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SUMÁRIO
Ano XVI - Nº 93 - jan./fev. - 2024 2 CAPA
EXPEDIENTE

Revista POLI: saúde, educação e Novo Plano Nacional de Educação: como


trabalho - jornalismo público para
o fortalecimento da Educação avançar nas vitórias e reverter as derrotas?
Profissional em Saúde
ISSN 1983-909X
12 Vai ter #RevogaNEM na Conferência?
Coordenadora de Comunicação,
Divulgação e Eventos
Talita Rodrigues 14 FINANCIAMENTO
Edição A Reforma Tributária vem aí
Cátia Guimarães
Reportagem
Cátia Guimarães
Juliana Passos 18 ENTREVISTA
Paulo Schueler
Rejane Hoeveler
Estagiário de Jornalismo ‘Essa nova direita só aceita a democracia
Rhyan de Meira
da boca pra fora’
Projeto Gráfico
Maycon Gomes
Diagramação
José Luiz Fonseca Jr.
Marcelo Paixão 22 SEGURANÇA ALIMENTAR
Maycon Gomes Alimentação e saúde
Capa
Maycon Gomes
25 No Complexo da Penha, o exemplo da
Mala Direta e Distribuição
agroecologia urbana
Matheus Batista Costa
Valéria Melo
Portal EPSJV
Paulo Schueler 26 MOVIMENTOS SOCIAIS
Mídias Sociais MST completa 40 anos
Erika Farias
Larissa Guedes
Comunicação Interna
Júlia Neves
Talita Rodrigues
30 NOTAS
Editora Assistente de Publicações
Gloria Carvalho
Assistente de Gestão Educacional
31 O QUE É, O QUE FAZ?
Solange Maria Sesai – Secretaria de Saúde Indígena
Tiragem
13.000 exemplares
Periodicidade
Bimestral
Gráfica
Imprimindo Conhecimento

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E
u considero o PNE uma grande vitória”. A frase é de Marcelo Lima, professor da
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), mas afirmações semelhantes foram
feitas por vários outros entrevistados desta reportagem. De fato, houve quem la-
mentasse a versão final da lei 13.005/2014, aprovada no Congresso naquele longín-
quo ano de 2014, mas a maioria das entidades e movimentos sociais da área considera que o
texto do Plano Nacional de Educação que vence agora em 2024 tem mais pontos positivos do
que negativos. Unânime, no entanto, é o reconhecimento de que essa vitória veio embalada
em algumas derrotas, mais ou menos estruturais – que a Conferência Nacional de Educação
(Conae) extraordinária que vai discutir o próximo PNE tem a tarefa de tentar corrigir.
A expectativa era que o PNE 2014-2024 tivesse sido uma bússola que orientasse
os rumos da Educação brasileira. Mas, como quase todo mundo sabe, dez anos de-
pois, das 20 metas e inúmeras estratégias que a lei contém, pouca coisa foi
posta em prática. A começar pelo monitoramento feito pelo próprio Inep,
o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Tei-
xeira, ligado ao Ministério da Educação, foram muitos os estudos
que denunciaram o descumprimento da maior parte do Plano – e
é claro que a denúncia desse descompromisso e a repactuação de
metas e indicadores é parte do que se espera da Conae 2024. Mas a
contribuição que esta reportagem pretende dar ao maior even-
to de participação social do campo da Educação vai em outra
direção: em vez de discutir a ausência dos resultados (que já
se tornaram notícia velha), a ideia é ouvir dos especialistas
uma análise crítica das próprias propostas que foram (ou
não) formuladas naquele momento.
Passados dez anos, se a construção do PNE fosse hoje, e é,
que propostas e concepções da lei atual o campo progres-
sista da Educação escolheria manter, excluir ou modificar?
Que novidades surgiram ao longo desta década que pre-
cisam ser contempladas na lei? Que áreas dentre as
que ficaram de fora do Plano atual deveriam ago-
ra constar do novo texto? Nas brechas das derro-
tas que acolheu, que pontos do PNE fomentaram
ou ajudaram a justificar políticas regressivas no
campo da Educação, a exemplo da Reforma do
Ensino Médio? Priorizando o debate sobre Edu-
cação Profissional, Educação de Jovens e Adul-
tos, Educação Básica com foco no Ensino Médio,
ensino superior, valorização dos profissionais e
financiamento, essas são as principais pergun-
tas que esta matéria vai tentar responder.
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Um pouco de História: quem Para se ter mais clareza sobre o que vem pela
frente, a partir da Conae 2024, é importante entender
ganhou e quem perdeu
quem estava disputando o quê naquele momento. Da-
A História nos lembra que nem tudo depende do niel Cara não tem dúvida de que a maior oposição às
que será decidido na Conferência. Corria o ano de concepções do Plano que expressavam os resultados
2010 quando, tal como agora, a sociedade civil organi- das conferências vinha do próprio governo – que, ca-
zada se preparava para uma jornada de debates e pro- pitaneado pelo então ministro da Educação Fernando
posições sobre os rumos das políticas educacionais do Haddad, combatia, principalmente, a proposta de in-
país – era a 1ª Conferência Nacional de Educação, que, vestimento de 10% do PIB (Produto Interno Bruto) em
entre outros pontos, discutiria as bases de um novo Educação, que era o ponto mais importante de luta
PNE. Na verdade, uma parte dessas formulações já para os militantes da área. Mas, com influência maior
vinha desde a Conferência Nacional de Educação ou menor, no Congresso ou no Executivo, corriam por
Básica, que aconteceu em 2008. Naquele que era o fora interesses ligados principalmente às instituições
último ano dos governos Lula, a 1ª Conae aconteceu privadas de Educação, incluindo o Sistema S, e às fun-
em abril, mas o Executivo só entregou o Projeto de dações empresariais. E todos eles, de alguma forma,
Lei que instituiria o novo PNE ao Congresso em no- deixaram sua marca no PNE atual.
vembro, depois de confirmada a eleição da futura
presidente Dilma Rousseff. Foi um certo balde de A derrota maior: público e
água fria. “O texto não seguiu as recomendações da privado no PNE atual
Conferência”, conta Daniel Cara, professor da Univer-
Contraditoriamente, a maior dessas derrotas está
sidade de São Paulo (USP), que participou ativamente
associada àquela que foi também a maior conquista
das negociações em torno do PNE atual, à época como
do PNE 2014: a meta 20, que estabelece a ampliação
coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à
Educação. E foi aí que a ‘briga’ começou.
do financiamento da Educação até 10% do PIB. “Pela META 20
O espaço principal da disputa se deslocou para o
primeira vez o Congresso Nacional brasileiro deter- Financiamento
minou que 10% das riquezas têm que ser investidas
Parlamento. Uma das estratégias, segundo Cara, foi
em Educação”, resume Daniel Cara, ressaltando a
distribuir o conteúdo da 1ª Conae em Emendas Par-
importância do feito. Mas na última hora veio um
lamentares que iam sendo negociadas pelas diver-
contra-ataque. Embora a meta aprovada diga expli-
sas entidades no Congresso – ao todo, houve quase
citamente que a ampliação do investimento público
3 mil emendas na Câmara e mais de 300 no Senado.
deve ser em “educação pública”, o parágrafo 4º do
Além do projeto original do governo, vários outros
artigo 5º da lei 13.005/2014 abre caminho para as
circularam nesse período. Os movimentos que rei-
parcerias público-privadas na Educação ao definir
vindicavam a essência do que tinha sido proposto
que “público”, nesse caso, engloba também “recursos
nas Conferências passaram a defender a versão do
aplicados nos programas de expansão da educação
PNE da Câmara contra a do governo. No final, o tex-
profissional e superior, inclusive na forma de incen-
to acabou sendo aprovado depois de modificações no
tivo e isenção fiscal, as bolsas de estudos concedidas
Senado e uma segunda rodada de debates também
no Brasil e no exterior, os subsídios concedidos em
na Câmara, num processo de tramitação que durou
programas de financiamento estudantil e o finan-
quase quatro anos. A essa altura, já terminava (en-
ciamento de creches, pré-escolas e de educação
fraquecido) o primeiro governo Dilma.
especial”. “Na prática, isso significa autorizar FIES
O fim dessa história todo mundo conhece: a pre-
[Financiamento Estudantil], Prouni [Programa Uni-
sidente se reelegeu por uma pequena margem de
versidade para Todos] e conveniamento de creche”,
votos, iniciou um segundo mandato com turbulên-
resume Daniel Cara.
cias à direita e à esquerda, e foi vítima de um pro-
Esse foi um ponto de inflexão em relação à luta pelo
cesso de impeachment que abriu um
PNE. Houve quem achasse que se tratava de um per-
novo ciclo político no país. “Os
calço no caminho das disputas daquele momento, mas
contextos macropolíticos de
houve também quem considerasse que essa mudança
aprovação e implementa-
invalidou qualquer conquista. Um exemplo dessa pos-
ção do PNE são muito dis-
tura menos otimista pode ser lida na introdução de uma
tintos”, analisa Cara, que
publicação de “notas críticas” sobre o PNE lançada pelo
completa: “A gente venceu
Colemarx, o Coletivo de Estudos em Marxismo e Edu-
mas não levou”.
cação, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Na análise, o resultado final do PNE é apontado
Mobilização foi fundamental como “uma aparente vitória que, entretanto, esconde
na tramitação da lei do PNE,
que levou quase 4 anos o Cavalo de Troia da mercantilização generalizada da
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JOSE CRUZ / ABR
para 10% do PIB –, essa armadilha da lei em nome do
Defesa de 10% do PIB para setor privado teve consequências concretas? “Cada
Educação pública na Câmara vez que essas políticas [de parceria público-privada]
não são interditadas, elas aumentam assustadora-
mente”, avalia Raquel Dias, que completa: “Então,
sim, as políticas privatistas se avolumaram, a relação
com todas as fundações privadas se avolumou”.
Ao contrário da posição mais pessimista do Andes-SN,
Marcelo Lima reconhece, elogiosamente, que “o PNE
Campanha de 2014
aponta numa direção que é sempre de ampliação da
contra o uso de
oferta pública”. Mas ele pondera que, de fato, o texto dinheiro público por
da lei atual “não diz que tem que se limitar a expansão instituições privadas
privada”. E o problema, analisa, é que essa omissão pode
alimentar a ilusão de que o setor privado não é um “obs-
educação brasileira”, já que insere no texto da lei uma táculo à expansão pública”. “Mas na prática é, porque o
ressignificação do sentido do público que passa a incluir setor privado usa o recurso público para ocupar o espaço
as parcerias com o setor privado. “Isso modificou todo o que o setor público não ocupa”, explica. O professor vai
sentido do Plano Nacional de Educação”, opina Raquel além, argumentando que, se a garantia de financiamen-
Dias, 2ª vice-presidente do Andes-SN. E, argumentan- to é estruturante para todas as políticas de Educação,
do que a avaliação de um instrumento como o PNE não o não cumprimento da meta 20 impede a execução de
deve ser feita meta a meta, simplesmente elencando “o quase todas as outras. Logo, “toda vez que você trava o
que se salva ou não”, ela conclui: “Na disputa do fundo PNE, que está muito calcado na ampliação da oferta pú-
público, a iniciativa privada ganhou a batalha”. blica, você está ampliando espaço para o setor privado”.
A verdade é que os programas que apostaram numa
ampliação do acesso à Educação por meio da iniciativa As derrotas em bloco
privada financiada com recursos públicos já eram não
apenas uma realidade como uma marca dos governos Heleno Araújo, presidente da Confederação Na-
do Partido dos Trabalhadores (PT). Seria possível supe- cional dos Trabalhadores da Educação (CNTE) e coor-
rar isso? Na avaliação de Nalu Farenzena, 1ª vice-presi- denador do Fórum Nacional de Educação (FNE), res-
ponsável pela organização da Conae, considera que,
dente da Associação Nacional de Pesquisa em Financia-
mento da Educação (Fineduca), há um meio de caminho mesmo com prejuízos pontuais aqui e ali, 17 das 20 META 4
possível entre a realização imediata das políticas e o metas do PNE atual contemplam as principais “rei- Educação
projeto de longo prazo que um instrumento como o PNE vindicações históricas” dos movimentos sociais da Especial
deve expressar. Ela lembra que o Brasil ainda tem mui- Educação. “Perdemos as metas 4, 19 e 7”, lamenta, res-
tos recursos públicos financiando o setor privado em saltando que esta última é simplesmente “desastrosa”.
vários segmentos, inclusive com dinheiro do Fundeb, O fomento a parcerias público-privadas na Edu- META 7
cação Especial está fortemente presente nas três
o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Qualidade
Básica e Valorização dos Profissionais da Educação. Por últimas estratégias da meta 4, que falam em “pro-
mover parcerias com instituições comunitárias, na Educação
isso, acredita que seja difícil “estancar imediatamente”
esse processo. Mas ela também entende que os textos confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos,
conveniadas com o poder público” para “apoio ao
dos PNEs (o atual e o que virá) devem seguir o precei-
to estabelecido pela Constituição Federal, de garantir atendimento integral”, oferta de formação e material META 19
a exclusividade de recursos públicos para a Educação JOSE CRUZ / ABR Gestão
pública, comprometendo-se com a ampliação da oferta Meta de Educação Democrática
Especial do PNE atual é
pública e tratando a participação do setor privado como uma das mais criticadas
“episódica”. “A minha posição é a que está já colocada no
documento de referência [da Conae 2024], que é de di-
minuição do volume de recursos públicos aplicados no
setor privado”, diz. E, referindo-se ao conteúdo do que
hoje é a meta 20 do PNE atual, completa: “E se há essa
perspectiva ou projeção de diminuição, a meta de gasto
em Educação sobre o Produto Interno Bruto deveria ser
de aplicação no ensino público e não de perpetuar a sub-
venção pública ao setor privado”.
Mas se a maior parte do PNE atual não foi cum-
prida – e isso inclui a ampliação do financiamento
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didático e atuação junto às famílias. Isso sem contar riais com atuação na área. Embora concorde que a
a primeira estratégia, que contabiliza as matrículas concepção que prevaleceu na meta 7 seja, de fato, a
dessas entidades para o cálculo de recursos a serem que é defendida por essas entidades, Daniel Cara sus-
recebidos pelo Fundeb. “O Estado delega para as tenta que elas são expressão de um “pensamento neo-
ONGs [Organizações Não-Governamentais] fazer liberal na Educação” que, na época da disputa do PNE
Educação Especial”, critica Heleno Araújo. atual no Congresso, era vocalizada e apoiada pelo
Já a meta 19 traz questões relativas à gestão de- então ministro [da Educação] Fernando Haddad. “O
mocrática na Educação. A principal crítica é que o embate foi entre nós e uma ala do MEC”, conta. Não
texto associa a gestão democrática – que é uma rei- por acaso, essa é a meta com o maior número de estra-
vindicação histórica dos movimentos da área – a tégias – 36, ao todo –, que refletem uma disputa mais
“critérios técnicos de mérito e desempenho”. Se isso acirrada no corpo do texto. O resultado é que, ao lado
não fosse o bastante, a primeira estratégia dá con- de estratégias inteiramente ancoradas em concepções
sequência a essa concepção quando estabelece que de avaliação e mérito que pesquisadores, entidades e
a União deve priorizar no repasse de recursos de movimento sociais da Educação criticam há muito
transferências voluntárias os estados e municípios tempo, encontram-se propostas defendidas por esses
que criem legislação específica para seguir essa mesmos movimentos, como garantir atenção à saúde
orientação. E essa mesma redação fala em “nomea- física e mental dos profissionais de Educação, fortale-
ção de diretores”, na contramão da (também históri- cer o controle social na área e valorizar as caracterís-
ca) luta por eleições diretas nas escolas públicas. ticas culturais próprias nos currículos das escolas do
Por fim, a meta 7 fala de “fomentar a qualidade campo, de comunidades indígenas e quilombolas. “A
da educação básica”, estabelecendo a nota do Ideb, gente colocou contradições à própria meta”, ressalta
o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, Daniel Cara.
como parâmetro. Internamente, nas estratégias, há
também uma referência da média que o país deve- Tem Reforma neoliberal da
ria atingir no Programa Internacional de Avaliação Educação no PNE?
de Estudantes (Pisa). “Nós não aceitamos que o Ideb
avalie a Educação Básica. Uma prova de português e Embora isso diga respeito a uma dimensão da
uma prova de matemática não avaliam nada”, critica luta política que ultrapassa os limites de uma Confe-
Araújo, acrescentando ainda, de forma nada elogio- rência de Educação, nesse momento de redesenhar a
sa, que o Pisa foi concebido por um “organismo da bússola que deve orientar as prioridades nessa área
Economia” [Organização para a Cooperação e Desen- pela próxima década talvez seja importante estar
volvimento Econômico – OCDE] e não da Educação. atentos aos usos que se pode fazer das proposições
Em relação à meta 7, o presidente da CNTE lem- defendidas num instrumento como o PNE. Daniel
bra que o que já era ruim no projeto original ficou Cara conta, por exemplo, que no debate parlamen-
pior durante a tramitação no Congresso com a inclu- tar inicial, a Reforma do Ensino Médio foi justificada
são da última estratégia (7.36), que tenta vincular o como uma tentativa do governo de responder às pri-
salário dos professores ao desem-
penho dos estudantes no Ideb.
O destaque se justifica porque,
segundo ele, essa concepção vem
sendo implementada na prática,
por meio de políticas que atrelam
incentivos como, por exemplo, o
14º salário, à nota do Ideb. E, de
acordo com o dirigente, além das
próprias limitações do indicador,
esse tipo de medida gera outros
desvios, como a manipulação dos
dados de avaliação dos alunos.
“Essa não é a sociedade que a gen-
te quer”, diz.
E a que interesses essa propos-
ta atende? Segundo Heleno Araú-
jo, nesse tema a disputa (perdida)
era com as fundações empresa-
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meiras estratégias da meta 3 do Plano Nacional de relacionadas ao próprio acesso – e, especialmente, à


Educação atual. O mesmo argumento consta do rela- equidade de acesso – durante a pandemia causada pelo
tório do deputado Mendonça Filho ao PL 5.230/2023, novo coronavírus que emergiu em 2019”.
que modifica a Reforma. Trata-se da meta que deter- O que se deu, de acordo com Marcelo Lima, foi
mina a universalização do “atendimento escolar” uma tentativa de atalho: “Itinerário não é Ensino Mé-
para jovens, ampliando a taxa de matrículas no dio Integrado”, contesta. Por isso, ele defende que o que
Ensino Médio. E, de fato, a primeira estratégia des- os “congressistas da Conae e os legisladores” têm que
sa meta fala num “programa nacional de renovação garantir em relação ao novo PNE é “que se mantenha
do ensino médio”, incentivando “práticas pedagógi- o conceito de Educação Profissional Técnica de Nível
cas com abordagens interdisciplinares” e currículos Médio integrada ao Ensino Médio” que está presente
que organizem “conteúdos obrigatórios e eletivos”, no texto atual, sem espaço para palavras como “itine-
“de maneira flexível”. “Mas [essas estratégias] não rário” ou “percurso” [de aprendizagem]. “A Reforma do
dizem nada sobre uma reforma neoliberal do Ensi- Ensino Médio é contrária à meta que diz que você tem
no Médio”, contesta o ex-coordenador da Campanha que ampliar o Ensino Médio integrado ao Ensino Téc-
Nacional pelo Direito à Educação, reconhecendo, no nico. Ela só não diz assim: ‘revoga-se a meta tal do PNE’
entanto, que o texto contém termos que podem ser porque não pode fazer isso”, denuncia.
usados para essa lógica de reforma educacional. Mas A questão agora é se a Conferência Nacional de
ele argumenta que, embora essas contradições, que Educação vai dizer ‘revoga-se a Reforma do Ensino Mé-
são inerentes a qualquer lei, sirvam como argumen- dio’. O documento-base que orientou as discussões nas
to para políticas regressivas, elas não são a razão de etapas estaduais e municipais não traz essa proposta
retrocessos como a Reforma do Ensino Médio (leia explicitamente, embora sugira um conjunto de medi-
mais na pág. 12). “A Reforma do Ensino Médio é uma das que vão na contramão do Novo Ensino Médio. Não
estratégia para fazer a política educacional que cabe por acaso, num documento de contribuições ao texto
abaixo do teto dos gastos públicos federais e que afir- de referência da Conae que a Campanha Nacional pelo
ma uma função social para a escola e para a Educa- Direito à Educação produziu, uma das propostas de
ção, que é formar o indivíduo neoliberal. Agora, com mudança inseridas em vários trechos é exatamente a
ou sem PNE isso ocorreria. É ingenuidade achar que redação clara sobre a necessidade de se revogar a Lei
o PNE reforça ou contradiz [essa intenção]”, defende. 13.415/2017, “conforme pautado pelo Fórum Nacional
Processo semelhante se deu em relação à Educação de Educação”.
Profissional, cuja meta principal no PNE vigente (nº 11)
determina que o país deve triplicar as matrículas de Outros usos e abusos do texto do PNE
cursos técnicos, sendo pelo menos metade dessa oferta
na rede pública. Como várias outras, dez anos depois Outra contradição prática justificada pelo PNE
não se está nem próximo de cumprir a proposta. Mas atual diz respeito à “desastrosa” meta 7. Vários estudos
essa dívida histórica também serviu de argumento têm identificado um processo de fechamento de escolas
para justificar a mesma Reforma do Ensino Médio, es- noturnas e do campo em algumas redes estaduais – São
pecificamente no que diz respeito ao itinerário forma- Paulo talvez seja o exemplo mais mencionado. Muitas
tivo 5, de formação profissional. O relatório do último vezes, isso se dá a partir de um processo de nucleação,
balanço anual do PNE desenvolvido pela Campanha sob o argumento da economicidade que se gera ao jun-
Nacional pelo Direito à Educação, de 2022, é preciso tar mais estudantes no mesmo espaço. Independente-
ao denunciar a fragilidade dessa resposta: “A reforma mente das razões anunciadas, no entanto, o resultado
do ensino médio trouxe, com a inclusão da formação tem sido o abandono da escola por uma parcela desses
técnica e profissional entre os possíveis ‘itinerários for- estudantes. “Quando diminui a capilaridade da rede
mativos’ para a etapa, a possibilidade de uma expansão escolar, você coloca o aluno mais longe fisicamente da
acelerada de matrículas que se aproxime do objetivo escola e a tendência dele é abandonar”, explica Lima.
estabelecido na meta 11. No entanto, essa expansão A relação de tudo isso com a meta 7 é que, segundo a
vem acompanhada de sérias dúvidas em relação à ma- interpretação de vários desses pesquisadores, uma das
nutenção da qualidade prevista na mesma meta, uma razões desse movimento é a tentativa de ‘se livrar’ dos
vez que a reforma trouxe, além do formato questioná- estudantes mais ‘frágeis’ visando melhorar a nota da
vel dos itinerários, a possibilidade de profissionais sem rede no Ideb. “Muitos governos conseguiram aumen-
formação docente lecionarem disciplinas do itinerário tar o seu Ideb sem melhorar o salário dos professores,
profissionalizante e a possibilidade de oferecimento sem melhorar a formação dos professores... Sabe como
de até 30% do ensino médio no formato de educação eles fizeram? Fecharam turmas”, diz Lima, apontando
a distância (EaD). Esta última, para além de questões como, nesse caso, a existência de uma meta que defi-
relacionadas à qualidade, mostrou enormes limitações ne a qualidade da Educação a partir desse indicador, e
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ainda mais vinculando essa avaliação à oferta de “as- Profissional é o processo concreto de realização
sistência técnica financeira” às redes de ensino, acaba de trabalho”. Outra estratégia fala em “ampliação
entrando em contradição com as outras metas do PNE da oferta de matrículas” gratuitas por “entidades
que incentivam a ampliação de matrículas. sem fins lucrativos de atendimento à pessoa com
A pesquisadora Maria Clara di Pierro, da USP, lem- deficiência” e entidades privadas “vinculadas ao
bra ainda outra iniciativa que tem sido responsável sistema sindical” – que atendem principalmente
pelo fechamento de turmas de Educação de Jovens e às demandas do Sistema S. Completa esse quadro
Adultos (EJA), e que acaba entrando em contradição de interesses privatistas presentes na meta 11 a
com outras metas do PNE atual. A meta 6 estabelece proposta de “expandir a oferta de financiamento
que pelo menos 50% das escolas públicas e 25% dos estudantil à educação profissional técnica de ní-
alunos da Educação Básica deveriam ser contemplados vel médio oferecida em instituições privadas de
com oferta de Educação em Tempo Integral. Mas na educação superior”. “A estratégia que a gente deve
vida real, fora do texto da lei, isso muitas vezes tem sido ter é fortalecer e ampliar a participação pública na
feito às custas dos estudantes de EJA. De acordo com di oferta de todos os níveis, modalidades e etapas, in-
Pierro, um exemplo é que, embora esteja sendo flexi- distintamente”, defende Lima.
bilizado neste momento, o primeiro modelo dessa polí- Além dessa prioridade, o professor acredita que,
tica no estado de São Paulo levou as escolas em Tempo em relação à Educação Profissional, o mais impor-
Integral a fecharem à noite, reduzindo matrículas. “Em tante é que as proposições da Conae 2024 estabe-
tese, você pode ter uma escola de tempo integral que leçam caminhos de fortalecer o Ensino Médio inte-
acolha a EJA, diurna ou noturna. Não seriam incompa- grado à Educação Profissional nas redes estaduais.
tíveis. O que é incompatível é essa visão preconceituo- “A Rede Federal deve continuar se expandindo, mas
sa que não incorporou a Educação de Jovens e Adultos tem um teto. As redes estaduais precisam qualificar
como um direito a que o sistema público de ensino tem o espaço escolar de modo tal que a Educação Profis-
que responder”, opina. sional, os laboratórios e as oficinas se tornem espa-
ços naturalmente ocupados. A nossa escola média
Educação Profissional no PNE tem sala de aula, quadra, biblioteca, banheiro, co-
zinha, refeitório. Isso é natural numa escola razoa-
A redação da meta 11, que trata mais especifica- velmente estruturada. Mas a gente não acha neces-
mente de Educação Profissional, é um dos exemplos sariamente laboratório de física, química, biologia,
do que Marcelo Lima destaca como uma priorida- oficinas de usinagem, mecânica, elétrica”, ilustra,
de do PNE atual em fomentar a oferta pública. Ao defendendo que isso é fundamental, inclusive, para
META 11 propor triplicar as matrículas de cursos técnicos, o tornar o Ensino Médio mais atraente. Mas ele faz
texto estabelece também que metade delas deve se
Educação questão de ressaltar que essa análise em nada se
dar na rede pública. Quando se olham as estratégias,
Profissional no entanto, aparecem as contradições, resultado das
aproxima da concepção da proposta da Reforma do
Atenção com Ensino Médio. “Eu não estou falando que o ensino
as estratégias disputas em torno da lei. “A meta não estabeleceu, técnico vai salvar o Ensino Médio. Estou falando
privatistas mas as estratégias permitem as chamadas parcerias que o ensino técnico é um ingrediente necessário à
11.6 e 11.7 [público-privadas]”, reconhece Marcelo Lima. formação do jovem que está passando pelo Ensino
Lá estão presentes as orientações de fortaleci- Médio. Mas não é mais importante do que aprender
mento da Rede de Educação Profissional, Cientí- língua portuguesa, história... É esse conjunto que
fica e Tecnológica (EPCT) e de expansão da oferta dá à vida escolar a riqueza que ela deve ter para
dessa modalidade de ensino nas redes estaduais, que o aluno ali permaneça”, argumenta, defenden-
mas elas são acompanhadas, logo na sequência, do que o PNE precisa pautar a Educação Profissio-
por uma série de propostas que vão na contramão nal articulada com a formação propedêutica.
do que os movimentos sociais
da Educação vêm defenden- O foco da EJA no PNE
do. Uma delas é o incentivo à
EDUCAÇÃO Educação Profissional à dis- A Educação Profissional está presente direta-
tância. “O setor privado ope- mente também na meta 10 do PNE atual, que propõe
PROFISSIONAL À ra muito em EaD”, diz Lima, que pelo menos 25% da EJA no Brasil passe a ser ofe-
DISTÂNCIA É UMA explicando que essa é uma recida de forma integrada, tanto com cursos técnicos,
forma de baratear a forma- no caso do Ensino Médio, quanto à Formação Inicial
CONTRADIÇÃO” ção. E critica: “Educação Pro- e Continuada (FIC) no caso do Ensino Fundamental.
MARCELO LIMA fissional à distância é uma “Essa foi um fracasso grande porque, a meu ver, es-
Professor da Universidade Federal contradição, porque o que tava mal desenhada”, opina Maria Clara di Pierro,
do Espírito Santo mais caracteriza a Educação argumentando que, diante do cenário concreto da-
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quele momento – apenas 2% das nativa. “Você tem subgrupos que Em relação ao PNE em vigor,
matrículas se davam nessa mo- têm outras expectativas, que que- di Pierro também lamenta a falta
dalidade – e do alto custo dessa rem fazer nível superior, que que- de propostas que fortalecessem o
mudança, mais do que ambiciosa, rem simplesmente aprofundar financiamento da EJA. A profes-
essa proposta foi “irrealista”. E a seus conhecimentos, que querem sora lembra que, quando o Plano
pesquisadora defende ainda que é um certificado para poder fazer foi aprovado, em 2014, o Fundeb
preciso relativizar essa “expectati- concurso, para ler a Bíblia... Você ainda usava um fator de ponde-
va de que as pessoas querem fazer tem outras demandas. A elevação ração “negativo” (0,8) para a Edu-
Educação Profissional”. “Existe um de escolaridade é um direito ga- cação de Jovens e Adultos, o que,
mito de que a Educação de Jovens rantido na Constituição e tem que como ela explica, significava que
e Adultos se tornará mais atrativa haver investimento nessa forma- o gestor que optasse por investir
se conseguir articular a formação ção geral também”, diz. nesse segmento teria os mesmos
geral e a formação profissional. A professora avalia que, no custos com uma retribuição – em
Porque o suposto é de que é um texto do PNE atual, a meta mais relação aos recursos do Fundo –
público que já está inserido no importante para a Educação de menor. “Era, na verdade, um de-
mercado de trabalho, que tem no Jovens e Adultos é a 8, que de- sincentivo”, diz. Com a aprovação
trabalho a centralidade da sua termina elevar para no mínimo da lei do Novo Fundeb, em 2020,
vida e que, portanto, se você ofe- 12 anos a escolaridade média da essa distorção foi parcialmente
recer uma possibilidade de qua- população de 18 a 29 anos de ida- resolvida: o fator de ponderação
lificação que seria um passo para de. “Essa eu acho que é a grande subiu, mas sem diferenciar recur-
a melhoria da empregabilidade e meta de equidade que impactaria sos para os ensinos Fundamental
da renda, isso tornaria a EJA mais a Educação de Jovens e Adultos, e Médio na modalidade de Jovens
atrativa. As pesquisas e as práti- particularmente os subgrupos e Adultos, como acontece no ensi-
cas não confirmam totalmente mais jovens, que são os que mais no ‘regular’. Esse ajuste, portanto,
isso”, explica, argumentando que frequentam a EJA”, opina, des- é uma das expectativas em rela-
muitas vezes é difícil para adultos tacando o fato de o texto realçar ção ao próximo PNE. Na verdade,
conciliarem a vida com uma jor- as populações do campo e das re- para di Pierro, a garantia de in-
nada escolar mais extensa. “Sem giões mais pobres do país, além de centivos financeiros para melho-
bolsa de estudos é praticamente estabelecer que se iguale a escola- rar a oferta de EJA deve ser uma
impossível”, alerta. ridade de negros e brancos. consequência – ou uma estraté-
Embora considere a EJA in- Diferente de outros temas gia, nos moldes do PNE atual – de
tegrada à Educação Profissional e segmentos contemplados no uma meta que proponha ampliar
necessária e defenda que ela deve PNE atual, a professora não as matrículas desse segmento.
vir sempre acompanhada de me- identifica ambiguidades nem Outra ausência que a pro-
didas que garantam a permanên- armadilhas nas estratégias que fessora identifica é a uma refe-
cia dos estudantes, di Pierro sus- compõem a meta 9, que trata rência específica à formação de
tenta que, como política pública, mais diretamente da erradica- professores para a Educação de
essa não pode ser a única alter- ção do analfabetismo absoluto e Jovens e Adultos. Ela diz não ter
redução do analfabetismo fun- certeza se o primeiro e principal
cional. Mas ela denuncia ausên- instrumento para dar conta des-
cias. Uma “debilidade” do texto se problema é o PNE, mas o fato
da lei que deveria ser corrigida é que é preciso criar estratégias
UMA ‘DEBILIDADE’ DO TEXTO é, na sua avaliação, o fato de para pautar essa especificidade.
DA LEI QUE DEVERIA SER não haver proposta de expansão O argumento da pesquisadora é
das matrículas de EJA, tal como simples: praticamente todos os
CORRIGIDA É O FATO DE existe em relação à Educação avanços que a Educação viveu,
NÃO HAVER PROPOSTA DE Básica em geral, Educação Pro- como a expansão da Educação In-
fissional e Ensino Superior. Isso fantil, a inclusão de pessoas com
EXPANSÃO DAS MATRÍCULAS num cenário de redução signi- deficiência e mesmo a inserção de
DE EJA, TAL COMO EXISTE ficativa das matrículas nesse conteúdos de história e cultura
segmento. “Seria desejável ter afrobrasileiras no currículo, pro-
EM RELAÇÃO À EDUCAÇÃO metas de ampliação das vagas. moveram mudanças nas diretri-
BÁSICA EM GERAL, Mas não pode ficar só no discur- zes de formação docente. Todos,
so. Que venham metas cabíveis menos a garantia do direito dos
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL para as quais se [garantam] re- adultos à Educação. “Os balanços
E ENSINO SUPERIOR” cursos compatíveis”, sugere. mostram que nem todos os cursos
99
de formação de professores, seja na Pedagogia e me- Valorização dos Sustentando tudo,
nos ainda nas licenciaturas, abordam essa temática”, profissionais o financiamento
lamenta. Entre os “esquecimentos” que ela identifica
no texto do PNE atual em relação à EJA, estão ainda Como a maior parte do PNE A garantia de inves-
referências às pessoas privadas de liberdade e à Edu- atual, as metas que dizem respei- timento de 10% do PIB na
cação de idosos. to à valorização dos profissionais Educação foi a grande bata-
da Educação (16 a 18) também lha travada na tramitação do
Ensino superior no PNE não foram cumpridas, ainda que PNE 2014-2024. Independen-
alguns poucos indicadores apon- temente da avaliação sobre se
As metas que tratam mais diretamente sobre En- a redação final foi uma vitória
tem pequenos avanços. Mas,
sino Superior (12 e 13) mantêm a orientação de expan- ou uma derrota – por autorizar
de acordo com o presidente da
são de matrículas na rede pública – pelo menos 40% –, que parte desses recursos vá
CNTE, Heleno Araújo, os ele-
mas, como todo o Plano, contêm várias estratégias que para a iniciativa privada –, o fato
mentos mais centrais devem e
reforçam as políticas de oferta de vagas na rede privada é que a meta 20 simplesmente
precisam se repetir na próxima
com recursos governamentais que já estavam em curso, não foi cumprida. E é unânime
proposta de Plano a ser elabora-
como Fies e Prouni. “Eu acho que além de repactuar a entre os entrevistados a com-
da pela Conae porque eles ape-
meta, tem que ter estratégias de enfrentamento à priva- preensão de que, sem aumentar
nas reforçam o que já está esta-
tização no setor da Educação Superior”, diz Raquel Dias, o financiamento, não há bússola
belecido pela Constituição e pela
do Andes-SN. Mas ela defende que, para que essa meta que dê conta de guiar os rumos
Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
avance no sentido de reforço do público que o PNE quer da Educação brasileira no sentido
cação (LDB) mas nunca foi obede-
dar, é preciso desenhar no novo Plano estratégias de in- da ampliação do acesso e da qua-
cido. Um dos principais exemplos
vestimento, valorização e recomposição do orçamento lidade do sistema público. “Gran-
é o Plano de Carreira, Cargos e
das universidades públicas. “Nenhuma universidade de parte das metas do PNE dizem
Salários para os profissionais
pública foi criada no governo Bolsonaro”, ilustra. respeito à expansão de etapas, de
da Educação – que vai além do
Outra prioridade que mobiliza esse segmento e que modalidades, de níveis da Educa-
magistério – tendo como base o
Dias defende que conste do novo PNE como forma de ção ou à melhoraria das condições
piso salarial. “Temos que avançar
fortalecer a democracia nas instituições de Ensino Su- de qualidade. Como fazer isso sem
nessa política. O Plano tem que
perior é o fim do mecanismo da listra tríplice, que delega uma estimativa de recursos com-
cumprir esse papel”, diz.
ao MEC o poder de escolher os reitores entre três nomes patíveis?”, indaga Nalu Farenzena,
Essa é uma luta histórica dos
enviados pelas universidades, sem a obrigatoriedade de da Fineduca, justificando a energia
movimentos sociais e sindicais
respeitar o resultado da eleição direta. Embora seja pau- depositada pelos movimentos so-
da Educação. Mas outras pro-
tada há muito tempo, essa discussão ganhou corpo no ciais na defesa da meta 20 do Plano
postas relativas à valorização
último governo, do ex-presidente Jair Bolsonaro, quan- atual e que deve ser repetida na
profissional com menor poten-
do multiplicaram-se as indicações que não respeitavam elaboração do próximo.
cial de mobilização também me-
a escolha da comunidade universitária. Se continua sendo indispen-
recem atenção no momento de
A vice-presidente do Andes chama atenção ainda sável garantir os 10% do PIB para
se formular um novo PNE. Um
para a importância de tornar mais precisa a meta 13, a Educação – e, apesar das difi-
exemplo são as metas 15 e 16, que
que trata da ampliação do número de mestres e dou- culdades, lutar para que o texto
tratam da formação desses pro-
tores entre os professores universitários. Isso porque da lei especifique que o destino
fissionais. Nem a formação ini-
o texto estabelece um percentual de mestres e douto- deve ser exclusivamente o sis-
cial para os profissionais em geral
res que se deve atingir entre os docentes no “conjunto tema público –, ela defende que
nem a formação continuada para
do sistema de educação superior”, sem diferenciar as é preciso avançar no sentido de
os professores foram alcançadas,
instituições públicas e privadas. Segundo Dias, a alta apontar, já no PNE, possíveis fon-
ambas propostas no PNE atual,
quantidade de mestres e doutores nas universida- tes desses recursos. E, segundo
foram cumpridas, mas o impor-
des públicas puxa os indicadores da meta toda para a pesquisadora, isso passa pelo
tante aqui é chamar atenção
cima, invisibilizando o fato de que muitas instituições reconhecimento de que o ente
para a forma como se perseguiu
privadas continuam não tendo professores com essa federado que mais tem condições
a meta, já que, segundo o presi-
qualificação em número suficiente. de reforçar esse aporte orçamen-
dente da CNTE e o próprio texto
Não apenas no Ensino Superior, mas talvez com tário é a União. “Não faz sentido
do documento-base que orientou
impacto maior nesse segmento, o novo PNE precisa pensar numa política de finan-
as conferências estaduais e mu-
também dar conta da recente atualização da Lei de Co- ciamento que garanta Custo Alu-
nicipais antes da Conae 2024, o
tas, que tornou essa política mais inclusiva, ampliando no-Qualidade sem a complemen-
pouco crescimento que houve
o acesso. “Acho que no Plano Nacional de Educação tem tação compatível da União”, diz.
nas licenciaturas como parte da
que ter um avanço para uma política de ações afirmati- Não por acaso, essa foi a concep-
formação dos professores, por
vas mais ativa. Porque hoje ela garante vaga, mas não ção que orientou uma das mudan-
exemplo, se deu por EaD e “de
garante a permanência do aluno”, opina Daniel Cara. ças mais relevantes nas políticas de
forma precária”.
10
Educação que aconteceram entre o PNE 2014 e o que vai ser construído para a Educação Básica, ainda faltaria um bocado para
agora – e que precisará ser levado em conta na discussão do texto do fu- atingir os 10% que o PNE deve estabelecer como míni-
turo Plano: a aprovação do Novo Fundeb. Entre outras mudanças, a lei mo para a Educação (pública) como um todo.
14.113/2020 estabeleceu um aumento da complementação do governo fe- E essa não é uma contradição. Por um lado, o que
deral de modo a alcançar 23% do Fundeb em 2026. Mas isso, de acordo com esse cálculo mostra é que é necessário ter mais recur-
a pesquisadora, não é suficiente para dar conta das propostas necessárias sos também para o Ensino Superior – que não é Educa-
para um novo PNE, mesmo que se olhe apenas aquelas relacionadas à Edu- ção Básica – e as áreas e iniciativas que concretamen-
cação Básica. E um dos motivos é que, apesar de ampliado, o percentual de te precisam desse investimento talvez devam estar
participação da União continua tendo como referência o total de recursos lembradas de alguma forma no novo PNE. A garantia
dos outros entes federados – os 23% são do total de dinheiro que estados e ampliação da assistência estudantil e a manutenção
e municípios depositam no Fundo. De acordo com Farenzena, os cálculos da infraestrutura das universidades públicas são ape-
mostram que o total de recursos do Fundeb hoje representa cerca de 2,5% nas dois exemplos mencionados por Farenzena. Por
do PIB do país – logo, mesmo considerando-se que esse volume é voltado só outro, no que diz respeito à Educação Básica – tanto
nas suas etapas obrigatórias, de ensinos Fundamental
e Médio, quanto nas formas de Educação Profissional
e EJA –, ela propõe um diálogo entre diferentes mo-
mentos da lei do Novo Fundeb. Isso porque, ao mes-
É UNÂNIME ENTRE mo tempo em que parou em 23% a obrigatoriedade
de complementação da União para o Fundeb, a lei do
OS ENTREVISTADOS A Novo Fundeb incluiu no texto constitucional a deter-
COMPREENSÃO DE QUE, SEM minação de que, “para exercer sua função redistribu-
tiva e supletiva”, como explica Farenzena, o governo
AUMENTAR O FINANCIAMENTO, federal agora deve ter como referência a garantia de
NÃO HÁ BÚSSOLA QUE DÊ Custo Aluno-Qualidade, ou seja, o CAQ . Logo, se os
23% não são suficientes para isso, é preciso ter mais
CONTA DE GUIAR OS RUMOS DA dinheiro. E ela acredita que o próximo PNE deve ser
EDUCAÇÃO BRASILEIRA instrumento de pressão nessa direção.
Sobre isso, ela lembra que entidades como a Fine-
NO SENTIDO DA AMPLIAÇÃO duca e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação
DO ACESSO E DA QUALIDADE têm defendido – e devem levar para a Conae – que
esse dinheiro a mais seja garantido por dentro do pró-
DO SISTEMA PÚBLICO” prio Fundeb, aproveitando o trecho da lei que trata da
complementação da União especificamente em rela-

“O CAQi é um indicador que mostra


quanto deve ser investido ao ano por
aluno de cada etapa e modalidade
da educação básica. (...) Para realizar
este cálculo, o CAQi considera
condições como tamanho das
turmas, formação, salários e carreira
compatíveis com a responsabilidade
dos profissionais da educação,
instalações, equipamentos e
infraestrutura adequados, e insumos
como laboratórios, bibliotecas,
quadras poliesportivas cobertas,
materiais didáticos, entre outros,
tudo para cumprir o marco legal
brasileiro. Assim, o CAQi contempla
as condições e os insumos materiais
e humanos mínimos necessários
para que os professores consigam
ensinar e para que os alunos possam
aprender. (..) Já o CAQ avança
em relação ao padrão mínimo
[buscando] o padrão de qualidade
que se aproxima dos custos dos
países mais desenvolvidos em
termos educacionais”.
Fonte: site da Campanha Nacional
Pelo Direito à Educação
11

ção ao Valor Aluno-Ano. O texto


estabelece que esse recurso fede-
ral deve ser de, no mínimo, 10,5%
do total dos fundos estaduais e A BATALHA
distrital e a proposta que a pes-
quisadora também defende é que POR UM PNE
o governo vá além desse mínimo PROGRESSISTA,
para garantir os padrões de quali-
dade que integram o CAQ. “Acho QUE GARANTA
que deveria constar no novo PNE O DIREITO À
a manutenção de estratégias refe-
rentes à garantia de Custo Aluno- EDUCAÇÃO
-Qualidade Inicial [ CAQi ] e de PÚBLICA COM
Custo Aluno-Qualidade, e que
essa garantia seja feita por meio QUALIDADE
da complementação da União EM TODOS OS
ao Fundeb”, defende, lembrando
ainda a importância de a nova lei SEGMENTOS,
“reafirmar a atuação dos órgãos COMEÇA NA
de controle tanto estatal quanto
social, para fiscalizar e acompa- CONAE 2024,
nhar tanto os recursos do Fundeb MAS NÃO
quanto os demais recursos que
são vinculados à manutenção e TERMINA NELA”
desenvolvimento do ensino”.

A conjuntura dez anos depois


A batalha por um PNE progressista, que garan- extrema-direita, não apenas como influência na sociedade mas
ta o direito à Educação pública com qualidade em também como representação parlamentar, é uma novidade que
todos os segmentos, começa na Conae 2024, mas pode tornar o trabalho no legislativo ainda mais difícil. “Nesse
não termina nela. Se a lei atual demorou quatro PNE vão ter embates que não tiveram no passado”, alerta Cara.
anos para tramitar, não são propriamente otimis- E esse exercício começa agora. “A própria Conae já não vai ser
tas as expectativas de aprovação da próxima. No um passeio. Todos os campos vão estar presentes na Conferência:
que diz respeito ao Executivo, o país tem outro go- as fundações empresariais, MEC com influência neoliberal e a
verno e outra gestão no Ministério da Educação extrema-direita”, alerta Cara. De fato, vários entrevistados
mas, na avaliação de Daniel Cara, a concepção neo- desta reportagem que participaram de etapas estaduais
liberal de Educação que embasou a meta 7 e outras das conferências ou estão acompanhando de perto a orga-
brechas que atravessaram o PNE atual não apenas nização da própria Conae apontam que, embora minori-
permanecem como se tornaram mais fortes, com tários, os grupos de ultradireita estão também disputando
uma presença ampliada de representantes das esse espaço. Com isso, além da batalha pelo fortalecimento
fundações empresariais na estrutura da Pasta. “O do segmento público em oposição aos interesses priva-
PNE é fruto de um tensionamento. Tem os grupos dos que esses grupos também representam, podem en-
empresariais incidindo sobre o texto, não via con- trar na pauta temas alheios ao direito à Educação que
ferência, em 2010, mas via articulações por cima, dominaram o debate político nos últimos qua-
que é o que eles fazem e farão de novo”, alerta Fer- tro anos, como militarização das escolas,
nando Cássio, professor da USP. ensino domiciliar e doutrinação.
Também no Congresso o cenário se complexifi- “Vai ser uma guerra absoluta”,
cou. No período entre 2010 e 2014, na avaliação de resume Cara. A reportagem
Cara, os movimentos sociais progressistas da Educa- entrou em contato com o
ção tinham mais força e capacidade de articulação MEC, via assessoria de im-
nas Casas legislativas – ele exemplifica com a consta- prensa, mas não obteve
tação de que, embora tenham disputado o texto, na- retorno sobre o pedido
quele momento as fundações empresariais tinham de entrevista nem
maior penetração no Executivo, por meio do próprio resposta às pergun-
MEC, do que no Parlamento. Hoje, o crescimento da tas enviadas
12

Vai ter #RevogaNEM na Conferência?


Com a queda de braço em torno da votação do Projeto de Lei que modifica a Reforma do Ensino
Médio, mobilização em relação ao tema ganha centralidade na Conae Extraordinária

CÁTIA GUIMARÃES

O
combinado era uma reportagem de balanço e perspectivas para o novo PNE, o Em 2023, movimentos
sociais mobilizam
Plano Nacional de Educação, que será discutido na Conferência Nacional de Edu- contra a votação
cação (Conae) Extraordinária que acontece agora em janeiro de 2024 – e foi o que do substitutivo que
você leu nas páginas anteriores. Mas aí a conjuntura atravessou a pauta. reforça a Reforma
Já avançava dezembro quando esta matéria começou a ser redigida e foi surpreendida
pela profusão de notas, convocação de manifestações de rua e artigos na imprensa, indicando
um novo momento de mobilização de educadores e militantes, que reagiam a mais um capí-
tulo da (longa) novela da Reforma do Ensino Médio. É que o deputado Mendonça Filho (União
Brasil – PE) tinha acabado de apresentar o relatório com um substitutivo ao texto do Projeto
de Lei (PL) 5.230/2023, aquele que o Executivo submeteu ao Congresso para modificar o Novo
Ensino Médio (leia, na edição 92 da Poli, entrevista de balanço do projeto, com Monica Ribei-
ro). E as alterações propostas pelo relator retomavam alguns dos pontos mais polêmicos da Re-
forma que, a partir dos resultados de uma consulta pública, o governo estava tentando mudar.
Entre as medidas mais criticadas do substitutivo – que alguns militantes da Educação
chegaram a chamar de uma reedição da Medida Provisória 746, que deu origem à Reforma
– estavam a redução da carga horária mínima da Formação Geral Básica para 2,1 mil horas
(em vez deo 2,4 mil); a autorização para a Educação a Distância na formação geral; o reconhe-
cimento do notório saber como suficiente para a docência na Educação Profissional Técnica
de nível médio; e a retomada dos mesmos cinco itinerários formativos estabelecidos anterior-
mente pela Lei 13.415/2017 – que o PL 5.230 tinha proposto substituir por
percursos de aprofundamento, que, embora guardassem a mesma lógica de
organização curricular, tinham diferenças que reduziam a fragmentação.
Não foi propriamente uma surpresa: afinal, o relator do PL na Câmara é
ninguém menos do que o ex-ministro da Educação que, no governo Michel
Temer, instituiu a Reforma do Ensino Médio que o PL 5.230 queria modifi-
car. “Mendonça Filho foi o sujeito que assinou a Medida Provisória que nos
colocou nessa tragédia em que estamos”, lembra Fernando Cássio, professor
da Universidade de São Paulo (USP) e integrante da Rede Escola Pública e
Universidade (Repu). De fato, o voto do relator não esconde o tom elogioso à
Reforma que o projeto analisado pretendia modificar. “A reforma do ensino
médio perpetrada pela Lei nº 13.415, de 2017, com a oferta de itinerários for-
mativos, oferece aos estudantes a chance de refletirem sobre seus sonhos,
acerca de quem são e o que desejam para as suas vidas. O modelo foi cons-
13

NÓS VAMOS DAR


A VIDA AGORA NO
FINAL DO ANO PARA
EVITAR QUE O PL
5.230 SEJA VOTADO
NA CÂMARA. ELE
JANE DE ARAÚJO / AGÊNCIA SENADO SÓ VAI SER VOTADO
truído para uma juventude criativa, esta matéria estava sendo escrita, Primeiro da direita POSTERIORMENTE
participativa e atuante. A proposta enquanto entidades como a Confe-
para a esquerda,
Mendonça Filho, À DELIBERAÇÃO
foi concebida para promover uma deração Nacional dos Trabalhadores
educação contemporânea, que pre- da Educação (CNTE) e a Campanha
Ministro da
Educação que criou DA CONAE. E
pare os jovens para o mundo do tra- Nacional pelo Direito à Educação po-
a Reforma, agora é
relator do projeto VAI SER MUITO
balho e para uma vida significativa sicionavam contra o parecer do rela-
em sociedade”, diz um trecho do tex- tor, considerando-o um retrocesso,
que a modifica
DIFÍCIL PARA OS
to, sem mencionar os inúmeros pro- o movimento Todos pela Educação, PARLAMENTARES,
blemas identificados na experiência que reúne fundações empresariais,
concreta do Novo Ensino Médio em avaliava o texto como um avanço
EM ANO ELEITORAL,
algumas redes de ensino, que inclu- em relação à proposta do governo. IREM CONTRA A
sive viraram notícia frequente na “Os mesmos que elaboraram a Re-
grande imprensa no início daquele forma estão aí de novo, reformando
CONFERÊNCIA
mesmo ano de 2023. Por tudo isso, a Reforma”, ironiza Fernando Cássio, DE EDUCAÇÃO”
Fernando Cassio não poupa crí- referindo-se não apenas ao relator,
ticas ao fato de o governo federal mas também ao que caracteriza DANIEL CARA
não ter se mobilizado politicamente como uma forte presença dessas en- Professor da Universidade de São Paulo
no Parlamento contra a indicação tidades no interior do MEC.
de Mendonça Filho como relator. O fato é que a primeira onda de
tarde da data em que aconteceria a votação, um acordo
“O Ministério da Educação não mo- mobilização contra o substitutivo
garantiu o adiamento da discussão para março de 2024,
veu uma palha para evitar isso”, la- surtiu efeito. A votação do relatório
permitindo mais tempo para discussão.
menta. E completa: “Essa não é uma chegou a ser agendada para o dia 12
É nesse ponto que toda essa conjuntura se encon-
boa sinalização para a sociedade”. de dezembro mas, diante das rea-
tra novamente com a pauta original da matéria de
A questão é que “sociedade” en- ções, na véspera o governo retirou o
capa desta edição da Poli, que você leu nas páginas an-
volve muita gente. E uma mostra pedido de urgência que exigia que a
teriores. Primeiro, porque alguns pontos da Reforma
disso é que, no momento em que tramitação do PL acontecesse em até
do Ensino Médio impactam (e limitam) diretamente
45 dias. Foi um suspiro de alívio para
proposições e estratégias que o documento-base da
os movimentos que lutam contra a
Conae 2024 sugerem para o próximo PNE. Segundo,
Reforma, mas durou pouco. No dia
porque as conferências são o espaço privilegiado em
seguinte, a Câmara dos Deputados
que a sociedade civil organizada debate, disputa e diz
aprovou novo pedido de urgência
o que quer sobre os rumos das políticas públicas – e a
de tramitação do PL. A votação foi
expectativa é que as instâncias de representação, como
novamente agendada para o dia 19.
o Congresso, saibam ouvir o que a participação social
E os movimentos sociais dobraram
direta defende. Não por acaso, em entrevista concedi-
a aposta na mobilização, chamando
da à reportagem antes de toda essa reviravolta, Daniel
atos de rua, organização de manifes-
Cara, professor da Universidade de São Paulo (USP) e
tações coletivas pelas redes sociais e
ex-coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à
abaixo-assinados enviados aos par-
Educação deu o tom do que agora se sabe que se deve
lamentares, além da pressão direta
esperar da Conferência. “Nós vamos dar a vida agora
no Congresso, que ganhou apoio de
no final do ano [de 2023] para evitar que o PL 5.230 seja
deputados de diversos partidos. Na
votado na Câmara. [Porque aí] ele só vai ser votado
posteriormente à deliberação da Conae. E vai ser mui-
Ao longo de 2023,
imprensa deu destaque aos to difícil para os parlamentares, em ano eleitoral, irem
problemas da Reforma contra a Conferência de Educação”, aposta.
14 FINANCIAMENTO

A REFORMA
O
arroz e o feijão seriam quase 20% mais baratos se não fos-
sem os impostos, carne vermelha e peixes, 30%. A infor-
mação é do site ‘Impostômetro’, mas não é difícil encontrar

TRIBUTÁRIA
tabelas e campanhas que critiquem a alta carga tributária
brasileira. Por outro lado, como manter políticas de Saúde, Educação,
vias públicas, serviços de energia e aposentadorias sem a arrecada-

VEM AÍ
ção do governo? Essas questões não são contraditórias, de acordo com
os especialistas ouvidos por esta reportagem, e o motivo, como diz a
letra da banda As Meninas “todo mundo já conhece: o de cima sobe e
Primeira etapa simplificará estrutura, o de baixo desce”.
mas impactos sobre Saúde e Educação Como assim? A explicação está na forma de arrecadação que exis-
te no Brasil, feita principalmente a partir do consumo em que todos
ainda estão em aberto pagam a mesma proporção de tributos, sem distinção de renda. Esse
modelo é chamado de regressivo, ou seja, quanto menor a renda,
JULIANA PASSOS
maior é a cobrança. “Na compra do arroz e do feijão, o rico e o pobre
pagam o mesmo tributo. É claro que o rico consome mais e, portanto,
em valores absolutos, ele paga mais tributos, mas em percentual da
renda esse valor é menor. É isso que a gente chama de uma carga tri-
butária regressiva”, explica a professora do Kings College, na Inglater-
ra, Natássia Nascimento, especialista em tributação e desigualdade.
A cobrança a partir do consumo também é chamada de indireta. Do
lado oposto estão os tributos diretos, relacionados em especial à ren-
da, e a possibilidade de uma cobrança de forma progressiva, em que
quem ganha mais paga uma proporção maior.
O que se chama de carga tributária é calculada a partir da soma
de tudo que o governo arrecada com tributos em relação ao Produto
Interno Bruto (PIB) a cada ano. No Brasil, esse valor está em torno de
33%, sendo 15% relativos ao consumo, 8% sobre renda e lucros e 8%
em contribuições sociais, de acordo com dados de 2021 da Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Um per-
centual abaixo de países desenvolvidos como a França (45%) e Itália
(42%), que também apresentam uma taxa de consumo menor em rela-
ção aos outros itens. No entanto, a carga tributária brasileira é maior
do que a de países com economias similares na América Latina, como
o México (17%), com baixa contribuição social e impostos equivalentes
sobre renda e consumo. “Carga tributária elevada não é
problema, principalmente quando lembramos que
temos um país de mais de 200 milhões de pes-
soas, um sistema educacional público, um siste-
ma de saúde, assistência social. Tudo isso tem
que ser financiado de uma forma justa”, diz
Nascimento.
A necessidade de mudar a cobrança
de tributos no Brasil é uma discussão an-
tiga e avançou em 2023, com a aprovação
da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2019 pelo Congres-
so no final de dezembro. Considerado pelo governo como uma pri-
meira etapa de mudanças, o texto trata principalmente de unificar
tributos e alíquotas cobradas justamente na área de consumo. Para
os especialistas ouvidos pela Poli, a reforma é necessária, mas o tex-
RAWPIXEL/FREEPIK

to aprovado pelos parlamentares não toca em pontos essenciais. “A


estrutura tributária é da década de 1960 e é mesmo muito complexa,
mas a proposta não vai enfrentar o principal problema, que é uma
estrutura tributária muito injusta”, diz o professor da Universidade
de São Paulo (USP), José Marcelino Rezende Pinto, especialista em fi-
nanciamento da Educação.
15

Francisco Funcia, vice-presidente da Asso-


ciação Brasileira de Economia da Saúde (Abres), Quais as formas de arrecadação
segue a mesma linha. “A simplificação é um dos de tributos?
princípios da tributação que incide sobre produção
e consumo. De um lado, facilita a vida da gestão Os governos têm cinco formas de arrecadação de tributos. A
de negócios, o que tem um efeito positivo para a mais comum são os impostos, que não possuem um destino es-
atividade econômica, e torna mais transparente o pecífico, embora também não estejam livres de qualquer vincu-
processo de tributação. Porém, a proposta atual é lação. A Constituição prevê, por exemplo, que 18% da arrecada-
parcial. É preciso colocar na agenda a necessidade ção de impostos da União seja destinada à Educação, enquanto
de trazer a justiça tributária”, defende. para estados e municípios a determinação é de 25%. Já as taxas
preveem a cobrança por uma prestação de serviço direta, como
O que a reforma propõe? a emissão de documentos ou a coleta de lixo. E há ainda dos ti-
pos de contribuições, que têm destino definido: as de “melhoria”,
A aprovação da reforma em dezembro de 2023 em desuso, que previa a cobrança específica para a realização
levou o país a adotar o Imposto sobre Valor Agre- de obras públicas, mas em desuso, e as “especiais”. No segundo
gado (IVA), que será subdividido em dois tributos caso estão o salário-educação e a Cofins, a Contribuição para o
principais: a Contribuição sobre Bens e Serviços Financiamento da Seguridade Social. Por último, há a previsão
(CBS) e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Há de empréstimos compulsórios, em que o governo pega empres-
ainda um terceiro, também de âmbito federal: o tado do cidadão com garantia de devolução, mas isso só pode
Imposto Seletivo, apelidado de Imposto do Pecado, ocorrer em casos de calamidade pública. Entre 1986 e 1988, foi
que incidirá sobre produtos prejudiciais à saúde e cobrado um percentual de cerca de 30% sobre a venda de gaso-
ao meio ambiente. A relação ainda não está defi- lina e aquisição de carros novos.
nida, mas entre os produtos que devem entrar no
pacote estão cigarros e alimentos com excesso de
açúcar. O primeiro ano do novo modelo em vigor cia para complementar o orçamento da União para a Pasta da Educa-
será 2026, ainda em fase de teste. ção é a criação do Imposto Seletivo, que passará a compor a arrecada-
A CBS corresponde à unificação das contribui- ção dos mínimos constitucionais. Há ainda uma preocupação com a
ções federais PIS (Programa de Integração Social) manutenção do salário-educação, contribuição de responsabilidade
e Cofins (Contribuição para o Financiamento da das empresas, cobrada sobre o valor da folha de pagamento, que é
Seguridade Social), o que gera preocupações sobre destinada diretamente a programas e projetos da Educação Básica.
o orçamento da Seguridade Social – que envolve O texto da Reforma dá o prazo de 90 dias após a aprovação para o
Saúde, Previdência e Assistência Social –, já que Executivo encaminhar o novo modelo da tributação em folha. Logo,
significa o fim de recursos nominalmente assegu- no momento em que esta edição da Poli foi concluída, esse ponto ain-
rados para a área. “O orçamento da seguridade so- da estava em aberto. “Por enquanto, não há previsão de alteração no
cial, tal qual concebido pela Constituição Federal, salário-educação, mas é um risco. Só sabemos que haverá uma contri-
ficou fortemente atingido. Da maneira como está buição sobre bens e serviços, mas nada está regulamentado, tudo vai
sendo apresentado, não haverá mais tributos dire- depender dos projetos de lei que forem encaminhados na sequência”,
tamente vinculados e é quase como se o orçamento avalia Marcelino.
da Seguridade ficasse dependente do chamado or- FREEPIK
çamento fiscal, decidido ano a ano pelo Congresso”,
avalia Francisco Funcia. Por outro lado, ele não vê
alterações na capacidade de arrecadação para o
SUS, Sistema Único de Saúde, uma vez que a Cons-
tituição estabelece que o piso da saúde correspon-
de a 15% da receita corrente líquida, ou seja, de
tudo que é arrecadado pelo governo.
A preocupação que havia na Educação em rela-
ção à reforma tributária era a inclusão do Imposto
sobre Produtos Industrializados (IPI) na CBS. No
entanto, o Imposto foi retirado do pacote na vota-
ção final realizada na Câmara dos Deputados. Caso
fosse mantida, a inclusão do IPI como ‘contribui-
ção’ e não mais como ‘imposto’ retiraria recursos
federais da Educação, uma vez que a Constituição
prevê que o mínimo constitucional de 18% seja
proveniente apenas de “impostos”. Outra boa notí-
16
MARCIA SANTOSO / UNSPLASH
Uma das principais mudan-
ças trazidas pela reforma é a
união do ICMS, o Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e
Serviços, e o ISS, Imposto sobre
Serviços de Qualquer Natureza.
O primeiro é de competência
estadual e o segundo municipal.
Além da unificação, também está
prevista a mudança do local de
cobrança: em vez do estado onde
o bem é produzido, será feita
naquele em que é consumido. O
objetivo dessas medidas é colo-
car fim à ‘guerra fiscal’, em que os
estados e municípios tentavam
reduzir os impostos para atrair
um maior número de fábricas
e empresas. “O peso de pagar o
tributo não é da população onde
está a fábrica, é onde está o con-
sumidor final. E acho isso justo”,
pontua Marcelino. Para compensar as perdas de “A opção de cashback está ali para eliminar a regressividade. Então, na
arrecadação dos estados, como será o caso de São verdade, elas são neutras”, diz e lembra que as isenções podem levar a
Paulo, que concentra um grande número de indús- uma redução de arrecadação por meio do consumo, com necessidade
trias, a proposta prevê a criação de um fundo com de contrapartida. “E o melhor lugar para compensar isso é justamente
recursos federais. O fundo funcionará até 2032 e, na renda dos mais ricos”, propõe a economista.
no ano seguinte, o ICMS será definitivamente ex- Em relação às projeções sobre o aumento ou diminuição da re-
tinto. O texto também prevê a criação de um outro ceita para Saúde e Educação, Marcelino entende que ainda é cedo
fundo com o intuito de reduzir as desigualdades de para saber. “Acho que temos que esperar um pouco ainda. Creio que
arrecadação entre os estados. os valores para a Educação tendem a ser preservados num primeiro
Os novos tributos ainda dependem de leis com- momento. A questão será como os novos tributos responderão, via
plementares para serem regulamentados, mas es- vinculação, às dinâmicas da economia”, explica.
sas legislações precisam prever algumas isenções. O economista da Abres acrescenta a preocupação da pouca au-
Entre os setores que podem conseguir isenção total tonomia dada aos municípios para gerir seus recursos, uma vez que
estão os itens da cesta básica, já outros podem al- a reforma pode agravar uma tendência de centralização de recursos
cançar até 60%, como bens para saúde, educação, por parte da União. Nos cálculos feitos pela Abres, na atual divisão
medicamentos, transporte coletivo de passageiros. dos tributos da União fica com 57% de tudo que se arrecadou, estados
No entanto, a Proposta prevê que esses benefícios com 25% e municípios com 18%. “A centralização da competência de
tenham contrapartida com taxação maior sobre tributar na União, e contraditoriamente, há crescentes obrigações
outros produtos. por parte dos municípios nas áreas sociais, que têm levado a um cres-
Outra possibilidade colocada pela PEC é a opção cimento de romarias de prefeitos a Brasília”, conta. Em sua avaliação,
de cashback para beneficiários de programas sociais. a criação do IBS torna os municípios mais dependentes dos repasses
Nesse caso, ao realizarem compras de itens que com- de instâncias superiores e a falta de competência para os municípios
põem a cesta básica e medicamentos, um percen- criarem seus tributos incentiva a busca individual por recursos, as-
tual dos novos tributos será depositado no cartão do sim como aumenta a importância das emendas parlamentares. Para
beneficiário. Mais uma vez, a forma e as regras para Funcia, a possibilidade de editar aumentos do IPTU, o Imposto sobre
essa devolução ainda precisam ser regulamentadas a Propriedade Predial e Territorial Urbana é insuficiente. “Nós pre-
por lei. “A maior parte do consumo da população é cisaríamos discutir uma reestruturação da competência de tributar
justamente os itens da cesta básica e medicamentos. no Brasil, de tal forma que aumentasse a participação dos tributos
Quando a gente tem uma isenção, você está fomen- municipais. A discussão da reforma tributária não pode ficar restrita
tando que as pessoas consumam mais e melhor”, diz ao tema em si, ela tem que discutir como possibilitar uma maior dis-
Nascimento. No entanto, ela pondera que não se tribuição de recursos entre as três esferas de governo, porque tributo
trata de uma política de redução de desigualdades. é financiamento de despesas”, opina.
17
17
H
Justiça tributária Nascimento defende também
a taxação de lucros e dividendos, que
Uma das mudanças mais esperadas da reforma, hoje são isentos no Brasil.
que levaria ao aumento da arrecadação e o conse- “Uma pessoa
quente aumento de recursos previstos pela Cons- pode ganhar
tituição para Saúde e Educação, ficou para uma R$ 300 mil
suposta segunda etapa. “Eu achava que a parte por mês e ter
da renda seria a primeira a ser alterada”, confessa a maior par-
Nascimento, sob o argumento de que esta seria a te [dessa renda]
parte mais fácil. “O Imposto de Renda é progressivo isenta porque a de-
e bem estabelecido. A gente só precisa estratificar claração é feita como lucros e
mais as rendas ou aumentar a alíquota máxima”, dividendos”, exemplifica e contes-
analisa. Ela considera uma boa fatia a arrecada- ta o argumento de que a taxação
ção do Imposto de Renda representar 22% do país, de lucros e dividendos poderia ini-
mas é preciso uma cobrança mais justa. “Quando a bir investimentos e o crescimento
gente pensa que 5% da população brasileira ganha da economia. “Essa ideia de que a
acima de R$ 5 mil, então ele está tributando os mais gente não pode tributar os mais ri-
ricos. Mas não é bem isso, porque dentro desses 5%, cos porque são eles que investem nunca
há pessoas que ganham R$ 300 mil por mês e que foi observada na realidade. A teoria existe,
pagam os mesmos 27,5%, o que torna o IR regressi- mas empiricamente isso nunca foi observado.
vo na última faixa de renda”, compara. Pelo contrário, a partir dos anos 1980 e, principal-

RAWPIXEL/FREEPIK
De acordo com os entrevistados desta reporta- mente, de 2000 em diante, com uma desregulamentação do mercado
gem, a proposta aparentemente mais promissora financeiro, o que houve foi um acúmulo de renda na mão dos mais
dessa primeira fase é a inclusão de uma taxação ricos em ativos financeiros que não geram consumo ou emprego, ape-
progressiva na transferência de título de proprie- nas renda de juros”, diz.
dade, tanto no país quanto no exterior. Atualmen- A combinação de incentivos fiscais à indústria com juros mais
te, a arrecadação sobre a propriedade responde por baixos para fomentar determinados setores, em especial os inovado-
5% da arrecadação. Apesar de a progressividade res, aliada ao aumento dos tributos para os mais ricos, é vista como
estar prevista, a alíquota máxima se manteve em uma boa combinação para geração de empregos e diminuição da desi-
8% sobre a diferença entre o valor pago pelo imóvel gualdade. “Diminuir a taxa de juros é uma política monetária expan-
e o valor vendido. “Se houvesse uma elevação do sionista, com o objetivo de expandir o PIB, a produção interna. Já o
percentual atual, em 8%, nós teríamos um poten- aumento dos tributos é uma política fiscal contracionista, porque, em
cial grande de receita”, projeta Marcelino. tese, retira renda da população. Mas se esse aumento está focado nos
O texto também prevê o pagamento do Impos- mais ricos, há a redução da desigualdade”, explica.
to sobre a Propriedade de Veículos Automotores Em paralelo à aprovação da reforma, ainda no final de dezem-
(IPVA), taxação de veículos aquáticos, como lan- bro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a tributa-
chas e iates, e aéreos, como jatinhos. No entanto, na ção de 15% sobre fundos exclusivos, formados por fortunas acima
avaliação de Nascimento e Marcelino, o impacto de R$ 10 milhões e offshores, ou seja, aplicações financeiras no
dessa inclusão é simbólico. “Havia uma defesa de exterior. De acordo com reportagem do G1 de 14 de dezembro,
que iates e helicópteros fossem taxados, mas a ren- os cálculos do governo mostram que existem 2,5 mil brasileiros
da é tão concentrada que o efeito será a demonstra- com renda no exterior e a expectativa é arrecadar R$ 30 bilhões
ção de justiça, mas não creio que a mexida do IPVA até 2025. Nascimento elogia a iniciativa, mas pondera que, as-
vá avançar na arrecadação”, diz Nascimento. sim como o IPVA para jatos e iates, essa medida é simbólica. “Isso
A professora acrescenta que outras formas de não significa dizer que essa é uma arrecadação irrelevante, mas
taxação das riquezas são necessárias para a dimi- a taxação dos fundos não costuma ser alta porque não é possível
nuição da desigualdade, como um imposto sobre acabar com o patrimônio. É preciso taxar rendimentos, lucros e
operações financeiras e propriedade, mas explica dividendos”, avalia.
que isso representa uma parcela muito pequena Mesmo sendo uma iniciativa bem-vinda, os analistas ouvidos
da nossa carga tributária. Segundo ela, entre os pela reportagem aguardam mais recursos para as áreas sociais e
impostos de propriedade já existentes e que pode- esperam que a segunda etapa da reforma, que deve incidir sobre a
riam resultar em mais receita está o ITR, Imposto renda, venha em seguida. Funcia lembra que os gastos com Saúde
Territorial Rural. “O principal problema desse im- no Brasil respondem a 9,6% do PIB, sendo apenas um terço cus-
posto é que ele é autodeclarado”, e, de acordo com teado com recursos públicos. Já Marcelino se refere à Educação
Nascimento, é difícil para o Estado fiscalizar o ta- pública, cujo investimento atualmente corresponde a 5% do PIB,
manho real da área – diminuída – e o que é área e segue com a meta de alcançar os 10%, conforme prevê o Plano
utilizada – inflada. Nacional de Educação atual (ver matéria na pág. 2).
18 ENTREVISTA

ESSA NOVA DIREITA SÓ ACEITA A


DEMOCRACIA DA BOCA PRA FORA”
Rejane Hoeveler

N
o momento em que esta edi- A EXTREMA-DIREITA VEM CRESCENDO EM VÁRIAS MILEI É UM BOLSONARO
ção da Poli estava sendo con- PARTES DO MUNDO. RECENTEMENTE, NO FINAL ARGENTINO?
cluída, no final de dezembro DE 2023, JAVIER MILEI FOI ELEITO PRESIDENTE DA Ele é e não é. Digamos que ele
passado, o mundo tinha notícia ARGENTINA E, EMBORA NÃO SE SAIBA AINDA SE VAI é, mas com algumas diferenças,
das primeiras iniciativas do novo FORMAR GOVERNO, GEERT WILDERS FOI O MAIS tanto para pior como para melhor.
governo argentino. Enquanto deci- VOTADO NOS PAÍSES BAIXOS. ESSES SÃO SINTOMAS A plataforma anarcocapitalista,
sões como o corte de orçamento e DE UM MESMO FENÔMENO? como ele fala, com a sigla Ancap,
a desvalorização da moeda expres- é muito pior e vem com uma
De fato, essas duas notícias no segundo semestre
savam a pauta econômica da aus- radicalidade e força muito
de 2023 nos obrigam a reconhecer que essa
teridade, um pacote de medidas maior em comparação ao que
ascensão global de forças de ultradireita veio
repressivas contra manifestações era o [ex-ministro da economia]
para ficar e ainda está longe de se desvanecer.
de rua reforçava o caráter parcial, Paulo Guedes, que não foi um
Isso talvez possa ser explicado pelo fato de que
relativo e, contraditoriamente, au- ponto central na campanha
toritário do discurso de liberdade
as condições sociais, políticas, econômicas,
do Bolsonaro, embora tenha
adotado pela extrema-direita que ideológicas e culturais que são o chão histórico,
sido importante. No mais, eles
tem crescido. No mesmo período o solo fértil, para o nascimento e o crescimento
compartilham grande parte das
em que a eleição de Javier Milei de fenômenos como o bolsonarismo no Brasil, o
posições como, por exemplo,
recolocou a América Latina nesse trumpismo nos Estados Unidos e a eleição de Boris
misoginia, homofobia e racismo.
tabuleiro da ultradireita mundial, Johnson na Inglaterra, permanecem. Há também O Milei fala que províncias
a Europa, onde essas experiências processos que não são propriamente eleitorais, inteiras da Argentina, como Jujuy
têm sido mais fartas, viu outro país como o Brexit, no qual a islamofobia e a questão e Salta, não deveriam ser parte do
votar massivamente num líder des- antimigratória da Europa, que é extremamente país por questões étnico-raciais,
se espectro político – embora não racista, esteve muito mais presente. Então, de fato, porque ele só considera como
se soubesse ainda se conseguiria esses dois resultados eleitorais foram bastante argentinos os brancos. Então, o
formar governo, Geert Wilders ti- desanimadores, em países em que se tinha como racismo no Milei também é muito
nha conquistado a vitória eleitoral praticamente impossível que pensamentos acentuado. E, embora ele não
na Holanda. negacionistas, por exemplo, chegassem ao poder. tenha um passado militar como
Além das semelhanças que permi- Quando Bolsonaro ganhou no Brasil, a gente o Bolsonaro ou uma ligação
tem constatar que se trata de um olhava para a Argentina quase com inveja, porque tão grande com as Forças
fenômeno mundial, há diferenças eles tinham uma política de direitos humanos bem Armadas, a vice-presidente
na forma como esses processos instituída e elaborada, lá a transição democrática dele cumpre esse papel de
acontecem aqui e lá? No caso es- foi diferente, teve justiça de transição e tem uma fazer a ponte com militares
pecífico da Argentina, que fatores certa educação, digamos assim, no sentido de e viúvas da ditadura
internos e externos contribuíram evitar negacionismos. Então, a gente achava que militar de lá.
para um resultado que até bem na Argentina seria difícil [um governo desse tipo],
pouco tempo parecia improvável? embora, desde 2019, as direitas latino-americanas
No mundo e na América Latina, QUE FATORES DA CONJUNTURA
estivessem fazendo um esforço muito grande para
qual a responsabilidade das es- ESPECÍFICA DA ARGENTINA
encontrar um Bolsonaro argentino. PODEM SER APONTADOS COMO
querdas na ascensão de governos
e movimentos de extrema-direita? CAPAZES DE MODIFICAR TANTO
Essas e outras questões são anali- ESSE CENÁRIO, FAZENDO COM
sadas nesta entrevista pela pesqui- QUE O PAÍS OPTASSE POR
sadora Rejane Hoeveler, vinculada UM CAMINHO DE ADESÃO À
EXTREMA-DIREITA, DIFERENTE
ao Programa de Pós-graduação
em Serviço Social da Universidade
EM CERTO MOMENTO DO QUE SE PREVIA?
Essa é a questão de um milhão
Federal de Alagoas (UFAL), que
também realça aspectos da con-
A ANTIPOLÍTICA SAI DO de dólares. Obviamente tem a
questão da subida da inflação,
juntura brasileira recente. SOFÁ E VIRA UMA FORÇA principalmente da metade
para o final do mandato
CÁTIA GUIMARÃES E POLÍTICA ATIVA” do [ex-presidente] Alberto
PAULO SCHUELER
Fernández. E tem o fato de que
19

o peronismo se dividiu bastante. Teve uma crise boa parte da sociedade daquele essa relação de que se tem
interna e o Sergio Massa [que disputou contra conjunto de políticas, criando crise, logo, surge a extrema-
Milei] não era o candidato favorito da militância uma hierarquização social direita. Acho que não é bem
orgânica peronista, porque ele vem mais da oficialmente, para além daquela assim, porque, inclusive,
direita, tinha rompido com o kirchnerismo e só que já é dada pelas desigualdades isso desconsidera a parte
muito recentemente se reaproximou. Há aqueles do capitalismo. Eles têm um militante de investimento em
fenômenos que atravessam países, relacionados, ativismo, um nacionalismo que organizações, movimentos,
por exemplo, à precarização do trabalho, permite, inclusive, a defesa partidos, ONGs, institutos, think
especialmente entre os jovens, à dificuldade de cínica, muitas vezes, de medidas tanks, canais de Youtube, redes
se manter na escola e na universidade pública, protecionistas. sociais, os partidos digitais...
aquelas questões que dificilmente seriam O nacionalismo de Milei e de Esses caras estão fazendo isso
solucionadas por apenas um governo. E acho Bolsonaro é capenga, para dizer há muito tempo - por isso
que tem um elemento um pouco de reação a o mínimo, porque são de uma eu falei que desde 2019 eles
conquistas que foram realizadas nos últimos anos, subserviência historicamente estavam buscando um Bolsonaro
por exemplo, pelo movimento feminista, como inédita, principalmente a um argentino. As mesmas forças
a aprovação do aborto. Isso foi uma iniciativa setor político dentro dos Estados
que atuaram aqui no Brasil,
do governo e deixou as direitas absolutamente Unidos, que é o trumpismo. É
como o MBL [Movimento
enfurecidas. Tem a questão antiCristina Kirchner uma coisa inédita na história
Brasil Livre], que é o Students
muito forte, que é bastante misógina e [expressa] das relações internacionais, da
diplomacia, o fato de que o Milei, for Liberty, existem lá [na
também uma operação de lawfare contra ela,
com anos e anos de campanha midiática na qual recém-presidente eleito, está Argentina]: eles têm a Fundación
predomina o sentimento antipolítica. Então, em tratando mais com o Bolsonaro Libertad, a Fundación Libre, uma
certo momento essa quantidade vira qualidade, e com o [Donald] Trump do série de aparelhos privados de
a antipolítica sai do sofá e vira uma força política que com [Joe] Biden e Lula. São financiamento empresarial. Eles
ativa. Foi isso que aconteceu na Argentina. candidatos que se elegem já têm um projeto, têm métodos,
Começou com aqueles protestos para queimar afirmando que vão governar inclusive, de atuação que são
máscaras [de proteção contra o novo coronavírus] para aquilo que eles consideram globais. A gente não pode
no Obelisco, com o negacionismo cientifico, cidadãos de bem, que não vão desprezar isso.
negacionismo da vacina, que chamava o governo governar para todos. Isso é uma
de Fernandez de uma “infectadura” porque coisa em comum entre eles.
O FIM DO BLOCO SOVIÉTICO
aplicou as medidas da quarentena de maneira Mas, voltando às diferenças,
CONTRIBUIU PARA QUE,
mais ou menos séria. Tem todos esses fatores. acho que a principal é essa: que
MUNDIALMENTE, UMA PARTE DA
o nosso nacionalismo é de um
DIREITA CLÁSSICA SE PERMITISSE
caráter distinto do nacionalismo
AS SEMELHANÇAS ENTRE ESSE CRESCIMENTO DA RADICALIZAR?
que adotam as ultradireitas dos
EXTREMA-DIREITA EM DIVERSOS LUGARES ESTÃO Sim, mas quando tem o fim da
países imperialistas.
SENDO APONTADAS O TEMPO INTEIRO, MAS, NA União Soviética e a queda do
MEDIDA EM QUE ISSO CHEGA A UM PAÍS COMO
Muro de Berlim, o discurso
O BRASIL E AGORA À ARGENTINA, É POSSÍVEL O MUNDO VIVEU UMA CRISE dominante na mídia e entre
IDENTIFICAR TAMBÉM DIFERENÇAS EM RELAÇÃO ECONÔMICA EM 2008, QUE intelectuais orgânicos da
A ESSE FENÔMENO NA EUROPA, SOBRETUDO TEVE REFLEXOS DURANTE política externa americana,
CONSIDERANDO A DISTINÇÃO ENTRE CENTRO E MUITO TEMPO E MUITOS
PERIFERIA DO CAPITALISMO? que acabaram influenciando
AUTORES DIZEM QUE AINDA bastante esse debate, era
Eu acho que seria difícil apontar todas as NÃO ACABOU. ESSE CONTEXTO da vitória do capitalismo.
diferenças, mas a gente pode indicar algumas. A AJUDA A EXPLICAR A ASCENSÃO Para o [Francis] Fukuyama,
primeira delas talvez tenha relação com a própria DESSES MOVIMENTOS DE por exemplo, era a vitória
divisão internacional do trabalho e o papel que EXTREMA-DIREITA NO MUNDO especificamente de um modelo
as ideologias nacionalistas ou nativistas - que E, PARTICULARMENTE, AQUI NA que incluía uma economia de
são nacionalismos radicais como dizem alguns AMÉRICA LATINA? mercado e uma democracia
autores, como o historiador Xavier Casals, de
O que eu vou falar é um liberal. Essa nova direita não
Espanha -, têm no norte global. A França tem
pouco polêmico. Mesmo em está nesse registro porque ela
uma particularidade, porque lá a maior força da
análises críticas de intelectuais rejeita a democracia, só aceita a
extrema-direita, que é da Marine Le Pen, defende
direitos sociais, só que para os ‘nacionais’. Isso é o de parte da esquerda, é um democracia da boca para fora,
que alguns autores também chamam de populismo pouco um lugar comum, quase tacitamente, para ter a sua
de direita - um conceito de que eu discordo, mas um consenso, atribuir esses legitimação pelos mecanismos
que vem caracterizar justamente fenômenos à crise. Só que o eleitorais. Ela já mostrou que
esse tipo de ultradireita, aquela capitalismo é um sistema de despreza [a democracia] e a
que defende, digamos, um crises cíclicas. O capitalismo gente viu, caso após caso, que
Estado de Bem-Estar social, já é um desastre funcionando os candidatos autoritários
só que limitado aos cidadãos bem, ele já gera bastante cumprem as suas promessas.
nacionais, ou seja, que deixa miséria, pobreza, desigualdade Essa história de achar que [os
de fora os imigrantes. Com e expropriações. Então, eu políticos de extrema-direita]
isso está-se excluindo uma tomo muito cuidado em fazer vão ser domados não existe.
20
Na medida do possível, no A juventude, historicamente, contrário do Bolsonaro – que diz que vai romper o
Brasil as instituições foram pelo menos desde a segunda sistema todo.
bolsonarizadas, e a gente está metade do Século 20, 1968, A gente tem que compreender o fenômeno, e não
sentindo efeito disso até hoje, tem um papel fundamental, xingar as pessoas de burras. É tipo assim: já que é
mesmo com a mudança de geralmente, para causar para não ter nada, então vamos arrebentar com
governo. Isso é para mostrar mudanças e rupturas tudo que ainda tem. Já que o mundo vai acabar, eu
como o enraizamento desse progressistas. Sobre a Argentina, não quero esperar mais, quero que ele acabe logo
pensamento, dessa ideologia, tem um livro incontornável, para eu ver se vou sobreviver e como. Talvez seja
dessa militância, é muito grande. do Pablo Stefanoni, que é ‘La um pouco psicologizante essa minha explicação,
Mas voltando à questão: esse rebeldía se volvió de derecha?’, mas escutando entrevistas de jornalistas com
pessoal não está fazendo o que tem uma boa análise. Qual é eleitores militantes da campanha do Milei, é
mesmo discurso do Fukuyama. a questão? Tem uma hora em que bastante isso que eles trazem. Fora que tem uma
Eles estão dizendo que o o sentimento de desesperança misoginia muito forte. A maioria dos militantes e
“marxismo cultural” está e falta de perspectiva no futuro votantes [pró-Milei] são homens e isso também é
vencendo. Na verdade, a cadela é muito grande... É a ideia de uma divisão que se assemelha ao bolsonarismo.
do fascismo sempre está no cio, que no passado havia mais
nunca deixaram de existir as futuro. Vou dar um exemplo
possibilidades mais truculentas de como a esquerda não tem MUITOS AUTORES ARGUMENTAM QUE,
de dominação social. E claro conseguido responder a isso. Um COM A INSTITUCIONALIZAÇÃO DE UM
que as crises agravam, embora dos slogans do Sergio Massa na CONSENSO NEOLIBERAL NO MUNDO, AS
não gerem isso porque a política eleição para rebater isso era ‘o ESQUERDAS PASSARAM A SER CADA VEZ MAIS
tem a sua autonomia. Quando derecha o derechos’ [ou direita ADMINISTRADORAS DA ORDEM, CADA VEZ MAIS
a globalização capitalista e ou direitos], remetendo aos PARECIDAS COM A DIREITA QUANDO SE TORNAM
neoliberal se aprofunda nos direitos sociais, obviamente. GOVERNOS. AS DECISÕES POLÍTICAS, ECONÔMICAS
quatro cantos do mundo, isso Só que tem um problema, E ESTRATÉGICAS QUE FORAM SENDO TOMADAS
causa um impacto na correlação porque a maior parte dos PELAS ESQUERDAS AO LONGO DESSES ÚLTIMOS 40
de forças internacionalmente, trabalhadores, especialmente ANOS TÊM RESPONSABILIDADE NA ASCENSÃO DA
ajuda a aprofundar as derrotas dos jovens precarizados ou EXTREMA-DIREITA?
dos projetos coletivos da classe desempregados mesmo, já não Com certeza. De fato, talvez a maior parte das
trabalhadora, dos projetos têm direitos, então eles não têm correntes de esquerda no cone sul, se tornaram
alternativos, projetos de outras o que defender. Além disso, é bastiões de uma democracia burguesa que a
sociabilidades que não seja importante pontuar que essa é própria burguesia despreza – porque não vê
a capitalista. Essa coisa de uma geração que não viveu 2001 problema nenhum em abrir mão dos marcos
ideologia de gênero, por exemplo, [a crise econômica argentina], democráticos fundamentais em nome de, muitas
vem também desde os anos que viveu basicamente durante vezes, tirar essa mesma esquerda moderada do
1990. Todas as direitas estavam os governos kirchneristas, como poder. Pensando em termos de Brasil, Argentina
formulando, mas elas não é o caso também de vários jovens e Chile, com certeza, a gente enxerga isso. Por
estavam aparecendo tanto como que são da direita no Brasil, que mais que a Dilma [Rousseff] tentasse agradar o
forças políticas institucionais só viveram os governos do PT. mercado e colocasse Joaquim Levy [como ministro
porque a correlação de forças Mas essa é a questão: a esquerda da Fazenda], tivesse um programa fiscalista
não permitia. Agora permite. E está comprometida demais de Estado, com contenção de gastos etc., eles
agora é pior ainda, porque elas se com a defesa de uma coisa que nem isso aceitaram. E assim se passou de uma
apropriaram do signo da rebeldia está se acabando – e olha que chave da colaboração de classe para uma chave
enquanto a esquerda ficou a Argentina, para parâmetros da guerra social aberta a partir de 2016, com o
vinculada a uma coisa obsoleta latinoamericanos, ainda tem golpe contra a Dilma e com o [Michel] Temer
como a defesa de constituições, um índice de emprego formal e assumindo o governo. A esquerda se tornou não
por exemplo, no caso do Brasil. de sindicalização relativamente só o bastião dessas instituições republicanas
No Chile é diferente porque alto. Quando eles fazem greve que são tão frágeis na América Latina como
foi a derrota de um levante geral, é greve geral mesmo. aplicadora de uma política de gestão da barbárie
social gigantesco em 2019 e que Mas essa juventude já não está capitalista, gestão da pobreza extrema, como
termina agora com o desastre encontrando esse espaço, ela as políticas focalistas defendidas pelo Banco
e uma possibilidade forte de a não está mais encontrando Mundial. Por mais que seja muito pior sem isso,
ultradireita ganhar as próximas aquela figura que está muito o que a gente viveu e ainda vive um pouco são
eleições lá também. bem sintetizada no personagem políticas de gotejamento social, que servem pra
do Agnaldo, pai da Mafalda amenizar os efeitos mais deletérios da questão
NA ARGENTINA, OS JOVENS [personagem de quadrinhos social. Nós estaríamos muito pior enquanto país
FORAM FUNDAMENTAIS do cartunista Quino], que é se tivesse sido a direita [a governar] esses anos
PARA A VITÓRIA DO MILEI. aquele trabalhador fordista, com todos, isso é um fato. Mas isso deixa as lutas
MUNDIALMENTE, EXISTE ALGO horário de jornada e férias. E aí sem direção ou com uma direção muito voltada
COMO UM FENÔMENO DE aparece um sujeito como o Milei para a institucionalidade, ceifando um pouco da
CAPTURA DA REBELDIA JUVENIL que tem, de fato, um carisma – é sua autonomia política. Porque as lutas nunca
PELO REACIONARISMO? inegável que ele é carismático, ao deixaram de existir.
21
A Argentina tem uma poder. Acredito que o Petro, o próximo período. A derrota do plebiscito que
particularidade. Porque o na Colômbia, está fazendo aprovaria ou não a nova proposta de Constituição
peronismo como uma força um mandato exemplar no em 2022, que era uma proposta absolutamente
social e política tem um sentido de não somente não moderna, no sentido positivo da palavra – de uma
peso, o chamado peronismo desmobilizar, mas entender que, Constituição adequada às questões relevantes
de esquerda, as juventudes num continente onde a gente mundiais do Século 21, com a catástrofe climática, os
kirchneristas mobilizam é ameaçado por golpes só por direitos dos povos originários, equidade de gênero,
bastante, muito mais, sonhar com soberania, ele só como direito reprodutivo da mulher, direito da
comparativamente, do que o PT vai conseguir aplicar mudanças natureza, além de direito trabalhista, desprivatização
no Brasil. Eu acredito que em econômicas e políticas positivas da água, que é uma coisa importantíssima para Chile
grande parte por causa disso, para a população com o povo na – enfraqueceu ainda mais. Foi uma derrota muito
eles conseguiram evitar até o rua, com mobilização sustentando grande. [Em dezembro de 2023, após a realização
momento a prisão da Cristina o governo. Então, o Petro desta entrevista, um segundo plebiscito novamente
[Kirchner], enquanto no Brasil está sendo, na minha opinião, recusou uma proposta de texto constitucional, dessa
não conseguimos evitar a prisão mais realista, não mais radical. vez produzido sob influência da extrema-direita].
de Lula. No Chile a gente tem Ele não é nenhum comunista
a esquerda colaborando com revolucionário, é um governo
a continuidade de um modelo que apenas está zelando pela QUAL O REAL PAPEL DAS FAKE NEWS E DA
neoliberal implementado soberania colombiana e tentando INDÚSTRIA DA DESINFORMAÇÃO QUE CRESCE A
pela ditadura do [Augusto] desfazer os anos de desastres, PARTIR DAS PLATAFORMAS DIGITAIS NA ASCENSÃO
Pinochet, que foram os anos de principalmente em termos de DA EXTREMA-DIREITA?
concertación. Não por acaso, em direitos humanos, legados pelo Eu acho que isso tem que ser mais estudado,
2019 [o mote] era “não são por uribismo [de Álvaro Uribe], porque não está muito claro ainda, por exemplo,
30 centavos, são por 30 anos”. que governou durante muito qual foi o real papel da Cambridge Analytica
O Chile é um exemplo dessa tempo, e é ainda uma força de na eleição da Argentina de 2015, quando eles
adesão da esquerda moderada ultradireita na América Latina. assessoraram o PRO [partido político Proposta
à institucionalidade, no sentido Eles têm uma extrema-direita Republicana]. Mas eu acho que o peso é muito
não de apenas ocupar aquele uribista fortíssima lá: a senadora grande. Muitos autores já mostraram como as
lugar mas de ser dirigido por Maria Fernanda Molina Cabal, plataformas das redes sociais lucram com a política
aquele lugar. Essa é a questão: por exemplo, foi aluna de do ódio, ou seja, ali é um espaço onde é muito
aceitar as regras do jogo de Olavo de Carvalho e é amiga mais fácil circular um discurso de ultradireita
democracias extremamente de Eduardo Bolsonaro. Então, é do que um discurso de esquerda ou de extrema-
limitadas, restritas, que já um governo que sabe que está esquerda. Isso é uma diferença muito grande. As
nasceram frágeis e vêm permanentemente ameaçado e, fake news e os partidos digitais, que são as formas
sofrendo uma série de abalos, portanto, procura usar as armas de organização contemporânea da ultradireita,
com uma série de reformas que tem – não somente legais, são partidos também, no sentido gramsciano [de
constitucionais. institucionais, jurídicas mas Antonio Gramsci], atravessam as comunicações
também a do chão social. É um e as subjetividades de uma forma que coloniza.
governo que, se perder, vai perder Não que isso seja planejado, porque não é uma
COMO VOCÊ COMENTOU, NO lutando. O contrário do [Gabriel] teoria da conspiração, mas o que a gente está
CHILE, UM GOVERNO QUE NASCE Boric, que é um governo que, vendo acontecer, principalmente entre os jovens,
DE UMA MOBILIZAÇÃO SOCIAL desde o início, foi extremamente é que toda a sociabilidade está atravessada por
MUITO GRANDE VEM PERDENDO frágil politicamente, fazendo um modelo doentio, que adoece e contribui para
CAPITAL POLÍTICO E SENDO concessões atrás de concessões esse cenário no qual as pessoas vão buscar na
DERROTADO NO PONTO DE para a direita e não teve ultradireita uma alternativa. Não é só o nível de
VISTA LEGISLATIVO. ENQUANTO iniciativas políticas relevantes que eles permitem a propaganda negacionista,
ISSO, APARENTEMENTE, O no que diz respeito àqueles da ultradireita, eles incentivam. Esse mundo
GOVERNO DE GUSTAVO PETRO, temas que são mais sensíveis e é extremamente nocivo para a nossa saúde.
NA COLÔMBIA, TEM APOSTADO mais caros à população, como a Contribui para o adoecimento e para essa sensação
NUMA MOBILIZAÇÃO DE MASSA questão dos fundos de pensão, do presentismo contínuo, como diria o Fredric
MAIOR, QUE TERIA CONSEGUIDO da previdência. Ao contrário, ele Jameson, para essa ansiedade contemporânea. Está
ALGUNS AVANÇOS. ESSA deu continuidade, por exemplo, todo mundo com crise de ansiedade ou de pânico
COMPARAÇÃO É CORRETA? HÁ à questão da militarização do porque é um mundo no qual você precisa mostrar
OUTROS PAÍSES DA AMÉRICA sul, da Araucanía, onde está o a produtividade máxima, a performance máxima,
LATINA QUE MERECEM DESTAQUE foco da luta dos mapuches [etnia a perfeição. Inclusive, as relações de trabalho estão
NESSA ANÁLISE? indígena] contra as madeireiras. permeadas por isso, não é só uma opção de hobby.
A América Latina tem cenários Enfim, o conjunto do governo Enfim, acho que há muito ainda a ser estudado,
muito diversos. Você mencionou Boric foi uma decepção. quiçá a psicanálise e os estudos culturais nos
dois que estão sendo bastante Esperamos que ele consiga – tragam também contribuições para pensar isso.
relevantes, e acredito que são acho que conseguirá – terminar Mas a necessidade de regulação [das plataformas] é
dois exemplos opostos de o o mandato, mas vai ser muito iminente, é urgentíssima, porque elas podem fazer
que deve ser uma esquerda no difícil para a esquerda chilena o que quiserem.
22 SEGURANÇA ALIMENTAR

ALIMENTAÇÃO
E SAÚDE
Comida de verdade
na boca do povo
PAULO SCHUELER
JULIANA CHALITA / GREENPEACE BRASIL

N
o último bimestre de 2023, dois eventos, trazem a crítica ao modelo dos como uma unidade de produção
o 12º Congresso Brasileiro de Agroeco- sistemas alimentares, inseri- (estabelecimento rural, assen-
logia (CBA) e a 6º Conferência Nacional dos no que eu chamo de lógica tamento de reforma agrária) ou
de Segurança Alimentar e Nutricional neoextrativista, detentor de um mesmo uma região; abarcar todo
(CNSAN), colocaram em pauta a relação entre a poder avassalador. Contra isso, o sistema agroalimentar; ou con-
qualidade do que se come e a forma como esses propomos uma transição agroe- vidar a repensar o metabolismo
alimentos são produzidos. O primeiro reuniu cerca cológica e outras formas de eco- sociedade-natureza, como parte
de 5,5 mil inscritos no Rio de Janeiro, entre 20 e 23 nomia solidária que contemplem de um projeto societário”.
de novembro; e o segundo, 2 mil pessoas em Brasí- os princípios da saúde. A sobera- Foi para a promoção desse
lia, entre 11 e 14 de dezembro. Os temas escolhidos nia alimentar e nutricional de- tipo de agricultura que, no 12º
para os dois encontros não poderiam ser mais cla- pende de políticas de educação CBA o ministro do Desenvolvi-
ros e coincidentes: ‘Agroecologia na boca do povo’ e que estejam integradas com po- mento Agrário e Agricultura Fa-
‘Erradicar a fome e garantir direitos com comida de líticas de saúde, que por sua vez miliar, Paulo Teixeira, anunciou
verdade, democracia e equidade’, respectivamente. precisam de políticas de proteção que em março deste ano será
Comida de verdade, como definido pelo Conse- ambiental. Sem essa integração, relançada a Política Nacional
lho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricio- as políticas públicas não conse- de Agroecologia e Produção Or-
nal (Consea), é a que promove alimentação ade- guirão fazer transformações que gânica (PNAPO), que tem como
quada e saudável. Desde 2007, quando ocorreu são improrrogáveis e incontor- objetivo contribuir para o de-
a 3º CNSAN, consolidou-se a formulação de que náveis, diante de uma realida- senvolvimento sustentável e ao
isso “pressupõe a garantia ao acesso permanente de de crise ecológica”, afirma o mesmo tempo melhorar a quali-
e regular a alimentos produzidos de forma social- pesquisador Alexandre Pessoa, dade de vida da população com a
mente justa, ambientalmente sustentável e livres da Escola Politécnica de Saúde oferta e o consumo de alimentos
de contaminantes físicos, químicos e biológicos e Joaquim Venâncio, da Fundação saudáveis. Lançada em 2012 e
de organismos geneticamente modificados”. Trata- Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz). premiada pela Organização das
-se de um conceito que dialoga diretamente com No Dicionário de Agroeco- Ações Unidas para Alimenta-
a pauta da agroecologia e que, no curto espaço de logia e Educação, publicado em ção e Agricultura (FAO) por seu
tempo entre os dois eventos, sofreu uma derrota parceria pela EPSJV/Fiocruz e ineditismo, a PNAPO foi invia-
importante com a aprovação, pelo Senado Federal, a Editora Expressão Popular em bilizada entre 2019 e 2022 com a
do Projeto de Lei 1.459/2022, conhecido como ‘PL 2021 e disponível em acesso livre extinção da Comissão e da Câma-
do Veneno’, que flexibiliza o uso dessas substâncias. no portal da instituição, as auto- ra de Agroecologia e Produção
“Todas as pessoas devem ter acesso à alimentação ras do verbete Agroecologia, Do- Orgânica (CNAPO). “Precisamos
adequada e saudável, que esteja condizente tanto minique Guhur e Nívia Regina fazer uma mudança agroecoló-
com a etapa biológica de sua vida quanto com a sua da Silva explicam que ela vem gica. O meio ambiente está re-
cultura e seus hábitos, e que esses alimentos preci- sendo “reafirmada por um con- clamando forte, precisamos nos
sam ser cultivados e comercializados considerando junto de sujeitos sociais, organi- preparar para uma transição
a sustentabilidade econômica social e ambiental”, zações, instituições de pesquisa da agricultura. Por isso temos
defende a presidente do Consea, Elisabetta Recine. e ensino como uma ciência, um que ter outra cultura, orgânica.
A Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), enfoque ou disciplina científi- Estamos retomando o apoio às
organizadora do 12º CBA, define o termo como uma ca, como prática (social) e como iniciativas de promoção da tran-
“ciência, movimento político e prática social” que movimento ou luta política. sição agroecológica, dos sistemas
“articula diferentes áreas do conhecimento” para Pode apresentar uma aborda- agroalimentares sustentáveis e o
“desenvolver sistemas agroalimentares sustentá- gem restrita, como um campo de fortalecimento de redes de pro-
veis em todas as suas dimensões”. “As ações pro- cultivo agrícola; considerar um dução orgânica”, afirmou Teixei-
positivas que são apresentadas pela agroecologia agroecossistema mais complexo, ra, durante o congresso.
23

Um clima hostil? em outras culturas, como algodão e café, e na pe- cessados estão mais baratos pela
cuária o gado – seja de corte ou de leite – que estão sua matéria-prima de baixo cus-
De fato, em nome do lucro ime- com a produtividade reduzida diante da exposição to, sendo seus principais insumos
diato, e na contramão da agroeco- ao calor e da queda de qualidade dos pastos. a soja e o milho. A baixa pereci-
logia, o modelo do agronegócio Quem mais sofre com esses fenômenos, no en- bilidade e a distribuição massi-
tem aumentado também os riscos tanto, são os pequenos produtores da Agricultura va em todo o território também
para a disponibilidade de alimen- Familiar. O estudo ‘Mudanças Climáticas e Agri- corroboram os preços reduzidos.
tos para as futuras gerações ao cultura no Brasil: Impactos Econômicos Regionais e As terras agricultáveis brasileiras
contribuir para o empobrecimen- por Cultivo Familiar e Patronal’, de Tarik Tanure, da têm como prioridade a produ-
to e erosão dos solos, o consumo Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), de ção de commodities (soja, milho
abusivo de água, contaminação de 2020, serviu de subsídio para acordo de cooperação e cana-de-açúcar), e há incentivo
lençóis freáticos e a emissão de ga- entre o Observatório do Clima e a Confederação Na- para exportação e menor oferta
ses que geram o aquecimento da cional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) no mercado interno de produtos
atmosfera. Em outubro de 2023, o ao ter estimado a perda de produtividade de dife- básicos como arroz, feijão, car-
Observatório do Clima divulgou o rentes culturas no Brasil a partir dos cenários de ne, vegetais e frutas; seus preços
relatório ‘Estimativa de Emissões aquecimento global estimados pelo Painel Inter- sobem, e caem compra e consu-
de Gases de Efeito Estufa dos Sis- governamental Sobre Mudança do Clima (IPCC). mo. A crise climática diminui a
temas Alimentares no Brasil’, que “Os cultivos de mandioca, milho e feijão, típicos da produção de alimentos, o que faz
estimou que a produção de comi- agricultura familiar, seriam impactados com perda crescer os preços, reduzindo o
da responde por 74% das emissões de produtividade”, afirma Tanure, no estudo. acesso para pessoas em situação
brutas de gases-estufa do país. Ainda de acordo com a pesquisa de Tanure, o de insegurança alimentar. O ex-
Desse percentual, mais de três impacto das mudanças climáticas na agricultura fa- cesso de peso reduzirá a expecta-
quartos (78%) das emissões é ge- miliar deve agravar as desigualdades e deteriorar tiva de vida em cerca de 3,3 anos e
rada apenas pela cadeia da carne as condições de segurança alimentar no Brasil – se- resultará em uma redução de 5%
bovina. Quando divulgou o estu- gundo o Anuário da Agricultura Familiar de 2023, do PIB do Brasil nos próximos 30
do, o Observatório divulgou nota produzido pela Contag em colaboração com o Depar- anos”, alerta o texto.
afirmando que “se fosse um país, tamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioe- Por sua vez, o estudo ‘Dife-
o bife brasileiro seria o sétimo conômicos (Dieese), a agricultura familiar brasileira é renças no consumo alimentar da
maior emissor do planeta, à fren- a oitava maior produtora de alimentos do mundo. população brasileira por raça/cor
te do Japão”. Pouco mais de um da pele em 2017–2018’, elaborado
mês depois, estudo divulgado pelo A comida e a saúde pelo Núcleo de Pesquisas Epide-
MapBiomas mostrou que a aber- miológicas em Nutrição e Saúde
tura de novas áreas de pasto foi Em 2019, ao elencar seus dez principais desafios (Nupens) da USP e divulgado em
responsável pela perda de 84 mi- globais, a Organização Mundial da Saúde (OMS) in- 2022, aponta que nos dez anos
lhões de hectares de vegetação na- cluiu a crise climática – o organismo estima que as compreendidos entre 2008 e 2018,
tural no território que se estende mudanças climáticas causem 250 mil mortes por o consumo de ultraprocessados
da Amazônia às nascentes de seus ano, entre 2030 e 2050, devido à “desnutrição” e aumentou 5,5% no Brasil, e que
principais rios entre 1985 e 2022. “diarreia”, além de estresse por calor e malária. Outro tais alimentos eram responsáveis
As consequências, aliás, não item, as Doenças Crônicas Não Transmissíveis, como por 20% das calorias consumidas
são apenas para as futuras gera- diabetes, câncer e doenças cardiovasculares, que são pelos brasileiros. Em maio de 2023,
ções. Em 7 de dezembro de 2023, responsáveis por cerca de 70% de todas as mortes no o trabalho ‘Mortes prematuras
a Companhia Nacional de Abas- mundo, é apresentado pela OMS como decorrente de atribuíveis ao consumo de alimen-
tecimento (Conab) divulgou sua cinco fatores de risco, que incluem “dietas pouco sau- tos ultraprocessados no Brasil’,
projeção para a safra 2023/24 dáveis” ao lado de uso do tabaco, inatividade física, liderado pelo pesquisador do Ob-
com a previsão de 312,3 milhões uso nocivo do álcool e poluição do ar. servatório Brasileiro de Hábitos
de toneladas, 2,4% abaixo da ob- A subalimentação crônica, nível mais extre- Alimentares (Obha) da Fiocruz,
tida na safra 2022/23, de 319,97 mo de insegurança alimentar, atingiu 4,7% dos Eduardo Nilson, em colaboração
milhões de toneladas. De acordo brasileiros entre 2020 e 2022, cerca de 10 milhões com pesquisadores do mesmo Nu-
com a Conab, a justificativa para de pessoas, segundo o relatório global ‘Estado da pens, da Universidade Federal de
a queda está na baixa ocorrência Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo’, di- São Paulo (Unifesp) e da Universi-
de chuvas e nas altas temperatu- vulgado em julho pela Organização das Nações dad de Santiago de Chile, atestou
ras registradas no Centro-Oeste, Unidas (ONU). que mais de 10% dos óbitos de pes-
em paralelo ao excesso de pre- Também com foco no Brasil, em julho de 2023 soas entre 30 e 69 anos de idade no
cipitações no Sul. Tais fenôme- uma parceria entre Fiocruz, Organização Pan- Brasil em 2019, 57 mil falecimen-
nos, que tendem a se agravar ao -Americana da Saúde (OPAS) e Instituto Nacional tos, foram decorrentes do consu-
longo deste ano com o fortaleci- de Câncer (Inca) divulgou o documento ‘Por uma mo de alimentos ultraprocessados.
mento do atual ciclo do El Niño, política tributária nacional justa, que combata a No mesmo estudo, os pesquisado-
afetaram o desenvolvimento de fome e garanta alimentação adequada, saudável e res afirmam que reduções de 10%
culturas como a soja e o trigo, im- sustentável’. O texto afirma que o sistema alimentar a 50% no consumo desses alimen-
pactando também o resultado do atual prioriza a produção e o consumo de alimentos tos poderiam reduzir de 5,9 mil a
próprio agronegócio. Há reflexos ultraprocessados no Brasil. “Os alimentos ultrapro- 29,3 mil óbitos a cada ano.
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AUDIOVISUAL MARGINAL
Segundo a presidente do Con- De acordo com a pesquisado-
sea, a grande bandeira da segu- ra, é necessário que as políticas
rança alimentar e nutricional é públicas intersetoriais direcio-
a garantia de uma alimentação nem o investimento de organis-
adequada e saudável para todas mos de pesquisa pública, como
as pessoas, sem exceção. “Isso é o caso da própria Embrapa e
quer dizer que essa alimentação também o da Finep, na busca
é um elemento protetor e promo- por soluções agrobiológicas vol-
tor da saúde. Do ponto de vista tadas aos pequenos produtores.
mais abrangente, a alimentação “Nos últimos dez anos houve
adequada e saudável não trata baixo investimento em ciência
apenas da questão biológica, da e tecnologia para essas áreas.
composição adequada de nu- Os investimentos ficaram muito
trientes que aquela pessoa neces- a origem de um profundo problema de alienação. associados à iniciativa privada,
sita, a depender de sua idade ou Por esta separação, na qual a natureza – a partir de que busca desenvolver produ-
de seu estado fisiológico. Estamos uma visão predatória – é reduzida a recursos, gera- tos para colocar no mercado de
falando de dimensões que estão -se uma forma de organizar a sociedade cuja con- forma rentável, a agricultura de
relacionadas com o bem viver sequência é a profunda crise em todos os biomas e commodities. Portanto, é muito
das pessoas, no sentido de cultu- ecossistemas”, explica Alexandre Pessoa. importante termos políticas pú-
ra, hábitos, modos de consumo e A presidente o Consea ressalta que a relação blicas e fomento à geração de co-
de suas memórias. Vai além do da Saúde com a segurança alimentar e nutricio- nhecimento, ao manejo de ciên-
bem estar físico, é a tradução da nal historicamente compõe a agenda do Conselho, cia e tecnologia voltado para a
identidade da pessoa mas tam- constando das concepções do Guia Alimentar para agricultura familiar, em paralelo
bém dela enquanto ser social e a população brasileira e da identificação dos ingre- a todo um trabalho de formação,
coletivo”, atesta Recine. dientes dos alimentos. “Foi no Consea que nasceu de extensão, de valorização dos
Repensar a comida, de sua a recomendação para a Agência Nacional de Vigi- produtos que são cultivados com
produção ao consumo, portanto, lância Sanitária iniciar o processo de atualização esses princípios”, defende.
é uma necessidade. Diante deste da rotulagem nutricional de alimentos que anos Como exemplo do uso da
imperativo, em dezembro de 2023 depois gerou a resolução da rotulagem frontal”. Re- agrobiologia pelo agronegócio,
a Fiocruz publicou o relatório ‘Na cine cita ainda a defesa da ampliação e qualificação ela cita a utilização de bactérias
cozinha, não há só comida’, sobre das ações de nutrição na Atenção Primária à Saúde que fixam o nitrogênio, como
segurança e soberania alimentar e da taxação de bebidas açucaradas, do controle de estratégia para suprir a carência
e nutricional nas experiências de publicidade e também da comercialização de ali- desse elemento em solos tropi-
cozinhas solidárias da Argentina, mentos nocivos à saúde, como os ultraprocessa- cais, para viabilizar a adaptação
Colômbia, Uruguai e Brasil. O re- dos, em ambientes escolares. “Há uma articulação de culturas de clima tropical com
latório consolida os debates pro- muito profunda e histórica entre as duas agendas, alta produtividade, e as de cli-
movidos durante o Seminário ‘Co- da Saúde e da Segurança Alimentar e Nutricional”, ma temperado com resultados
zinhas Solidárias: subsídios para aponta Recine. relevantes, como é o exemplo
a experiência brasileira, diálogos da soja. “No Brasil, ela não seria
sul-americanos’, realizado na Fio- Rota biológica de produção viável se fosse necessário usar o
cruz Brasília em outubro com a nitrogênio fertilizante sintético”.
participação de convidados de Co- Em sua fala no 12º CBA, o ministro do Desen- O benefício da rota biológica de
lômbia, Uruguai e Argentina; da volvimento Agrário também convocou instituições produção, nas palavras da pes-
Secretaria Nacional de Segurança públicas de pesquisa como a Embrapa e o Finep a quisadora, está “no menor uso
Alimentar e Nutricional (SESAN) somarem esforços para o Brasil transitar de uma de agrotóxicos e de fertilizantes
do Ministério do Desenvolvimen- produção agrícola baseada em síntese química para sintéticos”, diz.
to e Assistência Social, Família e processos biológicos de produção. Isso, por si só, não Por fim, Cristhiane ressalta o
Combate à Fome (MDS), além de resultaria nas transformações demandadas pelos trabalho desenvolvido pela Em-
membros da Cozinha Solidária do movimentos agroecológicos. brapa para disponibilizar proces-
Sol Nascente do Movimento dos Pesquisadora da Embrapa Agrobiologia, Cristhia- sos agrobiológicos que permitam
Trabalhadores Sem Teto (MTST) e ne Amâncio estuda a mudança da matriz de insumos maior interação ecológica entre
dos movimentos dos Trabalhado- para a produção agropecuária, apostando na agricul- plantas com afinidade agronô-
res Rurais Sem Terra (MST) e dos tura de base biológica como aquela que buscar subs- mica e o ambiente natural em si,
Pequenos Agricultores (MPA). “A tituir insumos de base química, especialmente fertili- “associado também ao ambiente
Fiocruz colocar a questão do ali- zantes e agrotóxicos, por produtos de base biológica, antropizado [transformado pela
mento no centro do debate é fun- como micro-organismos e insetos, na otimização do ação humana], seja em áreas
damental para ampliar o nosso processo de fertilização. “É importante deixar claro comunitárias ou urbanas. Qual-
conceito de saúde. O nosso ponto que essa agricultura de base biológica, como abordada quer tamanho de propriedade, e
de partida é a ecologia, a com- pelo governo federal e pelas entidades ligadas à agri- o pequeno produtor, pode fazer
preensão de que esta dissociação cultura, não necessariamente significa uma agricultu- uso dos conhecimentos associa-
entre humanidade e natureza é ra de base ecológica ou agroecologia”, ressalta. dos a isso”, afirma.
25
25
ANA SANTOS / SERRA DA MISERICÓRDIA

No Complexo
da Penha, o
exemplo da
agroecologia
urbana Outro desafio, o do acesso permanente à água para a produção, tam-
PAULO SCHUELER bém foi contornado de forma coletiva. “A falta d’água é constante, então
criamos uma cisterna. Vencido isso, temos o problema da luz, pois como

U
m aglomerado de treze favelas, com po- há muita queda no fornecimento de energia, nem sempre a nossa bomba
pulação de cerca de 100 mil habitantes [para a água] funciona”, conta. De certa forma, a criatividade diante dos
e extensão territorial de 580 mil metros desafios logísticos torna a produção efetivamente agroecológica. “Somos
quadrados. Este é o Complexo da Penha, ‘zero veneno’. A gente utiliza o esterco da vaca, o esterco da galinha, a
localizado no Maciço Misericordioso, na Zona Norte água do lago do peixe, a compostagem... Nunca produzimos com veneno,
do Rio de Janeiro, do qual a Serra da Misericórdia e o nosso maior desafio é produzir esses compostos próprios, gerando
é tida por ambientalistas como o último suspiro da autonomia”, diz, referindo-se ao não uso de agrotóxicos.
Mata Atlântica da localidade. É nesse local, atual- Tantas dificuldades trazem a prioridade adicional de mobilizar
mente chamado de Vila Cruzeiro, cuja ocupação re- mais pessoas para estabelecer um quadro permanente de militantes
monta ao período da escravidão, quando as encostas da produção agroecológica no local. “É desafiador envolver a juventu-
dos morros da Penha eram destino de escravizados de para que veja a agricultura urbana enquanto valor e queira estar
foragidos que geraram o Quilombo da Penha, que envolvida nesse trabalho. É muito flutuante o público que se envolve
moradores se organizaram e criaram o Centro de In- na produção, nem sempre a gente consegue se manter muito tempo
tegração na Serra da Misericórdia (CEM). com as mesmas pessoas”, complementa. Santos aposta na produção
Instituído a partir da busca por um território de alimentos no Complexo da Penha como contraponto ao que a rea-
“de bem viver” e tendo como principal frente de tra- lidade social insiste em impor àquela população, promovendo a so-
balho a promoção da soberania alimentar em solo cialização através do trabalho coletivo e de encontros que permitem
urbano sob as bases da agroecologia, o CEM esta- não apenas as trocas de experiências sobre a prática da agricultura
beleceu parcerias com diferentes coletivos, redes e urbana e da educação alimentar, mas também a abordagem de temas
instituições, entre elas a Fiocruz, para atuar em to- transversais, como a Saúde.
das as pontas da cadeia produtiva de alimentos, do A garantia de sustentabilidade econômica do projeto ajudaria no
cultivo ao consumo. Fundadora do CEM, Ana Santos fortalecimento destes vínculos de trabalho colaborativo, aposta ela,
se define como educadora popular que trabalha com que não esconde a necessidade de apoio e a busca por conexões com
agroecologia urbana na favela, “onde a gente desen- políticas públicas, cujo maior exemplo é o Programa Nacional de Ali-
volve atividades com as crianças na Escola Popular mentação Escolar (PNAE), que compra 30% dos alimentos para uso
e Agroecológica, no contraturno do horário escolar, nas escolas da agricultura familiar. “Para sermos autônomos, preci-
trabalhando os temas da agricultura, da leitura, cul- samos de apoio. Precisamos de equipe, de equipamentos, sementes,
tura, esportes e os quintais da floresta”. com isso conseguiremos avançar. E precisamos de assistência técni-
De acordo com Santos, o maior desafio de pro- ca continuada, com acompanhamento sistemático de nossas ações.
duzir alimentos dentro de uma área urbana está Buscamos o diálogo nas três esferas de governo, e junto a alguns de-
na ocupação do território. “Eu estou falando de um putados estaduais da Alerj [Assembleia Legislativa do Rio de janeiro]
território que tem ocupação de narcotráfico, que conseguimos dar mais visibilidade para o projeto através do Plano de
vive em disputa, com uma pedreira que explode Ação Popular do Complexo do Alemão [documento lançado em 2022
pedra toda semana... Então, lidamos tanto com a que consolida a articulação de organizações e lideranças locais que
poluição quanto com a falta de disponibilidade da lutam por melhorias naquele território a partir de 11 temáticas, den-
terra”, ressalta. Essas dificuldades, inclusive, fazem tre elas Saúde, Educação e Meio Ambiente]”, ressalta.
com que, muitas vezes, ela e seus companheiros Os alimentos e demais produtos do coletivo – como sabão, repe-
tenham que produzir os próprios insumos através lente e xaropes naturais – são consumidos atualmente pela Escola
da compostagem. Segundo Santos, a ocupação des- Popular de Saúde do Complexo do Alemão, e através do serviço de
se território para a produção de alimentos precisa catering, por instituições parceiras. Ana afirma que o CEM já efetuou
vencer constantes desafios logísticos. “O único lu- cadastro para fornecimento na Central de Abastecimento do Estado
gar pelo qual carros podem chegar até o local é por do Rio de Janeiro (Ceasa) e no programa Mesa Brasil, a Rede Nacional
dentro da pedreira, uma área perigosa. Quem entra de Bancos de Alimentos do Serviço Social do Comércio (Sesc). “Mas
para entregar insumos cobra um valor com sobre- não pretendemos comercializar a produção até que a gente consiga
preço, por assim dizer”, relata. abastecer a nossa comunidade”, afirma.
26 MOVIMENTOS SOCIAIS
26

MST COMPLETA
40 ANOS
A entrada nos ‘enta’ permite vislumbrar
um grande número de vitórias e impõe
novos desafios

JULIANA PASSOS

A
notícia se espalhou como pólvora. Os respon- eles nos primeiros anos da dé-
sáveis pelas fazendas Macali e Brilhante não cada de 80”, enumera o integrante
pagavam mais ao Estado pelas terras arrenda- da Coordenação Nacional do Movi-
das, enquanto centenas de famílias agricultoras já ha- mento, João Paulo Rodrigues.
viam sido expulsas de suas terras por não conseguirem Embora as primeiras ocupações de terra
pagar os empréstimos devidos ao banco. A partir daí, em nome do Movimento tenham acontecido no
com o apoio da igreja católica e de oposições sindicais, a Sul do país, Rodrigues pontua que elas ocorreram
ocupação começou a ser estudada. O planejamento du- por todo o território nacional, como consequência
rou alguns meses e a tomada das terras não conseguiu da expulsão de cerca de 30 milhões de pessoas do
se concretizar diante da repressão da ditadura militar. campo entre 1950 e 1980 por conta do endividamen-
A estratégia encontrada foi outra e 600 famílias pas- to, de acordo com dados do próprio MST. Maria Izabel
saram a acampar em um importante entroncamento Grein lembra que outro motivo das ocupações foi a
rodoviário do Rio Grande do Sul, rota para algumas das desilusão dos camponeses levados pelo governo para
principais cidades do estado e para o oeste catarinense, habitarem as terras do norte do país diante da falta de
a Encruzilhada Natalino. O ano era 1980. estrutura para a produção. “O governo federal come-
Recém-formada em filosofia em um convento çou a propagandear que só havia terras no Norte do
franciscano e integrante de uma comissão de direitos país e o povo vai para lá, uns levados pelo Estado, ou-
humanos criada para auxiliar nas ações, Maria Izabel tros, por empresas. São famílias levadas para o Mato
Grein recorda que havia sido chamada para ajudar Grosso e para o Pará. Mas eles não encontraram o que
por duas semanas a organização do acampamento. “A tinha sido prometido para eles. E aqui no Sul as terras
gente foi para ficar 15 dias, mas não tem como fazer vão sendo tomadas pelas grandes empresas, privadas
uma organização de 600 famílias nesse período. E ou estatais, como foi o caso da construção da Usina Hi-
acabamos ficando. O Movimento nasce nessa humil- drelétrica de Itaipu”, conta.
ACERVO MST
dade, nessa pequenez”, recorda ela, que atua no Movi-
mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra desde sua
fundação e atualmente integra o setorial de Saúde e a
direção do MST do Paraná. O assentamento definiti-
vo para aquelas famílias veio três anos depois, com a
desapropriação de 1,8 mil hectares de terra por par-
te do governo do RS e se constituiu num dos marcos
para o florescer do Movimento.
O contexto do final da década de 1970 e começo da
seguinte são marcados pelo fim da ditadura empresa-
rial-militar e a ascensão de lutas de massa em favor
da democracia e ampliação dos direitos sociais. “É um
período de retomada da construção de organizações,
iniciada com a criação do Partido dos Trabalhadores
(PT) e, logo em seguida, com a CUT, a Central Única
dos Trabalhadores, e depois MST, praticamente todos
27

No papel de fazer a articulação entre os movimen- mentos. “A Escola Itinerante é uma escola do campo, só
tos locais e organizar ações de ocupação e manutenção que ela está dentro de uma área de conflitos e precisa
dos acampamentos, a igreja católica teve forte prota- responder às necessidades dessas crianças que vivem
gonismo. As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) dentro dessa área. No Paraná, onde eu acompanhei
foram responsáveis por distribuir religiosos ligados à mais e ajudei a criar, houve muitas ocupações entre
Teologia da Libertação por diversas regiões vulnerá- 2002 e 2003. Em abril de 2023, nós tínhamos mais de
veis do país, assim como coube à Comissão mil crianças fora da escola em áreas de acampamen-
Pastoral da Terra (CPT), fundada em 1975 to, e as escolas da redondeza não tinham espaço para
por bispos católicos, realizar um en- essas crianças. Então, nós pressionamos como Movi-
contro de âmbito nacional para reunir mento, como massa de povo acampado, e o estado do
esses grupos em setembro de 1982, em Paraná assumiu a Escola Itinerante”, conta Grein.
Goiânia. Dois anos depois, em 1984, o No texto ‘A Escola do Campo em Movimento”,
Movimento é lançado formalmente em escrito em 2003, a educadora Roseli Caldart faz um
um evento nacional realizado na cidade histórico do crescimento das demandas por Educação.
de Cascavel, região oeste do estado do Paraná. “Começamos lutando pelas escolas de 1ª a 4ª série. Hoje
“Nesse encontro havia a presença de dez esta- a luta e a reflexão pedagógica do MST se estendem da
dos, e logo após, esse número subiu para 16”, conta educação infantil à universidade, passando pelo desa-
Rodrigues. Em uma época sem celular e internet, fio fundamental de alfabetização dos jovens e adultos
os convites foram feitos a partir dos canais locais das de acampamentos e assentamentos, e combinando
pastorais e Comunidades Eclesiais de Base. processos de escolarização e de formação da militân-
Mesmo sendo um Movimento pela ocupação da cia e da base social Sem Terra”, relata. A articulação em
terra, o dirigente lembra que outras atividades estive- prol da melhoria da Educação no campo trouxe frutos,
ram sempre na pauta, uma vez que o objetivo final era o como a criação, em 1998, do Pronera, o Programa Na-
assentamento de famílias. “Quando você leva a família, cional de Educação na Reforma Agrária, responsável
inclusive para dar mais garantia à resistência da luta, por financiar iniciativas de Educação no campo, e que
naturalmente é preciso ter uma escola para as crianças, ganhou força especialmente durante os primeiros dois
um setor de saúde. É preciso ir de mala e cuia para poder governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Em cálcu-
ficar”, diz Rodrigues. Ao longo desses anos, as principais los do MST, nesses dois mandatos foram realizados 207
setoriais existentes nos assentamentos são a frente de cursos pelo Pronera, um recorde.
massas, o de formação e o setor de produção. Ao lado Na Educação Básica, as cerca de 1.850 escolas exis-
desses, há outros dois que, mesmo antes de serem for- tentes nos acampamentos e assentamentos, e que não
malizados enquanto tal, caminharam lado a lado com o pertencem ao Movimento, são acompanhadas de for-
crescimento do MST. São eles: Saúde e a Educação. ma variada em cada localidade e, diante do aumento do
processo de fechamento nas escolas do campo, Valter
Terra e Educação Leite, dirigente nacional do setor de Educação do Mo-
vimento, chama a atenção de que esses números po-
O setor de Educação do MST foi constituído em 1987, dem estar defasados. “Nós temos escolas que possuem
três anos depois da criação do Movimento, mas desde as um acompanhamento mais sistemático e efetivo pelo
primeiras ocupações, foram organizadas atividades nes- setor de Educação do MST e há escolas em que isso não
se sentido. “Na Cruzada Natalino, estudamos o Estatuto ocorre diretamente, mas o Movimento organiza uma
da Terra [Lei nº 4.504/1964], para eles reconhecerem a série de atividades formativas, seminários, encontros
Reforma Agrária enquanto direito. E, ao oferecemos regionais, estaduais, cursos de formação continuada
uma folha a cada um, percebemos que a maioria a usa- de educadores e educadoras das escolas do Movimento
va para abanar o calor e não sabia o que fazer com aque- com o intuito de incidir na formação e na organização
le pedação de papel. Então constatamos que a maioria do trabalho pedagógico com a pedagogia do Movimen-
não sabia ler e escrever, mesmo entre as lideranças. Essa to”, explica Leite.
situação logo levou à criação de um grupo de alfabeti- Na esteira de seu crescimento, as demandas ga-
zação com a utilização do método Paulo Freire”, relem- nharam cada vez mais especificidades para atuação
bra Grein. Naquela primeira etapa, muitos professores na produção de alimentos, na organização nas diferen-
eram aqueles que simplesmente sabiam ler. tes linhas de produção e, diante do desafio de avançar
Mas era preciso mais do que uma iniciativa de so- com a agroecologia, desde 2000 o Movimento passou a
lidariedade e logo começou a demanda pela regulari- construir centros de formação, capacitação ou escolas
zação da Escola Itinerante, o que significa validar uma de agroecologia por meio de cursos técnicos de nível
escola que não fosse necessariamente física, mas com- médio, pós-médio e tecnólogos em agroecologia, reali-
portasse a Educação no campo e, em especial, a for- zados muitas vezes em parcerias com universidades e
mação em áreas de conflito, que é o caso dos acampa- outras instituições, como a Fiocruz. Em 2023, existiam
28
aproximadamente 40 escolas e centros de formação
responsáveis por oferecer desde cursos técnicos e de
nível superior até de formação política – nesta últi-
ma, destaca-se a Escola Nacional Florestan Fernandes
(ENFF), criada em 2005 e localizada em Guararema, no
interior de São Paulo.
A proposta da ENFF, explica Grein, é a formação da
classe trabalhadora. “A Florestan Fernandes é aberta e re-
cebe a classe trabalhadora do mundo inteiro. Se nós qui-
sermos ter uma formação dos trabalhadores que pensem
a realidade a partir do olhar do trabalhador, precisamos
ter nossas escolas para atuar nesse processo, formar gen-
te que entenda o Movimento e saiba que nós somos uma meio rural, e [a cobrar] que o Estado precisa nos atender nas políticas
organização que busca mudança na sociedade”, explica. públicas na nossa condição de trabalho”, reflete, enfocando o conceito
ampliado de saúde, que orientou a luta da Reforma Sanitária brasileira,
Terra e Saúde para o MST.
Ainda que não esteja limitada a atuação no SUS, outra posição impor-
Assim como o setor de Educação, a Saúde esteve pre- tante do Movimento foi a de fortalecimento do Sistema. “Sempre tivemos
sente desde o primeiro momento nos acampamentos, isso muito claro: nós não iríamos criar um setor de saúde paralelo ao SUS.
mas foi formalizado um setorial dessa área um pouco Nossa luta sempre foi para que a política se ajustasse para nos atender en-
mais tarde, em 1998. Além da articulação para os cuida- quanto população acampada na luta pela Reforma Agrária”, enfatiza.
dos de primeiros socorros e cotidianos, aqueles que fica-
vam com a responsabilidade do atendimento se viam na Das ocupações às políticas públicas
função de conversar com as unidades de saúde dos locais
pelos quais os Sem-Terra passavam para conseguir a li- Ingressar no MST nos primeiros anos de seu surgimento foi fundamental
beração do atendimento, muitas vezes negado. “Quando para a família de Sanuza Motta. Ela tinha 13 anos em 1986, quando sua mãe
saíamos com 200, 500 famílias no acampamento e che- decidiu participar do Movimento e integrar a segunda ocupação de terras no
gávamos a um novo município, muitas vezes, não havia Espírito Santo (ES), que deu origem ao assentamento Castro Alves, no mu-
serviço de saúde para atender essa população itinerante. nicípio de Pedro Canário, onde parte da sua família mora até hoje. “A nossa
Uma resposta frequente era ‘nosso município tem 10 mil grande motivação para a entrada no MST é ter a terra. Então, minha mãe fez
moradores. Agora chegam os Sem-Terra com mais mil um grande feito à família com essa decisão e quebrou um ciclo familiar de di-
famílias, não tem como atender, não são cadastrados no ficuldades”, conta ela.
SUS’. Então, nós tínhamos uma série de dificuldades de No ano de criação do assentamento Castro Alves, a presidência do país
sermos atendidos no Sistema Único de Saúde”, conta Dir- estava a cargo de José Sarney. Era o primeiro presidente civil após o térmi-
lete Dellazeri, integrante da direção estadual do Paraná. no da ditadura militar, eleito como vice de Tancredo Neves, morto antes da
Outra função do setor era o planejamento de posse. “A importância do governo Sarney foi a da manutenção do Estatuto
medidas de saneamento, uma vez que as pessoas le- da Terra e do Instituto Nacional de Colonização da Reforma Agrária (Incra),
vavam tudo o que tinham para os acampamentos, o que garantiu a previsão da função social da terra na Constituição de
inclusive animais, como suínos e vacas para produ- 1988”, diz o coordenador do Movimento, João Paulo Rodrigues. A criação
ção de leite. “Aí era preciso organizar o cuidado com o do órgão e da lei são do tempo dos anos de chumbo, quando o Incra serviu
lixo, com saneamento, por mais precárias que fossem de apoio para a atuação da repressão. Em dezembro de 2023, o órgão reali-
as condições. E, além disso, nós também tínhamos – e zou um pedido de desculpas formal em ato solene no Ministério dos Direi-
temos até hoje – um cuidado com a alimentação das tos Humanos e Cidadania (MDHC). “A participação do
crianças”, diz Dellazeri. Naquela época, boa parte do Incra durante a ditadura militar não é uma revelação
apoio vinha da Pastoral da Criança, que fornecia ali- inédita. Pelo contrário, trata-se de verdade histórica
mentos como o sopão e a multimistura. conhecida, presente na literatura especializada, em
No começo dos anos 2000, ela foi responsável por testemunhos diretos, em filmes, em fotografias e, mais
rodar o Brasil em reuniões estaduais e auxiliar na recentemente, no relatório final da Comissão Nacional
formação das direções para orientar sobre os direi- da Verdade”, afirmou o órgão no pedido de desculpas.
tos de essa população ser atendida pelo SUS e discu- Mais de uma década depois, em 1998, Motta par-
tir a concepção de saúde do Movimento. “Passamos ticipou de outra ocupação, dessa vez para ter seu
a considerar que a Saúde não se limita aos serviços próprio lote e morar no assentamento Zumbi dos
de saúde e incluímos a alimentação saudável no de- Palmares, do qual é atual coordenadora. Naquele
bate, a questionar o uso de agrotóxicos na produção ano, o Brasil reelegeu Fernando Henrique Cardoso
de alimentos. Incluímos ainda a igualdade social e os para o segundo mandato. Aqueles foram períodos
direitos sociais, enfim, de viver e viver muito bem no de luta intensa pela terra e, no último ano de presi-
29

dência, FHC promulgou o dia 17 de abril como Dia pelo sistema bancário, precisamos
de Luta pela Reforma Agrária, mês já tradicional- ter crédito por meio de coope-
mente conhecido como “abril vermelho” por reunir rativas. Quem acessa crédito
uma jornada especial de lutas. Embora tivesse colo- no campo é a classe média,
cado o assentamento de famílias em seu programa que ao invés de financiar
de governo, a escolha da data se deve ao Massacre R$ 10 mil por ano, financia
de Eldorado dos Carajás, ocorrido no Pará em 1996, R$ 600 mil, R$ 900 mil. Nós precisa-
quando 21 trabalhadores rurais foram assassinados mos de um meio popular para que quem não tem ga-
durante uma marcha que se dirigia a Belém, capital rantia, quem ainda está com o nome sujo, nunca fez um
do estado. “Passadas as mágoas coletivas, 20 anos de- projeto, tenha acesso à política de crédito”, argumenta.
pois, reconheço como pontos importantes o início da Entre os desafios colocados para o Movimento, está
política de crédito, com a criação do Pronaf, o Pro- o aumento da escala da produção. “O MST se opõe ao
grama Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar “, diz Ro- agronegócio com a agroecologia. Diante disso, nós preci-
drigues, sobre o governo da época. A gestão FHC foi responsável por samos democratizar o acesso à terra, ter uma política de
assentar 540 mil famílias, enquanto o governo Lula alcançou 614 mil crédito popular e construir uma agroindústria que seja
famílias. Somados os assentamentos do mandato de Dilma Rousseff, a base da agroecologia”, defende Rodrigues. Hoje o Mo-
que foram em número menor, totalizam 747.777, de acordo com o MST. vimento possui 120 agroindústrias de pequeno e médio
“O governo Lula colocou a Reforma Agrária na pauta do país inteiro, porte, sendo os principais produtos a mandioca, o arroz,
fez muitos assentamentos e um conjunto de políticas públicas”, resume. leite, carne, café, cacau. Entre as 400 mil famílias inte-
Entre as principais políticas está a criação do Programa de Aqui- grantes do Movimento, 50 mil implementam práticas
sição de Alimentos (PAA), em 2003, responsável pela compra de qua- agroecológicas. “Nós defendemos a agroecologia mas-
tro milhões de toneladas de comida entre 2003 e 2016 e consequente siva, de muita gente e com agroindústria. E qual o pro-
distribuição para a população mais vulnerável. Foi ainda no final do blema? Nós não temos a agroindústria. Só tem sentido
segundo mandato de Lula que o Programa Nacional de Alimentação eu produzir açaí agroecológico se conseguir trazer o açaí
Escolar (PNAE) passou a prever a necessidade de a merenda escolar do Pará para São Paulo. Eu não posso vender para fazer
ser composta por pelo menos 30% de alimentos adquiridos da agri- geladinho lá na porta do assentamento. E isso vale para
cultura familiar camponesa. Na sequência, o governo Dilma tentou o leite, o cacau, para todas as cadeias produtivas”, explica.
reforçar as políticas existentes. “O governo Dilma foi muito ruim no Mas há quem ache que a produção em larga escala
assentamento de novas famílias, mas foi um bom governo para os as- e a projeção alcançada pelos produtos comercializados
sentamentos, porque fortaleceu uma das melhores políticas públicas, levaram à mudança de propósito do Movimento ao
que é o PAA, também organizou o PNAE e pautou, sem ter conseguido longo das décadas. Rodrigues discorda. “Não há mu-
ter uma eficiência, a importância de os assentamentos terem qualida- dança de propósito, nossa luta é por terra. Mas quere-
de”, avalia Rodrigues. mos mais do que a posse, queremos desenvolvimento e
Para o terceiro mandato do presidente Lula, após seis anos de recuo nas um conjunto de políticas públicas para o campo. Agora,
políticas para o campo, Rodrigues traça algumas metas. A primeira é o as- a depender de cada momento histórico, você estica a
sentamento para as 60 mil famílias já acampadas e a necessidade de novos corda em determinados assuntos. Nesse momento,
assentamentos, numa média de 50 mil por ano. Ao mesmo tempo, o diri- nós estamos convencidos de que há uma crise alimen-
gente está cético em relação aos avanços diante de um orçamento reduzido tar no país e uma crise ambiental. E o MST vai ter que
para programas antigos. “O Incra tinha [um orçamento de] R$ 4 bilhões apresentar uma proposta para a sociedade”, diz.
em 2010, hoje está com R$ 300 milhões. O PAA já teve R$ 1,5 bi, hoje está No assentamento Zumbi dos Palmares, onde mora
com R$ 700 milhões. Então, não tem nada de novo”, lamenta. E ele entende Motta, as principais produções são de café e pimenta-
que é preciso ir além com a política de crédito. “Não podemos ter crédito -do-reino, em modelo de agrofloresta. Após a pande-
mia, ela viu o número de famílias se multiplicarem,
saindo dos 150 para mais de 200. “Muitos familiares
perderam seus empregos na cidade e decidiram pedir
abrigo para os parentes do campo”, relata. Em nome
desse crescimento e da legitimidade do Movimento, ela
defende que as ações de ocupação de terras voltem a
acontecer no estado. “O assentamento onde moro foi
a última ocupação registrada no Espírito Santo e essa
ação precisa ser retomada. O Movimento se reconhe-
ce na ocupação por mostrar para a sociedade a função
social da terra”, diz. E o latifúndio medido em hectares
não é o único que ela deseja ocupar. “Nós, do MST, tam-
bém queremos ocupar o latifúndio do saber e valorizar
o trabalho das pessoas do campo”, resume.
30 NOTAS

Valorização dos profissionais da Educação


Em dezembro de 2023, o Senado aprovou um qualidade da educação escolar” com “atualização dos profissionais” e
Projeto de Lei Complementar (nº 88/2018), que ambientes de trabalho que promovem a eficácia educacional. O texto
pretende promover o reconhecimento e o avanço especifica que a remuneração deve ser justa e alinhada com a missão
dos trabalhadores da Educação Básica de escolas educativa da escola e a admissão na carreira ocorrerá exclusivamen-
públicas. De autoria da ex-deputada e agora senado- te através de concursos.
ra Professora Dorinha Seabra (UB-TO), a proposta, O projeto determina uma jornada de trabalho de até 40 horas
relatada por Efraim Filho (UB-PB), estabelece a semanais, com tempo reservado para atividades de desenvolvimento
estruturação de carreiras, um valor de piso que profissional dos docentes. O PLC aborda a progressão na carreira, bus-
atraia bons profissionais para a carreira, a formação cando também incentivar um desenvolvimento profissional contínuo
contínua e a melhoria das condições de trabalho para “dedicação exclusiva à mesma rede de ensino, preferencialmente
para educadores, diretores, inspetores e técnicos. à mesma escola”. Além disso, o texto sugere uma estrutura salarial
No momento de fechamento desta edição, o texto variada, com um piso que atraia profissionais qualificados e um teto
aguardava sanção presidencial. que promova o crescimento e a excelência contínua. As diretrizes
O projeto define que as instituições educacio- aprovadas também destacam a importância de condições adequadas,
nais devem implementar esquemas de carreira como “número de turmas, por profissional, compatível com sua jorna-
motivacionais, “que estimulem o desempenho e da de trabalho”, ambientes de trabalho saudáveis e seguros, e acesso a
o desenvolvimento profissionais em benefício da recursos didáticos essenciais.

Legislação ambiental sob ataque


Uma reportagem da edição passada da Poli para se pronunciar sobre o tema. Até o fechamento desta edição, par-
(n°92) tratava de três Projetos de Lei com impacto tidos políticos como PT e Psol, entidades como a Articulação dos Povos
direto sobre a saúde e o meio ambiente que tramita- Indígenas do Brasil (Apib) e o próprio governo federal se mobilizavam
vam no Congresso. No curto intervalo de tempo en- para apresentar ações que argumentem a inconstitucionalidade da lei.
tre um número e outro da Revista, dois deles avan- Na sequência, ao apagar das luzes de 2023, o Senado aprovou o
çaram ainda mais. Primeiro, Câmara dos Deputados projeto 1.459/2022, conhecido como PL do Veneno, que flexibiliza a
e Senado derrubaram o veto do presidente Luiz regulação do uso de agrotóxicos no Brasil. No momento em que esta
Inácio Lula da Silva ao trecho da Lei 14.701/2023 Revista foi finalizada, várias entidades científicas e movimentos
que instituía o Marco Temporal, estabelecendo que sociais pressionavam pelo veto do presidente Lula à nova lei, entre
só podem ser demarcadas como terras indígenas eles o Conselho Nacional de Saúde. Também o Instituto Nacional do
aquelas que já estavam ocupadas por eles em 1988, Câncer (Inca) emitiu uma nota técnica em que reafirma recomen-
quando foi promulgada a Constituição Federal. Essa dação anterior de “redução gradativa” do uso de agrotóxicos “até a
tese já tinha sido recusada pelo Supremo Tribunal sua eliminação por completo”, devido aos “impactos nocivos à saúde”
Federal (STF), que deve ser novamente acionado dessas substâncias.

Bolsa de incentivo ao Ensino Médio


O Senado aprovou, no final de dezembro, uma voltados para a manutenção dos alunos na escola, e outro maior,
assistência financeira para estudantes do Ensino no final do ano letivo, que só poderá ser movimentado após a
Médio público. Trata-se do Projeto de Lei 54/2021, conclusão dessa etapa de ensino. Os valores serão definidos em
que, no momento em que esta edição da Poli foi regulamento próprio. Foram definidos critérios para a concessão
concluída, seguiria para sanção presidencial. O da bolsa, incluindo a frequência escolar, aprovação no ano letivo
benefício será direcionado a estudantes de baixa e matrícula na série seguinte, além de participação nos exames do
renda de escolas públicas e aqueles cujas famílias Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e no Exame Nacio-
estejam inscritas no Cadastro Único para Progra- nal do Ensino Médio (Enem).
mas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), com Pouco antes da aprovação do PL, o governo federal tinha emiti-
prioridade para os agrupamentos que ganham até do uma Medida Provisória (nº 1.198/2023) com o mesmo teor, mas
R$ 218 mensais. Alunos da Educação de Jovens e agora a tendência é que ela não chegue a ser votada no Congres-
Adultos entre 19 e 24 anos também podem receber so e caduque. Respondendo à MP, antes mesmo do PL 54/2021, o
a bolsa, que tem como principal objetivo combater a Congresso aprovou a Lei Complementar 203/2023 que autorizou o
evasão escolar e estimular a conclusão dos estudos. uso de R$ 6 bilhões do Fundo Social, criado para receber recursos
O texto estabelece que serão feitos pelo federais oriundos da exploração do pré-sal, para a execução do
menos nove depósitos mensais ao longo do ano, programa em 2024.
O QUE É, O QUE FAZ? 31

J
SESA I aneiro de 2024 marca um ano do início das Atribuições
ações de emergência sanitária na terra indí-
gena Yanomami, localizada entre os estados A organização da saúde indígena é feita de for-
do Amazonas e Roraima. Foi essa ‘força- ma descentralizada a partir de Distritos Sanitários
tarefa’, com a participação de vários ministérios, Especiais Indígenas (DSEIS), responsáveis tanto
que permitiu a retomada da assistência à saú- pela gestão dos determinantes ambientais quanto
de na região, com a realização de licitação para o da atenção primária, e que estão subordinados à
reabastecimento do estoque de medicamentos, a Sesai. Essa forma de organização também foi ins-
retirada de parte dos garimpeiros do território e tituída pela Lei Arouca, de 1999. Atendendo a uma
a contratação de profissionais para o atendimento demanda dos povos indígenas apresentada desde
à população. Mas a melhoria da saúde dos yano- as discussões sobre a forma de organização do SUS,
mamis dependerá da continuidade das ações. “Essa a criação dos DSEIS parte do reconhecimento de
emergência sanitária foi resultado de um cenário que a ‘geografia’ dos povos indígenas segue uma
de verdadeiro abandono do território indígena na lógica distinta das fronteiras de estados e municí-
área da proteção e da vigilância da segurança pú- pios. Já a formalização das orientações para a deli-
blica”, diz Weibe Tapeba, que está à frente da Se- mitação dos distritos está na Política Nacional de
cretaria de Saúde Indígena (Sesai), criada em 2010 Atenção à Saúde Indígena (PNASPI), aprovada em
como parte da estrutura do Ministério da Saúde, 2002. Entre os critérios estão a existência de rela-
com a responsabilidade de executar a Política Na- ções sociais entre os diferentes povos indígenas do
cional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e território e a sociedade regional; distribuição de-
gerir o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena mográfica tradicional dos povos indígenas, perfil
(SasiSUS) no SUS, o Sistema Único de Saúde. Foi epidemiológico e disponibilidade de serviços, re-
também a partir do trabalho da Sesai que se rea- cursos humanos e infraestrutura.
lizou o diagnóstico da calamidade yanomami nos Atualmente a Sesai se divide em dois departa-
primeiros dias do novo governo, em 2023. mentos: o de Determinantes Ambientais de Saúde
Indígena e o de Atenção Primária. O primeiro tem
Trajetória da Saúde indígena sob sua alçada a construção da rede de saneamen-
to básico e edificações em território indígena. Isso
A demanda pela criação de um subsistema de inclui a garantia de acesso à água potável para as
saúde indígena ganhou corpo com o movimento da comunidades que não têm acesso em sua própria
Reforma Sanitária, entre as décadas de 1970 e 1980, terra indígena, planejamento e realização de ações
que levou à criação do SUS. Até então sob responsa- para preservação de nascentes, saneamento, des-
bilidade da Funai, a Fundação Nacional dos Povos tinação do lixo, esgoto, bem como planejamento e
Indígenas, as atribuições do cuidado com a saúde ações de educação sobre esses temas. Mas, segundo
dessas populações começaram a ser divididas com avaliações dos entrevistados desta reportagem, es-
a Funasa, a Fundação Nacional de Saúde no começo sas ações têm avançado muito pouco. “Dentro dos
da década de 1990. Em 1999, foi aprovada a Lei 9.836, distritos você também vai ter o setor de saneamen-
também conhecida como Lei Arouca, que instituiu to e a situação se repete: não há aporte de recursos
formalmente o Subsistema de Saúde Indígena com suficientes e ainda há muita dificuldade logística.
financiamento direto da União e designou o Minis- Por exemplo, a chegada ao território yanomami é
tério da Saúde como responsável pela coordenação feita de forma aérea em 98% dos casos. Então, não
das ações, o que significou, naquela época, vincular é possível montar facilmente uma estrutura ou fa-
o Subsistema à Funasa. “A execução da Funasa apre- zer uma perfuração de poço”, avalia a pesquisado-
sentou muitos problemas e os povos indígenas come- ra da Ensp/Fiocruz. O secretário da Sesai concorda
çaram uma nova articulação para mudar o modelo que é preciso repensar o departamento de deter-
de gestão. A 4ª Conferência de Saúde Indígena, rea- minantes ambientais e informa que está em curso
lizada em 2006, debate especialmente isso. Essas dis- a elaboração de um novo planejamento para a área
cussões se desdobram até se criar, em 2009, um novo de saneamento, em conjunto com o Ministério dos
grupo de trabalho para articular a criação da Sesai, Povos Indígenas (MPI). “Nós fizemos um grupo de
o que ocorreu em 2010”, conta a pesquisadora da Es- trabalho para elaborar um programa nacional de
cola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/ saneamento em terras indígenas para criar uma
Fiocruz) Ana Lúcia Pontes. Mas foi em 2023 que, pela nova política de financiamento para essa área”, diz.
primeira vez, essa estrutura do Ministério foi ocupa- O outro departamento está relacionado à aten-
da por um secretário indígena, alimentando a expec- ção primária das populações indígenas, desenvolvi-
tativa de que venha um novo ciclo de mudanças. da nos territórios. Cada aldeia possui um posto de
32

saúde e um determinado conjunto de aldeias é as- este ano de 2024, o secretário ções Sociais (OS), um modelo que,
sistido por um polo base. Os atendimentos de média pretende remodelar a Sesai a entre outras questões, gera alta
e alta complexidade são realizados fora do território partir da Resolução apresenta- rotatividade de profissionais. O
indígena e para esse deslocamento há o suporte das da na 76ª Assembleia Mundial secretário, no entanto, ressalta
Casas de Apoio à Saúde Indígena, as Casais, respon- da Saúde, realizada em maio de que a realização de concurso pú-
sáveis pela hospedagem daqueles que necessitam 2023, na Suíça. Formulada pelo blico nessa área também não é ga-
sair das aldeias para realizar procedimentos não Brasil, a resolução aprovada no rantia de continuidade das ações
ofertados pela atenção básica. “O que a gente vê é encontro não tem força de lei, em territórios indígenas. “Existe
uma baixa articulação e coordenação entre a Sesai mas sugere que, entre outras uma avaliação do movimento in-
e as secretarias municipais, estaduais e os serviços medidas, os países desenvolvam dígena de que, infelizmente, nos
de saúde, que estão muito pouco preparados para e se aprofundem no contexto de moldes atuais, o concurso público
atender uma pessoa indígena, porque pode impli- saúde sobre os povos indígenas, com cargos efetivos não dá conta
car atender alguém que não fale português ou que identifiquem lacunas no acesso de atender à saúde dos povos in-
demande a presença da família ou fazer algum ri- e cobertura por saúde física e dígenas porque após o período [de
tual”, exemplifica Pontes. Essa melhor articulação é mental e incorporem uma abor- estágio] probatório de três anos,
um dos pontos prioritários da atual gestão da Sesai, dagem intercultural. “Considero os aprovados acabam pedindo
de acordo com o secretário. Ele explica que a pro- que nós temos um cenário de transferência e não ficam na saú-
posta é implantar laboratórios nos territórios indí- vazios assistenciais em diversos de indígena”, diz e acrescenta que
genas para a realização de exames clínicos básicos territórios indígenas do Brasil. há uma proposta em discussão na
e ampliar a rede de atenção com a utilização da E, por isso, nós estamos fazendo Secretaria para a realização de
telessaúde para evitar o deslocamento. A segunda um diagnóstico para começar- um concurso com regras especiais
medida implica levar acesso à internet para muitos mos a implementar um plano de para a atuação em terras indíge-
territórios, a exemplo do que já ocorreu em algu- superação dessas desigualdades nas. De acordo com o secretário,
mas áreas demarcadas, como no território yanoma- nos territórios a partir da estru- há 20 mil trabalhadores da saúde
mi após a emergência sanitária com a instalação de turação de unidades de saúde, de atuando na ponta da assistência
antenas para recepção do sinal via satélite. saneamento e de ampliação da para populações indígenas, sendo
Além de ampliar o atendimento no próprio nossa capacidade de assistência, seis mil agentes indígenas de saú-
território indígena, Tapeba quer aumentar a uti- por meio da contratação de mais de e de saneamento (AIS e Aisan)
lização de uma fonte de recursos antiga, mas com profissionais para atuar no nos- nesses territórios.
baixa adesão. Trata-se do IAE-PI, o Incentivo para so território a partir de 2024”, diz Tapeba também vê necessi-
a Atenção Especializada aos Povos Indígenas, re- Weibe Tapeba. dade de aumentar o número de
cursos que são repassados a partir dos blocos de fi- Em relatório de 2019, a Con- DSEIS para melhor atender às
nanciamento da Atenção Básica e da Alta e Média troladoria Geral da União (CGU) demandas da população indíge-
Complexidade, dentro do modelo fundo a fundo – identificou que faltava à Sesai na. “Esse é um modelo que já não
da União para Estados e municípios. Mas o acesso elaborar diretrizes de atuação dá conta da realidade, porque nós
depende do credenciamento das redes de saúde. Ele para o DSEIS e acompanhar as temos alguns territórios gigantes
conta que uma das grandes dificuldades é o desco- orientações realizadas. O secre- com uma limitação de infraestru-
nhecimento por parte dos gestores da existência tário concorda e informa que tura e dessa relação com estados
do IAE-PI, que pode ser requerido para hospitais, tem atuado para melhorias nesse e municípios”, diz. Como exemplo,
policlínicas, maternidades ou centros de atenção sentido, como um maior contro- ele cita o estado do Mato Grosso
psicossocial. Para atrair um número maior de redes le no vencimento de contratos. do Sul que tem apenas um distri-
conveniadas, a secretaria solicitou apoio ao Conse- “A preocupação não é apenas ter to para cuidar de uma população
lho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e ao maior controle sobre a destinação de 80 mil indígenas. E, nesse caso,
Conselho Nacional de Secretarias Municipais de de recursos, mas também garan- defende, seria preciso criar mais
Saúde (Conasems) para mobilizar seus gestores a tir a continuidade dos serviços e um distrito, para que o atendi-
verificarem se já realizaram o credenciamento. não abrir precedente para desas- mento fosse distribuído entre o
sistência. E isso, infelizmente, tem povo Terena e o povo Guarani. A
Necessidade de mudanças sido frequente”, relata. Sesai prepara uma proposta para
A maior parte da contratação a criação de novos distritos sani-
Apesar de ter chamado atenção do Brasil e do de profissionais de saúde para tários, que de acordo com Tape-
mundo pelo tamanho da tragédia, a necessidade atendimento à população indíge- ba, será finalizada em 2024, com
de readequar a assistência às populações indíge- na é feita por meio de contratos respaldo das consultas às popula-
nas não se limita aos yanomamis. Por isso, para de terceirização com Organiza- ções envolvidas.

JULIANA PASSOS
Há 65 anos, em 1o de janeiro ALMANAQUE
de 1959, terminava vitoriosa a
Revolução Cubana, que pôs fim à
ditadura de Fulgêncio Batista

CRISTHOFFER ALQUINGA
‘EU TENHO UM SONHO’

LIBRARY OF CONGRESS

Não haverá nem descanso nem Assassinado em 1968,


tranquilidade na América até o Martin Luther King,
negro adquirir seus direitos como pastor e militante
cidadão. Os turbilhões da revolta do Movimento pelos
Direitos Civis nos
continuarão a sacudir os alicerces
EUA, completaria
do nosso país até que o resplan- 95 anos em 15 de
decente dia da justiça desponte. janeiro de 2024.
(...)
Os trechos ao lado
Há quem pergunte aos defensores
são de um discurso
dos direitos civis: ‘Quando é que histórico durante
ficarão satisfeitos?’ Não estare- a ‘Grande Marcha’,
mos satisfeitos enquanto o negro que reuniu mais de
for vítima dos indescritíveis hor- 250 mil negros em
rores da brutalidade policial” Washington, em 1963.

LIBRARY OF CONGRESS
HUMANO É ILEGAL!”

A luta por liberdade das pessoas Em 26 de janeiro de 2024,


negras, que moldaram a natureza a filósofa Angela Davis,
“NENHUM SER

deste país, não pode ser apaga- que militou no Movimento


da com a varredela de uma mão. dos Direitos Civis dos
Nós não podemos esquecer que EUA na década de 1960,
vidas negras importam. Este é foi uma das lideranças
um país ancorado na escravidão do Partido Comunista
norte-americano e se
e no colonialismo, o que significa,
mantém como liderança
para o bem ou para o mal, a real
do feminismo negro,
história de imigração e escraviza- completa 80 anos. Esse é
ção. Espalhar a xenofobia, lan- o trecho de um discurso
çar acusações de assassinato e proferido na ‘Marcha das
estupro e construir um muro não Mulheres’ contra Donald
apagarão a história” Trump, em 2017.

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