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Interciencia

ISSN: 0378-1844
interciencia@ivic.ve
Asociación Interciencia
Venezuela

Adams, Cristina
As roças e o manejo da mata atlântica pelos caiçaras: uma revisão
Interciencia, vol. 25, núm. 3, mayo-junio, 2000, pp. 143-150
Asociación Interciencia
Caracas, Venezuela

Available in: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=33904504

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AS ROÇAS E O MANEJO
DA MATA ATLÂNTICA PELOS CAIÇARAS:
UMA REVISÃO

CRISTINA ADAMS

proximadamente 60% das tivo anual (pousio de alguns meses); e O Cultivo Itinerante
terras cultivadas em todo cultivos múltiplos (sem pousio). na Mata Atlântica
o mundo são manejadas A sustentabilidade deste
por métodos tradicionais e de subsistência sistema de cultivo baseia-se no ciclo de nu- O sistema de lavoura iti-
(Altieri, 1989). A agricultura itinerante de trientes. A biomassa presente na floresta nerante tradicional brasileiro obedece, de
subsistência nas florestas evoluiu, de forma contém nutrientes minerais que são mobili- forma geral, à descrição feita para a agri-
independente, em todas as regiões tropicais zados durante a queima, ficando disponí- cultura em florestas tropicais (Altieri, 1989;
e se mostrou sustentável ao longo dos sé- veis para as plantas sob a forma de cinzas. Boserup, 1987; Clarke, 1976; Vasey, 1979;
culos em diversas regiões. Neste tipo de As espécies herbáceas utilizadas nas cultu- Whitmore, 1990). No Brasil, o cultivo ou
agricultura, o fogo desempenha um papel ras agrícolas possuem raízes curtas, que agricultura itinerante é uma herança indí-
fundamental e, apesar de haver muitas va- capturam os nutrientes nas camadas super- gena, e pode receber várias denominações,
riantes, a maioria segue um mesmo esque- ficiais de solo (Oliveira et. al., 1994). To- como agricultura/roça de coivara, roça de
ma básico. Altieri (1989), Boserup (1987), davia, a agricultura itinerante possui limita- toco, agricultura de subsistência ou de
Clarke (1976), Vasey (1979) e Whitmore ções, entre as quais destacamos a demo- derrubada e queima. Para nossos fins, con-
(1990) trazem descrições detalhadas sobre gráfica: normalmente não suporta mais do sideraremos todas como sinônimos. Este
os processos e práticas envolvidos na agri- que dez a vinte pessoas por km². A redu- tipo de agricultura é adotado por popula-
cultura itinerante. ção do período de pousio ou o aumento do ções indígenas, caboclas, camponesas e
Este sistema envolve, de tempo de plantio, situações de ocorrência também pelas populações caiçaras do lito-
forma geral, alguns poucos anos de culti- provável quando há aumento populacional ral sudeste do país, que habitam os últi-
vo, alternados com vários anos de pousio e, portanto, na demanda por terras, pode mos remanescentes da Mata Atlântica.
(fallow) e inclui o corte, derrubada e colocar todo este sistema a perder (Altieri, Pesquisas feitas entre populações caiçaras
queima da floresta. A rotação de solos ao 1989; Boserup, 1987; Whitmore, 1990). na Ilha Grande (RJ), por Oliveira e Coe-
invés das culturas impede a propagação Para alguns autores (Al- lho Netto (1996), mostraram que o ele-
de pragas, doenças e plantas invasoras, tieri, 1989; Whitmore, 1990), a agricultura mento de maior influência na construção
características de um ambiente sempre itinerante também se caracteriza pelo bai- da paisagem foi a atividade agrícola, con-
úmido em que não há uma estação fria xo uso de insumos. Mas para McGrath firmando o levantamento feito por Adams
ou seca. Altieri (1989) distingue três ti- (1987), a maior parte dos trabalhos sobre (1994) para outras regiões do país.
pos de pousio: até o porte de floresta roças itinerantes se limitou a estudar a re- As populações caiçaras
(20-25 anos); até o porte arbustivo (6-10 lação entre o input energético do trabalho que habitam o litoral dos estados do
anos) e com gramíneas (menos de 5 humano e o resultado em termos de ali- Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro, têm
anos). Boserup (1987) divide o conti- mento, deixando de considerar a contribui- origem na miscigenação entre o coloniza-
nuum de intensidade de uso da terra em ção energética da vegetação derrubada e dor português, o índio e o negro, ocorrida
cinco categorias: cultivo com pousio lon- queimada para a abertura da roça. Seus re- a partir das primeiras décadas da coloniza-
go ou florestal (20-30 anos, até o porte sultados demonstram que a agricultura iti- ção. Os contextos histórico e geográfico
de floresta); com pousio arbustivo (6-10 nerante é um sistema extensivo de uso da de ocupação do litoral, com seus diversos
anos, até porte arbustivo); com pousio terra, mas intensivo quanto ao uso de ciclos econômicos, são fundamentais para
curto (1-2 anos, somente gramíneas); cul- insumos. compreender sua formação (Adams, 2000).

PALAVRAS-CHAVE / Populações Caiçaras / Mata Atlântica / Campos do Cultivo / Cultivo Itinerante /

Cristina Adams. Bióloga, Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP).


Mestre em Ciência Ambiental (USP). Cursa o Doutorado em Ecologia no IB-USB. Estudante em treinamento (Departamen-
to de Antropologia, University of Kent, Canterbury). O presente trabalho é baseado na Dissertação de Mestrado,
PROCAM-USP, 1996. Endereço: Laboratorio de Estudos Evolutivos Humanos, Instituto de Biociências, Rua do Matão, tra-
vessa 14, 277, Cidade Universitária, São Paulo-SP, 05508-900, Brasil. e-mail: cadams@ib.usp.br

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Historicamente, sua subsistência baseou-se sistema o inviabilizaria em outras circuns- dade do sistema agrícola, discutindo-os de
na agricultura itinerante (mandioca, milho, tâncias (Oliveira et al, 1994). forma abrangente e inserindo-os nos con-
feijão, batata doce, arroz e cana-de-açú- Dentro deste tipo de cul- textos ambiental e histórico-regional (com
car), associada à pesca, caça, extração ve- tivo extensivo do solo, disperso e rudi- uma visão compatível com o conhecimen-
getal, e serviços para terceiros (principal- mentar, a formação de grandes proprieda- to da época).
mente turistas), numa proporção variável, des, no passado, foi incompatível, e o me- Os resultados obtidos na
dependendo da época e da região conside- lhor equilíbrio foi alcançado no trabalho década de 1950 (França, 1954) para a Ilha
radas. Entretanto, as populações caiçaras da unidade doméstica (Marcílio, 1986). de São Sebastião, litoral norte do estado
sempre estiveram inseridas numa econo- Diversos autores trazem dados sobre a di- de São Paulo, caracterizam o período an-
mia global, mantendo ligações entre si e visão sexual do trabalho (Brito, 1995; Cu- terior às grandes transformações trazidas
com centros urbanos ou semi-urbanos atra- nha e Rougeulle, 1989; França, 1954; Gus- pelo barco a motor e, posteriormente, pelo
vés de relações econômicas e de depen- mão, 1979; Schmidt, 1958; Silva, 1979), turismo (Adams, 2000). Com o objetivo
dência política e religiosa. Diversos auto- sobre o calendário agrícola e os produtos de compará-los com dados levantados em
res trazem caracterizações mais detalhadas agrícolas cultivados pelos caiçaras (Cunha outras comunidades, por diversos autores
sobre estas populações (Adams, 1996; e Rougeulle, 1989; Diegues, 1983; Lango- e numa situação posterior às transforma-
Sanches, 1997; Vianna, 1996). wiski, s.d.; Marcílio, 1986; Ribeiro Neto e ções do século XX, a análise foi realizada
A maior parte das comu- Oliveira,1989; Sales e Moreira, 1994; San- seguindo a metodologia adotada por Fran-
nidades caiçaras sempre viveu nas planíci- ches, 1997; Silva, 1975) e, ainda, sobre as ça (1954), descrita resumidamente a se-
es costeiras, onde os solos são em geral espécies extraídas da mata e ecossistemas guir. É importante lembrar, entretanto, que
rasos, arenosos e de baixa fertilidade (Be- associados para outros usos (Born et al., os autores consultados seguiram metodolo-
gossi, 1995b). Mesmo assim, do século 1989; Cunha e Rougeulle, 1989; Diegues, gias distintas para a obtenção de seus da-
XVIII até meados do XX (Adams, 2000), 1983, 1988; França, 1954; Langowiski, dos primários, e muitas vezes não foi pos-
a maior fonte de alimentos e recursos para s.d.; Mussolini, 1980; Rossato, 1996; Ros- sível dispor de todos os números necessá-
os caiçaras não estava no mar, mas na ex- sato et al.,1993; Sales e Moreira, 1994; rios para aplicar a metodologia proposta.
ploração agrícola, conforme verificado na Sanches, 1997; Vitae Civilis, 1995). Assim, ressaltamos que os cálculos aqui
Ilha de São Sebastião-SP (França, 1954) e A mandioca (Manihot apresentados, estiveram sujeitos a algumas
em Ubatuba–SP (Marcílio, 1986). A agri- sp) é a planta alimentícia mais importante aproximações, o que torna os resultados,
cultura itinerante de pousio florestal, cor- legada à humanidade pelos antigos habi- discutidos a seguir, relativos. Por este
respondeu, até a metade do século XX, a tantes do neotrópico e ocupa posição de motivo, as análises resultantes destes nú-
uma densidade demográfica baixa e a uma destaque na roça e na alimentação caiçara meros devem necessariamente ser conside-
população dispersa. (Dean, 1996; Ribeiro, 1987; Schimdt, radas como indicativas, servindo para tra-
A revisão da literatura 1958). Além de crescer facilmente em so- çar um perfil de algumas das variáveis
sobre a agricultura itinerante dos caiçaras los pobres, pode permanecer na terra por envolvidas nas roças caiçaras. Mesmo as-
mostrou que os trabalhos são poucos e re- longos períodos, é um alimento rico em sim, acreditamos que estes resultados po-
centes. Entre os autores que efetivamente amido e fornece uma série de sub-produ- derão ser úteis como parâmetros para futu-
trazem subsídios à discussão podemos ci- tos, sendo rica em vitamina A, calorias e ros trabalhos com populações cuja subsis-
tar França (1954), Oliveira (1999), Olivei- aminoácidos. Entretanto, é pobre em pro- tência seja baseada na agricultura itineran-
ra et al., (1994), Toffoli e Oliveira (1996), teínas. Seu rendimento por unidade de ter- te em florestas tropicais.
e Oliveira e Coelho Netto (1996). O pri- ra cultivada é bastante alto, seu crescimen-
meiro autor, apresenta uma descrição por- to é rápido, pouco susceptível a pragas e A Metodologia de França (1954)
menorizada das atividades de subsistência não exige a limpeza total do terreno
caiçara na década de 1950, inclusive com (Schmidt, 1958; Ribeiro, 1987). A mandi- O século XIX represen-
dados numéricos, que foram utilizados oca brava ou rama (Manihot utilissima) é tou o período áureo da atividade agrícola
como parâmetros comparativos. Os demais utilizada em quase todo o litoral brasileiro e econômica da Ilha de São Sebastião-SP,
estudaram as roças caiçaras através de ou- na forma de farinha, consumida juntamen- e as áreas de floresta derrubadas neste pe-
tras metodologias, como levantamentos te com o peixe, constituindo-se num “dos ríodo alcançaram limites nunca ultrapassa-
botânicos e ciclagem de nutrientes. aspectos mais gerais da cultura litorâ- dos, sendo ainda visíveis, na metade do
Oliveira (1999) e Toffoli nea” (Mussolini, 1980, p. 226). século XX, através da vegetação secundá-
e Oliveira (1996) acreditam que as práti- Com o intuito de colabo- ria. Segundo recenseamento de 1950, a
cas utilizadas pelos caiçaras permitiam a rar para a discussão acerca do papel das Ilha de São Sebastião possuía 4.800 habi-
exploração da terra de forma auto-susten- roças caiçaras na conservação da Mata tantes, sendo que 86% garantiam sua sub-
tável, evidenciada por três aspectos (Oli- Atlântica, procedeu-se a um levantamento sistência exclusivamente no meio rural
veira et al., 1994): os nutrientes exporta- exaustivo da literatura publicada sobre es- (agricultura e pesca, em maior ou menor
dos ou perdidos eram repostos no sistema tas populações (Adams, 1996), com o ob- intensidade). Através de levantamentos de
sem a utilização de adubos fósseis; o con- jetivo de obter dados para uma análise campo e análises de fotografias aéreas ver-
trole de pragas era feito sem a utilização comparativa quantitativa. Entretanto, pou- ticais, França (1954) estabeleceu as áreas
de agrotóxicos (hoje em dia isso nem cos autores trouxeram dados numéricos ocupadas pela agricultura. As maiores áre-
sempre é verdade para todas as comunida- sobre a agricultura caiçara (tamanho apro- as de roças eram destinadas às culturas
des) e os processos erosivos eram míni- ximado das roças, tempo médio de cultivo temporárias (392 ha) dependendo, portan-
mos. Entretanto, fazem-se ressalvas: embo- e pousio, área aproximada de ocupação to, da rotação dos solos e da abertura de
ra o sistema caiçara possa ser auto-susten- humana e tamanho da população; Tabela novas áreas nas capoeiras (áreas de vege-
tável, está adaptado ao antigo modo de I). Entre eles, França (1954) foi o que tação secundária em maior ou menor grau
vida destas populações e pressupõe uma trouxe a maior contribuição, não só em de regeneração).
baixa densidade demográfica, terras dispo- termos do grande número de dados quan- Com o intuito de obter a
níveis para pousio e utilização maciça de titativos e qualitativos, mas por relacioná- área necessária para a continuidade do
mão-de-obra. A baixa produtividade deste los à questão demográfica e à sustentabili- sistema de agricultura caiçara nos morros

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TABELA I
TAMANHO DAS ROÇAS ITINERANTES, TEMPO MÉDIO DE CULTIVO, TEMPO MÉDIO DE POUSIO, ÁREA DE OCUPAÇÃO
HUMANA E TAMANHO DA POPULAÇÃO EM DIVERSAS COMUNIDADES CAIÇARAS DOS ESTADOS
DE SÃO PAULO E RIO DE JANEIRO.

Local Autor Tamanho Tempo Tempo Área População População


das roças médio de médio de aproximada de Total
familiares cultivo pousio de ocupação lavradoresa
humana
(ha) (anos) (anos) (ha) (hab) (hab)
Mandira (Cananéia-SP) Sales e Moreira 1,22 - 4,86 1 3 ou + - - 60
(1994)
Maresias (São Sebastião-SP) França (1954) - - - 280 - 631
Perequê (Ilha de França (1954) - - - 260 492 678
São Sebastião-SP)
Ilha de São Sebastião (SP) França (1954) 0,25 (média)-0,6 (max) 2 15 1.097 2.706 4.800
E.E. Juréia-Itatins (SP) Costa (1991) - 1-3 8 - 10 - - *
Cachoeira do Guilherme Vitae Civilis - 4-5 10-15 - - 25
(E.E.J.I.-SP) (1995)
Despraiado (E.E.J.I.-SP) Vitae Civilis (1995) - 4-5 10-15 - - 350
Cachoeira do Guilherme Canelada e - - 4 - 15 - - 100
Rio Comprido e Rio Verde, Jovchelevich
(E.E.J.I.-SP) (1992)
Praia do Una (E.E.J.I.-SP) Canelada e - - 4 - 15 - - 75
Jovchelevich (1992)
Ilha de Búzios (SP) Begossi et al. (1993); - 2-3 - - - 220
Begossi (1989, 1992,
1996, 1995a)
Saco do Mamanguá (RJ) Diegues e Nogara - 3-4 - - - 527
(1994)
Trindade (RJ) Silva (1979) 2,43 - - - 95 400
Ponta Negra (RJ) Kempers (1993) 0,5 em cultivo - - - - 80
5,0 em pousio
Ponta Negra (RJ) Brito (1995) 0,5 - - 1.277 65 125
Vila do Aventureiro (RJ) Oliveira et al. (1994); 0,06 - 0,45 3 3 -10 - 85 95
Oliveira. (1999);
Vilaça e Maia (1989)
R.B.E. Praia do Sul (RJ) Toffoli e Oliveira - 3,7 4,8 - - -
(1996)
a) A divisão foi feita pelo número de habitantes pertencentes a famílias lavradoras, considerando cada membro da família lavradora como trabalhador,
mesmo que nem sempre as crianças participem do cultivo

e encostas, França (1954) multiplicou a os recursos do meio1, obtido pela migra- considerou-se que cada família possuía 5
área total sob cultivo pela razão tempo ção natural dos excedentes populacionais membros, valor médio entre aqueles en-
médio de pousio / tempo médio de culti- e pela ligeira melhora dos mecanismos de contrados por Sales e Moreira (1994)
vo. Para os 280 ha cultivados em 1951, trocas no século XX, quando comparados para Mandira (SP) e por Oliveira (1994,
seriam necessários pelo menos mais ao século XIX. 1999) para a Vila do Aventureiro (RJ)2,
2.100 ha para que o sistema continuasse considerando neste último caso, que cada
viável. As culturas temporárias localiza- A Análise Comparativa – Resultados uma das 23 casas correspondia a uma fa-
das nas planícies costeiras estavam sub- mília. Os valores de tamanho de roça ob-
metidas a um ritmo diverso, com perío- Utilizando a metodolo- tidos por Sales e Moreira (1994) e Silva
dos de plantio e pousio menores. Neste gia proposta por França (1954), realiza- (1979), em Mandira (SP) e Trindade
caso, o autor considerou que a área sob mos uma comparação entre os dados por (RJ), foram expressos em alqueires. Neste
cultivo nas planícies necessitaria do do- ele levantados e aqueles de Begossi dois casos, o valor foi convertido para
bro de sua superfície para continuar viá- (1989, 1992, 1995a, 1996), Begossi et al. hectares de acordo com o alqueire paulis-
vel (224 ha). Como a disponibilidade de (1993), Brito (1995), Canelada e Jovche- ta (1 alqueire = 2,43 ha).
encostas e planícies para a agricultura na levich (1992), Costa (1991), Diegues e A partir da Tabela I foi
Ilha era equivalente, na época, a 12.600 Nogara (1994), Kempers (1993), Oliveira obtida a média aritmética simples para o
ha e 730 ha, respectivamente, havia uma et.al. (1994), Oliveira (1999), Sales e tamanho das roças, tempo de cultivo e
possibilidade teórica de continuidade do Moreira (1994), Silva (1979), Toffoli e pousio3, que resultaram nos valores da
sistema. Oliveira (1996), Vilaça e Maia (1989) e Tabela II. Como o objetivo deste trabalho
Entretanto, isso já não Vitae Civilis (1995), para diversas comu- foi comparar os dados sob uma ótica his-
pareceu mais possível ao autor (França, nidades caiçaras (Tabela I, Figura 1). Os tórico-regional, os valores obtidos por
1954) devido a existência de inúmeras resultados foram discutidos com base em França (1954) não foram incluídos nas
áreas degradadas, com solos de rendi- seus contextos histórico-regionais. médias, pelo fato de retratarem uma situ-
mento inferior ao do passado. Concluiu- Alguns autores, como ação distinta daquela encontrada pelos
se que o efetivo humano da época situa- Brito (1995), Canelada e Jovchelevich demais autores (Adams, 2000).
va-se no limite das possibilidades propor- (1992) e Vitae Civilis (1995), forneceram Os valores obtidos por
cionadas pelo meio natural, representando o número de famílias e não de habitantes Sales e Moreira (1994), Silva (1979) e
um novo equilíbrio entre as populações e das comunidades estudadas. Nestes casos, Vitae Civilis (1995) também não foram

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considerados, os dois primeiros por serem
muito discrepantes com relação aos de-
mais, e o último porque a maior parte das
famílias desta comunidade não são oriun-
das da região, mas migrantes nordestinos,
dedicados em grande parte ao cultivo co-
mercial da banana (Sanches, RA comuni-
cação pessoal). Toffoli e Oliveira (1996) e
Costa (1991) não foram considerados por
não apresentarem nenhum dos dados ne-
cessários.
Para determinar o tama-
nho aproximado da área cultivada em cada
comunidade, com a finalidade de compa-
rar os resultados com aqueles obtidos por
França (1954), multiplicou-se o tamanho
aproximado das roças familiares pelo nú-
mero de roças ou famílias lavradoras (su-
pondo que cada uma possua uma roça).
Entretanto, apenas as comunidades de
Trindade-RJ (Silva, 1979), Ponta Negra-RJ
(Brito, 1995) e Vila do Aventureiro-RJ
(Oliveira et al., 1994; Oliveira, 1999; Vi- Figura 1. Mapa do Brasil localizando os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro e as co-
laça e Maia, 1989) possuíam os dados pri- munidades estudadas.
mários necessários. No caso de Trindade- TABELA II
RJ, pelos motivos já mencionados acima, MÉDIAS ARITMÉTICAS SIMPLES DO TAMANHO DAS ROÇAS FAMILIARES,
o tamanho das roças familiares utilizado DO TEMPO DE CULTIVO E DE POUSIO EM DIVERSAS COMUNIDADES
foi a média obtida na Tabela II (0,42 ha). CAIÇARAS LEVANTADAS (ADAMS, 1996)
A relação entre a área
cultivada pela comunidade e o número de
Unidade Média Simples
habitantes4 também foi calculada. Conside-
rando que em cada comunidade existem Tamanho das Roças ha 0,42
famílias que dependem do cultivo como Tempo de Cultivo anos 3,11
atividade primária (lavradores), e outras Tempo de Pousio anos 7,80
que garantem sua subsistência básica de
outras formas (pesca, trabalho assalariado, TABELA III
aposentadorias, etc.), os resultados foram
TAMANHO MÉDIO DAS ROÇAS FAMILIARES, ÁREA TOTAL CULTIVADA
apresentados separadamente (lavradores/ APROXIMADA, POR LAVRADOR E POR MORADOR, PARA AS COMUNIDADES
moradores). Estes dados puderam ser com- DA ILHA DE SÃO SEBASTIÃO (SP), MARESIAS (SP), PEREQUÊ (SP),
parados àqueles citados por França (1954)
TRINDADE (RJ), PONTA NEGRA (RJ) E VILA DO AVENTUREIRO (RJ)
para a Ilha de São Sebastião (SP) e dois
bairros do litoral norte de São Paulo:
Local / Autor Tamanho Área total Área de Área de
Perequê (na própria Ilha) e Maresias (no
médio das cultivada cultivo por cultivo por
continente, município de São Sebastião). roças familiares (aproximada)a lavradorb moradorc
Os resultados encontram-se na Tabela III. ha ha ha/hab ha/hab
Observe-se que as áreas
de cultivo por morador na Ponta Negra e Ilha de São Sebastião (SP) França (1954) 2 680 0,25 0,14
na Vila do Aventureiro (RJ) foram iguais Maresias (SP) França (1954) - 42 - 0,07
(0,05 ha), apesar de pertencerem a áreas Perequê (SP) França (1954) - 111 0,22 0,16
geograficamente distintas. Na Vila do MÉDIAS 0,24 0,12
Aventureiro a área cultivada por lavrador
(0,05 ha) não diferiu daquela encontrada Trindade (RJ) Silva (1979) 0,42 7,98 0,08 0,02
por morador, indicando que a maior parte Ponta Negra (RJ) Brito (1995) 0,5 6,50 0,10 0,05
da comunidade deve depender da agricul- Vila do Aventureiro (RJ) 0,25 4,25 0,05 0,05
tura, o que é confirmado pelos autores Oliveira et al. (1994) Oliveira (1999)
(Oliveira et al., 1994; Oliveira, 1999; Vi-
MÉDIAS 0,08 0,04
laça e Maia, 1989). As médias baseadas
nos dados de França (1954) são significa- a): N° de roças ou famílias lavradoras (Tabela I) x tamanho aproximado das roças familiares (ha).
tivamente maiores que os valores das de- b): A divisão foi feita pelo número de habitantes pertencentes a famílias lavradoras, considerando
mais comunidades. cada membro da família lavradora como trabalhador, mesmo que nem sempre as crianças participem
Todavia, a análise destes do cultivo. c): A divisão foi feita pelo número total de habitantes da comunidade.
resultados deve considerar que existem di-
ferenças entre as áreas estudadas quanto ção à dependência que cada comunidade turistas) e assalariamento, por exemplo.
ao clima, fertilidade dos solos, espécies/ possui das atividades agrícolas com rela- Neste sentido, na Ilha de São Sebastião,
variedades utilizadas no plantio, entre ou- ção a outras fontes de renda como a pes- em 1950, mais de 80% da população vivia
tras. Além disso, há diferenças com rela- ca, serviços para terceiros (principalmente direta ou indiretamente da agricultura,

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com poucas alternativas de renda. Os da- TABELA IV
dos das comunidades de Trindade, Ponta ÁREA DE CULTIVO APROXIMADA, TEMPO DE CULTIVO, TEMPO DE POUSIO
Negra e Vila do Aventureiro (RJ) foram E ÁREA NECESSÁRIA PARA A MANUTENÇÃO DO SISTEMA DE ROÇAS
obtidos nas décadas de 1970-90, numa si- ITINERANTES POR COMUNIDADE, LAVRADOR E MORADOR, NA ILHA DE SÃO
tuação histórico-regional bastante distinta SEBASTIÃO, MARESIAS E PEREQUÊ (SP), SEGUNDO FRANÇA (1954)
(Adams, 2000).
Os resultados da Tabela Local / Autor (ano) Área de Tempo Tempo Área Área Área
III permitiram determinar, utilizando a cultivo médio de médio cultivada necessária necessária
a
metodologia proposta (França, 1954), aproximada cultivo de pousio necessária por lavrador por morador
total para para
aproximadamente quantos hectares seriam manutenção manutenção
necessários para a manutenção dos siste- do sistema do sistema
mas de roças itinerantes nestas comunida- ha anos anos ha ha ha
des, por lavrador e morador, considerando
as condições de densidade populacional e Ilha de São Sebastião (SP) 680 2 15 2612,0 0,97 0,54
dependência das atividades agrícolas en- Maresias (SP) 42 - - 117,6 - 0,19
contradas na época das pesquisas. A Tabe- Perequê (SP) 111 - - 311,5 0,60 0,46
la IV apresenta os resultados para a Ilha MÉDIAS 0,79 0,40
de São Sebastião (SP). É importante desta-
a) França (1954) não forneceu dados diretos de tempo de pousio (Tp) e cultivo (Tc) para Maresias
car que os dados apresentados por França
e Perequê (SP), mas foi possível calcular a relação Tp / Tc para esta última (2,8). Como as duas
(1954) para a Ilha de São Sebastião, comunidades possuíam uma relação cultivo em planícies / cultivo em encostas semelhante (2,8 e
Maresias e Perequê (SP), foram calculados 2,1, respectivamente), utilizamos a mesma Tp / Tc para Maresias, obtendo a área total necessária
pelo autor separando as áreas de planície e para a continuidade do sistema agrícola caiçara.
encostas, conforme descrito em sua
metodologia. TABELA V
Levando em considera- ÁREA DE CULTIVO APROXIMADA, ÁREA NECESSÁRIA PARA
ção que para as comunidades de Trindade, A MANUTENÇÃO DO SISTEMA DE ROÇAS ITINERANTES EM PLANÍCIES
Ponta Negra e Vila do Aventureiro (RJ) POR COMUNIDADE, LAVRADOR E MORADOR, NAS COMUNIDADES
não dispúnhamos das áreas referentes a DE TRINDADE, PONTA NEGRA E VILA DO AVENTUREIRO (RJ)
cada um destes compartimentos, optou-se
por adotar dois cenários opostos: no pri- Local / Autor (ano) Área Área Área Área
meiro considerou-se que todas as roças de cultivo cultivada necessária por necessária
das comunidades estariam localizados em aproximada necessária total lavrador por morador
planícies, submetidas a períodos curtos de ha ha ha/hab ha/hab
pousio; no segundo, todas as roças seriam Trindade (RJ) Silva (1979) 7,98 15,96 0,17 0,04
de encosta, com períodos mais longos de Ponta Negra (RJ) Brito (1995) 6,50 13,00 0,20 0,10
pousio. Quando os autores não apresenta- Vila do Aventureiro (RJ) 4,25 8,50 0,10 0,09
ram os dados necessários, foram utilizadas Oliveira et al. (1994)
as médias obtidas na Tabela II (que en- Oliveira (1999)
contram-se em negrito na Tabela VI).
MÉDIAS 0,17 0,08
Cenário 1 – Roças de Planície
TABELA VI
O ritmo de cultivo nas ÁREA DE CULTIVO APROXIMADA, TEMPOS DE CULTIVO
planícies costeiras pressupõe um uso mais E POUSIO, ÁREA NECESSÁRIA PARA A MANUTENÇÃO DO
intensivo do solo, quando comparado aos SISTEMA DE ROÇAS ITINERANTES EM MORROS E ENCOSTAS POR COMUNI-
morros e encostas, necessitando de menos DADE, LAVRADOR E MORADOR, NAS COMUNIDADES DE
área para a rotação das culturas (Tabela TRINDADE, PONTA NEGRA E VILA DO AVENTUREIRO (RJ)
V). Portanto cada lavrador e morador ne-
cessitariam de uma área menor para sua Local / Autor (ano) Tempo Tempo Área Área Área Área
subsistência do que no Cenário II. Este médio médio de cultivada necessária necessária
quadro representaria uma situação teórica de de cultivo necessária por por
mais favorável à manutenção dos remanes- cultivo pousio aproximada total lavrador morador
centes florestais da Mata Atlântica. Toda- anos anos ha ha ha ha
via, este cenário é praticamente inviável
nos dias de hoje, considerando que as pla- Trindade (RJ) 3,11 7,8 7,98 19,95 0,21 0,05
Silva (1979)
nícies costeiras estão densamente ocupadas Ponta Negra (RJ) 3,11 7,8 6,50 16,25 0,25 0,13
e destinadas ao uso urbano. Brito (1995)
Vila do Aventureiro (RJ) 3 6,5 4,25 9,22 0,11 0,10
Cenário 1I – Roças de Morros e Encostas Oliveira et al., (1994)
Oliveira (1999)
Conforme o esperado, os MÉDIAS 0,19 0,09
valores das áreas necessárias por lavrador
e morador para a continuidade do sistema
nos morros e encostas é superior aos en- Mesmo assim, a comparação entre as mé- diferença é quase insignificante. O Cená-
contrados no cenário anterior, em virtude dias das áreas necessárias por lavrador/ rio II provavelmente representa com mais
do maior tempo de pousio (Tabela VI). morador nos dois cenários mostra que a fidelidade a situação hoje encontrada nas

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comunidades caiçaras, empurradas para as
encostas e unidades de conservação, devi-
do a ocupação desordenada das planícies
costeiras.
Uma comparação entre
as médias das Tabelas IV, V e VI mostra
que as áreas necessárias para a continui-
dade do sistema por lavrador e morador
para a Ilha de São Sebastião, Maresias e
Perequê (SP) são substancialmente maio-
res que os das demais comunidades, para
qualquer um dos cenários considerados.
Observar que, apesar de Perequê e
Maresias possuírem praticamente a mes-
ma área ocupada e um número muito
próximo de habitantes, o primeiro apre-
sentou uma área necessária por morador
mais elevada (ver Tabelas I e IV).
Quando colocados em
ordem cronológica (Figura 2), os dados
das Tabelas IV e VI (cenário mais desfa-
vorável) mostram uma queda sensível na
área necessária, o que provavelmente de-
monstra a redução da dependência da ati-
Figura 2 - Área (ha) necessária por habitante para a continuidade do sistema agrícola
vidade agrícola ocorrida nas três últimas
Caiçara, segundo metodologia de França (1954), em ordem cronológica
décadas. Foi neste período que ocorreu a
abertura e/ou pavimentação das novas es-
tradas de acesso ao litoral paulista, o que TABELA VII
ocasionou um incremento da atividade tu- DENSIDADE POPULACIONAL ENTRE AGRICULTORES ITINERANTES EM VÁRI-
rística e a venda de terras para a constru- AS FLORESTAS ÚMIDAS DA MALÁSIA (Whitmore, 1990).
ção de residências de veraneio. A redu-
ção observada, também pode ter sido Autor citado Localização Etnia Tempo de Densidade
acentuada pela criação de unidades de Pousio Populacional
conservação que, ao impor restrições às anos hab/km²
atividades tradicionais das comunidades Borneo
caiçaras que habitam seu interior, acaba- Dove (1981) Kalimantan Kantu 7 16
ram reduzindo a área de plantio e obri- Chin (1985) Sarawak Kenyah 20-12 11-18
gando as populações a reorganizarem seu Freeman (1955) Iban 12 18
modo de vida, para garantir sua sobrevi- Conklin (1957) Philippines Hanunoo 12 48
vência. Rappaport (1968, 1971) New Guinea Tsembaga 15-25 34
Os cálculos assumem que 50-70% das terras sejam cultiváveis
Discussão e Conclusão

Sabe-se, atualmente, que TABELA VIII


a agricultura itinerante praticada da forma ÁREA TOTAL DA ILHA DE SÃO SEBASTIÃO, DENSIDADE POPULACIONAL,
tradicional é uma forma sustentável, que ÁREA CULTIVADA EXISTENTE E NECESSÁRIA PARA A CONTINUIDADE DO
pode continuar indefinidamente nos solos SISTEMA CAIÇARA E TEMPO DE POUSIO, EM MEADOS DO SÉCULO XIX E EM
pouco férteis encontrados sob a maioria 1950 (França, 1954)
das florestas tropicais úmidas, contanto
que a capacidade de suporte da terra não Local Tempo Densidade Área de Área de
seja excedida. Oliveira et.al. (1994), Oli- de Pousio populacional cultivo existente cultivo
veira (1999) e Oliveira e Coelho Netto necessária
(1996) mostraram que esta afirmação tam- Ilha de São Sebastião (SP) anos hab/ km2 km2 (% total) 2
km (% total)
bém vale para algumas comunidades cai- Meados séc. XIX 15-20 32,7 126 (37,5) -
çaras, na Ilha Grande (RJ). Entretanto, 1950 15-20 14,3 6,8 (2,1) 26,12 (7,8)
qualquer redução do período de pousio ou
no aumento do tempo de plantio, situações
de ocorrência provável quando há aumen-
to populacional e portanto, na demanda agricultores itinerantes nas florestas tropi- atividade agrícola na Ilha, a densidade
por terras, pode colocar esta situação a cais da Malásia (Tabela VII). populacional e o período de pousio en-
perder (Altieri, 1989; Boserup, 1987; A situação encontrada contravam-se dentro dos parâmetros apre-
Whitmore, 1990). por França (1954) na Ilha de São Sebas- sentados e a área cultivada era bem infe-
Whitmore (1990, p. 155) tião (SP) (Tabela VIII), pode ser conside- rior (37,5%) àquela assumida por
levantou alguns dados sobre a densidade rada semelhante àquela observada entre Whitmore (1990).
populacional e número de anos de pousio os povos agricultores itinerantes da Entretanto, Whitmore (1990)
necessários para manter populações de Malásia. Mesmo no século XIX, auge da considera que a agricultura de sub-

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sistência permite um máximo de 10 a 20 nícies, quer principalmente no relevo suporte deste ecossistema6. Pretende ape-
pessoas por km2, com apenas 10% da amorreado, ou de condições para o nas servir como um parâmetro de análise
área sob cultivo, a qualquer tempo, por aumento da produção básica, proveni- para traçar uma relação entre dados quan-
causa da necessidade do pousio. Neste ente da agricultura, do que da explo- titativos sobre roças já levantados por ou-
caso, a densidade populacional na Ilha de ração abusiva da superfície que se tros autores, desenhando um quadro geral
São Sebastião esteve acima do limite no mostrou em condições de abrigar cul- sobre as comunidades caiçaras com rela-
século XIX (32,7 hab/km 2), com uma turas.” (França, 1954, p. 188) ção ao fator demográfico. Evidencia-se,
área cultivada de 37,5%. Mas, em 1950, assim, que a discussão sobre a permanên-
a densidade populacional encontrava-se Podemos especular, por- cia ou retirada destas populações do interi-
dentro dos limites esperados (14,3 hab/ tanto, que a passagem de uma subsistên- or de unidades de conservação, pelo me-
km2), com uma área cultivada (2,1%) cia primordialmente agrícola para outra nos no que diz respeito às roças iti-
bem inferior a 10%. baseada na pesca embarcada, em meados nerantes, ainda está longe de ter subsídios
Todavia, assim como nos do século XX, pode ter feito parte da es- científicos suficientes para que se possa
demais trechos do litoral brasileiro, a ocu- tratégia de algumas comunidades caiça- responder à questão, e cada caso deve ser
pação caiçara na Ilha de São Sebastião ras, frente ao declínio da produtividade analisado individualmente.
concentrava-se principalmente nas planíci- agrícola e, talvez, à impossibilidade de
es costeiras. O próprio França (1954) res- realizar a passagem para um sistema mais NOTAS
salva que a área total da Ilha não corres- intensivo, devido às condições de relevo
1
pondia à área total ocupada. Em 1950, locais (Boserup, 1987). Na metade do século XIX, a população insu-
78% da população ocupava as planícies Devemos considerar tam- lar era cerca de 2,5 vezes maior, com pratica-
mente o dobro da área agrícola disponível por
costeiras (2% da superfície insular). A bém as observações feitas por McGrath habitante (1,15 ha/hab).
densidade populacional nos 57 km2 ocupa- (1987), de que as medidas de tempo de 2
E que não difere muito do valor de 4,2 en-
dos era equivalente a 84 hab/km 2, supe- pousio e frequência de cultivo são úteis contrado por França (1954) para a Ilha de
rando em quase duas vezes a densidade para estabelecer o padrão temporal do ci- São Sebastião (SP) e 4,9 para o Perequê, co-
máxima observada na Malásia, e em mais clo produtivo, mas são medidas parciais munidade localizada nesta mesma ilha, na dé-
cada de 1950.
de quatro vezes o valor máximo ideal para de intensidade de uso da terra, uma vez 3
Mesmo considerando que as culturas de pla-
Whitmore (1990) para uma área cultivável que não consideram as variações espaciais nícies e encostas possuem dinâmicas próprias,
de 20,3% (68 km2)5, indicando, provavel- nas características da biomassa de determi- conforme verificado por França (1954) a se-
mente, que o sistema não se manteria: nada área. Para McGrath (1987), não é a paração dos cálculos mostrou-se inviável, de-
vido a falta de dados primários.
terra em si que os agricultores itinerantes 4
Apesar das unidades domésticas formarem a
“Em face do uso dos solos cultiváveis exploram, mas o complexo vegetação-solo unidade de trabalho nas comunidades caiça-
e das técnicas rotineiras em vigor, que se desenvolveu na área. ras, e de sua importância em estudos antropo-
consideramos, assim, o efetivo atual Todavia, a transição lógicos com populações camponesas, optamos
no limite das possibilidades proporci- ocorrida no século XX não teria significa- por calcular as áreas com base no número de
habitantes de cada comunidade, de forma a
onadas pelo meio natural, e qualquer do a passagem de uma situação de “equi- permitir uma comparação com os dados apre-
acréscimo, à base dos sistemas de ex- líbrio”, garantida por um “isolamento” ge- sentados por França (1954) e Whitmore
ploração em prática, como inviável e ográfico e cultural, para uma situação de (1990).
5
capaz de rebaixar os níveis de vida desorganização e desintegração social da Área total da Ilha (336 km2) – área acima da
cota 100 (268 km2, com densidade populacio-
do elemento local.” (França, 1954, p. população (Adams, 1996, 2000). Preferi- nal nula)
116-7) mos considerar que tenha havido uma re- 6
Clarke (1976) traz alguns indicadores para
organização social. Este seria apenas mais avaliar se a capacidade de suporte está sendo
Se as considerações de um dos vários ciclos econômicos vividos ultrapassada neste tipo de sistema.
Whitmore (1990) puderem ser extrapo- por estas populações, como o próprio
AGRADECIMENTOS
ladas para a Mata Atlântica, poderemos Mourão (1971) aponta em Cananéia (SP).
supor que a queda da produtividade agrí- Por fim, os números dis-
cola seja um dos motivos para o abando- cutidos aqui para o sistema caiçara devem, À FAPESP (PROCESSO
no da atividade agrícola e da redução po- claramente, ser analisados à luz de vários 94/01608-0) pela bolsa de mestrado que
pulacional em algumas comunidades, ob- fatores. Em primeiro lugar, em que condi- possibilitou a dissertação que deu origem
servadas por França (1954) e outros auto- ções este sistema se apresenta hoje (ou na a este trabalho. À Profa. Dra. Renate B.
res (Beck, 1989; Cunha e Rougeulle, época em que cada um dos autores levan- Viertler (FFLCH-USP) e ao Prof. Dr.
1989; Gusmão, 1979; Mourão, 1971), em tou seus dados)? Os 0,09 ha que cada mo- Walter Neves (IB-USP) pela orientação.
algumas regiões do nosso litoral. Nestas rador destas comunidades necessitaria, em Ao Prof. Dr. Ricardo Abramovay (FEA /
situações, a densidade populacional máxi- média (Tabela VI), para manter seu pa- PROCAM-USP), MSc Paulo Sinisgalli,
ma poderia ter sido ultrapassada e as drão de vida seriam, de fato, suficientes? MSc Rosely A. Sanches e MSc Sidney T.
condições locais de clima e solo não teri- A reorganização provocada pela chegada Rodrigues, pelas leituras críticas e suges-
am permitido a continuidade da atividade do turismo, desde a década de 1970, mui- tões.
nos mesmos níveis de produtividade: tas vezes acarretou na perda de suas ter-
ras. Qual é sua qualidade de vida hoje? REFERÊNCIAS
“Apesar do seu escasso contingente Qual é o padrão que estas populações de- Adams C (1994) As florestas virgens manejadas.
humano, a Ilha de São Sebastião pode sejam atingir? Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi, sér. Antro-
ser considerada, em face das técnicas Esta discussão também pologia, 10 (1): 3-20.
de utilização do meio e sistemas de não pressupõe que estas comunidades es- Adams C (1996) Caiçaras na Mata Atlântica:
vida tendo por finalidade a subsistên- tejam interessadas na continuidade do sis- pesquisa científica versus planejamento e
gestão ambiental. Dissertação (Mestrado em
cia local, como tendo atingido à satu- tema, ou que esta seja a solução para as Ciência Ambiental). Programa de Pós-Gra-
ração demográfica. Esta provém me- unidades de conservação de Mata Atlânti- duação em Ciência Ambiental, Universidade
nos da falta de espaços, quer nas pla- ca, nem pretende discutir a capacidade de de São Paulo.

MAY - JUN 2000, VOL. 25 Nº 3 149


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