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Essa não é uma historia de amor

Meu nome é Bianca Holanda de Saboia, tenho 25 anos, nativa de Fortaleza- Ceará. Minha mãe se chama
Isabelle Bastos Holanda e meu pai Henrique Barreira de Saboia. Ambos empresários. Tiveram um breve
casamento, mas pelo bem dos dois, decidiram se divorciar e cada um seguir com sua vida. Apesar de ter
uma família bem estruturada, conto como pai meu avô materno, que sempre estendeu a mão pra mim e
pra minha mãe, me ensinou valores e como levar a vida da maneira correta (apesar de as vezes,
esquecer seus conselhos)

Meu nascimento foi uma verdadeira festa na família, primeira filha, primeira neta. Todos me aguardavam
com tanta vontade que hoje penso se aguardaram da mesma forma se soubessem tudo que ia acontecer
no meu futuro. Meu nome tem como significado "Branco", eternizado pelas obras do escritor William
Shakespeare.

Tive uma infância completamente diferente de todo resto da minha vida. Fui rodeada de amor, carinho e
atenção. Fui calma e bonita, quando tudo parecia rápido e feio. Aos 8 anos tive uma doença chamada
pneumonia por micoplasma, que me fez ficar 1 ano em casa, sem estudo e exercícios físicos, consumindo
bastante corticoides. Aconteceu o que já era previsto: muitos kilos acrescentado a uma criança bastante
baixa. Algo que me marcou bastante foi o abuso de álcool vindo da minha mãe. Várias memórias que
tenho, provavelmente ela não se lembra, mas foram essenciais pro meu reconhecimento. Apesar de
todo abuso alcoólico, minha mãe não media esforços pra me dar o que eu merecia, eu apenas achava
que o que merecia era diferente. Não precisava de colégios em turnos integrais, inglês, natação, dança,
volei, ter meu dia tão preenchido a ponto de não lembrar o quão longe minha mãe estava. Várias
atividades foram colocadas para que eu emagrecesse.

Até o meu início de adolescência lembro-me de várias viagens, todas feitas para spa, com objetivo de
perda de peso. Eu era a única criança e me sentia péssima. Lembro de falar isso mas nunca fui ouvida.
Aniversários meus foram comemorados em spas, com a desculpa que eu poderia usar piscina e outras
alas do hotel, durante que comesse só aquilo que o spa fornecia. Fazia amigos na piscina e precisava vê-
los indo fazer suas refeições em outros locais, pois sempre eram divididos. Isso me marcou bastante.

Fui uma criança rodeada de arte, desde muito nova me interessava por livros mais adultos, pinturas, por
desenhar e escrever. Fiz aulas de pintura e estava sempre conectada com música. Desde muito cedo,
lembro de algo que sempre estava comigo: fones de ouvido. Ouvindo música que normalmente crianças
não ouviriam, me sentia como se não pertencesse à minha idade e isso dificultou que eu fizesse amigos.
O que eles gostavam, eu achava infantil. O que eu gostava, eles achavam chato. Por conta disso, fui uma
criança muito sozinha. E minha compulsão alimentar me acompanhou ao longo dos anos sempre
rendendo vários kg extras.

Apesar de pouca idade, aos 12 anos conversei com minha mãe sobre minha sexualidade. Admiti ser
lésbica e recebi todo amor vindo não apenas dela mas de toda minha familia. Minha sexualidade nunca
foi um problema para eles, foi um problema apenas para mim, que buscava viver uma vida normal e
sentia que me puxavam pra fora do eixo. Comecei a ter relacionamentos cedo e todos muito intensos,
quando havia brigas, me isolava, tinha pensamentos ruins e vontade de fazer coisas ruins comigo
mesma. Em todos meus relacionamentos tive dependência emocional, então sempre que eles
acabavam, eu ia conhecendo mais do meu fundo de poço (não imaginava que no decorrer da vida iria
conhecer tão bem esse lugar)

Acabei repetindo o primeiro ano do ensino médio e me mudando de colégio, mas não durei muito
tempo ali pois logo vi a possibilidade de ir para a faculdade mais cedo. Passei para direito nas principais
faculdades particulares de Fortaleza e dei início a essa nova etapa da minha vida. Pela primeira vez me
senti feliz pois via a felicidade dos outros por essa nova fase. Vi meus familiares tendo orgulho de mim,
pela primeira vez.

O início da faculdade foi difícil, pois sempre tive dificuldade em lidar com multidões, de repente me vi
rodeada de pessoas mas me sentindo sozinha. Mesmo após conseguir elos de amizade, quando chegava
em casa sentia um vazio.

Sempre fui muito intensa com tudo na minha vida, eram 8 ou 80, ou me sentia extremamente feliz ou
tinha choros que duravam horas. Não entendia porque sentia isso. Ia em psiquiatra e foi me passado um
remédio que hoje me arrependo de ter iniciado o uso: Comecei a tomar Ritalina por conta de TDAH.
Logo na primeira dose, me senti completa. Alerta. Tudo aquilo que eu lia, eu lembrava. E mecheu com
meu ego, me fez sentir grande, invencível. Eu só tinha 15 anos e não tinha ideia do que o futuro me
guardava.

Logo aos 18, graças ao rompimento de um relacionamento, tive minha primeira crise depressiva. Contei
com o apoio de toda minha família, que me acolheu com certo medo do que viam. Surgiram dentro de
mim pensamentos insanos sobre como me machucar, como acabar com tudo em minha volta. Foi
quando começaram a leva de remédios novos. Um pra acordar, um pra dormir, um pra estabilizar e um
pra parar de sentir. Quando completei 19, mal me sustentava em pé. E graças a depressão, todos aqueles
que foram meus amigos, se afastaram: Eu estava sozinha com várias caixas de remédio e eram elas que
iam me fazer companhia. Precisei trancar a faculdade.

Descobri o zolpidem aos 19 anos. Foi mágico. Por ser neta de militar sempre gostei da rotina e era
incrível esperar às 22hrs, tomar meu comprimido, colocar Jurassic Park pra passar e esperar até tudo na
minha vista está desdobrado. Até eu ver coisas onde não tinha. Quando minha mãe descobriu o que
estava acontecendo, logo retirou o remédio de mim, mas não antes que eu achasse outro: Dramin.
Pesquisando na deep web descobri que ao tomar muitos comprimidos de dramin sua pressão cai
rapidamente fazendo você alucinar e ouvir coisas. Enquanto eu criticava minha mãe pela sua bebida,
sempre me mantendo longe dela, nas costas estava num quarto escuro tampando vazios com
comprimidos.

Chegou uma hora que minha família não conseguia mais segurar tudo pra mim e decidiram me internar
numa clínica em Atibaia (São Paulo), lembro de sentir medo de tudo naquele canto e saudade da minha
mãe a cada segundo. Foi quando descobri que meu cordão umbilical não havia sido partido e cada
segundo longe dela me tirava o fôlego. Foram 2 meses desesperadores, onde fui diagnosticada com
Transtorno Borderline, o que fazia sentido pois esse transtorno só se manifesta no início da vida adulta.
Sentia medo das coisas e das pessoas, sentia medo das ocasiões e desafios. Fui ficando cada vez mais
introvertida, sair de casa me assustava, barulhos me deixavam confusa, os remédios me faziam ficar
grogue, e eu pensava em suicidio todos os dias. Foi nesse ponto da minha vida que começaram as auto
mutilações.

Se me perguntarem o porquê de eu me auto mutilar não iria saber descrever. Era certo que o objetivo
não era morrer, eu só precisava sentir qualquer coisa já que os medicamentos me tiravam todos os
sentimentos. Eu vivia num mundo onde não sabia o que era. Até que em uma noite, eu senti uma dor na
alma. Não existe outra maneira de se definir. Me sentia sozinha, minha mãe havia acabado de se separar
pois o marido já não suportava o caos do meu mundo. Tomava ritalina atrás de ritalina e em uma noite,
olhei pela janela e pensei "Pode ser que seja uma boa ideia"

Pulei da janela do quarto da minha mãe, pedindo pra todos os seres me levarem realmente à morte. Eu
não tinha amigos que sentiriam minha falta. Minha família parecia exausta por lidar com minha doença.
Eu também estava. Meu pai havia sumido. E eu queria pôr um ponto final em tudo.

Por algum tipo de sorte, o pulo não me levou à morte. Lembro de me sentir inútil pensando "bem, eu fiz
de tudo pra morrer e nem isso consegui?" Tive o pé lesionado e operado, diversos pinos e placas e vi
minha família aterrorizada. O uso abusivo da ritalina continuava e após a cirurgia foram acrescentados
tramal e oxicodona. Eu já não era eu.

Logo após minha cirurgia conheci uma pessoa que veio pra somar. Ela era linda e feliz. Eu me sentia feia
e triste. Foi um namoro de 2 anos onde eu me tornei alguém extremamente tóxica, vendia coisas dela
pelo simples fato de gostar de negociar vendas, vendi tudo, o uso da ritalina só aumentava e os remédios
pro borderline, que deveriam controlar minha doença, eu dava descarga. Tomava apenas o que eu
pensava ser bom pra mim. Sem terapia, vivendo em crises, dependente emocional da minha namorada e
a mantendo em um relacionamento destrutivo, os pensamentos de tirar minha vida sempre voltavam
tarde da noite.

Quando meu relacionamento chegou ao fim, eu me vi no fim junto com ele. Tudo ao meu redor me
lembrava dela. As paredes do meu quarto pintavam nossa história e minha mente era um eterno filme
de nossos momentos. A dor chegava a ser física. Foi nesse ponto da minha vida que descobri mais um
medicamento: Dividol

Percebi que ao misturar Dividol, ritalina e rivotril: eu me sentia ainda maior. Foi assim que superei meu
relacionamento, tomando mais medicamentos de maneira abusiva e me afundando no meio de cortes,
crises e silêncio. Não existia amigos então silêncio era tudo que tinha.

Tive um novo relacionamento onde mais uma vez existiria dependência emocional principalmente pois
era ela que bancava meus medicamentos extras. Eu usava chantagem emocional para conseguir isso. E
até agora, vocês devem achar o quão ruim como pessoa eu sou, mas a verdade é que eu estava muito
doente.

Em 21 de agosto de 2021, minha família me internou numa clínica de reabilitação após descobrir o uso
abusivo de medicamentos e ver que eu havia vendido tudo que tinha. Foram chamados dois homens,
pra fazer minha remoção para clinica. Eu sentia medo e sentia arrependimento mas mesmo assim só
pensava em como conseguir a próxima dose se estivesse internada.

Nessa clínica, me descobri adicta e fármaco dependente. Pros que não conhecem o termo adicta, é o
indivíduo que tem dependência química de determinada substância. Eu nunca me envolvi com drogas
ilícitas, nunca coloquei álcool na boca, provavelmente por trauma de tudo que passei com minha mãe,
mas esqueci que remédios também viciavam.

Fiquei internada por 6 meses, me dediquei ao meu tratamento, fiz os 12 passos, fui às reuniões mas
ninguém contava o que acontecia nessa clínica quando ficava escuro e o sol se ia. Eu ouvia gritos dos
outros mas não conseguia ouvir os meus. Eu via o abuso que os outros passavam, mas quando chegava
minha hora, eu não me mexia. O medo paralisa.

Ao sair da clínica ainda me sentia tão doente quanto havia entrado, isso porque lá de dentro continuava
no uso da ritalina apesar de uma dosagem bem menor. Logo que saí peguei uma gripe muito forte que
me obrigou a tomar novamente o Dividol. Foi uma péssima ideia. Quando comecei, não consegui parar.

Tive minha primeira recaída.

Isso me levou de volta a clínica, no dia 12 de fevereiro de 2022, com a promessa de ficar apenas 3 meses,
mas os três meses viraram mais de um ano. Acabei finalizando o tratamento e fui chamada pra trabalhar
sendo monitora da ala feminina da clínica. Terminei novamente todos os 12 passos, sem uso de ritalina
alguma, me sentindo mais forte mas uma vez ou outra pensava que nunca mais iria sentir a felicidade
que sentia quando fazia uso. E foi quando surgiu minha primeira oportunidade de trabalho, agarrei com
todas as forças para sair de vez da clínica mas minha real vontade era de voltar a estudar, desta vez, no
curso que eu escolheria.

Sempre tive facilidade com a escrita, tendo um blog desde os 14 anos onde encho que textos meus,
sabia que jornalismo seria a melhor opção pra mim pois iria estudar não só algo que eu queria mas algo
que eu era boa, ao contrário do direito. Foi quando tomei a decisão de abandonar o emprego e focar
somente na faculdade.

Atualmente, enfrento diversas dificuldades. Não é fácil ter TDAH mas não poder ser medicada pra isso.
Por muitas vezes, durante o sono, sonho que acho comprimidos pela casa ou que consigo uma receita de
algum modo. Acordo suada e com taquicardia, é como se por mais que eu superasse o uso, a vontade
nunca fosse embora. É difícil pras pessoas entenderem, o que uma droga como essa pode fazer com
nossa vida. Se eu pudesse voltar ao tempo, não teria tomado a primeira dose. Apesar dos 18 meses
limpa, ainda me sinto refém.

Tento ocupar meu dia com o máximo de coisas mas quando não consigo me pego pensando que queria
usar, corro pra uma sala de narcoticos anonimos e peço ajuda. E isso me dá força, vê que todos os
adictos passam pela mesma coisa: a vontade não some, mas precisamos ser fortes.

Hoje em dia, não troco meu melhor dia na ativa pelo meu pior dia limpa. Ainda tenho abstinências, faço
uso de medicamentos controlados sempre prestando atenção naqueles que são pro transtorno
borderline, não deixo de tomá-los, de ir pra terapia, de trabalhar com minha mente que por mais difícil
que seja, não é tão ruim quanto ser refém da próxima dose.

Pretendo me formar, dessa vez no curso que sei que é o certo, pretendo continuar indo para reuniões de
narcóticos anônimos, apadrinhando recém chegados igual fui apadrinhada, sempre praticando os 12
passos e admitindo minha impotência perante algumas situações. Essa é minha história.

Sei que terei um grande futuro pela frente, se seguir no caminho que hoje estou. Entendo que não vai
ser fácil mas o importante é continuar indo a reuniões e só por hoje lembrar de não usar.

Um dia de cada vez. Uma alegria de cada cor.

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