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Hoje (6 de novembro) fui à Ilha1, pagar dívidas de papai (490); paguei-as uma a uma;

entretanto, na volta, estava triste; na estação de São Francisco (vim pela Penha), ao embarcar,
me invadiu tão grande melancolia, que resolvi descer à cidade. Que seria? Foi o vinho? Sim,
porque tenho observado que o vinho em pequenas doses causa-me melancolia; mas não era o
sentimento; era outro, um vazio n’alma, um travo amargo na boca, um escárnio interior. Que
seria? Entretanto, eu o quero atribuir ao seguinte:

Na estação, passeava como que me desafiando o C. J. (puto, ladrão e burro) com a esposa ao
lado. O idiota tocou-me na tecla sensível, não há negá-lo. Ele dizia com certeza:

— Vê, “seu” negro, você me pode vencer nos concursos, mas nas mulheres, não. Poderás
arranjar uma, mesmo branca como a minha, mas não desse talhe aristocrático.

Suportei o desafio e mirei-lhe a mulher de alto a baixo e, dentro de alguns anos, espero
encontrar- me com ela em alguma casa de alugar cômodos por hora.

Salve Robson! Tudo bom, meu caro? Como anda a família? E o filhão?

Consegui ler seu conto hoje. Obrigado por ter me enviado e fico feliz em saber que você
continua escrevendo.

Acho muito interessante essa investida que você faz no campo religioso, mais precisamente na
esfera do cristianismo protestante e seus derivados rs. Lendo seu conto me lembrei de como
os escritores da metado do XIX até as primeira décadas do XX produziram obras corrozivas ao
catolicismo, Eça, Aluízio Azevedo, o Guerra Junqueiro principalmente, os anarquistas, enfim,
todo aquele movimento anticlerical que era uma das armas de combate da literatura engajada.
Acho que isso se perdeu um pouco na contemporaneidade, ou pelo menos não tenho visto
muito.

Seu conto é bastante interesssante sob esse ponto de vista, ainda mais que você estabelece
todo um diálogo com o mundo da internet e da pornografia. O jogo semântico entre as
palavras sêmem e semeador foi um ótimo achado! A linguagem está bastante fluida também,
objetiva e crua. Acho que você pode continuar investindo nesta seara, Robson, tentando cada
vez mais buscar as contradições desse mundo neo-evangélico, mas não só nele. Há relações
com a política, com o crime organizado, evasão de divisas, além de todo o lamaçal da
moralidade, lógico, das Flordelis e Damares da vida e de tudo o que está soterrado nesta
história pra lá de sinistra.

Uma coisa que preciso te dizer: De uma forma geral o seu conto é ameno. O que quero dizer
com isso: não causa aquele choque anafilático de um Crime do Padre Amaro, de algumas cenas
do Mulato, do Aluízio, ou anda a violência de A Velhice do Padre Eterno, do bom e nunca velho
1
Referência a Ilha do Governador, na região norte do Rio de Janeiro, onde se encontra o atual Aeroporto
Internacional Tom Jobim. Desde o início de 1891, o pai de Lima Barreto, junto à família, passou a residir
na Ilha, por conta do novo trabalho de João Henriques, como chefe do almoxarifado da Colônias de
Alienados. Lima Barreto, terminado os estudos primários, ingressou no Liceu Popular Niteroiense (atual
Liceu Nilo Peçanha), onde estudava parte da elite carioca da época. O padrinho, Visconde de Ouro Preto,
ajudou a custear os estudos no menino, que vivia em regime de internato e retornava aos fins de semana
para casa. Como a cidade de Niterói fica do outro lado da cidade do Rio, e naquela época não existia a
ponte Rio-Niterói, Lima Barreto passou a atravessar de barco, rotineiramente, a Baia de Guanabara. Essa
fase da vida do escritor aparace no capítulo “Ponta do Galeão”, de A vida de Lima Barreto. Logo após
ingressar na Secretaria de Guerra, Lima Barreto alugou uma casa no bairro de Todos os Santos, suburbio
da cidade do Rio de Jeneiro, onde passou a residir com a família.
Junqueiro, que deixaram inclusive os críticos do catolicismo alarmados. Você tem a pegada
para revolver a ferida com ferro em brasa. Então arrepiar no verbo.

Mais uma vez obrigado pela lembrança, Robson.

Você já tem a expertise de um ‘ex irmão’ rsrs, e disso você pode usar e abusar.

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