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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

FACULDADE DE PSICOLOGIA

MARIA GABRIELA SOUZA CARRIÇO


PEDRO DE OLIVEIRA ARBEX

DO NORMAL AO PATOLÓGICO:
O LIMIAR E AS CARACTERÍSTICAS DO CIÚME

Resende
2019.2
MARIA GABRIELA SOUZA CARRIÇO
PEDRO DE OLIVEIRA ARBEX

DO NORMAL AO PATOLÓGICO:
O LIMIAR E AS CARACTERÍSTICAS DO CIÚME

Trabalho de Conclusão de Curso – Artigo


Científico – apresentado à Universidade
Estácio de Sá, Curso de Psicologia, como
requisito para aprovação na disciplina de
Produção Avançada de Trabalho Acadêmico II.

Orientador: Professor Me. Antônio Carlos


Rabelo Dalbone Junior.
Co-orientadora: Professora Ma. Alcimeri Kühl
Amaral.

RESENDE
2019.2
RESUMO

O presente artigo pretende discorrer acerca do limiar entre o ciúme normal e o


patológico, assunto em voga na sociedade atual e que gera muita discussão. O
ciúme é um sentimento presente nas relações humanas, não exclusivo às relações
amorosas, no entanto, quando se torna abusivo e, por consequência, doentio, pode
levar a casos de feminicídio, violências psicológica, física e verbal. O ciúme é uma
condição emocional que está ligada diretamente à formação do indivíduo, podendo
ser retratada como normal ao mesmo. Neste estudo, sob à luz da Psicanálise,
procuramos traçar as características do ciúme para diversos teóricos através de uma
revisão bibliográfica, compreender a linha tênue que perpassa o normal e o
patológico e elucidar as consequências deste sentimento para os indivíduos,
trazendo uma reflexão acerca do tema. Diante disso, espera-se que, nas linhas que
se seguem, tenha uma contribuição para o conhecimento científico, tornando-se
relevante para futuras discussões.

Palavras-chave: ciúme normal; ciúme patológico; amor; relações; limite.

ABSTRACT

The present article intends to dissert about the border between normal and
pathological jealousy, a topic in evidence nowadays that creates a lot of discussion.
Jealousy is a peeline presente in human relationship, not exclusive to the amorous
ones. However, when it becomes abusive and, as a consequence, unhealthy, it can
lead to cases of feminicide, psychological, physical and verbal agression. Jealousy is
na emocional condition conected directly to the subject’s formation, and can be
portrayed as normal by him/herself. This study, by the lights of psychoanalysis,
attempts to delimitate the particularities of jealousy to a lot of authors, through a
bibliographic review, comprehend the tennous line that pervades the normal and
pathological and elucidate the consequences of this feeling to people, bringing a
reflexion about the theme. Despite of that, we hope that the next pages contribute to
scientific knowledge, being relevant to posterious debates and discussions.

Keywords: normal and pathological jealousy; love; relationship; limit.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO......................................................................................3

AS VÁRIAS FACES DO CIÚME...........................................................5

O ciúme é um “monstro de olhos verdes”................................................5

Ciúme Patológico.........................................................................................9

O ciúme, as relações abusivas e os crimes passionais.........................10

O limiar entre o normal e o patológico....................................................11

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................12

REFERÊNCIAS...................................................................................14
INTRODUÇÃO

Acautelai-vos senhor, do ciúme; é um monstro de olhos


verdes, que zomba do alimento de que vive. Vive feliz o
esposo que, enganado, mas ciente do que passa, não
dedica nenhum afeto a quem lhe causa o ultraje. Mas
que minutos infernais não conta quem adora e duvida,
quem suspeitas contínuas alimenta e ama deveras!
(SHAKESPEARE, 1603/2000, p.91).
Nos tempos modernos, falar de relacionamento significa discursar sobre o
ciúme, que faz parte da cultura do ser humano, e, muitas vezes, é banalizado,
permitindo brechas para relacionamentos abusivos. O ciúme, em sua forma ampla, é
uma emoção presente nas diversas relações humanas, sendo elas amorosas ou
não. Esse sentimento pode manifestar características e intensidades de uma
patologia. “O ciúme baseia-se no amor e visa à posse do objeto amado e à remoção
do rival. Pertence a uma relação triangular e, portanto, a um período da vida em que
os objetos são claramente reconhecidos e diferenciados uns dos outros” (SEGAL,
1975, p. 52).
Na literatura, existem obras que surfam nas ondas do ciúme em suas histórias
cheias de conflito, como, por exemplo, o personagem Armand de “A Dama das
Camélias” (BARONCELLI, 2011), que mergulhou no ciúme e criou fantasias que o
levaram ao descontrole. Outro personagem levado pelo ciúme é Bentinho, do
clássico “Dom Casmurro” de Machado de Assis, conduzindo a sua subjetividade ao
olhar do leitor quando o assunto é o seu ciúme (BARONCELLI, 2011). Shakespeare
escreveu sobre este sentimento em uma das suas obras mais clássicas, “Otelo”, e
utilizava de metáforas para descrever o ciúme, comparando-o a um “monstro de
olhos verdes” (BARONCELLI, 2011).
Não é só a literatura que bebe da fonte do ciúme ou do amor obsessivo. No
cinema e na televisão, grandes clássicos retrataram o tema. Uma das abordagens
mais emblemáticas e lembradas até os dias de hoje é o da telenovela “Mulheres
Apaixonadas”, exibida em 2003 pela TV Globo, onde a personagem Heloísa vivia
uma mulher enlouquecida pelo ciúme que sentia, tendo encontrado consolo e ajuda
através do Grupo MADA Brasil – Mulheres que Amam Demais Anônimas, que reúne
mulheres com o objetivo de evitar relacionamentos destrutivos. Outro exemplo mais
5

recente é o de Laerte, de “Em Família”, transmitida em 2014 pelo mesmo canal, que
fez duas mulheres por quem era apaixonado sofrer demasiadamente pelos seus
ciúmes excessivos. “Psicose”, de Alfred Hitchcock, clássico do cinema nos anos
1960, trazia para as telonas ainda em preto e branco uma relação doentia entre mãe
e filho, perpassando pelo ciúme que um sentia do outro, fugindo da discussão
comum dada ao tema, a ênfase amorosa.
Assunto em voga entre a atual geração, o ciúme ainda é, muitas vezes,
banalizado e visto como algo comum. Atentar-se aos sinais é o primeiro passo na
identificação daquilo que é ou não normal ou doentio, capaz de trazer
consequências para todos os envolvidos, sendo então um dos principais motivos às
quais essas relações tornam-se abusivas, levando a casos de feminicídio, violência
psicológica, violência física e violência verbal.
O presente artigo busca compreender e aprofundar os conhecimentos acerca
do limite entre o ciúme normal e o patológico, levando em consideração o aumento
de casos de relações abusivas, identificando os sinais e seus reflexos nas relações
interpessoais, além de incentivar a produção acadêmica sobre o tema, e como os
psicólogos podem atuar de forma ética e responsável em casos que exijam atenção.
Sendo a ciência um campo de conhecimento que tem como busca a ampliação do
saber por meio da análise do conteúdo reunido, o pesquisador tem como objetivo
agregar informações que possam ampliar a atuação do psicólogo em suas diversas
possibilidades de trabalho. Cervo e Bervian (2002, p. 10) dizem que “a ciência é
entendida como uma busca constante de explicações e de soluções, de revisão e de
reavaliação de seus resultados, apesar de sua falibilidade e de seus limites”.
Pressupor encontrar a resposta para o problema de pesquisa é o que move o
pesquisador a se engendrar por caminhos abstrusos em busca de tais explicações e
soluções. Este estudo trata-se de uma pesquisa bibliográfica, que consiste em fazer
o levantamento de referências teóricas que já foram publicadas, permitindo ao
pesquisador conhecer e analisar o que já foi estudado acerca do tema (FONSECA,
2002). “A pesquisa bibliográfica é desenvolvida a partir de material já elaborado,
constituído principalmente de livros e artigos científicos” (GIL, 2002, p. 44). Ainda
segundo Gil (2002), há uma vantagem da pesquisa bibliográfica, que é permitir que
o pesquisador enverede para um leque amplo de fenômenos sobre o tema.
Nos parágrafos que se seguem, aborda-se o ciúme desde os primórdios
às relações contemporâneas, dominadas pelas redes sociais e as novas
6

tecnologias, respaldados por textos de autores conhecidos da Psicologia, como


Freud (1856/1939), Klein (1882/1960), além de autores contemporâneos como
Pines (1945/2012) e Ramos (1963).

AS VÁRIAS FACES DO CIÚME

Etimologicamente, a palavra “ciúme” vem do latim zelumen derivada de


zelus, que significa “desejo amoroso, ciúme, emulação”. Segundo Michaelis
(1998), é um sentimento negativo provocado por receio de que alguém amado
dedique o afeto a outra pessoa. Tal conceituação pode ter também outras
facetas, que não a necessariamente negativa, como descrita pelo autor, assim
como veremos neste trabalho.
O ciúme é um tema recorrente nas discussões que envolvem os
relacionamentos, sendo eles amorosos ou não. A princípio é necessário
conceituar e contextualizar o ciúme nos dias atuais. Sabe-se que a conceituação
do tema sofreu, ao longo dos anos, alterações quanto à sua concepção. Nas
linhas que se seguem, a conceituação acerca do que vem a ser o ciúme em
suas diversas formas toma corpo para que, em seguida, inicie-se a discussão
sobre o seu limiar, ou seja, o limite entre o normal e o patológico.

O ciúme é um “monstro de olhos verdes”

O ciúme é uma emoção presente nas relações humanas, bem como


conhecida por todos, tanto nas relações adultas quanto nas relações infantis.
Esse sentimento pode manifestar características e intensidades formais de uma
patologia.
Pines (1992) diz que em algum lugar na área cinzenta entre a sanidade e
a loucura se encontra o ciúme. Reitera também que são tão naturais algumas
reações de pessoas ciumentas que quando outra não as mostra parece, de
alguma maneira, ser “não normal”, enquanto outros vão parecer tão excessivos
que não se é preciso ser especialista para saber que podem ser patológicos.
7

Ramos (2000) nos diz que existem muitas definições do ciúme, mas
existem três elementos principais que chamam a atenção. São eles, portanto,
uma reação a uma ameaça, a existência de um rival – imaginário ou real – e
uma reação cujo objetivo é eliminar quaisquer chances de perder o amor. Alguns
autores afirmam que o ciúme é um sentimento universal, experimentado quando
um relacionamento romântico está ameaçado (Clanton & Smith, 1977; Shettel-
Neuber, Bryson & Young, 1978; Pines & Aronson, 1983 e Albisetti, 1994, apud
RAMOS, 2000). No entanto, a conceituação mais tradicional é de que o ciúme é
definido como um complexo de pensamentos e emoções como consequência da
perda de um relacionamento romântico, ou motivado pela ameaça à autoestima
(White, 1981, apud RAMOS, 2000). Ainda sobre isso, Cavalcante (1997)
discursa que o ciúme não patológico, dito normal, corresponde ao desejo do
indivíduo de cuidar do relacionamento.
Freud em “Sobre Alguns Mecanismos Neuróticos no Ciúme, na Paranóia
e no Homessexualismo1” (1922/1976) diz que o ciúme, assim como o luto, é um
dos estados emocionais que pode ser considerado normal e não o possuir
significa severa repressão que vem exercer um papel maior no seu inconsciente.
Ele ainda se refere ao ciúme como em camadas ou graus de diferentes
intensidades, sendo elas o ciúme “competitivo ou normal”, “projetado” e
“delirante”.
Compreendendo o autor, pai da psicanálise, podemos dizer que o
primeiro se compõe de pesar, ocasionado pelo sofrimento de pensar na perda
do objeto amado, e da ferida narcísica, na medida em que esta é possível se
diferenciar da outra ferida. Por originar-se de uma relação fraternal entre irmãos
ou do Complexo de Édipo, sendo uma continuação das manifestações primárias
da vida afetiva infantil, esse ciúme não é racional em sua totalidade absoluta, em
outras palavras, derivado da situação real embora se possa chamá-lo de normal.
Acerca do segundo, o “ciúme projetado”, como o próprio nome diz, é
aquele em que o sujeito projeta no outro a sua própria infidelidade ou o desejo
de trair que foi recalcado e cederam à repressão. Esse ciúme que é emerso de
tal projeção tem uma natureza quase delirante; sendo, todavia, o trabalho
analítico com as fantasias do inconsciente dessa infidelidade mais ameno.

1
Termo utilizado pelo autor na íntegra. Atualmente, a partir do DSM-III revisado e o DSM-IV
denominou-se “homossexualidade”.
8

“Num caso delirante deve-se estar preparado para encontrar ciúmes


pertinentes a todas as três camadas, nunca apenas à terceira” (FREUD, [1922]
1976, p. 273). O “ciúme delirante”, também chamado de delirante verdadeiro,
por sua vez, é o de características patológicas. O tipo pertencente ao terceiro
grau ou camada é também originado nos impulsos no sentido da infidelidade
que foram reprimidos, porém a diferença, neste caso, é que o objeto pertence ao
mesmo sexo desse sujeito. É importante citar que para Freud, de acordo com
sua tese da “criança perversa-polimorfa”, toda criança com potencial de ser
minimamente saudável teria a capacidade de experienciar múltiplas maneiras o
prazer, com vários objetos e de diversas formas, ou seja, essa experiência
também é tida com o mesmo sexo. Sendo assim, esse ciúme é o que sobra de
uma homossexualidade que teve seu curso cumprido e que toma corretamente
seu lugar entre as clássicas formas da paranoia. “Os ciúmes aparecem toda vez
que a necessidade de reprimir os impulsos de infidelidade e de
homossexualidade coincidem com a característica intolerância à perda do amor”,
acrescenta Fenichel (1996, p. 485).
[...] em certas pessoas ele é experimentado bissexualmente, isto é, um
homem não apenas sofrerá pela mulher que ama e odiará o homem seu
rival, mas também sentirá pesar pelo homem a quem ama
inconscientemente e ódio pela mulher como sua rival [...] (FREUD, [1922]
1976, p. 271).
O ciúme delirante é abrangido por Freud como uma alternação da
paranoia e lembra que, nestes casos, a paranoia propicia um obstáculo para
uma investigação analítica. Sendo este então um dos grandes motivos do qual o
tratamento psicoterápico falha.
Há dois tipos de paranoia, a de ciúme e a persecutória. O indivíduo com o
primeiro tipo de paranoia interpreta seus sinais como tentativas de traição sendo
estes sinais imperceptíveis às outras pessoas. Ele nota as infidelidades da
mulher amplificando-as tanto, fazendo com que, por fim, as suas estejam tão
diminutas que se tornam imperceptíveis para tal. Já o segundo tipo decifra os
sinais dos outros como persecutórios. Da mesma maneira, é através da projeção
que o paranoico identifica a hostilidade – que nada mais é que seus próprios
impulsos hostis nos outros. (MALLMAN, 2015).
9

Ambos os tipos projetam o que não desejam enxergar em si mesmos para


o exterior. É importante ressaltar que essa projeção é feita no inconsciente do
outro, e não no vazio. (FREUD, 1922/1976).
Klein, a respeito da inveja e do ciúme, diz que:
A inveja é o sentimento irado de que outra pessoa possui e desfruta de algo
desejável – sendo o impulso invejoso tirá-lo dela e espoliá-lo. Além disso, a
inveja implica na relação do indivíduo apenas com uma só pessoa e
remonta à mais primitiva relação exclusiva com a mãe. O ciúme se baseia
na inveja, mas envolve uma relação com, pelo menos, duas pessoas; diz
respeito principalmente ao amor que o indivíduo sente como lhe sendo
devido e que lhe foi tirado ou se acha em perigo de sê-lo, por seu rival
(KLEIN, [1953] 1991, p.33).

Os estudos de Melanie Klein sobre a inveja e ciúme seguem um


referencial de pulsão-objeto em que essas pulsões estão diretamente
associadas a objetos onde são expressas através das fantasias, sendo o
fantasiar uma habilidade inata e o conteúdo das fantasias influenciado pela
experiência com os objetos externos, embora esses conteúdos sejam somente
dependentes dos mesmos de modo parcial.
Klein (1953/1991) ainda sobre a inveja reitera que a inveja primária, que
por sua vez em relação ao ciúme é bem mais antiga, é uma phantasia sadista
marcada por impulsos anais e orais que são voltadas a um objeto parcial – seio
– que não apenas despoja do que dispõe de bom, assim como recebe toda a
malvadez. A expressão da pulsão sádica é independente de estimulação exterior
para ser gerada.
A phantasia inconsciente para Klein nada mais é do que conexos
subjetivos advindos das pulsões, como também mecanismos de defesa e
constitutivos egoicos. Essas phantasias fazem parte da composição da
subjetividade de todos os recursos psicofísicos, se fazendo presente no mundo
interno que é composto pelos conteúdos básicos da vida mental. (FIGUEIREDO,
2016).
De maneira mais abrangedora, pode-se definir que:
As phantasias inconscientes são os representantes psíquicos de impulsos,
necessidades e seus estímulos internos (como a fome), sensações,
sentimentos, afetos, tendências, desejos, processos corporais fisiológicos
(como os de nutrição e excreção), mecanismos mentais, comportamentos,
idéias, falas e intenções. (FIGUEIREDO, 2016, p. 127)

Ela compreende que isso se dá em decorrência ao ego, que a trabalho da


pulsão de vida redireciona para o seio externo a pulsão de morte com o objetivo
10

de se evadir dessa ameaça interna. Já em relação ao ciúme, diz que o mesmo


é baseado no amor que é sentido pelo sujeito como se lhe fosse devido e que já
foi ou irá ser tomado pelo rival. Fala também que esse sentimento pode ser
usado contra a inveja como uma defesa, bem como a voracidade.
Para Freud (1922/1976) o ciúme é uma condição emocional que está ligada
diretamente à formação do indivíduo, podendo ser retratada como normal ao
mesmo. Diante disso, reitera-se que há uma importância no âmbito psíquico do
sujeito desempenhada por esse sentimento, que é mantido em segredo (LACHAUD,
2001).
O ciúme é um sentimento habitual e muito presente, entretanto, cada
indivíduo poderá experienciar de modo mais comum como também de forma
patológica. Em sua obra “Otelo” (1603), Shakespeare escreveu que o “ciúme é um
monstro de olhos verdes”, ou seja, a subjetividade de cada um constrói o monstro de
acordo com aquilo que é introjetado e experienciado.

Ciúme Patológico

Apesar de o ciúme ser considerado um evento universal, Pines (1992)


alega que há duas espécies, sendo elas: ciúme normal e ciúme patológico. O
patológico para ele “persiste apesar da ausência de qualquer ameaça real ou até
provável” (PINES, 1992, p. 51). No entanto, o indivíduo fantasia situações em
que acredita ser reais. Cavalcante (1997) discursa que o ciúme, quando
patológico, corresponde a uma preocupação absurda e descontextualizada,
além de, inconscientemente, a existência de um desejo da ameaça de um rival.
Lachaud (2001) afirma que, no ciúme patológico, algumas emoções à flor
da pele são sentidas, tais como a raiva, ansiedade, vergonha, humilhação,
culpa, desejo e retaliação. As pessoas possuídas por esse ciúme afirmam que
há mentira na fala, abrigada pelo enunciado, não existindo uma verdade
acessível de acordo com o mesmo, porém ainda sim quer saber mesmo que
seja contrária a verdade. Acontece uma averiguação que jamais será suficiente
com nenhuma evidência no ciúme patológico. (LACHAUD, 2001).
O ciumento acusa o outro de roubo daquilo que é impossível: a posse total
do objeto amado. O que o indivíduo não consegue perceber é que o verdadeiro
11

inimigo é, na verdade, é o controle do desejo; ele quer tudo e impedir que o


outro chegue à satisfação dos seus desejos. Ou seja, o sujeito ciumento volta-se
ao narcisismo total (LACHAUD, 2001).
Muitos autores equiparam o ciúme patológico com um estado delirante,
contudo, para Mukai (2003), não se deve equiparar o delírio presente no ciúme
patológico ao presente na esquizofrenia, sendo este primeiro limitado a
pensamentos de infidelidade e passíveis de ter crenças que se equivalem às
possuídas por indivíduos sadios. A similaridade entre os delírios e não-delírios
são bastante semelhantes, colocando-se em questão o discernimento entre o
normal e o patológico. (MUKAI, 2003)
Todos nós cultivamos algum nível de ciúme, afinal, quem ama cuida.
Porém, como este “cuidado” varia de uma pessoa para a outra,
equivalentemente, o ciúme também variará. Para Rosset, desenvolve-se
quando sentimos que nosso parceiro não está tão estreitamente conectado
conosco como gostaríamos. (SILVA, 2015, p. 45).

Compreendendo o teórico, à medida que o sujeito sente que o parceiro não


está “na mesma sintonia” da relação – e, aqui, dito de forma popularmente
conhecida – há uma alteração na forma como o ciúme é desenvolvido.

O ciúme, as relações abusivas e os crimes passionais

Atualmente, nos estudos analisados, há um enfoque maior em relações


abusivas onde o abusador é o homem e na problemática da permanência da
mulher neste tipo de relação. São inúmeros os fatores envolvidos na dinâmica
da permanência no relacionamento abusivo. Alguns autores discursam sobre as
razões envolvidas. Segundo Soares (2005), o rompimento não é rápido e pode
demorar muitos anos, uma vez que a mulher pode ter uma relação de
dependência financeira, psicológica ou emocional, e, principalmente, é preciso
levar em consideração os diversos tipos de ameaças que pode ter sofrido. A
agressão física, na maioria das vezes, é precedida de agressões psicológicas,
inferiorizando quem é violentado. Pazo e Aguiar (2012), inclusive, dizem que
algumas mulheres não conseguem perceber que são vítimas de relações
abusivas e violentas porque atribuem a si mesmas a culpa pela violência sofrida.
O ciúme, por sua vez, é o principal motivo de relações abusivas. Lachaud
(2001) diz que o primeiro objeto, para a criança, é de necessidade, e, com a
12

ajuda da mãe, transfere progressivamente o desejo para outro objeto, no


entanto, no ciúme patológico, o objeto permanece na necessidade.
Reunindo recortes de notícias jornalísticas de grandes proporções no país
nos últimos anos, alguns crimes passionais, gerados por ciúmes patológicos,
causaram comoção nacional e ganharam repercussão não só no Brasil como
também na mídia internacional. Eloá Pimentel foi sequestrada pelo namorado
Lindemberg Alves, após não aceitar reatar o namoro. O sequestro,
televisionado, transmitido em rede nacional para todo o país, é, até hoje,
considerado com um dos mais emblemáticos casos de crimes passionais. Eloá
foi morta durante uma transmissão ao vivo para as redes de televisões. Na
ocasião, alguns programas de jornalismo e entretenimento usufruíram do
sequestro com o intuito de alavancar a audiência do vespertino.
Um dos crimes mais emblemáticos foi o da atriz Daniella Perez, morta pelo
colega de trabalho, Guilherme de Pádua, e pela sua esposa, Paula Thomaz. O
motivo do crime, tal como consta em reportagens da época, teria sido o ciúme
doentio de Paula pelas cenas tórridas de amor de Daniella e Guilherme na novela
“De Corpo e Alma” (1992), visto que ambos faziam par romântico.
Outro caso de crime motivadobn pelo ciúme é de um famoso empresário,
Marcos Matsunaga, dono da empresa Yoki, que fora assassinado pela esposa, Elize
Matsunaga, após a descoberta de um envolvimento do marido com prostitutas.
Os três casos relatados acima bifurcam-se no espinhoso tema que
discursamos nas linhas deste ensaio: o ciúme patológico.

O limiar entre o normal e o patológico

O limiar entre o ciúme normal e o patológico ainda é motivo de discussão


no meio acadêmico. Alguns pesquisadores acreditam que é possível controlar o
ciúme. Outros, por sua vez, dizem que é necessário eliminá-lo para ter uma
relação saudável. A linha tênue entre o ciúme normal e patológico é atentar-se
aos sinais que aparecem na relação, quando o espaço do outro é invadido,
sobrepujado, e a agressividade e o desejo de controlar ganham força.
Comportamentos como perseguir o parceiro, checar o aparelho celular e
13

censurar peças de roupa são exemplos a se analisar quando começam a


acontecer.
O ciúme torna-se patológico quando uma ou duas das partes têm conflitos
relativos à fase edípica que não foram resolvidos (MALLMANN, 2015). Inicia-se,
então, o ciúme patológico, que é o principal causador de relacionamentos
abusivos, que podem, por ventura, levar aos crimes passionais.
Ao mesmo momento em que o ciúme não patológico, comumente chamado
de normal, é passageiro e fundado em razões reais, o patológico já é uma
angústia irracional e sem fundamentos.
Compete pontuar também acerca da importância de se proporcionar mais
pesquisas e debates acadêmicos em relação ao limiar entre os ciúmes, dado
que há certa escassez de material cientifico sobre, possivelmente devido à
dificuldade em se pontuar acerca do tema.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ciúme é um sentimento universal e todos sentimos, em algum momento da


vida, em menor ou maior proporção. Há uma problemática na sua concepção, o que
nos leva a acreditar que a ausência de ciúme seria o ideal, onde a confiança no
parceiro sobressalta-se a qualquer tipo de sentimento contrário que possa ser
despertada.
O ciúme normal, bem como aponta Freud (1922/1976), é aquele derivado
do sofrido pensamento de perder o seu amor e que é comum a todos. Entre o
ciúme normal e o patológico, há uma linha tênue, que perpassam teorias de
autores clássicos como Sigmund Freud e Melanie Klein. No entanto, como
esboçado nas linhas anteriores deste estudo, tanto a ausência quanto à forma
exagerada do ciúme é passível de atenção.
Ao concluir este estudo, foi possível verificar as várias faces do ciúme para
além do que conhecemos popularmente, e como este “monstro de olhos verdes” é
construído dentro de cada um de nós. O ciúme doentio causa consequência não só
para os envolvidos no relacionamento – seja ele amoroso ou não – mas também
para todos ao redor, incluindo família e amigos. As consequências são diversas,
14

como também apontados neste estudo quando trouxemos à tona recortes reais de
notícias envolvendo crimes passionais, consequência do ciúme patológico.
Pode-se notar também a dificuldade em se definir qual seria o limiar entre
o ciúme normal e o patológico visto que esse limite é marcado por uma linha
muito tênue perpassando pelas mais diversas emoções, sentimentos,
comportamentos e até questões psicológicas/psicopatológicas presentes nos
indivíduos. A dificuldade também se faz presente uma vez que o ciúme é
socialmente normatizado, se fazendo presente nas mais diversas relações
existentes.
Vivemos hoje o que chamamos de era tecnológica, onde os relacionamentos
são pautados através de redes sociais, fotos em aplicativos, textos românticos, mas
que podem ser gatilhos para sentimentos que levam ao extremo. Engolidos pelo
avanço da tecnologia, é preciso atentar-se para o quanto as informações afetam a
vida de cada um de nós.
Espera-se que este estudo tenha relevância para futuras discussões
acadêmicas sobre o limiar entre o ciúme normal e o patológico.

REFERÊNCIAS

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