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SUMÁRIO
Ano XVI - Nº 92 - nov./dez. - 2023 2 NOTAS
EXPEDIENTE

Revista POLI: saúde, educação e


trabalho - jornalismo público para
o fortalecimento da Educação
Profissional em Saúde
ISSN 1983-909X
4 CAPA
Disputa de sangue
Coordenadora de Comunicação,
Divulgação e Eventos
Talita Rodrigues
12 TRABALHO
Edição Quantidade é qualidade?
Cátia Guimarães
Reportagem
Cátia Guimarães
Juliana Passos
Paulo Schueler
16 MOBILIDADE URBANA
Direito de ir e vir
Projeto Gráfico
Maycon Gomes
Diagramação
José Luiz Fonseca Jr.
Marcelo Paixão
20 SAÚDE E AMBIENTE
Maycon Gomes No Congresso e no STF, avançam perigos
Capa
para o meio ambiente e para a saúde
José Luiz Fonseca Jr.
Fotos de capa
Freepik 24 ENTREVISTA
Mala Direta e Distribuição Monica Ribeiro
Matheus Batista Costa
Valéria Melo ‘Nós temos uma dívida histórica, cultural,
Portal EPSJV
ética e moral com a juventude que está no
Paulo Schueler Ensino Médio hoje’
Mídias Sociais
Erika Farias
Larissa Guedes
Comunicação Interna 28 EDUCAÇÃO INTEGRAL
Júlia Neves Recuperar o tempo perdido
Talita Rodrigues
Editora Assistente de Publicações
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2 NOTAS
RAFAEL NASCIMENTO / MS

Saúde com Ciência


O governo federal lançou, em outubro, o Pro-
grama Saúde com Ciência, que visa enfrentar o
ambiente de desinformação que afeta as políticas
de saúde. Neste primeiro momento, a iniciati-
va vai concentrar esforços no combate às fake
News e outras formas de desinformação que têm
prejudicado a adesão dos brasileiros à vacinação.
Apesar de ter um dos mais abrangentes e eficazes
programas de imunização do mundo, a cobertura
vacinal vem caindo significativamente no Brasil,
chegando, em 2022, segundo dados do Ministério
da Saúde, a menos de 59% da população, quando
o índice seguro, de acordo com a mesma fonte, é
de 95%. mação; fortalecer a cooperação com outras instituições do governo e
O ‘Saúde com Ciência’ está baseado em cinco da sociedade civil para a difusão de conteúdos confiáveis e combate
estratégias principais: promover uma comunicação à desinformação; criar mecanismos de acompanhamento, análise e
estratégica e por meio de campanhas; capacitar os pesquisa de fontes de dados; e instituir processos de responsabilização
profissionais de saúde para lidar com a desinfor- legal de quem fomenta um ambiente de desinformação.

Reforma Tributária avança no Congresso


Foi aprovada em dois turnos no Senado a Pro- Se a medida for aprovada como dade constitucional de que os
posta de Emenda Constitucional (PEC) 45/2019, está, IPI, PIS e Cofins, três estados, que têm o ICMS como
que institui a reforma tributária. O texto já tinha tributos federais – este último, sua maior fonte de receita,
sido aprovado na Câmara dos Deputados mas, inclusive, parte do orçamento destinem 25% dos recursos
como sofreu muitas mudanças, precisa agora da seguridade social – serão para a Educação. O professor da
voltar para ser confirmado nessa Casa. No mo- concentrados em um único, Universidade de São Paulo José
mento em que esta edição da Poli foi concluída, a chamado Contribuição sobre Marcelino alertou, no entanto,
expectativa era que esse debate acontecesse em Bens e Serviços. Já o ICMS, que a transformação do IPI, que
breve. O relator do texto no Senado foi o parla- que é estadual, e o ISS, que é é um imposto, numa contribui-
mentar Eduardo Braga (MDB-AM). Entre várias municipal, se transformarão no ção poderia afetar o financia-
outras mudanças, a PEC propõe reduzir o número Imposto sobre Bens e Serviços mento da Educação na medida
de tributos, adotando um Imposto sobre Valor (IBS). Como a edição passada (nº em que deixaria de integrar o
Agregado (IVA), que tem sido defendido como 91) da Poli destacou, a mudança bloco de tributos que compõem
uma forma de simplificar o sistema tributário. não compromete a obrigatorie- a vinculação obrigatória.

Mais de 7 milhões de pessoas em teletrabalho


O IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e tuais e profissionais das ciências nais, os empregadores estavam
Estatística, divulgou no final de outubro de 2023 lideram essa proporção (28.6%), no topo da lista (16,6%), seguidos
uma pesquisa inédita sobre o perfil dos trabalha- seguidos por gestores e diretores pelos servidores públicos (11,6%).
dores em teletrabalho no Brasil e estimou que 7,4 (26,1%). Outro dado trazido pela Os trabalhos que permitem o
milhões de brasileiros trabalharam nesse for- pesquisa é o de que um quarto trabalho à distância também
mato em 2022, o que representa 7,7% do total de dos profissionais das áreas de registram uma remuneração
ocupados que não estavam afastados do trabalho. informação, comunicação e média melhor: R$ 6.479 ante
A maioria possui ensino superior (70%), é branca atividades financeiras, imobiliá- R$2.398. Em relação às horas
(63%) e do sexo masculino (52%). A opção pelo rias, profissionais e administrati- trabalhadas, há pouca variação.
trabalho remoto com uso de tecnologias, condições vas realizou teletrabalho no ano Os teletrabalhadores dedicaram
para estar em teletrabalho de acordo com o IBGE, passado. Quando a classificação 39,7 horas, contra 39,3 dos que
também tem um recorte por ocupação. Os intelec- se deu por categorias profissio- não trabalharam dessa forma.
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Como enfrentar a violência nas escolas?


Um Grupo de Trabalho de 68 especialistas masculino, segundo o relatório, “motivados por discursos de ódio e/
apresentou ao Ministério da Educação, no final de ou comunidades online de violência extrema”. Embora aponte como
outubro, um relatório intitulado ‘Ataque às escolas “parte do problema”, o estudo diz que o bullying não explica sozinho
no Brasil: análise do fenômeno e recomendações esse cenário. O crescimento do cyberbullying, diretamente ligado ao
para ação governamental’, que sistematiza “as uso frequente das tecnologias de comunicação e informação, é citado
discussões mais atualizadas de pesquisas científicas como uma das muitas causas desse fenômeno, com o “agravante” de
sobre extremismo e violência contra as escolas”, facilitar o “anonimato do agressor”.
identifica “possíveis causas” e propõe “políticas de O documento sugere 12 ações a serem priorizadas pelo Estado
enfrentamento ao problema”. Como diagnóstico, o para enfrentar o problema, que vão desde a responsabilização das pla-
texto constata que, entre 2002 e outubro de 2023, taformas e usuários pela circulação de conteúdos de ódio até a promo-
37 escolas do país – 30 delas públicas – sofreram ção de políticas de saúde mental nas escolas, valorização e formação
ataques, com um aumento significativo a partir dos professores e a expansão de “espaços comunitários destinados ao
de 2017, excetuando-se o período da pandemia de lazer, à socialização, aos esportes e à cultura”.
Covid-19. O resultado foram 115 pessoas feridas O GT foi instituído por um decreto de junho deste ano, como uma
e 49 mortas. Todos os agressores foram do sexo iniciativa interministerial.

Jornada reduzida para ACS e ACE com deficiência


Foi aprovado na Comissão de Defesa combate a endemias (ACE) com deficiência ou cujo filho ou
dos Direitos da Pessoa com Deficiência cônjuge esteja nessa situação.
da Câmara dos Deputados o Projeto de O projeto será analisado pelas comissões de Saúde; Administração
Lei 2.506/2023, do deputado Fred Costa e Serviço Público; Finanças e Tributação; e Constituição e Justiça e
(Patriota/MG), que estabelece horário Cidadania, em caráter conclusivo, o que significa que, se aprovado
reduzido de trabalho para agentes nesses espaços sem divergência e sem apresentação de recursos, não
comunitários de saúde (ACS) e agentes de precisa ir à votação em plenário.

Congresso aprova alterações na Lei de Cotas


MARCOS OLIVEIRA / AGÊNCIA SENADO
Pouco mais de uma década após a criação da
Lei de Cotas (12.711/2012) nas instituições fede-
rais de ensino – Superior e Médio –, o Congresso
aprovou, em outubro de 2023, algumas mudanças
no critério de ingresso por meio do Projeto de Lei
5.384/2020. A primeira delas é que os candidatos
cotistas também entrarão na modalidade de ampla
concorrência. Caso aprovados, essas vagas não
serão contabilizadas entre as vagas reservadas, o
que preserva o texto original, que determina um
“mínimo de 50%” para aqueles que cursaram o
ensino Médio ou Fundamental em escolas pú-
blicas. A outra mudança foi no critério de renda.
Entre o total das vagas reservadas, metade está
destinada a estudantes com renda média familiar
de um salário mínimo por pessoa. Anteriormente
era um salário e meio. Dentro do critério mínimo da federação à qual a instituição está vinculada. Esse número é
de ter estudado em escola pública, há o percentual dado pelo Censo Populacional, feito pelo IBGE, o Instituto Brasileiro
destinado a indígenas, pessoas com deficiência e de Geografia e Estatística, que em sua edição de 2022, incluiu os
pretos e pardos. E aqui está mais uma novidade: quilombolas pela primeira vez. Por fim, o Congresso definiu o prazo
os quilombolas foram incluídos. A proporção das de dez anos para que a lei seja avaliada, e não mais revisada, além
vagas destinadas a essas populações deve respeitar da produção de um relatório anual com informações sobre o acesso,
o percentual de cada uma delas em cada unidade permanência e conclusão dos estudantes cotistas e não-cotistas.
44 CAPA

DISPUTA
DE SANGUE
Proposta de Emenda Constitucional
quer voltar a autorizar a comercialização
de sangue no Brasil. Debate é oportunidade
para conhecer a política do país nessa área
e os interesses do setor privado

CÁTIA GUIMARÃES

T
Arte elaborada a partir de um
ire a poeira dos livros de biologia. Junte um bocado de noções de cartaz de Ziraldo, dos anos 1980,
economia e misture com algum debate sobre direito. Se a receita der e outro de um ato contra a PEC do
Plasma em Congresso da Abrasco
certo, ao final desta reportagem você terá ingredientes para enten-
der e se posicionar melhor sobre o debate em torno da Proposta de
Emenda Constitucional nº 10/2022, apelidada de PEC do Plasma, que quer
autorizar a comercialização de parte do sangue dos brasileiros, alterando um
princípio que prevalece desde 1988 de que nenhum órgão ou tecido do corpo
EU ACHO QUE A
humano pode ser objeto de compra e venda.
O objetivo central da PEC é criar condições legais para um mercado que POPULAÇÃO NÃO CONHECE
permita vender à indústria de hemoderivados – medicamentos produzidos a
A PRECIOSIDADE QUE É A
partir do sangue humano – a parte do plasma dos brasileiros que não é usada
em transfusões. Mas para entender melhor esse imbróglio, talvez seja impor- POLÍTICA DE SANGUE DO
tante lembrar que a produção desses fármacos, que se destaca como o foco da
BRASIL”
mudança constitucional que tramita no Congresso neste momento, é apenas
a fase final de uma política ampla (e pouco visível), que existe para garantir as JOICE ARAGÃO
condições de saúde de milhões de brasileiros que dependem de componen- Coordenadora de Sangue e Hemoderivados
tes e derivados do sangue de outras pessoas para sobreviver – uma política do Ministério da Saúde
que envolve muitas instituições e estruturas do Estado, mas que só é possível
graças à solidariedade de outros milhões de doadores que, voluntariamente,
E qual o destino disso? Certamente você conhece ou
abastecem os hemocentros do país todos os dias. “Eu acho que a população
já ouviu falar de alguém que precisou de transfusão de
não conhece a preciosidade que é a política de sangue do Brasil”, diz Joice Ara-
sangue em função de uma cirurgia, acidente de trân-
gão, coordenadora de Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde (MS).
sito ou problemas semelhantes. Mas existe um outro
contingente de pessoas para quem essa dependência
É DANDO QUE SE RECEBE é estrutural: seja por um período de tempo ou durante
De cada mil brasileiros, 14,7 eram doadores regulares de sangue em toda a vida, elas precisam receber regularmente um ou
2022. Isso é suficiente para atender à recomendação da Organização mais componentes do sangue para sobreviver. A situa-
Mundial de Saúde (OMS) de que os países devem ter entre 1% e 3% da ção provavelmente mais conhecida é a dos hemofílicos,
sua população como doadora, embora por aqui esse número (1,4%) esteja mas a lista dessas necessidades envolve desde patologias
mais próximo da base do que do topo. Além disso, num território com raras até doenças mais comuns, como hepatites, câncer
as dimensões do Brasil, não é desprezível a variação entre os estados: e HIV/Aids. “A necessidade de sangue para tratar, socor-
para se ter uma ideia, Roraima, que ocupa o primeiro lugar no ranking rer e até salvar pessoas é uma constante na atenção à
de doadores, tem uma taxa de 24,6 por mil habitantes, enquanto o Rio de saúde”, resume a coordenadora do MS.
Janeiro, que está na última posição, tem 9,32. Concretamente, segundo É nesse cenário que se destaca a importância dos
os mesmos dados do Ministério da Saúde, extraídos a partir dos sistemas derivados do sangue, produtos que estão no centro da
de informação Hospitalar e Ambulatorial (SIH e SAI, respectivamente), disputa em torno da PEC do Plasma. Afinal, são eles
o resultado desse cenário é que 3,1 milhões de bolsas de sangue foram que permitem repor as diferentes substâncias do san-
coletadas no Sistema Único de Saúde (SUS) no ano passado. gue ausentes ou deficientes em cada uma dessas pato-
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logias. Como são várias as doenças Nada disso começou agora. A obrigatoriedade de o Es- Isso é fato. Foram muitos os pro-
cujos pacientes podem precisar de tado garantir os medicamentos e insumos necessários ao blemas que atrasaram a efetivação
hemoderivados, o controle dessa tratamento de pessoas com coagulopatias foi resultado de do projeto da Hemobrás, desde a
demanda está distribuído por dife- luta e pressão social, principalmente de usuários organiza- insuficiência de normativas legais
rentes áreas do Ministério da Saúde. dos em entidades da sociedade civil, numa história que se até o embargo da obra da fábrica
Sob a responsabilidade direta da parece – e, em alguma medida, até se confunde – com a do por denúncia de corrupção. O atual
coordenação que leva esse nome movimento de portadores de HIV/Aids. “No Brasil temos presidente da empresa, Antonio
está a política que assiste as cha- o único programa no mundo que compra hemoderivados Edson Lucena, diz que prefere não
madas coagulopatias, doenças que nessa quantidade, para atender a esse número de pacien- falar do passado porque desco-
se caracterizam pela dificuldade ou tes”, ressalta Beatriz MacDowell, que foi coordenadora do nhece as dificuldades que foram
incapacidade do sangue de coagu- hemocentro do Distrito Federal e gerente geral de Sangue enfrentadas, mas arrisca afirmar
lar. É aqui que você resgata o velho e Hemoderivados da Anvisa entre 2000 e 2004. E o desta- que o conjunto dos problemas
livro de biologia pela primeira vez, que não é por acaso. “São medicamentos de altíssimo custo”, expressa, de certa forma, o custo
para lembrar que a capacidade do confirma Aragão, detalhando que, em 2023, o Ministério que se pagou pelo “pioneirismo”
corpo de formar coágulos é funda- da Saúde reservou um orçamento de R$ 1,6 bilhão para da iniciativa. “Era como se o Brasil
mental para evitar sangramentos a compra desses fármacos. “A gente tem uma excelente não estivesse preparado para ter
descontrolados, por exemplo, diante política de sangue, que é referência no mundo”, completa uma fábrica desse tamanho, com
de um corte. O problema é que, por a coordenadora, contando que recentemente o Brasil che- a tecnologia que é necessária. E
questões genéticas ou em função de gou a capacitar países como Angola e Honduras nessa área. não tivéssemos também as leis que
alguma doença adquirida, em algu- vieram depois, o incentivo tecno-
mas pessoas a deficiência de um fa- A FÁBRICA QUE AINDA NÃO VEIO lógico nas PPPs [parcerias público-
tor sanguíneo impede essa resposta -privadas], o desenvolvimento para
natural do organismo, o que signi- Acontece que nem tudo que o Ministério da Saúde internalização de transferência de
fica que, se não conseguirem repor compra de hemoderivados vem da Hemobrás , apesar tecnologia...”, analisa.
esses fatores, elas ficam expostas ao de a empresa Ele garante que, neste momen-
ter sido criada Enquanto as duas fábricas não
risco de hemorragias (externas e in- entram em funcionamento, a to, todos esses obstáculos estão
ternas) e morte. em 2004 com Hemobrás hoje mantém parcerias superados. A Hemobrás tem hoje
De acordo com o Ministério essa finalidade público-privadas com duas duas fábricas sendo construídas, em
principal. Não empresas, uma para fabricação
da Saúde, pouco mais de 30 mil do fator VIII recombinante e outra processo de finalização. Segundo
pessoas estão cadastradas no SUS por acaso, a ci- para o fracionamento do plasma Lucena, a primeira delas será inau-
como portadores de coagulopatias. fra referente ao para os hemoderivados. Este gurada ainda este ano e passará pe-
orçamento de último processo é feito no exterior,
A hemofilia A é a mais recorrente e por meio de uma exportação los devidos testes ao longo de 2024
mais conhecida dessas doenças, que 2023 voltado à temporária do plasma recolhido pela visando à autorização de funciona-
atinge 11 mil brasileiros; seguida aquisição desses empresa brasileira, que retorna ao mento da Anvisa, com expectativa
medicamentos país já na forma de hemoderivados,
pela Doença de von Willebrand, que que são distribuídos no SUS. Mesmo de pleno funcionamento em 2025.
afeta outros 10 mil; além de pacien- vem sendo ci- esse procedimento, no entanto, Essa é uma estrutura exclusiva
tes de hemofilia B e coagulopatias tada pelos de- ainda não é suficiente para suprir para produção do fator VIII (oito) re-
fensores da PEC as necessidades do país, de
raras, outras de origem hereditária modo que o governo federal combinante, produto que atende as
e demais transtornos hemorrágicos. do Plasma para também compra hemoderivados pessoas com hemofilia A, que repre-
Todos recebem regularmente – e de destacar o gasto diretamente de outras empresas. sentam o maior contingente de por-
forma gratuita – o tratamento com público com a tadores de coagulopatias no Brasil.
hemoderivados oferecido pelo SUS. compra de medicamentos que deveriam ser produzidos Trata-se, no entanto, de um fármaco
Através de sistemas de informação pela empresa. “A Hemobrás foi criada, estrategicamente, produzido por engenharia genética,
que ajudam a gerir essa política, o para produzir hemoderivados e, até hoje, não produziu sem necessidade de sangue huma-
Ministério tem controle do estoque uma gota sequer desses medicamentos. A demanda na- no. “É fantástico. Esse remédio vai
de sangue e de hemoderivados de cional por hemoderivados está sendo atendida por meio ser produzido dentro do Brasil por
cada hemocentro, de modo que, se da importação, a um custo que, atualmente, atinge R$ um custo muito menor. Menor eva-
falta em algum lugar, a Pasta se res- 1,5 bilhão, segundo o Ministério da Saúde”, argumenta o são de divisas. Desenvolvimento
ponsabiliza pela reposição, deslocan- senador Nelsinho Trad (PSD-MS), autor do texto original da indústria no país. Emprego no
do esses insumos de outro serviço da PEC. O presidente da Associação Brasileira de Bancos país. Geração de imposto no país
hemoterápico, mesmo entre estados de Sangue (ABBS), Paulo Tadeu, que funciona como uma todo. Todo esse ciclo financeiro ne-
diferentes. “As pessoas dependem espécie de sindicato patronal das entidades privadas des- cessário ao desenvolvimento, mas
disso para a sua sobrevida e é só no sa área, vai na mesma direção: “Tenho certeza absoluta principalmente, ter remédio de boa
SUS que elas vão encontrar”, explica do papel importante da Hemobrás para o país, como é o qualidade para fornecer para os
Joice Aragão, que se orgulha: “É uma papel do SUS. Agora, a Hemobrás está fazendo já vários brasileiros”, comemora o presidente
política exitosa essa nossa”. aniversários e não está produzindo ainda”. da ABBS alertando, no entanto, que
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noglobulinas. E o problema é que o
plasma de uso industrial disponível
no Brasil hoje é insuficiente para
atender à demanda, o que significa
que, mesmo que a produção da He-
mobrás estivesse a pleno vapor, fal-
taria matéria-prima para a autossu-
ficiência do país nos medicamentos
derivados do sangue. Por quê?
Como o plasma excedente de
onde se obtêm os hemoderivados é
aquele que não foi usado nas trans-

ASCOM / HEMOBRAS
fusões, o lugar de extração e armaze-
Duas fábricas da Hemobras estão sendo namento dessa “matéria-prima” para
construídas neste momento: previsão é uso industrial são os mesmos bancos
concluir uma em 2024 e outra em 2025 de sangue, públicos e privados, que
coletam e fornecem as bolsas de san-
gue para transfusão. E a legislação
o cenário é menos promissor na parte da indústria que nos que causam doenças, como vírus
estabelece que esse plasma exceden-
requer sangue humano para se desenvolver. “Quando e bactérias. “As imunoglobulinas são
te deve ser entregue à empresa pú-
depende do plasma, vai faltar matéria-prima”, aposta, indispensáveis para um conjunto
blica – a Hemobrás – responsável por
reforçando o argumento de que é preciso coletar mais de outros pacientes, os com doenças
qualificar os serviços hemoterápicos
plasma para uso industrial dos bancos de sangue e que a imunológicas congênitas, como as
para o fornecimento de plasma para
saída para isso é aprovar a PEC nº 10. imunodeficiências primárias e ad-
uso industrial, gerir todo esse pro-
É aqui que entra a segunda fábrica da Hemobrás, essa quiridas, como câncer e HIV”, explica
cesso e obter os hemoderivados que
sim voltada para o fracionamento – técnica que consiste Beatriz Mac Dowell.
devem abastecer o SUS. Mas aten-
na separação das proteínas do plasma, parte líquida do Recentemente, o Ministério
ção, porque neste ponto as palavras
sangue, denominadas hemoderivados. “Hoje a gente está da Saúde atualizou os números re-
podem fazer toda a diferença: “en-
montando as salas limpas, que são as áreas de processo fa- ferentes à necessidade de imuno-
tregar” não é vender, o que significa
bril, juntamente com os equipamentos. No próximo ano globulinas no SUS, praticamente
que a Hemobrás não paga pelo plas-
a gente finaliza isso e começam os testes da fábrica. Vai dobrando para 800 mil frascos por
ma retirado dos bancos de sangue
durar mais um ano. Então, no final de 2025 a gente vai es- ano, de acordo com o presidente da
nem lucra com a distribuição desses
tar pronto para iniciar esse fracionamento aqui”, promete Hemobrás. Também segundo ele,
medicamentos derivados do sangue
Lucena, que garante que, com o recurso que já foi investi- embora a empresa tenha sido pen-
no SUS. Por isso ela precisa ser uma
do e o mais novo aporte de R$ 800 milhões que o governo sada para produzir 700 mil frascos,
empresa pública. E é aqui que está o
federal reservou para esse objetivo como parte do PAC, portanto abaixo dessa demanda
‘x’ da questão.
o Programa de Aceleração do Crescimento, não existem atualizada, a fábrica que está sendo
mais obstáculos para a fábrica começar a produzir e o país finalizada e que deverá entrar em
atingir a autossuficiência em hemoderivados. “Agora é só funcionamento a partir de final de
ARGUMENTO
deixarem a gente fazer as coisas e não mudarem as regras 2025 terá condições de gerar mais de
PRINCIPAL: TEM
no meio do jogo”, diz, numa referência contra a aprova- um milhão de litros, adaptando-se
DESPERDÍCIO?
ção da PEC. O secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos “rapidamente” à necessidade do SUS. Quem está acompanhando o
Estratégicos do Ministério da Saúde, Carlos Gadelha, faz “A fábrica hoje é uma fábrica de debate sobre a PEC do Plasma pela
coro: “Na hora em que a gente vai dar o grande salto para vanguarda. Nós temos todas as no- imprensa provavelmente obser-
garantir a estabilidade e a segurança sanitária na área da vidades contemporâneas da tecno- vou que uma das palavras mais
hemoterapia, e talvez por isso mesmo, [essa Proposta] faz logia farmacêutica”, comenta. destacadas entre os defensores da
com que o interesse comercial subverta e se sobreponha A urgência dessa produção tem medida foi “desperdício”, em ge-
ao interesse pela vida”, critica. a ver não apenas com a redução de ral acompanhada da denúncia, já
Se a avaliação sobre o êxito na produção do fator VIII custos e o desenvolvimento da in- tratada acima, de que a Hemobrás
recombinante parece pacífica, quando o assunto são os dústria nacional mas também com ainda não conseguiu cumprir seu
medicamentos derivados do plasma humano não há con- a própria capacidade de abastecer papel na produção autônoma de
senso sobre o que se deve esperar desse futuro próximo. A os serviços de saúde, atendendo à hemoderivados. Como trata-se de
maior demanda de derivados do sangue no Brasil não diz necessidade da população. Isso por- dois problemas diferentes, é bom
respeito aos fatores de coagulação e sim a outras proteínas que, como o próprio Lucena destaca, separar (e explicar) os argumentos.
do sangue, como a albumina e, principalmente, as imuno- mesmo no mercado internacional Segundo dados fornecidos pela as-
globulinas, que desempenham a função de anticorpo, ou não existe disponibilidade de ofer- sessoria de imprensa da empresa, de
seja, defendem o organismo do ataque de agentes exter- ta de toda essa quantidade de imu- janeiro a outubro deste ano foram
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recolhidos 120 mil litros de plasma, ainda não ter produzido os hemo- responsabilidade da Anvisa. Os estados também, muitas
que significaram 121 mil frascos de derivados que deveria e cita cifras vezes, desenvolvem suas próprias iniciativas para qualifi-
imunoglobulina entregues ao SUS para informar os recursos investidos car o serviço. Já os bancos privados são responsáveis pelo
até setembro. “Todo o plasma para na empresa e o gasto do Ministério seu próprio processo de qualificação. Hoje, de acordo com
uso industrial recolhido pela Hemo- da Saúde na importação dos fárma- Paulo Tadeu, todos os serviços hemoterápicos associados à
brás nos serviços de hemoterapia é cos que ela não produz, mas não faz ABBS – 21, de acordo com a lista disponível no site da enti-
enviado para fracionamento, com qualquer referência ao uso do argu- dade, que, segundo ele, representam entre 80% e 90% dos
exceção das bolsas que não são con- mento datado relativo ao desperdício bancos de sangue privados no país –, são qualificados por
sideradas aptas no processo de tria- ocorrido no passado. Já a senadora uma entidade chamada Organização Nacional de Acredi-
gem feito na fábrica da Hemobrás, que relatou o texto aprovado na CCJ tação (ONA).
que equivalem a menos de 3%”, in- foi contactada três vezes pela repor- Já quando se trata de garantir a qualidade do plas-
formou a assessoria. “O desperdício tagem, via assessoria de imprensa, ma excedente como matéria-prima para a produção de
é zero”, garante Carlos Gadelha. mas não respondeu aos pedidos de hemoderivados, tanto para os hemocentros públicos
Apesar disso, tanto em artigos entrevista. Em meio ao debate atual, quanto para os bancos de sangue privados, é necessária
publicados na imprensa quanto na o Ministério Público Federal (MPF) ainda uma outra fase, de auditoria e certificação, que, de
justificativa do texto original da PEC, e o Ministério Público junto ao Tri- acordo no a legislação sanitária nacional e internacio-
de autoria do senador Nelsinho Trad, bunal de Contas da União (MPTCU) nal, deve ser realizada diretamente pelas indústrias – no
e no relatório da senadora Daniela emitiram nota técnica contrária à caso do Brasil, mais precisamente, pela Hemobrás.
Ribeiro (PSD-PB) que foi aprovado PEC 10/2022. A questão é que, de acordo com informações da asses-
na Comissão de Constituição, Justiça Na verdade, o desperdício que a soria de imprensa da empresa, até hoje apenas 60 servi-
e Cidadania do Senado, é citado um PEC denuncia e quer combater se dá ços de hemoterapia brasileiros foram auditados, dos quais
caso concreto de desperdício de cerca em outro lugar: num conjunto, de fato 46 foram qualificados e estão aptos a fornecer o plasma
de 600 mil litros de plasma. A situa- amplo, de bancos de sangue que hoje de uso industrial. Isso significa que todo o plasma exce-
ção remete a 2017, num período em não entregam o plasma excedente dente extraído nos demais deixa de ser aproveitado para
que o então ministro Ricardo Barros que coletam para a Hemobrás trans- a produção de medicamentos. “Enquanto isso, você está
transferiu a responsabilidade pela formar em hemoderivados. Aqui, no jogando no lixo essa matéria porque não tem condição de
gestão do plasma da Hemobrás para entanto, é preciso diferenciar os pro- fazer inspeção num hemocentro público”, lamenta Pau-
a Pasta da saúde. O ministério não blemas (e as soluções) que envolvem lo Tadeu, diretor da ABBS. “[Basta] ter uma inspeção por
conseguiu contratar uma empresa o público e o privado. De acordo com semana em cada hemocentro, em dez meses vai ter tudo
para fazer o fracionamento e todo dados da Anvisa relativos a 2021, o validado”, critica. Já de acordo com o presidente da empre-
esse sangue foi, de fato, descartado. Brasil tem 95 hemocentros (públicos) – sa, as coisas não são tão simples assim: “Uma auditoria de
Foi diante desse cenário, para exigir pelo menos uma unidade coorde- qualificação demora três dias, em que a Hemobrás veri-
a solução do problema, que, em 2020, nadora em cada estado e, em alguns fica se todos os requisitos de segurança de um banco de
o Tribunal de Contas da União e o casos, outros regionais. Todas as uni- sangue ou de um hemocentro estão em conformidade
Ministério Público junto ao TCU no- dades públicas que compõem a he- com o que é necessário. Ou seja, eu tenho que buscar ras-
tificaram o Ministério da Saúde. Mas morrede passam por um Programa treabilidade, todos os testes que são feitos, a condição de
em 2021, já na gestão do ex-ministro Nacional de Qualificação, que é de preparação, de conservação do plasma... Tudo isso a gente
Eduardo Pazuello, a responsabilida- responsabilidade da Coordenação vê minuciosamente. Se tudo estiver ok, está qualificado e
de sobre o uso do plasma excedente Geral de Sangue e Hemoderivados a gente marca para pegar o plasma. Se não estiver, elabo-
voltou a ser da Hemobrás que, com a do Ministério da Saúde, que englo- ra-se um plano de ação para que o hemocentro ou banco
experiência e as ferramentas legais ba, por exemplo, a capacitação de de sangue privado se adapte. E aí a gente faz uma nova
de que dispõe, contratou a empresa profissionais e a avaliação de todas visita, constata se foi realizado aquilo e [em caso positivo]
para fracionamento e encerrou ali as etapas e ciclos de trabalho desen- ele se torna produtor de plasma para a gente”, detalha Lu-
aquele problema. Mesmo assim, o volvidos, de modo a garantir a segu- cena sem, no entanto, deixar de reconhecer que houve
caso continuou sendo usado como rança sanitária que esses serviços atraso nesse processo: “De fato, esse é nosso calcanhar de
justificativa para a PEC em 2022 e hoje têm no Brasil – cuja vigilância é Aquiles”, diz, embora enfatize que, para efeitos de decisões
para o relatório aprovado na CCJ
em 2023. Em entrevista realizada PEC do Plasma foi GERALDO MAGELA / AGENCIA SENADO
por email, a reportagem questionou aprovada na CCJ do
Senado em outubro
o senador Nelsinho Trad sobre por
que um caso já solucionado tinha
sido utilizado na justificação da PEC,
perguntando ainda se ele considera-
va que o problema não estava devi-
damente superado. A resposta do se-
nador destaca o fato de a Hemobrás
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políticas – como a aprovação ou não da PEC do Plasma –, para onde encaminhar a sua parte do alto índice de contaminação por
é mais importante analisar as perspectivas concretas de do plasma excedente porque “não doenças como Hepatite, Chagas e
um futuro próximo do que os problemas do passado. têm como receber por ele”. E, como HIV/Aids durante os procedimen-
Para reduzir isso que tem sido apontado como “des- numa profecia autorrealizada, a tos de transfusão. Foi esse contexto,
perdício” no debate sobre a PEC, essas promessas de futu- consequência desse dilema é exa- principalmente a partir da dissemi-
ro breve começaram com um aporte de R$ 100 milhões tamente o “desperdício” que agora a nação do vírus do HIV, que, sob a
no orçamento de 2023 da Coordenação Geral de Sangue PEC promete superar. “A gente joga liderança de uma das vítimas, o so-
e Hemoderivados do Ministério da Saúde que devem o plasma excedente no lixão”, admi- ciólogo Herbert de Souza, o Betinho,
ser aplicados na qualificação da hemorrede, tendo como te Paulo Tadeu. gerou-se a mobilização sobre o tema
foco principal a ampliação da capacidade de forneci- O presidente da ABBS vai além na Assembleia Nacional Constituin-
mento de plasma industrial. Em paralelo, o presidente da e caracteriza como “confisco” qual- te (ver box na pág. 11). “Tivemos um
Hemobrás garante que o prazo de finalização da fábrica quer recolha do sangue de um banco histórico de pessoas pobres venden-
de fracionamento de plasma – 2025 – será o tempo su- privado que se dê sem remuneração. do o seu sangue para sobreviver e
ficiente para a empresa finalmente auditar e certificar “Você poria o teu carro na concessio- um acúmulo de doenças nesse perío-
os bancos de sangue que faltam, aumentando de forma nária para vender sem ter um con- do. Era uma tragédia humana. Me-
significativa a quantidade disponível de plasma de uso trato, garantindo que aquele carro é xer com isso mexe com o princípio
industrial. Mas aqui entra uma particularidade dos ban- teu, que você será ressarcido por ele?”, humanitário que a nossa Constitui-
cos de sangue privados, que está no centro dos interesses questiona, indiferenciando o debate ção naquele momento traçou”, opina
na PEC do Plasma – e é neste momento da reportagem sobre o sangue de qualquer outra Joice Aragão. “Era um mercado de
que você vai tentar lembrar aquelas aulas sobre direito mercadoria. Já o presidente da Hemo- vampiros, que extraíam o sangue
(à saúde e à vida) sem perder de vista algumas noções bá- brás entende que essas instituições da população mais vulnerável,
sicas de economia. estão simplesmente descumprindo a mais desassistida, para obter gan-
É que, em coerência com a concepção constitucional lei. “O plasma que sobra não é deles hos apenas econômicos”, comple-
de que órgãos do corpo humano não podem ser tratados e isso está sendo apropriado”, critica. ta Carlos Gadelha.
como mercadoria, hoje a legislação delega ao Ministério Mac Dowell vai na mesma direção ao O presidente da ABBS acusa
da Saúde, como coordenador do Sistema Nacional de San- lembrar que, desde as primeiras ten- os críticos da PEC de estarem
gue (Sinasan), a tarefa de “definir a forma de utilização do tativas de construção de uma política produzindo “factóides”. “Estão
plasma congelado excedente do uso terapêutico dos servi- nacional nessa área, a compreensão criando terror nos pacientes,
ços de hemoterapia públicos e privados, com vistas ao aten- que prevaleceu foi a de que o sangue [dizendo que] agora [o doa-
dimento do interesse nacional”, como explica a portaria é do Brasil, não importando seu esta- dor] vai ser remunerado, o
158/2016. Para ficar ainda mais claro, no final desse tre- do de origem nem se foi armazenado SUS não vai mais fornecer
cho, o texto afirma se basear no parágrafo segundo da lei numa instituição pública ou privada [sangue] e o meu filho vai
10.205/2001, segundo o qual “periodicamente, os serviços e acrescenta que o que o setor privado morrer. São mentiras para
integrantes ou vinculados ao Sinasan deverão transferir quer é se apropriar do sangue doado causar pânico”, diz. Primei-
para os Centros de Produção de Hemoterápicos governa- voluntária e altruisticamente para ro, ele argumenta que nos
mentais as quantidades exce- vender no mercado internacional. países em que existe um
dentes de plasma”. Como você “Eu já ouvi um proprietário de banco mercado de plasma, a re-
deve ter percebido, esse é no- de sangue dizer: ‘Eu quero o direito muneração de ‘doadores’
vamente um ponto em que a de entregar o meu plasma a quem não gerou qualquer im-
escolha das palavras faz toda NÃO EXISTE eu quiser’, frisando o ‘meu’. Mas essa pacto na quantidade de
a diferença, porque a grande é uma matéria-prima que foi doada sangue coletado – vale
reivindicação do setor que
ALMOÇO a ele. Ele não comprou”, relata Anto- dizer que, sobre isso, a re-
luta pela aprovação da PEC é OU JANTAR nio Edson Lucena, tocando num dos portagem não localizou
que, para a rede privada, não pontos que ganhou maior destaque estudos científicos que
se deve falar em “entrega” ou
DE GRAÇA” em torno da PEC do Plasma: o debate estabeleçam essa relação
“transferência”. “Não existe sobre se deve-se autorizar ou não a comparativa, embora
PAULO TADEU
almoço ou jantar de graça”, remuneração do ‘doador’ – cujo status haja quem defenda exa-
Presidente da ABBS mudaria para ‘vendedor’ de sangue.
resume Paulo Tadeu. tamente o contrário do
Para Beatriz MacDowell, o trecho é preciso sobre o representante dos bancos
“espírito” que a legislação quis dar ao tema: ao usar o
UM NOVO MERCADO privados: “Na medida em
termo “governamentais”, afirma que a responsabili-
DE VAMPIROS? que você torna uma ativi-
dade pela produção de hemoterápicos no Brasil é do Sobre esse cenário possível, paira dade comercial, as pessoas
setor público estatal e, ao optar pelo verbo “transferir”, o fantasma da década de 1980, quan- que doam voluntariamente,
deixa claro que isso não envolve qualquer tipo de rela- do a compra e venda de sangue se pensando naquelas pessoas aci-
ção comercial. Apesar disso, a entidade que representa tornou um negócio – muitas vezes dentadas que precisam do plasma,
os bancos de sangue privados alega que eles não têm clandestino – que esteve na origem pensando nos hemofílicos, pensando
99
nas pessoas que têm queimaduras profundas e que preci- cumprindo a sua responsabilidade será encaminhado à in-
sam de albumina, vão dizer: ‘Eu não vou mais doar meu de abastecer o SUS com hemoderi- dústria, mas sugere
sangue porque tem gente ganhando dinheiro com isso’”, vados, ressarça os bancos de sangue que, para se ater
argumenta Gadelha. Em segundo lugar, Paulo Tadeu clas- pelos custos de fornecimento do de fato ao ressar-
sifica como “uma grande mentira” o argumento de que o plasma que seguirá para a indústria. cimento previsto
sangue remunerado terá menos qualidade do que aque- Mas compreendem que, diferente no SUS, é preci-
le doado – alegação que normalmente é explicada pelo da comercialização que a PEC quer so fazer as con-
fato de que, diferente do doador, o ‘vendedor’ pode omitir viabilizar, isso está previsto e autori- tas descontando
doenças e problemas de saúde que comprometeriam a zado pela legislação existente. toda a parte desse
segurança sanitária do procedimento. De fato, no auge do O artigo 14 da Lei 10.205 – que re- processo pelo qual,
debate sobre a não-comercialização do sangue na Consti- gulamenta o artigo 199 da Constitui- na sua avaliação, os
tuinte, nos anos 1980, um artigo intitulado ‘A politização ção, que agora a PEC do Plasma quer bancos de sangue privados
do sangue no Primeiro Mundo’, de autoria de Luiz Castro modificar – proíbe a “comercialização já são remunerados pelos
Santos, Claudia Moraes e Vera Coelho, mostrou como os da coleta, processamento, estocagem, clientes privados, entre
estudos mais atuais daquela época não comprovavam ne- distribuição e transfusão do sangue, eles muitos hospitais “top
cessariamente essa relação. componentes e hemoderivados”, de linha”. Ela explica
Apesar de rebater os argumentos de quem se posiciona mas permite a “remuneração dos que de cada bolsa de
contrariamente à remuneração de ‘doadores’, o presidente custos dos insumos, reagentes, mate- sangue total, extraem-se
da ABBS insiste na necessidade de “desmistificar” esse riais descartáveis e da mão-de-obra os componentes para
debate neste momento, argumentando que não é essa a especializada, inclusive honorários transfusão – leucócitos,
proposta da mudança constitucional que tramita no Con- médicos”. Na prática, os hemocentros plaquetas, hemácias,
gresso. “Não existe remuneração para doação de sangue públicos e os serviços privados conve- de um lado e o próprio
nem de plasma”, garante, embora o relatório da senadora niados com o Sistema Único de Saúde plasma, de outro –
Daniela Ribeiro aprovado na CCJ deixe esse ponto aberto à já são ressarcidos pelos custos dos num processo que é
interpretação quando aponta o plasma como “exceção” no procedimentos de saúde que envol- parte da rotina dos
trecho da Constituição que vedava “todo tipo de comercia- vem o uso do sangue, de acordo com serviços hemoterápicos,
lização”. Mas se de fato em algum momento da tramitação a tabela do SUS. Da mesma forma, no pelos quais, portanto,
legislativa essa mudança for vetada, da parte dos defenso- circuito da saúde complementar de os bancos privados já são remune-
res da PEC terá sido apenas um adiamento, por questões que fazem parte, os bancos de sangue rados. O gasto extra que eles teriam
táticas e não de princípios. “Eu tenho certeza que a gente privados com fins lucrativos são re- para conservar o plasma excedente a
não tem maturidade hoje para discutir outra coisa que não munerados pelos planos de saúde ou ser entregue para uso industrial seria,
seja doação não remunerada de qualquer órgão ou tecido”, hospitais privados a quem fornecem segundo ela, apenas o de armazena-
diz Paulo Tadeu, acrescentando que, após a aprovação da as bolsas de sangue usadas em trans- mento. “E, a depender da frequência
PEC, “daqui a cinco ou dez anos”, é possível voltar a con- fusões, o que inclui uma parcela do da coleta do plasma excedente pela
versar sobre o assunto. Perguntado sobre sua posição em plasma. Já a parte excedente, de uso Hemobrás, talvez nem seja necessária
relação à remuneração do ‘doador’, o autor do texto original industrial, que só pode ser destinada a aquisição de equipamentos de conge-
da PEC, senador Nelsinho Trad, respondeu, por email, que à empresa pública, fica numa espécie lamento, com temperaturas muito bai-
“na prática, o Brasil remunera a doação de plasma por meio de limbo. Com o entendimento de xas que requerem maior investimen-
de suas importações”, e, embora não explique essa afirma- que o tipo de ressarcimento praticado to”, diz. E sugere: “O que pode não estar
ção, acrescenta que, “como médico e defensor do SUS, não no âmbito do SUS é completamente sendo remunerado? É o armazena-
poderia ser conivente com esse cenário”. diferente de comercialização, o pre- mento. Então vamos separar, calcular
sidente da Hemobrás diz que a em- o custo por etapa do processo e propor
É CONVERSANDO QUE A presa estuda junto ao governo uma os valores que deverão ser ressarcidos
GENTE SE ENTENDE? proposta para remunerar os custos pela Hemobrás aos serviços privados
Para quase todos os entrevistados desta reportagem do plasma excedente que for transfe- fornecedores do plasma excedente
que se posicionam contrariamente à PEC do Plasma, rido para a empresa transformar em por eles processado e armazenado”.
criticar a postura dos bancos de sangue privados nesse hemoderivado. “Isso não configura Mesmo assim, MacDowell destaca
debate não significa deixar de reconhecer que existem comercialização, portanto, um arran- que esse procedimento mais complexo
custos na manutenção das condições que garantem a jo desse tipo poderia ser feito dentro e caro é necessário, principalmente,
viabilidade do plasma de uso industrial e que, sem incen- da pactuação do SUS, sem mudança para preservar o fator VIII de coagu-
tivo, o setor privado lucrativo que existe como comple- constitucional”, explica. Joice Aragão lação, mas que, com a nova tecnologia
mentar ao SUS dificilmente terá interesse em estar apto concorda: “É justo que se discuta isso”. recombinante, que não precisa mais
a participar desse processo. Tanto o presidente da Hemo- Beatriz MacDowell também de componentes do sangue – e que a
brás quanto a coordenadora de Sangue e Hemoderiva- compreende que se pode discutir for- Hemobrás promete produzir a partir
dos do Ministério da Saúde, por exemplo, reconhecem mas de ressarcir o “custo operacional” de 2025 –, somada ao recolhimento
como legítima a reivindicação de que o governo federal, do armazenamento do plasma que mais frequente do plasma pela He-
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mobrás, ele se tornará cada vez menos necessário. Com isso ela quer destacar, por “Como eu vou convencer os doadores de sangue a ficarem
exemplo, que as imunoglobulinas, que são a maior necessidade de hemoderivados lá por todo esse tempo?”, questiona. Talvez isso justifique o
do SUS hoje, e que podem ser obtidas a partir do plasma armazenado nos freezers já fato de o ‘pacote completo’ de mudanças previsto pela PEC
existentes nos próprios serviços de coleta e armazenamento, não gerariam outros do Plasma prever, inicialmente, também a remuneração do
gastos, além do consumo de energia, “hoje muito oneroso para qualquer serviço”. doador. Talvez também por isso o presidente da ABBS sugi-
“Eles estão querendo ser remunerados por algo que já está pago”, argumenta. ra que esse debate pode voltar daqui a alguns anos, quando
Independentemente desses cálculos, o que os bancos de sangue que têm voca- o país tiver maior “maturidade”.
lizado a defesa da PEC do Plasma querem é o direito de negociar o plasma humano A compreensão de que essa técnica pode ser uma
num mercado que vai muito além do ressarcimento que o SUS pode oferecer. Per- estratégia para aumentar a extração da matéria-prima
guntado se um acordo para que o SUS ressarcisse os custos dos bancos privados necessária à produção de hemoderivados para atender às
para o fornecimento de plasma excedente para a indústria substituiria a mudança necessidades do SUS não é nova. Assim como também não
que a PEC está tentando implementar, Paulo Tadeu responde que não, argumen- é inédita a constatação da complexidade e das contradições
tando, primeiro, que a tabela do SUS está defasada para todos os serviços prestados que ela carrega. Tanto é assim que a Lei 10.205, de 2001, no
pelo setor privado conveniado. Interrogado se com possíveis ajustes da tabela essa seu artigo 23, já prevê o uso da plasmaférese, mas, ciente de
saída seria viável, ele reforça que não porque o plasma que sobra da coleta de san- suas implicações, estabelece que seu uso não terapêutico, vi-
gue para transfusão não é suficiente para responder às necessidades do país. “Os sando à produção de medicamentos, deve ser “atividade ex-
bancos de sangue privados querem poder vender o excedente, porque no merca- clusiva do setor público”. “Isso foi pensado exatamente para
do internacional o sangue vira uma commodity. É uma mina de ouro para eles”, diz não haver nenhum tipo de comercialização”, diz Lucena.
Joice Aragão. Uma das emendas incluídas no texto do relatório aprovado na CCJ O que a legislação reconhece, portanto, é que, sob a
garante que os hemoderivados produzidos a partir da “coleta, o processamento e responsabilidade do setor público e orientada apenas pelo
a comercialização de plasma humano” devem prover “preferencialmente” o SUS. interesse da sociedade, essa técnica pode ser uma estratégia
Mas, na avaliação de Carlos Gadelha, trata-se de mais uma “falácia”. “‘Preferencial- para aumentar o estoque de plasma quando o país precisar
mente’ significa simplesmente que eu posso pegar 49% do plasma e dos hemode- de mais hemoderivados do que aquele que a doação regu-
rivados para atender apenas a população rica de alta renda e a exportação”, alerta, lar, de bolsas de sangue inteira, pode fornecer. Até porque,
lembrando que o SUS atende 100% da população brasileira. como explica MacDowell, aumentar a coleta de bolsa total
a ponto de ampliar exponencialmente o volume de plas-
DOAÇÃO PRODUTIVISTA ma geraria um desequilíbrio na rede, com o risco de se ter
desperdício de hemácias, objetivo principal das doações de
É aqui que entra em cena outra pauta presente na PEC do Plasma: a defesa
sangue total. Por outro lado, ela não descarta o uso da plas-
de que os serviços hemoterápicos privados sejam autorizados a colher direta-
maférese para a indústria, mas defende que, a princípio, a
mente o plasma, aumentando o volume e a velocidade dos estoques. Trata-se
prática não deve ser realizada pelos serviços privados. Por
de uma técnica chamada plasmaférese ou simplesmente aférese, que permite
tudo isso, segundo Antonio Edson Lucena, mesmo com as
devolver os demais componentes do sangue ao doador, ficando apenas com o
dificuldades apontadas, a Hemobrás vai comprar e instalar
plasma. A vantagem é que essa práti-
o maquinário necessário em alguns dos maiores hemocen-
ca reduz abruptamente o intervalo de
tros do país para implantar um projeto-piloto, cuja meta será
tempo em que uma pessoa pode doar,
a coleta de 50 mil litros de plasma por plasmaférese por ano.
apostando numa espécie de ‘produti-
OS BANCOS DE vidade’ que permite aumentar expo-
O ESTADO DA ARTE
SANGUE PRIVADOS nencialmente o volume de estoque
de plasma, já que, na doação da bolsa Tudo isso é o pano de fundo de um debate que vem
QUEREM PODER completa, ele representa apenas cer- polarizando posições, com manifestações públicas contra
VENDER O ca de 200 ml de cada litro de sangue. e a favor da mudança constitucional. Fundação Oswaldo
“Quando doa sangue, você se restabe- Cruz (Fiocruz), Associação Brasileira de Saúde Coletiva
EXCEDENTE, lece para outra doação depois de qua- (Abrasco), Conselho Nacional de Saúde (CNS), conselhos
PORQUE NO tro meses, no caso das mulheres; e três nacionais dos secretários municipais e estaduais de saúde
meses, no caso dos homens. Usando a (respectivamente, Conasems e Conass) e Associação Bra-
MERCADO plasmaferese, você pode fazer isso até sileira de Pessoas com Hemofilia (Abraphem), além dos já
INTERNACIONAL duas vezes por semana”, explica Luce- citados MPF e MPTCU e o próprio governo federal são
na, que completa: “É com isso que os algumas das entidades que emitiram notas contra a me-
O SANGUE VIRA bancos de sangue privados sonham: dida. A principal voz no debate público a favor da PEC
UMA COMMODITY. ter de graça a matéria-prima com mui-
ta abundância para poder vender”.
tem sido a ABBS, mas a Associação Brasileira de Hemato-
logia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABBH) também se
É UMA MINA DE Pode não ser tão fácil assim: segun- posicionou publicamente pela aprovação da mudança.
do o presidente da Hemobrás, uma doa-
OURO PARA ELES” ção de sangue por plasmaférese dura,
No momento em que esta reportagem foi concluída, a
PEC 10/2022 tinha sido aprovada na Comissão de Consti-
JOICE ARAGÃO em média, 1h20min, enquanto uma tuição, Justiça e Cidadania do Senado, de onde seguiria
Coordenadora de Sangue e coleta de bolsa inteira, que serve para para votação em plenário e, uma vez vitoriosa, seria re-
Hemoderivados do Ministério da Saúde a transfusão, dura cerca de 15 minutos. metida para tramitação na Câmara dos Deputados.
11

‘ Sangue não é mercadoria’


Da esquerda
sangue sem regulação estatal, vigilância sanitária e, por-
ACERVO ENSP-FIOCRUZ

para a direita, tanto, sem quaisquer medidas de segurança. A partir do


Herbert de Souza trauma das contaminações por HIV/Aids e da conquista
(Betinho), Airamir
do texto constitucional, esse cenário foi se modificando,
Padilha e Laerte
Vaz de Melo, no com a construção de uma política voltada para a questão
I Fórum Estadual do sangue e o fortalecimento de uma hemorrede orga-
do Sangue do
nizada a partir de serviços públicos. Nesse rearranjo, os
Rio de Janeiro
bancos de sangue particulares continuaram a funcionar,
com o papel complementar que a Constituição permitiu
ao setor privado na saúde, embora agora submetidos às
regras de vigilância coordenadas pelo Estado.
Num boletim da Associação Brasileira Interdiscipli-
nar de Aids (ABIA) publicado logo após a vitória em re-
lação ao texto da Constituição, Betinho identificou três
grupos sociais que tinham interesse em manter a livre
iniciativa do comércio de sangue no Brasil naquele mo-
mento: as multinacionais de hemoderivados, os bancos

E
“ les já brigaram [por isso] lá atrás. É a mesma propaganda dos anos de sangue privados e “certos hemoterapeutas”. Apesar
1980”. O comentário é de Laerte de Mello, cirurgião cardíaco que de terem se limitado ao que o boletim caracteriza como
representou o Conselho Regional de Medicina do Rio de janeiro uma espécie de “lobby clandestino”, em que só o último
(Cremerj) nos debates da Assembleia Nacional Constituinte, grupo chegou a vocalizar “um certo ataque ao fim da
quando os mesmos interesses que hoje estão expressos na PEC do Plasma comercialização” do sangue, o lado que eles representa-
foram derrotados pela primeira vez. Naquele momento, um movimento vam na correlação de forças se fez presente na votação
protagonizado pela sociedade civil e liderado, de certa forma, pelo sociólo- do que viria a ser o parágrafo quarto do artigo 199 da
go Herbert de Souza, o Betinho, conseguiu firmar no texto da Constituição Constituição: foram 313 votos contra a comercialização,
a proibição de se fazer comércio envolvendo qualquer órgão do corpo hu- 127 a favor e 37 abstenções. Em 2023, pelo menos dois
mano, inclusive o sangue. Duas frases de efeito ficaram eternizadas como desses grupos parecem mais à vontade para defender
ferramentas de luta daquele tempo: ‘Sangue não é mercadoria’ e ‘Salve o um recuo na conquista de 35 anos atrás: a Associação
sangue do povo brasileiro’, além da arte do cartunista Ziraldo, que se tor- Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS) tem sido a prin-
nou o cartaz mais famoso da campanha. cipal voz no debate público a favor da PEC e a Socieda-
Em meio a lutas por mudanças mais amplas na concepção e no modelo de Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia
de organização da assistência à saúde, marcas do movimento da Reforma Celular, que protagonizou a defesa da comercialização
Sanitária que caracterizariam o capítulo da saúde na Constituição Cidadã, também na Constituinte, foi uma das poucas entidades
pode ser difícil entender como um debate aparentemente específico sobre a emitir nota de apoio à medida atual.
o sangue ganhou tanta centralidade, tornando-se uma das pautas mais Seja em termos numéricos ou históricos, não há
polarizadas na votação do texto final. É que a realidade concreta se impôs: qualquer semelhança possível entre a CCJ do Senado
o crescente número de pessoas contaminadas com o vírus HIV por meio atual com a Constituinte do passado, mas, se serve de
de transfusões de sangue, num momento em que a Aids se tornava uma parâmetro de comparação sobre a correlação de forças,
epidemia mundial, chamou atenção do país para um problema que, embo- dos 27 presentes à seção em que o relatório da PEC do
ra agravado naquele momento, não era propriamente novidade. Afinal, Plasma foi discutido, 15 votaram pela aprovação e 11
ainda que com menos visibilidade, mesmo antes da Aids eram frequentes contra, sem abstenções. E apesar de muitas notas públi-
os casos de contaminação por doenças como Chagas e Hepatite como re- cas em contrário, diferente dos anos 1980, praticamen-
sultado dos procedimentos que envolviam transfusão de sangue. te não há movimento social nas ruas pelas pautas da
Foi quando assumiu a presidência do Cremerj, num contexto em que, se- saúde. “Eu acho que muitos parlamentares de bem
gundo ele, o Conselho Federal de Medicina estava tomado pela ditadura e mes- acreditaram em fake news e falácias sobre a Hemobrás,
mo o conselho regional funcionava burocraticamente, que Laerte de Mello que passou a incomodar os interesses econômicos da
pode ver essa realidade de perto. Nas visitas que faziam aos hospitais e bancos área. Por isso [eu queria fazer] quase um apelo: que es-
de sangue, as comissões do Cremerj encontraram uma “situação catastrófica”, sas pessoas associem seu nome a Ulysses Guimarães, a
que envolvia, principalmente, a assistência à saúde mental, o atendimento à Sérgio Arouca, a Betinho e não aos banqueiros”, diz o
saúde da mulher e as questões relativas ao sangue. No centro da crise, esta- secretário de Ciência, Tecnologia, e Insumos Estratégi-
va todo uma rede de bancos de sangue privados, que compravam e vendiam cos do Ministério da Saúde, Carlos Gadelha.
12 TRABALHO
12

Quantidade
é qualidade?
Especialistas avaliam os motivos da diminuição da taxa de desemprego e indicam caminhos
para a geração de postos de trabalho com mais direitos sociais

JULIANA PASSOS

N
este momento de retomada gradual de
crescimento econômico, os índices de de-
semprego no Brasil diminuem e há au-
mento de empregos formais, aqueles com
vínculo CLT. No terceiro trimestre de 2023, a taxa de
desemprego foi a 7,7%, a mais baixa desde 2015. Essa
queda, na avaliação de especialistas ouvidos pela Poli,
está relacionada a medidas governamentais como o au-
mento do salário mínimo, manutenção do Bolsa Famí-
lia e criação do programa Desenrola, para a negociação
de dívidas. “Em grande medida, a elevação do nível de
emprego no Brasil e a redução do desemprego resultam
da injeção de recursos em programas sociais”, diz o pre-
sidente do IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Es-
tatística, Marcio Pochmann. Ele explica que o dinheiro
público disponibilizado em benefício das camadas com
menor renda per capita vai diretamente para gastos
como os de supermercado, o que tem um impacto fa-
vorável na atividade econômica, gerando uma maior
demanda por serviços. “Esse é um comportamento di-
ferente do segmento de maior renda, para quem a ele-
vação de salário não necessariamente significa gastos
com bens de consumo e que podem ser destinados a
poupança ou aplicações financeiras”, complementa.
Na sua avaliação sobre a ampliação dos postos de tra-
balho a partir do aumento da distribuição de renda, a se-
cretária-adjunta de estatística de emprego do Ministério
do Trabalho e Emprego (MTE), Paula Montagner, detalha
a influência do reajuste do salário mínimo e sua ampla
repercussão na economia por servir de parâmetro sala-
rial para os trabalhadores autônomos. “Os analistas que
estudam o mercado de trabalho dizem que o salário mí-
nimo é o farol da economia, porque é o parâmetro para
definir o preço dos serviços cobrados por quem não tem
trabalho formal”, explica, acrescentando que há impacto
também sobre os aposentados e pensionistas. “Nós temos
37 milhões de pessoas aposentadas ou que recebem pen-
sões, 26 milhões recebem apenas um salário”, diz.
Apesar de comemorar a melhoria dos índices, Mon-
tagner pondera que esse cálculo sobre o desemprego
não pode desconsiderar um elemento importante: a alta
proporção de jovens fora do mercado de trabalho, que
ela prefere chamar de “Sem-Sem”, em oposição ao ter-
mo “Nem-Nem”, mais comumente utilizado para falar
13

daqueles que não estudam nem trabalham. “Essas pessoas não estão vindo O nível de escolaridade também tem influência
para o mercado e é isso que está mantendo a taxa de desemprego baixa. sobre a remuneração e a possibilidade de atingir ou
Esses jovens ficaram anos procurando trabalho, não conseguiram e para- ultrapassar o valor mínimo estipulado pelo Departa-
ram de procurar, em especial mulheres, que passaram a assumir tarefas do- mento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeco-
mésticas”, explica. Essas pessoas fora do mercado de trabalho não aparecem nômicos (Dieese), que atualmente está em R$ 5,2 mil
nas pesquisas de desalentados, que só consideram quem procurou emprego de renda familiar para um arranjo de quatro pessoas.
em um período anterior. “A única forma de ver essa situação é pela taxa O impacto dessa diferença pode ser exemplificado com
de participação no mercado de trabalho, que estava em torno de 63,5% e as médias salariais da indústria da transformação. En-
agora está em 61,5%”, diz Montagner. Pelos cálculos do Ministério, há cerca quanto um trabalhador com nível médio ganhava em
de quatro milhões de pessoas “inativas”, metade for- média R$ 2.520,60, aqueles com ensino superior têm
mada por jovens com filhos pequenos. remuneração de R$ 7.809,20, segundo dados de 2021
Outra questão que ajuda a diminuir o otimismo da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Apesar
em relação à queda do desemprego é a característica da diferença salarial associada à escolaridade, espe-
dos postos de trabalho gerados no setor de serviços cialistas ouvidos dizem que essa relação é limitada. “A
ligados ao comércio, que em muitos casos têm remu- correlação entre escolarização e uma melhor posição
neração média mais baixa e alta rotatividade. “Esses no mercado de trabalho está dada e não é uma contra-
empregos são aqueles que dependem da capacidade dição dizer que isso não significa um emprego decente
de consumo da população, um consumo que não é de ou ascensão social”, diz a professora da Universidade
luxo, destinados a pessoas e às famílias, como limpeza, Federal do Acre Luci Praun. Já o presidente do IBGE
salão de beleza, pet shop”, explica Paula Montagner. cita a “diáspora” por melhores empregos. “O Brasil tem
Mas, além de reduzir o desemprego, o país hoje cerca de 4,2 milhões de brasileiros que residem
fora do Brasil. Em geral, são pessoas mais jovens, com
tem pela frente a tarefa de gerar vínculos com
maior nível de escolaridade, que, apesar do esforço
mais ‘qualidade’. E o tamanho do desafio pode ser
educacional, não conseguiram encontrar empregos
sentido, por exemplo, nos dados sobre as faixas de
adequados às suas pretensões e estão procurando
remuneração dos brasileiros: 70% ganham até dois
fora do país”, exemplifica. E, segundo ele, mesmo para
salários mínimos. Outro indicador pode ser a alta
quem não saiu do país, essas expectativas não foram
taxa de informalidade, que hoje está em 39%, cerca
necessariamente correspondidas. “A qualificação pre-
de 40 milhões de pessoas.
cisa andar simultaneamente à expansão da atividade
produtiva, apesar de o discurso liberal defender que
Mas o que é qualidade no trabalho?
quem tiver capacitação tem emprego”, avalia.
Os parâmetros mais comumente adotados para O próprio salário é um indicador de qualidade do
identificar a qualidade dos postos estão relaciona- posto de trabalho, mas Pochmann chama a atenção para
dos ao conceito de “trabalho decente”, proposto na o fato de que ele não pode ser visto de forma isolada. “Os
virada do século 20 para o 21 pela Organização direitos sociais e trabalhistas devem ser incluídos como
Internacional do Trabalho (OIT). Entre os itens le- variáveis, uma vez que, de certa maneira, formam uma
vados em conta estão a existência de um contrato remuneração indireta”, alerta. O professor da Universi-
por tempo indeterminado, amparado pela legisla- dade de Brasília (UnB) Ricardo Festi concorda e acrescen-
ção trabalhista do país, garantia de férias, final de ta que, para além do cálculo do mínimo para a subsistên-
semana remunerado, controle do número de horas cia familiar, como faz o Dieese, o salário também deve ser
avaliado pelo acesso a serviços públicos. “No cômputo do
trabalhadas, pagamento de hora extra, adicional
salário deve entrar não só o que o empregador paga aos
de férias e 13º salário – no caso do Brasil. “A ideia
seus empregados, mas também os subsídios do Estado, o
é que sejamos capazes de gerar empregos que te-
acesso a serviços públicos e bens comuns. Então, em um
nham continuidade, com características decentes
país em que é preciso pagar pela Educação, o salário é
de salário, jornada, condições dignas de trabalho
menor do que onde a Educação é pública”, explica.
e com perspectiva de futuro”, resume Montagner.
A proposta da OIT, explica o presidente do
O papel da indústria na geração
IBGE, foi a de criar parâmetros mínimos de condi-
de empregos
ções de trabalho. “Em geral, nos países com baixo
desenvolvimento não há medidas que permitam Se na década de 1980 a indústria de transformação
proteger pessoas que estão sem emprego, o que era responsável por 27% dos empregos formais gera-
significa dizer que as pessoas nessa circunstância dos, dados de 2021 mostram que esse número caiu para
fazem qualquer coisa para sobreviver”, diz. Ele 14,9%, segundo a Confederação Nacional da Indústria.
acrescenta que, por esse motivo, as variações nas “Se analisarmos ao longo do tempo, o avanço da preca-
taxas de desemprego dizem pouco sobre a situação rização do trabalho está relacionado à trajetória da ati-
do mercado de trabalho de um país. vidade econômica no Brasil. Nós éramos um país que
14
respondia por 3,2% do PIB [Produto O PAC como política de
Interno Bruto] mundial nos anos fomento ao emprego
1980 e hoje respondemos por 1,8%.
Nós perdemos posição relativa Diante desse diagnóstico, Po-
e, por isso, a capacidade de gerar chmann vê com otimismo o lança-
empregos de maior qualidade”, diz mento da terceira fase do Progra-
Pochmann. Essa relação, sublinha, ma de Aceleração do Crescimento
também significa uma menor va- (PAC), que prevê o investimento em
riação da renda dos brasileiros. diversos setores como cidades sus-
Enquanto a média anual de cres- tentáveis, transição energética, saú-
cimento de renda foi 3,85% ao ano de, ciência e tecnologia com foco na
entre 1950 e 1980, no período ime- promoção da “neoindustrialização”,
diatamente posterior (1980-2015), como diz o documento do Progra-
essa taxa ficou em 0,79%. ma. A previsão é que o PAC gere cer-
Segundo ele, apesar de não ge- ca de quatro milhões de empregos
rar postos de trabalho como em em três anos, diz a representante do
décadas passadas devido à automa- Ministério do Trabalho e Emprego,
ção das operações, as fábricas conti- o que ela considera uma quantidade
nuam sendo articuladoras da cadeia expressiva. Ela reconhece que mui-
de produção e têm a capacidade de tos desses postos serão de “empregos
impactar a geração de emprego dire- simples”, ou seja, como menos remu-
to e indireto. Entre os exemplos dos neração e exigência de qualificação,
empregos indiretos mais demanda- mas destaca que o foco do programa
dos estão atividades vinculadas a está em posições de maior densidade
serviços pessoais, como logística e tecnológica, mesmo na construção
mobilidade de produtos geralmente civil. “Hoje em dia, quando a gente
importados. No entanto, Pochmann fala de construção civil, falamos da-
acrescenta que os serviços pode- quela que utiliza módulos, material
riam ser mais amplos e de maior pré-fabricado, com um conjunto de
valor agregado como engenharia e características que exige mais tec-
serviços vinculados ao setor produ- nologia”, defende Paula Montagner.
tivo, caso a indústria brasileira tives- “O Brasil dispõe de tecnologia
se maior participação no PIB. e mão de obra capacitada para as
A geração ou não de empre- atividades que o PAC privilegia de
gos na indústria, segundo ele, está tal modo que o Programa é uma
relacionada tanto à forma como cada país se encaixa na economia mun- proposição econômica, mas de na-
dial quanto a especificidades internas. “Se o país produz e exporta bens tureza política, em que o governo
de maior valor agregado, com maior conteúdo tecnológico, há a geração está informando ao setor privado
de empregos de mais qualidade”, diz. A posição do Brasil é oposta e está que tem um compromisso com o
marcada pela “especialização produtiva na produção e exportação de crescimento econômico”, diz Poch-
bens primários”, o que leva a um impacto “muito limitado” sobre as op- mann, destacando a importância do
ções de emprego, em especial os de melhor qualidade. No aspecto interno, Estado como indutor de crescimen-
Pochmann chama a atenção para a alta concentração de renda do país, to. “O investimento público tem esse
que restringe o poder de compra a uma pequena parcela da população. “A papel porque induz o crescimento
renda é concentrada, portanto, grande parte da população não tem acesso de setores que são, em geral, mais
a um consumo básico adequado”. Essa ampliação do mercado interno, na intensivos no emprego e atendem
visão do pesquisador, seria um importante motor para o aumento da ati- demandas sociais reprimidas”, ex-
vidade industrial e consequente crescimento do mercado de trabalho com plica. E o presidente do IBGE destaca
melhores salários e direitos sociais. Essa posição é similar a do diretor-téc- ainda mais um fator para o estímulo
nico do Dieese, Fausto Augusto Júnior, mas ele acrescenta que a discussão à industrialização: a relação entre
da política industrial não pode acontecer de forma isolada. “A política de a taxa de juros e o investimento no
segurança alimentar, a política de estabilidade de preços, tudo isso com- setor produtivo. “Enquanto a taxa
põe um contexto que é capaz de levar a um crescimento sustentável [da de juros for maior do que uma possí-
economia]. E aí sim, esse crescimento vai caminhar para um processo de vel taxa de retorno de investimento
melhoria nas condições de trabalho”, conclui. produtivo, não vai haver a mobiliza-
15
na, como se o sustento dessa pessoa e sua família
pudesse ser intermitente, é a expressão máxima
do estrago que a Reforma Trabalhista faz”. Além
disso, segundo ela, a terceirização e a instituição
da negociação individual auxiliaram no rebai-
xamento dos salários. “É necessário que a gente
reafirme que não há simetria entre uma empresa
e um trabalhador tomado como indivíduo. Então,
não à toa, a presença de uma representação cole-
tiva do trabalho está prevista na ideia de traba-
ção desse recurso, que vai ficar no sistema financeiro. E essa possível mobili- lho decente da OIT”, diz.
zação de recursos tem a ver com o investimento produtivo, que é indutor de Além da Reforma Trabalhista, o enfraquecimen-
novos investimentos”, analisa. to da proteção aos trabalhadores que caracteriza o
Fausto Augusto Júnior, diretor-técnico do Dieese, também percebe o emprego com qualidade pode ser exemplificado pe-
novo PAC como uma oportunidade para o Brasil retomar parte dos índices las condições de quem trabalha por meio de plata-
de industrialização perdidos desde a década de 1980, a começar pelas obras formas de aplicativo. Uma tendência de nível global
de infraestrutura. “Essas obras têm a capacidade de gerar emprego muito e que contradiz as diretrizes da OIT, conforme afir-
rápido e de qualidade, porque nós estamos falando de trabalhadores que mou o diretor da Organização para o Brasil, Viní-
operam na construção civil legalizada, com carteira assinada e direitos so- cius Carvalho, em entrevista à BBC em setembro de
ciais”, diz. Após esse primeiro impulso, ele aposta em especial na transição 2023. “Não é possível que tecnologias do século 21,
energética, que tem destaque no PAC, como marca da retomada da indus- que são as mais modernas, coexistam com condições
trialização. No entanto, Augusto entende que o país precisará desenvolver de trabalho do século 19. Por isso que temos observa-
tecnologia nessa área e firmar acordos de transferência tecnológica simila- do esforços em vários governos para a regulação do
res aos feitos com a indústria automobilística, o que permitiu ao país atrair trabalho em plataformas”, disse.
linhas de montagem inteiras. “Nós precisamos ampliar o investimento em Em outubro de 2023, o IBGE lançou a primeira
ciência e tecnologia e criar compromissos. Também é preciso planejar a pesquisa ampla sobre o tema e contabilizou que 1,5
criação de uma estrutura para comportar essa transição e garantir a exis- milhão de pessoas trabalharam por meio de platafor-
tência de empresas capazes de absorver essas transferências, de mão de mas de aplicativos em 2022. O módulo Teletrabalho
obra e de equipamentos”, avalia. Mas pondera: “O que nós estamos vendo e Trabalho por Meio de Plataformas Digitais da Pes-
no setor de energia hoje é que esses empregos estão sendo gerados na mon- quisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua
tagem. E aí é como qualquer hidrelétrica, no período de montagem você (PNAD Contínua) identificou que 77,1% desses traba-
tem muito emprego e depois que esta estrutura foi montada, o número lhadores são autônomos e 9,3% têm outra ocupação
de empregos se reduz drasticamente e acaba influenciando muito pouco sem carteira assinada na iniciativa privada. Os pla-
a economia local. Então, esse é um debate que está no meio do caminho”. taformizados trabalharam mais no quarto trimes-
tre de 2022 em comparação ao total de ocupados no
Impactos da legislação setor privado: 46 horas semanais contra 39,6 horas.
Eles também contribuem menos para a previdência:
Os especialistas ouvidos pela Poli defendem que a legislação trabalhis- 35,7% ante 60,8%. A taxa de informalidade também
ta tem pouco impacto no número de postos gerados, embora possa ter um é maior entre esses trabalhadores: 70% contra 44,2%
papel fundamental na qualidade desse emprego. “De maneira geral, o em- dos ocupados no setor privado. “É um trabalho extre-
pregador não contrata mais pessoas porque o salário caiu ou reduz a con- mamente precário, com pouco ou nenhum direito, e
tratação porque o salário aumentou”, explica Pochmann e acrescenta que uma tendência que já começa a se refletir no setor
a geração de empregos está relacionada à demanda do produto ou serviço formal”, diz Luci Praun, integrante da pesquisa.
ofertado pelo empresário. “O aumento da produção se dá com a existência Em meio a tantas perdas para os trabalhadores,
de investimento, financiamento ou demanda. Diante desse quadro favo- acentuadas a partir de 2010 com a entrada das em-
rável, haverá contratação. Se o salário for maior, o custo será repassado. presas que regulam o trabalho a partir de algoritmos,
Então, de maneira geral, a legislação tem pouco impacto na determinação Praun identifica alguns avanços na imposição de limi-
do nível de emprego para cima ou para baixo”. O presidente do IBGE, no tes a essas empresas em países como Estados Unidos,
entanto, exemplifica o impacto na qualidade do emprego argumentando Reino Unido, Brasil e Espanha. Esse último país apro-
que, no caso do Brasil, a reversão da Reforma Trabalhista aumentaria a vou há dois anos inclusões na legislação trabalhista e
garantia de direitos. “O que nós teríamos, possivelmente, seriam empregos passou a considerar que há vínculo empregatício de
de qualidade mais alta”, diz. entregadores com as plataformas. “Esse é um exemplo
Entre as principais perdas de direitos instituídas pela Reforma de um setor extremamente precarizado, que tem se
Trabalhista, e que divergem dos parâmetros de trabalho decente mobilizado e já há algum desenho de legislação pro-
elencados pela OIT, a professora da UFAC elenca o trabalho inter- tetora do trabalho, mas é preciso avançar nos direitos
mitente. “A possibilidade de um contrato por dia, por uma sema- do trabalho como um todo”, finaliza..
16 MOBILIDADE URBANA
16
MARCELO CAMARGO / ABR

DIREITO DE IR E VIR
Especialistas discutem as formas de remuneração do
transporte coletivo e o impacto da mobilidade para
democratizar o acesso a outros direitos

JULIANA PASSOS

N
os horários de pico, o motorista pede aos gratuidade no transporte coletivo deu um salto. Uma
passageiros já amontoados no ônibus para reportagem da agência BBC Brasil identificou 67 muni-
que deem um passo para o lado porque há cípios que optaram pelo pagamento indireto da tarifa,
mais gente para embarcar. Indignados, al- um número ainda tímido diante de um total de 5.568
guns usuários começam a clamar para que o veículo municípios brasileiros, mas que evidencia uma ten-
não faça mais paradas até que alguém desça. No me- dência que já prevalece entre urbanistas: é necessário
trô e trem, trabalhadores apinhados na plataforma subsidiar o transporte público, uma vez que se trata de
aguardam as portas abrirem para disputar cadeiras um direito e atende a uma parcela ampla da sociedade.
ou mesmo um centímetro quadrado sob empurrões e “O transporte não é só um direito individual, mas uma
cotoveladas. Já fora dos horários de maior movimento, medida que beneficia a todos. Uma cidade com uma
quando alguém está indo, por exemplo, a uma consul- rede de transporte de coletivo maior se vende mais,
ta na unidade de saúde ou buscar os filhos na escola, coleta mais impostos”, diz Rafael Calabria, analista do
o tempo de espera se multiplica no ponto de ônibus. O Idec, o Instituto de Defesa do Consu-
cansaço aumenta ainda mais quando, somado a tudo midor. Embora a redução ou mesmo
isso, é preciso fazer baldeações. E nas cidades grandes a eliminação do custo para o passa-
não há quem, em meio a uma jornada extenuante de geiro seja o lado mais conhecido das
trabalho, não se pergunte como o transporte pode ser demandas por ampliação do acesso, O TRANSPORTE
tão caótico, com trajetos tão longos e tarifa cara.
Desde 2013, quando milhares de pessoas foram
os entrevistados desta reportagem VIROU UM DIREITO
complexificam a questão, fazendo
às ruas pela redução da tarifa, os reajustes do trans- propostas para melhoria do sistema. INSCRITO NA
porte público não conseguiram atrair tantos inte-
ressados, mas as consequências daquele momento
E o primeiro passo desse trajeto é CONSTITUIÇÃO EM
lembrar que as oportunidades estão
se seguiram. Dois anos após os megaprotestos, em mal distribuídas no espaço urbano. SEU ARTIGO 6º,
2015, o transporte virou um direito inscrito na Cons-
AO LADO DE
tituição em seu artigo 6º, ao lado de educação, saúde, Planejamento urbano
trabalho, lazer e moradia. EDUCAÇÃO, SAÚDE,
Mais recentemente, após a pandemia de Covid-19, Morar próximo do trabalho, da
quando, em função do isolamento social, os ônibus per- escola dos filhos, do posto de saúde, de
TRABALHO, LAZER
deram muitos passageiros, o número de cidades com um hospital de referência e, de pre- E MORADIA”
17

ferência, próximo a áreas de lazer: essa pode ser a des- listana. Já o Rio de Janeiro apresenta uma das menores
crição de uma vida em uma cidade pequena com boa desigualdades nesse quesito, com uma proporção me-
estrutura de equipamentos públicos, mas é uma reali- nor do que 3. Na avaliação dos pesquisadores, um fator
dade distante para moradores que não estão nas áreas que pode explicar essa diferença são as características
centrais das capitais brasileiras. Um estudo publicado urbanas das duas capitais: enquanto São Paulo concen-
pelo Ipea, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, tra favelas na periferia da cidade, no Rio de Janeiro
em 2022, detalhou parte desse dilema ao mapear o elas são mais espalhadas e integram áreas centrais.
tempo de deslocamento em dez cidades brasileiras para Em relação à Educação, o estudo traz outros exem-
atividades de Educação, Saúde e Trabalho. Como você plos impactantes. Em Curitiba e São Paulo, a maioria
pode imaginar, o estudo mostrou a relação direta entre das escolas do Ensino Fundamental não está acessí-
faixa de renda e uma maior facilidade ao acesso de es- vel a menos de uma hora de percurso no transporte
cola, saúde e trabalho como um padrão nas principais público. Já Belém tem uma boa cobertura e todos os
capitais brasileiras. Há nuances. Por exemplo, no Rio de segmentos podem ser acessados em uma caminhada
Janeiro, estabelecimentos de saúde pública para média de 30 minutos. No entanto, há uma pequena variação
complexidade estão acessíveis a 46% da população em para a Educação Infantil, que necessita de melhor dis-
um trajeto de 15 minutos por transporte público. No tribuição pela cidade.
caso de alta complexidade, essa fatia cai para 17%. Reduzir essas barreiras de acesso passa pelo direito
A pesquisa também aponta São Paulo como a ci- ao transporte, agora previsto pela Constituição. Para
dade mais desigual entre as pesquisadas no critério Pereira, as soluções devem caminhar de maneira ar-
sobre distribuição de postos de trabalho. O número de ticulada entre o planejamento de novas construções
empregos com mais fácil acesso por transporte aos 10% de equipamentos públicos e a melhoria do transporte
mais bem remunerados (com um salário em torno de coletivo, entendendo que o direito ao transporte tam-
R$ 8 mil) é mais de nove vezes maior do que todos os bém passa pelo direito à cidade. “Fornecer um serviço
postos acessíveis aos 40% mais pobres na capital pau- de transporte público eficiente que faça uma conexão
entre essas áreas de residência e aquelas de serviços é
uma das formas de garantir esse acesso. Outra manei-
Protesto contra o aumento da tarifa toma ra complementar é construir essas infraestruturas de
as ruas de Belo Horizonte (MG) em 2013
serviço público – as escolas, as creches e os hospitais –
de forma espacialmente planejada para diminuir as
distâncias, ou seja, para aproximar o serviço de onde as
pessoas moram”, diz.
A aproximação da população aos serviços a partir
de sua multiplicação em áreas de pouca cobertura de
unidades de saúde e escolas, segundo Pereira, é uma
estratégia mais efetiva do que a ampliação do trans-
porte. No entanto, o raciocínio não se aplica a postos de
trabalho, uma vez que as empresas seguem a lógica de
mercado, em que a instalação de determinada empresa
será feita de acordo com o que faz mais sentido para
aquele setor. “Quando você compara o acesso a empre-
gos a pé ou por transporte público, o transporte público
faz uma grande diferença, porque os empregos estão
muito concentrados em poucas regiões. Quando a gen-
te olha para a saúde, naturalmente o transporte públi-
co melhora o acesso, mas ele melhora relativamente
menos, porque, como você já tem uma rede de saúde
muito melhor distribuída espacialmente, mesmo aces-
sando simplesmente a pé, as pessoas já têm um acesso
relativamente bom”, diz.
A partir dessas comparações, o pesquisador defen-
de um cálculo integrado entre planejamento urbano
e transporte. “Um bom sistema de transporte público
MÍDIA NINJA

não é medido pela alta frequência, velocidade ou mui-


tas linhas entre bairros. Um bom sistema de transpor-
te público é aquele que aumenta o acesso a oportunida-
18
des. Isso necessariamente envolve os itens anteriores, regiões onde tem parque, shopping, centro cultural, uni-
mas é preciso combinar as variáveis com a melhor dis- dade de saúde. “Todo o planejamento é feito no dia útil
tribuição de serviços públicos “, avalia. para casa, trabalho. E aí, a partir disso, se estruturam as
viagens fora do pico, final de semana. Então, é uma ques-
Por que o transporte lota? tão de visão política muito ruim do setor”, opina.
Além da mudança para o cálculo da tarifa com
Secretário de Transportes da cidade de São Pau- base no quilômetro rodado, o que implica a neces-
lo entre 1990 e 1992, na gestão da ex-prefeita Luiza sidade de a prefeitura assumir as regras de funcio-
Erundina, Lúcio Gregori concorda que as mudanças namento do transporte e pelo menos parte do seu
nas regras de zoneamento podem auxiliar o acesso da custeio, Calabria aponta outras estratégias para a
população a serviços, mas considera que a alteração do melhoria da cobertura do transporte e maior mar-
espaço urbano é mais complexa e demorada do que a gem para negociação das linhas e itinerários por
melhoria do transporte coletivo nas cidades. E ele se MÍDIA NINJA
parte das prefeituras. A indicação é contratar o ser-
baseia na experiência que teve enquanto gestor, quan- viço em partes, com segmentação entre frota, admi-
do mudou o cálculo de remuneração das empresas de nistração e funcionários. “Com contratos temáticos
transporte e ampliou a frota. “A mudança de cálculo de para operação, motoristas, viagens e frota, é possí-
número de passageiros para quilômetro rodado permi- vel ter atenção a cada um deles, definir melhor cada
te novos arranjos de linhas e itinerários e dá margem a um”, diz. Como exemplo, ele cita a cidade de São José
esquemas de solução de problemas que vão acontecen- dos Campos, que vai exigir veículo elétrico no con-
do ao longo do dia numa boa”, recorda. trato. “Uma empresa que não tenha veículo elétrico
De forma simplificada, o pagamento às empre- não vai nem conseguir entrar no edital, não vai nem
sas passou a ser ditado 80% pelo custo do quilômetro concorrer. Diferente da cidade de São Paulo, que
rodado e 20% pelo número de passageiros transpor- possui uma lei que exige a eletrificação, mas quem
tados. Ao mudar as regras da concessão e assumir compra o veículo é o próprio empresário, então, fica
uma fatia maior dos custos da mobilidade, mais do uma negociação, uma pressão da prefeitura sobre o
que uma mudança de fórmula, a proposta traz uma empresário e, a rigor, eles estão adiando”, conta.
nova lógica do entendimento do transporte, com um Outro ponto em favor dessa divisão é a possibili-
olhar social para a demanda. Com isso, a Prefeitura tar maior transparência. “O setor é pouco fiscalizado.
de São Paulo passou a planejar todas as viagens, em As prefeituras precisam ter um diálogo franco para a
alguns casos com frotas próprias – nas linhas me- abertura de dados e saber quanto de fato se paga pelas
nos rentáveis –, em outras pagando pelo serviço, por viagens realizadas, o valor do combustível, do salário
quilômetro rodado. A ideia de subsidiar o transporte dos trabalhadores”, diz. Por outro lado, ele reconhece
é relativamente recente, no Brasil o vale transporte que prestar um bom serviço não é barato. “Precisamos
concedido aos trabalhadores, por exemplo, foi pro- achar formas de financiamento, mas para justificar
mulgado pelo presidente José Sarney em 1985. corretamente esse custeio precisamos ter clareza dos
Ainda hoje, poucas prefeituras contribuem para o custos que se está pagando”.
transporte coletivo. Um levantamento do Idec divul-
gado no final de 2022 identificou 122 delas pelo Brasil Subsídios
e que, em sua maioria (99) não exigiam contrapartida
das operadoras – exigências que devem ser previstas em Como ex-secretário de Trans-
contrato, pois apesar de terem a liberdade de criar uma porte, Gregori concorda que man- AO SEREM
lei própria com diretrizes para a mobilidade, o analista ter um transporte coletivo de qua-
do Idec afirma que é nesses documentos que os parâme- lidade não é barato. “O custo do
REMUNERADOS
tros de qualidade do serviço oferecido são detalhados. sistema, desde que calculado ade- POR PASSAGEIRO,
Ele acrescenta que, ao serem remunerados por pas- quadamente e sem esse negócio
sageiro, e não por quilômetro rodado, a disponibilidade de usar pouco ônibus, resulta em
E NÃO POR
de linhas e horários sai do foco das empresas. “A lógica do um valor inacessível para a gran- QUILÔMETRO
serviço de transporte coletivo padrão no país é de viabili- de maioria dos possíveis usuários
dade. Tal horário é viável, tal horário não é viável. O que do transporte coletivo”, afirma. E
RODADO,
leva à superlotação e precarização em horários que não esse cálculo não é novo. É dentro A DISPONIBILIDADE
são lotados e em periferias, onde também não há tanta dessa lógica que se justificam os
densidade populacional como nas áreas centrais”, explica subsídios pagos pelos governos
DE LINHAS E
o analista. Ele exemplifica com a SPTrans, empresa con- dos Estados Unidos e alguns paí- HORÁRIOS SAI
trolada pelo município de São Paulo e responsável por fa- ses europeus para reduzir o pre-
zer a gestão do sistema de ônibus, que reduz a frequência ço das passagens. Nessa mesma
DO FOCO DAS
de linhas aos finais de semana e não dá atenção para as linha de raciocínio foi pensada a EMPRESAS”
19

de diretrizes para um bom funcio- pelo IBGE, o Instituto Brasileiro de


namento do transporte coletivo. Geografia e Estatística, dizem que o
Essa integração pode ter um im- transporte consome 18% da renda
pacto importante, por exemplo, no das famílias, à frente, inclusive, da
acesso à saúde, que muitas vezes re- alimentação, que registrou a fatia
quer atravessar mais de um muni- de 17,5%. Esse impacto ajuda a justi-
cípio. “Há polos de atendimento de ficar os cálculos do ex-secretário de
alta complexidade que precisam de que o número de passageiros trans-
viagens constantes e devem ser in- portados triplicou nas cidades que
A cidade de Maricá foi a primeira com
mais de 100 mil habitantes a adotar a cluídos nesses cálculos. Atualmen- adotam o modelo. Caucaia (CE), a
tarifa zero, o que ocorreu em 2013. te não existe essa atenção dedicada maior cidade do país a adotar a gra-
O custeio do transporte vem a partir à viagem por motivo de saúde. É tuidade, conseguiu ampliar a quan-
dos royalties do petróleo
uma coisa que depende do prefeito, tidade de passageiros ainda mais e
às vezes até pode ser favor político. quadriplicou esse número.
Proposta de Emenda Constitucional 25, apresenta É um tema bem abandonado, o que A cidade histórica de Maria-
pela deputada federal Luiza Erundina (PSOL/SP) em é muito ruim”, diz Calabria. na, em Minas Gerais, foi uma das
maio de 2023. Elaborada coletivamente, com a parti- Já para Gregori, o grande avan- que adotaram a tarifa zero após a
cipação, inclusive, de Gregori, o projeto foi assinado ço da proposta é incluir na conta pandemia de Covid-19. A lei que
por 173 deputados de variados partidos. Em novem- quem não é usuário do transporte regulamenta o pagamento indire-
bro, a PEC chegou à Comissão de Constituição e Jus- coletivo, mas se beneficia dele. Ele to foi aprovada em 2021 e no ano
tiça da Casa mas, até a conclusão desta reportagem, lembra que as cidades estão plane- seguinte a operação começou. “A
não tinha sofrido qualquer movimentação. jadas para suportar uma grande cidade tem uma extensão territo-
Baseada na implementação do direito ao trans- quantidade de carros particulares, rial muito grande, apesar de ser
porte previsto na Constituição, a proposta cria o o que significa um volume conside- pequeno o núcleo urbano. Com a
Sistema Único de Mobilidade e prevê “planejamen- rável de impostos destinados a esse medida, os pequenos agricultores
to da rede de transporte na forma de rede única, modelo. “Os automóveis ocupam estão conseguindo se deslocar para
integrada e intermodal adequada à demanda e aos grande parte do espaço viário das o centro para vender suas merca-
objetivos do desenvolvimento urbano sustentável”, cidades e para eles circularem há dorias. Então, a tarifa zero deu uma
mantendo a competência municipal para organiza- toda a conservação das estradas, possibilidade de trabalho para es-
ção e prestação de serviço do transporte coletivo. sinalização, expansão das vias e sas pessoas”, diz Calabria.
A PEC também propõe a tarifa zero e seu custeio não se paga um tostão para andar O analista do Idec avalia que
via impostos por entender o transporte como uma na cidade”, pontua. O engenheiro falta ao setor e aos gestores pú-
obrigação do Estado. “A tarifa representa, na práti- também comemora a inclusão da blicos uma visão mais social do
ca, barreira imposta àqueles que não têm condições tarifa zero na proposta, uma defesa transporte, em vez de tratá-lo
de arcar com os valores das passagens”, diz o texto. feita por ele desde a década de 1990 apenas como um tema de enge-
Em relação aos custos envolvidos, a PEC defende e pelo Movimento Passe Livre. nharia. “O setor de transporte
que deve ser dividido por toda a sociedade, com a é contra a tarifa zero, majorita-
cobrança de impostos uma vez que “a maior parte Impacto da tarifa riamente porque a tarifa é parte
da economia se sustenta por meio do trabalho de da equação da remuneração das
pessoas que se deslocam até seu local de trabalho Mais de três décadas após sua empresas. Estimular a demanda
usando transporte coletivo”. experiência à frente da Secretária com outras viagens que não se-
O pesquisador do Ipea avalia como mérito a in- de Transportes de São Paulo, Grego- jam para o trabalho não é enten-
clusão do governo federal no custeio do transporte, ri enxerga com otimismo a multipli- dido como algo lucrativo”, avalia.
uma vez que essa tem sido uma dificuldade dos mu- cação de municípios que adotaram Gregori completa: “A demanda
nicípios, que em sua maioria não oferecem subsídios o modelo que não responsabiliza atual por transporte [coletivo] é
para o transporte, mas coloca dúvidas sobre a cober- o usuário pelo pagamento da pas- muito pequena perto do que po-
tura total do preço da tarifa. “Os desafios estão em sagem. “Os resultados mostram deria ser um país com a quanti-
torno das prioridades políticas e a possibilidade de o quanto o sistema de transporte dade de habitantes que tem. É
fortalecer desigualdades regionais. Cidades médias pago, tal como é feito no Brasil, preciso entender que no Brasil o
e grandes, que em geral já produzem uma maior impede a movimentação de uma transporte é um problema social
receita econômica, têm sistemas de transporte mais quantidade gigantesca de pessoas e de responsabilidade do Estado,
complexos e devem consumir a maior fatia desses e possíveis usuários do sistema”, então privatizar as operações,
recursos”, pondera Pereira. diz. E o peso da tarifa no orçamento como tem se adotado em São
O analista do Idec coloca a ênfase na possibilidade das famílias não é pequeno. Dados Paulo, é colocar o transporte em
trazida pela PEC da realização de um planejamento in- da última Pesquisa de Orçamento uma lógica que não atenda às ne-
tegrado entre municípios e estados, além da existência Familiar (POF), divulgada em 2019 cessidades da população”.
20 SAÚDE E AMBIENTE
20

NO CONGRESSO
E NO STF,
AVANÇAM
PERIGOS

MARCUS VINICIUS MENDONÇA / IBAMA


PARA O MEIO
AMBIENTE E
PARA A SAÚDE
Projetos de Lei visam
desregulamentação de controle ambiental, permitir atividade ex- ‘A mãe de todas
ambiental. Consequências são graves ploratória em territórios indígenas as boiadas’
e inviabilizar a fiscalização do uso
PAULO SCHUELER de agrotóxicos no Brasil. Organizações ambientalistas
E o tema tem ocupado também alertam que o Projeto de Lei 2.159,

A
pandemia da Covid-19 demonstrou, ao as pautas do STF: apesar da decisão aprovado na Câmara dos Deputa-
custo de milhões de vidas: seres humanos, da Corte contra a tese do Marco dos em 2021 e previsto para entrar
animais e meio ambiente estão interligados Temporal, segundo a qual os povos na pauta do Senado neste final de
e ninguém está alheio ao fato de que uma indígenas só teriam direito a ocupar 2023, foi apelidado de “a mãe de to-
ocorrência em determinado local possa se espalhar as terras em que já estavam ou dis- das as boiadas” por descaracterizar
por toda a população global. Esse entendimento está putavam em 5 de outubro de 1988, o licenciamento ambiental no Bra-
na base do conceito de “saúde única” (One Health), que data de promulgação da Constitui- sil, privilegiando o chamado “auto-
a Organização Mundial da Saúde tem promovido e que, ção, no momento em que este texto licenciamento”.
de acordo com o Ministério da Saúde brasileiro, “é uma foi terminado o acórdão ainda não O projeto dispõe sobre o licen-
abordagem global multisetorial, transdisciplinar, trans- tinha sido publicado. E a polêmica ciamento ambiental para instalação
cultural, integrada e unificadora que visa equilibrar e teve novos capítulos no Congres- de obra, empreendimento ou ativi-
otimizar de forma sustentável a saúde de pessoas, ani- so que, contrariando a decisão do dade potencialmente causadora de
mais e ecossistemas. Reconhece que a saúde de huma- Supremo, votou um projeto (o PL degradação do meio ambiente, que
nos, animais domésticos e selvagens, plantas e o meio 2903/2023) a favor da tese e, depois demande Estudo Prévio de Impac-
ambiente (incluindo ecossistemas) estão intimamente de ver seus pontos principais veta- to Ambiental (EIA). Apresentado
ligados e são interdependentes”. dos pelo presidente Luiz Inácio Lula incialmente com o Projeto de Lei
Segundo a Pasta, a abordagem de saúde única in- da Silva, ameaçava derrubar os 3.729/2004 pelos então deputados
clui temas como a segurança alimentar e controle de vetos. Também no STF continuava federais Luciano Zica (PT-SP), Wal-
zoonoses; resistência aos antibióticos; controle de con- em pauta a deliberação sobre bene- ter Pinheiro (PT-BA) e Zezéu Ribeiro
taminantes químicos, biológicos e físicos; e vigilância fícios fiscais para agrotóxicos. (PT-BA), o texto tramitou na Câmara
em saúde; entre outros. Nessa perspectiva, portanto, Se aprovadas, essas iniciativas dos Deputados por 17 anos, até ser
preservar o meio ambiente não protege o ser humano podem impactar a atividade de aprovado em 2021 e ser remetido
apenas de novas pandemias virais, mas também per- órgãos do Executivo, como o re- pelo presidente da Casa, Arthur Lira
mite maior previsibilidade na produção de alimentos e cém-criado Ministério dos Povos (PP-AL), ao Senado Federal, onde se
outras atividades econômicas. Indígenas e sua Fundação Nacio- converteu no PL nº 2.159/2021.
O conceito de saúde única, no entanto, parece não nal dos Povos Indígenas (Funai), A proposta regulamenta o ar-
ter chegado aos corredores do Congresso Nacional. No o Ministério de Meio Ambiente e tigo 225 da Constituição Federal
momento em que esta reportagem foi concluída, no Mudança do Clima e seus órgãos, na parte em que a Carta afirma
início de novembro, avançavam no Legislativo alguns além da atividade reguladora da que “todos têm direito ao meio
projetos de lei com impacto direto na relação saúde e Agência Nacional de Vigilância ambiente ecologicamente equi-
ambiente, entre eles, propostas para reduzir a política Sanitária (Anvisa). librado, bem de uso comum do
21

povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público Guetta usa o exemplo da Vila Parisi, bairro residencial
e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e próximo a indústrias de petróleo, metal-mecânica e de
futuras gerações”, e altera as leis 9.605/1998 – que dispõe sobre sanções fertilizantes da cidade paulista. Entre outubro de 1981
penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao e abril de 1982, das 1,8 mil crianças que nasceram na
meio ambiente – e 9.985/2000 – que instituiu o Sistema Nacional de Uni- cidade, 37 naquele bairro já nasceram mortas, outras
dades de Conservação da Natureza –, além de revogar dispositivo da Lei apresentavam problemas neurológicos e anencefalia.
7.661/1988 – que instituiu o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro. Cubatão era líder em casos de problemas respiratórios
Em sua Nota Técnica 002/2021, logo após a aprovação da Câmara dos no país, e ficou conhecida como “Vale da Morte”.
Deputados, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) Ele cita ainda a situação dos aterros sanitários espa-
afirmou que “o PL nº 2.505/2021 atinge o núcleo essencial do direito funda- lhados por todo o Brasil, que antes da obrigatoriedade
mental ao meio ambiente, notadamente quanto às suas dimensões organi- de contarem com licenciamento ambiental por parte
zacional e procedimental, materializadas nos instrumentos da política na- dos municípios “eram lixões a céu aberto, com contami-
cional de meio ambiente e nos princípios e diretrizes do Direito Ambiental, nação de lençol freático e das populações locais. Poluí-
como a avaliação prévia de impacto ambiental, a prevenção e a precaução”. mos os rios brasileiros e isso gerou grande impacto na
O PL autoriza, de forma genérica e abstrata, a dispensa de licencia- saúde das populações locais”, ilustra o consultor, fazen-
mento para uma série de atividades e empreendimentos ao abrir mão de do menção à poluição produzida pelo chorume, líqui-
critérios técnicos para a definição do que seria “significativo impacto am- do gerado pela decomposição do lixo doméstico que se
biental”, exigindo apenas a autodeclaração do empreendedor. Na avaliação dissolve em substâncias orgânicas e inorgânicas, como
da ANPR, e “ao contrário do que pretende, o PL nº 2.159/2021 acarreta o au- arsênio, cobalto, cobre, chumbo e mercúrio, e que tem
mento da insegurança jurídica, pois desrespeita a prática do licenciamento o potencial de contaminar, a partir das chuvas, o lençol
como controle do risco ambiental, além de violar frontalmente a Constitui- freático e chegar a lagos, rios e minas.
ção Federal, a legislação internacional e diversos princípios do direito am- De acordo com Guetta, o alcance do PL é quase total.
biental”, como aponta a nota técnica. “Mineração, agropecuária e empreendimentos de im-
Para Maurício Guetta, consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA), pacto ficariam dispensados de licenciamento, ou seja,
o PL 2.159/2021 tem o poder de destruir a Política Nacional de Meio Ambien- não passariam por qualquer controle prévio por parte
te. “O licenciamento ambiental é o principal instrumento dessa política, desde do Estado. Fizemos um estudo a partir de uma informa-
que ele surge após a Conferência de Estocolmo, em 1972. Essa foi a primeira ção oficialmente apresentada pela Secretaria de Meio
conferência mundial sobre o meio ambiente e já debateu a prevenção da Ambiente de Minas Gerais e, se o projeto for aprovado,
poluição ambiental e seus impactos sobre a saúde humana. É [a partir] desse 86% dos empreendimentos minerados e suas barragens
debate que começam a ser implementados processos de licenciamento no de rejeitos poderiam passar a ser licenciados por essa
Brasil, em primeiro lugar no Rio de Janeiro, em 1975; depois em São Paulo, em modalidade de adesão e compromisso”, afirma.
1976; e em 1981 ele passou a se aplicar a toda e qualquer atividade em âmbito O consultor alerta que o projeto retira o Ministério
nacional. Desde então todas as atividades que geram algum nível de impacto da Saúde da participação dos licenciamentos ambientais.
ambiental precisam de um licenciamento prévio. E o PL, em verdade, acaba “Isso é muito grave, porque a Saúde historicamente tem
com isso”, detalha. E completa: “Entre 98% e 99% do licenciamento ambiental atuado no licenciamento para conter os efeitos negati-
atualmente realizado no Brasil seria transformado em um documento de au- vos de empreendimentos quando observamos os casos
todeclaração sem análise prévia por parte dos órgãos ambientais, seja no mu- que envolvem desmatamento. O estudo do Instituto de
nicípio, no estado ou da União, sem análise humana, fis- Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
calização. Simplesmente o empreendedor apresenta essa ‘A ameaça do desmatamento’, de
autodeclaração e obtém a licença de forma automática”. 2015, analisou todos os municípios
da Amazônia Legal e, a partir dos
Retrocesso de 40 anos A SAÚDE
registros em hospitais, identificou
que um aumento de 1% no desma-
Para o consultor, a aprovação dessa mudança HISTORICAMENTE tamento de um município pode
pode fazer o Brasil rever problemas de saúde pública elevar em até 23% o surgimento de
sanados há cerca de 40 anos, quando o licenciamen- TEM ATUADO NO casos de malária no local. Então, o
to nos municípios inexistia ou ainda não era possível LICENCIAMENTO Ministério da Saúde tem atuado his-
observar seus resultados. toricamente para prevenir esse tipo
O caso mais emblemático é o da cidade de Cubatão PARA CONTER de coisa, orientando para as medi-
(SP), que chegou a ser apontada pela ONU como “cida- OS EFEITOS das que devem ser adotadas quando
de mais poluída do mundo” antes de adotar o licencia- um empreendimento for licenciado.
mento das emissões de gases industriais. “Até o início NEGATIVOS DE E a Pasta está sendo simplesmente
dos anos 1980, a cidade de Cubatão era um exemplo EMPREENDIMENTOS” excluída do processo”, diz.
dos impactos da falta de licenciamento e fiscalização Outro foco de preocupação do
na saúde pública. Ali se observaram níveis bem acima MAURICIO GUETTA jurista é com o uso dos recursos hí-
da média de crianças que nasciam anencéfalos”, diz. Instituto Socioambiental dricos e a qualidade do ar. Em seu
22
artigo 8º, o PL propõe que não estejam sujeitos a licen- Após uma década e meia de tramitação, e apenas uma semana após o
ciamento ambiental “sistemas e estações de tratamento STF declarar a inconstitucionalidade da tese, o PL foi aprovado e vetado
de água e de esgoto sanitário”. Já no artigo 12, o projeto parcialmente pelo presidente da República, mas o Parlamento se movi-
propõe que “a entidade licenciadora pode exigir do em- mentava para derrubar os vetos presidenciais e provocar um enfrenta-
preendedor, no âmbito do licenciamento ambiental, me- mento ao Supremo.
didas específicas relativas à prevenção, à mitigação ou à De acordo com o coordenador executivo da Articulação dos Povos Indíge-
compensação da emissão de gases de efeito estufa (GEE), nas do Brasil (APIB), Dinamam Tuxá, a busca parlamentar pela aprovação da
bem como de medidas de adaptação às mudanças climá- tese atendia aos interesses econômicos de segmentos do agronegócio e da mine-
ticas.” “É bastante grave e com alto impacto sobre a saúde ração ao dificultar a demarcação de terras demandadas por indígenas e permitir
pois, sem controle da poluição da água, haverá impacto atividades econômicas mesmo em territórios demarcados. “Corporações como
direto na Saúde Pública, assim como os impactos da po- as grandes empresas de soja e setores [do agronegócio] com relações no Con-
luição atmosférica. Basta observar o que está ocorrendo gresso Nacional e atuação na Frente Parlamentar da Agricultura (FPA) estão no
em Manaus (AM) [a fumaça de queimadas afetou quali- Parlamento defendendo este projeto. Assim como empresários da mineração
dade do ar na capital amazonense por semanas consecu- que são mais cautelosos em suas falas públicas mas fazem lobby pela mineração
tivas] e o impacto nas consultas e internações por doen- dentro das terras indígenas. Estão de olho em metais nobres necessários para as
ças respiratórias”, ressalta. Sobre isso, o estudo ‘Amazônia baterias do futuro, da dita ‘transição energética’, e isso tende a aumentar a esca-
brasileira: potenciais impactos das queimadas sobre a lada de violência, de tentativa de esbulho possessório, de deslocamento de povos
saúde humana no contexto da expansão da Covid-19’, indígenas para a extração desses minérios. Não é só ferro ou ouro”, atesta.
feito em parceria entre a Fundação Oswaldo Cruz (Fio-
cruz) e o Fundo Mundial da Natureza (com a sigla WWF, Piora na saúde mental
em inglês) já havia apontado que as queimadas na Ama-
zônia foram responsáveis pela elevação dos percentuais A mineração e o garimpo, aliás, são os principais causadores de preocu-
de internações hospitalares por problemas respiratórios pação quando o coordenador da APIB faz a relação entre a tese do Marco
entre os anos 2010-2020, e que estas internações custa- Temporal e a Saúde, seja dos povos indígenas, seja do território – o meio am-
ram quase R$ 1 bilhão ao Sistema único de Saúde (SUS). biente – em que vivem. “A mineração ilegal, através da invasão de terras in-
A Poli tentou entrevistar e também enviou pergun- dígenas, foi invisibilizada nos últimos meses, embora continue ocorrendo,
tas por escrito para a relatora do PL 2.159/2021 na Comis- assim como a atividade legalizada. Belo Sun vai ser a maior mina de ouro
são de Meio Ambiente do Senado Federal, Tereza Cristi- a céu aberto do mundo e já está causando impactos só com a mera trami-
na (PP-MT), sobre os pontos levantados na matéria mas, tação do empreendimento”, afirma Tuxá, referindo-se ao empreendimento
até o fechamento desta edição, não obteve resposta. da mineradora canadense Belo Sun Mining Corp., que pretende construir
uma mina na Volta Grande do Xingu, no Pará. A Articulação produziu o
‘Marco Temporal’ e seu impacto relatório ‘Mina de Sangue’, sobre o empreendimento, no qual atesta que a
na saúde indígena empresa omite “informações acerca dos prováveis impactos que a minera-
ção irá causar na região, como por exemplo a contaminação dos recursos
A tese do Marco Temporal para demarcação de hídricos com mercúrio, cianeto, arsênio e antimônio”.
terras indígenas foi derrubada pelo STF em setembro, Para Tuxá, a alimentação saudável, com impactos positivos na promo-
mas apenas uma semana depois o Senado aprovou o ção da saúde, também é prejudicada nos territórios em disputa de demarca-
PL 2.903/2023, que vai na contramão da decisão do ção, aqueles impactados pela proposta do Marco Temporal. “Observamos o
Supremo. Apresentada pelo deputado federal Home- surgimento da escassez de alimentos nas áreas onde há garimpo e conflitos
ro Pereira (PR-MT) em 2007, a proposta “estabelece ambientais com pecuaristas, por exemplo. Se o texto do Marco Temporal
que as terras indígenas serão demarcadas através de vigorar, haverá, sem sombra de dúvida, o aumento do desmatamento e da
leis”, altera a Lei 6.001/1973, que dispõe sobre o Esta- contaminação dos mananciais, dos rios, enfim, das proximidades das terras
tuto do Índio, e regulamenta o artigo 231 da Consti- indígenas ou dentro dessas terras. Isso leva ao aumento da contaminação
tuição para “dispor sobre o reconhecimento, a demar- por mercúrio. É só observarmos os casos concretos recentes entre os Mun-
cação, o uso e a gestão de terras indígenas”. duruku, os Yanomami e os Kayapó, em que o peixe transita por trechos de
rio contaminados. Essa contaminação sobe pelos mananciais e chega aos
ANTÔNIO CRUZ / ABR igarapés, contamina o solo onde plantamos. O desmatamento também
reduz a cadeia alimentar, animais somem”, relata. E conclui: “A aprovação
desse projeto traria uma calamidade sem precedentes para nossos povos”.
O coordenador da APÌB demonstra especial preocupação com a saúde
mental dessas populações. “Nós vivemos sob um cenário de muita pressão e
de muita violência com implicações sérias sobre a saúde psíquica”, diz.
Sua avaliação é corroborada pela pesquisa ‘Suicídio entre povos indíge-
nas no Brasil de 2000 a 2020: um estudo descritivo’, feita por pesquisadores
da Fiocruz e da Universidade de Harvard e publicado na revista científica The
Lancet, que atestou que a incidência de suicídio entre indígenas é de duas a
23

três vezes maior do que na população brasileira como um


todo. Ainda de acordo com a pesquisa, crianças, adoles-
centes e jovens indígenas de dez a 24 anos têm as maio- ABR
res taxas de lesões autoprovocadas. Coautor do estudo,
o epidemiologista Jesem Orellana incluiu a disputa por te do Grupo de Trabalho de Biodiversidade da Articulação Nacional de
territórios entre os fatores que influenciam a incidência Agroecologia, afirma que “o STF precisa acompanhar o voto do ministro
do suicídio entre essas populações. “Precisamos encarar Fachin, reconhecendo a inconstitucionalidade da isenção”, defendendo
o suicídio indígena como um grave e invisibilizado pro- que é preciso “barrar o projeto de lei por todos os riscos que ele traz para
blema de saúde pública, o qual pode ser influenciado por a saúde e o meio ambiente”.
uma gama de peculiaridades contextuais e culturais, Maso demonstra preocupação especial com o uso do glifosato no Brasil.
como conflitos territoriais, crises sanitárias, racismo es- Em 2015, a Organização Mundial da Saúde classificou o glifosato como pe-
trutural, bem como questões de ordem econômica, polí- rigoso para a saúde humana e “provável cancerígeno para humanos”. Na
tica e psicológica”, concluiu, no estudo. União Europeia, a autorização de seu uso expira em 15 de dezembro de 2023;
A reportagem solicitou entrevista ao relator do PL e nos Estados Unidos a Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em in-
2.903/2023 no Senado Federal, Marcos Rogério (PL-RO), glês) está reavaliando o registro por decisão do Tribunal Federal de Recursos
sobre os temas aqui citados, mas não obteve resposta após a Suprema Corte ter condenado a Bayer, que comprou a Monsanto, a in-
até o fechamento desta edição. denizar vítimas do glifosato, muitas delas por terem desenvolvido leucemia.
A pesquisa ‘Agricultural intensification and childhood cancer in Brazil’, da
‘Envenenamento’ livre de impostos professora da Universidade de Illinois Marin Skidmore, foi divulgada em
outubro deste ano e investigou a ligação entre a incidência de leucemia lin-
Em fins de outubro e início de novembro, foi retoma- foblástica aguda em crianças e a expansão da produção de soja no interior
do pelo STF o julgamento sobre a concessão de benefícios do Brasil. O trabalho sugere que o glifosato usado nas plantações pode ter
fiscais aos agrotóxicos, ao mesmo tempo em que inte- matado pelo menos 123 crianças de até dez anos ao longo de uma década.
grantes da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) se De acordo com o trabalho, a principal via de contaminação por pesticidas
articulavam para agilizar a tramitação do Projeto de Lei nocivos na região são os lençóis freáticos, porque o padrão de aumento de
1.459/2022 na Comissão de Meio Ambiente do Senado risco por município segue o fluxo de rios e escoamento natural da água.
Federal. Mais conhecido pela sugestiva alcunha de ‘PL do De acordo com Maso, as consequências do glifosato são um exem-
Veneno’, o projeto busca retirar os ministérios da Saúde e plo do que pode ocorrer a partir da desregulamentação proposta pelo PL
do Meio Ambiente e da Mudança do Clima da reponsa- 1.459/2022. A expansão da fronteira agrícola para o Centro-Oeste, região
bilidade tripartite pela liberação e fiscalização do uso de em que nascem importantes bacias hidrográficas do país, é um fator extra
agrotóxicos no Brasil, concentrando esse poder na Pasta de preocupação. “O Centro-Oeste é o grande consumidor de agrotóxicos do
de Agricultura e Pecuária, além de retirar a Anvisa e o país. O veneno é distribuído de todas as formas, incluindo voos rasantes
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Na- sobre populações em territórios sob conflito, além dos trabalhadores rurais
turais Renováveis (Ibama) do controle dessas substâncias. sem EPIs [Equipamentos de Proteção Individual] adequados. Há relatos de
O Projeto de Lei estabelece ainda o impreciso con- comunidades com doenças na pele, alergias, dores de cabeça, dentre outros
ceito de “risco inaceitável” para a decisão de uso ou não fatores”, cita a coordenadora.
de substâncias que estão sob escrutínio de pesquisas A Poli tentou entrevistar o autor do PL 1.459/2022, Blairo Maggi (MT),
científicas para a comprovação de sua atividade car- sem que houvesse retorno até a conclusão da matéria.
cinogênica e mutagênica. Em nota divulgada em 3 de
outubro, a Fiocruz identifica “muitos retrocessos” no Um ‘mercado’ sem seu maior agente
projeto, com destaque para “manutenção do conceito
de risco que abre possibilidades, por exemplo, do re- E essas não são as únicas ameaças na área ambiental. Tramita ainda no
gistro de agrotóxicos que causem câncer”. E conclui: Congresso, por exemplo, o Projeto de Lei 1.818/2022, que prevê a criação da
“Pequenas doses podem gerar danos irreversíveis à Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, que pode restringir o poder
saúde das pessoas”. do Ibama e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
No STF, o julgamento sobre redução de impostos (ICMBio) de implementar o chamado ‘Manejo Integrado do Fogo’ – uso do
para agrotóxicos – como a diminuição de 60% na base fogo por meio de queimas prescritas e controladas pelo poder público des-
de cálculo do ICMS nas saídas interestaduais e a alí- tinado à prevenção e ao combate aos incêndios florestais –, que vem sendo
quota zero de IPI para substâncias relacionadas a de- defendido pelos corpos de bombeiros estaduais.
fensivos agrícolas – foi paralisado em 27 de outubro, Já o Projeto de Lei 412/2022, que quer regulamentar o mercado de car-
após a ministra Cármen Lúcia pedir vista. Já haviam bono no Brasil, já tramitou no Senado e será debatido na Câmara dos Depu-
votado cinco ministros, dentre eles o relator do caso, tados. O principal problema apontado é que o texto aprovado pelos senado-
Edson Fachin, que se manifestou pela inconstitucio- res excluiu o agronegócio das obrigações previstas no Sistema Brasileiro de
nalidade da desoneração. Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). A decisão é digna
Sobre o PL e a votação no Supremo, Tchenna de nota porque a maior parte da comunidade científica atribui ao “agro” o
Maso, coordenadora do Terra de Direitos e integran- papel de maior emissor nacional de CO2.
24 ENTREVISTA

NÓS TEMOS UMA DÍVIDA


HISTÓRICA, CULTURAL, ÉTICA E
MORAL COM A JUVENTUDE QUE
ESTÁ NO ENSINO MÉDIO HOJE”
Monica Ribeiro

A
caba de ser inaugurado um novo capítulo VOCÊ É PARTE DE UM GRUPO DE PESQUISADORES E MILITANTES QUE
DEFENDE A REVOGAÇÃO DA REFORMA DO ENSINO MÉDIO, UM PASSO
da história da Reforma do Ensino Médio.
MAIS OUSADO DO QUE AS MUDANÇAS QUE O PROJETO DE LEI 5.230/2023
Tudo começou em 2016, quando o gover- PROPÕE. REVOGAR SIGNIFICARIA PARAR A REFORMA E VOLTAR TUDO
COMO ERA ANTES OU PROMOVER OUTRA REFORMA?
no de Michel Temer resolveu instituir um novo cur-
Significaria revogar a Lei 13.415/2017, que teve origem na MP [Medida
rículo – e uma nova lógica – para esse segmento de
Provisória] 746 e alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a LDB.
ensino, por meio de uma Medida Provisória (MP), Seria retirar da LDB as alterações feitas pela Lei 13.415. Isso não quer
nº 746. Votada no Congresso no ano seguinte, a MP dizer que o Ensino Médio estaria pacificado da forma como era. Significa
interromper o percurso do Novo Ensino Médio e rediscutir, da forma
virou a Lei 13.415. Entre transições nunca concluí-
como deve ser – não por Medida Provisória –, a política pública de Ensino
das – como a do formato do Enem – e outras ace- Médio no Brasil, da qual uma parte é a mudança curricular. Essa é a
leradas – como a adaptação do Programa Nacional posição do Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio e da Rede
Nacional EMPesquisa, que eu coordeno. O que a gente defende desde
do Livro Didático (PNLD) –, mesmo as redes mais
2013 é a necessidade da definição de uma política pública articulada para
atrasadas já implementaram as primeiras mu- o Ensino Médio no Brasil. E essa articulação passa por pelo menos dez
danças. Acontece que nada disso foi tão pacífico mudanças, desde a Formação Inicial e Continuada de professores, até
materiais didáticos e pedagógicos utilizados, políticas de permanência
quanto essa sequência de números pode sugerir:
estudantil para conter o abandono, reconstrução física e material das
além de uma pandemia no meio, não houve se- escolas, entre outras. A gente entende que é insuficiente uma mudança
quer um momento em que pesquisadores, estu- curricular e que é nefasta a privatização da oferta que a Lei 13.415 fez.
Mas outra resposta para essa pergunta é a seguinte: eu compus um
dantes e militantes da Educação tenham deixado
grupo que ajudou na elaboração de um Projeto de Lei, que não é esse
de denunciar o que consideravam uma “contrar- [5.230/2023]. É o PL 2601/2023, protocolado pelo deputado Bacelar
reforma” que violava a concepção de Educação [PV-BA] inicialmente, mas assinado por mais de 11 deputados, que está
desde maio no Congresso Nacional. A gente considera que esse é um PL
inscrita na Constituição, retirava direitos dos jo-
revogatório, por isso é bem mais avançado do que o projeto que o Lula
vens sob a falsa ideia de que eles teriam escolha e mandou [ao Congresso]. E ele está ativo. O que nós não sabemos é que
aumentava as desigualdades. rumo o presidente da Câmara vai dar, qual PL vai ser apensado a qual.
Foi agora em 2023, com a chegada de um novo go-
verno, que esses gritos começaram a surtir efeito. O TEXTO QUE ACOMPANHA O PL ENTREGUE PELO GOVERNO AO CONGRESSO
FALA SOBRE A CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA NACIONAL DO ENSINO MÉDIO.
Após uma consulta pública e a escuta de diversas PODE-SE DIZER QUE ESSE É UM ALINHAMENTO COM A CONCEPÇÃO QUE VOCÊ
entidades, o Ministério da Educação elaborou e en- EXPRESSOU DE QUE É PRECISO IR ALÉM DAS MUDANÇAS NO CURRÍCULO?

viou ao Congresso Nacional um novo Projeto de Lei O Projeto de Lei, por si só, não é uma política para o Ensino Médio. Ainda
que o governo diga que o PL é uma política, ele é parte, é uma inciativa
(nº 5.230), que modifica muitos pontos da Refor- na direção de uma política para o Ensino Médio, mas é insuficiente. O
ma. Nesta entrevista, a professora Monica Ribeiro, teor do Projeto de Lei não fala, por exemplo, em políticas de permanência,
coordenadora do Observatório do Ensino Médio da financiamento, recomposição de estrutura física etc. Isso é política de
Estado, que o MEC tem que implementar, não passa pela LDB. Quando
Universidade Federal do Paraná (UFPR) e da Rede o governo Lula encaminhou esse PL, seguiu junto um documento em
EMPesquisa, destrincha os artigos do PL, aponta a separado e é nele que o governo fala dessa política. E só fala porque tem a
necessidade de melhorias e defende que esse seg- ver com a nossa ação, das entidades que têm pressionado para isso. Antes
de o Lula assumir, quando foi composto aquele GT [Grupo de Trabalho] de
mento educacional precisa de uma Política Nacio- transição, nós, da Rede EMPesquisa, do Movimento Nacional em Defesa
nal, com mudanças que vão além do currículo. do Ensino Médio, entregamos um documento que levava a conhecimento
do governo de transição as pesquisas que nós realizamos em 16 estados
CÁTIA GUIMARÃES e que mostravam todos os problemas do Novo Ensino Médio. Ao final
25

dessa carta, nós falamos que não está vendo, de cada lugar fazer de que é a da escolha dos estudantes. E o que a gente percebe
era suficiente uma mudança um jeito – ainda que o texto diga que na realidade é que não há essa escolha. E não porque
curricular, que, além da revogação vão tentar construir parâmetros as redes são malvadas, mas porque essa Reforma foi
da Lei 13.415, era urgente que se curriculares que padronizem esses pensada desconsiderando a realidade do sistema escolar
instituísse uma política pública percursos. O que eu e esse coletivo brasileiro. Ela não cabe na nossa realidade. Diversificar
articulada para o Ensino Médio, e que pensou o outro Projeto de Lei obrigatoriamente na forma de percursos formativos é
colocamos os pontos dessa política. [2.601/2023] defendemos é que a fazer de conta que vai ter escolha, continuando o que
Isso tem sido incorporado pelo parte diversificada do currículo não era nesse chamado Novo Ensino Médio de agora. Já
governo, felizmente. seja normatizada na LDB nem como quando você deixa para a rede de ensino pensar essa
itinerário nem como percurso, que parte diversificada, que até pode ser como itinerário, ela
fique a cargo das redes estaduais. vai fazer o que tem efetivamente condições de executar.
QUE AVALIAÇÃO VOCÊ FAZ SOBRE O
Que elas possam pensar o desenho Porque um dos problemas do Novo Ensino Médio é que
PROJETO DE LEI 5.230 EM GERAL?
que melhor interessa para a sua ele não cumpre o que prometeu.
O que ele tem de muito positivo, que realidade, sem ter uma lista de
vai ao encontro do PL 2.601, que percursos amarrada nacionalmente.
a gente protocolou no Congresso
junto com outros deputados em
EU QUERIA ENTENDER A DIFERENÇA
maio, é a retomada das 2.400 horas
ENTRE ESSA POSIÇÃO DE VOCÊS
DIVERSIFICAR
para a Formação Geral Básica dos
estudantes – antes, no Novo Ensino
SOBRE A PARTE DIVERSIFICADA
DO CURRÍCULO E A POSIÇÃO
OBRIGATORIAMENTE
Médio, eram 1.800. O PL que o
Lula encaminha coloca também
DAS FUNDAÇÕES EMPRESARIAIS NA FORMA DE PERCURSOS
DA EDUCAÇÃO. O TODOS PELA
2.400 horas, mas ainda deixa um EDUCAÇÃO, QUE REÚNE DIVERSAS FORMATIVOS É FAZER
‘rabinho’, quando fala que para os DESSAS ENTIDADES, EMITIU UMA
cursos técnicos [como percursos NOTA TÉCNICA SOBRE O PL 5.230 DE CONTA QUE VAI
de aprofundamento] podem ser
2.100. A outra coisa que a gente
EM QUE, AO CONTRÁRIO DE
VOCÊS, ELOGIA A MANUTENÇÃO
TER ESCOLHA”
considerou bem importante foi o DA LÓGICA DA REFORMA, MAS ENTENDI. MAS EU LHE INTERROMPI QUANDO VOCÊ
PL retomar a obrigatoriedade do CRITICA O FATO DE OS ATUAIS ESTAVA LISTANDO OS ASPECTOS NEGATIVOS DO PL
PERCURSOS DE APROFUNDAMENTO 5.230. TEM MAIS PONTOS A SEREM CRITICADOS?
ensino de língua espanhola, que
SEREM MAIS FECHADOS DO QUE
tinha lei própria e acabou sendo Sim. Outro aspecto que eu considero gravíssimo e ao
OS ITINERÁRIOS DO NOVO ENSINO
revogada pela Lei 13.415. MÉDIO. E O ARGUMENTO TAMBÉM É qual tenho dado muita ênfase é um erro que está na
Um aspecto que nos parece dúbio QUE, COM ESSA NOVA PROPOSTA, O Lei 13.415 e que o Projeto de Lei mandado pelo Lula
no texto do PL é a questão da EaD GOVERNO RETIRA A LIBERDADE DAS mantém, que é vincular ao documento da BNCC [Base
[Educação a Distância]. Ele fala REDES DE PODEREM CRIAR. AINDA Nacional Comum Curricular]. Não é uma questão de
que a Formação Geral Básica tem QUE DEFENDENDO ESTRATÉGIAS concordar ou não com a BNCC, é um erro da técnica
que ser 100% presencial. Mas [o DISTINTAS, A CRÍTICA PARECE legislativa. Porque a BNCC é um documento de política
texto que acompanha o PL] fala SEMELHANTE. QUAL A DIFERENÇA? curricular, que foi elaborado por um dado governo, tem
em excepcionalidades que serão Primeiro, o Todos pela Educação temporalidade, precisa ser revista permanentemente...
regulamentadas para duas coisas: defende a manutenção dessa Vou te dar um exemplo. A BNCC do Ensino Médio
EaD e o notório saber para a lógica: Formação Geral Básica mais ficou pronta em 2018. É como se 2019, 2020 e 2021
docência. Então, ao mesmo tempo percursos [de aprofundamento]. E não existissem. Na BNCC não tem a pandemia, por
em que o PL fala que não haverá defende que esses percursos não exemplo. Pandemia não faz parte do conteúdo da
mais o notório saber para a sejam normatizados pelo CNE educação básica no Brasil nem no Ensino Fundamental
docência, lá na justificativa o texto [Conselho Nacional de Educação] nem no Médio. Isso é um absurdo. Não tem por que
diz que regulamentará o notório e pelo MEC, como o MEC está colocar na LDB, que é permanente – em que cabem
saber em caráter excepcional. propondo. A nossa proposta é mudanças, mas que passam pelo Congresso Nacional –,
Essas duas coisas ficam dúbias, o que não esteja na LDB o formato a menção à obrigatoriedade de um documento de
que não é bom para uma lei. da parte diversificada, que fique governo provisório, como é o caso da BNCC.
Quais são os aspectos que a gente como era a LDB lá em 1996, Também é problemático que o PL 5.230 reitera uma
considera ainda muito complicados? quando o artigo 26 dizia que os coisa que a gente critica no Novo Ensino Médio, que é
Primeiro, que a lógica do Novo ensinos Fundamental e Médio a hierarquia entre componentes curriculares e áreas
Ensino Médio está mantida: os teriam uma base nacional comum do conhecimento. A Lei 13.415 dizia que só português e
tais itinerários formativos só complementada por uma parte matemática eram obrigatórios. Foi o fato de dizer que as
mudaram de nome. O Projeto de diversificada, a cargo das redes de demais não são, inclusive alterando a lei que obrigava
Lei agora fala em “percursos de ensino, que elas iriam pensar os o ensino de filosofia e sociologia, que permitiu que os
aprofundamento de estudos” e desenhos curriculares, os conteúdos. estados fizessem essa redução drástica das disciplinas
coloca quatro possibilidades mais Porque, ao estabelecer os percursos, em quase 40% da carga horária. Então, se tinha biologia,
a da formação técnica profissional. e ainda mais com parâmetros história e sociologia nos três anos, tem rede em que agora
É o mesmo desenho curricular do obrigatórios nacionais para eles, vai tem em um ano só... O PL 5.230 fala nos componentes
Novo Ensino Médio, que causou permanecer a ilusão que foi vendida curriculares mas tem uma forma diferente de indicá-los.
todo esse transtorno que a gente como um dos pilares da Reforma, Por exemplo, língua portuguesa, matemática, educação
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física estão separadas, uma em cada inciso do projeto, ter laboratório? Essa é a justificativa. E teve um fundamento legal, que
enquanto história, geografia e sociologia estão numa foi a resolução nº 1 de 2021 do Conselho Nacional de Educação, sobre a
linha só, nomeados num único inciso. Isso dá a ideia de Educação Profissional e Tecnológica. Ancoradas numa base normativa e na
que não serão tratados como disciplinas, mas como áreas, impossibilidade de ofertar cursos de outro tipo, as secretarias vão justificar
hierarquizando mais uma vez os componentes. que podem ser essas as ofertas. Mas tem um outro componente importante
E temos mais duas preocupações. A primeira é que aí, que é o papel do Sistema S. São 6,6 milhões de estudantes [no Ensino
o PL diz que em algumas situações é permitido fazer Médio nas redes estaduais]. É muito dinheiro público para canalizar para
parceria “preferencialmente” com o setor público, o que o Sistema S fazer cursos de curta duração para completar carga horária
quer dizer que pode também com o setor privado. A do Ensino Médio. Então, também quando a gente fala na permanência
segunda diz respeito à Educação Profissional técnica [dessa possibilidade de oferta] no atual Projeto de Lei, isso foi por pressão do
de nível médio. Porque continua sendo permitido no Sistema S, que põe os olhos no Ensino Médio público para abocanhar parte
PL um dos grandes problemas do Novo Ensino Médio da carga horária. A ideia de manter como percurso de aprofundamento ou
que é cumprir o itinerário da formação técnica e como itinerário é exatamente porque o setor privado tem muito interesse
profissional com um somatório de cursinhos de curta em oferecer parte da carga horária do Ensino Médio público, com recurso
duração, os chamados cursos FIC [Formação Inicial e público. É isso que acaba explicando o próprio apoio do Consed [Conselho
Continuada]: faz um cursinho de padeiro aqui, outro de Nacional dos Secretários Estaduais de Educação] a isso, são as parcerias que
cabeleireiro ali e monta o currículo do Ensino Médio. os estados já efetivaram.
O modo como a formação técnica e profissional
está colocada no Projeto de Lei tem dois problemas.
AO FAZER ESSA OPÇÃO, DE TRATAR O CURSO TÉCNICO COMO PREFERENCIAL
Um é esse. O outro, que é bem grave, é dizer que os
NO PERCURSO DE APROFUNDAMENTO DE FORMAÇÃO PROFISSIONAL E
cursos de habilitação profissional serão ofertados
APOSTAR NO AUMENTO DE CARGA HORÁRIA PELO PERÍODO INTEGRAL, O
preferencialmente no Ensino Médio de tempo integral. PL NÃO ESTARIA TENTANDO APROXIMAR UMA PARTE DO ENSINO MÉDIO
Isso cria uma segmentação e exclusão de todos os BRASILEIRO DA EXPERIÊNCIA EXITOSA DOS INSTITUTOS FEDERAIS?
jovens que trabalham, que talvez sejam aqueles que
Não sei se é possível fazer essa afirmação. Porque os Institutos Federais não
mais precisam da Educação Profissional técnica. Nós
têm só o Ensino Médio integrado com jornada integral, têm também com
temos no Brasil em torno de 2 milhões de jovens de 15 a
quatro anos de duração. Não necessariamente o Ensino Médio integrado
17 anos que estudam e trabalham. Como é que eles vão
parar de trabalhar para ficar oito horas na escola para profissional de qualidade precisa ser em jornada completa de sete horas. Eu
fazer um curso técnico? Lamentavelmente, o PL 5.230 não diria que isso aproxima dos Institutos pela seguinte razão: enquanto
elitiza a Educação Profissional. as redes estaduais possuem um gasto aluno/ano, no Ensino Médio, em
torno de 3 mil dólares americanos, nos Institutos Federais esse custo é de
9 mil dólares, em média. Isso significa o seguinte: as condições de oferta
MAS O PROJETO ATUAL DO GOVERNO PARECE dos Institutos Federais são muito superiores. Tem professor dedicado a
CONDICIONAR A OFERTA DESSES CURSOS FIC, DE um único Instituto, que faz pesquisa, tem tempo para atender estudante, a
QUALIFICAÇÃO, À EXISTÊNCIA DE “CONTINUIDADE estrutura física é muito melhor do que de qualquer rede estadual do país...
E COESÃO” ENTRE ELES, COMO ESTABELECE O Por isso eu insisto que é importante a discussão curricular, é importante
PARÁGRAFO 7º DO ARTIGO 36. ISSO É UM AVANÇO?
pensar o formato pedagógico, eu não estou menosprezando, mas é
De fato, a crítica que a gente fazia é que era um ‘vale preciso ir além. Não é suficiente ampliar para o Ensino Médio de tempo
tudo’ nesses cursos FIC, sem qualquer unidade. integral para aproximar dos Institutos Federais. Falta muito investimento,
Então, a ideia de garantir alguma coesão, que sejam professor, estrutura física adequada. Aí nós poderíamos dizer que, de
na mesma área, por exemplo, pode ser um avanço, fato, a gente estaria generalizando, replicando os Institutos Federais que,
mas eu considero um equívoco permitir os cursos sim, seria adequado, e é viável. O que falta é investimento, priorização,
FIC. É um prejuízo para os estudantes, que não inclusive na relação entre o governo federal e os entes federados, para que
terão acesso aos conhecimentos da ciência básica, se generalize o sistema de Ensino Médio de maior qualidade.
farão esses cursos para concluir carga horária
mas, ao fim e ao cabo, sairão sem um certificado de
habilitação profissional. É uma forma precarizada COMO VOCÊ JÁ COMENTOU, O PL 5.230 PRIORIZA QUE O ENSINO MÉDIO
de Educação Profissional. COM CURSO TÉCNICO SE DÊ NO FORMATO DE TEMPO INTEGRAL AGORA,
MAS O TEXTO VAI ALÉM E APRESENTA ISSO COMO UMA CONDIÇÃO PARA
A OFERTA A PARTIR DE 2026. O GOVERNO FEDERAL ACABOU DE LANÇAR
UM DOS ARGUMENTOS DE ALGUNS GESTORES PARA UM PROGRAMA DE ESCOLA EM TEMPO INTEGRAL, MAS HÁ DÚVIDAS SE
DEFENDER A OFERTA DE CURSOS FIC, ALÉM DA FALTA DE O NÚMERO DE VAGAS PODE PROMOVER UM AVANÇO SIGNIFICATIVO. É
ESTRUTURA, ERA DE QUE UM ALUNO QUE COMEÇA UM CURSO POSSÍVEL SUPOR QUE EM 2026 NÓS TEREMOS ESCOLAS DE TEMPO INTEGRAL
TÉCNICO NUMA ESCOLA, SE SAIR, NÃO TERÁ COMO CONTINUÁ- SUFICIENTES DE MODO A NÃO LIMITAR O ACESSO AO ENSINO MÉDIO COM
LO EM OUTRA. ESSA É UMA REALIDADE RELEVANTE? EDUCAÇÃO PROFISSIONAL DE NÍVEL TÉCNICO?
A ideia dos cursos FIC [como forma de oferta Duvido muito. Em 2014, o atual Plano Nacional de Educação
da formação profissional nos percursos de estabelecia que em 2024 nós deveríamos ter 50% de escolas e 25%
aprofundamento do currículo do Ensino Médio] tem das matrículas em tempo integral. Nós tivemos dez anos para chegar
duas explicações. De fato, quase todos os estados que perto disso e não chegamos. Não é possível imaginar que em dois anos
a gente analisou colocam a opção de curso FIC e claro isso se resolva. Isso é um aspecto. Outro aspecto diz respeito à própria
que isso vai ser justificado pela Secretaria [de Educação] ideia de jornada em tempo integral para a juventude. Quem estuda
pela impossibilidade de ter na escola uma habilitação juventude de escola pública ouve desses jovens o seu desinteresse ou
profissional. Porque como é que você, do nada, cria a sua não motivação em ficar sete, oito horas na escola. Porque eles
um itinerário sem ter professor, sem ter estágio, sem pensam também em outras coisas para suas vidas. E um exemplo
27
concreto em relação a isso é que quando foi criado o Novo Ensino referência da Conae, tem coisas pertinentes, mas
Médio, a Medida Provisória 746 criou aquele programa Ensino Médio vamos ter que lutar para retirar esses elementos
Integral de Tempo Integral, mas as pesquisas que eu acompanhei, complicados que ainda estão lá, atinentes ao
sendo banca, por exemplo, mostram que os jovens saem dessas escolas chamado Novo Ensino Médio. Várias coisas
e vão para as de turno parcial. precisarão entrar em pauta.
O estado de São Paulo, só para dar um exemplo, para implantar o
tempo integral, criou um turno que vai das 12h às 21h, porque não há
escola em número suficiente para isso. Montam-se discursos para sair
na imprensa e o de agora é o da escola de tempo integral no Brasil. Só
que quando você pega os dados do censo escolar, vê a inadequação
desse discurso porque as nossas escolas funcionam em três turnos.
SUBSTITUIR CONHECIMENTO DA
Tem que olhar para isso com o maior cuidado: Ensino Médio em tempo ARTE, DA CIÊNCIA, POR CABELO E
integral para aqueles que o desejarem, para as redes e escolas que
tiverem condições e não essa ideia que muitas vezes é passada de que MAQUIAGEM COMO DISCIPLINA
se vai fazer o tempo integral para melhorar o desempenho nas provas
e, portanto, o que vai se dar é mais português e matemática. Não é
ELETIVA É VERGONHOSO”
essa a concepção que nos sustenta. A Educação de tempo integral para
a juventude precisaria oferecer esporte, aula de música, aula de arte, AINDA QUE DE FORMA INCOMPLETA, AS REDES ESTADUAIS
das tecnologias. Nossas escolas não estão preparadas para isso. Temos DE EDUCAÇÃO JÁ COMEÇARAM A IMPLANTAR O NOVO
ENSINO MÉDIO. SEJA PELA REVOGAÇÃO, SEJA PELA REVISÃO
que avançar em relação à realidade, mas também não podemos propor
PROPOSTA NO PL 5.230, QUAL O IMPACTO DE SE MUDAR TUDO
coisas que são inexequíveis, como tem sido feito com o Novo Ensino
DE NOVO NO MEIO DO CAMINHO, TANTO PARA OS GESTORES
Médio e agora com o programa de Escola em Tempo Integral. COMO PARA OS PROFISSIONAIS DE EDUCAÇÃO E ESTUDANTES?
Lamentavelmente, nós temos uma dívida histórica,
O PL 5.230 ESTABELECE QUE TODA FORMAÇÃO GERAL BÁSICA DEVE SER cultural, ética e moral com essa juventude que está
PRESENCIAL MAS NÃO FALA NADA SOBRE OS PERCURSOS DE APROFUNDAMENTO. no Ensino Médio hoje. O Brasil tem. Porque nós
SUBENTENDE-SE, ENTÃO, QUE TODA ESSA PARTE PODE SER OFERTADA COMO EAD? sonegamos a esses jovens o direito, seja de se preparar
Sim, inclusive se forem 600 horas de formação profissional, podem ser para uma vida profissional já no nível médio, seja de
todas à distância. Porque, como o texto diz explicitamente que uma ter as mínimas condições para enfrentar uma prova
parte precisa ser presencial, está dizendo que a outra não precisa. como a do Enem [Exame Nacional do Ensino Médio]
deste ano. Temos que reconhecer isso porque foi um
O MEC TEM CITADO A CONSULTA PÚBLICA SOBRE A REFORMA DO ENSINO completo desastre. Substituir conhecimento da arte,
MÉDIO COMO O PONTO DE PARTIDA PARA AS MUDANÇAS QUE PROPÕE. MAS da ciência, por cabelo e maquiagem como disciplina
O PL 5.230 NÃO REPRODUZ EXATAMENTE ESSE RESULTADO. A CONSULTA eletiva é vergonhoso. O Estado brasileiro precisa pedir
NÃO CONDENOU, POR EXEMPLO, QUE SE AUTORIZASSEM PROFESSORES perdão a esses jovens. Como professora, eu tenho
PELO NOTÓRIO SABER E O PRÓPRIO MEC, QUANDO SE POSICIONOU APÓS O vergonha do que nós fizemos com esses meninos e
RESULTADO, NÃO PROPÔS MUDAR ESSE PONTO. MAS O PROJETO ENVIADO AO meninas. Eles passaram por isso, não temos mais o
CONGRESSO AGORA NÃO AUTORIZA. A QUE SE DEVE ESSA INFLEXÃO DO MEC que fazer. Temos que pensar nos próximos e tentar
NA DIREÇÃO DAS REIVINDICAÇÕES DE MOVIMENTOS SOCIAIS DA EDUCAÇÃO? consertar o erro o mais rapidamente possível. Oitenta
Esse aspecto fica dúbio porque no texto complementar que e cinco porcento da matrícula de Ensino Médio no
acompanha o PL, que é uma justificativa ou exposição de motivos, Brasil é na rede pública estadual.
fala-se em regulamentar em caráter excepcional o notório saber, como Agora, com o que foi gasto, por exemplo, com
eu comentei. Mas, de fato, em 7 de agosto, quando o MEC apresentou assessoria do Instituto Reúna para criar essas
o que chamou de resultados da consulta pública, mas já como uma pseudoquinquilarias de currículo, eu, de fato, não
proposta, ele não menciona isso. Nos webinários e no relatório dos estou preocupada. Porque não é esse gasto que deve
seminários que a Anped [Associação Nacional de Pós-Graduação e justificar que permaneça como está. A prioridade
Pesquisa em Educação] realizou com os pesquisadores e entregou ao é repensar, reconhecer os equívocos, refazer o
governo é condenado o notório saber. E provavelmente na hora de rumo, mudar a lei e pensar uma política séria de
elaborar o Projeto de Lei eles incorporaram isso porque, de fato, há permanência estudantil e de Ensino Médio de
uma pressão muito grande daqueles que estudam trabalho docente qualidade. Com o que as redes estaduais realmente
e dos sindicatos pela revogação da BNC-Formação [documento gastaram? Com assessoria técnica para fundação
orientador da Formação Inicial e Continuada de Professores] e para privada. Arquem com o ônus do que fizeram, foi
acabar com o notório saber. opção. O governo federal gastou num Programa
Nacional de Livro Didático equivocadíssimo.
VAI ACONTECER UMA CONFERÊNCIA NACIONAL DE EDUCAÇÃO (CONAE) Arque com o ônus. Retome o rumo. Os cursos de
EXTRAORDINÁRIA EM JANEIRO DE 2024, COM A TAREFA PRINCIPAL DE formação para professores que foram dados por
DISCUTIR O NOVO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (PNE). SE O PROJETO esses institutos, cursinhos à distância, de 12 ou 20
DE LEI 5.230 FOR APROVADO, HÁ ALGO SOBRE ISSO QUE PRECISE SER horas, verdadeiros receituários de como abrir mão
DISCUTIDO PARA, POR EXEMPLO, SER INCLUÍDO NO NOVO PNE, DE MODO A das suas disciplinas e dos seus conhecimentos para
GARANTIR UM RESULTADO MELHOR? dar aula dessas quinquilharias, põe na conta do
Incluído ou retirado, né? Por exemplo, precisa retirar a BNCC, que é do prejuízo. Mas nenhum prejuízo é maior do que o
atual PNE. O Brasil nunca teve essa coisa de Base Nacional Curricular que nós fizemos com essa moçada. É nessa conta
tão prescritiva. Isso foi cria do PNE 2014-2024. No documento de que eu penso. Que se interrompa a sangria.
28 EDUCAÇÃO INTEGRAL
28

Recuperar MARCELO CAMARGO / AGÊNCIA BRASIL

o tempo
perdido
Programa Escola em
Tempo Integral busca
melhorar índices do
atual Plano Nacional
de Educação

PAULO SCHUELER

A
meta 6 do atual Plano Nacional de Educação (PNE, Lei nº 13.005/2014) de- da Educação Nacional] e nas Di-
veria ser cumprida até 2024: ofertar educação em tempo integral em 50% retrizes Curriculares Nacionais
das escolas públicas para atender 25% dos alunos da educação básica. A para a Educação Básica. A ela-
realidade demonstrada no 4º Ciclo de Monitoramento das Metas PNE, de boração da política compete ao
2022, era outra: o percentual de matrículas em tempo integral na rede pública caiu de Executivo, seja ele municipal ou
17,6% para 15,1% entre 2014 e 2021, e as escolas de tempo integral eram apenas 22,4% estadual”, explica Franzim, que
da rede. Para recuperar o tempo – e a meta – perdido, o Ministério da Educação (MEC) completa: “A melhoria das polí-
lançou, pela Lei 14.640/2023, o Programa Escola em Tempo Integral. ticas educacionais é atrelada e
O ensino em tempo integral melhora o desempenho escolar entre os mais pobres, a respaldada legalmente pela par-
permanência de crianças e adolescentes na escola e a taxa de conclusão de escolaridade ticipação social, como a partici-
entre grupos urbanos, segundo o estudo Impactos econômicos de médio e longo prazo pação de conselhos. Há municí-
de uma educação integral, de Ricardo Paes de Barros, Laura Muller Machado e Laura pios com conselhos de educação
Almeida Ramos de Abreu, cujos resultados são usados pelo MEC. O trabalho também que formularam política para o
sugere efeitos econômicos e retorno social da educação em tempo integral de seis vezes ensino em tempo integral e ou-
o seu custo, além do benefício para cada jovem que teve acesso à educação integral de tros não. O país precisa avançar
2,7 vezes o seu custo. no sentido da participação social
Para a coordenadora de Educação Integral e Tempo Integral da Secretaria de Educação na elaboração das políticas”.
Básica (SEB) do MEC, Raquel Franzim, outros impactos positivos ainda não estão consoli- O presidente da União Nacio-
dados na literatura. “Temos uma grande quantidade de famílias monoparentais no Brasil, nal dos Dirigentes Municipais de
especialmente na primeira infância. São mulheres que, na maioria das vezes, são líderes Educação (Undime), Alessio Cos-
de suas famílias, e a política educacional pode contribuir para o fortalecimento dos direi- ta Lima, afirma ter mobilizado
tos das mães trabalhadoras. A escola em tempo integral é fundamental também nessa os gestores municipais e acredita
perspectiva de promover a emancipação e a renda delas”, ressalta Franzim. que a criação de um documento
nacional, norteador da política,
Construção da política e participação social ajudará a mudar o cenário. “Mo-
bilizamos nossas 26 seccionais
Inexiste uma Política Nacional com diretrizes para essa modalidade de ensino. Para para a necessidade de o municí-
lançar o programa, o MEC organizou um ciclo de seminários nas cinco regiões brasilei- pio compartilhar com o MEC sua
ras que resultaria em documento nacional norteador dessa política. O desafio, porém, política de educação em tempo in-
também é local: levantamento do ministério divulgado em 23 de outubro atestou que tegral, com parecer submetido ao
apenas 19% das redes que pactuaram metas com o Programa possuem política própria Conselho Municipal de Educação,
de educação em tempo integral – levando a Pasta flexibilizar tal exigência como crité- mas inexiste política nacional a
rio de participação. orientar estados e municípios. Soa
A construção dessas políticas é importante pois não basta ampliar matrículas em contraditório esperar que os mu-
tempo integral, há necessidade de uma perspectiva educacional elaborada pelo gestor nicípios já tenham uma política
em diálogo com sua comunidade. “Não é só ter mais tempo na escola, é ter mais tempo elaborada”, argumenta.
para determinado desenvolvimento e forma de se aprender, a da educação integral. Já para o presidente do Con-
Isso está previsto na Constituição Federal, depois na LDB [Lei de Diretrizes e Bases selho Nacional de Secretários de
29

Educação (Consed), Vitor de Angelo, tal inexistên- materializa na realidade local. “Precisamos ter um currículo com-
cia não impacta nas políticas das redes estaduais, prometido com as características socioambientais dos territórios. No
responsáveis principalmente pelo Ensino Médio. Amazonas há centenas de povos indígenas. Que currículo é esse?”,
“Não existe obrigatoriedade de que as redes sigam questiona, ressaltando que, nos seminários, o princípio do multicul-
o mesmo modelo e nem seria acertado pensar em turalismo foi mencionado, especialmente no Norte e Centro-Oeste.
um só modelo para o Brasil”, opina.
Os presidentes do Consed e da Undime concordam, Vagas aquém da necessidade
entretanto, que a inexistência de um Sistema Nacional
de Educação , como a Saúde possui A Confederação Nacional de Municípios (CNM) divulgou nota
o SUS, dificulta a articulação entre em agosto afirmando que os mesmos possuem 107,1 mil escolas de
Apresentado
projetos político-pedagógicos de en- em 2019, o educação básica, das quais 55,8 mil (52,1%) já oferecem matrículas em
Projeto de Lei tempo integral a mais de 4,2 milhões de alunos. As creches são o seg-
sino em tempo integral. Complementar mento com mais matrículas em jornada integral, 1,4 milhão de alu-
235 propôs,
Que currículo? finalmente, nos (56,7%). Já sobre o Ensino Médio, segundo o Censo escolar do Ins-
a instituição tituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
Outra discussão necessária do Sistema (Inep), 20,4% dos estudantes da rede pública estavam matriculados
Nacional de
é o que oferecer aos estudantes Educação. Até em tempo integral em 2022. Na rede privada, o número era de 9,1%.
nesse horário estendido. “Nesse o fechamento O presidente da Undime considera o número de vagas financiadas
momento, o programa se esfor- desta edição, pelo Programa insuficientes. “A alguns municípios foram ofertadas cer-
a proposição
çou na viabilização financeira da estava sujeita ca de 20 novas matrículas para tempo integral, o que dificulta o inves-
oferta de jornada ampliada. Mas, à apreciação timento local em adaptações de infraestrutura, como ofertar banheiros
claro, o resultado em Educação do plenário da que permitam às crianças tomarem banho ao longo do dia e a abertura
Câmara dos
virá pelo trabalho de natureza Deputados. de novas salas de aula, já que a infraestrutura atual atende a turmas ma-
pedagógica a ser feito nessa jor- tutinas e vespertinas. Para estes, a oferta foi irrisória”, avalia Costa Lima.
nada ampliada”, reconhece o presidente do Consed. O Programa fomenta a oferta de um milhão de matrículas de tempo inte-
Para o presidente da Undime, o ensino de tem- gral no período 2023-2024 e, como segundo passo, promete alcançar um
po integral precisa solucionar defasagens crônicas total de 3,2 milhões de matrículas nessa modalidade até 2026.
de conteúdo e, ao mesmo tempo, promover o de- O MEC reconhece a necessidade de elevar a oferta para além do
senvolvimento psíquico e afetivo. “As avaliações estabelecido no Programa e afirma que a distribuição de vagas foi
externas indicam que estudantes do quinto, nono baseada em dados demográficos. “Temos 178 mil escolas de educação
e terceiro ano do Ensino Médio terminam suas sé- básica que atendem 48 milhões de estudantes. Alguns estados popu-
ries com até quatro anos de defasagem no conheci- losos receberam 16 mil matrículas e [houve] municípios para os quais
mento. Nossa escola de tempo parcial não está sen- ofertamos 20 vagas, e teriam demanda para um número maior. A
do capaz de fazer com que o aluno aprenda o que longo prazo, nosso compromisso é ampliar a modalidade, como prevê
deveria”, avalia. E propõe: “O modelo integral pre- a Constituição de 1988 e a LDB de 1996. Reconhecemos que o Bra-
cisa fortalecer o domínio da aprendizagem cogni- sil tem demanda represada de ampliação das matrículas em tempo
tiva sem preencher toda a carga horária, pois isso integral. Estamos atrás de países da América Latina, como Uruguai,
adoeceria alunos e professores. O currículo precisa Chile, Colômbia, México e Costa Rica, México, que também foram co-
contemplar outras dimensões e habilidades, ar- lônias, também receberam modelo de educação de poucas horas mas
tísticas e culturais, que estimulem a criatividade, que conseguiram fazer as suas jornadas escolares serem completas.
como indicam os Objetivos do Desenvolvimento Nesse momento histórico, essa é uma reparação muito importante
Sustentável, além de ofertar práticas esportivas de ser feita com os bebês, crianças, adolescentes e jovens brasileiros”,
que favoreçam a interação e o trabalho em equipe”. ressalta Franzim.
Considerar realidades locais foi um dos as- Até 15 de outubro, data inicial estabelecida pelo MEC para pac-
pectos apontados no Ciclo de Seminários do MEC. tuação com as redes, 84% dos municípios – incluindo todas as capitais
“[Essa foi] uma fala muito forte na região Norte, – e todos os estados haviam elevado a oferta de matrículas em tempo
que tem estados cujos estudantes se deslocam para integral – isso porque o Programa autoriza uso dos recursos já para
acessar a escola por meio de rios. No Amazonas, a ampliações feitas em 2023, além das que virão em 2024. Das pouco
atual estiagem impede os estudantes de acessarem mais de 1 milhão de matrículas disponibilizadas pelo MEC, 83,4% es-
a escola. O ano letivo foi interrompido, inclusive. O tavam pactuadas, representando 87,9% do fomento à disposição de
currículo da Educação em tempo integral precisa estados e municípios para este primeiro ciclo de pactuação.
dialogar com os desafios socioambientais dessa re- Segundo o presidente da Undime, o não preenchimento da totali-
gião”, defende a coordenadora do MEC, para quem, dade de vagas financiadas é demonstração de que, para alguns muni-
embora todos estudantes devam aprender o tema cípios, elas eram tão poucas que levaram o secretário de educação a
da emergência climática, por tratar-se de questão preferir não entrar no Programa. “Ouvi de gestores que não compen-
planetária, pedagogicamente este problema se sava, por toda a burocracia a se cumprir”, conta.
30
A saída encontrada pelo MEC foi redistribuir o saldo Educação Profissional no PL do Ensino Médio
de matrículas não pactuadas para as secretarias que de-
monstrassem interesse em aumentar a oferta até o dia 31 Em entrevista à edição passada da Poli (nº 91), o secretário de Educação
de outubro quando 4.716 municípios finalizaram a pac- Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação, Getúlio Marques,
tuação de 98,5% das 1.000.393 matrículas ofertadas, ao afirmou como “prioridade” que “a parte que seria acrescentada” para pro-
valor de R$ 4,1 bilhões (98,5% dos recursos disponibiliza- mover o ensino em tempo integral no caso do Ensino Médio consistisse na
dos). “Nesse primeiro ano, o pactuado com estados e mu- oferta de ensino profissional. Também a coordenadora de Educação Inte-
nicípios prevê o reconhecimento de matrículas criadas gral e Tempo Integral da Secretaria de Educação Básica (SEB) do MEC, Ra-
em 2023 ou novas matrículas em 2024. Daqui em diante quel Franzim, defende que a Educação Profissional e Técnica é “fundamen-
isso não ocorrerá mais. Sempre fomentaremos vagas a tal dentro de uma concepção integral do ensino”. “Ela toma uma proporção
serem criadas para o ano seguinte”, descreve a coordena- maior no Ensino Médio, mas pode já estar presente nos anos finais do ensi-
dora do MEC, para quem os números do primeiro ciclo de no fundamental, porque a LDB estabelece que a Educação é para desenvol-
pactuação são “muito significativos”. “Lidamos com um vimento integral, formação para a cidadania e um diálogo com o mundo
‘problema bom’, o de ter pouca matrícula para ser redis- do trabalho. O trabalho faz parte da dimensão humana. Pensar sobre ele,
tribuída. A demanda por mais oferta foi muita”. entender as transformações do mundo do trabalho e como elas impactam
nas nossas vidas é um componente curricular muito importante para a
Para começar, R$ 4 bilhões formação desse sujeito pleno”, avalia. O Programa, no entanto, não possui
diretriz específica sobre destinação de carga horária para esse objetivo. Na
Para o primeiro ciclo de pactuação, o MEC desti-
verdade, a sugestão de que a expansão da carga horária esteja articulada
nou R$ 4 bilhões. Segundo o presidente do Consed, o
com a formação profissional e técnica está no Projeto de Lei 5.230/23, que o
governo federal ofertou “orçamento condizente” com
MEC propôs para revogar parte do Novo Ensino Médio. Isso porque a for-
o esforço de atingir a meta 6 do PNE 2014-2024. “O
mação profissional é uma das opções de itinerário formativo que a Refor-
programa aponta para a direção correta na medida
ma instituiu para a ampliação da carga horária do Ensino Médio.
em que procura induzir a oferta de novas matrícu-
Representante dos gestores estaduais de Educação, responsáveis em
las em jornada ampliada e o chamamento permitiu
sua maioria pela oferta do Ensino Médio no Brasil, de Angelo prefere não
inclusão das vagas já abertas em 2023 e que pude-
antecipar qualquer definição sobre o lugar do Ensino Profissional e Téc-
ram entrar no cômputo, além da oferta prevista para
nico na implementação no interior do Programa Escola em Tempo Inte-
2024. Metade desse recurso vem ainda em 2023, jus-
gral. “Ter ou não ter EPT [Educação Profissional e Tecnológica] não é uma
tamente para a organização dessa oferta a partir do
questão exclusiva de ser uma escola em tempo integral, porque o itinerário
próximo ano letivo, quando então esta rede, no caso,
profissional técnico é, mesmo agora com o PL enviado ao Congresso Nacio-
receberia o restante do valor do fomento”, explica.
nal, um dos itinerários do novo ensino médio. Portanto, vale tanto para a
E o que pode ser pago com esse dinheiro? De acor-
escola de tempo integral quanto para a escola de tempo parcial”, explica.
do com Franzim, “é para a manutenção e o desenvol-
Ao mesmo tempo, ele chama atenção para um aspecto limitador do
vimento de ensino, exceto folha de pagamento de ser-
PL enviado pelo governo federal ao Congresso que, se não for modificado
vidores e alimentação escolar. Para todos os demais
na tramitação, poderá ser solucionado com a oferta de Ensino Médio em
aspectos que o artigo 70 da LDB prevê, seja aperfei-
tempo integral. “O projeto de lei estabelece que a formação geral básica
çoamento docente, formação, aquisição de material
passará de 1.800 para 2.400 horas, e que quando houver uma oferta de
escolar, obras pequenas, reformas, transporte escolar,
EPT elas passarão a ser de 2.100 horas, num total de 3.000. Então, só ca-
pode usar recursos do fomento”.
bem, presencialmente, cursos de 800 horas. Para os cursos de 1.000 ou
O aumento dos gastos correntes nos orçamentos
1.200 horas, será preciso lançar mão da educação à distância”, alerta. Para
anuais de estados e municípios, necessário para man-
o presidente do Consed, “a ampliação do tempo integral tem o propósito de
ter a rotina da ampliação do horário e os custos da
permitir que cursos maiores de EPT sejam presencialmente ofertados em
expansão da oferta a longo prazo do ensino de tempo
escolas de ensino médio, o que só seria possível no caso desses cursos com
integral no Brasil, preocupa os presidentes do Consed
maior jornada, em escolas também de jornada ampliada”.
e da Undime. “É possível que ao longo do tempo a gen-
te encontre dificuldades de natureza logística para o
cumprimento das metas do Programa. Se nesse pri- Já Costa Lima destaca a neces- muito insignificante e não cobre
meiro momento o objetivo de novas matrículas será sidade de atualização dos valores o necessário para fornecimento
alcançado, para os anos seguintes é preciso averiguar ofertados para a merenda escolar, desse lanche. O município já entra
e observar se as redes terão condições de abrir novas que conta com recursos da União, com contrapartida, mas no ensino
escolas, porque o fomento é uma parte importante mas através de outra iniciativa, o de tempo integral o aluno passa a
para esse incentivo, mas não é suficiente para garan- Programa Nacional de Alimenta- ter no mínimo três alimentações
tir as condições da rede física, uma vez que a jornada ção Escolar. “A criança que estuda por dia e o dinheiro para financia-
ampliada pode exigir a ampliação também das esco- de forma parcial faz um lanche mento disso não pode legalmente
las ou mesmo a construção de novas escolas. Os re- na escola. Muito embora o go- ser proveniente dos 25% de gastos
cursos atuais, embora importantes, são insuficientes verno federal tenha reajustado o estabelecidos constitucionalmen-
para essa finalidade”, avalia de Angelo. valor da merenda escolar, ainda é te em Educação”, alerta.
DICIONÁRIO 31

Interseccionalidade
................................................................

A
cobrança pela diversi- ta refletir não só sobre a aflição tir de um processo judicial movido
dade no ambiente de sentida por essas mulheres, como por trabalhadoras negras contra a
trabalho, nas vagas no também sobre aquela imposta ao General Motors, em que acusavam
Ensino Superior, na re- homem negro visto como perigo- a fabricante de automóveis de dis-
presentação política no Congres- so. A pesquisadora argumenta ser criminação. Elas perderam a causa
so, além da equidade no acesso à equivocado advogar pela centra- com o argumento jurídico de que
Saúde e à Segurança Pública tem lidade do racismo ou do sexismo o fato de a empresa empregar ho-
crescido nas últimas décadas. E, uma vez que “ambos, adoecedo- mens negros e mulheres brancas
para explicar as dificuldades de res e tipificados, são cruzados por afastava a acusação de racismo e
acesso a direitos que deveriam ser pontos de vistas em que se inter- de discriminação por gênero. O
comuns a todos, o termo intersec- ceptam as avenidas identitárias”. que a decisão não levou em conta –
cionalidade tem ganhado cada vez Utilizar esse conceito na prá- e que o conceito de intersecciona-
mais espaço. tica não é algo simples. A fala é lidade ajudaria a perceber – é que
O verbete desta edição da Poli da professora-pesquisadora da a divisão se dava entre homens
parte justamente da ideia de que é Escola Politécnica de Saúde Joa- negros trabalhando na linha de
preciso analisar situações de opres- quim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), montagem e mulheres brancas
são a partir de mais de um marca- Valéria Carvalho, amparada na atuando nos cargos de secreta-
dor social, ou seja, que, em geral, leitura de Patrícia Hill Collins, riado. A conclusão de Crenshaw
elas não podem ser explicadas a pesquisadora estadunidense que é a de que não é possível analisar
partir de um único elemento. Para tem avançado no desenvolvi- opressões sem promover o cruza-
exemplificar o conceito, a metáfora mento do conceito. “Não basta mento entre elas.
comumente utilizada é a de uma dizer que é interseccional, é pre- Carla Akotinere, no entanto,
encruzilhada, em que cada avenida ciso analisar a realidade concre- defende em seu livro que, apesar da
significa uma opressão: por exem- ta, as especificidades, como essas importância do artigo de Kimber-
plo, gênero, raça e classe. opressões se materializam”, diz, lé, muitos movimentos e autores,
No livro que ajudou a difun- ressaltando que essa ênfase em principalmente mulheres do sul
dir essa ideia no Brasil – intitula- diferentes marcadores sociais é global, fizeram análises anteriores
do ‘O que é interseccionalidade?’ necessária tanto para estudos que tratavam da integração de di-
–, a pesquisadora e ativista Carla acadêmicos quanto para a ação ferentes marcadores sociais. Entre
Akotirene explica que a proposta de movimentos sociais. “Não há os exemplos, cita Lélia Gonzales,
é fazer desse conceito uma ferra- como desvincular a intersecciona- que no livro ‘Racismo e sexismo
menta para se compreender a “in- lidade dessa perspectiva teórico- na cultura brasileira’, publicado em
separabilidade estrutural” entre prática, porque ela nasce nesse 1984, apresenta o conceito de ame-
opressões relacionadas ao racismo, enfrentamento. Ao mesmo tempo fricanidade e aponta o colonialismo
ao capitalismo, ao patriarcado, à que funciona como ferramenta que precisa ser incluído na análise
orientação sexual e à identidade para descrever as relações sociais, que hoje se chama de interseccio-
de gênero e derivações dessas re- atua na perspectiva de destruição nal, embora ela não tenha feito uso
lações. Apesar de partir com fre- dessas várias violências”, reforça. do termo.
quência do ponto de vista da mu- Akotirene faz menção a um
lher negra, Akotirene reforça que Origem texto ainda mais antigo, do século
não há limites de avenidas para 19, que também não usa a palavra
essa encruzilhada e tampouco é O artigo ‘Desmarginalizando intersecção, mas é considerado im-
possível realizar um somatório de a intersecção de raça e sexo: uma portante para a compreensão dessa
opressões, ao contrário, é preciso crítica feminista negra da dou- relação entre diferentes opressões.
sempre analisar todos os contex- trina antidiscriminação, teoria Trata-se do discurso feito pela abo-
tos envolvidos. feminista e política antirracista’, licionista Sojourner Truth em 1851
Para exemplificar, a autora publicado em 1989 pela pesqui- em uma convenção de direitos das
cita em seu livro o medo sentido sadora estadunidense Kimberlé mulheres em Ohio, nos Estados
por mulheres brancas ao pas- Crenshaw, é comumente citado Unidos. Em sua fala, Sojourner, que
sarem por áreas periféricas em como marco na criação do conceito havia sido escravizada, compara a
determinados horários, em geral por usar pela primeira vez a pala- experiência das mulheres negras
habitadas por uma população de vra “intersecção”. O texto discute a com as aspirações de feministas
maioria negra. Nesse caso, impor- ideia de interseccionalidade a par- brancas, que reivindicavam ques-
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tões como a entrada no mercado de existência de demandas variadas. Freitas, dirigente nacional do se-
trabalho e não serem entendidas Em um exemplo mais recente, tor de gênero do Movimento.
como seres frágeis e apenas desti- essa compreensão foi percebida Ela relata que os debates in-
nados ao casamento. Em seu dis- durante as manifestações contra terseccionais ganharam corpo no
curso, ela procurou mostrar que as o assassinato de George Floyd, um MST a partir dos anos 2000 com a
pautas levantadas por um segmen- homem negro, pela polícia dos Es- temática de gênero, apoiados nas
to de mulheres brancas não são tados Unidos em 2020. Nesses atos, leituras da socióloga marxista He-
comuns a todas as mulheres. “Nin- manifestantes brancos fizeram leieth Saffioti, que trabalha com a
guém jamais me ajudou a subir em cordões de segurança para prote- ideia de que existem três contra-
carruagens, ou a saltar sobre poças ger os manifestantes negros, diante dições principais no sistema capi-
de lama, e nunca me ofereceram do entendimento do caráter racista talista: raça, classe e gênero. “Os
melhor lugar algum! E não sou uma das ações policiais. elementos que serão observados
mulher? Olhem para mim? Olhem Em outras palavras, o texto de irão variar a partir da inserção
para meus braços! Eu arei e plantei, Sojouner explicita situações que do indivíduo. No nosso caso, par-
e juntei a colheita nos celeiros, e ho- a interseccionalidade se propõe a timos do feminismo camponês
mem algum poderia estar à minha resolver: a superinclusão e a su- popular, lembrando que a maioria
frente. E não sou uma mulher?”, binclusão. No primeiro caso, um dos integrantes do MST é negra”,
questionou. A professora-pesquisa- subgrupo impõe a discriminação ilustra. No entanto, diz, mais do
dora da EPSJV/Fiocruz pontua que vivida como uma situação que que a preocupação teórica, essas
o discurso chama atenção para o atinge a todos e, no segundo, uma discussões têm a função de au-
risco da universalização de deman- particularidade vivida por um xiliar a sistematização das lutas
das específicas sem se atentar que subgrupo não é considerada em cotidianas. Ela lembra ainda que
muitas vezes elas têm, por exemplo, meio a outras diferenças. “Em resu- os debates no MST não foram iso-
um corte de classe ou de raça. “Pau- mo, nas abordagens subinclusivas lados e ocorreram como reflexo
tas dos movimentos feministas he- da discriminação, a diferença torna de discussões que estavam sendo
gemônicos, em geral liderados por invisível um conjunto de proble- realizadas nos movimentos inte-
mulheres brancas de classe média, mas; enquanto que, em abordagens grantes da Via Campesina.
refletiam os anseios de seus lugares superinclusivas, a própria diferen- Apesar de ter sido puxado pelo
sociais mas, durante muito tempo, ça é invisível”, explicou Kimberle setor de gênero, pondera Freitas,
foram entendidas como reivindica- Crenshaw no texto ‘Documento as questões interseccionais não fi-
ções que diziam respeito a todas as para o encontro de especialistas em cam restritas a um nicho. “Enten-
mulheres indistintamente”, diz. aspectos da discriminação racial demos que o setor tem a função de
Por outro lado, Carvalho ob- relativos ao gênero’. auxiliar o debate das relações hu-
serva que reconhecer elementos manas no Movimento como um
interseccionais não significa esta- Formas de uso todo e envolver o conjunto da or-
belecer hierarquias entre as pautas. ganização”, diz. Esse envolvimen-
“A questão de prioridade não está Pensar o entrelaçamento de to levou à aprovação da paridade
posta, mas é preciso reconhecer a opressões que o conceito de inter- de gênero nas instâncias de deci-
diversidade da classe trabalhadora. seccionalidade propõe a partir da são desde 2006 e tem auxiliado
No período em que Sojouner dis- prática de luta é um caminho que a desnaturalizar as tradicionais
cursa, as mulheres brancas tinham vem sendo adotado, por exemplo, divisões de trabalho, em que, por
como pauta, entre outras coisas, a pelo Movimento dos Trabalhado- exemplo, os homens ficam comu-
entrada no mercado de trabalho, res Rurais Sem Terra (MST). “A mente responsáveis pela produ-
enquanto as mulheres negras já gente costuma dizer que é fácil ção, enquanto às mulheres cabem
estavam inseridas nesse mercado diferenciar uma análise de quem funções de educação e saúde. Ou-
de forma forçada e numa situação vivencia as condições reais des- tro ponto de avanço nos últimos
de extrema violência e exploração. sas opressões daquela feita por anos esteve na criação do coletivo
Por que não podemos fortalecer quem apenas olha para essas LGBT em 2015. “Com isso, o nome
as demandas específicas de cada opressões, mesmo que as duas social e o reconhecimento dos
grupo? Eu acho que as coisas po- partam da mesma linha teóri- casais homoafetivos, fundamen-
dem ir juntas”, opina, avaliando, ca. Então, creio que uma coisa é tais para a posse do lote de terra,
no entanto, que, historicamente, a análise e outra coisa é a cons- deixam de ser considerados uma
essa união dificilmente ocorre. Em trução prática do enfrentamento particularidade dos indivíduos e
sua visão, essa dificuldade se deve a essas opressões considerando o Movimento passa a cobrar a ga-
à ausência do reconhecimento da essas interligações”, diz Lucineia rantia desses direitos”, conta.

JULIANA PASSOS
ALMANAQUE

75 anos da Neste mês de dezembro de 2023, a Declaração Universal dos Direitos


Humanos completa 75 anos. A iniciativa para a elaboração do documento
nasceu no final da Segunda Guerra Mundial (1945), quando havia uma
Declaração preocupação de não repetir os horrores trazidos pelo conflito. Traduzido
em mais de 500 idiomas, o documento declara que todos nascem

Universal “livres” e “iguais” independentemente da “raça, cor, sexo, língua, religião,


opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza,
nascimento, ou qualquer outra condição”. Direitos à educação, lazer,
dos Direitos moradia, bem-estar e saúde são expressos na Declaração, assim como à
privacidade e à propriedade.

Humanos
Passadas mais de sete décadas, como anda a promessa de promover a paz e
diminuir as desigualdades sociais?

O Relatório de 2023 da Anistia Internacional destaca alguns dados do cenário global:


Com a invasão da Ucrânia Na Cisjordânia, território da
pela Rússia, em fevereiro Palestina, foram registradas 151
de 2022, cinco milhões mortes em 2022, número recorde
de pessoas fugiram para em dez anos, em sua maioria
a Europa. decorrentes de operações militares
israelenses de busca e detenção.
Já mais recentemente, em outubro
de 2023, após um ataque do
Entre setembro de 2021 e Hamas que matou 1.200 pessoas,
maio de 2022, os Estados Israel promoveu bombardeios que,
Unidos expulsaram 25 mil até o fechamento desta edição,
haitianos e o México prendeu tinham causado 11 mil mortes.
mais de 281 mil em centros Coincidentemente, o marco
de detenção de imigrantes. original do conflito também está
completando 75 anos: foi em
1948, mesmo ano da publicação
da Declaração Universal dos
Na Etiópia, a população de
Direitos Humanos, que começou
Tigré foi isolada por dois anos
a guerra árabe-israelense, num
pelo governo federal e, após
contexto conhecido entre os
o cessar-fogo anunciado no
palestinos como Nakba, que
final de 2022, a situação é de
significa ‘catástrofe’. O resultado
extrema pobreza na região.
foi o êxodo de cerca de 700 mil
palestinos das terras em que
viviam e a ocupação de 40%
O grupo Boko Haram, com atuação na Nigéria, ampliou do território pelo Estado de
sua área de influência e provocou mais de seis mil Israel, criado também em 1948.
mortes em 2022. Já a Uganda tem sido o país receptor Embora não haja dados precisos,
de imigrantes de outros países da região fugindo de calcula-se que hoje o número
conflitos e abriga cerca de 1,5 milhão de pessoas, de palestinos em diáspora pelo
sendo 100 mil chegadas no último ano. mundo seja próximo de 7 milhões.

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