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VOLUME I

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome


Brasília 2010
Fome ZeRo Uma História Brasileira

lIÇÕeS Da HISTÓRIa – aVanÇoS


e ReTRoceSSoS na TRaJeTÓRIa
DaS polÍTIcaS pÚBlIcaS De
comBaTe À Fome e À poBReZa
no BRaSIl
Anna Maria Medeiros Peliano

Abertura
A iniciativa de registrar a experiência do Fome Zero merece ser saudada com entusiasmo. Afinal, o próprio
nome do programa expressa a indignação da sociedade com a permanência do paradoxo da presença da fome
num País que produz alimentos em abundância. A fome é a face mais amarga do retrato de uma sociedade que
exibe índices de desigualdades sociais inadmissíveis frente aos níveis de riqueza alcançados pelo País. Extirpar
essa mazela é mais do que uma prioridade é uma obrigação ainda não cumprida.

A experiência do Fome Zero coroa uma sucessão de iniciativas registradas ao longo da história brasileira
recente que buscaram enfrentar, com ênfases e resultados distintos, esse problema. Ainda na primeira metade
do século XX a insatisfação com a permanência dessa mazela ensejou a adoção de políticas de alimentação e
nutrição no Brasil, dando início a sucessivas adaptações e mudanças que exibem uma longa trajetória de avanços
e retrocessos. Ao longo desse percurso, muito se aprendeu sobre o que deve ser feito, sem que tal aprendizado
tivesse evitado atrasos. De positivo, há que ressaltar o fato de que tendo a alimentação sido elevada à condição de
direito constitucionalmente reconhecido, o desafio de assegurar a segurança alimentar não é mais uma opção de
governo, mas uma obrigação do Estado, com toda a complexidade que o tema envolve.

Portanto, não há mais espaço para retrocessos. Importa extrair da história e do presente as devidas lições.
E, para isso, o registro do que foi e do que está sendo feito é de fundamental importância para que o aprendizado
se beneficie da reflexão e dos debates em curso não só no Brasil, mas em nível internacional. E nesse campo, o
Brasil tem não apenas o que aprender com o exame de outras experiências, mas também muito a oferecer, como
demonstra o interesse internacional pelas ações adotadas pelo País nessa área.

O que o passado e o presente nos ensina é que o sucesso de iniciativas voltadas para garantir a segurança
alimentar das populações pobres depende de o tema estar contemplado na estratégia de desenvolvimento do país.
Combater a fome significa, acima de tudo, combater as causas do subdesenvolvimento. Como já afirmava Josué
de Castro, em Geografia da Fome, não existe “nenhuma panaceia que possa curar este mal como se fosse uma

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doença de causa definida. A fome não é mais do que uma expressão (...) é a mais
trágica expressão do subdesenvolvimento econômico”.1

Em que medida, a trajetória das políticas brasileiras nessa


área pode ajudar a compreender as razões dos fracassos e
a enfrentar os desafios que se apresentam para encontrar
soluções definitivas para essa questão? De que modo é
possível alargar as perspectivas sob as quais o tema de-
ve ser apreciado e, assim, quem sabe, obter resultados
É preciso integrar ações de assistência
ainda mais rápidos? Por isso, acredito ser importante
alimentar com medidas capazes de
aproveitar a oportunidade que me foi oferecida de par-
ticipar desse livro para dar um depoimento apoiado em
gerar mudanças estruturais, como as
décadas de participação na elaboração, implementação de educação, saúde, geração de renda
e avaliação de políticas de combate à fome e à pobreza, e apoio à agricultura, entre outras. Esse
reunindo reflexões desenvolvidas ao longo dos mais dis- foi o entendimento que conduziu ao
tintos momentos dessa trajetória. desenho da estratégia do Fome Zero
Para mim, a preparação desse depoimento propiciou a
oportunidade de rever textos escritos no calor dos aconteci-
mentos e dos debates da época. A intenção é oferecer ao leitor
uma visão crítica das políticas adotadas no passado para subsidiar
os debates que deverão ocorrer após a publicação do livro, não para
desmerecer o que foi feito, mas sim pela convicção de que muito se pode
aprender com os desacertos cometidos.

O depoimento restringe-se às intervenções do setor público no âmbito exclusivamente federal, desconsi-


derando a atuação dos demais níveis estaduais e municipais de governo e da sociedade civil.

Restringe-se, ainda, às estratégias e programas de combate à fome e à pobreza no campo das políticas
sociais. Portanto, está longe de esgotar as diversas dimensões que envolvem o desafio da segurança alimentar,
que depende, conforme assinalado, de inserir esse tema na estratégia nacional de desenvolvimento. Isso é neces-
sário, mas não é suficiente. É preciso associar às medidas no campo econômico políticas específicas para superar
o desafio de garantir a segurança alimentar, com base em um enfoque múltiplo e abrangente. A experiência tem
demonstrado que o equacionamento de problemas sociais, dentre os quais destaca-se a questão da fome, não se
dá por meio de programas isolados e setoriais. É preciso integrar ações de assistência alimentar com medidas
capazes de gerar mudanças estruturais, como as de educação, saúde, geração de renda e apoio à agricultura,
entre outras. Esse foi o entendimento que conduziu ao desenho da estratégia do Fome Zero. E essa é a abordagem
adotada na elaboração deste depoimento.

A história das políticas de alimentação e nutrição no Brasil evolui ao logo de quatro atos: o primeiro é o mais
longo, se inicia nos anos quarenta e se estende até meados dos anos setenta com a aprovação do II PRONAN;
o segundo é o mais turbulento e se estende até o final dos anos oitenta; o terceiro se desenrola na década de
noventa; e o quarto ato se centra no primeiro decênio do século XXI, já sob a égide do governo do presidente Lula.

Primeiro Ato: Os Primórdios das Políticas de Alimentação e Nutrição


A história das políticas de alimentação e nutrição nos remete à década de 1940. Já faz setenta anos que
a assistência alimentar às populações mais pobres foi incorporada ao campo das políticas públicas gover-
namentais no Brasil. Foi no âmbito do Ministério do Trabalho (na época também da Indústria e Comércio),
com a criação, em 1939, do Serviço Central de Alimentação no IAPI – Instituto de Aposentadoria e Pensão dos
Industriários, que foi lançada a base da política de alimentação implementada no País, centrada no binômio
alimentação/educação.

1 CASTRO, Josué. Geografia da Fome, 3. Ed. ,São Paulo: Ed. Brasileira, 1965.

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FOME ZERO Uma História Brasileira

Já no ano seguinte este Serviço Central foi substituído pelo Serviço de Alimentação da Previdência Social – SAPS,
que tinha por objetivo “melhorar a alimentação do trabalhador e, consequentemente, sua resistência orgânica e
capacidade de trabalho, mediante a progressiva nacionalização dos seus hábitos alimentares.”2

Das atividades desenvolvidas pelo SAPS originaram-se muitos dos programas de assistência alimentar vigentes
nos dias atuais. Dentre eles cabe destacar: a) a criação de restaurantes populares; b) o fornecimento de uma refei-
ção matinal para os filhos dos trabalhadores (embrião da merenda escolar); c) um auxílio alimentar durante o perí-
odo de trinta dias ao trabalhador enfermo ou desocupado (transformado em auxílio-doença); d) a criação de postos
de subsistência para venda, a preços de custo, de alguns gêneros de primeira necessidade; e) o serviço de visitação
domiciliar junto à residência dos trabalhadores; e f) os cursos para visitadores e auxiliares técnicos de alimentação.

Ao fim do primeiro governo Vargas (1945), o SAPS entrou em crise, foi se esvaziando progressivamente3 e suas
funções foram transferidas para a Companhia Brasileira de Alimentos – COBAL, criada em 1962.

O comando da política de alimentação se transferiu no pós-guerra para a Comissão Nacional de Alimentação – CNA,
criada no âmbito do Ministério da Saúde. A CNA foi substituída pelo Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição – INAN,
em 1972, que, por sua vez, foi extinto em 1997. Coube, assim, ao setor saúde, por meio da CNA, a elaboração e aprovação,
no início dos anos de 1950, do Primeiro Plano Nacional de Alimentação e Nutrição no Brasil. E a responsabilidade da área
de saúde pela elaboração e coordenação dos programas de alimentação e nutrição permaneceu até os anos noventa.

Não obstante, quando analisamos os diversos Planos e Programas elaborados desde então, verificamos al-
gumas características comuns. Em todos eles estão destacadas as origens estruturais do problema alimentar
e nutricional e a necessidade de mudanças no modelo de desenvolvimento econômico e social do País. Neste
sentido, os programas de alimentação, stricto sensu, desde o início dos anos de 1950, foram vistos como resposta
emergencial para o problema da fome e desnutrição, que aflige significativa parcela da população.

Uma segunda característica importante e presente em todos os Planos é a identificação de um foco central
de atuação, com ênfase, inicialmente, na educação alimentar, no pressuposto de que a desnutrição poderia ser
significativamente reduzida mediante a difusão do conhecimento das regras básicas de uma alimentação adequada.

A partir da década de 1960, a atenção voltou-se para o enriquecimento de produtos alimentícios e o apoio às
indústrias de alimentos especialmente formulados, de alto valor nutricional, com base na suposição de que a dieta
básica da população necessitava ser reforçada no tocante ao seu valor protéico. Tal suposição foi contestada pelo
ENDEF/1974, que identificou na alimentação do brasileiro a predominância de um déficit calórico. Isto é, dada a com-
posição da dieta da população, aqueles grupos que atingiam níveis de consumo adequados, em termos quantitativos,
não apresentavam déficit protéico, ou seja, o brasileiro não comia mal, comia pouco4. Dessa constatação decorreu,
no período seguinte, uma rejeição aos programas de educação alimentar. Eles eram associados a “professoras nas
escolas ensinando crianças pobres a se alimentarem de forma variada, incluindo carnes, frutas e verduras, às quais
não tinham condições financeiras de adquirir”. Obviamente, a questão alimentar é muito mais complexa e hoje, em
um momento que cresce a obesidade entre famílias pobres, o tema tem que ser revisto, aprimorado e fortalecido.

Um dado importante a enfatizar nos resultados do ENDEF foi a presença, nos anos setenta, de algum grau de
desnutrição em 46% das crianças menores de 5 anos (peso idade).

Segundo Ato: a Aprovação do II PRONAN


Em meados da década de 1970, com a aprovação no II Programa Nacional de Alimentação e Nutrição –
PRONAN5, em fevereiro de 1976, houve uma reviravolta na concepção dos programas de alimentação. Por isso,

2 Decreto-Lei nº 2.478, de 5 de agosto de 1940.

3 O SAPS foi oficialmente extinto em dezembro de 1967.

4 Ver Anna Maria Peliano: A Assistência Alimentar nas Políticas Governamentais. Texto elaborado para coletânea de artigos publicados pela CONAB,
por ocasião da comemoração dos 500 anos do descobrimento do Brasil. Brasília, 1999.

5 A elaboração do II PRONAN foi coordenada por Eduardo Kértezs, então coordenador da Área de Saúde do CNRH/IPEA. O documento foi fruto de uma
elaboração conjunta IPEA/INAN.

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Lições da História – Avanços e Retrocessos na Trajetória das
Políticas Públicas de Combate à Fome e à Pobreza no Brasil

esse plano foi considerado um marco na política de alimentação e nutrição do País


e abre a cena do segundo ato.

Com o II PRONAN, a ênfase voltou-se para a utilização de alimen-


tos básicos nos programas alimentares e o apoio aos pequenos pro-
dutores rurais, com vistas à elevação da renda do setor agrícola e
ao aumento da produtividade da agricultura familiar. O diagnós-
tico era o de que a agricultura brasileira responde satisfato-
riamente aos estímulos de mercado, verificando-se, à época,
Com o II PRONAN, a ênfase voltou-se
uma expansão muito grande na produção de produtos ex-
para a utilização de alimentos básicos
portáveis em detrimento dos alimentos de consumo interno,
cuja produção estava estrangulada pelo baixo poder aqui-
nos programas alimentares e o apoio aos
sitivo dos trabalhadores urbanos, inviabilizando a melhoria pequenos produtores rurais, com vistas
dos preços para os produtores rurais. Propôs-se, então, a à elevação da renda do setor agrícola
criação de um mercado institucional mediante a unificação e ao aumento da produtividade da
das compras de alimentos de todos os programas governa- agricultura familiar
mentais de distribuição de alimentos para o grupo materno-
infantil e a merenda escolar em uma única instituição, no caso
a COBAL, hoje Companhia Nacional de Abastecimento – CONAB.
Esse mercado institucional, de grande porte, teria como objetivo
estimular a produção e garantir a aquisição dos alimentos, a preços
remuneradores, diretamente dos pequenos produtores, cooperativas e
pequenas agroindústrias mais próximas das áreas rurais.

O Que se Extrai da Experiência do II PRONAN?


Quando se analisa a ação governamental durante a vigência dos diversos Planos ou Programas Nacionais em
relação aos diferentes focos mencionados – educação alimentar, enriquecimento dos alimentos e apoio à produ-
ção – observa-se que ela foi muito tímida e essas mesmas questões continuam presentes nos debates sobre os
programas alimentares nos dias atuais.

O que se verificou, na prática, nessa fase foi a implantação de um conjunto diversificado de programas de
alimentação e nutrição que contemplava a distribuição gratuita de alimentos, com enfoques distintos e nem sem-
pre compatíveis com as diretrizes das políticas defendidas nos planos oficiais. A extinta Legião Brasileira de
Assistência – LBA, na vigência do II PRONAN e até o início dos de 1990, promoveu a distribuição de alimentos nu-
tricionalmente enriquecidos adquiridos diretamente do setor industrial. O programa da merenda escolar manteve
a distribuição de alimentos enriquecidos e, somente em meados dos anos 80, passou a adquirir, parcialmente, os
alimentos básicos adquiridos pela CONAB. O INAN foi o único que buscou associar a distribuição de alimentos e
de abastecimento alimentar em periferias urbanas (Programa de Abastecimento de Alimentos Básicos em Áreas
de Baixa Renda – PROAB) ao apoio à agricultura familiar, por meio do Projeto de Aquisição de Alimentos em Áreas
Rurais de Baixa Renda – PROCAB, realizado em parceria com a CONAB. Para isso foram criados polos de compras
para escoamento da produção em áreas rurais com concentração de pequenos agricultores nos estados do Nor-
deste. Entretanto, recursos insuficientes e descontinuidade na distribuição de alimentos, entre outros problemas,
inviabilizaram o dinamismo inicialmente preconizado para os pequenos produtores.

Com uma sistemática integrada inovadora, o II PRONAN encontrou severas resistências junto à maioria dos
ministérios envolvidos, embora tenha contribuído para fortalecer, pela adição de novos recursos, programas de
suplementação alimentar das esferas do MEC (merenda escolar) e MPAS (extinta LBA). No entanto, na medida
em que estas instituições se limitaram à distribuição de produtos industrializados e formulados, contrariaram as
diretrizes que justificaram a própria elaboração do PRONAN.

Avaliações realizadas ainda no início dos anos 1980 atribuíram as deficiências da implementação das
políticas de alimentação, assim como das demais políticas sociais, ao fato de que elas “refletiam, em grande
parte, a desigualdade de forças de pressão dos diferentes grupos envolvidos nos programas sociais, que

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Fome ZeRo Uma História Brasileira

determinam que os benefícios sejam, com frequência, apropriados pe-


los segmentos mais próximos aos centros de decisão”. E o mesmo
trabalho concluía: “os alimentos se distribuem com a renda e
esta se distribui com o poder político e com a capacidade de
autodefesa de cada um dos grupos sociais. A solução dos
problemas de alimentação, bem como dos demais proble-
mas sociais escapa do campo ‘racional’ dos tecnocratas
Em 1985, na esteira da para o campo político. E só encontrará soluções se o
redemocratização do País, espaços campo político for o do debate, o da participação, o da
de participação e debates sobre o defesa legítima dos interesses de todas as camadas da
população”6. A conjuntura política daquela época não da-
tema da fome e desnutrição
va espaço para nada disso.
foram se estruturando
Em outro estudo, do período 1980-1984, é assinalado
que a análise do volume de recursos alocados aos programas
de alimentação e nutrição poderia indicar o fortalecimento
progressivo do setor. Esses recursos “responderam, entre-
tanto, por um gasto, no nível federal, equivalente a apenas 0,03%
do PIB em 1980, elevando-se para 0,10% em 1984. Este aumento
de recursos foi, paradoxalmente, acompanhado de uma deterioração
no atendimento, à medida que o volume de alimentos distribuídos per
capita e, portanto, a complementação nutricional, foi sendo reduzida de forma
progressiva. Tal fato pode ser atribuído especialmente a pressões políticas para expansão do número de
beneficiários, o que ocorreu muitas vezes a partir de critérios demagógicos e clientelistas, em detrimento da
qualidade dos programas. De qualquer forma, os recursos destinados ao setor ainda que crescentes, estive-
ram sempre aquém das reais necessidades da população brasileira, se dimensionados em relação ao déficit
alimentar dado pelo nível do poder aquisitivos da classe trabalhadora. Enquanto instrumento de redistribuição
de renda, pode-se admitir que o impacto dos programas específicos de alimentação foi absorvido pela “Política
de Desalimentação”, decorrente dos ajustes implementados no setor econômico7.

O Que Significou a Redemocratização de 1985 para as Políticas de


Alimentação e Nutrição?
Em 1985, na esteira da redemocratização do País, espaços de participação e debates sobre o tema da
fome e desnutrição foram se estruturando. Ainda em 1985, o Ministério da Agricultura, por meio da COBAL,
implantou o Programa de Abastecimento Popular – PAP e organizou no denominado “Dia D do Abastecimento”
o Debate Nacional de Abastecimento Popular, que mobilizou cerca de 30 mil participantes vinculados a qua-
se três mil organizações populares das periferias dos centros urbanos. Os participantes encaminharam uma
pauta extensa de reivindicações, que tratavam da política econômica e da questão salarial, da política agrária e
agrícola, dos programas de abastecimento e da participação popular na formulação e fiscalização das políticas
públicas para o setor. As propostas extraídas desses encontros foram trazidas para Brasília, debatidas e en-
tregues ao então Ministro da Agricultura, Pedro Simon. A percepção pelas comunidades da complexidade dos
problemas alimentares ficou claramente expressa na abrangência das sugestões apresentadas. Inaugurava-se
ali um embrião das conferências de segurança alimentar. No ano seguinte, foi realizada a I Conferência Nacio-
nal de Alimentação e Nutrição.

6 PELIANO, Anna. O II Programa Nacional de Alimentação e Nutrição – PRONAN e a Política Social. Texto elaborado em Julho/83. UNB. Brasília. E,
PELIANO, Anna. A Política Social Participativa e o II Programa Nacional de Alimentação e Nutrição – PRONAN. UNB. Brasília, Julho de 1983.

7 PELIANO, Anna. Os Programas Alimentares e Nutricionais no Contexto da Recessão Econômica: 1980-1984. In: Crise e Infância no Brasil. O Impacto
das Políticas de Ajustamento Econômico. Organizadores: José Paulo Z. Chahad e Ruben Cervini. São Paulo, 1988. IPE/USP e UNICEF

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Lições da História – Avanços e Retrocessos na Trajetória das
Políticas Públicas de Combate à Fome e à Pobreza no Brasil

Na UnB foi criado o Núcleo de Estudos da Fome8, onde foram desenvolvidas diversas atividades, entre pes-
quisas, seminários, publicações (Cadernos de Economia e Nutrição) e a edição de um jornal – Fome em Debate
– com uma tiragem de 40 mil exemplares distribuídos dentro e fora do Brasil. Esse jornal visava, essencialmente,
promover a conscientização e a mobilização política em torno do tema. Nas eleições de 1989, numa de suas
edições, foram realizadas entrevistas com os então candidatos à Presidência da República para que apontassem,
se eleitos, quais seriam as medidas que adotariam para combater a fome no País. Foi instituído o Prêmio Josué
de Castro que, na sua primeira edição, premiou Walter Barelli, por sua luta no DIEESE pela elevação do salário
mínimo. Por ocasião da premiação, reuniram-se, na UnB, as principais lideranças sindicais do País para debater
e elaborar a Carta de Brasília, sobre o tema “Fome e Salário”. A carta foi entregue ao Presidente da República,
em exercício, Ulisses Guimarães. No ano seguinte, o prêmio foi para José Francisco da Silva pelo seu trabalho à
frente da CONTAG em defesa dos trabalhadores rurais.

Ainda no segundo período dos anos oitenta, com a promulgação da Constituição de 1988, deu-se um grande passo na
área de alimentação, com o reconhecimento da alimentação escolar como um direito constitucional. Esse ato fortaleceu
na sociedade o entendimento de que merenda não era mais uma opção dos governantes, mas uma obrigação legal.

Não obstante esses avanços trazidos pela redemocratização do País, no âmbito do governo da chamada “No-
va República”, foi lançado com holofotes, pelo presidente Sarney, o Programa Nacional de Leite para Crianças
Carentes – PNLCC, por meio da distribuição de tíquetes para a aquisição de 30 litros de leite junto ao comércio
local. A concepção do programa contrariava os princípios defendidos pelos especialistas da época. Ele era cen-
tralizado (do governo federal diretamente para associações comunitárias), clientelista, dissociado de qualquer
outra intervenção na área de saúde, ou produção agrícola, e superpunha-se aos demais programas, sem qualquer
esforço de integração. Os cupons costumavam ser utilizados como moeda paralela, vendidos no mercado com
deságio. Por ocasião do lançamento do programa, o jornal Fome em Debate publicava: “Cupons: Governo insiste
no clientelismo”. O programa começou operado pela Secretaria Especial de Ação Comunitária – SEAC, órgão que
passou pela Presidência da República, Secretaria de Planejamento, Ministério do Interior e Ministério da Ação
Social. Terminou a década vinculado à Legião Brasileira de Assistência – LBA.

8 Cristovam Buarque, quando assumiu a reitoria da Universidade de Brasília, criou diversos Núcleos de Estudos Multisetoriais, entre eles o Núcleo de
Saúde Pública (NESP) abrangendo o de Estudos da Fome, coordenado por Anna Maria Peliano.

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FOME ZERO Uma História Brasileira

Na cena final dos anos oitenta, o “governo federal operava 12 programas de alimentação e nutrição que juntos
gastaram mais de U$ 1 bilhão, em 1989. Durante a década, os investimentos nessa área apresentaram uma tendên-
cia de crescimento. Entretanto, o maior aporte de recursos não foi acompanhado de um aprimoramento, ou racio-
nalização da intervenção estatal. Por exemplo, chegaram a coexistir 4 programas distintos de distribuição gratuita
de alimentos, apenas para o grupo de crianças menores de 7 anos, que absorviam 2/3 dos recursos financeiros”9.

Várias comissões foram criadas para discutir os programas de alimentação e nutrição em curso e sempre
chegavam às mesmas recomendações: evitar paralelismos e superposição dos programas, unificar as ações e os
recursos, de forma a reduzir os gastos administrativos e aumentar sua eficiência e eficácia; privilegiar o grupo
materno-infantil, associando a distribuição de alimentos às ações de saúde; e, concentrar o atendimento na Região
Nordeste. Essas recomendações não foram acatadas e a cena final mostrava uma total confusão administrativa e
um alerta de que 31% das crianças brasileiras menores de cinco anos ainda apresentavam desnutrição, sendo que
5% sofriam de desnutrição moderada ou grave10.

Terceiro Ato: As Reviravoltas dos Anos Noventa


No início dos anos de 1990, com o Governo Collor, a cena é de terra arrasada, com a extinção de quase todos os
programas de alimentação e nutrição então existentes. Jogou-se fora a bacia e a criança. Em 1992, os recursos para
a área estavam reduzidos a U$ 208 milhões. O Programa da Merenda Escolar foi limitado a um atendimento de cerca
de 30 dias, quando a meta era de 180 dias/ano. Durante alguns meses, entre 1991 e 1992, a CONAB distribuiu cestas
de alimentos para cerca de 600 mil famílias carentes do Nordeste vítimas da seca, por meio do Programa “Gente
da Gente”. Na área do abastecimento popular, os programas foram sendo gradativamente reduzidos e a CONAB
mantinha apenas a rede SOMAR que foi perdendo força e terminou sendo oficialmente extinta em 1997.

Naquela ocasião, sucessivas críticas aos programas de alimentação levaram a questionamentos sobre sua va-
lidade e a justificativas para a sua extinção. Em uma análise dos programas de alimentação e nutrição publicada
pelo IPEA, em 1992, era assinalado: “parece não haver mais indignação viver em um País em que mais da metade
de suas crianças pertencem à famílias que não têm poder aquisitivo suficiente para garantir a satisfação de suas
necessidades essenciais. Pergunta-se, agora, se deve ou não o setor público contribuir para a melhoria dos padrões
alimentares por meio da distribuição gratuita ou subsidiada de alimentos. Esquece-se que o inadmissível é a ne-
cessidade deste tipo de intervenção nas dimensões observadas, e não na própria intervenção; de que o injustificável
é o descumprimento das diretrizes recomendadas e das metas anunciadas, além da não mobilização dos recursos
financeiros e do suporte político necessários”. Concluía-se no documento: “o retrato das crianças brasileiras forne-
cido pela PNSN revela que a desnutrição é um indicador inequívoco de um quadro carencial mais amplo, e que não
poderá ser combatida isoladamente. Revela, também, que paralelamente à elevação do poder aquisitivo, o acesso
a serviços públicos essenciais, tais como saúde, saneamento, habitação e educação é fundamental para a melhoria
das condições nutricionais. Nesse sentido, os programas de distribuição de alimentos devem ser assumidos como
aquele componente complementar, de caráter assistencial, desenvolvido no âmbito das demais políticas setoriais.
Devem ser entendidos em um novo contexto político-social, no qual a assistência não se confunde com uma dádiva
governamental, mas sim com um direito de cidadania reconhecido pela constituição.11

Com o impeachment do presidente Collor, assume o governo Itamar Franco (1993/1994) e promove uma gui-
nada na questão das políticas de alimentação e nutrição. De imediato, criou um grupo para redesenhar o antigo
Programa do Leite do governo Sarney e iniciou um processo de descentralização da merenda escolar num acordo
estabelecido com a Frente dos Prefeitos.12

9 BRASIL: Os Programas Federais de Alimentação e Nutrição no Início da Década de 90. Anna Maria Peliano e Nathalie Beghin. IPEA, Brasília, Abril de 1994.

10 Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição, INAN/IBGE/IPEA. Brasília, Março de 1990.

11 Anna Maria Peliano. Os Programas de Alimentação e Nutrição para Mães e Crianças no Brasil. Texto para Discussão nº 253. IPEA. Brasília. Abril de 1992.

12 A proposta de descentralização da merenda escolar apresentada pelo governo federal aos prefeitos foi elaborada no IPEA: A Descentralização da
Merenda Escolar. Anna Maria Peliano e Nathalie Beghin. IPEA, Brasília, outubro de 1992.

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Lições da História – Avanços e Retrocessos na Trajetória das
Políticas Públicas de Combate à Fome e à Pobreza no Brasil

Nesse mesmo momento, o movimento da sociedade civil pela “Ética na Política”


elegia o Combate à Fome e à Miséria pela Vida como bandeira de mobilização
nacional e o governo paralelo do PT lançava a proposta de uma Política
Nacional de Segurança Alimentar. Sem entrar em detalhes do pro-
cesso que reuniu todas essas forças, o fato foi que elas se reuni-
ram e o tema sensibilizou o País. E a primeira iniciativa decor-
rente dessa união de forças foi a elaboração do Mapa da Fome.

A importância da publicação do Mapa


da Fome foi grande para o País. Segundo
Qual Foi a Importância do Mapa noticiou o Boletim Informativo do IPEA, à
da Fome? época, foi “a pesquisa que comoveu o País
e estimulou a mais empolgante reação do
Entre outras contribuições, ele ajudou a difundir o te- governo e sociedade”
ma da “segurança alimentar”, que havia sido introduzido
no Brasil em meados da década de 1980, pelo Ministério da
Agricultura, centrado em dois grandes objetivos: atender às
necessidades alimentares da população e atingir a autossufici-
ência nacional na produção de alimentos. Em 1983, a FAO lançou
um novo desafio para a segurança alimentar, abrangendo não só a
questão da oferta adequada de alimentos em termos de qualidade e
quantidade, mas também a da estabilidade dos mercados e a da segurança
no acesso aos alimentos ofertados. Essa abordagem foi ratificada no Brasil em
1986, quando foi realizada a I Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição.

Entretanto, a segurança alimentar só começou a ser difundida nos anos de 1990, a partir da publicação do
“Mapa da Fome: Subsídios à Formulação de uma Política de Segurança Alimentar”13 e da criação do Conselho
Nacional de Segurança Alimentar (1993), culminando com a realização da I Conferência Nacional de Segurança
Alimentar (1994).

A importância da publicação do Mapa da Fome foi grande para o País. Segundo noticiou o Boletim Informa-
tivo do IPEA, à época, foi “a pesquisa que comoveu o País e estimulou a mais empolgante reação do Governo e
sociedade”14. A elaboração desse mapa foi solicitada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, representando
o Movimento pela Ética na Política e, com a informação de que 32 milhões de pessoas passavam fome no Brasil,
mensagem que todos podiam entender, o tema entrou na agenda dos debates nacionais. “Esse é um dado de
mobilização, uma informação para mexer com a sociedade”, costumava dizer Betinho, e foi o que aconteceu.

No entanto, apesar da favorável acolhida que o estudo teve nos mais diversos segmentos da sociedade, ele
também foi objeto de contestação por parte de órgãos da mídia nacional e técnicos, inclusive do próprio IPEA, que
invocando razões de ordem técnica, indicavam que as estimativas estariam superestimadas. Medições alternati-
vas foram contrapostas, algumas das quais chegavam a sustentar patamares de indigência 50% menores. Uma
comissão mista com técnicos do IPEA, IBGE e CEPAL foi constituída para refazer os cálculos, trabalhou por um
longo período e não chegou a um consenso. Tempos depois, técnicos do IPEA que participaram dessa comissão
publicaram um novo estudo no qual reconheciam que o número de indigentes para o mesmo ano de 1990 era da
ordem de 31 milhões de pessoas15.

13 O Mapa da Fome: Subsídios à Formulação de uma Política de Segurança Alimentar. Anna Maria Peliano, coord. Documento de Política nº 14. IPEA,
Brasília, Março de 1993.

14 Ano VI - nº 9 - setembro de 1994. Brasília.

15 BARROS, Ricardo; HENRIQUES, Ricardo e MENDONÇA, Rosane. A estabilidade inaceitável: desigualdade e pobreza no Brasil. In. Desigualdade e
Pobreza no Brasil. Organizado por Ricardo Henriques. Rio de janeiro: IPEA, 2000.

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FOME ZERO Uma História Brasileira

A metodologia utilizada para elaborar o Mapa da Fome foi extraída dos estudos sobre pobreza da CEPAL, ins-
tituição parceira do IPEA nesse trabalho, e que consistia em levantar o custo, por região, de uma cesta básica de
alimentos necessária para satisfazer as necessidades nutricionais das famílias para identificar quantas famílias
tinham renda que permitia adquirir essa cesta básica. As pessoas que viviam em famílias com uma renda igual
ou inferior ao valor da cesta básica de alimentos eram então incluídas no grupo das que passavam fome. Isso
porque parte das rendas das famílias precisam atender outras despesas além da alimentação, como a moradia,
o transporte, a saúde, a educação, o vestuário etc. Assim, a fome podia ser medida com base na falta de renda
para comprar os alimentos necessários a uma alimentação adequada. Com essa concepção se chegou ao número
de 32 milhões de pessoas que não tinham renda para garantir a sua alimentação nos níveis recomendados. (Ver
“Brasil: Mapa da Distribuição da População Indigente”).

BOA VISTA
BRASIL: DISTRIBUIÇÃO
RORAIMA
AMAPÁ
DA POPULAÇÃO INDIGENTE
MACAPÁ

ILHA DE
MARAJÓ BELÉM

MANAUS SÃO LUIZ


FORTALEZA
58,13% 48,09%

MARANHÃO
AMAZONAS PARÁ 74,41%
TEREZINA
RIO GRANDE 51,91%
DO NORTE NATAL
5%
,9
15 54,44%
25,59% 25,92% JOÃO PESSOA
CEARÁ PARAÍBA
PIAUÍ 44,19%
70,28% RECIFE 45,56%
28,53% PERNAMBUCO

ACRE PORTO VELHO TOCANTINS 29,72%


27,28%
ALAGOAS MACEIÓ
50,99%
RIO BRANCO PALMAS
49,01%
RONDÔNIA SERGIPE
ARACAJÚ

59,90%
BAHIA
SALVADOR

6,65%
51,27%
MATO GROSSO
LEGENDA 31,44%
I - DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DOS 32 MILHÕES CUIABÁ 48,73%
DE BRASILEIROS EM CONDIÇÕES DE INDIGÊNCIA GOIÁS D.F. 44,74%
SEGUNDO UNIDADES DA FEDERAÇÃO - 1990
GOIÂNIA

11,02%
0,01 a 0,4

0,8 a 1,4 44,24%


MATO GROSSO DO SUL
2,1 a 3,1 BELO HORIZONTE ESPÍRITO
CAMPO GRANDE SANTO
4,7 a 4,9 VITÓRIA
MINAS GERAIS
SÃO PAULO 22,36%
RIO DE JANEIRO
5,3 a 6,8 14,21%
38,03% 16,98%
59,91%
SÃO PAULO RIO DE JANEIRO
7,2 a 7,4 36,61% 68,81%
7,84%
32,25%

PARANÁ CURITIBA
9,5 a 11,0 II - DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DAS PESSOAS INDIGENTES
DENTRO DE CADA UNIDADE DA FEDERAÇÃO POR SITUAÇÃO
DO DOMICÍLIO

SANTA CATARINA OBS: 1 - NA REGIÃO NORTE NÃO CONSTA A INDIGÊNCIA RURAL


63,64% FLORIANÓPOLIS POR FALTA DE DADOS DISPONÍVEIS.
ÁREA METROPOLITANA
13,7 2 - OS INDIGENTES DO ESTADO DO TOCANTINS ESTÃO INCLUÍDOS
ÁREA URBANA NÃO METROPOLITANA 57,07% 16,36%
NO ESTADO DE GOIÁS.
ÁREA RURAL
ELABORAÇÃO:
14,72%
IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
28,21% PORTO ALEGRE

RIO GRANDE
DO SUL

Mas o Mapa da Fome não se restringia ao dimensionamento da pobreza, ele trazia também um mapeamento da
produção agrícola do País e sugestões para o enfrentamento do problema alimentar (Ver o mapa: “Distribuição da
Produção Nacional de Grãos Alimentícios”). Ressaltava que a disponibilidade interna dos alimentos era superior às
necessidades diárias de calorias e proteínas de uma população equivalente à brasileira. O Brasil “dispõe de 3.280
kcal e de 87 gramas de proteínas per capita/dia para uma recomendação de 2.242 kcal e 53 gramas de proteínas,
respectivamente (FAO)”. “De imediato, a atuação do governo, com vistas ao atendimento dos objetivos de erradicação
da fome e de melhoria dos padrões nutricionais, deveria se concentrar em duas providências complementares: de

34
Lições da História – Avanços e Retrocessos na Trajetória das
Políticas Públicas de Combate à Fome e à Pobreza no Brasil

um lado, enfatizar a prioridade nas estratégias de política econômica voltadas para o combate ao desemprego, à
retomada do crescimento, e à melhoria dos padrões de remuneração do trabalhador, parcialmente já contempladas
na nova legislação da política salarial; do outro, adotar medidas urgentes para reduzir a enorme distância que separa
o preço recebido pelos produtores dos custos de aquisição dos alimentos básicos na rede do comércio local”16. E o
documento segue fazendo sugestões para a questão do abastecimento alimentar e defendendo ações complemen-
tares de assistência alimentar para regiões extremamente pobres e para grupos específicos da população (reforço e
aprimoramento dos programas destinados ao grupo materno-infantil, escolares e trabalhadores).

DISTRIBUIÇÃO DA PRODUÇÃO NACIONAL


BOA VISTA

RORAIMA
DE GRÃOS ALIMENTÍCIOS
AMAPÁ

MACAPÁ

ILHA DE
MARAJÓ
BELEM

MANAUS SÃO LUIZ

FORTALEZA
MARANHÃO
AMAZONAS PARÁ
TEREZINA CEARÁ RIO GRANDE
DO NORTE
NATAL

PARAÍBA JOÃO PESSOA


PIAUÍ
RECIFE
PERNAMBUCO

ACRE PORTO VELHO TOCANTINS ALAGOAS


MACEIÓ
RIO BRANCO PALMAS
RONDÔNIA SERGIPE
ARACAJÚ
BAHIA

SALVADOR

MATO GROSSO

CUIABÁ GOIÁS
D.F.

GOIÂNIA

LEGENDA: MINAS GERAIS

ZONAS % DA PRODUÇÃO DE GRÃOS MATO GROSSO DO SUL BELO HORIZONTE


ESPÍRITO
0.01 a 0.80 SANTO
0.81 a 1.60 CAMPO GRANDE VITÓRIA
1.61 a 2.40
2.41 a 3.20
SÃO PAULO
RIO DE JANEIRO
3.21 a 4.00
RIO DE JANEIRO
4.01 a 4.80 SÃO PAULO

4.81 a 7.20
PARANÁ
CURITIBA
OBS: A PRODUÇÃO DAS 63 ZONAS ESTRATIFICADAS
CORRESPONDENTE A 81% DA PRODUÇÃO NACIONAL
10.41 a 11.20 DE MILHO, FEIJÃO, ARROZ, SOJA E TRIGO NO
PERÍODO DE 1986/89, OU CERCA DE 48,0 MILHÕES SANTA CATARINA
TONELADAS
FLORIANÓPOLIS

13.61 a 14.40

PORTO ALEGRE
MILHO
RIO GRANDE
SOJA
DO SUL
TRIGO
17.61 a 18.40
FEIJÃO

ARROZ

O presidente Itamar Franco reuniu todos os seus ministros, com a presença de Betinho e Dom Mauro Morelli,
e solicitou que fossem apresentados os resultados do Mapa da Fome e, nessa mesma reunião, criou uma comis-
são para propor medidas de combate à fome que deveriam contemplar ações de todos os ministérios e levassem
em consideração, também, as propostas do governo paralelo do PT e do Movimento pela Ética na Política17.

16 Mapa da Fome: Subsídios à Formulação de uma Política de Segurança Alimentar. Anna Maria Peliano, coord. Documento de Política nº 14. IPEA,
Brasília, Março de 1993

17 Dessa comissão, faziam parte Betinho (secretário executivo do IBASE), Dom Mauro Morelli (bispo da Arquidiocese de Duque de Caxias), Denise
Paiva (assessora do presidente Itamar), Josenilda Brant (presidente do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição) e Anna Maria Medeiros Peliano
(coordenadora de Política Social do IPEA).

35
FOME ZERO Uma História Brasileira

O Plano Nacional de Combate à Fome e à Miséria – Princípios, Prioridades e Mapas das Ações de Governo
– entregue ao Presidente da República, em abril de 1993, propunha, como princípios, a solidariedade, a parceria
e a descentralização18. Foi apresentado um mapeamento das ações de todos os Ministérios, em que se definiam
objetivos, mecanismos operacionais e metas. Um plano ambicioso, que buscava envolver toda a administração
pública federal, mas que nem o CONSEA e nem o IPEA, que funcionava como uma secretaria executiva “infor-
mal” do CONSEA, conseguiam coordenar e acompanhar. Foi daí que surgiu a proposta de selecionar um elenco
bem menor de programas diretamente relacionados à alimentação e à nutrição e concentrar neles os esforços
de aprimoramento, fortalecimento, acompanhamento e controle. Assim, foram destacados como prioridades os
seguintes programas: Combate à Desnutrição Materno-Infantil, Merenda Escolar, Alimentação do Trabalhador,
Distribuição Emergencial de Alimentos, Assentamentos de Trabalhadores Rurais e de Geração de Renda.

As empresas públicas, com a participação ativa de seus funcionários, se organizaram no Comitê de


Entidades Públicas no Combate à Fome e Pela Vida – COEP, com o objetivo de ampliar suas ações de caráter
social. Foi deflagrada a campanha da “Ação da Cidadania contra à Fome, à Miséria e pela Vida”, que mobilizava
a sociedade em trabalhos voluntários para atendimento aos mais pobres e foi objeto de reconhecimento inter-
nacional. Como espaço de interação entre o governo e a sociedade, foi criado o CONSEA, do qual participavam
ministros de Estado e personalidades notáveis, identificadas com vários setores da sociedade civil e indicadas
pela “Ação da Cidadania”.

Com o CONSEA foi inaugurada uma nova forma de articular as políticas públicas, ampliando a participação
social nas ações governamentais. Seus maiores logros foram no campo da assistência alimentar, o que pode
ser auferido pela enorme mudança que os programas sofreram no período da sua vigência – 1993/1994: a
distribuição de leite, totalmente descentralizada e focalizada em crianças e gestantes em risco nutricional,
associada a ações de saúde; a distribuição também descentralizada da merenda escolar; e a distribuição de
estoques de alimentos do governo para mais de dois milhões de famílias atingidas pela seca. Em 1994, os recur-
sos financeiros destinados aos programas, em relação à 1993, haviam mais que dobrado, alcançando valores
próximos de meio bilhão de dólares.

No II Balanço das Ações de Governo no Combate à Fome e à Miséria, elaborado pelo grupo do IPEA, que
acompanhava os trabalhos do CONSEA19, concluía-se que a Ação Contra a Fome era “credora de três grandes
contribuições para tornar a sociedade brasileira mais democrática e justa: a) ter politizado o problema da fome;
b) ter logrado uma mobilização da sociedade civil que encontra poucos antecedentes na história recente; e c) ter
ampliado, através do CONSEA, a participação cidadã na formulação e controle das políticas públicas”20.

Não obstante, acrescentava, “o conteúdo deste documento permite concluir que essas contribuições estive-
ram quase que exclusivamente limitadas à esfera das políticas compensatórias (especialmente a distribuição de
alimentos). Esta característica pode merecer duas leituras. A primeira, positiva, salienta que essa distribuição
rompeu a inércia secular da sociedade brasileira diante do problema da fome e, paralelamente, permitiu dar uma
resposta, ainda que parcial e de curtíssimo prazo, ao flagelo da falta de alimentação das populações miseráveis.
A segunda leitura enfatiza o lado negativo dessa concentração em políticas compensatórias: não se utilizou a
mobilização da sociedade civil, e a influência lograda, pelo CONSEA na ação governamental, para a formulação
de políticas que gerassem mudanças estruturais que permitissem reduzir a necessidade de políticas compensa-
tórias. Como afirmou-se na apresentação (do documento em tela), toda conquista social é relativa: avançou-se,
mas poder-se-ia ter avançado mais”21.

18 Plano de Combate à Fome e à Miséria – Princípio, Prioridades e Mapa das Ações de Governo. IPEA Brasília, Abril de 1993.

19 Sob a coordenação de Anna Maria Peliano, a equipe técnica do IPEA era composta pelo seguinte grupo: Ana Lúcia Lobato, Carlos Alberto Ramos, Enid
Rocha, Guilherme Delgado, Nathalie Beghin, Ronaldo Coutinho e Valéria Rezende.

20 II Balanço das Ações de Governo no Combate à Fome e À Miséria – 1994. Anna Maria Peliano, coord. IPEA, Brasília, Dezembro de 1994.

21 Ibidem.

36
Lições da História – Avanços e Retrocessos na Trajetória das
Políticas Públicas de Combate à Fome e à Pobreza no Brasil

Qual a Contribuição da Comunidade Solidária?


Em meados da década, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso, foi instituída, como compromisso de cam-
panha, a Comunidade Solidária, com foco mais centrado no combate à pobreza. Para conduzir a estratégia prevista
foi criada uma Secretaria Executiva, vinculada à Casa Civil, e um Conselho composto majoritariamente por membros
da sociedade civil, com a atribuição de estimular o diálogo entre governo e sociedade. Uma descrição dos pressu-
postos da proposta foi publicada em 2000 pelo IPEA22, na qual se destaca: “A preocupação em se evitar o surgimento
de uma estrutura autônoma, que operasse à margem da administração direta, não apenas balizou o desenho como
a implementação da estratégia da Comunidade Solidária. A essa decisão somou-se outra, também inovadora: a Se-
cretaria Executiva não executaria quaisquer programas ou projetos. Seu papel, seria de capacitação dos agentes e de
indução, articulação, acompanhamento e coordenação das políticas de combate à fome e à miséria implementadas
por outras instituições. Caberia aos próprios ministérios setoriais, ou às entidades a eles vinculadas, a responsa-
bilidade pela gestão técnica e financeira dos programas. Uma das principais justificativas para essas decisões foi a
crença de que o rompimento do círculo viciosos da pobreza somente se daria com a adequada implementação de
políticas sustentáveis ao longo do tempo. A criação de uma estrutura autônoma, com poderes e recursos próprios,
não fortaleceria as instituições públicas formalmente responsáveis pela execução dessas políticas. Ao contrário, in-
duziria à criação de estruturas superpostas, com desperdícios de recursos humanos, administrativos e financeiros”.

Neste contexto, a fome saiu da cena principal e inserida, com ênfase, no elenco de problemas que afetam
a pobreza. Assim foi que a Comunidade Solidária incorporou todos os programas definidos como prioritários no
CONSEA e ampliou o leque para incluir programas na área da saúde (combate à mortalidade infantil e saúde
da família); da educação (reforço da merenda escolar, saúde do escolar, fornecimento de transporte e material
didático); da moradia (habitação e saneamento); do desenvolvimento rural (apoio à agricultura familiar); e, da
geração de renda (qualificação profissional e crédito a micro empreendedores). No conjunto foram selecionados
16 programas que fizeram parte da chamada “Agenda Básica”. No primeiro ano do programa, foram aplicados
cerca de U$ 1,1 bilhão, elevando-se para U$ 2,6 bilhões, aproximadamente, no final dos primeiros quatro anos.
Os programas de assistência alimentar foram todos ampliados e a estratégia adotada de integrar esforços em
municípios mais pobres tem muita semelhança com o programa atual dos Territórios da Cidadania.

Em substituição ao CONSEA foi instituído o Conselho da Comunidade Solidária que, entre outras atividades,
promoveu um amplo debate com organizações da sociedade civil, universidades, organismos internacionais e
órgãos do governo sobre o tema da segurança alimentar, da reforma agrária, entre outros. Para registrar o
processo de debates e encaminhamentos das propostas foram publicados, pelo IPEA, os Cadernos Comunidade
Solidária. Na publicação que trata da segurança alimentar encontra-se assinalado: “a segurança alimentar e
nutricional ainda não se constitui em objetivo estratégico do atual governo. Entretanto, está sendo tratada em
diferentes âmbitos nos quais sempre se faz presente a Comunidade Solidária. Ou seja, de diversas formas,
por aproximações sucessivas, a Segurança Alimentar e Nutricional vai progressivamente “contaminando” as
políticas públicas. Assim, verificam-se várias iniciativas diretamente voltadas para a questão da Segurança
Alimentar e Nutricional: a estratégia de combate à fome e à miséria implementada pela Secretaria Executiva da
Comunidade Solidária; a constituição de um Comitê Setorial de Segurança Alimentar no âmbito do Conselho; a
organização de um Comitê Técnico Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional; e a participação do
Brasil no World Food Summit, em novembro de 1996, em Roma”23 . Quanto à reforma agrária24, o depoimento
de João Pedro Stédile, Membro da Direção Nacional do MST25, ilustra o esforço realizado pelo Conselho: “O
Conselho da Comunidade Solidária recolheu antecipadamente as propostas de todas as entidades presen-
tes, e aglutinou, em 32 pontos, os quais foram detalhados e/ou complementados durante a reunião. Todas as
propostas foram aprovadas por consenso e todos os presentes concordaram que o aceleramento da reforma
agrária depende da implementação das propostas apresentadas”. “O nosso balanço da reunião é extremamente
positivo. Não pela oportunidade de discutirmos a questão da reforma agrária na Comunidade Solidária, mas,

22 RESENDE, Luis Fernando. Comunidade Solidária: uma Alternativa aos Fundos Sociais. Texto para discussão. IPEA. Brasília. Maio de 2000.

23 Cadernos Comunidade Solidária, v.2 – nov.1996 – Brasília: IPEA, 1996.

24 Cadernos Comunidade Solidária, v.1 – set. 1996 – Brasília: IPEA, 1996.

25 Ibidem.

37
FOME ZERO Uma História Brasileira

sobretudo, pelas reais contribuições que a reunião representou para o avanço dessa luta no Brasil. Hoje, uma
exigência de toda sociedade brasileira.” Nem o Conselho e nem a Secretaria Executiva tiveram força suficiente
para fazer implementar todas as recomendações, mas o esforço de dialogar com o movimento esteve presente
na Secretaria Executiva em todo o primeiro mandato de vigência da Comunidade Solidária.

Muitos criticaram a substituição do CONSEA e o esvaziamento das políticas de segurança alimentar nesse
período. De fato, os temas da fome e da segurança alimentar se diluíram na proposta de combate à pobreza.
Mas eles permaneceram presentes no leque das atividades do Programa. Em 1997/1998 foi criado, no âmbito da
Secretaria Executiva, um grupo para a construção de um primeiro sistema de indicadores de segurança alimentar
com a participação do IPEA, IBASE ABRANDH e Relatoria dos Direitos Humanos. De novo, vale ressaltar que
todos os programas que eram acompanhados pelo CONSEA foram absorvidos pela Comunidade Solidária, tendo
sido fortalecidos e ampliados. A distribuição nos municípios mais pobres dos alimentos disponíveis nos estoques
do governo permaneceu sendo feita de acordo com a sistemática anterior. Na área do trabalho foi consolidada a
proposta do programa de microcrédito com recursos do FAT, que havia sido concebida, em 1994, pelo CONSEA,
iniciada na Comunidade Solidária e, posteriormente, fortalecida no governo Lula. Outro exemplo de aprendizagem
e continuidade: o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF, que foi desenhado
e iniciado pelo Ministério da Agricultura, em parceria com a Secretaria Executiva do Comunidade Solidária, e
aprimorado e fortalecido no atual governo.

No segundo mandato, mudou a equipe da Secretaria Executiva da Comunidade Solidária e ela se distan-
ciou dessa estratégia que foi transferida para a Secretaria de Assistência Social e incorporada no Projeto
Alvorada. A Secretaria se concentrou em estimular o desenvolvimento local em um conjunto de municípios
mais pobres.

O Que Ficou da Experiência da Década de Noventa?


Entre 1990 e 1999, um contingente de 8,2 milhões de brasileiros havia saído da condição de indigentes e 10,1
milhões da condição de pobreza26. Sem dúvida, o maior programa de combate à fome e à pobreza do período foi a
estabilização da moeda ocorrida em meados dos anos noventa, o que reforça a tese de que os ganhos mais efeti-
vos em termos de melhoria da renda e da alimentação da população passam, fundamentalmente, pelas políticas
da área econômica.

Não obstante, sob a ótica das políticas sociais de alimentação e nutrição, a década deixou um legado de
experiências que também reforça a visão de que a melhoria dos programas de alimentação e nutrição requer inte-
gração e convergência das diversas políticas públicas; descentralização da execução dos programas; eliminação
de superposições; mobilização, participação e controle social.

No campo dos programas federais muitos avanços foram observados, tanto na redução das superposições
quanto na descentralização e convergência de esforços intersetoriais. Assim é que foi concentrado no Ministério
da Saúde o atendimento aos grupos da população em risco nutricional, universalizando o acesso e acoplando o
repasse de recursos para os municípios às transferências do Sistema Único de Saúde – SUS. O combate à des-
nutrição, efetuado no âmbito local, foi submetido ao controle dos Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde27. O
Ministério da Educação, por meio do FNDE, descentralizou o programa da merenda escolar até o nível da trans-
ferência direta de recursos para as escolas que são controladas pelos Conselhos da Merenda Escolar, dos quais
participam pais de alunos. No Ministério da Agricultura, a CONAB estimulou a integração da assistência alimentar
às famílias de baixa renda nos municípios mais pobres às demais ações de caráter social. As Comissões Comuni-
tárias, exigidas pelo programa de distribuição de cestas básicas, se constituíram em um espaço de parceria entre
o governo local e as comunidades para a implantação de programas inovadores. O uso dos estoques governamen-
tais de alimentos e a compra de produtos diretamente às regiões produtoras, em caráter incipiente, renovaram as
esperanças de se utilizar os programas de alimentação como instrumento de apoio ao setor agrícola.

26 BARROS, Ricardo; HENRIQUES, Ricardo e MENDONÇA, Rosane. A estabilidade inaceitável: desigualdade e pobreza no Brasil. In Desigualdade e
Pobreza no Brasil. Organizado por Ricardo Henriques. Rio de janeiro: IPEA, 2000.

27 Ver a respeito o documento “Política Nacional de Alimentação e Nutrição”, do Ministério da Saúde, aprovado pelo Conselho Nacional de Saúde em 1999.

38
Lições da História – Avanços e Retrocessos na Trajetória das
Políticas Públicas de Combate à Fome e à Pobreza no Brasil

Avaliação realizada pelo IBAM28, nos municípios mais pobres atendidos pela Co-
munidade Solidária, apontou, ainda, avanços na convergência e integração in-
tersetorial de programas, especialmente entre as áreas de alimentação,
saúde e educação. Por exemplo: distribuição de cestas básicas asso-
ciada à manutenção das crianças na escola e à vacinação infantil
em dia. É a essa integração que se creditou, em grande parte, Entre 1990 e 1999, um contingente
os resultados obtidos, por exemplo, nos municípios da Comu- de 8,2 milhões de brasileiros havia saído
nidade Solidária na área de nutrição: uma queda de 54% das da condição de indigentes e 10,1 milhões
internações e de 68% nos óbitos de crianças menores de 5 da condição de pobreza. Sem dúvida, o
anos por deficiências nutricionais, no período 1994/199729. maior programa de combate à fome e à
Apesar dos avanços, a década se encerrou com a pre- pobreza do período foi a estabilização
sença de várias das dificuldades tradicionais, entre elas, da moeda ocorrida em meados dos anos
falta de prioridade política efetiva, recursos insuficientes noventa, o que reforça a tese de que
para garantir um atendimento mais adequado à da popula- os ganhos mais efetivos em termos de
ção carente, descontinuidade de programas em andamento, melhoria da renda e da alimentação da
ausência, por parte do governo federal, de uma política mais população passam, fundamentalmente,
agressiva na área do abastecimento popular, falta de flexibili- pelas políticas da área econômica
dade administrativa para atender às demandas das comunida-
des, respeitando-se as diferenças regionais e locais, dificuldades
de promover o monitoramento e a avaliação de resultados e um efe-
tivo controle e participação das comunidades. O terceiro ato se encerra,
deixando claro para o espectador que havia ainda muito a ser apresentado
pela frente.

Quarto Ato: A Fome no Século XXI


Em que pese todos os avanços mencionados, o Brasil entrou no século XXI com um contingente elevado de
23 milhões30 de pessoas que ainda não possuíam renda para garantir uma alimentação adequada. Já no período
de campanha eleitoral, o presidente Lula assumiu o compromisso com a erradicação da fome e, eleito, introduziu
em cena, com todos os holofotes de prioridade de governo, o programa Fome Zero, com direito a um Ministério
específico, Grupo de Trabalho Interministerial de acompanhamento e monitoramento das ações de governamen-
tais no âmbito do programa e a reconstituição do CONSEA.

No campo das políticas governamentais, foram criados, retomados, aprimorados ou fortalecidos diversos
programas historicamente considerados como fundamentais para uma política de alimentação e nutrição, a
exemplo do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), fortemente defendido por aqueles envolvidos com a
proposta de associar os programas públicos de abastecimento alimentar com programas de apoio à agricultura
familiar. Mais um passo nessa linha foi a aprovação, no âmbito da merenda escolar, o maior e mais antigo progra-
ma de alimentação do País, de uma lei31 que determina a utilização de, no mínimo, 30% dos recursos repassados
pelo governo federal para a compra de produtos da agricultura familiar, com prioridade para assentamentos
rurais, comunidades indígenas, tradicionais e quilombolas.

As experiências e os programas recentes serão analisados com mais profundidade ao longo deste livro e,
portanto, não são explorados nesse capítulo, que visa apresentar os antecedentes históricos da construção
da política de segurança alimentar e nutricional no Brasil. Não obstante, não se pode deixar de mencionar,
que de todos os programas governamentais abrangidos pelo Fome Zero, sem dúvida, o que dominou a cena

28 Avaliação da Estratégia Comunidade Solidária. Coord. H. Marinho, IBAM/IPEA/PNUD, Brasília, 1998.

29 Fonte: DATASUS/MS – 1998.

30 BARROS, Ricardo; HENRIQUES, Ricardo e MENDONÇA, Rosane. A estabilidade inaceitável: desigualdade e pobreza no Brasil. In Desigualdade e
Pobreza no Brasil. Organizado por Ricardo Henriques. Rio de janeiro: IPEA, 2000.

31 Lei nº 11.947/2009

39
Fome ZeRo Uma História Brasileira

foi o Bolsa Família que unificou, aprimorou e ampliou os diversos


programas de transferência de renda, até então dispersos em vá-
rios Ministérios. Para aqueles que participaram da trajetória de
unificação dos programas fica o aprendizado de um processo
de construção coletivo, de amplos e longos debates, que vi-
Em que pesem todos savam garantir que o seu lançamento fosse precedido de
os avanços mencionados, um amadurecimento e aprimoramento das experiências
o Brasil entrou no século XXI anteriores. Sob a coordenação da Casa Civil, de Miriam
com um contingente elevado de Belchior, o governo enfrentou o desafio de superar resis-
23 milhões de pessoas que ainda tências de órgão setoriais, de compatibilizar visões e po-
não possuíam renda para sições distintas e de lançar um programa de porte mais
garantir uma alimentação compatível com a dimensão das carências brasileiras.
adequada Se há o que reparar, é que apesar de todo o impacto que
ele gera na renda das famílias mais pobres e na economia
local, o Bolsa Família está longe de esgotar uma política de
segurança alimentar ou de substituir os esforços necessários
para garantir a toda a população os seus direitos sociais básicos,
que vão muito além da transferência de renda. Essa perspectiva, no
entanto, estava presente na equipe que elaborou a proposta e, tam-
bém, naquela que é responsável pela sua implementação.

A trajetória e as conquistas do CONSEA no período serão, da mesma forma, apresentadas em diversos


capítulos, mas merecem ser destacadas, em qualquer análise da evolução da política de segurança alimen-
tar no País, a aprovação da Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional – LOSAN (Lei nº 11.346, de 15
de setembro de 2006) e da Emenda Constitucional nº 64, de 4 de fevereiro de 2010, que eleva a alimentação
ao patamar dos direitos constitucionais.

Ao final do mandato do presidente Lula, os avanços obtidos no combate à fome são reconhecidos não só
internamente como internacionalmente e citados nas mais diversas publicações. Muitos atribuem à altíssima
aprovação do governo às políticas sociais das quais os programas de transferência de renda e o Fome Zero
se destacam. Os indicadores sociais divulgados reforçam esse otimismo generalizado. O número de pessoas
extremamente pobres reduziu-se, nessa primeira década do século, 47%32. A desnutrição desceu a patamares
de países desenvolvidos. Mais uma vez, muito desses avanços devem ser atribuídos ao crescimento econômico
e à valorização do salário mínimo. Não obstante, diversos estudos têm evidenciado o impacto positivo do Bolsa
Família na elevação de renda das populações mais pobres.

Fecham-se as cortinas e o espectador sai e pergunta se tudo já foi feito e se os problemas estão resolvidos.
Não. Não há motivos para acomodações. O Brasil ainda é um País extremamente desigual, convive com um
contingente de 20 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza33, a POF 2008/2009 evidencia que 35,6%
das famílias entrevistadas declararam ser insuficiente a quantidade de alimentos ingeridos diariamente e, nas
regiões mais pobres, como a região norte, a desnutrição atinge 8,5% das crianças com menos de cinco anos.
No campo das políticas públicas, o desafio é consolidar a questão alimentar e nutricional entre as prioridades
nacionais, avançar no aprimoramento e na integração dos diversos programas governamentais, obter a adesão
dos governos subnacionais, fortalecer a mobilização nacional, e garantir participação e o controle social. Urge,
enfim, reavaliar profundamente todos os acertos e erros cometidos ao longo do tempo e elevar as políticas desse
governo ao patamar de política de Estado, de garantia do direito humano à alimentação.

O espetáculo tem que continuar.

32 Foram consideradas como extremamente pobres aquelas pessoas que vivem em famílias com renda per capita inferior a ¼ de salário mínimo.
Cálculos realizados pelo NINSOC/DISOC/IPEA, 2010.

33 Idem. Dados de 2009 calculados pela NINSOC/DISOC/IPEA.

40
Lições da História – Avanços e Retrocessos na Trajetória das
Políticas Públicas de Combate à Fome e à Pobreza no Brasil

Referências
Muito do exposto nesse depoimento foi extraído do que já escrevi, individualmente ou em parcerias. Por isso,
a bibliografia abaixo, se concentra nesses textos concebidos ao longo dos anos que participei na elaboração,
implementação e avaliação de programas e políticas de alimentação e nutrição. Parte deles fica aqui registrada
como contribuição para aqueles que se interessam pelo processo histórico em que se construiu a política atual de
segurança alimentar e nutricional do País.

Apresentação da Autora
Anna Maria Medeiros Peliano é socióloga e pós-graduada em Política Social pela UnB. Trabalhou como
assessora do Ministério da Agricultura. Foi coordenadora de pesquisas sobre ação das Organizações Não
Governamentais (ONGs) na Unicamp e na UnB. Trabalhou como coordenadora do Núcleo de Estudos da
Fome da UnB e trabalhou na elaboração do Mapa da Fome que subsidiou o trabalho de Herbert de Souza, o
Betinho, na Campanha Nacional contra a Fome. Participou como membro da sociedade civil no CONSEA. Foi
secretária executiva da Comunidade Solidária. Trabalhou no IPEA como técnica de planejamento e pesquisa e
atualmente é coordenadora de Estudos de Responsabilidade Social do IPEA e membro do Grupo de Pesquisa
de Nutrição e Pobreza do Instituto de Estudos Avançados – IEA, da Universidade de São Paulo/USP.

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