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1ª edição: 2023

Edição: Rodrigo Bibo

Autor: Tiago Garros

Transcrição e Revisão: Vanessa Rodrigues

Capa: Caio Duarte

Este Ebook faz parte do programa de ensino da EBT - Escola Bibotalk de Teologia -
acesse escolabibotalk.com.br e venha estudar com a gente
Sumário

PREFÁCIO – por Rodrigo Bibo .......................................................................... 4

AULA 01 - INTRODUÇÃO: DIAGNÓSTICO DO PROBLEMA............................ 5

AULA 02 – FAZER CIÊNCIA SURGE NATURALMENTE DE UMA COSMOVISÃO


CRISTÃ ............................................................................................................ 10

AULA 03 – DEUS SE REVELOU A NÓS ATRAVÉS DE DOIS LIVROS .......... 13

AULA 04 – A NATUREZA EXIBE OS ATRIBUTOS DE DEUS ........................ 16

AULA 05 – A CIÊNCIA MODERNA NASCEU EM BERÇO CRISTÃO ............. 20

AULA 06 – CIÊNCIA E AÇÃO DE DEUS ......................................................... 24

AULA 07 – CONFLITOS: CIÊNCIA X FÉ ......................................................... 28

AULA 08 – CIÊNCIA E CIENTIFICISMO – PARTE I: O SALTO DE FÉ ........... 32

AULA 09 – CIÊNCIA E CIENTIFICISMO – PARTE II: EXEMPLOS ................. 35

AULA 10 – CIÊNCIA, RELIGIÃO E CIENTISTAS ............................................ 39

AULA 11 – MODELOS DE RELACIONAMENTO: CONFLITO......................... 43

AULA 12 – MODELOS: INDEPENDÊNCIA E DIÁLOGO ................................. 47

AULA 13 – MODELOS: INTEGRAÇÃO ........................................................... 52

AULA 14 – CRIAÇÃO E EVOLUÇÃO I ............................................................ 56

AULA 15 – CRIAÇÃO E EVOLUÇÃO II ........................................................... 62


PREFÁCIO – por Rodrigo Bibo

E aí, pessoal! BTleza? Estou aqui para apresentar para você, aluno da EBT,
mais um módulo, agora com Tiago Garros, com o tema de Fé e Ciência. Para quem
não sabe, o Bibotalk tem uma longa parceria com a ABC² (Associação Brasileira de
Cristãos na Ciência), temos mais de 45 podcasts que tratam dessa temática.
Tiago Garros é um amigo da ABC², ele tem o TheoLab, que faz praticamente a
mesma coisa que a ABC² - o diálogo entre fé e ciência – e ele topou ser nosso
professor para falar sobre isso. Ele é muito competente, inclusive, no canal do
YouTube do Bibotalk, temos uma confraria com o Tiago Garros e o Marcelo Cabral
falando sobre a queda, sobre a teoria da evolução, sobre Gênesis, entre outros.
Espero que você goste e aproveite as aulas, porque elas estão sensacionais!
AULA 01 - INTRODUÇÃO: DIAGNÓSTICO DO PROBLEMA

Olá, queridos! Tudo bem? Meu nome é Tiago Garros e estou aqui para
compartilhar um pouco do que tenho aprendido e estudado sobre as relações entre
ciência e fé cristã. Para quem não me conhece, sou gaúcho, moro em Florianópolis,
e tenho me dedicado a esse assunto, desde a adolescência, de forma informal, e nos
últimos dez anos escolhi trabalhá-lo academicamente. Sou professor de Ciências,
formado em Biologia pela UFRS e cristão desde o berço, evangélico, criado na igreja,
sobrinho de pastor. Tudo isso me despertou para essa área, pois desde cedo fui um
menino curioso, que gostava muito de Ciências, mas parece que as coisas que eu
ouvia na escola sobre o tema não convergiam com as que escutava na igreja.
Basicamente, o gosto pela ciência e os questionamentos que foram surgindo
me fizeram trilhar um caminho – que começou com a faculdade de Biologia, e depois
me levou ao mestrado e ao doutorado para trabalhar com as questões a respeito da
Teologia. Então, fiz o mestrado e o doutorado em Teologia para trabalhar, justamente,
a relação da fé e da ciência. Isso acabou me levando para fora do Brasil, tive a
oportunidade de fazer o doutorado sanduíche na Universidade de Oxford, com o
professor Alister McGrath. E é sobre isso que vamos falar nesse curso. É um prazer
estar aqui e espero que seja bom para vocês!
Por que é importante falar sobre fé cristã e ciência? Por que é importante que
a igreja e as pessoas fiquem sabendo minimamente desse assunto? Existe um grupo
de pesquisa nos Estados Unidos, chamado Barnad Group, que realiza pesquisas
entre fé e cultura e, alguns anos atrás, entre 2007 e 2011, o grupo fez uma pesquisa
com 1.300 pessoas jovens, de 18 a 29 anos. Eles perguntaram para os jovens que
haviam abandonado a igreja e chegaram à conclusão de que 3 em cada 5 jovens
entrevistados abandonaram a igreja após os 15 anos. Então, fizeram entrevistas com
esses jovens, a fim de saber porque saíram da igreja. Ao tabular as respostas, as
conclusões foram interessantes. Uma das respostas dadas foi: “A igreja é
superprotetora”. Outra foi que a experiência de fé que tinham na igreja era superficial.
Sendo assim, muitos não abandonaram Jesus, apenas a igreja. Outros disseram que
a sexualidade era mal abordada na igreja. Havia, ainda, alguns que tinham problemas
com a “exclusividade” do cristianismo. Alguns disseram que a igreja era hostil com os
que tem dúvida. E, por fim, o último motivo: muitos abandonaram a igreja pois
disseram que ela é inimiga da ciência. Ou seja, há jovens criados na igreja que
argumentam que saíram dela porque a viam como inimiga da ciência. Logo, tendo
contato com a ciência, optaram por abandonar a igreja. Os resultados dessa pesquisa
viraram um livro chamado You Lost Me - ou Geração Perdida, em português.
Percebemos, com isso, que há um problema em nossa sociedade. O fato é que
existe uma narrativa na nossa cultura ocidental que pode ser resumida pelas
seguintes imagens:
Imagem 1

Imagem 2
Imagem 3

Imagem 4
Imagem 5

A imagem 1 mostra um interruptor, com um cérebro na parte de cima e uma


cruz embaixo. Essa imagem tenta nos mostrar que, se ligamos o cérebro, desligamos
a fé. Não tem como permanecer com os dois ligados simultaneamente. É como dizer
que pessoas que pensam não têm fé religiosa. Esse pensamento é muito comum nas
nossas universidades, por exemplo. De certa forma, sentimos que, na nossa cultura,
as pessoas olham para religiosos e pensam que são pessoas não muito inteligentes.
Na imagem 2, a ciência aparece como o lápis que escreve o progresso, e a
religião está ali para apagar o progresso. Também temos a imagem 3, que mostra a
linha do tempo da ciência com todo o avanço tecnológico em contraste com a linha da
religião, que mostra pessoas orando, sem nenhuma alteração. Novamente, a narrativa
de ciência como progresso e a religião como retrocesso. A imagem 4 mostra a ciência
como um quadro cheio de conteúdo, vinculando-a com a ideia de aprendizagem, de
busca por conhecimento. Já a religião é presentada pelo “Deus quis assim, amém”,
ou seja, é coisa de quem não quer pensar. Na imagem 5, vemos o cientista
descobrindo a verdade – truth, em inglês – e, enquanto isso, o que representa a fé
está encobrindo a verdade e atrapalhando o trabalho da ciência.

Todas essas imagens foram facilmente encontradas com uma pesquisa no


Google Imagens. Isso reforça que a narrativa de que estamos falando é popular.
Sabemos que essa narrativa é muito frágil e simplista, pois ela é facilmente
desmentida. Boa parte de nossa tarefa aqui será, justamente, desfazer algumas delas.
Podemos questionar, por exemplo, o seguinte: de fato, a religião foi responsável pelas
Cruzadas, o fundamentalismo religioso é um problema, mas, se isso é religião,
devemos considerar que o que Martin Luther King Jr. e Madre Teresa de Calcutá
fizeram também foi em nome de sua religião, de sua fé. Por outro lado, se ciência é
progresso, tecnologia, ao mesmo tempo, ela é a bomba atômica utilizada na guerra.

O objetivo desta primeira aula é perceber que há um problema, e fazer seu


diagnóstico. O problema, então, é essa narrativa corrente em nossa cultura que
afirma, por exemplo, que a religião é um atraso para a ciência, para a sociedade. Há,
ainda, quem afirme que o cristianismo e a ciência são incompatíveis. Ou seja, você
precisará escolher entre sua fé e seu sonho de se tornar cientista. Nossa tarefa,
portanto, é desconstruir essa narrativa. Não pense, porém, que ela está presente
somente na academia secular, nas faculdades. Talvez você já tenha ouvido – assim
como eu ouvi na minha vivência de igreja quando falei que iria estudar ciência – coisas
do tipo: “Cuidado com a ciência! Você perderá a fé.” Parece que temos do lado da
igreja pessoas que também têm um pé atrás com a ciência e que, além disso,
concordam com a narrativa secular de que há uma escolha a ser feita entre fé e
ciência.

Nossa discussão, nas aulas seguintes, será baseada em duas principais


perguntas: “Há realmente uma escolha a se fazer entre fé ou ciência?” e “Por que
deveríamos nos interessar pelas ciências?”. Com isso, você já pode perceber qual a
minha visão sobre isso. Creio que não há uma escolha a ser feita – e deixarei isso
mais claro nas próximas aulas. Também creio que nós, cristãos, temos razões bíblicas
para nos interessarmos pela ciência, e deveríamos nos interessar muito por ela. É
exatamente isso que veremos no nosso curso.
AULA 02 – FAZER CIÊNCIA SURGE NATURALMENTE DE UMA COSMOVISÃO
CRISTÃ

Terminamos nossa primeira aula com uma pergunta, e gostaria de abrir a


segunda aula com ela: Há, realmente, uma escolha a se fazer entre fé e ciência. E,
ainda, por que nós cristãos deveríamos nos interessar pela ciência? Para nós,
cristãos, essa pergunta poderia ser feita da seguinte maneira: O pensamento científico
é consistente com uma cosmovisão cristã baseada na Bíblia? Eu, como cristão,
preciso fazer uma escolha? Se o pensamento científico não encaixa com uma
cosmovisão cristã baseada na Bíblia, tenho um problema, devo mesmo rejeitar a
ciência. É necessário fazer uma escolha entre fé e ciência? Ou o pensamento
científico cabe na cosmovisão cristã? Para responder essa pergunta, começamos com
o título da aula. Sim, ele é consistente, e o interesse pela ciência surge – ou deveria
surgir – naturalmente de uma cosmovisão cristã. Nesta aula vamos entender o porquê.

Vejamos o seguinte. Quais são as crenças de alguém que tem uma cosmovisão
cristã sobre a natureza? O que um crente pensa da natureza baseado na Bíblia? O
cristão, quando olha para a natureza, crê que ele está estudando a obra das mãos de
Deus, porque isso é bíblico, Salmos 19:1 diz isso: “Os céus declaram a glória de Deus;
o firmamento proclama a obra das suas mãos.” Ou seja, a natureza é obra das mãos
de Deus. Então, quando nós, cristãos, fazemos ciência, estamos estudando não algo
impessoal, e sim a obra das mãos do criador. Isso é uma crença cristã sobre a
natureza.

Deus nos chama para fazer ciência. Em Gênesis 1:28, ele manda que o homem
nomeie os animais, cuide do jardim. Como cuidamos de um jardim? Com jardinagem.
A jardinagem demanda instrumentos, produtos da ciência. Cultivar o jardim é fazer
ciência. Nomear os animais também. Há quem diga que Adão foi o primeiro
taxonomista. Há diversas referências bíblicas que falam disso.

Somos dotados de capacidade para fazer ciência. Essa é outra crença cristã
sobre a natureza. Cremos que Deus nos deu capacidade – Gênesis 1:27. Deus nos
fez à sua imagem e semelhança e, assim, possibilitou-nos cultivar e cuidar do jardim.
Nós cremos, também, que a natureza é controlada por Deus de maneira fiel. Esse
pensamento perpassa a Bíblia em diversos trechos, como Salmos 119:89-90, Salmos
74:16-17. Deus tem o mundo em suas mãos. Outra crença cristã é que não podemos
conhecer a mente de Deus a priori, mas podemos aprender como ele governa a
natureza, um exemplo está em Jó 38. Cremos, ainda, que a história da redenção, a
história de Deus no planeta tem passado, presente e futuro. No esquema reformado:
criação, queda, redenção e consumação. O tempo é linear, não espiral como em
outras culturas. Todas essas são crenças de uma cosmovisão cristã sobre a natureza.

Agora, pense comigo. Quais são as crenças necessárias para que qualquer
pessoa – como um não cristão – possa fazer ciência? A pessoa que se interessa por
ser cientista precisa crer em algumas coisas. Por exemplo: ela precisa acreditar que
vale a pena fazer ciência. De alguma maneira, descobrir sobre a natureza é algo que
compensa. Outra crença necessária: a natureza é compreensível. Um cientista
precisa, independentemente de sua fé, crer que é possível entender a natureza. Para
alguém fazer ciência, é necessário crer também que a natureza opera em padrões
universais consistentes. As leis se mantem. Caso elas mudassem toda hora, não seria
possível fazer experimentos científicos, pois as regras que valem agora não valeriam
daqui cinco minutos. Além disso, a pessoa precisa crer que modelos lógicos não são
suficientes: experimentos são necessários. A ciência moderna funciona com base em
experimentos. Também é preciso crer que o tempo é linear, inclusive veremos depois
que a cultura que deu origem a ciência é uma que crê nisso. Tudo isso porque os
fenômenos naturais tem causas e consequências, há uma direção.

Talvez você já tenha percebido onde quero chegar. Vamos colocar lado a lado,
em um diagrama, essas crenças:
Repare que as crenças cristãs se encaixam perfeitamente com as crenças
necessárias para qualquer pessoa fazer ciência. Um cientista precisa crer que a
natureza é compreensível, nós, cristãos, já cremos nisso, porque cremos que fomos
dotados de capacidade para isso. Para fazer ciência, a pessoa deve crer que a
natureza opera em padrões consistentes, enquanto o cristão crê que esses padrões
são assim pois são controlados por Deus de maneira fiel. É por esses motivos que
fazer ciência surge naturalmente de uma cosmovisão cristã.

Veremos, ao longo deste curso, que tudo isso não é por acaso, e que o fazer
científico veio de um contexto cristão, em grande medida, por causa dessas crenças.
Também veremos, mais adiante, que não é de se surpreender que há tantos cientistas
cristãos. Portanto, o fazer científico surge de forma natural de uma cosmovisão cristã.
Na próxima aula, tratarei de mais um motivo para que isso ocorra.
AULA 03 – DEUS SE REVELOU A NÓS ATRAVÉS DE DOIS LIVROS

Terminamos a aula passada com a seguinte afirmação: fazer ciência e se


interessar por ela surge naturalmente de uma cosmovisão cristã. Isso se deve,
também, porque Deus se revelou a nós através de dois livros. Ou seja, não só a
cosmovisão cristã se encaixa perfeitamente com as crenças que precisamos ter para
fazer ciência, mas nós, cristãos, cremos que Deus se revelou a nós através de dois
livros – os chamados dois livros de Deus.

Os dois livros de Deus são uma metáfora muito comum na história do


cristianismo que, na verdade, advém de uma compreensão bíblica que encontramos
no Salmo 19: “Os céus declaram a glória de Deus; o firmamento proclama a obra das
suas mãos. Um dia fala disso a outro dia; uma noite o revela a outra noite. Sem
discurso nem palavras, não se ouve a sua voz. Mas a sua voz ressoa por toda a terra,
e as suas palavras, até os confins do mundo.” O texto bíblico está dizendo que o
mundo criado proclama a voz de Deus, que ele se revela a nós através da natureza.
Foi isso que motivou essa famosa metáfora na história da igreja – os dois livros de
Deus. Essa ideia ficou belamente explicada nas palavras de Francis Bacon. Ele tem
um parágrafo famoso que diz: “Que nenhum homem ou mulher, quer por orgulho ou
preguiça, possa pensar que se possa ir fundo demais ou ser bem-informado o
suficiente no Livro-das-Obras-de-Deus, ou no Livro-das-Palavras-de-Deus, ciência e
religião. Ao invés disso, que todos possam, incessantemente, aumentar seu
entendimento em ambos.” O que Bacon está dizendo é que ninguém pode afirmar que
sabe o suficiente de ambos os livros – sendo o “livro das obras de Deus” a criação e
o “livro das palavras de Deus” a Bíblia.

Essa metáfora dos dois livros, que era muito comum na época da revolução
científica, foi cristalizada em uma confissão: a Confissão Belga de 1561. No artigo 2,
cujo título é Como conhecemos a Deus? está escrito: “Nós O conhecemos por dois
meios. Primeiro: pela criação, manutenção e governo do mundo inteiro, visto que o
mundo, perante nossos olhos, é um livro formoso em que todas as criaturas, grandes
e pequenas, servem de letras que nos fazem contemplar ‘os atributos invisíveis de
Deus’, isto é, ‘o seu eterno poder e a sua divindade’, como diz o apóstolo Paulo –
Romanos 1:20. Todos estes atributos são suficientes para convencer os homens e
torná-los indesculpáveis. Segundo: Deus se fez conhecer, ainda mais clara e
plenamente, por sua sagrada e divina Palavra, isto é, tanto quanto nos é necessário
nesta vida, para sua glória e para a salvação dos que Lhe pertencem.” Isso é ortodoxia
cristã. Na Teologia, chamamos isso de Revelação Geral – criação, natureza – e de
Revelação Específica/Estrita – escritura. A natureza não leva ninguém ao
conhecimento de Cristo. Ela pode nos dizer coisas de Deus e que já tornam o ser
humano indesculpável, segundo Paulo. Mas a Revelação Estrita nos leva a Cristo.
Então, de certa forma, ela pode ser considerada “mais importante”, porém não
podemos ignorar a Revelação Geral. Observe o seguinte diagrama:

Estamos falando de dois livros – natureza e escritura – que têm o mesmo autor.
Deus é autor da natureza e, também, da escritura. Se Deus é autor das duas, você
acha que ele diria algo em um livro e, ao mesmo tempo, contradiria aquilo no outro?
O fato de os dois livros serem do mesmo autor, deve de existir uma concordância
entre eles. Acontece que a natureza não é autoevidente. Ela é lida e interpretada por
olhos e mentes humanas, e a essa interpretação damos o nome de ciência. Além
disso, a escritura também não é autoevidente, ela precisa ser lida e interpretada, o
que chamamos de Teologia. Como estamos falando de uma interpretação humana
sobre a natureza e sobre uma intepretação humana sobre a escritura, estamos no
campo do “humano”. Então, aqui, pode haver um conflito, afinal, somos falhos,
erramos, e temos nossa razão manchada pelo pecado. Nossa racionalidade é
imperfeita.
Precisamos lembrar que os dois livros têm o mesmo autor, mas não temos
acesso a eles diretamente de forma não mediada. O que temos são olhares humanos
sobre eles, que são passíveis de erro, possibilitando a ocorrência de conflitos. Como
fazemos para resolver esses potenciais conflitos? Primeiro, ter a esperança de que
natureza e escritura vêm de Deus e, por isso, precisam concordar. Como já dizia
Calvino, “toda verdade é verdade de Deus”. Se um cientista ateu descobre uma
verdade sobre o mundo criado de Deus, o fato dele ser ateu faz com que aquilo deixe
de ser verdade? Não, pois aquilo que é verdade vem de Deus!

Acontece que não podemos jogar fora uma revelação de Deus e manter outra.
Não podemos nos dar ao luxo de acreditar somente na escritura e ignorar algo que o
próprio Deus disse pela Revelação Geral. Da mesma maneira, não podemos ficar
somente com a natureza e ignorar a Bíblia. Continue perseguindo a ciência e a
Teologia até que a unidade subjacente entre natureza e escritura se torne clara.
Assim, continuamos trabalhando nas duas para que vejamos a concordância que é
necessária entre os dois livros.
AULA 04 – A NATUREZA EXIBE OS ATRIBUTOS DE DEUS

Até agora, temos tentado responder algumas perguntas. Trabalhamos dois


pontos: primeiro, dissemos que fazer ciência e se interessar por ela surge
naturalmente de uma cosmovisão cristã; depois, vimos que Deus se revelou através
de dois livros. Nesta aula, veremos um terceiro ponto de por que deveríamos nos
interessar pela natureza: porque cremos que a natureza exibe os atributos de Deus.
Agora, observe as imagens a seguir:

Imagem 1

Imagem 2
Imagem 3

Imagem 4

Imagem 5
Quando olhamos para essas belas imagens das galáxias de telescópios que
estão instalados no espaço, temos um sentimento de grandeza, de ver quão
majestoso é o universo. Como exemplo, temos as imagens 1 e 2, tiradas pelo
Telescópio Hubble. Já a imagem 4 foi tirada pelo Telescópio James Webb. Por fim, a
imagem 5 é um comparativo entre o Telescópio Hubble e o Telescópio James Webb.
O sentimento que temos ao ver essas imagens é semelhante ao que temos ao
contemplar a natureza. Palavras como “glória, beleza, poder, extravagância,
criatividade, fidelidade, inteligência, imensidão e complexidade” adquirem vida
quando contemplamos tais imagens. Trata-se de uma linguagem universal, e não
surpreende que a natureza cause esse sentimento de devoção, quase religiosa, nas
pessoas – mesmo para quem não é religioso. A natureza proclama coisas que
parecem levar para além dela, e nós, crentes em Jesus, cremos que são os atributos
de Deus.

A escritura nos ensina sobre os atributos, mas é a natureza que mostra sua
incrível extensão. A ciência, por sua vez, revela partes da natureza que não podemos
detectar com nossos sentidos “desarmados”, ou seja, sem uma luneta, sem um
telescópio, sem um microscópio. Os instrumentos da ciência nos revelam partes da
natureza que antes estavam inacessíveis. A nossa resposta de fé mais fundamental
à criação de Deus é a adoração. A adoração atinge níveis diferentes quando temos
noção da natureza e do universo criado por Deus.

Existe um texto bíblico que gosto muito, que é Salmos 103:11-12: “Pois seu
amor por aqueles que o temem é imenso como a distância entre os céus e a terra. De
nós ele afastou nossos pecados, tanto como o oriente está longe do ocidente.” Sugiro
que façam uma pausa e vejam uma animação disponível em um site1, ela mostra a
escala do universo. Passeando um pouco por esta representação, podemos
contemplar melhor o que o salmista quis dizer. A Bíblia está nos ensinando que o
amor de Deus por aqueles que o temem é como a distância entre os céus e a terra.
Acontece que o salmista não tinha noção, por exemplo, do quão longe o ocidente está
do oriente, e mesmo assim essa é a afirmação que ele faz sobre tal distância. Por isso
é que eu digo: adoração é a nossa resposta de fé mais fundamental à criação de
Deus, porque a ciência nos ajuda a adorar cada vez mais e melhor. Graças a Deus

1
Site com a escala do universo: https://htwins.net/scale2/
pela ciência, que nos revela, através dos seus instrumentos, o quão longe o nosso
pecado está de Deus e o quão grande é o seu amor para conosco – como a distância
entre os céus e a terra, assim ele nos ama. Quando conhecemos mais da ciência,
quanto mais sabemos sobre o mundo criado, melhor fica nossa adoração, pois a glória
e a majestade de Deus se tornam muito mais tangíveis para nós.
AULA 05 – A CIÊNCIA MODERNA NASCEU EM BERÇO CRISTÃO

Seguindo o nosso módulo de fundamentos, outro fator que deveria fazer com
que nós, cristãos, levássemos a sério a ciência é o de que ela nasceu em berço
cristão. Quem está dizendo isso não sou eu, mas sim especialistas. Eles afirmam que
o cristianismo forneceu um ambiente extremamente favorável ao surgimento da
ciência. Algumas pessoas questionam isso, afinal, até que ponto se pode afirmar que
a ciência é filha do ocidente cristão? Alguns argumentam que existiu ciência no mundo
islâmico, no mundo grego, na China antiga e em outras regiões do mundo. Mas o fato
é: este empreendimento – a ciência – que mudou a história da humanidade, e
perdurou a ponto de causar a Revolução Industrial, aconteceu na Europa ocidental
cristã dos séculos XVI a XIX. A ciência, apesar de ter havido lampejos e ideias
científicas em outras culturas e países, não se sustentou a ponto de termos
instituições, e de uma série de coisas que aconteceram ao seu redor, que
possibilitaram que ela se tornasse uma força cultural na sociedade e, além disso, que
mudasse o mundo – como vimos acontecer nos últimos 400 anos, desde Galileu
Galilei.

Portanto, o consenso entre os especialistas é de que, no mínimo, o cristianismo


forneceu a visão de mundo necessária para o nascimento e consolidação da ciência
moderna. Isso é muito importante e revolucionário, e não é ensinado nas escolas: o
fato de que a ciência é fruto de um contexto intelectual profundamente marcado por
convicções cristãs advindas da Bíblia.

Como se fazia ciência antes da Revolução Científica – antes de 1560, do tempo


dos gregos até a Idade Média? Basicamente, o homem se assentava em uma pedra,
colocava a mão no queixo e ficava pensando. A ciência, naquela época, era
predominantemente teórica, no sentido de que era necessário pensar, usar a razão, e
ver como isso se encaixava naqueles modelos já consolidados, como na ideia
aristotélica dos círculos celestes. Era a ideia de que as coisas tinham círculos e
tendiam a ir em direção ao seu destino final e, por isso, o fogo sabe, pois vai em
direção ao éter, que é o que onde estão embebidas as órbis celestiais. Assim, era
necessário encaixar as ideias científicas a essa estrutura de pensamento.
No entanto, em um momento na história algo aconteceu e, para ilustrar,
gostaria de trazer a seguinte citação de Robert Hooke, um dos pioneiros do uso do
microscópio, em seu livro Micrographia, de 1665: “Todo homem, tanto de uma
corrupção derivada, inata e nascida com ele, quanto de sua criação e conversa com
os homens, está sujeito a escorregar em todos os tipos de erros. (...) Estes são os
perigos no processo da Razão humana.” O que ele está dizendo é que não podemos
mais confiar na razão humana, porque ela é corrupta e, por essa razão, não é
confiável. Mas por que Hooke estava dizendo isso se por milhares de anos bastou
ficar sentado na pedra? O motivo é que houve algo chamado Reforma Protestante. A
Reforma enfatizou algumas doutrinas do cristianismo que existiam, porém estavam
esquecidas na época do catolicismo medieval, e uma delas é a doutrina da queda do
homem. Se o ser humano é caído, isso impactou a sua razão. Então, não podemos
confiar naquilo que o homem conclui baseado em sua razão.

Com isso, Hooke acrescenta: “... os remédios de todos eles só podem decorrer
da filosofia real, mecânica, experimental.” O que ele quer dizer com filosofia real,
mecânica e experimental? Ele está falando do empirismo: o fazer científico como
conhecemos hoje. Assim sendo, a ciência moderna – que é a ciência empírica de se
debruçar sobre um laboratório e descobrir o que há na natureza – é uma ideia
relativamente recente. Agora, uma crença cristã alerta sobre o fato de não podermos
confiar na mente humana, e sobre a necessidade de fazer ciência empírica.
Chamamos isso de empirismo. Francis Bacon foi um dos principais cientistas a
levantar essa ideia. O empirismo baconiano, que é a base da ciência até os dias de
hoje, tinha como plano de fundo uma crença cristã. Ou seja, a ciência empírica surgiu
por causa da crença cristã.

Vocês devem recordar que, na primeira aula, eu trouxe imagens que colocam
em oposição ciência e religião. Gostaria de retomar a imagem abaixo:
O homem que está representando a ciência em 1611, em oposição à religião,
é Galileu Galilei: um católico profundamente religioso e convicto da sua fé e Cristo.
Em outras palavras, aquele que é considerado o pai da ciência moderna era um
crente. E não para por aí, ao ler a história da ciência, percebe-se que há vários
cientistas religiosos. Abaixo, temos exemplos de alguns deles:

Isaac Newton, por exemplo, conhecido como um grande físico, que inclusive
serve como referência para muitos ateus, que dizem “eu não comemoro o Natal, mas
sim o dia de Isaac Newton”, ele era profundamente religioso. Um dado interessante
sobre Newton é que ele é dono de um projeto em Oxford chamado Newton Project,
em que escanearam todos os escritos dele. Ao analisarmos, percebemos que ele
escreveu muito mais páginas sobre interpretação bíblica e religião do que sobre Física
e Matemática. Ou seja, Newton era um teólogo. A ciência dele tinha tudo a ver com a
sua crença em desvendar o mundo criado por um Deus criador.

Desse modo, percebemos que praticamente todos os pais da ciência moderna


são cristãos fervorosos. Nas escolas, os professores não contam essas histórias. Com
isso, podemos concluir que a ciência nasceu em berço cristão. Sendo assim, temos
mais uma razão para que possamos nos interessar por ela e leva-la a sério, pois
estaríamos honrando uma tradição, a nossa tradição.
AULA 06 – CIÊNCIA E AÇÃO DE DEUS

Uma parte muito importante da nossa jornada é esta aula. Precisamos entender
que, segundo a fé cristã ortodoxa, tradicional, Deus age por meio dos processos
naturais que a ciência estuda. Quando olho belas paisagens, como do Parque
Nacional de Aparados da Serra, lembro-me de uma fala típica da minha mãe: “Só
Deus mesmo para fazer uma paisagem tão bonita!” O pequeno Tiago responderia:
“Não, mãe! Essas paisagens dos cânions foram formadas ao longo de muito tempo
por processos de intemperismo, principalmente erosão fluvial.” Sabemos,
geologicamente, que foi assim mesmo que tudo isso aconteceu. Agora, o ponto é:
então não foi Deus, foi o intemperismo, foi a erosão. Uma vez que conheço o
processo, o mecanismo, quer dizer que Deus perde o emprego? Nós, cristãos, cremos
que Deus age por meio desses processos naturais que a ciência estuda. Às vezes
não nos damos conta de que cremos nisso, mas vou lhes mostrar que sim.

Nós entendemos que a ação de Deus se dá de várias maneiras. No entanto,


acreditamos na ação de Deus naquilo que chamamos de Teologia da Providência. De
certa forma, podemos dizer que aquilo que percebemos como natural é, assim como
o sobrenatural, resultado da providência e da ação divina. Vou te dar um exemplo da
vida real. Você já deve ter passado por inúmeras situações como esta: saiu de casa,
bateu a porta, foi pegar o ônibus e, de repente, ficou em dúvida se trancou a porta.
Naquele momento, decidiu voltar para conferir e, por causa de um minuto de atraso,
você perdeu o ônibus. Acontece que esse ônibus que foi perdido sofreu um acidente.
É então que você pensa: foi Deus, foi a providência divina. No entanto, um amigo ateu
pode lhe dizer que não foi Deus, foi uma sequência causal explicável. Surge,
novamente, a questão: natural ou sobrenatural?

É claro que podemos explicar situações semelhantes de forma natural, mas


nós, cristãos, cremos e temos profunda convicção – até por outras experiências – de
que foi uma ação de Deus. Sendo assim, podemos explicar uma sequência causal,
porém acreditamos que é Deus agindo através das coisas. Costumo dizer, por
exemplo, que eu não seria casado e não teria dois lindos filhos hoje se minha esposa
não tivesse me incluído em um e-mail dizendo seu novo número de telefone – mesmo
eu sendo um amigo distante.
Gosto muito do que está escrito em Salmos 139:13-16: “Tu criaste o íntimo do
meu ser e me teceste no ventre de minha mãe. Eu te louvo porque me fizeste de modo
especial e admirável. Tuas obras são maravilhosas! Disso tenho plena certeza. Meus
ossos não estavam escondidos de ti quando em secreto fui formado e entretecido
como nas profundezas da terra. Os teus olhos viram o meu embrião; todos os dias
determinados para mim foram escritos no teu livro antes de qualquer deles existir.” A
ideia do “entretecido” é como de uma agulha de tricô colocando cada membro em seu
lugar. Acredito que nenhum cristão crê que Deus fez, literalmente, esse processo ao
nos formar. Sabemos que é um processo natural estudado por uma disciplina
chamada Embriologia, quem já estudou sabe o quão complexa é a matéria. Isso exclui
o agir de Deus? Não! Claro que são processos naturais, mas eles são criados e
usados por Deus. Foi o Senhor todo poderoso que escreveu o livro de regras deste
universo, e que fez com que a natureza se comportasse desta maneira. Logo, cremos
que Deus nos formou, como diz o salmista, mas cremos que ele usa processos
naturais. Agora, com a ciência, podemos, inclusive, descobrir como Deus nos formou
– algo que o salmista não pôde.

Temos que ter cuidado com o pensamento de que Deus está apenas nas coisas
que nós não entendemos, nas coisas para as quais não temos explicação. Será que
Deus está só no milagre? Estou querendo dizer que, muitas vezes, as pessoas agem
da seguinte forma: se a ciência explica, não foi Deus. Essa é uma ideia muito perigosa.
Pensar “a ciência não explica, logo é Deus” faz com que Deus seja apenas uma peça
do quebra-cabeça. Chamamos esse pensamento de “o deus-das-lacunas”. A Teologia
cristã não funciona assim. Na verdade, esse foi o grande problema de um movimento
chamado Teologia Natural, que teve seu auge com William Paley, no séc. XIX. Ele
olhava a natureza e dizia que tudo era muito complexo, então foi obra de Deus.
Acontece que estudiosos foram descobrindo como aquelas coisas foram formadas de
forma natural, o que deu origem a um movimento chamado Deísmo. Conforme a
ciência foi avançando, não era mais necessário invocar Deus para explicar as coisas.
Chegou ao ponto de que o lugar que sobrou para Deus foi, simplesmente, o daquele
que deu corda no mundo e deixou as coisas funcionando de forma natural. Um Deus
deísta, que não se relaciona com o homem.

Será que não temos, hoje, uma mentalidade deísta? Quando há milagre, Deus
agiu. E quando não há? Isso não é fé cristã, pois nós cremos que Deus está agindo a
todo momento. Onde está Deus na operação regular da natureza? Vamos para a
Bíblia procurar a resposta. O Salmo 104 fala muito sobre o mundo natural, sugiro que
faça uma pausa aqui e leia ele por completo. No versículo 10, por exemplo, ele diz:
“Fazes jorrar as nascentes nos vales e correrem as águas entre os montes.” Ou seja,
existe um processo natural das águas correndo, mas é Deus que o faz acontecer. Há,
também, outros trechos bíblicos como esses, como Jó 36:27-28 e Jó 37:10.
Percebemos, então, uma sinergia na Bíblia entre o agir de Deus e o agir da natureza.
A Bíblia entende que Deus faz tudo, mesmo que saibamos o “como”.

Gosto muito de uma frase do Rev. Aubrey Moore no livro Science and Faith de
1889, que diz: “Não existem, nem podem existir, quaisquer interposições divinas na
natureza, pois Deus não pode interferir com Ele mesmo. A Sua atividade criadora está
em toda parte. Não existe divisão de trabalho entre Deus e a natureza, ou entre Deus
e a lei... Para a teologia cristã, os fatos da natureza são atos de Deus.” Agostinho
disse de forma mais simples e profunda: “Natureza é o que Deus faz”.

Dessa forma, Deus está agindo constantemente na natureza. Existe um


princípio bíblico que é: nós conhecemos e estamos acostumados com a ideia de Deus
como criador de todas as coisas. No entanto, frequentemente esquecemos que a
Bíblia fala que ele não é somente criador, mas também sustentador de todas as
coisas. Vejamos Hebreus 1:3: “O Filho é o resplendor da glória de Deus e a expressão
exata do seu ser, sustentando todas as coisas por sua palavra poderosa.” Cristo está
sustentando a todo momento a sua criação, isso é uma ação divina. Deus está agindo
neste instante e sustentando as leis físicas que ele próprio criou. E, se ele disser
“acabou”, o tecido da existência se esvai, e aquilo que é deixa de ser, porque ele
detém o ser em si, ele é antes de todas as coisas. Em 1 Coríntios 8:6 está escrito:
“Todavia para nós há um só Deus, o Pai, de quem é tudo e para quem nós vivemos;
e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas, e nós por ele.”

A ortodoxia cristã defende esse pensamento: Deus é, ao mesmo tempo, criador


e sustentador. Se ele está sustentando a criação, é claro que está agindo através dos
processos naturais. Cada vez que você está fazendo ciência, você está estudando os
processos pelos quais Deus está criando, mantendo e transformando as coisas. É isso
que acontece diariamente na natureza quando a galinha põe um ovo, por exemplo.
Deus está sustentando sua criação por meio de sua palavra poderosa. Assim,
concluímos os fundamentos para um diálogo entre ciência e fé cristã. Aprendemos:
que fazer ciência e se interessar por ela surge naturalmente de uma cosmovisão
cristã; que Deus se revelou a nós através de dois livros; que a natureza exibe os
atributos de Deus; que a ciência moderna nasceu em berço cristão; e que Deus age
por meio dos processos naturais que a ciência estuda.
AULA 07 – CONFLITOS: CIÊNCIA X FÉ

Primeiro, para tentarmos compreender de onde vêm os conflitos entre fé e


ciência, gostaria de retomar nossa aula em que falamos dos dois livros de Deus.
Falamos, naquele momento, que Deus se revelou a nós através da natureza, da
criação. Ele mesmo afirma isso em sua palavra. Pontuamos, também, que, se ele é
um autor que escreveu esses dois livros, haverá uma concordância entre eles, pois
Deus não vai se contradizer e criar oposições. Por crer que se trata de um único autor,
há uma concordância necessária entre a criação e a escritura.

Acontece, porém, que a natureza é como um livro aberto que está diante de
nós, mas que não se lê sozinho – é necessário um ser humano para tal tarefa.
Contudo, trata-se de um ser com uma razão caída, não confiável. O que temos, então,
é uma interpretação humana sobre a natureza, que chamamos de ciência. Da mesma
maneira, a escritura não é autoevidente. Se você deixar a Bíblia aberta em sua casa,
ela não se lerá sozinha. Deus escreveu um livro de palavras, de verbos, de páginas,
e ele precisa ser lido por uma mente humana. Chamamos isso de interpretação
bíblica, ou teologia. Observe o esquema.

Quando trabalhamos com o ser humano neste campo em destaque, significa


que há um potencial conflito, porque estamos falando de interpretações humanas a
respeito dos dois livros de Deus. Sendo assim, pode haver falhas. Como dito
anteriormente, temos a esperança de que, se os dois livros são do mesmo autor, não
podemos ignorar nenhuma revelação de Deus. Além disso, falamos da estratégia de
continuar perseguindo a boa interpretação da natureza e da escritura.

Em geral, os conflitos entre fé e ciência advém de um problema hermenêutico,


que ocorre quando existe a afirmação de que a fé cristã exige um fato científico. A fé
cristã, disseram no passado, requer que a Terra seja imóvel. Isso era uma crença que
muitos cristãos tinham no tempo de Galileu. Estamos falando do universo copernicano
em contraste com o ptolomaico. Por muito tempo, acreditou-se que o universo era
geocêntrico – ou seja, a Terra estava no centro do universo e as coisas giravam em
torno dela, esse é o universo apresentado por Ptolomeo. Nicolau Copérnico, porém,
defendeu que, na verdade, tudo gira ao redor do Sol. Isso implicava que a Terra se
movia, o que causou alguns problemas para pessoas que acreditavam que a fé cristã
exigia que a Terra fosse imóvel. Precisamos nos lembrar que estamos falando da
natureza e da escritura, mas também da ciência e da teologia – que são
interpretações. Devemos lembrar, portanto, que a natureza está aberta à investigação
e à interpretação humana. A ciência, naquele momento, está dizendo que a Terra se
move. Consequentemente, o cristianismo é falso – se a regra é de que a fé cristã exige
que ela seja imóvel. Por outro lado, posso acreditar que a ciência está errada em
afirmar que a Terra se move.

Por isso, quando olhamos para a ciência, e temos uma conclusão científica,
precisamos nos perguntar: estamos fazendo boa ciência? Ela retrata bem a realidade
que estuda? Se cremos que Deus se revelou através da natureza e que a ciência é
uma interpretação nossa dela, devemos nos questionar se estamos sendo bons
intérpretes da natureza que ele criou. Talvez você se surpreenda em saber que, por
exemplo, existe um site chamado Geocentricity que é um canal atual de geocentristas.
No site, podemos ler a seguinte afirmação: “Este site é dedicado à relação histórica
entre a Bíblia e a astronomia. Assumimos que sempre que as duas estão em
desacordo, é sempre a astronomia - isto é, nossa ‘leitura’ do ‘Livro da Natureza’, não
nossa leitura da Bíblia Sagrada – que está errada.” E mais: “Ainda não foi feito nenhum
experimento que prove que a Terra está se movendo. Na verdade, muitos
experimentos apenas confirmaram que ele não se move.”

Perceba que, se a minha fé cristã exige que a Terra seja imóvel, posso dar duas
respostas. A primeira é rejeitar a afirmação científica e dizer que é má ciência, que é
o que esse grupo faz. No entanto, é preciso entender que essa lógica vale para o outro
lado também, pois, da mesma forma, temos uma interpretação humana da escritura –
que é a teologia. Assim como perguntamos se estamos fazendo boa ciência, devemos
perguntar se estamos fazendo boa teologia, se estamos interpretando bem a Bíblia
que Deus nos deixou. Isso significa que podemos rejeitar afirmações científicas, logo,
podemos rejeitar a afirmação de que a fé cristã exige que a Terra seja imóvel.

Agora, vamos nos questionar. A fé cristã deixaria de ser verdadeira se a Terra


não for imóvel? Você poderia dizer: “Claro que não, a fé cristã não exige isso.” O
problema é que a Bíblia, aparentemente declara que é o Sol que se movimento, não
a Terra. Como em Salmos 104:19: “Ele fez a lua para marcar estações; o sol sabe
quando deve se pôr.” E também em Josué 10:13: “O sol parou, e a lua se deteve, até
a nação vingar-se dos seus inimigos, como está escrito no Livro de
Jasar. O sol parou no meio do céu e por quase um dia inteiro não se pôs.” A pergunta
é: mesmo apesar desses textos bíblicos podemos continuar afirmando que a fé cristã
não exige que o Sol gire em torno da Terra? Em resumo, estamos dizendo que
precisamos retornar para a interpretação bíblica – e também para a da ciência – para
conferir se está sendo bem feita. É exatamente isso que está no cerne do famoso
caso Galileu – recomendo o podcast2 do Bibo para que você aprenda mais sobre isso.

Afirmar que a fé cristã exige algum fato científico pode gerar alguns problemas
para nós. A fé cristã exige que a Terra seja imóvel? Acredito que não. Mas será que
ela exige que a evolução biológica seja falsa? Alguns dirão que sim, pois a Bíblia
declara que os seres vivos não evoluíram. Então, a fé cristã pode coexistir com a
evolução? A natureza está aberta à investigação e à interpretação humana,
chamamos isso de ciência. Se a ciência diz que a evolução ocorreu, logo, o
cristianismo é falso. No entanto, preciso me perguntar: a ciência que diz que a
evolução ocorreu é boa ciência? Pode ser que cheguemos à conclusão de que não,
de que se trata de uma má ciência. Porém também pode ser que haja bons indicativos
que nos mostram que a evolução realmente ocorreu. Será que não teremos que
rejeitar o “exige” da frase “a fé cristã exige que a evolução seja falsa”? Talvez, a
conclusão a que chegamos, de que a fé cristã não pode coexistir com a evolução, seja
um erro de interpretação da Bíblia.

2
O Caso Galileu – BTCAST ABC² 019 – Disponível em: https://bibotalk.com/podcast/galileu/
O erro de interpretação está no campo da teologia e dos estudos bíblicos.
Digamos que a teologia diz que a Bíblia ensina que os seres vivos não evoluíram.
Será que, realmente, a Bíblia nos ensina isso? Como eu leio esses textos? Será que
não tenho uma interpretação bíblica possível que me permita acreditar que os seres
humanos evoluíram? A Bíblia não está ensinando que os seres vivos não evoluíram,
ela simplesmente não fala nesse assunto. Ou seja, eu preciso me perguntar se estou
fazendo boa teologia quando chego a alguma conclusão a respeito da Bíblia. Por isso,
meu ponto é que nós estamos sempre com a tarefa de sermos bons intérpretes dos
dois livros que Deus nos deu.

Sendo assim, os conflitos percebidos entre ciência e fé cristã tem a ver com
leitura e interpretação da Bíblia e da natureza. Por essa razão, é fundamental termos
ferramentas para avaliar se a ciência a que temos acesso é uma interpretação fiel da
natureza criada por Deus. Da mesma forma, precisamos analisar se a nossa leitura
bíblica está sendo fiel à revelação escrita de Deus. O que Deus está dizendo a respeito
do seu mundo através da ciência? Como devemos interpretar a Bíblia quando ela fala
do mundo natural? Essas são perguntas fundamentais que devemos responder.
AULA 08 – CIÊNCIA E CIENTIFICISMO – PARTE I: O SALTO DE FÉ

Esta aula será dividida em duas partes, e começaremos com o salto de fé. É
muito importante, quando ouvimos alguém falar em ciência, que consigamos separar
aquilo que é ciência daquilo que é religião e filosofia. Com isso, quero dizer que ciência
tem a ver com método, observação, teoria, leis. Em outras palavras, trata-se de fatos
científicos: coisas que são mensuráveis e testáveis. Na academia, falamos sobre o
critério de falseabilidade. Para algo ser científico, é necessário que seja falseável. De
forma simplificada, podemos dizer que, para ser considerada fato científico, a coisa
precisa ser testável. Aquilo que não se encaixa nesse critério é do campo da crença:
metafísica.

A fim de que você compreenda como é importante essa separação, vou dar um
exemplo. Carl Sagan foi um astrofísico muito famoso nas décadas de 70 e 80. Havia
um programa famoso na TV brasileira chamado Cosmos, baseado em um livro dele.
Hoje, inclusive, há uma série na Netflix chamada Cosmos que é como uma releitura
da série original de Sagan. Carl Sagan, um grande cientista e ateu, é um bom exemplo
para falarmos daquilo que estou propondo: a separação entre ciência e religião. Ele
tem uma frase muito famosa, que abre a série Cosmos e o livro: “O Cosmos é tudo
que há, tudo o que houve e tudo que haverá.” Agora, compare-a com a seguinte frase,
também de Sagan: “O universo observável tem 93 bilhões de anos-luz de diâmetro.”
Você consegue perceber que são duas frases bem diferentes? A segunda é uma frase
científica, pois consigo testar. Ou seja, trata-se de uma afirmação que está no campo
da Física. No entanto, quando Carl Sagan diz que o Cosmos é “tudo o que há, tudo o
que houve e tudo que haverá”, ele está fazendo uma afirmação metafísica. É uma
frase não é ciência. Consegue perceber?

Richard Dawkins é um famoso biólogo ateu – talvez o mais famoso ateu da


contemporaneidade. Trata-se de um dos quatro cavaleiros do movimento neoateísta.
Ele é dono da seguinte frase: “O universo que observamos tem precisamente as
propriedades que deveríamos esperar se, no fundo, não há projeto, propósito, bem ou
mal, nada a não ser uma indiferença cega, impiedosa.” Dawkins chega a essa
conclusão, mas como pode uma pessoa olhar para um mesmo universo e afirmar que
“os céus declaram a glória de Deus; o firmamento proclama a obra das suas mãos”,
como em Salmos 19:1? Temos duas pessoas olhando para a mesma realidade,
apesar dos milênios de diferença, e chegando a conclusões completamente
diferentes. Um acredita que o universo tem aquilo que chamamos de télos, que
significa plano, finalidade, propósito, e o outro acredita que o universo não tem télos.
Ou seja, para Dawkins, o universo é disteleológico. O salmista, porém, diz que ele é
teleológico.

Precisamos perceber que, quando pegamos um dado da ciência, normalmente,


a partir dele, damos o que chamamos de “salto de fé”. Trata-se de um movimento que
tem a ver com fé, com intuição e, talvez, com um pouco de intelecto ou razão, mas
que nos leva a fazer afirmações religiosas ou filosóficas, que estão no campo da
metafísica. Quando Richard Dawkins fala que o universo não tem plano e propósito
sem poder provar, estamos falando de fé, de metafísica. Ele está dando um salto de
fé. Quero chamar sua atenção para o fato de que esse salto é mediado pela nossa
cosmovisão. A cosmovisão é a lente que faz com que enxerguemos os fatos da ciência
sob um determinado viés. Se alguém tem uma cosmovisão teísta, olhará o fato da
ciência e chegará à conclusão de que Deus existe, há télos. Contudo, se a cosmovisão
é ateísta, concluirá que não há Deus.

Uma cosmovisão, segundo James W. Sire em seu livro Dando Nome ao


Elefante, é “…um compromisso, uma orientação fundamental do coração, que pode
ser expresso em uma história ou em um conjunto de pressuposições (suposições que
podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas) que
sustentamos (consciente ou subconscientemente, consistente ou inconsistentemente)
sobre a constituição básica da realidade, e que fornece o fundamento no qual vivemos,
nos movemos e existimos.” Em outras palavras, uma cosmovisão é uma orientação
do coração sobre a natureza fundamental da realidade. Além disso, ela é pré-teórica,
por isso a cosmovisão é quem faz a mediação entre aquilo que eu observo da ciência
e a conclusão a que eu chego a partir dela.

Um bom exemplo para ilustrar é o seguinte. Imagine uma célula humana média,
que tenha 10 µm. Um micrômetro é um milímetro dividido por 1000. Então, estamos
falando de uma célula pequena. Dentro dela, há algo chamado núcleo, e dentro dele
o DNA, uma molécula que contém o código genético. Você deve se recordar, se
concluiu o ensino médio, que o DNA vai se dobrando até se empacotar, mas é possível
esticá-lo como uma fita. Imagine, agora, que cada célula tenha cerca de 1 metro de
DNA – apesar de ser uma estimativa errada, pois sabemos hoje que são cerca de 3
metros. Para efeito de causa, vamos trabalhar com 1 metro de DNA dentro do núcleo
de cada célula. É muita coisa! A informação genética em 1 metro de DNA equivale a
30 volumes da Enciclopédia Britânica. Para quem não lembra, é o ancestral da
Wikipedia. Estamos falando de algo absurdo. Agora, se você pegar todo o DNA de um
ser humano, considerando 1 metro de DNA, é possível fazer a viagem entre Terra e
Sol – 150.000.000 km – 70 vezes. Isso é a quantidade de DNA que carregamos em
nosso corpo.

Nesse momento, você pode estar pensando: que fato maravilhoso da ciência!
Só Deus mesmo para criar algo assim. Mas o meu ponto é: Richard Dawkins conhece
esse dado. Acontece, porém, que o salto de fé dele faz com que ele creia que não há
Deus, e que tudo isso é uma coincidência. Isso acontece porque sua cosmovisão é
ateísta. Um cristão, no entanto, olhando esse dado, chega à conclusão de que há
Deus. O que você precisa compreender é que a conclusão da questão do embate
entre “há Deus” e “não há Deus” não faz parte da ciência, ela é um salto metafísico.
Quando olhamos para a ciência, temos que ter muito cuidado sobre qual a conclusão
que tiramos, pois ela é baseada nos compromissos do nosso coração – na nossa
cosmovisão. Concluindo, todos nós temos um compromisso metafísico implícito, e é
ele que nos faz dar um salto de fé quando olhamos para a realidade. É por esse motivo
que pessoas diferentes olharão para a mesma realidade e chegarão a conclusões
completamente diferentes.
AULA 09 – CIÊNCIA E CIENTIFICISMO – PARTE II: EXEMPLOS

Terminamos a aula anterior falando que todos nós temos um compromisso


metafísico implícito, determinado por nossa cosmovisão, que nos faz dar um “salto de
fé” quando tiramos conclusões a partir da ciência ou quando olhamos para a realidade.
Todos nós olhamos para a realidade com uma lente. Então, precisamos ter cuidado
quando tiramos conclusões a respeito de fatos científicos que, muitas vezes, estão
revelando algo sobre nossa cosmovisão, e não necessariamente sobre aquilo que a
ciência está mostrando.

O problema é que boa parte da ciência que escutamos hoje em dia possui uma
metafísica materialista implícita, que está embarcada e não é reconhecida. Os
discursos científicos têm uma filosofia embarcada, o nome dado a isso é “sequestro
metafísico da ciência”. Quando Carl Sagan diz que “o Cosmos é tudo o que há, tudo
o que houve e tudo que haverá”, a frase pode soar científica, mas não é. É uma frase
que possui uma cosmovisão de que não há outras coisas além do cosmos, e isso não
é científico, e sim metafísico – é filosofia. O mesmo acontece com a frase de Richard
Dawkins que vimos anteriormente: “O universo que observamos tem precisamente as
propriedades que deveríamos esperar se, no fundo, não há projeto, propósito, bem ou
mal, nada a não ser uma indiferença cega, impiedosa.” Apesar de parecer um discurso
científico, trata-se de um discurso cheio de religião, de filosofia. Se não podemos
testar, não é científico.

Tais frases são exemplos daquilo que chamamos de cientificismo, que é


diferente da ciência. Perceba: a ciência está no campo do que é mensurável e testável,
já o cientificismo – como é o caso das citações em questão – é a crença de que só os
métodos das ciências naturais produzem conhecimento verdadeiro. O cientificismo
começa com a ciência, porém faz uma afirmação filosófica.

O materialismo e o cientificismo, diversas vezes, ficam travestidos de ciência,


vendem-se como ciência, mas ultrapassam as barreiras do que é ciência. As crenças
do cientificismo são: primeiro, a realidade última do universo é matéria e energia; a
ciência e seus métodos são a única maneira possível e verdadeira de adquirir
conhecimento sobre a realidade; e só é real o que pode ser “provado” pela ciência. O
que você precisa entender sobre essas três frases é que, antes de tudo, isso não é
ciência e, além disso, elas são posições filosóficas. Em outras palavras, são frases
não testáveis pelos métodos da ciência. Para deixar bem claro, imagine que alguém
chegue para você e diga: “Só é verdade o que é provado pela ciência.” A pergunta
que eu devolvo é: você consegue provar essa frase com a ciência? Utilizando os
métodos científicos, é possível garantir a veracidade dela?

Desse modo, o cientificismo não passa de crenças. Não há como fazer testes
para provar frases como as citadas. Estamos falando de posições metafísicas, logo,
se não há como provar, são posições de fé. São frases que podem estar corretas,
porém que possuem o mesmo valor epistêmico de alguém como eu que diga “não, a
realidade última do universo não é só matéria e energia”.

O cientificismo, que coloca uma confiança excessiva na ciência, toma quase


como uma posição de adoração em relação aos métodos da ciência. É a própria
filosofia da ciência que diz que não há como fazer ciência sem ter compromissos de
fé que permitam que ela seja eficaz e funcione. A pessoa que se propõe a fazer ciência
precisa ter compromissos metafísicos que são anteriores a ela, que são crenças. É
necessário, por exemplo, crer que as leis do universo são fixas e operam de maneira
regular. Caso contrário, se não há padrões, os testes científicos não são válidos.
Quem garante que as leis da natureza são fixas? Se você é crente em Deus, deve
crer que Deus mesmo garante essa estabilidade, diferentemente do cientista ateu.
Podemos dizer, ainda, que o cientificismo é uma falta de reconhecimento dos limites
da ciência.

Ian Barbour, um dos maiores nomes na área de estudo da interface entre


ciência e religião, era um físico que se tornou teólogo e reverendo. Ele tem um
argumento muito interessante que diz: “Em sua epistemologia, esses autores (do
materialismo científico) pressupõem que o método científico é a única fonte confiável
de conhecimento, pressuposto conhecido por seus críticos como cientificismo, (...)
(Eles), em sua metafísica, estenderam os conceitos científicos para além de seu uso
na ciência a fim de justificar filosofias materialistas. A identificação do real com
propriedades mensuráveis, que podem ser conferidas por relações matemáticas
exatas, começou nas ciências físicas, mas influenciou cientistas de outras áreas e
continua até hoje. Eu argumentaria, porém, que essas propriedades da matéria foram
abstraídas do mundo real, ignorando-se a particularidade dos eventos e os aspectos
não quantificáveis da experiência humana. Não precisamos concluir que apenas a
matéria é real ou que a mente, o sentido e o amor humano são apenas subprodutos
da matéria em movimento. O teísmo, em suma, não é intrinsecamente conflitante com
a ciência, mas sim com a metafísica do materialismo.”

Para encerrarmos esta aula, precisa ficar bem clara a diferença entre o que
chamamos de materialismo filosófico – ou naturalismo – e o materialismo
metodológico. O primeiro é uma posição filosófica que afirma que a realidade é
matéria e energia, que não há Deus, e que não há nada além disso. Trata-se, de certa
forma, de uma corrente filosófica ateísta. A ciência não pressupõe o materialismo
filosófico, pois ela não tem ferramentas para chegar a essa conclusão. O que a ciência
faz é ter uma atitude de materialismo metodológico. Isso quer dizer que, quando vou
para o laboratório fazer ciência, eu assumo a priori que fenômenos naturais terão
causas naturais. É uma metodologia materialista: para eu fazer o experimento,
assumirei que causas naturais darão conta dele. E que espíritos, Deus e a dança da
chuva não influenciarão no resultado. Se eu tenho uma cosmovisão de que os
espíritos são reais e agem o tempo inteiro, muito provavelmente a ciência não irá se
desenvolver. É o que acontece com sociedades indígenas, por exemplo.

A ciência se desenvolveu em um contexto de teísmo cristão em que a


cosmovisão é de um Deus que não fica intervindo a todo tempo. Sendo assim, a
cosmovisão cristã é muito favorável à prática científica. Cremos em um Deus que não
fica mexendo no mundo criado, mas sim que criou leis consistentes e que se mantém
fixas a ponto de podermos produzir ciência. No entanto, isso não significa dizer que
Deus não pode agir e fazer um milagre, então não se trata de materialismo filosófico,
mas sim de materialismo metodológico.

Para encerrar, precisamos ter algumas coisas em mente. Primeiro, que os


discursos científicos que vemos por aí são, geralmente, carregados de
posicionamentos metafísicos ateístas – naturalistas. Isso explica a rejeição de muitos
cristãos para com a ciência, porque eles acham que a ciência é ateísta. A ciência tem
a ver com a possibilidade de teste. Por isso, precisamos nos perguntar: é ciência ou
é a religião ateísta do cientista? Em segundo lugar, o materialismo científico é uma
posição de fé, que está em pé de igualdade epistêmica com o teísmo. É nesse
contexto que vem a famosa discussão sobre com quem está o ônus da prova. Da
mesma forma que a fé em Deus não pode ser provada pela ciência, a não crença na
existência de Deus também não. Estamos todos no mesmo campo epistêmico.
A terceira coisa é que é possível fazer ciência e aceitá-la sem a necessidade
de abraçar o naturalismo. Eu posso olhar para o mundo natural com uma cosmovisão
de que não há Deus, mas a ciência não torna isso uma necessidade. O teísmo cristão,
nesse sentido, é tão compatível com a ciência quanto o ateísmo, e ele oferece – na
minha opinião – melhores respostas para os limites da ciência que o ateísmo. Quando
a ciência chega no seu limite e somos levados a fazer perguntas que estão além dela,
o teísmo cristão oferece respostas melhores. Por que há tanta beleza no mundo? O
que havia antes do início do tempo? O ateísmo não tem o que dizer, porém o teísmo
diz que a eternidade estava nas mãos de Deus, e que ele é eterno. Por fim, você pode
me perguntar: por que a maioria dos cientistas é ateu? A pergunta que faço é: a
maioria dos cientistas realmente é ateu? Veremos uma resposta para essa pergunta
na próxima aula.
AULA 10 – CIÊNCIA, RELIGIÃO E CIENTISTAS

Terminamos a aula anterior com a pergunta: por que a maioria dos cientistas é
ateu? Será que é assim mesmo? Quero contar uma história para ajudar a responder
essa pergunta, que é uma percepção bastante comum entre as pessoas, de que a
maior parte dos cientistas não acreditaria em Deus e, por isso, ciência e religião estão
em conflito. Em 1997, houve dois artigos científicos nas duas principais revistas
científicas do mundo, a Science e a Nature. Ambos diziam sobre coisas parecidas: a
aproximação que já estava ocorrendo entre ciência e religião.

Primeiro, temos o artigo da Science, que levava o seguinte título: Ciência e


Deus: uma tendência em crescimento. Ele chamava atenção para o fato de que já
existia há bastante tempo uma série de instituições e de publicações que buscavam
aumentar um diálogo entre ciência e religião, e isso vai de encontro àquela narrativa
comum de que ciência e religião estão em eterno conflito. Em 1997, a revista mostrou
que havia uma tendência de aproximação entre essas duas áreas. Na época, existia
o Zygon Center for Religion and Science, o Center for Theology and the Natural
Sciences (CTNS), o Dialogue on Science, Ethics, and Religion (DoSER), ou seja, uma
série de iniciativas que estavam se aproximando. De lá para cá, surgiram muitas
outras iniciativas e, hoje, podemos dizer que a área de interface entre ciência e religião
é uma área em expansão. Eu mesmo estudei em um centro de pesquisa em ciência
e religião na Universidade de Oxford. Atualmente, as grandes universidades do mundo
têm centros de pesquisa como esse. E isso já estava em pauta em 1997 na Science.

No artigo em questão, citam o projeto DoSER, uma iniciativa bastante antiga e


que continua viva até hoje. Ele pertence à chamada AAAS, a maior instituição
científica do mundo, é a instituição para o avanço da ciência nos Estados Unidos.
Estamos dizendo, portanto, que uma das mais respeitadas associações de cientistas
do mundo possui um projeto para diálogo entre ciência e religião. O mais interessante
desse projeto é que ele era presidido até este ano por Jennifer Wiseman – ela,
inclusive, já esteve no Brasil por iniciativa da ABC². Wiseman é uma astrônoma muito
importante, e é a cientista chefe do laboratório do Telescópio Hubble. Ela é uma
cientista cristã, que não vê conflito entre fé e ciência.
O outro artigo que citei é da Nature, também de 1997, e que mostra a tendência
de aproximação entre ciência e religião. No entanto, ele trata de uma questão bem
interessante, pois descreve uma pesquisa feita na época que buscava avaliar a ideia
que as pessoas têm de que ciência e religião estão em conflito, de que os cientistas
são ateus, etc. Então, fizeram um questionário e enviaram para vários cientistas nos
EUA, contendo duas afirmações que deveriam ser respondidas com “concordo” ou
“discordo”. São elas: 1. Eu creio num Deus que está em comunicação intelectual e
emocional com a humanidade, isto é, um Deus para quem alguém pode orar na
expectativa de receber uma resposta. Por “resposta” entende-se mais do que o efeito
psicológico subjetivo da oração; 2. Eu creio na continuação das pessoas depois da
morte em outro mundo.

Qual porcentagem dos cientistas pesquisados você acha que respondeu “sim”
para as duas questões? Surpreendentemente, nessa pesquisa, 40% dos cientistas
respondeu que concorda com as afirmações. Isso mostra que, muitas vezes, a pose
da ciência ser ateísta pode ser simplesmente uma ilusão, e que no íntimo boa parte
realmente crê em algo transcendente. Você pode dizer que essa pesquisa é muito
antiga. Há uma pesquisa muito recente chamada Religion Among Scientists in
International Contexts (RASIC), coordenada pela Elaine Howard Ecklund, que
pretende observar o que os cientistas pensam numa perspectiva global. Para isso,
foram visitar e enviaram questionários os seguintes países: França, Hong Kong, Índia,
Itália, Taiwan, Turquia, Reino Unido e Estados Unidos. Eles obtiveram 9.422
respostas, uma amostra grande se considerarmos estudos sociológicos. Depois,
conduziram 609 entrevistas face a face com os cientistas.

Os resultados dessa pesquisa no que diz respeito à interação entre fé e ciência


são impressionantes. Nos países Índia, Itália, Turquia e Taiwan, mais da metade dos
cientistas entrevistados se identifica como religioso. Em Hong Kong, veja que dado
interessante, 55% da população se declara ateu, mas, entre os cientistas, apenas 26%
se declara ateu. Estamos dizendo que essa pesquisa apontou que os cientistas em
Hong Kong são menos ateus que a população em geral. Isso também acontece em
Taiwan, onde 44% da população geral se declara religiosa, enquanto 54% dos
cientistas se declaram religiosos. O que os cientistas sabem que os torna mais
propensos a crer em Deus do que aqueles que não o são? Será que há algo na ciência
que os faz crer em algo além do mundo físico? Talvez seja uma resposta para esses
resultados.

Mais dados da pesquisa mostram a quantidade de cientistas ateus em cada


país, sendo Turquia 6%, Índia 11% e Taiwan 11%. Você pode pensar: “Ok, mas esses
países são menores, não são tão importantes.” Veja: nos Estados Unidos, apenas
35% se declarou ateu, no Reino unido, 40%, e apenas na França a maioria, 51%,
declarou-se ateu. Estamos vendo algo revolucionário, e que desbanca o “mito” de que
a maior parte dos cientistas não é ateia. Além disso, quando perguntados sobre
conflito entre ciência e religião, a minoria dos cientistas caracteriza a religião como
“conflitante”. Os achados dessa pesquisa estão no livro Science vs. Religion: What
Scientists Really Think.

Outro dado muito interessante que eu gostaria de compartilhar, e que é muito


simples e útil para conversas cotidianas, é o seguinte: quando o Prêmio Nobel fez 100
anos, pesquisaram os ganhadores ao longo de 100 anos. Em seguida, pesquisaram
a religião dos ganhadores. Veja a tabela abaixo:

Vemos, nessa tabela, que


64% dos vencedores do Nobel se
declaram cristãos. Os Unaffiliated,
sem filiação religiosa, são apenas
10.4%. Perceba que a maioria é
religiosa e, mais que isso, a
imensa maioria é cristã. Se
somarmos cristãos com judeus,
temos cerca de 86% que crê em
Deus. Alguém pode dizer que isso
reflete, simplesmente, a média da
população mundial em termos de
religião. Acontece que na coluna
da esquerda está mostrando os
dados da população mundial. Ou
seja, não se trata de uma amostra
ao acaso, simplesmente mantendo a proporcionalidade da religião conforme a
população mundial. Temos o fato de que a maioria dos vencedores do Nobel é cristã.
Os judeus, que são apenas 0.2% da população, correspondem a 21.1% dos
vencedores. Será que a fé dessas pessoas não a estimula a fazer ciência e, mais que
isso, ciência de altíssimo nível? Perceba que, diante da ideia de que cientistas são
avessos à religião, você pode simplesmente responder: você já viu o Nobel? Em
resumo, a narrativa de que cientistas são contra a religião não procede.
AULA 11 – MODELOS DE RELACIONAMENTO: CONFLITO

Nesta aula, falaremos sobre os modelos de relacionamento entre ciência e


religião. Terminamos a aula passada dizendo que muitos cientistas acreditam em
Deus, talvez a maioria mundial, ao contrário do que imaginamos. Mas existem sim
cientistas que não veem a religião e a ciência como coisas que podem caminhar
juntas. Nesse contexto, falaremos sobre Ian Barbour. Ele é uma figura muito
importante na área que estamos estudando, fé e ciência. Em 1967, ele escreveu um
livro que tentou sistematizar as relações entre religião e ciência. Barbour era físico e
cristão, e resolveu estudar Teologia depois de já ter uma carreira sólida na ciência.
Na década de 90, no livro Religion in an age of Science, propôs sua famosa tipologia
de quatro modelos para se relacionar ciência e religião. Esses quatro modelos estão
em outro livro, como uma versão mais sintética do anterior, chamado Quando a
Ciência Encontra a Religião: Inimigas Estranhas ou Parceiras?, e estão ilustrados a
seguir.

Vamos começar por aquele que já estamos falando desde a aula 01, que é a
ideia mais comum que as pessoas têm de ciência e religião: o conflito. Nessa
perspectiva, trata-se de duas forças que estão disputando o mesmo território. Ian
Barbour dá alguns exemplos de pessoas que servem de ilustração para o conflito,
uma delas é Richard Dawkins, que já citamos anteriormente. Ele afirma: “A religião é,
em um sentido, ciência. Mas é uma má ciência. (...) As religiões têm, historicamente,
sempre tentado responder às questões que são próprias da ciência.” Dawkins é
daqueles que acredita que a religião deveria deixar de existir, visto que não contribui
em nada com o mundo.

Do lado religioso, porém, temos ideias bastante parecidas. Henry Morris, por
exemplo, é o chamado pai do movimento criacionista moderno. Ele tem algumas
frases que ilustram bem o conflito de que fala Barbour. Morris afirma que “a revelação
divina do criador do mundo afirma que ele fez tudo em seis dias há alguns milhares
de anos atrás. A Bíblia contém todos os princípios básicos sobre os quais verdadeira
ciência é feita.” Ele vai ainda mais fundo ao dizer que a Bíblia é um livro de ciência,
colocando uma posição de conflito entre religião e ciência.

Nas palavras de Barbour, “Os maiores exemplos da visão do conflito são os


literalistas bíblicos que acreditam que a teoria da evolução entra em conflito com a fé
religiosa e os cientistas ateus que alegam que tal teoria é incompatível com qualquer
forma de teísmo. Ambos os grupos concordam ao afirmar que uma pessoa não pode
acreditar em Deus e na evolução ao mesmo tempo, e que de forma geral, há que se
escolher entre ciência e religião. Este é o grupo que recebe mais atenção da mídia,
uma vez que um conflito rende notícias mais emocionantes do que esclarecimentos
feitos por pessoas entre esses dois extremos.” Os maiores exemplos do conflito entre
ciência e religião são os literalistas bíblicos, como Henry Morris, e os materialistas
ateus, que de certa forma também acreditam que a Bíblia traz uma descrição
científica, porém de forma equivocada e por isso deve ser deixada de lado. É
interessante, pois são dois grupos antagônicos, mas que concordam em certa medida.
Além disso, é fato que a mídia, para vender, prefere manchetes chamativas, deixando
esse grupo em maior evidência.

Nesse contexto, precisamos nos perguntar: há um conflito intrínseco entre


ciência e religião? Vimos até aqui que não, que o que existe é uma mistura de
conceitos que partem da ciência e são associados com uma metafísica materialista,
que é vendida como ciência. Peter Harrison, talvez o maior nome vivo sobre história
da ciência, autor de Os Territórios da Ciência da Religião, tem um pequeno vídeo em
que ele explica de onde surgiu a ideia de que ciência e religião estão em conflito. Ele
afirma o seguinte:
“Esta é uma boa questão e, de certa forma, uma questão intrigante, pois, como
disse, sabemos que historicamente as coisas não são assim e que, de forma explícita,
do século XVII ao XIX, grande parte das pessoas envolvidas em ciência eram
simpáticas à religião. As coisas mudaram, creio eu, no século XIX neste país, na Grã-
Bretanha, em partes por razões profissionais. Em certo sentido, no século XIX, a
ciência se tornou uma profissão, sendo financiada pelo governo e, para que ela
atingisse a maioridade, como uma atividade independente, alguns de seus
proponentes quiseram estabelecer um conflito entre ciência e religião. Parte disso se
deu porque as universidades foram dominadas por interesses eclesiásticos neste
país. Então se tornou necessário em um nível profissional distinguir a profissão da
ciência da profissão religiosa clerical. E então pessoas como Thomas Huxley, de
forma explicita, utilizaram teoria darwinista como uma forma de fazer da ciência uma
profissão única, que fosse bem distinta da profissão clerical. Ele foi muito bem
sucedido ao fazer isso. Ao mesmo tempo, creio que houve outros desenvolvimentos
que foram importantes. Havia uma noção de progresso, e isso foi mais claro na
filosofia de Auguste Comte. Ele argumentou que a sociedade se movia por estágios
sucessivos desde o estágio religioso até, finalmente, o estágio científico. Assim, o
entendimento progressivo de certas filosofias do século XIX era de que a teologia teria
sido uma fase da qual a sociedade avançou para uma fase científica mais elevada. A
ciência foi vista naturalmente como a atividade racional que iria, em uma sociedade
civilizada, suplantar a teologia e a mitologia. Em outro nível, na medida em que
passaram a construir, pela primeira vez, a história da ciência, tomou-se alguns
episódios como o de Galileu que, como disse antes, parece ser uma instância de
conflito entre ciência e religião, e argumentou-se que estas instâncias particulares
tipificavam a totalidade da relação histórica entre ciência e religião. Eu creio que
podemos adicionar ao episódio de Galileu as reações de Darwin. Nós sabemos que
as reações religiosas à Darwin não foram uniformemente negativas. E que o
darwinismo foi bem recebido por um número expressivo de distintas personalidades
religiosas. Mas algumas reações religiosas ao darwinismo tornaram possível a
publicação da Origem também como uma instância de conflito ‘ciência versus religião’.
Assim, para resumir, a resposta a esta questão, uma questão complexa, apresenta
um número de componentes. A ideia de que a sociedade estava alcançando a
maioridade, e de que estava superando suas raízes religiosas, tornando-se sofisticada
e científica, a necessidade profissional dos cientistas de se distinguirem dos clérigos,
e finalmente a construção de uma história da ciência que tendia a superenfatizar
instâncias de conflito entre ciência e religião, argumentando que estas tipificavam a
totalidade da relação entre ciência e religião”.

Peter Harisson fala, portanto, das razões pelas quais a ideia de conflito surgiu.
De forma bastante clara, ele nos explica as forças que estavam ativas no século XIX,
de onde surgiu a ideia de conflito. Uma coisa que é importante dizer é que essas
histórias que ele conta, como a de Galileu, que foram tidas na época como exemplos
considerados paradigmáticos para falar da relação ciência e religião, surgiram, em
grande parte, por conta de dois livros: A History of the Warfare of Science with
Theology in Christendom, de Andrew D. White, e History of the Conflict Between
Religion and Science, de John William Draper. Esses foram os autores que
propagaram esses mitos, e tinham uma agenda política por trás de seus livros, que
buscava legitimar a nova profissão de cientista em oposição à igreja. Até então, era a
igreja que financiava a ciência.

Hoje, no entanto, sabemos que esses livros possuem uma má pesquisa


histórica, e propagam mitos, mentiras históricas. Um desses livros que citei fala da
velha história de que a igreja, na Idade Média, defendia que a Terra era plana. Isso é
bobagem. Sabemos que, de fato, não havia quase ninguém na Idade Média que não
sabia que a Terra era redonda, pois já sabemos isso desde os gregos. Então, o mito
do conflito em grande medida se deve a esses dois autores.

Há outro vídeo que explica bem a tese do conflito. Trata-se de uma animação
disponível no YouTube3. Ao assistir a ele, você perceberá que, no final, a narradora
fala que a ciência e a religião podem coexistir, afinal, a ciência nos diz como o mundo
funciona e a religião nos diz o porquê. Essa fala é um ótimo exemplo da visão que
chamamos de independência entre ciência e religião, que é o segundo modelo de
Barbour para explicar como as pessoas lidam com essa relação. Na próxima aula,
falaremos sobre a independência.

3
Science vs Religion – Disponível em: https://youtu.be/z6jT783WYq8
AULA 12 – MODELOS: INDEPENDÊNCIA E DIÁLOGO

Agora, continuaremos a tratar dos modelos de relacionamento entre ciência e


religião propostos por Ian Barbour. No vídeo que sugeri que assistissem, há a ideia
de que muitas pessoas veem a ciência e a religião não como conflitantes, mas sim
como independentes. Cada uma fazendo um tipo de pergunta diferente. Esse é o
chamado modelo da independência. Segundo Ian Barbour, para este grupo, ciência e
religião são estranhas entre si, que podem coexistir desde que mantenham uma
distância segura uma da outra. Assim, não deveria existir conflito, porque a ciência e
a religião se referem a diferentes domínios da vida ou aspectos da realidade.

O maior exemplo do modelo da independência é Stephen Jay Gould. Ele é um


paleontólogo americano muito famoso, de Harvard – tão famoso que já esteve em Os
Simpsons. Gould propôs em alguns artigos, e depois em um livro chamado Pilares do
Tempo, um modelo chamado NOMA, ou MNI em português: modelo dos Magistérios
não Interferentes. Segundo a ideia dele, ciência e religião são magistérios, domínios
separados. Elas não precisam e nem devem estar em contato, pois se referem a
coisas diferentes. Possuem diferentes linguagens e funções, e fazem e respondem a
diferentes perguntas.

Para Gould, os MNI são magistérios de autoridade doutrinal. Ou seja, existe o


magistério da ciência, com suas linguagens, suas instituições, suas autoridades e
suas maneiras de validação. E existe o magistério da religião, que possui seu domínio
de autoridade doutrinal. Um domínio de um lado não pode interferir no outro. Essa
ideia, inclusive, ecoa em outros pensadores. Gould amplia essa ideia também para o
magistério da arte, por exemplo.

Como eu disse, esses magistérios fazem respondem a diferentes perguntas.


Enquanto a religião pergunta o porquê, a ciência pergunta o como. A religião está
preocupada com a subjetividade, já a ciência com a objetividade. Religião tem a ver
com causalidade primária, e ciência com causalidades secundárias. Logo, são
diferentes. Esta abordagem dos MNI é uma solução bastante comum para evitar o
conflito. Nos EUA, frequentemente, ciência e religião vão parar na Suprema Corte,
principalmente por causa do ensino de evolução e de criacionismo nas escolas. Um
julgamento muito famoso desse tipo aconteceu em 1981. Um teólogo foi chamado
para depor, seu nome era Langdon Gilkey.

A maneira que Gilkey utilizou para dizer que não é necessário brigar, pois
ciência e religião são diferentes, apesar de compatíveis, foi a abordagem da
Independência. Em seu discurso, ele colocou quatro pontos em evidência: 1. A ciência
procura explicar dados objetivos, de domínio público, reproduzíveis. A religião indaga
sobre a existência da ordem e beleza no mundo e as experiências de nossa vida
interior – como a culpa, a ansiedade, a falta de sentido, de um lado, e o perdão, a
confiança, a plenitude, de outro; 2. A ciência formula perguntas objetivas sobre o
“como”. A religião formula perguntas pessoais sobre o “porquê”, o sentido e a
finalidade, nossa origem essencial e nosso destino; 3. As bases da autoridade da
ciência são a coerência lógica e a adequação experimental. A autoridade religiosa
suprema pertence a Deus e a revelação, compreendida por meio de pessoas que
receberam a iluminação e o discernimento e validada em nossa própria experiência;
4. A ciência faz previsões quantitativas que podem ser testadas experimentalmente.
A religião precisa usar uma linguagem simbólica e analógica, porque Deus é
transcendente. Essa é uma solução frequente para evitar o conflito.

Ian Barbour diz que “... o conflito só existe quando as pessoas ignoram estas
distinções – isto é, quando os religiosos fazem afirmações científicas ou quando os
cientistas extrapolam sua área de especialização e promovem filosofias naturalistas.
A compartimentalização, no entanto, evita o conflito, mas o preço de impedir qualquer
interação construtiva.” Aqui, Barbour está colocando problemas na abordagem do
conflito. Na verdade, se for feita uma análise mais profunda, religião e ciência podem
e devem conversar.

Existe uma abordagem na independência que convida ao diálogo, e que mostra


como é possível haver um diálogo – e com isso irei introduzir a ideia do diálogo.
Observe a ilustração abaixo. Ela foi utilizada por muitas pessoas que participam do
diálogo entre fé e ciência. Uma dessas pessoas foi o professor John Polkinghome, um
dos grandes físicos da Física Quântica que, quase aposentado, resolveu se dedicar
ao estudo da Teologia, tornando-se clérigo da Igreja Anglicana na Inglaterra.
Polkinghome costumava utilizar o exemplo da chaleira. Imagine que alguém
chega e se depara com a cena de uma chaleira no fogo apitando. Então, alguém
pergunta: Por que esta chaleira está fervendo?” A pessoa pode responder da seguinte
maneira: “Veja bem, ela está fervendo porque há uma fonte de calor no fogão, que
transfere calor para as moléculas do aço inoxidável da chaleira através de um
processo conhecido como condução. A agitação das moléculas, por sua vez, agita as
moléculas da água, que passa sua agitação – ou calor – para outras moléculas de
água através das ondas de convecção. Por isso, ao chegar aos 100ºC a água entra
em ebulição. Essa é a explicação.” Pergunta: está correta a resposta? Claro, é por
isso que a água está fervendo. Agora, se você perguntar para minha mãe o porquê
de a água estar fervendo, a resposta será: “Porque eu quero fazer um chimarrão.” A
resposta da minha mãe está errada?

Podemos conceber que as duas respostas são válidas e verdadeiras. Eu


preciso escolher entre a resposta do cientista e a da minha mãe? Não, pois fica óbvio
e claro que as duas respostas estão em níveis diferentes. São respostas totalmente
diferentes, sendo uma o porquê das causas secundárias e outra relativa ao propósito.
Você concorda que as duas respostas contribuem para um melhor entendimento do
fenômeno? Se eu vejo essa cena da realidade e sei o porquê da finalidade, mas
também sei a explicação da ciência, consigo compreender tal fenômeno de uma
melhor maneira do que se eu tiver apenas uma das respostas. O que estamos dizendo
é que ciência e religião podem conversar entre si para que melhor compreendamos
os fenômenos da realidade. No momento em que só conheço um lado da história, eu
conheço parcialmente o fenômeno, porém, se eu conheço outros lados, conheço o
fenômeno de maneira mais ampla. Então, essa é a ideia da independência, mas que
já indica a possibilidade de um diálogo, que serve para uma melhor compreensão da
realidade.

Gostaria de finalizar essa parte da independência com uma famosa frase de


Emil Brunner. Ele era um famoso teólogo, e ilustra um pouco a ideia dos dois níveis
de conhecimento. “Como pode a teoria científica da evolução ser combinada com a
crença cristã na criação? Primeiro de tudo, vamos tentar responder a essa pergunta
na forma de uma analogia: como podemos combinar a análise química de uma tela
pintada com o julgamento estético desta dela, como uma obra de arte? Obviamente
os dois não são mutuamente exclusivos, pois os dois assuntos estão em planos
diferentes. Quando o químico apenas vê os vários elementos de uma mistura de
produtos químicos, o artista vê um significativo conjunto, uma expressão da mente e
do espírito.” De fato, a tela possui uma análise química que pode ser feito, mas que
não esgota seu significado.

Quando vemos perguntas como “o que havia antes do Big Bang? Quando toda
matéria e energia do universo estavam condensadas em um ponto, onde estava esse
ponto se foi o próprio Big Bang que criou o espaço?” Um teólogo chamado Thomas
Torrance disse o seguinte: “A ciência propõe perguntas que ela mesma não consegue
responder.” Quando isso acontece, pode haver diálogo. Esse é o nosso terceiro
modelo de Ian Barbour para relacionar ciência e religião. Há pessoas que entendem
a relação de ciência e religião como a de um diálogo, elas podem conversar entre si.
Barbour diz que, enquanto a independência enfatiza as diferenças entre elas, o
diálogo enfatiza as semelhanças. E sim, há várias semelhanças. Ele identifica três
categorias de semelhanças: nos métodos, nos pressupostos e nos conceitos.

Sobre as semelhanças nos pressupostos, Barbour e outras pessoas que estão


na abordagem do diálogo dirão que ambas – ciência e religião – requerem
compromissos metafísicos. É preciso acreditar em coisas que não têm base na
ciência, não são passíveis de verificação. Pode emergir diálogo entre ciência e
religião naquilo que Ian Barbour chama de questões-limite ou fronteiriças, que são
questões metodologicamente ou conceitualmente fronteiriças, por exemplo: “O que
havia antes do Big Bang?”; “Como se define vida?”; “Como explicar a mente
humana?”; “O que são e por que existem as leis naturais?”; “Por que o universo é
inteligível?”. Essas são questões que parecem partir da ciência, mas a ciência nos
leva até elas e não há método, não é possível ir além delas, e é aí que surge a
necessidade de chamar um teólogo, um filósofo para a conversa.

Além disso, Barbour também diz que as questões de bioética – como “certo ou
errado” – não podem ser respondidas pela ciência. Para isso, uma resposta ética,
religiosa precisará entrar em cena. Sendo assim, temos paralelos metodológicos,
segundo Barbour, entre ciência e religião. Será que a ciência é tão objetiva quanto ela
alega ser? Será que a religião é tão subjetiva quanto dizem por aí? Sobre isso,
Barbour aponta que sabemos que há uma seleção de dados científicos que
frequentemente está viciada pela teoria. A seleção dos dados científicos depende da
teoria que o cientista tem em mente, daquilo que ele quer que os dados corroborem.
Assim, pressupostos teóricos interferem na seleção, interpretação e descrição de
dados.

A ciência trabalha com analogias e modelos, e a religião com metáforas e


modelos. Então, existe um paralelo. Enquanto na ciência é preciso fazer analogias
para entender um elétron, na religião utilizamos metáforas para falar de assuntos
espirituais. Existem alguns paralelos conceituais que Barbour elenca, por exemplo a
ideia do paradoxo partícula-onda, de que a luz se comporta às vezes como partícula
e às vezes como onda e, na verdade, ela está o tempo inteiro se comportando como
ambos, mas depende da forma como olhamos. Da mesma forma, a trindade. Como
se explica a trindade, a ideia de três que são um? John Pokinghome trabalha com um
paralelo entre Teoria da Informação e Deus como transmissor de informações. Niels
Gregersen trabalha o paralelo entre Auto-organização de sistemas e Deus como
criador de sistemas auto-organizados. Ou seja, há vários teólogos cientistas que
trabalham os paralelos conceituais entre ciência e religião, e daí pode surgir um
diálogo entre as áreas.

Esses são os três primeiros modelos de Ian Barbour para relacionar ciência e
religião. Vimos, anteriormente, o conflito. Agora, trabalhos o conceito de
independência e de diálogo. Na próxima aula, daremos um passo além, fazendo um
tipo de integração entre ciência e religião.
AULA 13 – MODELOS: INTEGRAÇÃO

Nesta aula, trataremos da integração, o último modelo proposto por Ian Barbour
sobre as maneiras como as pessoas relacionam ciência e religião. Nela, ciência e
religião estão dando as mãos, indo além do diálogo. Barbour diz que as diferentes
visões de integração entre as áreas buscam um alto grau de unidade conceitual que
falta nas posições do diálogo. Como vimos, o diálogo permite uma conversa, já a
integração se propõe a dar um passo além. Houve várias tentativas históricas, e até
contemporâneas, de integração entre ciência e religião.

Barbour identifica três grandes “escolas”, que foram tentativas de integração.


São elas: a Teologia Natural, as Teologias da Natureza e a Síntese Sistemática.
Vamos olhar, agora, para cada uma delas. A Teologia Natural parte do mundo criado
e tentar dar um salto para chegar em Deus, ou no transcendente, através da razão
humana. Um dos primeiros a tentar colocar isso em prática foi Tomás de Aquino. As
cinco vias de Tomas de Aquino nada mais são do que uma tentativa de provar a
existência de Deus a partir da razão. Os fundadores da ciência moderna, no século
XVIII, também fizeram esforços nesse sentido, de que através das coisas criadas
poderíamos chegar a Deus. Newton escreveu sobre o olho, Robert Boyle sobre a
ordem natural de um planejador benevolente. Mas quem cristalizou e tornou popular
a ideia de Teologia Natural foi William Paley no seu livro Natural Theology. Ele traz a
famosa analogia do relojoeiro, que dizia, basicamente, que, assim como o relógio
prova a existência do relojoeiro, o universo prova a existência de Deus. Paley propôs
a seguinte ideia: imagine que você está caminhando por uma colina, uma região árida
e, de repente, encontra um relógio. Você sabe que o relógio não se criou sozinho ali,
pois ele é muito engenhoso, o que é claramente um conjunto montado por uma
inteligência. Esse é um argumento muito poderoso para advogar pela existência de
Deus. Enquanto o relógio argumenta a favor do relojoeiro, os elementos da natureza
mostram um planejamento e um nível de complexidade muito maior do que o de um
relógio. A realidade biológica, então, pode nos levar a crer em Deus.

Acontece que começou, mesmo antes de Darwin, a haver certos


questionamentos a essa abordagem da Teologia Natural, principalmente porque
acabaram percebendo que esse tipo de teologia levava, no máximo, ao Deus deísta,
dos filósofos, e não ao Deus cristão. Contudo, Charles Darwin surgiu e mostrou que
existiam processos naturais que poderiam dar uma explicação para como as coisas
do mundo natural podiam surgir de forma que Deus não necessariamente precisasse
criar, mas sim como um processo natural. Darwin acreditava que era um processo
criado por Deus, porém que não era simplesmente uma ação instantânea de criação.

A Teologia Natural de Paley tem a ver com toda essa discussão, que está muito
bem explicada no livro Deus e Darwin, de Alister McGrath. Ele explica exatamente
como era a ideia de Paley e de como Darwin se encaixa nesse contexto. É um livro
excelente para quem gosta de história e quer se aprofundar no assunto. Assim, a
Teologia Natural é um exemplo de tentativa de integração entre ciência e religião. Isso
caiu em desuso ultimamente, filosoficamente foi-se constatando que é problemática,
pois, como vimos nas aulas anteriores, a maneira como olhamos a natureza já está
determinada por uma cosmovisão. Desse modo, não existe um olhar neutro.
Contraponto a ideia de que olhando o design podemos chegar ao designer, John
Henry Newman dizia não crer no designer porque vê o design, mas sim ver o design
pois já cria no designer. Como já tenho fé em Deus, vejo o design na natureza. É a
evidência da cosmovisão, do compromisso do coração.

Hoje, porém, existe uma defesa contemporânea da Teologia Natural. O


argumento é que, teoricamente, seria possível falarmos com determinado nível de
confiança que a natureza aponta fortemente para a existência de Deus. Um dos
pensadores desse movimento é Richard Swinburne, que é um professor muito
renomado da Universidade de Oxford. Ele utiliza, por exemplo, a teoria da confirmação
na filosofia da ciência, chegando à seguinte conclusão: “Considerando o total dos
indícios, o teísmo é mais provável do que não.” Ele, inclusive, tem um cálculo em que
dá uma probabilidade de que Deus existe, é bem interessante o trabalho dele.

Atualmente, temos o chamado Princípio Antrópico e a chamada “sintonia fina”


do universo para possibilitar vida, que são, de certa forma, uma recapitulação dos
argumentos do planejamento da Teologia Natural clássica. Eles dizem respeito às
pessoas que defendem a ideia de que o universo parece ter sido perfeitamente
ajustado para que criaturas como nós existissem. Vários cientistas ateus dizem que,
se as taxas de expansão do Big Bang fossem infinitesimalmente maiores, nos
primeiros nanossegundos, o universo entraria em colapso poucos milhões de anos
depois, e não haveria tempo de formar elementos pesados para que a vida pudesse
existir e para que pudéssemos estar aqui. Esses cientistas lidam, então, com vários
parâmetros do universo, com acidentes físicos, cósmicos e outros, considerando-os
como meros acidentes. O fato é que são muitos acidentes. Assim, parece que alguém
planejou tudo para que estivéssemos aqui, isso é a chamada sintonia fina do universo.
Na contemporaneidade, muitos a consideram como um argumento a favor de Deus.
Existe um livro do Alister McGrath sobre isso, O Ajuste Fino do Universo.

Acabamos, então, de apresentar a Teologia Natural. A segunda escola de


pensamento que Barbour aponta é a das Teologias da Natureza. Elas são tentativas
de integração que vão na direção contrária da Teologia Natural, partindo de uma
posição de fé e buscando alguma forma de ressonância entre a imagem do mundo
revelada pela religião e aquela que é revelada pela ciência. Enquanto a Teologia
Natural parte de baixo para cima – do mundo criado para Deus –, as Teologias da
Natureza são o contrário, elas partem de uma tradição de fé e olham para baixo, para
a natureza.

Quem defende esse pensamento é o próprio Alister McGrath, e ele utiliza muito
a seguinte frase de C. S. Lewis: “Eu creio no cristianismo como eu creio que o sol
nasceu: não porque eu o vejo, mas porque através dele eu vejo todo o resto.” O
cristianismo é isso. Eu não vejo o cristianismo diretamente, mas ele ilumina a
realidade, ele é os óculos com os quais vejo o mundo. A visão das Teologias da
Natureza evoca a ideia de como o mundo se parece quando é visto com os óculos de
uma tradição de fé. Isso está bem explicado no livro Teologia Natural: Uma Nova
Abordagem, do McGrath. Ele utiliza o termo Teologia Natural para, na verdade,
promulgar uma espécie de Teologia da Natureza.

De acordo com algumas propostas de Teologia da Natureza, algumas doutrinas


tradicionais precisariam ser reformadas à luz da ciência atual, como a doutrina da
criação e da natureza humana. A ideia é, justamente, olhar para o mundo através da
lente de uma tradição de fé. Eu argumentaria que, na verdade, não tem como ser
diferente, pois, quando se tenta fazer uma Teologia Natural, ou seja, partindo do
mundo criado e olhando para cima, já se está olhando o mundo criado pelas lentes de
algum compromisso metafísico. Mesmo quem diz que está partindo da ciência e
tentando chegar em Deus já está olhando com óculos de fé em Deus. Até um ateu
está fazendo uma Teologia da Natureza, olhando para a natureza com os óculos da
sua fé no ateísmo, e concluindo que não há Deus.
A última proposta de integração que Ian Barbour identifica é a chamada Síntese
Sistemática. Segundo Barbour, “uma integração mais sistemática pode ocorrer se
ambas, ciência e religião, contribuírem para uma visão coerente de mundo, elaborada
numa metafísica includente. A metafísica é a busca de um conjunto de conceitos
gerais em cujos termos seja possível interpretar diversos aspectos da realidade. O
esquema conceitual includente que se procura deverá representar as características
fundamentais de todos os eventos. Essa metafísica pertence ao campo do filósofo,
mais do que do cientista ou do teólogo, mas pode servir como espaço de reflexão
comum." A proposta de integração à que Barbour é mais simpático é a chamada
Filosofia e Teologia do Processo, de Alfred N. Whitehead, um dos maiores filósofos
contemporâneos, e John Cobb Jr., seu orientado. Preciso confessar, porém, que isso
ficou um pouco para trás na história das interações entre ciência e fé cristã, falo isso
como alguém que acompanha o debate. Apesar disso, é uma ideia interessante para
quem gosta de filosofia.

Apresentamos, então, as três maneiras de integrar ciência e religião segundo


Ian Barbour: a Teologia Natural, as Teologias da Natureza e a Síntese Sistemática.
Com isso, concluímos as quatro maneiras de relacionar ciência e religião: o conflito, a
independência, o diálogo e, por fim, a integração. Nossas duas últimas aulas serão
sobre temas quentes, falaremos de criação e evolução. Até lá!
AULA 14 – CRIAÇÃO E EVOLUÇÃO I

Caminhando para o final da nossa disciplina, chegamos às questões


contemporâneas. Trataremos de criação e evolução. Provavelmente, muitos
começaram o curso pensando que falaríamos somente disso, mas você verá como
tudo o que falamos será importante agora.

Começarei retomando algo que será muito importante para compreendermos o


debate sobre criação e evolução, que é o que vimos na terceira aula, os dois livros de
Deus. Nós, cristãos, cremos que Deus se revelou a nós através de dois livros. Vimos
que Deus, sendo autor da natureza e da escritura, é necessário que haja uma
concordância entre elas. Também vimos que esses livros não são autoevidentes,
precisam ser lidos por mentes e olhos humanos. Nesse contexto, a ciência surge como
uma interpretação humana sobre a natureza, e a teologia como uma interpretação
humana a respeito da escritura. É aqui que moram os potenciais conflitos dos quais
trataremos a seguir.

Outra coisa que já abordamos foi um resumo prático da ideia de que, como a
natureza está aberta à interpretação humana, aparentemente a ciência está afirmando
que algo chamado “evolução” ocorreu. Por isso, precisamos nos perguntar: a evolução
é boa ciência? Ela é uma religião ou dogma? O que é, ou não, a evolução? Muitas
vezes, ao se referirem à evolução, as pessoas estão falando de outra coisa, que não
é aquilo que a ciência diz ser. Contudo, vimos também que a Bíblia está aberta à
investigação e à interpretação humana, a chamada teologia. Nesse contexto, muitas
pessoas concluem que a Bíblia ensina que os seres vivos não evoluíram. Aqui está
posto o conflito – no campo da nossa interpretação da natureza e da escritura.
Precisamos nos perguntar: estamos fazendo boa teologia?

Precisamos, então, definir o que é criação. A ideia de criação se opõe à


evolução? A interpretação Bíblica envolvida na sua conclusão é boa teologia? Já
sabemos que a resposta evangélica usual a essas perguntas é que temos uma disputa
entre criação e evolução. Agora, apresentarei algumas frases que demonstram a ideia
de que precisamos escolher entre criação e evolução – que aparecem nas igrejas e
no mundo secular. Julian Huxley foi um importante biólogo. Ele fez uma palestra, que
mais tarde foi transformada em livro, chamada The Evolutionary Vision, de 1960. Nela,
ele afirmou: “A Terra não foi criada. Ela evoluiu. Assim também todos os animais e
plantas que nela habitam, incluindo nós humanos.” Essa frase explicita bem a ideia
de oposição entre a ideia de evolução e de criação. Do lado religioso, há uma ideia
praticamente igual, apenas com uma cosmovisão diferente. Henry Morris, pai do
movimento criacionista contemporâneo, disse: “Existem apenas duas cosmovisões
possíveis: a visão de mundo centrada no homem ou a visão de mundo centrada em
Deuss, criação ou evolução.” Ele vai ainda mais longe quando afirma: “Não há prova
científica de que a Terra é antiga. (...) Não há qualquer evidência de que houve
evolução de um organismo menos complexo para um mais complexo. (...) A revelação
divina do criador do mundo [afirma] que ele fez tudo em seis dias há alguns milhares
de anos atrás.” Morris está indo de encontro a tudo aquilo que a ciência defende hoje,
pois ela defende que a Terra é antiga e que há evidências da evolução. Como vimos
anteriormente, ele diz que a Bíblia é um livro de ciência. Há uma frase em que
aprofunda ainda mais suas ideias: “O conceito de evolução é obra do próprio satanás.”

Percebemos com clareza que, em nossa cultura, tanto no mundo secular


quanto na igreja, há uma dicotomia clássica. De um lado, temos algo chamado ciência,
que pressupõe evolução, ateísmo e uma ética humanista, e do outro lado há algo
chamado religião, que pressupõe criação, Deus e uma ética bíblica. Ou você está de
um lado ou de outro, segundo esta narrativa. Será que precisa ser assim? Para
começarmos a conversar sobre isso que leve a algum lugar – e aqui não interessa
muito o que você crê ou não – precisamos definir os termos. Quando falamos desse
tema, estamos utilizando termos que têm uma história, uma origem. Existem pessoas
profissionais que cunharam tais termos. O termo evolução vem da Biologia, então
precisamos perguntar para os biólogos o que é evolução. Da mesma maneira, quando
falamos de criação, devemos perguntar aos teólogos. Além desses, precisamos definir
os termos teleologia e disteleologia.

Primeiro, o que é a evolução? Há muitas definições possíveis, mas tomaremos


uma simples e que acredito que todo biólogo concordaria. A evolução é uma teoria
científica que diz que processos naturais ao longo de bilhões de anos deram origem
a todos os seres vivos, inclusive os humanos. A criação, segundo os teólogos, é uma
doutrina de que o universo é produto de um criador. Agora, vamos definir teleologia,
já falamos dela, trata-se da crença de que o universo tem plano e propósito. A
disteleologia, por sua vez, é a crença de que o universo não tem plano e propósito.
Quando nós ouvimos falar sobre evolução na nossa cultura, nós imediatamente
associamos evolução a um processo disteleológico – à crença de que o universo não
tem plano e propósito. O problema disso é que precisamos conseguir separar ciência
– que fica no campo da física – de religião e filosofia – que ficam no campo da
metafísica.

Novamente, repare na frase seguinte frase de Huxley, agora completa: “A Terra


não foi criada. Ela evoluiu. Assim também todos os animais e plantas que nela
habitam, incluindo nós humanos (...) O mesmo aconteceu com a religião.” Ele também
disse: “A verdade nos libertará. A verdade evolutiva nos liberta do medo subserviente
do desconhecido, e nos exorta a encarar essa nova liberdade. Nos mostra nosso
destino e nosso dever.” Observe que ele fala de evolução utilizando uma linguagem
religiosa. Outra frase dele: “Homens evolutivos não podem mais se refugiar dessa
solidão nos braços de uma figura paterna divinizada, que ele próprio criou, nem
escapar da responsabilidade de tomar decisões se protegendo embaixo do guarda-
chuva da autoridade divina.” Por último, Huxley afirmou: “Finalmente, a visão evolutiva
vai nos habilitar a discernir, embora de forma incompleta, os contornos de uma nova
religião, que podemos ter certeza que surgirá para servir às necessidades da era
porvir.”

Perceba que ele está dizendo que a visão evolutiva nos dará uma nova religião.
O que ele está fazendo? Nós falamos que, a partir da ciência, damos um salto
metafísico, ou salto de fé, e ele está fazendo isso, através da evolução biológica, para
chegar à conclusão de que não há Deus. Isso não está na evolução em si, segundo
nossa definição do termo. Não há nada na definição de evolução que fale da
existência, ou não, de Deus. A evolução ignora Deus – tanto para sim quanto para
não. Ou seja, Julian Huxley está fazendo um salto de fé em direção à disteleologia.
No entanto, isso está no campo da crença dele. Minha pergunta é a seguinte: será
que não podemos olhar para a evolução e dar um salto de fé em direção à teleologia,
ao plano e ao propósito? Será que a evolução não é a evidência que o Deus criador
utilizou para cumprir os seus propósitos criativos? O que impede o Deus criador, todo
poderoso, de usar um processo natural para cumprir seus propósitos criativos?

Agora, apresentarei algumas pessoas que pensam assim. Denis Lamoureux é


um canadense que sempre diz o seguinte em suas palestras: “Em primeiro lugar, eu
sou um completamente comprometido e convicto teólogo evangélico treinado até o
nível de doutorado. Eu sou um cristão nascido de novo. Eu acredito que a Bíblia é a
Palavra de Deus inspirada pelo Espírito Santo. Eu acredito em milagres e eu já os
experimentei. Eu acredito no Design Inteligente. Em segundo lugar, eu sou um
completamente comprometido e convicto biólogo evolucionista treinado até o nível de
doutorado.” Estamos falando de alguém com três doutorados. Ele escreveu o livro Eu
amo Jesus e Aceito a Evolução.

A segunda pessoa que quero apresentar é Ken Miller. Ele é autor do livro de
biologia mais usado nos Estados Unidos – e em países de língua inglesa em geral.
Se você é um aluno de ensino médio nos Estados Unidos, provavelmente utilizará um
livro dele. Ele é um cristão que aceita a evolução. Por último, temos Francis Collins,
diretor do Projeto Genoma Humano, ex-diretor do NIH, cristão evangélico convertido
adulto e vencedor do Prêmio Templeton – prêmio dado para pessoas que fazem uma
grande contribuição na área do diálogo entre ciência e religião. Inclusive, Collins
fundou um instituto para ensinar cristãos que é possível aceitar a evolução tendo uma
fé ortodoxa, conservadora e evangélica.

Esses homens são exemplos de pessoas que aceitam a doutrina da criação,


portanto são criacionistas. Mas também aceitam que a evolução é a maneira que Deus
usou para criar. Eles aceitam aquilo que a ciência diz de que os seres vivos surgiram
de um processo natural – são evolucionistas. O que estou dizendo é que eles são
criacionistas e evolucionistas simultaneamente. Você pode se perguntar: como isso é
possível? Precisamos fazer uma distinção entre teoria da evolução e evolucionismo
ou darwinismo. Isso é muito importante, pois muitos fazem uma confusão. Esta
explicação não é muito aceita, porém cada vez mais tem sido usada. Na maioria dos
casos, quando você vê o termo evolucionismo, a pessoa está fazendo uma mistura
de evolução como ciência e uma filosofia materialista, ateísta, naturalista. Em outras
palavras, evolucionismo é uma cosmovisão: é a evolução misturada com a
disteleologia. Tecnicamente, o nome disso é conflação, ou seja, uma mistura de
conceitos de campos separados – no caso, ciências naturais e metafísica materialista
– como se fossem uma coisa só. Isso é o que Julian Huxley estava fazendo. Sendo
assim, o evolucionismo – ou darwinismo – não se refere à ciência, mas a uma
cosmovisão segundo a qual: não existe criador que se importa ativamente com o
mundo; humanos são puramente fruto de processos naturais, sem nenhuma direção
divina; a moralidade humana é meramente um resultado acidental de influências
ambientais – não há moral absoluta; não há plano e propósito, etc.

Daniel Dennet é um exemplo de alguém que faz essa mistura de evolução com
sua cosmovisão ateísta. Segundo ele, “a teoria darwiniana é uma teoria científica
excelente, mas não é só isso. (...) a ideia perigosa de Darwin penetra muito mais fundo
na estrutura de nossas crenças mais fundamentais do que muitos de seus apologistas
sofisticados já admitiram, até para eles próprios. (...) O Deus bondoso que
amorosamente moldou cada um de nós (todas as criaturas, grandes e pequenas) e
borrifou o céu com estrelas brilhantes para nosso deleite – aquele Deus é, como Papai
Noel, um mito da infância, nada que um adulto são e não iludido poderia literalmente
acreditar. Aquele Deus deve ser transformado em um símbolo de algo menos concreto
ou totalmente abandonado.”

O problema é que, na nossa cultura, quase sempre, quando ouvimos falar de


evolução, estamos ouvindo sobre a cosmovisão ateísta de quem fala. Ou seja, vemos
conflação sobre a evolução. Precisamos ser capazes de separar essas coisas, porque
há pessoas que falam de evolução e creem em Deus. Darwin, que propôs a evolução,
cria em Deus. Em A Origem das Espécies a várias referências a Deus. Há, inclusive,
um BTCast4 sobre a fé de Darwin. O que quero mostrar é que, sim, existem cristãos
que aceitam a evolução, porque eles têm a posição chamada Criação Evolutiva, que
é, de acordo com Lamoureux, “a crença de que Deus, como criador e sustentador do
cosmos, escolheu usar um processo biológico – chamado ‘evolução’ – como meio
para criar a biodiversidade na Terra.” Deus poderia ter escolhido outras maneiras, mas
escolheu essa. Assim creem os criacionistas evolutivos.

Outra definição interessante é a de Francis Collins, o fundador da The Biologos


Foundation, que busca propagar a ideia de que um cristão pode aceitar a evolução.
Ele diz: “Chamamos nossa posição sobre as origens de ‘Criação Evolutiva’. Ou seja,
acreditamos que Deus é o Criador e também aceitamos que a evolução é a melhor
descrição científica de como a vida se desenvolveu. Isso é semelhante a dizer que
acreditamos que Deus cuida do crescimento e desenvolvimento das plantas, ao
mesmo tempo que aceitamos que a teoria da fotossíntese é a melhor explicação
científica para esse processo.” Ou seja, se você crê que Deus cuida das plantas, não

4
A fé de Darwin – BTCAST ABC² 021 – Disponível em: https://bibotalk.com/tag/charles-darwin/
é necessário rejeitar a fotossíntese, pois ela é a maneira como Deus escolheu cuidar
delas. A evolução seria, então, a forma que Deus usou para criar.

Para encerrar, temos alguns famosos teólogos que aceitam a teoria da


evolução, como N. T. Wright, Billie Graham, John Stott, Tim Keller e, por fim, C. S.
Lewis. Sei que você está pensando: como assim? Como eles aceitam a evolução?
Espero que tenha ficado claro que, muitas vezes, nosso preconceito contra a evolução
tem a ver com o fato de termos sido ensinados que evolução é igual a ateísmo, sendo
que isso não é uma verdade. Enquanto alguns olham para a evolução e veem ateísmo,
outros enxergam um processo maravilhoso que Deus conduziu através da sua
providência para trazer à existência os seres vivos. Continuaremos a falar sobre isso
na próxima, e última, aula.
AULA 15 – CRIAÇÃO E EVOLUÇÃO II

Na nossa última aula deste curso, continuaremos falando sobre criação e


evolução. Terminamos a aula passada falando que existe uma posição chamada
criação evolutiva, que muitas pessoas famosas aceitam, que é a ideia de que Deus
pode ter usado um processo biológico – conhecido como evolução – para criar. Eu
gosto de trazer essa visão não para que alguém se convença disso, mas sim porque,
como cristão evangélico, ninguém nunca me contou sobre ela. Então, estou
enfatizando essa parte, pois é uma parte que você provavelmente não verá em
palestras sobre ciência e religião. Pelo contrário, muita gente dirá que é impossível
você crer na evolução e ser um cristão evangélico – e isso, simplesmente, não é
verdade. O fato é que existem cristãos piedosos, que nos edificam escrevendo coisas
maravilhosas, e que aceitam a evolução. Isso tem a ver com a história da minha vida,
porque fui atrás dessas pessoas fazendo perguntas nesse sentido.

Meu objetivo, aqui, é mostrar como fazemos para entender a compatibilidade


de um relato evolutivo da origem da biodiversidade no planeta com a fé cristã. Uma
coisa muito importante é tentarmos compreender o que não é criação evolutiva. A
criação evolutiva não é evolução teísta. Esse termo, em geral, não é utilizado pelos
evangélicos que aceitam a evolução, pois ele coloca o teísmo como adjetivo da
evolução, sendo que o importante não é a evolução. O importante é a criação, é o
mundo de Deus. Assim, o termo dá uma ênfase errada na evolução, segundo algumas
pessoas. Para falar dos cristãos que defendem essa visão, costumamos usar o termo
criação evolutiva, que coloca a prioridade na ordem correta.

Além disso, o termo evolução teísta pode dar uma ideia equivocada de
“evolução + Deus”, e não é isso, Deus não age na evolução de forma intervencionista.
Ele é aquele que criou as leis físicas que fazem com que o processo se desenrole.
Em geral, quando Deus intervém e faz um milagre, ele o faz para ensinar uma lição
para os seres humanos. Portanto, não sei se temos uma boa razão para crer em um
Deus que ficava intervindo na história da vida na Terra quando ainda não havia sequer
um humano, afinal, conforme o relato evolutivo, o ser humano surgiu recentemente.

A criação evolutiva, então, não é evolução teísta, também não é evolucionismo


– ou darwinismo – como vimos na aula passada. Mas como os teólogos e cientistas
que creem na evolução e em Deus leem a Bíblia? Como já mencionei, estamos
falando dos dois livros de Deus e, por isso, precisamos levar ambos a sério. Nessa
perspectiva, essa pergunta pode ser traduzida assim: como devemos interpretar as
passagens da Bíblia que falam do mundo natural? Pois o problema que o cristão tem
é com a leitura bíblica, visto que ela não parece dar espaço para uma visão evolutiva
da criação. Será que a Bíblia precisa concordar com a ciência?

A partir disso, você precisará ler e estudar sobre como interpretar e ler a Bíblia.
O livro do Paulo Won é uma boa indicação – E Deus Falou na Língua dos Homens.
Respondendo à pergunta anterior, muita gente pensa que sim, é necessário que a
Bíblia concorda com a ciência. É o caso de Richard Dawkins, que diz que “a religião
é, em certo sentido, ciência. Mas é uma má ciência.” Acontece que existem pastores,
teólogos cristãos que também acham que essa concordância é necessária.
Chamamos essa visão de concordismo científico. O argumento é: se não podemos
confiar na Bíblia para falar de ciência, por que deveríamos confiar nela para falar de
qualquer outra coisa? Se a Bíblia, aparentemente, não concorda com a ciência, deve-
se rejeitar a ciência.

Você se lembra dos geocentristas? Eles são concordistas e têm uma leitura
bíblica que acredita que a Bíblia ensina que a Terra é imóvel, então rejeitam a ciência
para ficar com sua leitura específica. Porém, se a Bíblia precisa concordar com a
ciência, com qual ciência ela precisa concordar? Com a ciência do século XIII de
Tomás de Aquino, amplamente influenciada pelo pensamento aristotélico? Ou ela
deve concordar com a ciência do século 1 a. C., dos astrólogos? Ou será que deve
estar de acordo com a ciência do século XVII, de Newton, Kepler e Galileu? Talvez
com a ciência atual, dos séculos XX e XXI, ou com a do século XXIII, que sequer
sabemos como estará.

Então, haverá pessoas que defenderão em livros e palestras que a Bíblia


contém antecipações científicas. Henry Morris, o pai do criacionismo, tem um livro
com uma lista de antecipações contidas na Bíblia. Na mesma lógica, poderíamos
perguntar: antecipação da ciência de qual século? Meu ponto é: vamos mesmo
submeter a Bíblia a esse tipo de análise e dizer que ela precisa concordar com a
ciência? Se fizermos mesmo isso, três páginas depois de um versículo que parece
reiterar um fato científico, teremos passagens como a seguinte, de Marcos 4: “E dizia:
A que assemelharemos o Reino de Deus? Ou com que parábola o representaremos?
É como um grão de mostarda, que, quando se semeia na terra, é a menor de todas
as sementes que há na terra; mas, tendo sido semeado, cresce, e faz-se a maior de
todas as hortaliças, e cria grandes ramos, de tal maneira que as aves do céu podem
aninhar-se debaixo da sua sombra.” Hoje, sabemos que os grãos de uma orquídea
são menores que os da mostarda. Quer dizer que a Bíblia está equivocada?

O que acontece é que este não é o jogo que devemos jogar, pois ele se volta
contra nós. Pense comigo. Se eu afirmo que a ciência prova que a Bíblia é verdadeira,
quem está no pedestal? A Bíblia ou a ciência? É a ciência que tem que atestar a
veracidade da Bíblia? Quem está em primeiro lugar? A verdade da Bíblia é de outra
ordem, ela não precisa da confirmação científica. Claro que precisamos de boa
teologia bíblica e boa exegese, precisamos aprender a ler esse livro, pois, se formos
submeter a Bíblia à ciência, estamos dando uma arma na mão do ateu, ou uma
desculpa, para ele rejeitar o evangelho da salvação. Muitos cientistas não se
aproximam do evangelho, porque fazemos tal tipo de leitura.

A Bíblia é um livro de redenção, espiritual. No entanto, apesar de não ser um


livro de ciência, precisamos aprender como ler esse texto. Darei algumas dicas de
como os criacionistas evolutivos interpretam o Gênesis. Primeiro, precisamos pensar
nos pressupostos teológicos da criação evolutiva, que são: a Teologia da Providência,
o fato de que Deus age através de causas naturais que a ciência estuda; Deus como
criador sustentador; e o fato de que Deus se revelou em dois livros – a escritura e a
criação.

O ponto mais importante é que os criacionistas evolutivos rejeitam o


concordismo científico da Bíblia. É necessário que compreendamos que a Bíblia é um
livro de outra ordem. Os avanços hermenêuticos são um apoio que os pensadores do
criacionismo evolutivo. Sabemos que a Bíblia é um livro divino em linguagem humana,
conhecemos a história de sua formação. Ou seja, as escrituras foram reveladas em
um contexto pré-científico, no qual Deus acomodou sua mensagem para a
compreensão das pessoas daquela época – isso se chama Doutrina da Acomodação,
promulgada e defendida por Calvino. Em seu comentário ao Salmo 136, ele diz: “O
Espírito Santo não tinha a intenção de ensinar a astronomia, e, ao propor a instrução
comum para as pessoas mais simples e sem instrução, fez uso por Moisés e outros
profetas da linguagem popular, para que ninguém pudesse abrigar-se sob o pretexto
de obscuridade, como vemos muito prontamente às vezes os homens fingindo uma
incapacidade de entender, quando algo profundo ou recôndito é submetido ao seu
conhecimento. Assim, como Saturno, embora maior que a lua, não o é para o olho
devido a sua distância maior, o Espírito Santo prefere falar infantilmente a ser
ininteligível para os humildes e ignorantes.” O que Calvino está defendendo é que
Deus se acomodou e falou em linguagem popular para que ninguém pudesse dizer
que é muito complexo e que não compreende.

Cremos que a Bíblia é a revelação de Deus para pessoas de todos os tempos,


mas ela foi a palavra de Deus dirigida a pessoas de uma época antes de chegar a
nós. Esse contexto é essencial. Apesar de acreditarmos que a Bíblia é para nós, ela
tem um público alvo primário. Jó, por exemplo, um dos primeiros livros escritos, com
sua linguagem antiga, possuía uma audiência primária. De acordo com Pete Enns,
em The Evolution of Adam, “insistir que, para que transmita verdade, a Escritura de
Israel precise ser isolada do mundo no qual ela foi escrita é uma violação de práticas
interpretativas básicas [...] e é um argumento para uma leitura não-contextual [...], algo
que poucos iriam tolerar quando estão interpretando outras partes da Bíblia.” Da
mesma maneira que costumamos ler Paulo dentro de seu contexto, precisamos fazer
isso com os outros livros da Bíblia. Tirar a Bíblia do seu contexto imediato, de onde
ela foi composta, é um princípio que vai de encontro aos princípios interpretativos da
escritura – em qualquer curso de exegese você aprenderá sobre isso. Ademais,
perguntar sobre a historicidade nem sempre é o correto a se fazer. Não fazemos tais
questionamentos para parábolas, por exemplo, ou para o Apocalipse. A verdade das
parábolas e do Apocalipse não está no fato de o filho pródigo ter realmente existido,
ou no fato de haver – ou ter havido – literalmente escorpiões de sete cabeças
emergindo do mar.

Quando a Bíblia fala do mundo natural, a sua linguagem reflete entendimentos


e compreensões da natureza comuns no mundo antigo. Ela reflete a ciência do mundo
antigo, particularmente do Antigo Oriente Próximo (AOP – ANE, em inglês). Essa
ciência do mundo antigo tem uma característica: Perspectiva Fenomenológica, ou
seja, como as coisas se parecem aos olhos nus do observador. É por isso que eles
escrevem, por exemplo, que o Sol se move. Quando nos damos conta disso, não
temos problema com os textos de Josué. Esse é um princípio de interpretação bíblica.
Galileu estava tentando dizer isso em seu tempo. A verdade da escritura não depende
da literalidade dos fatos, pois os autores escrevem da perspectiva do olho do
observador.

Quando olhamos para o céu, vemos azul. Observe o que está escrito em
Gênesis 1:6-7: “Depois disse Deus: ‘Haja entre as águas um firmamento que separe
águas de águas’. Então Deus fez o firmamento e separou as águas que ficaram abaixo
do firmamento das que ficaram por cima. E assim foi.” O céu é azul porque, da
perspectiva do observador, há água lá em cima e, para segurar a água, há algo
chamado firmamento – do hebraico rāqîa‘ [‫]רקיע‬, que derivada do verbo rāqa‘ [‫]רקע‬,
usado em dois contextos apenas na Bíblia: 1. Aplainando metais, batendo-os como
que com um martelo para formar finas folhas de metal, conforme Êxodo 39:3:
“Bateram (rāqa‘) o ouro em lâminas delgadas, as quais cortaram em fios...”; 2.
Contexto de criação do céu, conforme Jó 37:18: “Acaso podes, como ele, estender
(rāqa‘) o firmamento, que é sólido como um espelho de bronze fundido?” O firmamento
era uma estrutura sólida, por isso algumas traduções traziam como abóbada celeste,
ou domo celeste. Precisava ser sólido para segurar as águas de cima. De onde vem
a chuva? Das comportas ou janelas do céu, já que tem água em cima. Essa é a visão
do cosmos do mundo antigo, e a conhecemos porque ela é comum a povos do entorno
do povo de Israel, os babilônios entendiam o firmamento assim.

A Bíblia traz uma concepção de ciência pré-científica, antiga. Em Gênesis 1


também há elementos de poesia antiga. O relato da criação é construído em painéis
paralelos. Lembra do Tohu – sem forma – e Bohu – vazia? No relato da criação, Deus
está resolvendo o problema de Terra ser sem forma e, depois, o problema de ser
vazia. Deus soluciona o problema do Tohu em três separações. Observe o esquema
abaixo:
No primeiro dia, separa luz de trevas, no segundo, água de cima de água de
baixo, e no terceiro separa águas de terra. Nos outros três dias, ele preenche os
espaços que ele criou no dia um, como se estivesse decorando o espaço. No dia
quatro, ele coloca Sol, Lua e estrelas para decorar o que criou no dia um. No dia cinco,
ele cria criaturas que voam e que nadam como decoração para sua criação do dia
dois. No dia seis, ele decora as águas e a terra, criadas no dia três, com criaturas
terrestres e plantas para alimento. Claramente, não é um relato científico.

Além de poesia antiga, tem teologia divina nesse texto, e há bibliotecas escritas
sobre isso: Deus criou o mundo; O mundo é muito bom; Humanos carregam a imagem
de Deus; Todos os humanos pecaram; e Deus nos julga pelos pecados. Se olhamos
para esse texto tentando encontrar ciência, perdemos o foco da mensagem teológica
– que é o mais importante.

Em resumo, a criação evolutiva acredita na Bíblia como palavra de Deus,


inspirada pelo Espírito Santo, mas interpreta os capítulos inicias de Gênesis com três
elementos: teologia divina, ciência e poesia antiga. Os avanços hermenêuticos estão
bem melhor explicados nos seguintes livros de John Walton: O Mundo perdido de
Adão e Eva, O mundo perdido do dilúvio e The Lost World of Genesis One – que ainda
não está disponível em português. Se você prefere não ler e assistir a uma palestra,
no YouTube há uma palestra de Walton disponível legendada5. Outros livros bons são

5
Palestra de John Walton: https://www.youtube.com/watch?v=Kc2PI6HYk5g
Como Ler Gênesis, de Tremper Longman III, e Gênesis Hoje: Gênesis e as Questões
da Ciência, de Ernest Lucas.

Gostaria de encerrar com um parágrafo de Santo Agostinho, do seu livro


Comentário de Gênesis: “Acontece muitas vezes que um não-cristão de tal modo
conhece algo sobre a terra, o céu, os demais elementos deste mundo, o movimento e
a conversão ou também a grandeza e a distância dos astros, os eclipses do sol e da
lua, os círculos dos anos e dos tempos, as naturezas dos animais, das frutas, das
pedras e as demais realidades semelhantes, que o defende por argumentos
verdadeiros e pela experiência. Mas é muito vergonhoso, pernicioso e digno de se
evitar ao máximo que um cristão fale destes assuntos como estando de acordo com
Escrituras cristãs, pois ao ouvi-lo deliberar de tal modo que, como se diz, cometa erros
tão absurdos, um infiel mal consegue segurar o riso. E o mal não está em que se
zombe de um homem que comete erros, mas que os de fora acreditem que nossos
autores afirmem tais coisas. E assim são criticados e rechaçados como ignorantes.
Quando em assuntos que conhecem perfeitamente apreenderem em erro a alguém
do número dos cristãos afirmando sua falsa opinião a partir de nos nossos Livros, de
que modo vão acreditar naqueles Livros a respeito da ressurreição dos mortos, da
esperança da vida eterna e do reino dos céus? Pensarão que foram escritos com
falsidades. [...] Em assuntos obscuros e muito além de nossa visão, mesmo em coisas
que podemos encontrar tratadas na Sagrada Escritura, diferentes Interpretações são
às vezes possíveis sem prejuízo da fé que recebemos. Nesse caso, não devemos
precipitar-nos de uma vez por todas e assumir tão firmemente nossa posição de um
lado que, se mais avanços na busca da verdade minam justamente esta posição,
também nós cairemos com ela. Isso seria lutar não pelo ensinamento da Sagrada
Escritura, mas pelo nosso próprio, desejando que seu ensinamento se conformasse
ao nosso, ao passo que devemos desejar que o nosso se conforme com o da Sagrada
Escritura. [...] Se os homens eruditos são capazes de estabelecer sua doutrina com
provas que não podem ser negadas, devemos mostrar que esta afirmação da
Escritura [...] não se opõe à verdade de suas conclusões.” Precisamos ter a noção de
que a nossa interpretação pode não ser aquilo que o autor bíblico quis dizer. Agostinho
nos alerta para que reconheçamos que há, sim, diferentes interpretações da escritura.
Por fim, gostaria de recomendar uma série de livros da ABC² sobre fé e ciência,
consulte o site6. Há também livros publicados pela Ultimato e pela Thomas Nelson.
Conheça o TheoLab7, o projeto sobre fé e ciência que eu coordeno, nossa principal
atividade é fazer eventos. Muito obrigado! Foi um prazer estar aqui e espero lhe
encontrar em breve.

6
Site da ABC²: https://www.cristaosnaciencia.org.br/loja/
7
Site da TheoLab: https://www.theolab.org.br/

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