio. Algumas síndromes, contudo, poderiam apresentar tanto
Frio quanto Calor, e neste caso era necessário uma avaliação mais específica27.
Todos os medicamentos possuíam Sabor WEI 味 e Natureza XING 性
específicos, e essas duas caraterísticas deveriam sempre ser consideradas em
conjunto. Por exemplo, dois medicamentos de Natureza Quente RE XING 熱
性, mas com Sabor WEI 味diferentes, produziriam efeitos diferentes, assim
como dois medicamentos de Sabor Amargo KU WEI苦味, mas com Natureza
XING 性 diferentes, também apresentariam efeitos diferentes28.
Além disso, os medicamentos também possuíam diversas outras
caraterísticas como Local de Ação, Sentido de Ação, Suplementação ou
Redução e Toxidade, todos buscando estabelecer parâmetros mais objetivos
por meio da experimentação empírica29. Em diversos trabalhos sobre o uso
de drogas na China antiga era enfatizada a relação entre o mundo natural e
o sobrenatural, entre o visível e o invisível, ambos fazendo parte da mesma
realidade, como podemos ver no exemplo da droga BADOU 巴豆 (Fructus
crotonis) no trabalho SHEN NON BEN CAO JING 神農本草經 (c. 500 DEC)
escrito por TAO HONGJING (452-536 DEC):

BADOU 巴豆, sabor: picante; natureza: morno; morno em estado fresco, frio
quando é cozido; possui fortes efeitos medicinais. Controla problemas causados por
frio, febre intensa, acessos de frio e calor; desobstrui o intestino de diferentes maneiras;
25. Ibidem, p. 34-35.
26. Ibidem, p. 32-33.
27. Ibidem, p. 33.
28. Ibidem, p. 35.
29. Ibidem, p. 31-32.

63
estagnação de líquidos, congestionamento de muco, inchaço no abdmômen, edemas,
purga dos Cinco ZÁNG 臟 e dos Seis FÙ 腑; abre e rompe obstruções; deixa livre
o caminho para a água e os alimentos; remove a carne estragada; expele venenos
causados por demônios, remove possessões causados pelos Gu e outros maus; mata
vermes e peixes [...]30.

Em relação as plantas medicinais, eram necessários muitos cuidados


para garantir sua qualidade, desde o cultivo até a colheita, o armazenamento
e a produção das fórmulas. Geralmente eram usadas as plantas inteiras,
ou apenas as folhas, flores, pólens, frutos, sementes, raízes, caules e cascas
de árvores e de raízes, e como cada uma dessas partes possuíam fases de
desenvolvimento diversas. Em busca de se obter a melhor qualidade possível
de cada planta estas também possuíam estações e períodos do dia ou da noite
mais propícios para sua colheita. Sobre a secagem, algumas das formas mais
comuns eram ser secas ao sol, na sombra ou ao vento, e uma boa secagem
influenciava diretamente na qualidade das plantas armazenadas31.
O processamento, assim como a preparação e a utilização dos
medicamentos eram etapas também muito importantes. Uma mesma
planta processada de diversas maneiras apresentaria efeitos diferentes, e
este processamento poderia ocorrer para eliminar ou diminuir a toxidade
de algumas substâncias, sua potência e/ou efeitos colaterais, alterar suas
caraterísticas para se adequar às necessidades da doença, facilitar a preparação
e o armazenamento ou ainda eliminar as impurezas e os componentes não
medicamentosos. Por exemplo, a mesma droga BADOU 巴豆 (Fructus
crotonis) que possui efeito purgativo intenso poderia ser processada com
óleo para diminuir esse efeito. O modo de processar os medicamentos
eram variados, como por meio de depuração e limpeza, trituração, corte
em fatias, umedecimento, enxague, decantação, aquecimento com outros
líquidos, aquecimento ao rubro, aquecimento em cinza, cozimento a vapor,
germinação e fermentação32.
Os primeiros escritos chineses que chegaram até nós datam de cerca
de 1000 AEC e, durante esse tempo, milhares de documentos, especialmente
médicos, foram produzidos. Contudo, a história chinesa é ainda mais longa
do que esses registros, e devido especialmente a arqueologia, conseguimos
ir ainda mais longe nos estudos sobre os cuidados com a saúde nos tempos

30. UNSCHUL, Paul U.Op.Cit., p. 40.


31. GUANG, Jiang You. Op.Cit., p. 25-29.
32. Ibidem, p. 77-83.

64
antigos (dinastias pré-Han). Assim, seria impossível, nesse trabalho, escrever
sobre todas essas fontes que chegaram até nós, por isso citarei algumas apenas
a nível de exemplo.
Os escritos farmacológicos mais antigos que temos notícia são da
dinastia Zhou do Oeste (1066-771 AEC), onde foram registradas alguns
preparados em forma de decocção e bebida alcóolica33. Durante a dinastia
Han tardia foi compilado, provavelmente por diversos autores, vários SHEN
NONG BEN CAO JING 神農本草經, compostos por 365 drogas divididas
em: medicamentos superiores, medicamentos medianos a medicamentos
inferiores34.
Na metade do século VII, durante a dinastia Tang, o imperador chinês
encarregou SU JING de escrever o XIN XIU BEN CAO 新修本草, livro que
continha 844 tipos de medicamentos nacionais e importados, especialmente
da Índia e de reinos árabes. Nele também havia ilustrações dos medicamentos
com legenda, e embora estas tenham se perdido em cerca do ano 1050, outras
fontes sugerem que elas eram coloridas35.
Outra obra de extrema importância para a medicina chinesa, e até hoje
considerada uma das maiores autoridades sobre farmacologia chinesa, foi o
BEN CAO GANG MU 本草綱目, escrito por LI SHIZHEN 李時珍 em entre
1547-1580 e publicado em 1596. LI SHIZHEN 李時珍 passou mais de 35
anos viajando pela China em busca de organizar, estudar e registrar os usos de
mais de 1898 medicamentos por diferentes pessoas, citou 952 autores prévios
a ele, com ajuda de seu filho desenhou 1160 ilustrações coloridas, resultando
em um trabalho colossal com mais de 11000 prescrições e informações em
52 volumes36.
Após a Guerra do Ópio (1840-1842) e diversas crises políticas e morais
na China durante o século XIX e início do XX, ocorreu o enfraquecimento
do Estado imperial chinês e uma valorização cultural estrangeira que levou
à estagnação e à desvalorização da Medicina Chinesa. Contudo, após 1949
se iniciou sua reorganização e padronização por meio da criação de escolas
médicas chinesas, e os estudos e publicações referentes a farmacologia chinesa
tem sido cada vez mais estimulados.
Por fim, embora no Ocidente geralmente tratemos a Medicina

33. GUANG, Jiang You.Op.Cit., p. 20.


34. UNSCHULD, Paul U.,Op.Cit., p. 19.
35. Ibidem, p. 48. GUANG, Jiang You.Op. Cit., p. 21.
36. Ibdem, p. 147-149.

65
Chinesa como algo homogêneo e padronizado, ela possui uma história de
milênios marcada, justamente, pela riqueza e diversidade de pensamentos.
Conseguimos perceber essa diversidade mesmo nos autores ditos “oficiais”, ou
seja, aqueles que registraram seus escritos de alguma forma, mas se levarmos
em consideração apenas o número de etnias chinesas que existem hoje (mais
de noventa), com sua história e cultura particulares, a riqueza de informações
e usos sobre os fármacos é gigantesco. Assim, embora a indústria farmacêutica
ocidental esteja crescendo cada vez mais na China atual, a farmacoterapia
chinesa continua sendo o método terapêutico mais utilizado pela maioria
dos mais de um bilhão e quatrocentos milhões de chineses, além de estar se
espalhando rapidamente pelo mundo, inclusive no Brasil37.

37. Nos últimos anos a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) tem criado espaços
para discutir a regulamentação da Medicina Tradicional Chinesa no Brasil. Disponivel em :<http://
portal.anvisa.gov.br/wps/content/anvisa+portal/anvisa/sala+de+imprensa/menu++noticias+anos/2
013+noticias/anvisa+abre+consulta+publica+sobre+medicina+tradicional+chinesa>. Acesso em: 03
abr 2013.

66
BIBLIOGRAFIA
• BARSTED, Dennis W. V. L. Cosmologia Daoísta e Medicina Chinesa. In:
NASCIMENTO, Marilene Cabral do. As duas faces da montanha: estudos
sobre medicina chinesa e acupuntura. São Paulo: Hucitec, 2006.
• GUANG, Jiang You. Curso de farmacoterapia tradicional chinesa. Trad.
Li Shih Min. Florianópolis: Ipe/MTC, 1998.
• LA VALLÉE, Elisabeth Rochat de; LARRE, Claude. Yin Yang in Classical
Texts. s/l: Monkey Press, 2006.
• LOBOSCO, Magali. Fórmulas magistrais da dinastia Han. Rio de Janeiro:
Prol, 2008.
• Organização Mundial da Saúde (OMS). WHO International Standard
Terminologies on Traditional Medicine in the Western Pacific Region.
2007.
• UNSCHULD, Paul U. (trad). Huang Di Nei Jing Su Wen: an annotated
translation of Huang Di’s inner classic – Basic Questions. 2 v. Berkley, Los
Angeles: University of California, 2011.
• ______. Huang Di Nei Jing Su Wen: nature, knowledge, imagery in
an ancient Chinese medical text. Berkley, Los Angeles: University of
California, 2003.
• ______. Medicine in China: a History of Pharmaceutics. California:
University of California Press, 1986.

67
Para saber mais…
Luis Fernando Bernardi Junqueira

Para a utilização dos medicamentos chineses, especialmente


em fórmulas, alguns pontos deveriam ser muito bem analisados.
Antigamente, existiam sete aspectos para a combinação dos
medicamentos:
• Remédio único DAN XING 单行: utilização de um único
medicamento para o tratamento.
• Reforço mútuo XIANG XU 相须: combinação de medicamentos
com características e funções semelhantes.
• Assistência XIANG SHI 相使: entre medicamentos com funções e
características semelhantes, um é o principal e o outro é o auxiliar
que intensifica o efeito do principal.
• Restrição XIANG WEI 相畏: os efeitos tóxicos ou colaterais de
alguns medicamentos eram eliminados por meio de associações
com outros medicamentos.
• Desintoxicação XIANG SHA 相杀: um medicamento poderia
diminuir os efeitos colaterais e tóxicos de outro.
• Inibição XIANG WU 相恶: o uso de dois medicamentos que
poderia reduzir ou eliminar o efeito um do outro.
• Antagonismo XIANG FAN 相反: dois medicamentos que, quando
combinados, poderiam gerar efeitos tóxicos ou colaterais.38
Além disso, haviam proibições de combinação como as “19
restrições”, os “18 antagonismos”, proibições nas gestantes e proibições
alimentares durante o uso de certos medicamentos39.
Os medicamentos poderiam ser preparados de diversas formas
como, por exemplo:
• Decoto TANG JI 湯劑: medicamentos eram cozidos em água e era
bebida apenas a parte líquida.
• Pó SAN JI 散劑: trituravam-se ou moiam-se os medicamentos até
transformá-los em pó.
38. GUANG, Jiang You. Curso de farmacoterapia tradicional chinesa. Trad. Li Shih Min. Florianó-
polis: Ipe/MTC, 1998, p. 85-87.
39. Ibidem, p. 88-90.

68
• Pílula WAN JI 丸劑: aos medicamentos moídos acrescentavam-se
mel, água, pasta de arroz ou trigo para dar forma à pílula.
• Pasta GAO JI 膏劑: podia ser de uso interno ou externo e havia
diferentes modos de preparo como, após o cozimento dos
medicamentos, remover os resíduos e, com fogo baixo, acrescentar
mel ou açúcar até virar uma pasta.
• DAN JI 丹劑: medicamentos de depuração, poderiam ser utilizados
como pílulas, pó ou em pedaços.
• Bebida medicinal JIU JI 酒劑: os medicamentos eram depositados
em bebida alcóolica, e o processo poderia ocorrer a frio ou a quente.
• Xarope TANG JIANG 糖浆: os medicamentos eram processados
com açúcar.
• Comprimido PIAN JI 片劑: são extraídas substâncias ativas dos
medicamentos.
• Liofilizado CHONG JI 沖劑: grânulos feitos com extratos
medicinais (xarope ou decoto) e açúcar, para serem dissolvidos em
água antes de beber.
• Injetável ZHU SHE YE 注射液: uma preparação obtida por meio
de extração, concentração e formulação usada para injeção40.
Os medicamentos em forma de Comprimido PIAN JI 片
劑 e na forma Injetável ZHU SHE YE 注射液 são relativamente
recentes, embora se use da teoria médica chinesa para seu preparo
e administração. É importante lembrar que, ao contrário de outras
formas de medicina antigas que hoje não são mais utilizadas, a
medicina chinesa continua sendo o principal método terapêutico
na China, por isso sua transformação, assim como inovações na sua
prática, são imprescindíveis e necessárias.
A dosagem e a administração dos medicamentos variavam de
pessoa para pessoa. Deveria-se levar em conta, entre outras coisas, a
idade do indivíduo, sexo, a gravidade da doença, a estação do ano, o
ambiente e as características do medicamento. Por exemplo, em regiões
frias se poderia administrar uma dose maior de medicamentos que
serviam para aquecer; e no inverno, medicamentos de Natureza Fria
ou Fresca, usados para eliminar o Calor de Verão e o Fogo, deveriam
40. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). WHO International Standard Terminolo-
gies on Traditional Medicine in the Western Pacific Region. 2007, p. 265-267.

69
ser usados em doses menores41.
Os antigos chineses acumularam vasta experiência por meio
da prática e melhoraram suas conclusões teóricas estabelecendo
diversas regras para a elaboração de fórmulas, o estilo mais usado na
farmacoterapia chinesa. As fórmulas eram combinações de diversos
medicamentos, e geralmente apresentavam os seguintes componentes:
• Monarca JUN 君: o medicamento que provia o principal efeito
curativo em relação as síndromes principais ou sintomas primários.
• Ministro CHEN 臣: o medicamento que reforçava o efeito do
medicamento Monarca.
• Assistente ZUO 佐: o medicamento que ajudava a tratar o conjunto
das síndromes, controlava os efeitos colaterais ou toxidade do
Monarca ou o ajudava a tratar sintomas secundários.
• Guia SHI 使: o medicamento que dirigia a ação da fórmula até
o local da doença por meio dos Meridianos JING LUO 經絡,
ou que ajudava a regular os efeitos dos demais medicamentos,
harmonizando-os42.
Sobre a quantidade desses componentes em uma fórmula, não havia
regra rígida. Geralmente o Monarca era numericamente menor que os
outros componentes, mas uma única fórmula podia conter diversos
Monarca, Ministro, Assistente e Guia. Na fórmula MA HUANG TANG
麻黃湯 podemos ter uma ideia de como era organizada e qual o papel
de cada medicamento nela43:
• Monarca JUN 君: MA HUANG 麻黃 (Herba ephedrae); Sabor:
Picante; Natureza: Morno. Causa sudorese, alivia Síndrome da
Superfície, libera o QI 氣 do Pulmão e acalma a falta de ar.
• Ministro CHEN 臣: GUI ZHI 桂枝 (Ramulus cinnamomi cassiae);
Sabor: Picante e Adocicado; Natureza: Morno. Aquece os Meridianos
JING LUO 經絡 e relaxa os músculos. Quando combinada com
MA HUANG 麻黃 ela fortalece o efeito de sudorese e de dispersar
a Superfície, empurrando o fator patogênico para fora.
• Assistente ZUO 佐: XING REN 杏仁 (Semen pruni armeniacae);
41. Ibidem p. 99-101.
42. Ibidem, p. 103-104. OMS, 2007, p. 264.
43. LOBOSCO, Magali. Fórmulas magistrais da dinastia Han. Rio de Janeiro: Prol, 2008, p. 185-
187. GUANG, Jiang You, 1998, p. 104-105.

70
Sabor: Amargo; Natureza: Morno. Desbloqueando o fluxo de QI
氣 do Pulmão auxilia MA HUANG 麻黃 a melhorar a respiração e
expulsar o fator patogênico.
• Guia SHI 使: GAN CAO 甘草 (Radix glycyrrhizae uralensis torrada
no mel); Sabor: Adocicado; Natureza: Morno. Harmoniza a ação
das outras ervas e modera a ação diaforética de MA HUANG 麻
黃44.
Como podemos ver no exemplo acima, as fórmulas se preocupavam
com a combinação dos medicamentos, a fim de desenvolver uma
sinergia e aumentar o efeito terapêutico para alcançar um melhor
resultado. Assim, em uma formulação, ao se retirar ou acrescentar
outros medicamentos, ao alterar sua combinação, dosagem, e modo
de preparo, isso tudo poderia modificar função e limite de atuação dos
medicamentos45.

44. LOBOSCO, Magali. Op.Cit, p. 186. GUANG, Jiang You. Op.Cit., p. 104.
45. GUANG, Jiang You. Op. Cit., p. 105-108.

71
Trabalhando com fonte histórica

SÙ WÈN 素問, cap. 1. In: UNSCHULD, Paul U. (trad). Huang Di Nei


Jing Su Wen: an annotated translation of Huang Di’s inner classic –
Basic Questions. 2 v. Berkley, Los Angeles: University of California,
2011. p. 30.

Discurso sobre o QÌ verdadeiro dotado pelo Céu em tempos antigos


SHÀNG GǓ TIĀN ZHĒN 上古天真

Agora, ele [Huang Di] pergunta ao mestre celestial, Qi Bo:


“Eu ouvi dizer que as pessoas em tempos antigos, na sequência da
primavera e outono, todos excediam cem anos.
Mas seus movimentos e atividades não eram fracos.
Para as pessoas de hoje, depois de cem anos, seus movimentos e
atividades enfraquecem.
Isso é porque os tempos são diferentes?
Ou é porque as pessoas perderam essa habilidade?”

Qi Bo respondeu:
“As pessoas dos tempos antigos, aqueles que seguiam o DÀO 道, elas
organizavam seus comportamentos de acordo com YĪN YÁNG 陰陽 e
eram guiadas pelas artes e cálculos.
Sua alimentação e bebidas eram moderadas.
Elas se levantavam e dormiam com regularidade.
Elas não cansavam a si mesmos com trabalhos sem sentido.
Por isso eram capazes de manter aparência física e Espírito SHÉN 神
juntos, e exaurir os anos dados pelo Céu.
Seu período de vida excedia cem anos antes que elas partissem.
O fato de as pessoas de hoje serem diferentes é porque elas bebem
bebidas alcóolicas ordinariamente, e adotam comportamentos
absurdos como se fossem comuns.
Elas estão bêbadas quando entram nos quartos das mulheres.
Por meio de seu desejo, elas exaurem suas Essências JĪNG 精, por meio
do seu desperdício eles dissipam seu QÌ 氣 verdadeiro.
Elas não sabem como manter plenitude e ocupam seus Espíritos SHÈN

72
神 quando não é o tempo certo.
Elas fazem muitos esforços para satisfazerem seus Corações XĪN 心,
mas se opõe à verdadeira felicidade da vida.
Nas atividades e no descanso perdem suas condições.
Assim, apenas na metade de cem anos e elas já estão fracas.
[...]
[Sobre as pessoas sábias]
Por isso, a mente está relaxada e possui poucos desejos.
O Coração XĪN 心 está em paz e não sente medo.
A aparência física está em atividade, mas não está cansada.
[...]
Assim, elas consideravam sua comida deliciosa,
Aceitavam qualquer roupa, e apreciavam o comum.
Aqueles de altos e baixos níveis não possuíam diferença uns em relação
aos outros.
As pessoas, assim, eram chamadas Naturais.

UNSCHULD, Paul U. Medicine in China: history of pharmaceutics.


Berkley, Los Angeles: University of California, 1986, p. 11

HUÁINÁNZǏ 淮南子
[Sobre SHÉN NÓNG BĚN CǍO JĪNG 神農本草經]

As pessoas da antiguidade consumiam ervas e bebiam água. Eles


colhiam as frutas das árvores e comiam carne de moluscos. Eles
frequentemente sofriam de doenças e envenenamentos. Então, Shen
Nong ensinou-as pela primeira vez como semear os cinco tipos de
grãos, e observar se a terra estava seca ou úmida, fértil ou pedregosa,
localizada nas montanhas ou nas planícies. Ele testou o sabor de
todas as ervas e examinou se elas eram doces ou amargas. Assim, ele
informou as pessoas sobre o que elas deveriam evitar e onde deveriam
ir. Nesse tempo, Shen Nong encontrou em um dia setenta [ervas,
líquidos, animais, minerais...] com efeitos medicinais.

73
Achilea milleforium
4. Medicina, ervas e cultura na Grécia antiga
Beatriz Pereira Ribeiro e Júlia Pedrollo Albertoni

A antiguidade clássica viveu o florescimento do pensamento


racional num mundo até então explicado pelo universo mitológico, mágico
e sobrenatural. Novas ideias foram assimiladas pela cultura do período
numa dialética entre o mito e a razão, semeando o desenvolvimento de
conhecimentos como a filosofia, a política, as artes, a medicina e estruturas
de organização social, como as Cidades-Estados. O conhecimento herbalista
da Grécia Antiga vai circular nesse campo diverso de particularidades,
traduzido por médicos e filósofos, botânicos e curandeiros, entre as camadas
populares e elitizadas, em tratados hipocráticos e na literatura mitológica,
caracterizado pela experiência de ruptura do homem com seu antigo modo
de percepção do real, pois “quando o homem grego vivencia a experiência da
razão, ele sobrevaloriza a palavra “logos” e substitui as antigas representações
míticas, que balizavam seu modo de agir no mundo, por representações racio
nais.”1
Para entendermos as práticas herbalistas do mediterrâneo clássico,
precisamos compreender a cultura, a concepção de saúde e as práticas médicas
do homem grego. Para isso, sabemos que é possível em um mesmo contexto a
coexistência de homens com diversas características e personalidades, porém,
há costumes em comum da vida mediterrânea que valem ser destacados.
O mais relevante destes é a relação do homem com a natureza. O mundo
natural, para os gregos, era concebido como força vívida e dinâmica, próxima
do divino e do mundo humano; sendo assim, o homem se compreendia como
parte pertencente do mundo e não algo estranho a este. Como nos esclarece
Vernant: “Mas, para o grego, o mundo não é esse universo exterior coisificado,
separado do homem pela barreira intransponível que separa a matéria do
espírito, o físico do psíquico. O homem encontra-se em uma relação íntima
com o universo animado ao qual tudo liga.”2
Além disso, os deuses do politeísmo grego, diferentemente do deus
monoteísta, não eram vistos separados do mundo terreno e sim como criaturas
que nasceram dele e vivem por ele. Eram integrantes, como os humanos, do
cosmos. O sistema religioso politeísta tinha sua influência constante na vida
1. DINIZ, 2006, p.25, apud FONSECA. A “ciência das doenças” e “arte de curar”: trajetórias da
medicina hipocrática. Dissertação de Mestrado. UERJ, 2006. p. 7-8
2. VERNANT, Jean Pierre. Entre mito e política. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2009. p. 179.

75
diária, pois era no desenvolvimento das várias tarefas sociais que os homens
se relacionavam com os Deuses. O que nos traduz essas relações são os mitos,
integrantes da cultura pulsante dessa sociedade. Segundo Brandão os mitos
“(...) são a linguagem imagística dos princípios. Traduzem a origem de uma
instituição, de um hábito, a lógica de uma gesta, a economia de um encontro”3.
Vamos encontrar no universo mitológico a origem para diversas ações,
hábitos e práticas culturais gregas, como os rituais e cultos. Inclusive, faz-
nos compreender muito dos usos das plantas medicinais mais frequentes na
Grécia Antiga e a relação do homem grego com sua saúde.
Ao decorrer dos séculos, principalmente durante o séc V e VI a.C, os
mitos e a relação entre os homens e as divindades foram fonte de análise e
de crítica. Os membros letrados da sociedade grega buscaram desmitificar
muitos costumes, tendo como exemplo Demócrito (520-440 a.C) cujas
críticas eram de cunho racionalista. Contudo, a ruptura racional surge de
uma elite letrada: a mitologia permaneceu acesa nos imaginários dos gregos e
será influência de muitas práticas culturais futuras.
Mesmo que surgida seio da elite grega, a filosofia racional será
amadurecida e traduzida em diversas manifestações socioculturais, sendo a
medicina uma destas. O pensamento racional esclarece uma nova maneira de
conceber o papel do médico e a relação do homem com a saúde e a doença.
Como um dos pioneiros dessa concepção está a figura de Hipócrates de Cós,
nascido na segunda metade do século V a.C., cuja existência coincide com
a Guerra do Peloponeso e com a efervescência cultural de Atenas. Nessa
época, muitos médicos passaram a dar ênfase à especulações teóricas e a
procedimentos baseados na observação do doente e da doença, na busca
por explicações racionais e de instrumentos mais eficazes. Como está escrito
num dos textos antigos atribuídos à Hipócrates: “ As doenças tem uma causa
natural e não sobrenatural que podemos estudar e compreender”4e ainda:
“(...) rezar é uma boa coisa mas, mesmo invocando os deuses, é preciso ajudar
a si mesmo”5.
O movimento de dissociação da medicina das práticas mágico-
religiosas dos séculos anteriores teve seu início em meados de 500 a.C6. O
ápice da nova forma de conceber a medicina é sistematizada no Corpus
3. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega - Volume I. Editora Vozes, Petrópolis,1997. p 38.
4. BIRLOUEZ, Éric. La Santé Par L’alimentation. Paris: Ouest-France, 2013. p. 30.
5. Idem.
6. CAIRUS, Henrique, RIBEIRO, Wilson. Textos Hipocráticos: o doente, o médico e a doença.
Editora Fiocruz: Rio de Janeiro, 2005.p. 15.

76
Hippocraticum, uma coleção grega de 66 tratados que inspiraram a cultura
medicinal e seu desenvolvimento contemporâneo. Atribuiu-se aos textos,
num primeiro momento, a autoria de Hipócrates de Cós; porém, sabe-se
que foram desenvolvidos por diversos autores, inclusive discípulos do famoso
médico. Da vida de Hipócrates, pouco foi descoberto pelos historiadores:
segundo Sigerist “tudo o que sabemos com certeza sobre Hipócrates é que ele
viveu”7. Conclui-se que ele era também um filósofo, pois buscava a explicação
de um sistema global para o corpo humano, e, ainda, era um asclepíade, pois
fazia parte de uma comunidade de médicos ligados por laços familiares ou
profissionais.
Este termo vai adquirir, na Grécia Antiga, a conotação de “praticante
da medicina” e deriva de Asclépio, o herói-deus da medicina mais cultuado
de toda a Grécia8: “Apolo, na forma de um cisne, relacionou-se com Corônis,
uma mortal (...) dessa relação nasceu Asclépio, o deus na medicina que não
fazia parte do Panteão das divindades olímpicas”9. Asclépio teve duas filhas:
Higéia, deusa da saúde, e Panacéia, deusa da cura. Eram a esses três deuses
que a civilização grega recorria no caso de uma doença. E é justamente com
essa denominação mítica - de asclepíade - que o famoso Hipócrates de Cós
vai desenvolver sua medicina racionalista, que vai no sentido de romper com
a ideia de curas mágicas e divinas.
Podemos apontar importantes técnicas e conceitos desenvolvidos pela
medicina hipocrática que estão entrelaçados com o uso das plantas medicinais
no período. Primeiramente, o foco da medicina hipocrática era a prevenção
pois buscava-se, antes de mais nada, manter a boa saúde do homem e, em
último caso, reverter o estado de desequilíbrio do sistema físico ocasionado
por determinadas “doenças”.
Sendo assim, a medicina operava em três pilares: a cirurgia
(práticas como sangrias e purgações), a farmácia (muito diferente do tipo
de medicamentos de nosso tempo) e a dieta (que não se limitava apenas à
alimentação). O principal mecanismo de cura hipocrático era um regime em
sua totalidade, que envolvia uma dieta alimentar, exercícios físicos, massagens
e banhos, sangrias e purgações e ainda remédios à base de substâncias
vegetais, animais ou minerais. Muito diferente da concepção de regime que
temos atualmente, os médicos hipocráticos propunham para o paciente um
regime de vida personalizado, a fim de prevenir possíveis doenças e diminuir
7. Sigerist apud CAIRUS, Henrique, RIBEIRO, Wilson. Op. Cit., p. 24.
8. Ibidem. p. 16.
9. BRANDÃO, Junito de Souza. Op. Cit., p. 132.

77
determinados sintomas.
Além disso, os gregos desenvolveram um sistema global com vistas
a compreender o funcionamento do corpo humano, chamado de teoria dos
humores. Assim como os primeiros filósofos da Grécia identificaram a base da
matéria do mundo nos quatro elementos água, ar, terra e fogo, o corpo humano
possuía, para os médicos hipocráticos, quatro humores: o sangue, a fleuma,
a bílis negra e a bílis amarela. Os humores, além de estarem relacionados aos
elementos da matéria, também afetavam os temperamentos das pessoas. Por
exemplo, a melancolia viria do excesso de bile negra, enquanto a alegria, do
excesso de sangue.

A saúde era, portanto, o estado no qual estas substâncias estariam


numa proporção correta uma em relação a outra, tanto em força como
em quantidade. A doença apareceria quando uma destas substâncias era
deficitária, estava em excesso ou se encontrava separada no corpo e não
misturada com as outras. Para a manutenção do equilíbrio, a cura implicaria
num sistema de compensações avaliadas em função da estação do momento,
da dieta e do ambiente do enfermo. O sistema não era único, haviam diversas
formas de tratamentos, como indicado no trecho do Tratado “Da Natureza do
Homem”, texto original do Corpus Hipoccraticum:

Eu, de minha parte, digo que, se o homem fosse uma unidade, nunca sofreria.
(...) Se realmente sofre, é necessário que haja também um único medicamento. Mas
há muitos, pois há muitas substâncias no corpo, as quais, quando, contra a natureza,
mutuamente se esfriam e se esquentam, e se secam e se umedecem, geram doenças;
de tal modo que muitas são as formas de doença e seus tratamentos vários. (...)

78
Apresentarei provas e apontarei as necessidades graças às quais cada substância
aumenta e diminui dentro do corpo.10

Vale destacar, a partir deste trecho, a busca do autor pela sistematização


dos tratamentos através da observação do corpo humano, com a “apresentação
de provas”.
Outra característica da medicina racional mediterrânea é a perspectiva
de que o homem estava conectado ao seu ambiente externo. O microcosmos,
na forma do corpo humano, era ligado ao macrocosmo, o universo. Essa
característica evidencia influência e herança da cultura mitológica no que se
refere à conexão do homem com a natureza. Os autores Marcel Detienne e
Guilia Sissa, na obra “Os deuses gregos”, ponderam sobre a saúde, doença e a
relação com os deuses, e concluem que “a saúde dependeria principalmente
de como os homens governavam suas vidas. A higiene era, portanto, uma das
maiores preocupações médicas, nas quais uma série de prescrições dietéticas
de origem empírica visavam à manutenção da saúde. Contudo, eram definidas
ainda na margem de ideias mágicas e religiosas.”11
Na recuperação do equilíbrio corporal, os fármacos eram um dos
pilares da medicina hipocrática, administrados através da escolha minuciosa
de raízes, caules, frutos, folhas e flores das ervas existentes na região a partir
dos conhecimentos passados por gerações, seja pela cultura popular, seja pela
sistematização dos asclepíades. A Antiguidade estava distante da indústria
farmacêutica nos moldes que temos atualmente. As formas mais comuns de
utilização das ervas eram em chás, sucos e infusões, maceradas com vinho ou
mel, em óleos e na culinária.
Em uma de suas análises médicas, Hipócrates procurou auxiliar o
filósofo Demócrito, trocando diversas cartas com o mesmo e com personagens
relacionados a viagem que fazia a Abdera, na busca pela cura do filósofo.
Na Carta 16 da coleção “Sobre o riso da Loucura”, Hipócrates escreve para
Cratevas o “melhor dos coletores de raízes”:

Agora a necessidade exige que colhas plantas, tantas quantas fores capaz e que
depois as envies para mim, pois elas se destinam ao equilíbrio de um homem e de
uma cidade: a Demócrito e a Abdera. (...) O uso que fazes da botânica é realmente

10. POUZADOUX, Claude. Contos e lendas da mitologia grega. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001. p. 30.
11. DETIENNE, Marcel, SISSA, Giulia. Os deuses gregos. Companhia das Letras: São Paulo. 1990.
p.102.

79
espantoso, quando trata da natureza do todo, da disposição, do templo sagrado da
terra, a partir do qual os animais e as plantas crescem, onde nascem os fármacos, a
sorte e a própria riqueza. (...) agora tu coleta especialmente as plantas montanhosas
e dos lugares mais altos, elas são mais consistentes e mais fortes que as plantas das
margens aquosas, pela firmeza da terra e pala sutileza do ar, ao que devem maior
vivacidade. Mas não esqueças das plantas crescidas junto aos lagos, bem como das
plantas de junto dos rios, das fontes típicas de verão, que são fracas e sem vigor, mas
que, estou certo, contém um doce caldo. Traga-nos em recepientes de vidro todos os
caldos e sucos, e os caules, as flores e as raízes muito bem vedadas em copos novos de
cerâmica, para que não se percam as suas propriedades medicinais devido ao contato
com o ar, como uma alma que se esvai de um corpo (...).12

Percebemos nessa carta de Hipócrates, a existência da categoria social


dos coletores, botânicos da antiguidade clássica, entendidos dos saberes das
plantas. Também vemos a relação do conhecimento das plantas com o local as
quais eram colhidas, pois o ambiente influenciava a colheita, as propriedades
e os benefícios da erva para seus fins. Hipócrates tinha um repertório de 300
remédios que incluiam o alho, especialmente utilizado para o câncer uterino,
o cinamomo, o alcaçuz, utilizado como doce e como anti-inflamatório para
úlceras na boca e dores no peito, a menta, utilizada para problemas digestivos,
o alecrim, utilizado para melhorar deficiências de memória, todas as ervas
disponíveis na região mediterrânea.
A produção de óleos essenciais usualmente era com óleo de oliva, visto
que a oliveira é símbolo da agricultura mediterrânea. Os óleos mais usados
para limpeza tanto pessoal quanto de ambientes eram de rosa, manjerona
e basilisco13 pois sabe-se da importância da higiene para a medicina grega.
Além disso, as ervas aromáticas eram utilizadas para fins terapêuticos, tais
como o açafrão, gergelim e amêndoas. No século III a.C., Teofrasto escreverá
um tratado denominado “Sobre os Odores”, no qual são descritos os aromas
e propriedades das plantas medicinais de forma detalhada, sendo a base para
futuros estudos de perfumaria e botânica.
O reino vegetal entrelaça-se com a literatura grega. As ervas aparecem
em epopéias, poemas, peças de teatro, relatos de viagem, nas histórias
mitológicas, entre outros. Os mitos, raízes fundamentais da cultura grega,
trazem os elementos herbários de diversas formas, ora ocupando o papel
principal na narrativa, ora tendo influência na vida de um deus ou herói, ora
sendo utilizada com fins terapêuticos, como é o caso de inúmeras plantas
12. CAMPOS, Rogério. Sobre o Riso e A Loucura. São Paulo: Hedra, 2011.p. 45.
13. LOMAZZI, Giuliana. Aromaterapia. Blumenau : Ekos, 2006.p.8.

80
consideradas como as “ervas de Aquiles” utilizadas pelo herói durante a guerra
de Tróia. Uma dessas ervas é a aquiléia, em grego achilleios, chillea, achilleion,
achilleos, descrita em um dos mitos gregos como a planta que Aquiles utilizou
na flechada que levou na coxa, em seguida da invasão de Tróia quando, e
é identificada por Plínio, naturalista romano, em seu compêndido Naturalis
Historia.
Muitos textos antigos relacionaram também o louro, em grego
chamado de daphnê cujas folhas e raízes eram usadas em banhos, chás
e comidas, como a “árvore de Apolo”. Por isso, era a erva dos heróis e dos
vencedores das Olimpíadas gregas, simbolizado na confecção de coroas
com suas folhas dadas para os ganhadores dos jogos. Segundo tragédias de
Euripide como a Ion (v. 919-922) e a Hécube (v. 456-462) uma árvore de
loureiro testemunhou o nascimento de Apolo na ilha de Delos14. No entanto, é
no mito de Apolo e da Ninfa Dafne que o louro agrega importante significado:

Eros atirou no deus uma seta que fez nascer o amor e, na ninfa, uma que gerou
o sentimento oposto. Dafne rejeitou as investidas de Apolo e fugiu do deus, que foi
atrás dela. Quando ele achava que a estava alcançando, a ninfa escapava, e então
recomeçava a corrida. Dafne logo se cansou e, temendo não ter mais forças para
se esquivar do perseguidor, suplicou ao pai que a ajudasse. Peneu ouviu o apelo
desesperado da filha e lhe deus imediatamente outra aparência. No momento em que
Apolo ia enfim agarrá-la, encontrou um tronco de árvore rugoso e misturou seus
cachos castanhos às folhas escuras de loureiro: a moça havia perdido para sempre sua
forma humana. Com o coração partido, Apolo jurou amar eternamente aquela árvore,
com cujas folhas fez uma coroa, que pôs na cabeça. Foi assim que a coroa de louros se
tornou o símbolo de Apolo15.

O uso frequente das plantas medicinais maceradas com vinho lembra-


nos Dionísio, cujos mitos relacionam o seu convívio com os vinhedos
e a fabricação da bebida. Também uma forma muito comum de utilizar a
planta era junto ao óleo de oliva. A oliveira é mencionada em muitos mitos
e epopéias, como a de Ulisses, sendo o mais célebre entre eles o papel que a
árvore ocupou na disputa ente Atenas e Poseidon na dominação da região
macedônia. Para conquistar a região, cada um dos deuses deveria oferecer um
presente na Acrópole de Atenas. Poseidon fez brotar no local um mar salgado,
enquanto Atenas fez crescer uma linda e robusta oliveira, esta escolhida pelos
12 deuses do Olimpio como o mais belo presente, fazendo da oliveira a árvore
14. DUCOURTHIAL, Guy. Petite Flore Mithologique. Paris: Belin, 2014. p. 11.
15. Ibidem, p.16.

81
sagrada de Atenas16.
A importância da medicina hipocrática e do uso de plantas medicinais
na Grécia Antiga vai além dos limites de sua temporalidade. Um estudo
recente de 257 drogas em mais de 60 antigos tratados gregos ligados ao nome
de Hipócrates do Cós afirma que cerca de 90% se encontram nas descrições
modernas de drogas.17Além disso, a maior parte das usadas ao longo dos
tempos na medicina ocidental eram bem conhecidas do mundo grego-
romano. Apesar dos traços que a medicina ocidental contemporânea herdou
das práticas hipocráticas, há grandes diferenças nas concepções de saúde,
doença e relação do homem com seu ambiente.
Para Hipócrates e seus seguidores, o homem se encontrava num estado
de conexão permanente com a natureza e os diagnósticos eram realizados a
partir do entendimento dos seus hábitos, como dieta e modo de viver. Dessa
forma, o ser humano era compreendido em sua totalidade universal, parte
integrante do cosmos. Segundo Hipócrates, “a medicina é a arte de curar as
enfermidades por seus contrários. A arte de curar , é de seguir o caminho pelo
qual cura expontaneamente a natureza”18.
Essa visão vai ao encontro do imaginário social existente na sociedade
grega que também é representado nos mitos e se afasta da medicina aplicada
atualmente, mesmo que esta tenha determinado como seu patrono Hipócrates
de Cós. A tendência de racionalização das ciências na Antiguidade Clássica
vai proporcionar uma ruptura de pensamento, porém, como pudemos
perceber, a já enraizada cultura mitológica permanecerá ao longo do tempo
nas mentalidades da maioria da população, o que explica a continuidade
do uso dos saberes populares sobre plantas medicinais, os quais sustentam
muitas crenças nos poderes mágicos das ervas.
Como vemos, a história do herbalismo grego envolve fatores diversos,
como mitos, sistemas médicos, concepções de mundo, saberes e fazeres. Uma
mistura de histórias que merece a devida pesquisa por ter se desdobrado
numa das partes vivas da cultura médica contemporânea.

16. CAIRUS, Henrique, RIBEIRO, Wilson.Op. Cit.p.42.


17. CRELLIN, John. Herbalismo, a antiga tradição. In: PORTER, Roy (org.) Medicina: a História da
Cura. Lisboa: Centralivros,2002.p.72.
18. DUCOURTHIAL, Guy. Op. Cit.p.149

82
BIBLIOGRAFIA
• BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega - Volume I. Editora Vozes,
Petrópolis,1997.
• BIRLOUEZ, Éric. La Santé par L’alimentation. Paris: Ouest-France, 2013.
• CAIRUS, Henrique, RIBEIRO, Wilson. Textos Hipocráticos: o doente, o
médico e a doença. Editora Fiocruz: Rio de Janeiro, 2005.
• CAMPOS, Rogério. Sobre o Riso e A Loucura. São Paulo: Hedra, 2011.
• CRELLIN, John. Herbalismo, a antiga tradição. In: PORTER, Roy (org.)
Medicina: a História da Cura. Lisboa: Centralivros,2002.p.68-93.
• DETIENNE, Marcel, SISSA, Giulia. Os deuses gregos. Companhia das
Letras: São Paulo. 1990.
• DUCOURTHIAL, Guy. Petite Flore Mithologique. Paris: Belin, 2014.
• FONSECA. A “ciência das doenças” e “arte de curar”: trajetórias da
medicina hipocrática. Dissertação de Mestrado. UERJ, 2006.
• LOMAZZI, Giuliana. Aromaterapia. Blumenau : Ekos, 2006.
• POUZADOUX, Claude. Contos e lendas da mitologia grega. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
• VERNANT, Jean Pierre. Entre mito e política. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2009.

83
Para saber mais…
Adriano Luna de Oliveira Caetano
Beatriz Pereira Ribeiro e Júlia Pedrollo Albertoni

Os gregos, antes do nascimento do pensamento racional, viviam


“a mercê” dos deuses e das vontades divinas. O mundo em que eles
viviam tinham apenas uma explicação, a sagrada, tudo era origem
divina. Segundo Hesíodo, a noção que os gregos possuíam acerca do
mundo era:

(...) como um conjunto único, uno e múltiplo de teofanias. O mundo,


para os gregos hesiódicos, é um conjunto único de inesgotáveis aparições
divinas (teofanias); no entanto, é um mundo lógico, em termos míticos e na
lógica própria do pensamento mítico - um mundo real e perigoso, que se
deixa conhecer através das genealogias divinas, das linhagens e famílias de
Deuses ciosos de suas prerrogativas e vigilantes de que elas sejam observadas.
(Hesíodo, 1995, pag. 9)

Hesíodo expõe que o mundo grego possuía uma lógica sagrada,


diferente da lógica que surgiria séculos mais tarde. Os deuses gregos
eram responsáveis por todos os acontecimentos na Grécia e isso incluia
os assuntos relacionados à medicina. É importante ressaltar que neste
momento a medicina ainda não havia se constituído como um saber
racional, o que só ocorrerá por volta do século V a.C. Sobre a medicina
grega no tempo dos deuses, é necessário refletir sobre uma das doze
divindades do Olimpo, o deus Apolo.
Não é importante para esse texto uma análise mais profunda sobre
Apolo, mas sim observar a relação que ele estabeleceu entre o mundo
sagrado e o mundo profano. De acordo com Junito Brandão “Apolo,
na forma de um cisne, relacionou-se com Corônis, uma mortal (...)
dessa relação nasceu Asclépio, o deus na medicina que não fazia parte
do Panteão das divindades olímpicas.”19.A partir de Asclépio outras
duas deusas surgiram no cenário mitológico grego, são suas filhas
Higéia, deusa e saúde, e Panacéia, deusa da cura. Com essa “trindade”,
a civilização grega tinha a quem pedir socorro no caso de uma doença.
Neste contexto, as doenças eram causadas pelos deuses, isto é, a doença
19. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Volume 1. Editora Vozes: Petrópolis. 1997.p.132.

84
era sempre vista como um “castigo divino”.
Com a saúde humana sob “encargo” dos deuses os gregos, quando
adoeciam, buscavam os “médicos” que sempre faziam o diagnóstico
com base em premissas mágicas.
Mesmo possuindo o caráter religioso e mítico, a saúde dos gregos
dependia das atitudes realizadas por eles e também com a relação que
eles estabeleciam com a natureza. A natureza era o espaço por onde
os deuses do Olimpo se manifestavam; por isso, qualquer desarmonia
com este espaço era motivo para alguma doença, que por sua vez,
era sempre “enviada” por algum deus. As formas de tratar as doenças
eram variadas, cada caso tinha um tratamento, mas em todos os tipos,
é presente o uso das plantas medicinais.
Uma reflexão interessante a ser feita é acerca das plantas medicinais.
Segundo o culto de Higéia, a saúde do humano definhava quando
ele entrava em desarmonia com a natureza. A forma para tratar
as doenças, como já foi dito é através das plantas, e é por este viés
que a relação se torna lógica. As ervas medicinais são produzidas na
natureza, espaço de manifestação do sagrado, logo, a maneira para se
tratar alguma enfermidade é com algo que tem alguma relação direta
ou indiretamente com o Sagrado.
Ressalta-se, também, a importância da culinária para a medicina
hipocrática, vista pelos gregos como a arte de cuidar do corpo. Nos
textos de Platão, um dos seguidores das concepções de dieta da
medicina hipocrática, encontramos a arte da culinária como uma
das primeiras especializações humanas. A relação das ervas e dos
alimentos eram propostos nos tratamentos hipocráticos como parte
da teoria dos humores, pois a alimentação poderia ser quente ou fria,
seca ou úmida, de acordo com a natureza do alimento. Para curar o
excesso de sangue, quente e úmido, dever-se-ia introduzir na dieta do
indivíduo alimentos de natureza contrária, como frios e secos. Além
disso, a nutrição e os humores dedicados a cada alimento dependiam
também da faixa etária dos pacientes: por exemplo, crianças, segundo
os hipocráticos, possuíam a tendência de serem quentes e úmidas,
enquanto os jovens quentes e secos. Os alimentos ainda dependiam
das estações do ano e do clima local. Como descreve Hipócrates no
Corpus Hipoccraticum:

85
Durante o Inverno, deve comer tanto quanto possível, beber o menos
possível, podendo a bebida ser vinho, tão pouco diluído quanto possível. Pode
comer pão, a carne e o peixe serão assados, deverá comer durante o inverno
tão poucos legumes quanto possível. Um tal regime manterá o corpo quente e
seco. Durante o verão, em contrapartida, o regime compor-se-á essencialmente
de cereais moles, de carnes cozidas. Neste momento tomará maior quantidade
de vinho diluído, tendo sempre cuidado para que a mudança não seja rápida,
mas feita gradualmente (...) Tal regime é necessário durante o verão para que
o corpo fique fresco, porque a época quente e seca torna o corpo ardente.20

O conhecimento da origem dos alimentos também era um fator


importante na administração de uma dieta hipocrática. Aspectos
como clima, estação e forma de abatimento, por exemplo, de uma ave,
alterariam o humor para o qual o alimento era indicado. Para os médicos
da antiguidade, a ideia de cocção e de conhecimento da nutrição era
essencial para uma boa saúde. Uma das frases mais utilizadas pelos
movimentos de nutrição contemporânea é atribuída à Hipócrates de
Cós: “Deixe o alimento ser o medicamento e o medicamento ser o
alimento”21.

20. HIPÓCRATES. Aforismos. São Paulo: Martin Claret, 2003.p.8.


21. No geral, os autores do Corpus Hippocraticum deram poucos conselhos culinários, em com-
pensação, nos séculos que vieram, muitos médicos escreveram receitas e livros de culinária muito
famosos.

86
Trabalhando com fonte histórica

HIPOCRATES. Da natureza do Homem. In: CAIRUS, Henrique F.;


RIBEIRO JR, Wilson A. Textos Hipocráticos. O doente, o médico e a
doença. Rio de Janeiro: FIOCRUZ,2005
(...)as plantas criadas e semeadas,quando chegam à terra, cada uma delas tira
aquilo que estiver mais de acordo com a sua natureza no interior da terra,
ácida, amarga,doce, salgada e de todos os outros tipos.

HIPOCRATES. Sobre o riso e a loucura. (org.e trad. Por Rogério de


Campos).São Paulo: Hedra,2011.
[à Cratevas] (…) tu coletas especialmente as plantas montanhosas e dos
lugares mais altos, elas são mais consistentes e mais fortes que as plantas das
margens aquosas,pela firmeza da terra e pela sutileza do ar, ao que devem
maior vivacidade. Mas não te esqueças das plantas de junto dos rios,das fontes
típicas do verão, que são fracas e sem vigor,mas que,
estou certo, contém um doce caldo.

MEUNG, Odon de (Macer Floridus). Des


vertus des plantes.(trad. Louis Baudet).Paris:
Paleo, 2011.
A Erva-doce (Foeniculum)
A erva-doce, que os gregos chamam de marathon
tem, segundo os médicos, uma força de calor e
secura do segundo grau. Com o vinho, esta erva
se torna um antídoto contra todas as espécies de
venenos. As serpentes comem erva-doce para
clarear a visão, o que fez pensar que seu uso poderia
ser útil aos olhos do homem, e é o que a experiência
confirmou. O suco da raiz da erva-doce, misturado
com mel e empregado como fomentação (fricção),
clareia a visão e o suco de seus grãos verdes, secos
ao sol, é um específico excelente contra todas as
doenças dos olhos. O suco da planta, injetado no
ouvido, mata os vermes. Sua raiz cozida no chá de
cevada remedia as dores nos rins. Tomada como
vinho, dissipa o inchaço da hidropsia, neutralisa o
efeito das mordidas venenosas, remedia as afecções

87
dos pulmões e do fígado e torna o leite das mulheres mais abundante. Uma
decocção de raízes de erva-doce no vinho ou na água dá uma bebida que
remedia as doenças dos rins e da vesícula, é diurética, facilita a saída periódica
do sangue nas mulheres e, mesmo para obter este efeito, é suficiente aplicá-la
esmagada sobre o osso da púbis. Tomada com vinho, ela apazigua a náusea;
com água, as inflamações do estômago. Uma decocção da raiz da erva-doce
no vinho, empregada em fomentação, dissipa as afecções do membro viril.
Ela produz o mesmo efeito se a esfregamos após haver acrescentado óleo.
Misturada ao vinagre e aplicada sobre a parte doente, esta planta dissipa
imediatamente o inchaço causado por todas as espécies de contusões. Sua
semente no vinho dá uma bebida afrodisíaca. Uma decocção semelhante de
sua semente ou de suas folhas acalma as violentas dores de lado. Acredita-
se que esta erva tem a virtude de rejuvenescer as serpentes e que ela é, pelo
mesmo motivo, salutar aos idosos.

88
89
Mandragora officinalis
5. Plantas medicinais na Idade Média: o nascimento da
Farmácia
João Luiz Fernandes Borghezan

O uso das plantas como um remédio, pelo ser humano, é talvez tão
antigo quanto ele próprio. Cedo, as primeiras civilizações de todo o globo
perceberam que além de alimentar, algumas plantas auxiliavam na cura das
enfermidades que se abatiam sobre eles; todo esse conhecimento empírico
inicialmente foi passado, preservado e aumentado de forma oral à gerações
posteriores.1
Alguns afirmam que o primeiro relato escrito sobre as plantas e suas
propriedades medicinais é de autoria do Imperador chinês Sheng Wung,
outros alegam serem placas de barro onde se encontram copiados em
caracteres cuneiformes, a mando do rei assírio Ashurbanipal, documentos
suméricos e babilônicos que fazem referência ao uso de plantas para a cura
de doenças datando de aproximadamente 3000 a.C. Temos conhecimento
também de um tratado médico egípcio de 1500 a.C. onde são citadas plantas
como o tomilho, coentro, anis, alho, papoula; todos esses antigos documentos
comprovam o quão importante era a conservação e transmissão desse
conhecimento sobre as plantas para essas civilizações orientais e ocidentais.2
Antes de tratar da medicina e uso de plantas medicinais no Medievo,
precisamos falar um pouco sobre a formulação teórica de Hipócrates sobre
saúde e doença que vai influenciar todo o saber ocidental no campo da saúde
até o século XVIII. Para o médico grego, todas as substâncias terrestres
derivam de quatro elementos essenciais: água, terra, fogo e ar; sendo esses
elementos essenciais compostos por um par de qualidades primárias: quente
e seco, quente e úmido, frio e seco, frio e úmido. Todos os corpos, então,
são formados por quatro humores (que significa, etimologicamente, líquido
orgânico): a bílis que deriva do fogo (quente e seco), reside no homem na
vesícula biliar; o sangue deriva do ar (quente e úmido), encontra-se no homem
no fígado; a fleuma deriva da água (frio e úmido), reside nos pulmões; a bílis
negra (atrabílis) deriva da terra (frio e seco) reside no baço.
Nem todos os sujeitos são parecidos (em alguns o quente/calor aparece

1. PORTER, Roy (org). Medicina: a história da cura. Lisboa: Centralivros, 2002. p. 70.
2. CUNHA, António Proença. Aspectos históricos sobre plantas medicinais, seus constituintes
activos e fitoterapia. Disponível em: <http://www.esalq.usp.br/siesalq/pm/aspectos_historicos.pdf>
Acesso em: 22 ago. 2011.

91
em excesso, noutros o frio), contemplando essas variáveis, concebeu-se a
noção de cinco temperamentos: bilioso, sanguíneo, linfático, melancólico
e o temperamento misto. Os humores em equilíbrio (misturados em boa
proporção) era sinal de saúde, se um ou outro estava em excesso o sujeito
ficava doente. Para curar,o médico teria que “restaurar o equilíbrio”; para
tanto, teria que levar em consideração o temperamento do paciente, sua
alimentação, doenças anteriores, clima do país, um diagnóstico complexo e
que visava “localizar” a causa da doença para obter a cura.3
Muitos são os personagens da antiguidade presentes em vários
tratados e textos relativos à saúde na Idade Média, alguns desses nomes
influenciaram profundamente a maneira como pensamos plantas medicinais
e a medicina ainda hoje, como Dioscórides. Este nasceu em Anazarbo (atual
Turquia) no século I d.C; acompanhou as legiões romanas, provavelmente
como médico, pela Asia Menor, Itália, Grécia, Gália e Espanha, o que o
possibilitou escrever sua obra De materia medica, dividida em cinco livros
onde aparecem cerca de 600 plantas, 35 fármacos de origem animal e
90 de origem mineral. Dioscórides não seguiu nenhum escola, sua obra é
estritamente empírica,procurou desenvolver um método para observar e
classificar os fármacos testando-os clinicamente. Sua obra foi amplamente
traduzida, copiada, compilada e divulgada no período medieval, exercendo
grande influência até o século XVIII.
Galeno (129-200) nasceu em Pérgamo que, na época, era colônia de
Roma. Foi médico de gladiadores e também do filho do imperador Marco
Aurélio, Cómodo. Galeno sistematizou a teoria hipocrática, dando a ela
um sentido ainda mais racional, sendo ele também quem vai enfatizar a
necessidade de se classificar os medicamentos, para assim utiliza-los de
acordo com as propriedades opostas às causas da doença que atingia o
indivíduo de maneira mais acertada. Assim, “o temperamento das crianças
seria mais sanguíneo e o dos idosos mais fleumático, pelo que os primeiros
necessitariam de um medicamento frio em maior grau que os últimos para
o tratamento de uma febre.”4Foram importantes os trabalhos de vivissecção
de Galeno e seus tratados sobre anatomia, mesmo este utilizando na maioria
das vezes, animais para seus estudos, visto que era proibido a dissecação de

3. MICHEAU, Françoise. A idade de ouro da medicina árabe. In: LE GOFF, Jacques (org). As
Doenças tem história. Lisboa: Terramar, s.d.. p. 61-63.
4. DIAS, José Pedro Souza. A Farmácia e a História: Uma introdução à História da Farmácia, da
Farmacologia e da Terapêutica. Disponível em: <http://www.ff.ul.pt/paginas/jpsdias/histsocfarm/
Farmacia-e-Historia.pdf> Acesso em: 16 ago. 2011.

92
humanos.5
Por volta do século V de nossa era, acontece a dispersão dos povos
germânicos e uma crise interna no Império Romano provoca o colapso
do mesmo – ao menos sua parte ocidental. Numa Europa dominada pelos
dogmas da Igreja, a crença na cura pela fé e relíquias religiosas ganha força.
Porém, mesmo a hegemonia dos ritos católicos na Europa medieval não
impediu os camponeses de continuarem a cultuar deuses pagãos; camponeses,
mas principalmente camponesas, exerciam prática de “curandeirismo”
que muitas vezes eram ditas demoníacas, e a mulher então era taxada de
feiticeira, principalmente por quem seguia os ditames da Igreja. É curioso
notar que nem sempre essas práticas eram consideradas nocivas ou estando
relacionadas com o diabo. Em muitos casos, se as curandeiras obtivessem
êxito na cura de uma pessoa eram tratadas como mulheres sábias e, como
tal, eram importantes para a sociedade, principalmente para a boa parte da
população que não tinha acesso aos médicos doutos que atendiam os prelados
e nobres. Essas mulheres possuíam uma certa influência entre a população o
que incomodava a Igreja que as perseguia por meio da Santa Inquisição.
Porém, havia um lugar onde esses saberes de cura não sofriam
perseguição nem suspeitas de serem demoníacos. Os mosteiros foram
instituições de grande importância, pois dentro de seus muros guardava-se
boa parte do conhecimento escrito, livros, manuscritos, tratados entre outros.
Ali se concentravam boa parte das pessoas alfabetizadas da época, os monges,
que trabalhavam para adquirir e preservar a sabedoria dos antigos. Nestes
espaços, os monges ficavam encarregados de traduzir e copiar boa parte das
obras da antiguidade clássica como as de Hipócrates, Dioscórides, Galeno e
outros.
Entretanto, não era só dentro dos monastérios que a matéria médica
tinha espaço. Os jardins dos mosteiros eram usados para plantar uma gama
imensa de plantas medicinais para que os monges pudessem pôr em prática
muito do que aprendiam nas bibliotecas, formulando técnicas e novas receitas
para melhor tratar as doenças de seu tempo. É, também, pela comunicação
existente entre esses mosteiros que se estendiam do sul ao norte da Europa,
que plantas do mediterrâneo atravessam os Alpes chegando, assim, a lugares
distantes.
Também é interessante observar a importância que tiveram os árabes
para a preservação e crítica dos conhecimentos médicos que circulavam
5. Idem.

93
na Europa medieval. Com a expansão do Islão – fundado por Muhammad
por volta de 610-613 – eles foram responsáveis por “guardar” e difundir o
conhecimento filosófico, matemático, astronômico, médico, enfim, de todas
as áreas do saber antigo greco-romano, assim como escritos orientais da
Índia, China e Pérsia.
A importância dos povos árabes para a difusão dos saberes greco-
romanos entre os séculos VII-XIII não se dá somente por preservarem saberes
mas também por ampliarem a gama de conhecimento com contribuições
originais, técnicas de observação médicas e experimentos que, mais tarde,
permitirão o desenvolvimento da farmacologia moderna e as interpretações
e reformulações de textos clássicos. Essa “redescoberta” dos saberes greco-
romanos principalmente, só foi possível por uma característica peculiar do
califado islamita: a medida que iam subjugando outros povos não destruíam
sua cultura, incorporavam-nas adaptando aos preceitos da fé islâmica e,
muitas vezes, permitiam até mesmo o culto de outra religião em seu território.
Assim:

As trocas culturais e científicas entre Oriente árabe e Ocidente cristão tiveram


lugar nas regiões que conheceram sucessivamente uma ocupação muçulmana
duradoura e uma reconquista cristã: a Sicília e a Itália do Sul, a Espanha, sobretudo.
É aí que, graças às numerosas traduções de obras filosóficas e científicas de árabe
em latim, o Ocidente redescobriu a herança antiga, até então conservada em trechos
esparsos, enriqueceu-se com métodos e técnicas novos, encontrou as bases de um
desenvolvimento intelectual decisivo.6

Nesse contexto, surgem nomes como Avicena (Ibn Sina, 980 - 1037)
que morreu na Pérsia e possuía quase 270 escritos versando sobre filosofia e
ciência. Seu Canon (al-Qanun) foi o mais famoso e difundido trabalho, onde
a parte farmacêutica encontra-se nos livros II e V. Outro nome árabe com
bastante influência na medicina medieval foi Abulcassis (936 - 1013). Al-
Zahrawi, Abu’l-Qasim Khalaf ibn ’Abbas, nasceu e viveu em alZahra, perto
de Córdoba, no período de maior florescimento intelectual da Andaluzia.
Abulcassis exerceu medicina, farmácia, cirurgia, e escreveu uma enciclopédia
médica com trinta tratados abrangendo farmácia, química farmacêutica e
cosmética, matéria médica que enriquecem esse campo do saber descrevendo
a fauna e flora ibéricas e trata da preparação e purificação de várias substâncias
químicas medicinais.

6. MICHEAU, Françoise. Op. Cit. p. 69.

94
Abaixo, citarei algumas plantas que vêm sendo usadas para tratamento
medicinal desde a antiguidade clássica, sendo amplamente divulgadas no
período medieval e chegando até nossos dias. Nota-se que as informações
que serão expostas aqui são atuais, fazendo parte do arsenal do conhecimento
contemporâneo sobre plantas medicinais:
Erva-doce (Foeniculum vulgare); suas sementes guardam as maiores
propriedades medicinais, embora sua folha são também utilizadas na medicina
popular. Os usos mais tradicionais são: cólica, diabetes, náuseas, soluços,
pedras nos rins, dor de estômago, febre, gases, obesidade, reumatismo, entre
outros. Há relatos de que, durante a Idade Média, as sementes do funcho eram
mastigadas durante os longos sermões na igreja e nos períodos de jejum para
disfarçar a fome.7
Coentro (Coriandrum sativum); utilizado para cãibras, cistite,
colesterol alto, dor de dente, sarampo, indigestão, conjuntivite, cólica,
enxaqueca. Possui propriedades antibacteriana, antifúngica etc. O coriandro
é um dos mais antigos temperos.8
Cominho (Cuminum cyminum); seus usos comuns são para
celulite, cólica, tosse, inchaços, diarréia, contusões. O cominho é nativo do
mediterrâneo, na tradição indiana é utilizado com outras plantas para a cólica
infantil.9
Sálvia (Salvia officinallis L.); é comumente utilizada para amigdalite,
asma, caspa, congestão, febre, diabetes, reumatismo, menopausa, laringite,
insônia, gripe, dor de garganta. Quando crescia nos jardins medievais, era
um sinal de boa sorte; seu nome deriva da expressão em latim salvere que
significa “estar com boa saúde”.10
Plantas como a sálvia, cominho, alecrim, erva-doce, mostarda, pepino,
beterraba, hortaliças e até mesmo árvores frutíferas como a macieira, figueira,
aparecem em um documento emitido por Carlos Magno, primeiro imperador
do Sacro Império Romano, coroado em 800 pelo Papa Leão III, denominado
De Villis. Este tratado serviu como guia para os jardins imperiais, incluindo os
dos mosteiros e nele encontram-se listadas 94 plantas medicinais, aromáticas
e alimentares que deveriam ser cultivadas em todo o território do Império.11
7. Plantas medicinais, Ervas e Fitoterapia. Disponível em:<http://www.plantasmedicinaisefitotera-
pia.com/> Acesso em: 22 ago. 2011.
8. Idem.
9. Idem.
10. Idem.
11. LAIS, Erika. L’ABCdaire des plantes aromatiques et médicinales. Paris: Flammanrion, 2001.

95
Importantes nomes da medicina herbária no período medieval são
Cassiodoro e Hildegard von Bingen. Cassiodoro (480 – 575) fundou uma
escola de medicina monástica onde foram traduzidos vários textos clássicos,
estimulou os religiosos a estudar a terapêutica pelas plantas medicinais e
escreveu um texto enciclopédico de história natural.
Hildegard von Bingen nasceu na Alemanha em 1098 e foi uma monja
beneditina (os monges beneditinos davam muita importância a matéria
médica, influenciados por Cassiodoro) muito proeminente em seu tempo,
chegando a fundar um mosteiro na Alemanha. Hildegard entendia o ser
humano como tendo um papel importante na ordem do mundo e enfatizava
sua indissolúvel relação com a natureza. Seu conhecimento das obras
de Hipócrates e Galeno se revela na importância dada a alimentação e ao
ambiente no tratamento da doença, que era vista como um desequilíbrio na
integração criador, natureza e criatura.
Hildegard “tratou com sucesso de casos de febre, epilepsia, laringite,
depressão, ansiedade, tumores, problemas de pele e de olhos entre outros”12e se
destacava, principalmente, no tratamento de doenças de cunho ginecológico.
Para aqueles que precisavam conter os impulsos sexuais, a monja sugeria:
“Se o homem quer apagar em si os ardores e o prazer da carne, é necessário
que colha, no verão,uma parte de aneto, duas partes de menta aquática, um
pouco mais de purgo, da raiz de Iris de Iliria: que ele coloque tudo dentro do
vinagre e faça um condimento que ele comerá frequentemente com todos os
seus alimentos”13
Para as mulheres menstruadas, receitava a camomila (Matricaria
chamomilla) que “prepara doce e tranquilamente a expulsão dos humores
fétidos e facilita a saída das regras”14. Esta planta também era receitada para
problemas intestinais, indicando-se “cozinhar a camomila na água, com
gordura ou óleo; acrescentar a flor da farinha; preparar ,assim, um mingau
que comemos e que cura os intestinos”15.
A compreensão de Hildegard sobre a relação entre os humores
hipocráticos e as plantas medicinais pode ser observada nesta receita que
emprega a melissa (Melissa officinalis): “ A melissa é quente e o homem que a
p.35
12. ALMEIDA, C. C. Do mosteiro à universidade: considerações sobre uma história social da medi-
cina na Idade Média. Revista Aedos, v. 2, 2009.p 42.
13. LAIS, Erika. Op. Cit., p. 24.
14. Ibdem. p. 64-65.
15. Idem.

96
consome gosta de rir (é alegre) porque seu calor se comunica com o baço (um
órgão frio), o que alegra o coração”16. Notamos, em suas receitas, a importância
da dieta para a cura das enfermidades bem como a influência que o ambiente
e as estações do ano exercem sobre o tratamento do doente, pensamento que
em muito se alimenta das formulações de Hipócrates, Galeno da medicina
muçulmana.
Outros personagens são importantes de identificar na sociedade
medieval. Os herboristas eram comerciantes itinerantes que, se beneficiando
da circulação no Mediterrâneo de produtos oriundos do Oriente,
comercializavam especiarias e preparados medicinais de origem animal,
vegetal e mineral. Plantas como o gengibre, ruibarbo de origem oriental,
chegam à Europa por meio dessas rotas abertas para o comércio de especiarias
e o herborista possuiu, muito provavelmente, um papel fundamental na
difusão destes produtos e suas qualidades medicinais.
Ao longo do tempo, estes comerciantes foram gradativamente
especializando-se na preparação técnica e na fabricação dos medicamentos,
ao mesmo tempo em que perderam a característica nômade. Os comerciantes
de ervas abriam armazéns onde estudavam a manipulação e aplicação dos
medicamentos e vendiam seus preparados; estes estabelecimentos podem
ser considerados as primeiras boticas ou farmácias e seus profissionais se
organizaram em guildas por volta dos séculos XI e inicio do XII.
Concomitante a esse fenômeno, são fundadas na Europa escolas
laicas de medicina ou universidades.Além de formação em Medicina,
estas instituições ofereciam ensino em Direito e Teologia e no, princípio,
mantinham estreita ligação com os mosteiros. Uma importante escola desse
tipo foi a escola de Salerno que surge nos séculos XI e XXII e cuja principal
contribuição foi a tradução de muitos textos árabes sobre medicina, farmácia,
botânica, contribuindo assim para o aprimoramento do conhecimento
medicinal. As profissões em saúde sofrem grande extratificação neste
momento, tendo os médicos ou físicos um ensino mais teórico ao mesmo
tempo em que cirurgiões e barbeiros possuem um treinamento mais prático.17
De maneira geral, a Idade Média viveu uma hegemonia da teoria
hipocrática e das ideias de Galeno sobre o tratamento dos doentes,
preparação e aplicação de medicamentos e uma normatização da medicina.

16. Ibdem. p. 66.


17. SAUNIER, A vida quotidiana nos hospitais da Idade Média. In: . In: LE GOFF, Jacques (org). As
Doenças tem história. Lisboa: Terramar, s.d.p.205-220.

97
Paralelamente, conhecimento popular e o manuseio empírico com plantas
medicinais e cirurgias foram marginalizados, porém nunca esquecidos ou
extintos. Mesmo hoje conseguimos perceber uma aproximação relativamente
grande entre saber popular e saber “acadêmico”, pois para estudar de maneira
mais técnica, científica as propriedades medicinais de uma planta, é necessário
recorrer aos conhecimentos empíricos populares.
O impulso, nas últimas décadas, em voltarmos nossa atenção às
plantas medicinais talvez seja resultado de uma busca - necessidade para
alguns – por terapias menos traumáticas, menos agressivas para o tratamento
de algumas doenças; um certo tipo de negação, desconforto, questionamento
a um estilo de vida caótico e que foge ao controle do indivíduo e que leva
o sujeito a uma busca por um conhecimento maior sobre si mesmo, suas
capacidades e limites, um anseio por autonomia e por repensar a relação ser
humano e natureza.

98
BIBLIOGRAFIA
• A Farmácia e a História: Uma introdução à História da Farmácia, da
Farmacologia e da Terapêutica. Disponível em: <http://www.ff.ul.pt/
paginas/jpsdias/histsocfarm/Farmacia-e-Historia.pdf> Acesso em: 16 ago.
2011.
• ALMEIDA, C. C. Do mosteiro à universidade: considerações sobre uma
história social da medicina na Idade Média. Revista Aedos, v. 2, p. 36-55,
2009
• CUNHA, António Proença. Aspectos históricos sobre plantas medicinais,
seus constituintes activos e fitoterapia. Disponível em: <http://www.
esalq.usp.br/siesalq/pm/aspectos_historicos.pdf> Acesso em: 22 ago. 2011.
• DERMAN, Peter. O Mundo Muçulmano. 2. ed; São Paulo: Contexto;
2008.
• FELIPPE, Gil. ZAIDAN, Lilian Penteado. Do Eden ao Eden: jardins
botânicos e a aventura das plantas. São Paulo: Senac 2008.
• GIORDANI, Mário Curtis. História do Mundo Árabe Medieval.
Petrópolis: Vozes 1985.
• LAIS, Erika. L’ABCdaire des plantes aromatiques et médicinales. Paris:
Flammanrion, 2001.
• LYONS, Albert S et all. Medicine, an Illustrated History. New York:
Abrams.
• MICHEAU, Françoise. A idade de ouro da medicina árabe. In: LE GOFF,
Jacques (org). As Doenças tem história. Lisboa: Terramar, s.d.p.58-77.
• MICHELET, Jules. A feiticeira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
• NOGUEIRA, Carlos Roberto F. Bruxaria e história: as práticas mágicas
no Ocidente cristão. Bauru: EDUSC, 2004.
• Plantas medicinais, Ervas e Fitoterapia. Disponível em: <http://www.
plantasmedicinaisefitoterapia.com/> Acesso em: 22 ago. 2011.
• PORTER, Roy (org). Medicina: a história da cura. Lisboa: Centralivros,
2002.
• RODRIGUES, Icles. Piedade Sangrenta: A legitimação da Tortura na
Caças às Bruxas na Europa. Revista Alethéia: Estudos sobre a Antiguidade
e o Medievo. ISSN: 1983-2087. V. 1 / 2. p.177-194, jan./jul. 2011. Disponível
em: <http://www.revistaaletheia.com/atual_10.html> acesso em: 30 ago.

99
2011.
• SAUNIER, A vida quotidiana nos hospitais da Idade Média. In: . In:
LE GOFF, Jacques (org). As Doenças tem história. Lisboa: Terramar,
s.d.p.205-220.
• ZORDAN, Paola B. M. B. G. Bruxas: figuras de poder. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ref/v13n2/26885.pdf> Acesso em: 01 set. 2011.

100
Para saber mais…
Renata Palandri Sigolo

A maior parte da população medieval tratava seus problemas


de saúde com medicamentos feitos através de receitas transmitidas
oralmente, de geração em geração. Geralmente, as plantas utilizadas
eram aquelas que se encontravam nas proximidades, pois os produtos
exóticos e caros eram inacessíveis aos pobres. Mattheus Platearius,
médico que viveu em Salerno no século XII definia, em seu Liber iste,
dois tipos de remédios: um para os ricos e outro, para os pobres.18
Dentre as diferentes interpretações do uso das plantas medicinais
na Idade Média, destaca-se a ideia de que elas continham elementos
mágicos que deveriam ser levados em conta por seus usuários, desde o
momento de sua retirada do seio da natureza. Alguns ritos de colheita
precisavam ser respeitados, como traçar um círculo em torno da
planta, estar vestido com determinados tecidos ou mesmo estar nú,
purificar-se com água, dependendo da erva a ser utilizada.19
A forma de emprego das plantas medicinais também estava ligada
aos seus atributos mágicos. Colocar um pedaço de raiz ou galho em
torno do pescoço, juntamente com algumas orações declamadas para
a planta, seu deus tutelar ou renunciando ao demônio, poderia ser
uma maneira de garantir que a cura ocorresse através da mobilização
dos elementos mágicos de determinadas ervas. No caso da camomila,
por exemplo, Hildegard Von Bingen indicava: “contra dores e doenças
dos olhos, é necessário ir até onde a camomila matricária cresce, antes
que o sol nasça e dizer sobre ela esta oração: ‘eu te tomo, erva, para a
doença branca e a dor dos olhos, para que você traga socorro’; depois,
colha-a. O paciente deve usa-la pendurada em seu pescoço.”20
A planta com atributos mágicos mais famosa relacionada ao
período medieval é, sem dúvida, a mandrágora. Seu conhecimento
data do Egito antigo e seu uso se prolonga até, ao menos, o século
XIX.21As raízes desta planta lembram o corpo humano e sua origem

18. BILIMOFF, Michèle. Les remèdes du Moyen Age. Rennes : Éditions Ouest-France, 2011.p.44.
19. Ibdem, p. 65-66.
20. BINGEN, Hildegard von. Apud BILIMOFF, Michèle. Op. Cit. ,2011.p.66.
21. BILIMOFF, Michèle. Enquête sur les plantes magiques. Rennes : Éditions Ouest-France,

101
é explicada, pela cabala, como sendo ligada à semente de Adão: este
nascimento, fora do comum, relaciona a mandrágora ao ser humano.
Também Hildegar von Bingen explica o motivo desta planta ser muito
usada em filtros e poções mágicas:

A mandrágora é quente e ligeiramente aquosa; ela nasceu da terra de onde


Adão foi criado; ela parece com o homem, mas ela permanece uma planta. Por
causa desta semelhança com o homem, a presença e as artimanhas do diabo se
fazem sentir mais nela do que nas outras plantas. É por isso que, graças a ela,
o homem obtém a satisfação de seus desejos, sejam eles bons ou maus, como
ele fazia, às vezes, com os ídolos.22

A crença no poder da mandrágora se disseminou por toda a


Europa, sendo ela conhecida como Satan’s apple (maçã de satã) na
Inglaterra e, na Alemanha, a palavra alruna era empregada tanto para
a planta quanto para designar bruxa. Em relação às bruxas, acreditava-
se que utilizavam os efeitos narcóticos e hipnóticos da mandrágora
para se encontrarem nos Sabás, talvez uma alusão à sensação de
imaterialidade provocada por seu uso. Um processo de investigação
de uma mulher acusada de bruxaria, datado de 1324, relatava: “
vasculhando o armário de uma dama, eles acharam uma cânula de
pomada que ela aplicava em um bastão do qual ela se servia para
galopar e mudar de lugar por onde ela desejasse (...).”23
Plantas e seus atributos mágicos eram usados na formulação
de medicamentos, mas também outras substâncias inusitadas
para nós, como cinzas de chaminé, pedras de benzoar, urina, fezes,
pedras preciosas, minerais em geral e animais. Dentre os elementos
mais exóticos usados para fazer medicamentos figurava a múmia.
Caracterizado pela cor negra e odor forte, o líquido, extraido a
princípio das múmias egípcias, era famoso por curar várias doenças.
Provavelmente, as verdadeiras múmias foram substituídas, pelos
boticários, por cadáveres embebidos em plantas também exóticas
como a babosa e o incenso24.
Poções igualmente insólitas, empregando diversas substâncias
2003.p.41.
22. BINGEN, Hildegard de. Physica. Le livre des subtilités des creatures divines. Grenoble: Jérome
Million,2011.p.45
23. BILIMOFF, Michèle. Op. Cit., 2003. p 44.
24. Ibdem,p.97.

102
reputadas de serem medicinais, eram bastante famosas na Idade Média.
Dentre ela, destaca-se a Teriaca, que misturava elementos animais,
minerais e vegetais. A invenção da Teriaca é atribua Hipócrates e seu
aperfeiçoamento à Andrômaco, médico de Nero no século I. A ela era
atribuída a virtude de não só curar inúmeras doenças como também
conservar a saúde daqueles que não haviam ainda contraído nenhum
mal.
Galeno e Ibn Sina desenvolveram a fórmula deste medicamento.
A receita de Ibn Sina contava com 56 elementos, dentre os quais 50
eram plantas medicinais. Esta Teriaca foi considerada tão importante
que, no século XIII,os boticários deveriam prepara-la em praça
pública, a fim de atestar os ingredientes utilizados25.

25. BILIMOFF, Michèle. Op. Cit., 2011.p 98.

103
Trabalhando com fonte histórica

BINGEN, Hildegard de. Physica. Le livre des subtilités des creatures divines.
Grenoble: Jérome Million,2011.p. 64-65

A TANCHAGEM (Plantago)

A tanchagem é quente e seca. Pegar a tanchagem, retirar o sumo, filtrar e


misturar com vinho ou mel para dar a beber aos que sofrem de gota e esta
desaparecerá. Se temos gânglios inchados, fazer secar no fogo uma raiz de
tanchagem, colocá-la quente sobre os gânglios, colocar um pano em cima e
ficaremos melhor. Mas não se deve colocar muito pois isto pode fazer mal.
Se sofremos de pontadas do lado, cozinhar folhas de tanchagem na água, e
colocá-las ainda quentes sobre a região dolorosa e a aflição cessará. Se uma
aranha ou qualquer outro inseto te toca ou te pica, esfregue as picadas com o
suco da tanchagem e isto o aliviará.
Se um homem ou uma mulher bebeu um filtro de amor maléfico, que ele
tome o sumo da tanchagem,com ou sem água; depois, que ele tome uma outra
bebida forte e isso o aliviará: ele será purgado no interior e seu estado irá
melhorar. Se ocorre a alguém de fraturar um osso, é necessário cortar raizes de
tanchagem no mel e comer todo o dia em jejum; podemos também cozinhar
lentamente com água em uma panela nova folhas frescas de malva com cinco
vezes mais a quantidade de folhas ou raízes de tanchagem: colocá-las ainda
quentes sobre a região dolorosa e o osso quebrado será curado.

104
BINGEN, Hildegarde de. Physica. Le livre des subtilités des créatures divines.
Grenoble :

Editions Jérome Million,2011.p.45-46.

A MANDRÁGORA (Mandragora)

A mandrágora é quente e ligeiramente aquosa ; ela nasceu da terra da qual


Adão foi criado. Ela tem algumas semelhanças com o homem, mas permanece
uma planta. Por causa de sua semelhança com o homem, a presença e as
manobras do diabo se fazem sentir mais nela do que nas outras [plantas].
Este é o motivo pelo qual, graças à ela, o homem obtém a realização de seus
desejos, sejam eles bons ou maus, como ele obtém, às vezes, com os ídolos.
Quando a arrancamos da terra, é necessário colocá-la o mais rápido
possível em uma fonte, durante um dia e uma noite: assim, todo o mal e
todos os humores ruins que estão nela serão retirados, se bem que ela não
possua, assim, mais nenhuma virtude mágica ou fantástica. Mas se, quando
a arrancamos, a colocamos na terra da qual a retiramos sem a purificar em
uma fonte, ela conserva, então, as virtudes perigosas que servem a vários
propósitos aos mágicos e produzem visões de tal forma, que às vezes, muitas
coisas ruins são feitas com os ídolos.
Se um homem, seja sob o efeito de práticas mágicas, seja por causa de
seu próprio ardor, perdeu toda a sua retenção, que ele pegue uma parte da
mandrágora em forma de mulher, purificada em uma fonte, como eu disse
mais acima. Que ele a mantenha presa, três dias e três noites, entre o peito
e o umbigo; depois, que ele parta este mesmo pedaço em duas partes: que
ele guarde um preso três dias e três noites sobre cada anca e que ele reduza a
pó a mão esquerda desta silhueta. Que ele acrescente a este pó um pouco de
cânfora, que ele o coma e será curado.
Se é uma mulher que experimenta os mesmos ardores em seu corpo, que
ela coloque entre seu peito e seu umbigo uma planta em forma de macho e que
ela faça com ela o que é indicado acima. Mas que ela reduza a pó a mão direita
desta silhueta, que ela acrescente um pouco de cânfora, que ela coma este pó,
como é dito mais acima e o ardor se apagará nela.
Se sofremos de dores de cabeça, comer a cabeça desta planta, sob a forma
preferida; se é no pescoço, comer o pescoço; se é nas costas, comer as costas. A
mesma coisa, se é o braço, comer o braço; a mão, para a mão; o pé, para o pé.
Para qualquer membro soframos, comer o membro correspondente da planta
e ficaremos melhor (...).

105
Rosmarinus officinalis
6. Plantas medicinais na Europa Moderna
Larissa Bernardi e Márcia R. Valério

Neste texto, trataremos de algumas plantas medicinais usadas durante


o Período Moderno que já eram conhecidas na Europa e também, de algumas
plantas medicinais que foram introduzidas no continente europeu através do
contato com outros continentes, como por exemplo, a América do Sul.
Antes de nos voltarmos para as plantas medicinais, é preciso observar
que nos estudos históricos é comum uma divisão cronológica do tempo em
períodos para entendermos como se deram determinados acontecimentos
nas sociedades através dos tempos. Por isso mesmo, é de fundamental
importância entender que tal divisão cronológica, tendo se desenvolvido
somente a partir do século XIX, normalmente limita-se às características
específicas de acontecimentos que se deram na Europa, correspondendo ao
calendário cristão.1
Como a periodização tradicional leva em consideração fatos históricos
importantes para o contexto europeu, torna-se necessário ampliar o olhar
para outras sociedades presentes em outros espaços nos mesmos períodos e
observar seus processos de desenvolvimento diferenciados. É desta forma que
outras culturas marcaram e ainda marcam o tempo e consideram períodos
diferentes do calendário ocidental e cristão, como por exemplo, os chineses
na Ásia, alguns povos na África e os indígenas nas Américas. Quando
consideramos os marcos determinados pela periodização que conta o tempo
de cem em cem anos, que são os séculos, estamos considerando o calendário
cristão, e também, eurocêntrico.
Esta pequena reflexão indica que um período não começa ou termina
subitamente, mas envolve vários acontecimentos que dizem respeito ao campo
social, político, cultural e econômico. Ao estudarmos o denominado “período
moderno”, nos defrontamos com diferentes leituras e mesmo controvérsias
quanto à sua periodização, decorrentes das várias transformações que o
envolveram. Neste sentido, há vários estudos históricos e vertentes teóricas
que consideram datas e acontecimentos diferentes para então denominá-los
como “moderno” e, devido a sua complexidade, convenciona-se situá-lo no
período da história que corresponde à queda de Constantinopla, ao fim do

1. RAMOS, Fabio Pestana. Periodização e História. In: Para entender a história. Ano 1, V.10., Série
20/12, 2010, p.01-07. Disponível em: http://fabiopestanaramos.blogspot.com.br/2010/12/periodiza-
cao-e-historia.html.Acesso em: 01 de setembro de 2013.

107
século XV (1453), estendendo-se até a Revolução Francesa, no fim do século
XVIII (1789).2Mesmo com a perspectiva de outros marcos para este período,
ainda assim, estes se voltam para uma perspectiva eurocêntrica, o que aponta
a necessidade de novas leituras.
O Período Moderno foi marcado por significativa expansão
territorial, se comparado à Idade Média. Após um intervalo temporal onde
as cidades tinham baixa densidade populacional, mudanças expressivas
começaram a criar novas condições sociais e econômicas na Europa. Uma
dessas modificações foi o crescimento das cidades, gerando outras formas
de trabalho e de economia, representados pelas feiras livres, onde se vendia,
principalmente, produtos alimentícios e artesanais. Até o século XIV, muitas
mercadorias do Oriente chegavam à Europa pelas rotas comerciais através
do Mar Mediterrâneo e do Oceano Índico; no entanto, a partir do século
XV, com as mudanças ocorridas pelo renascimento comercial, outras rotas
começam a ser exploradas, propiciando a circulação e a produção de novos
conhecimentos.3
Mas estas mudanças não estavam restritas somente ao comércio,
profundas transformações ocorreram também no campo cultural. Com
a exaltação à cultura antiga (greco-romana), um movimento cultural
denominado Renascimento, que teve duração até o final do século XVI,
procurou adaptar a cultura antiga ao período, onde o humanismo valorizava
o homem, e o naturalismo, a natureza.4De certa forma, o conhecimento estava
centrado no indivíduo, e essa nova visão de mundo propunha estudos mais
elaborados em diversas áreas, como artes, astronomia, línguas e ciências, com
forte predominância para a razão como modo de acessar o conhecimento.
Exemplo disso foi o desenvolvimento de tecnologias e a expansão
marítima com as grandes navegações. O uso da bússola e de um novo tipo de
embarcação, as caravelas, possibilitou a descoberta das novas rotas comerciais
através do Oceano Atlântico, fortalecendo a transação de produtos como as
especiarias vindas do Oriente, usadas na conservação de alimentos, e também,
de plantas medicinais ainda desconhecidas na Europa. Esta expansão foi o
que proporcionou o contato com outras sociedades, como na África e na
América. Outra novidade foi o aperfeiçoamento e o uso de caracteres móveis
2. Idem.
3. RODRIGUES, Joelza Ester. A expansão Marítima e Comercial. In: ______ História em documen-
to: imagem e texto. São Paulo: FTD, 2006. Unidade II, p. 96-115.
4. ______. A Europa Moderna. In: ______ História em documento: imagem e texto. São Paulo:
FTD, 2006. Unidade III, p. 150-163;

108
que resultaram no surgimento da imprensa, até então não utilizada na Europa.
Tantas transformações geraram novas formas de observar o homem e
a natureza, assim como uma renovação do pensamento europeu. No entanto,
os conhecimentos existentes não foram desconsiderados, conforme bem
observa Porter: “Este foi um tempo de avaliação dos conhecimentos existentes,
um reexame mais dos antigos ensinamentos dos textos originais gregos que
dos latinos, a apreciação da observação direta e um ideal de melhoramento.”5
Essa avaliação não deixou de envolver, de forma alguma, a medicina
e as plantas medicinais. Há, neste sentido, um questionamento quanto
à identificação e reconhecimento das plantas nos manuscritos antigos.
Começaram, então, a surgir herbários impressos, com descrições e ilustrações
de plantas mais próximas do seu estado natural, para melhor identificá-las, e
para o uso destas. Os herbários representaram, ao mesmo tempo, a busca de
plantas medicinais perdidas, que diziam respeito à antiga medicina grega, e
ao reconhecimento e exploração de plantas que eram encontradas no Novo
Mundo, correspondendo assim ao grande interesse botânico, comercial e
médico das plantas. São exemplos desses herbários o Herbarum vivae eicones
(Herbário de Imagens Vivas) de Otto Brunfels, de 1530; De historia stirpium
(Da História das Plantas) de Leonhard Fuchs, de 1542; e New Herball (O
Novo Herbário) de William Turner, de 1551.6
Para desenvolver os estudos e no ensino das plantas medicinais, com
expectativas de melhorias em tratamentos e terapias, foram criados, no
século XVI, novos jardins botânicos. Eram nesses espaços que se acolhiam
as plantas já conhecidas, e também, as novas plantas que chegavam de outros
continentes. Os jardins botânicos de Pisa (1543), Pádua (1545) e Leyden
(1587), são exemplos desse período.
Antes mesmo do século XVII, muitas plantas medicinais e alguns
produtos retirados de plantas vindas do sudeste da América do Norte e do
México chegaram à Europa. Entre estas se encontravam a copaíba, bálsamo-
do-peru, bálsamo-de-tolu, guaiaco, jalapa, mechoação, salsaparrilha,
sassafrás e tabaco. Em um período em que a sífilis causava flagelos, muitas
destas plantas despertavam a atenção para a sua cura; no entanto, apenas
o sassafrás, a salsaparrilha e o guaiaco das Caraíbas tinham certa fama em
seu tratamento, mas tal eficácia não foi comprovada, e estas plantas foram

5. CRELLIN, John. Herbalismo: a antiga tradição. In: PORTER, Roy. Medicina: a história da cura.
Lisboa: Centralivros, 2002. p. 76.
6. Idem.

109
mais utilizadas “em situações em que se achava ser positiva a depuração do
sangue”.7
Foram bastante variáveis os recursos terapêuticos no que se refere
à preparação e uso das plantas medicinais até o século XVII, sendo que
o conhecimento destas não se limitava aos médicos e herboristas, mas
também, ao uso popular. Em relação aos médicos, surgem questionamentos e
pesquisas mais aprofundadas e específicas quanto às propriedades das plantas
medicinais, e ainda, diferentes opiniões, principalmente sobre os remédios
exóticos e indígenas que chegavam do Novo Mundo. Conforme podemos
verificar em Crellin: “As atitudes para com as novas drogas dependiam de
vários factores”8, sendo um deles, as formas de preparação e uso das plantas
pelos herboristas e médicos profissionais, e daquelas conhecidas pelos povos
dos lugares que chegavam as plantas, como por exemplo, os locais acima
citados.
Ainda que existissem diferentes opiniões, as plantas medicinais
continuavam como base primordial no tratamento das doenças, conforme
verificado em outros momentos. E ainda que o período estivesse passando
por várias transformações e se modernizando, eram a elas que os médicos
ainda recorriam, mesmo que de formas variadas.
É o caso do médico suíço Paracelso (1493-1541), que buscou nas suas
pesquisas químicas a quintessência nas plantas medicinais. O uso de essências
através da destilação, que eram as águas destiladas de essências de várias
plantas, estava entre seus interesses no tratamento de doenças.9 Dedicando-se
ao conhecimento da física, da química e da astrologia, Paracelso defendia o
uso de remédios minerais e metálicos, e neste sentido, suas pesquisas foram
valiosas quanto ao uso do mercúrio para o tratamento da sífilis.10 Sua busca por
uma medicina natural resultou na valorização da Doutrina das Assinaturas.
Ele considerava que era preciso estudar as virtudes que os vegetais indicavam,
procurando uma assinatura nas plantas, estando esta oculta na raiz, nas flores,
nas sementes, na casca, no caule. Era preciso prestar atenção também em seu
formato, em sua cor, aroma e até mesmo o local que a planta nasce e floresce.
Para Paracelso cada planta assina pela sua aparência o órgão ou a doença que
pode curar. Além da própria semelhança entre o ser humano e o que lhe é
7. Idem.
8. Idem, p. 76-77;
9. Ibdem, p. 78-79.
10. PORTER, Roy. Terapias. In: ______Das tripas coração: uma breve história da medicina. Rio de
Janeiro: Record, 2004, p. 126.

110
externo, o que é equivale a uma relação entre o microcosmo e macrocosmo
Outro médico a considerar o uso de plantas medicinais foi o inglês
Nicholas Culpeper (1616-1654), que também era botânico e astrólogo. Ele
criticava os métodos não naturais de cura de seus contemporâneos e procurava
conhecimentos nos escritos médicos antigos. Com amplo conhecimento, ele
elaborou várias receitas a base de plantas medicinais, tais como unguentos
e óleos para massagem, remédios preventivos, e até mesmo, receitas para
cuidados femininos.11 Neste período, a astrologia ainda era usada como
parte integrante da medicina e, “ao reconhecer a correspondência entre os
planetas, os signos do zodíaco e as partes do corpo humano, o tratamento
era tradicionalmente administrado com remédios fitoterápicos baseados em
suas afinidades ou diferenças.”12
Em sua prática como médico e astrólogo, Culpeper não deixou de
fazer o uso constante desse conhecimento, associando as qualidades curativas
das ervas com os signos e os planetas. Em seu livro Complete Herbal,
publicado pela primeira vez em 1653, se encontram várias descrições sobre
essa relação das plantas medicinais e da astrologia. Para Culpeper a carta ou
mapa astrológico de uma pessoa devia ser traçado assim que aparecessem
os primeiros sintomas da doença, para que as ervas fossem escolhidas para
o tratamento. Pressupõe-se que, desta forma, se observava a posição dos
planetas em cada signo e quais as influências sobre este. Outra característica é
o planeta regente de cada planta, que também tinha influencia no tratamento.
Entre as descrições de Culpeper podemos observar essa relação quanto
a algumas plantas, planetas e signos: uma erva de Vênus, como o Tomilho
(Thymus vulgaris), poderia ser utilizada por afinidade para problemas
ginecológicos; Neste caso vênus está associado ao feminino.O lírio-do-
vale (Convallaria majalis), regido por Mercúrio, fortaleceria o cérebro,
ativando a memória fraca, sendo recomendado para escritores e filósofos.
Sendo Mercúrio o regente do signo de Gêmeos, não é difícil de entender a
correspondência da planta com um signo que se relaciona com a escrita e a
comunicação.
Outra planta regida por Mercúrio é a lavanda (Lavandula officinalis),
sendo ao mesmo tempo, uma erva do signo de Gêmeos. A recomendação de
Nicholas Culpeper para o uso desta planta era a seguinte:

11. TISSERAND, Robert. A arte da aromaterapia. São Paulo: Roca, 1993, p.47-49.
12. MARSHALL, Peter. A astrologia no mundo: uma visão histórica para entender melhor a perso-
nalidade humana. Rio de Janeiro: Nova Era, 2006, p. 368.

111
Mercúrio é o regente desta erva. Ela é usada especialmente em dores de cabeça
e do cérebro, originadas de friagem, apoplexia, deficiência respiratória, hidropisia
ou doença da preguiça, cãibras, convulsões, paralisias e desmaios frequentes. Ela
fortalece o estômago e livra o fígado e o baço das obstruções, incentiva os fluxos das
mulheres e expele a criança morta e as secundinas. (...)13

Outras plantas também se encontram nas recomendações de


Culpeper, como o alecrim (Rosmarinus officinalis L.) regido pelo planeta
Sol, recomendada para depressão e tristeza, e a Melissa (Melissa officinalis
L.), regida por Júpiter, usada para trazer alegria e reanimar o coração. Outro
exemplo é a descrição da planta agrimônia (Agrimonia L.), que era indicada
para males hepáticos, sendo que Júpiter rege também o fígado, e desta forma,
Júpiter rege a agrimônia. Uma característica considerada importante por
Culpeper era a colheita das ervas em dias e horários que correspondessem ao
calendário astrológico, onde os planetas estavam regendo determinado signo,
e que também tivesse relação com a planta colhida. Percebe-se desta forma,
que o tratamento se tornava individualizado e específico para cada pessoa
conforme o seu caso e seu mapa astral.
O conhecimento das plantas medicinais felizmente não estava restrito
aos médicos e aos herborista e, neste sentido, as mulheres exerciam, e ainda
exercem, um papel fundamental no campo da medicina popular. O uso das
plantas medicinais por mulheres anciãs, mulheres do campo e mulheres
nobres era um conhecimento que estava fortemente ligado a uma tradição
oral e à experiência do ato de recolher e vender as plantas medicinais. Era
uma prática tradicional entre mulheres da mesma família ou da mesma
comunidade, cabendo lhes atividades importantes, como o parto e a cura
através da benzedura, que incluía rezas e fórmulas com ou sem plantas
medicinais. O fato das mulheres do campo possuírem conhecimento de
plantas que se relacionavam à saúde feminina, inclusive as abortivas, como por
exemplo, a arruda, fez com que muitas delas fossem acusadas de praticarem
magia ou bruxaria. Uma visão bastante negativa que fortaleceu críticas à
prática da medicina popular tradicional e que, ao final do século XVII, passa
a ser ainda mais questionada devido a sua falta de conhecimento teórico. No
entanto, o conhecimento e o uso de plantas medicinais pelas mulheres nunca
foi totalmente suprimidos conservando-se até os dias de hoje14.
13. CULPEPER, Nicholas. Apud In: TISSERAND, Robert. A arte da aromaterapia. São Paulo: Roca,
1993, p.47-49.
14. THOMAS, Keith. A cura pela magia. In:_______Religião e declinio da magia; crenças popula-
res na Inglaterra, séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia das Letras, 1991.p.155-182.

112
Diferentemente do início do pensamento moderno que buscava
integrar natureza e ser humano, seja através da astrologia ou da teoria das
assinaturas difundida por Paracelso, constantes transformações e troca de
informações convergiram na estruturação dos modos de pensar e fazer ciência
que regulam os séculos XVIII e XIX, até os dias atuais. Os nomes de maior
expressão nessa nova visão de ciência são de dois pensadores e físicos: Isaac
Newton e René Descartes. As teorias de ambos invadiram as mentalidades
das academias e universidades que na época estavam em expansão, ganhando
mais prestígio como centros de pesquisa e desenvolvimento científico.

A grande construção do pensamento de Descartes se apresentou à cultura europeia


como um sistema. E é esta, na verdade, uma das razões de seu sucesso extraordinário.
Tal sistema se apresentava como fundado na razão; excluía definitivamente qualquer
recurso a formas de ocultismo e de vitalismo, parecendo capaz de conectar ao mesmo
tempo (de um modo diferente daquele que havia sido realizado pela Escolástica na
Idade Média) a ciência da natureza, a filosofia natural e a religião; propiciava, enfim,
em uma época cheia de incertezas que se relacionavam com as grandes viradas
intelectuais, um quadro coerente, harmonioso e completo do mundo.15

A física newtoniana e a sistematização cartesiana são os princípios


que passam a reger o estudo anatômico, da medicina e da farmacopeia.
Desse modo, a medicina que anteriormente se baseava nos ensinamentos
de Galeno - “Os estudantes de medicina no século XVI (e durante uma boa
parte do século XVII) formavam as suas competências em fisiologia com base
em uma visão coerente e sólida do organismo humano que remontava ao
médico Cláudio Galeno de Pérgamo (ca. 129-200).”16 - começa aos poucos a
romper com essa visão de medicina e adotar o mecanicismo físico, tendo a
contribuição de diferentes médicos e anatomistas17, sendo William Harvey
(1578-1657) um representante deste tipo de raciocínio.
Com o advento do Iluminismo, esse processo é ainda mais legitimado
pela elite intelectual da época. O Iluminismo foi um movimento filosófico
que valorizava a razão, trazendo o que estava nas “trevas” para a “luz” do
conhecimento racional, ou seja, munido do pensamento lógico e sistemático
de diversos filósofos, físicos e matemáticos, impunha-se como ideologia
máxima.
Considerando, então, todas essas transformações que estavam
15. ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa. Bauru, SP: EDUSC, 2001. p. 195.
16. Ibdem, p. 303.
17. Ibdem,p. 303-315.

113
ocorrendo, é possível compreender que acontecia um cerceamento nas
formas e agentes de cura, em especial no final da Idade Moderna, o que levou
a uma “caça às bruxas”, na qual muitas pessoas simples que praticavam a cura
através de meios não científicos e até místicos foram condenados por isso.
Assim, a medicina acadêmica e a biologia mecanicista foram se impondo,
acontecimento que terá seu ápice no século XIX, com a criação das indústrias
farmacêuticas e a estruturação da biomedicina.
Também incluído nesses processos, está o desenvolvimento da
taxonomia, a nomenclatura científica para seres vivos. Desenvolvido por
Carl Von Linné, a taxonomia pôs fim a um antigo problema dos estudiosos
dos seres vivos, em especial as plantas. Linné criou um sistema binômio,
adotando o latim como língua padrão, exatamente por sua artificialidade.
Sendo assim, uma planta, por exemplo, tem atribuída a ela uma nomenclatura
composta de duas palavras em latim na qual ela é identificada em qualquer
lugar do mundo. Linné buscou classificar diversas espécies, e a partir dessas
foi possível continuar o processo de nomear cientificamente as plantas. Esse
sistema é usado até os dias de hoje. É importante enfatizar que a criação dessa
forma de identificação é anterior a teoria evolucionista; portanto, Linné não
classificou os seres vivos seguindo uma linha evolutiva.
Todas essas transformações que se iniciam no período Moderno,
permeiam a passagem para a Idade Contemporânea e suas próprias
transformações. Lembrando que essa separação por períodos é apenas uma
convenção, muitas vezes fica certa impressão de que a Idade Moderna é
apenas um período de transição entre o Medievo e a Contemporaneidade.
Porém, a Modernidade tem suas próprias características, sendo um momento
constantemente revisitado pela historiografia.

114
BIBLIOGRAFIA
• BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989.
• CRELLIN, John. Herbalismo: a antiga tradição. In: PORTER, Roy (org.)
Medicina: a história da cura. Lisboa: Centralivros, 2002. p. 76-81.
• CULPEPER, Nicholas. Culpeper’s Complete Herbal. London: Richard
Evans, 1816.
• GINZBURG, Carlo. Andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos
séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
• ________. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro
perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
• MARSHALL, Peter. A astrologia no mundo: uma visão histórica para
entender melhor a personalidade humana. Rio de Janeiro: Nova Era, 2006.
• PARKER, Derek e Julia. Astrologia e Saúde. In: ______O grande livro da
astrologia. São Paulo: Círculo do Livro, 1971, p. 28-29.
• PORTER, Roy. Terapias. In: ______Das tripas coração: uma breve história
da medicina. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 126;
• RAMOS, Fabio Pestana. Periodização e História. Para entender a história.
Ano 1, Volume dez., Série 20/12, 2010, p.01-07. Disponível em: <http://
fabiopestanaramos.blogspot.com.br/2010/12/periodizacao-e-historia.
html> Acesso em: 01 de setembro de 2013.
• ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa. Bauru, SP:
EDUSC, 2001.
• RODRIGUES, Joelza Ester. História em documento: imagem e texto.
São Paulo: FTD, 2006. (Coleção história documento: imagem e texto – 6ª
série/7º ano).
• TISSERAND, Robert. A Arte da Aromaterapia. São Paulo: Roca, 1993.
• THOMAS, Keith. A cura pela magia. In:_______Religião e declinio da
magia; crenças populares na Inglaterra, séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia
das Letras, 1991.p.155-182.

115
Para saber mais…
Renata Palandri Sigolo

Ao abordar a medicina no período moderno, precisamos evitar


ao menos dois equívocos: o primeiro, é de tentarmos tratar todo este
intervalo temporal como se fosse algo homogêneo. O segundo, também
decorrente da visão errônea já apontada, está em tentar enxergar na
lógica investigativa deste período a mesma racionalidade existente
na ciência hoje. Rossi nos chama a atenção, igualmente, para o erro
em colocar diferentes áreas do conhecimento no mesmo patamar
investigativo.18Um personagem, emblemático para a compreensão da
interpretação do papel das plantas medicinais no século XVI porém
mais conhecido por seus experimentos com metais, pode nos ajudar
a entender melhor um pouco do pensamento médico neste período .
Philip Aureolus Theophrast Bombast von Hohenheim (1493-
1541), conhecido como Paracelsus, foi o principal construtor da
filosofia alquímica do século XVI e teve seguidores bastante atuantes
no século seguinte. Joly afirma que, ao estudarmos as ideias dos
adeptos da alquimia, não podemos rejeitar seu discurso como
irracional ou espiritual, mas devemos compreende-lo como uma
forma de racionalidade presente nos textos alquímicos. Esta “filosofia
química de inspiração paracelsiana” foi uma importante corrente de
pensamento presente no início da modernidade. Química e alquimia,
nos séculos XVI e XVII são, em resumo, a mesma coisa.19
A obra deste médico suíço despertou interesse de seus
contemporâneos e de estudiosos da química e da medicina em períodos
bem posteriores à sua atuação. Longe de ter sido um pensamento
periférico, a filosofia alquímica e as doutrinas de Paracelso foram
importantes na crítica à medicina Galênica e revolucionaram a forma
de ensino da medicina nas universidades de então. Rossi coloca a
discussão, na Europa, em torno das ideias de Paracelso, no mesmo
nível de intensidade causada pelo pensamento de Copérnico e da

18. ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa. Bauru: EDUSC, 2001. p.271.
19. JOLY, Bernard. À propos d’une prétendue distinction entre la chimie et l’ alchimie au XII siècle :
questions d’ histoire et de méthode. Revue d’histoire des sciences, Paris, v.60-1, p.167-183. Janvier-
juin 2007.

116
nova astronomia.20
Paracelso possuiu muitos adeptos, mas também muitos críticos.
Combateu os teólogos por condenarem a magia como feitiçaria e
os médicos tradicionais por seus métodos e pelo tipo de formação
universitária. Aproximou-se do saber popular através de seu trabalho
como médico itinerante, recolhendo o conhecimento sobre plantas
medicinais desenvolvido por leigos21. Para ele, a medicina estava
fundada em quatro pilares: “ a filosofia como conhecimento invisível
das coisas, a astrologia ou determinação do influxo dos astros sobre a
saúde do corpo; a alquimia que prepara fármacos capazes de restaurar
o equilíbrio perturbado pela doença; a ética ou virtude e honestidade
do médico”22.
A definição de medicina de Paracelso aponta para uma visão
bastante global do que seria a saúde, a doença e a prática médica. O
médico suíço ainda definia cinco tipos de terapeutas: os herboristas,
que curam através das plantas utilizando o binômio quente/frio; os
naturopatas, que tratam pela força de medicamentos específicos,
como os purgantes; os xamãs, que curam através de comandos, pela
palavra; os homeopatas, que conhecem meios para coagular o espírito
de ervas e raízes; os exorcistas, que curam através da fé.23Paracelso
defendia a ideia de que o médico deveria reunir os cinco tipos, em uma
abordagem ampla do exercício da medicina.
Esta interpretação holística do saber e do fazer do médico não
poderia estar distante da concepção de corpo contida no pensamento
alquímico. O microcosmos/ser humano está indissociavelmente
relacionado ao macrocosmos/universo, em uma cosmologia
também presente na medicina hipocrática, ayurvédica e chinesa. Na
interpretação paracelsiana desta relação, tudo seria composto por
substâncias vitais ou espíritos invisíveis que derivariam de Deus,
sendo o mundo um processo químico contínuo de aperfeiçoamento.
As substâncias concretas nada mais seriam do que o invólucro dos
elementos espirituais.24
20. ROSSI, Paolo. Op. Cit., p.272-274.
21. SIMMONS, John Galbraith. Médicos e descobridores. São Paulo/ Rio de Janeiro: Record, 2004.
p. 80
22. ROSSI, Paolo. Op. Cit., p. 273.
23. LAÏS, Erika. L’ABCdaire des plantes aromatiques et médicinales. Paris : Flammarion, 2001. p.
76.
24. ROSSI, Paolo. Op. Cit. p. 274.

117
Para Paracelso, existia uma matéria prima que era a matriz de
todas as coisas, que tem natureza aquosa. Os outros três elementos,
que também eram matrizes, são o fogo, a terra e o ar: estes quatro
elementos originam plantas, metais, minerais e animais. Junta-se a esta
teoria uma outra, a dos princípios: Sal, Enxofre e Mercúrio que são
substâncias espirituais e se identificam com Corpo, Alma e Espirito.25
O Sal manteria os corpos coesos, o Mercúrio os tornaria fluidos e o
Enxofre, combustível. Estes princípios estariam presentes em todos os
corpos, em proporções diferentes.26
A astrologia também foi fundamental na correspondência
entre microcosmos e macrocosmos. O alquimista afirmava que as
constelações, estrelas e planetas existentes em nossos corpos e também
no céu deveriam estar em harmonia para haver uma boa saúde. Assim,
Paracelso fez a conexão entre os principais órgãos do corpo aos sete
planetas: “o Sol, governava o coração; a Lua, o cérebro; Vênus, os
vasos; Saturno, o baço; Mercúrio, o fígado; Júpiter, os pulmões; e Marte
regia a vesícula.”27Para reequilibrar o organismo enfermo, era preciso
reativar a influência do planeta correspondente, através da observação
do momento astrológico, medicamento e dosagem corretos.
A interpretação dada por Paracelso da função das plantas
medicinais está igualmente compreendida na relação entre ser humano
e natureza. A teoria das assinaturas é frequentemente atribuida a ele,
embora ela provavelmente já existisse na prática do herbalismo ao
menos desde a antiguidade.28Como já foi explorado em texto anterior,
a teoria das assinaturas se baseia na ideia de que cada planta ou parte
dela assinala, por seu aspecto, o órgão ou a doença que pode curar.
Esta teoria, em Paracelso, se justifica por sua crença de que tudo o
que existe no mundo dos fenômenos provém da mesma substância
original. Uma vez partilhando a mesma origem, o ser humano e tudo
o que o cerca possuem certa semelhança, de tal maneira que eles “se
aceitam” mutuamente. Paracelso, imbuído desta concepção, afirmava
que a natureza possuia propriedades autocurativas e que o papel do

25. SIMMONS, John Galbraith. Op. Cit. p. 82.


26. Ibdem, p. 275.
27. MARSHALL, Peter. A astrologia no mundo: uma visão histórica para entender melhor a perso-
nalidade humana. Rio de Janeiro: Nova Era, 2006.p.352-353.
28. CRELLIN, John. Herbalismo: a antiga tradição. In: PORTER, Roy (org.) Medicina: a história da
cura. Lisboa: Centralivros, 2002, p.70

118
médico deveria ser o de não impedir este processo.29
Paracelso é um exemplo da circularidade de ideias sobre saúde,
doença e medicamento existentes nos séculos XVI e XVII. Mesmo
havendo recursos terapêuticos diversos, como médicos, cirurgiões,
curandeiros, não se estabeleceu uma linha divisória clara que separasse
suas atuações e as pessoas leigas não faziam grande diferença entre os
diversos tipos de tratamento, sem separar o uso mágico do material das
substâncias medicamentosas.30A estreita relação entre o ser humano e
a natureza não era concebida apenas pelos leigos, sendo partilhada por
alguns membros do universo médico acadêmico, como é o caso do
mais famoso alquimista do século XVI.

29. LAÏS, Erika. Op. Cit. p.90.


30. THOMAS, Keith. A cura pela magia. In:_______. Religião e o declinio da magia: crenças popu-
lares na Inglaterra. Séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia das Letras, 1991.p. 155-182.

119
Trabalhando com fonte histórica

CULPEPER, Nicholas (1616-1654). Culpeper’s Complete Herbal.


London: Richard Evans,1816.p.41.

Cardus Benedictus:

Ele é chamado Cardus Benedictus ou Cardo Abençoado ou Cardo


Santo. Eu suponho que o nome foi colocado por pessoas que tinham
pouca santidade em si.Vou poupar o trabalho de uma descrição pois
quase todos podem fazê-lo a partir de seu próprio conhecimento.

Tempo: Ele florece em agosto e tem suas sementes não muito depois.

Governo e virtudes: É uma erva de Marte e sob o signo de Áries.


Agora, ao lidar com esta erva , vou dar um padrão racional para todo
o resto e se você desejar vê-lo durante o livro você pode, sobre seu
julgamento, achá-lo verdadeiro. Ela ajuda a natação e a vertigem da
cabeça, ou a doença chamada de vertigem , pois Áries está na casa
de Marte. É um excelente remédio contra a icterícia amarela e outras
enfermidades do fel , porque Marte governa a cólera . Ela fortalece
as faculdades atrativas no homem e clareia o sangue, porque isso é
regido por Marte . O consumo contínuo da sua decocção ajuda
as faces vermelhas e vermes porque Marte os causa. Ela ajuda
nas pragas , feridas , furúnculos e coceira , nas mordidas de cães
raivosos e animais peçonhentos, pois todas essas enfermidades
estão em Marte; assim, você pode ver o que ele causa por simpatia.
Por antipatia a outros planetas ele curas a sífilis. Por antipatia a Vênus
que rege a memória, a fortalece; e cura a surdez por antipatia a Saturno
, que tem sua queda em Áries. Ela cura febres quartãs e outras doenças
de melancolia e cólera , por simpatia a Saturno, estando Marte
exaltado em Capricórnio. Também provoca a urina pois sua suspensão
é geralmente causada por Marte ou pela Lua.

120
121
Paullinia cupana
7. Saúde, religiosidade e cura: o uso de plantas medicinais
nos primeiros contatos entre portugueses e indígenas no
Brasil
Isaac Facchini Badinelli

[...] antes que houvesse estes Galenos,


Hipócrates e Avicenas,
já se curavam os homens
mais pela experiência,
que por sciencias e artes da medicina [...]
(Nuno Marques Pereira)

Com os primeiros contatos dos portugueses com o que viria a ser


conhecido como Brasil, a partir da segunda metade do século XVI ocorreram
enormes mudanças na nova terra invadida. Além dos danos causados às
populações autóctones que habitavam a América, provocados tanto pelos
enfrentamentos como pelas moléstias, passou a existir uma interação muito
grande, e na maioria das vezes necessária, entre esses portugueses que aqui
chegavam e os habitantes naturais da terra, denominados posteriormente
como Índios.
É preciso pensar em um contato agressivo entre esses povos, que
realmente existiu e tanto modificou como prejudicou pontos essenciais da
cultura dos que habitavam a região. Porém, é importante notar, também, o
jogo de relações que se estabeleceram pela necessidade dos colonizadores
em encontrar nas terras brasileiras seus meios de sobrevivência. Além dos
alimentos imprescindíveis para a manutenção de suas vidas, esses portugueses
aqui se depararam com uma série de doenças e outras situações difíceis, que
só puderam ser solucionadas com a ajuda dos conhecimentos dos habitantes
da chamada “Terra Brasilis”.
Ao estudar a entrada das plantas medicinais oriundas do continente
americano na Europa, percebe-se o quanto isto modificou relações e teve
importância histórica, tanto no campo da medicina e das possibilidades de
cura, como também em relação ao universo econômico, social e cultural que
estes saberes movimentaram. Não podemos esquecer, ainda, que esse contato
trouxe enormes problemas para as populações americanas, afetando inclusive
a produção de algumas plantas curativas nesse continente. Muitas plantas

123
estrangeiras, definidas na Europa como ervas daninhas, avançaram sobre
a terra brasileira, assim como muitas das pestes que atacaram as plantas da
Colônia tinham desembarcado do continente europeu.1
Os habitantes do “novo mundo”2 eram muitas vezes vulneráveis
às doenças trazidas pelos conquistadores. Um exemplo da América não
portuguesa que deixa isso claro é o da chegada dos espanhóis a Hispaniola
(atual república Dominicana e Haiti), onde grande parte da população
indígena morreu em decorrência das doenças trazidas pelos espanhóis3.
Logo em sua chegada às terras brasileiras os colonizadores passaram a
enfrentar algumas dificuldades. Grande parte dos medicamentos que haviam
sido trazidos nos barcos com a intenção de manter a saúde dos tripulantes
acabou sendo perdido, ou estragando ao longo da travessia. Os primeiros
contatos com a terra, que impressionaram os que aqui chegavam com sua
beleza, logo foram substituídos pelo medo e desprezo com os “problemas”
da região.
No início, os europeus ficaram fascinados com o fato de poderem
aqui encontrar na floresta praticamente tudo que necessitavam para sua
alimentação e sobrevivência. As plantas despertavam enorme curiosidade,
sendo elas de diversas formas, belezas e cores, eram utilizadas como alimento,
veneno ou medicamento4. Tanto que, já nos séculos XVI e XVII, mesmo
sem o auxílio financeiro da coroa portuguesa investindo em viagens de
conhecimento muitos desses portugueses passaram a catalogar e apreciar o
uso de algumas plantas medicinais do Brasil. O fascínio foi interrompido pelas
primeiras surpresas neste “Novo Mundo”, pelo aparecimento das doenças.

A natureza exuberante, rica em frutos saborosos e doces como o mel, os animais


exóticos de uma beleza jamais vista, as multidões de pássaros coloridos e as ervas
medicinais de singularíssimas virtudes não eram os atributos únicos da colônia.
Situado na zona tórrida do globo, e infestado por ares quentes e pútridos, o Brasil,
segundo a ótica de alguns cronistas era o lugar ideal a disseminação de doenças.5
1. CROSBY, Alfred W. Imperialismo Ecológico. A expansão biológica da Europa: 900-1900. São Pau-
lo: Companhia das Letras, 1993. p.93.
2. O termo “Novo Mundo” aparece entre aspas por representar uma visão bastante tendenciosa, uma
vez que a América já existia como mundo antes da chegada europeia. Essa denominação, entretanto,
permaneceu sendo utilizada na historiografia por muito tempo.
3. PORTER, Roy. Das tripas o coração: Uma breve história da medicina. Rio de Janeiro: Record.2004,
p. 27.
4. MARQUES, Vera Regina Beltrão. Natureza em Boiões: Medicinas e Boticários no Brasil Setecen-
tista. Campinas-SP: Unicamp. 1999, p. 37.
5. RIBEIRO, Márcia Moisés. A ciência dos Trópicos: A arte médica no Brasil do século XVIII. São

124
As plantas medicinais brasileiras são, até hoje, reconhecidas por seu
potencial curativo, sendo o Brasil considerado por muitos autores como a
região com maoir quantidade de espécies que curam, embora muitas ainda não
tenham sido alvo de conhecimento e pesquisas que comprovem sua eficácia
por meio da ciência farmacêutica. Assim, em termos de biodiversidade, a
exploração do território colonial o conhecimento da flora brasileira abriu
um grande leque de oportunidades e novas descobertas para a metrópole.
Vários foram os viajantes que, desde os primeiros contatos com o território,
mostraram o poder que as plantas aqui encontradas poderiam exercer.
A notabilidade do poder das plantas medicinais foi exaltada pelos padres
jesuítas, que em seus relatos mostravam, como nos novos jardins medicinais,
cultivavam essas novas espécies A maior parte desses conhecimentos foi
aprendido com as populações locais que utilizavam ervas medicinais e
saberes mágicos próprios para a cura de suas doenças. “A utilização de plantas
medicinais pelas diversas etnias indígenas, particularmente no Brasil, parece
ter seguido sistemas de identificação e emprego prático desconhecidos do
colonizador europeu.”6
Dentro das comunidades indígenas o uso da natureza como fonte para
promoção da saúde assume um papel fundamental, levando em consideração
a organização social e suas visões diferenciadas de experiência e sobrevivência.
Desde sempre, como afirma o historiador Sérgio Buarque de Holanda, os
índios tiveram à mata como sua fonte de medicamentos, a chamada “botica
da natureza”.7Sua visão holística do mundo, que enxerga a doença como
consequência de uma desarmonia em relação a ordem natural e cósmica, está
relacionada ao meio sociocultural no qual emerge a doença. Além disso, todo
conhecimento indígena está baseado em uma tradição de cultura oral, que os
europeus gradualmente transmitiram através de seus tratados, na maioria das
vezes não reconhecendo sua origem.
Várias ervas medicinais foram enviadas da América para Portugal entre
o século XVI e XVII, tendo destaque a Ipecuanha, que de tão explorada já era
de difícil acesso no final do século XVII, e a quina do Peru, chamada também
de pó dos jesuítas. Ambas as plantas eram utilizadas pelos indígenas em seus
processos de cura. É importante notar que existiam no Brasil neste período
Paulo: Hucitec. 1997, p. 21.
6. SANTOS, Fernando Santiago dos. As plantas brasileiras, os jesuítas e os indígenas do Brasil:
História e ciência na Triaga Brasílica (séc.XVII-XVIII), Casa do Novo Autor Editora / São Paulo /
2009 p.22.
7. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo. Companhia das Letras, 1994.

125
e ainda hoje, uma série de etnias indígenas diversas, falantes de diferentes
línguas e praticantes de diferentes hábitos culturais. Os portugueses, em um
primeiro momento, mantiveram contato apenas com os índios localizados
nas costas brasileiras. Ainda hoje, as técnicas de saúde aplicadas por povos
indígenas do Brasil são bastante variadas, sendo impossível abarca-las em
um sistema e visão únicos.
De maneira diferenciada do mundo europeu, onde existia
uma grande divisão dos agentes de cura, muitas vezes não respeitada, nas
comunidades indígenas muitos detinham os conhecimentos para tratar
doenças. Era, porém, a figura do Pajé ou líder espiritual que tinha maiores
poderes e exercia as propriedades da cura. Durante os rituais o Pajé (Xamã),
figura central no ato da cura, com o auxílio de suas entidades protetoras,
geralmente vindas da natureza, realizava a expulsão da doença e restabelecia a
saúde do doente. Muitas dessas curas eram realizadas através do contato com
guias espirituais, que poderiam aparecer em diferentes formas. Pensando
na atualidade, podemos citar o exemplo da etnia Kaingang, que constitue
atualmente um dos grupos indígenas mais populosos no Brasil, encontrados
nos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Segundo o antropólogo Robert Crépeau:

As ligações mantidas com esse animal-auxiliar são concebidas e descritas pelo


xamã como uma relação matrimonial marcada pelo vivo ciúme do auxiliar. Um
xamã não pode revelar a identidade de seu animal-auxiliar sob pena de perdê-lo ou
experimentar sua vingança. Antes de entrar em contato com seu auxiliar, o xamã deve,
cada vez, se abster de todas as relações sexuais no domínio humano. Em retorno, o
auxiliar dá ao xamã um acesso privilegiado aos animais de caça – que são descritos
como vindo literalmente a ele – e ele o assiste no tratamento dos doentes indicando-
lhe as plantas, sua preparação, a posologia e a duração da dieta que o paciente deve
respeitar.8

Em relação ao início do contato entre indígenas e europeus, o século


XVI assistiu a uma grande proliferação dos saberes sobre plantas. E nisto se
tem grande papel as cátedras que se dedicavam ao estudo da história natural,
onde cada vez mais floresciam estudos sobre as classificações das plantas e o
desenvolvimento de herbários e jardins botânicos9, embora estes só tenham
sido mais frequentes no Brasil no fim do século XVIII e principalmente
no século XIX. Essa atmosfera naturalista com certeza influenciou de
8. CRÉPEAU, Robert R. A prática do xamanismo entre os Kaingang do Brasil meridional: uma breve
comparação com o xamanismo Bororo. Porto Alegre, Horizonte antropológico,v.8 n.18. Dec. 2002.
9. MARQUES, Op. Cit., p.41.

126
sobremaneira os colonizadores e viajantes que se deslocaram para o novo
mundo.
Os primeiros estudos da flora local foram feitos pela necessidade
e sem muitos métodos. A verdade é que acabavam sendo revelados pelos
acontecimentos do dia-a-dia e alguns mais curiosos faziam pequenas
expedições. Muitos desses estudos estão relacionados à Companhia de Jesus,
que nos fins do séc. XVI e início do XVII possuiu alguns representantes
importantes no que diz respeito a observação e análise das plantas brasileiras.
Sua participação no desbravamento das plantas medicinais no Brasil foi
considerável, pois no seu contato direto com os indígenas estabeleceram
relações de grande absorção de conhecimentos e divulgação da farmacopéia
indígena. Quem indicava aos portugueses as novas plantas que serviriam
como tratamento foram os índios e, em grande parte, através do contato
com os jesuítas. Apesar da influência nociva que exerceram junto às culturas
nativas, foram eles os maiores responsáveis pela preservação de parte de seus
hábitos e conhecimentos.10
Os novos acontecimentos que fazem parte do contexto de maior
investimento português em pesquisas neste campo surge apenas no século
XVIII, onde acontece a formação dos gabinetes de pesquisa em ciência natural
e o incentivo cada vez maior de envio de plantas brasileiras a Portugal, muitas
dessas plantas destinadas a compor jardins botânicos na Europa. Outro fator
importante foram os agentes de cura enviados à colônia, que exerceram suas
funções em um intercâmbio com os conhecimentos silvícolas. É necessário
pensar que mesmo com essas trocas, os conhecimentos dos índios não
deixaram de ser criticados, considerados por muitos como inferiores. Muitos
viajantes consideravam a medicina exercida pelos indígenas como atrasada e
inoperante: “d’elles se conta o mesmo que de outras muitas nações d’America
[...] chegando ou a envelhecer, ou apadecer d’aquellas enfermidades, que sua
grosseira medicina não sabe remediar [...]”11 .
Interessante é também observar que algumas das teorias sobre doença
e cura oriundas do período do Renascimento tem relação com as concepções
coloniais, que partem principalmente de uma necessidade de significação da
moléstia assumida pelas sociedades. A “doutrina dos sinais” ou “teoria das
assinaturas” é uma forma de tratamento das doenças que foi bastante utilizada
10. MONTEIRO, Paula. Da doença à desordem. Rio de Janeiro: Graal. 1985, p.24.
11. FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica ao Rio Negro, s.l., s.ed., 1783-1792; reim-
pressão fac-similiar, Pará,Museu Paraense Emílio Goeldi, s.d.3 apud SANTIAGO, Fernando. Op.
Cit. P.31

127
por indígenas habitantes das Américas e foi registrada por muitos viajantes
que aqui estiveram.

As plantas curativas apresentariam marcas indicadoras de seus usos terapêuticos,


de tal maneira que vegetais cujas folhas tivessem forma de coração, por exemplo,
estariam indicadas para as doenças decorrentes de problemas relacionados ao
músculo cardíaco. A cor das plantas também seria um importante orientador de
virtudes. As amarelas serviam para os males provenientes do fígado, as vermelhas
para as disfunções sanguíneas e assim sucessivamente.12

Assim, a partir do século XVI, houve um intuito cada vez maior


de alguns curiosos para se dedicarem ao primeiro momento do estudo da
flora americana e as plantas denominadas “exóticas”. São estudos de pessoas
como Manuel da Nóbrega, José de Anchieta, Fernão Cardim, Gabriel Soares
de Souza, Magalhães Gândavo entre outros. Muitos desses, como Cardim,
Nóbrega e Anchieta eram padres da Companhia de Jesus e tiveram papel muito
importante no contato com o povo da terra. Através de suas farmacopeias e
coleções de receitas, eles divulgaram os segredos do receituário indígena não
só na colônia, mas também na Europa.
A despeito do fato de combaterem o misticismo dos curandeiros,
Gilberto Freyre aponta a vontade dos jesuítas em absorver os conhecimentos
botânicos dos índios recorrendo às palavras de Frei Caetano Brandão:”É
provável que nas mãos de um curandeiro indígena estivesse mais segura a
vida de um doente, no Brasil dos primeiros tempos coloniais, do que nas de
um médico do reino estranho ao meio e à sua patologia”.13
Mais nem só de interesse foi formada a opinião daqueles que viam
a maneira como curavam os índios: muitos olhavam essas práticas com
grande descrença e má impressão. Esse povo, que tinha “a mata como sua
farmácia”, como diria depois o naturalista Von Martius quando esteve no
Brasil em 1844, era considerado inferior segundo os discursos europeu
dos séculos XVI e XVII. “Sem fé, lei, religião e nem civilização alguma” 14,
os índios americanos eram tratados como “seres irracionais”, por não serem
letrados e por não cultuarem um deus cristão. Porém, se os saberes indígenas
foram desacreditados no nível discursivo, no nível prático é bem diferente,
12. Ibidem. p.42.
13. FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: Formação da Família Brasileira sob regime da eco-
nomia patriarcal. Rio de Janeiro: José Olimpo. 1934, p.254.
14. SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil (1587). São Paulo: Nacional 1987, p.
79. Apud MARQUES, Op. Cit. p.61.

128
como nos mostra o relato de Guilherme Piso, naturalista que esteve no Brasil
entre 1637 e 1644: “Uma vez conhecida a natureza do veneno, colhem nas
selvas mais depressa do que se poderia dizer, ervas eficacíssimas que moídas
subministram aos doentes sob o modo de poção, e suscitam o alento quase
extinto”15.
Muito embora algumas dessas práticas indígenas tenham
desaparecido, em alguns casos por guerras entre as nações indígenas, em
outros por causa da catequização, essa cultura de cura do “novo mundo”
foi perpetuada por esses próprios europeus. Um grande passo para essa
divulgação na Europa do poder das plantas da América foi a publicação
da primeira farmacopeia oficial portuguesa, em 1794, que continha vários
conhecimentos sobre a flora brasileira.
Outras farmacopéias já haviam sido organizadas anteriormente,
mas esta ganha destaque por ser oficial e ter o intuito de servir como livro
didático para os estudantes de botânica do reino português. Essa nova
farmacopeia e as posteriores tinham ainda o objetivo claro de padronizar um
conhecimento que antes parecia disperso e muito suscetível a interpretações
consideradas equivocadas. Esse trecho do Alvará concedido por D. Maria
para a Farmacopeia Geral para o Reino e Domínios de Portugal nos mostra
bem esse interesse na padronização:

[...] desordem, com que nas boticas de meus reinos, e domínios se fazem as
preparações, e composições, por falta de uma farmacopeia, que sirva para regular
a necessária uniformidade das ditas preparações, e composições; e sendo certo, que
sem que haja esta uniformidade, é impossível que a medicina se pratique sem riscos
de vida, e saúde de meus fiéis vassalos, deixando-se à vontade, e capricho de cada
um dos boticários adotar diferentes métodos de compor, e preparar os remédios[...]16

É importante falar de dois personagens extremamente relevantes na


vida da colônia: o boticário e o cirurgião barbeiro. A importância deles é
ainda mais relevante ao se pensar que a formação das primeiras faculdades
de medicina no Brasil só aconteceu no século XIX, e que ainda após essa
formação, o médico não teve tanta popularidade entre o povo. Mesmo assim,
o boticário muitas vezes esteve à margem da medicina, sendo considerado
um mero executor das tarefas do médico. A arte médica era considerada
nobre e o boticário faria a parte mecânica. Ele era o “cozinheiro dos médicos”:
15. PISO, Guilherme. História natural do Brasil ilustrada. São Paulo: Nacional. 1948, p.8. Apud
MARQUES, Op. Cit. p. 66.
16. ANRJ. Códice 441. Alvarás da Rainha. Documento nº 17. Apud MARQUES, Op. Cit., p. 78.

129
Boticário – O que tem botica, vende drogas medicinais, e faz mezinhas. Os
boticários são cozinheiros dos médicos; cozem e temperam quando nas
receitas lhe ordenam. [...] Boticário quando faz as mezinhas que o médico
ordena, se houvera de chamar propriamente medicamentarius.17
O boticário nem sempre foi retratado com uma visão tão negativa,
mas um dos fatores que possibilitou esse rebaixamento da profissão foi o
crescimento, em grande proporção, do número de profissionais desta área.
Havia, ainda, o fato de não conseguirem manter os costumes da nobreza, por
sua situação econômica e também por exercerem um trabalho mais manual,
muito pouco prestigiado entre os nobres portugueses.
Em terras brasileiras, o número desses profissionais cresceu a curtos
passos. No século XVI, eram boticários no Brasil alguns poucos padres jesuítas
em seus colégios e integrantes de ordens religiosas. Várias das descobertas
que se tornaram posteriormente recursos terapêuticos na Europa surgiram a
partir das práticas desses boticários jesuítas que, no contato com os indígenas,
desenvolveram remédios utilizando produtos desconhecidos como a quina, a
ipecuanha, a copaíba, o guaco, entre outros. As Ordens Religiosas já tinham
grandes ressalvas com relação aqueles que poderiam ou não exercer essa
profissão na colônia e isso se deve em grande parte ao fato de muitos que
fugiam da inquisição portuguesa se estabeleceram como boticários no Brasil,
atuando também como curandeiros: “Os que houverem de ser admitidos
ao partido da medicina, não hão de ter raça de judeu, cristão-novo, nem
mouro, nem proceder de gente infame, nem ter doenças contagiosas; hão de
ser de habilidade, e esperanças, e sendo possíveis honrados, e de boa graça e
pessoa”18.
Outro fator que fazia com que sofressem com desdém da sociedade é
o fato de serem acusados muitas vezes de vender os remédios a preços acima
do estabelecido, ou utilizarem fórmulas erradas com certa displicência: “[...]
É preciso haver grande cautela e vigilância com estes boticários, por serem
todos ladrões que só cuidam em roubar a real fazenda, carregando-lhe sempre
os remédios por maior preço do que manda o regimento [...]”.19
O longo período em que os boticários são os responsáveis pela venda
de medicamentos no Brasil e a constante briga destes com mercadores
17. Verbete pesquisado em BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Coimbra: Colle-
gio das Artes da Companhia de Jesus. 1712 – 1728. 8 v., p.169.
18. MARQUES, Op. Cit., p.170.
19. Carta do governador de Santa Catarina, Francisco de Souza Meneses ao vice-rei, em 27 de maio
de 1711. Apud MARQUES, Op. Cit., p. 174.

130
locais, levaram a Coroa a criar regimentos para a venda de medicamentos.
E os boticários, embora marginalizados, tinham que estar de alguma forma
inclusos nestes regimentos, pois muitas vezes acabavam exercendo todas
as artes da cura sozinhos, sendo difícil até o século XIX, encontrar-se uma
equipe completa de peritos na arte de curar no Brasil, ou seja, composta por
médico, cirurgião, boticário e barbeiro na mesma comunidade.
Muitas dessas atividades atribuídas aos boticários, embora não fosse
por decreto de sua responsabilidade, eram desenvolvidas por barbeiros.
Segundo Lycurgo Santos Filho, as lojas de barbeiros da colônia eram locais
de reunião de homens da época. Embora esses barbeiros necessitassem de
carta de habilitação para exercerem suas atividades, poucos as obtiveram;
mesmo assim, além de fazerem a barba e cortarem o cabelo dos clientes,
ainda realizavam pequenas cirurgias e a aplicação de ventosas, sanguessugas
e clisteres.20
A história do contato não tem, de qualquer maneira, só um lado. O
contato português com o Brasil no campo da medicina é vasto. É de grande
exploração, mas é motivado, também, pela necessidade eminente que aqui
encontraram nos primeiros tempos da chegada, em conseguir na natureza os
remédios que suprissem os problemas com saúde que estavam enfrentando
nessas novas terras. As causas econômicas neste primeiro momento
parecem secundárias, e é principalmente a partir do século XVIII que irão
se desenvolver de uma maneira mais intensificada. Pelo menos em relação
à história da saúde e da medicina, o contato português com o Brasil foi
permeado por essa necessidade inicial.
Conforme procurou se demonstrar neste artigo, a religiosidade,
a busca pela cura na colônia e na metrópole e a necessidade de sobreviver
nos primeiros momentos da vida colonial não podem estar separados.
A intensa busca de Portugal por novos meios de progresso econômico
encontrou barreiras naturais, como também estabeleceu novas necessidades
e introduziu grandes perdas em determinados momentos. O intercâmbio de
produtos medicinais neste momento não tinha um incentivo oficial da coroa
portuguesa; porém, o homem sempre encontrou a necessidade de buscar a
cura de suas moléstias.
Abordando o período colonial, podemos ver a importância de estudar
as transformações pelas quais as práticas médicas passaram. O intercâmbio
20. SANTOS FILHO, Lycurgo de Castro. Historia geral da medicina brasileira. São Paulo: HUCI-
TEC. 1977, p.340.

131
ecológico fez parte da organização deste novo mundo conhecido. A história
das práticas médicas foi, por muito tempo, um campo afastado dos estudos de
historiadores, estando reservado a médicos, que quase sempre realizavam uma
história factual, que pouco dava voz aos pacientes e a temáticas consideradas
periféricas, exaltando a figura do médico como provedor da cura e do bem
estar social.
Torna-se necessário explorar uma história da saúde que parta também
de um estudo da história das mentalidades e das sensibilidades corporais dos
participantes do corpo social. O uso dos fármacos locais e sua difusão pelo
mundo nos conta um pouco mais dessa história. “Cada sociedade reconhece
doenças específicas. Além disso, a doença constitui sempre um estado com
muitas implicações sociais: Estar doente ou em boa condição física são coisas
muito diferentes socialmente”.21

21. ADAM, Philippe; Claudine Herzlich. Sociologia da doença e da Medicina. Bauru, SP:
EDUSC,2001. p.21

132
BIBLIOGRAFIA
• ADAM, Philippe; Claudine Herzlich. Sociologia da doença e da Medicina.
Bauru, SP: EDUSC,2001.
• BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Coimbra: Collegio
das Artes da Companhia de Jesus. 1712 – 1728. 8 v.,
• CRÉPEAU, Robert R.. A prática do xamanismo entre os Kaingang do
Brasil meridional: uma breve comparação com o xamanismo Bororo.
Horiz. antropol. vol.8 no.18 Porto Alegre Dec. 2002
• CROSBY, Alfred W. Imperialismo Ecológico. A expansão biológica da
Europa: 900-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
• FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica ao Rio Negro, s.l.,
s.ed., 1783-1792; reimpressão fac-similiar, Pará,Museu Paraense Emílio
Goeldi, s.d.3.
• FERREIRA, Luís Gomes. Erário Mineral/ Luís Gomes Ferreira; org. Júnia
Ferreira Furtado. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de
Estudos Históricos e Culturais; Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz,
2002.
• HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo.
Companhia das Letras, 1994.
• MARQUES, Vera Regina Beltrão. Natureza em Boiões: Medicinas e
Boticários no Brasil Setecentista. Campinas-SP: Unicamp,1999.
• MONTEIRO, Paula. Da doença à desordem. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
• PISO, Guilherme. História Natural do Brasil ilustrada. São Paulo:
Nacional. 1948
• PORTER, Roy. Das tripas o coração. Uma breve história da medicina. Rio
de Janeiro. Record, 2004.
• RIBEIRO, Márcia Moisés. A ciência dos Trópicos: A arte médica no Brasil
do século XVIII. São Paulo. Hucitec, 1997.
• SANTOS, Fernando Santiago dos. As plantas brasileiras, os jesuítas e
os indígenas do Brasil: História e ciência na Triaga Brasílica (séc.XVII-
XVIII), Casa do Novo Autor Editora / São Paulo / 2009.
• SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil (1587). São
Paulo: Nacional 1987

133
Para saber mais…
Isaac Facchini Badinelli

As farmacopeias, durante a história do conhecimento médico e


farmacêutico, tiveram importante papel na difusão do conhecimento
sobre o uso de substâncias de origem vegetal, animal e mineral pelo
homem, tentando garantir uma maior qualidade nos medicamentos
e a organização de um sistema completo que tratasse dos produtos
utilizados por médicos, boticários, mezinheiros, entre outros. Na
Europa do século XVII e XVIII, os mais diversos tipos de medicamentos
eram utilizados. Os chamados “simples”, encontrados na natureza,
eram empregados em forma de emplastos e chás, juntamente com
práticas terapêuticas como as sangrias, as purgas e os clisteres. Uma
definição possível para as farmacopeias seria:“ Um livro oficial
que normaliza os diversos aspectos relacionados com a produção
medicamentosa, as matérias primas necessárias a essa produção bem
como um conjunto de ensaios diversos fundamentais na dinâmica de
produção de medicamentos. É editada para servir em um país ou uma
zona territorial” 22
A necessidade de escrever sobre os “simples” conhecidos e sobre
as novas descobertas, fez com que fossem surgindo as primeiras
farmacopeias não oficiais em Portugal, quase no mesmo período em
que estas eram também produzidas na Espanha. Esta era divulgada
sem o amparo do Estado português.
Data de 1704 uma das primeiras farmacopeias conhecidas durante
o período da colônia que, portanto, já apresentava saberes trazidos
da região: era conhecida como “Pharmacopeia Lusitana” e era de
autoria de D. Caetano de Santo Antônio. No início, o intuito maior
destas obras foi uma orientação regional, sendo que mais tarde, com o
avançar do século XVIII, um século onde se produziu grande número
de farmacopeias, elas foram se espalhando por todo o reino.23
Ao longo do século, outras farmacopeias foram surgindo, com
destaque para a Pharmacopeia Ulyssiponense, de João Vigier, onde
22. PITTA, João Rui. Um livro com 200 anos: A farmacopeia Portuguesa (Edição Oficial) - A publi-
cação da primeira farmacopeia oficial: Pharmacopeia Geral (1794). Revista de História das Ideias.
Coimbra, v.20,p.48.1999.
23. Idem.

134
já aparecem formulações químicas. A Pharmacopeia Tubalense,
considerada a de maior divulgação em território português entre as
não oficiais foi publicada em 1735, pelo boticário Manuel Rodrigues
Coelho. Também foram importantes a Pharmacopeia Lisbonense,
do boticário Manuel Joaquim Henriques de Pádua, de 1785 que,
juntamente com os apontamentos feitos no livro “ Instituições e
elementos da Fármacia”, do Médico e lente da Universidade de Coimbra
José Francisco Leal, ajudaram a dar origem a primeira farmacopeia
oficial do Reino Português de 1794.
Alguns aspectos fizeram com que, em 1794, fosse necessária a
publicação da Pharmacopeia Oficial Portuguesa. Existiu, no momento,
levando em consideração os tratados não oficiais, uma necessidade
de formalizar e padronizar o conhecimento que seria praticado em
todas as regiões do reino, além de facilitar a fiscalização por parte das
instituições médicas portuguesas, como a atuação do Físico-Mor, que
tinha como função licenciar as boticas24.
Outro ponto se dava em relação ao interesse mais amplo que
o conteúdo abarcava, sendo o tema importante para um maior
desenvolvimento das práticas sanitárias e das normas delas advindas.
Isso dizia respeito, principalmente, às colônias portuguesas onde
a preocupação com a propagação de doenças, que prejudicavam
a exploração econômica, era cada vez maior. Além desses fatores, a
própria expansão e conquista de novos territórios como o Brasil, e a
formação de um maior número de vilas e povoados no século XVIII,
foram motivos que levaram a formulação de uma farmacopeia oficial.
A publicação da Farmacopeia Oficial em Portugal acontece em
um momento de modificação na arte médica e no ensino da medicina
na Metrópole, que passava por transformações impulsionadas pela
Reforma no ensino universitário Português surgida com o Marques de
Pombal, além da introdução dos conhecimentos químicos no preparo
de medicamentos. Desta maneira, a publicação destas farmacopeias
foi fundamental para a divulgação dos conhecimentos sobre as plantas
medicinais e a arte da cura em todo o reino português, definindo regras
mais claras, que foram, entretanto, comumente burladas durante o
século XVIII e XIX.
24. FURTADO, Júnia Ferreira. A Medicina na Época Moderna apud STARLING, Heloisa Maria
Murgel; GERMANO, Lígia Beatriz de Paula; MARQUES, Rita de Cássia Marques (org). Medicina:
História em exame. Belo Horizonte: ed. UFMG. 2011. p. 42.

135
Trabalhando com fonte histórica

SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587.


Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Itatiaia,2001.p.161.

CAPÍTULO LXIII
Em que se declara a virtude de outras ervas menores.

Há outras ervas menores,pelos campos, de muita virtude, de que se


aproveitam os índios e os portugueses, das quais faremos menção
brevemente neste capítulo, começando na que o gentio chama tararucu,
e os portugueses de fedegoso. Esta erva faz árvore do tamanho das
mostardeiras, e tem as folhas em ramos, arrumadas como folhas de
árvores, as quais são muito macias, da feição das folhas de pessegueiro,
mas têm o verde muito escuro, e o cheiro da fortidão da arruda; estas
folhas deitam muito sumo, se as pisam; o qual de natureza é muito frio,
e serve para desafogar chagas; com este sumo curam o sesso dos índios
e das galinhas, porque criam nele muitas vezes bichos de que morrem,
se lhe não acodem com tempo. Estas ervas dão umas flores amarelas
como as da páscoa, das quais lhes nascem umas bainhas com sementes
como ervilhacas.

Pelos campos da Bahia se dão algumas ervas que lançam grandes


braços como meloeiros, que atrepam se acham por onde, as quais dão
umas flores brancas que se parecem até no cheiro com a flor de legação
em Portugal; cujos olhos comem os índios doentes de boubas, e outras
pessoas; e dizem acharem-se bem com eles, e afirma-se que esta é a
salsaparrilha das Antilhas.

Capeba é uma erva que nasce em boa terra perto da água, e faz árvore
como couve espigada; mas tem a folha redonda, muito grande, com pé
comprido, a qual é muito macia; a árvore faz um grelo oco por dentro,
e muito tenro e, depois de bem espigada, lança umas candeias crespas
em que dá a semente, de que nasce. Esta erva é de natureza frigidíssima,
com cujas folhas passadas pelo ar do fogo se desafoga toda a chaga e

136
inchação que está esquentada, pondo-lhe estas folhas em cima; e se
a fogagem é grande, seca-se esta folha; de maneira que fica áspera, e
como está seca se lhe põe outras até que o fogo abrande.

Eugenia uniflora

137
8. Ewé, cura e magia: o uso das plantas medicinais no
candomblé
Diego Schibelinski

Toda desigualdade socioeconômica de longa duração, existente entre


diferentes grupos de uma mesma sociedade, apresenta elementos históricos
fundadores, mecanismos responsáveis por sua propagação e transmissão,
bem como processos de sustentação desta assimetria ao longo do tempo.
No Brasil, a origem das atuais desigualdades raciais são bem fáceis de
serem identificadas; afinal, por muito tempo nosso país adotou um regime
escravagista de trabalho, uma das formas mais radicais de exclusão sociais já
vistas.
A escravidão negou, durante séculos, a homens, mulheres e crianças,
não só a remuneração por seu trabalho e o livre arbítrio, mas também
toda e qualquer possibilidade de aquisição e de acumulação de riqueza, de
propriedade, de educação e outros ativos. Essas pessoas tiveram seus direitos
civis, políticos, econômicos, sociais cerceados, não sendo reconhecidas nem
sequer sob o status jurídico de pessoa, mas sim vistas apenas como um bem,
uma propriedade1.
Os dados apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatísticas (IBGE), referentes ao censo populacional realizado no ano de 20102,
apontou que a população brasileira era de 190.755.799 habitantes. Dentre
estes, 97.171.614, ou seja, cerca de 50,9% da população, se autodeclarava preta
ou parda, superando aqueles que se autodeclaravam brancos. Com relação
aos dados obtidos no campo da religião adotada pelos brasileiros, a pesquisa
aponta que 574.694 pessoas declararam pertencer a algum tipo de religião de
matriz africana – umbanda ou candomblé. A maior parte da população ainda
é católica, 64,6%. A Organização das Nações Unidas (ONU), em parceria com
a UNESCO, declarou em 2013 que o Brasil possui a terceira maior população
negra do mundo.
O que se percebe, ao analisarmos estes dados, é que a ideia de uma
cultura de miscigenação, tão difundida ao longo das primeiras décadas do
século XX – e que teria permitido que brancos, negros e índios convivessem

1. MARTINS, Roberto Borges.Desigualdades raciais e políticas de inclusão racial: um sumário


da experiência brasileira recente. Revista CEPAL, Santiago de Chile, n.82, p.13. abr. 2004.( Série
Políticas sociais)
2. Disponivel em : http://censo2010.ibge.gov.br/. Acesso em: 28 de outubro de 2013.

139
de forma harmoniosa, em um intercâmbio de valores e culturas de forma
a garantir uma democracia racial – parece não ter ocorrido da maneira
esperada. Afinal, o que os números apontam é que, ainda como ocorria
nos tempos da escravidão, o preconceito e a discriminação tem feito com
que comunidades e etnias não hegemônicas continuem ocupando lugares
secundários na sociedade brasileira.
Isso fica muito claro se levarmos em consideração que mais da metade da
população de nosso país é formada de afrodescendentes ou tem descendência
indígena, quando não os dois e, no entanto, a religião hegemônica ainda é o
catolicismo, a religião do homem branco e colonizador. Os números apontam
um baixíssimo número de pessoas que se autodeclararam ligados ao cultos das
religiões de matriz africana, um claro reflexo do processo de marginalização
sofrida por estes grupos que, talvez mesmo fazendo parte dessas religiões,
preferem se declarar católicos, evitando assim situações discriminatórias.
As religiões de matriz africana ainda sofrem muito preconceito em
nosso país, seus membros são perseguidos, seus templos destruídos, tudo isso
em prol de um preconceito religioso, social e cultural fundamentado na mais
pura intolerância e abastecido por um sem fim de estereótipos e inverdades
que são fruto de um desconhecimento da própria história do povo brasileiro.
Apesar disso tudo, muito da cultura dos primeiros homens e mulheres
que foram trazidos ao Brasil, sobre o julgo da escravidão, ainda resiste e se
mantem. Nesse texto, vamos falar sobre o candomblé brasileiro e alguns de
seus aspectos. Buscaremos compreender, de forma breve, um pouco de sua
constituição e manutenção e como esse de como essa religião construiu um
saber médico-religioso sobre as plantas que utiliza.
O Brasil foi a maior nação escravista do “Novo Mundo”, recebendo
cerca de um terço de todos os escravos trazidos para a América. Foi, também,
o mais ativo participante do tráfico atlântico de escravos e o maior importador
de africanos, em todos os períodos3: acredita-se que, no total, o Brasil tenha
recebido cerca de 3.600.000 escravos4.
No entanto, infelizmente, ainda conhecemos muito pouco sobre a
experiência dos homens, mulheres e crianças das diferentes etnias africanas que
colonizaram nosso país por mais de 300 anos. Apesar de serem reconhecidas

3. MARTINS, Roberto Borges. Op. Cit. p.15.


4. CURTIN, Philip D. The Atlantic Slave Trade. A Census. Madison: University of Wisconsin, 1969.
Instituto Brasileiro Geografico de Estatística (IBGE).p.88. Disponível em : www.ibge.gov.br. Acesso
em: 20 de janeiro de 2014.

140
características genéricas de uma “herança africana” na mestiçagem cultural
brasileira, as informações que reconstroem a imagem dos africanos da
primeira geração que viveu no Brasil se diluíram rapidamente na memória
popular ao longo do século XX5.
Porém, conhecer a experiência dos grupos africanos na diáspora tem
sido o objetivo de um novo campo da historiografia que, ao lado de um
projeto da UNESCO intitulado “a rota dos escravos”, vem buscando traçar
o tempo da trajetória dos grupos étnicos através do Atlântico e observar
sua dispersão geográfica nas Américas. Esse novo campo tem buscado ver
o escravo não mais como uma massa uniforme, mas levando em conta a
variedade de relações dentro do sistema escravista, através da identificação
das rotas atlânticas e terrestres6.
Já se sabe que o tráfico era abastecido por três regiões principais: a
Costa Ocidental da África, onde se destaca principalmente a região da Costa
da Mina; a África Centro Ocidental, principalmente os grandes portos
de Angola e do Congo; e a Costa Oriental, com destaque para a região de
Moçambique7.
Ao longo de todo o processo de trafico negreiro, o que se percebe é que
muitas regiões do país acabaram por construir fortes relações com regiões do
continente africano que eram a origem da maior parte dos escravos recebidos.
Pierre Verger chamou esse processo de “refluxo” e ele pode ser claramente
observado no caso das relações construídas ente Salvador e o Golfo do Benin,
na Costa Ocidental da África. Relação similar também foi construída entre
o Rio de Janeiro e a Costa Centro Ocidental, de onde os escravos vinham
principalmente das cidades de Luanda, Cabinda e Benguela. Tal fenômeno é
responsável pela formação de diferentes manifestações do candomblé ao longo
do território brasileiro: o candomblé praticado no Rio Grande do Sul, por
exemplo, era diferente daquele praticado na Bahia, fortemente influenciado
pelo alto número de africanos vindos da costa ocidental africana, como os
iorubas, tapas, haussás e jejes8.
Quanto à influência que cada um desses grupos teve sobre a formação
do candomblé, o que podemos constatar é que dos sudaneses e bantos veio
a influência politeísta, a ideia dos deuses como controladores das forças da
5. MAMIGONIAN, Beatriz G. África no Brasil: mapa de uma área de expansão. Revista Topoi, Rio
de Janeiro ed. 9, v. 5., p. 33-53.2004.
6. Idem.
7. Idem.
8. Idem.

141
natureza, o ritual do transe como mecanismo de comunicação entre homens e
as divindades, o uso do oráculo na decifração dos mistérios do futuro, o culto
a ancestralidade e o sacrifício ritualístico. Dentre os sudaneses, dois grupos
destacam-se: os iorubás, que chamavam seus deuses de orixás e os jejes ou
ewe-fons, que trouxeram consigo a religião dos voduns, pouco difundida em
território brasileiro, tendo tido êxito em sua disseminação apenas na Bahia e
no Maranhão.
Com o tempo,o culto dos jejes e dos iorubas acabaram se misturando
e assumindo novas formas. Os bantos chegaram ao Brasil um pouco antes
e perderam a prática de adoração a seus deuses que, fundamentalmente
enraizados a terra geográfica onde viviam, não resistiram à diáspora. Seus
deuses eram chamados de inquices e, dentre todos ele, apenas um sobreviveu
e teve seu culto absorvido pelos outro modelos de candomblé: Tempô, o
inquice ligado ao tempo cronológico. Apesar disso, os cultos bantos foram
capazes de incorporar divindades presentes nas religiões indígenas, dando
origem assim ao candomblé de caboclo9.
O Brasil teve a escravidão como principal fonte de mão de obra desde
o inicio de sua colonização; ao longo dos séculos, negros e índios sofreram
o julgo do trabalho forçado. A propriedade de escravos era largamente
disseminada na sociedade brasileira e, ao chegarem aos principais portos do
país, os escravos vindos da África eram tratados como mercadoria. Podiam
ser comprados, vendidos, alugados, taxados, penhorados, legados como
herança ou sequestrados como pagamento de dívidas.
A economia nacional era altamente dependente do trabalho escravo
e, ao contrário do que apontou uma ideia por muitos anos aceita, o escravo
não servia apenas ao trabalho braçal repetitivo, sob estreita supervisão, tão
comum nas regiões onde predominava a plantation exportadora (de açúcar, de
café ou de algodão) ou a mineração em larga escala. O escravo foi trabalhador
braçal das minas, engenhos, foi carregador e o estivador. Mas também
exerceu inúmeras outras funções, como músico, escultor, artesão, pedreiro,
marceneiro, pintor, ferreiro, alfaiate, tropeiro, ourives, mecânico, gerente,
administrador, marinheiro, soldado, vaqueiro, exercendo todos os tipos de
ocupação urbana e rural, tendo sido empregado, inclusive, sistematicamente
e com sucesso, na indústria10.

9. PANDRI, Reginaldo. Herdeiros do Axé: sociologia das religiões afro-brasileiras. São Paulo:
HUCITEC, 1996.p.59.
10. MARTINS, Roberto Borges. Op. Cit.p.16.

142
É importante também considerarmos, que apesar de toda a rigidez do
sistema escravista e do trabalho forçado, essas pessoas de certa forma também
desenvolviam uma vida social, mesmo que restrita a localidade de trabalho
ou diretamente a ele ligada. Existem evidências que sobreviveram até os
nossos dias e que demostram isso, como por exemplo, cantigas de trabalho,
a capoeira, a culinária, idiomas ainda falados, as religiões, entre outros. O
escravo não abandonou completamente seus costumes, suas crenças, sua
língua, e tudo aquilo que o cercava em sua terra. Ele buscou formas, ao longo
dos séculos, de garantir a manutenção destas culturas, mecanismos estes
que muitas vezes foram auxiliados pelo grande fluxo de chegada de novos
africanos.
Fosse como uma forma de resistência a uma cultura totalmente
desconhecida e que agora lhes era imposta, ou fosse pelo fato de que ao
garantirem a sobrevivência de suas culturas garantiam também que a terra
que lhes foi tirada sobrevivesse dentro deles, esse processo de resistência
cultural se deu de diferentes formas e por maior sucesso que obtivesse, jamais
foi capaz de evitar influências externas.
Foi na área da antropologia que surgiram os primeiros trabalhos
que se destinavam ao estudo dos afro-brasileiros e de sua cultura: Nina
Rodrigues foi um dos pioneiros nessa área. É nesta área, também, que existem
divergências com relação as consequências desse processo de assimilação, de
transformação desse africano em latino, ou, no nosso caso, em brasileiro.
Melville J. Herskovits afirma que, apesar de todo o flagelo causado, a escravidão
permitiu a manutenção e a sobrevivência de redes inteiras de cultura que
eram úteis e que preenchiam uma função indispensável na organização
social desses grupos. Já E. Franklin Frazier, ao analisar a práxis em oposição
a teoria, é categórico em afirmar que a escravidão destruiu completamente a
cultura negra pois, ao readaptar-se construindo novas interpretações,trouxe
para si valores de uma sociedade ocidental, contaminando seus costumes,
dissolvendo sua estrutura11.
A fragmentação das estruturas sociais nativas, dos grupos familiares,
a existência de um novo ritmo de trabalho, as novas condições de vida agora
impostas pela escravidão e toda uma ordem social destruída e impedida de
se reproduzir, foram elementos que contribuíram para que ruíssem as bases
que fundamentavam e davam sustento a essas religiões. Isso ocorreu porque,

11. BASTIDE, Roger. As américas negras: as civilizações africanas no novo mundo. São Paulo: Ed.
da Universidade de São Paulo, 1974.p.07

143
em sua maioria, elas eram ligadas ao culto de ancestrais e à terra: a estrutura
social onde o negro se encontrava agora inserido não tinha mais nada a ver
com aquela de sua origem. Ele perdera sua família, fora afastado seu grupo
e de sua terra, perdendo seu status social e tendo seus costumes totalmente
ignorados ao ser considerado apenas como uma propriedade.
Mudanças tão drásticas exigiram uma reformulação dentro do campo
religioso, que o tornasse independente de sua linhagem e de seus laços com
sua terra de origem. Isso fez com que houvesse apenas um desenvolvimento
parcial das religiões negras no Brasil mantendo-se, assim, os rituais mais
importantes para a vida cotidiana. Foi abandonado todo culto ligado aos
antepassados, que antes ocupavam lugar de destaque e era responsável por
toda manutenção da ordem e equilíbrio do coletivo, que não mais existia.
Um culto genérico foi construído, direcionado as divindades mais
diretamente ligadas a forças da natureza e a manipulação mágica do mundo.
Esta nova religião voltava-se agora muito mais para a construção das
identidades pessoais do que para o controle da vida social, uma vez que agora
em condição de escravidão, os indivíduos não possuíam o menor controle
sobre esse aspecto12. Condenados a uma condição servil, esses grupos tinham
frequentemente aspectos culturais impostos por seus senhores desde, por
exemplo, o uso da língua portuguesa – que se apresentava como a única
maneira de comunicação entre o senhor e seu escravo – até a influência
religiosa.
Desta forma, desde sua formação no Brasil, as religiões africanas tem
sido tributárias do catolicismo. A grande maioria dessas pessoas recém-
chegadas do continente e que davam início a uma vida de escravidão, eram
batizadas dentro dos costumes católicos e recebiam novos nomes, comuns na
sociedade luso-brasileira. A partir de muito cedo, o escravo via a imposição
do catolicismo pelo homem branco como uma maneira de atenuar sua
condição. Assim, o sincretismo religioso acaba por assumir um papel muito
mais complexo e importante dentro da manutenção das religiões de matriz
africana uma vez que, mais do que proporcionar uma camuflagem que
permitiria sua prática livremente, elas acabaram sendo responsáveis, como já
vimos, pela ocidentalização das mesmas13.
A aproximação com o catolicismo modificou e inseriu importantes

12. PANDRI, Reginaldo (1996). Op. Cit, p. 56.


13. PANDRI, Reginaldo. Segredos guardados: orixás na alma brasileira. São Paulo: Cia das Letras,
2005. p.76

144
aspectos dentro destes complexos religiosos, como a introdução de novos
dogmas e valores ou a adesão de conceitos antagonistas como bem e mal,
virtude e pecado, tão comuns nas religiões judaicas-cristãs, mas pouco
praticadas nas de origem africana mais habituadas a ideia de tabu e suas
especificidades e variabilidades. Essas transformações criaram, de certa
maneira, uma espécie de código de ética universalizado e que permeará
as religiões de matriz africana, desenvolvidas em território brasileiro, em
diferentes formas e proporções. Desta forma, aspectos antes tidos como
naturais, passaram a ser demonizados: isso ocorreu com os orixás que
acabaram por sofrer processos de divinização e demonização, como no caso
de Oxalá e Exu14.
O catolicismo abriu-se como única alternativa possível de ligação do
escravo com o mundo coletivo projetado fora do trabalho escravo e da senzala.
Assim, apesar da reformulação de uma religião negra, mesmo que feita de
maneira fragmentada mas que era capaz de dotar o escravo novamente de
certa identidade, era apenas no catolicismo que se abriam as oportunidades
que possibilitariam seu transito e sua inserção naquela sociedade branca e
dominadora. Livrar-se da condição escrava significava tornar-se cidadão;
assim, construíram-se mecanismos de apagamento de traços que remetessem
à condição superada, sendo a religião a porta de entrada deste processo.
Afinal, esse foi um momento em que ser brasileiro e ser católico eram duas
coisas que estavam demasiadamente imbricadas15.
Resultante desses intercâmbios entre diferentes grupos e religiões, o
candomblé desenvolveu-se em território brasileiro sob diversificadas facetas.
As principais delas foram o Candomblé, praticado na Bahia; o Xangô, popular
na cidade do Recife e no estado de Alagoas; o Batuque, no Rio Grande do
Sul; e nos estados do Maranhão e do Pará, o Tambor de Mina Nagô. Foi
somente após a década de sessenta do século XX, com a popularização e a
crescente adesão das classes mais abastadas ao culto, que o termo candomblé
se generalizou16.
Nos dias de hoje, o candomblé caracteriza-se por ser uma religião
animista e que apresenta forte ligação com o culto de ancestrais. O candomblé
é uma religião monoteísta, apesar de muitos a consideram como politeísta
pelo fato de cultuarem diversas divindades; porém, todas essas divindades,
assim como os homens, foram criadas por um deus supremo. Conhecido
14. Ibidem, p.77.
15. PANDRI, Reginaldo (1996). Op.Cit. p.57.
16. Ibidem,p. 59.

145
como “povo de santo”, seus praticantes reúnem-se nos templos de candomblé
que são conhecidos como casas, roças ou terreiros, e ali prestam cultos a um
panteão de divindades. As divindades adoradas nos templos de candomblé
podem variar segundo a nação a qual aquele templo pertence, uma vez que,
como já vimos, desenvolveram-se diferentes tipos de candomblé a partir de
diferentes grupos africanos. Essas divindades são conhecidas como Orixás,
Inquices ou Voduns e recebem homenagens regulares, com oferendas de
animais, vegetais e minerais, cânticos, danças e roupas especiais.
Na obra Mitologia dos orixás, Reginaldo Pandri, ao realizar um estudo
que busca pesquisar, reunir e preservar a mitologia no candomblé brasileiro
e cubano, nos oferece a chance de conhecer um dos mitos de criação do
mundo segundo o candomblé, e que pode nos ajudar a compreender melhor
sua dinâmica:

No começo não havia separação entre o Orum, o Céu dos orixás,


e o Aiê, a Terra dos humanos.
Homens e divindades iam e vinham,
coabitando e dividindo vidas e aventuras.
Conta-se que, quando o Orum fazia limite com o Aiê,
um ser humano tocou o Orum com as mãos sujas.
O céu imaculado do Orixá fora conspurcado.
O branco imaculado de Obatalá se perdera.
Oxalá foi reclamar a Olorum.
Olorum, Senhor do Céu, Deus Supremo,
irado com a sujeira, o desperdício e a displicência dos mortais,
soprou enfurecido seu sopro divino e separou para sempre o Céu da Terra.
Assim, o Orum separou-se do mundo dos homens
e nenhum homem poderia ir ao Orum e retornar de lá com vida.
E os orixás também não podiam vir à Terra com seus corpos.
Agora havia o mundo dos homens e o dos orixás, separados.
Isoladas dos humanos habitantes do Aiê, as divindades entristeceram.
Os orixás tinham saudades de suas peripécias entre os humanos
e andavam tristes e amuados.
Foram queixar-se com Olodumare,
que acabou consentindo que os orixás pudessem
vez por outra retornar à Terra.
Para isso, entretanto, teriam que tomar o corpo material de seus devotos.
Foi a condição imposta por Olodumare.
Oxum, que antes gostava de vir à Terra brincar com as mulheres, dividindo com elas
sua formosura e vaidade,

146
ensinando-lhes feitiços de adorável sedução e irresistível encanto,
recebeu de Olorum um novo encargo:
preparar os mortais para receberem em seus corpos os orixás.
[...]
Os orixás agora tinham seus cavalos,
podiam retornar com segurança ao Aiê,
podiam cavalgar o corpo das devotas.
Os humanos faziam oferendas aos orixás,
convidando-os à Terra, aos corpos das iaôs.
Então os orixás vinham e tomavam seus cavalos.
E, enquanto os homens tocavam seus tambores,
vibrando os batás e agogôs, soando os xequerês e adjás,
enquanto os homens cantavam e davam vivas e aplaudiam,
convidando todos os humanos iniciados para a roda do xirê,
os orixás dançavam e dançavam e dançavam.
Os orixás podiam de novo conviver com os mortais.
Os orixás estavam felizes.
Na roda das feitas, no corpo das iaôs,
eles dançavam e dançavam e dançavam.
Estava inventado o candomblé.17

Outra característica do candomblé, mas também das demais religiões


de matriz africana, é o frequente uso das plantas. O candomblé apresenta um
longo e tradicional conhecimento sobre uma imensidão de plantas que, além
de serem usadas em caráter ritualístico, estão inseridas dentro da prática de
consumo dessas ervas como forma de terapia.
As plantas utilizadas hoje nas casas de candomblé, ou em todas as
religiões de matriz africana, são resultado de um processo de intercâmbio
cultural vivido ao longo de anos pelos afrodescendentes. Afinal, o
estabelecimento dos povos africanos no Brasil, ao chegarem sob condição
de escravos, os inseriu em uma nova realidade cultural, induzindo-os a um
sistema de trocas recíprocas dos saberes, práticas e crenças, referentes às
plantas, entre os negros e aqueles que aqui viviam – os índios e os europeus.
Neste caso, a contribuição indígena se destaca no processo que substituiu, por
espécies nativas, as plantas antes usadas e que aqui não eram encontradas.
Esse sistema de trocas gerou um novo conhecimento que englobava
o reconhecimento de espécies tropicais e que existiam em comum nos dois
continentes, a assimilação de novas plantas indicadas pelos povos ameríndios

17. PANDRI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Cia das Letras, 2001.p.524-528.

147
e que substituiriam determinada planta africana devido a similaridade de
seus efeitos ou a adoção de novas espécies utilizadas pelos índios e até então
desconhecidas pelos africanos. A prática da importação de plantas africanas
para o território brasileiro também foi muito comum, gerando até mesmo
certa africanização da paisagem natural em determinados locais. Também
houve a assimilação daqueles conhecimentos tidos como coloniais, vindos
da Europa e já disseminados e incorporados pelos que aqui viviam, inclusive
os índios. Esses processos proporcionaram substituições importantes e
que permitiram à manutenção de práticas e rituais de caráter essencial a
sobrevivência destes grupos.
A adaptação de elementos da flora africana ocorreu de maneira muito
variável uma vez que, tanto a África quanto o Brasil, são regiões de grande
heterogeneidade de ecossistemas. Assim, as plantas que acabaram por compor
a farmacopeia de determinado grupo de candomblé, em determinada região
do país está diretamente relacionada a questões regionalistas, permitindo a
existência de diferenças.
Em basicamente todo o sistema de crença das religiões de matriz
africana que se desenvolveram no Brasil, as plantas exercem um papel
mediador entre os dois planos da existência: o aiê – mundo natural – e o
orum – mundo sobrenatural. É através das plantas que são construídos canais
que ligam os homens aos orixás e espíritos antepassados e vive e versa. Dentro
do costume ioruba, por exemplo, as plantas são sagradas, pois nelas estão
concentradas as forças vitais dos orixás. Desta forma, a ligação construída
entre as plantas e os ritos sacros praticados nas religiões afro-brasileiras é de
grande importância18.
Para o candomblé, essas plantas assumem um caráter sacro uma vez
que muitas delas são moradas de divindades e todas elas pertencem aos
orixás, possuindo peculiaridades, segredos e poderes. Pois, mais do que
curar, as plantas no candomblé também possuem um caráter afetivo, são elas
quem conectam homens e orixás19. Existe um ditado na cultura ioruba, muito
comum, que diz: “cosi ewê, cosi orisá”, ou seja, “sem folha. sem orixá”: esse
ditado expressa a extrema importância que assumem as plantas em todo o
processo ritualístico existente no candomblé.
18. ALBUQUERQUE, Ulysses P. de &ANDRADE, Laíse de H. C. As plantas na medicina e magia
dos cultos afro-brasileiros. In.: ___________ ALBUQUERQUE, Ulysses (Org.). Tópicos em con-
servação, etnobotânica e etnofarmacologia de plantas medicinais e mágicas. Recife: NUPPEA/
Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia, 2005. p.51.
19. Ibdem, p.53.

148
As plantas são utilizadas nos rituais de iniciação, de consagração e
instalação dos deuses e santuários. Todos os objetos utilizados em todos os
ritos são banhados por preparados à base de plantas. As festividades, sejam
elas destinadas aos espíritos antepassados ou aquelas ligadas especificamente
a um orixá, se utilizam também das plantas. Os trabalhos, ebós, banhos,
proteções, celebrações, cantos, danças, alimentação, até mesmo o sacrifício,
todos estão intimamente relacionados às ervas.
Como já vimos, as plantas são dos orixás e todos tem sua erva
correspondente, mas é Ossaim o orixá das folhas. A mitologia do candomblé
conta que Ossaim era o senhor das folhas, das ciências e das eras e o único
que conhecia seus segredos, sendo que todos os orixás dependiam delas na
luta contra as moléstias. Até que um dia, Xangô julgou que todos os orixás
deveriam compartilhar do poder de Ossaim, ordenando que Iansã soltasse
um forte vento a fim de arrancar as folhas das florestas de Ossaim. Porém,
Xangô constatou que as folhas haviam perdido seu axé, seu poder, e que
não mais funcionavam. Nesse momento, ele reconheceu a exclusividade de
Ossaim sobre o segredo das plantas. Entretanto, Ossaim deu uma folha a
cada orixá, ensinando-os seus ofós, seus encantamentos. Desta forma, eles
agora também podiam realizar proezas com as ervas, mas somente Ossaim
conhecia os segredos mais profundos e ele jamais os contou a ninguém20.
No candomblé, a prescrição das receitas é feita pelo babalaô, a partir do
ritual divinatório fundamentado no ifá – o jogo de búzios – onde, por meios
da revelação dos orixás, a plantas corretas são indicadas para o tratamento
corporal e espiritual do enfermo21. Porém, são apenas os filhos de Ossaim que
sabem como realizar a colheita e conhecem os segredos dos preparos22.
Como já vimos, o candomblé organizou-se a partir da comunhão de
diversos aspectos religiosos e de diferentes grupos. Vimos, também, que dos
grupos que tiveram suas práticas mais assimiladas, destacam-se os iorubas.
De certa forma, a maneira como as plantas são utilizadas no candomblé, em
muitos lugares de nosso país, está intimamente relacionado às práticas desse
povo, tendo sido grandemente influenciada por seus usos e saberes. Porém,
variações são comuns, resultado da influência de outros grupos , de forma a
modificar a praticas em determinados grupos de candomblé. As informações
que apresentaremos a seguir estão diretamente relacionadas a tradição ioruba
20. PANDRI, Reginaldo (2001). Op.Cit. p.153-155.
21. OLIVEIRA, Maria Flores S. de & OLIVEIRA, Orlando J. R. de. Na trilha do caboclo: cultura,
saúde e natureza. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2007.p.83.
22. ALBUQUERQUE, Ulysses P. de &ANDRADE, Laíse de H.Op. Cit. p.64.

149
e sua contribuição na construção do candomblé brasileiro.
Na relação que o candomblé estabelece com o uso das plantas, seja
para fins medicinais ou mágico-religiosos, existem diferentes critérios
de classificação e utilização. Muito diferente do modelo ocidental atual
que é baseado nos estudos de Lineu, a classificação das plantas dentro desta
tradição afrobrasileira assume uma frequente relação entre o nome dado a
planta e suas qualidades. Sua sistematização geralmente é feita levando em
consideração elementos como o cheiro, a cor, a textura das folhas, a reação
causada ao toque, a sensação provocada por seu contato, entre outras.
É comum que, nesse sistema de classificação, o nome dado a uma
planta possa corresponder a diferentes espécies ou, até mesmo, que uma
mesma espécie seja reconhecida por diferentes nomes. Isso ocorre porque ao
utilizar-se de características da planta como padrão classificatório é criada a
possibilidade de que plantas que compartilhem de determinada característica
sejam reconhecidas pelo mesmo nome. Assim também, ao relacionar uma
planta com diferentes funções e característica, atribui-se a ela a diferentes
formas de reconhecimento23.
Para que o uso das plantas, principalmente quando empregadas como
medicação, seja feito de forma correta, é de crucial importância que seu uso
seja acompanhado pela declamação do ofó. Os ofós “são frases curtas nas quais
muito frequentemente o verbo que define a ação esperada, o verbo atuante, é
uma das silabas do nome da planta ou do ingrediente empregado”24. Também
conhecidas como cantigas de folhas, elas são dadas pelo babalaô junto da
indicação das plantas a serem usadas e desempenham um papel muito
importante. Elas podem expressar as folhas escolhidas, a maneira correta de
prepara-las e de utilizá-las, mas, acima de tudo, elas são responsáveis pela
ativação do axé existente na planta. A palavra é o veículo do axé.25
A palavra ganha muita importância, uma vez que essas práticas
tiveram sua origem em um universo cultural baseado na oralidade: nas
religiões africanas, os principais valores e conhecimentos são transmitidos de
maneira oral. Desta forma, a importância da transmissão oral assume caráter
diferenciado se comparado com aquelas que baseiam seus ensinamentos em
documentos escritos. É como se, ao recitar o ofó, aquele ensinamento estivesse

23. VERGER, Pierre Fatumbi. Ewé: o uso das plantas na sociedade ioruba. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.p.29.
24. Ibdem,p.35.
25. ALBUQUERQUE, Ulysses P. de &ANDRADE, Laíse de H.Op. Cit. p.65.

150
sendo perpetuado toda vez que aquela planta é utilizada26.
Segundo o candomblé, o corpo deve ser tratado física e espiritualmente
de modo simultâneo, pois a doença é percebida como maleficio de
contaminação mágica ou espiritual. Assim, as plantas assumem diferentes
usos, apresentando uma difícil separação entre o campo medicinal e mágico,
que estão profundamente interligados27.
As plantas podem ser empregadas em fórmulas que combinam
diferentes espécies por meio de banhos, unguentos, óleos, chás, refeições, entre
outros. Podem, ainda, ser usadas para curar doenças e ferimentos causados
por acidentes, para pedir chuva, para afastar maldições, para evitar o mal ou
até mesmo afastar a morte. São usadas como estimulantes, tranquilizantes
e tônicos que garantam virilidade e força física ou apenas para que tragam
tranquilidade, além de seus usos ritualísticos.
O que podemos perceber é, que, apesar de um inegável processo de
branqueamento social, a cultura afrodescendente tem sobrevivido ao longo
da história brasileira, com destaque para as religiões de matriz africana que,
mesmo tendo passado por anos de sincretismos e assimilações de outras
influências religiosas, ainda são capazes de apresentar aspectos e preservar
conhecimentos vindos de além-mar resistindo, bravamente, assim como seu
povo, à opressão colonizadora.
As religiões de matriz africana contribuíram largamente para a
construção de um patrimônio mágico e religioso dentro da cultura brasileira.
Nossas músicas, nossas lendas, nossa língua, as cantigas e mitos existentes
até hoje estão fortemente influenciados pelas práticas de homens e mulheres
que, desde o inicio de sua colonização, fazem parte desta terra. Aliás, a
própria construção da identidade nacional brasileira utiliza-se de aspectos
produzidos pela cultura afro-brasileira.
Apesar de todo preconceito e discriminação com relação às religiões
de matriz africana, ainda muito fortes em nosso país, em 15 de dezembro de
1975 foi criada a lei federal nº 6.292, que protege os terreiros de candomblé no
Brasil contra qualquer tipo de alteração de sua formação material e imaterial.
Atualmente, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) é responsável pelo tombamento dos terreiros, considerados
patrimônio histórico e cultural brasileiro.

26. VERGER, Pierre Fatumbi. Op. Cit. p.19.


27. Ibdem,p.60.

151
A própria historiografia tem se renovado ao longo dos anos e buscado
analisar, através de outra perspectiva, a trajetória de homens e mulheres que
chegaram a essas terras sob o terrível processo da diáspora africana. É mais
do que sem tempo que a renovação adentre a porta de nossas salas de aula;
afinal, a lei 10.639/3 estabeleceu, em 2003, a obrigatoriedade do ensino da
história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas de ensino fundamental
e médio. Como apontou o último censo, falar sobre esse assunto é falar
sobre a história da grande maioria dos cidadãos deste país, que através da
miscigenação construiu uma população com múltiplas descendências.
Precisamos compreender que abordar a escravidão não é apenas
analisar o tráfico, o trabalho forçado e os ciclos econômicos: é também falar
sobre culturas, crenças e saberes. Mas, acima de tudo, falar sobre escravidão
é falar sobre vidas roubadas. E a grande questão é: em que medida elas foram
algum dia devolvidas?

152
BIBLIOGRAFIA
• ALBUQUERQUE, Ulysses P. de &ANDRADE, Laíse de H. C. As plantas
na medicina e magia dos cultos afro-brasileiros. In.: ___________
ALBUQUERQUE, Ulysses (Org.). Tópicos em conservação, etnobotânica
e etnofarmacologia de plantas medicinais e mágicas. Recife: NUPPEA/
Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia, 2005. p. 51-76
• BARCELOS, Mario César. Os orixás e o segredo da vida: lógica, mitologia
e ecologia. Rio de Janeiro: Pallas, 1991.
• BASTIDE, Roger. As américas negras: as civilizações africanas no novo
mundo. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1974.
• _______________ As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma
sociologia das Interpretações de civilizações. São Paulo: Pioneira, 1985.
• CURTIN, Philip D. The Atlantic Slave Trade. A Census. Madison:
University of Wisconsin, 1969.
• Instituto Brasileiro Geografico de Estatística (IBGE). Disponível em :
www.ibge.gov.br. Acessado em: 20 de janeiro de 2014.
• MAMIGONIAN, Beatriz G. África no Brasil: mapa de uma área de
expansão. Revista Topoi, Rio de Janeiro ed. 9, v. 5., p. 33-53.2004.
• MARTINS, Roberto Borges. Desigualdades raciais e políticas de inclusão
racial: um sumário da experiência brasileira recente. Revista CEPAL,
Santiago de Chile, n.82, p.3-72, abr. 2004. ( Série Políticas Sociais)
• OLIVEIRA, Maria Flores S. de & OLIVEIRA, Orlando J. R. de. Na trilha
do caboclo: cultura, saúde e natureza. Vitória da Conquista: Edições
UESB, 2007.
• Organização das Nações Unidas (ONU). Disponível em: www.onu.org.
br. Acessado em: 17 de outubro de 2013.
• PANDRI, Reginaldo. Herdeiros do Axé: sociologia das religiões afro-
brasileiras. São Paulo: HUCITEC, 1996.
• _________________. Mitologia dos orixás. São Paulo: Cia das Letras,
2001.
• _________________. Segredos guardados: orixás na alma brasileira. São
Paulo: Cia das Letras, 2005.
• VERGER, Pierre Fatumbi. Ewé: o uso das plantas na sociedade ioruba. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.

153
Para saber mais…
Isaac Facchini Badinelli

Quando falamos em agentes de cura no século XVIII, de quem


estamos falando? Médicos, boticários, raizeiros, barbeiros e outros
personagens da vida colonial, alguns mais presentes nas pequenas vilas,
outros de menor atuação, como os médicos que eram raros neste lado
do Atlântico. A medicina, por mais que insistissem os regulamentos
e as recomendações vindas de Portugal, era exercida por pessoas das
mais variadas origens: dentre estes se destacam os escravos28.
Não é difícil imaginar que em uma região como a Capitania de
Minas Gerais, onde se explorava tanto a mão de obra escrava durante
o período aurífero, os escravos tivessem papel importante também na
área da saúde. A partir da década de 1980, quando as pesquisas no
campo da história da escravidão se expandiram e abarcaram o uso
de novas fontes que buscavam evidenciar uma maior dinâmica nas
relações no mundo escravocrata é que foi possível iniciar pesquisas
que mostrassem essa participação.
Segundo a historiadora Laura de Mello Souza, os negros africanos
eram os principais curadores na região de exploração das minas no
Brasil setecentista.29Suas práticas de cura, no entanto, eram comumente
condenadas, sendo relacionadas à feitiçaria. Tanto nas Minas, como
por exemplo, na comarca de Vila Rica, como em outras regiões da
colônia, os negros que praticavam a cura eram considerados perigosos
e estavam à margem das regulamentações da coroa.
Nos livros de denúncias contra não licenciados na região de
exploração das minas, que incluíam as devassas eclesiásticas e os
cadernos do promotor do Santo Ofício, estes recebiam a estigma de
“feiticeiros” e “curadores”, sendo sua prática de cura imbuída de visões
mágicas e ligadas a “malefícios”. Por mais que justificassem em sua
defesa que procuravam promover a cura, e muitas vezes os próprios

28. Para saber mais sobre a atuação dos escravos nas profissões de saúde no século XIX, consultar:
PIMENTA,Tânia Salgado. Terapeutas populares e instituições médicas na primeira metade do sécu-
lo XIX. In: CHALHOUB, Sidney (org). Artes e ofícios de curar no Brasil. Campinas: UNICAMP,
2003.p.307-330.
29. SOUZA, Laura de Mello E. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular
no Brasil colonial. São Paulo: Cia das Letras, 1995.

154
pacientes assim confirmassem, eram condenados. As mesmas alcunhas
não eram conferidas e não aparecem nos processos de brancos não
licenciados.30
Vários dos relatos contidos no tratado médico Erário Mineral são
provenientes dos conhecimentos desses curadores não licenciados,
que eram conhecedores das “ervas do mato”, o que mostra uma
reciprocidade e relação entre os representantes da medicina oficial e
os “práticos”, que exerciam a medicina nas diversas regiões da colônia.
Essas indicações podem ser encontradas não somente no Erário,
mas em outros tratados médicos da época.31Como observou Luis
Felipe Allencastro, houve um intercâmbio intenso entre a Europa e o
“Novo Mundo”, que dizia respeito não só a troca de mercadorias, mas
também na chegada de uma série de novas doenças.32Isso fez com que
o conhecimento da realidade local para o tratamento das doenças fosse
fundamental.
Muitos desses negros eram escravos ou forros que contavam com a
autorização de seus senhores para realizar a prática curativa. Utilizam,
para isso, seus dias de folga, recebendo pagamento que, muitas vezes,
era bastante significativo. Nos tratados de medicina produzidos
principalmente por cirurgiões e cirurgiões-barbeiros que estavam em
contato constante com outros agentes de cura não licenciados , esses
conhecimentos aparecem mesclados com os da medicina acadêmica:.

Contrariando a especialização das funções definida na legislação sobre a


prática da medicina no mundo português, esses cirurgiões faziam prognósticos
e curas, teciam teorias sobre as doenças e receitavam medicamentos – todas
atribuições exclusivas dos médicos – e até produziam os próprios remédios
– atividade restrita aos boticários. Serviam-se não só dos medicamentos
tradicionais, que com muito custo chegavam as serras mineiras depois de
uma longa travessia marítima, como também de ervas que a natureza local
dispunha, cujos usos aprendiam, muitas vezes, com os índios e mestiços.33

Uma característica importante das curas efetuadas por esses


30. NOGUEIRA, André Luís Lima. Saberes Terapêuticos nas Minas Coloniais. Diálogos entre medi-
cina oficial e as curas não licenciadas (séc. XVIII). História Unisinos,. v. 18. n1. jan/abr.2014.
31. Ibidem. p.20
32. ALENCASTRO, Luís Felipe de. O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul.
Séculos XVI E XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
33. FURTADO, Júnia Ferreira. Barbeiros, cirurgiões e médicos na Minas colonial. Revista do Ar-
quivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v.XLI, p.88-105. 2005. p.90.

155
escravos era a utlização além das ervas como a pacacuanha, butua e
paratudo, de orações e uso de “bençãos” que, ditas juntamente com as
ervas, poderiam proporcionar a cura. Percebe-se a relação feita entre
as práticas das religiões africanas e as crenças católicas, o que pode ser
explicado também pela necessidade de burlar as acusações das quais
eram alvo. Além disso, utilizavam banhos, vomitórios e emplastros.
Embora recorressem a orações católicas, esses negros eram acusados
de feitiçaria, pois se acreditava que essas orações eram apenas disfarces
para a prática da magia.
Esse tipo de prática da devoção ligada à cura de determinadas
doenças é uma característica que vai permanecer no século XIX e até
posteriormente. Hoje, é possível encontrar, mesmo nas grandes cidades,
mulheres e homens que, ao recomendar o uso de ervas para males,
como as chamadas “trisas” e “mau-olhados”, juntamente proferem
palavras que fazem parte de várias formas de religiosidade.
Uma série de tratados médicos foram também produzidos para
tratar dos males que atingiam os escravos. Identificavam-se, nestas
obras, características que fariam com que alguns tipos de doenças
tivessem maior predisposição a atacar os negros, expostos ao trabalho
e a outras intempéries. Um trecho do tratado Governo dos Mineiros,
do cirurgião José Antonio Mendes, aborda a questão:

Segundo o cirurgião José Antônio Mendes, os negros tinham predisposição


ao tétano, por andarem descalços e serem mordidos por animais e feridos
por instrumentos: a doença tinha características como “espasmos tônicos dos
músculos voluntários”. Em parte, explica por que os escravos sofriam desse
mal: “ Caminhavam descalços pela imundice da cidade, realizavam trabalhos
braçais em que os ferimentos eram prováveis e recebiam punições com
instrumentos que perfuravam a pele34.

Assim, a prática médica no Brasil Colônial, não só na região


de exploração aurífera mais também em outra regiões da colônia,
foi marcada pela atuação de pessoas não licenciadas e mal vistas na
sociedade, que no entanto, no momento da necessidade da cura, eram
requisitadas por seu reconhecido conhecimento médico, não só entre
as camadas populares, mas também entre as elites locais. A despeito
34. MENDES, José Antônio apud VIANA, Kelly Cristina Benjamim. Mágicos Doutores: A arte
médica entre a magia e a ciência nas Minas Gerais Setecentistas (1735 – 1770). Dissertação de
Mestrado. Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2008.

156
das iniciativas oficiais em combater essas práticas, a cura de doenças
com ervas, rezas, bênçãos e práticas de origem popular, e sobretudo
com origens africanas, foi uma constante que permaneceu mesmo após
a reforma do ensino médico em Portugal, a formação das primeiras
universidades de medicina no Brasil e as campanhas difamatórias que
as consideravam como charlatanismo e obra de feitiços.

157
Trabalhando com fonte histórica

VERGER, Pierre Fatumbi. Ewé: o uso das plantas na sociedade ioruba.


São Paulo: Companhia das Letras, 1995.p.171.

93- RECEITA PARA TRATAR PÉS INCHADOS


Folha de DALBERGIA LACTEA, Leguminosae Papilionoidae
Folha de EHRETIA CYMOSA, Boraginaceae
Ferver. Desenhar o odu em ìyèròsùn, pronunciando a encantação.
Misturar. Tomar a preparação e lavar os pés com ela.
Ìwòrì kòrìǹkan, deixe-o caminhar com ambos os pés.
Òjíjí diz que seus pés devem acordar.
Jásókè diz que os seus pés devem se esticar.

94- RECEITA PARA OSSOS FORTES


Folha de MALVASTRUM COROMANDELIANUM, Malvaceae
Casca de amêndoa de ELAEIS GUINEENSIS, Palmae (dendezeiro)
Sabão-da-costa
Torrar a folha. Desenhar o odu no pó preto. Moer a casca da amêndoa
do dendezeiro. Misturar com sabão-da-costa, pronunciando a
encantação, e lavar-se com a preparação.
Ọlόwὸnràn sánsán diz que os meus ossos devem ficar fortes.
O corpo de eésan é sempre muito forte.

158
159
9. Usos e circulação de plantas medicinais nas navegações
portuguesas
Isaac Facchini Badinelli e Luis Fernando Junqueira

Em um período de transformações, o império português, favorecido


pelo conhecimento relacionado às navegações e pelo investimento feito por
empréstimos e financiamento de judeus portugueses, pode fazer sua expansão
e invadir novos territórios. Isto lhe proporcionou novas possibilidades
comerciais e uma posição de destaque no comércio internacional de
especiarias. A partir da abertura do que ficou conhecido como Rota da Índia,
em 1497, pelo explorador Vasco da Gama, Portugal passa a ter um papel
fundamental no comércio marítimo. A chegada às costas brasileiras também
contribuiu para uma maior interação e entrada neste mercado, muito embora,
em um primeiro momento, não tenha existido uma exploração sistemática da
nova colônia.
O objetivo deste texto é analisar como o comércio que emergiu
nestas novas expansões, influenciou as trocas de plantas medicinais entre os
territόrios envolvidos. É importante pensar, também, como foram essas trocas
entre os países europeus e suas novas colônias. Foram trocas unilaterais,
ou existiu uma rede de trocas mútuas entre a metrópole e suas colônias?
Como a situação de saúde nas próprias colônias influenciou essa rede de
trocas e descobertas? São questões que precisam ser analisadas e propiciam
uma reflexão a erca do sistema colonial.Para conseguirmos compreender a
trajetória deste comércio e também as diferenças ocorridas entre a exploração
exercida pela Companhia das Índias Orientais e, posteriormente, a exploração
do território na colônia brasileira, dividiremos este capítulo em partes que
contemplam os diferentes períodos de exploração do Império Português.
Depois do estímulo causado pelo comércio da pimenta malagueta
africana, o infante D. Henrique passou a intensificar as expedições terrestres
com o objetivo de construir um império lusitano da pimenta, visando
participar especialmente do lucrativo comércio da pimenta indiana, mais cara
e de melhor aceitação na Europa do que a malagueta.1 Para isso, era necessário
descobrir uma rota marítima para a Índia através do mar, contornando o
continente africano.
Em 1494, dois anos após a chegada de Cristóvão Colombo na América,
1. RAMOS, Fábio Pestana. No tempo das especiarias: o império da pimenta e do açúcar. São Paulo:
Contexto, 2006, p. 101

161
foi firmado entre Portugal e Espanha o tratado de Tordesilhas, dividindo o
mundo entre estas duas nações mediante um meridiano imaginário para 370
léguas a leste das ilhas de Cabo Verde. Os territórios a leste deste meridiano
pertenceriam a Portugal e os territórios a oeste, à Espanha, o que assegurava
aos portugueses a exclusividade de comércio via Atlântico com a África e a
Índia.2
Em 1497, o rei D. Manuel escolheu Vasco da Gama para guiar a rota
marítima até à Índia. Em 1498, os portugueses aportaram em Moçambique,
ameaçando seu sultão com a artilharia. De lá, partiram rumo a Calicute, na
costa indiana, onde depois de diversas dificuldades com seu governante - o
Samorim- conseguiram, enfim, permissão para negociarem suas poucas
mercadorias: o que os indianos queriam era ouro e isso os portugueses não
tinham o suficiente para causar boa impressão.
Passadas tantas dificuldades – especialmente fome e doença – em 18
de setembro de 1499, a frota de Vasco da Gama volta para Lisboa levando
muito gengibre, pimenta e canela, gerando lucros de 4000% sobre o valor
investido na viagem, o que estimulou ainda mais os portugueses a ir em
busca das especiarias. Depois de alguns anos, a pimenta-do-reino tornou-se
o produto mais exportado por Portugal para os demais países europeus.
Ao chegarem ao Oriente, os navegadores lusitanos se depararam com
civilizações altamente desenvolvidas, cujas origens remontavam ao segundo
milênio AEC3, e que já dominavam o comércio das especiarias há milênios
por meio das Rotas da Seda. Devido à intolerância cultural e religiosa por
parte dos portugueses, estes constantemente entravam em disputas e conflitos
com os indianos – a Índia, neste período, estava dividida em diversos estados
–, sendo muitas vezes massacrados por estes ou os ameaçando por meio
das armas. Para os portugueses, todos os que não acreditassem em sua
religião eram considerados infiéis e deveriam ser convertidos à força, o que
dificultava muito a relação deles com os demais mercadores orientais e os
reinos indianos.4
Goa foi uma das cidades mais importantes tomadas pelos portugueses
na costa indiana. A cidade há muito tempo era um dos centros de comércio,
tanto por terra quanto por mar, que distribuíam as mercadorias vindas de
outras regiões para várias partes do mundo. Com a criação de feitorias e

2. Ibidem, p.103.
3. Antes da Era Comum.
4. RAMOS, Fábio Pestana. Op. Cit., p. 116.

162
fortificações nesta cidade, o comércio das especiarias cresceu muito, gerando
altos lucros a Portugal.
Na China e no Japão, a situação foi muito diferente. Ambos os países
eram bem organizados e fortemente armados, e os portugueses precisavam
negociar por meio da diplomacia. Contudo, devido à má fama destes com
os conflitos na África a na Índia os chineses, apenas depois de muito tempo,
aceitaram que eles se instalassem em um único ponto do território, em Macau,
em 1557, jamais conseguindo penetrar no Império Chinês.
Na China, ao contrário do que aconteceu com outros povos, os
portugueses ficaram fascinados com a organização social e a tecnologia
chinesa, que em muitos aspectos superavam não apenas Lisboa, mas até o
que havia de melhor na Europa:

Relatos que chegavam até Portugal descreviam as obras de arquitetura como


preciosas e engenhosas, fazendo notas que as ruas, nas cidades e aldeias, eram
empedradas e pavimentadas, construídas de forma a ser possível enxergar o caminho
do começo ao fim [...]. As casas eram baixas e sem andares, com interior muito
espaçoso e cheias de todo o gênero de curiosidades e ornamentos, rodeadas por
imensos jardins para passeio.5

Porém, enquanto os portugueses ficaram admirados com a cultura


chinesa, os chineses não compartilhavam desta admiração: para estes, os
estrangeiros eram bárbaros e de classe inferior e deveriam sujeitar-se ao
Imperador chinês.
Os principais produtos levados para a China pelos portugueses foram
especiarias e plantas medicinais indianas, e a prata japonesa, enquanto da
China sairam a seda e a porcelana. Dentre as principais e mais lucrativas
especiarias estavam a pimenta, o cravo, o gengibre, a noz-moscada, a canela
e o cominho.
A partir da segunda metade do século XVI, além da má reputação dos
portugueses no Oriente, o número de piratas e saqueadores estava crescendo
cada vez mais e passando a gerar preocupações aos comerciantes lusitanos.
Holandeses e ingleses estavam se interessando pelo lucrativo comércio e a
porcentagem de naus perdidas chegou a quase 50%.6 Doença, fome, naufrágios
estavam se tornando cada vez mais frequentes.

5. Ibidem, p. 136.
6. Ibdem, p. 184.

163
Durante a primeira metade do século XVII, a decadência das rotas
asiáticas controladas por Portugal se tornou ainda mais evidente, enquanto
que a Carreira do Brasil passou a despertar maior interesse. Os que ainda
continuavam defendendo a manutenção da rota, em geral, eram nobres que
permaneciam lucrando com as especiarias e demais artigos de luxo asiáticos.
Contudo, os portugueses não haviam desistido do comércio das especiarias.
Em 1683, foi introduzido no Brasil o plantio de pimenta e canela, obtendo
ótimos resultados, tornando inútil a manutenção de feitorias e fortalezas
na Índia7 e ao mesmo tempo inserindo estas e outras especiarias – como o
gengibre, trazido pelos holandeses – na alimentação e medicina brasileira.
Citações sobre o uso das especiarias como medicamento são muitas
e estão em diversos tratados. No Erário Mineral, por exemplo, Luís Gomes
Ferreira recomenda a raiz de gengibre “mastigada e engolida seu suco [...] ou
também pisada e dada em água quente ou aguardente [...]” como um grande
remédio para dores de barriga e cólicas.8 O Dicionário de Medicina Popular,
de Napoleão Chernovitz, recomenda a canela como estimulante, tônica, para
provocar o fluxo mensal das mulheres, e contra dores reumáticas.9 O mesmo
Dicionário cita, ainda, os usos do óleo de cravo-da-Índia para dores de dente
e como excitante.10 O uso destas especiarias como medicamento e como
alimento está relacionado, além da sua natureza, com os quatro humores .
No caso da citação a seguir, as qualidades da noz moscada são quente e seca,
relacionadas à bílis amarela:

Esta amêndoa é oval, dura, unetuosa, de côr cinzenta avermelhada, com veios
cinzentos; cheiro suave e forte, sabor quente. [...]A noz moscada é um estimulante
poderoso; empregá-se principalmente na arte culinária; facilita a digestão. A infusão
de raspas de moscada, feita em vinho quente, é muito empregada entre a gente dos
campos, durante o parto, como tônica e estimulante.11

Outras plantas vindas do Oriente foram introduzidas no Brasil, graças


a uma série de fatores que fizeram com que um maior fluxo de embarcações e
o aumento de explorações comerciais passassem a ter como foco o território
7. Ibidem, p. 192.
8. FERREIRA, Luís Gomes. Erário Mineral/ Luís Gomes Ferreira; org. Júnia Ferreira Furtado.
Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais; Rio de Janeiro:
Fundação Oswaldo Cruz, 2002 p. 364.
9. CHERNOVITZ, Napoleão. Diccionario de Medicina Popular e das Sciencias Accesorios para
uso das famílias. 6ª ed. Pariz, 1880, livro 1, p. 448.
10. Ibidem, p. 748.
11. Ibidem, p. 457-458.

164
brasileiro. O crescimento no número de voluntários para as expedições no
Brasil se deve, em parte, ao fato de que, se as condições de viagem ao Brasil
não eram melhores do que as condições precárias encontradas nos navios que
partiam com direção à Índia, ao menos o tempo de viagem era abrandado.
Enquanto uma viagem para a Índia durava em média um ano, as viagens
entre Lisboa e o Brasil duravam quatro semanas ou menos.12
Incentivando ainda mais este empreendimento, a partir do século
XVIII, a Coroa portuguesa passa a dar importância cada vez maior em
explorar economicamente as plantas originárias da colônia brasileira, além do
maior investimento na produção de espécies exóticas em território de além-
mar. Uma das hipóteses para esse interesse é a decadência da exploração das
minas de ouro no centro do Brasil, gerando a necessidade de uma nova fonte
econômica na colônia. Os investimentos nos produtos da terra e no campo
agrário passam a ser marcantes a partir desse período.
O aumento desses contatos gerou grandes passos na divulgação, no
continente Europeu, do poder das plantas encontradas na América, que
juntamente ao potencial produtor já conhecido incentivou ainda mais a
exploração do território. A publicação da primeira farmacopeia oficial
portuguesa, em 1794, que continha vários conhecimentos não sό sobre a flora
brasileira como de outras farmacopeias, além de livros e tratados que já haviam
sido organizados anteriormente, tinham o objetivo claro de padronizar um
conhecimento que antes parecia disperso e muito suscetível a interpretações
consideradas equivocadas. Esta farmacopeia oficial citada ganha destaque
por ter intuito de servir como livro didático para os estudantes de botânica
do reino português.
Além deste conhecimento propalado por viajantes e pelo interesse
econômico, muito do que ficou conhecido a respeito das plantas utilizadas na
colônia está ligado à busca constante por compreender e tratar as principais
doenças que atingiam a população local. Como é possível notar em vários
estudos sobre a medicina do período colonial brasileiro, havia na colônia uma
grande conjunção de culturas, onde a aplicação da religiosidade e das crenças
populares influenciava substancialmente a arte de curar.
No século XVIII, a medicina colonial parecia conviver com novos e
velhos paradigmas. Além de possuir poucos profissionais legitimados pela

12. RAMOS, Fábio Pestana. Os problemas enfrentados no cotidiano das navegações portuguesas da
carreira da Índia: Fator de abandono Gradual da rota das especiarias. Revista de História, Rio de
Janeiro, v. 137 , p.75-94.1997

165
coroa para exercer as artes da cura e possuir um vasto território, com inúmeras
porções de terra inabitadas não existia, neste lado do Atlântico, uma concepção
de ciência e cura separada do mundo religioso, existindo verdadeiras
“Misturas do Humano com o Divino”13. As doenças eram encaradas como
males enviados por Deus ou pelo Diabo, e a sua concretização era muitas
vezes encarada como uma punição. “Considerado um pai irado e terrível,
Deus afligiria os corpos com as mazelas, na expectativa de que seus filhos
se redimissem dos pecados cometidos, salvando, assim, suas almas.”14Esses
saberes mágicos só passam a ser mais criticados no fim do século XVIII.15
Uma série de agentes da cura são identificados neste período mas suas
funções não estão bem definidas, sendo motivadas em grande parte pelas
necessidades locais. Médicos (em número reduzido), barbeiros, boticários,
raizeiros, parteiras e curandeiros se revezavam na tentativa de melhor
contribuir para as populações locais, que misturavam o maior número de
crenças. Os padres jesuítas, vindos em grande número para o Brasil desde
1549, exerceram enorme atividade na medicina das comunidades mais
afastadas até o período, trazendo uma bagagem de saberes da Europa e a ela
mesclando novos conhecimentos, principalmente indígenas.

As boticas dos colégios jesuítas foram inigualáveis, em qualquer parte onde


estivessem. A do Colégio do Pará, segundo inventário datado de 1760, além de
20 tomos de medicina, continha recipientes diversos, estantes com mais de 400
remédios, fornalhas, alambiques, almofarizes de mármore,ferro e marfim, armários,
frascos e potes de várias cores e tamanhos, balanças, pesos, medidas, tachos de cobre,
de barro, bacias, prensas, tenazes, enfim, todo um aparato técnico para a confecção
dos medicamentos.16

O número reduzido de médicos e a falta de um controle mais rígido


por parte da metrópole, fez com que na colônia esses profissionais exercessem
livremente a arte da cura. Muitos deles deixaram escritos sobre a forma como
procediam e como tratavam seus pacientes em terras brasileiras, sendo que

13. NAVA, Pedro apud SILVA, Lenina Lopes Soares.“As Misturas do Humano com o Divino” na
Medicina Popular do Brasil Colonial. Mneme – Revista de Humanidades. UFRN. Caicó (RN), v. 9.
n. 24, set/out. 2008. ANAIS DO II ENCONTRO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA COLONIAL.
14. DEL PRIORE, Mary apud RIBEIRO, Daniela Baptista Medicina e Práticas Mágicas na Cura de
Enfermidades Tropicais no século XVIII. Revista UNIABEU. v.6. n. 13. maio-agosto 2013.
15. Para uma análise mais aprofundada sobre o assunto consultar RIBEIRO, Márcia Moisés. A ciên-
cia dos Trópicos: A arte médica no Brasil do século XVIII. São Paulo. Hucitec, 1997.
16. CALAINHO, Daniela Buono. Jesuítas e medicina no Brasil Colônia. Revista Tempo, Rio de
Jeneiro, v. 10. n 19. p. 61-76. Jul.2005. p. 65

166
estes relatos revelam a circulação entre conhecimento erudito e popular.
Uma obra de grande importância para os pesquisadores do período
colonial, já citada aqui, é o Erário Mineral do cirurgião português Luís
Gomes Ferreira. O Erário Mineral foi publicado em Lisboa em 1735, após
o autor deste compêndio ter vivido na colônia, mas precisamente na região
das minas de ouro, passando pelas localidades de Vila Rica, Sabará e Mariana
e participando por alguns anos das campanhas auríferas na região. Luis
Gomes Ferreira chegou pela primeira vez no Brasil em 1707, vindo de Lisboa,
desembarcando na Bahia, sendo inclusive proprietário de terras e de escravos.
A obra reúne diversas experiências do autor, que escreveu apontamentos sobre
as especificidades do clima, dos moradores, das doenças, dos tratamentos
ministrados, aos quais incorporou diversas ervas locais.17
Ferreira foi influenciado por uma lógica das práticas de cura que
tem como base a teoria dos humores, originária da tradição médica grega
e baseada nos escritos de Hipócrates, sendo posteriormente ampliada por
Galeno. O corpo humano seria preenchido por quatro elementos básicos
que deveriam estar em perfeito equilíbrio e manteriam a vida humana. São
os quatro humores: sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra, que estariam
ligados respectivamente às funções do coração, sistema respiratório, fígado e
baço. A cura passava por manter o equilíbrio entre esses humores, que por
algum motivo tinha se perdido. Essa teoria perdurou por um longo espaço
de tempo, sendo utilizada no Erário de maneira particular, resignificando
práticas que remetem ao período medieval. É importante notar que o
significado da palavra humor adquire uma conotação diferente no período,
servindo para designar matérias liquidas e semiliquidas no corpo humano.18
O atrativo do humoralismo, que dominou a medicina clássica e
formou a herança dela, estava em seu esquema explicativo, que se calçava em
arquétipos conflitantes (quente/frio, úmido/seco etc.) e abarcava o natural e o
humano, o físico e o mental, o sadio e o patológico19.
Essa obra se faz muito importante para a divulgação dos saberes da
cura colonial no século XVIII, sendo publicada antes mesmo da farmacopéia

17. FURTADO, Júnia Ferreira. Arte e Segredo: O licenciado Luís Gomes Ferreira e seu caleidoscópio
de imagens. In: FERREIRA, Luis Gomes. Op. Cit.p.03-30.
18. MACHLINE, Vera Cecília. Teoria e conceito setecentista de humor joco-sério derivado da antiga
teoria humoral? In: MARTINS, R.A.; MARTINS, L.A.C.; SILVA, C.C.; FERREIRA, J.M.H. (eds.).
Filosofia e História da Ciência no Cone Sul: 3 º encontro. Campinas: AFHIC, 2004. p. 471 – 478.
19. PORTER, Roy. Das tripas o coração. Uma breve história da medicina. Rio de Janeiro. Record,
2004. p. 44.

167
oficial padronizadora da medicina portuguesa. O tratado mostra como eram
feitos os principais tratamentos das doenças neste período, evidenciando
algumas de suas características, como o uso das panacéias (remédios que
serviam para a cura de diversos males): “Em seis libras de água comum,
cozam uma onça de cevada descascada e solta na panela, ferva até gastar
duas partes e depois se coe; doses é de seis onças, adoçadas com açúcar ou
lambedor de violas; virtudes: refresca, tira a sede, tempera as febres e tira os
ácidos dos humores”20.
O fato do Erário Mineral ter sido publicado em Lisboa reforça, em
solo europeu, seu papel divulgador dos conhecimentos adquiridos no Brasil.
É possível imaginar o quanto a leitura de tratados como o de Luis Gomes
Ferreira despertou a curiosidade e o interesse nas plantas nativas brasileiras.
Nota-se como os complexos ensinamentos presentes no livro juntam
“produtos estercoários, ensinados pela medicina popular ibérica, às ervas
medicinais da tradição indígena, transmitidas pelos sertanejos paulistas”21.
Várias são as passagens da obra em que o autor exalta as propriedades de
diversas plantas aqui encontradas e que posteriormente enviadas à Europa
sem que, no entanto, seus destinatários estivessem livres de falsificações. As
virtudes da Ipecuanha, por exemplo, são reforçadas pelo autor:

a raiz do cipó chamada pacacuanha [sic] ou por outro nome poalha [sic] nome que
lhe deram os gentios carijós e por eles descoberta é uma raiz delgadinha e com muitos
nós, enoseada e torta. São estas raízes o único e certo remédio para curar cursos [
diaréias]; ou seja de sangue ou sem ele... E também é remédio contra venenos.22

Este período da história brasileira assistiu a uma grande transformação


da paisagem natural. Novos recursos agrícolas foram implementados, espécies
silvestres nativas passaram a ser classificadas e houve uma considerável
aclimatação de espécies exóticas. No caso das plantas vindas da Europa, “
a cosmopolitização foi pantropical. As plantas que se aclimatavam mais
facilmente eram, geralmente, de origem africana ou sul-asiática”.23
É no século XVIII, também, que passa a haver um investimento
20. FERREIRA, Luís Gomes. Op. Cit. p. 319.
21. WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Cirurgiões do Atlântico Sul – Conhecimento médico e
terapêutica nos círculos do tráfico e da escravidão ( séculos XVII – XIX). Anais do XVII Encontro
Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SP- UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setem-
bro de 2004.
22. FERREIRA, Luís Gomes. Op. Cit. p.463.
23. DEAN, Warren. A botânica e a política imperial: A introdução e domesticação de plantas no
Brasil. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, p. 216-218, 1991.

168
cada vez maior na abertura de jardins botânicos e herbários nas metrópoles
europeias. Foram nestes locais que grande parte dos conhecimentos a respeito
das plantas de todo o mundo passaram a ser desenvolvidos, buscando-
se pesquisas e uma classificação que pudesse sistematizar o conhecimento
buscado no novo mundo. A reformas promovidas por Marques de Pombal
em Portugal, principalmente no que diz respeito às universidades e a criação
da Junta do Protomedicato em 1798, são marcos importantes deste maior
investimento da coroa na exploração dos produtos de suas colônias.
Domenico Vandelli foi um dos naturalistas contratados pela
Universidade de Coimbra para melhor explorar esses conhecimentos
botânicos. Foi auxiliado inclusive por naturalistas brasileiros, que indicavam
muitas vezes que uma boa forma de adquirir conhecimento sobre as plantas
locais era o aprendizado com os povos indígenas. Através dessas pesquisas
várias plantas brasileiras foram enviadas à Portugal.
Foi a partir da vinda da família real portuguesa para o Brasil, em
1808, que eram criados os primeiros jardins botânicos em solo nacional. No
mesmo ano foi criado um jardim Botânico no Rio de Janeiro, com o objetivo
de produzir novas espécies e plantar madeiras que viriam a ser utilizadas na
construção naval24. Várias espécies foram trazidas, objetivando aproveitar da
terra considerada fértil e propícia à produção de espécies europeias. Vários
foram os viajantes que estiveram pesquisando e conhecendo as plantas
brasileiras neste período, inclusive o botânico Auguste de Saint- Hilaire que,
durante sua viagem, colecionou grande número de plantas consideradas
medicinais. Em 1818, Dom João VI criou, no Rio de Janeiro, um museu de
história natural, o que representa a importância que passa a ser dada ao tema.
A história do contato entre os europeus e as regiões do planeta por
onde passaram e estabeleceram suas colônias é marcada pela exploração
e pelo comércio que geraram enormes lucros e sem dúvida alguma, pela
dor e sofrimento de muitas populações, incluindo europeias. As mudanças
perpassam transformações ocorridas dentro do sistema capitalista, que a partir
do momento de desenvolvimento das grandes navegações se desenvolveu de
forma cada vez mais incisiva.
A exploração dos recursos naturais encontrados nestas colônias nunca
ficou de fora da expansão pretendida. Percebe-se o quanto foi importante para
o Império Português o entendimento da natureza nas regiões na qual esteve
mantendo contato comercial ou em territόrios que se tornaram propriamente
24. Ibidem. p. 218

169
suas colônias. Portanto, é possível observar que em nenhum dos locais onde
se estabeleceram colônias de exploração existiu um domínio completo e uma
via de mão única: desde os primeiros momentos foi necessária uma interação
cada vez mais frequente com os habitantes locais, o que gerou conflitos e fez
com que fosse necessária a construção de alianças.
A compreensão destas transformações e a mudança no “foco” do
observador levam a uma ampliação em caráter prático do objeto de estudo.
No campo de ensino da história, por exemplo, o estudo da utilização e o
conhecimento a respeito das plantas medicinais em diferentes períodos, e
temas relacionados à história da saúde, oferece a possibilidade de estabelecer
um contato que parta de conhecimentos prévios, da vivência, além da
busca de suas raízes familiares. A escolha das fontes e da metodologia a ser
aplicada influencia muito no resultado a ser alcançado. Diversas fontes sobre
o período colonial e monárquico no Brasil podem nos auxiliar na análise e na
formulação de atividades que sejam utilizadas dentro da sala de aula.

170
BIBLIOGRAFIA
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Revista Tempo, Rio de Janeiro, v. 10. n 19. p. 61-76. jul/2005.
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na Medicina Popular do Brasil Colonial. ANAIS DO II ENCONTRO
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Conhecimento médico e terapêutica nos círculos do tráfico e da escravidão
(séculos XVII – XIX). Anais do XVII Encontro Regional de História – O
lugar da História. ANPUH/SP- UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro
de 2004.

172
Para saber mais...
Renata Palandri Sigolo

Pode ser bastante tênue, às vezes quase inexistente, a linha


que separa alimento de medicamento. Se observarmos algumas
racionalidades médicas –como a medicina humoral de Hipócrates, o
Ayurveda e a Medicina Tradicional Chinesa – percebemos como esta
separação é artificial. Isto é particularmente válido quando o assunto
são as especiarias.
Os conceitos se mesclam ainda mais quando comparamos ervas
e especiarias. Não há uma regra geral para definir as diferenças
entre ambas, mas uma das definições esclarece que ervas são mais
comumente originadas de folhas frescas ou secas e as especiarias provém
de flores, frutos, sementes, caules, raízes ou seivas desidratadas.25
Também nos deparamos com múltiplas funções de uma especiaria:
a canela, utilizada na cozinha e na medicina egípcia, era igualmente
empregada como um dos ingredientes dos embalsamamentos26. A noz
moscada, especiaria cobiçada por portugueses e holandeses, também é
alucinógena se utilizada em altas doses (o consumo acima de uma noz
inteira), podendo provocar efeitos colaterais indesejáveis.27
Como já foi abordado no texto anterior, a importância das
especiarias para a economia européia foi enorme e impulsionou a
busca de rotas para seu comércio. No período medieval, Gênova e
Veneza, principalmente esta última, detinham o controle de comércio
com o Oriente, principal fonte de especiarias na época. Veneza
estabeleceu um monopólio em 1380, mas seus preços cada vez mais
altos impulsionaram Portugal e Espanha a pesquisarem outras rotas.28
Portugal iniciou suas buscas no século XIV, com expedições na
costa da África Ocidental. Bartlomeo Dias de Novaes foi enviado,
entre 1487 e 1488 para abrir as rotas para as Indias e conseguiu passar
pelo Cabo da Boa Esperança, mas morreu em 1500 em uma segunda
25. LINGUANOTTO NETO, Nelusko; FREIRE,Renato; LACERDA, Isabel. Misturando Sabores.
Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2013.p.10.
26. MONTET, Pierre. O Egito no tempo dos faraós. São Paulo: Cia das Letras, 1989.p.327.
27. CARNEIRO, Henrique. Pequena enciclopédia da história das drogas e bebidas. Rio de Janeiro:
Elsevier,2005. p.125.
28. BRUET, Isabelle. Trésors d’épices. Une approche ethnobotanique de quelques épices connues,
tombées dans l’oubli ou mal connues. Mirabel : Savoirs de Terroirs,2011.p.14.

173
expedição, devido a um naufrágio. Em 1497, Vasco da Gama partiu
de Portugal e alcançou Calicute na India, onde descobriu um intenso
e já estabelecido comércio entre árabes e chineses. Em 1502, partiu
a expedição de Alfonso de Albuquerque que facilitou, entre outras
coisas, o domínio português sobre Goa, Ceilão e Malaca.29Neste
circuito, o Brasil não ficou ausente: a colonização portuguesa em terras
brasileiras teve como objetivo a troca de vegetais entre os continentes.30
Uma das especiarias mais utilizadas e que bem representa esta
circulação é a pimenta. Na Europa, as importações deste produto
aumentaram 50% durante o século XV e apenas 27% durante o
século seguinte, provocando a diminuição de seu consumo. A baixa
de preços e a ampliação do mercado da pimenta ocorreu no século
XVII, com a concorrência entre ingleses e holandeses sendo que seu
consumo voltou a crescer no século XVIII, com o fim do monopólio
de Inglaterra e Holanda das Companhias das Indias Orientais.31
Existem vários tipos de pimenta, originadas de diferentes
continentes. No Brasil, Sérgio Buarque de Holanda cita dois tipos de
pimenta: a pimenta da India, que foi aclimatada em nosso país em
168032 e a pimenta da terra, usada como remédio pelos sertanistas
do século XVIII33. Quando a pimenta preta (Piper nigrum) se tornou
escassa devido à queda de Constantinopla, em 1453, foi necessário
buscar um substituto, encontrado em 1490, com a pimenta malagueta
(Capsicum frutescens). Estes exemplos mostram a variedade de plantas
denominadas popularmente de “pimenta”, nativas de diferentes partes
do globo: estima-se cerca de 3 mil variedades de pimentas ao todo.34
Diferentemente da pimenta negra (Piper nigrum) que é originária
do sul da India35, a pimenta malagueta (Capsicum frutescens) é nativa
da América Central e do Sul e pertence ao gênero Capsicum ao qual
pertencem outras pimentas e os pimentões. A generalização do nome
pimenta - que vem do latim popular pigmentum, em referência ao seu
29. Ibdem,p.15-16.
30. MARTINS, Ana Cecilia Impellizieri (org.). Flora Brasileira. História, arte & ciência. Rio de
Janeiro: Casa da Palavra, 2009.p.19
31. FLANDRIN, Jean-Louis ; MONTANARI, Massimo(org.). História da Alimentação. São Paulo:
estação Liberdade,1998.p.543-544.
32. HOLANDA, Sérgio Buarque. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Cia das Letras, 1994.p.237.
33. Ibdem, p. 86.
34. LAWS, Bill. 50 plantas que mudaram o rumo da história. Rio de Janeiro: Sextante, 2013.p.38.
35. BRUET, Isabelle. Op. Cit. p.127.

174
gosto acentuado36 - se iniciou quando a expedição de Colombo chega
ao Caribe, em 1492 e experimentam cápsicos picantes nativos.37
As pimentas deste gênero eram cultivadas pelos astecas por suas
virtudes medicinais, mais tarde conhecidas pelos europeus. O médico
inglês Nicholas Culpeper descreveu a pimenta-malagueta em sua
obra Complete Herbal (1653), denominando-a de pimenta-da-guiné,
pimenta-da-caiena ou pimenta dos pássaros. Ele interpretava a planta
como tendo a influência do planeta Marte, advertindo aos seus
consumidores que a pimenta poderia emitir vapores que atravessavam
o cérebro, indo até as narinas e provocando fortes espirros, tosse e
vômitos. Segundo Culpeper, seu consumo poderia até provocar a
morte; porém, se fossem neutralizadas suas qualidades maléficas, a
pimenta era indicada para expelir pedras nos rins, curar a hidropsia,
mordidas de animais venenosos, halitose, dor de barriga e “doenças
femininas”38.

36. BOISVERT, Clotilde ; HUBERT, Annie. L’ABCdaire des épices. Paris: Flammarion, 1998. p.90.
37. LAWS, Bill. Op. Cit. p.38.
38. Ibdem, p.41.

175
Trabalhando com a fonte histórica

FERREIRA, Luís Gomes. Erário Mineral; org. Júnia Ferreira Furtado.


Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e
Culturais; Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2002.v.2.p.556-557.

CAPÍTULO VII

De uma receita particular para os defluxos asmáticos que da cabeça


caem no peito, remédio único para os curar, e quem não sarar com ele, escuse
fazer mais; é segredo dos padres da Companhia de Jesus, do qual não têm ainda
notícia ainda médicos, nem cirurgiões; consta de umas águas, que se farão de
forma seguinte:

1.Flor de laranja azeda, raízes de malvas com algumas folhas, não


muitas, raiz de manjericão, raiz de arruda e raiz de alfavaca; de cada coisa
destas uma mão cheia, deite-se tudo em panela nova vidrada, na qual se
lançarão também duas libras deágua comum e uma de vinagre branco, com
o que há de ficar a panela cheia; ponha-se a ferver com os ditos simples até
diminuir a metade e, tirada do fogo, estando morna, se coe e deite em um
frasco, e nele se lançarão duas frutas reladas de nome pepes que vêm de
Angola e não faltam na Bahia na mão de quem é curioso, e os angolistas
costumam trazer, e outras coisas de préstimo, e é cada uma do tamanho de
uma azeitona grande; e se vascolejará o frasco por tempo de meia hora, o que
se fará uma vez por dia, por discurso de cinco, e, ao mesmo tempo que se
vascolejar com ele, estará mal tapado, de sorte que lhe fique por onde respire
para não rebentar. Esta é a primeira água.
2. Ajuntem urina de meninos de idade de três ou de quatro anos, até
que façam duas libras, e se deite em panela nova vidrada, e se lhe lançará
dentro uma mão cheia de raízes de malvas e algumas folhas; tudo bem lavado
e pisado, se ponha a ferver até gastar a metade; ao depois se deixe esfriar e se
coe, e guarde; esta é a segunda água.
3. Em uma vasilha de cobre, e não em outra, se deitarão duas colheres
do remédio da urina, e da outra água uma colher; estando tudo misturado
e mexido, se ponha a amornar, e, estando o doente de costas, se mandará

176
esfregar com esta água desde o pescoço até o fim das costelas por todo o peito,
e o mesmo se fará pelas costas abaixo, fio do lombo e costelas, esfregando
sempre para baixo por bastante tempo; isto se fará de manhã, estando o
doente em jejum e bem agasalhado na cama, e nela estará depois de esfregado
duas horas; e depois se poderá levantar bem enroupado com muita cautela
do ar e, à noite, depois da ceia; e depois de se deitar na cama, passado algum
tempo, se fará a mesma esfregação, continuando-se por tempo de um mês,
duas vezes ao dia; e com o regimento seguinte ficará o doente são.

177
10. As plantas medicinais no Período Contemporâneo:
entre saber científico e popular
João Luiz Fernandes Borghezan
Márcia Regina Valério

É conhecida a sentença que diz que o homem usa plantas para


tratamento medicinal desde os tempos mais antigos. Durante as várias
oficinas elaboradas pelo projeto “Plantas Medicinais e os cuidados com a
saúde: contando várias histórias”, compreendemos um pouco da história
do uso dessas plantas em algumas sociedades humanas tais como: China,
Índia, Egito, Grécia - apresentando a lógica no uso de plantas medicinais na
antiguidade; Europa Medieval e Moderna – traçando alguns dos caminhos
que a medicina e as plantas medicinais tomam nesse recorte temporal;
chegamos então ao Período Contemporâneo. Este texto tem por objetivo
expor uma história geral da medicina do período, com foco no uso das plantas
medicinais e a apropriação dos saberes populares pela lógica científica/
mecanicista emergente.
O século XIX é marcado por um movimento onde o laboratório
supera cada vez mais a natureza como fonte de medicamentos: um exemplo
deste novo olhar pode ser encontrado na história de um remédio de uso
bastante popular em nossos dias. Em 1838, cientistas isolaram o ácido salicílico
da casca do salgueiro-branco (Salix alba), ácido que será sintetizado em
laboratório em 18601 e em 1899, reformulado na Alemanha com o carboneto
anidrido acético2, transformando-se na aspirina. Essa reformulação foi bem
vinda por quem usava o ácido salicílico para tratar a febre, pois reduzia as
dores estomacais que eram provocadas na ingestão do ácido em pó, bem
como a mudança no seu sabor.
Como dito, o laboratório encontra na casca do salgueiro-branco
o princípio ativo que será utilizado para a fabricação da aspirina (ácido
acetilsalicílico); porém, já era sabido que os nativos norte-americanos se
serviam da casca desta planta para curar a febre. Antes de citar mais alguns
exemplos de apropriação dos saberes populares e a ressignificação do uso
das plantas medicinais, perpetrada por cientistas do século XIX, gostaríamos
de falar sobre a lógica mecanicista que regeu a maioria dos trabalhos e
1. CHEVALLIER, Andrew. The encyclopedia of medicinal plants: A practical reference guide to
more than 550 key medicinal plants &their future. United Kingdom: DK; 1996.p.24.
2. A Incrível história da droga maravilha. Disponível em:http://www.qmc.ufsc.br/qmcweb/artigos/
aspirina.html Acesso em 08 out. de 2012.

179
pensadores deste período.
Para entendermos como foi possível para pensadores e cientistas do
século XIX conseguir manipular substâncias e sintetizar medicamentos em
laboratórios, devemos voltar alguns séculos para entender a mudança na
percepção do mundo que acontece com a expansão das ideias iluministas
do século XVII e XVIII. Para muitos, o iluminismo representa o “berço da
liberdade moderna”, enquanto para outros, o “fascismo e o totalitarismo”3.
Em síntese, os pensadores iluministas propunham uma mudança na
maneira de ver o mundo no século XVII e XVIII, preconizando que o homem
deveria buscar respostas para os fenômenos naturais através da razão e da
observação, comprovando suas teorias com bases empíricas e matemáticas,
e não mais justificar tais fenômenos pela religião, pela ideia de manifestação
direta de uma vontade divina ou pela magia. Neste período, ganham força
áreas do conhecimento humano como a Matemática, Física e a Química.
Não podemos pensar que esse afastamento da linguagem da Igreja
para a explicação do mundo natural significava uma negação da existência
de um Deus. As teorias eram muitas, percorrendo vários caminhos do
pensamento e do comportamento humano e social da época, dificultando
uma assertiva simples onde a investigação da natureza está totalmente
afastada da investigação de Deus. Tão pouco essas ideias foram formuladas
de forma regular e ordenada, nesse sentido:

Como é enfatizado por John Brooke (2003), seria imensamente anacrônico


colocar uma enorme distância entre a investigação da Natureza e a investigação
de Deus, assim como seria simplista afirmar uma transição preordenada entre um
cosmos religioso, no qual um Deus pessoal intervinha, para um mais naturalista,
governado por leis naturais. Portanto, esta transição de percepção sobre a natureza,
introduzida pela revolução cientifica no século XVII, desenvolvida e consolidada no
século dezoito, além de gradual, foi não uniforme e regular.4

Segundo Carvalho, o pensamento mecanicista - tendo dois de seus


principais expoentes René Descartes (1596-1650) e Isaac Newton (1643-
1727), de modo amplo no que se refere à filosofia natural, consistiria em
integrar na explicação de fenômenos naturais os conceitos e métodos da
3. CARVALHO, Cynthia S. A medicina iluminista e o vitalismo: uma discussão do Nouveaux
Éléments de la Science de l”Homme de Paul-Joseph Barthez (1734-1806). Dissertação (Mestrado em
Saúde Coletiva) – Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2010.p.11.
4. Ibdem,p.12.

180
matemática formal da época. O principal objetivo seria, portanto, estabelecer
por meio da comprovação na análise matemática a realidade do mundo
natural, transformando assim o pensamento incerto da filosofia teológica
vigente no período em verdade certa e comprovada por métodos racionais.
Notamos essa vontade da procura pela verdade matemática na crítica do
pensamento hipotético feita por Newton, que:

Propôs o que foi mais tarde chamado de “método experimental”, defendendo


uma correlação estreita entre experimento e procedimentos explanatórios. Embora
Newton não “forjasse nenhuma hipótese”, seu método dependia do poder organizador
da lógica matemática. Uma descrição matemática da realidade era vista como a
maneira de se escapar dos horrores do conhecimento contingente e incerto. Na
hierarquia do conhecimento, o lugar ocupado por qualquer conhecimento específico
era estabelecido pelo grau que seu conteúdo pudesse ser traduzido em princípios
matemáticos .5

Juntamente com certa hegemonia deste tipo de pensamento filosófico


mecanicista, um debate se desenvolveu sobre a matéria em si: se era esta
inerte, ou possuía uma força interna inerente, ou era animada por uma alma
divina. Talvez seja nesse ponto do pensamento mecanicista sobre a filosofia
natural que temos mais ramificações explanativas teóricas, aparecendo com
relativa força e importância a ideia sobre a força vital da matéria universal,
pensamento que será abordado logo mais neste trabalho. Antes, percebemos
que, juntamente com o desenvolvimento de conceitos sobre o mundo visível
– que não foi homogêneo, tampouco ordenado, como já observado acima –
há o desenvolvimento dos aparatos tecnológicos que possibilitaram então no
século XIX os cientistas montarem laboratórios, manipularem e sintetizarem
medicamentos.
O mais importante talvez foi a invenção do microscópio em 1590, que
literalmente mudou o modo como o mundo passaria a ser visto, ganhando
nova dimensão O que não era visto ou nem mesmo existia “passa” a existir de
uma maneira irrefutável, pois era possível enxergá-lo com os próprios olhos.
Para a medicina, por exemplo, isso representou a comprovação e/ou a criação
de novas teorias sobre a composição do corpo humano, saúde e doença.6
Portanto, temos que ter em mente que o desenvolvimento da tecnologia e

5. Ibdem,p.17.
6. A ascensão da medicina científica: o século XIX. Disponível em: http://www.planetseed.com/pt-
br/ascens-o-da-medicina-cient-fica-o-s-culo-xix Acesso em 10 out de 2012. MEDICINA do século
XIX. Disponível em: http://www.facime.xpg.com.br/aulas/SecXIX.pdf. Acesso em 10 out de 2012.

181
do pensamento se interligam possibilitando as várias teorias e a mudança
na percepção e compreensão do mundo natural dos séculos XVII e XVIII,
promovendo a forte emergência da indústria farmacêutica e dos laboratórios
no século XIX.
De certa maneira, o pensamento mecanicista que colocava o mundo
biológico natural em uma ordem definida e classificada, encontrava
correspondência na ideia da criação divina. Paradoxalmente, o corpo
humano e sua fisiologia foram comparados a uma máquina, como um relógio
ou algo similar, com engrenagens e tudo mais. Mas não era apenas a teoria
mecanicista que perpassava os círculos filosófico-científicos da época; dentre
as muitas teorias que pensavam o homem e o mundo natural no período,
destacamos o vitalismo.

Em meados do século XVIII, um grupo de pensadores critica o modo


de pensar o mundo natural mecanicista, passando a negar a “necessidade
da coerência formal matemática nas explicações para o mundo natural e
instaurou-se um ceticismo crítico que revalorizou a contingência sobre a
coerência”7. Para muitos desses pensadores, principalmente na França, a
filosofia natural mecanicista estava ligada a monarquia absolutista, ou seja, a
7. CARVALHO, Cynthia S. Op.Cit. p.27.

182
regimes políticos elitistas e opressores. Ganham força ideias que reformulam
o conhecimento sobre a matéria, centrando interesse nas ciências da vida,
química, história natural e medicina. Portanto:

A discordância básica dos vitalistas em relação ao mecanicismo foi em relação


à matéria, que estes consideraram inerte, e “cuja separação entre mente e corpo,
ou alma e corpo, apenas Deus poderia curar”. (REILL, 2005, p. 7). Segundo Reill,
os vitalistas da segunda metade do século dezoito, que ele denominou de ‘vitalistas
iluministas’, procuraram dissolver a dicotomia entre matéria e mente, ou corpo e
alma, propondo a existência de uma matéria animada por forças ou poderes que se
auto- ativavam, e que era auto-organizada, em um ciclo de relações e interconexões,
que foi denominado de princípio ou força vital8.

A força vital, por conseguinte, não poderia ser vista diretamente


nem mensurada, pois não era nem determinada pelo corpo (matéria), nem
animada pela alma (intervenção divina), podendo no máximo ser anunciada
por sinais perceptíveis através da semiologia e observação. A matéria seria
então ativada por essa força vital propondo uma nova teoria da matéria9.
Seguindo esta descrição, podemos refletir sobre o uso das plantas
medicinais a partir da segunda metade do século XVIII, já que o princípio
ativo das plantas estava cada vez mais sendo utilizado para a produção
de medicamentos em laboratórios. Embora o discurso científico e as
tantas transformações sugerissem o uso de medicamentos produzidos
em laboratório, os saberes populares e as plantas medicinais continuaram
a ser utilizados. Todavia, por mais que no discurso, essa “nova ciência” se
distanciasse do conhecimento popular, era por meio deste que normalmente
a ciência chegava a compreensão dos princípios ativos de uma planta.
Um exemplo já citado é a aspirina que foi sintetizada a partir da casca
do Salgueiro-branco (Salix alba), pois o que levou os cientistas a pesquisarem
essa planta foi justamente a observação do uso feito popularmente. Outros
exemplos são as plantas Quinquina ou quina (Cinchona officinalis), pequena
árvore da família das Rubiáceas, originária da América do Sul (Peru),
utilizada para o tratamento da malária, e a Dedaleira (Digitalis purpurea),
nativa da Europa, utilizada para o tratamento da hidropsia, ambas utilizadas
por práticas tradicionais locais.10
8. Ibidem,p.28.
9. Ibidem,p.30.
10. CRELLIN, John. Herbalismo, a antiga tradição. In: PORTER, Roy (org.) Medicina: a História da
Cura. Lisboa: Centralivros,2002.p.83-84.

183
Ao cuidar da saúde das pessoas alguns médicos não recusavam esses
conhecimentos, dedicando-se às formas de tratamento que tivessem como
base o princípio da Força Vital e as plantas medicinais:

Uma característica notável dos cuidados de saúde no século XIX foi o surgimento
de terapeutas botânicos “alternativos”. Ainda que sempre tenha existido uma grande
diversidade de terapeutas a usar plantas medicinais, e embora muitos deles fossem
médicos, o movimento alternativo pouco conflito gerou com a medicina convencional
até 1800. A partir de então, vários grupos de terapeutas começaram a promover o uso
das plantas medicinais de formas diferentes das da medicina convencional.11

O médico alemão Samuel Hahnemann, que viveu entre os anos de 1755-


1843, foi um desses médicos que propôs um novo sistema de medicina como
alternativa às práticas médicas convencionais. “Rejeitando a polifarmacologia
dispendiosa, Hahnemann formulou seus novos princípios”12. Na redescoberta
de um princípio expresso originalmente pelo médico Hipócrates no século
V a.C., similia similibus curantur (os semelhantes curam os semelhantes), ele
criou a homeopatia.
De acordo com o fundador da homeopatia, duas abordagens de cura
prevaleciam naquele momento: o tratamento alopático e o homeopático. O
primeiro tratava das pessoas por opostos (remédio diferente da doença), o que
para ele era um equívoco, pois este tratamento, em muitos casos, debilitava
mais os enfermos do que a própria doença. Segundo Hahnemann,“para curar
a doença, devemos buscar medicamentos capazes de provocar sintomas no
corpo humano sadio”13. Ao eleger a lei da similaridade - Os semelhantes curam
os semelhantes - e a lei dos infinitesimais – a menor dose do remédio torna-se
mais eficaz, com substâncias naturais altamente diluídas - Hahnemann utiliza
da força vital dos medicamentos –muitos dos quais advindos da flora- para
reestabelecer o equilíbrio da força vital do doente, que é tratado a partir de uma
abordagem holística. A homeopatia, portanto, concentra-se no tratamento da
pessoa como um todo – aspectos mentais, emocionais, espirituais e físicos,
procurando restabelecer o equilíbrio natural do corpo14.
Uma das experiências que levou Hahnemann a construir os preceitos
da homeopatia foi a observação de:
11. Ibdem, p. 86.
12. PORTER, Roy. Das tripas coração: Uma breve história da medicina. Rio de Janeiro. Record,
2004.p.66.
13. Idem.
14. MARINS, Alvaro et alii. Dicionário de Medicina Natural. Seleções Reader’s Digest, 2000.p.214.

184
[…] que um remédio à base de uma planta medicinal para a malária, a casca da
quina, provocava sintomas da doença, como dores de cabeça e febre, se fosse tomada
por uma pessoa sã. Concluiu que os sintomas eram o modo como o organismo lutava
contra a doença e que os remédios que provocavam os mesmos sintomas que a doença
poderiam ajudar na cura.15

Outro médico que compartilhou da mesma busca por uma medicina


que não desconsiderasse o uso de plantas medicinais e da força vital foi o
médico inglês Edward Bach, que nasceu no ano de 1886 e viveu até 1936.
Acreditando que a doença resultava da desarmonia interna e de pensamentos
e sentimentos negativos se manifestando no físico, Bach procurou tratar os
sintomas emocionais com propriedades encontradas nas flores, também
a partir de uma abordagem integral. Com suas pesquisas, ele descobriu 38
plantas que poderiam tratar de sentimentos como medo, ansiedade, raiva,
impaciência, pânico, entre outros16.
As essências florais foram assim extraídas:

O orvalho do início da manhã, que cobria as plantas expostas à luz do sol,


constatou Bach, absorvia as propriedades da planta muito melhor do que o orvalho
caído naquelas que cresciam à sombra. Assim usou o método solar de extração das
propriedades das plantas, que envolve deixar flores colhidas flutuarem numa vasilha
de vidro com água nascente.17

Para estabelecer as peculiaridades do tratamento floral, dentre as


plantas das 38 essências Florais de Bach, podemos destacar duas: a Agrimony
(agrimonia eupatoria), nativa na Europa Ocidental, e o Centaury (trythraea
centaurium) que nasce espontânea no Brasil. A primeira, na antiguidade
era indicada como curativa contra o veneno das cobras, e na Idade Média
era indicada como cicatrizante. No tratamento floral, “tem a capacidade de
fortalecer a vontade e expandir alegria. O Dr. Bach aconselhava seu uso nos
transtornos mentais e depressão oculta. Acalma, propicia jovialidade, paz.
Equilibra a mente no combate ao álcool, e às drogas. Minimiza receios, vícios,
defeitos, fortalecendo a esperança de resultados felizes”.18 Já a Centaury
“fortalece a mente e a autodeterminação. É atuante. Seu uso combate a apatia,
15. Idem.
16. MCINTYRE, Anne. Guia completo de fitoterapia: um curso estruturado para alcançar a exce-
lência profissional. São Paulo: Pensamento, 2011.p.34.
17. Idem.
18. CRAVO, Antonieta Barreira. Os Florais do Dr. Bach: As flores e os remédios. Curitiba: Hemus
S.A., 2011.p.50.

185
inércia, desinteresse. Provoca a autodeterminação, atividade, defesa de seus
interesses. Esclarece a mente e conscientiza seus valores individuais.”19
Edward Bach também levou em conta os casos de emergência e
elaborou um floral de socorro com o nome de Rescue, que podemos entender
como resgate ou salvação. Na composição deste floral estão cinco essências
das 38 elaboradas por ele: Impatiens (Impatiens glandulifera): útil nas crises
de dores musculares e agitação; Clematis (Clematis vitalba): nos desmaios e
descontroles; Rock Rose (Helianthemum nummularium): para os momentos
de pânico, medo e terror; Cherry Plum (Prunos cerasifera): nos descontroles
mentais e físicos; Star of Bethlehem (Ornithogalum umbellatum): em caso de
traumas mentais e físicos.
Felizmente, tivemos vários médicos no século XX que continuaram
a dar importância para as propriedades das plantas medicinais, mesmo com
tantas transformações no campo da saúde e das terapias médicas. Podemos
verificar esta permanência no uso de óleos essenciais, empregados desde muito
tempo por civilizações antigas. Os óleos aromáticos nunca deixaram de ser
utilizados, seja como condimento alimentício, terapêuticos, ou perfumaria.
Mesmo que a forma de preparação tenha se industrializado e as formas de uso
de modificado, as essências merecem o interesse de profissionais da saúde,
como os médicos e terapeutas.
A partir do século XIX, os óleos essenciais não estiveram ausentes de
investigações por parte do olhar científicode, sendo muito mais testados do
que as ervas, embora não tenham sido enquadrados na mesma categoria que
estas.20 Um fato curioso, mas fácil de entender, se levarmos em consideração
a ascensão da ciência que passa a valorizar mais o produto advindo da
sintetização do princípio ativo das plantas, do que as ervas medicinais
propriamente ditas.
As pesquisas sobre os όleos essenciais continuaram no século XX,
principalmente por químicos e farmacêuticos, que buscavam descobrir os
poderes antissépticos dos óleos essenciais. Foi o caso do químico francês
René Gattefossé (1881-1950). Através de suas pesquisas, que se limitavam aos
usos cosméticos das essências, percebeu que “muitos óleos essenciais tinham
propriedades antissépticas mais poderosas do que alguns dos antissépticos
químicos usados na época.”21 Com a menção à palavra “aromaterapia”

19. Ibidem,p.56.
20. TISSERAND, Robert. A Arte da Aromaterapia. São Paulo: Roca, 1993.p.52-53.
21. Ibidem,p.53-54.

186
por Gattefossé em vários artigos, e pela publicação de seu primeiro livro
Aromathérapie, em 1928, a terapia que utilizava óleos essenciais passa a ser
conhecida por esse nome.
Já entre as décadas de 1940 e 1960, o médico francês Jean Valnet
(1920-1995), deu continuidade às pesquisas sobre a aromaterapia, utilizando
os όleos essenciais para o tratamento de problemas emocionais ou
psicológicos apresentados por soldados da guerra. Neste mesmo período, a
bioquímica austríaca Marguerite Maury (1895-1968) se interessou também
pela aromaterapia, criando técnicas de massagem, tratamentos de beleza e
cuidados da pele com uso de óleos22.
Os óleos essenciais são utilizados para banhos aromáticos, massagens
e inalações e são empregados no tratamento de diversos problemas de saúde.
Dentre as principais funções das essências estão o revigoramento físico e
do ânimo e a tonificação e regulação das principais funções corporais, com
efeitos sedativo e calmante sobre o corpo e espírito.
Podemos concluir desta forma, que mesmo com a ascensão da
produção de medicamentos em laboratórios, o uso das plantas medicinais,
sob as mais variadas formas e através de diferentes agentes sociais continua
resistindo ao tempo, assim como os saberes populares que fazem parte do
nosso cotidiano. Mesmo que seja através de uma planta no vaso, em uma
pequena horta nas casas, ou através de projetos que envolvam a comunidade
para a preservação destes saberes, ainda podemos fazer uso deles e expandir
tais conhecimentos.

22. MCINTYRE, Anne.Op.Cit.p.33.

187
BIBLIOGRAFIA
• A ascensão da medicina científica: o século XIX. Disponível em: http://
www.planetseed.com/pt-br/ascens-o-da-medicina-cient-fica-o-s-culo-
xix.Acesso em 10 out de 2012.
• CARVALHO, Cynthia S. A medicina iluminista e o vitalismo: uma
discussão do Nouveaux Éléments de la Science de l”Homme de Paul-
Joseph Barthez (1734-1806). Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva)
– Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2010.
• CHEVALLIER, Andrew. The encyclopedia of medicinal plants: A
practical reference guide to more than 550 key medicinal plants &their
future. United Kingdom: DK; 1996.
• CRAVO, Antonieta Barreira. Os Florais do Dr. Bach: As flores e os
remédios. Curitiba: Hemus S.A., 2011.
• CRELLIN, John. Herbalismo, a antiga tradição. In: PORTER, Roy (org.)
Medicina: a História da Cura. Lisboa: Centralivros,2002.p.68-93.
• MARINS, Alvaro et alii. Dicionário de Medicina Natural. Seleções
Reader’s Digest, 2000.
• MCINTYRE, Anne. Guia completo de fitoterapia: um curso estruturado
para alcançar a excelência profissional. São Paulo: Pensamento, 2011.
• Medicina do século XIX. Disponível em: http://www.facime.xpg.com.br/
aulas/SecXIX.pdf. Acesso em 10 out de 2012.
• PORTER, Roy. Das tripas coração: Uma breve história da medicina. Rio
de Janeiro. Record, 2004.
• TISSERAND, Robert. A Arte da Aromaterapia. São Paulo: Roca, 1993.

188
Para saber mais…
Renata Palandri Sigolo

A medicina que conheceu suas ascensão no século XX – e cujas


características principais são o valor à objetividade dos sinais da doença
em detrimento da narrativa subjetiva do doente, o uso crescente de
tecnologia e o olhar sobre um corpo esquadrinhado em pedaços - teve
seu berço no final do século XVIII. A atual ciência das doenças ainda é
herdeira desta forma de curar que possui, no laboratório e no hospital
do final do século XVIII e início do XIX, seus principais espaços de
construção. O hospital, por exemplo, sofreu grande transformação após
a Revolução Francesa, quando passou a ser um local de aprendizagem
médica totalmente diferente das instituições medievais, assim como se
modificou o status do médico na sociedade.23
Michel Foucault afirma que, no século XIX, a medicina adotou a
“soberania do olhar” como forma de identificar a doença no corpo
do paciente, substituindo a questão a ele dirigida: de “o que você
tem ?” por “onde lhe dói?”. Para conhecer a doença, o clínico deveria
reconhecê-la no corpo do doente e, para tanto, se construiu, no século
anterior, um modelo de classificação das doenças que foi tomado do
modelo classificatório de animais e plantas.24
No caso da medicina, foi o olhar responsável por definir analogias
e diferenças entre as doenças, a fim de atribuir-lhes um quadro
classificatório. Foi através da construção de um modelo analógico
que se estabeleceu a disposição das doenças de forma inteligivel,
supondo a existência de “princípios” para sua criação. O médico
Sydenham apontou esta analogia no século XVII: “(...) Quem observar
atentamente a ordem, o tempo, a hora em que começa o acesso de
febre quartã, os fenômenos de calafrio, de calor, em uma palavra, todos
os sintomas que lhe são próprios, terá tantas razões para crer que esta
doença é uma espécie, quantas tem para crer que uma planta constitui
uma espécie porque cresce, floresce e perece sempre do mesmo modo”.25
Como se construiu o modelo classificatório do qual a medicina
23. PORTER, Roy. Das tripas coração. Uma breve história da medicina. Rio de Janeiro/ São Paulo:
Record, 2004.p.97.
24. FOUCAULT. Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense universitária,1994.p.2-8
25. Ibidem,p.6.

189
foi herdeira? A classificação de seres vai ser feita através de diferentes
métodos em séculos anteriores, mas foi Carl von Linné (1707-1778)
quem elaborou o sistema que seria aceito pela ciência botânica. Os
princípios fundamentais de sua classificação foram lançados em 1735,
quando publicou sua obra “Sistema natural” e, aparentemente, sua
proposta foi adotada por possuir um “estilo telegráfico”, com linguagem
direta e breve das características das plantas.26
O trabalho do médico e zoólogo sueco foi desenvolvido a partir das
pesquisas de vários cientistas do século XVII, em especial de Caspar
Bauhin (1560-1624). A classificação de Linné compreende vegetais
e animais e os sistematiza em categorias como reino,classe, ordem,
família, gênero e espécie. O método binomial de nomenclatura, ou
seja, o que define cada planta por gênero e espécie, é o mais utilizado
pelos estudiosos botânicos e jardineiros.27
A base da classificação proposta por Linné foram as características
sexuais das plantas. Ele construiu sua proposta dividindo as plantas de
acordo com o número de estames (orgãos sexuais masculinos) e de
pistilos (orgãos sexuais femininos) : este método produziu reflexões
bastante curiosas, pois o cientista muitas vezes se referia aos vegetais
como “noivos” e “noivas”. Este sistema foi substituido, após sua morte,
por um sistema botânico natural.28
Ao identificar espécies, Linné não popôs somente nomear plantas
e animais, mas reconhecer semelhanças entre indivíduos pertencentes
ao mesmo gênero. Além de comparar e identificar, a classificação
foi desenvolvida para reter o essencial (segundo seus parâmetros),
ignorando o supérfluo: a linguagem foi desenvolvida para ser de fácil
memorização e o latim foi constituido como “lingua universal” para
evitar confusões. A sistemática de Linné é, também, hierárquica, uma
vez que quanto mais restringirmos o nível de classificação, menor é o
número de propriedades que aquele ser vivo irá possuir.29
No século XVIII, a circulação de informações entre pesquisadores

26. PRESTES, Maria Elice Brzezinski. O século dos jardins. In: MARTINEZ, Paulo Henrique (org.).
História ambiental paulista.Temas, fontes, métodos.São Paulo, Senac, 2007.p.137.
27. HARRISON,Lorraine. Latim para jardinistas. Mais de 3 mil plantas explicadas e detalhadas.
São Paulo: Europa, 2012.p.132
28. Idem.
29. ROSSI, Paolo. Classificar. In: _______. O nascimento da ciência moderna na Europa. Bauru:
EDUSC, 2001.p.337-349.

190
como Linné se beneficiou com a expansão das academias de eruditos,
gabinetes, museus, jardins botânicos, que abrigaram coleções contendo
os três reinos da natureza, enriquecidas pelas viagens naturalísticas.
Nestas coleções, não era suficiente amontoar espécimes: era preciso
seleciona-las e organiza-las de maneira plausível.30Assim como os
espaços de armazenamento e debate sobre os vegetais, os livros de
botânica foram instrumentos de difusão do conhecimentos sobre
plantas em geral: nestes veículos de informação, os desenhos botânicos
tiveram destaque, nem sempre sendo realizados por cientistas. Sobre
os livros de botânica, Linné era da opinião de que somente o trabalho
do erudito deveria ser levado em conta e, talvez por isso e pelo preço
elevado das ilustrações, seus livros foram escassamente ilustrados.31Isso
nos leva a pensar como a produção e circulação deste tipo de saber
ocorreu em um circuito bastante restrito de pessoas nas sociedades
europeias.
Mesmo sendo o olhar classificatório de Linné e outros cientistas
do século XVIII disseminado e utilizado por estudiosos em períodos
posteriores, outros pensadores propuseram maneiras diversas de
entender e se relacionar com a natureza. Johann Wolfgang von Goethe
(1749-1832) desenvolveu uma série de estudos sobre a natureza,
mais particularmente a respeito de espécies vegetais. A teoria do
conhecimento, na época de Goethe, desenvolveu-se como “mera
doutrina do ato de pensar, deduzir e julgar”32; neste contexto, o escritor
alemão era um ‘sensorialista’, construindo uma ‘teoria da percepção’.
Em sua forma de se aproximar da natureza, partilhava das ideias de
Rousseau, que se não se descrevia como um cientista, mas como um
“colegial” que tinha no conhecimento de plantas uma forma de se
divertir, mais do que de se instruir.33
Porém, não podemos pensar que Goethe não desenvolveu
nenhum método de observação da natureza. Ao construir sua própria
sistemática, ele partiu de uma concepção de natureza que não a reduzia

30. PRESTES, Maria Elice Brzezinski. Op. Cit. p.138.


31. SØRNSEN, Madeleine Pinault. Le livre de botanique. XVII et XVIII siècles. Paris: BNF,
2008.p.60.
32. KOLLERT, Günter. Prefácio à primeira edição brasileira. In: GOETHE, Johann Wolfgang von. A
metamorfose das plantas. São Paulo: Antroposófica, 1997.p.4.
33. DUBREUIL, Joseph Hériard.Rousseau, la botanique et Goethe.In : ROUSSEAU, Jean Jacques.
La Botanique de Jean Jacques Rousseau. Vieille-Église-en-Yvelines : Association « La Botani-
que »,2012.s.p.

191
em classificar e nomear, como propôs Linné, mas em compreender
as “leis da natureza” através de um processo que envolvia diferentes
etapas e incluia a intuição como forma de conhecimento.34Neste
processo, ele vai valorizar o conhecimento do objeto como um todo:

Em cada ser vivo existe o que denominamos partes, porém tão inseparáveis
do todo que só podem ser compreendidas nele e com ele. E nem as partes só
podem ser empregadas como medida do todo, nem o todo como medidas das
partes; e assim, conforme dissemos acima, um ser vivo limitado participa da
infinitude, ou melhor, tem algo infinito em si – e isto se não quisermos dizer
melhor: que não podemos compreender inteiramente o conceito da existência
e da perfeição do ser vivo mais limitado, e portanto, do mesmo modo como a
imensa totalidade em que são compreendidas todas as existências, ele deveria
ser explicado como sendo infinito.35

Seguindo o princípio de unidade, Goethe vai supor a existência


de um “modelo arquetípico” que representasse uma essência da flora
e explicasse a multiplicidade de espécies. Nasceu, então, o conceito
de “planta primordial” que não é uma planta real, mas uma ideia.
Esta noção de “ideia primordial” não é aplicada somente às plantas
e é assim explicada: “É a alma (psykhé) que vive e se manifesta no
organismo; neste caso, não se pode determinar onde termina o corpo
e onde começa a alma (ou vice-versa), pois trata-se de duas realidades
que comungam as mesmas manifestações orgânicas36.”
O autor de “A metamorfose das plantas” concebia, em cada
vegetal, a manifestação dos quatro elementos (fogo, ar, terra e água),
assim como as teorias médicas da antiguidade sobre a composição
de macro e microcosmos. Para Goethe, estes elementos e suas
combinações forneciam uma explicação para a aparência das plantas.
A predominância do ar, por exemplo, faria com que uma espécie fosse
mais “aérea”, com caules ocos. As plantas teriam um ritmo que as
animaria e que não seria mensurável: os diferentes estados vegetativos
que se sucedem ( raiz, caule, folhas, flores) seriam seu indicativo.
Estes ritmos, por sua vez, estariam presentes no corpo humano e
seria por correspondência que uma planta teria a capacidade de
34. MARQUES, Antonio. Apresentação. In: GOETHE, Joahann Wolfgang von. Ensaios Científicos.
Uma metodologia para o estudo da natureza.São Paulo/ Barany; Ad Verbum,2012. p.31.
35. GOETHE, Joahann Wolfgang von. Ensaios Científicos. Uma metodologia para o estudo da
natureza.São Paulo/ Barany; Ad Verbum,2012. p.44.
36. MARQUES, Antonio. Op. Cit. p.28.

192
curar determinada perturbação. A medicina antroposófica de Rudolf
Steiner (1861-1925) se inspirou nas ideias de Goethe e representa uma
forma bastante diferente de ver a saúde e a doença, se a compararmos
à medicina que nasceu no século XVIII, influenciada pelo modelo
classificatório da natureza.37

Mimulus guttatus

37. LAÏS, Erika. L’ABCdaire des plantes aromatiques et médicinales. Paris : Flammarion, 2001. p.
14.

193
Trabalhando com fonte histórica

BACH, Edward. Os remédios florais do Dr. Bach. Incluindo cura-te a


ti mesmo, uma explicação sobre a causa real e a cura das doenças e os
doze remédios. 9ª edição. São Paulo: Pensamento,1992.p.75.

ROCK ROSE
(Helianthemum Nummularium)

É o remédio da salvação. É aplicado nos casos de emergência para


os quais parece não haver nenhuma esperança. Útil em acidentes ou
em enfermidades que surgem repentinamente, ou nos momentos em
que o enfermo está muito assustado ou aterrorizado, ou quando o
estado é grave o bastante para causar inquietação, nos que estão ao
seu redor. Se ele estiver inconsciente, pode-se umedecer-lhes os lábios
com este remédio. Outros remédios podem ser também necessários;
no caso, por exemplo, em que a inconsciência – ou seja, num estado
de profunda sonolência-, Clematis; no caso de o paciente encontrar-se
atormentado, Agrimony, etc.
BACH, Edward. Os remédios florais do Dr. Bach. Incluindo cura-te a
ti mesmo, uma explicação sobre a causa real e a cura das doenças e os
doze remédios. 9ª edição. São Paulo: Pensamento,1992.p.75.

194
195
Cordia verbenacea
11. Plantas medicinais no Brasil contemporâneo:
da “botica da natureza” à “saúde em frascos”
Renata Palandri Sigolo

A historiografia brasileira1 indica que, até o século XIX, Portugal


não se preocupou de maneira efetiva em fornecer assistência à saúde da
população residente no Brasil. A vinda da Corte Portuguesa, em 1808,
causou profundas mudanças no país, como a organização do ensino médico
em torno das Escolas Cirúrgicas criadas no Rio de Janeiro e na Bahia que,
em 1832, se transformaram em Faculdades de Medicina.2Mesmo que seu
funcionamento tenha sido precário em seus primeiros anos, ambas as
instituições representaram não só a possibilidade de formação mas também
de fiscalização e monopólio da prática médica.
O controle sobre as atividades de cura foi exercido, entre 1808 e 1828,
pela Fisicatura. Nela, o Físico e o Cirurgião Mor eram responsáveis em
expedir licenças e cartas obrigatórias para diferentes agentes do universo da
cura. Vários ofícios eram regulamentados pelo orgão de fiscalização: médicos,
cirurgiões, boticários, curandeiros, parteiras, sangradores, cirurgiões que
queriam receitar medicamentos, dentistas e aqueles que curavam doenças
específicas como embriaguez e morféia.3
Estas atividades obedeciam uma hierarquia, mas qualquer pessoa
poderia solicitar uma licença provisória ou carta, bastando apresentar
atestado ou declaração fornecidos por seu mestre ou pela comunidade junto a
qual exercia suas atividades.O uso de plantas medicinais não estava restrito a
um ofício de curar específico, mas uma das atividades mencionadas no século
XIX nos chama a atenção: a de curandeiro, que correspondia à pessoa que
cuidava das doenças mais comuns com o uso de plantas medicinais nativas.4
Em 1828, são extintos os cargos de Físico e Cirurgião Mor do Império
e somente em 1830, aparece um pedido para que facultativos, sangradores,
parteiras e boticários registrassem suas cartas na Câmara, que era auxiliada
1. RIBEIRO, Márcia Moisés. A ciência dos trópicos. A arte médica no Brasil do século XVIII. São
Paulo: Hucitec, 1997. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças - cientistas, instituições e
questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Cia das Letras,1993.
2. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. Cit.p.194.
3. PIMENTA Tânia Salgado. Terapeutas populares e instituições médicas na primeira metade do
século XIX. In: CHALHOUB, Sidney et alli (org.). Artes e ofícios de curar no Brasil. Campinas:
UNICAMP, 2003.p.308.
4. Ibidem. p.309.

197
pela Sociedade de Medicina. Não são mencionados os curandeiros mas,
aparentemente, a falta de uma carta ou licença não os impedia de exercer sua
função,pois estes profissionais eram o recurso maior dos pobres e doentes que
a medicina não conseguia curar.
No período de existência da Fisicatura, o maior motivo para a concessão
de cartas aos curandeiros era a falta de pessoas mais habilitadas para exercer
a cura. Uma vez estabelecidas as Faculdades de Medicina e a Sociedade
Brasileira de Medicina, o monopólio médico forçou estes profissionais a uma
maior marginalização, não os reconhecendo mais como agentes de cura.5
Curandeiro tournou-se, então, sinônimo de « charlatão » ou impostor.
Várias foram as críticas tecidas nos jornais brasileiros e revistas médicas
do século XIX aos agentes de cura que antes eram praticamente o único
recurso para os males que afligiam a população. O Archivo Médico Brasileiro,
em 1848, apontava a ação destes agentes para a cura da embriaguez:

A velha do Castelo administrava certa mistura de mijo de gato e de assafetida.


Outro, que morava na Prainha, mandava beber infusão de fedorenta aos negros
dados ao vício da aguardente, e purgava- os depois violentamente com aloes (itálico
do original). Havia ainda um negro de Angola que podia ser encontrado na rua dos
Ciganos, bem no coração da capital do Império, e que havia trazido uma raiz de Minas
Gerais, com a qual curava os pretos da embriaguez (AMB, abril de 1848).6

Além dos agentes já citados, dentro do universo de cura formal


também as boticas eram veículos de propagação do conhecimento em plantas
medicinais. Eram espaços que forneciam medicamentos compostos não
só por plantas, também dispensando os conselhos para sua utilização. No
século XVIII, as multas para os profissionais que conservassem ingredientes
estragados originários da própria colônia era muito maior do que aquelas
atribuidas aos ingredientes importados já corrompidos7. Este fato nos leva a
pensar que a matéria-prima para a elaboração de medicamentos se estragava
com frequencia na viagem transatlântica e que os boticários precisavam
recorrer e conhecer cada vez mais a flora medicinal local. Por outro lado,
a frequente descrição do estado lastimável das boticas e de seus preços
exorbitantes leva a crer que inúmeras pessoas faziam do quintal sua farmácia,
5. Ibidem, p.322.
6. PIMENTA, Tânia Salgado. Transformações no exercício das artes de curar no Rio de Janeiro
durante a primeira metade do Oitocentos. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, Rio de Janeiro,
vol. 11 (suplemento 1). p.79., 2004.
7. RIBEIRO, Márcia Moisés. Op.Cit.,p.25-26.

198
recorrendo ao conhecimento popular transmitido através das gerações.8
Vários médicos, botânicos e farmacêuticos pesquisaram sobre
as plantas medicinais brasileiras no final do século XIX e início do XX,
publicando diferentes compêndios e formulários. O « Formulário e guia
médico », conhecido pelo nome de seu autor – Chernoviz - era um dos mais
utilizados. Influenciado pelo Iluminismo, Chernoviz via a medicina cientifica
superior ao conhecimento popular: em sua outra obra, o « Dicionário
de medicina popular e ciências acessórias », o médico deixou clara sua
« missão » de impedir o público leitor de ser alvo de « charlatanismo » e
« erros populares ».9
Podemos observar esta “cruzada”, levada a cabo por alguns profissionais
de saúde em busca de “esclarecer” o público, presente em outro personagem,
o médico francês Sigaud. José Xavier Sigaud, como ficou conhecido
no Brasil, chegou ao Rio de Janeiro em 1825 com o objetivo de clinicar e
explorar o interior do país como naturalista. Sua imigração foi forçada pelo
antibonapartismo reinante em seu país natal e foi facilitada pelas boas relações
mantidas entre Brasil e França.10
Sigaud formou-se em medicina na Universidade de Strasburg em 1818
e iniciou sua carreira como cirurgião interno do Hospital Geral de Caridade de
Lyon. Após, mudou-se para Marseille onde se tornou membro da Sociedade
Real de Medicina daquela cidade e fundou o periódico médico Asclepíade,
em 1825. Uma vez no Brasil, devido a sua experiência, foi chamado para
participar da criação da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1829.11
A Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro que se tornaria,
posteriormente, Academia Imperial de Medicina, dedicava-se à tradução
dos principais teóricos da higiene oitocentista. Naquele período, a higiene
tentava explicar a relação possivelmente existente entre as particularidades
do ambiente e da sociedade brasileiras com seu nível de salubridade ou
insalubridade. Sigaud se insere neste quadro de pensamento, pois defendia
que a investigação das relações entre clima e doença poderiam explicar as
endemias, epidemias e demais doenças existentes no território brasileiro.12
8. Ibidem,p.32-33.
9. EDLER, Flavio Coelho. Boticas & Pharmacias. Uma história ilustrada da farmácia no Brasil.Rio
de Janeiro: Casa da Palavra, 2006. p.76
10. FERREIRA, Luiz Otavio. Introdução : José Francisco Xavier Sigaud e a tradução local do higie-
nismo. In: SIGAUD, José Francisco Xavier. Do clima e das doenças do Brasil ou estatística médica
deste Império. Rio de Janeiro: Fiocruz,2009. p.18-19.
11. Idem.
12. Ibidem, p. 17-21.

199
Enquanto representante da ciência médica, cujos mecanismos de
controle vinham se consolidando no Brasil em especial após a criação da
Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, Sigaud não poderia se furtar à
crítica a outros agentes de cura que não fossem “legítimos”:

A classe dos curandeiros se divide em duas ordens distintas, os curandeiros


indígenas e os curandeiros exóticos; esta classificação abrange todos os gêneros,
espécies e variedades desta milícia guerreira contra a pobre humanidade. À ordem
dos curandeiros indígenas pertencem todos aqueles que, conhecendo bem ou mal as
plantas da região, empregam o regime e alguns vegetais para curar mordidas, feridas
e outras enfermidades. Na segunda ordem, estão os amadores ou especuladores da
patologia humana, verdadeiros empresários das doenças, que exploram os casos
graves com lucro, tiram grandes contribuições da credulidade e se servem para tratar
ou curar os doentes de fórmulas secretas e de métodos truncados pela ignorância, ou
então de certas aplicaçõesousadas diante das quais a prudência da gente da arte recua
de pavor.13

A desvalorização do saber e atuação dos agentes populares de cura


cresceu à medida em que ocorreu o aumento de profissionais habilitados pela
academia ou controlados pelas autoridades médicas em sua atuação. A obra de
Sigaud, publicada em 1844, apresenta várias plantas medicinais utilizadas em
terras brasileiras e, ao mesmo tempo, critica a ação de curandeiros indígenas,
africanos e mesmo europeus que dela se utilizavam, porém fora dos critérios
racionais da ciência médica de sua época.
Entre os séculos XIX e XX, muitos outros pesquisadores voltaram sua
atenção à pesquisa de plantas medicinais, dentro do espírito investigativo
que vai marcar o olhar do ser humano sobre a natureza característico do
pensamento europeu no período. Dentre eles, Theodore Peckolt (1822-1912),
liderou o Laboratório Químico do Museu Nacional na década de 1870 e
realizou o maior número de análises químicas da flora medicinal brasileira.
Ele descreveu o princípio ativo da Ficus dolaria (gameleira), a « doliarina »,
usada como vermífugo, purgativo, depurativo e anti-sifilítico. A planta já
era de uso pelos curandeiros contra « opilação » ou acilostomose. Peckolt
estudou outros princípios ativos de plantas indígenas como a agoniadina, a
anchietina, andirina, angelina e carobina.14
O isolamento de princípios ativos das plantas medicinais, nativas ou
13. SIGAUD, José Francisco Xavier. Do clima e das doenças do Brasil ou estatística médica deste
Império. Rio de Janeiro: Fiocruz,2009. p.131.
14. Ibidem,p.77

200
não, foi importante na fabricação de medicamentos pela nascente « indústria
farmacêutica » brasileira, representada por laboratórios e boticas. O
Laboratório da Flora Brasileira, por exemplo, produzia o « vinho ferruginoso
quinado de ananás » e as « pílulas depurativas de velamina »15. Muitos
produtos da farmácia nacional eram anunciados nas páginas dos jornais
e em almanaques e vários deles eram à base de plantas medicinais.Porém,
o acesso aos produtos farmacêuticos era restrito às camadas mais ricas da
sociedade brasileira. Os mais pobres contavam com remédios caseiros ou
recomendados por curandeiros ou barbeiros sangradores. É interessante
notar que esta medicina popular – base para a pesquisa cientifica sobre a ação
das plantas nos quadros de adoecimento- nunca despareceu.
A convivência entre medicina popular e científica pode ser fartamente
observada em momentos de epidemia. A Gripe Espanhola, que grassou
mundialmente em 1918, é um exemplo. A epidemia, até fins de novembro
daquele ano, havia atingido várias partes do globo de forma extremamente
virulenta e letal.16Os primeiros brasileiros infectados pela doença foram os
componentes da missão médico-militar enviada à Europa por ocasião da
Grande Guerra. Quando atracaram em Dacar, na África, tiveram contato
com a Gripe, que dizimou cerca de cem tripulantes, pressionando o rápido
retorno dos sobreviventes ao Brasil.17
No final de setembro de 1918, a Gripe Espanhola atingiu quatro portos
brasileiros e é difícil saber o número exato de mortos: estatisticamente,
chegou-se ao número de 35.240 falecidos, mas estima-se que esta cifra
seja bem maior.18 O que se sabe, certamente, é que a epidemia modificou o
cotidiano dos brasileiros: diante da possibilidade de contágio, era necessário
se resguardar da circulação em certos espaços e do exercício de atividades
do dia-a-dia que pudessem ser suscetíveis ao adoecimento. Além do mais,
o medo da doença fez com que a população recorresse às farmácias e aos
agentes de cura disponíveis para tentar evitar o mal19.
Diferentes métodos de cura eram oferecidos na ocasião, que variavam
desde a medicina acadêmica até a homeopatia, curas espíritas e medicina
popular. Muitas recorriam ao uso de plantas medicinais: a quina (Cinchona

15. Ibidem, p. 78.


16. BERTOLLI FILHO, Claudio. A Gripe Espanhola em São Paulo, 1918. Epidemia e Sociedade.São
Paulo: Paz e Terra, 2003. p.71.
17. Ibidem, p. 73.
18. Ibidem, p.74.
19. Ibidem, p. 212.

201
L.), por exemplo, fazia parte do rol de plantas mais buscadas, desde os
tempos coloniais. A planta era usada na Europa desde o século XVII para
combater a malária e se tornou medicamento primordial durante a entrada
do povoamento no interior do Brasil, uma vez que os desbravadores sofriam
de variadas febres. Por esta ação antifebrífuga, os preparados à base de quina
foram muito oferecidos e procurados durante a Gripe Espanhola, provocando
o encarecimento do produto nas farmácias20.
Outras substâncias – dentre elas ervas medicinais ou produtos delas
extraídos - foram vendidas pelo Serviço Sanitário em São Paulo, por ocasião
do aparecimento dos primeiros casos de Gripe Espanhola: mentol, tintura
de iodo, cânfora, essência de canela, vaselina mentolada, sulfato de sόdio
e de magnésia, bem como sal de quinino.21 Os ervanários da cidade de São
Paulo indicavam, como preventivo e curativo da influenza, o chá da casca
de marapuama (Acanthes virilis); além desta outra planta, o melão-de-são-
caetano (Momordica charantia) também foi utilizado na ocasião, em forma
de banhos e infusões.22
Por outro lado, a população também se valia de medicamentos
corriqueiros como canela, limão, alho, cebola, sal e pimenta. Uma depoente,
entrevistada por Eclésia Bosi no livro Memόria e Sociedade e citada por
Claudio Bertolli Filho, revela: “Diziam que quem comesse um dente de
alho misturado na comida se salvava; comíamos todo o almoço um dente
de alho. Mamãe usava um patuá de alho na mão para cheirar. Uma senhora
substituiu o colar de pérolas por um colar de alho”.23 O uso de plantas por
parte da medicina popular era guiado por concepções de saúde, doença e
cura que necessariamente não eram aprovadas ou partilhadas pela medicina
acadêmica.
Os primeiros laboratórios brasileiros foram originados das boticas e,
por sua vez, foram o embrião da indústria farmacêutica. Em um primeiro
momento, que abarca o final do século XIX e os trinta primeiros anos do século
XX, os estabelecimentos utilizavam extratos vegetais e produtos de origem
mineral como matéria prima para a produção de medicamentos. Os produtos
vendidos nas farmácias vinham da manipulação de receitas realizada pelo

20. BERTUCCI, Liane Maria. Remédios, charlatanices...e curandeirices. Práticas de cura no período
da Gripe Espanhola em São Paulo. In: CHALHOUB, Sidney et alli (org.). Artes e ofícios de curar
no Brasil. Campinas: UNICAMP, 2003.p.199-200.
21. Ibidem, p. 201.
22. BERTOLLI FILHO, Claudio. Op. Cit. p.130.
23. Ibidem, p.127.

202
próprio estabelecimento, preparados originados dos laboratórios brasileiros,
que formavam a nascente indústria farmacêutica brasileira ou da importação
de medicamentos.24
A partir da década de 1920, a indústria farmacêutica brasileira entrou
em franco crescimento, e, embora fosse menor do que a estadunidense, naquele
momento detinha o mesmo nível tecnológico que esta.25A diferenciação
maior existente neste período se refere às estratégias de comercialização
dos medicamentos. Outro fator que promoveu a ascenção da indústria
estadunidense e européia, a partir da década de 1930, foram os investimentos
maiores em pesquisa, contrariamente ao que ocorreu no Brasil.
O desenvolvimento da indústria farmacêutica provocou várias
transformações no ato terapêutico, mais precisamente na forma de acesso e
nas características dos remédios utilizados para sanar doenças e males. Se, em
décadas anteriores, o medicamento era feito pelo boticário em seu laboratório,
após anos 1930, principalmente, esta realidade vai ceder à crescente produção
da indústria farmacêutica nacional e internacional. Isto provocou uma
profunda crise na profissão farmacêutica: os farmacêuticos passam, de
elaboradores e manipuladores de substâncias que se transformariam em
medicamentos, a meros vendedores de mercadorias.26
Esta modificação no papel do farmacêutico foi acompanhada pela
tranformação do saber médico: cada vez menos receitas apresentavam a
fórmula a ser aviada pelo farmacêutico, uma vez que o ensino médico vai
abandonando as cadeiras que habilitavam o profissional para esta função.
A indústria farmacêutica passa a informar o médico sobre seu produto,
utilizando, entre outros elementos, seus representantes distribuidores de
“amostras grátis” e as propagandas farmacêuticas destinadas a este público.
Vale à pena lembrar que esta indústria foi igualmente responsável por garantir,
financeiramente, a circulação de várias revistas médicas27.
O estudo sobre a propaganda farmacêutica, especialmente aquela
destinada ao público leigo, é revelador sobre o processo de ascenção dos
medicamentos industrializados sobre os “caseiros” e aqueles manipulados
pelos antigos boticários. A propaganda de medicamentos no Brasil vai
24. TEMPORÃO, José Gomes. A propaganda farmacêutica e o mito da saúde. Rio de Janeiro:
Graal, 1986. p. 26.
25. Ibidem,p.28
26. SIGOLO, Renata Palandri. A saúde em frascos. Concepções de saúde, doença e cura; Curitiba,
1930-1945. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998.
27. Idem.

203
tomando formas mais sofisticadas e, se compararmos o final do século XIX e o
século XX em especial após sua terceira década, podemos perceber a crescente
importância deste produto no cotidiano da sociedade. A propaganda sinaliza
como o medicamento se transformou cada vez mais em um bem de consumo
que pode ser obtido com certa autonomia em relação ao médico e até mesmo
ao farmacêutico28: através da divulgação nas páginas de periόdicos –e do
conhecimento popular- há o estímulo a seu consumo de forma direta, através
da automedicação.
Além da propaganda farmacêutica, as farmácias se transformam
em locais onde outros tipos de produto poderiam ser comercializados,
ressaltando o papel do farmacêutico como vendedor de um bem de consumo.
Este bem, por sua vez era produto da tecnologia e , enquanto bem simbólico,
representava a “segurança” e “eficácia” da ciência, em contraposição aos
medicamentos preparados artesanalmente.29 É interessante notar como a
familiaridade com medicamentos industrializados fez com que algumas
plantas medicinais fossem renomeadas a partir dos produtos farmacêuticos
destinados a sanar os mesmos males, como é o caso da novalgina (Achillea
millefolium) e do doril (Alternanthera brasiliana).30
Na década de 1940, com as dificuldades decorrentes da Segunda
Guerra Mundial, os laboratórios nacionais passaram a entrar em crise e a
serem incorporados por multinacionais em um processo que culminou com a
instalação de várias empresas farmacêuticas no final do século XX.31 Também
os medicamentos sofreram, no mesmo período, uma sensível modificação
em sua composição: passaram a ser cada vez mais produzidos a partir de
substâncias sintetizadas em laboratório. Se observarmos as propagandas
farmacêuticas voltadas ao público leigo, enquanto no final do século XIX e
início do XX temos a apresentação de substâncias vegetais na composição
do medicamento, que facilitariam seu reconhecimento pelo público, após
as décadas de 1920 e 1930 estes ingredientes passam a ser cada vez menos
mencionados. Mesmo tendo em sua composição plantas medicinais – ou
seus princípios sintetizados- isto praticamente não é colocado em valor pela
propaganda.

28. LEFÈVRE, Fernando. O medicamento como mercadoria simbólica. São Paulo: Cortez, 1991.
p. 82.
29. SIGOLO, Renata Palandri. Op. Cit. p. 79.
30. LORENZI, Harri; MATOS, F.J. Abreu. Plantas Medicinais no Brasil. Nativas e exóticas. Nova
Odessa: Plantarum, 2008. 109 e 46.
31. EDLER, Flavio Coelho. Op. Cit.,p.108

204
O crescimento da indústria farmacêutica inibiu o uso de plantas
medicinais como recurso terapêutico. Também o médico e o farmacêutico
passaram a conhecer cada vez menos suas características e seu uso32 em
tratamentos, como foi afirmado anteriormente, sendo que vários elementos
contribuiram para esta perda de saberes. No final dos anos de 1920 e 1930,
houve a melhoria nas técnicas de produção sintética das subtâncias usadas
no fábrico de medicamentos, geradas através da reprodução de substâncias
naturais ou a partir de pesquisas químicas.33Este processo provocou, nas
décadas de 1930 e 1940, a revisão da Farmacopeia Brasileira, que perdeu
grande parte de seu conteúdo referente aos produtos utilizados na farmácia
tradicional e provenientes da flora medicinal brasileira34.
Nas décadas de 1950 e 1960, com a criação da CAPES e do CNPq,
políticas mais recentes foram incorporadas sob orientação destas agências
de fomento à pesquisa, como a saída de pesquisadores para a formação
no exterior. Desta forma, foi possível introduzir no Brasil novas técnicas e
equipamentos desenvolvidos em outros países com maior desenvolvimento
tecnológico. Porém, isto não alterou o ensino de graduação e os currículos
universitários na área da saúde continuaram se distanciando do ensino
em plantas medicinais. O incentivo à pesquisa em plantas medicinais
não se traduziu em uma política governamental estratégica para a área,
permanecendo um setor de pesquisas de “segunda linha” em comparação à
investigação de substâncias sintéticas.35
Em 1967, ocorreu o primeiro Simpósio de Plantas Medicinais do
Brasil, resultante do movimento de pesquisadores na área. Uma das críticas
feitas pelos apoiadores do evento era o paradoxo entre a incipiente pesquisa
na área, quando contrastada com o fato de que 80 % dos produtos usados
na terapêutica provinham ou eram sintetizados a partir de fonte natural36.
O Simpósio foi organizado na Santa Casa de Misericórdia e proporcionou
a integração entre as áreas de farmacologia, botânica e química. No mesmo
período, outro movimento de cunho internacional se construía com a
valorização, da OMS, do uso de saberes tradicionais em saúde, como será
abordado no texto complementar a seguir.

32. FERNANDES, Tania Maria. Plantas Medicinais: memória da ciência no Brasil. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 2004. p.39
33. Ibidem, p. 33.
34. Ibidem, p. 34.
35. Ibidem,p. 44-45.
36. Ibidem, p. 59.

205
Em 1971, foi criada a CEME, Central de Medicamentos a fim
de organizar a produção e distribuição de medicamentos no Brasil.37Este
órgão acabou sendo um dos principais financiadores da pesquisa da flora
medicinal. Apesar de ter desenvolvido testes de comprovação farmacológica
em plantas medicinais,não foi capaz de produzir medicamentos a partir
deles, mesmo sendo este um de seus objetivos.38Porém, Marcos Queiroz
aponta que a CEME, desde 1983, promove um programa de levantamento
de plantas medicinais brasileiras que visa estudar as espécies mais utilizadas
pela população, com o objetivo de desenvolver medicamentos de baixo custo.
Cinco plantas foram apontadas como potencialmente viáveis para produção
industrial: guaco (Mikania glomerata), quebra-pedra (Phyllantus niruri),
espinheira-santa (Maytenus ilicifolia) e embaúba (Cecropia glazioui).39
É necessário ressaltar que a difusão do uso de medicamentos
industrializados foi um dos fatores estimulantes da crescente medicalização
da sociedade. Por medicalização podemos entender o “processo por meio
do qual problemas encontrados na vida cotidiana são reinterpretados como
problemas médicos”40, que é resultante, entre outros fatores, das pressões
econômicas da indústria da saúde em busca de lucro e da ideia, veiculada
pela medicina, de bem estar total. Segundo esta noção, ninguém é totalmente
são e sim, potencialmente doente: o foco é a doença e não o ser humano em
sua integralidade.
No processo de medicalização da sociedade, o medicamento adquire
o papel protagonista de “pílula mágica” que promete resolver, de forma quase
que instantânea, a todos os “problemas de saúde”, muitos deles decorrentes
das próprias características econômicas da sociedade em que vivemos.
Traços psicológicos como timidez, ansiedade, agitação recebem atenção
farmacologica, muitas vezes de forma superficial, com o objetivo de “devolver”
ao indivíduo uma vida ativa , para que ele possa “servir de forma produtiva” a
sociedade. Excesso de peso, disfunções sexuais, envelhecimento entre outras
“doenças” tem promessa de cura imediata, promovendo grande crescimento
do setor farmacêutico41.

37. CORDEIRO, Hesio de Albuquerque. Estado e indústria farmacêutica:as estratégias da medi-


calização. In: _____. GUIMARÃES, Reinaldo. Saúde e medicina no Brasil: contribuição para um
debate. Rio de janeiro: Graal, 1984. p. 259-293.
38. FERNANDES, Tânia Maria. Op. Cit. p. 96.
39. QUEIROZ, Marcos S. Saúde e doença: um enfoque antropolόgico. Bauru: EDUSC, 2003. p.143-
144.
40. FUREDI, Frank. Apud: DUPAS, Gilberto. O mito do progresso. São Paulo: UNESP, 2006. p. 173.
41. Ibidem, p. 144-145.

206
Obviamente, o quadro de medicalização da sociedade não pode
ser revertido apenas através do uso de plantas medicinais. Não é a forma
terapêutica em si que pode provocar a reflexão dos indivíduos sobre seu
comportamento, atitudes e decisões em relação à saúde e à doença. Neste
sentido, a revalorização do uso de plantas medicinais, como a contida na
Política de Práticas Integrativas e Complementares, por si sό não promove
esta reflexão, uma vez que é possível utilizar a flora medicinal com a mesma
lógica de quem usa um medicamento industrializado. Para tanto, o uso de
plantas medicinais não pode estar atrelado à lógica mercadológica nem pode
se limitar ao saber científico como imposição de verdade.
O conhecimento em plantas medicinais é capaz de proporcionar a
reflexão sobre os processos de produção e de conhecimento sobre a saúde,
a doença e o corpo, possibilitando aliar o indivíduo à própria ideia de saúde
ambiental. Ao cultivar o conhecimento sobre a flora medicinal, é possível
pensar e questionar sua produção, seu uso, a partilha cooperativa e gratuita
de seu conhecimento, a compreensão e atenção com seu próprio corpo e
daqueles entes próximos, os cuidados e a integração com o meio ambiente
onde vivemos.

207
BIBLIOGRAFIA
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Epidemia e Sociedade.São Paulo: Paz e Terra, 2003.
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• CORDEIRO, Hesio de Albuquerque. Estado e indústria farmacêutica:as
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medicina no Brasil: contribuição para um debate. Rio de janeiro: Graal,
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Nativas e exóticas. Nova Odessa: Plantarum, 2008.
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• _______. Transformações no exercício das artes de curar no Rio de Janeiro
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• SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças - cientistas, instituições
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• SIGAUD, José Francisco Xavier. Do clima e das doenças do Brasil ou
estatística médica deste Império. Rio de Janeiro: Fiocruz,2009.

208
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doença e cura. Curitiba, 1930-1945. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998.
• TEMPORÃO, José Gomes. A propaganda farmacêutica e o mito da
saúde. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

209
Aloe vera

Para saber mais…


Renata Palandri Sigolo

Muitos fatores, como o aumento de iatrogenias causadas pelo


uso indevido e excessivo de medicamentos, além da forma impessoal e
fragmentada de curar da biomedicina encontraram, no solo dos anos de
1970, um terreno fértil para a revalorização de medicinas tradicionais e a
entrada de medicinas antigas não nativas que pudessem oferecer cuidados
holísticos e personalizados ao doente. Os movimentos de contracultura
da década de 1960 estabeleceram bases para o interesse em medicinas que
utilizassem plantas medicinais. Caracterizada, entre outras coisas, pela crítica
à sociedade de consumo e o interesse por ideias que pudessem romper com
esta lόgica, a contracultura valorizou o espaço da escolha individual, de
práticas alternativas do cotidiano, muitas vindas do Oriente e pela busca de
uma relação não dualista com a natureza42.
Uma das decorrências da contracultura foi a “consciência verde”,
principalmente desenvolvida entre as classes alta e média. Dentro dos
conceitos desenvolvidos por este movimento, estava a noção de que a saúde

42. MONNEYRON, Frédérique; XIBERRAS, Martine. Le monde hippie. De l’imaginaire psychédé-


lique à la révolution informatique. Paris : Imago, 2008.

210
poderia ser mantida ou recuperada mediante um estilo de vida prόximo à
natureza, com alimentação livre de agrotóxicos e equilibrada, recorrendo à
uma “medicina natural” não agressiva, caso fosse necessário. A valorização
das então chamadas medicinas alternativas e do uso de plantas medicinais
encontrou apoio no uso já tradicional da flora medicinal por parte da
população brasileira, principalmente no meio rural.43
Por parte do discurso institucional, temos a definição de medicina
alternativa construida em 1962 pela OMS, como “ prática tecnologicamente
despojada de medicina, aliada a um conjunto de saberes médicos
tradicionais”.44 Na Conferência de Alma-Ata, em 1978, a OMS recomendou o
uso de medicinas tradicionais e populares nos sistemas nacionais de saúde e
no Brasil, em 1986, o Relatório Final da VIII Conferência Nacional de Saúde
no Brasil propôs a introdução de práticas alternativas de assistência à saúde,
permitindo o direito de escolha por parte do usuário45.
Madel Luz relata que as medicinas alternativas tiveram uma inserção
maior na América Latina em meados da década de 1970, alcançando seu auge
na década de 1980. O uso de ervas para fins curativos não caracteriza uma
racionalidade médica46 pertencente ao quadro das medicinas alternativas;
porém, é uma terapêutica presente em praticamente todas as racionalidades
e terapias consideradas alternativas e tradicionais. Hoje, cerca de 82% da
população no Brasil47 faz uso de plantas medicinais de diferentes maneiras,
tendo como norteadores diversas lógicas de cura.
Em 2006, foi aprovado o Plano Nacional de Práticas Integrativas
e Complementares no SUS (PNPIC). Dentro desta política se desenvolve a
Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterapicos.48A valorização do
saber e do uso de plantas medicinais é bastante importante em um país que
possui cerca de 55 mil espécies de plantas, tendo sido investigadas apenas 0,4%
: certamente o saber popular , juntamente com o conhecimento cientifico,
pode contribuir muito na construção de um novo saber herbário brasileiro.
43. QUEIROZ, Marcos S. Saúde e doença: um enfoque antropolόgico. Bauru: EDUSC, 2003.p.139.
44. LUZ, Madel T. Novos saberes e práticas em saúde coletiva. Estudo sobre racionalidades médi-
cas e atividades corporais. São Paulo:HUCITEC,2003.p. 38.
45. QUEIROZ,Marcos S. Op. Cit..p.115-116
46. LUZ, Madel T. Medicina e racionalidades médicas: estudo comparativo da medicina ocidental,
contemporânea, homeopática, tradicional chinesa e ayurvédica. In: CANESQUI, Ana Maria. Ciên-
cias sociais e saúde para o ensino médico. São Paulo: Hucitec, 2000.
47. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica.
Práticas Integrativas e complementares: plantas medicinais e fitoterapia na Atenção Básica.Brasí-
lia: Ministério da Saúde, 2012. p. 15.
48. Ibidem,p.9

211
Portaria MS/MG n.533 de 28 de março de 2012, que estabelece o
elenco de medicamentos e insumos da Relação Nacional de Medicamentos
Essenciais(RENAME)49

Nome popular Indicação/ação Apresentação


Nome científico
Alcachofra Tratamento dos sintomas Cápsula, comprimido,
(Cynara scolymus L.) de dispepsia funcional (síndrome drágea, solução oral e
do desconforto pós-prandial) tintura
e de hipercolesterolemia leve
a moderada. Apresenta ação
colagoga e colerética
Aroeira Apresenta ação cicatrizante, anti- Gel e óvulo
(Schinus terebenthifolius inflamatória e anti-séptica tópica,
Raddi) para uso ginecológico
Babosa Tratamento tópico de Creme
(Aloe vera (L.) Burm. f.) queimaduras de 1º e 2º graus e
como coadjuvante nos casos de
Psoríase vulgaris
Cáscara-sagrada Coadjuvante nos casos de Cápsula e tintura
(Rhamnus purshiana DC.) obstipação intestinal eventual
Espinheira-santa Coadjuvante no tratamento de Cápsula, emulsão,
(Maytenus officinalis Mabb.) gastrite e úlcera gastroduodenal e solução oral e tintura
sintomas dispepsia
Guaco Apresenta ação expectorante e Cápsula, solução oral,
(Mikania glomerata Spreng.) broncodilatadora tintura e xarope
Garra-do-diabo Tratamento da dor lombar baixa Cápsula, comprimido
(Harpagophytum aguda e como coadjuvante nos
procumbens) casos de osteoartrite. Apresenta
ação antiinflamatória
Hortelã Tratamento da síndrome do Cápsula
(Mentha x piperita L.) cólon irritável. Apresenta ação
antiflatulenta e antiespasmódica
Isoflavona-de-soja Coadjuvante no alívio dos Cápsula e comprimido
(Glycine max (L.) Merr.) sintomas do climatério
Plantago Coadjuvante nos casos de Pó para dispersão oral
(Plantago ovata Forssk.) obstipação intestinal habitual.
Tratamento da síndrome do cólon
irritável

49. Ibdem, p.83.

212
Nome popular Indicação/ação Apresentação
Nome científico
Salgueiro Tratamento de dor lombar Comprimido
(Salix alba L.) baixa aguda. Apresenta ação
antiinflamatória
Unha-de-gato Coadjuvante nos casos de Cápsula, comprimido
(Uncaria tomentosa artrites e osteoartrite. Apresenta e gel
Willd. ex Roem. & ação antiinflamatória e
Schult.) imunomoduladora

213
Trabalhando com fonte histórica

SIGAUD, José Francisco Xavier. Do Clima das doenças do Brasil


ou estatística médica deste império. (1844) Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009.
p.131-132.

Os índios reconheceram nas províncias quase todas as substâncias


vegetais; a lista dos leites, gomas, resinas, sumos e extratos vegetais da
província do Pará, a mais rica de todas as províncias do Brasil em plantas
alimentícias e especiarias, é um modelo do gênero: leite de curupita, para
dores de peito e hérnias; folhas da xiticaá, nas retenções de urina; raízes
de manacan, para dores venéreas; infusão de folhas de ipadu nos casos de
dor de estômago; fava de copahu, raiz de marupá-mirim, contra a diarréia;
marapuana, remédio anaplético; andorinha, nos casos de hemorróidas e em
banhos; raiz de jacareruaitana, nos ferimentos; doiradinha, na qualidade de
emético; raíz de jatobá ou de marupá ou ainda de sucuba, como remédio
catártico(…)
A esta longa lista das plantas que os índios deram a conhecer aos
habitantes do Pará, ainda é possível acrescentar uma série de outras cascas e
de preparações compostas como venenos e o guaraná; mas isto seria fatigar
a atenção. Em outras províncias do Império, há igualmente uma coleção de
plantas preciosas das quais é possível ler o nome nos jornais publicados pela
Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro. Se chegassem as gentes a constituir
matéria médica a partir desses dados, conseguindo constatar seus efeitos
terapêuticos de uma maneira positiva, isto representaria um serviço útil
ao país, um golpe mortal, segundo admitiu o sr. Baena, contra esta legião
ameaçadora de amadores e de velhas senhoras que tratam a saúde pública
como inimiga.

214
Impresso pela Imprensa Universitária / UFSC

215

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