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A campeã paralímpica que viveu 'presa ao próprio corpo'

23 agosto 2021 https://www.bbc.com/portuguese/geral-58198583

Victoria Arlen conquistou uma medalha de ouro e três de prata na natação dos Jogos
Paralímpicos Londres 2012 CRÉDITO, CLIVE ROSE/GETTY IMAGES

Victoria Arlen conquistou uma medalha de ouro e três de prata na natação dos Jogos
Paralímpicos Londres 2012

Desde pequena, Victoria Arlen sonhava em ser atleta.

Mas, aos 11 anos, uma condição (até então inexplicável) a deixou em estado vegetativo —
e ela acordou quase três anos depois em uma cama de hospital "presa" em seu corpo,
incapaz de se comunicar ou se mover.

Ela estava consciente de tudo que acontecia à sua volta, mas ninguém sabia.

Em entrevista ao apresentador Harry Graham do programa de rádio Outlook, da BBC, em


2018, ela compartilhou sua história de superação — que a levou a conquistar em tempo
recorde uma medalha de ouro na natação nos Jogos Paralímpicos Londres 2012.

Quando a professora de Victoria Arlen perguntava o que ela queria ser quando crescer, a
resposta estava na ponta da língua:

"Medalhista de ouro e nadadora olímpica."

Victoria cresceu em New Hampshire, nos Estados Unidos, ao lado dos dois irmãos
trigêmeos. E o esporte sempre foi uma parte importante da sua vida.
"Eu era boa em natação e hóquei na grama. Fiz dança competitiva por um tempo, mas
nadar era realmente o que eu amava, minha paixão", diz a jovem, hoje com 26 anos.

Ela esbanjava saúde e ótima forma física — até que, por volta dos 10 anos, algo mudou.

"Meu sistema imunológico começou a ficar comprometido. Quando completei 11 anos, a


cada duas semanas eu pegava uma pneumonia, uma gripe, tinha desmaios, desenvolvi
asma. Como eu sempre melhorava, não era muito uma preocupação."

"Mas, em 29 de abril de 2006, comecei a sentir uma forte dor do lado direito (do meu corpo)
e foi meio que o início da jornada", relembra.

Foi quando Victoria começou a perder o controle sobre algumas partes do corpo.

"(Primeiro) foram minhas pernas e, em seguida, a parte superior do meu corpo, meu tronco
e minhas mãos. E depois minha voz."

"Perder o controle completo de todo o seu corpo, mas ainda estar mentalmente consciente,
é aterrorizante", afirma.

Este processo durou cerca de dois meses. O rápido (e até então inexplicável) declínio físico
de Victoria afligia não só a ela, mas a todos que estavam à sua volta.

"Meus pais estavam em pânico, tentando descobrir o que estava acontecendo e por que a
filha deles estava se deteriorando tão rápido."

A situação se agravou ainda mais quando ela estava sendo transferida de hospital.

"Eu só me lembro de entrar na ambulância e tudo meio que escureceu", conta.

Era agosto de 2006, e Victoria estava entrando em estado vegetativo. Os próximos anos
seriam completamente perdidos para ela.

O despertar
Somente no início de 2009, a jovem voltaria a ficar consciente de novo.

"Acordei basicamente em um quarto de hospital, com pessoas falando ao meu redor, mas
ninguém reconhecendo o fato de que eu estava fazendo uma pergunta."

"Havia um tubo na minha garganta, algo estava respirando por mim, eu estava meio presa.
Não conseguia me mover e não conseguia gritar."

"Me lembro de ficar (perguntando): 'Onde estou? O que está acontecendo?' Eu ficava tipo:
'Oi, oi'. Sem perceber que estava, na verdade, 'falando' dentro da minha cabeça, e não para
alguém."
Victoria finalmente se deu conta de que as pessoas à sua volta não faziam ideia de que ela
estava consciente.

"Quando percebi que eles não sabiam que eu 'estava' ali, que eles não sabiam que estava
'trancada', foi aí que comecei a ficar realmente apavorada com o fato de estar 'presa' e ser
considerada um caso perdido."

Para não ser tomada pelo pânico, ela conta que tentou se concentrar no lado positivo da
situação:

"Pelo menos eu tenho meu cérebro, pelo menos eu posso ter esses pensamentos... Meu
corpo pode não funcionar, mas eu tenho minhas memórias. A Victoria ainda está aqui", ela
pensava.

Arlen havia recuperado a consciência, mas ainda não fazia ideia de quanto tempo havia se
passado desde que apagara na ambulância.

"(Até que) algum médico ou alguém mencionou o dia, e foi quando eu me dei conta: 'Meu
Deus, passou esse tempo todo, agora sou uma adolescente. E isso também me deu
pânico."

"Senti que todos aqueles anos haviam sido roubados de mim, esse período para crescer e
aprender...", desabafa.

Não havia nenhuma indicação de que Victoria estava consciente. Mas ela estava ciente de
tudo que acontecia à sua volta. Seus olhos estavam abertos e, além de escutar, ela
conseguia enxergar, mas o que ela via dependia de onde seus olhos estavam fixados —
"eles meio que tinham vontade própria", segundo ela.

"Nove entre dez vezes, eles rolavam para trás na minha cabeça, e meio que ficavam caídos
para um lado."

"Eu piscava, mas não quando queria. Era uma espécie de movimento involuntário", relata.

Abusos
Enquanto estava neste estado, Victoria sofreu abusos por parte da equipe médica.

"Você não imagina como os médicos e enfermeiros podem ser horríveis e desrespeitosos
quando pensam que você está inconsciente e incapaz de se comunicar ou é dada como
uma causa perdida."

"Lidei com muitos abusos e negligências da equipe médica", revela a jovem, que preferiu
não entrar em detalhes sobre a natureza dos abusos durante a entrevista.

Mas, em seu livro de memórias, Locked in: The Will to Survive and the Resolve to Live, ela
descreve os abusos como repetidas agressões físicas.
Ela diz que preferiu deixar essa parte de sua história para trás e por isso não processou
nenhum dos hospitais em que ficou internada.

Enquanto estava acamada, Victoria também testemunhou conversas que nunca deveria ter
escutado.

"Tenho uma lembrança muito forte dos meus pais saírem para almoçar, e duas enfermeiras
entrarem. Elas estavam fazendo algum procedimento, e uma enfermeira disse para a outra:
'Você acredita que os pais dessa menina acham que ela vai ficar bem? Essa criança é um
caso perdido'."

"Eu só me lembro de ouvir e pensar: 'eu estou ouvindo'."

"Eu queria gritar com elas. Talvez soltar alguns palavrões naquele momento."

Apoio da família
Naquela ocasião, o prognóstico de Victoria não era, de fato, nada bom — para a equipe
médica, parecia muito improvável que ela se recuperasse.

Mas a família se recusou a aceitar. E a cada visita, os pais e irmãos faziam questão de
expor Victoria ao que estava acontecendo no mundo lá fora — davam a ela roupas da
moda, por exemplo, e botavam para tocar músicas que faziam sucesso entre os
adolescentes, além de sintonizar a televisão em seus programas favoritos, como Dancing
with the Stars, o Dança dos Famosos americano — do qual ela sonhava participar um dia.

"Eles tentavam fazer tudo que achavam que poderia colocar a Victoria para fora ou pelo
menos manter a Victoria, Victoria", diz ela.

"Meu irmão costumava dançar Lady Gaga para tentar me fazer rir."

A parte mais difícil, no entanto, era quando seu pai assistia a programas de gastronomia.

"Ver comida e não ser capaz de comer era uma espécie de tortura", relembra.

Apesar de nunca ter perdido a esperança, a família sofria profundamente.

"Eu via o medo nos olhos dos meus irmãos quando eles vinham me ver."

Quando as visitas iam embora e as luzes se apagavam, Victoria conta que criava roteiros
de histórias na cabeça para se entreter e se manter produtiva.

"Eu meio que tentava visualizar a vida que me imaginava vivendo, as experiências que
queria ter, os lugares que gostaria de ir... Eu realmente tentava focar na gratidão, na
esperança e no otimismo."

'Começo do milagre'
Até então ninguém sabia o que estava por trás da doença de Victoria — os médicos
estavam cientes que havia uma inflamação no cérebro, mas não conseguiam identificar a
causa. E ela própria foi descobrindo sua situação aos poucos, pescando fragmentos de
conversas.

"Descobri que ficaria paralisada ouvindo uma conversa aleatória, assim como soube que
havia danos irreversíveis na minha coluna, danos no meu cérebro... Descobri tudo isso por
meio de conversas entre enfermeiros e médicos."

Victoria tinha convulsões frequentes ao longo do dia — e os médicos resolveram prescrever


um remédio para ela dormir, que de alguma forma acabou com as convulsões.

Foi quando seu corpo experimentou subitamente uma calma desconhecida, o que levou a
uma mudança milagrosa.

"Pela primeira vez em quase um ano, desde o início das convulsões, tive um momento para
respirar. E percebi que podia mover meus olhos."

"Minha mãe entrou no quarto, e eu apenas olhei para ela e a segui com meus olhos. Ela
veio até mim e disse: 'Se você consegue me ouvir, você pode piscar? Pisque uma vez,
pisque duas vezes, apenas pisque'."

"E eu não parei de piscar. Esse foi o começo do nosso milagre."

"Tive muitos momentos realmente extraordinários, mas, de longe, este momento foi a minha
maior conquista, porque foi o momento em que finalmente mostrei à minha família, mostrei
à minha mãe: 'Ainda estou aqui'."

"Ela começou a chorar, e dentro de mim eu ficava pensando: 'Que bonito isso'."

Aos poucos, Victoria retomou o controle de seu corpo novamente, e foi abrindo canais de
comunicação com o mundo exterior. De piscar, ela passou a apontar para um quadro com o
alfabeto e, na sequência, a usar linguagem de sinais — até o momento em que ela
conseguiu dizer suas primeiras palavras.

"As primeiras palavras que disse à minha família foram: 'Eles me machucaram'", recorda a
jovem, fazendo referência aos abusos que sofreu por parte da equipe médica.

"Foram primeiras palavras tristes, mas eu realmente precisava dizê-las."

"Contar à minha família que eles haviam me machucado, foi como se eu retomasse o
controle que havia sido tirado de mim", avalia.

E Victoria focou todos seus esforços na recuperação.

"Sou muito teimosa. Então, se você me disser que não posso fazer algo, vou provar que
você está errado."
"Trabalhei todos os dias com um fonoaudiólogo, um terapeuta ocupacional, um
fisioterapeuta, era muito tempo que precisava recompensar."

Ela finalmente recebeu alta — e deixou o hospital em uma cadeira de rodas, paralisada da
cintura para baixo.

"Foi devastador. Eu tive dificuldade em aceitar, mas também pensava: 'É melhor do que
estar em uma cama de hospital'."

O diagnóstico
Enquanto se recuperava, os médicos descobriram a causa do seu declínio de saúde: dois
distúrbios neurológicos raros, mielite transversa e encefalomielite aguda disseminada.

Estas duas condições fizeram basicamente com que seu corpo atacasse seu cérebro e
medula espinhal.

Victoria Arlen em 2013


CRÉDITO,FREDERICK M. BROWN/GETTY IMAGES
Legenda da foto,
Victoria desafiou todos os prognósticos médicos
Pouco antes de completar 16 anos, ela havia melhorado a ponto de poder voltar para a
escola. Mas não foi um retorno fácil.

"Foi um pesadelo."

"Eu estava fora da civilização há 4 anos, então era alvo de bullying", relembra.

"Eu pensava: 'O que é Facebook, o que é iPhone?' Quando eu tinha 11 anos, celular era
uma grande coisa: era preciso ser adulto para ter um. E agora todo mundo tinha um celular."

Aos poucos, ela conseguiu se reinserir — graças, principalmente, à ajuda dos irmãos.
Foram eles, inclusive, que a levaram de volta para sua grande paixão: a piscina.

"Eu era o tipo de criança que você não consegue tirar da água. Adorava estar na água. Mas
a ideia de nadar sem minhas pernas me apavorava."

"Meus irmãos diziam: 'Temos que superar esse medo da Victoria. Precisamos levá-la de
volta ao lugar que a deixa mais feliz'."

"Então eles colocaram um colete salva-vidas em mim, agarraram meus braços e minhas
pernas e pularam comigo na água", conta.

O sonho (e o ouro) Paralímpico


Começava ali sua trajetória na natação paralímpica. Victoria botou toda sua energia no
esporte — e aprimorou sua técnica a cada dia.

Victoria Arlen comemora medalha de ouro nos Jogos Paralímpicos Londres 2012
CRÉDITO,CLIVE ROSE/GETTY IMAGES
Legenda da foto,
'Aquela medalha tinha um significado maior. Era sobre nossa família e o fato de nenhum de
nós ter desistido', diz Victoria

Mas quando compartilhou com seu treinador o desejo de disputar os Jogos Paralímpicos
Londres 2012, a resposta foi um banho de água fria.

"Ele respondeu: 'Você quer dizer, daqui a um ano?' E eu pensei: 'Sim'. E ele disse: 'Ah,
querida, você não tem chance, as pessoas treinam por anos e anos, e você acabou de
voltar para a piscina'."

"Foi como levar uma facada", recorda.

Mas sua mãe havia ouvido a conversa. E, na volta para casa, parou o carro e disse à filha
algo que ela nunca vai esquecer.

"Ela apontou o dedo para mim e disse: 'Nunca deixe ninguém dizer que você não pode
fazer algo. Se você acredita que pode fazer algo, trabalhe duro nisso, você pode alcançar
qualquer coisa. Eu estaria condenada se deixasse um treinador qualquer dizer o que você é
capaz, dado o quão longe você já chegou'."

Victoria mudou então de treinador.

Os Jogos Paralímpicos Londres 2012 aconteceram apenas três anos depois de ela ter
recuperado a habilidade de piscar.

E Victoria não só entrou para a equipe, como conquistou a medalha de ouro nos 100m
estilo livre (S6) — e três pratas (50m livre, 400m livre e revezamento 4x100m livre).

"Foi muito louco estar no pódio e me dar conta de que dois anos antes meus irmãos
estavam me jogando na piscina. (...) Foi definitivamente um momento incrível."

"(Só que) ganhar o ouro não se tratava do ouro em si, mas de olhar para as arquibancadas
e ver minha família. Vê-los pela primeira vez chorando lágrimas de alegria, em vez de
lágrimas de tristeza e medo."

"Aquela medalha tinha um significado maior. Era sobre nossa família e o fato de nenhum de
nós ter desistido", avalia.

Primeiros passos
Ganhar a medalha de ouro paralímpica não foi suficiente para Victoria. Havia algo que ela
estava desesperada para conseguir: a habilidade de andar.

A natureza da sua condição era muito rara. E, a princípio, não estava claro se ela voltaria a
andar. Os efeitos no longo prazo do distúrbio que ela teve variam de pessoa para pessoa.

Ela decidiu então ignorar os prognósticos mais uma vez.


"Mentalmente, eu não conseguia superar o fato de que eu tinha literalmente desafiado todos
os prognósticos, exceto aquele."

Com a ajuda dos pais, ela passou então a se dedicar ao projeto de reabilitação para voltar a
andar — eram seis horas de treinamento diário.

"Era uma espécie de (processo de) regeneração. Mover as pernas, lembrando-as de


trabalhar, para recriar as redes neurais, reconectar as redes neurais", explica.

"Após dez meses de treinamento rigoroso e intenso, senti uma fisgada no meu quadril
direito. Era uma contração muscular, que eu conseguia ativar."

Até que, na primavera de 2016, Victoria foi capaz finalmente de dar seu primeiro passo
sozinha — dez anos depois do último passo que havia dado.

"O primeiro passo foi bem vacilante. Caí bastante, mas foi incrível. Me lembro de caminhar
até minha família e dar um abraço neles de pé. De abraçar meus treinadores de pé. E
pensar: 'Nossa, como sou alta'."

A partir daí, Victoria não parou mais — se tornou comentarista esportiva, apresentadora de
televisão e palestrante motivacional, além de co-fundadora junto à mãe da Victoria's Victory
Foundation, ONG que ajuda pessoas com desafios de mobilidade.

Ela realizou, inclusive, outro sonho de


infância: participar do programa Dancing
with the Stars. E ficou em quinto lugar na
competição em 2017.

Victoria Arlen e Valentin Chmerkovskiy


CRÉDITO,DAVID LIVINGSTON/GETTY
IMAGES
Legenda da foto, Victoria e Valentin
Chmerkovskiy, sua dupla no programa
'Dancing with the Stars'

"Sei o quão precioso é cada dia, cada


momento, cada respiração — e não quero
perder um momento sequer", diz ela.

"Se eu pudesse voltar e dizer algo para a


pequena Victoria, deitada naquela cama,
seria: 'Adivinha o que vai acontecer? Você
só precisa continuar lutando'."

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