Você está na página 1de 228

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/343345544

PENSANDO A CIDADE - livro em E-book (1)

Book · July 2020

CITATIONS READS

0 341

1 author:

Elisa Freitas
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
64 PUBLICATIONS 82 CITATIONS

SEE PROFILE

All content following this page was uploaded by Elisa Freitas on 31 July 2020.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


Conselho Editorial Life Editora

Prof. Dr. Amilcar Araujo Pereira


UFRJ/ Faculdade de Educação

Prof. Dr. Edgar César Nolasco


UFMS/ Campo Grande-MS

Prof. Dr. Gilberto José de Arruda


UEMS/ Unidade de Dourados

Prof. Dr. Matheus Wemerson G. Pereira


UFMS/Campo Grande-MS

Prof. Dr. Giovani José da Silva


UFMS/Campus de Nova Andradina

Profª. Dra. Helena H. Nagamine Brandão


Universidade de São Paulo - USP-SP

Profª. Dra. Joana Aparecida Fernandes Silva


UFG/Goiás

Prof. Dr. João Wanderley Geraldi


Universidade do Porto, Portugal/ INEDD/Universidade Siegen/Alemanha e Unicamp

Profª. Dra. Léia Teixeira Lacerda


UEMS/ Unidade de Campo Grande

Profª. Dra. Maria Cecília Christiano Cortez de Souza


Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

Profª. Dra. Maria Leda Pinto


UEMS/ Unidade de Campo Grande

Prof. Dr. Marlon Leal Rodrigues


UEMS/ Unidade de Campo Grande

Obra publicada com patrocínio do Fundo de Investimentos Culturais do Pantanal


(FIC/Pantanal) / Fundação da Cultura e do Patrimônio Histórico de Corumbá.

(Lei nº 2.135/2009 e Lei nº 2.464/2014 – Corumbá – Mato Grosso do Sul – 2017)

Valor máximo para comercialização R$ 15,00

O papel utilizado neste livro é biodegradável e renovável. Provém de florestas


plantadas que dão emprego a milhares de brasileiros e combatem o efeito estufa, pois
absorvem gás carbônico durante o seu crescimento! A tinta utilizada na impressão das
páginas é à base de soja, cujo componente é renovável e atóxico que não degrada o
meio ambiente.
1ª Edição - Campo Grande - MS - Brasil - 2020
Copyright © by Nathalia Claro Moreira
Fabiano Quadros Rückert
Direitos Autorais reservados de acordo com a Lei 9.610/98
Coordenação Editorial
Valter Jeronymo

Assistente de Coordenação
Raquel de Souza

Projeto Gráfico
Life Editora

Imagens da Capa
Cléber Ribeiro Dias

Revisão
Os próprios autores

Impressão e Acabamento
Life Digital

Life Editora
Rua Américo Vespúcio, 255 - Santo Antonio
CEP: 79.100-470 - Campo Grande - MS
Fones: (11) 3508 1941 - Cel.: (67) 99297-4890
contato@lifeeditora.com.br • www.lifeeditora.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Moreira, Nathalia Claro


Rückert, Fabiano Quadros

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar/ Nathalia


Claro Moreira, Fabiano Quadros Rückert (orgs.) – Campo Grande, MS: Life
Editora, 2020.
236p. : il. : 23 cm
ISBN 978-85-8150-000-0
1. Corumbá-MS 2. Mato Grosso do Sul 3. Direitos Sociais I. Título
CDD - 360

Proibida a reprodução total ou parcial, sejam quais forem os meios


ou sistemas, sem prévia autorização dos autores.
Prefácio

PARA ENTENDER CORUMBÁ EM 10 CAPÍTULOS

Nelson Urt*

Esta é uma obra imprescindível para aqueles que conhecem Co-


rumbá sob o viés reducionista ou para aqueles que sequer foram apre-
sentados a esta cidade. Pois bem, sintam-se então mais íntimos ao per-
correr estas linhas: esta é Corumbá, prazer em conhecer.
Para quem pretende se aprofundar nas suas entranhas, conhecer
outros dos seus segredos, problemas e propostas concretas, melhor ain-
da. Particularmente, ainda não havia lido tantos assuntos polêmicos,
emblemáticos, pertinentes para se entender esta cidade em um único
espaço literário.
Recomendo como leitura obrigatória para quem não quer perder
tempo pesquisando fragmentos na internet, que na maioria das vezes
trazem respostas equivocadas e simplistas. São Google que nos perdoe,
mas ele não substitui uma pesquisa com fontes confiáveis.
Este livro é uma resposta, uma retomada, uma reconstrução da
história desta cidade portuária de fronteira. Trata-se de uma resposta
àqueles que se acostumaram a enxergar nela um lugar sempre distante
e decadente no mapa, que vira motivo de chacota, chamada de cidade
do “já-teve” e outros chichês desgastantes que só servem para excluir o
periférico, o interior.
Quando uma imagem se perde, distorcida, desfocada, nós a re-
cuperamos. Este é o propósito alcançado deste livro: recuperar as faces
ocultas de Corumbá. Muitos passam por aqui, de passagem, preferem
construir uma imagem distorcida para não criar raízes e desapegar mais
rapidamente quando forem embora. Outros preferem se aprofundar e
amá-la. Este livro trata do amor pela cidade.
Neste livro estamos falando da verdadeira retomada de Corumbá.
Pela escrita de especialistas, gente que se aprofundou em pesquisas, leu
diferentes livros, consultou imensa variedade de fontes, dissecou gran-
des pensadores, até chegar às suas considerações científicas. Uma con-
tribuição histórica do meio acadêmico para a sociedade.
Poesia não compra sapatos, mas nos ensina a caminhar. Sim, tam-
bém é um livro de poesia. Como falar de Corumbá sem incluir Manoel
de Barros e Lobivar Matos, seus maiores poetas, neste contexto? Pois
aqui estão eles e seus personagens perfilados: Maria Bolacha, Maria Pe-
lego Preto, Dona Maria, Mário Pega Sapo, Bola Sete. Resgatados como
figuras populares das ruas, nos ajudam a entender um pouco mais sobre
a alma desta fronteira.
O livro coloca o dedo na ferida ao estampar uma imagem do lixão
com resíduos a céu aberto entre fogo e fumaça de uma queima volun-
tária. Nem aterro, nem sanitário, aquele local onde se despeja 100 to-
neladas diárias de lixo proveniente de Corumbá e Ladário ainda recebe
a visita de moradores de famílias do entorno, que reciclam e vivem das
sobras do lixo seco. E são eles os primeiros a serem afetados diretamente
pela contaminação. Esta é uma face oculta e cruelmente real da “Co-
rumbá desses meus sonhos” que o livro desvela em seu capítulo 10, tra-
zendo à tona uma discussão pertinente para a saúde pública e subsídios
para o estudante que pretende entender e diferenciar o que é lixão e o
que é aterro sanitário. Sim, temos um contrato de consórcio intermu-
nicipal entre Corumbá e Ladário, temos área definida de 70 hectares,
mas ainda não temos um aterro sanitário. Assim como 60% dos 5.565
municípios do Brasil também não têm, embora, pela lei, todos os lixões
deveriam ter sido desativados até 2014. Portanto, não chamem Corum-
bá de lugar atrasado: o Brasil inteiro peca historicamente pelo atraso na
questão da saúde pública.
Este livro nos ensina a ser menos individualistas, mais fronteiriços,
menos estáticos, mais dinâmicos, menos passivos, mais participativos, ao
romper com estereótipos e oferecer-nos uma dose saudável do tempo
presente e como melhor aproveitá-lo. Em dez capítulos, a história, a
geografia, a educação, a literatura, a educação ambiental ajudam-nos a
entender Corumbá e a amá-la em todos os sentidos.

(*) Jornalista, graduado em História pelo Campus Pantanal/UFMS, mestrando de Estudos Fronteriços com
pesquisa na linha de Identidade e Fronteira.
Sumário

16 - Capítulo 1
Higiene Pública e salubridade urbana na Corumbá Imperial
Divino Marcos de Sena, Fabiano Quadros Rückert

37 - Capítulo 2
A presença belga nas minas do Urucum: uma análise da intentona co-
lonialista belga no antigo Mato Grosso (Corumbá, 1907-1918)
Nathalia Claro Moreira, Fabrício Santiago Almeida

57 - Capítulo 3
Uma cidade na fronteira: crises, paradigmas e perspectivas
Marco Aurélio Machado de Oliveira

76 - Capítulo 4
A fundação da instituição escolar confessional Imaculada Conceição
em Corumbá - Elaine Cancian

98 - Capítulo 5
Escola Jatobazinho: “Meu quintal é maior do que o mundo”
Dilson Vilalva Esquer, Nicole Claro Moreira de Morais

117 - Capítulo 6
Brincando com Agripino: experiências estéticas e arte em uma creche
de Corumbá/MS
Erika Natacha Fernandes de Andrade, Aline Cristine Androlage Mercado,
Karen Carolynne de Oliveira Ferreira

140 - Capítulo 7
Cultura de Paz e Direitos Humanos na Educação: um estudo teórico
sobre a necessidade dessa relação
Lielza Victório Carrapateira Molina, Cláudia Araújo de Lima

160 - Capítulo 8
Personagens e Cenários de Corumbá na Poesia de Manoel de Barros
Luciene Lemos de Campos
183 - Capítulo 9
Entre Governança e consagração cultural: o papel da LIESCO no car-
naval de Corumbá
Fernando Thiago, Caroline Gonçalves , Denilson Almeida dos Santos

201 - Capítulo 10
Do global ao local: a questão dos resíduos sólidos em Corumbá (MS)
Elisa Pinheiro de Freitas
Introdução

A atração que as cidades exercem sobre os seres humanos é um


fenômeno universal que possui uma longa temporalidade e provoca rea-
ções ambíguas. Nossa espécie admira as cidades, e, ao mesmo tempo,
sente medo diante da complexidade e da intensidade dos fenômenos
urbanos. Desejamos transformar a materialidade do espaço urbano e
investimos um grande volume de energia na construção, restauração ou
destruição de espaços públicos e privados, mas nossas relações com estes
espaços comportam elementos do passado que excedem a materialida-
de da arquitetura e que influenciam nas práticas de sociabilidade.
A ambiguidade do espaço urbano e sua capacidade de produzir
encantamento e medo são temas que despertam o interesse de diferen-
tes áreas acadêmicas. Italo Calvio, na sua clássica obra, intitulada Cida-
des Invisíveis,1 apresenta uma ampla variedade de interpretações que as
cidades podem receber. Através do diálogo entre os personagens Marco
Polo e Kublai Khan, Calvino nos induz a refletir sobre a coexistência do
singular e do universal no ambiente urbano. Uma cidade é única para
um nativo porque as suas ruas e praças são parte da sua existência, e,
simultaneamente, ela é universal porque oferece elementos (materiais e
imateriais) que permitem ao viajante se identificar enquanto ser huma-
no que convive e aprende com outros humanos.
O exercício interpretativo das cidades feito por Italo Calvino é
provavelmente um dos mais conhecidos do mundo. No entanto, diver-
sos intelectuais produziram estudos que abordam, com diferentes pers-
pectivas de análise, a experiência humana de viver e morrer nas cidades.
Max Weber, através do ensaio intitulado A cidade, publicado ori-
ginalmente em 1921, ofereceu uma contribuição relevante para a con-
figuração do campo de estudos hoje chamado de Sociologia Urbana.2
Sob influencia da Escola de Chicago e apresentando uma abertura para
a interdisciplinaridade, a Sociologia Urbana fomentou – e ainda fomen-
1. CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
2. WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Volume 1, Trad. Regis
Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1994 (Cap. 8).

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 9


ta – pesquisas sobre as relações entre criminalidade, conflitos étnicos,
construções identitárias e o fenômeno urbano.
No âmbito da História, dentre os diversos estudos que configuram
a chamada História Urbana, a obra de Fustel de Coulanges, intitulada A
Cidade Antiga, publicada pela primeira vez em 1864,3 permanece uma
referência para a compreensão do fenômeno urbano no mundo greco-
-romano, e, particularmente, para a compreensão de como as crenças
religiosas, as práticas econômicas e as leis interferiam na formação e
funcionamento das cidades. Os temas abordados em A Cidade Antiga
exerceram grande influência sobre os historiadores, sobretudo nas pri-
meiras décadas do século XX. Posteriormente, numa outra conjuntura
acadêmica, os estudos de História Urbana apresentaram uma expressiva
renovação. Desta nova fase, importa destacarmos a obra Carne e Pedra,
4
escrita por Richard Sennett e publicada originalmente em 1992; nesta,
o autor aborda um dos aspectos mais instigantes da experiência urbana:
a relação entre a arte de construir cidades e os comportamentos social-
mente desejados e indesejados. Transitando por espaços urbanos como
a Atenas da época de Péricles, a Roma do Imperador Adriano, a Veneza
do período renascentista ou a Nova York do século XIX, Sennett desve-
la tramas de intencionalidades (explícitas ou implícitas) que explicam
o uso da arquitetura para interferir nas condutas sociais dos citadinos.
Muitos outros historiadores que escreveram sobre as cidades poderiam
ser citados aqui, no entanto, nosso objetivo não é listar autores e obras.
Nossa intenção ao mencionar Coulanges e Sennett é ressaltar que há
mais de um século, a História Urbana ocupa um lugar destacado nas
reflexões produzidas pela História.
As interações entre as cidades e o comportamento humano tam-
bém receberam a atenção dos geógrafos, dentre os quais destacarmos
David Harvey, Milton Santos e Bernard Lepetit. Harvey, autor de As
cidades rebeldes, retomou e ampliou a discussão iniciada por Lefebvre5 a
respeito do impacto do capitalismo na dinâmica urbana. Santos, um dos
intelectuais brasileiros mais conceituados elaborou uma refinada análi-
se do fenômeno urbano no Brasil e publicou obras de referência para
3. COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Trad. de Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2004.
4. SENNETT, Richard. Carne e Pedra. O corpo e a cidade na civilização ocidental. Trad. Marcos Aarão
Reis. Rio de Janeiro: Record, 1997.
5. Lefebvre, Henri. O direito à cidade. Trad. de T. C. Netto. São Paulo: Documentos, 1969.

10 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


a Geografia Urbana, como A pobreza urbana6 e A urbanização brasilei-
ra.7 Partindo de um marco teórico marxista, tanto Harvey como Santos
abordam os motivos e as consequências da concentração de capital nas
cidades, e, ambos advertem para os riscos da intensificação da pobreza
no ambiente urbano. Lepetit, por sua vez, concentrou sua atenção no
uso social dos espaços urbanos e nas tensões geradas entre as forças que
provocam mudanças – materiais e imateriais – nas cidades e as forças
que resistem, contestam e resignificam as respectivas mudanças.8
Diante do que foi exposto, e sem desconsiderarmos a imensidão
da bibliografia produzida sobre o fenômeno urbano, convidamos o leitor
para pensar a cidade de Corumbá a partir de uma perspectiva interdisci-
plinar. Antes que o leitor aceite o convite, importa advertir que pensar a
cidade é uma tarefa complexa, na medida em que exige disposição para
ver além da estética e da materialidade das ruas, prédios e praças. Pensar
a cidade demanda um esforço para analisar a influência dos fatores eco-
nômicos na organização e uso do solo urbano. Pensar a cidade implica
em reconhecer que o fenômeno urbano é um processo inacabado que
comporta marcas do passado, incorpora elementos do presente, e, ao
mesmo tempo, projeto intencionalidades para o futuro.
Se o convite for aceito, o leitor encontrará neste livro um conjunto
de 10 textos que tratam de temas relacionados, direta ou indiretamente,
à cidade de Corumbá. Cabe a ressalva de que o sítio urbano de Corum-
bá possui neste livro uma dupla função: ele é o marco espacial para o
qual convergem as reflexões apresentadas, e, ao mesmo tempo, é o pró-
prio objeto de análise que será decomposto e interpretado pelos autores.
Visando a organicidade do livro, e cientes de que o conjunto de
textos contempla diferentes aspectos do fenômeno urbano em Corum-
bá, dividimos o livro em três partes. São elas: (1) a Historicidade do es-
paço urbano corumbaense; (2) cultura, escolas e práticas de ensino em
Corumbá; e (3) cartografias imaginárias.
A primeira parte é composta de três capítulos que possuem em
comum uma abordagem histórica sobre o desenvolvimento de Corum-
bá. No capítulo inicial Fabiano Quadros Rückert e Divino Marcos de
Sena descrevem sobre a higiene pública na Corumbá Imperial, e con-
6. SANTOS, Milton. A pobreza urbana. 3ª edição. São Paulo: Edusp, 2013.
7. SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: HUCTEC, 1993.
8. LEPETIT, Bernard. Por uma nova história urbana. Org. Heliana Angotti Salgueiro. Trad. port. Cely
Arena. São Paulo: Edusp, 2001.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 11


cedem uma atenção especial para o trabalho da Câmara de Vereadores
no enfrentamento dos problemas que comprometiam a salubridade dos
citadinos nas décadas finais do Império (1870/1880). Posteriormente,
Nathalia Claro Moreira e Fabrício Santiago Almeida apresentam um
estudo focado nos primórdios da exploração das minas do Urucum –
uma exploração que atraiu investidores belgas para a fronteira oeste do
Brasil no período entre 1907 e 1918. Completando esta parte do livro, o
texto de Marco Aurélio Machado de Oliveira revisa e discute as interpre-
tações produzidas sobre a cidade de Corumbá no contexto de transfor-
mações econômicas, demográficas e culturais que ocorreu nas décadas
de 1920 e 1930.
A segunda parte do livro concentra estudos que convergem para a
área da Educação. O texto de Elaine Cancian destaca o trabalho edu-
cacional das irmãs salesianas na cidade de Corumbá – trabalho que
nos seus primórdios foi dirigido para a educação de meninas e que se
materializou no Colégio Imaculada Conceição, inaugurado em 1904.
Naquele contexto, tanto em Corumbá quanto em outras cidades do in-
terior do Brasil, a maior parte da população permanecia excluída do
acesso ao ensino escolar e o sistema público de ensino era extremamen-
te precário. Com o passar do tempo essa situação mudou gradualmente
e a escolarização alcançou um contingente cada vez maior da popula-
ção corumbaense. A fase mais recente da ampliação da escolarização
em Corumbá está representada no livro por dois textos. Dilson Vilalva
Esquer e Nicole Claro Moreira de Morais escreveram sobre o trabalho educa-
cional realizado com os ribeirinhos na Escola Municipal Rural Polo Paraguai
Mirim Extensão Jatobazinho, instituição popularmente conhecida como Esco-
la Jatobazinho. Para uma cidade como Corumbá, localizada nas margens do
Rio Paraguai e inserida no bioma Pantanal, a existência da Escola Jatobazinho
representa um esforço do poder público para viabilizar o acesso dos ribeirinhos
à educação escolar, e, ao mesmo tempo, potencializa práticas de ensino que
valorizem a cultura e o cotidiano dos ribeirinhos. A relação entre educação es-
colar e cultura também está presente no texto de Erika Natacha Fernandes de
Andrade, Aline Cristine Androlage Mercado e Karen Carolynne de Oliveira
Ferreira. Estas autoras descrevem uma interessante experiência de educação
estética realizada na Creche Municipal Parteira Inocência Cambará, e, a partir
do seu texto, contemplam temas como a qualificação docente e a inclusão de
elementos da cultura local – como música, cantos, danças e instrumentos – nas

12 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


práticas de Educação Infantil. Finalizando a seção Cultura, escolas e práticas
de ensino em Corumbá, Lielza Victório Carrapateira Molina e Cláudia Araú-
jo de Lima dissertam sobre as interfaces entre direitos humanos, educação e
cultura de paz. O texto de Molina e Lima apresenta uma revisão bibliográfica
que excede o espaço geográfico de Corumbá e ressalta a necessidade de uma
educação escolar comprometida com o respeito pelas diversidades.
Na terceira parte do livro reunimos três capítulos que apontam
para a existência de Cartografias imaginárias inseridas dentro do espa-
ço urbano de Corumbá. No texto de Luciene Lemos de Campos a car-
tografia de Corumbá se faz imaginária pela linguagem poética de Ma-
noel de Barros – uma linguagem composta de cenários e personagem
através dos quais podemos conhecer o cotidiano da cidade, tal como ele
foi vivenciado e resignificado pelo poeta. O texto de Fernando Thiago,
Caroline Gonçalves e Denilson Almeida dos Santos aborda o papel da
Liga Independente das Escolas de Samba de Corumbá (Liesco) na or-
ganização do carnaval corumbaense. Partindo de uma reflexão sobre a
Teoria Organizacional e sobre o conceito de governança, os autores res-
saltam a importância atuação da Liesco na promoção e organização das
atividades carnavalescas em Corumbá. Finalizando esta parte do livro,
o texto de Elisa Pinheiro de Freitas analisa a questão da coleta e descar-
te de resíduos sólidos na cidade, articulando as reflexões e convenções
produzidas no âmbito internacional sobre a degradação ambiental com
a experiência local de gestão dos resíduos sólidos – experiência que pro-
duziu um local indesejado, porém necessário para o metabolismo urba-
no, o Aterro Sanitário Municipal de Corumbá. Neste caso, a cartografia
imaginária marca no mapa da cidade o destino do lixo coletado pela
municipalidade.
Finalizamos a Introdução do livro, agradecemos a colaboração dos
autores que gentilmente aceitaram o convite de compartilhar o exercí-
cio de pensar a cidade de forma interdisciplinar. Agradecemos também
o crédito recebido da Fundação Municipal de Cultura de Corumbá que
apostou na viabilidade do projeto e patrocinou a publicação do livro
(Edital nº 001/2019 Microprojetos FIC/Pantanal). Estamos cientes de
que as interpretações reunidas e apresentadas não são as únicas possíveis
e não esgotam as possibilidades de refletir sobre os fenômenos urbanos
a partir de Corumbá. No entanto, acreditamos que o livro oferece ele-
mentos para fomentar novas reflexões sobre a historicidade do espaço

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 13


urbano, sobre as relações entre a cidade à educação escolar e sobre as
práticas culturais que ganham forma no cotidiano dos citadinos.
E, retornando os ensinamentos procedentes do diálogo literário entre
Marco Polo e Kublai Khan, não devemos perder de vista que a interpretação
de uma cidade excede a materialidade dos seus elementos. Em determinado
momento do diálogo – momento que para nós encerra este texto introdutório,
Marco Polo diz: “Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de
escada, das circunferências dos arcos dos pórticos, de quais lâminas de zinco são
recobertos os tetos; mas seria o mesmo que não dizer nada. [...] a cidade não é
feita disso, mas das relações entre as medidas do seu espaço e os acontecimentos
do passado”.9

Os organizadores,

Fabiano Quadros Rückert e Nathalia Claro Moreira.

Corumbá, fevereiro de 2020.

9. CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 14.

14 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


HISTORICIDADE DO ESPAÇO
URBANO CORUMBAENSE
Capítulo 1

HIGIENE PÚBLICA E SALUBRIDADE


URBANA NA CORUMBÁ IMPERIAL

Divino Marcos de Sena


Fabiano Quadros Rückert

Introdução10

Localizada no extremo da fronteira Oeste do Brasil com a Bolívia,


à margem direita do rio Paraguai, em pleno Pantanal Sul-Mato-Gros-
sense, a cidade de Corumbá é a sede de um dos municípios brasileiros
com maior extensão territorial. Nas suas origens, a criação e o desenvol-
vimento do espaço urbano de Corumbá mantém afinada relação com as
disputas que ocorreram entre os países platinos que conquistaram suas
independências ao longo da primeira metade do século XIX, especial-
mente a República do Paraguai e o Império Brasileiro, e com a presença
da navegação a vapor no interior do Brasil.
Integrada à então província de Mato Grosso, Corumbá fazia parte
de um vasto território reivindicado pelo governo paraguaio durante a
Guerra entre este país e a Tríplice Aliança (1864-1870). Portanto, si-
tuada em área litigiosa, Corumbá foi ocupada pelas tropas de Solano
Lopez em princípio de 1865, quando autoridades imperiais e moradores
brasileiros fugiram dos ataques paraguaios para outras regiões de Mato
Grosso e da fronteira com a Bolívia.
A ocupação paraguaia bloqueou o ingresso de embarcações bra-
sileiras que navegavam no rio Paraguai, via estuário do Prata, desde a
segunda metade da década de 1850. Essa primeira etapa da navegação a
vapor provocou transformações econômicas e sociais em Mato Grosso,
especialmente na sua porção sul e na fronteira com a Bolívia. Corumbá
10.O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
– UFMS/MEC – Brasil.

16 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


foi beneficiada como um porto internacionalizado, recebendo pessoas
de diferentes procedências, ganhou ares de espaço urbano e já era apon-
tada como o entreposto comercial da província.
Com o bloqueio e a ocupação paraguaia tais transformações fo-
ram interrompidas e retomadas com maior fôlego a partir do término
do conflito e da vitória da Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uru-
guai). Corumbá retornou aos domínios do Império e passou a conviver
com um processo de (re)organização a partir de iniciativas estatais e de
particulares. Com a reabertura da navegação às embarcações brasileiras
e estrangeiras, ela recebeu antigos e novos moradores, investimentos,
isenções ficais por alguns anos das mercadorias que seriam importadas
pela província e as exportações dos gêneros de produção nacional, pre-
sença de atividades e instalação de casas comerciais, além de institui-
ções responsáveis em fazer os efeitos da Guerra serem eliminados com
as novas possibilidades que a delimitação de fronteiras territoriais, os
acordos de paz e a navegação trouxeram para aquela parte do interior do
Brasil (SENA, 2017).
A reabertura da navegação no rio Paraguai possibilitou um conta-
to mais rápido com a região platina e com portos brasileiros. Corumbá,
gradativamente, se destacou como um empório comercial internacio-
nalizado em Mato Groso, em contato com a Bolívia, integrado à área
platina e conectado ao mercado mundial.
Cabe destacar que tais transformações estiveram articuladas com
a dinâmica do capitalismo, com a mundialização da economia. Países,
como o Brasil, receberam o entusiasmo do comércio livre internacional
vivenciado na Europa, do qual a estrada de ferro e o barco a vapor tra-
duziram a possibilidade de transportar maior volume de mercadorias e
pessoas, e eram vistos como os mais eficazes e modernos meios de trans-
porte existentes (HOBSBAWM, 1982).
A população de Corumbá igualmente aumentou. Nas últimas
décadas do oitocentos, de 3.361 pessoas em 1872, ela passou para 8.414
em 1890 (DIRETORIA GERAL DE ESTATÍSTICA, 1874 e 1898). A
pluralidade da população, composta por mulheres e homens brancos,
nacionais e estrangeiros, pretos (livres e escravos), indígenas e mestiços
(livres e escravos) não destoava do cenário mato-grossense como um
todo (SENA, 2013; PERARO, 2001).
Paulatinamente, o espaço urbano passou a ser um centro governa-

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 17


mental, político e comercial, com concentração e distribuição de mer-
cadorias e cargas, prestação de variados serviços, de comunicação, de
relações etc. Um aparato administrativo, judicial e fazendário foi criado
em Corumbá. A (re)organização do seu território fez parte da redefini-
ção da área provincial naquele momento, com criação de municípios,
freguesias, distritos, comarcas, nomeação de autoridades, eleições, divi-
são de competências etc. Tais medidas resultaram de interesses do Esta-
do em pretender organizar, controlar e administrar o território e as suas
populações que tinham recém-saído do domínio estrangeiro e estavam
situadas em área de fronteira geopolítica (SENA, 2017).
Nos decênios finais do Império, várias instituições militares e
públicas fizeram-se presentes em Corumbá, entre quais, destacamos:
Exército, Marinha e Guarda Nacional, Alfândega, Câmara Municipal,
Delegacia e Subdelegacias de Polícia, Coletoria Provincial, Correios,
Consulados (do Paraguai, Bolívia, Argentina, da República Oriental do
Uruguai, de Portugal e da Itália), Juizados (Municipal e de Direito),
entre outras.
Uma das medidas essenciais para a governança foi a restauração do
território municipal e a efetiva instalação da municipalidade. Corumbá
foi elevada à categoria de vila em 1862, anterior à guerra, mas diante de
entraves (administrativo, pessoal e orçamentário) não foi efetivada a ins-
talação do seu governo municipal. Somente em 1872, foram realizadas
as primeiras eleições para juízes de paz e vereadores e a instalação da
Câmara Municipal (SENA, 2017).
A presença de municipalidades no Brasil esteve ligada, desde
os tempos coloniais, à elevação de um povoado à categoria de vila e
a consequente independência administrativa do “termo” ou território
municipal (BICALHO, 2003). No Brasil independente as câmaras con-
tinuaram responsáveis pelo governo econômico e municipal das vilas
e cidades já existentes e naquelas que fossem criadas. A Constituição
de 1824 conferiu às câmaras somente atribuições administrativas e as
subordinou política e administrativamente às instâncias provinciais.
Posteriormente, em 1828, o Regulamento das Câmaras Municipais do
Império definiu os critérios para composição e funcionamento das câ-
maras e fixou de forma detalhada as responsabilidades e competências
das municipalidades.
No decorrer do período imperial, sobretudo com o Ato Adicio-

18 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


nal de 1840, as câmaras perderam uma parte das suas competências
na gerência municipal (CAMPOS, 2004). Contudo, apesar disto, elas
guardavam ampla influência em seu campo de atuação, especialmente
quando os assuntos se referiam à organização e ordenamento do perí-
metro urbano.
Na sequência do texto, vamos abordar o trabalho da Câmara
Municipal de Corumbá na promoção da higiene pública e da salubrida-
de urbana na Corumbá Imperial. Mas antes de avançar para esta abor-
dagem, importa informarmos ao leitor que os documentos consultados
procedem principalmente do acervo documental da Câmara Municipal
de Corumbá. Neste acervo, localizamos Relatórios de Fiscais da Câma-
ra, Ofícios do Delegado de Higiene do Município, Ofícios do Delegado
de Saúde do Porto e Relatórios e ofícios do Presidente da Câmara abor-
dando as iniciativas da municipalidade no contexto da epidemia de Có-
lera de 1886. Utilizamos também dois Códigos de Posturas de Corumbá
localizados no Arquivo Público do Estado de Mato Grosso.

As Posturas Municipais em Corumbá e a busca da salubri-


dade urbana

O Regulamento das Câmaras Municipais do Império, promulga-


do em 1828, constituiu-se no principal marco jurídico para a atuação
política das Câmaras de Vereadores. Consta, no artigo 71 do Regula-
mento, que:

As Câmaras deliberarão em geral sobre os meios de promover e


manter a tranquilidade, segurança, saúde e comodidade dos ha-
bitantes; o asseio, segurança, elegância e regularidade externa dos
edifícios e ruas das povoações e, sobre estes objetos, formarão as
suas posturas, que serão publicadas por editais, antes e depois de
confirmadas (Leis e Decretos do Império. 1828. L042, p. 192-
196v. AHRS).

Atendendo ao Regulamento de 1828, no momento inicial de sua


instalação, a edilidade de Corumbá foi orientada pela presidência da
província a elaborar suas Posturas, para, a partir delas, organizar a admi-
nistração do novo município. As Posturas Municipais correspondiam a

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 19


um conjunto de regras em forma de artigos, parecida com as leis, com
orientações, proibições, obrigações, competências, infrações e multas
direcionadas para normatizar o município e agir nos usos e costumes da
população (SENA, 2017).
Nos dois Códigos de Posturas que existiram na Corumbá do pe-
ríodo imperial (1875 e 1883), é possível identificar o amplo leque de
atuação da Câmara Municipal, com variados assuntos relacionados
aos espaços, aos corpos e às atividades. Através das Posturas, a munici-
palidade regulamentava temas como: Saúde pública, Venda de gêne-
ros, Concessões, Medições e Alinhamentos, Limpeza, Obras públicas,
Segurança pública, Açougues, Matadouros, Cemitérios, Reunião de
pessoas/festas, Roças/cercamento, Circulação e permanência de ani-
mais vivos e mortos no perímetro urbano, Casa de Negócio, Taverna,
Oficina, Envenenamento de couro, etc. Todos estes temas estavam rela-
cionados à organização e funcionamento das atividades urbanas.
A reformulação das posturas ou a adição de artigos complemen-
tares ocorreram quando novas situações surgiam. Os vereadores, os em-
pregados da Câmara ou outras autoridades propunham a inclusão de
itens referentes a práticas que deveriam ser regulamentadas e fiscaliza-
das. Isso ocorria porque as posturas davam respaldo à vistoria e à interfe-
rência realizada pelos empregados da municipalidade, e serviam como
norteadora para que outros indivíduos cobrassem da Câmara fiscaliza-
ção, punição e melhorias relacionadas ao espaço urbano. As posturas
eram mecanismos do exercício de poder da Câmara Municipal, e seus
artigos propunham organizar o espaço e disciplinar as populações em
prol do “progresso” e da “civilização” que as elites de Corumbá tanto
almejavam e que condiziam com os princípios da modernidade vigentes
no momento (SENA, 2017).
Com as posturas e outros dispositivos (editais, proibições, adver-
tências, multas, inspeções etc.), a Câmara procurava promover a moder-
nidade e a urbanidade, com introdução de hábitos de civilidade à moda
europeia e já presentes entre as elites das maiores cidades do país. Sua
interferência no município se deu a partir de uma mentalidade da épo-
ca, com tentativas de colocar práticas e costumes que confrontavam aos
das populações, principalmente as mais baixas. Existia a preocupação
com a salubridade, o embelezamento, o ordenamento, a circulação e a
boa ordem do espaço urbano, daí o combate a hábitos tidos como não

20 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


requintados em nome dos “bons costumes” e do “progresso”. Dentre os
hábitos indesejáveis pelos legisladores estavam o consumo excessivo de
aguardentes, os jogos proibidos, os ajuntamentos, batuques com canto-
rias, a movimentação de pessoas consideradas loucas, a comercialização
irregular, o abate de animais em residências e a circulação destes em
vias públicas e a exposição de lixos e materiais em decomposição.
O primeiro Código de Posturas da municipalidade corumbaense
foi aprovado em 1875 pela Assembleia Legislativa provincial. Diante de
outros assuntos relacionados ao município, essa legislação deu especial
atenção à higiene pública, que apareceu contemplada no primeiro títu-
lo, inaugurando as orientações sobre o espaço urbano e evidenciando
que as autoridades municipais estavam preocupadas com o tema e em-
penhadas em reverter o quadro sanitário presente nos anos iniciais após
a Guerra.
Os habitantes da vila, a partir de então, estavam obrigados a levar
ao Paço da Câmara, nos dias 1º e 15 de cada mês, seus filhos, cura-
telados, tutelados, escravos e mais pessoas que lhes fossem subordina-
das para serem vacinadas contra a Varíola, caso ainda não tinham sido.
Quem assim deixasse de fazer, tornava-se infrator e deveria pagar multa
de 10$000 réis ou ficaria preso por quatro dias, além de ser compelido a
fazer vacinar seu dependente (MATO GROSSO, 1875).
Como região formada por propriedades rurais devotadas à criação
bovina, o abate de gado e o envenenamento (curtimento) de couro es-
tiveram entre as preocupações da municipalidade. A matança de gado
ficou proibida no perímetro da vila, nos seus arrabaldes próximos ou
locais onde com facilidade o ar infectado pudesse causar danos à saúde
pública. As penalidades ficaram em 5$000 réis de multa ou dois dias de
prisão.
O envenenamento de couro, que era um dos itens principais de
exportação provincial, também ficou proibido na área da vila ou em lo-
cais que pudesse provocar algum problema à saúde. A penalidade para
esse tipo de infração foi maior, com multa de 30$000 ou de 10 dias de
prisão. Além disso, os açougues seriam fiscalizados uma vez por sema-
na, para evitar irregularidades ou alterações sanitárias no comércio de
carnes. O objetivo era barrar qualquer atividade envolvendo o abate de
animais e o curtume de couros na área urbana que se configurava, aca-

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 21


bando assim com práticas até então frequentes.11
A alimentação deveria ser comercializada conforme os padrões hi-
giênicos do momento. Além da carne, ficou proibida a venda de gêneros
corrompidos, falsificados ou alterados, com pena de 25$000 ou 8 dias de
prisão, além das penalidades judiciais que correspondiam a esses atos.
Os espaços públicos também precisavam estar sadios, por isso ficou
proibida a instalação de latrinas com despejo para as ruas ou lugares de
uso comum. Para o caso de latrinas já instaladas antes da promulgação
das Posturas, os proprietários ficaram obrigados de fechá-las dentro de
15 dias, depois de intimados pelo fiscal da Câmara. Os infratores, além
de mandar executar o serviço, seriam punidos com 8 dias de prisão. A
presença de lama ou água estagnada, que pudessem exalar miasmas à
saúde pública também estava na mira das autoridades municipais, que
igualmente proibiu o trânsito desordenado de animais suínos, caprinos
e caninos e outros no perímetro urbano. A população também ficou
proibida de “fazer estrumeira”, jogar lixo, animais mortos ou moribun-
dos nas ruas e praças.
Os impedimentos e orientações foram reforçados nas posturas im-
plantadas em 1883. As novas posturas aumentaram o valor das multas
e dos dias de prisão para os que descumprissem a proibição da matança
de gado e do envenenamento de couro na zona urbana; e, para os que
não providenciassem a limpeza das casas e das vias públicas, o controle
de animais e a vacinação. O aumento das multas é uma nítida demons-
tração da permanência de práticas proibidas pela municipalidade nas
primeiras posturas. A própria aprovação de um novo Código foi moti-
vada pela necessidade de cobrir falhas do regulamento anterior, e visa-
va abarcar outros setores e práticas que precisavam ser regulamentados
pela municipalidade.
Foi assim que o cemitério e as formas de enterramento foram con-
templados. O cemitério público foi construído com orçamento munici-
pal, sendo área de jurisdição da Câmara, responsável pela contratação e
11. O controle do abate e do comércio de carne foi um tema relevante para a municipalidade de Corumbá
nos primeiros decênios de atuação da Câmara Municipal. Segundo Sena e Nogueira (2015, p. 341-342):
“Nos primeiros anos depois da Guerra do Paraguai contra a Tríplice Aliança, o comércio da carne pos-
suía características peculiares. O gado vinha dos campos conduzido pelo próprio açougueiro e/ou seu(s)
camarada(s), que igualmente trabalhava(m) na matança, corte e venda da carne. Comumente essas etapas
ocorriam no açougue, que poderia ficar vinculado à casa do açougueiro situada no perímetro urbano. Nele,
a carne ficava exposta em balcão e suspensa em ganchos, visível aos olhos do freguês que comprava direta-
mente no açougue ou fazia encomendas de partes específicas do animal abatido para depois buscar e acertar
o valor com o proprietário”.

22 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


pagamento dos empregados nomeados para o serviço. Enquanto a Câ-
mara não tivesse um regulamento especial para o serviço do cemitério,
algumas normas sobre os enterramentos foram asseguradas no Código
de 1883. Assim, nenhum cadáver seria conduzido ao cemitério, sem ter
um esquife ou caixão fechado, estando os infratores sujeitos à multa de
20$000 réis ou 6 dias de prisão. A sepultura não poderia ter menos de
seis palmos abaixo da superfície da terra, e nem deveria enterrar mais
de um cadáver por cova. As exumações ocorreriam depois de cinco anos
de enterramento do corpo, exceto por requerimento judicial ou policial.
Além disso, as covas e catacumbas de exumações não poderiam ficar
abertas por mais de 24 horas (MATO GROSSO, 1883).
Os cemitérios foram alvos de autoridades e sanitaristas do oito-
centos. Apontados como locais propícios para a produção de miasmas e
o surgimento de doenças, os cemitérios passaram a serem os principais
espaços para o sepultamento de mortos e não mais as igrejas, onde mui-
tos restos mortais foram retirados (REIS, 2004). Os cemitérios deveriam
ficar distantes do perímetro urbano e serem dotados de cuidados sa-
nitários. Em Corumbá, a municipalidade buscou interferir nas formas
como eram realizados os sepultamentos, fixando normas e punições
para os infratores.
O estudo comparativo das Posturas Municipais de Corumbá apro-
vadas em 1875 e em 1883 nos permite constatar um crescimento na
preocupação da municipalidade com a higiene pública. Este cresci-
mento, apesar de ser produto de ações locais, não pode ser dissociado do
processo de racionalização do espaço urbano e normatização do com-
portamento social que estava em curso no decorrer do Império. Neste
sentido, quando afirmamos que as Posturas Municipais da Corumbá
Imperial pretendiam coibir condutas da população que prejudicavam
o asseio e a salubridade pública, não estamos afirmando que o compor-
tamento dos vereadores de Corumbá era uma exceção no contexto do
Império. Pelo contrário, as pesquisas de autores como, Silveira (2007),
Ávila (2010), Aguiar (2011), Souza (2012), Rossi e Weber (2015), dentre
outros, nos permite afirmar que a experiência de gestão do espaço urba-
no que estava sendo implantando em Corumbá nos decênios de 1870 e
1880 apresenta semelhanças com experiências que ocorriam em outras
localidades do Império.
Inserida num contexto marcado pela valorização do saber mé-

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 23


dico, os Códigos de Posturas da Corumbá Imperial apontavam para a
necessidade de uma imposição da higiene e, consequentemente, con-
cediam uma atenção especial para a fiscalização das práticas sociais que
comprometiam a salubridade urbana. Dentro daquele contexto, a do-
cumentação produzida pela Câmara de Corumbá oferece importantes
elementos para uma reflexão sobre a distância entre a cidade higiênica
– desejada pela municipalidade e prescrita nas Posturas Municipais – e
a cidade insalubre que ganhava forma no cotidiano da população co-
rumbaense.

A higiene pública entre as leis e as práticas sociais: o caso


de Corumbá

Na seção anterior do texto destacamos o uso das Posturas Munici-


pais para assegurar e promover hábitos de higiene na população de Co-
rumbá. No entanto, a simples existência de uma lei não garante a adesão
espontânea da sociedade às determinações fixadas pelo texto jurídico. E,
como demonstrou Thompson, em sua clássica obra, “Senhores e Caça-
dores”, a lei precisa ser interpretada como um “campo de conflito” no
qual atuam grupos sociais com prioridades e valores culturais distintos
(THOMPSON, 1987).
No caso específico do nosso estudo as Posturas Municipais de Co-
rumbá instituíam multas para o cidadão que colocasse em risco a salu-
bridade urbana e a própria existência da multa era um indicativo de que
os legisladores previam a resistência da sociedade local. Por limitações
impostas pelas fontes documentais, não foi possível saber se as multas
previstas nas Posturas foram aplicadas com frequência. No entanto, lo-
calizamos documentos redigidos pela Câmara Municipal que nos per-
mitem inferir que havia uma distância entre as normas de higiene fixa-
das pela municipalidade e o cotidiano social.
O primeiro documento data de 1877. Trata-se de um Ofício en-
caminhado para a Câmara pelo Fiscal Emilio Ponsolle, que foi um dos
primeiros fiscais incumbidos de zelar pelo cumprimento das Posturas
aprovadas pela municipalidade corumbaense em 1875. Diante da sua
incumbência, Ponsolle deparou-se com uma situação difícil: a resistên-
cia da população em atender as determinações previstas no Código de

24 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


Posturas. No seu Relatório direcionado aos vereadores, o Fiscal afirma
que:

Por falta de imposição de penas àquelas pessoas que deixam de


proceder a limpeza das suas casas e seus quintais, pouco tenho
conseguido, por isso que raras são aquelas que tem acedido as mi-
nhas intimações a respeito (Relatório do Fiscal Emilio Ponsolle
enviado à Câmara Municipal, 26/12/1877).

As palavras do Fiscal da Câmara citadas acima registram a dis-


sonância que havia entre a intenção da municipalidade e o comporta-
mento da sociedade corumbaense. E, na opinião deste Fiscal, a situação
era agravada pelas deficiências do próprio Código de Posturas. Em uma
determinada passagem do seu Relatório, Ponsolle afirma que: “Tenho
enviado todos os esforços possíveis para a que não seja letra morta, a
providência consignada no Código de Posturas, mas tão defeituoso é ele,
que oferece tantos obstáculos de modo a não poder alcançar a felicidade
dos vossos munícipes.” (Relatório do Fiscal Emilio Ponsolle enviado à
Câmara Municipal, 26/12/1877).
Em 1881 o Fiscal da Câmara de Corumbá, Gregório Henrique
do Amarante, escreveu um Relatório informando suas ações em prol da
salubridade urbana. Neste, o Fiscal informou estar usando um “senten-
ciado” fornecido pelo Delegado de Polícia para roçar a “maior parte das
ruas e praças desta cidade e povoação do Ladário” e recomendou que
a Câmara mandasse limpar a estrada que ligava Corumbá até Ladário.
Na opinião do Fiscal, a limpeza da estrada era necessária para “o bem
da saúde pública” e também era um serviço que a população merecia,
“vista da contribuição que os mesmos habitantes pagam anualmente a
esta Câmara” (Relatório do Fiscal Gregório Henrique do Amarante à
Câmara, 18/4/1881). O mesmo relatório contém um interessante regis-
tro de fiscalização de açougues. O Fiscal informa dois açougues que fo-
ram multados e descreve com detalhes um dos casos de infração que ele
multou. Vejamos o que diz o documento sobre a infração das Posturas
praticada pelo cidadão André de Luchi nas palavras do próprio Fiscal:

O açougueiro André de Luchi, além de já ter vendido carne em


estado de putrefação pelo que foi multado, ocorre mais, que no
dia 15 do corrente (Sexta-Feira da paixão do nosso Redentor),

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 25


conduziu para o seu açougue, segundo fui informado por João
Galache, uma rês morta de peste; por isso dirigi-me ao menciona-
do açougue coadjuvado pela polícia, onde encontrei já exposta a
venda a dita rês, que pelo péssimo estado da magreza e diferentes
manchas pretas que tinha a carne, mandei que fosse imediata-
mente enterrada, o que se efetuou na minha presença, deixei de
multá-lo por não ter ainda vendido a dita carne. Esta ocorrência
assaz de importância chama a atenção de Vs. Senhorias, a bem da
saúde pública (Relatório do Fiscal Gregório Henrique do Ama-
rante à Câmara, 18/4/1881).

As infrações cometidas pelo açougueiro André de Luchi corrobo-


ram a ideia de que a simples existência das Posturas não assegurava à
municipalidade de Corumbá o controle sobre o comportamento da so-
ciedade local. Neste sentido, concordamos com Imízcoz (2004, p. 121)
quando este afirma que: “Las normas no son la causa mecánica de la
conducta sino efectos de la situación relacional de la que forman parte
los individuos”.
Interpretando as normas e leis como produtos de situações rela-
cionais, podemos ampliar nossa percepção sobre os problemas de hi-
giene pública registrados na documentação da Câmara Municipal de
Corumbá. Um destes problemas diz respeito à proliferação de cães de
rua e ao risco que eles representavam para a salubridade da população
local. Para atacar este problema, o Fiscal Amarante adotou uma atitude
radical e violenta: a distribuição de “bolas” com veneno. Aqui estamos
diante de uma prática não prevista nas Posturas – o extermínio de cães
de rua, contudo, esta prática atendia ao interesse da municipalidade que
era reduzir os riscos de doenças.
Apesar de reprovável para os padrões contemporâneos, o extermí-
nio de cães de rua por envenenamento era uma atitude preventiva co-
mum no Brasil imperial e visava prevenir a transmissão da raiva. Outro
tipo de atitude preventiva registrada pelo Fiscal Amarante foi a proibição
da “lavagem de roupas no porto desta cidade, onde os carretões condu-
tores de água para o consumo da mesma enchem suas pipas [...]” (Rela-
tório do Fiscal Gregório Henrique do Amarante à Câmara, 18/4/1881).
O problema relacionado à água continuou nos anos seguintes. Em
ofício à municipalidade em 1887, o Delegado de Higiene e da Saúde do
Porto, Dr. Manoel Joaquim dos Santos, ressaltou que era

26 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


de grande utilidade para a saúde pública haver um lugar no por-
to desta cidade, destinado exclusivamente para extração d’água e
não sendo acessível aos carros de condução o ponto, que melhor
se presta a esse fim, consulto a V. S. sobre a possibilidade de fazer-
-se uma rampa ou coisa equivalente, que sirva em qualquer época
do ano, para o mencionado serviço, obrigando-se deste modo o
grave inconveniente de usar a população de água impura pelas
matérias lançadas das embarcações fundeadas (Ofício do Dr. Ma-
noel Joaquim dos Santos, Delegado de Saúde do Porto, à Câmara
Municipal, 18/11/1887).

Tanto na Europa, quanto na América, o problema do consumo


de águas poluídas ganhou importância na segunda metade do século
XIX, sobretudo depois da divulgação da teoria da transmissão hídrica do
Cólera, apresentada pelo médico inglês Jonh Snow, em 1854 (SNOW,
1999). Sob a influência desta nova teoria, a preocupação com a qualida-
de das águas foi intensificada.12
Na cidade de Corumbá, a preocupação com a qualidade das águas
captadas no rio Paraguai e comercializadas em pipas esteve presente nas
décadas finais do século XIX e também nas primeiras décadas da Repú-
blica. O fato demonstra a persistência de um problema de salubridade
urbana que a municipalidade conhecia, mas não conseguia solucionar.
Feita essa pequena digressão, convém voltarmos o foco para a análise
dos relatórios de fiscais da Câmara de Corumbá produzidos no período
imperial.
O terceiro relatório localizado na nossa pesquisa data de 1887 e
foi redigido pelo Fiscal Adão da Cunha Kenippel. Esse cidadão já tinha
ocupado interinamente o cargo de fiscal em outubro e novembro do
ano anterior, e a partir de 1887 ele foi efetivado no cargo e exerceu sua
função por mais tempo tendo como base o Código de Posturas de 1883.
Isto significa dizer que ele fiscalizou as condições de higiene da cidade
usando um dispositivo jurídico mais elaborado do que o implantado em
1875.
O relatório do Fiscal Kenippel apresenta uma estrutura textual
12. A respeito do crescimento da preocupação com a qualidade das águas consumidas por populações hu-
manas ocorrido na segunda metade do século XIX, Sant’anna (2007, p. 215) afirma que: “As pesquisas
epidemiológicas de Jonh Snow mostravam que haveria um risco importante do contato dos seres humanos
com as águas poluídas, suspeitas de provocar o cólera: essa doença não seria ocasionada simplesmente por
qualquer sujeira, mas sim pela contaminação da água com excremento. Era o começo de um novo olhar
sobre as águas e sobre as doenças contagiosas”.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 27


mais desenvolvida. Deste documento, destacamos o subtítulo “Salubri-
dade Pública”, do qual procede a seguinte citação:

É de indeclinável conveniência de obrigar-se aos proprietários


de muitos cortiços existentes nas principais ruas desta cidade a
fazerem latrinas, medida que muito concorrerá não só para o
asseio da cidade como também para melhorar o estado sanitário
dela (Relatório do Fiscal Adão da Cunha Kenippel à Câmara Mu-
nicipal, 17/1/1887).

A preocupação de Kenippel com as latrinas evidencia a intensi-


ficação desse problema para a salubridade urbana. Com o crescimento
da população, cresceu também o volume de matérias fecais produzido
e o descarte destas matérias muitas vezes era feito em vias públicas ou
em barrancas. Outra autoridade responsável pela higiene do município
também deu ênfase ao problema do descarte das latrinas com matérias
fecais. O médico e Delegado de Higiene e da Saúde do Porto, José Mar-
ques da Silva Bastos, oficiou à Câmara sobre a necessidade de o Fiscal
“recomendar aos habitantes desta cidade limpeza nos quintais, e desin-
fecções de suas casas e latrinas, bem como remoção do lixo, que ainda
se encontra em algumas ruas e praças” (Ofício do Dr. José Marques da
Silva Bastos, Delegado de Higiene, à Câmara Municipal, 11/2/1887).
Bastos voltou a fazer nos meses seguintes essas recomendações, demons-
trando sua preocupação com o estado sanitário de Corumbá (Ofício
do Delegado de Higiene Dr. José Marques da Silva Bastos à Câmara,
27/6/1887).
Certamente o problema das latrinas não era novo. No entanto,
o conteúdo do relatório do Fiscal Kenippel e dos ofícios do Delegado
de Higiene não pode ser dissociado da epidemia de Cólera que atingiu
Corumbá nos meses finais de 1886 e nos primeiros meses de 1887.

Insalubridade urbana e a epidemia de Cólera

Em dezembro de 1886, a população de Corumbá defrontou-se


com os primeiros óbitos provocados pelo Cólera que chegou à cidade
pelo porto fluvial. Nos meses de janeiro e fevereiro do ano seguinte,
configurou-se uma situação de epidemia que provocou alterações no

28 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


comportamento da sociedade corumbaense. Reagindo ao impacto da
epidemia, a Câmara Municipal e outras instituições passaram a fiscali-
zar e empreender medidas mais enérgicas no controle da doença e na
higienização urbana.
Com base nos documentos localizados no acervo da Câmara Mu-
nicipal de Corumbá, sabemos que durante a epidemia de 1886/1887
ocorreram casos de abandono de enfermos e de cadáveres nas ruas da
cidade (Ofício do Vice-Presidente da Câmara Luis Augusto Esteves ao
Delegado de Polícia Joaquim Amaro Fernandes, 8/12/1886; Ofício do
Dr. Manoel Joaquim dos Santos à Câmara Municipal, 8/12/1886). E,
sabemos também, que a municipalidade aconselhou a realização de
limpeza nas casas, latrinas e espaços públicos, nomeou um fiscal adjun-
to para aumentar a fiscalização, promoveu visitas domiciliares para ve-
rificar o estado sanitário, ordenou a matança de porcos que circulavam
pelas ruas e o seu despejo no rio abaixo da área portuária, intensificou
a fiscalização dos açougues e casas de comércio, distribuiu medicamen-
tos, providenciou um lazareto para internação dos coléricos e interferiu
nos hábitos de sepultamento da população local.
O presidente da Câmara em exercício no momento da epidemia,
Tenente Coronel Antonio Antunes Galvão, narrou detalhes do compor-
tamento da população nos dias em que a doença atingiu suas primeiras
vítimas.

[...] Tendo aparecido aqui a 5 do corrente [dezembro de 1886]


alguns casos de Cólera Morbus e causando isso um grande pâ-
nico de muitas famílias correram de suas casas abandonando a
cidade em procura de abrigo a tão terrível epidemia e prevendo
nessas retiradas maiores calamidades procurei persuadir a muitos
do quanto era funesta essa medida e fiz publicar mesmo a 7 do
corrente um boletim [...], aconselhando limpeza e fumigações
como os melhores preservativos de tal enfermidade pois com tais
providências pouco ou nada se devia temer. Vendo porém que
por meios persuasivos nada consigna mesmo porque muitos se
haviam já retirado, deixando imundícias em seus quintais, e co-
nhecendo a urgente necessidade de fazer-se uma visita de todos
os focos de infecção que encontrasse e que tendessem a agravar as
nossas condições [...] (Ofício do presidente da Câmara Municipal
em exercício, Antonio Antunes Galvão, à Presidência da Provín-
cia, 17/12/1886).

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 29


Uma parte dos trabalhos realizados pela municipalidade durante
o enfrentamento da epidemia de Cólera foi registrada em outro docu-
mento elaborado por Antonio Antunes Galvão – o Relatório encami-
nhado para a Câmara Municipal no dia 17 de fevereiro de 1887. Nesse
documento, Galvão apresenta informações sobre o “hospital” impro-
visado pelo poder público para atender os enfermos. Segundo Galvão,

O hospital foi criado unicamente para os que não tinham meios


ou eram abandonados, conforme se vê dos ofícios relativos a sua
criação. [...]. Baixaram ao hospital, durante a epidemia, quarenta
e tantos doentes, dos quais morreram mais da metade (27) por-
que a maior parte deles eram recolhidos em estado já muito de-
sesperador (Relatório do ex-vereador Tenente Coronel Antonio
Antunes Galvão ao Presidente da Câmara José Joaquim Rabello
informando sobre o Cólera, 17/2/1887).

O testemunho que o Tenente Coronel nos deixou sobre a epide-


mia é interessante porque registra reações provocadas pelo Cólera na
sociedade corumbaense. Para Galvão, a doença teria atingindo cerca
de 1.000 pessoas – um número expressivo para uma população que na
época não chegava a 9 mil habitantes.
No momento em que Galvão passou a direção da Câmara aos
vereadores eleitos para o quadriênio que iniciou em janeiro de 1887,
ele deu também outras descrições sobre a epidemia. Na sua avaliação,
o Cólera ingressou por embarcações que trouxeram passageiros com a
enfermidade, ganhando vulto na cidade diante do desasseio que ela vi-
venciava. Aspectos como o número excessivo de currais nas residências,
de cães e porcos nas ruas, como frisado anteriormente, e a existência
“cloacas construídas sem observar as mais comezinhas leis da higiene”,
ganharam destaque na sua avaliação sobre o agravo da epidemia. Esses,
atrelado a outros problemas, como a permanência do abate de animais
em quintais e o curtume de couro no perímetro urbano, como era proi-
bido desde o primeiro Código de Postura do município, estiveram entre
os fatores que contribuíram para o aumento do número de vítimas. Gal-
vão destacou ainda que

Ninguém ignora que o abandono foi o elemento mais destruidor


que surgiu nos calamitosos dias do Cólera. Quando se recebia

30 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


um aviso ou se tinha conhecimento de que existia um enfermo,
precisando dos socorros do lazareto, nem sempre se podia com
presteza fazê-lo transportar por não haver quem quisesse sujeitar-
-se a esse serviço mesmo por bom preço; e muitas vezes teve-se ne-
cessidade de fazer escoltar pessoal para isso (Relatório de Antonio
Antunes Galvão, ex-Presidente da Câmara, apresentado aos novos
vereadores do quadriênio 1887-1890, 7/1/1887).

A epidemia de Cólera parece ter encontrado um ambiente favo-


rável na área urbana de Corumbá, porque nela havia situações e práti-
cas insalubres que fragilizam a saúde da população. A municipalidade,
desde os seus primeiros anos de existência, tentou criar novas formas de
comportamento e introduziu leis que visavam reprimir determinados
hábitos não condizentes com as características citadinas que a localida-
de vivenciava. O número reduzido de empregados municipais colabo-
rava para que as leis fossem burladas, e, consequentemente, facilitava
a continuidade de hábitos proibidos pelas Posturas em vigor na época.
Considerando os documentos consultados sobre a epidemia de
Cólera do biênio 1886/1887, constatamos que havia uma distância en-
tre a lei e as práticas de higiene da população local. Conforme o ex-vere-
ador Antonio Galvão, parte do que a cidade vivenciou durante a epide-
mia foi consequência de um “descostume em obedecer a lei” (Relatório
de Antonio Antunes Galvão, ex-Presidente da Câmara, apresentado aos
novos vereadores do quadriênio 1887-1890, 7/1/1887).

Considerações Finais

No período em que escrevíamos este texto, mais precisamente no


dia 23 de setembro de 2019, vimos uma reportagem no telejornal local
(de Corumbá) sobre o Dia Mundial da Limpeza (21 de setembro), com
ação em diversos países e cidades, sendo a primeira edição de Corumbá
no domingo (22/9/2019). Segundo a matéria, o ponto de encontro foi
a Praça do Ecoparque da Cacimba, onde dezenas de voluntários, entre
jovens, adultos e crianças, participaram com o objetivo de retirar o lixo
que se encontrava no local. O Ecoparque da Cacimba deveria ser uma
área de conscientização ambiental, no entanto, a frequente presença de
lixo no local indica a existência de um distanciamento entre o destino

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 31


planejado pelo poder público para a área e o seu efetivo uso social.13
Os voluntários retiraram uma quantidade expressiva de lixo. O
material inclua partes de mobiliários e de bicicletas, garrafas plásticas,
pneus, portas, etc. Ação semelhante ocorreu no município de Ladário,
na região do porto. Na mesma edição do jornal, foi reportado que a
prainha do Porto Geral de Corumbá amanheceu na segunda-feira
(23/9/2019) repleta de lixo deixado pelos frequentadores que usam a
área para o lazer no fim de semana. É preocupante porque esses e os
lixos retirados pelos voluntários estavam às margens do rio Paraguai,
que abastece de água as duas cidades brasileiras e as bolivianas vizinhas
(Puerto Suárez e Puerto Quijarro). Além de ser essencial para o abas-
tecimento das populações residentes na fronteira Brasil/Bolívia, o rio
Paraguai é o principal curso hídrico do bioma Pantanal e a qualidade
das suas águas influencia na fauna e na flora da região.
Felizmente, não identificamos notícias de ocorrência de Cólera
em Corumbá neste início do século XXI, mas sabemos que o lixo joga-
do em terrenos baldios, nas margens do rio e outros espaços provocam
a proliferação de insetos e ratos, amplia o risco de doenças e prejudica
o equilíbrio ambiental. Os mosquitos, por exemplo, tem anualmente
causado surtos de Dengue, Chikungunya e Zika. Parte destes problemas
ocorre porque uma parcela da população não cuida de quintais, descar-
ta o lixo em locais inadequados e não segue orientações para a manuten-
ção da limpeza da área urbana. Hoje, temos um grau de conhecimento
maior sobre os fatores que provocam o surgimento e a proliferação de
doenças e sabemos que os problemas sanitários possuem uma historici-
dade.
No caso específico de Corumbá, as décadas finais do Império fo-
ram marcadas por uma crescente preocupação com as condições sa-
nitárias de sua área urbana e com as práticas de higiene da população
local. Naquele contexto, a municipalidade tentou (re)ordenar o espaço
urbano, normatizando as práticas de higiene e atacando os focos de in-
salubridade, conforme frisavam as orientações modernas sobre o tema.
Contudo, parte da população residente em Corumbá burlava as normas
fixadas nos Códigos de Postura.
No decorrer da pesquisa nas fontes documentais, constatamos a
13. A matéria “Dezenas de voluntários participam do Dia da Limpeza em Corumbá” pode ser vista também
no endereço: http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/mstv-1edicao/videos/t/corumba/v/dezenas-de-volunta-
rios-participaram-do-dia-da-limpeza-em-corumba/7945180/

32 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


existência de diferenças entre os interesses de autoridades locais e as
práticas cotidianas da população local. A população demonstrou-se re-
sistente em aderir às normas de higiene fixadas pela municipalidade;
e, esta, por sua vez, tentou coibir, pela força da lei, da fiscalização e da
punição, hábitos considerados prejudiciais à salubridade urbana. Argu-
mentos como o reduzido número de empregados da municipalidade, a
resistência da população e o baixo orçamento municipal comumente
foram utilizados pelos vereadores para justificar o alcance limitado dos
Códigos de Posturas. Nestas condições, Corumbá encerrou o período
imperial provida de leis e instituições que atuavam na área da higiene
pública sem alcançar a eficiência desejada pelas autoridades munici-
pais.
Hoje, depois de 241 anos de sua fundação, Corumbá enfrenta
outros tipos de problemas relacionados à higiene pública e à saúde da
população. No entanto, persiste a difícil relação entre a legislação, a
sociedade e os agentes do poder público.

Referências

AGUIAR, Patrícia Figueiredo. Conduzindo condutas: a transformação


do ambiente urbano de Cuiabá a partir do Código de Postura de 1832.
Revista Espacialidades [online], v. 4, n. 3, p. 1-17, 2011.

ÁVILA, Vladimir Ferreira de. Saberes históricos e práticas cotidianas sobre


o saneamento: desdobramentos na Porto Alegre do século XIX (1850 –
1900). 2010. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, 2010.

BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no


século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CAMPOS, Maristela Chicharo. O governo da cidade: elites locais e


urbanização em Niterói (1835-1890). 2004. 303 f. Tese (Doutorado em
História Social e Urbana). Universidade Federal Fluminense, Niterói.

DIRETORIA GERAL DE ESTATÍSTICA. População Recenseada em 31


de dezembro de 1890. Rio de Janeiro: Officina da Estatística, 1898.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 33


DIRETORIA GERAL DE ESTATÍSTICA. Recenseamento do Brazil em
1872. Rio de Janeiro: Typ. G. Leuzinger, 1874. Vol. 6.

HOBSBAWM, Eric. A era do capital: 1848-1875. Tradução de Luciano


Costa Neto. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

IMIZCOZ, José Maria. Actores, redes e procesos: de los individuos a las


configuraciones sociales. Revista da Faculdade de Letras HISTÓRIA,
Porto, III Série, v. 5. p. 115-140, 2004.
Leis e Decretos do Império. 1828. L042, p. 192-196v. AHRS.

MATO GROSSO. Lei Provincial nº 11 de 3 de julho de 1875. Posturas


Municipaes da Villa de Santa Cruz de Corumbá. Arquivo Público de
Mato Grosso (APMT). Cuiabá-MT.

MATO GROSSO. Lei Provincial nº 607, de 31 de maio de 1883. Posturas


da Câmara Municipal da cidade de Santa Cruz de Corumbá. Assembleia
Legislativa Provincial. Arquivo Público de Mato Grosso (APMT). Cuiabá-MT.

Ofício do Dr. José Marques da Silva Bastos, Delegado de Higiene, à


Câmara Municipal, 11/2/1887. Caixa s/nº. Arquivo da Câmara Municipal
de Corumbá (ACMC). Corumbá-MS.

Ofício do Dr. José Marques da Silva Bastos, Delegado de Higiene, à


Câmara Municipal, 27/6/1887. Caixa s/nº. Arquivo da Câmara Municipal
de Corumbá (ACMC). Corumbá-MS.

Ofício do Dr. Manoel Joaquim dos Santos à Câmara Municipal, 8/12/1886.


Caixa s/nº. Arquivo da Câmara Municipal de Corumbá (ACMC).
Corumbá-MS.

Ofício do Dr. Manoel Joaquim dos Santos, Delegado de Saúde do Porto,


à Câmara Municipal, 18/11/1887. Caixa s/nº. Arquivo da Câmara
Municipal de Corumbá (ACMC). Corumbá-MS.

Ofício do Presidente da Câmara Municipal em exercício, Antonio Antunes


Galvão, à Presidência da Província, 17/12/1886. Caixa s/nº. Arquivo da
Câmara Municipal de Corumbá (ACMC). Corumbá-MS.

Ofício do Vice-Presidente da Câmara Luis Augusto Esteves ao Delegado


de Polícia Joaquim Amaro Fernandes, 8/12/1886. Caixa s/nº. Arquivo da
Câmara Municipal de Corumbá (ACMC). Corumbá-MS.

34 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


PERARO, Maria Adenir. Bastardos do Império: família e sociedade em
Mato Grosso no século XIX. São Paulo: Contexto, 2001.

REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no
Brasil do século XIX. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Relatório de Antonio Antunes Galvão, ex-Presidente da Câmara, apresentado


aos novos vereadores do quadriênio 1887-1890, 7/1/1887. Caixa s/nº.
Arquivo da Câmara Municipal de Corumbá (ACMC). Corumbá-MS.

Relatório do ex-vereador Tenente Coronel Antonio Antunes Galvão ao


Presidente da Câmara José Joaquim Rabello informando sobre o Cólera,
17/2/1887. Caixa s/nº. Arquivo da Câmara Municipal de Corumbá
(ACMC). Corumbá-MS.

Relatório do Fiscal Adão da Cunha Kenippel à Câmara Municipal,


17/1/1887. Caixa s/nº. Arquivo da Câmara Municipal de Corumbá
(ACMC). Corumbá-MS.

Relatório do Fiscal Emilio Ponsolle enviado à Câmara Municipal,


26/12/1877. In: Officios dirigidos a Camara. Corumbá, 1877. Caixa s/nº.
Arquivo da Câmara Municipal de Corumbá (ACMC).

Relatório do Fiscal Gregório Henrique do Amarante à Câmara, 18/4/1881.


Caixa s/nº. Arquivo da Câmara Municipal de Corumbá (ACMC).

ROSSI, Daiane Silveira; WEBER, Beatriz Teixeira. Legislação imperial


e câmaras municipais: saúde e a higiene (Santa Maria/RS, século XIX).
Dimensões, vol. 34, 2015, p. 120-144.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Cidades das águas: usos de rios,


córregos, bicas e chafarizes em São Paulo (1822-1901). São Paulo: Editora
SENAC, 2007.

SENA, Divino Marcos de. Entre articulações e conveniências na Câmara


Municipal de Corumbá: Relações de poder, laços sociais e atuação política
no final do Império. 2017. Tese (Doutorado em História). Universidade
Federal da Grande Dourados, Dourados-MS, 2017.

SENA, Divino Marcos de. Livres e pobres no Centro da América do Sul:


um estudo sobre os camaradas (1808-1850). Dourados: Ed. UFGD, 2013.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 35


SENA, Divino Marcos de; NOGUEIRA, Luiz Gabriel de Souza.
Matadouro, açougueiros e municipalidade: disciplina no comércio de
“carne verde” em Corumbá (1870-1888). Tempos Históricos, v. 19, p. 332-
357, 1º sem. 2015.

SILVEIRA, Janaina Souza. A autoridade municipal na Corte Imperial:


enfrentamentos e negociações na regulação do comércio de gêneros
(1840-1889). Tese (Doutorado em História). Campinas: Unicamp, 2007.

SNOW, John. Sobre a maneira de transmissão do Cólera. São Paulo/Rio


de Janeiro: HUCITEC/Abrasco, 1999.

SOUZA, Williams Andrade. Administração, normatização e civilidade: A


Câmara Municipal do Recife e o governo da cidade (1829-1849). 2012.
178 f. Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura Regional).
Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife-PE, 2012.

THOMPSON, Edward Palmer. Senhores e Caçadores: a origem da lei


negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

36 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


Capítulo 2

A PRESENÇA BELGA NAS MINAS


DO URUCUM: UMA ANÁLISE DA
INTENTONA COLONIALISTA BELGA
NO ANTIGO MATO GROSSO
(CORUMBÁ, 1907-1918)

Nathalia Claro Moreira

Introdução14

A temática da presença belga no município de Corumbá (MS)


ainda desperta surpresa em grande parte da população pantaneira que
desconhece a atuação belga no município derivada dos interesses da
empresa Compagny del Urucum. Esta empresa siderúrgica belga foi
responsável pelas primeiras explorações em larga escala das jazidas de
ferro e manganês nos morros localizados ao sul de Corumbá - uma for-
mação geológica conhecida como Maciço do Urucum. O decreto de
concessão de direitos para a empresa Compagny del Urucum foi assina-
do em 1907, e a empresa atuou na atividade mineral de Corumbá até
1918, sendo interrompida pela eclosão da Primeira Guerra Mundial
na Europa. Os vestígios desta atuação ainda permanecem no distrito
ferromanganesífero do Urucum, como chalés, pequenos engenhos, e
uma mina que dá acesso às galerias escavadas nas costas superiores
do morro de Santa Cruz, conhecida popularmente como “Mina dos
Belgas”.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 37


Figura 1: Mina dos Belgas em Corumbá (MS).

Fonte: Fotografia de autor desconhecido. S.d.15

Infelizmente, a presença belga em Corumbá não configurou


grande interesse historiográfico, aparecendo brevemente em poucos
trabalhos, em sua maioria da área da Geografia, que versam sobre a ati-
vidade mineradora no antigo Mato Grosso. Dentre essas poucas obras,
destacamos três fontes mais antigas: as obras Oeste de São Paulo, Sul do
Mato Grosso, Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (1909), do geógrafo
carioca Miguel Arrojado Ribeiro Lisboa, Manganese and Iron Depo-
sits of Morro Do Urucum, Mato Grosso, Brazil (1941) do engenheiro
norte-americano John Dorr, e Les belges au mato grosso et en amazonie
(1975), do historiador belga Eddy Stolls.
O trabalho de Miguel Arrojado Ribeiro Lisboa (1909) foi desen-
volvido enquanto ele atuou na Comissão Schnor de reconhecimento do
traçado da ferrovia Noroeste Brasil (NOB). Lisboa foi um dos grandes
incentivadores da mineração no Brasil, e foi responsável pelas primeiras
análises dos calcários pré-cambrianos de Corumbá. A obra em si não
aborda a atuação belga em Corumbá, mas fornece as primeiras observa-
ções geológicas sobre o minério presente no município.
Em relação ao trabalho de John Dorr (1945), o trabalho consis-
te em um extenso relatório encomendado pelo Serviço Geológico dos
Estados Unidos (USGS) sobre o potencial comercial da exploração das
15. Disponível em: http://www.belgianclub.com.br/pt-br/heritage/mina-de-mangan%C3%AAs-no-morro-.
Acessado em 10 de dezembro de 2019.

38 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


jazidas do Maciço do Urucum. Após a saída dos belgas da exploração
mineral em Corumbá, são os estadunidenses que se apropriam dos ter-
mos de concessão devido ao grande uso de ferro e manganês na Segun-
da Guerra Mundial. A obra fornece um histórico das minas, abordando
brevemente a presença belga em Corumbá, ainda que com poucos de-
talhes.
Já o trabalho de Eddy Stols (1975), mais recente, se foca nos “reais
intentos” dos belgas ao estabelecerem seus empreendimentos no oeste
brasileiro. A teoria de Stols, que melhor dá escopo para o presente tra-
balho, é a de que os belgas, desde o reinado de Leopoldo I, desejavam
estabelecer um sistema colonial no Brasil como fariam no Congo. Stols
(1975) é quem nos fornece os maiores detalhes sobre os trâmites diplo-
máticos entre a Bélgica e o Brasil no final do XIX e início do XX. Sua
análise se atenta na atuação dos belgas na região de Descalvados (MT),
mas, não raramente, cita a relação dos empresários belgas com o Porto
de Corumbá, principal rota de escoação de produtos para a região da
Prata. É preciso dizer que muitas obras de Eddy Stols não foram tradu-
zidas do francês e não se encontram em domínio público, dificultando
o acesso ao seu vasto trabalho sobre o oeste brasileiro. Neste sentido,
neste trabalho não foi possível utilizar a obra Les belges au mato grosso
et en amazonie (1975) na íntegra, porém foi utilizado um capítulo deste
trabalho, O Brasil Se Defende Da Europa: Suas Relações Com a Bélgica
(1975), publicado como artigo no Boletín De Estudios Latinoamerica-
nos y Del Caribe.
Em relação as pesquisas mais recentes que referenciam a presença
dos belgas em Corumbá, destacamos as teses de doutorado A explora-
ção de minério de ferro no Brasil e no Mato Grosso do Sul, de Lisandra
Lamoso (2001) e Território e negócios na “era dos impérios”: os belgas
na fronteira oeste do Brasil, de Domingos Garcia (2005). O trabalho
de Lisandra Lamoso é referência nos estudos sobre a atividade mineral
em Corumbá. A autora perfaz todo um histórico sobre as jazidas de
ferro e manganês nos morros de Corumbá, trazendo detalhes sobre as
diferentes concessões de exploração destes recursos desde o século XIX.
Sobre os belgas, a professora dedica o capítulo Nem brasileiros, nem por-
tugueses: a participação do capital belga. Todavia, o capítulo se detém a
descrever o projeto extrativista dos belgas e suas pretensões econômicas,
sem qualquer interesse em estabelecer hipóteses sobre um intento colo-

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 39


nizador dos estrangeiros.
Coube a Domingos Garcia colocar em discussão a possível inten-
tona colonialista belga no Mato Grosso em sua tese de doutorado. O au-
tor utiliza-se dos trabalhos de Eddy Stolls para discutir a integridade ter-
ritorial do oeste brasileiro entre 1895 à 1915. Para Garcia (2005), através
da compra de grandes porções de terras e estabelecimentos industriais,
além do estabelecimento de relações diplomáticas com figuras políticas
e comerciais de cidades do interior brasileiro, os reis belgas Leopoldo I
e Leopoldo II ambicionaram manter um sistema colonial entre o Mato
Grosso e o Acre.
Partindo do conhecimento sobre o tema já construído pela histo-
riografia, o presente texto enseja revisar as principais informações histó-
ricas que sugerem uma relação entre a atuação belga no Maciço do Uru-
cum, em Corumbá, e o interesse colonialista da monarquia belga sobre
o oeste brasileiro no início do século XX. A fim de não nos determos
somente nas informações cedidas pelas obras supracitadas, elegemos,
ainda, o livro Belgium’s Expansionist History between 1870 and 1930:
Imperialism and the Globalisation of Belgian Business (2008), do profes-
sor Jan-Frederik Abbeloous. Para uma breve contextualização histórica
do final do século XIX e início do XX, nos apoiamos nas informações
cedidas por Eric Hobsbawn em sua obra A Era das Revoluções (1985).
Além do aporte teórico da literatura secundária, selecionamos
quatro fontes documentais que julgamos pertinentes para corroborarem
com nossa recuperação histórica. São elas: os periódicos Jornal O Matto
Grosso e o Jornal Autonomista, o documento Mensagens do Governador
de Mato Grosso para a Assembleia (MT) (1890-1937), disponíveis no
acervo digital da hemeroteca da Biblioteca Nacional; e o documento
Decretos da Câmara do Diário Official de 06/04/1907, disponível no
Acervo Legislação Informatizada. As quatro fontes documentais trazem
informações que configuram pequenos rastros históricos, em caráter jor-
nalístico e legal, naquilo que Carlos Ginsburg (apud VAINFAS, 2002)
chama de “paradigmas indiciários” - isto é, relatos microhistóricos que
auxiliam a reconstituir ou, ainda, especular uma narrativa histórica
acerca dos belgas em Corumbá.
Para desenvolvermos a temática, foi necessário dividirmos nossa
abordagem em dos fatores interligados: o primeiro diz respeito ao inte-
resse belga em estabelecer uma relação diplomática com o Brasil visan-

40 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


do o estabelecimento de colônias belgas em nosso país durante os reina-
dos de Leopoldo I e Leopoldo II; o segundo, por sua vez, diz respeito ao
interesse especifico dos belgas no oeste brasileiro, com ênfase no antigo
Mato Grosso, perpassando pela atuação belga na região de Descalvados
(MT) e o suscetível interesse e aquisição da concessão de exploração das
minas do Maciço do Urucum, em Corumbá (MS).

Os belgas e o Brasil: os empreendimentos colonizadores de


Leopoldo I e Leopoldo II

Para entendermos o que poderia ter levado a Bélgica a se interes-


sar tão assiduamente em estabelecer relações com o Brasil no século
XIX e XX, é preciso retroceder ao ano de 1830. Conforme Hobsbawn
(1996), este ano configurou uma série de revoluções na Europa, deriva-
das da insatisfação popular sobre a reconfiguração territorial provocada
pelo Congresso de Viena.16 Em linhas gerais, o Congresso de Viena
redesenhou o mapa da Europa após a derrota da França Napoleônica,
redistribuindo e reintegrando territórios aos países vencedores envolvi-
dos nos conflitos napoleônicos. Deste modo, muitos países que já ha-
viam se emancipado e estavam em plena fase de industrialização, foram
obrigados a serem subordinados por reinos maiores, como foi o caso da
Bélgica, submetida a ser uma das dezessete províncias da Holanda, em
1815, ao ser anexada ao Reino Unido dos Países Baixos.
Por 15 anos, os belgas permaneceram integrados ao novo reino ho-
landês, porém a insatisfação popular era crescente. É, portanto, em agosto
de 1830, que uma grande revolução popular se organiza contra o rei ho-
landês Guilherme I, em Bruxelas. Após 4 dias de luta e 500 vidas perdidas,
nasce o estado belga independente que, após uma assembleia constituin-
te, nomeia o primeiro rei dos belgas, Leopoldo I. A ascensão de Leopoldo
I ao trono é o que aproxima a Bélgica do Brasil. E esta aproximação se
explica por um fato simples: a necessidade de mercado externo e, mais
16. Em “A Era das Revoluções”, Eric Hobsbawn explana que a década de 1830 reconfigurou toda a história
europeia através da segunda onda de revoluções (1829-1834). “Na Europa, a derrubada dos Bourbon na
França estimulou várias outras insurreições. Em 1830, a Bélgica conquistou sua independência da Holanda;
em 1830-1, a Polônia foi subjugada somente após consideráveis operações militares, várias partes da Itália e
da Alemanha estavam agitadas, o liberalismo prevalecia na Suíça - um país muito menos pacífico naquela
época do que hoje -, enquanto se abria um período de guerras na Espanha e em Portugal. Até mesmo a Grã-
-Bretanha, graças em parte à erupção do seu vulcão local, a Irlanda, que garantiu a Emancipação Católica
em 1829 e o reinicio da agitação reformista” (HOBSBAWM, 1996, p. 42).

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 41


posteriormente, de territórios para serem explorados e empreendidos.
Conforme elucida Jan-Frederik Abbeloos (2008), inicialmente a
Bélgica lidou com as consequências ruins de seu divórcio com o reino
holandês: a perda do mercado holandês e de seu império marítimo e
colonial de comerciantes no sudeste da Ásia. Para evitar a depressão
econômica, Leopoldo I investiu pesadamente na criação de uma rede
ferroviária que impulsionou o setor de minas de carvão e ferro e, conse-
quentemente, alavancou o setor industriário. Já em 1834, as indústrias
de carvão e metalurgia no sul da região da Valônia se tornam os motores
da revolução industrial da Bélgica, atraindo capital de bancos nacio-
nais e internacionais (ABBELOOS, 2008). Logo, bancos como a Société
Générale de Belgique, promoveram a inserção externa de investimentos
belgas em mercados estrangeiros na Europa e na América. Mais tarde
esses mesmos bancos seriam responsáveis pela tentativa de organização
das colônias belgas como parte de uma rede econômica imperial.
Conforme Stols (1975), desde 1831 os belgas haviam iniciado suas
relações diplomáticas com estados da América, sobretudo com os Esta-
dos Unidos e com o então império do Brasil. Se os Estados Unidos cha-
mavam atenção como potenciais importadores dos minérios extraídos e
dos produtos gerados pelas industrias belgas, o Brasil já chamava aten-
ção por outro aspecto: a quantidade imensurável de matéria-prima a ser
explorada e a presença de possíveis territórios a serem colonizados. Gar-
cia (2001) elucida que os belgas conheciam bem o território brasileiro:

Quando iniciaram seus investimentos e ações no oeste brasileiro,


os belgas já possuíam experiência com o Brasil, mantendo com
o país um intenso relacionamento diplomático e comercial, além
de possuir aqui diversos outros investimentos. Esse relacionamen-
to começou praticamente desde o nascimento da Bélgica, com
a sua separação da Holanda em 1830. O Brasil esteve entre os
primeiros países a reconhecer o novo Estado europeu (GARCIA,
2001, p. 121).

Com o olhar atento às riquezas brasileiras, Leopoldo I abre as por-


tas diplomáticas ao Brasil. Importante frisar que Dom Pedro I já havia
tentado aproximações com a Bélgica quando o território estava sob po-
der de Guilherme I, mas a corte portuguesa fora sumariamente despre-

42 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


zada em diversas ocasiões pelo rei holandês.17 Foi apenas com Leopoldo
I que a comissão diplomática brasileira foi recebida em Bruxelas, sendo
José Marques Lisboa, o primeiro diplomata brasileiro naquelas terras,
recepcionado em 2 de outubro de 1831, primeiro ano de reinado de
Leopoldo I. Mais tarde, no reinado de Leopoldo II, Dom Pedro II e Le-
opoldina seriam regularmente convidados à corte belga, estando lá nos
anos de 1876 e 1887 (STOLS, 1975).
De todo modo, é mister entender que a campanha diplomática
da Bélgica, iniciada com Leopoldo I (1831-1865) foi intensificada no
reinado de seu filho e sucessor, Leopoldo II (1865-1909), devido à crise
capitalista do século XIX, ocorrida entre 1874 a 1890, que provocaria,
dentre outros percalços, o desemprego em massa da população euro-
peia. É neste momento que os países europeus começam a conjecturar
tentativas de iniciarem empreendimentos colonizadores em áreas como
a África e a América Latina para estabilizarem suas economias, fato que
ficaria conhecido na historiografia como neocolonialismo.
Se até 1874, o estado belga agia com certa timidez para usufruir
territórios estrangeiros, a partir de 1880, com seus lucros abalados, a
Bélgica alimenta uma política expansionista externa mais potente, pe-
netrando em mercados de crescimento estrangeiros recentemente in-
dustrializados, como era o caso do Brasil (ABBELOOS, 2008). Sem-
pre através da diplomacia, a Bélgica passa a impulsionar a emigração
de trabalhadores (e suas famílias) para o Brasil, bem como a financiar
grandes empreendimentos com capitais de bancos de Bruxelas e a fazer
sociedades em empreendimentos já consolidados em estados brasileiros,
como ocorreu em Santa Catarina. Santa Catarina foi o primeiro estado
brasileiro a ser explorado pelos investimentos belgas, tendo uma região
cedida em 1842 pelo governo imperial do Brasil à um grupo de comer-
ciantes de Bruges liderados pelo engenheiro belga Charles Van Lede,
quem mantinha relação direta com Leopoldo I e Leopoldo II (STOLS,
1975). Após 1880, a monarquia belga começa a mirar em outras regiões
como Amazonas e Mato Grosso.
Denota Stols (1975, p. 64) que, bem antes da depressão econômi-
ca na Europa, por várias vezes o rei Leopoldo I tentou enviar ao Brasil
cidadãos belgas indesejáveis, como detentos ou mendigos, por meio de
17. Stols (1975) nos relata que Guilherme I demonstrou imensurável desdém ao Império do Brasil ao negar
casar sua filha, a princesa Mariana, com Dom Pedro I.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 43


embarques forçados no porto de Antuérpia a fim de criar colônias penais
no Brasil. Além de indesejáveis, em 1837, Leopoldo I já havia insistido
em oferecer soldados belgas ao império brasileiro, tendo como uma de
suas exigências a fixação desses militares em colônias brasileiras nas pro-
ximidades fronteiriças do país.
O grande interesse de Leopoldo I em fixar trabalhadores, militares
e ainda, párias da nação belga, em solo brasileiro, denota o claro interes-
se do monarca belga em estabelecer colônias no Brasil desde o princípio
da abertura diplomática com a América Latina. Como sugere Garcia
(2001, p. 130): “Toda a movimentação desenvolvida pelos belgas aponta
para uma ação colonialista e parece-nos que essa ação estava em pleno
curso desde o século XIX aos primeiros anos do século XX”.
Mas o interesse colonizador belga intensificou, de fato, no reinado
de Leopoldo II, quem dividia seus projetos de expansão entre a América
Latina e a África. A agenda imperial de Leopoldo II combinava a busca
pessoal de honra e glória com o desejo de fazer da Bélgica uma nação
grande e rica. Em acordo com as aspirações coloniais de seu pai, o prín-
cipe Leopoldo II já havia conversado com o senado belga, em 1855,
sobre a necessidade de expansão comercial, buscando mercados novos
e protegidos para produtos belgas (ABBELOOUS, 2008). Depois de se
tornar rei, em 1865, Leopoldo II intensificou seus esforços para colocar
em prática seus ideais.
Abbeloous (2008) explica que, para Leopoldo II, a colonização
era uma forma de expansão que não apenas criaria oportunidades co-
merciais, mas também poderia fornecer espólios de exploração eficiente
como uma maneira direta de organizar uma duradoura transferência
econômica da colônia para a família real. Todavia, o projeto coloniza-
dor de Leopoldo II foi recebido com pouco entusiasmo pelos grupos
industriais e financeiros. O apoio político aos planos de Leopoldo II era
baixo porque conflitava com a doutrina de livre comércio extremamen-
te popular entre os políticos europeus a partir de 1860, e pelo fato de
que um projeto imperial poderia pôr em risco a neutralidade da Bélgica
conquistada por seu pai (ABBELOUS, 2008).
A situação apenas mudaria com a criação do Estado Livre do Con-
go, em 1885 que, em tese, fora construído como uma zona de livre
comércio na África e cuja exploração gerava tamanho lucro que cha-
mou atenção dos investidores internos. A propaganda, endossada pelo

44 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


próprio parlamento belga, era de que o Congo seria a mais bem suce-
dida experiência colonial na África (assistencialista aos povos nativos,
lucrativa e inovadora). Mas a história provou que a atuação colonial no
Congo fora justamente o oposto do discurso dos colonizadores: ela foi
cruel, atroz e bárbara.18
Com bons ou maus intentos, Leopoldo II não poupou esforços em
mirar no Brasil um novo Congo. Não obstante, se envolveu avidamen-
te em audiências com diplomatas brasileiros, como nos lembra Stols
(1975, p. 89) sobre a insistência do rei belga “em pedir à República dos
Estados Unidos do Brasil uma parte da Guiana que o Brasil mantinha
em litigio com a França”. Leopoldo II chegou de levar seu pedido ao
imperador Dom Pedro II, alegando que colonizaria o território com os
“melhores belgas”, porém não obteve êxito.
Nem a colônia em Santa Catarina, nem a negativa sobre a Guiana,
satisfizeram o monarca belga que tornaria seus intentos colonizadores
para o oeste brasileiro. Não obstante, Leopoldo II daria incentivos capi-
talistas à companhias belgas de extração vegetal e mineral para atuarem
em regiões do interior do Brasil que eram, conforme diz Stols (1975),
conhecidas no imaginário dos investidores europeus como “terras de
ninguém”. Esta visão estava em muito relacionada com o episódio dra-
mático da Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) que demonstrou ao
mundo a fragilidade das fronteiras ao oeste do Brasil, invadidas em 1864
pelas tropas paraguaias com notória facilidade.

Por volta de 1890 havia no Brasil um número expressivo de em-


presas de capital belga, operando em diferentes setores e em dife-
rentes regiões. Entre 1886 e 1896 o capital belga se dirigia predo-
minantemente para os setores de infra-estrutura, principalmente
para a construção de ferrovias no sul do país. Ocupava nesse pe-
ríodo a terceira posição entre os investidores estrangeiros. Em se-
guida os belgas começaram a diversificar os seus investimentos, se
dirigindo para os setores de mineração, de alimentos, de extração
e comercialização de borracha e para o setor de serviços urbanos
em diferentes regiões do país. (GARCIA, 2005, p. 123).
18. Nos 23 anos (1885-1908) de colonização, Leopoldo II governou o Congo e provocou o massacre de
cerca de 10 milhões de africanos. Conforme denúncias internacionais, o regime de Leopoldo II era respon-
sável pela mutilação de homens, mulheres e crianças, cortando suas mãos e órgãos genitais, açoitando-os
até a morte ou deixando-os morrer de fome em trabalhos forçados. Sob a administração de Leopoldo II, o
Estado Livre do Congo se tornou um dos maiores escândalos internacionais do início do século XX. Cf:
King Leopold’s legacy of DR Congo violence. Disponível em: http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/3516965.
stm. Acessado em 08 de dezembro de 2019.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 45


O interesse belga no oeste brasileiro: da atuação em Descal-
vados à exploração de ferro e manganês em Corumbá

De modo geral, o interesse belga na região oeste do Brasil estava


ligado ao intenso fluxo econômico gerado pela extração da borracha no
vale do Guaporé, na bacia Amazônica, e ao crescimento agropecuário
no final do XIX. Este fluxo levou os belgas a desenvolverem um empre-
endimento industrial de larga escala na região chamada de Descalva-
dos, que pertencia à fazenda Jacobina, maior fazenda de Mato Grosso
no período colonial. Esta região, inicialmente sob propriedade da famí-
lia Pereira leite, foi loteada e vendida após a Guerra da Tríplice Aliança
para um imigrante argentino chamado Rafael del Sar que a transforma
em uma charqueada. Algum tempo depois, o argentino vende suas ses-
marias para um uruguaio chamado Jaime Sibils Buxáreo, que compra
todas as sesmarias restantes bem como o gado que ali residia, transfor-
mando a enorme região em uma grande fábrica moderna de carne e
derivados. Autores como Stols (1975) e Garcia (2005) alegam que o uru-
guaio fora, desde o princípio, financiado pelo rei Leopoldo II na compra
de Descalvados.

Figura 2. Fazenda Descalvados em Mato Grosso (séc. XX).

Fonte: Fotografia de autor desconhecido. S.d.19.

19. Disponível em: https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/expedicao-travessia/noticia/2019/06/06/as-mar-


gens-do-rio-paraguai-fazenda-que-exportava-produtos-para-a-europa-no-periodo-colonial-abre-as-portas-pa-
ra-o-turismo.ghtml. Acessado em 18 de novembro de 2019.

46 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


O empreendimento de Descalvados estava localizado na frontei-
ra do Brasil com a Bolívia, em uma região isolada, distante dos
centros de poder, onde o Estado brasileiro praticamente estava
ausente e localizada próximo da estratégica região onde as bacias
do Prata e Amazônica faziam a sua intercessão. Soma-se a esses
fatores, a sua proximidade das ricas florestas de borracha da região
do vale do Guaporé, provavelmente já conhecidas pelos belgas.
Por outro lado, o empreendimento de Descalvados era lucrativo,
fabricava produtos com boa aceitação no mercado europeu e, nos
primeiros anos em que foi controlado pelos belgas pagou bons
dividendos aos seus acionistas. (GARCIA, 2005, p. 103).

Não obstante, em 1891, relata Garcia (2005), devido as dificulda-


des de manter a exportação de seus produtos, Jaime Sibils Buxareo ven-
de Descalvados para a Societé Anonyme Compagni e dês produits Cibils,
à Anves, sociedade formada na cidade belga de Antuérpia. Descavaldos
passa a ser administrada, a partir de 1896, pelo belga François Joseph
Van Dionant, quem seria nomeado cônsul na cidade de Corumbá al-
guns anos mais tarde. A partir de 1897, Descalvados se torna, além de
uma fábrica de gêneros alimentícios, uma base de apoio para outros em-
preendimentos, como a extração da borracha, além de servir também
como espaço de representação diplomática da Bélgica em Mato Grosso
(STOLS, 1975; GARCIA, 2005).

Figura 3. Ruínas de fábrica belga em Descavaldos (MT).

Fonte: Foto de Rodinei Crescêncio (2018).20


20. Disponível em: https://www.rdnews.com.br/rdnews-exclusivo/velho-oeste-pantaneiro/conteudos/104514.
Acessado em 10 de dezembro de 2019.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 47


Conforme Stols (1975), a rota dos produtos de Descalvados, bem
como da própria borracha extraída na bacia amazônica, para alcançar
seu destino de exportação, perpassava todo o Mato Grosso alcançando
obrigatoriamente o Rio Paraguai, no Porto de Corumbá. É neste mo-
mento que a relação dos belgas com Corumbá começa a ganhar con-
tornos, sendo Corumbá, no século XIX, um dos principais entrepostos
comerciais do antigo Mato Grosso. A conexão da empresa belga Com-
pagnie des Produits Cibils em Descalvados com os comerciantes e donos
de barcos a vapor de Corumbá se torna constante no século XX. Não
obstante, diz Garcia (2005, p. 89): “Em 1901, o governo brasileiro acei-
tou a solicitação do governo belga para a instalação de um consulado
em Corumbá. François Van Dionant foi então indicado cônsul naquela
cidade, com jurisdição em todo o Estado de Mato Grosso”.

Figura 4. Porto de Corumbá no início do século XX.

Fonte: Autor desconhecido. S.d21.

Conforme Garcia (2005), os empresários belgas escolhiam perso-


nalidades com influência comercial e política em Corumbá, tais como
João Baptista Nunes e Francisco Mariani Wanderley, para lhes servirem
como procuradores ou ainda para substituírem o cônsul em períodos de
21. Disponível em: http://datasefatoshistoricos.blogspot.com/search?q=var%C3%ADola&x=15&y=15.
Acessada em 06 de 12 de 2019.

48 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


ausência. Como veremos a seguir, a manutenção das relações amistosas
com a elite local corumbaense geriam os interesses belgas de expandi-
rem suas fábricas para esta cidade cujo porto era alfandegado. O rio Pa-
raguai era um dos principais interesses dos belgas em Corumbá devido
a intensa navegação que estimulava o fluxo de capital mercantil oriundo
de embarcações brasileiras e estrangeiras da região do Prata.
Todavia, a partir de 1905, a decadência do ciclo da borracha ama-
zônica e as dificuldades com a fábrica em Descalvados provocaram
certo encolhimento do interesse de expansão belga no oeste brasileiro
(STOLS, 1975). A seca nos seringais e ao aumento das taxas de exporta-
ção provocam, diz Garcia (2001, p. 151), uma “clara decadência na área
de extração de borracha e o estabelecimento de Descalvados parecia
não conseguir mais recuperar a importância que os belgas lhe haviam
dado no período anterior.”
Em 1906, contudo, um novo empreendimento reacende a pre-
sença belga em Corumbá: a concessão para a exploração das minas
de ferro e manganês, na fronteira sul de Mato Grosso com a Bolívia.
É importante, neste momento, darmos um pequeno histórico sobre o
Maciço do Urucum, “excepcional complexo montanhoso que se eleva
abruptamente a mais de mil metros de altitude em meio à planície pan-
taneira” (LAMOSO, 2001). Conforme Lamoso (2001), essas minas já
eram conhecidas desde antes da Guerra da Tríplice Aliança, porém só
começaram a despertar interesse econômico com a reorganização terri-
torial da província de Mato Grosso já no final do século XIX. É possível,
nos diz a autora, que o nome “Urucum” tenha sido dado pelos indígenas
para a região onde se localizavam tais jazidas devido a cor “encarnada”
das montanhas, consequência da presença de ferro.

(…) a própria etimologia da palavra “urucum” seja representa-


tiva do conhecimento dos indígenas, sobre as características da
montanha. Urucum é uma palavra que deriva do tupy “urucu”,
que significa “encarnado” – denominação dada, provavelmente,
à cor encarnada do morro, resultante do mineral de ferro que o
compõe quase inteiramente. (LAMOSO, 2001, p. 191).

Segundo Lisboa (1909, p. 72) a primeira tentativa de desenvolver


os recursos minerais do distrito ferromanganesífero do Urucum foi rea-
lizada pelo Barão de Villa Maria em 1870, durante reunião no Tribunal

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 49


Imperial no Rio de Janeiro. Logrando discutir os meios de desenvolvi-
mento dos depósitos de ferro da sua Fazenda Piraputangas cuja área
limitava-se ao norte com a Morraria do Urucum, Villa Maria se referiu,
na época, à ocorrência de minério de manganês no mesmo distrito, sem
obter grande impressão do Império. Lamoso (2001) nos explica que,
após a morte do Barão, durante os onze anos que se seguiram, o Gover-
no Imperial concedeu concessões à viúva Baronesa Maria da Glória Pe-
reira Leite, bem como à diferentes empresas que não levaram a nenhum
desenvolvimento real de investigação dos possíveis recursos.

Como o Barão faleceu sem que tivesse iniciado a exploração, a


concessão foi oferecida à viúva, Maria da Glória Pereira Leite,
Baronesa de Villa Maria, em 2 de agosto de 1876, pelo decreto
nº 6.273, permitindo a exploração de ferro e outros metais nas
propriedade de Piraputangas e São Domingos. As dificuldades da
época, além da pouca demanda por produtos, fez com que a ex-
ploração não se concretizasse, mesmo após ser prorrogada suces-
sivamente em 1878 e 1882. (LAMOSO, 2001, p. 193).

Dorr (1947) elucida que o interesse pelas lavras protelou até o ano
1894, quando uma concessão de 20 anos foi expedida pelo Governo de
Mato Grosso à Francisco Couto da Silva, que induziu uma empresa no
Rio de Janeiro a tentar o desenvolvimento da deposição de manganês e
enviar o engenheiro Publio Ribeiro para investigar a área (DORR, 1947,
p. 34). Todavia, o trabalho de desenvolvimento real começaria, de fato,
somente em 1906, quando a concessão foi vendida por Ribeiro à uma
empresa formada por interesses siderúrgicos belgas.
Conforme Stols (1975), a concessão foi vendida para Compagnie
de l’Urucum Société Anonyme, tendo como dirigente o cônsul belga em
Corumbá, o engenheiro Pierre de Thier-David. A escolha do cônsul
era estratégica uma vez que o mesmo mantinha suas funções diplomá-
ticas, atuando na órbita dos interesses privados dos seus compatriotas,
de modo político e comercial. As relações do cônsul prosseguiram as
amizades estratégicas do cônsul anterior, sobretudo com o comerciante
Francisco Mariani Wanderley, quem, em sua ausência, defendia os inte-
resses da Companhia através da firma Wanderley, Baís e Cia. Tal firma
tinha sede em um enorme casario do Porto Geral de Corumbá, que
abriga hoje o Museu de História do Pantanal (MUHPAN).

50 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


Além do apoio da elite local, os belgas buscaram incentivos do
próprio governo republicano brasileiro, encontrando no Barão de Rio
Branco a intervenção necessária, sobretudo em relação a expansão dos
prazos de concessão. Rio Branco interveio junto ao governo de Mato
Grosso, solicitando ao então governador Generoso Ponce, “benevolên-
cia para a companhia belga de exploração das minas de Urucum a ins-
talarse brevemente nesse Estado” (APMT apud GARCIA, 2005, p. 98).
Com os caminhos abertos para seu estabelecimento em Corum-
bá, a Compagnie de l’Urucum, fundada na cidade de Ougreè, na Bélgi-
ca, objetivou explorar, comercializar e industrializar o manganês e ferro
do Maciço do Urucum. Conforme o decreto de concessão de direitos
n. 6426 de 21 de março de 1907, a sociedade belga teria no Brasil uma
sede administrativa e uma representação oficial confiada a um agente
responsável. Sua duração fora fixada em trinta anos, mas poderia ser
prorrogada sucessivamente, como também poderia ser dissolvida em
qualquer tempo antes da expiração de seu termo por decisão da Assem-
bleia geral.
Lia-se no ato de lavratura, nas cláusulas que acompanham o de-
creto:

O Sr. Pierre de Thier-David, engenheiro, domiciliado em Flé-


malle-Grande, provincia do Liége, Belgica, director da Compag-
nie de l’Urucum, sociedade anonyma em Ougrée, provincia de
Liége, Belgica, o qual, após haver justificado a sua identidade,
agindo em virtude de uma procuração que lhe foi dada pela
Compagnie de l’Urucum, sociedade anonyma, estabelecida em
Ougrée, provincia, de Liége, Belgica, representada por seu con-
selho de administração, por acto passado perante mestre Renson,
tabellião em Ougrée, a 14 de janeiro de 1907, registrada em 16 do
mesmo mez e devidamente legalizada, do cuja procuração ficou
annexa á presente uma cópia em devida forma: O qual declarou
effectuar em nossa chancellaria o deposito da cópia da dita procu-
ração, como tambem dos estatutos da Compagnie de l’Urucum,
sociedade anonyma, constituida em Ougrée, provincia de Liège,
Belgica, conforme acto lavrado perante o tabellião Renson em
Ougrée, a 17 de setembro de 1906, devidamente registrado, taes
quaes estão publicados, como manda a lei, no Moniteur Belge de
2, 3 de janeiro de 1907, annexos, acto n. 33, pags. 26, 27, 28, 29,
30, 31, 32 e 33. Compagnie de l’Urucum, sociedade anonyma
em Ougrée. (BRASIL. Decreto n. 6.426, de 21 de mar. de 1907).

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 51


Em 17 de outubro de 1908, na edição 165 do jornal Autonomista,
foi publicada a resolução nº497 sobre o prazo de concessão da empresa
belga nas minas do Urucum. Lia-se na resolução que a Companhia de
l’Urucum “para gosar dos favores concedidos, fica (…) obrigada a expor-
tar anualmente e dentro do prazo de cinco annos, trinta mil toneladas
de minério, extrahido da zona de sua concessão” (AUTONOMISTA,
1908, p. 02).
Lamoso (2001) explica que para a execução de seus serviços de
extração e exportação, a Companhia demandou a imigração de traba-
lhadores para Corumbá, sobretudo do Uruguai e da Bolívia. Fato curio-
so que a autora ressalta era certo desdém dos belgas pelos trabalhadores
de Corumbá, os “peões locais”, que aparecem nas correspondências dos
empresários como gente “não-idônea”. Araujo (2013), em seu trabalho
sobre os mineradores de Corumbá, elucida que:

Em relação aos trabalhadores no Sul de Mato Grosso, Oli-


veira observou ainda que havia uma ampla discriminação dos
trabalhadores locais, principalmente no que diz respeito à etnici-
dade dos mesmos, indígenas, negros e paraguaios, os quais
não estariam qualificados para o trabalho disciplinado, desta
forma, prevalecia à preferência pelo emprego da mão de obra
do imigrante europeu e seus descendentes. Além disso, o Estado
empreendia um rígido controle sobre os imigrantes na fronteira,
sendo considerados “indesejados”, sobretudo os paraguaios, al-
vos de constante de vigilância e perseguição policial. (ARAÚJO,
2013, p. 77).

Os mineiros contratados em Montevideo eram, em sua grande


maioria, italianos, fato que explica, em partes, a migração italiana e o
estabelecimento de famílias italianas no município pantaneiro. Além de
italianos, os belgas contrataram um número grande de mineiros no Nor-
deste brasileiro e bolivianos, sendo que muitos destes homens atuariam
também na construção da ferrovia Noroeste Brasil.
A gradativa ocupação belga em Mato Grosso chamou atenção da
própria imprensa europeia que considerava a região brasileira como o
“Novo Congo”, fazendo comparações entre os rios africanos com os rios
pantaneiros (STOLS, 1975). Sobre os empreendimentos belgas em
Mato Grosso, diz Stols (1975), a revista Le Mouvement Géographique

52 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


escreveu em 1900: “os colonos belgas buscam ampliar o escopo de seus
investimentos e parecem querer usar a experiência que adquiriram na
África para expandir seus efeitos em novas áreas para aumentarem os
lucros do capital” (STOLS, 1975, p. 72, trad, própria)22.
Os anos iniciais dos belgas no Maciço do Urucum foram lucra-
tivos, interligados com os avanços da ferrovia Noroeste Brasil. A extra-
ção de manganês pelos belgas foi comemorada pelo setor econômico e
político, sendo registrada nas palavras do governador Generoso Ponce
pelas garantias de “grande entrada de capital para a economia interna”
(MATO GROSSO, 1908, p. 17). Nas cartas de Ponce para a Assembleia
Legislativa, de 13 de maio de 1908, ao abordar as finanças do Estado, o
governador de Mato Grosso relata com euforia que a produção esperada
não era menos de duzentas mil toneladas de minério, com um capital
de 4.700.000 francos para empresas metalúrgicas belgas.
Todavia, alguns anos mais tarde, a exploração mineral começou
a dar sinais problemáticos. A escassez e o alto custo do transporte, as
mudanças na taxa de câmbio e, acima de tudo, os preços mais baixos
do manganês, não foram suficientemente levados em consideração no
projeto da exploração do Maciço do Urucum. Conforme Stols (1975),
os belgas passam a entrar em desacordo com os engenheiros e trabalha-
dores contratados do Brasil e de outros lugares, e os patrões formam um
sindicato para reduzir os salários de acordo com as variações da troca.
Assumiam ainda a postura de não voltar a empregar aqueles que deixa-
riam seus serviços em descontentamento com os novos salários.
Em 26 de julho de 1917, na edição 1426, o jornal O Matto Grosso
publicava uma grave acusação de que os belgas estariam transferindo o
direito de exploração das minas de Corumbá sem o conhecimento do
governo brasileiro. Conforme o jornal, a Gazetta Oficial havia comu-
nicado que a Companhia havia transferido a sua concessão aos norte-
-americanos através da figura de um sujeito chamado Reo Bennet e que
“o Governo do Estado, ao que parece, não foi ouvido nesta importante
transação, já effectuada sem sua autorização nem o pagamento do direi-
to taxado em lei” (O MATTO GROSSO, 1917, p. 03). O jornal ainda
acrescenta que “a idoneidade do cessionário ficou estranha ao Governo,
22. No original: “Les coloniaux belges cherchent à étendre le champ de leurs invesgations et semblent vouloir
utiliser l’experience qu’ils ont acquise en Afrique por porter leurs effects dans des regions nouvelles et y faire
fructifier leur travail et leurs capitaux”. Cf. STOLS, Eddy. “O Brasil Se Defende Da Europa: Suas Relações
Com a Bélgica (1830-1914).” Boletín De Estudios Latinoamericanos y Del Caribe, no. 18, 1975, pp. 72.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 53


como se elle fora na operação uma parte despresível”. Na mesma edição
do jornal Matto Grosso, os editores explanam que a concessão de explo-
ração dos belgas “caducou em consequência da falta de cumprimento
do respectivo contrato”.
É o governador Fernando Corrêa da Costa quem explica à
assembleia a retirada da Companhia Belga da atividade mineral
em Corumbá, em maio de 1924. Conforme o governador, “a guerra
europea levou a exigência de manganês a um elevadíssimo algarismo;
só a América do Norte pede oitocentas mil toneladas por anno, e não
consegue receber mais de seiscentas mil”. Não obstante, Ponce explana
que são os estadunidenses os novos interessados na concessão de lavras
do Maciço do Urucum:

Tenho ainda a informar a V.Exa. que reformei com o represen-


tante do syndicato americano, cessionário da companhia Belga,
o contracto para exploração das minas de manganez do urucum.
Muitos annos se passarão depois que, para a exploração dessas
minas, fez o Estado a primeira concessão. Nem o primitivo con-
cessionário e nem os seos vários sucsessores exportarão minério;
ultimamente a Companhoa Belga cessou de trabalhar. A Guerra
Europea levou a exigência de manganez a um elevadíssimo alga-
rismo; só a America do Norte pede oitocentas mil toneladas por
anno, e não cosegue receber mais de seiscentas mil. Há portanto
um déficit de duzentas mil toneladas, que terá de ser coberto por
este Estado. (…) Matto Grosso não podia perder a opportunidade
de entrar no mercado do manganez; demais o Brazil não podia re-
gatear auxílios a seos alliados na Grand Guerra. (MATO GROS-
SO. Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa pelo Gover-
nador do Estado de Matto-Grosso Fernando Corrêa da Costa, 13
de maio de 1924).

Considerações Finais

A recuperação histórica da presença dos belgas nas minas do Uru-


cum, em Corumbá, é uma temática que ainda carece de uma futura
exploração documental. Se a atuação belga tinha intuitos unicamente
econômicos ou se resguardava de fato uma intencionalidade colonial,
não podemos afirmar. Todavia, apoiados em teorias recentes sobre o ex-

54 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


pansionismo belga no oeste brasileiro e do interesse colonial do rei Leo-
poldo II em regiões como Descalvados, em Mato Grosso, julgamos per-
tinente levantarmos tal provocação: haveria uma possível relação entre
a instalação da empresa Compagny del Urucum na exploração mineral
do Maciço do Urucum entre 1907 à 1918 com o interesse belga de se
apropriar de regiões fronteiriças de potencial logístico estratégico como
era Corumbá no início do século XX?
Ao analisarmos os trâmites legais dos agentes belgas no território
brasileiro, acompanhando – via documentação histórica – as aproxima-
ções diplomáticas destes mesmos agentes com figuras políticas e eco-
nômicas locais de Corumbá, percebemos que havia, de fato, um in-
tuito implícito dos belgas em se infiltrarem nas relações interinas do
município bem como do próprio Governo de Mato Grosso. É possível
conjecturarmos que as riquezas minerais de Corumbá somadas à sua
localização estratégica, fazendo fronteira térrea com a Bolívia e sendo
um dos principais portos de escoação dos produtos a serem exportados,
provocaria o interesse de Leopoldo II, quem já havia tentando empre-
ender seu projeto colonial em regiões mais ao norte de Mato Grosso e
do Amazonas. De todo modo, a presença dos belgas na região oeste do
Brasil na transição do século XIX para o XX, e, particularmente, os seus
investimentos na mineração em Corumbá, ainda necessitam de uma
análise histórica mais aprofundada.

Referências

ABBELLOUS, Jan Frederik. Belgium’s Expansionist History between


1870 and 1930: Imperialism and the Globalisation of Belgian Business. In:
Csaba Lévai (ed.), Europe and Its Empires. Pisa: Plus, 2008, p. 105-127.

ARAUJO, Rodrigo Salvador de. Justiça a ferro e fogo: os trabalhadores da


mineração e siderurgia em Corumbá e a busca por Direitos na justiça do
trabalho (1960-1970). Dissertação (Mestrado em Geografia). Universidade
Federal da Grande Dourados (UFGD), Dourados/MS, 2013.

AUTONOMISTA. Corumbá, n. 165, p. 02, 17 de outubro de 1908.


Fundação Biblioteca Nacional-RJ. Disponível em: http://memoria.bn.br/
DocReader/765473/198. Acessado em 18 de dezembro de 2019.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 55


BRASIL. Decreto n. 6.426, de 21 de mar. de 1907. Concede autorização
á Compagnie de L’Urucum , com séde em Ougrée, na Belgica, para
funccionar na Republica. Disponível em: http://www2.camara.leg.
br/legin/fed/decret/1900-1909/decreto-6426-21-marco-1907-525353-
publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 24/11/2017.

DORR, John Van Nostrand. Manganese and Iron Deposits of Morro Do


Urucum, Mato Grosso, Brazil, Ed. 946. Washington, D.C.:1947.

LAMOSO, Lisandra Pereira. A exploração de minério de ferro no Brasil e


no Mato Grosso do Sul. Tese de doutorado, 309 f. Universidade de São
Paulo - SP, 2001.

LISBOA, Miguel Arrojado Ribeiro, Oeste de São Paulo, Sul do Mato


Grosso, Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, p. 72 f., Rio de Janeiro, l909.
MATO GROSSO. Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa
pelo Governador do Estado de Matto-Grosso, Generoso P. L. de S.
Ponce. Cuiabá, 13 de maio de 1908. Fundação Biblioteca Nacional-RJ.
Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/873080/548, acessado
em 18 de dezembro de 2019.

MATO GROSSO. Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa pelo


Governador do Estado de Matto-Grosso, Fernando Corrêa da Costa. Cuiabá,
13 de maio de 1924. Fundação Biblioteca Nacional-RJ. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/873080/1738, acessado em 18 de
dezembro de 2019.

O MATTO GROSSO. Cuiabá, n. 1426, p. 03, 26 de julho de 1917.


Fundação Biblioteca Nacional-RJ. Disponível em: http://memoria.bn.br/
DocReader/716189/2420. Acessado em 18 de dezembro de 2019.

STOLS, EDDY. O Brasil Se Defende Da Europa: Suas Relações Com


a Bélgica (1830-1914). Boletín De Estudios Latinoamericanos y Del
Caribe, no. 18, 1975, pp. 57–73. Disponível em: http://www.jstor.org/
stable/25674911. Acessado em 27 de novembro de 2019.
VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da História: micro-
história. Rio de Janeiro: Campus, 2002.

56 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


Capítulo 3

UMA CIDADE NA FRONTEIRA: CRISES,


PARADIGMAS E PERSPECTIVAS

Marco Aurélio Machado de Oliveira

Introdução23

Dois homens viajaram por grande parte do território brasileiro nos


1930, e, nessas viagens, passaram por Corumbá, antigo Mato Grosso, na
fronteira do Brasil com a Bolívia. Claude Lévi-Strauss e Rezende Ru-
bin descreveram essa cidade de forma muito peculiares, com opiniões
muito marcantes. Não foram os primeiros viajantes a passar por aquela
cidade, mas, considero que tenham sido alguns dos mais importantes,
por terem vivenciado um tempo em que ali experimentava crises que
em outras épocas não estavam estabelecidas.
Com interesses, métodos analíticos e resultados distintos, Triste
Trópicos, de Claude Lévi-Strauss, e Reservas de Brasilidade, de Rezende
Rubim, são, até a atualidade, utilizados para explicar um dos momentos
mais importantes na construção da vivência fronteiriça que Corumbá
passou a experimentar: os anos 1930. Os títulos de suas obras refletem
de maneira muito clara os resultados que obtiveram junto aos seus ob-
jetos de investigação, científicos ou não. Da mesma forma, os interesses
acadêmicos ou políticos, que muitas vezes são a mesma coisa, se expres-
sam nesses títulos.
O objetivo deste texto é analisar Corumbá sob os anos 1930, pe-
ríodo em que a ferrovia já estava incorporada à dinâmica econômica e
demográfica do sul do antigo Mato Grosso. Desta forma, a crise que a
cidade experimentava havia sido duramente potencializada pela cons-
trução de uma rodovia ligando Campo Grande a Cuiabá, capital do
estado uno. Neste contexto é que busco trabalhar com dois elementos
constitutivos deste estudo: crises e perspectivas.
23. O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul – UFMS/MEC – Brasil.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 57


É muito desafiador abordar temas tão severamente construídos
e que produziram relevantes desdobramentos, inclusive no âmbito
acadêmico. Tais construções tiveram como resultados discursos
dicotômicos a respeito da cidade de Corumbá, em vigor até a atualidade.
Exemplo disso são expressões como: decadente, cosmopolita, distante,
isolada, terceiro maior porto da América Latina. Em outros estudos pre-
tendo avaliar o quanto a memória social foi afetada, negativamente, por
esses discursos e suas permanências.
Uma pergunta que pode ser antecipada: por que os anos 1930
tem tanta importância em meus estudos sobre Corumbá? Penso que os
discursos produzidos por ambos os viajantes são panos de fundo de um
enredo que pretendo trazer aqui como centro das observações, ou seja, a
crise econômica que se alojou sobre a cidade e algumas de suas perspec-
tivas de resoluções. E, neste sentido, nos anos 1930 foi possível observar
o quanto a crise se instalava, ao mesmo tempo em que as perspectivas
se avizinhavam das tomadas de decisão, fossem elas políticas, portanto
no campo administrativo, ou familiares, no campo migratório, e que
levariam à incorporação da condição fronteiriça ao cotidiano político,
econômico, social e administrativo daquela cidade.

Repensando metodologias

Cabem aqui três observações do que muitos costumam chamar


por procedimentos metodológicos. A primeira diz respeito àquilo que
Said (1998) denominou por preparo estratégico, ou seja, as formas como
o estudioso se prepara para enfrentar pensamentos construídos a respei-
to de seus objetos e que denotam elevados riscos de serem ‘esmagados’
por eles. O mesmo autor nos ensina que devemos obter uma posição es-
tratégica perante o objeto a ser analisado, que municiará o investigador
perante o pensamento que as autoridades sobre dado assunto fazem uso.
Em ambos os aspectos a revisão bibliográfica deve estar muito além de
um procedimento de seleção do que será utilizado no correr da investi-
gação (OLIVEIRA, 2018).
A segunda está relacionada aos riscos, sempre muito elevados, em
realizar recortes temporais, supostamente, tão delimitados. Isso pode
levar o leitor ao equívoco de pensar que a temporalidade estaria estrita-

58 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


mente ligada àquela década, o que deporia contra minhas inclinações
aos pensamentos de Braudel (1965). O tempo histórico, alargado e es-
praiado nas sucessões e interrupções me interessa muito mais, embora
faça uso da cronologia como forma de organizar o pensamento e fa-
cilitar a leitura. Da mesma forma, esse tempo histórico tem que estar
alinhavado com um tempo espacial.
Neste aspecto reside a terceira observação, e que está ligada à es-
pacialidade com que nos deparamos, uma vez que Corumbá possui, de
fato, multiplicidades de espaços convivendo em um sítio urbano. Pan-
tanal, fronteira, rio Paraguai, ferrovia, são algumas das categorias mais
utilizadas para compor um cenário sobre essa cidade, normalmente,
aparecendo retalhadas e servidas à mercê dos objetivos de cada pesqui-
sa. Não pretendo neste texto resolver isso, mas, sinalizar para um proce-
dimento que dê conta das vicissitudes temporais a que essas categorias
estão e estiveram sujeitas. Desta forma, a fronteira, como espacialidade,
serve como ponto de reflexão sobre a crise que a cidade vivia, da mesma
forma que a temporalidade está relacionada a diversos elementos, como:
condições fronteiriças; modos de assimilação dessa condição; e, constru-
ção de perspectivas. O uso de métodos geográficos me parece bastante
sensato, especialmente, no momento em que a espacialidade passou a
ter contribuições para tomadas de decisões.
Ao mesmo tempo, busco tratar das formas como as correntes mi-
gratórias internacionais contrapõem as ideias de isolamento e decadên-
cia, mesmo sem as colocar em xeque. A cultura local, aqui entendida
em seu sentido mais amplo, e que possui a fronteira como palco central,
foi desconsiderada na formulação e reprodução dos discursos daqueles
viajantes. Uma história que foi elaborada, construída e digerida pelas
camadas inferiores da sociedade, desafia a ordem de algumas interpre-
tações. Sobre isso tive que me ocupar demasiado tempo me preparando
para não ser tragado por um pensamento vigente há muito mais tempo
que eu.
Lévi-Strauss era um professor que havia chegado ao Brasil para
trabalhar na criação da Universidade de São Paulo, e foi nessa condição
que realizou a viagem que resultou, em grande medida, na confecção
da obra Tristes Trópicos. Nas primeiras páginas de seu livro, ele alerta ao
leitor que não foi com apreço que ele colocou no papel os relatos de suas
viagens pelo Brasil, Índia e Paquistão. Essa obra é referência nos estudos

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 59


antropológicos e, no caso deste texto, histórico também.
Rezende Rubim foi um defensor do Estado Novo e das políticas
de colonização de Getúlio Vargas, expressas na Marcha para o Oeste.
Ele empreendeu, nos anos 1930, uma extensa viagem pela Amazônia
e Mato Grosso. Seus objetivos estavam na descrição da fauna e flora e
nos modos como as populações viviam nesses lugares (BRAZIL, 2014).
Diferentemente de Euclides da Cunha (1975) que havia feito via-
gens pela região amazônica, ao começo do século XX, buscando identi-
ficar a ausência de uma história do Brasil, quando no máximo seu per-
tencimento ligado à sua margem, Rubim se preocupou em encontrar o
que ele denominou de ‘reservas de brasilidade’. Não se tratava mais de
uma constatação de pertencimento de lugares tão distantes dos centros
litorâneos, mas, sobretudo, identificar o apego à nação, tão importante
nas deliberações políticas do que chamavam por sertão.
Lévi-Strauss se ocupou em fazer uma análise do ponto de vista
científico, um pouco semelhante aos relatos de viajantes que por aquela
cidade passaram ao final do século XIX, em busca de informações a
respeito da fauna, flora e minerais. Em ao menos um aspecto eu con-
sidero que os autores atingiram simultaneamente seus objetivos: ambas
as obras resumem em seus títulos as intenções e opiniões que eles cons-
truíram.
Suas obras são importantes referenciais na construção da imagem
que esta cidade passou a possuir. Não há o menor interesse em respon-
sabilizá-los por isso. Ao contrário, de certa forma, a intenção é inocentá-
-los desse processo, uma vez que seus alcances não estavam dirigidos,
necessariamente, para o público local daquela cidade. O centro de suas
atenções estava, no sentido acadêmico, fora do eixo dos trópicos anali-
sados, e no sentido político, no centro do qual emanam as brasilidades.

Antes dos anos 1930 chegarem

Considero que durante o período entre o final da Guerra com


o Paraguai (1864-1870) e meados da década de 1910, Corumbá expe-
rimentou articulações com os principais centros produtores mundiais,
fruto de conexões estabelecidas nas rotas platinas, envolvendo, princi-
palmente, Buenos Aires e Assunção. As condições para que isso ocorres-

60 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


se estavam colocadas pela expansão ocorrida no capitalismo a partir da
segunda revolução industrial, que incluía as malhas ferroviárias e indús-
trias de base, além do estabelecimento de fortes correntes migratórias
em direção, principalmente, às Américas (BRITO, 1995). Este processo
é mais bem compreendido a partir da inserção do rio Paraguai na análi-
se, não apenas como elemento de transporte e comunicação.
A navegação no rio Paraguai foi reaberta após aquele conflito, se-
guindo o acordo entre o Império brasileiro e a República do Paraguai
datado de 1856, que consistia na livre circulação dos navios brasilei-
ros. Isso possibilitou restabelecer uma medida que mitigara dificuldades
enormes no tocante ao transporte e à comunicação entre a Província e
a Coroa, uma vez que por vias terrestres ou fluviais de monção deman-
davam quatro a seis meses de viagem, enquanto que por esse rio durava
30 dias (SOUZA, 2008). Desta forma, o rio assume novo papel para os
habitantes da cidade, agora não mais no exclusivo sentido de transporte
e comunicação, mas, sim, sobretudo, de progresso e de inserção em
aspectos de modernização em curso na Europa e com reflexos no Brasil
litorâneo.
Isso possibilitou que esta cidade ocupasse uma posição hierárqui-
ca altamente favorável no contexto mato-grossense. Os caminhos flu-
viais, que até a atualidade permanecem como relevantes, alimentavam
e consolidavam a posição que adquirira. A transição de um vilarejo para
uma cidade com um sítio urbano estruturado foi muito rápida, e poten-
cializada pela espetacular presença de imigrantes naquela cidade asso-
ciada à imersão em elementos modernizantes, como: telégrafo, energia,
cinema, jornais, etc..
Os comerciantes que possuíam maiores conexões, portanto, maio-
res ganhos com essa prática mercantil, também construíram estreitas
ligações com capital financeiro, tornando-se representantes de diversos
bancos europeus. Da mesma forma, os consulados se reproduziam e
esses mesmos comerciantes se tornavam representantes consulares, che-
gando a ter nove dessas representações em uma cidade que tinha menos
de dez mil habitantes.
No tocante à questão demográfica, em especial à migração inter-
nacional, nossos levantamentos indicam mais de vinte nacionalidades,
além da brasileira, convivendo naquela cidade (OLIVEIRA; JUNQUEI-
RA, 2016). Os dados obtidos nos registros paroquiais, no cemitério dos

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 61


Coléricos e em cartórios da cidade, demonstram que quase todos os
continentes estavam representados em Corumbá entre os anos 1890 e
1920. Eram: argentinos, uruguaios, bolivianos, paraguaios, chilenos, pe-
ruanos, franceses, italianos, portugueses, espanhóis, macedônios, ingle-
ses, alemães, belgas, sírios, turcos, libaneses, mexicanos, estadunidenses
e canadenses. Isso produziu uma ideia de que a cidade seria, portanto,
cosmopolita, por possuir tamanha variedade de nacionalidades, o que
foi corroborado por Rubim (1939).
Sobre isso cabe uma ponderação: o que significa ser cosmopolita?
São diversos os autores que fizeram uso dessa expressão, alguns com in-
teresses bem marcados, outros por meros descuidos apaixonados, como
eu, por exemplo. Normalmente, atribui-se o cosmopolitismo a partir
da constatação de convivências de número elevado de nacionalidades
na mesma cidade. Entendo que a ideia esteja, por um lado, um tanto
exagerada, pois a situa em uma cidade de proporções muito modestas
enquanto que essa expressão é utilizada para metrópole, idealizada ou
não, e, por outro, motivada, talvez, por discursos bairristas, o que denota
toda sua contradição (PRYSTHON, 2017). A força que eu consigo iden-
tificar, como histórica e atual, a partir de meus estudos sobre Corumbá,
não está em um suposto cosmopolitismo, mas, sim, em sua posição pe-
riférica, fronteiriça e subversiva culturalmente ao padrão emanado dos
grandes centros.
No correr dos anos 1920 verificamos uma nova migração, dessa
vez de diversas famílias de imigrantes que estavam estabelecidos em Co-
rumbá, como os italianos Candia e Fragelli, os sírios e libaneses Malu-
ff e Chalita, além de parte dos alemães Otto, que se deslocavam para
outras paragens em direção ao Planalto Central, como Aquidauana e
Campo Grande. Isso parece ser um sinalizador muito importante de
que algo de novo estava ocorrendo em todas aquelas cidades, incluindo
Corumbá. E essa novidade era o deslocamento do centro dinâmico da
economia mato-grossense de Corumbá para Campo Grande, e as crises
subsequentes.
A ferrovia que liga o porto de Santos a Corumbá chegou a Campo
Grande em 1914 e ao Porto Esperança, no mesmo ano. Este era o pon-
to final de uma linha que materializava as novas dinâmicas nacionais,
centralizadas em São Paulo. Em um primeiro momento, essa ferrovia
passa despercebida perante o papel que Corumbá desempenhava pela

62 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


hidrovia no abastecimento de Cuiabá. Seus maiores impactos iniciais
serão sentidos na perda que esta cidade teve enquanto abastecedora do
sul do antigo Mato Grosso. Isso porque Campo Grande assumiu essa
função alcançando Aquidauana, Miranda, Nioaque, que eram econo-
micamente ligadas a Corumbá.
Concomitante a este processo, a I Guerra Mundial foi decisiva
para que essas mudanças se aprofundassem. De acordo com Oliveira e
Esselin (2015), navios que antes estavam a serviço do comércio atlântico
passaram a ser utilizados nos transportes de tropas. Parques industriais
que estavam conectados com as principais cidades da Bacia Platina esta-
vam destruídos. Os alcances daquele conflito sobre esta vasta área ainda
precisam ser mais bem calculados, tanto no sentido econômico, quanto
no social. Ou seja, naquilo que Bourdieu (1987) chama por ‘sistema
mundo’, os rearranjos nas economias centrais, trazidos pela I Guerra
Mundial, e suas consequências produzidas junto às economias periféri-
cas estavam diretamente impactadas pelas crises advindas daquele con-
flito, acrescidas pela de 1929 nos Estados Unidos da América.
Ao longo desse processo de substituição de centralidades econô-
micas no antigo Mato Grosso, um dos elementos mais decisivos para sua
efetivação foi a construção da rodovia que liga Campo Grande a Cuia-
bá. Aquela cidade já estava construindo diversas estradas que a ligavam
a outras do sul do estado, produtoras de gado, ao mesmo tempo em que
se tornava sua abastecedora de produtos vindos de São Paulo pela ferro-
via. O memorialista Ulysses Serra mencionou que a rodovia ligando a
Cuiabá fora construída sem planejamentos e ações governamentais, fi-
cando a cargo dos comerciantes e fazendeiros custeá-la (SERRA, 1971).
Essa rodovia necessita que sua história seja mais bem contada, inclusive
desmitificando a ideia na qual 950 km teriam sido construídos apenas
pelo voluntarismo de comerciantes e fazendeiros, com apoio governa-
mental ou não. Contudo, há um consenso, do qual coaduno, no qual é
a partir dessa obra que Campo Grande assumiu centralidades que antes
eram exercidas por Corumbá, ou seja, a rodovia substituiu a hidrovia,
promovendo maior rapidez nas comunicações da capital do estado com
os centros nacionais, ao mesmo tempo em que fez de Campo Grande a
estação que abasteceria praticamente todo o Mato Grosso (OLIVEIRA
NETO, 2005).
A visão que fora construída e relatada sobre Corumbá é bastante

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 63


contraditória, mesmo em tempos onde a crise econômica já estava ins-
talada na cidade. Um excelente exemplo disso está em relatório escrito
para o Conselho de Administração dos Estados Unidos, feito por via-
jantes que passaram por aquela cidade, em 1927. Neste documento é
narrada experiência em fazendas no Pantanal e a cidade é descrita como
‘importante centro de distribuição nesta parte do Brasil’ (USA, 1927, p.
68). Em certa medida, essa ideia é complementar à de Theodore Roo-
sevelt, ex-presidente dos Estados Unidos, que passou por Corumbá em
1914 e assinalou que a chegada do trem estava próxima e traria desen-
volvimento para aquele lugar que “ainda era uma cidade de fronteira”
(ROOSEVELT, 1914, p. 60).
É importante refletir a respeito da construção de imagens sobre
os lugares onde os viajantes passaram, e, da mesma forma, é importante
refletir sobre como estas imagens foram sendo incorporadas a discursos
e análises. No tocante a Corumbá, as imagens nos remetem a categorias
como desenvolvimento e decadência. Neste ponto reside um dos nós
górdios mais impressionantes na produção do conhecimento histórico
de Corumbá: os usos, na maioria dos casos, inapropriados e não concei-
tuados, da categoria decadência. Esta é, normalmente, utilizada junta-
mente com a expressão isolamento, dando-lhe o ar de binômio. Ambas
as categorias foram trabalhadas por pessoas de muito elevado capital in-
telectual, portanto, de difícil contestação, seja no ambiente acadêmico,
político ou no íntimo do cotidiano dessa cidade.
Talvez poucas categorias de análise tenham obtido tão largo al-
cance entre intelectuais de variadas áreas do saber, como a Geografia,
História, Ciências Políticas, etc, ao fazerem reflexões sobre a história
de Corumbá. Penso que todo o problema que esse uso e abuso sobre a
categoria decadência produza esteja na ausência de conceituações que
delimitem melhor seus alcances. Ou seja, a decadência como um fim,
um declínio ou um ciclo? Sem esse recorte conceitual, seus usos tende-
ram para uma espécie de senso comum, dessa vez, chancelado pela aca-
demia. Neste aspecto, muito interessante é o debate trazido por Queiroz
(2008) sobre diversos conceitos, entre eles o de decadência.
Para Chaunu (1981), decadência deve se opor a progresso, o que
me parece ser o conceito mais próximo deste que se tem feito uso lar-
gamente, isso por que sua acepção dicotômica não permite analisar um
processo histórico a partir da confluência de elementos que progridem

64 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


com os que decaem. Seguindo o mesmo raciocínio, a decadência pode
ser vista como um processo multiforme e desigual, em uma sociedade,
que leva a caducidade de diversas manifestações sociais e civilizatórias.
Tal corrosão pode comportar períodos de desaceleração, precipitação e
aceleração, até que suas estruturas desabam por forças internas, externas
ou ambas (FRUEND, 1984). Desta forma, um declínio nas atividades
mercantis pelas vias fluviais platinas em direção a Cuiabá e Campo
Grande só pode ser analisado a partir de um movimento decadente,
sem que pudesse estabelecer parâmetros distintos como “crise”, “movi-
mentos cíclicos”, etc.
De maneira semelhante, o antropólogo Claude Lévi-Strauss
(1957) apresentou Corumbá associando sua imagem às cidades pionei-
ras da Califórnia, ou do “Far-West”. Esse estereótipo de “far”, portan-
to, “distante”, não por acaso no “West”, pode ser entendido como uma
notável aptidão que ele teve de sintetizar o pensamento corrente sobre
aquela cidade, ou como uma impressionante capacidade de germinar
um novo tipo de discurso sobre dado lugar. Em suas viagens narradas
em Tristes Trópicos, suas impressões sobre cidades do interior de São
Paulo e do Paraná são excelentes evidências de como ele construiu suas
observações de cidades que nasciam a partir do nada, em um processo
de expansão das centralidades paulistanas. Em tal processo incluíam
os surgimentos de tais cidades, estando localizadas ao longo da ferrovia
ou não, que seguiam um modelo de ruas perpendiculares (MAGNANI,
1999). Tais padrões de cidade que Lévi-Strauss delineia em sua obra,
encontrou em Corumbá um contraponto, no que diz respeito às suas
histórias de surgimento, desta vez não ligado a São Paulo.
Sem fazer uso da expressão decadência, Lévi-Strauss assinalou,
ao mencionar sua chegada, ou seja, a região portuária, que Corumbá
contaria com equipamentos de “importância desproporcionada” com o
seu restante (LÉVI-STRAUSS, 1957, p. 209). Ele se referia ao arsenal e
à alfândega que o remetia a tempos em que o Rio Paraguai cumpria as
funções que já destacamos. Considerando o conjunto de cidades expres-
so na obra, e ao mencionar a falta de hotéis, a carestia dos produtos e os
rituais com os quais as moças e os rapazes se comportam pelas ruas de
Corumbá, Lévi-Strauss delineou uma imagem muito peculiar, reprodu-
zida até a atualidade sob o formato do discurso de decadente, distante,
isolada e exótica.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 65


Assim, a década de 1930 se impôs sobre a cidade de Corumbá
com ares desafiadores. Um largo ciclo econômico inaugurado no pós-
-guerra com o Paraguai, havia se fechado. As articulações que os comer-
ciantes mantinham com os centros europeus, em franca expansão de-
corrente da segunda Revolução Industrial, haviam sido transferidas para
conexões entre Campo Grande e São Paulo, que se consolidava como
o centro dinâmico da economia nacional. O cenário mundial também
era pouco promissor, uma vez que após a I Guerra Mundial a economia
europeia estava bastante combalida, e após a crise de 1929 nos Esta-
dos Unidos, que atingira de forma avassaladora uma economia que mal
conseguira se recuperar dos efeitos da I Guerra Mundial. O mundo ca-
minhava para um conflito de proporções que não puderam ser imagina-
das, e, em Corumbá, uma crise muito forte que, no âmbito acadêmico,
inscreveu duas das mais duras interpretações que essa cidade carrega até
a atualidade: os empregos das categorias decadência e isolamento, sem
que viesse com conceitos mais precisos.

Os anos 1930

Nosso ponto de partida para uma análise a respeito das percepções


e dos discursos que ambos viajantes construíram em suas passagens por
Corumbá é o Porto Esperança, às margens do rio Paraguai, ao sul de Co-
rumbá. Neste local a Ferrovia Noroeste do Brasil (NOB) encerrava sua
viagem que o ligava à cidade de Bauru, em São Paulo, posteriormente,
ao porto de Santos. Porto Esperança compõe um espaço que fora aludi-
do por Roosevelt como o sinal da chegada da modernidade vinda pela
ferrovia (ROOSEVELT, 1914), pelos viajantes estadunidenses como
‘portal dos mosquitos’ (USA, 1927), por Rubim, como um local que
não merecia esse nome (RUBIM, 1939) e, por Lévi-Strauss (1957) foi
construída uma das mais intrigantes opiniões a respeito daquele lugar.
Lévi-Strauss, ao apresentar Corumbá estando diante do Porto Es-
perança não parece estar realizando uma localização, mesmo porque
não faria sentido. Mas, sobretudo, avalio como sendo uma comparação
entre esses espaços, uma vez que a alusão a Júlio Verne é em relação a
Corumbá e não ao Porto Esperança, o que lhe conferiu algo de extraor-
dinário e fantástico, embora isso não me pareça ter sido nos melhores

66 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


sentidos. Desta forma, Porto Esperança aparece em sua apresentação
como um ponto final de um caminho com enredo muito bem trabalha-
do e costurado a partir do litoral, enquanto Corumbá estava à margem
de um rio que outrora era “[...] fronteira precária entre países recente-
mente chegados a independência e fervilhantes de jovens ambições, e
no qual a via fluvial servia a um tráfico intenso entre o Rio da Prata e o
interior” (LÉVI-STRAUSS, 1957, p. 209).
De Porto Esperança até Corumbá era necessário que as pessoas e
as mercadorias embarcassem em um navio, cuja viagem durava cerca
de 12 horas. Este percurso foi descrito por Rezende Rubim após uma
viagem que envolveu Campo Grande, Aquidauana e Miranda. Os mos-
quitos são personagens centrais em sua narrativa durante esse trecho
de sua viagem, juntamente com a demora com que o trem prosseguia,
além da poeira. Com relação ao Porto Esperança, questionou a razão
de aquele lugar ter sido “[...] batizado com tão bonito nome”, por ser
dominado pela presença de mosquitos, embora esteja à margem do ‘ma-
jestoso rio Paraguai’ (RUBIM, 1939, pp. 131-133).
A chegada a Corumbá produziu distintas opiniões em ambos os
viajantes. Enquanto Lévi-Strauss narrara da forma contraditória, presen-
ciando equipamentos que não condiziam com o momento que ele teste-
munhou, Rubim assinalou que a cidade era bem organizada e com “[...]
uma sociedade muito bem formada. E as tradições de patriotismo e hos-
pitalidade da gente são bem conhecidas” (RUBIM, 1939, p. 138). Esse
comentário faz todo sentido, tendo em vista seus interesses em constatar
supostas reservas de brasilidade, em lugares distantes do litoral. Contu-
do, é importante que se faça leituras a respeito dessa sociedade, ‘muito
bem formada’, na opinião de Rubim, e portadora de impressões de vida
e alegria “[...] como poderiam proporcionar, há um século, as cidades
pioneiras da Califórnia” (LÉVI-STRAUSS, 1957, p. 209).
Dados demográficos podem ser importantes indicadores das perspec-
tivas que determinada sociedade está enfrentando em um período. Embora
o censo decenal de 1930 não tenha ocorrido, o IBGE assinala que entre
as décadas de 1920 e 1940 a população de Corumbá cresceu de 19.547
para 29.521 habitantes, portanto mais de 50% em 20 anos. Essa informação
é um importante contraponto à percepção que Lévi-Strauss teve sobre a
cidade, especialmente, ao mencionar que ali viviam pouco mais de 3 mil
pessoas, entre residentes e flutuantes (LÉVI-STRAUSS, 1957).

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 67


Embora Lévi-Strauss inicie sua apresentação de Corumbá cha-
mando-a de “porta da Bolívia” (LÉVI-STRAUSS, 1957, p. 209), é evi-
dente que sua passagem por aquela cidade não gerou opiniões a respeito
da vida de fronteira que ela experimentava. Neste aspecto, componentes
demográficos são muito importantes em nossa análise, para demonstrar
o que ele não percebeu em sua curta passagem por aquela cidade.
É necessária uma reflexão sobre outra novidade que os anos 1930
trouxeram àquela fronteira, e que se encerrara no ano em que Lévi-
Strauss passou por Corumbá: a deflagração da Guerra do Chaco (1932-
1935), envolvendo Bolívia e Paraguai. Trata-se de um conflito muito
importante na história de ambos os países envolvidos diretamente, mas,
sobretudo, para as redefinições geopolíticas continentais e que inseriu
a Bolívia nos mapas de interesses econômicos, especialmente pela
questão do petróleo, atualizando as rivalidades históricas entre Brasil
e Argentina em torno de uma supremacia continental (SILVEIRA,
2009). Após o fim desse conflito, Brasil e Bolívia iniciaram um processo
de negociação que visava assegurar ao Brasil lugar de destaque nos
potenciais petrolíferos sub-andinos. As negociações levaram ao acordo
de 1938, que previa, entre outras, a construção de ferrovia ligando
Corumbá a Santa Cruz de la Sierra, que estava assinalada desde o
tratado de Petrópolis de 1903. Porém, quando o governo boliviano fez
constar no Acordo que o petróleo explorado por empresa boliviana-
brasileira seria utilizado para pagar os custos desse empreendimento,
este se tornou factível (VILARINO, 2006). Devemos considerar, em
plano político continental, que ambos os países, naquele ano, já haviam
mergulhado em ditaduras, cujos alinhamentos ajudam a compreender
o cumprimento dos acordos internacionais.
Das consequências que aquele conflito teve, um merece bastan-
te destaque. Trata-se do estabelecimento de novas frentes migratórias,
especialmente de populações indígenas. Esses eram, principalmente,
kamba, da região da Chiquitania, no Departamento de Santa Cruz, no
oriente boliviano. Corumbá e Puerto Suarez, sua vizinha boliviana na
fronteira, foram destinos marcantes desse processo. Conforme foi possí-
vel verificar em acervos e entrevistas realizadas junto a famílias de ori-
gem kamba em ambas as cidades, incontáveis foram os bolivianos que
migraram durante e após aquela Guerra. Esse tipo de migração, com
fortes motivações políticas, passou a ser uma constante nos anos seguin-

68 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


tes, particularmente, na Bolívia.
No que diz respeito à composição demográfica de Corumbá, te-
mos que ter o cuidado de não nos fiar apenas pelos dados censitários
oficiais para entender as complexas vicissitudes demográficas que aque-
la população possa estar experimentando. Falamos aqui de outros pro-
cedimentos metodológicos que permitem coletar dados demográficos
especialmente relacionados a parcelas mais pobres da sociedade, que
costumam ganhar ares de invisibilidades nos dados oficiais, principal-
mente quando se trata de migrantes internacionais. Além do citado pro-
cedimento relacionado aos usos da História Oral foi possível encontrar
registros de suas presenças em outros conjuntos documentais. Exemplo
disso é o acervo histórico localizado no Fórum da Comarca de Corum-
bá, onde estão disponíveis diversos processos com pedidos de autoriza-
ção para doação de filhos, tratando-se de crianças cujos pais bolivia-
nos argumentavam ser muito pobres, justificando a entrega de parte de
sua prole para famílias de brasileiros cuidarem. Foi possível notar que
esses tipos de processo se acentuaram a partir da segunda metade dos
anos 1930, quando as consequências da Guerra do Chaco chegaram até
aquela fronteira. A população de Corumbá dava sinais que algo estava
se transformando profundamente, tanto pelos círculos inferiores da base
econômica da sociedade, com a chegada de bolivianos, quanto pelos cír-
culos superiores, com a migração de comerciantes para outras paragens.
Assim, as visões de Lévi-Strauss e Rubim, construídas através de
percepções a respeito de uma sociedade ‘muito bem formada’ ou com
ares de ‘farwest’, que de certa forma não se constituem em opiniões
antagônicas, estão demasiadamente retidas na superfície dos aconteci-
mentos sociais em Corumbá. As transformações na composição social
da cidade estava ocorrendo de maneira muito diferente da verificada no
final do século XIX, sendo pelas camadas inferiores que as mudanças
ocorriam de forma mais significativa.
O ano de 1939 marcou o início da construção da ferrovia, e seus
desdobramentos foram sentidos em Corumbá e Ladário, ainda um dis-
trito desta. A vinda de empregados de diversos cantos do Brasil, além
dos chiquitanos da Bolívia, promoveu um adensamento considerável.
A ampliação do perímetro urbano de Corumbá passou a constar nas
pautas de discussão na Câmara Municipal, embora decisões efetivas só
viessem a ocorrer alguns anos depois.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 69


Refazendo cálculos

A história de Corumbá, nos anos 1930, não era mais radical. Ou seja,
os parâmetros de crescimento e/ou desenvolvimento não eram mais esta-
belecidos a partir das conectividades com os centros dinâmicos mundiais.
Sua inserção ao centro dinâmico nacional, todavia, não seria, exatamente,
pelas mesmas vias a que Campo Grande fora inserida. De certa forma, foi
ao contrário, pois a partir da construção da ferrovia para Santa Cruz de la
Sierra as dinâmicas estabelecidas foram, não apenas por sua posição central
na América do Sul, mas, sim, sobretudo, por sua condição fronteiriça. Isso
Rubim percebeu ao colocar a fronteira com a Bolívia como ponto a ser ob-
servado para a retomada de um crescimento econômico (RUBIM, 1939).
Traços de sua formação pós-guerra com o Paraguai permaneceram
intocados na cultura local, especialmente, aqueles cujas origens estão nas
camadas mais pobres da sociedade. Exemplo disso está na parte da obra
de Rubim em que ele trata da festa de São João em Corumbá. Segundo o
autor, o cortejo, que mantém diversos de seus traços até a atualidade, des-
ce pela ladeira até o rio onde o Santo é banhado nas águas do rio Paraguai.
Este rio, aliás, merece uma observação muito relevante, pois as identifica-
ções que diversos segmentos da sociedade têm com ele permaneceram in-
dependentes em relação às crises econômicas que a cidade experimentou.
Exemplo disso são os hábitos de lazer à sua margem, incluindo banhos,
cujas existências são do final do século XIX (SOUZA, 2008).
Outra informação, que considero bastante relevante, foi a insta-
lação da primeira estação emissora de rádio no antigo estado de Mato
Grosso. Tratava-se da Rádio Voz de Corumbá, de propriedade do enge-
nheiro Carlos Miguel Mônaco, em 1935 (BAEZ, 1974).
A fronteira como horizonte para Corumbá superar aquela crise
não pode ser marcada de maneira imediata nos anos 1930. Não tenho
dúvidas que os grupos dirigentes locais, desde os anos 1920, estavam di-
vididos entre as forças inerciais advindas dos tempos “áureos” e as novas
relações, incluindo as novas designações econômicas, políticas e, tam-
bém demográficas, com Campo Grande. Isso atrasou algumas medidas
que viriam a ser tomadas muito tempo depois, embora Rubim (1939)
e alguns vereadores da cidade assinalassem a dinâmica com a nação
vizinha como possibilidade de ampliação das atividades comerciais de

70 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


Corumbá. Exemplo desse atraso é a melhoria nas condições de tráfego
entre essa cidade e Puerto Suarez, ocorrida apenas nos anos 1940, quan-
do o que era apenas uma estrada precária passou a ter cuidados perma-
nentes. As intersecções possíveis estavam sendo estabelecidas, porém
suas melhorias foram proteladas.
A posição que Corumbá ocupa na geografia da migração no con-
tinente na atualidade, onde conta com mais de 30 nacionalidades ali
vivendo, tem raiz profunda. Sua localização espacial, no centro do
continente, produziu diversos efeitos, invariavelmente, ligados a duas
forças: interna, com as flutuações das políticas migratórias brasileiras;
externa, com as significativas consequências das nuances políticas na
América do Sul. Esse reposicionamento de Corumbá, através de novas
centralidades econômicas, sociais e demográficas, a habilitou a se tornar
uma das principais portas de entradas de migrantes internacionais por
vias terrestres no Brasil.
Ao final do século XIX e início do XX Corumbá possuía três clubes
de imigrantes: Sociedade Italiana di Instruzione-Beneficienza-Fratellan-
za, fundada em 1892; Sociedade Portuguesa de Beneficência, fundada
no mesmo ano; e a Sociedade de Beneficência Otomana, fundada em
1909. Dessas, apenas a de origem portuguesa existe até a atualidade. Nos
anos 1920 foi criado o Centro Social Paraguayo-Brasileiro, que fora extin-
to após a morte de seus fundadores, nos anos 1950. Este Centro criou nos
anos 1940 a Casa de Abrigo, local onde acolhiam os imigrantes daquela
nacionalidade, para depois dar-lhes melhores condições de inserção na
sociedade local. Esse esforço em acolher seus patrícios demonstra o nível
de organização dessa comunidade, bem como a persistência de fluxos mi-
gratórios oriundos daquele país. Os elementos para a saída da crise que
atingia Corumbá nos anos 1930 estavam postas ao final daquela década.

Considerações finais

Quando a equipe de estadunidenses passou por Corumbá, em


1927, mencionaram três aspectos que consideravam estruturais para a
estabilidade em investimentos: energia, transporte e comunicação. De
fato, Corumbá os possuía e em estava crise, exatamente por um desses
elementos constitutivos de uma história dos empreendimentos na fron-

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 71


teira. Falo aqui do transporte, que merece uma atenção muito especial,
não apenas como elo entre centros urbanos para suas mercadorias e
pessoas, mas, sim como elemento constitutivo da estabilidade mencio-
nada. Se a ferrovia lhe ofereceu alguns contornos críticos, foi quanto às
perspectivas que a partir deste modal a saída foi encontrada.
O redimensionamento dos usos da hidrovia Paraguai-Paraná, a
partir dos anos 1950, com o início do ciclo de industrialização que Co-
rumbá experimentou, bem como as construções das rodovias BR-262,
que liga a Campo Grande, e a Carretera Ruta 4, que liga a Santa Cruz
de la Sierra, possuem importâncias históricas por colocar aquela fron-
teira como zona de intensas atividades econômicas. Destarte, a energia
ganha destaque, como o transporte, na medida em que a cidade de Co-
rumbá foi incorporada, sendo necessário saber com qual velocidade, às
novas malhas de distribuição, principalmente, durante o regime militar.
E, a título de complementação, a construção do gasoduto Bolívia-Brasil,
ao final do século XX, também carece de explicações quanto aos seus
impactos, quanto à obra e a arrecadação que o município passou a fazer
uso, e as frustrações quanto a seus resultados na sociedade local.
Da mesma forma, a comunicação merece uma cuidadosa apre-
ciação, uma vez que a chegada dos telégrafos, no início do século XX,
marcou Corumbá em um processo de integração nacional pelas vias
comunicacionais, e os sinais da internet, na atualidade, flutuam como as
bandeiras esticadas na fronteira. Assim, esse tripé de estabilidades para
os empreendimentos, que os viajantes mencionaram, devem ter como
adereços, indissociáveis, o abastecimento de água e de alimentos. Essas
novas possibilidades de estudos asseveram a necessidade permanente
de o investigador estar cauteloso quanto aos usos, por vezes abusos, de
predicados e adjetivos relacionados aos seus objetos de pesquisa.

Referências

BÁEZ, Renato. Corumbá: reportagens e pesquisas. Corumbá: São Paulo:


Vaner Bícego, 1974.

BRAZIL, M. C. Rio Paraguai: o “mar interno” brasileiro. Campo Grande:


Editora da UFMS, 2014.

72 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


BRITO, F. “Ensaio sobre as migrações internacionais no desenvolvimento
do capitalismo”. In: Revista Brasileira de Estudos Populacionais, v. 12,
números 1 e 2, p. 21-34.

BOURDIEU, F. A Dinâmica do Capitalismo. Tradução Álvaro Cabral. –


Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

BRAUDEL, F. “História e Ciências Sociais: a longa duração”. In: Revista


de História, São Paulo, v. 30, ano 16, n. 62, pp. 261-294, 1965.

CHAUNU, P. Histoire et Décadance. Paris : Perrin, 1981.

CUNHA, E. Á Margem da História. São Paulo, Cultrix; Brasília: INL,


1975.

DAL MORO, N. Modernidade no sul do Antigo Mato Grosso: observações


do viajante Rezende Rubim. Outros Tempos, v, 11, n. 18, 2014, p. 22-43.

FRUEND, J. La Décadance: histoire sociologique et philosophique d’une


categorie de l’experience humaine. Paris : Sirey, 1984.

IBGE. Censo de 1940. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/


visualizacao/periodicos/65/cd_1940_p22_mt.pdf Visualizado em 05 de
setembro de 2018.

LÉVI-STRAUSS, C. Tristes Trópicos. Trad. Wilson Martins. São Paulo,


Editora Anhembi Limitada, 1957.

MAGNANI, J. G. C. “As Cidades de Tristes Trópicos”. Revista de


Antropologia, São Paulo, v. 42, ns. 1 e 2, p. 01-08, 1999.

OLIVEIRA, M. A. M. “Novos elementos teórico-metodológicos para


os estudos migratórios em fronteira”. Revista Brasileira de Estudos
Populacionais, Belo Horizonte, v. 35, n. 03, pp. 01-05.

OLIVEIRA, M. A. M.; JUNQUEIRA, N. M. “Representações sociais de


sírios e libaneses em Corumbá, MS: comércio, casamento e cemitério”.
In: Revista Transporte y Territorio. n. 15, pp. 388-403, 2016.

OLIVEIRA, T. C. M.; ESSELIN, P. M. “Localizando as Condições


Pretéritas e as relações Correntes na Complexa Fronteira Brasil-Bolívia”.
Geosul, v. 30, n. 60, p. 125-163, 2015.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 73


OLIVEIRA NETO, A. F. A rua e a cidade: Campo Grande e a 14 de
julho. Campo Grande: Editora da UFMS, 2005.

PRYSTHON, A. “Cosmopolitismo”. In: CAVALCANTI, L. [et al]


(orgs.). Dicionário Crítico de Migrações Internacionais. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2017, p. 141-144.

RUBIM, R. Reservas de Brasilidade. São Paulo: Nacional, 1939.

SERRA, U. Camalotes e Guavirais. São Paulo: Editora Clássico-Científica,


1971.

SOUZA, J. C. Sertão Cosmopolita: tensões da modernidade de Corumbá


(1872-1918). São Paulo: Editora Alameda, 2008.

QUEIROZ, P. R. C. Revisitando um velho Modelo: contribuições para


um debate ainda atual sobre a História Econômica de Mato Grosso/Mato
Grosso do Sul. In: Revista Intermeio, Campo Grande, MS, v. 14, n. 27, p.
122-147, 2008.

ROOSEVELT, T. Through the Brazilian Wilderness. New York: Charles


Scribner’s Sons, 1914.

SAID, E. Orientalismo. Trad. de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Cia das
Letras, 1998.

SILVEIRA, H. G. “A visão militar brasileira da Guerra do Chaco: projeção


geopolítica e rivalidade internacional na América do Sul”. Antíteses, v. 02,
n. 04, p. 649-667, 2009.

USA. “Annual Report of the Director to the Board of Trustees. Field


Museum of Natural History. Chicago, USA, V. 2, N. 1, 1927.

VILARINO, R. C. A visão militar brasileira da Guerra do Chaco: projeção


geopolítica e rivalidade internacional na América do Sul. Tese de
Doutorado em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, 2006.

74 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


CULTURA, ESCOLAS E
PRÁTICAS DE ENSINO
EM CORUMBÁ
Capítulo 4

A FUNDAÇÃO DA INSTITUIÇÃO
ESCOLAR CONFESSIONAL
IMACULADA CONCEIÇÃO EM
CORUMBÁ
Elaine Cancian

Introdução24

No início do século XX, a paisagem da cidade de Corumbá estava


passando por algumas transformações advindas do desenvolvimento do
comércio de importação e exportação. No porto da cidade, atracavam
navios de diferentes nacionalidades, ocupados com os mais diversos ar-
tigos e viajantes, que permaneciam localmente ou prosseguiam para a
capital mato-grossense. Sobrados para servir de casas comerciais foram
construídos às margens do rio Paraguai. Na parte alta da cidade, já se
avistavam lojas que comercializavam diversos produtos procedentes da
Europa e de outras regiões do Brasil.25 Todavia, apesar do desenvolvi-
mento comercial, a população convivia com muitos problemas do re-
cente passado Oitocentista.
Grupos econômicos de destaque local, como os proprietários de
terras e, sobretudo, os comerciantes, buscaram estratégias para divul-
gar uma imagem agradável da cidade, a fim de que fosse vista como
moderna e próspera. Através das publicações nos periódicos locais e da
produção de um álbum em 1914, contendo muitas imagens das casas
comerciais, indústrias instaladas localmente e de instituições e espaços
públicos ordenados, desejaram construir uma memória com boas recor-
24. O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul – UFMS/MEC – Brasil.
25. Em pesquisa em periódicos que circularam em Corumbá no início do século XX, encontramos anúncios
de casas comerciais que vendiam uma ampla variedade de produtos fabricados em diferentes países euro-
peus. A loja “Bella Selvagem”, por exemplo, localizada na rua Delamare, número 68, em 1902 anunciou
possuir para comercialização ferragens e roupas masculinas produzidas na Inglaterra, instrumentos musicais
fabricados na Alemanha, objetos de uso pessoal, como pentes, provindos de Paris, entre outros artigos im-
portados. (A PATRIA, 1902, p. 01-03).

76 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


dações sobre a cidade. (ALBUM GRAPHICO, 1914).
À medida que os proprietários das lojas e das casas de importação e
exportação se fortaleciam economicamente e se destacavam socialmente
ao ocupar espaços privilegiados da cidade em sobrados amplos elevados
em pedra, a maioria da população ainda enfrentava problemas advindos
do final do século XIX, como a falta de acesso à água encanada e saudável;
o alto valor dos aluguéis; a propagação de doenças devido à falta de
latrinas e de rede de esgoto e ao consumo de água suja; a ausência de
instituições escolares públicas para o atendimento das crianças pobres
em idade escolar; a carência de um hospital26 que atendesse gratuita-
mente aos desvalidos, entre outras adversidades.
A falta de habitações na cidade sempre foi um problema. Todavia,
nos anos 1909 e 1910, a situação chegou a um estado alarmante, tanto
que não havia nem mesmo casas simples e humildes para serem aluga-
das. Em função da alta demanda, as pessoas que habitavam em edifica-
ções alugadas pagavam valores elevadíssimos, além de conviverem cons-
tantemente com o receio de serem despejadas, devido à viabilidade de
um novo inquilino se colocar à disposição para o pagamento de valores
maiores, pela mesma residência. (RELATÓRIO, 1939). Possivelmente
o desenvolvimento comercial na região tenha desencadeado a crescen-
te procura por moradias. Com o estabelecimento das casas comerciais,
além dos negociantes, homens pobres, trabalhadores especializados, en-
fim, imigrantes e migrantes provavelmente tenham se deslocado até a
cidade com o objetivo de morar e sobreviver por meio da negociação ou
da disponibilização de mão de obra.
Outros problemas grassaram na cidade de Corumbá, na primeira
metade do século XX, como a disseminação de doenças agravadas pela
falta de atendimento médico a grande parte da população. No período
de julho a outubro de 1912, por exemplo, epidemias como a gastroen-
terite e a febre tifoide se alastraram entre a população corumbaense.
Muitas pessoas morreram. Conforme o poder público, as doenças se
espalhavam devido às enchentes que sujavam as águas do rio Paraguai,
às mudanças bruscas de temperatura e, sobretudo, pelo fato de a popula-
ção usar água imprópria para o consumo, alimentar-se incorretamente
e somente buscar auxílio médico em fase avançada de doenças. (RELA-
TÓRIO, 1912).
26. O primeiro hospital foi inaugurado em Corumbá no dia 13 de junho de 1913.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 77


Não se descarta a responsabilidade da população local com a ne-
cessária limpeza das casas, dos quintais e com a água a ser consumida,
mas também é notória a negligência dos responsáveis pela administra-
ção da cidade. Grande parte dos problemas com a infraestrutura, na
sociedade da época, era ocasionada pela ausência de planejamento e de
ações diretas da Câmara e da Prefeitura.
Os comerciantes, os funcionários públicos e pessoas economi-
camente favorecidas foram ocupando as principais ruas da cidade, em
amplas casas de pedras ou em sobrados com muitas portas e janelas
distribuídas na fachada, na mesma proporção em que empurravam a
população pobre para os espaços desfavorecidos, mais distantes dos li-
mites urbanizados e menos frequentados pelos abastados e viajantes que
chegavam à cidade. Em casinhas simples e rústicas construídas desorde-
nadamente, incrustadas nas barrancas calcáreas ou em lugares despre-
zíveis, essa gente vivia sem poder desfrutar dos artigos e das novidades
que circulavam na localidade por meio das casas comerciais. Tampouco
podiam receber uma educação formal.
Nesse contexto do início do século XX, de transformação econô-
mica para alguns grupos sociais, a cidade ainda carecia de instituições
escolares que atendessem gratuitamente à população local em fase es-
colar. Desde o ano de 1899, existia um colégio particular fundado pelos
padres salesianos, voltado ao atendimento do público masculino. Havia
também, no município, a oferta de ensino que instruía as crianças a ler,
escrever e contar, oferecido na própria casa do aluno ou na moradia
do professor. Como era um trabalho remunerado, apenas uma minoria
tinha acesso a esse tipo de instrução. Com o tempo, escolas particulares
foram sendo estabelecidas na cidade.
A pesquisadora Adriana Aparecida Pinto, ao estudar a educação
mato-grossense através da imprensa, mormente nos periódicos corum-
baenses do início do século XX, assinalou ter encontrado a informa-
ção da existência, entre os anos de 1908 e 1909, das seguintes escolas
particulares: Colégio São João de Escócia, Colégio Salesiano Santa
Thereza, Colégio Maria Auxiliadora, Colégio Imaculada Conceição,
Escola Estrela do Oriente, Externato Santo Antônio de Pádua, Externa-
to Santa Otília, Externato Misto e Culto a Instrução. Ainda de acordo
com as informações coligidas pela autora, escolas públicas passaram a
funcionar em Corumbá a partir dos anos 1910. A estudiosa verificou

78 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


que as primeiras instituições escolares públicas da região foram: Escola
Pública elementar do sexo feminino, Escola Pública elementar do sexo
masculino e Grêmio Infantil. (PINTO, 2013, p. 249-250).
Dessa forma, desde o final do período imperial, ocorrido com a
proclamação da República em 1889, até os anos 1910, 21 anos se pas-
saram sem a presença de escolas públicas em prédios apropriados para
o desenvolvimento das atividades de ensino que abarcassem crianças
tanto do sexo masculino quanto do feminino. Aliás, conforme os estudos
de Rosinete Reis e Nicanor Palhares, a informalidade na educação foi
um problema enfrentado em todo o estado de Mato Grosso, durante
as primeiras décadas do período republicano. Mesmo nos lugares em
que as escolas foram implantadas pelo governo, funcionaram de forma
precária e em casas antigas e alugadas. (SÁ; SIQUEIRA, 2006, p. 25-26).
Nessa conjuntura de novas expectativas, instaladas com o advento
da República, com o desenvolvimento do comércio local, mas ainda
vivendo os problemas herdados do período Imperial, a população de
Corumbá recebeu, em 1904, a presença das salesianas do Instituto Fi-
lhas de Maria Auxiliadora, fundadoras de uma instituição escolar para
atender ao público feminino corumbaense. Antes, porém, de tratarmos
da fundação do colégio Imaculada Conceição, abordaremos parte da
trajetória vivida pelas salesianas em terras mato-grossenses.

A presença e a atuação das Filhas de Maria Auxiliadora no


território mato-grossense

Em 1895, o Instituto Filhas de Maria Auxiliadora marcou pre-


sença em Mato Grosso. Ivone Goulart Lopes explicita que a chegada
das primeiras religiosas salesianas à capital mato-grossense ocorreu na
madrugada do dia 09 de abril de 1895. Nessa data, após um disparo de
canhão do Arsenal da Marinha avisar a sua chegada ao porto da cidade,
a superiora das Filhas de Caridade de São Vicente, acompanhada de
um grupo de alunas do Asilo Santa Rita, a bordo de embarcações a
remo, deslocou-se até o vapor Coxipó, para recepcionar as irmãs sale-
sianas. O diretor e pároco da cidade Pe. Antonio Malan27, depois de dar
27. O sacerdote francês Antonio Malan deu continuidade ao projeto salesiano implantado em Mato Grosso
pelo bispo missionário D. Luiz Lasagna, primeiro salesiano instalado em terras brasileiras, falecido no dia
06 de novembro de 1895 na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais. O padre Malan desempenhou o papel

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 79


as boas-vindas, celebrou uma missa “durante a qual os louvores e preces
ecoaram perpassados de grande emoção”. (LOPES, 2006, p. 37).
No entendimento do salesiano missionário D. Luis Lasagna, que
foi superior da Congregação Salesiana no Uruguai e no Brasil, respon-
sável pelas expedições missionárias que tiveram o objetivo de estabele-
cer homens e mulheres religiosos em terras brasileiras para espalhar a
educação e a religião cristã, as salesianas Filhas de Maria Auxiliadora
deveriam ser inseridas em Mato Grosso diretamente entre os nativos
Bororo, mais especificamente na Colônia Teresa Cristina. No entanto,
o Conselho Geral não autorizou que as religiosas residissem entre os in-
dígenas, sob a alegação de que correriam grandes riscos. (LOPES, 2006,
p. 36). Dessa forma, as irmãs salesianas passaram a atuar na cidade de
Cuiabá, na administração do Asilo Santa Rita, a partir do dia 14 de maio
de 1895 até o ano de 1903, em substituição às irmãs da Companhia das
Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo.
O Asilo Santa Rita foi fundado oficialmente na cidade de Cuiabá
em 1892, mas desde 1890 funcionava sob a administração das irmãs Vi-
centinas. A instituição passou a funcionar após o Bispo Carlos D’Amour
refletir sobre a necessidade de fundar uma casa designada para o público
feminino, que deveria receber uma educação de acordo com os valores
cristãos. A finalidade era amparar as meninas abandonadas, analfabetas
e pobres existentes na região. O terreno onde foi edificada a construção
para acolher as alunas foi doado pelo cidadão Manoel Nunes Ribeiro.
Era “uma quinta-situada à Rua 13 de Junho, entre a Travessa da Inde-
pendência, hoje Av. D. Bosco, e o terreno onde foi construído o Hos-
pital Geral [...]”. (LOPES, 2006, p. 15). Igreja, Estado e membros da
sociedade cuiabana colaboraram para a estruturação e o funcionamento
do asilo, que sempre foi administrado pelas irmãs das congregações ca-
tólicas.
O Asilo Santa Rita abrigava as meninas órfãs, sob o regime de
internato, mas recebia também alunas interessadas na aquisição do sa-
ber. Algumas pagavam pelo ensino, outras não. De acordo com Ivone
Goulart, à época da fundação da instituição havia 137 meninas, sendo
de missionário em Montevidéu, no Uruguai. Exerceu a função de Inspetor da Missão Salesiana em Mato
Grosso. Foi o responsável pela fundação de instituições escolares nas cidades de Cuiabá e Corumbá e de al-
gumas colônias de nativos, como Sagrado Coração do Rio Barreiro, Imaculada no Rio das Garças e São José
no Sangradouro. Entre os anos de 1895 e 1907, foi apoiador das irmãs salesianas filhas de Maria Auxiliadora.
IN: (LOPES, 2010, p. 42); (FRANCISCO, 2010, p. 150); (LENZI, 2018).

80 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


23 órfãs internas, 34 órfãs e desvalidas externas e 80 externas entre pen-
sionistas, semipensionistas e gratuitas. (LOPES, 2006, p. 21).
Até o dia 13 de abril de 1895, o Asilo Santa Rita foi administra-
do pelas irmãs da Caridade São Vicente de Paulo. Durante a adminis-
tração das Vicentinas, as meninas aprendiam várias disciplinas, como
Aritmética, Geografia, História do Brasil, História Sagrada, e Língua
Portuguesa, entre outras. Além disso, adquiriam o conhecimento dos
trabalhos manuais, por meio da confecção de flores, bordados, costura,
crochê e tapeçaria. (LOPES, 2006, p. 18). Finalmente, em 14 de abril
de 1895, quando as Irmãs de São Vicente de Paulo deixaram Cuiabá, as
salesianas assumiram a administração da instituição. As Filhas de Ma-
ria Auxiliadora, além de cuidarem da educação das meninas internas e
externas, passaram a oferecer aulas particulares de bordado, pintura e
piano, possivelmente para se manterem financeiramente.
As Filhas de Maria Auxiliadora assumiram uma instituição em si-
tuação econômica precária. As somas que entravam por intermédio das
mensalidades pagas por somente 23 alunas não eram suficientes para
a manutenção do local que, à época, abrigava, além das irmãs, 17 ór-
fãs que dependiam totalmente da caridade. Por muito tempo as irmãs
conviveram com a falta de alimentos e vestimentas para as internas e o
constante enfrentamento de problemas econômicos.
O cotidiano precário das irmãs salesianas e das órfãs mantidas em
regime de internato era aliviado somente quando as pessoas da sociedade
cuiabana faziam doações, depois dos apelos das religiosas em momentos
de extrema necessidade. Ainda que não fosse do agrado do Bispo que as
condições precárias vividas no asilo fossem divulgadas, as irmãs se articu-
lavam para sanar as suas dificuldades, por meio do recolhimento de doa-
ções. O fato é que, após anos de crises enfrentadas pelas irmãs salesianas
e tensões vividas com o Bispo diocesano, em 1903, as Filhas de Maria
Auxiliadora deixaram a direção da instituição. (AZZI, 1999, p. 284-286).
A experiência que as irmãs salesianas obtiveram no tempo em que
estiveram à frente dos trabalhos no Asilo Santa Rita favoreceu seu engaja-
mento em um novo projeto educativo. Assim, em 1905, reiniciaram suas
atividades em Cuiabá como educadoras. Em uma casa comprada, instala-

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 81


ram um colégio sob a denominação de Santa Catarina, em regime de exter-
nato e um oratório festivo. As aulas foram iniciadas no dia 15 de janeiro de
1905, com 37 meninas matriculadas para as aulas. Também inauguraram
o Oratório Festivo, com 30 meninas. As irmãs responsáveis pelas atividades
e administração do colégio eram: a italiana Daria Uboldi28, diretora; a uru-
guaia Maria Nieto, tesoureira; a cuiabana Luiza Marques, mestra de escola
e de música; a cuiabana Eulália de Aquino, mestra de trabalhos; e a cearen-
se e noviça Maria de Abreu, mestra de escola”. (AZZI, 1999, p. 287-288).
A presença das Filhas de Maria Auxiliadora não se restringiu à
cidade de Cuiabá e adjacências. Com o tempo, foram inseridas nas co-
lônias criadas pelos padres, a fim de colaborar com as atividades desen-
volvidas pelos missionários salesianos. Ivone Goulart, em investigação
sobre a atuação das salesianas nas missões fundadas pelos salesianos evi-
denciou, por exemplo, que se instalaram na Colônia Sangradouro a par-
tir de 08 de agosto de 1911, como responsáveis pelos serviços da cozinha
e da lavanderia. Assumiram também as atividades de catequese, ensino
e saúde, além da condução e organização da confecção de roupas, fia-
ção e tecelagem. (LOPES, 2010, p. 105).
Dessa forma, em território mato-grossense, as Filhas de Maria Au-
xiliadora, além da missão de educar e evangelizar as meninas da cidade
e das colônias, bem como as mulheres nativas, zelaram pelo bom de-
senvolvimento das atividades empreendidas pelos padres missionários
salesianos junto à população indígena, em espaços distantes da capital
de Mato Grosso, em território cercado de adversidades. Estiveram pre-
sentes, também, nas seguintes colônias: Teresa Cristina, 1895; Sagrado
Coração de Jesus, 1902; Imaculada, 1905; São José-Sangradouro, 1911;
Santa Terezinha, 1958; São Marcos, 1964. Portanto, essas mulheres re-
ligiosas, além do auxílio no processo de expansão das missões, foram
protagonistas em terras mato-grossenses na fundação de instituições de
ensino dedicadas ao público feminino.

28. A salesiana Daria Uboldi penetrou em terras mato-grossenses em janeiro de 1899, quando chegou a
Cuiabá. Exerceu o papel de diretora do Asilo Santa Rita e de Visitadora de Mato Grosso. Em 1905, fundou
o colégio Santa Catarina, onde desempenhou a função de diretora. Cumpriu com a missão de ser diretora
da Casa Maria Auxiliadora, no Coxipó. Foi a responsável, em 1904, por retirar as irmãs salesianas fundadoras
da instituição escolar Imaculada Conceição, em Corumbá, da situação precária em que viviam, em quartos
cedidos para moradia e ensino das meninas, para então residirem e desenvolverem as atividades escolares
em um imóvel alugado. Atuou em Mato Grosso durante 11 anos. (LOPES, 2010)

82 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


As Filhas de Maria Auxiliadora em Corumbá

O dia 13 de fevereiro de 1904 foi, para as irmãs salesianas Filhas de


Maria Auxiliadora Natividade Rodrigues, Annita Gudheus, Julia Masso-
lo e Luiza Marques, de despedidas e lágrimas, pois tiveram que deixar as
famílias cuiabanas, as alunas e as atividades que realizavam no Colégio
Imaculada Conceição de Cuiabá. A despedida foi assim lembrada:

Era notável a tristeza com que essas famílias e principalmente


essas meninas acompanhavam–nos: bem se compreendia a im-
pressão de sentida e profunda amargura que experimentavam
ao despedirem-se de suas mestras, das boas Irmãs que ellas tanto
amavam como ellas mesmas afirmavam, e que se pode acreditar
pelo carinho com que nos tratavam e também pela não inter-
rompida frequência d’ellas no referido collegio. Assim afflictas
chorosas despediram-se, fazendo votos pela nossa feliz viagem e
prompto regresso para Cuyabá, que assim desejam ellas. (Mono-
grafia Del Collegio Dell’Immacolata Concezione in Corumbá,
1904, p.01).29

Após a despedida, as irmãs salesianas embarcaram na lancha Ipi-


ranga, acompanhadas do Inspector Superior das Missões Salesianas, pa-
dre Antônio Malan e do comendador Henrique de Sant’Anna e partiram
do porto de Cuiabá para a cidade de Corumbá, à época pertencente ao
estado de Mato Grosso, pois a divisão do seu território deu-se em 11 de
outubro de 1977. A chegada ao porto corumbaense ocorreu no dia 16 de
outubro de 1904. O objetivo pelo qual as religiosas haviam deixado a ca-
pital mato-grossense para viverem em um local até então desconhecido
era fundar uma instituição escolar que atendesse ao público feminino
em idade escolar. (MONOGRAFIA, 1904-1014, p. 1.)
A recepção das Filhas de Maria Auxiliadora foi realizada por fa-
mílias e moças que se deslocaram até ao porto da cidade para conhecer
e saudar as irmãs e também as acompanhar até à parte alta da cidade,
onde ficariam hospedadas. A ocasião foi registrada da seguinte forma:

Dia 16 [fevereiro de 1904]. É esta a data memorável da nossa che-


gada n’esta cidade, em cuja aportamos pelas 11 horas da manhã,
29. Optamos em todo o trabalho pela transcrição na íntegra dos textos retirados das fontes manuscritas,
respeitando a grafia da época.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 83


sendo então recebidas por diversas famílias distinctas das socieda-
de corumbaense e muitas meninas, e assim acompanhadas à casa
de uma excelente senhora, D. Luiza Poupino de Carvalho, que
se mostrou uma verdadeira cooperadora; tratando-nos com toda
bondade e delicadeza possíveis; qualidade dignas de um coração
bem formado. O dia passou-se em continuas visitas e saudações
que duraram até às 6½ da tarde. Então a Ex.ma D. Luiza, reti-
rando-se para a casa de uma família sua conhecida, deixou a sua
morada à nossa disposição, ficando também resolvida a nossa per-
manência n’esta casa até segunda disposição. Mais tarde, quase 7
horas, outra pia senhora D. Marianna da Motta, nos enviou um
bom jantar, muito bem preparado, e que recebemos agradecidas
rogando a Deus por estas boas e generosas senhoras. (MONO-
GRAFIA, 1904-1014).

Por meio dos relatos, constatamos que as religiosas chegaram a


Corumbá para implantar um colégio. Entretanto não havia, até então,
sequer um local construído ou destinado à recepção e permanência das
irmãs, tampouco uma edificação para implantar as atividades de ensino
e religião que almejavam. Foi a colaboração de pessoas da comunidade
que propiciou a permanência e a sobrevivência local das salesianas, não
somente nos primeiros dias após a sua chegada, mas durante o tempo
em que a instituição esteve em processo de consolidação. Como notado
no livro da cronista, as Filhas de Maria Auxiliadora precisaram contar
com a bondade e a disposição da comunidade corumbaense para terem
onde se abrigar e se alimentar.
A análise documental leva-nos a inferir que a população local se
agradou da presença das salesianas, pois representavam, principalmente
para as famílias que possuíam filhas em idade escolar, a possibilidade do
acesso à educação, especialmente ao ensino da religião e preparação da
menina para a constituição de família. Sobretudo para as meninas, era
a oportunidade de se relacionar com as religiosas, até então nunca vis-
tas na cidade, e aprender a ler, escrever, contar e se expressar por meio
de atividades diversas proporcionadas pelo processo de ensino em uma
instituição escolar.
A novidade da fundação de um novo colégio na cidade destinado
ao público feminino e a possibilidade de conhecer as novas habitantes
religiosas vindas da capital do estado fizeram com que as pessoas pro-
curassem o acesso à casa em que as irmãs estavam hospedadas. O fato é

84 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


que alguns, possivelmente por curiosidade ou para agradar, e outros por
ansiar informação sobre o início das aulas, realizaram visitas às salesia-
nas, que se deram intensamente durante três dias após a sua chegada.
No dia 16 de fevereiro 1904, após as salesianas aportarem em Co-
rumbá, durante todo o dia receberam “continuas visitas e saudações”
até o horário de seis e meia da tarde. No dia seguinte, portanto, 17 de
fevereiro de 1904, após assistirem à missa celebrada pelo padre Arthur
Castells30, à época diretor do Colégio de Santa Tereza31, as irmãs re-
ceberam a visitação de meninas que quiseram se inteirar sobre a data de
início das aulas. Conforme as anotações da cronista da época: “As meni-
nas assaz enthusiasmadas só perguntavam pelo dia em que se abririam
as aulas: estavam ansiosas por fixarem com as Irmãs que (como diziam
ellas) era a primeira vez que viam n’esta cidade”. (MONOGRAFIA,
1904-1914, p. 2).
No dia 18 de fevereiro de 1904, após o padre inspetor das Casas
Salesianas Antônio Malan ter celebrado missa com a presença das Fi-
lhas de Maria Auxiliadora, deu-se prosseguimento à recepção de visitas.
Os livros mostram que, durante as visitações, as famílias presentearam as
irmãs com diferentes prendas, fato que surpreendeu as religiosas, tanto
que uma delas informou no livro de registro diário: “Este dia passou-se
ainda como os antecedentes; quer dizer, em receber visitas; e muitas
famílias nos presentearam de diversos modos. Que enthusiasmo! Nunca
vimos tal, e fazemos votos para que o Bom Deus conserve tão bôa vonta-
de e faça fructificar estes sentimentos em verdadeira e solidaria piedade.
(MONOGRAFIA, 1904-1914, p. 04).

A fundação do Colégio Imaculada Conceição

No dia 16 de fevereiro de 1904, data da chegada a Corumbá das


irmãs salesianas Filhas de Maria Auxiliadora, foram assentados, no li-
vro manuscrito intitulado “Monografia Del Collegio Dell’ Immacolata
Concezione in Corumbá”, os termos da fundação do Colégio Imacula-
30. O padre uruguaio Arthur Castells, formado em Filosofia e Teologia, foi o primeiro sacerdote salesiano
sul-americano a atuar como missionário em terras mato-grossenses. Faleceu em 1956, aos 87 anos, na cidade
de São José dos Campos, São Paulo. (FRANCISCO, 2010, p. 150); (ANUÁRIO, 2018, p. 77)
31. O Colégio de Santa Tereza foi fundado em Corumbá pelos padres salesianos em 04 de abril de 1899. O
ensino era destinado ao público masculino.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 85


da Conceição. Na primeira folha de registros do livro, após a abertura,
lê-se a seguinte anotação em vermelho:

Neste dia, pois, do anno do Nascimento do N. S. Jesus Chris-


to de mil novecentos e quatro (1904), ocupando a Cathedra de
S. Pedro II. Papa Pio X; governando a Diocese de Matto Grosso
Dom Carlos Luiz de Amour; sendo Presidente d’este Estado o
Coronel Antonio Paes de Barros; tendo como Superiora Geral do
Instituto a Rev.ma Madre S. Catharina Daghero e Visitadora das
casas destas Missões a Rev.da Irmã Daria Uboldi, acompanhadas
e dirigidas pelo Rev.mo Sr. Inspector das Casas Salesianas, Rev.
mo P. Antonio Malan, é que abrimos esta Casa de Corumbá, sob
a denominação de “Collegio Immaculada Conceição. (MONO-
GRAFIA, 1904-1914, p. 01).

A instituição escolar foi fundada na casa em que as irmãs foram


acolhidas. Tratava-se da residência de Luiza Poupino de Carvalho.
Conforme o relato da irmã Luiza Marques, encontrado na obra de Rio-
lando Azzi, a edificação ocupada pelas salesianas, que também serviu de
espaço para as atividades escolares, estava parcialmente ocupada com
pertences. Móveis e objetos da proprietária foram acondicionados em
três peças da casa; as religiosas ocuparam outras cinco. Nesses espaços
restantes, as quatro irmãs passaram a viver e a desenvolver as atividades
educativas.
A irmã Luiza Marques relata que ocuparam uma casa em estilo
típico das construções elevadas no final do século XIX, na cidade de
Corumbá. Eram moradias edificadas com pedra; as peças eram encar-
reiradas e o acesso era feito por meio de corredor central ou lateral. Era
comum a sala de visitas ocupar a primeira peça da casa, em seguida os
espaços destinados aos quartos e, nos fundos, a cozinha, a despensa e
uma área usado como banheiro, bem diferentemente dos tempos atuais.
Sem água encanada, o líquido precisava ser carregado até a cozinha e
ao banheiro. Na falta de encanamentos e rede de esgoto, depois de estar
inservível, era despejada no rio ou nas barrancas da cidade, juntamente
com as sujeiras das latrinas.
Conforme o relato, a moradia ocupava toda a extensão do terreno.
As salesianas estiveram mal acomodadas, devido à sobreposição de ati-
vidades em algumas peças. O quarto, por exemplo, era utilizado como

86 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


dormitório e refeitório; a capela foi instalada em um espaço pequeno;
e as demais peças, descritas como “cubículos”, possivelmente dificul-
tavam a realização dos serviços necessários. Certamente enfrentaram
dificuldades no desenvolvimento das aulas, pois eram ministradas na
mesma construção. A descrição da irmã Luiza leva-nos a levantar a hi-
pótese de que as atividades de ensino eram realizadas na sala de visitas
da casa, pois todas as demais peças foram agregadas a uma utilidade. A
questão foi assim exposta:

Para nos acolher, uma benfeitora dos salesianos oferecia uma casa
na qual os móveis da proprietária ocupavam três quartos; ficáva-
mos assim, com a sala de visitas, um quarto que era refeitório
e dormitório (dormíamos em macas) um quarto muito pequeno
que reservamos para a capela, um corredor. Todo esse conjunto
era ligado à cozinha por uma varanda. Ao lado da cozinha, dois
cubículos, um para despensa e outro para banheiro. Fora disso,
nenhum palmo de terra, e não havia água. Assim sendo, para cada
serviço tínhamos que compra-la. A água usada era guardada em
um recipiente, e levada ao rio à noite por uma irmã, e pelas jovens
auxiliares, acompanhadas por um coadjutor salesiano. (AZZI,
1999, p. 304-305).

As primeiras irmãs responsáveis pelo desenvolvimento das ati-


vidades de ensino foram as mesmas presentes no dia da fundação do
colégio e já mencionadas. Com relação às funções desempenhadas, a
irmã Natividade Rodriguez teve a responsabilidade de administrar o co-
légio; Annita Gudeuz era a “professora de aula”; Julia Massolo era a
“professora de trabalho”; e Luiza Marques, a “professora de música”.
Nos primeiros tempos de funcionamento da instituição escolar, as irmãs
formaram a equipe responsável pela manutenção do colégio, que ainda
não possuía prédio próprio.
Apesar do espaço inadequado, as salesianas instalaram um sis-
tema de ensino para o público feminino baseado em conhecimentos
práticos e, sobretudo, religiosos. Preservar os preceitos católicos e en-
siná-los era parte dos compromissos assumidos pelas religiosas junto à
congregação salesiana. Por isso percebemos que, desde o início, as irmãs
reservaram um dos quartos da casa para ser ocupado por um altar, que
chamaram de “capela improvisada”, onde aconteciam as rezas diárias e
a celebração das missas. Foi nesse local que, no dia 17 de fevereiro de

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 87


1904, portanto um dia após a chegada das irmãs a Corumbá, e antes
mesmo do início das atividades de ensino, o padre Arthur Castells cele-
brou a primeira missa do colégio. (MONOGRAFIA, 1904-1914).
A primeira matrícula realizada no colégio aconteceu no dia 01 de
março de 1904, quando muitas meninas se apresentaram para o início
das aulas. De acordo com os manuscritos, muitas meninas procuraram
o colégio para se matricular, todavia somente 20 foram aceitas, devi-
do à falta de espaço. A situação ficou registrada da seguinte forma: “1º
de março [1904]. Abrem-se as aulas. Matriculam-se 20 meninas, sendo
maior o número das pretendentes, não admitidas actualmente à ma-
tricula por falta de espaço, visto ser a casa mui pequena. Penaliza, na
verdade, ter de assim proceder; mas, como fazer? Deus proverá. (MO-
NOGRAFIA, 1904-1914). É provável que, à época, não houvesse, na
cidade de Corumbá, uma instituição escolar voltada somente para o pú-
blico feminino, além da oferta de aulas particulares. Por isso a procura
pelo colégio Imaculada Conceição ultrapassou as expectativas e as reais
condições das salesianas de atender a uma quantidade maior de alunas.
Após 31 dias de funcionamento do colégio na casa emprestada
por Luiza Poupino de Carvalho, a Visitadora do Instituto das Filhas de
Maria Auxiliadora de Mato Grosso, Madre Daria Uboldi, esteve na ins-
tituição escolar. Chegou a Corumbá no dia 2 de abril de 1904 e duran-
te 15 dias permaneceu com as irmãs salesianas, fato que lhe propiciou
observar as dificuldades vividas pelas professoras religiosas, bem como a
falta de espaço para acomodar uma quantidade maior de alunas. A visita
da Madre parece ter renovado o ânimo das salesianas que conduziam as
atividades de religião e de ensino. A respeito da chegada da Madre no
Colégio Imaculada Conceição e dos sentimentos causados nas religio-
sas, a cronista escreveu:

Tivemos neste dia a inaudita felicidade de ver chegar a esta cida-


de a nossa caríssima Madre Daria Uboldi, mui digna Visitadora
das Filhas de Maria Auxiliadora, em Matto Grosso. / E não foi
pequena a surpresa que experimentamos então, muito agradá-
vel, por certo ao coração destas suas filhas, arrancadas à pouco
ao seu carinho. Ella, porém, como Madre bondosa, cuidadosa do
nosso bem-estar e contento, ignorando, ou antes, não podendo
satisfazer-se tão somente com as noticias obtidas, mas querendo
certificar-se e conhecer perfeitamente o nosso estado nesta cida-

88 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


de, o como se passava, resolveu visitar-nos, o que realisou, como
acima fica dito, graças à sua coragem incomparável, levada até ao
heroísmo quando se trata da felicidade das filhas que o Bom Deus
tem confiado ao seu amor e à sua dedicação. Momento feliz, o
em que tivemos a alegria de abraçal-a como filhas saudosas e re-
conhecidas, unida à consolação de gozarmos da sua permanên-
cia conosco durante alguns dias./Sim, que consolação para nós;
do fundo do coração agradecemos ao Senhor mais esta mercê.
Que madre bondosa nos tem Elle dado!/Para que dizer mais? É
Madre! Esta palavra resolve tudo. Pois bem; tivemos a Madre ao
nosso lado, por espaço de 15 dias em os quaes sentimo-nos confor-
tadas, e por assim dizer, aliviadas das penas inseparáveis das lides
que nos preoccupam. Foram bem curtos esses dias; entretanto,
sentimo-nos mais animadas para a empresa começada. (MONO-
GRAFIA, 1904-1914, p. 5).

A visita de Daria Ubold, foi importante para a tomada de decisões


que resultaram na ampliação do público feminino atendido no colé-
gio. Após a partida da Visitadora em 16 de abril de 1904, as salesianas
fizeram a mudança do colégio para um espaço maior, desta vez, uma
residência alugada e de propriedade de Marianna da Motta32. O valor
do aluguel mensal pago era 130$000 reis.
Com a transferência das atividades escolares para um espaço maior
e o aumento da quantidade de meninas que passaram a frequentar as au-
las, novos problemas surgiram para a diretora do colégio, ou seja, a falta
de materiais para conduzirem as aulas. Havia a necessidade de carteiras
e mesas para a acomodação das alunas e das professoras. As religiosas
recorreram à solicitação de doações. Em atendimento às salesianas, no
dia 14 de setembro de 1904, o comendador Henrique Sant’Anna doou
“utensílios de aula, bem como bancos, carteiras e pedra negra”, para
serem usados no colégio. Também um mapa do Brasil, um globo, dois
cabides e oito caixas de giz foram doados. Em agradecimento, as irmãs
presentearam o comendador com uma arte: “um bonito quadro muito
bem trabalhado, com o seu retrato”. (MONOGRAFIA, 1904-1914, p.
9-10).
32. Mariana da Motta, casada com o major Boaventura da Motta, faleceu em 16 de agosto de 1904. Sua morte
esteve envolta por grande polêmica, noticiada no Jornal local o “Autonomista”. (Jornal “Autonomista”, anno
I, n. 04, 20 de agosto de 1904, p. 02). Ao consultarmos o periódico “A Pátria”, publicado em Corumbá, ob-
servamos o registro de duas casas pertencentes à família Motta, sendo um imóvel localizado na rua Delamare,
lote 58, com o valor do imposto calculado em 26:000$000 reis e outro na rua Candido Mariano, lote 30,
22:000$000 reis de imposto. (Jornal “A Patria”; Anno I, ed. 00013, n. 13, 10 de maio de 1905, p. 04).

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 89


No mês seguinte, em outubro de 1904, Francisco Marianni Wan-
derley presenteou o colégio com 48 metros de tecido, dois pares de jar-
rinhos e um quadro bordado de seda. De acordo com os registros, o
tecido seria utilizado para a confecção de um toldo; os jarrinhos seriam
rifados em prol do Oratório Festivo das meninas. O doador também foi
presenteado com “um bonito quadro bordado a seda”. (MONOGRA-
FIA, 1904-1914, p. 10).
É perceptível que as irmãs salesianas enfrentaram muitas
dificuldades para manter o colégio em funcionamento. A carência
de um local adequado para ensinar, a necessidade de dinheiro para o
desenvolvimento do trabalho com meninas órfãs e pobres, a falta de
mobiliário adequado para as aulas e de materiais para costura, bordado,
pintura para as artes manuais foram alguns dos problemas enfrentados. As
irmãs dependiam das doações e especialmente do apoio da comunidade
local, mediante a venda de bilhetes para a realização de sorteios de ob-
jetos, quermesses e a venda de entradas para a apresentação de peças
teatrais.
No dia 15 de setembro de 1907, por exemplo, as alunas encena-
ram uma comédia chamada “A choupana Bretã”, no salão do colégio,
em seu próprio benefício. Conforme anotações consultadas, a quan-
tidade de pessoas interessadas em assistir à peça teatral foi superior às
expectativas e ao espaço destinado à apresentação. No mês seguinte, no
dia 27 de outubro de 1907, uma quermesse foi organizada em benefício
do colégio. (MONOGRAFIA, 1904-1914).
Em 08 de dezembro de 1907, as salesianas promoveram outra
quermesse. O jornal “O autonomista” do dia anterior, 07 de dezem-
bro de 1907, convidou a população corumbaense em nome da escola
para prestigiar o evento. (AUTONOMISTA, 1907, p. 01). A cronista do
colégio anotou o fato de as irmãs terem recebido “ricas prendas para a
quermesse”, que foi animada pela banda de música do 2º Batalhão do
Exército, comandado pelo major Ludjéro José da Cruz. (MONOGRA-
FIA, 1904-1914).
A análise da documentação manuscrita leva-nos a inferir que as
Filhas de Maria Auxiliadora realizavam, com o apoio da sociedade lo-
cal, atividades com o objetivo de angariar fundos para a manutenção da
instituição escolar Imaculada Conceição. A situação em questão mostra
a persistência das irmãs no enfrentamento dos problemas financeiros,

90 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


mas também o compromisso frente à missão de educar o público femi-
nino de Corumbá e, sobretudo, de expandir a religião católica. Eviden-
cia, comumente, o prestígio que as religiosas tinham na comunidade,
porque sempre foram ajudadas de diferentes modos, seja por meio de
doações ou participação nas atividades promovidas com entrada paga.

Uma nova casa: o sobrado

Devido à crescente demanda por vagas no colégio e aos constan-


tes problemas enfrentados pelas salesianas, com as casas alugadas que
não ofereciam o espaço necessário para o atendimento das meninas, as
Filhas de Maria Auxiliadora foram movidas a procurar uma edificação
para ser a sede do colégio que administravam. Mais uma vez, a madre
Daria Uboldi auxiliaria as irmãs na empreitada.
Assim, no dia 31 de julho de 1908, Daria Uboldi chegou a Co-
rumbá, com a finalidade de comprar uma casa. A compra do imóvel foi
efetuada em 06 de agosto de 1908, mas as irmãs não se transferiram de
imediato. Foi preciso esperar três meses para ocupar o novo espaço que
seria transformado em colégio. A cronista do colégio registrou agradeci-
mento especial a Deus, pelo fato de as irmãs terem adquirido o imóvel
depois de tantas dificuldades vividas. Chama a atenção o fato de a cro-
nista assinalar que a casa foi adquirida com dinheiro emprestado e que
“não sendo das maiores não é tão pouco das menores”. (MONOGRA-
FIA, 1904-1914, p. 26). Observamos que o ensino funcionaria em uma
residência que ainda não se apresentava como ideal para as atividades
escolares, mas a aquisição garantia às salesianas e às alunas a permanên-
cia no ambiente pelo tempo desejado. Não mais correriam o risco de ter
que se mudar.
Entre os dias 05 de novembro e 11 de novembro de 1908, final-
mente as irmãs se mudaram para a casa assobradada localizada na rua
Frei Mariano, número 329. A demora foi assim justificada: “a casa pre-
cisava de limpeza e custamos encontrar trabalhadores. Foi uma sema-
na de intenso trabalho e não demos mais que um dia de férias para as
meninas, para evitar as queixas, e assim mesmo houve quem queixasse”.
(MONOGRAFIA, 1904-1914, p. 33).
O sobrado adquirido pelas Filhas de Maria Auxiliadora estava lo-

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 91


calizado no centro da cidade e defronte a um espaço público, hoje co-
nhecido como Praça da Independência. A poucos metros de distância
ficava o Colégio Salesiano de Santa Teresa. Com o decorrer do tempo,
as irmãs foram transformando o espaço adquirido e a instituição ganhou
grandes proporções estruturais. Atualmente, o Colégio Imaculada Con-
ceição ocupa terreno extenso, devido à aquisição de terrenos adjacen-
tes ao original, comprado em 1908. Localizado em espaço privilegiado,
tem uma fachada extensa e uma bela arquitetura, que chama a atenção
dos transeuntes e se encontra cercado por muitas lojas comerciais.
Após a transferência do colégio, as irmãs promoveram a apresen-
tação de espetáculos de teatro e quermesses, possivelmente devido à
dívida adquirida com a compra do sobrado e também para a manu-
tenção das atividades escolares. No periódico de Corumbá, Correio do
Estado, do dia 12 de junho de 1909, encontramos a informação da re-
alização de uma festa beneficente, com a presença da população da
cidade ao “espetáculo em beneficio do mesmo Collégio Immaculada
Conceição”, descrito como “modesta festa que não desmentio as tra-
dições de generosidade de nossa sociedade, porquanto o local onde se
achava installada a platéa quasi não comportava a selecta concurrencia
ali attrahida”. Na ocasião, as alunas apresentaram o drama “Santa Inês”,
que teria deixado “agradável impressão no animo público”. (CORREIO
DO ESTADO,1909, p. 02).
No mês seguinte, no dia 10 de julho de 1909, as meninas do co-
légio apresentaram o drama “Santa Ines” e outros passatempos para a
população que compareceu ao teatro da escola. A entrada foi paga em
benefício da instituição. (MONOGRAFIA, 1904-1914, p. 7010). No
mesmo ano, mais dois eventos foram promovidos para angariar fundos
para o colégio: um teatro e uma quermesse. Sobre o espetáculo, a cro-
nista do colégio tomou nota, no dia 08 de setembro de 1909:

Hoje às 6 horas da tarde foi elevado à scena em nosso teatrinho


o importante drama em cinco actos – Isabel da Thuringia e ou-
tros passa-tempos em benefício deste estabelecimento. O povo
corumbaense provou mais uma vez a sua generosidade e bôa
vontade em ajudar as obras de beneficência. A banda de música
oferecida pelo Snr. General Henrique Guatimosim fez ouvir nos
intervalos as suas escolhidas e bem executadas peças. (MONO-
GRAFIA, 1904-1914, p. 39).

92 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


A quermesse foi realizada na noite de comemoração do Natal. As
irmãs salesianas promoveram a festa com a ajuda de alguns benfeitores
corumbaenses. A comemoração em benefício do Imaculada Concei-
ção contou com a participação da comunidade local. (MONOGRAFIA,
1904-1914, p. 40). Nos anos seguintes, outras apresentações teatrais e
atividades foram colocadas em prática pelas salesianas. Em 20 de julho
de 1913, as alunas representaram o drama “A vítima da obediência” e
a banda de música animou o público com um repertório variado. Em
07 de fevereiro de 1915, um drama foi encenado pelas alunas, tendo
como resultado a satisfação das pessoas presentes. (MONOGRAFIA,
1915-1919, p. 03).
A promoção de diferentes atividades foi a forma encontrada pe-
las irmãs responsáveis pelo colégio para sustentar toda uma estrutura
escolar que recebia meninas no sistema de internato e externato. Vale
ressaltar o fato de a instituição acolher e cuidar das jovens órfãs, que de-
pendiam totalmente das salesianas. Era preciso que as irmãs buscassem
estratégias constantes que resultassem em somas necessárias à sobrevi-
vência e à manutenção da instituição.

Nos primeiros anos de funcionamento...

De acordo com a análise das crônicas, observamos que o ensino


propiciado às meninas no período de 1904 a 1907 era baseado nos as-
pectos linguísticos, artísticos e religiosos. Escrever, ler, cantar, dramati-
zar e fazer as orações eram atividades ensinadas às alunas. As meninas
eram submetidas às avaliações aplicadas pelas irmãs, por meio de per-
guntas orais. No primeiro ano de funcionamento do colégio, depois de
três meses das aulas, nos dias 22 e 27 de setembro de 1904, as alunas
foram avaliadas pela diretora e duas irmãs examinadoras. Na ocasião, as
meninas tiveram que responder, oralmente, sobre os pontos das maté-
rias ministradas pelas professoras. (MONOGRAFIA, 1904-1914, p. 10).
Os exames finais ocorreram no início de janeiro de 1905 e foram
aplicados pela diretora e pela Vigária. As avaliações abrangeram “as di-
versas matérias de que trata o Estatuto do mesmo Collegio, dividido por
graus e classes; sendo admitidas ao exame as alunas de 3º, 2º e 1º graus,
e de 7ª e 6ª classe”. Parte das meninas respondeu plenamente a todas as

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 93


perguntas. Assim foi anotado:

3-4-5 de janeiro – 1905. Exame final das alunnas deste Collegio.


Tendo presente a Rev.da Directora e a Vigaria deu-se princípio ao
exame que versou sobre as diversas matérias de que trata o Esta-
tuto do mesmo Collegio, dividido por graus e classes; sendo ad-
mitidas ao exame as alunas de 3º 2º e 1º graus, e de 7ª e 6ª classe.
Muitas delas satisfizeram plenamente a todas as perguntas, sendo,
portanto, agraciadas com o primeiro prêmio. (MONOGRAFIA,
1904-1014, p. 12).

Verificamos, através da documentação manuscrita que, durante


os primeiros dez anos de funcionamento da instituição, as avaliações
foram conduzidas da mesma forma, ou seja, por meio de questionamen-
tos orais: tanto as matérias ensinadas cotidianamente quanto os ensina-
mentos cristãos eram avaliados pelas irmãs, apoiadas pela irmã diretora.
Todavia, os preceitos da religião católica eram examinados pelos padres,
que atuavam no colégio confessional Santa Teresa. Observamos que ne-
nhuma preceptora ou preceptor leigo era admitido nas comissões ava-
liativas, constituídas para examinar os conhecimentos adquiridos pelas
meninas do Imaculada Conceição.
Além das avaliações orais, as meninas eram submetidas à avalia-
ção da comunidade local. Todos os anos, os trabalhos manuais realiza-
dos durante o ano escolar em aulas específicas, destinadas ao ensino da
costura e do bordado, ou seja, dos “trabalhos de agulhas”, eram expostos
e poderiam ser apreciados nas exposições organizadas no interior do co-
légio pelas irmãs salesianas. Também se organizavam eventos culturais,
com declamação de poesias, apresentação teatral e canto ao som de
piano. As alunas eram prestigiadas e apreciadas pelas famílias e demais
pessoas da comunidade local. Portanto, todo o conhecimento adquirido
no âmbito do colégio, de alguma forma, era examinado interna e exter-
namente (MONOGRAFIA, 1904-1914).
Entre os anos de 1904 e 1914, o cotidiano no Colégio Imaculada
Conceição foi permeado por diversas festividades. Festas em honra a
santas e santos católicos e homenagens aos visitantes foram constantes.
Como exemplo, citamos a festa em homenagem à padroeira da escola,
realizada no mês de dezembro de 1914. A programação incluiu ativida-
des durante o dia todo. Houve, pela manhã, missa celebrada pelo padre

94 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


Arthur Castells e Primeira Comunhão de 14 pessoas, entre moças e me-
ninas. Durante a tarde, houve benção com o Santíssimo Sacramento,
renovação das promessas do batismo e apresentação das meninas em

pequeno salão onde se via preparado um pequeno altar, d’onde


entre nuvens e flores sobresahia bela e majestosa a Imagem da
Virgem Immaculada [...]trajando vestes brancas, com vozes ar-
gentinas e ternas entoavam hyno à soberana Virgem chamando-a
de Rainha. Em seguida, diálogos, discursos, poesias, cantos: tudo
em honra e homenagem a essa terna e piedosa Mãe, rainha do
Céo e da terra [...]. (Monografia, 1904-1914, p. 11).

As visitas ao colégio eram também recebidas com festas e home-


nagens. Na comemoração de 01 de dezembro de 1904, por ocasião da
visita do padre Arthur Castells, à época diretor do colégio Santa Teresa,
assinalou-se: “pequena e modesta festa em homenagem ao Revdo. Pe.
Arthur Castells, digno e mui devotado Director d’esta casa”. No dia,
foi celebrada uma missa às sete horas da manhã, com comunhão ge-
ral. A homenagem ao sacerdote teve início às duas horas da tarde, com
realização de “modesta academia em que se salientou bem as nobres
qualidades e virtudes d’este zeloso sacerdote e missionário”. As alunas,
vestidas de branco, cantaram e discursaram em homenagem ao padre.
(MONOGRAFIA, 1904-1914, p. 10).
As festas, homenagens e exposições dos trabalhos manuais organi-
zadas pelas salesianas propiciavam um rompimento com os horários rí-
gidos e com a rotina de ensino e aprendizagem. Além disso, promoviam
a interação das irmãs e das alunas internas e externas com o universo
extramuro, pois as famílias das meninas e a comunidade em geral eram
convidadas para participar desses eventos.

Considerações Finais

As primeiras análises a respeito da fundação e dos primeiros anos de


funcionamento do Colégio Imaculada Conceição, realizadas no âmbito da
pesquisa científica, ainda em processo de execução, mostraram que a insti-
tuição em questão teve seus primórdios em espaço inadequado para as ativi-
dades escolares. As responsáveis pelo colégio, por longo período, adaptaram

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 95


as casas que ocuparam para ensinar o público feminino em idade escolar.
Todavia, no decorrer dos anos, com persistência, muito trabalho e ajuda da
comunidade, conseguiram se estabelecer em prédio próprio e organizá-lo
adequadamente para o exercício das atividades escolares.
A instrução era baseada no conhecimento formal e religioso.
Portanto, além das aulas de Canto, Geografia, História, Italiano, Ma-
temática, Música e Português, eram ensinados os preceitos religiosos
católicos, as orações diárias, as reverências e o respeito às santidades da
Igreja Católica, entre outras práticas e habilidades que o corpo discente
demonstrava por meio das avaliações e das apresentações culturais. Tão
importante quanto aprender a ler, escrever e compreender um idioma
diferente da língua materna, era ser e viver como uma mulher cristã.
Regularmente, as alunas eram submetidas às avaliações sobre tudo o
que aprendiam, por meio da técnica oral.
A vida no colégio era festiva. Comemorações, festas e homena-
gens eram momentos de distração e oportunidade para as alunas expo-
rem suas habilidades e conhecimentos adquiridos na instituição. Can-
tar, declamar, dramatizar, com vestes vistosas e apropriadas, exibir os
melhores trabalhos artísticos e manuais, além de propiciar a interação
escola-comunidade, mostravam para a sociedade o tipo de formação
ofertada pela instituição ao público feminino que, nesse caso, mesclava
ensino formal, religiosidade e preparação para a vida familiar.
Por fim, é preciso assinalar que o aprofundamento futuro da pesquisa
favorecerá a identificação de outras práticas e acontecimentos cotidianos da
instituição investigada, que desde 1904 tem se proposto a ensinar e formar,
através de diferentes habilidades, o público de Corumbá em idade escolar.

Referências

A PATRIA. Corumbá, ano IV, n. 169, p. 01-03, 06 de julho de 1902.


Fundação Biblioteca Nacional-RJ. Disponível em: http://memoria.bn.br/
hdb/periodico.aspx Acesso em: 20 de novembro de 2019.

ANUÁRIO. Inspetoria Salesiana de Campo Grande, 2018. Disponível


em:http://www.missaosalesiana.org.br/wp-content/uploads/2018/01/
Anu%C3%A1rio-23-02-para-o-site.pdf. Acesso em: 10 de setembro de
2019.

96 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


AUTONOMISTA. Corumbá, ano III, n. 120, p. 01, 07 de dezembro de
1907. Fundação Biblioteca Nacional-RJ. Disponível em: http://memoria.
bn.br/hdb/periodico.aspx Acesso em: 20 de novembro de 2019.

AZZI, Riolando. As filhas de Maria Auxiliadora no Brasil: cem anos de


História. São Paulo: Salesiana, 1999.

CORREIO DO ESTADO, Corumbá, ano I, n. 10, p. 02, 12 de junho de


1909. Fundação Biblioteca Nacional-RJ. Disponível em: http://memoria.
bn.br/hdb/periodico.aspx Acesso em: 20 de novembro de 2019.

FRANCISCO, Adilson José. Educação & Modernidade: os salesianos em


Mato Grosso, 1894-1919. Cuiabá-MT: Entrelinhas: EdUFMT, 2010.

LENZI, Maria Isabel Ribeiro. Os salesianos, os Bororos e a banda de


crianças indígenas que mudou a história. 2018. Acesso em: Disponível
em: http://brasilianafotografica.bn.br/?tag=padre-antonio-malan. Acesso
em: 26 de novembro de 2019.

LOPES, Ivone Goulart. Asilo Santa Rita. Educação Feminina Católica


(1890-1930). Cuiabá-MT: Central de Texto- EdUFMT, 2006.

LOPES, Ivone Gourlat. O Projeto Educativo das Salesianas na Escola


Normal Nossa senhora Auxiliadora, Campos RJ, e a tessitura da Identidade
da Professora Católica: 1937-1961. 2013. 253 f. Tese (Doutorado em
Educação) - PUC. Rio de Janeiro, 2013. p.191.

Monografia Del Collegio Dell’ Immacolata Concezione in Corumbá,


1904-1914. Arquivo do Colégio Imaculada Conceição. Corumbá-MS.

PINTO, Adriana Aparecida. Nas páginas da imprensa: a instrução/


educação nos jornais em Mato Grosso (1880 1910). 2013. Tese
(Doutorado), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”-
UNESP, Araraquara, SP, 2013.

REIS, Rosinete Maria dos; SÁ, Nicanor Palhares. Palácios da Instrução.


Institucionalização dos grupos escolares em Mato Grosso (1910-1927).
Cuiabá-MT: Central de Texto- EdUFMT, 2006.

RELATÓRIO do Snr. Capitão de Fragata e Intendente Geral do


Município Francisco Mariani Wanderley. Corumbá-MT: Typographia A
Luz, 1912. Estante 13 B2. Arquivo Público de Mato Grosso. Cuiabá-MT.

RELATÓRIO, ATOS, ORÇAMENTO E BALANÇOS. Prefeitura


Municipal de Corumbá. Corumbá-MT:[s/ed]: 1939.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 97


Capítulo 5

ESCOLA JATOBAZINHO: “MEU


QUINTAL É MAIOR DO QUE O
MUNDO”33
Dilson Vilalva Esquer
Nicole Claro Moreira de Morais

Quando se fala em Educação geralmente nos vem à cabeça a


imagem de escolas urbanas. Os livros didáticos exploram, em sua maio-
ria, os espaços, as construções e as estruturas que os paradigmas urbanos
oferecem. Mas, em Corumbá/MS é possível viver e conhecer modalida-
des diferentes de Educação, carregadas de traços culturais locais.

O Pantanal não é uma entidade homogênea, é formada por vários


pantanais (de Cáceres, Piaiaguás, Poconé, Barão de Melgaço, Nhe-
colândia, Aquidauna, Paraguai, Miranda, Nabileque e Abobral. Cada
tipo de Pantanal está relacionado principalmente com as sub-bacias de
drenagem e apresentam diferenças na extensão e duração das cheias, na
organização e distribuição espacial das paisagens, ecossistemas, comuni-
dades biológicas e humanas (DIEGUES; ARRUDA, 1999, p. 2-3)

De acordo com o livro “Caderno do professor: Escolas das Águas


valorizando o saber local”:

[...] uma das escolas mais antigas da região é a extensão Sebastião Ro-
lon, que iniciou suas atividades em 1948, às margens do rio Taquari.
Neste período, os produtores rurais tomaram a iniciativa de criar a escola
para atender aos filhos de seus funcionários. Somente em 1975, a gestão
da escola passou a ser de responsabilidade da prefeitura de Corumbá.
(ECOA, 2017, p. 8)

Dentre os espaços educacionais presentes na região, há uma es-


cola que, desde 2009 escreve uma nova história na região pantaneira.
33. O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul – UFMS/MEC – Brasil.

98 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


Localizada a cerca de 90 km34do perímetro urbano de Corumbá, às
margens do Rio Paraguai encontra-se a Escola Municipal Rural Polo
Paraguai Mirim Extensão Jatobazinho, ou como é popularmente co-
nhecida, Escola Jatobazinho. Fruto de uma parceria público e privada,
a escola tem transformado vidas naquela região.

Figura 1: Escola Jatobazinho

Fonte: Arquivo Acaia Pantanal

É preciso entender que a educação ribeirinha traz em sua essência


o valor da cultura local. Não é um ensino que nasce de fora para dentro,
é algo vivido, compartilhado. A educação ribeirinha é produto de expe-
riências que se entrelaçam em um espaço que propicia o aprendizado, o
enriquecimento cultural, o convívio humano e com a natureza.
Sonhos, risos, choros, aprendizados, afetividade. A escola compor-
ta, em seu espaço, todo tipo de subjetividade que envolve a infância do
indivíduo. Em cada criança que a escola recebe, novas linhas são escri-
tas na história do local.
Para que toda essa narrativa possa ser bem compreendida e a rea-
lidade possa ser contada é preciso entender como se estrutura esse tipo
de Educação.
34. Via Rio Paraguai

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 99


Entendendo a Educação Ribeirinha

Para compreender a educação ribeirinha, e, em especial a panta-


neira, é necessário reconhecermos que existem questões relevantes para
a compreensão das particularidades deste tipo de educação. Importa
pensarmos: Como essa modalidade de educação é pensada? Como se
dá a estrutura de uma educação ribeirinha? Quais os desafios a se en-
frentar?
Encontrar referenciais teóricos que discutem a educação ribei-
rinha é o primeiro desafio do pesquisador. Durante o levantamento
bibliográfico foi difícil encontrar teóricos que abordem a temática. A
dificuldade nos faz pensar o quanto essa modalidade ainda precisa de
visibilidade e o quanto a educação tem a nos proporcionar enquanto
realidades paralelas nessa imensidão do Brasil.
Para iniciarmos a reflexão sobre a educação ribeirinha é importan-
te considerarmos que a educação não acontece apenas dentro da escola.
Paulo Freire, em sua obra Pedagogia da Autonomia nos faz refletir o
quanto os saberes e o processo do aprendizado estão interligados a nossa
condição humana, seja pela sobrevivência, seja nas relações que costu-
ramos ao longo de nossas vidas (FREIRE, 1997). Dessa forma, como
Pinto; Victória (2015) salientam, é preciso que conhecimento dialogue
com a realidade da população que ali reside.

[...] pensar a dinâmica da escola no contexto ribeirinha (e indí-


gena) significa interagir com as inúmeras possibilidades que o
cotidiano nos revela, no sentido de construir uma educação que
“mergulhe” na cultura local e suas múltiplas facetas. Uma esco-
la que se possibilite ser diferente, ser uma escola rural/ribeirinha
“encharcada” de seus símbolos e disposta a refletir sobre os desa-
fios que a realidade diária apresenta.

Se considerarmos o perfil do público discente, a baixa densidade


demográfica e o isolamento das áreas urbanas, uma escola ribeirinha
se enquadra na modalidade mais ampla das Escolas Rurais, e, conse-
quentemente, sua estrutura e funcionamento devem ser pensados como
parte da Educação do Campo.
No Brasil, a existência de políticas voltadas para a Educação do
Campo, dentro das quais podemos inserir a Educação Ribeirinha, está

100 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


relacionada a atuação dos movimentos sociais que lutaram para assegu-
rar o direito de acesso à educação escolar para as comunidades afastadas
dos centros urbanos. De acordo com o documento Educação do Cam-
po: marcos normativos, essas políticas ganharam forma visando o “reco-
nhecimento da enorme dívida do poder público em relação ao direito dos
povos do campo à educação.” (BRASIL, 2012, p. 4)
Dentre as políticas educacionais mais relevantes para o atendi-
mento da população rural e dos ribeirinhos, podemos citar a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, lei n. 9.394/96, uma vez que
ela previu a regulamentação da Educação no Campo. Posteriormente, o
documento intitulado Diretrizes Operacionais para a Educação Básica
nas Escolas do Campo (CNE/CEB 1, de 3 de abril de 2002) trouxe em
seu texto as diretrizes curriculares da modalidade (marco da conquista
do Movimento pela Educação do Campo) e o Decreto nº 7.352, de 4 de
novembro de 2010 fez do Programa Nacional de Educação na Reforma
Agrária (PRONERA) parte da política de Educação do Campo.
De acordo com as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica
nas Escolas do Campo (CNE/CEB 1, de 3 de abril de 2002) a identidade
da escola será construída com base na realidade na qual ela se encontra
(art. 2), dessa forma a representatividade, bem como a visibilidade da
cultura local são desafios bases para o desenvolvimento dessa modalidade
de Educação. Além disso, esse documento determina que a escola deve
contemplar “a diversidade do campo em todos os seus aspectos: sociais,
culturais, políticos, econômicos, de gênero, geração e etnia” (art. 5). Des-
sa forma, a educação ribeirinha vem também em defesa dos povos tradi-
cionais, que segundo Diegues e Arruda (1999, p. 22) se definem como:

[...] grupos humanos culturalmente diferenciados que historica-


mente reproduzem seu modo de vida, de forma mais ou menos
isolada, com base em modos de cooperação social e formas es-
pecíficas de relações com a natureza, caracterizados tradicional-
mente pelo manejo sustentado do meio ambiente. Essa noção se
refere tanto a povos indígenas quanto a segmentos da população
nacional que desenvolveram modos particulares de existência,
adaptados a nichos ecológicos específicos. Exemplos empíricos
de populações tradicionais são as comunidades caiçaras, os sitian-
tes e roceiros tradicionais,comunidades quilombolas, comunida-
des ribeirinhas, os pescadores artesanais, os grupos extrativistas e
indígenas. Exemplos empíricos de populações não- tradicionais

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 101


são os fazendeiros, veranistas, comerciantes, servidores públicos,
empresários, empregados, donos de empresas de beneficiamento
de palmito ou outros recursos, madeireiros etc.

Nesse contexto, o artigo 11, segundo parágrafo, das Diretrizes


orienta o trabalho pedagógico “para a abordagem solidária e coletiva dos
problemas do campo, estimulando a autogestão no processo de elabora-
ção, desenvolvimento e avaliação das propostas pedagógicas das institui-
ções de ensino”.

Figura 2: As aulas acontecem em todos os espaços da instituição.

Fonte: arquivo Acaia Pantanal

Com relação ao funcionamento das escolas ribeirinhas, o artigo 23


da Lei 9394/96, que institui a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-
cional (LDB), prevê que “O calendário escolar deverá adequar-se às peculia-
ridades locais, inclusive climáticas e econômicas, a critério do respectivo sistema
de ensino, sem com isso reduzir o número de horas letivas previsto nesta
Lei”. Essa flexibilidade no período letivo escolar auxilia não só na melhor
execução das aulas como na segurança dos alunos e educadores, tendo em
vista que ambos ficam alojados nos espaços da instituição. No artigo 28 da
referida lei, é garantido às escolas rurais:

102 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


Art. 28. Na oferta de educação básica para a população rural, os
sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua
adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região, espe-
cialmente: I – conteúdos curriculares e metodologias apropriadas
às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural; [...] III
– adequação à natureza do trabalho na zona rural.

Para além das legislações, faz-se preciso entender que o cotidiano


de uma escola ribeirinha possui características peculiares. É preciso sa-
lientar que a escola ribeirinha, em grande parte, é o primeiro contato
que a criança terá para além da família e, como ela vive em regime de
internato, grande parte do aprendizado e vivência cotidiana se dará na
instituição. Por isso, a rotina escolar relaciona aprendizados pedagógicos
com aprendizados do cotidiano, desde o ato de acordar, se organizar
para a aula, refeições, higiene. Um dos maiores desafios da escola é
adequar a cultura da comunidade pedagógica do local a todos, alunos e
educadores, para que o aprendizado aconteça naturalmente. Por exem-
plo: ir à horta da escola não é apenas uma atividade pedagógica. Faz
parte do cotidiano das famílias, é parte da cultura local, está dentro da
alimentação das crianças e dos educadores, uma vez que os produtos
plantados no local são consumidos por todos. Entender como se dá o
processo de plantio e colheita faz parte do aprendizado natural que a
escola busca consolidar em sua rotina de trabalho.

Figura 3: Atividades que valorizem a cultura local.

Fonte: Arquivo pessoal da instituição

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 103


Na Escola Jatobazinho, as famílias também fazem parte desse pro-
cesso de trabalho. O espaço é importante para que as famílias também
tenham a oportunidade de aprender e contribuir com a escola. A insti-
tuição oferece oficinas para os pais, integra-os nas produções de plantio,
sempre na busca da melhor integração família e escola.

O reconhecimento fundamental da cultura vivida dos ribeirinhos


para o processo de escolarização reafirma a importância destes
como produtores de cultura e o seu labor diário deve estabelecer
conexão com a escola. É pelo letramento das águas que este re-
conhecimento do cotidiano ribeirinho como identidade cultural
se diferencia e se referencia como uma educação libertadora e
transformadora de uma realidade que saia da invisibilidade. Não
podendo assim os ribeirinhos estar somente absorvendo conhe-
cimento sem sua referência local ser evidenciada (CARVALHO,
2018, p. 18).

Não se pode esquecer que, nesse processo de adequação do tra-


balho à realidade local há professores que, durante um período de 15
dias consecutivos, permanecem na escola para o convívio mútuo com as
crianças. Um dos maiores desafios para a permanência dos professores
nas escolas ribeirinhas é a distância que eles precisam manter de suas
famílias.
Mas, mesmo diante de todas as adversidades, existem professores
que enfrentam os desafios para garantir que a comunidade ribeirinha te-
nha acesso a uma Educação de qualidade – e esta é a razão da existência
da Escola Jatobazinho.

Como tudo começou...

O pontapé inicial para todo o projeto educacional começa em


2008, com ações na região da Serra do Amolar, na borda oeste Pantanal,
município de Corumbá/MS. Essas ações tinham por objetivo identificar
os principais desafios existentes para a conciliação do desenvolvimento
social da população residente às margens do Rio Paraguai com a conservação
da natureza.
Durante essas ações as dificuldades da população local foram per-

104 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


cebidas, tais como a distância dos centros urbanos, a falta de acessos
por terra, a ausência de infraestrutura (estradas, energia elétrica, tele-
fonia, saneamento) e a precariedade dos serviços públicos (educação e
saúde). Esses problemas, de acordo com os estudos feitos com base na
pesquisa com a população ribeirinha, contribuem para que a população
ribeirinha residente na região apresente características típicas de baixo
desenvolvimento social, como o baixo grau de instrução, baixa renda
familiar, alto índice de analfabetismo, famílias numerosas. O diagnós-
tico da pesquisa de campo realizado revelou também que as principais
fontes de renda das famílias são a pesca artesanal e a coleta de iscas vivas,
que abastecem o turismo de pesca esportiva.
A isto tudo acresce o fato de que, por estar localizada em região
fronteiriça com a Bolívia, a população local sofre com as interferências
do tráfico de drogas, animais silvestres, e de armas, intensificando a ne-
cessidade de ações orientativas e educacionais, dificultadas pela distri-
buição esparsa das moradias.
Em janeiro e fevereiro a Fazenda Jatobazinho passou por grandes
reformas para adequação de espaços e, em março desse mesmo ano,
iniciaram-se as aulas, com 39 alunos matriculados - 20 meninos e 19
meninas -. Nesse momento o espaço educacional contava com assesso-
ria pedagógica do Instituto Singularidades, de São Paulo.
No ano seguinte, em fevereiro de 2009, foi assinado com a Prefei-
tura de Corumbá o convênio para instalação, na Fazenda Jatobazinho,
de uma classe multisseriada de aceleração de aprendizagem, em regime
de internato como uma escola rural da rede municipal.
Os alunos matriculados na Jatobazinho, naquela época, tinham
idades que variavam de 7 a 16 anos e estavam oficialmente matricula-
dos do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental. A escola funcionou, nessa
época, com 4 educadores para atender às necessidades de cada aluno
e facilitar a aceleração da aprendizagem. As atividades pedagógicas fo-
ram desenvolvidas no contexto de projetos escolhidos pela sua afinidade
com a realidade local.

A Escola Jatobazinho nos dias de hoje

Após mais de dez anos de funcionamento, a escola Jatobazinho

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 105


possui sessenta vagas para atender a população. Na soma dos alunos que
entram e saem ao longo do ano chega a uma média superior a cinquen-
ta alunos, dentro de uma estrutura que comporta os seguintes espaços:
dormitório para alunos e alunas com capacidade para, em média, ses-
senta crianças, dormitórios para educadores pedagógicos e educadores
operacionais, 06 salas de aula, uma para cada série e uma para multimí-
dia, sala de leitura e brinquedoteca, sala de informática, ateliê de artes
e cozinha pedagógica, trilha e pomar, campo de futebol, piscina e um
espaço coberto ao ar livre. Toda essa estrutura compõe o trabalho peda-
gógico como um todo, pensando sempre em uma educação integral que
visa um desenvolvimento mais completo dos estudantes.

Figura 4: Sala de leitura e brinquedoteca da escola

Fonte: arquivo Acaia Pantanal

Nos primeiros anos de funcionamento da escola o corpo discente


era formado por crianças, pré- adolescentes e adolescentes. Hoje a es-
cola é frequentada por alunos com idades entre 5 e 12 anos (que com-
preendem a idade esperada para cursar a etapa do Ensino Fundamental
I, conforme a expressa a lei 9.394/96). Esta mudança na faixa etária e
na seriação foi processual e, como consequência dela, se fez necessário

106 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


criar um espaço educacional que supra as reais singularidades de alu-
nos, agora com idades menores as anteriores atendidas.
Neste ano de 2019 a escola contou com a frequência de 49 alunos,
divididos em 22 meninas e 27 meninos. Há dois anos (2018-2019) a es-
cola implantou um projeto piloto para a criação de uma turma que aten-
da a pré-escola nível II para atender a procura dos pais para alunos com
05 anos. Para isso foi estabelecida uma turma bisseriada, que atende o
primeiro ano e a pré-escola II dentro de uma cultura educacional siste-
mática que garanta práticas da Educação Infantil para essas crianças.
Com relação a proposta pedagógica da escola, desde a sua fun-
dação pensou-se em criar uma escola de educação integral que tivesse
como base de trabalho o currículo interdisciplinar. E foi possível vislum-
brar a existência desse trabalho com a construção de uma organização
pedagógica que garante uma grade horária que hoje é dividida em:

a. período matutino: o trabalho educacional acontece sepa-


radamente por turmas em idade/série. Os alunos, neste
período, são contemplados com as disciplinas como
português, matemática, história, ciências e geografia. Os
componentes curriculares são trabalhados de acordo com
cada série e cada idade. As aulas desse período são coordena-
das por um professor pedagogo que tem a função de orientar
e nortear o currículo dessas turmas, além de supervisionar o
trabalho dos educadores com os alunos. As atividades acon-
tecem nas salas de aula e em muitos outros espaços pedagó-
gicos existentes.
b. período vespertino: Os alunos são em reagrupados em quatro grupos
multisseriados. Nesse período os alunos participam de atividades só-
cio educativas que promovem o um aprendizado diferente do
que o que foi ofertado pela manhã, com atividades relacio-
nadas a aula de educação física, aula de inglês, aula de culinária, aula de
horta, aula de tratamento de sentimentos, aula de comunicação
e mídia, aula de recreação, aula de jogos e brincadeiras e aula
de artes. Essas aulas acontecem em formato de projetos, cada
um sob a responsabilidade de dois educadores. No ano de 2019
a escola desenvolveu os seguintes projetos: corpo e movimento,
ateliê, jogos e brincadeiras, fazendo minha história, minha terra e

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 107


comunicação em inglês. Essas atividades acontecem em espaços
distintos às salas de aula, buscando explorar todos os cantos que a
instituição oferece.
c. Período noturno: O projeto de arte cênica, que trabalha a dança,
o teatro e a música, acontece no período noturno e é realizado por
uma equipe de monitores

Figura 5: atividades buscam explorar todos os espaços da instituição

Fonte: arquivo Acaia Pantanal

Quanto a equipe pedagógica da Escola Jatobazinho, contamos


com o apoio de cinco professores regentes, que são os que conduzem
todo o trabalho pedagógico. Além desses professores contamos também
com o projeto Residência Pedagógica que possibilita o envolvimento de
profissionais de diferentes licenciaturas participem no desenvolvimento
das crianças.
Os residentes têm como função apoiar os professores pedagogos
nos dois períodos, tanto no trabalho em sala de aula, quanto nas ofi-
cinas socioeducativas. Além dos professores e residentes a escola con-
ta com uma equipe de monitores que responsável pelos cuidados das
crianças durante o período que os alunos não estão com os professores.
Os monitores têm a função de acompanhar a rotina diária, tais como o

108 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


banho, o dormir, o momento da alimentação, da higiene, uma vez que
a escola entende que esses momentos cotidianos entrelaçam o proces-
so de aprendizado natural que a escola busca ofertar. A escola possui,
também, um programa de estagiários com estudantes de pedagogia vin-
culados ao Instituto Singularidades, que periodicamente desenvolvem
atividades com os alunos das famílias ribeirinhas.
A formação docente não acontece só na escola. E, dentro da con-
cepção que orienta a proposta educativa do Acaia Pantanal (Organiza-
ção Social na qual a Escola Jatobazinho está inserida) os profissionais
envolvidos no atendimento da comunidade escolar, sejam eles educa-
dores ou operacionais, também são considerados sujeitos em processo
de desenvolvimento e aprendizado. Para contribuir com este desenvol-
vimento, periodicamente, são realizadas atividades de formação. Nessas
atividades de formação os educadores são convidados a estudar assuntos
relevantes a sua prática para melhor contribuir no desenvolvimento dos
alunos. Essa é uma forma que o Acaia Pantanal encontrou para orga-
nizar, de maneira efetiva, a formação continuada dos seus educadores.

Figura 6: As rotinas de formação que acontecem na instituição.

Fonte: arquivo Acaia Pantanal

Em 2019 podemos ressaltar também que as equipes de assessoria

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 109


pedagógica da escola foram fundamentais para garantir a qualidade das
formações. Dentre elas podemos ressaltar:
a. Assessoria na disciplina de língua portuguesa e matemática,
b. Assessoria na construção de projetos educacionais,
c. Assessoria em relação ao trabalho com educação ambiental
horta e sustentabilidade,
d. Assessoria com conteúdo dos técnicos sobre trabalho com sen-
timentos,
e. Assessoria de jogos e brincadeiras,
f. Assessoria do xadrez,
g. Assessoria da leitura e contação de histórias.
Para que a escola consiga oferecer aos seus alunos um ensino de
qualidade, um ensino que parta da realidade e do cotidiano local, a
equipe pedagógica constrói um planejamento anual (hoje parte do con-
junto de conhecimentos e competências definidas na Base Nacional
Comum Curricular), com base nas experiências anteriores, com o di-
álogo feito com os educadores e comunidade. Além do planejamento
anual, a escola conta com o planejamento bimestral, em que cada pro-
fessor define como acontecerão as intervenções pedagógicas na escola;
e o planejamento semanal, em que se define o que acontece a cada dia
da semana e quais serão as atividades que serão realizadas. No fim de
cada bimestre é feito um momento de avaliação desses planejamentos
e, como a escola tem um currículo flexível, nos permitimos readequar
suas propostas sempre que necessário.
A escola, em especial a equipe pedagógica e administrativa, tem
como um eixo norteador do trabalho a valorização da autonomia didá-
tico/pedagógica. Essa autonomia, construída ao longo desses 10 anos
de existência da escola se refletem na escolha do material didático mais
adequado para ao trabalho realizado na instituição. Como exemplo, ci-
tamos a opção da escola pela apostila da Fundação Bradesco - opção
feita a partir do entendimento de que conteúdos abordados para cada
série garantem um aprendizado com maior qualidade. 35 Além da pos-
sibilidade de escolher o material didático, a possibilidade de organizar
uma proposta pedagógica diferenciada de acordo com a realidade dos
nossos alunos e educadores é um ponto positivo encontrado na escola
35. O livro didático mencionado é apenas uma referência de trabalho já que muitas atividades são adaptadas
à realidade local e ministradas com outros instrumentos pedagógicos

110 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


Jatobazinho. Desta forma, a instituição busca garantir que os alunos
aprendam a partir da sua realidade, partindo do princípio da vivência de
cada aluno e de cada contexto familiar que se apresenta.
Durante todo esse tempo, a escola carrega uma frase máxima que
diz: “se não podemos levar nossos alunos para conhecer o mundo, po-
demos trazer o mundo para que nossos alunos conheçam”. Isso garante
aos educadores e alunos uma possibilidade enorme de realizar trabalhos
extracurriculares que envolvam outras escolas, outras cidades, outros
contextos sociais e também realização de eventos durante todo o ano
letivo, com o objetivo de dar visibilidade ao Pantanal e suas áreas ru-
rais. Como exemplos dessas ações podemos citar o Encontro Literário,
o Estudo Do Meio e o intercâmbio com pessoas de outros países como
da Eslovênia. A presença de pessoas visitantes e também de pessoas que
querem conhecer o nosso trabalho é constante dentro da Escola Jato-
bazinho e garantem uma convivência muito rica de nossos alunos com
pessoas do mundo inteiro.

Figura 7: pesquisadores visitando a instituição

Fonte: arquivo Acaia Pantanal

Na instituição há uma preocupação muito grande quanto às rela-


ções da escola com a família. Foi perceptível o aumento da qualidade

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 111


no trabalho com as crianças quando estreitamos mais os laços de relação
com seus familiares. Aos poucos, as famílias, os pais e responsáveis, co-
meçaram a participar mais da vivência escolar das crianças. Isso graças a
um trabalho de aproximação realizada através da nossa equipe de edu-
cadores sociais, juntamente com os educadores e coordenação pedagó-
gico, que entendem que os pais precisam estar diretamente ligados ao
aprendizado das crianças.
No trabalho educativo realizado é preciso levar em consideração
que, mesmo sendo uma escola em regime de alternância36, as crianças
precisam reconhecer a escola como um ambiente natural para o seu
desenvolvimento. Visando assegurar este reconhecimento, são usadas
estratégias para aproximar as famílias da instituição. Uma das estratégias
é a realização de visitas frequentes às casas das crianças. Essas visitas são
realizadas pela educadora social.
Dentro do planejamento de trabalho junto às famílias há momen-
tos em que a educadora social realiza debates sobre temas relacionados
ao desenvolvimento das crianças e das famílias. Durante todo esse tem-
po notou-se uma participação maior na reunião de pais que acontece
em cada fim de bimestre letivo.
Outra estratégia para trazer aproximar a comunidade ribeirinha
das possibilidades de desenvolvimento pessoal e profissional através da
educação escolar são as oficinas que acontecem mensalmente, sob a
coordenação da educadora social, com a intenção de ensinar as mu-
lheres e os homens ribeirinhos algumas atividades artesanais, como por
exemplo, cursos relacionados bordado, crochê, tear, culinária e desen-
volvimento econômico.
Por fim, podemos dizer que o trabalho desenvolvido pela Esco-
la Jatobazinho dentro do contexto ribeirinho, hoje, é reconhecido pela
comunidade que a instituição atende. Em todos os lugares se ouve falar
muito da escola, seja por meio dos alunos que estudaram ali, seja pelos
educadores que contribuíram para o seu funcionamento. A escola se
tornou um ponto de apoio e de colaboração para a educação e para o
desenvolvimento de todo a região do Paraguai Mirim.
36. “Assumindo o trabalho como princípio educativo, a Pedagogia da Alternância permite aos jovens do
campo a possibilidade de continuar os estudos e de ter acesso aos conhecimentos científicos e tecnológicos
não como algo dado por outrem, mas como conhecimentos conquistados e construídos a partir da pro-
blematização de sua realidade, que passa pela pesquisa, pelo olhar distanciado do pesquisador sobre o seu
cotidiano” (CORDEIRO, et al, 2011, p. 116).

112 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


O trabalho educativo realizado com os ribeirinhos também des-
perta a atenção de pesquisadores e da imprensa, e, consequentemente,
a Escola Jatobazinho foi – e permanece sendo - objeto de pesquisas aca-
dêmicas e tema de reportagens televisadas.
A partir das pesquisas e também das reportagens feitas em diferen-
tes momentos ao longo dos 10 anos de existência da Escola Jatobazinho,
podemos observar que muita coisa mudou desde o início da escola. E,
no transcorrer destas mudanças, algumas de ordem estrutural, outras
de ordem pedagógica, muitas crianças, adolescentes e jovens puderam
adquirir outra visão de mundo a partir da educação escolar.
Como parte de um esforço para dar continuidade ao atendimento
educacional dos ribeirinhos do Pantanal, desde 2011, é feito um traba-
lho de acompanhamento de alunos egressos da Jatobazinho que decidi-
ram continuar seus estudos na Escola de Bodoquena, no município de
Miranda. O acompanhamento amplia a possibilidade de permanência
desses alunos para conclusão do Ensino Médio. No ano de 2018, três
primeiros alunos egressos da Escola Jatobazinho concluíram o Ensino
Médio. Em 2019, mais dois alunos se formaram no Ensino Médio den-
tro da escola da Fundação Bradesco. Esses são alguns dos frutos colhi-
dos dentro do trabalho realizado na escola a partir dessa experiência
de 10 anos de atuação no apoio à continuidade de estudos dos alunos
ribeirinhos.

Considerações Finais

Tenho um livro sobre águas e meninos. Gostei mais de um menino


que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos. A mãe repa-
rou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores e até infinitos.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 113


Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito porque
gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever
seria o mesmo que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou
mendigo ao mesmo tempo. O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro
botando ponto final na frase
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios. Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios com as suas peraltagens e algumas pesso-
as vão te amar por seus despropósitos.
(Manoel de Barros)

Narrar a história da Escola Jatobazinho é trazer, em palavras, um


pouco da essência do Pantanal. Quem vive na região ou conhece o local
sabe a importância dessa escola para o sonho e o futuro dos moradores
locais. Durante as andanças que fazemos pela região, ou as visitas que
fazemos às famílias é possível ouvir mães e pais que não querem deixar
suas casas. Ao contrário do que se propaga hoje, em uma sociedade alta-
mente tecnológica e globalizada, muitas famílias têm orgulho de serem
ribeirinhas e veem na escola a oportunidade de aprender, de construí-
rem novas relações e se sentirem visíveis ao mundo.
Além disso, muitas crianças e adolescentes, hoje, já não constroem
barreiras para os seus sonhos. Se antes sonhar em se formar na faculdade
era utopia, hoje não só é uma realidade como também é o desafio que a
Escola Jatobazinho abraça. Em 2019 foi possível rever ex-alunos, anima-
dos, otimistas e reconhecidos e ver que alguns alunos buscam aprender
mais para contribuir com o desenvolvimento local. E o que dizer das
narrativas orgulhosas de pais e mães que aprendem com seus filhos a ler
e a escrever? E o brilho nos olhos de alunos que percebem que o mundo
é pequeno para tanto aprendizado a se obter?

114 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


Construir uma sociedade melhor e mais humana é acreditar no
potencial e na transformação que a educação é capaz de fazer na vida
dos indivíduos. E no meio do Pantanal isso é possível de se acreditar e
viver, nos espaços verdes e naturais da Escola Jatobazinho!
Por fim, ao dizer que o “nosso quintal é maior que o mundo”, como
fez Manoel de Barros, queremos ressaltar que por reconhecer as particula-
ridades naturais e sociais da região do Pantanal de Corumbá, a escola Jato-
bazinho e o Acaia Pantanal valorizam os momentos educacionais que este
Bioma oferece e buscam construir experiências de aprendizado inseridas na
realidade socioambiental da região. E toda vez que a instituição recebe os
seus alunos, nós, educadores da Escola Jatobazinho, percebemos o quanto
estamos dentro de um “quintal” muito grande e renovamos o compromisso
de ensinar a leitura deste “quintal” pelas lentes da educação.

Referências

BRASIL. Decreto 7352 de 04 de novembro de 2010. Disponível em: http://


portal.mec.gov.br/docman/marco-2012-pdf/10199-8-decreto-7352-de4-
denovembro-de-2010/file. Acesso em: 10 nov. 2016.

BRASIL. Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas escolas do


campo. Resolução 01 de abril de 2002. Disponível em: http://portal.mec.
gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=1380 0-
rceb001-02-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 06/01/2020

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Lei nº 9394/1996.


Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm.
Acesso em: 05/01/2020

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,


Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Educação do campo: marcos
normativos. Brasília: SECADI, 2012. Disponível em: http://pronacampo.
mec.gov.br/images/pdf/bib_educ_campo.pdf. Acesso em: 08/01/2020.

CARVALHO, Márcia da Silva. As águas da cultura vivida inundando a


educação: uma leitura sobre letramentos e cultura ribeirinha. Dissertação
(Mestrado em Educação). Instituto de Ciências da Educação da
Universidade do Estado do Pará. Belém/PA, 2018.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 115


CORDEIRO, N. K. Georgina; REIS, Neila da Silva; HAGE, Salomão
Mufarrej. Pedagogia da Alternância e seus desafios para assegurar
a formação humana dos sujeitos e a sustentabilidade do campo. Em
Aberto, Brasília, v. 24, n. 85, p. 115-125, abr. 2011.

DIEGUES, Antonio Carlos; ARRUDA, Rinaldo Sergio Vieira (orgs).


Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília, Ministério do
Meio Ambiente; São Paulo, USP, 1999.

ECOA. Ecologia e Ação. Caderno do professor: Escolas das Águas


valorizando o saber local. 2017. Disponível em: https://ecoa.org.br/
wp-content/uploads/2017/05/carderno_do_professor.pdf Acesso em:
08/01/2020.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Editora Paz e Terra,


1997.

PINTO, Fabiana de Freitas; VICTÓRIA, Cláudio Gomes da. Educação


Indígena e Educação Ribeirinha: singularidades e diferenças, desafios e
aprendizagens no contexto amazônico. In: XII Congresso Nacional de
Educação - EDUCERE: Formação de Professores - edição internacional,
2015, Curitiba: PUCPR, p. 24214 – 24224.

116 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


Capítulo 6

BRINCANDO COM AGRIPINO:


EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS E ARTE EM
UMA CRECHE DE CORUMBÁ/MS
Erika Natacha Fernandes de Andrade
Aline Cristine Androlage Mercado
Karen Carolynne de Oliveira Ferreira

Introdução*37

Este capítulo convida o leitor a pensar a cidade na perspectiva da


educação estética, da garantia dos direitos das crianças e da qualidade
na formação inicial dos professores. Para refletir a educação contempo-
rânea na relação com as experiências estéticas, dialogamos com os pres-
supostos filosóficos de Deleuze e relatamos um projeto desenvolvido
na Creche Municipal Parteira Inocência Cambará, de Corumbá/MS,
com um grupo de crianças de 2 a 3 anos. Defendemos que a qualidade
educacional é fomentada no diálogo sistemático e contínuo entre teoria
e prática, encorajando a docência investigativa e criativa. O professor
com formação científica e estético-artística tem mais condições para
promover a real inclusão das crianças, mediante processos de aprendi-
zagem que incitam a sensibilidade, a problematização, o pensamento e
a criação de ideias, respeitando a constituição de identidades múltiplas
e valorizadas em suas singularidades.

Vem, vem, vem pra Corumbá [...].


Vem ver nossa cultura desse nosso Pantanal [...].
Na avenida desfila o carnaval.
Tem também o Porto Geral [...].
Tem, tem o banho de São João.
Quem não sabe onde é,
desce na ladeira Cunha no Porto Tamandaré.
37. O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul – UFMS/MEC – Brasil.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 117


Como é que vem, que vem pra Corumbá.
Venha ver como ela é.
É a terra mais bonita,
onde tem o rio e a flor dos aguapés.
(BRANDÃO, Sebastião de Souza. Comemoração –
Aniversário de Corumbá, 2019).

O poeta Manuel Bandeira apresenta Pasárgada como o melhor lu-


gar para estar porque lá “a existência é uma aventura”.38 Em 21 de setem-
bro de 2019, o Mestre Cururueiro Sr. Sebastião nos apresenta as possíveis
aventuras de outro lugar; ele também nos faz um convite irrecusável:
“Vem pra Corumbá [...]. É a terra mais bonita, onde tem o rio e a flor
dos aguapés”. Tal como o poeta, o Sr. Sebastião tem razão. Sem fechar os
nossos olhos as para mazelas sociais presentes em todo território brasileiro
– alavancadas, principalmente, pelas diferenças econômicas e de acessos
a bens humanos –, podemos afirmar, com sinceridade, que Corumbá é
bela! Há beleza natural, há riqueza cultural; é terra de artistas e de arte-
sãos; é fronteira que se abre para encontros; é divisa que abraça!
Neste capítulo pegamos carona no convite feito pelo Sr. Sebastião.
Convidamos o leitor para ajustar o olhar e, assim, mirar o delicado tra-
balho de composição de experiências estéticas na educação. Vejamos a
cidade na perspectiva da defesa por uma educação estética, que considera
toda criança como um sujeito de direitos e detentora de múltiplas capaci-
dades; vejamos a cidade na perspectiva da defesa por uma formação ini-
cial de qualidade para os seus futuros professores; enfim, vejamos a cidade
na perspectiva da proposição de fins ilimitados, heterogêneos e poéticos
para as crianças que vivenciam os espaços da Educação Infantil.

Pesquisa e experiência estética na formação inicial do Pe-


dagogo

No Brasil, a formação inicial dos professores para atuar na Edu-


cação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental ocorre em
nível superior, nos cursos de Pedagogia. Nos currículos dos cursos de
Pedagogia, os estágios curriculares, supervisionados e obrigatórios cons-
38. Poesia disponível no Curta-Metragem O Poeta do Castelo, de direção de Joaquim Pedro de Andrade
(1959): <https://www.youtube.com/watch?v=moHvzd64Px4>. Acesso em 08 de janeiro de 2020.

118 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


tituem espaços “de aprendizagem da profissão docente e de construção
da identidade profissional” (SILVA; GASPAR, 2018, p. 206). Os está-
gios mantêm ligação com as outras disciplinas que compõem o curso
de Pedagogia, as quais propiciam a construção de saberes no campo dos
fundamentos da educação, da gestão e das metodologias, subsidiando
os debates, as reflexões e as práticas relacionados à profissão (SILVA;
GASPAR, 2018).
Conforme Ostetto e Maia (2019, p. 2), o principal objetivo do
estágio é “a imersão no contexto da docência”, para que os futuros pro-
fessores possam “pesquisar o campo de atuação profissional, tecer rela-
ções com o coletivo da instituição, conhecer as crianças, formular per-
guntas sobre a prática pedagógica”. A “pesquisa” é um “dos elementos
constitutivos do estágio”, pois a indagação, a investigação, o debate, a
reflexão e a ação transformadora fazem parte da natureza da profissão
docente (OSTETTO; MAIA, 2019, p. 6). O estágio possibilita a pes-
quisa e conhecimentos não apenas aos licenciandos, mas também para
os professores da escola básica e da universidade que, acompanhando/
supervisionado a vivência dos estagiários – inclusive na elaboração e
desenvolvimento de projetos (ou outras formas de regência) –, podem
refletir sobre a práxis, teorizar suas ações, rever suas escolhas, orienta-
ções e condutas (PIMENTA; LIMA, 2006; SILVA; GASPAR, 2018; OS-
TETTO; MAIA, 2019).
De modo geral, a característica dialógica e investigativa do estágio
é constituída pelo aprofundamento teórico, que norteia a construção de
princípios fundamentais à docência; também conta com o trabalho co-
letivo, visando o enriquecimento dos diálogos, das trocas e ajudas mútu-
as; ainda, envolve a observação-participante, que pressupõe a interação
contínua com as crianças, o exercício da escuta e do olhar, assim como
a prática do registro cujas narrativas, compartilhadas em supervisões,
viabilizam reflexões e ajustes éticos nas formas de ver, perceber e valo-
rar. Pesquisas sobre as artes e as manifestações culturais tornam-se igual-
mente imprescindíveis para as atividades de regência, culminando no
desenvolvimento de propostas significativas junto aos grupos de crian-
ças (CORREA, 2010; NASSIF-SCHROEDER; ANDRADE, 2013; OS-
TETTO; MAIA, 2019).
Estudos como os de Kerlan (2015), Loponte (2017), Perissé (2017),
Ostetto e Silva (2018), Correa e Ostetto (2018), Andrade e Cunha (2016,

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 119


2017, 2019), dentre outros, vêm debatendo a imprescindibilidade das
experiências (formações ou vivências) estéticas e artísticas para a educa-
ção na contemporaneidade. Propostas, relações, contextos e ambientes
estéticos impulsionam professores e crianças a sentir e a perceber mais
o mundo natural e cultural, as relações sociais e as necessidades pesso-
ais. As dissonâncias e as inquietudes geradas pelas paixões são acolhidas
positivamente, pois se entende que a atribulação abre portas para mais
explorações, impulsionando a tessitura de novos significados sobre o
meio, sobre os modos de fazer e pensar, sobre as possibilidades de ação
e transformação.
Para o filósofo John Dewey (2010), a experiência estética é eman-
cipadora e é o principal locus da educação; para além dos apaixona-
mentos e estranhamentos, as experiências estético-artísticas envolvem
mediações e interlocuções com vistas à coordenação das emoções com
os saberes e os afetos adquiridos; assim, é possível a (re)criação do eu,
bem como a composição de atos ou produtos intencionais que marcam
o meio social. Tendo em vista o poder formativo das experiências estéti-
cas, é possível elegê-las como outro pilar dos estágios, especialmente os
dos cursos de Pedagogia, considerando que uma das especificidades dos
professores unidocentes é a integração das diversas linguagens e áreas do
conhecimento em prol da formação humanizada.39
O desenvolvimento das próximas seções do texto parte do pres-
suposto de que os estágios obrigatórios e supervisionados dos cursos de
Pedagogia são espaços de pesquisa e de experiência estética. Apresenta-
mos, primeiramente, investigações que vimos desenvolvendo no Grupo
de Pesquisa Discursos e Práticas Poéticas na Educação (CNPq-UFMS/
CPAN), especialmente os estudos sobre as possíveis contribuições da
filosofia de Deleuze (e Deleuze-Guattari) para pensar a educação na re-
lação com as experiências estéticas; defendemos que as apropriações, os
deslocamentos e as recontextualizações dos pressupostos filosóficos – e
de outros campos científicos – fornecem bases sólidas para as intenções
educativas, para as ações junto às crianças, e, inclusive, para as reflexões
sobre a práxis com qualidade estética.
Na sequência relatamos um projeto desenvolvido na Creche Mu-
nicipal Parteira Inocência Cambará, de Corumbá/MS, com um grupo
39. Sobre a terminologia professor unidocente, e sobre as especificidades da ação profissional na unidocên-
cia, ver Bellochio e Souza (2017).

120 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


de crianças de 2 a 3 anos; é um projeto concebido no âmbito da disci-
plina Estágio Obrigatório em Educação Infantil I (Creche), do curso de
Pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus
do Pantanal (UFMS/CPAN). O projeto nasce de muitas pesquisas; para
além dos estudos sobre a Educação Infantil, sobre as expressões artísticas
e manifestações culturais, a sua concepção e o seu desenvolvimento
também tiveram como base o diálogo com pressupostos filosóficos, es-
pecialmente os deleuzeanos. Entendemos que esse percurso nos pos-
sibilitará retomar o convite inicial de mirar a cidade na perspectiva da
educação estética, da garantia dos direitos das crianças e da qualidade na
formação inicial dos professores.

Diálogos sobre a educação com qualidade estética a partir


de Gilles Deleuze

Quando projetamos e organizamos as práticas pedagógicas, nos


valemos dos ideários filosóficos, psicológicos, sociológicos, históricos
etc. Na educação, lidamos com ações que dizem respeito à vida das
pessoas e ao futuro da coletividade; os aportes teóricos ligados às diversas
ciências nos ajudam a construir princípios éticos, políticos e democrá-
ticos, assim como conhecimentos sobre os sujeitos da educação, que
guiam nossos olhares, influenciam nossas sensibilidades e sustentam
nossas escolhas. Para Cunha (2003), ainda que muitos paradigmas cien-
tíficos não contenham, em sua origem, a intenção de influenciar as teo-
rias e as práticas educacionais, investigações acerca de suas teses podem
contribuir significativamente para o entendimento da Pedagogia.
Conforme Gallo (2017a, p.9), o filósofo francês Gilles Deleuze
(1925-1995) “nunca escreveu sobre educação”; todavia, o pesquisador
afirma que estudos sobre os posicionamentos e conceitos deleuzeanos
são profícuos para pensar os problemas educacionais. Quando identi-
ficamos a fecundidade de um ideário, podemos nos apropriar de suas
principais proposições; é-nos possível, também, recontextualizar as te-
ses originais, retirando as “ideias de seu tempo e lugar próprios, com
o intuito de atender necessidades específicas de um novo contexto de
enunciação” (CUNHA, 2009, p. 178). Ou seja, sem distorcer as teorias
originais, “podemos operar por deslocamentos” (GALLO, 2017a, p. 53).

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 121


Faremos isso nesta seção; apropriaremos conceitos deleuzeanos, os des-
locaremos e os recontextualizaremos com o objetivo de tratar a educa-
ção com qualidade estética.
Nossos diálogos iniciarão com a questão central do ideário deleu-
zeano: o pensamento e o conhecimento humano. A filosofia de Deleu-
ze concebe que o processo de pensar – e, consequentemente, de conhe-
cer – é “inseparável de um ato de criação” (ARAÚJO, 2017). Pensar,
ou produzir conhecimento, não significa lembrar, repetir ou repensar
conceitos e obras, mas envolver-se em processos de composição de uma
nova ideia (DAMASCENO, 2017; MACHADO, 2009). Para Deleuze,
o pensamento e o saber filosófico diferenciam-se do científico e do ar-
tístico, pois cada área do conhecimento possui questões, especificidades
e procedimentos que lhes são próprios; porém, há algo que é comum a
todos os domínios: a necessidade de criar (MACHADO, 2009).
Araújo (2017, p. 139) defende que no ideário deleuzeano “a gê-
nese do pensamento” e a construção dos conhecimentos não ocorrem
“espontaneamente”, mas no âmbito da “experiência estética”. Embora
esta expressão não seja utilizada por Deleuze, é possível ligar os debates
do filósofo francês ao campo estético; em seus escritos, Deleuze valo-
riza a sensibilidade, bem como os encontros da pessoa com universos
heterogêneos – especialmente a arte –, por serem vias poderosas para
promover o pensamento poético (RANCIÈRE, 2004; DAMASCENO,
2017; SILVA, 2017).
Deleuze (2011, p. 59) explica que criar uma ideia, e aprender, é
um “acontecimento” que requer a participação da pessoa em “um cam-
po problemático”. A vida possibilita experiências sensíveis que se des-
dobram “num pathos” (DELEUZE, 1997, p. 43); o estado emocional
oportuniza o encontro do indivíduo com a “contingência”, “com aquilo
que a força a pensar” (DELEUZE, 2018, p. 191). Quando os corpos
afetam, e são afetados, são criados fluxos, conexões, zonas de vizinhança
e de indiscernibilidade – com outras pessoas, seres, materiais, fenôme-
nos, contextos etc.; nesses territórios de encontros há a vivência de disso-
nâncias que provocam incertezas; há, ainda, a interlocução com signos
desconhecidos, inserindo os sujeitos em situações verdadeiramente pro-
blematizadoras e reflexivas (SEMETSKY, 2003, 2006).
Mediante o conceito de devir, significando corpos que permane-
cem em movimento e estabelecem alianças, Deleuze e Guattari (1992,

122 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


2012) tratam a construção dos afectos e perceptos, que vão além dos
sentimentos imediatos, sendo novos blocos de sensações e percepções
que transcendem o ponto de vista individual. O artista está sempre em
devir; ele é um criador de afectos e perceptos desconhecidos, como o
homem-baleia ou o homem-oceano, os quais são elaborados a partir dos
contrapontos entre homem, baleia e oceano, guardando semelhanças
com os seres originais, mas, promovendo também a desconstrução de
suas características. Ao criarem afectos e perceptos, os artistas inventam
categorias possíveis, novas figuras estéticas que compõem suas obras,
que impactam o mundo e a formação das subjetividades (DELEUZE;
GUATTARI, 1992, 2012).
Semetsky (2006, p. 42) mostra que no ideário deleuzeano as expe-
riências sensíveis e a elaboração de afectos e perceptos são “precondições
para o pensamento reflexivo”. Deleuze (2011, p. 139) destaca a relação
do pensar não apenas com os conteúdos, mas principalmente com
a elaboração do “sentido”, pois a pessoa vai além do “objeto como
designado”, apresentando o “objeto como expresso ou exprimível”
(DELEUZE, 2011, p. 139). Os sentidos criados são “singularidades”
que advêm da relação radical do sujeito com a empiria, apresentando
no mundo uma objetividade nova, diferente ou única (DELEUZE
p. 2011, p. 110). As expressões singulares se opõem aos enunciados
universais ou transcendentais, aos juízos pessoais e à repetição de
consensos (SEMETSKY, 2003, 2006; MOSTAFA, 2013).
Deleuze (1997) acrescenta que a mobilização do pensamento e
a criação das expressões singulares contam com espaços e tempos que
não são endógenos, fixos e cronológicos; o espaço que propicia o pensa-
mento é definido como exterioridades com qualidade rizomática, que
possibilitam múltiplos percursos, com poder de afetar o corpo e o inserir
no devir; o tempo criativo é o da exploração e elaboração do sentido, em
meio ao qual a pessoa faz uso da linguagem para percorrer imaginati-
vamente outros trajetos, seja no passado, presente ou futuro, criando o
novo e até o inimaginável (DELEUZE, 1997, 2011).
Para Gallo (2017a, p. 49), a filosofia deleuzena é política e revolu-
cionária; muitas vezes tendemos a aceitar e/ou impor um “pensamento
único”, com a justificativa de que precisamos lutar “contra o caos” de
um mundo devastado pela “multiplicidade de possibilidades”. Para De-
leuze, isso seria uma “fuga”, pois “o que importa não é nem vencer o

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 123


caos nem fugir dele, mas conviver com ele e dele tirar possibilidades
criativas”. A elaboração filosófica, científica e artística – ou mesmo os
conhecimentos produzidos no contexto geral da vida – devem libertar
a diferença. Ver, ouvir e perceber o que é desviante e marginalizado é
uma forma de resistência (MACHADO, 2009).
Ao abordar o pensamento como ato criativo, poético e transgres-
sor, a filosofia deleuzeana se encontra com a principal finalidade da
experiência estética que é a formação do sujeito sensível, autêntico e
transformador. Talvez a contribuição mais genuína de Deleuze para os
debates sobre a experiência estética seja a ênfase nos processos viven-
ciais e formativos que se alimentam dos detalhes e visam a expressão do
singular, que é um posicionamento, conceito, ação, expressão, produto
etc. diferente. Deleuze (2018) enfatiza que a diferença é formulada a
partir dos intercâmbios, mas elas não são meras sínteses destes, pois o
encontro com signos múltiplos pode levar o raciocínio a desbravar es-
paços completamente inusitados, promovendo a criação do inesperado.
Conforme Semetsky (2003, p. 24), a partir de Deleuze é possí-
vel pensar a aprendizagem como uma “prática construtiva”. O ato de
aprender é da ordem do sensível, que não se dicotomiza do inteligível;
ele também envolve a elaboração de problemas e de soluções criati-
vas, o que não pode se confundir com a mera apresentação de questões
para serem resolvidas segundo um método pré-estabelecido, visando
respostas determinadas de antemão. A ênfase da aprendizagem está no
processo e na relação com o “signo”, pois em meio aos encontros hete-
rogêneos a pessoa se depara com portadores (ou emissores) de ideias,
com as ideias (ou conceitos) e com a solicitação de respostas criativas
(DELEUZE, 2018, p. 43).
A filosofia deleuzeana destaca o poder da arte para impulsionar
a criação do pensamento; é possível estender essa preponderância para
o campo mais amplo das práticas pedagógicas. A arte insere os sujeitos
em relações dialógicas que ultrapassam a relação com quem a produziu,
uma vez que o trabalho artístico reúne “pedras trazidas por diferentes
viajantes e por pessoas em devir”, apresentando “mapas, extensivos e
intensivos” que os apreciadores podem descobrir, explorar e percorrer
(DELEUZE, 1997, p. 78). Os efeitos produzidos pelos objetos estético-
-artísticos são indeterminados e provocam a formação de novas formas
de subjetividade, com capacidade e força para escapar das normativi-

124 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


dades postas pelos dispositivos hegemônicos (SOLER; KAWAHALA,
2017).
Deleuze (2018, p. 43) afirma que “nada aprendemos com aquele
que diz: faça como eu. Nossos únicos mestres são aqueles que nos dizem
“faça comigo” e que, em vez de nos propor gestos a serem reproduzidos,
sabem emitir signos a serem desenvolvidos no heterogêneo”. Para Gallo
(2017b p. 107), este trecho traz “dois aspectos muito promissores”; pri-
meiro, a aprendizagem é um acontecimento singular no pensamento
e, portanto, se opõe à reprodução, à realização de tarefas controladas e
homogeneizadoras, objetivando “que todos aprendam as mesmas coi-
sas, da mesma maneira” (GALLO, 2017b, p. 105); em segundo lugar,
a pessoa aprende “sempre com alguém”, experienciando com o outro
(GALLO, 2017b, p. 107).
É possível refletir o papel do professor a partir das proposições
deleuzenas, o qual não é dirimido, mas, sim, ressignificado; como
cada pessoa reage aos signos e às relações de uma maneira, o professor
compreenderá que as produções e os conhecimentos elaborados pelos
sujeitos também são singulares e múltiplos (GALLO, 2017a, 2017b). O
professor se distancia do controle e se volta para os detalhes da ação e
do desenvolvimento de cada um de seus alunos; ele também se torna
criador de novas formas de agir com as crianças (jovens ou adultos).
A dimensão política e revolucionária da filosofia deleuzeana ainda
nos leva a pensar na “desterritorialização” dos “processos educativos”,
significando o enfrentamento crítico das políticas, parâmetros e diretri-
zes da educação “que estão sempre nos dizendo o que ensinar, como
ensinar, para quem ensinar, por que ensinar” (GALLO, 2017a, p. 65).
Podemos problematizar e criar soluções poéticas para o cotidiano das
salas de aula, na relação direta com os sujeitos da aprendizagem; outra
possibilidade de resistência remete ao trabalho pedagógico com produ-
ções artísticas e culturais que apresentam outras possibilidades de vida
e de estética, inclusive valores, “problemas e inquietações” de comu-
nidades minoritárias da qual um “singular artista faz parte” (GALLO,
2017a, p. 64).
Abramovicz (2003) ressalta a relevância do campo teórico das dife-
renças – no qual estão inclusas as elaborações de Deleuze – para pensar
ações pedagógicas e políticas na Educação Infantil. Para a pesquisadora,
é preciso tratar a real inclusão das crianças e a garantia efetiva dos seus

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 125


direitos, mediante atendimentos de qualidade que contribuem para a
formação de identidades múltiplas e valorizadas em suas singularidades.
Isso requer dos profissionais da educação respeito ao tempos, trajetórias
e curiosidades das crianças, assim como oposição às pedagogias “supli-
cantes e prescritivas” – que não promovem intercâmbios entre as hetero-
geneidades e acabam mantendo intactas a intolerância e as hierarquias
hegemônicas (ABRAMOVICZ; TEBET, 2017, p. 198).

Pesquisas e experiências estéticas no trabalho pedagógico


na creche

O projeto Brincando com Agripino foi concebido no âmbito da dis-


ciplina Estágio Obrigatório em Educação Infantil I (Creche), do curso de
Pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus
do Pantanal (UFMS/CPAN); o projeto foi desenvolvido na Creche Mu-
nicipal Parteira Inocência Cambará, de Corumbá/MS, junto a um gru-
po de crianças de 2 a 3 anos. Considerando as proposições deleuzeanas
de desterritorialização e de encontros com os signos heterogêneos da
cultura, escolhemos o universo cultural e artístico do Siriri para propor
experiências junto às crianças, incitando a curiosidade e a exploração,
promovendo encontros e construções singulares.
Foram necessárias pesquisas sobre a história, a estética e a poética
do Siriri, que envolve música, cantos, danças e instrumentos específicos,
a exemplo da Viola-de-Cocho; no contexto da cultura sul-mato-grossense,
a Viola-de-Cocho está presente em expressões folclóricas, festivas e de-
vocionais. Em 2005, o modo peculiar de confeccioná-la foi reconhecido
como patrimônio cultural do Brasil, pelo Instituto do Patrimônio Históri-
co e Artístico Nacional – IPHAN (IPHAN, 2009, 2019). Foram realizados
encontros e conversas com o Sr. Agripino Soares de Magalhães, residente
em Corumbá/MS, e com o Sr. Sebastião de Souza Brandão, residente
em Ladário/MS; ambos são artistas, compositores e músicos, assim como
artesãos, com domínio da confecção da Viola-de-Cocho.
O Sr. Agripino, nascido em 1918, aprendeu a tradição do Cururu
e do Siriri com amigos; no primeiro semestre de 2019, com 101 anos, o
Sr. Agripino recebeu Aline Mercado e Karen Ferreira (à época, estagiá-
rias e graduandas em Pedagogia na UFMS-CPAN) em sua casa e narrou

126 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


com disposição as suas memórias; quando soube que as crianças viven-
ciariam na creche um projeto cujo eixo temático seria o universo do Si-
riri, e que aspectos da sua vida/história impulsionariam as experiências
junto às crianças, o Sr. Agripino se dispôs a gravar um vídeo com dizeres
especiais para os meninos e meninas da turma – o vídeo foi projetado no
último dia de atividades relacionadas ao projeto. O Sr. Sebastião, nas-
cido em 1944, vivenciou e aprendeu as práticas de Cururu e Siriri com
antepassados, inclusive brincando quando criança; ao receber Aline e
Karen em sua casa (e em sua oficina), logo se disponibilizou para ir à
creche para cantar e tocar com as crianças.

Conjunto de fotografias 1 – Sr. Agripino em apresentação. Sr. Agripino e Sra. Maria.


Na casa do Sr. Agripino (Corumbá/MS)

Fontes: Acervo Moinho Cultural.40 UFMS.41 Aline C. A. Mercado e Karen C. O. Ferreira.

O Sr. Agripino e o Sr. Sebastião são artistas que apresentam não


apenas os próprios saberes, recordações e criações, mas também os “de
um povo” que, em contraposição às tendências mercadológicas, difun-
de – e mantém vivas – as raízes da cultura brasileira (DELEUZE, 1997,
p. 14). O encontro das crianças com a tradição do Siriri, e com ambos
os artistas, facultou a organização de uma prática pedagógica que possi-
bilita novos agenciamentos – distintos do que é veiculado no cotidiano
pela opinião comum; houve a intenção de promover o acesso a obras,
valores, modos de fazer e pensar etc.; sabíamos que o encontro com
40. Imagem disponível em: <https://cdn1.campograndenews.com.br/uploads/tmp/images/5256585/640x480-
-0c1e68c685248605c06ab57e599d6856.jpg>.
41. Imagem disponível em: <https://cururueiros.ufms.br/cururueiros/agripino-soares-de-magalhaes/ >.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 127


os signos heterogêneos ocasionariam desequilíbrios e problematizações,
mas também promoveriam inclusões; os encontros seriam, enfim, meios
vantajosos para enriquecer o eu, o pensamento e a criação de ideias.

Conjunto de fotografias 2 – Sr. Sebastião em sua casa (Ladário/MS). Oficina de


Viola-de-Cocho do Sr. Sebastião. Karen, Aline e Sr. Sebastião.

Fonte: Aline C. A. Mercado e Karen C. O. Ferreira.

No Quadro 1 deste capítulo constam as propostas que compuseram


o projeto Brincando com Agripino. Os objetivos com relação à aprendiza-
gem não foram prescritivos, imitativos e mecanizados – isso acontece, por
exemplo, quando a meta é fazer com que as crianças decorem, ou ape-
nas reconheçam, nomes de cores, letras, figuras geométricas, palavras etc.
Em consonância com os pressupostos deleuzeanos – que mostram que o
conhecimento humano não é construído pela mera recepção e acúmulo
de noções simplificadas –, os objetivos pretendidos no decorrer do projeto
remeteram à garantia de condições que pudessem: (i) contribuir para o

128 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


encontro das crianças com a cultura, linguagens e signos; (ii) contribuir
para construções de conhecimentos e desenvolvimentos relativos ao cor-
po, aos movimentos, às variadas formas de expressão e composição. São
objetivos abertos, pois se entende que o aprendizado é singular, podendo
surpreender ao percorrer planos não previstos pelos professores.
Considerando que pensar e conhecer são atos de criação, enten-
demos que o alcance dos objetivos educacionais almejados implicaria a
promoção de experiências estéticas e criativas junto às crianças. Um dos
pilares da experiência estética são os encontros (com pessoas, materiais,
sonoridades, visualidades, fenômenos etc.), que provocam encantamen-
tos e apaixonamentos, que possibilitam o devir, a conexão e inter-relação
profunda com o outro, com outras coisas e outros signos. Na organização
do trabalho pedagógico, os encantamentos, enquanto disparadores das
problematizações, demandam ambientes estéticos e aconchegantes, com
materiais diversos, capazes de incitar a curiosidade, a imaginação e a ação.

Quadro 1 – Propostas que compuseram o projeto Brincando com Agripino

Fonte: Erika N. F. Andrade; Aline C. A. Mercado e Karen C. O. Ferreira.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 129


Por isso, no projeto Brincando com Agripino os espaços e os ma-
teriais foram objetos de pesquisa e de construção; para além do uso dos
materiais confeccionados para impulsionar vivências planejadas – por
exemplo, o uso do boneco e da Viola-de-Cocho para a contação de
história –, foram garantidos momentos para que as crianças pegassem
e explorassem os materiais em seus modos próprios; as crianças vêm
detalhes que escapam aos olhos dos adultos; elas também constroem
narrativas – verbais ou expressivas – entre si, o que permite a cada uma
se encontrar com a sensibilidade, a espontaneidade, a indignação etc.
de outro colega, enriquecendo o ato de aprender.

Conjunto de Fotografia 4 – Materiais diversos e organização do espaço que possibilitam


encontros, explorações e encantamentos.

Fonte: Aline C. A. Mercado e Karen C. O. Ferreira.

Outro pilar das experiências estéticas é a problematização. Os


intercâmbios estabelecidos mediante caminhos rizomáticos são ricos
e significativos porque possibilitam a elaboração de problemas, bem
como a busca por soluções criativas e conscientes – o que Deleuze cha-

130 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


ma de construção de afectos, perceptos e conceitos. Na educação com
qualidade estética, uma das principais funções do professor é indagar,
problematizar e mediar as construções das crianças; no projeto, todas
as propostas foram concebidas na perspectiva de levar os pequenos ao
encantamento e à problematização.
No Conjunto de Fotografia 5, apresentado abaixo, constam ima-
gens de atividades com pintura e desenho; as crianças problematizaram
os portadores, pois algumas usaram todo o espaço da cartolina, enquan-
to outras escolheram espaços delimitados para as suas produções; elas
também se envolveram com as marcas produzidas com a tinta pelo mo-
vimento da mão e pelo uso das cores; teve criança que explorou os efei-
tos da concentração da tinta no papel e as texturas formadas. O próprio
riscante foi objeto de problematização de crianças que, além de dese-
nhar, brincaram com os gizes de cera, organizando-os, enfileirando-os,
divertindo-se com as suas cores e os seus tamanhos.

Conjunto de Fotografia 5 – Pintura com tinta aguada em cartolina. Desenho e pintura


com giz de cera em cartolina com interferência.

Fonte: Aline C. A. Mercado e Karen C. O. Ferreira.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 131


Uma preocupação recorrente dos professores pedagogos é se as
crianças estão aprendendo; essa é uma inquietação justa e deve ser pro-
blematizada no âmbito da docência. Apropriando-nos do pensamento
deleuzeno, os questionamentos sobre o aprender podem ser remodela-
dos na seguinte pergunta: as crianças estão criando fatos novos no pensa-
mento? As crianças estão elaborando sentidos singulares, transcendendo
a imediaticidade?
No trabalho educativo não é possível medir ou descrever com
exatidão quando “a atitude inconsciente ou o pensamento habitual dá
lugar aos processos analíticos” – à produção de sentidos e pensamen-
tos reflexivos –, justamente porque essas construções são singularidades
(SEMETSKY, 2003, p. 26). Todavia, a expressão (ou a atuação expressi-
va) das crianças pode nos fornecer pistas sobre como elas retornam para
o mundo aquilo que vivenciam; esse é um retorno que não significa a
repetição do mesmo; pelo contrário, é um retorno que evidencia o que
de diferente foi produzido a partir da experiência.
O professor que está atento às falas, gestos, expressões e linguagens
das crianças tem mais condições de inferir sobre as criações e os sentidos
singulares dos pequenos, de compreender os seus movimentos de trans-
formação e de diferenciação; em suma, o professor tem mais condições
para identificar a vontade de potência elaborada pela criança – isto é, as
afirmações singulares (ou os diferenciais) que ela tece, inclusive acerca
da sua identidade, do seu querer, da sua subjetividade; esses elementos
servem para o professor pensar sobre o que pode ser feito em termos edu-
cativos, impulsionando ainda mais os encontros, as problematizações e
as elaborações dos meninos e meninas com os quais atua.42
Os debates sobre o olhar atento do professor – que acolhe as singula-
ridades das crianças, que compreende que o modo diferente de ser e agir
da criança resulta de seus acordos mais genuínos – nos levam a outro pilar
das experiências estéticas que são os tempos e os espaços do pensamento
como um acontecimento singular. Considerando o ideário deleuzeano,
podemos dizer que o espaço verdadeiramente educativo é o dos encontros
que suscitam paixões, problematizações etc. O tempo educativo não é o
cronológico (chronos), mas o que permite a ligação entre passado, presen-
te e futuro, mediante a criação de sentidos e a celebração consciente da
42. Conforme Machado (2009), Deleuze interpreta os conceitos de eterno retorno e vontade de potência de
Nietzsche como sendo a afirmação mais genuína (e diferencial) da pessoa; é a primazia da diferença sobre
a identidade.

132 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


vida (aion). A “maior potência e possibilidade de uma criança estão no
tempo aión, ou seja, um tempo que é a própria infância. Infância como
experiência” (ABRAMOVICZ; TEBET, 2017, p. 198).
Na fotografia 6 constam três situações que ilustram respeito aos
tempos e os modos singulares criados pelas crianças para dançar, para
interagir e acordar movimentos com o colega que está próximo, para
ver e apreciar, ou simplesmente para observar. Destacamos a propos-
ta feita às crianças de brincar inventando movimentos com cones de
silicone, seguindo os desafios propostos por uma canção; no início da
brincadeira as estagiárias e as professoras perceberam que as crianças se
interessaram pelos cones, mas elas queriam experienciar as criações em
seus tempos singulares – de modo mais experiencial – e não no tempo
da canção; a problematização das crianças foi acolhida e a brincadeira
mudou, priorizando as sugestões, os tempos, os modos e os sentidos das
crianças para compor.

Conjunto de Fotografias 6 – Brincadeira com música e movimento. Apreciação de imagens.


Cantando e dançando com o Sr. Sebastião.

Fonte: Aline C. A. Mercado e Karen C. O. Ferreira.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 133


Deleuze e Guattari (1992, p. 263) afirmam que as artes reorgani-
zam e transformam o caos presente no mundo; nas produções artísticas,
as forças contrárias, dissidentes, despercebidas, ou silenciadas, são re-
criadas esteticamente, e também são coletivizadas, de modo que mais
pessoas se sensibilizam e se encontram em outro território que expressa
o “não previsto nem preconcebido”. Se por um lado a arte viabiliza a
sintonia coletiva (ou um acordo, pelo menos no que diz respeito a temas
e signos que ganham autonomia e são vistos), por outro abre portas para
os planos singulares de composição.
Nos encontros das crianças com o Sr. Sebastião, com os adoles-
centes e jovens, e com o Sr. Agripino – este último encontro efetivado
pelas vias lúdica (boneco, histórias) e tecnológica (vídeo) –, ficou evi-
dente o balanço, mesmo que instável, entre sintonias coletivas e cria-
ções singulares. Na apresentação do Grupo Juvenil de Siriri da Escola
Municipal de Educação Integral Luiz Feitosa Rodrigues (Corumbá/
MS), os pequenos ficaram extasiados; os adolescentes/jovens também
se encantaram com as crianças de 2 a 3 anos e, espontaneamente, os
convidaram para uma grande roda; os adolescentes/jovens apresenta-
vam modos de mexer os pés e as mãos para os pequenos; estes, por sua
vez, respondiam com movimentos que tanto se assemelhavam quan-
to transgrediam o que fora proposto, impulsionando os companheiros
maiores a improvisar novos modos de agir.
O projeto foi finalizado com a projeção do vídeo gravado pelo
Sr. Agripino; ele felicita as crianças e se apresenta dizendo: “Eu sou o
Agripino”, “eu sou aquele que toca viola para vocês”, “que canta, que
dança”, “que faz vocês dançarem”! A sensibilidade do Sr. Agripino é
bela; ele constrói uma zona de vizinhança com os meninos e meninas
de 2 a 3 anos; o Sr. Agripino também se mostra atento para as constru-
ções singulares dos pequenos ao mencionar que o sentido da sua arte é,
justamente, incitá-las a dançar, brincar, se divertir.

Considerações finais

Pensar a cidade é, também, pensar a educação de qualidade, a


formação de professores, as relações entre escola, arte e cultura. A quali-
dade educacional é fomentada no diálogo sistemático e contínuo entre

134 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


teoria e prática, encorajando o trabalho pedagógico estético, bem como
a docência investigativa, artística e criativa.
A qualidade estética da educação é sustentada pela promoção
de encontros ricos e significativos que provocam as sensibilidades das
crianças. Os profissionais da educação precisam ser incentivados a olhar
por outros ângulos, captando o ínfimo e os paradoxos que compõem a
realidade escolar; os dados recolhidos pelo deleite estético serão proble-
matizados e refletidos, visando à criação de sentidos e significados sobre
a práxis docente. O trabalho pedagógico estético é liberto das amarras
do controle, da cópia, da mecanização, dos currículos engessados que
priorizam treinos; compreende-se que a aprendizagem precisa garantir
acessos ao patrimônio cultural e artístico da humanidade, mediante a
consolidação de contextos educativos acolhedores e propícios à expe-
rimentação; busca-se provocar a ação das crianças (jovens e adultos) e
mediar – pela indagação e pela interlocução –, a criação de caminhos
variados de conhecimento, pensamento e transformação.
Se a pesquisa é inseparável dos processos de construção da pro-
fissionalidade docente, a formação estética também constitui a identi-
dade do professor e as suas formas de se relacionar com a profissão. A
experiência estética é contrapartida da pesquisa, pois, embora remetam
a atividades diferentes, ambas as dimensões têm qualidades, princípios
e processos comuns. A vivência estética provê as paixões que melhoram
nossas visões, sensações e percepções, nossos questionamentos e discer-
nimentos, impulsionando mais estudos capazes de transformar a reali-
dade prática e, inclusive, renovar os valores das comunidades científicas.
Por isso, a formação de professores não pode prescindir da educação
científica e estética promovida ao longo da graduação e nas atividades
de formação continuada.
Na perspectiva da desterritorialização, defendemos que os profis-
sionais da educação – desde suas formações iniciais – podem aprender
com os artistas, com a arte, com as manifestações da cultura popular; as
relações entre os professores e o campo estético-artístico podem ajudar
na criação de fins belos e inimagináveis para cada criança (jovem ou
adulto); vivenciando a arte, o professor compreenderá, cada vez mais,
que o pensamento criativo percorre caminhos múltiplos; então, se o
objetivo da profissão é promover o desenvolvimento do sujeito criati-
vo, com capacidade de pensamento autônomo, é preciso compor uma

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 135


práxis artística e estética, em meio à qual o professor é investigador e
compositor de ações transformadoras.

Referências

ABRAMOWICZ, Anete. O direito das crianças à educação infantil. Pro-


Posições, v. 14, n. 3 (42), set.dez., 2003.

ABRAMOVICZ, Anete; TEBET, Gabriela Guarnieri de Campos.


Educação Infantil: um balanço a partir do campo das diferenças.
Pro-Posições, v. 28, supl. 1, p. 182-203, 2017. DOI: http://dx.doi.
org/10.1590/1980-6248-2016-0114.

ANDRADE, Erika Natacha Fernandes; CUNHA, Marcus Vinicius. A


contribuição de John Dewey ao ensino da arte no Brasil. Espacio, Tiempo
y Educación, 3(2), p. 301-319, 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.14516/
ete.2016.003.002.013

ANDRADE, Erika Natacha Fernandes; CUNHA, Marcus Vinicius.


Action research with John Dewey’s poetic and rhetoric pedagogy.
International Journal of Action Research, v. 13, p. 261-275, 2017. DOI:
https://doi.org/10.3224/ijar.v13i3.05

ANDRADE, Erika Natacha Fernandes; CUNHA, Marcus Vinicius.


Sophistry in Vygotsky: contributions to the rhetorical and poetic pedagogy.
Studies in Philosophy and Education, p. 1-15, 2019. DOI: https://doi.
org/10.1007/s11217-019-09683-y

ARAÚJO, André Vinicius Nascimento. Deleuze e Kant: a experiência


estética e a gênese do pensamento. Perspectiva Filosófica, vol. 44, n. 1,
p. 137-156, 2017. Disponível em: <https://periodicos.ufpe.br/revistas/
perspectivafilosofica/article/view/230362>. Acesso em 18 de dezembro
de 2019.

BELLOCHIO, Cláudia Ribeiro; SOUZA, Zelmielen Adornes. Professor


de referência e unidocência: pensando modos de ser na docência dos
anos iniciais do ensino fundamental. In: BELLOCHIO, Cláudia Ribeiro.
(Org.). Educação musical e unidocência: pesquisas, narrativas e modos de
ser do professor de referência. Porto Alegre: Sulina, 2017, p. 13-35.

136 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


BRANDÃO, Sebastião de Souza. Comemoração – Aniversário de
Corumbá. Canção. 2019.

CORREA, Bianca Cistina. Experiências de estágio em um curso de


pedagogia: vivências e desafios em busca de uma formação de qualidade.
In: PACÍFICO, Soraya Maria Romano; ARAÚJO, Elaine Sampaio.
(Org.). Docência e gestão: a aprendizagem em situação de estágio.
Ribeirão Preto: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão
Preto da Universidade de São Paulo, 2010.

CORREA, Carla Andrea; OSTETTO, Luciana Esmeralda. Sobre


formação estética e docência: as professoras de educação infantil desejam
mais arte! Laplage em Revista, v. 4, n. Especial, p. 23-37, 2018. DOI:
https://doi.org/10.24115/S2446-622020184especial583p.23-37.

CUNHA, Marcus Vinicius. Psicologia da educação. Rio de Janeiro:


DP&A, 3ª ed., 2003.

CUNHA, Marcus Vinicius; GARCIA, Débora Cristina. A apropriação de


John Dewey na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (1944-1964).
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 90, n. 224, p. 176-
203, jan./abr. 2009.

DAMASCENO, Verônica. Pensar com a arte: a estética em Deleuze.


Viso: Cadernos de estética aplicada, v. XI, n. 20, p.135-150, jan-jun, 2017.
doi: 10.22409/1981-4062/v20i/223.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução Peter Pál Pelbart. Rio de


Janeiro: 34, 1997.

DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. Tradução Luiz Roberto Salinas


Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2011.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução Luiz Orlandi e


Roberto Machado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução


Bento Prado Jr. E Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: 34, 1992.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e


esquizofrenia 2. Vol. 4. Tradução Suely Rolnik. São Paulo: 34, 2012.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 137


DEWEY, John. Arte como experiência. Tradução de Vera Ribeiro. São
Paulo: Martins Fontes, 2010.

GALLO, Silvio. Deleuze & a Educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica,


2017a.

GALLO, Silvio. O aprender em múltiplas dimensões. Perspectivas da


Educação Matemática, v. 10, n. 22, p. 103-114, 2017b.

IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Modo de


fazer viola-de-cocho. Brasília DF, Iphan, 2009.

IPHAN, Superintendência do Iphan em Mato Grosso do Sul. Memórias


do Presente. Campo Grande MS, Iphan, 2019.

KERLAN, Alain. A experiência estética, uma nova conquista democrática.


Revista Brasileira de Estudos da Presença, v. 5, n. 2, p. 266-286, maio/ago.
2015.

LOPONTE, Luciana G. Tudo isso que chamamos de formação estética:


ressonâncias para a docência. Revista Brasileira de Educação, Rio de
Janeiro, v. 22, n. 69, p. 429-452, 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/
s1413-24782017226922

MACHADO, Roberto. Deleuze, a Arte e a Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar,


2009.

MOSTAFA, Solange Puntel. O pragmatismo clássico americano e a


filosofia da diferença: questões para a educação. Revista Contrapontos -
Eletrônica, vol. 13 - n. 2 - p. 120-129, 2013.

NASSIF-SCHROEDER, Silvia Cordeiro; ANDRADE, Erika Natacha


Fernandes. O estágio em educação infantil como espaço de formação
estética. In: PACÍFICO, Soraya Maria Romano; ARAÚJO, Elaine
Sampaio. (Org.). O estágio e a produção do conhecimento docente. 1ed.
São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.

OSTTETO, Luciana Esmeralda; SILVA. Greice Duarte de Brito. Arte na


formação docente para Educação Infantil: Procura-se! Unisul, v.12, n. 21,
p. 185-203, 2018. Disponível em: http://www.portaldeperiodicos.unisul.
br/index.php/Poiesis/index.

138 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


OSTETTO, Luciana Esmeralda; MAIA, Marta Nídia Varella Gomes.
Nas veredas do estágio docente: (re)aprender a olhar. Olhar de professor,
v. 2, p. 1-14, 2019. DOI: 10.5212/OlharProfr.v.22.0005

PERISSÉ, Gabriel. Estética & Educação [Versão eBook Kindle]. São


Paulo: Autêntica, 2017. Distribuído em: https://ler.amazon.com.
br/?asin=B0743JLJ95.

PIMENTA, Selma Garrido; LIMA, Maria Socorro Lucena. Estágio e


docência: diferentes concepções 2006. Revista Poíesis Pedagogica, v.3, n.
3 e 4, p.5-24, 2006. DOI: https://doi.org/10.5216/rpp.v3i3e4.10542.

RANCIÈRE, Jacques. Is there a deleuzian aesthetic? Tradução de Radmila


Djordjevic. Qui Parle, 14, 2, p. 1-14, 2004. doi: https://doi.org/10.1215/
quiparle.14.2.1

SEMETSKY, Inna. Deleuze’s New Image of Thought, or Dewey


Revisited. Educational Philosophy and Theory, 35:1, 17-29, 2003. doi:
10.1111/1469-5812.00003.

SEMETSKY, Inna. Deleuze, Education and Becoming. Switzerland:


Sense Publishers, 2006.

SILVA, Cintia Vieira. Intensidade e individuação: Deleuze e os dois


sentidos de estética. Revista de Filosofia Aurora, v. 29, n. 46, p. 17-34, jan./
abr., 2017. doi: http://dx.doi.org/10.7213/1980-5934.29.046.DS01.

SILVA, Haíla Ivanilda; GASPAR, Mônica. Estágio supervisionado: a


relação teoria e prática reflexiva na formação de professores do curso de
Licenciatura em Pedagogia. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 99,
n. 251, p. 205-221, jan./abr. 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.24109/2176-
6681.rbep.99i251.3093

SOLER, Rodrigo Diaz de Vivar; KAWAHALA, Edelu. A potência de viver:


Deleuze e a arte. Psicologia & Sociedade, 29, p. 1-8, 2017. DOI:http://
dx.doi.org/10.1590/1807-0310/2017v29157570

UFMS, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Agripino Soares


de Magalhães. Mato Grosso do Sul. Disponível em: <https://cururueiros.
ufms.br/cururueiros/agripino-soares-de-magalhaes/> Acesso em 13 dez.
2019.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 139


Capítulo 7

CULTURA DE PAZ E DIREITOS


HUMANOS NA EDUCAÇÃO: UM
ESTUDO TEÓRICO SOBRE A
NECESSIDADE DESSA RELAÇÃO
Lielza Victório Carrapateira Molina
Cláudia Araújo de Lima

Introdução43

A discussão sobre paz vem sendo evidenciada em vários momen-


tos da história dos países do mundo. Destaca-se neste estudo, o período
do pós-guerra e a evolução das estratégias para o desafio de conquistas
da paz para todos.
Após um período sangrento da segunda guerra mundial, os diri-
gentes das novas nações que emergiram como potências no período pós-
-guerra, realizaram a Conferência de Yalta, na Rússia em 1945. Em 11 de
fevereiro, daquele ano, assinaram acordos para o fim da guerra e a para a
estabilidade do mundo após o término daquele período de tanta barbárie.

No período de 3 a 11 de fevereiro de 1945, o presidente america-


no Franklin D. Roosevelt, o ditador soviético Joseph Estaline e o
primeiro-ministro inglês britânico Winston Churchill acordaram
uma estratégia conjunta relativa à aplicação de punições para os
crimes de guerra e crimes contra a Humanidade, determinaram
o montante das indenizações a pagar pelos danos causados pela
guerra, discutiram a reconstrução e a reabilitação dos países des-
truídos pelo conflito armado, e a reestruturação da Iugoslávia e
da Polónia. Foi também preparada a extinção total dos regimes
fascistas e do nazismo e ainda a criação de uma organização das
Nações Unidas.44

43. O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul – UFMS/MEC – Brasil.
44. Disponível em http://www.infopedia.pt/$conferencia-de-ialta. Acessado em 02/03/2016.

140 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


A partir deste contexto, ocorre a criação da Organização das Na-
ções Unidas (ONU), em 24 de outubro de 1945, como sendo uma
organização internacional formada por países que se reuniram volun-
tariamente para trabalhar pela paz e o desenvolvimento mundial. Os
propósitos das Nações Unidas assim se apresentaram:
1. Manter a paz e a segurança internacionais;
2. Desenvolver relações amistosas entre as nações;
3. Realizar a cooperação internacional para resolver os proble-
mas mundiais de caráter econômico, social, cultural e huma-
nitário, promovendo o respeito aos direitos humanos e às liber-
dades fundamentais;
4. Ser um centro destinado a harmonizar a ação dos povos para a
consecução desses objetivos comuns.

O preâmbulo da Carta das Nações Unidas apresenta-se da seguin-


te forma:

“Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações


vindouras do flagelo da guerra, que, por duas vezes no espaço da nos-
sa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé
nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser
humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim
como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob
as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados
e de outras fontes de direito internacional possam ser mantidos, e a
promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de
uma liberdade mais ampla.”
“E para tais fins praticar a tolerância e viver em paz uns com os ou-
tros, como bons vizinhos, unir nossas forças para manter a paz e a
segurança internacionais, garantir, pela aceitação de princípios e a
instituição de métodos, que a força armada não será usada a não ser
no interesse comum, e empregar um mecanismo internacional para
promover o progresso econômico e social de todos os povos. ” 45

Desde então, a educação para a paz vem progredindo e sendo or-


ganizada, no entanto, ainda observa-se uma maior iniciativa nos países
desenvolvidos, onde estão sendo criadas instituições com esse propósito.
Segundo Silva (2002, p. 43), a educação para a paz é multidisci-
45. Disponível em https://nacoesunidas.org/conheca/. Acessado em 02/03/2016.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 141


plinar e deve ser baseada na ideia do rompimento dos limites atuais da
cidadania. Ele ressalta que:

Em um primeiro momento, ficam evidenciadas as necessidades


de análises jurídicas sobre o limite legal-político, sociológicos e
comportamentais sobre o limite social, econômicos e logísticos
sobre o limite econômico e, finalmente, administrativos e políti-
cos sobre os limites organizacionais da cidadania.

Galtung (1995, apud Silva, 2002, p. 37) define a palavra paz, a


partir dos conceitos de uma paz negativa e de uma paz positiva. O au-
tor considera que a paz negativa não demonstra a cooperação entre os
indivíduos, sendo omissa em relação aos problemas mundiais. Já a paz
positiva, é consequência de ações contra a violência e a guerra, através
da proteção dos direitos humanos, do combate às injustiças socioeconô-
micas, do desarmamento e da desmilitarização. Para alcançar a verda-
deira paz, Galtung propõe a necessidade de uma educação para a paz
e enfatiza:

A paz negativa refere-se à ausência da guerra, o que não elimina


a predisposição para ela ou a violência estrutural da sociedade.
A paz positiva, por outro lado, implica ajuda mútua educação e
interdependência dos povos. A paz positiva vem a ser não somen-
te uma forma de prevenção contra a guerra, mas a construção
de uma sociedade melhor, na qual mais pessoas comungam do
espaço social.

A educação para paz está diretamente relacionada com os intentos


dos direitos humanos e a cultura de paz. Quando se conceituam os ter-
mos, existem dificuldades, uma vez que ambos são considerados temas
bastante amplos.
Os direitos humanos, como expressão, significam direitos dos seres
humanos. Também são direitos aquelas iniciativas que buscam resguar-
dar a solidariedade, a igualdade, a fraternidade, a liberdade, a dignidade
da pessoa humana.46
Segundo Milani & Jesus (2003, p.35), a cultura de paz é uma ação
que promove a diversidade pacífica. Tal cultura inclui modos de vida,
padrões de crença, valores e comportamentos, bem como os correspon-
46. http://www.dhnet.org.br/direitos/textos/dh_utopia/2conceito.html

142 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


dentes arranjos institucionais que promovem o cuidado mútuo e o bem-
-estar, expressando-se como uma igualdade que inclui o reconhecimen-
to das diferenças, a guarda responsável e partilha justa dos recursos da
Terra entre seus membros e com todos seres vivos.
A partir do estudo destes temas: a educação para a paz, os direitos
humanos e a cultura de paz, acredita-se que possam contribuir para o
desenvolvimento científico e o esclarecimento de áreas do conhecimen-
to, que uma vez aproximados à luz das teorias explicativas, possam es-
tabelecer processos de mudança de comportamentos em suas pequenas
sociedades.

Os Direitos Humanos

Em 10 de dezembro 1948, a ONU adota a Declaração Universal


dos Direitos Humanos, um documento que delineia os direitos huma-
nos básicos do indivíduo.

A Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal


dos Direitos Humanos como ideal comum a atingir por todos os
povos e todas as nações, a fim de que todos os indivíduos e todos
os órgãos da sociedade, tendo-a constantemente no espírito, se
esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito
desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progres-
sivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e
a sua aplicação universais e efetivos tanto entre as populações dos
próprios Estados membros como entre as dos territórios colocados
sob a sua jurisdição.47

Charles Malik, relator da Comissão de elaboração da Declaração


Universal dos Direitos Humanos enfatizou que esse respeitável anúncio
dos direitos fundamentais exerceria uma poderosa influência doutriná-
ria, moral e educacional nas mentes e no comportamento das pessoas
de todo o mundo (apud Claude, 2005). Sendo assim, observa-se que
seus idealizadores tinham a percepção da importância da instrução, ao
pedirem esforços pelo ensino e pela educação formal e não formal.
Segundo Cardoso & Viola (2014), este documento representa
47. Disponível em http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf. Acessado
em 02/03/2016.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 143


uma síntese de séculos de discussão sobre o processo de construção da
definição do que vem a ser dignidade humana e o que é indispensável
para que cada um possa viver em condição inerente a este requisito.
Sabe-se que não basta para garantir os direitos civis e políticos, preservar
conquistas sociais e econômicas e, mesmo fortalecer as aspirações de di-
mensão coletiva como os da preservação do meio ambiente e da paz. Ao
contrário, frutos das carências e da dor, os direitos humanos constituem-
-se como um campo de disputas entre setores sociais e entre a sociedade
civil e o Estado.
A partir da referida Declaração, consolidam-se os direitos huma-
nos como um processo, que deixa de ser somente esperança e torna-se
parte obrigatória da ordem do direito e do Estado, ainda que não seja
reconhecido e ratificado por todos os países. Assim, quando reconhe-
cidos e firmados em cada país que os assume como parte de suas cons-
tituições, conseguem-se perspectivas para a implantação de políticas
públicas sobre o tema. A sociedade civil tem um papel essencial neste
processo, uma vez que representa a população reivindicando melhoria
e efetivação das ações propostas.
Segundo Oliveira (2006):

Normalmente, quando se pensa em políticas públicas, toma-se


por base ações implementadas pelo Estado. De um modo geral,
as políticas públicas buscam a introdução de mudanças na cul-
tura e no pensar popular, lançando uma nova leitura, um novo
olhar sobre algum aspecto específico do cotidiano.

Para Bucci (2002, p. 241) as políticas públicas são programas de


ação governamental que visam a coordenar os meios à disposição do
Estado e as atividades privadas para a realização de objetivos socialmen-
te relevantes e politicamente determinados. A partir destas demandas
da sociedade, existem documentos que formalizam tais direitos sociais
e demonstram a expressão do compromisso público de atuação numa
determinada área, em longo prazo.
Oliveira (2006) destaca que:

O processo de formulação de uma política pública envolve a


identificação dos diversos atores e dos diferentes interesses que
permeiam a disputa pela inclusão de determinada questão na

144 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


agenda pública e, posteriormente, a sua regulamentação como
política pública. Percebe-se, então, a mobilização de grupos re-
presentantes da sociedade civil e do Estado que discutem e fun-
damentam suas argumentações, no sentido de regulamentar os
direitos sociais e formular uma política pública que expresse os
interesses e as necessidades de todos os envolvidos.

A partir desses pressupostos e como fruto da mobilização da socie-


dade civil, desde 1996 o Brasil conta com um Programa Nacional de
Direitos Humanos (PNDH). Na sua segunda versão (2003), o PNDH-2
propôs a criação de um Plano Nacional de Educação em direitos Hu-
manos que foi elaborado como proposta nacional, pelo Comitê Nacio-
nal de Educação em direitos Humanos (CNEDH). O CNEDH teve
como sua primeira tarefa a elaboração do importante documento de-
nominado Plano Nacional de Educação em direitos Humanos (PNE-
DH). Depois de um amplo processo de discussões realizadas pelo país,
o PNEDH foi lançado em 2006, com o objetivo de normatizar e propor
políticas públicas para a educação em direitos humanos em todas as
etapas da educação formal.
O PNEDH apresenta princípios gerais e estabelece ações progra-
máticas a serem alcançadas em cinco áreas: educação básica, ensino
superior, educação não formal, na mídia e na formação profissional dos
sistemas da justiça e de segurança pública.
No Brasil há alguns documentos importantes referentes aos direi-
tos humanos, que devem ser do conhecimento de todos, posto que inte-
gram as diversas áreas do conhecimento, como disposto na Declaração
Universal dos Direitos Humanos:

TABELA 01 – Levantamento histórico dos documentos relacionados aos


direitos humanos no Brasil

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 145


Fonte: Elaborado por Lielza V. C. Molina.

Para Gorczevski & Tauchen (2008, p. 66):

Direitos Humanos é uma forma abreviada e genérica de se referir


a um conjunto de exigências e enunciados jurídicos que são su-
periores aos demais direitos. Superiores porque anteriores ao Es-
tado, porque não são meras concessões da sociedade política, mas
nascem com o homem, fazem parte da própria natureza humana
e da dignidade que lhe é inerente, e são fundamentais, porque
sem eles o homem não é capaz de existir, de se desenvolver e
participar plenamente da vida, e são universais, porque exigíveis
de qualquer autoridade política, em qualquer lugar.

Cardoso & Viola (2014), enfatizam o maior medo da humanidade,


quando cita o século passado: a ameaça da própria sobrevivência. Neste
período ocorreram as grandes guerras e hoje a comunidade internacio-
nal prioriza enfatizar a Educação para Paz e para os direitos Humanos
como uma necessidade urgente. A educação, nesta perspectiva, deveria
assumir um lugar privilegiado de se construir as “defesas da paz”.
Claude (2005), define a Educação para os Direitos Humanos
como uma estratégia de longo prazo direcionada para as necessidades

146 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


das gerações futuras.
Não será fácil trabalhar esta estratégia, pois não é de interesse de
todos, ainda que seja essencial elaborar programas educacionais inova-
dores, a fim de fomentar o desenvolvimento humano, a paz, a democra-
cia e o respeito pelo Estado de Direito.
No âmbito nacional, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(2014), estabelece que educar em direitos humanos é fomentar uma
prática educativa “inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de
solidariedade humana, com a finalidade do pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação
para o trabalho”.
Para Silva (2002, p. 36):

o conceito de paz tem evoluído na história recente da humani-


dade. Paz não é mais a simples ausência da guerra ou a condição
resultante do equilíbrio do poder entre as superpotências bélicas.
Um novo conceito para paz está na cooperação entre os povos,
objetivando o fim da violência estrutural e da predisposição para
a guerra.

Dupret (2002, p. 91) ressalta:

O conceito de paz pode ser abordado em seu sentido negativo,


quando se traduz em um estado de não-guerra, em ausência de
conflito, em passividade e permissividade, sem dinamismo pró-
prio; em síntese, condenada a um vazio, a uma não existência
palpável, difícil de se concretizar e precisar. Em sua concepção
positiva, a paz não é o contrário da guerra, mas a prática da não-
-violência para resolver conflitos, a prática do diálogo na relação
entre pessoas, a postura democrática frente à vida, que pressupõe
a dinâmica da cooperação planejada e o movimento constante da
instalação de justiça.

A partir destes contextos há a necessidade de todos estarem enga-


jados no movimento de paz construindo uma nova cultura, que permita
conjugar atitudes individuais e coletivas em prol do bem-estar dos cida-
dãos e do desenvolvimento humano (Matsuur, diretor geral da UNES-
CO, apud Dupret (2002).

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 147


A Cultura de Paz

A UNESCO (2010) declara:

A cultura de paz é uma iniciativa de longo prazo que leva em


conta os contextos histórico, político, econômico, social e cul-
tural de cada ser humano e sociedade. É necessário aprende-la,
desenvolve-la e colocá-la em prática no dia a dia familiar, regio-
nal ou nacional. É um processo que, sem dúvida, tem um come-
ço, mas nunca pode ter um fim. A paz é um processo constante,
cotidiano, mas não passivo. A humanidade deve esforçar-se para
promovê-la e administrá-la.

No ano de 1945 iniciou-se, oficialmente pela Organização das


Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO, o
movimento de Cultura de Paz, o termo foi cunhado pela primeira vez
em 1989 através da Declaração de Yamoussoukro, elaborada durante a
Conferência Internacional sobre a Paz na Mente dos Homens na Costa
do Marfim.
Em 1995 a Cultura de Paz foi adotada como Programa da UNES-
CO, sendo em 1998 proclamado o ano 2000 como o Ano Internacio-
nal pela Cultura de Paz e proclamado o período de 2001-2010 como
a Década Internacional pela Cultura de Paz e Não-Violência para as
crianças do Mundo.
Este movimento empenha-se em prevenir situações que possam
ameaçar a paz e a segurança – como o desrespeito aos direitos humanos,
discriminação e intolerância, exclusão social, pobreza extrema e degra-
dação ambiental – utilizando com principais ferramentas a conscienti-
zação, a educação e a prevenção.48
De acordo com a UNESCO (2010):

A Cultura de Paz está intrinsecamente relacionada à prevenção e


à resolução não-violenta dos conflitos. É uma cultura baseada em
tolerância, solidariedade e compartilhamento em base cotidiana,
uma cultura que respeita todos os direitos individuais - o princípio
do pluralismo, que assegura e sustenta a liberdade de opinião -
e que se empenha em prevenir conflitos resolvendo-os em suas
fontes, que englobam novas ameaças não-militares para a paz e
48. Disponível em http://www.infojovem.org.br/infopedia/descubra-e-aprenda/cultura-de-paz/. Acessado em
03/03/2016.

148 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


para a segurança como exclusão, pobreza extrema e degradação
ambiental. A Cultura de Paz procura resolver os problemas por
meio do diálogo, da negociação e da mediação, de forma a tornar
a guerra e a violência inviáveis.

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU):

Cultura de Paz é um conjunto de valores, atitudes, modos de


comportamento e de vida que rejeitam a violência, e que apostam
no diálogo e na negociação para prevenir e solucionar conflitos,
agindo sobre suas causas”.

No que se refere à base da Cultura de Paz e seu ponto de partida,


afirma:

“Rejeitar a violência é a base da cultura da paz. (...) A cultura da


paz rejeita a violência física, sexual, étnica, psicológica, de classe,
das palavras e ações. (...) O ponto de partida desta cultura é a co-
operação com a comunidade dos seres vivos e o desenvolvimento
interior das pessoas”.

Para Milani & Jesus (2003) a espécie humana, a mesma que in-
ventou a violência, é a única que pode estabelecer a paz sobre a Terra.
Somos capazes de realizar tanto os atos mais elevados, nobres e altruís-
tas quanto os de maior baixeza, destrutividade e egoísmo. Paz e violên-
cia são fenômenos exclusivamente humanos.
A partir destes princípios começa-se a construção da paz a partir
de uma atitude pessoal de não–violência que reflita positivamente no
individual e no coletivo. Busca-se uma responsabilidade universal pela
construção de um novo mundo e coloca este tema como uma das prin-
cipais ações educativas, que promovem fontes efetivas de paz no mundo.
Para Dupret (2002, p. 91):

Construir uma cultura da paz envolve dotar as crianças e os adul-


tos de uma compreensão dos princípios e respeito pela liberda-
de, justiça, democracia, direitos humanos, tolerância, igualdade
e solidariedade. Implica uma rejeição, individual e coletiva, da
violência que tem sido parte integrante de qualquer sociedade,
em seus mais variados contextos. A cultura da paz pode ser uma
resposta a diversos tratados, mas tem de procurar soluções que ad-

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 149


venham de dentro da (s) sociedade (s) e não impostas do exterior.

A UNESCO questiona como fazer da Cultura de Paz uma reali-


dade concreta e duradoura e declara:

No mundo interativo, tudo é uma questão de conscientização,


mobilização, educação, prevenção e informação de todos os níveis
sociais em todos os países. A elaboração e o estabelecimento de
uma Cultura de Paz requer profunda participação de todos. Cabe
aos cidadãos organizarem-se e assumir sua parcela de responsabi-
lidade. Os países devem cooperar, as organizações internacionais
devem coordenar suas diferentes ações e as populações devem
participar inteiramente no desenvolvimento de suas sociedades.49

Silva (2002, p. 43) destaca:

A educação para a paz está sendo, paulatinamente, organizada


no mundo inteiro. A iniciativa é maior nos países desenvolvidos,
onde institutos com esse propósito estão sendo criados. A educa-
ção para a paz é multidisciplinar, mas, em um primeiro momen-
to, ficam evidenciadas as necessidades de análises jurídicas sobre
o limite legal-político, sociológicos e comportamentais sobre o
limite social, econômicos e logísticos sobre o limite econômico e,
finalmente, administrativos e políticos sobre os limites organiza-
cionais da cidadania.

O ano 2000 foi o ponto de partida para a grande mobilização,


assim como foi o Ano Internacional para a Cultura de Paz. Foi neste mo-
mento que a Nação Unida iniciou um movimento global para a cultura
de paz, criando uma “grande aliança” que unia todos os movimentos já
existentes, e aqueles países que já trabalhavam em prol da cultura de paz
nos oito âmbitos de ação preconizados. Este movimento vem crescendo
com a Década Internacional para a Cultura de Paz e Não-Violência
para as Crianças do Mundo (2001-2010). (Resolução das Nações Uni-
das A /RES/53/25).50 Esta resolução estabelece oito pilares da cultura de
paz, sendo estas:
1. Educação para uma cultura de paz
2. Tolerância e solidariedade
49. Disponível em http://www.comitepaz.org.br/a_unesco_e_a_c.htm. Acessado em 02/03/2016.
50. http://www.infojovem.org.br/infopedia/descubra-e-aprenda/cultura-de-paz/

150 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


3. Participação democrática
4. Fluxo de informações
5. Desarmamento
6. Direitos humanos
7. Desenvolvimento sustentável
8. Igualdade de gêneros
Destacaram-se para este estudo dois pilares: a educação para uma
cultura de paz e os direitos humanos.
No ano de 2000, um documento importante foi criado a partir de
um compromisso de um novo mundo, baseado na tolerância, na solida-
riedade e na não-violência. Este documento foi construído por um gru-
po de laureados do prêmio Nobel da Paz, que se encontraram em Paris
para o 50º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Este documento ficou conhecido como Manifesto 2000.
O Manifesto objetiva a promoção da conscientização e do com-
promisso individuais: não é nem um apelo nem uma petição dirigida
aos governos ou autoridades superiores. O Manifesto afirma que é da
responsabilidade de cada ser humano traduzir os valores, atitudes e pa-
drões de comportamento que inspiram a Cultura de Paz em realidades
da vida diária. Todos podem agir no espírito da Cultura de Paz dentro do
contexto da própria família, do local de trabalho, do bairro, da cidade ou
da região, tomando-se um mensageiro da tolerância, da solidariedade e
do diálogo. Assinando o Manifesto, todos comprometem-se a:
1. respeitar a vida
2. rejeitar a violência
3. ser generoso
4. ouvir para compreender
5. preservar o planeta
6. redescobrir a solidariedade
Segundo Diskin (2008) é importante destacar o papel fundamen-
tal que desempenha a educação na redução de desigualdades sociais.
Não há transformação social sem investimento em educação. Pesquisas
feitas pelo Banco Mundial e pela Comissão Econômica para a América
Latina e o Caribe (Cepal) demonstram que um ano a mais de estu-
do na vida de estudantes do sexo feminino impactam na diminuição
da mortalidade infantil e materna, por exemplo. Tais estudos também
demonstram o efeito de um ano a mais de estudo nos indicadores de

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 151


empregabilidade e salários na América Latina. Destaca também que:

Educar para a paz é uma aventura que vai além da simples trans-
ferência de conhecimentos. Significa empreender uma linda
jornada pelo mundo exterior e interior. Uma viagem repleta de
desafios e muitas belas paisagens.

A Educação

Segundo Claude (2002), a educação é valiosa por ser a mais efi-


ciente ferramenta para crescimento pessoal e ser o pré-requisito funda-
mental para o indivíduo atuar plenamente como ser humano na socie-
dade moderna.
O artigo 26, da Declaração dos Direitos Humanos refere-se à Edu-
cação e estabelece que:
1. Toda pessoa tem direito à educação. A educação será gratuita,
pelo menos nos graus elementares e fundamentais. O ensi-
no elementar será obrigatório. O ensino técnico e profissional
será acessível a todos, bem como a educação superior, está
baseada no mérito.
2. A educação será orientada no sentido do pleno desenvolvi-
mento da personalidade humana e do fortalecimento do res-
peito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. A
educação promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade
entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e apoiará as
atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de edu-
cação que será ministrada a seus filhos.
Nesse processo, a educação é tanto um direito humano em si mes-
mo, como um meio indispensável para realizar outros direitos, consti-
tuindo-se em um processo amplo que ocorre nas sociedades, onde se
apoiam tais iniciativas. A educação ganha maior importância quando
direcionada ao pleno desenvolvimento humano e às suas potencialida-
des, e, a elevação da autoestima dos grupos socialmente excluídos, de
modo a efetivar a cidadania plena para a construção de conhecimentos,
o desenvolvimento de valores, crenças e atitudes em favor dos direitos

152 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


humanos, na defesa do meio ambiente, dos outros seres vivos e da jus-
tiça social.
Para Milani e Jesus (2003) a proposta da cultura de paz busca
alternativas e soluções para promover as transformações necessárias e in-
dispensáveis para que a paz seja o princípio governante de todas relações
humanas e sociais. A escola deve exercer um papel de humanização,
formando crianças e jovens construtores ativos e a partir da socialização
(direitos e deveres) e construção do conhecimento, aliado aos valores
necessários à conquista do exercício da cidadania.
Para Monteiro (1997/98), a educação é vista como um dos prin-
cipais instrumentos de formação da cidadania, no sentido do pleno
reconhecimento dos direitos e deveres do cidadão, enquanto sujeito
responsável pelo projeto de sociedade no qual está inserido. Enquanto
instrumento social básico, a educação possibilita ao indivíduo a trans-
posição da marginalidade para a materialidade da cidadania. Destaca-se
então a importância da escola como um espaço privilegiado de con-
vivência e socialização, no processo de formação ao trabalhar com o
conhecimento, valores e atitudes, respeitando as diferenças.
Segundo Claude (2005, p. 62):

Estamos diante da obrigação, em nível internacional, nacional,


local e pessoal, de adotar programas eficazes de ensino de direitos
humanos e empregar metodologias que possam garantir que a ta-
refa seja bem feita, de forma consistente com os objetivos de paz
mundial e respeito aos direitos humanos por toda parte.

O Relatório elaborado para a UNESCO pela Comissão Interna-


cional sobre Educação para o Século XXI (2010), destaca e reforça o
papel fundamental da educação para os princípios da liberdade, da paz
e da justiça social e estabelece sua presença ao longo da vida humana,
de modo a contribuir para o enfrentamento dos riscos e desafios de um
mundo em transformação, indo ao encontro dos termos da Declaração
dos Direitos Humanos universais.
Esta proposta se consolida por meio do “aprender a conhecer”,
“aprender a fazer”, “aprender a ser” e “aprender a viver juntos”, de
modo a fomentar, com políticas educativas, um compromisso com a
democracia e a cidadania, garantindo a participação ativa de cada um

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 153


no projeto da sociedade em construção.
Para Morin (2000), existem sete saberes fundamentais que a edu-
cação do futuro deveria incorporar em toda a sociedade e em toda cul-
tura, sem exclusividade ou rejeição, segundo modelos e regras próprias
de cada lugar e de cada cultura, apresentando-se como os Sete Saberes
Necessários à Educação do Futuro:
1. As Cegueiras do Conhecimento: o erro e a ilusão – A educa-
ção, tendo o papel de transmitir conhecimentos, deve conhe-
cer o conhecimento humano, seus dispositivos, enfermidades,
dificuldades, tendências ao erro e à ilusão. O conhecimento
não pode ser considerado uma ferramenta acabada.
2. Princípios do Conhecimento Pertinente – O conhecimento
precisa apreender os problemas globais e fundamentais para
neles inserir os parciais e locais. Assim, é necessário ensinar
os métodos que permitam estabelecer as relações mútuas e as
influências recíprocas entre as partes e o todo em um mundo
complexo.
3. Ensinar a Condição Humana – A educação deve fazer com
que cada um tome conhecimento de sua identidade comum a
todos os outros humanos. Assim, a condição humana deveria
ser o objeto essencial de todo o ensino, considerando o ser hu-
mano com seus aspectos físico, biológico, psíquico, cultural,
social e histórico.
4. Ensinar a Identidade Terrena - É preciso ensinar a história da
era planetária, que se inicia com o estabelecimento da comu-
nicação entre todos os continentes no século XVI, e mostrar
como todas as partes do mundo se tornaram solidárias, sem,
contudo, ocultar as opressões e a dominação que devastaram
a humanidade e que ainda não desapareceram. É preciso in-
dicar o complexo da crise planetária que marca o século XX,
mostrando que todos os seres humanos partilham de um des-
tino comum.
5. Enfrentar as Incertezas – É necessário ensinar princípios de
estratégia que permitam enfrentar os imprevistos, o inespera-
do e a incerteza. O abandono das concepções deterministas da
história humana, que acreditavam poder predizer nosso futuro
e o estudo dos grandes acontecimentos e desastres do nosso

154 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


século, devem incitar os educadores e preparar as mentes para
esperar o inesperado, para enfrentá-lo.
6. Ensinar a Compreensão – O planeta necessita, em todos os
sentidos, da compreensão recíproca. O ensino e a aprendiza-
gem da compreensão pedem a reforma das mentalidades. Esta
deve ser a obra para a educação do futuro. O ensino da com-
preensão é a base para o desenvolvimento de uma cultura de
paz.
7. A Ética do Gênero Humano – A educação deve permitir e
ajudar o desenvolvimento da consciência de nossa Terra-Pátria
devido ao próprio destino comum de todos nós. Estes princí-
pios fornecem bases sólidas para a construção de uma nova
educação, sem a qual dificilmente conseguiremos atingir os
ideais de paz e solidariedade humana. Entretanto, precisamos
pensar em torná-los concretos na vida de cada cidadão brasi-
leiro, especialmente dos jovens.
Atualmente, os observadores, ativistas e educadores percebem
uma evolução dos movimentos internacionais quanto ao ensino dos
direitos humanos. A partir de investimentos da ONU, de uma rede in-
ternacional de cooperação de grupos públicos e privados, em rápida ex-
pansão, há a construção de algo concreto referente a universalização da
cultura de direitos humanos.
Mesmo com tantos investimentos em sua busca da paz, a UNES-
CO ressalta que a violência ainda persiste, mas com uma nova face.
Pode-se observar que as formas tradicionais de conflito e guerra vêm
diminuindo, os orçamentos para segurança da maioria dos países perma-
necem elevados, especialmente para o desenvolvimento de armamentos
inteligentes de alta tecnologia, enquanto que os orçamentos destinados
ao desenvolvimento social são constantemente reduzidos. Nas duas úl-
timas décadas, os conflitos internacionais aumentaram, exacerbando as
diferenças étnicas e religiosas. Portanto é necessário e deve ser perma-
nente a mobilização de todos em favor da paz e não-violência, buscando
tornar-se uma realidade cotidiana para todos.
Santos (2004), discute a necessidade de estratégias para a preven-
ção da violência, de mobilização social em torno da proteção aos di-
reitos humanos, do desenvolvimento de educação permanente para a
formação de profissionais, no desenvolvimento de habilidades para a

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 155


organização de redes de enfrentamento à violência que sejam eficazes
em suas realizações.
É preciso buscar uma cultura de paz que se esforce em modificar
o pensamento e a ação das pessoas no sentido de promover a paz. Dupret
(2002) destaca que é o momento de convocar a presença da paz em nós,
entre nós, entre nações, entre povos. Para isto, estabelece dois passos
importantes:

o primeiro refere-se à gestão de conflitos. Ou seja, prevenir os


conflitos potencialmente violentos e reconstruir a paz e a con-
fiança entre pessoas emergentes de situação de guerra, é um dos
exemplos mais comuns a serem considerados. Tal missão estende-
-se às escolas, instituições e outros locais de trabalho por todo o
mundo, bem como aos parlamentos e centros de comunicação, a
lares e associações. O segundo passo é tentar erradicar a pobreza e
reduzir as desigualdades, lutando para atingir um desenvolvimen-
to sustentado e o respeito pelos direitos humanos, reforçando as
instituições democráticas, promovendo a liberdade de expressão,
preservando a diversidade cultural e o ambiente.

Segundo Dupret (2002), quando ocorre o entrelaçamento paz –


desenvolvimento – direitos humanos – democracia, pode-se vislumbrar
a Educação para a Paz como:

Um processo educativo, dinâmico, contínuo e permanente, fun-


damentado no conceito de paz positiva e na perspectiva criativa
do conflito, como elementos significantes e definidores, e que,
através da aplicação de enfoques sócio afetivos e problematizan-
tes, pretende desenvolver um novo tipo de cultura, a cultura de
paz, que ajude as pessoas a desvelar criticamente a realidade para
poder situar-se frente a ela e, consequentemente, atuar.

Considerações Finais

Abordar estes três temas: cultura de paz, direitos humanos e edu-


cação é um grande desafio a todos os comprometidos com a cons-
trução de uma sociedade justa e verdadeiramente democrática, mas
somente assim cria-se um processo de debate a de formação sobre estes
assuntos.

156 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


As políticas públicas ao longo dos anos vêm constituindo alianças
para reforçar compromissos com a sociedade civil, organismos interna-
cionais e governos, no sentido de alcançar as metas do milênio relacio-
nadas com a educação. Dessa maneira, busca-se construir uma rede de
organizações (públicas, privadas ou da sociedade civil) que, articuladas
com a escola, atuam na garantia do direito a aprender.
Sendo assim, a Educação para a Paz deve estar presente em todas
as propostas e projetos político pedagógicos, todas as atitudes profissio-
nais, todos os momentos de ensino e aprendizagem, todos os dias, sendo
exercidas na prática educativa, que têm como principal argumento as
informações advindas do cotidiano, dos indivíduos.

Referências

BRASIL. [Lei Darcy Ribeiro (1996) ]. LDB: Lei de diretrizes e bases da


educação nacional [recurso eletrônico]: Lei nº 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. – 9.
ed. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2014. 45 p. –
(Série legislação; n. 118)

BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas.


São Paulo: Saraiva, 2002.

CARDOSO, Marcio Adriano & VIOLA, Sólon Eduardo Annes.


Complementariedade entre a Educação em Direitos Humanos e a
Educação para a Paz. In: Direitos humanos, educação e participação
popular: 50 anos do golpe militar. BRABO, Tânia Suely Antonelli
Marcelino (Org.). Oficina Universitária. São Paulo: 207-222. Cultura
Acadêmica, 2014. 230 p.

CLAUDE, Richard Pierre. Direito à Educação e Educação para os


Direitos Humanos. SUR - Revista Internacional de Direitos Humanos.
Ano 2 - Número 2 - 2005

DISKIN, Lia; ROIZMAN, Laura Gorresio. Paz, como se Faz? Semeando


cultura de paz nas escolas. 4. ed. — Brasília: UNESCO, Associação Palas
Athena, Fundação Vale, 2008.108 p.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 157


DUPRET, Leila. Cultura de Paz e Ações Sócio-Educativas: Desafios Para
a Escola Contemporânea. Psicol. Esc. Educ. (Impr.) - vol.6. no.1: 91-96,
Campinas. Jun/2002

GORCZEVSKI, Clovis & TAUCHEN, Gionara. Educação em Direitos


Humanos: para uma cultura da paz. Educação, Porto Alegre, v. 31, n. 1,
p. 66-74, jan./abr. 2008.

MILANI, M. Feizi & JESUS, Rita de Cassia Dias Pereira de,


(organizadores). Cultura de Paz: estratégias, mapas e bússulas. Salvador:
INPAZ, 2003. 356p

SILVA, Jorge Vieira da. A verdadeira paz desafio do Estado democrático.


SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 16(2): 36-46, 2002

MONTEIRO, Aida. Educação para Cidadania: solução ou sonho


impossível? In: LERNER, Júlio (organizador). Cidadania Verso e Reverso.
São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 1997/1998.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução


de Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya; revisão técnica de
Edgard de Assis Carvalho. – 2. ed. – São Paulo : Cortez ; Brasília, DF :
UNESCO, 2000.

OLIVEIRA. Ariana Bazzano de. Direitos Humanos e Cultura da Paz.


Uma Política Social de Prevenção à Violência. Serviço Social em Revista.
Volume 8, nº 2, Universidade Estadual de Londrina, 2006.

SANTOS, C.A. Implantação da Política Nacional de Redução da


Morbimortalidade por Acidentes e Violências – A experiência do Estado
do Amapá. Dissertação de Mestrado em Saúde Pública. Escola Nacional
de Saúde Pública. Fundação Oswaldo Cruz. 2004.

UNESCO. A UNESCO e a Cultura de Paz. Disponível em http://www.


comitepaz.org.br/a_unesco_e_a_c.htm. Acessado em 02/03/2016.

________. Cultura de paz: da reflexão à ação; balanço da Década


Internacional da Promoção da Cultura de Paz e Não Violência em
Benefício das Crianças do Mundo. – Brasília: UNESCO; São Paulo:
Associação Palas Athena, 2010. 256 p.

158 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


CARTOGRAFIAS IMAGINÁRIAS
Capítulo 8

PERSONAGENS E CENÁRIOS DE
CORUMBÁ NA POESIA DE MANOEL
DE BARROS
Luciene Lemos de Campos

O que no alforje eu trago


É um azul arriscado a pássaros...
(BARROS,2004, p. 23).

A obra do poeta brasileiro Manoel de Barros tem sido vorazmente


estudada neste século, em várias áreas e em diversos países, o que a torna
além-fronteira. No entanto, em um único contato com sua produção li-
terária não há como captar toda a essência, história e arte envolvidas no
seu fazer poético. Acerca da relação intensa de Barros com as palavras,
do diálogo com outros poetas como Rimbaud, da linguagem inovadora,
do léxico peculiar e da preciosa composição de suas metáforas muito já
se falou, escreveu e teorizou nestes últimos anos. Mas, o entendimento
da obra de Manoel de Barros talvez possa ser atualizado, concretamen-
te, quando for avaliada a sua vivência e observados os itinerários percor-
ridos nas ruas e ladeiras da Corumbá do poeta51.
Por meio de estudos e pesquisas diversas, verificamos que a poesia
de Manoel de Barros dialoga com a História e com autores corumbaen-
ses, em especial com o poeta Lobivar Matos, com Ulisses Serra, Renato
Báez, José de Barros, Abílio Leite de Barros e diversos escritores dessa
região, em movimento que parece recíproco, pois esses também incor-
poram em suas obras as paisagens e as figuras populares de Corumbá,
recriando-os como cenários e personagens poéticas e ficcionais. A partir
do referente histórico, reconfiguram e (re) significam, portanto, a forma
51. A proposta inicial deste estudo integra e desenvolve temas que resultaram da Dissertação intitulada A
mendiga e o andarilho: a recriação poética de figuras populares nas fronteiras de Manoel de Barros, defen-
dida em 2010 no Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos Fronteiriços da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul (UFMS/CPAN).

160 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


como observam o real.52
Neste estudo, partimos da premissa de que a obra de Manoel de
Barros nos mostra um poeta que se volta para o passado, para o seu
pequeno território familiar, com o qual teve muita intimidade. Dessa
forma, “[o] quintal onde a gente brincou” (BARROS, 2003, XIV) é fon-
te de onde jorra a sua poesia, é o espaço que indicia a fonte e forja a
identidade do menino Nequinho, do jovem Cabeludinho e do poeta
adulto. O quintal é cenário superlativo tornado metonímia do itinerário
que o poeta retoma nas memórias que inventa, pois tudo o que ele não
inventa é falso (BARROS, 2003), conforme um de seus versos mais cé-
lebres, construindo analogias com a realidade, o vivido ou com o que
imaginou, observando cenas, vultos, personagens e cenários do “quintal
onde a gente brincou”.
Do seu “quintal” doméstico, o aprendiz de poeta, Cabeludinho,
e o poeta bugre-velho, Manoel, fazem a fonte dos “achadouros” (BAR-
ROS, 2003, XIV) a paisagem, o espaço geográfico e as figuras que (re)-
-inventa para compor sua poética. A partir desse microcosmo “maior do
que a cidade” (BARROS, 2003, XIV), o poeta engendra uma representa-
ção do mundo em que esses seres, despossuídos de brasão, invocados no
palimpsesto das lembranças, ganham papel de maior realce. E dos cená-
rios pantaneiros e das figuras humildes que também estão nas crônicas
dos historiadores, Manoel de Barros - para nos valermos da terminologia
aristotélica - edifica poesia que dialoga com a memória historiográfica e
a supre com o possível, com o tratamento poético.
Assim é que a produção literária de Manoel de Barros53, nascido
em Cuiabá, descendente dos pioneiros da Nhecolândia – e que desde
muito jovem estudou no Rio de Janeiro − apresenta relações com a his-
tória de Corumbá, cidade que o poeta escolheu como uma das fontes
para sua poesia.
Alguns estudiosos consideram que o grande arsenal dos roman-
cistas e poetas é a memória, de onde eles extraem os elementos da in-
venção. Nesse sentido, muitos são os nomes, muitos são os arquivos, as
histórias registradas e as lembranças das pessoas que vivem na cidade
de Corumbá acerca dos cenários, edificações, paisagens, vultos, monu-
52. Na obra Baú de Barro(s): ensaios sobre a poética de Barros, 2019, p. 249-268, detivemos o olhar para a
personagem Mário Pega-Sapo, descrita pelos cronistas da região de Corumbá e revisitado, (re) significada
pelo poeta Manoel de Barros nas obras Poemas Concebidos sem Pecado e Livro sobre nada.
53. Manoel de Barros faleceu em 13 de novembro de 2014, aos 97 anos de idade.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 161


mentos e personagens eleitas também pelos cronistas e alguns poetas
para seus escritos e produções artísticas.

Figuras populares de Corumbá na poesia de Manoel de


Barros

Os poemas produzidos por Manoel de Barros, desde a primeira obra


Poemas Concebidos sem pecado, contêm memória pessoal e afetiva recria-
das, transfiguradas e (re) significadas nas diversas personagens e eu poéti-
cos, quando remetem a figuras que de fato existiram na Corumbá da sua
infância e juventude, decerto como uma tentativa de demarcar o espaço
próprio de sua poesia. Não se descarta, obviamente, o saudosismo como
um dos recursos literários como forma de posicionamento possível do eu
lírico, nos poemas em que o olhar se volta sobre as personagens, vultos,
cenas e cenários da cidade, como lemos no poema seguinte:

Um filósofo de beco

Bola-Sete é filósofo de beco.


Marimbondo faz casa no seu grenho – ele nem zine.
Eu queria fazer a biografia do orvalho – me disse.
E dos becos também.
É preciso refazer os becos, Senhor!
O beco é uma instituição que une o escuro do homem
com a indigência do lugar.
O beco é um lugar que eleva o homem até o seu melhor
aniquilamento.
Um anspeçada, amigo meu, de aspecto moscal, só
encontrou a salvação nos becos.
Antoninha-me-leva era Eminência nos becos de
Corumbá.
Senhor, quem encherá os bolsos de guimbas, de tam-
pinhas de cerveja, de vidrinhos de guardar moscas –
senão os tontos de beco?
E quem levará para casa todos os dias de tarde a mesma
solidão – senão os doidos de beco?
(Algum doido de beco me descende?)
(BARROS, 2000, p. 81).

162 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


A personagem Bola-Sete é uma dentre tantas figuras populares, de
escolha comum a escritores da região fronteiriça de Corumbá também
recriada e (re) significada na poesia de Manoel de Barros. Aqui com
um aspecto que a memória dos mais antigos evoca, mas que os cronis-
tas não registraram: o veio poético do andarilho torna-se aforismo, que
Barros nomeia como filosofia, modulando a expressão como “do beco”,
dando ao qualificativo um sentido existencial que transcende o factual,
derivado do fato do personagem e da personagem — junto com outras
figuras populares, moradores de rua e desocupados — ter sido visto,
frequentemente, em um beco, ou alameda, nas imediações do Porto de
Corumbá.54
Manoel de Barros (re) cria poeticamente tal personagem, reto-
mando fatos da realidade local, conforme também evidenciado nas crô-
nicas mencionadas.
Renato Báez (1964) afirma que, no período compreendido entre
1863 e 1963, “viveram em Corumbá muitos tipos populares” e refere-se
a eles como “almas da rua” (BÁEZ, 1964, p. 119). Ao evocar esse passa-
do “cheio de lendas e tradições”, faz o seguinte registro:

‘BOLA SETE’ é como foi apelidado João Batista da Silva, nascido


a 26 de junho de 1919 [...] BOLA SETE é anunciador voluntário
de partidas de futebol, de casas comerciais e de candidatos
políticos a cargos eletivos. É figura infalível nas portas de cinemas
bares, estádio etc. Além de pugilista amador, é carnavalesco,
tendo participado da Escola de Samba “Flamengo”, do popular
Favito. (BÁEZ, 1964, p. 135, negrito no original).

Francisco Ignácio Silva Neto assim o descreve:

[...] Ele era o ‘Bola Sete’, cujo verdadeiro nome, creio, ninguém
jamais soube. E foi justamente naquela esquina onde viveu gran-
de parte da sua curta vida maltrapilha, que conheci o ‘Bola’, cer-
cado por alguns conhecidos e por algumas crianças que gostavam
das suas brincadeiras e das suas piadinhas. (SILVA NETO, 1995,
p. 69).

Jorge Vancho Panovich faz a seguinte referência ao personagem:

54. Em Ensaios fotográficos, encontramos o verso: Pra compensar tinha laia de poeta. (BARROS, 2007, p. 33).

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 163


Bola-Sete era um cidadão muito popular em minha cidade. Vivia
de biscate para sobreviver. Tinha um vozeirão de fazer inveja a
qualquer locutor de rádio. Religiosamente, ele passava todos os
dias, para tomar um trago de aguardente, no armazém do Abud,
um descendente de libanês. Depois do trago de aguardente, Bola-
-Sete largava seu vozeirão fazendo a seguinte propaganda: ‘com-
pre no armazém do Abud, que é o melhor da cidade’. (PANOVI-
CH, 2007. p. 6).

O codinome Bola Sete parece comum e pode referir-se, dentre


outros, à bola de sinuca, ao músico carioca dos anos 60 e outros Bolas
assinalados com o número místico. Mas pode remeter também à per-
sonagem popular das ruas de Corumbá, descrita pelos cronistas, pelo
poeta e por diversos escritores dessa região.
Muitos dos poemas de Manoel de Barros evocam os despossuídos,
com o que elabora crítica à sociedade consumista e capitalista do século
XX. O poeta capta a região pantaneira e o mundo, como se dispusesse
da mansidão e imponência da pena de um dos pássaros que ampliam os
matizes e bordam o céu local.
Bola-Sete, “o filósofo do beco”, foi (re) criado, reinventado, por
Manoel de Barros, aparece na obra Livro sobre Nada (1996) e também
em Ensaios Fotográficos (2000). É personagem que surge nas histórias
de cronistas como Renato Báez (1964), Silva Neto (1995), Jorge Van-
cho Panovich (2007) como em muitas narrativas orais de corumbaenses
mais antigos. Neste sentido, pode-se aventar diálogo explícito dos textos
de Manoel de Barros com obras de escritores que também viveram em
Corumbá.
Assim sendo, a figura popular, Bola Sete, pode referendar um dis-
curso distinto na poética de Manoel de Barros, uma vez que se figura
como elemento significativo em outros poemas. No poema Bola Sete,
de Ensaios Fotográficos, de certo modo, a intensidade de rememoração
vai além daquilo que o olhar poético capta ao seu redor:

BOLA SETE
Bola Sete não botava movimento.
Era incansável em não sair do lugar.
Igual o caranguejo de Buson que foi encontrado
de manhã debaixo do mesmo céu de ontem.
Pra compensar tinha laia de poeta.

164 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


Dava qualidades de flor a uma rã.
Dava às pessoas qualidades de água.
Isso ele fazia com letras, não precisava se mover.
Onde estava era ele, a manhã e suas garças;
era ele, o acaso e suas cores; era ele, o riacho e suas
margens; era ele, o horizonte e suas nuvens. Por aí.
Passarinhos brincavam nas paisagens de sua janela.
O mundo era perto.
Bastava estender as mãos que chegava no fim do
Mundo.
Bola Sete não botava movimento.
Era um sujeito desverbado que nem uma oração
desverbada.
(BARROS, 2000, p. 33)

O poema “Bola Sete” abarca o simples, o insignificante e o com-


plexo. Barros recupera, nas lembranças evocadas, o espaço da sua infân-
cia, transformando-o, com os seus habitantes, em cenário e paisagem
poéticos. Em outras obras e em diversos poemas, Corumbá é rememo-
rada, como em uma passagem paradigmática, na prosa-poética “Acha-
douros”, no seguinte contexto: “[...] Aquilo que a negra Pombada, re-
manescente de escravos do Recife, nos contava. Pombada contava aos
meninos de Corumbá sobre achadouros”. (BARROS, 2003, XIV). Nota-
-se que o emissor se inclui entre os meninos a quem a negra Pombada
contava as histórias. Dessa forma, o eu lírico revela-se como enunciador
de uma história particular que, de certa maneira, (re) constrói o “nós”
da história coletiva.
Dentre os muitos questionamentos que nos fizemos antes e du-
rante este estudo, uma interrogação continua a ecoar: qual a intenção
poética de Manoel de Barros ao (re)-criar tal personagem? Parece-nos
resposta possível que a referência aos becos, às vielas da fronteira física,
talvez, seja uma forma de (re) colocar em evidência não apenas o espa-
ço geográfico onde Bola Sete se movimentou, mas também definir o
entre-lugar no qual se encontra o eu enunciador do poema ou, ainda,
onde o poeta reinterpreta suas identidades, demarcando o espaço de sua
poesia: “E quem levará para casa todos os dias de tarde a mesma/ soli-
dão – senão os doidos de beco?/ (Algum doido de beco me descende?)”
(BARROS, 2000, p. 81).

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 165


O beco, nesse poema, pode, também, ser compreendido como
o espaço onde a bola do jogo de sinuca é encurralada numa jogada
complexa55. Desse modo, ao poeta cabe jogar com as palavras e deixar o
leitor em uma “sinuca de bico” − e se interrogando: qual o percentual
dessa invenção? − Quanto quer que seja, entre fato e ficção, entre o poé-
tico e a biografia, a obra do poeta Manoel de Barros abre muitas possibi-
lidades de leituras e interpretação na interface com a História, efeito de
sentido ainda mais evidente quando compulsamos comparativamente
a poesia desse poeta com a obra de outros autores corumbaenses, em
especial com aqueles que recriam como personagens literárias figuras
populares da história da cidade.
Além da autointertextualidade56, urge reiterar, a poesia de Manoel
de Barros dialoga com a História e com diversos autores corumbaenses,
em especial com os cronistas, em movimento que parece recíproco, pois
esses também incorporam em suas obras os cenários, vultos, persona-
gens e as figuras populares de Corumbá.
Sabe-se que o texto ficcional não deve ser explicado pela biogra-
fia do autor. Entretanto, no caso dos poemas em que reinventa figuras
populares, Barros acentua o contexto cultural e espacial da região do
Pantanal, de Corumbá e de cidades bolivianas por onde passou, hibridi-
zando aspectos históricos e aspectos poéticos.
Antonio Candido pontua que, para François Mauriac,

[...] o grande arsenal do romancista é a memória, de onde ele


extrai os elementos da invenção, e isto confere acentuada am-
bigüidade às personagens, pois elas não correspondem a pessoas
vivas, mas nascem delas. Cada escritor possui as suas ‘fixações da
memória’, que preponderam nos elementos transpostos da vida.
(CANDIDO, 2007, p. 67).

Assim, o poeta Manoel de Barros amplia poeticamente e transfi-


gura a realidade da região por onde andarilhou o ser biológico, fazen-
deiro e advogado, Manoel de Barros, para construir suas personagens.
Obviamente, “quando se fala em cópia do real, não se deve ter em men-
te uma personagem que fosse igual a um ser vivo” (CANDIDO, 2007,
55. Embora o tenhamos sempre em nosso horizonte, dado os pressupostos para a pesquisa empreendida, não
nos apoiamos exclusivamente no traço biográfico para interpretar a produção literária de Manoel de Barros.
56. Quando um autor cita seus próprios textos.

166 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


p. 69). A convergência do factual e ficcional, na obra de Barros, é que
torna possível tal (re) invenção poética.
No poema “A Borra”, da obra Ensaios Fotográficos, o eu lírico
enuncia:

A BORRA

Prefiro as palavras obscuras que moram nos


fundos de uma cozinha — tipo borra, latas, cisco
Do que as palavras que moram nos sodalícios —
tipo excelência, conspícuo, majestade.
Também os meus alter-egos são todos borra,
ciscos, pobres-diabos
Que poderiam morar nos fundos de uma cozinha
— tipo Bola Sete, Mário Pega Sapo, Maria Pelego
Preto etc.
Todos bêbedos ou bocós.
E todos condizentes com andrajos.
Um dia alguém me sugeriu que adotasse um
alter-ego respeitável — tipo um príncipe, um
almirante, um senador.
Eu perguntei:
Mas quem ficará com os meus abismos se os
pobres-diabos não ficarem?
(BARROS, 2007, p. 61).

Se considerarmos apenas o explícito nesse poema, talvez seja pos-


sível atestar o porquê da produção literária de Manoel de Barros apre-
sentar relações com a história de Corumbá e com o contexto em que
esse poema foi produzido. Mas é sabido que a leitura de um texto li-
terário não se limita apenas ao que está explícito, embora em diversas
produções os espaços figuram-se enquanto elemento significativo no
contexto em que aparecem.
O beco, no poema de Barros, é um espaço metafórico no qual as
identidades do eu-lírico são firmadas, a poesia se presentifica e o poeta
se (re) conhece. Bola Sete, Mário-pega-sapo (Mário revisitado), Maria
Pelego Preto e “todos condizentes com andrajos” são matéria de sua
poesia. Mesmo sem deixar de considerar as influências de outros poetas,
artistas, cronistas e memorialistas, Barros define seu projeto poético ao

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 167


eleger esses personagens como fonte de poesia, dialogando com o tem-
po histórico e o espaço geopolítico onde viveram esses personagens e o
Barros de outrora.
Elton Luiz Leite de Souza, em seu estudo intitulado Manoel de
Barros: a poética do deslimite (2010) enuncia:

[...] a riqueza e originalidade da poética de Manoel de Barros a


coloca em situação ímpar no cenário das escolas, movimentos,
estilos e tendências da produção literária brasileira. São comuns
as aproximações: com Guimarães Rosa – pelo mesmo colocar em
“variação agramatical” os elementos formais da língua portugue-
sa; com Clarice Lispector – pela promoção de um certo devir ani-
mal que tende a nos fazer pensar um estado da vida que antecede
a toda determinação orgânica; enfim, podemos ainda acrescentar,
com Fernando Pessoa – pela criação de verdadeiros heterônimos
enquanto sujeitos larvares de percepções infra-humanas. (SOU-
ZA, 2010, p. 66).

A obra de Manoel de Barros, entre outras definições, é também a


expressão das emoções e reflexões do poeta diante do mundo, da desu-
manização, da reificação humana, do sexismo, da miséria, da exclusão,
da necessidade da Poesia ao lado das necessidades mais elementares.
Sua literatura parte da imaginação — invenção — e das experiências
pessoais e sociais para (re) significar — não transcrever — a realidade
concreta. É arte que recusa o condicionamento do meio, por isso, trans-
gressora e revolucionária. Independe de classificações e de rótulos.
Permite-nos aprofundar a análise, no aspecto que empreendemos
esta leitura, o estudo A unidade dual: Manoel de Barros e a poesia, de
Prioste:

O poeta reconhece o fingimento da palavra e apreende a rea-


lidade como um cenário construído a partir do alicerce verbal.
Percebe que a fronteira com o falseio é muito tênue para ousar
referendar um discurso que se pretende claro e distinto quando
tudo é muito mais complexo e indefinível do que supõe qualquer
filosofia. A obscuridade compartilha da clareza em um infinito
enlace no qual o humano se embate sem a certidão fidedigna
de uma verdade imune ao contradito, ao dubitável e ao oblíquo.
(PRIOSTE, 2006 p. 19).

168 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


O universo lírico de Manoel de Barros avança as fronteiras do
real e do poético, enfoca temas de interesse permanente, inerente à con-
temporaneidade, à universalidade, ao local e apura a nossa linguagem.
Em outro poema, da obra Poemas Rupestres, o eu lírico informa:

OS DOIS

Eu sou dois seres.


O primeiro é fruto do Amor de João e Alice.
O segundo é letral:
É fruto de uma natureza que pensa por imagens,
Como diria Paul Valéry.
O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu
e vaidades.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades
frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.
(BARROS, 2004, p. 45).

Assim, os dois seres terão as identidades garantidas se “Algum doido


de beco empregar o seu amor em nós”. Ora, conforme já se afirmou, o
nada, o banal, o desprezível e “tudo aquilo que a civilização rejeita” são
elementos recorrentes na poesia de Manoel de Barros. Nesse sentido, é
possível depreender que o beco, o “extremo”, o ínfimo, seja a origem do
ser letral que se assemelha com o “filósofo de beco”.
Ao filósofo é atribuída aura intelectual de quem percebe o beco
como configuração espacial de uma humanidade sem saída. Filósofo do
beco é alguém que estuda o limite da existência humana. Mais ainda, –
assim nos parece – é o espaço da celebração da liberdade, da interação
dos diferentes: “O beco é um lugar que eleva o homem até o seu me-
lhor/ aniquilamento.” (BARROS, 2000, p. 81).
Os dois seres – o artista-poeta e o ser biológico Manoel – retomam
aspectos da realidade para se (des) representar ou para (re) criar, (re)
significar e produzir revoluções em outro tempo e outro espaço, caso
seu interlocutor aceite o convite do ser letral: “que você empregue seu
amor em nós”.
O Barros da obra Poemas Concebidos sem Pecado não é o mesmo
das Memórias. O tempo observado nas suas obras é o limite entre o que

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 169


é factual e o que é evocação. O trajeto poético percorrido desde a sua
primeira obra, Poemas Concebidos sem Pecado, é revisitado na trilogia
das Memórias Inventadas pelo emissor que confessa:

FONTES

Três personagens me ajudaram a compor estas


memórias. Quero dar ciências delas. Uma, a criança:
dois, os passarinhos: três, os andarilhos. A
criança me deu a semente da palavra. Os passarinhos
me deram desprendimento das coisas da terra. E os
andarilhos, a preciência da natureza de Deus.
Quero falar primeiro dos adarilhos, do uso em
primeiro lugar que eles faziam da ignorância.
Sempre eles sabiam tudo sobre o nada. E ainda
multiplicavam o nada por zero – o que lhes dava
uma linguagem de chão. Para nunca saber onde
chegavam. E para chegar sempre de surpresa.
Eles não afundavam estradas, mas inventavam
caminhos. Essa a pré-ciência que sempre vi nos
andarilhos. Eles me ensinaram a amar a natureza.
Bem que eu pude prever que os que fogem da natureza
um dia voltam para ela. Aprendi com os passarinhos
a liberdade. Eles dominam o mais leve sem precisar
ter motor nas costas. E são livres para pousar em
qualquer tempo nos lírios ou nas pedras – sem se
machucarem. E aprendi com eles ser disponível
para sonhar. O outro parceiro de sempre foi a
criança que me escreve. Os pássaros, os andarilhos
e a criança em mim, são meus colaboradores dessas
Memórias inventadas e doadores de suas fontes.
(BARROS, 2008, I Fontes).

O tempo operou mudanças no menino Cabeludinho, alter-ego do


poeta; nas Memórias Inventadas, o poeta velho recupera a vida de infân-
cia, retomando o passado em dois tempos: o da História e o da Poesia.
A personagem Bola Sete é figura popular, ao mesmo tempo, realidade
e reinvenção, desnomeada, nomeada e (re) significada, sem prestígio
social e consagrada pela poesia, é alter-ego, é a voz poética que se des-
prende dos seus poemas. É mendigo, louco e é andarilho; palmilha nas

170 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


fronteiras, nos espaços intervalares, no beco, nas fissuras, no entre-lugar
onde o personagem e a personagem57 se hibridizam e coalescem.
Pode-se inferir que há, na obra de Manoel de Barros, um olhar
projetado nas suas (re) invenções da realidade convertidas em matéria
de poesia. Desse modo, para elucidar o seu fazer poético, (re) cria cená-
rios e personagens da região do Pantanal de Corumbá.
Corrobora para esse raciocínio Afonso de Castro, em sua obra A
poética de Manoel de Barros: a linguagem e a volta à infância:

A coerência de sua poesia, juntamente com os traços de originali-


dade ao desvendar e inaugurar, poeticamente, o homem, a região
do pantanal e cercanias, dão consistência artística e certamente
despertarão o reconhecimento como poeta maior, como encan-
tador de palavras e místico da matéria, do mundo, da natureza
em todo o esplendor de ebulição e de transformação. (CASTRO,
1991, p.17).

Afonso de Castro antecipara: “os grandes temas da humanidade,


as reminiscências passam a ser reinventadas sob o filtro da poesia. Pois
pela poesia, descobriu Manoel de Barros, poderia recriar o homem, a
linguagem sob o signo da liberdade”. Assim, a tendência de (re) criar,
“nas asas da liberdade”, cenas e personagens que as reminiscências da
infância e o que a memória do adulto lhe oferece como matéria de
poesia, é marca indelével em sua obra desde o primeiro livro, Poemas
Concebidos sem Pecado (1937).
Cumpre destacar que outra personagem popular, reminiscência
da infância na cidade de Corumbá − ou nas suas fronteiras – presente
em diversas obras de autores dessa região, também revisitado por Mano-
el de Barros, é “Mário Pega-Sapo”.
Detenhamo-nos, primeiramente, nas descrições anotadas pelo
cronista Renato Báez.

“MÁRIO PEGA-SAPO” era filho mais velho do popular “CAR-


NEIRO”, que tinha a mania de pegar sapos vivos nas ruas e levá-
-los para os depósitos que ele mesmo criava em vários pontos da
cidade. Por esse hábito, ficou com o apelido de “MÁRIO PEGA-
-SAPO”, aliás, pessoa de bons sentimentos, muito prestativo e
57. Valemo-nos da distinção de gênero para diferenciar os personagens históricos, aqueles que existiram
na concretude civil dos quais temos registros em fontes primárias, de as personagens, consistindo estas em
criações ficcional ou poéticas, ainda que inspiradas em figuras reais.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 171


educado, que serviu conosco no 17.º Batalhão de Caçadores, de
1937 a 1939, e não sabemos se ainda é vivo. (BÁEZ, 1964, p. 131
negrito no original).

Manoel de Barros, no poema “A draga”, da obra Poemas Conce-


bidos sem Pecado, parece dialogar com o memorialista − ou o memoria-
lista dialoga com o poeta? – esclarecendo quanto à dúvida de o Mário
estar vivo ou não:

[...]
Dos viventes da draga era um o meu amigo Mário-pega-
Sapo.
Ele de noite se arrastava pela beira das casas como um
caranguejo trôpego
À procura de velórios.
Gostava de velórios.
Os bolsos de seu casaco andavam estufados de jias.
Ele esfregava no rosto as barriguinhas frias.
Geléia de sapos!
Só as crianças e as putas do jardim entendiam a sua fala
de furnas brenhentas.
Quando Mário morreu, um literato oficial, em
necrológio caprichado, chamou-o de Mário-Captura-Sapo!
Ai que dor!
(BARROS, 2005, p.43).

O poeta dialoga também com a sua primeira obra, quando “revisi-


ta” ou (re) inventa a mesma figura popular em Livro sobre nada:

Mário revisitado
Mário-pega-sapo, de noite, abria em casa todos os
sapos que pegava durante o dia em banhados, nos
barrancos, nos monturos, nos porões, nos terrenos
baldios, debaixo de caixas dágua.
Abria um por um de canivete os sapos para ler nas
entranhas deles o seu futuro (do Mário).
Eu pensava que aquele Mário-pega-sapo fosse um
descendente dos arúspices (sacerdotes romanos que
adivinhavam o futuro remexendo no altar as entranhas
de seus inimigos ).
Em todos os velórios da cidade Mário se compungia

172 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


como se fosse o dono do defunto. Seria uma trans-
ferência?
Tentei descobrir na alma de Mário alguma coisa mais
profunda do que não saber nada sobre as coisas pro-
fundas.
Consegui não descobrir.
(BARROS, 2000, p. 77).

Ainda que não necessite de comparações para enfatizar a origina-


lidade inaugural de seus poemas, mas ao “revisitar” essa figura popu-
lar de Corumbá e dialogar com outros escritores dessas mesmas águas,
parece-nos, Barros evidencia, poeticamente, resgatando pelo filtro da
memória, pelo verso e pela palavra, personagem que, de fato, existiu
em Corumbá, conforme pontua Renato Baéz: “serviu conosco no 17.º
Batalhão de Caçadores, de 1937 a 1939”.
Apoiando-se em uma similaridade real, o poeta aproxima essas
personagens populares (re) significando-as no espaço que lhe é familiar
e, ao retomar fatos da realidade dessa região, acaba, de certo modo, por
transpor, artisticamente, para o poema sua visão do espaço fronteiriço,
da Corumbá de outrora. Afinal, ninguém cria ou recria se não a partir
das experiências, dos conhecimentos e dos valores já experienciados e
experimentados.
É interessante notar mais uma proximidade da obra de Manoel de
Barros com a poesia de Lobivar Matos, quando reinventam personagens
femininas como “Maria Bolacha” (MATOS, 1936) ou “Dona Maria”
(BARROS, 2005). Ao retomarem essa Maria, personagem pedinte das
ruas de Corumbá, os dois poetas elegem uma figura cujo nome carrega
forte simbologia. Poderia ser qualquer Maria, não fosse ela personagem
real, figura que de fato viveu na Corumbá da juventude dos dois amigos,
poetas. De certa maneira, mais do que visões similares e, paradoxalmente,
diversas − parece-nos − temos retratos poéticos da mesma personagem
nos poemas de Manoel de Barros e de Lobivar Matos, bem como na
crônica de Ulisses Serra:

- Maria Bolacha! Maria Bolacha! (MATOS, 1936, p. 19);

- Maria Gaiteira, fiu! Maria Gaiteira, fiu, fiu! (BARROS, 2005,


p. 54);

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 173


- Pêra aí, pestes, vão para o diabo, cambadas de senvergonha!
(MATOS, 1936, p. 19);

À tarde, pelo cansaço, com voz fraca e enternecida, ofegante,


pedia clemência. (SERRA, 2004, p. 115);

- Por favor, moço, mande esses meninos embora pra casa deles.
(BARROS, 2005, p. 54).

Com efeito, Maria Bolacha protagoniza, nos poemas de Barros


e Matos, e na crônica de Serra, uma humanidade apodrecida pela mi-
séria, pelo descaso dos transeuntes, mas essas “Marias” sobrevivem nas
ruas das cidades, não só daquela ou desta e desabrocham em poesia.

Paisagens, itinerários e cenários de Corumbá na poesia

Quanto ao diálogo entre a poesia de Barros e a paisagem urbana


de Corumbá, está patente, como já mencionado, desde Poemas Con-
cebidos Sem Pecado (1937), a referência a espaços e paisagens, com ou
sem figuras, evidencia-se na parte intitulada Postais da cidade.
Essa cidade pantaneira é motivo recorrente nos poemas de Mano-
el de Barros, principalmente pela memória, o poeta focaliza caracterís-
ticas e elementos do espaço urbano e do rural desse lugar.
O rio, o Porto de Corumbá, as lanchas (Iguatemi), a Cacimba
da Saúde, a Ladeira Cunha e Cruz, os camalotes, os flamboyants, os
armazéns, o Cinema Excelsior, pescadores, monumentos históricos, fi-
guras femininas e personagens ilustres58 ou pouco conhecidos emergem
e ecoam na lira do poeta.
Importa evidenciar que na obra História de uma Região: Pantanal
e Corumbá, Lécio Gomes de Souza, quando também lança seu olhar
para a cidade, anota:

Quem se habituou a contemplar, das alturas de Corumbá, o ma-


ravilhoso cenário que se desdobra aos olhos, a um giro do hori-
zonte, fica sempre a indagar como se construíram, através dos
milênios, as contrastantes formações que cingem o local pelos
58. Sargento Aquino, fuzilado na revolta de 1917, e Antônio Maria Coelho, herói da Guerra do Paraguai são
referenciados como militares pelo poeta.

174 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


quatro pontos cardeais. De um lado, a vasta planície pantaneira,
a se perder de vista, sulcada pelo caudaloso rio com os seus capri-
chosos meandros; de outro, o patamar onde se assenta o burgo, a
se desagregar com o tempo em poeira clara rebrilhando ao sol [...]
(GOMES DE SOUZA, 1973, p. 13).

No poema “O escrínio”, de Poemas Concebidos Sem Pecado, Ma-


noel de Barros assim descreve Corumbá:

Um poeta municipal já me chamara a cidade de escrínio. Que


àquele tempo encabulava muito porque eu não sabia o seu sig-
nificado direito. Soava como escárnio. Hoje eu sei que escrínio é
coisa relacionada com jóia, cofre de bugigangas [...] Por aí assim.
Porém a cidade era em cima de uma pedra branca enorme E o rio
passava lá embaixo com piranhas camalotes pescadores e lanchas
carregadas de couros vacuns fedidos. Primeiro vinha a Rua do
Porto: sobrados remontados na ladeira, flamboyants, armazéns de
secos e molhados E mil turcos babaruches nas portas comendo
sementes de abóbora... Depois, subindo a ladeira, vinha a cidade
propriamente dita, com a estátua de Antônio Maria Coelho, herói
da Guerra do Paraguai, cheia de besouros na orelha (BARROS,
2005, p. 39).

A propósito dessa discussão, o espírito empreendedor dos pri-


meiros tempos da cidade tem registros nas crônicas de Abílio Leite de
Barros59 (Gente pantaneira, 1998), na historiografia de Fernando Leite
(Corumbá - Histórica e Turística, 1978), em estudos acadêmicos (como
A cidade e o rio: Escravidão, arquitetura urbana e a invenção da beleza
– o caso de Corumbá (MS), 2006, de Elaine Cancian, para mencionar
apenas um estudo), nos diversos volumes com anotações de cunho cro-
nístico de Renato Báez, e ao menos em um romance de envergadura, o
Raízes do Pantanal, de Augusto César Proença, obra vencedora do Prê-
mio Brasília de Ficção de 1985 e que foi lançada, em 1989, pela Editora
Itatiaia, de Belo Horizonte, em co-edição com o Instituto Nacional do
Livro.
Manoel de Barros fez voar a poesia fora da asa e nos deixou um
graal estético, de onde emergem personagens, passarinhos e paisagens
dessa região pantaneira: uma probabilidade infinita para estudos com
vieses diversos, mas que ainda é necessário descobrir e desvelar com jus-
59. Faleceu em outubro de 2019, cronista, irmão do poeta Manoel de Barros.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 175


teza. Além disso, – embora o eu poético não deva ser confundido com
o eu empírico do autor – na produção literária de Manoel de Barros,
há um sentido ideológico latente que leva o ser letral a (re) significar
elementos de sua terra – que não é a natal, mas a que o poeta escolheu
como fonte – de onde emerge e jorra poesia.
Revisitar, portanto, os espaços da Corumbá de Barros e os espaços
da Corumbá destes nossos dias, é importante para entender, em pri-
meiro lugar, como esses espaços, itinerários e monumentos da cidade
são consagrados, elevados a motivos poéticos, por Manoel de Barros e
outros literatos. E, em segundo, para entender como a cidade lida, trata,
mantém e preserva seus espaços históricos e seus monumentos.
O oitavo livro de Manoel de Barros, publicado em 1985, com o
título “Livro de Pré-Coisas”, subtítulo “(Roteiro para uma excursão po-
ética no Pantanal)”. É composto por quatro partes: “Ponto de partida”,
“Cenários”, “O Personagem” e “Pequena História Natural”. O poeta
afirma no primeiro poema narrativo, prefácio do livro, que este não é
um livro sobre o Pantanal, no entanto, o narrador assim apresenta sua
terra natal:

Narrador apresenta sua terra natal

Corumbá estava amanhecendo.


Nenhum galo se arriscara ainda.
Ia o silêncio pelas ruas carregando um bêbado.
Os ventos se escoravam nas andorinhas.
Aqui é o Portão de Entrada para o Pantanal.
Estamos por cima de uma pedra branca enorme que
o rio Paraguai, lá embaixo, borda e lambe.
Já posso ver na semi-escuridão os canoeiros que
voltam da pescaria.
Descendo a Ladeira Cunha e Cruz embico no Porto.
Aqui é a cidade velha.
[...]
Agora a cidade entardece.
Parece uma gema de ovo o nosso pôr-do-sol do lado
da Bolívia.
Se é tempo de chover desce um barrado por
toda a extensão dos Andes
e tampa a gema.

176 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


− Aquele morro bem que entorta a bunda da
paisagem – o menino falou.
Há vestígios de nossos cantos nas conchas destes
banhados.
Os homens deste lugar são uma continuação das
águas.
(BARROS, 1997, p. 11-13).

Não se pode descartar que é à subjetividade − enquanto conjunto


de imagens, memórias e referências culturais coletivas − que o “narra-
dor” desse poema se refere. O poeta adulto traduz e (re) inventa a Co-
rumbá do menino poeta: “o menino falou”; o poeta adulto fez jorrar em
poesia. O leitor vai bebendo as imagens como se tudo fosse filmado com
uma câmera atenta àquilo que deseja ser degustado, sentido, ouvido e
visto além do focalizado pela lente.
Nos poemas de Manoel de Barros, habitam imagens de um es-
paço que ultrapassa a descrição do lugar. Trata-se de um matiz novo
advindo do olhar de quem quer ver e “transver”.
Acrescente-se que na obra Memórias Inventadas: a infância, um
menino que estudava em um colégio interno, recebe o codinome “Co-
rumbá60”:

PARREDE!
Quando eu estudava no colégio, interno,
Eu fazia pecado solitário.
Um padre me pegou fazendo.
− Corrumbá, no parrede!
[...]
− Corumbá, no parrede!
Era a glória.
Eu ia fascinado pra parede.
[...]
(BARROS, 2003, IV)

A análise desse poema exigiria pesquisas minuciosas e densas acer-


ca da relação ser biológico Manoel e eu lírico nominado “Corumbá”,
se tomássemos como referência a perspectiva do herdeiro pecuarista da
Nhecolândia que estudou no Rio de Janeiro. Limito-me aqui, portan-
60. Manoel de Barros foi aluno de um colégio interno no Rio de Janeiro.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 177


to, a indiciar uma proposta possível de estudos, pois esta discussão nos
remete a outros aspectos da produção poética e da correspondência do
âmbito familiar de Manoel de Barros:

[...]
Se diz ainda que este recanto teria sido um pedaço do
Mar de Xaraiés.
Na beira da noite a gente estava sem rumo.
(BARROS, 2015, p. 22)

Também devem ser analisados os registros de caráter sistemático


contidos nas memórias de José de Barros, José de Barros Netto e de
Abílio de Barros61, irmão do poeta, para melhor compreendermos essa
relação do Manoel de Barros poeta com os cenários, itinerários, espaços
e habitantes da Corumbá urbana e rural. Por meio desse “olhar” as ce-
nas líricas projetam-se diante do leitor.
Na obra O Livro das Ignorãças, de Manoel de Barros, há uma

EXPLICAÇÃO DESNECESSÁRIA
Na enchente de 22, a maior de todas as enchentes
do Pantanal, canoeiro Apuleio vagou três dias e três noites
por cima das águas, sem comer sem dormir – ele teve
um delírio frásico. A estórea aconteceu que um dia,
remexendo papéis na Biblioteca do Centro de Criadores
da Nhecolândia, em Corumbá, dei com um pequeno
Caderno de Armazém, onde se anotavam compras fiadas
de arroz, feijão, fumo etc. [...]
(BARROS, 2001, p. 31).

O viço da vegetação, dos camalotes, igarapés, as chuvas torren-


ciais, o multicolorido dos pássaros, aves e todo tipo de seres nominados
ou inominados emergem da poesia de Manoel de Barros, tornam-se
imagens ampliadas.
Chama-nos atenção a reinvenção do indiozinho guató, que apa-
rece em momentos diferentes da produção do poeta. O eu lírico em
“Brincadeiras”, da obra Memórias Inventadas: a infância, anota:

61. Abílio Leite de Barros faleceu em outubro de 2019.

178 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


[...]
Cipriano era um indiozinho guató que aparecia no
Quintal, nosso amigo. Ele obedecia a desordem.
[...]
(BARROS, 2003, X)

O poeta sabe que pode falar a mentira e a verdade, misturando-as


pela virtude da semelhança. Assim, o eu-lírico conta-nos uma mentira
muito próxima da verdade e, ao mesmo tempo, leva-nos a observar as
verdades homologadas pela historiografia.
Dessa forma, a literatura torna-se um meio de representação dessa
realidade, pois quem conta sobre o lugar e seus habitantes é um nar-
rador que não tem compromisso com a verdade histórica. O leitor é
informado de que, por serem inventadas, ele dirá sem falsidade o que
não prometera. Quanto a isso, Barros não tem meias palavras: “Tudo o
que não invento é falso” (BARROS, 2003, epígrafe).

À guisa de Conclusão

Parece-nos que há correspondências entre o autor, o eu-lírico, o


narrador, o narrado, o espaço lembrado, o documentado pelos historia-
dores e o concebido pela memória coletiva. Dito de outra maneira, há
uma reconstituição verossímil dos dados registrados pela história oficial.
Verifiquemos, em uma passagem paradigmática, o modo como Barros
recupera o espaço da sua infância, transformando-o, com os seus habi-
tantes, em cenário poético na obra Poemas Concebidos sem Pecado:

Viva o Porto de Dona Emília Futebol Clube!!!


− Vivooo, vivaa, urrra!
− Correu de campo dez a zero e num vale de botina!
plog plog, bexiga boa
− Só jogo se o Bolivianinho ficar no quíper
− Tá bem, meu gol é daqui naquela pedra
plog plog, bexiga boa
− Eu só sei que meu pai é chalaneiro
mea mãe é lavadeira
e eu sou beque de avanço do Porto de Dona Emília
o resto não to somando com qual é que foi o índio

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 179


que frechou São Sebastião...
[...]
(BARROS, 2005, p. 15).

Nota-se que nesse poema o enunciador também se inclui entre os


meninos que brincam no Porto de Dona Emília62. Com versos soltos, ten-
dendo à narrativa descompromissada, Barros busca um lugar sem ufanis-
mos, demarcado pelo determinante “de Dona Emília”, porto despojado de
monumentalidade, por isso ampliado em sua poeticidade e no olhar infan-
til que só joga “se o Bolivianinho ficar no quíper”. Ao falar desse lugar, o
emissor demarca cenas e costumes, sob o olhar de quem parece pertencer a
esse Porto, posto que “meu pai é chalaneiro” e “mea mãe é lavadeira”.
Em seus poemas, Manoel de Barros recupera o lirismo da Corum-
bá convergida em um espaço convergido em que infância, memória e
ambiente social e esses emergem como retratos e postais que vão brotan-
do como camalote em flor maior que o mundo.
Ao bebermos dos vários estudos publicados acerca da produção
literária de Manoel de Barros, e, em especial, ao lermos o conjunto da
obra do poeta, concluímos que mais que invenção de palavras, mais que
autobiografia de quem não perde o sentimento de pertença ao “verdor
primal das águas”, a produção literária de Manoel de Barros é “essa
torneira aberta”: — “Qual antes melhor fechar essa torneira, bugre ve-
lho...”, pois “O que no alforje eu trago/É um azul arriscado a pássaros...”
(BARROS, 2004, p. 23).

Referências

BAEZ, Renato. Corumbá: Figuras & Fatos. São Paulo: Brasil, 1964. 166
p. 149

BAEZ, Renato. Pioneiros e registros. Corumbá, MS: edição do autor,


1982. 164 p.

BARROS, Abílio Leite de. Pantanal pioneiros: álbum gráfico e genealógico


de pioneiros na ocupação do Pantanal. Brasília: Senado Federal, 2007.
270 p.
62. A Ladeira Dona Emília, antigo Porto onde atracavam lanchas de pescadores, hoje é uma área residencial
de Corumbá.

180 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


BARROS, José de Barros Lembranças. Brasília. Senado Federal, 1987. 92 p.

BARROS, Manoel de. Ensaios Fotográficos. 7. ed. Rio de Janeiro: Record,


2000. 66 p.

BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão (Poesia quase toda).


3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. p.

BARROS, Manoel de. Livro de Pré-coisas. 2. ed. Rio de Janeiro: Record,


1997. 94 p.

BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. 8. ed. Rio de Janeiro: Record,
2000. 85 p.

BARROS, Manoel de. Matéria de poesia. 5. ed. Rio de Janeiro: Record,


2001. 69 p.

BARROS, Manoel de. Memórias Inventadas: a infância. São Paulo,


Planeta, 2003. XVI poemas.

BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: a segunda infância. São


Paulo: Planeta, 2006.

BARROS, Manoel de. Poemas concebidos sem pecado. 4. ed. Rio de


Janeiro. Record, 2005. 78 p.

BARROS, Manoel de. Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2004. 75 p.

BARROS. Manoel de Barros se considera um songo, parte II. Postado


em 11 dez. 2006. Disponível em: <http://http://www.overmundo.com.br/
overblog/manoel-de-barros-se-considera-um-songo-parte-ii>., acesso em:
10 maio 2008. (Entrevista a Cláudia Trimarco).

BARROS. Memórias inventadas para crianças. São Paulo: Planeta, 2006. 22 p.

BARROS. Memórias inventadas: a terceira infância. São Paulo: Planeta,


2008. 52 p.

BARROS. O tema da minha poesia sou eu mesmo. Jornal do Brasil,


caderno Idéias, [2000]. Disponível em: <http://www.screl.com.br/jpoesia/
barros04.html>. Acesso em: 05 maio 2008. (Entrevista a André Luís
Barros).

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 181


BARROS. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010. 493 p.

CAMPOS, Luciene Lemos de. A mendiga e o andarilho: a recriação poética


de figuras populares nas fronteiras de Manoel de Barros. Dissertação de
mestrado, 154 f. (UFMS/CPAN 2010).

CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva,


2002.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Nacional, 1985.

CASTRO, Afonso. A poética de Manoel de Barros: a linguagem e a volta à


infância. Brasília: Universidade de Brasília, 1991. 230 p.

GOMES DE SOUZA, Lécio. História de uma Região: Pantanal e


Corumbá. São Paulo, Tributária, 1973. 237 p.

MATOS, Lobivar. Areôtorare. Rio de Janeiro: Pongetti, 1935. 73 p.

MATOS, Lobivar. Sarobá. Rio de Janeiro: Minha Livraria, 1936. 98 p.

PANOVICH, Jorge Vancho. Em cada rua um conto e uma saudade. S.L,:


s. e. 2007. 20 p.

PRIOSTE, José Carlos Pinheiro. A unidade dual: (Manoel de Barros e


a poesia). Rio de Janeiro, 2006. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura)
– Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível
em <http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/trabalhos/jcprioste_unidade.pdf>.
Acesso em: 4 out. 2008.

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre


dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. 219 p.

SERRA, Ulysses. Camalotes e guavirais. Campo Grande: Academia Sul-


Mato-Grossense de Letras, 2004. 162 p. Disponível em < www.acletrasms.
com.br >, acesso em: 17 ago. 2004.

SILVA NETO, Francisco Ignácio. Era uma vez. Campo Grande: ANE.
Curió, 1995, 98 p.

SOUZA, Elton Luiz de. Manoel de Barros: a poética do deslimite. Rio de


Janeiro: 7Letras, 2010. 138 p.

182 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


Capítulo 9

ENTRE GOVERNANÇA E CONSAGRAÇÃO


CULTURAL: O PAPEL DA LIESCO NO
CARNAVAL DE CORUMBÁ
Fernando Thiago
Caroline Gonçalves
Denilson Almeida dos Santos

Introdução63

Pedimos licença aos leitores para abrir alas deste capítulo apresen-
tando nossas melhores preces de uma excelente “boa tarde, boa tarde”!
Damos início à nossa apresentação com esta interjeição recorrente que
ressoa nas vozes dos participantes do Carnaval Pantaneiro de Corumbá.
Trata-se de um hino de alegria do carnaval, composta para representar
um dos blocos mais tradicionais da cidade, o Bloco Flor de Abacate, que
existe a mais de 40 anos.
Assim, “boa tarde, boa tarde, nós de novo aqui, com o Flor de
Abacate, pra sambar até cair”! É num tom de serenidade e alegria que
se dá a abertura deste magnífico evento popular, refletido nos versos de
José Eloy de Magalhães e João Batista Carretoni, quando escreveram a
música do bloco Flor de Abacate.
Bastante tempo antes disto, num retrato do que era a popularmen-
te divulgada por seus habitantes como “Capital do Pantanal Sul-Ma-
togrossense”, Souza (2004, p. 332) relata que Corumbá, fundada em
1778, se tornou principal centro comercial do estado de Mato Grosso
após a guerra do Paraguai (1865-1870), e recebeu diversos imigrantes
no final do século XIX: “paraguaios, bolivianos, italianos, portugueses e,
posteriormente, sírio-libaneses”, mostrando que sua miscigenação não
é recente. A cidade veio a tornar-se sul-matogrossense no ano de 1977
quando da divisão dos estados, tornando-se a terceira cidade do Mato
63.O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
– UFMS/MEC – Brasil.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 183


Grosso do Sul em número de habitantes, estando atrás da capital Cam-
po Grande e da cidade de Dourados, mas primeira da lista em extensão
territorial.
Corumbá, terra de cultura expressiva e baluarte de histórias mar-
cantes, de um povo simples, que esbanja felicidade, cheio de fé em suas
expressões religiosas, que por vezes são desconhecidas pelos visitantes
e viajantes em sua travessia pela fronteira Brasil-Bolívia, mas de valor
imensurável, como retratado pela Fundação de Cultura de Corumbá
(2019, p. 7):

A cultura corumbaense é cheia de representações singulares. O


carnaval segue seu ritmo e mantém viva a sua própria história.
Cheia de blocos, de escolas de samba e de cordões carnavales-
cos. Uma história cheia de confetes, serpentinas, fantasias e muita
alegria. Mas o contágio da cultura da Cidade Branca não fica só
com o carnaval. A Fé também move esse lugar. Nas ladainhas, nas
rezas, nas orações pela ladeira até as margens do Rio Paraguai, os
devotos seguem para banhar a imagem de São João. Pelas bandas
do Forte Coimbra, reina a paz com o comando de Nossa Senhora
do Carmo. Nas terras de Albuquerque, quem reina é o Divino
Espírito Santo. E a língua vira outra quando se ouvem as ma-
tracas das ‘cholitas’, o guizo das botas dos ‘caporales’. É hora de
honrar a Virgem de Copacabana e a Virgem de Urkupiña com os
irmãos bolivianos. Hora de atravessar fronteiras e subir calvários
de pedras. E de repente os doces se espalham nas comemorações
aos santos Cosme e Damião. Não importa a época do ano: o som
das baterias pulsando, dos cavacos, dos atabaques, das violas de
cocho, das mãos em palmas, dos berrantes puxando comitivas,
tudo isso e muito mais é que faz fluir e ressoar a cultura desse
povo pantaneiro sul-mato-grossense.

Trata-se de uma amalgamação dos cotidianos em suas diversas ex-


pressões artísticas, sociais e ideológicas, dentre as atividades sertanejas
representadas pelos pantaneiros, os câmbios de recursos e derivações
linguísticas da fronteira, as comunhões religiosas advindas das missões
jesuíticas, as heranças das imigrações cariocas, o talante das atividades
públicas das forças militares, da Universidade Federal, da Polícia Fede-
ral, entre outros.
É neste contexto que se apresenta o Carnaval de Corumbá,
festividade representante desta mistura cultural, popular, com atividades

184 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


livres para os participantes e também com atividades organizadas em
tempos, funções e espaços determinados. O Carnaval para os brasileiros
representa o desvelar dos sonhos, a expressão da esperança debruçada
nas felicidades - ainda que fugazes - , invoca a ansiedade pela sua che-
gada, e os desejos de disputa pela beleza e perfeição nos detalhes dos
blocos e das escolas de samba. Trata-se da festa mais popular deste país,
uma forma de expressão social, por vezes servindo como oportunidade
para os excluídos se manifestarem (SOUZA, 2004; SILVA, 2010), não
apenas coexistindo enquanto forma de prazer e descanso como sugere
Bakhtim (2008) em sua análise do carnaval na idade média.
As atrações e atividades carnavalescas de Corumbá acontecem na
região central do município e são divididas em duas grandes frentes: o
desfile dos blocos de rua e o desfile das escolas de samba. Em ambas
atividades o poder público local promove uma competição para definir
os vencedores anuais com base em critérios estabelecidos previamente,
mas é na segunda que a competição adquire artifícios cada vez mais
profissionalizados de disputa e organização.
É neste aspecto que este capítulo busca realizar uma reflexão no
âmbito do desfile das escolas de samba, conhecendo os mecanismos de
governança para realização da competição que define o campeão do
carnaval corumbaense.
A governança é entendida como o conjunto das ações para otimi-
zação dos interesses dos participantes (stakeholders) do carnaval, tendo
a Liesco (Liga das Escolas de Samba de Corumbá) como papel central
neste ínterim.
Antes de prosseguirmos aos detalhes do objeto de pesquisa, cabe
uma ressalva quanto ao método e o posicionamento ontológico dos que
vos enunciam. Em termos metodológicos, adotamos aqui as ferramentas
da etnografia, abordagem e técnica emergente dos estudos antropológi-
cos, tendo como fonte direcionadora os estudos de Malinowisk (1975) e
Geertz (1989). Reverenciando estes autores, entendemos que a imersão
no campo nos permite enxergar além dos ombros e identificar a teia de
significado que a complexidade do fenômeno apresenta.
Esta escolha metodológica foi definida especialmente pela on-
tologia empregada na análise deste fenômeno, de característica cons-
trutivista, na qual o objeto é afetado pelos investigadores e vice-versa,
percebendo que o Carnaval de Corumbá está impregnado em nossas

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 185


lembranças afetivas, e ao participarmos ativamente dos blocos e das es-
colas de samba, constituimos um viés que recusamos despir.
Por fim, para desenvolvimento da proposta, a primeira seção deste
capítulo abordará o papel da governança na participação dos atores no
atendimento de suas necessidades e das noções de justiça e suporte. A
segunda seção discute como a Liesco, órgão regulamentador das ações
do carnaval e da competição permite a participação e atua em favor de
seus interessados. A última parte trata de nossas conclusões sobre o fenô-
meno e indica possíveis abordagens e estudos que podem ser realizado
sobre os temas apresentados.

A governança como instrumento de participação, justiça e


suporte a seus atores e impactados

O tema governança tem ampla utilização no contexto das orga-


nizações, sendo prescrito em sua maioria para tratar das ações dos con-
selhos de administração das organizações, embora verse ainda sobre as
ações da organização em prol de seus proprietários, como acionistas
ou sócios de empresas, como também de seus demais interessados, ou
stakeholders: clientes, fornecedores, comunidades envolvidas, entes pú-
blicos, órgãos reguladores, etc..
Além disso, do ponto de vista das organizações sociais com finali-
dades públicas, a governança pode ser entendida como o agrupamento
de ações que promovam a tomada de decisão que beneficie a comunida-
de, no atender aos objetivos destas organizações sociais, que podem ser
empresas privadas, públicas ou do terceiro setor, que em muitos casos
são representadas pelas organizações sem fins lucrativos ou não gover-
namentais (ONGs.).
Diante disso, podemos analisar as dinâmicas das decisões obtidas
dentro do conselho decisor de órgãos públicos ou organizações que
atendam a interesses públicos como o caso da Liesco, objeto de análise
desse capítulo, atentando aos interesses de seus atores sociais envolvidos
no processo de execução do carnaval corumbaense.
Neste caso, a teoria da governança, dentro do contexto inserido,

186 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


trata dos aspectos analisados na rede de relações dos atores sociais, ou
também chamados de stakeholders. Como itens de análise estão: a na-
tureza jurídica da organização, a forma de controle, tipo de controla-
dor, cultura e identidade. Além desses elementos, as questões éticas no
cumprimento e formulação de regras formais e informais de atuação
correspondem a item relevante na análise da eficiência da governança
(SIQUEIRA, 2018).
As percepções dos principais atores envolvidos sobre os aspectos
apresentados por Siqueira (2018) são correlacionados positivamente
com a qualidade da governança, que reflete no valor da organização.
Permeando as questões de justiça social e ética, o conselho de
administração equipara-se neste caso à organização que regulamenta as
atividades do carnaval corumbaense - a Liesco – e é baluarte que res-
guarda os interesses dos envolvidos, representantes e debutantes da cul-
tura miscigenada do povo pantaneiro, conforme apresentado na parte
introdutória desta obra.
Ainda no entendimento de Siqueira (2018), a defesa da justiça e
ética por meio da governança tem suas ferramentas na regulamenta-
ção, autorregulação, fiscalização e enforcement de regulamentos. Quan-
do não cumpridos estes aspectos, acabam por impactar diretamente na
imagem da organização, em seus stakeholders internos e externalidades
negativas na sociedade.
Em tempos atuais, as organizações estão cada vez mais voltan-
do atenção não só aos seus proprietários e acionistas, mas também aos
seus stakeholders. Se por um lado podem ser vistos como causadores de
ruídos, distrações, ampliações de escopo, transtornos a cronogramas e
pertubações reputacionais (WAACK, 2018), por outro, a participação
destes principais interessados no conselho, de forma direta ou indireta,
pode contribuir com maior equilíbrio nas questões sociais, ambientais e
econômicas da organização. Além disso, possibilita maior transparência
nos processos, regulações e prestações de contas (WAACK, 2018).
É neste aspecto que o trabalho informacional permite balancear
os interesses da organização e dos principais interessados, seja na parti-
cipação nas decisões, ou em processos comunicativos eficientes, como

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 187


em peças informacionais, rodadas de negociação focada em proporcio-
nar melhor entendimento das decisões e ações organizacionais, audito-
rias externas, proporcionando o engajamento e legitimação (WAACK,
2018).
Um alerta importante sentenciado por Waack (2018) na compo-
sição dos conselhos é a importância da diversidade em sua composição.
Neste aspecto, foi sugerido que os conselhos não sejam compostos ape-
nas de representantes de setores ou de seus proprietários, mas também
de gestores e de seus stakeholders, permitindo um maior engajamento
para realização dos objetivos institucionais.
Robbins e Decenzo (2004) argumentam que a participação na
tomada de decisão é um importante catalizador para o sucesso das ativi-
dades propostas. Os que participam acabam se engajando mais na reali-
zação do planejamento estabelecido.
Neste caso, corrobora com Waack (2018), mostrando que a parti-
cipação dos interessados no processo decisório, pode contribuir com a
percepção de justiça e suporte aos envolvidos, tendo impacto direto na
imagem da organização.
Este é o primeiro aspecto relevante para a discussão. Consideran-
do que a cultura venha emergir de seus atores locais, via participação
nas decisões e elaboração de regulamentações, estes podem contribuir
com o fortalecimento de importantes elementos da cultura quando se
fazem presentes na composição das regras e atividades desenvolvidas
pela organização.
O outro aspecto que pode fortalecer as questões culturais é a
própria constituição da organização, cujas normas formais e informais
adotadas, valores e cultura estabelecidos na sua criação e também
aquelas influenciadas pelos stakeholders reforçam a identidade da or-
ganização, sua integridade e conformidade que, da mesma forma que
a participação, contribuem na legitimação da organização perante a
sociedade.
Em relação aos aspectos culturais, é de nosso interesse analisar
até que ponto as questões culturais permeiam dentro os demais elemen-
tos, conforme apresentado na Figura 1.

188 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


Figura 1. Estrutura de influência entre aspectos culturais, stakeholders e organização.

Fonte: Elaborado pelos autores baseado em Ronbbins e Decenzo (2004), Brandão, Perazzo e
Raso (2017), Siqueira (2018) e Waack (2018).

Conforme exposto, os ambientes interno e externo da organização


têm dentre seus elementos os aspectos culturais, objeto de discussão des-
te capítulo, que influenciam e são influenciados pelos seus atores e que
parte destes atores são externos, afetam e são afetados por organizações,
os denominados stakeholders.
Nas organizações, as boas práticas de governança corporativa tem
como fundamento as noções de identidade, conformidade e integridade.
Brandão, Perazzo e Raso (2017) definem identidade como a com-
binação de seu propósito: sua razão de ser; seus valores: o que é impor-
tante; os princípios: como são tomadas as decisões; missão: o que faz;
e visão: onde quer chegar. A governança possibilita que a organização
apresente seu “tom que vem do topo”, ou mostre o “jeito como as coisas
são feitas aqui”, sendo o conselho de administração responsável pelo
alinhamento entre o discurso e a prática de suas ações.
A integridade possui forte ligação com a noção de justiça aqui
discutida, além de demostrar confiabilidade, conduta de caráter, hones-
tidade, ou seja, a consistência entre o que é dito e as ações realizadas.
Para que isto se concretize, exige-se que as organizações se apresentem
com elevado grau de transparência e prestação de contas (BRANDÃO;
PERAZZO; RASO, 2017).

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 189


Neste ponto, a identidade é a base para a consolidação de sua
integridade, delimita suas características e propósitos, e sua associação a
processos comunicativos transparentes e acessíveis demonstra seu grau
de integridade.
O último aspecto é a conformidade ou compliance que se trata
de cumprir, executar, satisfazer ou realizar o que foi imposto, estar em
conformidade com os regulamentos internos e externos que afetam as
atividades. Sendo uma obrigação de cada pessoa dentro da organiza-
ção (NAKAMURA; NAKAMURA; JONES, 2019), está também aliado
ao processo de enforcement, ou de reforçar o cumprimento e monitora-
mento das normas impostas.
Uma importante ferramenta para atendimento à conformidade é
a segregação de funções dentro da gestão, na qual quem executa é o ges-
tor, podendo ser apoiado por um facilitador e fiscalizado por um audi-
tor. Para evitar comprometimento e desvio de normas em benefício pró-
prio, é interessante que quem fiscaliza não execute e vice-versa. Além
disso, estes atores são responsáveis por prevenir, detectar e remediar pos-
síveis problemas que podem ferir alguma norma, lei ou regulamento
pré-estabelecido, podendo comprometer a integridade da organização
(BRANDÃO; PERAZZO; RASO, 2017).
Por fim, sugerimos que aspectos culturais podem ser absorvidos
em organizações associativas de objetivos públicos, como é o caso da
Liesco, realizados por meio da participação dos principais interessados,
estruturados em sua identidade, possibilitando ferramentas para estar
em conformidade e manter a integridade quanto ao fortalecimento da
cultura local, especialmente pela realização de sua principal atividade:
o carnaval.

A Liesco como organização de governança em defesa da


cultura por meio do carnaval

É fevereiro, 2019, a batida contagiante e o samba-enredo em


alusão ao sagrado da Escola de Samba A Pesada (a campeã), vivenciados
várias vezes no barracão de ensaios, onde fomos recebidos com acolhida,
como num rito de preparação, nos fez cantar sobre o santo que vem do
céu: “São Jorge, o Santo Guerreiro da Fé”. Saravá!

190 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


Em outro momento, estamos todos vestidos de “pretas e pretos
velhos”, aglomerados entre desconhecidos que se tornaram conhecidos.
A ansiedade toma conta por não compreender direito “o que” e “como”
seria realizada nossa participação no desfile da nossa outra escola de
samba, Mocidade Independente de Nova Corumbá. Naquele momen-
to, num primeiro deslumbre, vimos com admiração a chegada de uma
gigantesca imagem de Yemanjá, orixá de elevada expressão popular res-
ponsável pelas águas do mar, que quase não conseguia transpor os cabos
públicos de energia elétrica da rua.
Assim se apresentava o conjunto da perfeição artística do concreto
aliado à qualidade e a importância da performance que os passistas e de-
mais participantes se cobravam para atender com esmero a todo o rigor
exigido para participar da competição ali ensejada.
Neste ínterim, nós como novos participantes do carnaval corum-
baense, ou carnaval pantaneiro, ou carnaval da fronteira, não havíamos
minimamente esperado por todo este comprometimento ardente e apai-
xonante expressado em tão pouco tempo de imersão.
A população pantaneira e seus mais de dez mil visitantes puderam
vivenciar a representação artesanal e artística de diversas culturas, que
permeia aspectos indígenas, religiosidades de origem africana, a vida do
homem sertanejo, o relacionamento do seu povo com o rio Paraguai,
tudo isso colorindo a rua Frei Mariano e avenida General Rondom da
cidade de Corumbá.

Por trás de um relato arrebatado por sentimento realizado pelos


autores deste capítulo ilustra-se a relação entre cultura e população pos-
sibilitando reflexão sobre a influência desta atividade festiva na susten-
tabilidade cultural do objeto.
Embora o carnaval de Corumbá tenha diversas atividades, com
destaque aos eventos realizados por bares e restaurantes da cidade, além
do desfile dos blocos, o carro chefe é o desfile das escolas de samba por
ser a maior e principal atração deste evento.
As escolas de samba são organizações musicais e recreativas que
se propõem principalmente a elaborar uma apresentação para o desfi-
le de carnaval (GOLDWASSER, 1975). A competição normalmente é

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 191


organizada por uma Associação ou Liga representativa das escolas de
samba, que definem os critérios de execução e normas para apresenta-
ção. A competição pode ser divida em grupos, como grupo especial e
de acesso, como é o caso do carnaval do Rio de Janeiro-RJ. Neste caso
o grupo especial é composto pelas principais escolas de samba e o de
acesso é o sucede, sendo que a cada ano, as menos pontuadas no grupo
especial acabam sendo rebaixadas e passam para o grupo de acesso e as
melhores do grupo de acesso passam para o grupo especial (BARBIERI,
2010; TURETA, 2011).
Da mesma forma, o Carnaval de Corumbá é composto agremia-
ções chamadas escolas de samba e reguladas pela Liga Independente
das Escolas de Samba de Corumbá, a Liesco. A competição não é divida
por grupos desde o ano de 2018, quando todas as agremiações passaram
a figurar em um grupo único. Está previsto para 2021 a competição vol-
tar a ter dois grupos: o Grupo Especial, composto pelas escolas de samba
que figurarem entre os 1º a 5º lugar do carnaval de 2020 e o Grupo de
Acesso para as demais.
A Liesco foi criada em 4 de dezembro de 2002 a partir da mobili-
zação de carnavalescos para fortalecer o evento em Corumbá. Segundo
José Martinez Neiva, entrevistado em 2015 por Nachif e Alves (2018), a
Liesco surge como agente de defesa dos direitos sociais, além de institu-
cionalizar as apresentações carnavalescas como festa popular.
Neste relato, os pesquisadores ainda reportam que o carnaval es-
tava pouco representado, contando apenas com duas agremiações: Vila
Mamona e A Pesada, muito devido ao sucesso dos carnavais de trios
elétricos baianos, que tocava samba percorrendo a rua Frei Mariano,
modelo empregado em Corumbá naquela época.
Em 2003 o cenário muda, despontam investimentos na passarela
do samba, surgem nova escolas de samba, aumentando a competição e,
por consequência, a qualidade das apresentações, alterando o carnaval
de Corumbá que era baseado no modelo baiano, para o modelo carioca
(NACHIF; ALVES, 2018).
Neste processo histórico, observamos que a criação da Liesco
possibilitou consolidar o carnaval corumbaense, que chegou a receber
aproximadamente 45 mil turistas em 2018, contribuindo com o comér-
cio e prestação de serviços e principalmente a legitimidade da cultura
local.

192 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


O evento como um todo é promovido pela Prefeitura Municipal
de Corumbá com apoio do Governo do Estado e Governo Federal que
oferecem a estrutura e infraestrutura necessária. Tem duração de 7 dias
com a apresentação dos blocos de carnaval e o desfile das escolas de
samba. O desfile é organizado pela Liesco e realizado em dois dias: no
domingo e segunda-feira, apresentando 5 escolas no primeiro dia e 5 no
segundo.
Atualmente participam da competição 10 escolas:
1. A Pesada
2. Acadêmicos do Pantanal
3. Caprichosos de Corumbá
4. Estação Primeira do Pantanal
5. Imperatriz Corumbaense
6. Império do Morro
7. MI Marquês de Sapucaí
8. Mocidade Independente da Nova Corumbá
9. Unidos da Major Gama
10. Unidos da Vila Mamona
Os critérios de avaliação das apresentações são em termos de pe-
nalidade: atendimento ao horário da concentração (reunião dos partici-
pantes para apresentação); cronometragem - visto que cada escola tem
no máximo 70 minutos para cumprir todo o percurso; dispersão com a
retirada das alegorias no final do desfile; e obedecimento das normas
regulamentares que tratam da composição de pessoal, roupas, fantasias,
artística e alegóricas, realização de propagandas aos jurados, proibição
de uso de animais e entrega de documentação (LIESCO, 2019).
O julgamento das apresentações é realizado por 18 membros po-
sicionados em cabines, os quais avaliam os quesitos: Bateria, Samba-
-enredo, Harmonia e Evolução, Enredo, Fantasia, Alegorias e Adereços,
Comissão de Frente, Mestre-sala e Porta-bandeira (LIESCO, 2019).
As reuniões da Liesco aconteciam no prédio do Instituto Luis de
Albuquerque, mas por conta da interdição do prédio para reforma, as
reuniões foram transferidas para outros locais, um deles é a Quadra da
Escola de Samba A Pesada, na Ladeira Cunha e Cruz que dá acesso ao
porto de Corumbá.
As reuniões são de caráter informativo e deliberativo, com a par-
ticipação dos presidentes e/ou vice-presidentes das escolas de samba ou

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 193


representante legal. Os membros da Liesco participam das reuniões,
com direito a voz e voto. Outros segmentos da sociedade podem parti-
cipar em reuniões específicas, mas não fazem parte da Liesco e, assim
sendo, não têm direito a voto.
Cabe aqui uma reflexão em termos de composição de conselho,
observamos que existe uma correlação positiva entre a participação dos
atores, ou stakeholders, e a qualidade da governança, que acaba por re-
fletir na imagem da organização, e seu respectivo valor, conforme discu-
tido por Siqueira (2018) e Waack (2018) ao entender que quando esta
diversidade é evidente na composição, reflete noções de ética e justiça,
especialmente quando esta participação é ativa.
Neste ponto, Robbins e Decenzo (2004) enfatizam a importância
da participação para efetivação das atividades propostas, visto que quan-
do os interessados tomam parte das decisões, ocorre maior engajamento
dos mesmos.
Portanto, um tema a se destacar é a ausência de uma maior diver-
sidade de stakeholders como partícipes do conselho da Liesco, integran-
do estes principais atores interessados como membros com direito a voz
e voto. Além disso, para contribuir nas questões culturais, sugerimos que
a composição do conselho seja efetivada por atores de diferentes institui-
ções, que não apenas das escolas de samba, e que estejam diretamente
envolvidas com assuntos culturais.
Embora seja comum a segregação de parte dos interessados na
tomada de decisão, como discutido por Waack (2018), infelizmente em
muitos casos vistos como pertubadores, distratores, etc., inserí-los neste
processo torna-se estratégia ímpar para atendimento dos objetivos e da
missão da Liesco.
Os encontros da Liesco tratam do regulamento, dos elementos do
desfile, quesitos, obrigatoriedades e formatos tradicionais de um desfile
de escola de samba, como exemplo: Ala de Baianas, Mestre-Sala e Porta-
Bandeiras, Adereços, Alegorias e suas concepções, Comissão de Frente,
cadência musical (velocidade da batida da Bateria), Harmonia (canto da
Escola), Evolução (desenvolvimento do desfile da Escola), Fantasias e
suas confecções, Enredo e Samba-Enredo (ou samba de enredo).
Além disso, os elementos culturais são assuntos recorrentes nestas
reuniões, sendo tais aspectos entrelaçados aos itens obrigatórios do des-
file, principalmente no Enredo (história a ser contada no teatro a céu

194 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


aberto), que serão apresentados cenograficamente na avenida durante
o desfile. É a proposta da escola apresentada ao público. Há ainda, o
release, apresentado à Liesco e à imprensa, que é uma prévia do desfile,
ou na verdade é o desfile escrito e descrito, que conta como a escola virá
para a avenida.
Em suma, é certo que o desfile não se traduz apenas pelo apa-
nhado de regramentos e componentes estanques que caracterizam as
escolas, lhes garantindo pontuações, mas nele emergem aspectos cul-
turais permeados pela arte, cores, composições, história e dança. Nesta
última, revelam-se suas diferentes expressões como o balé, samba de
terreiro, dança de salão. A musicalidade ressalta-se nos sambas-enredo
tocados e cantados. O teatro e cenografia, que neste aspecto torna-se de
difícil enumeração visto a diversidade de representações já realizadas.
A Costura delineando as formas por meio das fantasias. Artes plásticas
apresentadas nas alegorias ou carros alegóricos. As temáticas dos enre-
dos são diversas e fundamentadas na maioria dos casos na religiosidade,
literatura, cinema, infância, personalidades, natureza, lutas sociais, fol-
clore, história, etc.
No entanto, observamos que a cultura é objeto intrínseco das es-
truturas do carnaval e consequentemente da Liesco, visto que em suas
reuniões e regulamento não aparece de forma pontual e taxativa, posto
que é evidente e desnecessário haver tal prescrição formal. Ela pode
permear o propósito, princípios, missão, visão e valores da organização,
considerados importantes instrumentos da constituição da Liesco.
Formalmente estes instrumentos não estão descritos. Ainda que
informalmente percebidos, a prática que se estabelece por meio da coe-
rência entre o que é dito e realizado, pode viabilizar as noções de justiça,
confiança, integridade, compliance e imagem (BRANDÃO; PERAZZO;
RASO, 2017; NAKAMURA; NAKAMURA; JONES, 2019).
Apresentamos anteriormente a proposta de um modelo teórico
construido na Figura 1, no qual os aspectos culturais são a base para as
ações dos stakeholders que acabam por refletir as ações, valores e normas
da organização. No caso da Liesco e do Carnaval Corumbaense, ficou
evidente a força intrínseca da cultura como determinante das atividades
do carnaval, o que problematiza a necessidade ou não da participação
dos demais stakeholders que não os representantes das escolas de samba.
Assim, o próximo item de análise é de um quadro elaborado por

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 195


meio da prática percebida, composto pelas estruturas normativas da
Liesco, que apresentamos no Quadro 1.

Quadro 1. Estruturas normativas da Liesco.

Fonte: Pesquisa de campo.

Tais normativas observadas são informais e percebidas durante as


observações. Em relação aos objetivos deste trabalho, verificamos que
as questões culturais são relacionadas à projeção da Liesco quanto ao
fortalecimento do carnaval.
Se entendermos o carnaval como um aspecto cultural intrinsica-
mente ligado ao seu sentido, podemos dizer que carnaval traz em seu
valor semântico e enunciativo a própria cultura. Neste ponto, fortalece
ainda mais a tese de que a cultura é tão subentendida no contexto das
articulações comunicativas que dispensa sua representação formal.
Quanto à identidade, nos termos de Brandão, Perazzo e Raso
(2017), é formado pela combinação dos itens representados no Qua-
dro 1, e neste caso podemos identificar a Liesco como: organizador e
divulgador do carnaval, cujas regras de participação são estabelecidas de
forma democrática. Este é o “tom que vem de cima”, como apresentado
por este autores.
Ao estabelecer a identidade da Liesco, capturada nos discursos
observados, podemos verificar sua integridade ao comparar o que é dito

196 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


com o que é feito, como ensinado por Waack (2018).
A justiça percebida, confiabilidade, honestidade, conduta de ca-
ráter são possível de serem observadas por meio da representação de
sua identidade, das ações da organização, e sob estes aspectos pudemos
considerar que a governança da Liesco tem se realizado com presteza.
Corroboram com nossa afirmação a observação ao cumprimento
do regulamento durante os preparativos e execução do carnaval, o res-
peito às normas de forma fiel à descrição, tais como: início pontual dos
desfiles, cumprimento da ordem dos desfiles divulgada com antecedên-
cia em ano anterior, tempo de desfile igual para todas as escolas, bem
como exigências e obrigatoriedades iguais para todas as escolas, além
dos demais itens de avaliação.
O cumprimento das normas na íntegra, como no caso da Liesco,
amplia o processo de enforcement das regras e compliance, e possibilita
uma imagem consolidada na comunidade como representante e regu-
ladora do carnaval de Corumbá.
Ainda sobre esse ponto, conseguimos identificar um item impor-
tante para o compliance que é a segregação de funções e sua fiscaliza-
ção, especialmente na definição de regras e na formação do quadro de
juízes. Este último, definido no próprio regulamento do carnaval.
Por fim, os encantos da cultura representada no Carnaval de Co-
rumbá exigiu uma reorganização especialmente quando sofreu perda
significativa de importância em meados da década de 2000-2010, sendo
retomado com a criação da Liesco que vem se consolidando como prin-
cipal instituto de organização e promoção do evento.
Desde então, esta organização tem apresentado ações de gover-
nança que produzem efeitos na normatização das regras e procedimen-
tos, especialmente nos critérios de disputa da competição do desfile das
escolas de samba, definidas com a participação dos representantes de
todas as escolas credenciadas e antecipadamente divulgadas.

Conclusões

Corumbá, Mato Grosso do Sul, Brasil, terra da Chalana de Mario


Zan, das corumbelas, da onça pintada que transita pela ruas da cidade,
do ninho do tuiuiu na beira da estrada, do sarravulho e porque não terra

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 197


do melhor carnaval do Centro-oeste brasileiro. Neste celeiro de iden-
tidades, onde muitas vezes a realidade se mistura ao folclore, é que o
carnaval corumbaense se apresenta como representante da diversificada
cultura pantaneira.
Este carnaval que dura uma semana inteira de eventos, dentre eles
o desfile das escolas de samba, tem uma importância cultural, econô-
mica e social muito expressiva para a população de Corumbá e Ladário
que, além da participação dos órgãos públicos e patrocínios privados, é
organizado pela Liesco – Liga das Escolas de Samba de Corumbá por
meio de sua governança.
Diante disso, este capítulo procurou verificar até que ponto a go-
vernança da Liesco promove a cultura local. Assim, retomando o mode-
lo teórico estabelecido (aspectos culturais – stakeholders – organização),
temos por entendido que os aspectos culturais emergem da sociedade
e são tratados informalmente pela organização observada. A participa-
ção dos stakeholders se limita aos representantes das escolas de samba
participantes do carnaval. A última parte da análise, a organização, se
identifica como promotora do carnaval e tem se legitimado perante a
sociedade desta forma. Esta mesma organização, quando estabelecida
sob os requisitos de governança e compliance, ainda que sem a partici-
pação de variedade de stakeholders, assume poder de influenciadora na
retomada e na consolidação da cultura.
A teoria de governança utilizada para fundamentar este capítu-
lo estabelece a importância da participação de atores que não apenas
representantes de setores ou proprietários, permitindo um maior enga-
jamento para atendimento aos objetivos institucionais. Este é o ponto
com maior divergência em termos teóricos, que permite novas concep-
ções considerando este caso destacado.
A primeira das possibilidades é a limitação da teoria utilizada na
abrangência da área de atuação da Liesco, visto que trata principamente
de organizações que não atuam na cultura. As concepções teóricas aqui
não correspondem às práticas da Liesco.
A segunda possibilidade é relacionada à força do framework da
área de atuação, no caso observado, a cultura, estando intrínsicamente
presente, não precisando estar formalizada. Para esta possibilidade, estu-
dos em outras organizações com framework semelhante poderão trazer
evidências para colaborar com a teoria.

198 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


A terceira é propriamente uma limitação teórica de que a par-
ticipação de outros atores, que não sejam do core da organização,
não sejam tão importantes para os resultados. Neste caso, a partici-
pação dos stakeholders não diretores ou de entidades culturais acaba
por não atrapalhar. Diante disso, sugerimos a participação de atores
representantes de instituições culturais (ainda sem poder de voto) e a
verificação do resultado, tendo possibilidades de otimizar os resultados
e a Liesco se firmar ainda mais como protetora da cultura.
A diversidade na governança poderia, neste caso, atuar como pro-
motora da criatividade e correlacionar-se com resultados positivos, o
que agregaria novas possibilidades aos aspectos culturais adormecidos
ou fora do campo de percepção dos atuais envolvidos.
Concluindo, entendemos que a própria existência da Liesco como
promotora do evento festivo em parceria com entes públicos e escolas
de samba, estabelecendo regras e organizando a parte cultural e da dis-
puta, foi fundamental para que o carnaval corumbaense se fortalecesse
e se perpetuasse até o momento.

Referências

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o


contexto de François Rabelais. 6 ed. São Paulo: Hucitec, 2008.

BARBIERI, R. J. O. Para Brilhar na Sapucaí Hierarquia e Liminaridade


entre as Escolas de Samba. Textos escolhidos de cultura e arte populares, v.
7, n. 2, p. 183-198, 2010.

BRANDÃO, C. E. L.; PERAZZO, A.; RASO, N. Governança corporativa


e integridade empresarial: conceitos, atitude e prática. In: BRANDÃO,
C. E. L.; PERAZZO, A.; RASO, N. Governança corporativa e integridade
empresarial: dilemas e desafios. São Paulo: Saint Paul Editora, 2017, p.
23-34.

GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.

GOLDWASSER, M. J. O Palácio do Samba: Estudo Antropológico da


Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1975.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 199


LIESCO. LIGA INDEPENDENTE DAS ESCOLAS DE SAMBA DE
CORUMBÁ. Regulamento Específico do Desfile das Escolas de Samba da
Liesco – Carnaval 2020 – Grupo Único. Corumbá: Liesco, 2019.

MALINOWSKI, B. Objetivo, método e alcance desta pesquisa. In:


GUIMARÃES, A. Z. (Org.). Desvendando Máscaras Sociais. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1975.

NACHIF, D. A.; ALVES, G. L. O carnaval em Corumbá, Mato Grosso do


Sul. Patrimônio e Memória. São Paulo, Unesp, v. 14, n. 1, p. 280-299, 2018.

NAKAMURA, E. A. M. V.; NAKAMURA, W. T.; JONES, G. D. C.


Necessidade de Estrutura de ‘Compliance’ nas Instituições Financeiras.
Revista Gestão & Tecnologia, v. 19, n. 5, p. 257-275, 2019.

ROBBINS, S. P.; DECENZO, D. A. Fundamentos de administração:


conceitos essenciais e aplicações. 4 ed. São Paulo: Prentice Hall, 2004.

SIQUEIRA, A. Governança entre essência, aparência e resultados:


precisamos avançar! In: BRANDÃO, C. E. L.; FONTES FILHO, J.
R.; MURITIBA, S. N. (Orgs.). Governança Corportativa e Inovação:
Tendências e Reflexões. São Paulo: IBGC, 2018, p. 73-88.

SILVA, A. S. Samba e Negritude: práticas discursivas identitárias negras


em sambas de enredo de temática africana. Tese (Doutorado em Estudos
da Linguagem) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 255 f.
Natal, 2010.

SOUZA, J. C. O caráter religioso e profano das festas populares: Corumbá,


passagem do século XIX para o XX. Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 24, n. 48, p. 331-351, 2004.

WAACK, R. S. Stakeholders: Vitais, mas sub-representados nos


processos decisórios e na governança corporativa. In: BRANDÃO, C.
E. L.; FONTES FILHO, J. R.; MURITIBA, S. N. (Orgs.). Governança
Corporativa e Inovação: Tendências e Reflexões. São Paulo: IBGC, 2018,
p. 119-128.

TURETA, C. Práticas organizativas em escolas de samba: o setor de


harmonia na produção do desfile do Vai-vai. Tese (Doutorado em
Administração de Empresas) – Escola de Administração de Empresas da
Fundação Getúlio Vargas, 325 f. São Paulo, 2011.

200 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


Capítulo 10

DO GLOBAL AO LOCAL: A QUESTÃO


DOS RESÍDUOS SÓLIDOS EM
CORUMBÁ (MS)
Elisa Pinheiro de Freitas64

Introdução65

Do aparecimento dos primeiros seres humanos, na terra, há apro-


ximadamente 01 milhão de anos até meados do século XVIII, a popula-
ção global não havia ultrapassado a marca dos 01 bilhão de habitantes
(GEORGE, 1961; ROSS, 1995; FREITAS, 2013). No entanto, a partir
da era industrial, tendo como locomotiva a Inglaterra dos anos de 1750,
o mundo ingressou numa revolução econômica, social, política e cultu-
ral sem precedentes na história da humanidade e um dos efeitos imedia-
tos na nova forma de produzir mercadorias – que se dava nas unidades
fabris e com o emprego intensivo de mão de obra – foi o adensamento
populacional nas cidades, fato que concorreu para o fenômeno da urba-
nização (BORGES; MORAES, 2005; FREITAS JUNIOR; FREITAS,
2018).
Sobre o processo acelerado da urbanização, o relatório da Comis-
são Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD)
havia apontado no início da década de 1990 que

[...] em apenas 65 anos, a população urbana do mundo em de-


senvolvimento decuplicou, passando de aproximadamente 100
milhões em 1920 a 1 bilhão hoje. Em 1940, de cada 100 pessoas,
uma vivia em cidades com 01 milhão ou mais de habitantes; em
1980, isto ocorria com uma em cada 10. De 1985 até o ano 2000,
as cidades do Terceiro Mundo poderão abrigar mais de 750 mi-
64. Agradeço os contributos do bolsista Leandro Pereira Santos, do Programa Institucional de Iniciação
Cientifica (CNPq) e de Rafael Rocha, do Programa Institucional de Iniciação Científica Voluntária. Ambos
acadêmicos do Curso de Geografia do Campus do Pantanal da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul (CPAN-UFMS).
65. O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul – UFMS/MEC – Brasil.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 201


lhões de pessoas. Isto indica que, nos próximos anos, o mundo em
desenvolvimento precisa aumentar em 65% sua capacidade de
proporcionar infraestrutura, serviços e moradias urbanos apenas
para manter as condições atuais, quase sempre precárias (CM-
MAD, 1991, p. 18).

Como se nota, em menos de três séculos, a população mundial


saltou de 01 bilhão para 06 bilhões de pessoas (BERMAN, 2005; HOU-
TART, 2010). E, de acordo com as projeções da Organização das Na-
ções Unidas (ONU), em 2100, a população mundial poderá atingir a
marca dos 11 bilhões. Convém salientar que não foi apenas a população
mundial e a urbanização que cresceram numa velocidade sem prece-
dentes históricos a partir da era industrial.
Os estudos realizados pela Organização Não Governamental
(ONG) Internacional Geosphere-Biosphere Programme (IGBP) mos-
traram que a ação humana sobre a Gaia66, articulada com a globalização,
transformou o século XX numa era antropocênica. Desde o término da
Segunda Guerra Mundial (1945) nota-se, em nível global, o progressivo
aumento: a) do investimento estrangeiro direto em diferentes partes do
globo; b) do consumo de fertilizantes; c) de veículos automotores; d) do
consumo de papel; e) de linhas de telefones entre outros (FREITAS,
2013).
O crescente consumo de mercadorias, sobretudo, nos países ricos,
centrais e desenvolvidos, intensificou a produção de resíduos sólidos, o
aumento da poluição e a destruição dos recursos naturais em todo o glo-
bo (QUAINI, 1979; MORAES E COSTA, 1984; BORGES; MORAES,
2005; GOMES et. al., 2014). Não obstante, um dos alertas mais contun-
dentes sobre a intensa degradação do ambiente provocado pelas ações
humanas veio com a publicação do livro Primavera Silenciosa (1962)
escrito pela Biologista americana Rachel Carson.
A referida pesquisadora detectou que a intensa utilização do pes-
ticida Dicloro-Difenil-Tricloroetano (DDT) provocava a redução da
natalidade das aves, uma vez que os ovos ficavam mais sensíveis e se
quebravam com maior facilidade. Ademais, a ampla utilização do Clo-
rofluorcabono (CFC) em aerossóis e em gases para refrigeração concor-
reu para a redução da camada de ozônio, responsável por proteger a ter-
66. “Ao referir-se à natureza, os gregos de antigamente tratavam-na por Gaia, nome carinhoso dado a um ser
vivo, palpitante e, acima de tudo, atuante” (KLOETZEL, 1994, p. 15).

202 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


ra contra os raios Ultra Violeta (UV), raios estes altamente prejudiciais
para a saúde humana (CMMAD, 1991; KLOETZEL, 1994; LAGO,
2006; HOUTART, 2010).
A chuva ácida, a mudança no uso da terra, a poluição das águas
dos rios, o acúmulo de gás carbono na atmosfera, a destruição de flores-
tas, a extinção de espécimes animais e vegetais, o acúmulo de resíduos
sólidos e o descarte incorreto daqueles, entre outros desastres ambien-
tais, foram se agravando, sobretudo, nos países ricos e industrializados.
Os movimentos ecológicos dos anos de 1960 e 1970, portanto, se consti-
tuíram com maior intensidade nos países centrais, ricos e desenvolvidos,
em decorrência:

[...] das consequências negativas da industrialização, como polui-


ção, tráfego e barulho, terem passado a afetar a maior faixa da
população dos países ricos – a classe média, cuja educação e cujo
grau de liberdade permitiam explorar alternativas políticas para
expressar sua insatisfação. A classe média nas sociedades mais ri-
cas, após vinte anos de crescimento ininterrupto, durante os quais
haviam sido supridas as suas necessidades básicas nas áreas de
saúde, habitação, educação e alimentação, estava pronta a alterar
suas prioridades para abraçar novas ideias e comportamentos que
alterassem diretamente seu modo de vida (LAGO, 2006, p. 28).

Além disso, os problemas ambientais são fenômenos que transcen-


dem as fronteiras dos países, exigindo solução conjunta para a dirimi-los:

[...] a deterioração das terras áridas leva milhões de refugiados am-


bientais a transpor as fronteiras de seus países. O desflorestamento
na América Latina e na Ásia vem provocando mais inundações,
com danos sempre maiores aos países situados em áreas mais bai-
xas e no curso inferior dos rios. A chuva ácida e a radiação nucle-
ar ultrapassaram as fronteiras da Europa. No mundo todo, estão
ocorrendo fenômenos similares, como o aquecimento global e a
perda de ozônio. Produtos químicos perigosos, presentes em ali-
mentos comercializados internacionalmente, são eles próprios
comercializados internacionalmente. No próximo século, pode-
rão aumentar muito as pressões ambientais que geram migra-
ções populacionais, ao passo que os obstáculos a essa migração
poderão ser ainda maiores do que hoje (CMMAD, 1991, p. 6,
grifo nosso).

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 203


A publicação do livro The limits of grown (1972), patrocinado pelo
Clube de Roma, levou a questão ambiental a ter grande impacto polí-
tico internacional e acelerou as discussões internacionais sobre o tema.
O fato da acumulação do capital vir a ficar comprometida, no futuro,
caso não se achasse solução para reduzir os efeitos da poluição e da des-
truição do meio ambiente, desencadeou grande preocupação nas elites
dos países ricos e industrializados (HOUTART, 2010). Assim, em junho
de 1972, a ONU realizou na cidade de Estocolmo (Suécia) a Primei-
ra Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano
(CNUMAH).
A Conferência supracitada refletiu sobre os impactos do rápido
progresso ocasionado pela industrialização, ciência e tecnologia bem
como acerca dos níveis perigosos da poluição da água, do ar, da vida na
terra, dos seres vivos; os grandes desequilíbrios ecológicos da biosfera
entre outros. Também, identificou que os problemas ambientais nos pa-
íses pobres, periféricos e semiperiféricos do sistema internacional eram
ocasionados pelo baixo desenvolvimento a que estavam submetidos.
Portanto, caberia aos países ricos, centrais e desenvolvidos “esforçar-se
para reduzir a distância que os separava dos países em desenvolvimento”
(CNUMAH, 1972).
Por fim, a CNUMAH proclamou um conjunto de 26 princípios
e o Plano de Ação para o Meio Ambiente Humano contendo 119 reco-
mendações, com vistas a orientar a ação dos países quanto aos problemas
ambientais. Em linhas gerais, os princípios enfatizavam a necessidade
da cooperação internacional para a resolução dos problemas ambientais
e a utilização do planejamento racional por parte dos países para apri-
morar os usos dos recursos e assegurar a manutenção dos ecossistemas.
Em 1983, a ONU convidou Gro Harlem Bruntland, ex-primeira
ministra da Noruega, para coordenar a Comissão Mundial sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD). A CMMAD elaborou um
amplo relatório, publicado em 1987. Esse documento apresentou os
problemas relacionados à degradação ambiental; mostrou a necessidade
de solucioná-los para que as gerações futuras pudessem ter asseguradas
suas condições de existência e aduziu sobre possibilidade de articular
desenvolvimento econômico com o uso equilibrado dos recursos natu-
rais (HOUTART, 2010; TRENTINI et. al., 2010). Assim, a Comissão
ao elaborar o relatório Nosso Futuro Comum (1987), teve por objetivo
mostrar que havia possibilidade de

204 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


[...] uma nova era de crescimento econômico, que tem de se
apoiar em práticas que conservem e expandam a base de recursos
ambientais. E acreditamos que tal crescimento é absolutamente
essencial para mitigar a grande pobreza que se vem intensificando
na maior parte do mundo em desenvolvimento (CMMAD, 1991,
p. 1).

A Comissão de Bruntland buscou dar maior ênfase para as áreas


vinculadas à população, à segurança alimentar, à extinção de espécies e
esgotamento de recursos genéticos, à energia, à indústria e aos assenta-
mentos humanos, ou seja, as cidades. Além disso, o relatório propôs um
novo paradigma para o desenvolvimento:

[...] a humanidade é capaz de tornar o desenvolvimento susten-


tável de garantir que ele atenda as necessidades do presente sem
comprometer a capacidade de as gerações futuras atenderem
também às suas. O conceito de desenvolvimento sustentável tem,
é claro, limites – não limites absolutos, mas limitações impostas
pelo estágio atual da tecnologia e da organização social, no to-
cante aos recursos ambientais, e pela capacidade da biosfera de
absorver os efeitos da atividade humana (CMMAD, 1991, p. 9).

Pode-se afirmar que a CNUMAH e o relatório de Bruntland cons-


tituíram-se enquanto marcos da nova ordem, uma vez que colocaram a
questão ambiental na agenda política do sistema internacional (LAGO,
2006; HOUTART, 2010; TRENTINI et. al., 2010). E o desenvolvimen-
to sustentável tornou-se uma das novas feições da geopolítica contempo-
rânea (BECKER, 2006).
Em 1992, o Brasil, especificamente a cidade do Rio de Janeiro,
sediou a II Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e De-
senvolvimento (CNUMAD). Ao todo, 172 países (108 foram represen-
tados pelos próprios chefes de estados) se tornaram signatários da Agen-
da 21 Global. Esta consiste em um documento que contém diretrizes,
organizadas em 40 capítulos (600 páginas), cujo objetivo é subsidiar os
países a tomarem medidas com vistas a alcançarem o desenvolvimento
sustentável.
Além da Agenda 21, durante a Conferência foi criada a Comis-
são para o Desenvolvimento Sustentável (CDS) que teria a função de
acompanhar a implantação da Agenda 21. Também foram elaboradas
a Carta da Terra, a Declaração de Princípios sobre Florestas e estabele-

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 205


ceram-se três Convenções: Biodiversidade, Desertificação e Mudanças
Climáticas (LAGO, 2006). Para Ribeiro (1995), o surgimento de uma
ordem ambiental em nível global envolveu quatro aspectos: a) o discur-
so sobre a preservação de vida; b) a ameaça das mudanças climáticas; c)
a pobreza e d) a degradação ambiental.
Cabe destacar também que durante a realização da Conferência,
as ONGs e a sociedade civil não tinham o poder de decisão. Só podiam
fazer lobby. Mas, a participação delas, através da Cúpula dos Povos,
havia sido significativamente ampliada e legitimada em comparação
à Conferência de Estocolmo. O que se viu também na II CNUMAD
foi à discussão entre os ambientalistas versus os tecnoambientalistas. O
primeiro grupo questionava a forma de reprodução da vida, propunha
medidas para o controle populacional entre outros assuntos. O segundo
tentava mostrar que era possível acumular, crescer e se desenvolver sem
danificar o meio ambiente (LAGO, 2006).
Transcorridos dez anos da realização da Conferência do Rio, a
ONU, com o objetivo de fazer uma revisão das ações que haviam sido
firmadas em 1992, convocou a Rio + 10 ou a Cúpula Mundial sobre o
Desenvolvimento Sustentável. Johanesburgo, capital da África do Sul
foi à cidade-sede. De 1992 a 2002, constituiu-se num período em que os
fluxos financeiros, de bens e mercadorias haviam se elevado para além
dos níveis históricos. Embora a Rio 92 tenha deixado um legado impor-
tante para as discussões ambientais, a questão é que a globalização e não
o desenvolvimento sustentável polarizou os debates e concorreu para a
difusão dos valores e padrões de vida ocidental (LAGO, 2006).
Em dezembro de 2009, através da Resolução 64/236 aprovada du-
rante uma Assembleia da ONU, foi decidida a realização da Rio + 20 ou
a Conferência das Nações Unidas Sobre Desenvolvimento Sustentável
(CNUDS). Nessa seria discutido “o desenvolvimento sustentável ao ní-
vel mais alto possível” (ONU, 2012). A realização da Conferência con-
tou com uma grande participação da sociedade civil, dos movimentos
sociais, das ONGs entre outras entidades (LAGO, 2012). Cabe destacar
que os dois grandes temas da CNUDS foi o da Economia Verde – no
âmbito do desenvolvimento sustentável e Erradicação da Pobreza – bem
como o da Governança Internacional para o Desenvolvimento Susten-
tável.
Economia Verde e erradicação da pobreza, ambos os temas foram
basilares para a agenda da Conferência, porque possibilitou a articula-
ção dos três pilares do desenvolvimento sustentável: a) economia; b) so-

206 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


ciedade e c) ambiente (LAGO, 2012; SOARES, 2012). A Rio + 20 con-
tou com a participação de 193 países. As delegações que participaram
da Conferência aprovaram o documento final O Futuro que queremos.
Este possui 59 páginas e é constituído por seis seções: I – Nossa visão
comum; II – Renovação do compromisso político; III – A economia
verde no contexto do desenvolvimento sustentável e a erradicação da
pobreza; IV – Marco institucional para o desenvolvimento sustentável;
V – Marco para a ação e o seguimento e VI – Meios de execução. Em
linhas gerais, o documento supracitado não trouxe inovações em rela-
ção aos documentos que foram formulados nas Conferências anteriores.
O quadro 1 apresenta uma síntese das principais Conferências das
Nações Unidas para o Meio Ambiente com o seus respectivos avanços e
recuos e como foi a atuação do Brasil em cada uma delas:

Quadro 1 - Síntese das Conferências Mundiais sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento

Elaboração: Autora

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 207


Dentre os muitos problemas ambientais discutidos amplamente
no decurso das Conferências, a produção cada vez maior de resíduos
sólidos e o descarte daqueles, ainda constituem um desafio para todos os
que estão envolvidos com a formulação de políticas públicas cujo foco é
conciliar a ampliação das infraestruturas urbanas (com o intuito de pro-
ver a salubridade das cidades) com a redução da pobreza, assegurando
adequada utilização dos recursos naturais (SALLES, 2003; BORGES;
MORAES, 2005; PAIVA BRITO et. al.; GOMES et. al., 2014).
Mas como atingir o equilíbrio entre o consumo de bens sem au-
mentar a pressão sobre os recursos naturais? Como prover a expansão
das infraestruturas urbanas (moradia; recolha, disposição e descarte ade-
quados dos resíduos sólidos; construção de galerias para o esgotamento
sanitário etc.) e da qualidade de vida sem comprometer os recursos das
gerações futuras? Na próxima seção serão apresentadas algumas dispo-
sições normativas relativas à Política Nacional de Saneamento Básico
(PNSB) bem como à Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS),
ambas delineadas pelo estado brasileiro, em consonância com as dis-
cussões ocorridas em âmbito internacional sobre a proteção do meio
ambiente. E os desdobramentos daquelas nas escalas estaduais e muni-
cipais.

PNSB e PNRS: avanços normativos das políticas públicas


para o saneamento básico e resíduos sólidos

Salles (2003), Borges e Moraes (2005), Paiva Brito et. al (2012) e


Rückert (2014) apresentaram importante histórico sobre as políticas de
saneamento básico implementadas no Brasil. Dos primórdios do Impé-
rio, passando pela República Velha, pelo período militar até o advento
da redemocratização com a publicação da Carta de 1988, depreende-se
que, não raro, prevaleceu a visão tecnocêntrica em detrimento de uma
abordagem intersetorial e interdisciplinar para o setor.
Sob os auspícios do Estado Autoritário Burocrático que vigorou
no Brasil entre 1964-1985, as forças armadas nacionais, apoiadas por
setores da burguesia industrial, assumiram o papel de planejadores ra-
cionais e promotores da inovação tecnológica. Becker e Egler (1994,
p. 125) destacaram dois aspectos da ação do Estado pós-1964: “a) o re-

208 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


conhecimento de que apenas a indústria de bens de capital não era
suficiente para garantir a soberania nacional e que requeria também a
autonomia tecnológica; b) a instrumentalização do espaço como base
para a acumulação e a legitimação do Estado”.
Fazer avançar o processo de industrialização no Brasil com base
nos setores estratégicos (aeronáutico, bélico, nuclear, energético e in-
formacional) constituiu em um dos objetivos do Estado Burocrático
Autoritário. Para tanto, era necessário operacionalizar o território, do-
tando-o de maior infraestrutura. Nesse sentido, uma das heranças do
regime autoritário militar foi o investimento na infraestrutura do territó-
rio tornando-o mais fluído tanto para a população quanto para o capital
(CASTRO, 2005).
Foi dentro do contexto descrito acima que se implementou o Pla-
no Nacional de Saneamento (PLANASA), considerado o maior plano
de saneamento da história brasileira até aquele momento. No entanto, o
PLANASA reforçou a concepção fragmentada em relação ao saneamento
básico e concorreu para o avanço das desigualdades sociais, uma vez que

[...] se por um lado o Planasa ficou conhecido como o grande mar-


co do saneamento brasileiro, pela significativa elevação dos índices
de cobertura de serviços de água e, em menor grau, de esgotos,
por outro lado, é de responsabilidade desse plano a exacerbação da
exclusão sanitária, visto que parcelas destituídas de poder econômi-
co e representação política forte, residentes nas favelas e periferias
urbanas e também nas áreas rurais, estiveram fora do alcance dos
resultados (PAIVA BRITO et. al.,2012, p. 69-70).

Com o advento da Constituição cidadã de 1988 e da redemocrati-


zação do Brasil, a questão do saneamento básico passou a ser compreendi-
da como algo a ser providenciado pelos setores privados e não como sendo
um componente essencial do direito à saúde e a qualidade de vida. Ficava
a cargo das Companhias Estaduais de Saneamento (CESBs) a viabiliza-
ção da oferta dos serviços para os estados e municípios. Contudo, aqueles
que tinham menos de 20 mil habitantes não eram devidamente atendidos
pelas CESBs e as prefeituras se eximiam de prover saneamento para seus
munícipes (BORGES; MORAES, 2005; PAIVA BRITO et. al., 2012).
Entre 2003 e 2007 notam-se mudanças consideráveis para o se-
tor como, por exemplo, com a criação do Ministério das Cidades. Este
passou a contar com a Secretaria Nacional de Saneamento Ambien-

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 209


tal (SNSA). Ressalta-se que a questão do saneamento básico passou a
ser pensada de forma mais integrada conjugada com os princípios do
desenvolvimento sustentável e visando o aprimoramento dos espaços
citadinos. Em outubro de 2003, foi realizada a primeira Conferência
Nacional das Cidades. Assim, o Ministério das Cidades significou:

[...] algo de novo na cena política brasileira, pois expressou uma


resposta efetiva à luta e demandas dos movimentos sociais em
defesa de uma política urbana unificada e coerente com os prin-
cípios da reforma urbana. Na sua estrutura o Ministério das Cida-
des colocava no mesmo plano as áreas de habitação, saneamento,
programas urbanos, transportes, mobilidade e acessibilidade, em
um ensaio intersetorial, ao menos dentro do contorno das políti-
cas urbanas (PAIVA BRITO et. al., 2012, p. 71).

Em 2007, foi sancionada a Lei n. 11.445 que estabeleceu as Dire-


trizes Nacionais para o Saneamento Básico. Esse marco normativo, en-
tre outras medidas, definiu em seu artigo 3º, inciso I que o Saneamento
Básico corresponde “a conjunto de serviços, infraestruturas e instalações
operacionais de: a) abastecimento de água potável; b) esgotamento sa-
nitário; c) limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos; d) drenagem
e manejo das águas pluviais urbanas”. Para melhor compreender essa
definição proposta pela lei supracitada, elaborou-se o organograma con-
tendo a designação dos serviços de saneamento e as respectivas ativida-
des relacionadas a cada um deles:

Figura 1 – Organograma sobre a definição de Saneamento Básico de acordo com


Lei n.11.445/2007

Elaboração: Autora

210 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


O capítulo IX da Lei n. 11.445 é composto pelos artigos 48º, 49º,
50º, 51º, 52º e 53º que, em conjunto, estabelecem a Política Federal de
Saneamento Básico, sendo que por meio do artigo 52º, inciso I ficou
implementado a Política Nacional de Saneamento Básico (PNSB). De
acordo com Paiva Brito et. al., (2012, p. 72-73):

[...] a aprovação da Lei 11.445/2007 (LDNSB), que define as di-


retrizes nacionais, no marco das quais deverão ser prestados os
serviços de saneamento, pode ser considerada uma referência
fundamental para a construção de um modelo de gestão mais
integrado e intersetorial, tanto na dimensão interna ao campo do
saneamento como na dimensão externa ao setor. Considerando
a dimensão interna, destaca-se a adoção, pela Lei 11.445/2007,
de uma definição ampla, entendendo como saneamento básico
os serviços de abastecimento de água, esgotamento sanitário, o
manejo das águas pluviais urbanas e o manejo de resíduos sóli-
dos. Por outro lado, considerando a dimensão externa ao campo
do saneamento, a Lei busca a intersetorialidade, no sentido mais
amplo das interfaces com as outras políticas.

Cabe informar que a implementação das novas Diretrizes nacio-


nais para o saneamento básico foi precedida de muitas disputas, sobre-
tudo, por parte dos representantes das CESBs que insistiram em manter
a concepção de que o saneamento básico deveria ficar restrito apenas ao
abastecimento de água e ao esgotamento sanitário. Diante disso, pode-
-se afirmar que uma lei que teve como eixo norteador o entendimento
de que o saneamento também deveria abarcar a adequada disposição
dos resíduos sólidos bem como o manejo das águas pluviais pode ser tida
como um avanço importante para possível concretização de políticas
públicas para o setor.
Destaca-se, dentre os aspectos importantes do PNSB, a formula-
ção de três programas cuja base diz respeito à integralidade, equidade e
universalidade. Assim, o Programa Saneamento Básico Integrado teria
por meta diminuir o déficit em dados serviços de saneamento abrangen-
do desde regiões metropolitanas até municípios de pequeno e médio
porte. O Programa Saneamento Rural buscaria prover as populações
rurais, indígenas e comunidades quilombolas com os serviços de sanea-
mento e o Programa Saneamento Estruturante ofereceria suporte para
melhorar a gestão na prestação do serviço. Para execução destes pro-

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 211


gramas à cooperação entre os entes federados, a saber, união, estados e
municípios seriam fundamentais.
No entanto, observa-se que no Brasil, as políticas públicas estão
condicionadas a governos, as disputas entre os agentes públicos e pri-
vados, as instâncias burocráticas, entre outras. Todos esses fatos obsta-
culizam a eficácia e a efetividade das ações voltadas para o setor como
apontaram Paiva Brito et. al.(2012, p.79):

[...] pode-se dizer que a dinâmica enfrentada nos últimos anos


em direção a um movimento de reforma da política nacional do
setor de saneamento exprime o complexo campo de batalhas que
contrapõe interesses e esbarra em inércias institucionais. Essas
dificuldades são caudatárias de importante jogo de disputas em
torno do que deve vir a ser o saneamento, no contexto mais amplo
do processo de acumulação capitalista. Nesse jogo, o saneamento
aflora ora com uma visão e um discurso de um bem de mercado,
que deve estar sujeito a suas regras e à lógica do capital, ora como
de um direito humano fundamental, pressupondo o princípio da
não exclusão de parcelas da população sem capacidade de paga-
mento pela prestação dos serviços, bem como o papel do Estado
na garantia da provisão dos serviços para esses segmentos. Nesse
sentido, como política pública estruturadora do território e ne-
cessariamente financiada pelo Estado, condensador dos conflitos
de classes no capitalismo, o saneamento aglutina um conjunto
antagônico de interesses.

No bojo das discussões que o PNSB suscita, pode-se aferir que um


dos avanços verificados na questão do saneamento básico está relacio-
nado ao marco regulatório inaugurado com a promulgação da Lei n.
11.445/2007. Como se nota, a efetividade prática do PNSB está subordi-
nada ao emaranhado de interesses público-privados e as concepções que
direcionam os diferentes atores que atuam na formulação das políticas
públicas. Como também asseveraram Borja e Moraes (2005) na con-
temporaneidade há, basicamente, duas visões que orientam as políticas
públicas sobre o saneamento básico: aquela que o compreende como
direito social e a que o concebe como uma mercadoria.
Já em relação ao Plano Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS),
instituído pela Lei n. 12.305/2010, se articula ao PNSB na medida em
que a limpeza urbana e o manejo dos resíduos sólidos constituem ser-

212 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


viços que abarcam a totalidade do saneamento básico. Porém, com o
intuito de assegurar e ampliar a salubridade nos espaços urbanos e con-
tando com o suporte do Ministério do Meio Ambiente (MMA)

[...] a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) reuniu um


conjunto de princípios, diretrizes, objetivos, instrumentos, metas
e ações a serem adotadas pela União, isoladamente ou em par-
ceria com os estados, o Distrito Federal, os municípios e os entes
privados. Seu objetivo foi construir uma gestão integrada dos re-
síduos sólidos, ambientalmente adequada (GOMES et. al., 2014,
p. 98).

Conforme o artigo 3º, inciso XVI da Lei n. 12.305/2010, resíduo


sólido consiste em

[...] material, substância, objeto ou bem descartado resultante


de atividades humanas em sociedade, a cuja destinação final se
procede, se propõe proceder ou se está obrigado a proceder, nos
estados sólido ou semi sólido, bem como gases contidos em re-
cipientes e líquidos cujas particularidades tornem inviável o seu
lançamento na rede pública de esgotos ou em corpos d’água, ou
exijam para isso soluções técnica ou economicamente inviáveis
em face da melhor tecnologia disponível.

O PNRS normatiza todos os procedimentos relacionados aos pro-


cessos de gestão dos resíduos sólidos, tais como: sua não geração; sua
redução; sua separação das frações e seu processamento em usinas de
reciclagem; a adoção de ações para recuperar a energia neles contida;
e, quando a reciclagem não for possível, seu tratamento e sua disposição
com tecnologia e com custos acessíveis (GOMES, et. al., 2014, p. 98).
Desse modo, pode-se afirmar que o PNRS constituiu um importante
marco regulatório para lidar com o progressivo aumento da produção de
lixo no Brasil no contexto do sistema econômico capitalista.
Mas como o município de Corumbá, em Mato Grosso do Sul,
tem implementado essas normativas e diretrizes, especialmente, no que
tange a disposição dos resíduos sólidos? Corumbá, futuramente, poderá
vir a ser paradigma de cidade sustentável e saudável? Essas questões se-
rão abordadas na próxima seção.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 213


Corumbá (MS): da emergência do saber higienista à imple-
mentação do PNRS

A constituição de Corumbá (MS) na condição de um pequeno


núcleo urbano nos finais do século XVIII está atrelada a sua posição
geográfica assaz estratégica do ponto de vista militar. Localizada “à
margem direita do rio Paraguai, por um capricho da natureza, Co-
rumbá, após a Guerra do Paraguai (1864-1870), foi elevada à condi-
ção de cidade e, como tal, vive(u) as tensões e as contradições carac-
terísticas da expansão do capitalismo mundial” (FREITAS, 2015, p.
244).
De acordo com Souza (2008) que historiou sobre a formação da
Cidade Branca – outra designação para Corumbá pelo fato deste muni-
cípio estar assentado numa extensa área de rocha calcária da formação
Bocaina/Araras – aquele sertão cosmopolita viu emergir o saber higie-
nista, no final do século XIX, em

[...] virtude das epidemias (varíola, febre amarela, febre tifóide


etc.). A criação do hospital objetivou controlar o tratamento dos
doentes, uma vez que as famílias não comunicavam às autoridades
a gravidade do estado de saúde de seus familiares. Foram tomadas
medidas profiláticas para conter o avanço das enfermidades, tais
como, impedir que os corpos fossem lançados ou abandonados
no rio. Afinal, o discurso de cidade civilizada se pautava na con-
cepção de uma cidade igualmente higienizada (FREITAS, 2015,
p. 245).

Sob a influência das cidades do Rio de Janeiro, Buenos Aires e até


mesmo de Paris, cidade luz, o poder público, em Corumbá, liderou na
época

[...] a organização do espaço citadino, de modo a livrá-lo da in-


salubridade. Foram construídas galerias subterrâneas para fazer
fluir o esgoto bem como a água potável, pois do que adiantaria
prédios monumentais, do ponto de vista arquitetônico, se a cidade
prescindia de saneamento básico? (FREITAS, 2015, p. 246).

Historicamente, nota-se que a Cidade Branca buscou gerir o es-


paço citadino, sobretudo, o da área portuária. O objetivo era evitar as

214 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


moléstias provenientes da insalubridade das águas e que acometiam
a população dos diferentes estratos socioeconômicos (SOUZA, 2008;
FREITAS, 2015). Convém ressaltar que pelo fato de Corumbá ser uma
cidade portuária e que nos finais do século XIX recebia navios estran-
geiros provenientes da Europa, da Argentina etc., teve que lidar com os
mesmos problemas de saúde pública que ocorriam nas grandes aglome-
rações urbanas.
No final da década de 1970, com a constituição do estado de
Mato Grosso do Sul (MS) e sob o paradigma do PLANASA, teve-se
a criação da Empresa de Saneamento de Mato Grosso do Sul (SA-
NESUL). Esta ficou responsável por prover abastecimento de água
e esgotamento sanitário para os municípios que compunham o esta-
do. Atualmente, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) a população absoluta de MS é de 2,62 milhões
de habitantes. E conforme os dados disponibilizados no sítio da SA-
NESUL, a população atendida com abastecimento de água é de 1,38
milhões, ou seja, metade da população de MS ainda não dispõe de
água tratada.
Tomando por base os estudos desenvolvidos por Salles (2003), Ma-
tias (2014), Gonçalves (2015), dados do Atlas de Saneamento (IBGE,
2011) e os resultados preliminares de pesquisas em curso67 acerca do
acesso aos serviços de saneamento básico (abastecimento de água po-
tável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e disposição dos resíduos
sólidos e drenagem das águas pluviais) em Corumbá, temos o seguinte
cenário:

A taxa de mortalidade infantil média na cidade é de 17,48 para


1.000 nascidos vivos. As internações devido a diarreias são de 1,5
para cada 1.000 habitantes. Comparado com todos os municípios
do estado, fica nas posições 16 de 79 e 34 de 79, respectivamente.
Quando comparado a cidades do Brasil todo, essas posições são de
1460 de 5570 e 1887 de 5570, respectivamente. Apresenta 19.3%
de domicílios com esgotamento sanitário adequado, 96.6% de do-
micílios urbanos em vias públicas com arborização e 33.4% de
domicílios urbanos em vias públicas com urbanização adequada
(presença de bueiro, calçada, pavimentação e meio-fio). Quando
67. Atualmente integramos o projeto de pesquisa Urbanização e abastecimento de água no Mato Grosso
do Sul: um estudo em perspectiva histórica sob a coordenação do Prof. Dr. Fabiano Quadros Rückert com
aportes financeiros do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 215


comparado com os outros municípios do estado, fica na posição
33 de 79, 30 de 79 e 3 de 79, respectivamente. Já quando compa-
rado a outras cidades do Brasil, sua posição é 3672 de 5570, 639
de 5570 e 1041 de 5570, respectivamente (IBGE, 2010).

Conforme os dados do censo de 2010, realizado pelo IBGE, ape-


nas 19,3% dos munícipes dispõem de esgotamento sanitário adequado,
fato que concorre para a não redução da taxa de mortalidade infantil.
Além disso, apenas 33,4% dos domicílios urbanos contam com a ade-
quada pavimentação. Como concluiu Matias (2014, p. 43):

De acordo com o Relatório de Avaliação do Plano Diretor Parti-


cipativo de Corumbá, aprovado em 2006, (...), a questão ambien-
tal deveria ser tema central deste documento. Porém, a questão
não foi contemplada, tampouco os graves problemas ambientais
existentes, principalmente em relação ao déficit elevado de sane-
amento básico, fato que nos últimos anos vem sendo minimizado
através dos projetos vinculados ao Plano de Aceleração do Cres-
cimento (PAC).

2012 foi o ano estipulado pela Lei n.12.305/2010 para a elabo-


ração do Plano Municipal de Gestão Integrado do PNRS. No entan-
to, em MS, assim com em outros entes da federação, os planos ainda
estão em processo de elaboração. E comparando os dados obtidos
por Salles (2003) com os de Gonçalves (2015) observou-se que, em
Corumbá, houve o incremento na produção de lixo no interstício de
12 anos.
Segundo Salles (2003, p. 99), no ano de 2003, haviam sido ge-
radas 43 (quarenta e três) toneladas/dia de resíduos sólidos urbanos,
sendo quase 100% da população atendida com a coleta urbana. Esta
era realizada durante três vezes na semana. A disposição final dos
resíduos se dava no aterro sanitário controlado e fora do perímetro
urbano. Na ocasião, o serviço público de limpeza era terceirizado
para a empresa Locapavi e não havia programas de educação am-
biental nas escolas nem projetos voltados para a comunidade (SAL-
LES, 2003). Na figura 2, pode ser observada a localização do aterro
sanitário, em Corumbá:

216 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


Figura 2- Localização do aterro sanitário em Corumbá (MS)

Fonte: Google Earth (2019).

Em 2015, como apontou Gonçalves (2015, p. 138), foram geradas


100 (cem) toneladas/dias de resíduos sólidos, sendo 70 (setenta) tonela-
das/dias provenientes dos domicílios, 20 (vinte) toneladas/dias dos estabe-
lecimentos comerciais e os restantes 10 (dez) toneladas/dias dos estabe-
lecimentos públicos. Em relação aos resíduos produzidos por indústrias,
construção e saúde, estes ficaram a cargo dos geradores. O que chamou
a atenção para esse estudo realizado por Gonçalves é que a produção de
lixo per capita, em Corumbá, no ano de 2015, já havia alcançado a marca
de 1,07 Kg por dia, superior a média mundial que era de 1,02 Kg por dia.
Atualmente, o serviço de limpeza pública continua sendo tercei-
rizado e está a cargo da UNIPAV Engenharia. Esta é responsável pelos
diferentes manejos dos resíduos sólidos no município, incluindo desde
a coleta até a disposição final no aterro sanitário. Ao poder público mu-
nicipal fica a responsabilidade pela limpeza dos bueiros e capinas ao
longo dos logradouros.
Vale ressaltar que o serviço de varrição e recolha dos resíduos no
plano central de Corumbá se dá todos os dias. Em relação aos bairros
aquele serviço é providenciado a cada três dias (GONÇALVES, 2015,
p.139). Tal fato corrobora que os serviços de saneamento básico ainda se

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 217


pautam na distribuição assimétrica, dos mesmos, para a população. Os
estratos sociais que dispõem de maior renda e residem na região central
tendem a ser mais bem atendidos do que aqueles cuja moradia está situ-
ada em áreas periféricas.
Conforme asseverou Gonçalves (2015, p. 142), a disposição final
dos resíduos sólidos no aterro sanitário, em Corumbá, é realizada de
maneira inadequada uma vez que:

[...] não há a prevenção de impactos ambientais negativos, como:


sistema de drenagem e tratamento de chorume, manejo das águas
pluviais e sistema de captação e queima controlado de gases; não
há moradias, mas há presença de catadores de materiais reciclá-
veis no local; não ocorre a presença de animais de médio porte;
mas há queima de resíduos a céu aberto.

Recentemente, através da realização do trabalho de campo foi


possível tomar algumas fotografias (1 e 2) e observar que os problemas
apontados por Gonçalves (2015), tais como presença de catadores, ani-
mais de pequeno porte e queimadas a céu aberto, ainda não foram devi-
damente solucionados pelo poder público municipal:

Fotografia 01 – Aterro Sanitário e a disposição final dos resíduos sólidos em Corumbá-MS


(28.12.2019).

Autor: PEREIRA, Leandro Santos (Trabalho de Campo).

218 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


Fotografia 02 – Queimada a céu aberto no Aterro Sanitário em Corumbá-MS (28.12.2019).

Autor: PEREIRA, Leandro Santos (Trabalho de Campo).

Apesar dos problemas verificados em relação ao Aterro Sanitário,


Corumbá dispõe, atualmente, de ações ambientalmente corretas como
a coleta seletiva promovida pelo Programa Corumbá sempre Bela. Essa
ação está em consonância com o PNRS. Ainda, tem-se a Associação dos
Catadores de recicláveis de Corumbá como, por exemplo, a Vale da
Esperança (GONÇALVES, 2015, p. 145).
A reciclagem bem como a promoção da Educação Ambiental,
em parceria com as instituições públicas de ensino (da pré-escola à
universidade) certamente constituiriam um caminho seguro para que
Corumbá, num futuro próximo, possa figurar não apenas como a ca-
pital do pantanal, mas também como paradigma de cidade saudável
e sustentável. Faz-se urgente e necessário a redução na produção de
lixo per capita. Para tal objetivo, a Educação ambiental deve ser viabi-
lizada como instrumento de conscientização sobre a importância dos
recursos naturais e o adequado manejo daqueles para que as próximas
gerações não careçam de recursos básicos para a sua própria manuten-
ção.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 219


Considerações finais: pensar globalmente, agir localmente

A revolução industrial, como se demonstrou anteriormente, inicia-


da em meados do século XVIII na Inglaterra ocasionou transformações
profundas na forma de produzir mercadorias. O adensamento popu-
lacional nas cidades industriais se expressou na acelerada urbanização
bem com na elevação, sem precedentes históricos, do número absoluto
da população mundial. O que se tem observado a partir desses fenôme-
nos é a intensa degradação do meio ambiente humano bem como o uso
irracional dos recursos naturais.
Os efeitos deletérios da ação predatória do ser humano sobre o
ambiente despertou preocupação, num primeiro momento, das classes
médias dos países industrializados, ricos e desenvolvidos. Além disso, os
próprios capitalistas perceberam que a reprodução do capital poderia
não ser viabilizada num cenário de caos ambiental. Essas razões estive-
ram presentes na estruturação das primeiras Conferências sobre o meio
ambiente organizadas pela Organização das Nações Unidas.
O Brasil, como país signatário dos acordos realizados durante as
conferências, buscou estabelecer os marcos normativos para a imple-
mentação do desenvolvimento sustentável. É dentro desse contexto que
deve ser compreendido, por exemplo, a criação do PNSB bem como
PNRS. E a execução daqueles deve se dar em cooperação entre os entes
federados: união, estados e municípios.
No entanto, tem-se de acompanhar os impactos de duas medi-
das que foram tomadas na esfera do governo federal no ano de 2019 e
que podem comprometer, futuramente, a universalização dos serviços
de saneamento básico bem como a erradicação da pobreza e da fome:
a) a implementação do Decreto n. 10.187/2019 em que a União obje-
tiva alternativa ao investimento público em saneamento pela parceria
público-privada e b) o veto para a execução das ações previstas na agen-
da 2030 da ONU em Plano Plurianual que estabelece a erradicação da
pobreza e da fome.
A adoção dessas ações indica que o atual governo decidiu optar,
deliberadamente, pela via da necropolítica que, em outras palavras sig-
nifica: deixe morrer, à própria sorte, aqueles(as) que não são úteis para
o sistema capitalista. Espera-se, no entanto, que estados e municípios

220 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


juntamente com a sociedade civil tenham forças para impedir que a ne-
cropolítica se torne uma tônica na condução das ações governamentais
no âmbito federal.
Quanto às ações locais, estas podem e devem imprimir as próprias
especificidades, inspirando, inclusive outros locais e regiões. A troca de
saberes e experiências devem constituir a força motriz na implantação
e eficácia dos programas que envolvem o saneamento básico. E, sobre-
tudo, não podem perder de vista a concepção integrada e interdiscipli-
nar que requer as políticas públicas focadas na construção do equilíbrio
ambiental com atendimento adequado as necessidades humanas sem
discriminações de gênero, raça, cor e condição econômica.
Paulo Freire (1975, p. 84), Patrono da Educação Brasileira, tem
uma frase célebre assaz inspiradora que aduz o seguinte: “Educação não
transforma o mundo. Educação muda às pessoas. Pessoas transformam o
mundo”. Seguindo este princípio, a Educação ambiental, indubitavel-
mente, deve estar na base da promoção de maior conscientização sobre
a importância de se buscar uma vida saudável e sustentável, que inclua
o consumo equilibrado de bens e serviços de modo a assegurar os recur-
sos para as gerações vindouras.

Referências

BECKER, Bertha K.; EGLER, Claudio A. G. Brasil: uma nova potência


regional na Economia-Mundo. 2º ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1994.

BECKER, Bertha K. A geopolítica na virada do milênio: logística e


desenvolvimento sustentável. In: CASTRO, I. E., et al. Geografia:
conceitos e temas. 8 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 271-307.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da


modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

BORJA, Patrícia Campos; MORAES, Luiz Roberto Santos. Saneamento


como um direito social. Assembleia da Assemae, 2005, 35. Disponível
em:<http://servicos.semasa.sp.gov.br/Old/admin/biblioteca/docs/
PDF/35Assemae125.pdf >. Acesso em 28 dezembro 2019.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 221


BRASIL. Lei n. 11.445, de 05 de Janeiro de 2007. Estabelece diretrizes
nacionais para o saneamento básico. Disponível em: < http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm >. Acesso
em 27 de dezembro 2019.

BRASIL. Lei n. 12.305, de 02 de Agosto de 2010. Institui a Política


Nacional de Resíduos Sólidos. Disponível em: < http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12305.htm >. Acesso em 27 de
dezembro 2019.

BRASIL. Decreto n. 10.187, 20 de Dezembro 2019. Dispõe sobre a


qualificação da política de fomento ao setor de saneamento básico no
âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da
República. Disponível em: < http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-
n-10.187-de-20-de-dezembro-de-2019-234972310 >. Acesso em 20
dezembro 2019.

CASTRO, Iná Elias de. Geografia e Política: território, escalas de ação e


instituições. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

CMMAD. O nosso futuro comum. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da


Fundação Getúlio Vargas, 1991.

FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz


e Terra, 1975.

FREITAS, Elisa Pinheiro de. Território, poder e biocombustíveis: as ações


do Estado brasileiro no processo de regulação territorial para a produção
de recursos energéticos alternativos. 2013. Tese (Doutorado em Geografia
Humana), Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2013.

________________________. Sertão cosmopolita: tensões da


modernidade de Corumbá. Resenha. (1872-1918). Revista GeoPantanal,
v. 10, n. 18, p. 243-247, 2015.

FREITAS JUNIOR, Gerson de; FREITAS, Elisa Pinheiro de. Espaço


e Sustentabilidade: Governança para cidades sustentáveis. Revista
GeoPantanal, n.12, v.23, p. 231-244, 2018.

GEORGE, Pierre. Geografia Econômica. Trad. Ruth Magnanini. Rio de


Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1961.

222 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


GOMES, Maria Helena Scalabrin Cardoso, et al. Política Nacional de
Resíduos Sólidos: perspectivas de cumprimento da Lei 12.305/2010 nos
municípios brasileiros, municípios paulistas e municípios da região do
ABC. Revista de Administração da Universidade Federal de Santa Maria,
v.7, p. 93-109, 2014.

GONÇALVES, Alexandre Honig. Resíduos Sólidos na fronteira do Brasil


com o Paraguai e a Bolívia: diagnóstico nas cidades sul-mato-grossenses de
Ponta Porã e Corumbá. 2015. Dissertação (Dissertação em Geografia),
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Três Lagoas, MS, 2015.

HOUTART, François. A agroenergia. Solução para o clima ou saída da


crise para o capital? Petrópolis: Editora Vozes, 2010.

IBGE Cidades. Corumbá (MS). Disponível em: < https://cidades.ibge.


gov.br/brasil/ms/corumba/panorama >. Acesso em: 29 dezembro 2019.

INTERNACIONAL GEOSHEPERE-BIOSHERE PROGRAMME.


Global Change: anthropocene the geology of humanity. Estocolmo: IGBP,
2012.

KLOETZEL, Kurt. O que é meio ambiente. São Paulo: Ed. Brasiliense,


1998.

LAGO, André Aranha Corrêa do. Estocolmo, Rio e Joanesburgo. O Brasil


e as três Conferências Ambientais das Nações Unidas. Brasília: Fundação
Gusmão, 2006.

LOVELOCK, James. A vingança de gaia. Trad. Ivo Korytowski. Rio de


Janeiro: Intríseca, 2006.

MATIAS, Shirley da Silva. Considerações sobre a questão da vulnerabilidade


ambiental na cidade de Corumbá (MS). 2014. Dissertação (Mestrado em
Geografia), Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados, MS, 2014.

MORAES, Antonio Carlos Robert de. Meio ambiente e ciências humana.


São Paulo: Hucitec, 1994.

ONU – Organização das Nações Unidas. Resolução Aprovada em


Assembleia Geral. O futuro que queremos. Disponível em: http://www.
un.org/es/comun/docs/?symbol=A/RES/66/288. Acesso em: 25 de nov.
2012.

Pensando a Cidade: Corumbá em perspectiva interdisciplinar 223


PAIVA BRITTO, Ana Lucia Nogueira, et al. Da fragmentação à
articulação. A política nacional de saneamento e seu legado histórico.
Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais (RBEUR), n.14, v.1,
p.65-83, 2012.

QUAINI, Massimo. Marxismo e geografia. Trad. Liliana Lagana


Fernandes. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

RIBEIRO, Wagner da Costa. Por dentro da Rio-92. In: SANTOS, M. et


al. O novo mapa do mundo: problemas geográficos de um mundo novo. São
Paulo: Hucitec-Anpur, 1995, p. 123-131.

ROSS, Jurandyr L. Sanches. Geografia do Brasil. São Paulo: Edusp, 1995.

RÜCKERT, Fabiano Quadros. Os médicos e a higiene pública na


imprensa do Rio Grande do Sul: entre a teoria dos miasmas e a teoria da
transmissão hídrica das doenças. História Unicap, n.1, v.1: 74-90, 2014.

SALLES, Márcia Pereira da Mata. Diagnóstico e avaliação por indicadores


e índices dos serviços de limpeza urbana no estado de Mato Grosso do
Sul. 2003. (Dissertação de Mestrado em Tecnologias Ambientais),
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, 2003.

SANESUL. Locais atendidos ETAS. Disponível em: < http://www.


sanesul.ms.gov.br/locais-atendidos-etas >. Acesso em: 29 dezembro 2019.

SOARES, Luiz Felipe de Macedo. Estocolmo + 40, Rio +20: Guia Básico.
Carta maior, São Paulo, 30 jul. 2012. Meio Ambiente. Disponível em: <
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_
id=20635>. Acesso em: 25 nov. 2012.

SOUZA, João Carlos de. Sertão cosmopolita: tensões da modernidade de


Corumbá (1872-1918). São Paulo: Alameda, 2008

TRENTINI; Flavia et. al. Sustentabilidade: o desafio dos biocombustíveis.


São Paulo: Annablume: 2010.

224 Nathalia Claro e Fabiano Rückert (organizadores)


Adquira mais livros agora mesmo em nosso site.

Esta obra foi composta em Electra e


impressa em papel Pólen Soft em março de 2020.
View publication stats

Você também pode gostar