A vós, meus muito amados Irmãos, que fostes os primeiros a entrar em
nossa congregação, e a todos os que Deus chamar no futuro, é que dirijo essas poucas linhas que devem servir de introdução às nossas Constituições e à nossa Regra. É a vós que quero revelar minha alma com toda a simplicidade, como um pai a seus filhos, e fazer conhecer a ocasião que deu nascimento à nossa pequena sociedade, o objetivo que nos propusemos ao estabelecê-la, os meios que tomamos para atingi-lo, e o espírito particular que deve vivificá-la, e que deve animar todos os seus membros. Já há muito tempo que eu via com uma profunda dor o lamentável estado da religião em nossos países; o enfraquecimento geral da Fé, os esforços incessantes da impiedade (secundados ainda mais, nesses últimos tempos, pelos esforços da heresia) para extinguir a Fé até seus últimos resquícios, e por conseguinte, eu via com profunda dor as desordens,os escândalos e as iniquidades de todo gênero multiplicam-se ao infinito. Eu considerava ao mesmo tempo a insuficiência dos meios ordinários para se oporem a esse dilúvio de males, e num futuro que não me parecia longínquo, eu entrevia para o mundo atual uma dissolução pior que do a dos piores tempos do paganismo, se Deus, em Sua misericórdia não viesse em seu socorro através de algum meio extraordinário. Um dia, sexta-feira 25 de abril de 1845, em que eu estava perfeitamente livre de toda preocupação, e em um estado inteiramente passivo apresentou-se de repente a meu espírito a idéia ou antes, o plano já todo formado de uma sociedade religiosa, que se consagraria à prática e à pregação da penitência, abraçaria, para isso, um gênero de vida humilde, pobre e mortificado, e os membros dessa sociedade seriam empregados cada um conforme suas aptidões; uns à pregação, outros à oração e ao estudo, outros ao trabalho manual, e se aplicariam à sua própria santificação, à edificação e salvação do próximo sob a observância da mesma regra. Essa visão, que foi instantânea como um raio de luz, causou-me uma viva impressão; pus-me a refletir, e reconheci imediatamente que no século em que vivemos era necessário que sociedades religiosas viessem em socorro do clero, mas sociedades tais quais elas eram no tempo de São Bento, de São Bernardo, de São Domingos e de São Francisco, sociedades cuja vida foi uma pregação contínua do que a religião oferece de mais perfeito. Compreendi que era necessário unir a expiação à pregação, unir-se a Nosso Senhor sofrendo e morrendo pelos homens, e imolar-se pelo gládio da mortificação como vítima pelas suas próprias iniquidades e pelas iniquidades de seus irmãos, a fim de apaziguar a justiça de Deus tão prodigiosamente ultrajada neste século, e a fim de obter mais seguramente a conversão dos pecadores. Senti que convinha opor a mais profunda humildade ao supremo orgulho do século, a mais absoluta pobreza ao egoísmo e ao insaciável desejo de riquezas, e a mortificação da carne ao sensualismo de nossa época, que põe a suprema felicidade na satisfação dos sentidos. Senti que convinha que os homens que saindo do deserto, quais outros João Batista, apresentassem-se ao mundo com um exterior humilhado, com OS DISTINTIVOS (OU SINAIS) (NA TRADUÇÃO ESTÁ: “AS LIBRÉS”) da pobreza e com os estigmas da mortificação, para pregar-lhe a penitência. Senti que homens assim deveriam produzir algum efeito nas almas em que todo sentimento religioso não estivesse extinto, e as disporiam a ouvirem a palavra de Deus e a tirarem proveito dela. Senti igualmente que homens de oração não eram menos necessários do que os pregadores neste século que não reza e que só sabe maldizer e blasfemar: como outros Moisés, eles elevariam suas mãos sobre a montanha e pelo fervor de suas preces fariam descer graças de conversão sobre os pecadores, enquanto os missionários se esforçaram em conduzi-los a Deus através de suas instruções.¹ (¹) Cf. Ex. 17, 10-11 (nota do tradutor)
Reconheci enfim, que, no estado atual da sociedade, as novas casas
religiosas que quisessem se estabelecer não poderiam mais contar com a caridade dos fiéis, caridade cujas fontes se esgotam a cada dia. Em consequência, essas casas religiosas estariam na obrigação de se sustentarem por si mesmas; e, assim, tornar-se-iam necessários os irmãos leigos, que, por seu trabalho, fariam viver a comunidade. Isso, ademais, salvaria de um naufrágio quase certo um bom número de moços que se perdem no mundo por não encontrar uma casa que lhes ofereça um asilo. Em troca dos socorros materiais que os irmãos leigos trariam à comunidade, esta lhes ofereceria todos os socorros espirituais e lhes asseguraria a salvação eterna. Assim, essa sociedade, abrangendo juntamente com a vida contemplativa, a dupla vida ativa do espírito e do corpo, reuniria em um mesmo instituto as três principais finalidades da vida monástica¹, e poderia abrir-se a todas as vocações religiosas. (¹) ou seja: a oração, o trabalho e o estudo (nota do tradutor) Após essas reflexões, senti acender-se em mim um grande desejo de abraçar um tal gênero de vida, se essa fosse a vontade de Deus. Durante vários anos eu não cessava de rezar e de pedir que rezassem para conhecer a vontade de Deus a esse respeito. Fiz vários retiros com essa finalidade, consultei os mais piedosos eclesiásticos, e os mais esclarecidos que eu conhecia, e vários religiosos recomendáveis por sua experiência e virtude. Todos foram de parecer que essa idéia vinha de Deus e que era necessário segui-la. Enfim, após haver lutado durante longo tempo contra as perturbações que o demônio por vezes causava em minha alma, e contra as repugnância da natureza, convenci-me de que o bom Deus pedia de mim que eu me consagrasse a esse gênero de vida. Essa convicção foi tal, que não posso conceber uma convicção mais firme e inabalável. Ela era mais forte do que a que se pode adquirir pelo testemunho dos sentidos, da ciência ou dos homens. Enfim, ela era tão grande, que desde aquele momento foi-me impossível duvidar um só instante sequer da vontade de Deus a esse respeito. Essa segurança de que Deus queria a realização desse projeto, encheu-me de coragem; senti-me disposto a fazer todos os sacrifícios, a calcar aos pés todos os julgamentos humanos, a me elevar acima de todos os obstáculos que se opusessem à sua execução. Esses obstáculos eram grandes, por causa da posição em que me encontrava; eles foram retirados; a autorização do Arcebispo foi-me dada, e, enfim, fiquei livre para seguir minha vocação. Mas antes de fundar um estabelecimento desse gênero, era necessário estudar a fundo a vida religiosa e tornar-se verdadeiramente um religioso, e, para isso, passar um certo tempo no retiro, na oração e no exercício desse gênero de vida: era necessário sobretudo, uma regra. Cheio de confiança em Deus, cuja vontade acreditávamos estar fazendo, partimos para a Itália, com os dois primeiros companheiros que Deus me havia dado, na esperança de encontrar nesse país, coberto ainda de casas religiosas, todos os socorros espirituais necessários para a execução de nosso desígnio. Não fomos confundidos em nossa esperança; a Divina Providência nos conduziu como pela mão ao lugar mesmo onde o Patriarca dos cenobitas do Ocidente se havia santificado, e onde ele havia colocado os fundamentos da vida monástica. Ainda que desconhecidos e sem nenhuma carta de recomendação (porque ainda não havíamos recebido a do Arcebispo de Sens), fomos aí acolhidos como amigos, como irmãos, pelo R. D. Abade do mosteiro de São Bento. A mais afetuosa hospitalidade nos foi feita: foi posto à nossa disposição um retiro santificado pela presença de São Bento e pela penitência extraordinária do Bem-aventurado Lourenço de Fanello; e, sobretudo (o que nos era grandemente vantajoso) encontrarmos aí uma regra pronta, que se adapta perfeitamente ao gênero de vida que queremos seguir: a Regra de São Bento. Após haver consultado a Deus na oração, resolvemos adotar essa regra, e eis as principais razões que nos determinaram a isso. Eu desejava encontrar uma regra pronta, reconhecendo-me inteiramente incapaz e indigno de realizar um semelhante trabalho. Desejava uma regra antiga, porque as regras antigas têm um perfume de santidade que não se encontra no mesmo grau nas regras mais recentes; porque elas têm a sanção do tempo e da experiência; e, enfim, porque há em vosso século uma tendência a retornar aos antigos usos monásticos. Ora, entre as regras mais antigas, a Regra de São Bento encerra, para nós, todas as condições desejadas. Ela se apresenta como a filha mais perfeita das primeiras regras orientais; como a mãe de todas as outras no Ocidente; como o código sagrado que rege há 1400 anos o mundo monástico; como a mais venerável de todas, pela sua profunda sabedoria e pela eminente santidade que brilha em todas as suas páginas, pela perfeição da vida religiosa que ela estabelece, pelo seu conjunto divinamente ordenado, pelos seus admiráveis detalhes, ela se apresenta como a mais ilustre das regras, pelo número infinito de santos com que ela enriqueceu o Céu, pelos serviços imensos que ela prestou à Igreja e ao mundo, sobretudo nos séculos de ignorância e barbárie, quando ela salvou de uma ruína completa as santas tradições do passado, as preciosas obras dos Santos Padres, os tesouros literários da antiguidade, dando-lhes asilo nos claustros; pelos benefícios que ela espargiu na sociedade, cultivando as ciências, as artes e até a agricultura, ensinando essas coisas ao povo e empregando o ganho que disso provinha para nutrir um número infinito de pobres, para fundar e sustentar uma multidão de estabelecimentos úteis, e, em particular, escolas. De maneira que se pode dizer que durante vários séculos a Ordem de São Bento foi a Providência da sociedade. Ademais a Regra de São Bento é a fonte onde vieram beber quase todos os fundadores de Ordens Religiosas que vieram após este grande santo; e quase todas as sociedades religiosas que floresceram nos séculos seguintes assim como as de nossos dias (que fazem a edificação do mundo e o ornamento da Igreja Católica) glorificam-se de terem São Bento como pai, de maneira que se pode dizer que quase todo o bem operado pelas Ordens Religiosas na Igreja de Deus (e esse bem é imenso), decorre da Regra de São Bento como de seu princípio. Além disso, essa Regra (segundo crêem os beneditinos) é divina; ela foi ditada a seu santo fundador por um Anjo, ela foi louvada e aprovada por um dos mais ilustres e mais santos Pontífices que ocupou a Cátedra de São Pedro, ou seja, por São Gregório Magno. Essa Regra recebeu, com a confirmação de um grande número de Sumos Pontífices, privilégios muito extensos (e o próprio Deus, segundo o testemunho do mesmo São Gregório, quis conceder a São Bento, através de um Anjo, no lugar mesmo em que escrevemos estas linhas, privilégios infinitamente preciosos para sua Ordem). Um outro motivo, que, sem dúvida, vem após os outros, mas que tem também seu peso, é que a Regra de São Bento é, em todo o mundo, cercada de uma certa veneração, diria quase de uma certa simpatia que faz com que seu restabelecimento na França seja menos difícil do que o de qualquer outra regra. Enfim, o motivo principal que nos determinou em nossa escolha, é que essa regra se adapta perfeitamente ao gênero de vida que queremos ter. Queremos abraçar a vida dos antigos religiosos; queremos uma vida humilde, pobre e mortificada; ora, a Regra de São Bento nos apresenta tal vida em sua perfeição. Queremos pregadores para evangelizar os pobres. Essa regra é que, durante mais de quatro séculos, deu missionários à Igreja, converteu a Inglaterra e todo o norte da Europa e operou no resto do mundo conversões sem número. Queremos homens especialmente destinados à oração e ao estudo. Essa regra é que formou o maior número de contemplativos e de sábios da Idade Média. Queremos irmãos para o trabalho manual. Essa regra entra em detalhes admiráveis em tudo o que se refere ao trabalho e à direção dos irmãos. Queremos que haja em nossa sociedade religiosa uma só categoria de religiosos, todos submissos às mesmas observâncias, aos mesmos exercícios religiosos, e que só haja diferença nas ocupações de cada um. É também o que quer a Regra com uma soberana sabedoria; é o meio de manter na nossa Comunidade a unidade, princípio vital de toda sociedade. Portanto, adotamos a Regra de São Bento e a colocamos como base de nossa Congregação. Mas por mais vasta e detalhada que seja essa regra, ela necessita, no entanto, de regulamentos que determinem, em certos pontos, sua aplicação, e supram o que nem sempre ela diz. A mesma Providência que nos havia conduzido ao berço da Ordem de São Bento, e que nos havia posto nas mãos sua Regra, fez-nos encontrar na França, no mosteiro da Trapa de Aigue-Belle, com os desvelos da mais afetuosa hospitalidade, os regulamentos da antiga observância de Cister, obra, em grande parte, de São Bernardo e dos primeiros Padres da Ordem, e, por conseguinte, dos homens que foram os mais repletos de seu espírito. Esses regulamentos foram-nos tanto mais vantajosos quanto eles se harmonizam perfeitamente (em tudo o que concerne às observâncias monásticas) com a vida que queremos seguir; regulamentos que, porém, só adotamos após havê-los seguido nós mesmos em uma santa comunidade que os observa com uma admirável fidelidade. Mas como cada congregação religiosa é destinada por Deus a cumprir uma missão especial em Sua Igreja, é necessário que ela esteja de acordo com as necessidades do século no qual ela aparece, e, que, no fundo, parecendo-se às outras sociedades que a precederam, ela tenha seu espírito próprio, sua fisionomia particular, sua característica de atualidade, de acordo com a finalidade que ela abraça. Visto que a finalidade de nossa sociedade religiosa é de trabalhar para a glória de Deus, para a nossa santificação e a do próximo através dos meios que nos parecem os mais eficazes em nosso século, ou seja, pela humildade, pobreza, penitência e pregação, estabelecemos, em princípio, que nosso espírito particular seria um espírito de humildade, pobreza, expiação e zelo (mas mais especialmente de humildade porque o orgulho é o vício dominante de nosso século, que pode ser chamado com muita razão o século do orgulho). Ademais, colocamos nossa sociedade religiosa sob o patronato do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria, porque as virtudes que devem constituir o espírito de nossa sociedade religiosa são as virtudes por excelência do Coração de Jesus e do Coração de Sua Santa Mãe, e para entrar mais particularmente no espírito de sacrifício e de imolação desses divinos Corações, queremos professar uma devoção toda especial ao Santíssimo Sacramento do altar e à Paixão de Nosso Senhor, mistérios esses que manifestam mais claramente a sede de expiação que ardia no Coração de Nosso Divino Mestre. Ora, para atingir nossa finalidade e estabelecer uma harmonia mais perfeita entre o espírito de nossa sociedade religiosa, a Regra de São Bento e os regulamentos de Cister, vimo-nos obrigados a modificar alguns artigos da Regra e dos regulamentos, e a acrescentar a vários artigos, que tomamos à letra, explicações que nos pareceram necessárias. Eis as principais modificações que cremos dever fazer a alguns artigos. A Regra prescreve o jejum desde 14 de setembro até a Páscoa, jejum que consiste em uma só refeição sem colação. Pensamos que um jejum tão longo e tão rigoroso seria muito difícil de observar em nossa região, sobretudo durante o inverno, por causa dos rigores da estação, que exige que se tome uma alimentação mais abundante do que durante o verão; e segundo lugar porque sendo o inverno a época das pregações, os missionários ficariam em geral na impossibilidade de suportar um jejum tão austero por causa das fadigas de seu ministério. Pensamos, portanto, que seria necessário mitigar esse jejum, acrescentando-lhe uma colação à noite superficialmente substanciosa, a fim de tornar esse jejum praticável por todos, excetuando, no entanto, os padres jovens, que se conformariam à Regra. Mas para compensar essa mitigação, cremos dever tornar a abstinência um pouco mais estrita, e nós cortamos absolutamente o vinho e toda espécie de bebidas alcoólicas, a carne, o peixe, os ovos, a manteiga, os laticínios, óleo, o açúcar e o mel, e estabelecemos que devemo-nos contentar com água pura como bebida, e com toda espécie de legumes, verduras e frutas como comida. E como essa abstinência é o sinal característico de nossa sociedade religiosa e o meio mais eficaz de conservar nela o espírito que a deve animar, fazemos um voto especial de a guardar em todo tempo e em todos os lugares, exceto os casos em que o superior julgar que deve dispensar dela. Esses casos, porém, estão previstos em nossos costumes e particularidades. Para os membros de nossa sociedade religiosa, tomamos à letra o admirável capítulo da pobreza¹, mas acrescentamos-lhe a mais absoluta pobreza para a própria sociedade religiosa, a qual não deve possuir nenhum fundo, nem mesmo o terreno no qual ela está estabelecida; esse terreno lhe será somente concedido por um tempo mais ou menos longo a troco de pagamento ou gratuitamente segundo as convenções feitas com os que são e permanecerão seus verdadeiros proprietários. A comunidade só possuirá os móveis, livros, máquinas e instrumentos de trabalho necessários aos irmãos, e o produto do trabalho de seus membros. Ainda mais, a comunidade só será considerada como tendo o uso dessas coisas, estando a propriedade reservada a Nosso Senhor que é, de direito e pelo voto especial da comunidade, o chefe e o mestre absoluto de nossa sociedade religiosa! Portanto, a comunidade só deve tomar do produto do trabalho o que é estritamente necessário para seu sustento, e considerar o restante como um dinheiro consagrado a Deus, e empregá-lo em boas obras. ¹ da Regra de São Bento (nota do tradutor) Eis as razões que nos determinaram a essa abstinência e a essa pobreza absoluta: ● 1ª) A vontade de Deus que nos foi manifestada a esse respeito de uma maneira tão formal e tão clara que não podemos dela duvidar; ● 2ª) A necessidade de que o missionário seja, em nosso século, um homem de penitência como o dissemos mais acima, a fim de tocar mais eficazmente o coração de Deus em favor dos pecadores, e para agir mais fortemente sobre o espírito destes, mostrando-lhes na prática, no seu gênero de vida, a penitência que ele acaba de lhes pregar. Ora, essa pregação da vida do missionário será muito mais eloquente do que a das palavras. Ela fará com que a maior parte dos ouvintes reflita e eles não poderão deixar de ser tocados, vendo homens que renunciaram a todos os bens, a todos os gozo e a todas as comodidades da vida para abraçar a pobreza, o jejum e a mais austera abstinência, e, no meio de todas as privações (que vêm em consequência de tudo isso), devotarem-se a todas as fadigas do apostolado, exporem sua saúde e frequentemente até sua vida pela salvação dos pecadores; ● 3ª) A absoluta pobreza do missionário e a pobreza de sua comunidade (que não somente não possuirá nada de próprio, mas nem mesmo quererá receber nada e se mostrará sempre disposta a dar todas as vezes que puder) edificará singularmente o mundo, e os isentará dos cuidados e embaraços que a posse dos bens terrestres exige, banirá o espírito de propriedade, e banirá até mesmo, às vezes, o espírito de ambição que se insinua até nas casas religiosas, e que as leva frequentemente a fazer aquisições, construções consideráveis, lançando-as em uma multidão de cuidados e ocupações extremamente prejudiciais ao espírito religioso e suscitando contra elas a inveja, a ambição, e até frequentemente os ataques das pessoas do mundo e fazendo blasfemar contra a religião.
Além disso, a pobreza da comunidade impedirá que os irmãos se apeguem
demais ao lugar de sua habitação, que façam grandes despesas para as construções e para o embelezamento de sua morada, e os levará, ao contrário, a elevar seus olhares e seus corações para o Céu, e a dizer com o Apóstolo: “Non habemus hic manentem civitatem, sed futuram inquirimus”.¹ ¹ Heb. 13, 14. “Não temos aqui cidade permanente, mas vamos buscando a futura”. Uma outra vantagem dessa vida pobre e mortificada é que fazendo-se pouquíssimos gastos na comunidade, se estará em condições de receber um maior número de pessoas, e mesmo todas as boas pessoas que se apresentarem, pois cada um, qualquer que seja seu trabalho, poderia ganhar sua vida e seu sustento. Em segundo lugar, é que será dado a vários padres pobres a ocasião de beneficiarem seus paroquianos com as missões, pois que não deveremos receber nenhuma espórtula e observaremos nas casas paroquiais a mesma abstinência que em comunidade, e, assim, os retiros ou missões que forem pregados nas paróquias não serão de modo algum pesados aos Párocos. Não falamos aqui de outras mudanças que são bem menos importantes: colocamo-las muito simplesmente após os capítulos da Regra que elas modificam, assim como as explicações ou explanações que julgamos dever acrescentar à maior parte dos capítulos; explicações e explanações tiradas, em grande parte, das melhores constituições que foram feitas no decorrer do tempo segundo a Regra de São Bento, e, especialmente, das Constituições de Monte Cassino, aprovadas em 1680 por Inocêncio XI e de constituições de outras Ordens infinitamente respeitáveis, porque preferi haurir nessas fontes sagradas do que vos dar de minha indigência, de maneira que o trabalho que vos apresento, propriamente falando, não é, absolutamente, trabalho meu. Ofereço-vos, no texto da Regra, a obra de um dos maiores santos de que se orgulha a Igreja, um dos maiores legisladores que já existiu; ou, antes, a obra do próprio Deus, pois que se tem por certo que a Regra de São Bento lhe foi ditada por um Anjo. Ofereço-vos, nas explicações e explanações que a acompanham, a experiência dos maiores Santos que ilustraram a Ordem de São Bento e as outras Ordens religiosas, e que os Soberanos Pontífices aprovaram e confirmaram. Ofereço-vos, enfim, naquilo que eu mesmo acrescentei, o que eu creio ser a vontade de Deus. Não escrevi o menor artigo sem haver, antes, consultado a Deus na oração; e em tudo o que se refere ao plano de fundo de nossa Constituição, tenho a convicção de só haver expresso a vontade formal de Deus, convicção essa, apoiada, para mim, sobre provas que não posso colocar em dúvida; convicção tal que não poderia mudar nada nos artigos essenciais, sem, com isso, ir contra a minha consciência. Eis, meus amadíssimos Irmãos, a Regra que Deus vos apresenta pelas mãos do mais indigno de seus servos. Eis a vida à qual Ele vos chama; vida que não é outra coisa que uma inteira renúncia a todos os bens, a todos os prazeres, a todas as honras do mundo; que é uma abnegação completa de si mesmo, uma mortificação absoluta, uma crucifixão perfeita. Vida de penitência e de lágrimas por seus próprios pecados e pelos pecados dos outros; vida que parece tão dura à natureza que causa horror ao corpo, mas que é, aos olhos da Fé, a mais bela das vidas; É a vida dos Apóstolos, é a vida do próprio Jesus Cristo. É o duplo martírio da penitência e da caridade, o qual não é menos glorioso que o martírio da Cruz. Com efeito, o que há de mais belo e de mais sublime do que se imolar todos os dias para a glória de seu Deus, e para a salvação dos seus irmãos, através de uma morte contínua e voluntária? Sem dúvida, o mundo não julgará assim; ele verá nosso gênero de vida como sendo uma loucura, se não a vir como uma crueldade e um suicídio mortal, do qual ele quererá, talvez, nos curar através de suas perseguições; ou, ao menos, ele nos olhará com uma grande piedade, como se fôssemos miseráveis vítimas da exaltação e do fanatismo.
Mas, que nos importa os julgamentos do mundo? “Nos stulti propter
Christum”¹ ¹ 1 Cor. 4, 10. “Nós, néscios por Cristo”. Talvez, ademais, que nos censuraram de fechar, assim, as portas de nossa comunidade a boas pessoas que ficarão assustadas por uma penitência tão rigorosa. Podemos responder-lhes que nossa pobreza não é tão estrita como a dos franciscanos, nosso jejum não é tão austero como o dos trapistas e nossa abstinência não é tão rigorosa como a de várias sociedades religiosas da Idade Média e a dos solitários dos primeiros séculos, e que, ainda que nosso gênero de vida fosse realmente mais austero do que o das sociedades religiosas que nos precederam, temos, no entanto, uma razão para segui-lo, que os antigos não tinham, ao menos no mesmo grau; e a razão é que o mundo nunca esteve tão corrompido, tão orgulhoso, tão ímpio como hoje; nunca a penitência e a expiação foram tão necessárias para contrabalançar a grandeza do mal, que cresce prodigiosamente todos os dias; e, enfim, devemos responder que essa pretendida austeridade só afastará de nossa comunidade as vocações duvidosas e só nos obterá almas corajosas e fervorosas. Se, às vezes, no entanto, essa vida nos parecer dura e o fardo da Regra pesado, consideremos a dívida imensa que contraímos para com Deus pelas nossas inumeráveis iniquidades, pelo abuso das graças tão preciosas e tão numerosas que recebemos. Consideremos o inferno que talvez tantas vezes merecemos e no qual ainda podemos cair, e em lugar de achar nosso gênero de vida penoso demais, considerar-nos-emos muito felizes de poder resgatar nossos pecados e evitar a condenação graças às privações e à penitência de um momento. Se essa vida nos parecer dura, olhemos em torno de nós: poderemos ver as almas dos homens, nossos irmãos, caírem aos milhares nos abismos eternos (almas que custaram a Nosso Senhor tantas lágrimas, tantos opróbrios e dores) e não sentir vivamente a necessidade de nos devotamos aos santos rigores da penitência para as livrar do mais horrível dos males? Se algumas vezes essa vida nos parecer dura, fixemos nossos olhares na vida e na paixão de Jesus, nosso salvador e nosso modelo. Sigamo-Lo desde o presépio até o Calvário, e concordemos que um Deus que tanto fez e tanto sofreu por nós, muito merece que ajuntemos algumas lágrimas à torrente de sangue que Ele derramou por nós; que unamos algumas lágrimas de penitência às dores infinitas que Ele padeceu por nossa salvação. E se após o exemplo de um Deus morto vítima de Seu amor por nós, é-nos necessário exemplos mais proporcionados à nossa fraqueza, consideremos os milhares de mártires, morrendo pela Fé no meio dos mais horríveis tormentos; os inumeráveis solitários da Igreja primitiva, passando séculos quase inteiros em macerações que fazem tremer. Lembremo-nos da penitência e das austeridades dos primeiros filhos de São Bento, dos cartuxos, dos cistercienses, dos camaldulenses, dos mínimos, etc., etc., e ainda hoje dos trapistas, e envergonhemo- nos de fazer tão pouca penitência. Ainda mais, se essa vida nos parecer dura, elevemos nossos olhares para o Céu, e consideremos as recompensas infinitas que nos aguardam se formos fiéis à nossa santa vocação. Consideremos os tronos que resplandecem em meio aos coros dos solitários (esses serafins da terra, que mereceram assentar-se entre os Serafins do Céu) e que Deus preparou para nós. Consideremos essas torrentes de delícias que escoam na casa do Senhor, e essa glória, e essa felicidade sem limites que nos estão preparadas. Escutemos a voz de nossos pais e de nossos irmãos: os santos cenobitas, que nos convidam a caminhar sobre suas pegadas, a partilhar sua penitência e seus trabalhos, se quisermos ter parte em sua recompensa. Ah! se os sofrimentos e as dificuldades nos assustam, que a recompensa nos anime! Mas esse sofrimento, essas dificuldades não são nada; essa vida que aparentemente parece dura é, em realidade, muito suave, e aqueles que, como nós, fizeram a feliz experiência dela, aqueles que a abraçaram com coragem, que nela caminham com fervor, encontraram nela uma paz e uma alegria inefáveis, de delícias inexprimíveis, um paraíso antecipado. Quanto a nós, meus caríssimos irmãos a quem Deus se dignou chamar a essa bem-aventurada vida, demos-Lhe graças sem cessar pela insigne honra que Ele nos fez, caminhemos corajosamente sobre as pegadas gloriosas daqueles que nos precederam neste santo caminho, e não temamos semear com eles nas lágrimas, a fim de colhermos como eles uma ampla colheita de glória e de felicidade que jamais terão fim.