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Um olhar visão do inconsciente

Sandra Mara Lopes de Oliveira

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4
À clínica do feminino, que revela o
inominável, logo, um discurso sem

palavras, fragilidade dos semblantes


e a existência do inconsciente.

5
“Quando um homem está com uma mulher nos seus braços,
ele acredita possuí-la, enquanto ela se distrai com sua própria
cegueira.”
Sandra Lopes

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PREFÁCIO

Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer: na


certa morreria um dia como se antes tivesse estudado de
cor a representação de papel de estrela. Pois na hora da
morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o
instante da glória de cada um e é quando como no canto
do coral se ouvem agudos sibilantes1 .

Falei com Sandra pouco antes de iniciar este prefácio, me dizia como
estava após o término deste livro: “Desde ontem eu cancelei tudo, estou parada
respirar dói, pensar dói amar dói ouvir dói, viver dói Ana”. O que me impactou foi
a ausência de vírgulas na sua escrita: “estou parada respirar dói amar dói ouvir
dói”. Dessas coisas que a gente lê e encontra outros sentidos. Parada
respiratória, amar dói, dói amar, ouvir dói, dói ouvir, dói Ana. Pensei, Sandra
escreve com o corpo, e quanto mais corpo, mais escrita! Dora, é você?
É primavera de 2023, nenhuma flor, uma primavera ambivalente, frio e
chuva, umidade, humanidade à flor da pele, convidada a fazer o prefácio do
trabalho de Sandra. Imediatamente fiquei com uma aflição na barriga, meu corpo
é sensível ao enigma do desejo do Outro, “estou parada respirar dói, “e mal
posso falar, de tanto silêncio desdobrado em outros”2, viver dói Ana, sem vírgula
também.

1
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela, p. 36, 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1978.

2
LISPECTOR, Clarice. Água viva, p. 93. Rio de Janeiro: Arte Nova, 1973.

8
Quando recebi o manuscrito, fui olhar curiosa o título: “Um olhar a visão
do inconsciente”. Lacan3 nos diz que o olhar é o avesso da consciência, isso
inflou como massa de pão sob efeito de fermento dentro de mim. O olhar sempre
foi político em minha vida, cresci sendo comida pelo olhar do Outro, a criança
sabe que tem algo ali, a criança quer ser olhada por necessidade, por isso goza
muito menos que o adulto. Como Sandra diz, somos modelados pela tirania do
sintoma do Outro. Eu encarava como forma de resistência, “não quero que me
olhe, tá olhando o que?”, quero tomar banho em paz: colonizada, mas não
domesticada. “Olhe para mim quando olho para você, você precisa ser
supervisionada”: a criança não quer olhar porque sente medo. Cresci, sempre
(m)olhada, e na vida acadêmica em que muito transito, escutava: “você olha
sério”, diziam, “nossa, que cara feia essa sua, sempre com a testa franzida”. O
único olhar pelo qual me constituí foi esse, ameaçador para mim, e para o Outro,
mas desde a infância, acomodando-se a este olhar dei corpo a este olhar, eu me
tornei esse olhar, afinal, era eu quem olhava no olho daquele que olhava-me
como objeto.
Diz Sandra: “É pela relação do olhar e do ser olhado que será distinguida
a posição ativa e passiva e reflexiva do ato de olhar do sujeito que busca
reconhecer o mundo numa posição de dominância e dominado do Outro ao
Outro” (p. 15). Durante a vida persegui alguns olhares para mim, dos poucos que
persegui, muito me machuquei, vivia então “numa espécie de atordoado nimbo,
entre o céu e inferno”4
Um olhar a visão do inconsciente, que tudo tem de ver com meu processo
de análise, m(eu) sintoma. Esse livro me olharia, portanto, “dói Ana”, sem vírgulas
novamente. Não falarei dos conceitos que Sandra extrai da psicanálise, este

3
LACAN, Jacques. Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise (1964). 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

4
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela, p. 45, 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1978.

9
trabalho dispensa apresentação, Sandra logo faz ao início, o que destaco como
diferencial, é sua articulação com o livro “A hora da estrela” de Clarice Lispector
e a teoria de Freud e Lacan.
Entretanto, Sandra nos diz neste livro, que “quem vê não é o olho, é o eu”
(p. 12). Assim, há parte de mim, identificada à Macabéa, pois minha “mulherice
só me nasceria tarde" e “espelho não é coisa criada e sim, nascida”, diz
Lispector5. No entanto, Macabéa morre acidentada, Sandra acolhe Macabéa e
haja feminilidade para entender, aliás, só se consegue ler o feminino, sendo
feminino.
Neste trabalho, temos portanto, um jogo de espelhos que se intercalam,
entre Sandra e Rodrigo S.M, Sandra e Macabéa, além de que no livro “A hora da
estrela”, há também este jogo de espelhos entre Rodrigo S.M e Macabéa, mas
também de Clarice Lispector e Macabéa. Portanto, neste livro encontraremos,
Clarice, Macabéa e Sandra, as estrangeiras. Clarice e Sandra judias e Macabéa
se muda para uma cidade grande e é invisível, pois é um sujeito comum.
Sandra, em seu primeiro livro “Memórias entre uma poltrona e o divã”,
nos diz que foi por acidente que se tornou psicanalista.

Logo cedo, devido a um acidente, perdi parte das minhas


memórias, por isto lembro pouco das imagens e palavras
de minha mãe, e de meu pai, não recordo de seus rostos,
sorrisos e lágrimas, como também dos cheiros de minha
casa, do meu quarto e, principalmente do meu pai e da
minha mãe.6

5
LISPECTOR, Clarice. Água viva, p. 92-3. Rio de Janeiro: Arte Nova, 1973.

6
OLIVEIRA, Sandra Mara Lopes de. Memórias entre uma poltrona e o divã, p.
16, Bom Despacho: Literatura em Cena, 2023.

10
Ah, se pudesse eu pegar Macabéa, dar-lhe um bom banho,
um prato de sopa quente, um beijo na testa, enquanto a
cobria com um cobertor. E fazer que quando ela acordasse
encontrasse simplesmente o grande luxo de viver7.

Sandra também comenta: “Não conseguia construir as imagens,


significantes, significado e significações e isto me causava intensa angústia e
horror, pois desacreditava a possibilidade de construir uma face, uma identidade
e um saber sobre mim sem ter que seguir os significantes do Outro” (p. 16).
Assim, “essa moça não sabia o que era, assim como um cachorro não sabe que
é cachorro”8. Nos identificamos assim a Macabéa, ou seja, crescemos a se
estruturar basicamente através de Outro, e nesse Outro buscar contornos.
Escreve Sandra: “Macabéa não apenas me representa enquanto mulher, mas
“a(s) mulheres que buscam em significantes fálicos um lugar para existir e
encontram a feminilidade denunciando a insuficiência do simbólico” (p 135).
Macabéa sofre um acidente, mas era de se espantar que ambas, Macabéa
e Sandra, “que um corpo quase murcho [...] tão vasto fosse o seu sopro de vida”9.
Assim, o trabalho de Sandra transita entre Macabéa, que busca sobre-viver,
numa cidade hostil e colonizadora, mas também de Rodrigo SM, em uma
categoria metatextual porque ele é, portanto, narrador-personagem e autor.
Como dizem Campedelli e Abdalla Jr, trata-se de um narrador “majestático e
presente em todo o texto, moldando a sua imagem e solidão”10
“A hora da estrela” nos convida a essa experiência narrativa, “envolvem o
dificultoso e o problemático ato de escrever - questionado quanto ao seu objeto,
à sua finalidade e aos seus procedimentos”11. O que Sandra nos oferece são
flashes deste trabalho de Clarice, então nos esbarramos entre o elo do narrador
que Sandra não o traz de forma neutra, mas também nos apresenta Macabéa a

7
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela, p.71, 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
8
Idem, p. 34
9
Idem, p. 73
10
Idem, p. 92
11
NUNES, Benedito. O tempo na narrativa, p.82. São Paulo: Ática, 1988.

11
partir dos recortes “separação, consulta a cartomante e morte”, e com isso
vamos costurando com os conceitos que Sandra extrai da psicanálise. Se trata
não somente do feminino, mas da santidade, a estrela. A sexualidade da mulher
só se faz neste acidente com o Outro, “não há relação com o Outro senão por
intermédio do que faz sentido na língua”12.
Sandra nos mostra na prática que devir do psicanalista é o de colocar algo
de si na psicanálise, isso tem efeito efervescente, porque, sendo ela não-toda,
com maestria, faz a psicanálise produzir a partir do seu balé. Quando a mulher
escreve, é sempre uma história de geminação. Mas há castas de psicanalistas,
ou seja: coloque algo de si, mas que esteja dentro de determinados códigos. No
entanto, me faço valer do que disse Hélène Cixous no livro “O riso da Medusa”,
quando ela diz: “transite nos círculos psicanalíticos, e, atravesse-os”13
Com isso gostaria de pontuar que Sandra, entre descoberta e invenção,
nos desloca para a invenção de uma clínica altamente sofisticada do feminino, e
isso é o que distingue a descoberta da invenção, como nos diz Heloisa Caldas14
enquanto a descoberta diz respeito a um objeto que já existe, a invenção diz
respeito a algo que deve portanto ser criado. Sandra, tu não fazes repetição
prosaica dos textos Lacanianos e isso muito nos enriquece. Que tu não percas
esse encantamento que levas tu a investigá-la. É preciso que a mulher escreva a
mulher, e que as mulheres leiam as mulheres, que elas estejam nos textos e na
vida, quando uma mulher escreve, sempre se trata de uma história de
geminação, pois a potência feminina e seu corpo apaixonado, seu corpo vertigem
escrevem as novas e outras mulheres, escrevem, portanto, as ambivalências
destes corpos subvertendo o discurso colonial-patriarcal.

12
FELMAN, Shoshana. La Folie et la Chose littéraire, p. 220. Paris: Seuil, 1978.

13
CIXOUS, Hélène. O riso da medusa. Trad. Natália Guerellus e Raíssa França
Bastos, p. 45. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.

14
CALDAS, Heloisa. Da voz à escrita: clínica psicanalítica e literatura. Rio de Janeiro: Contra
Capa Livraria, 2007.

12
É muito pouco o que ainda escrevemos até aqui. Que lembremos que
estamos em uma época de desvalorização de significados, se insistirmos em
executar a obra viril deles, estaremos repetindo os mesmos pontos de conexão,
mesmas rupturas, não somos um buraco de desejo de pênis, que lembremos que
o processo de desmasculinização envolve todos os dominados, o deleite pela
dominação sempre se tornou privilégio políticos de alguns, com uma grande
devastação ao longo dos séculos que resultou em uma disparidade de gênero,
linguagem e classe. Não precisamos construir nosso pensamento a partir de uma
relação heteronormativa com apenas um autor, pensar e introduzir outras
mulheres, e ir além da queixa do abandono deles, das inúmeras técnicas de
desumanização deles.
A história sobre a sexualidade das mulheres ainda está por escrever, se
vier a ser escrita, não será uma história prosaica e repetida, e será uma história
de festa de invenção de nossos corpos, de reversão, de ambivalência, porque
nós podemos ser nomeadas como enigmáticas, silêncio, mas serão estes,
sempre capazes de se olharem, de esboçarem palavras mudas. Que com tua
escrita continues a desmontar a lógica submetida aos dispositivos do discurso.
No seu livro, papel, no seu papel, vísceras, as suas.
Agradeço o generoso convite para fazer o prefácio dessa estrela de livro,
que ouçam então seus agudos sibilantes…

Ana Bernardes
Primavera de 2023

13
Referências

CALDAS, Heloisa. Da voz à escrita: clínica psicanalítica e literatura. Rio de


Janeiro: Contra Capa Livraria, 2007.

CIXOUS, Hélène. O riso da medusa. Trad. Natália Guerellus e Raíssa França


Bastos, p. 45. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.

FELMAN, Shoshana. La Folie et la Chose littéraire. Paris: Seuil, 1978.

LACAN, Jacques. Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da


psicanálise (1964). 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,


1978.

LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Arte Nova, 1973.

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa, p.82. São Paulo: Ática, 1988.

OLIVEIRA, Sandra Mara Lopes de. Memórias entre uma poltrona e o divã. Bom
Despacho: Literatura em Cena, 2023.

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15
SUMÁRIO

PREFÁCIO.......................................................................................................................

PRÓLOGO......................................................................................................................

PARTE UM: Olhos para especular, Olhos para olhar..............................


PARTE DOIS: À visão do corpo fantasiado..................................................
PARTE TRÊS : Às voltas do objeto a.................................................................
PARTE QUATRO: O inconsciente estruturado como uma linguagem....

EPÍLOGO :

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PRÓLOGO

Hoje pela manhã ao acordar e ir ao banheiro fazer minha higiene matinal, fiquei
alguns minutos vendo aquela imagem que estava refletida no espelho, fiquei
olhando como meu rosto estava se movimentando rápido, tão rápido que ali
olhando descobri algumas novas linhas.
Fiquei espantada como minha imagem havia tomado formas diferentes, ao ponto
de não mais me recordar do meu rosto antes daquela imagem refletida. Uma

mesclagem de espanto e ao mesmo tempo acolhimento, sim!, -colher, o que


se revelaria a partir daquelas marcas do tempo.
Fiquei pensando como nossas imagens se antecipam às nossas subjetividades,
pois pensei que ainda não estava disposta a envelhecer, ainda tinha tempo para
viajar mais, namorar mais, estudar mais e escrever mais livros.
Mesmo assim buscava apossar-me daquela imagem, percebia que havia feito isto
desde de muito pequena, a cada imagem que meu eu inscrevia de mim, era visto
como pertencimento e passava a me representar de alguma maneira.
Mas, não foi apenas esta imagem que capturei ao ver meu rosto, havia ali uma
outra que também me pertencia, uma segunda imagem, mais difícil de visualizar
porque ela não é vista, já que é um lugar do invisível a visão, lugar das impressões
sensoriais fugazes e inespeculares, havia ali um rosto visível e um invisível as
imagens, possíveis apenas aos sentidos, afetos e emoções.
Há muito tempo que me interesso pelo o que é visto e olhado, talvez quando me
autorizei ser uma analista, daquilo que não é visto ou falado, mas, foi pela
cegueira do divã como dispositivo analítico que pude perceber que o
inconsciente busca no estranho uma maneira de se revelar, naquilo que não se
vê e não se fala, logo, se revela por estranhamentos.
Ver e olhar transitam na prática de um analista, como também na sua experiência
de análise pessoal, num contexto em que visão e o olhar se diferem, contudo, se

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aproximam, é preciso que a visão seja excluída do espaço da sessão analítica
para que surja a potência do olhar, provocada pela cegueira estendia no divã em

contrastes com um olhar visão do inconsciente.


Logo, é a partir de uma escuta que as formações psíquicas, escópicas e visuais
são balizadas no manejo do analista, em outros termos, a escuta do analista é
uma posição muito particular que emerge do invisível do escópico, do impossível
de especular, digo, não é uma imagem do que escuta, mas, do estranho da
imagem falada, uma experiência que se impõem à imagem de um modo
surpreendente e contingencial, um ato inconsciente de olhar, um momento
fascinante e sensorial.
Não há como gozar do olhar, a não ser pela visões das formações inconscientes
(sintomas, sonhos, chistes, ato falho) formadores de imagens, não vemos coisas
em si, o que vemos são as imagens da coisa.
Para psicanálise, o mundo que vemos são o mundo das imagens, não é da coisa
em si, e quem vê não é o olho é o eu, que percebe as imagens inscritas e
percebidas pelo eu, que convergem em substâncias do eu.
A relação entre o eu e o mundo das imagens são constituída numa dimensão
contínua e inseparável, sem ruptura, chamada de dimensão imaginária.
Não sou, quando olho no espelho a imagem refletida, mas do ponto de vista do
eu, a imagem é o meu eu.
Para Lacan15 a dimensão imaginária, é considerada uma dimensão entre o eu e
o mundo das imagens, em que o eu é carregado de imagens, sendo o eu uma
imagem.
No entanto, eu sei que não sou a imagem, quando estou olhando no espelho,
mas, ali ocorre a alteridade especular, ou seja, na dimensão imaginária o eu é
mais uma imagem entre todas as outras imagens que é vista.
Este livro não irá se preocupar, apenas, com o que é visto das imagens do eu,
mas, também com aquilo que escapa às imagens e são transformadas em

15
LACAN, J. (1972/2003). Outros escritos.”Estadio do espelho...” Rio de Janeiro: Zahar

19
formações do inconsciente, em busca de resgatar um objeto privilegiado e para
sempre perdido.

Quando pensei neste nome: Um olhar visão do inconsciente para este livro,
estava refletindo na possibilidade de escrever a respeito da escuta analítica, a
partir do olhar do analista as imagens relatadas pelo analisante sobre seu eu, que
relata a sua relação com o outro/Outro, contudo, também me deparei com a
importância de trazer aos meus leitores as distinções relevantes entre: olho,
olhar, visão e fascinação do inconsciente, para compreendermos a importância
dos objetos parciais ( oral, anal, escópico e invocatório), como também a
relevância daquilo que J, Lacan nomeou como um objeto pequeno a, objeto
causa de desejo e de angústia.
A cada livro que escrevo a partir dos meus desejos inconscientes, eu tenho me
proposto a utilizar da psicanálise de Freud à Lacan como uma teoria de base para
fundamentar a temática do livro, contudo, tenho um apreço especial à literatura
e a arte, principalmente à literatura brasileira escrita por mulheres, logo, me atrai
profundamente o simples e comum do leigo, como também aquilo que é empírico
de uma práxis analítica, pois, não haveria um único escrito teórico sem a práxis
clinica.
Por isto, ao longo deste livro vocês encontrarão a teórica psicanalítica trazida por
Freud e Lacan, distribuídas em quatro partes. Outrossim, vocês também
encontrarão em cada parte, uma análise da teoria a partir da estória de uma
nordestina franzina e de pouco volume que será nossa estrela, pois revelará o
insuportável da existência humana, suas fantasias, seus sintomas e sua
insistência em existir como um “povo anão e teimoso” que busca uma inscrição
a partir de um não-saber.
Nossa estrela se chama Macabéa, e é a protagonista principal da última obra
escrita por Clarice Lispector antes dela falecer, chamada de “A hora da estrela”16,
publicado em 1977. Esta obra é considerada uma das mais importantes e
aclamadas da literatura brasileira e é conhecida por sua prosa intensa e reflexiva,
além de explorar temas como: identidade, solidão, desigualdades sociais e a

16
LISPECTOR, C, (1977-1988) A hora da estrela, Rio de Janeiro: Nova Fronteira

20
própria arte de escrever, é uma obra complexa e rica em significados e
significações, e as interpretações podem variar de leitor para leitor.
Neste livro, Lispector elege como protagonista uma jovem nordestina pobre,
anônima e marginalizada, cuja existência é permeada pela insignificância social
e pelo cotidiano monótono. Macabéa representa o sujeito castrado, um sujeito
comum, muitas vezes invisível em meio à cidade grande.
Há o uso de um narrador, chamado Rodrigo SM que permite que Lispector crie
uma visão externa do Outro sobre Macabéa. O narrador não apenas conta a
história de Macabéa, mas também reflete sobre suas próprias experiências e
sentimentos ao escrever, este narrador “ficcional” nos traz interações e reflexões
com os personagens, trazendo camadas adicionais de subjetividade à narrativa.
É por uma leitura reflexiva, a partir da “A hora da estrela”, que vocês poderão
questionar a si mesmo como analista, que ocupa em uma análise o lugar do
Outro. Mas, insisto em lembrar-lhes que é apenas um lugar como semblante de
a, e é o analisante, pelo processo de transferência, que define o analista como
Outro para dizer-lhe de suas angústias e desamparos, como também fazer-se
sujeito onde só existe objetos.
Na parte Um do livro, estaremos preocupados em descrever e distinguir a relação
entre olho, olhar, visão e fascinação na topologia lacaniana, sem deixarmos de
acrescentar a importância que Freud atribuiu aos objetos parciais na elaboração
de sua teoria das pulsões.
Estaremos mediando o que está “entre” o olho, o olhar e a visão, logo, a
necessidade, à demanda e o sintoma, diante de uma pulsão que tem como base
um “dar-a-ver” por uma implicância de um “falta-a-ser”, objetivado pela demanda
pulsional da visão inconsciente.
Pensaremos na pulsão escópica relacionado as primeiras experiências de
satisfação, na correspondência da Coisa que nunca mais será alcançada, mas,
estará sempre presente na relação do sujeito com o Outro, aquilo que está
sempre lá despertando o interesse libidinal do sujeito, como uma Coisa de um
olhar.
Estudaremos a ética do olhar decorrente de um furo, na cegueira e inconsistência
do Outro do inconsciente, revelado pela lei da castração, do Nome-do-pai, e

21
transformando o sujeito para uma além do que é visto como eu, o que permitirá
extrair o objeto a como causa de desejo e fonte de libido.
É pela relação do olhar e do ser olhado que será distinguido as posições ativa,
passiva e reflexiva do ato de olhar do sujeito que busca reconhecer o mundo
numa posição de dominância e dominado do Outro ao Outro.
Na parte Dois, buscaremos estudar a relação da pulsão escópica e as formações
das fantasias inconscientes, de maneira a refletirmos sobre a propositura da
pulsão fazer uso da fantasia, mirando o prazer e se esbarrando com desprazer,
visto que a pulsão recalcada no inconsciente nunca abandona a tendência a
satisfação completa, levando o sujeito a compulsão à repetição em busca de
satisfação primária.
Nesta propositura buscaremos na arte de Diego Velásquez, no quadro de Las
meninas, de 1656, àquilo que Lacan17 encontrou para analisar a estrutura do
sujeito na posição com o Outro simbólico, para a estruturação de um
inconsciente estruturado pela linguagem, como também a dinâmica do olhar, da
fantasia, um “olhar do Outro” que fundamenta a constituição do eu e do
imaginário e do Outro simbólico.
Assim, Lacan encontra na dinâmica deste quadro uma maneira de pensar a
complexidade da imagem na sua visibilidade, a partir do momento que o sujeito
é atingido pela negatividade do olhar do Outro, – 𝜑, revelando a estrutura do
Outro, isto é, que o Outro é furado, e a verdade é apenas uma estrutura de ficção.
Ainda nesta parte do livro, encontraremos Lacan18, no seminário, Os quatros
conceitos fundamentais da psicanálise e O objeto da psicanálise, trazendo o tema
do olhar apoiado na topologia, uma maneira de descobrir a materialidade da
fantasia, um lugar em que o Outro reflete no sujeito suas imagens e seus ideais.

17
LACAN, J. (1965-1966). O Seminário, Livro 13: O objeto da psicanálise [Inédito]

18
LACAN, J. (1964/2008). O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da
Psicanálise, p. 206. Rio de Janeiro: Zahar.
LACAN, J. (1965-1966). O Seminário, Livro 13: O objeto da psicanálise [Inédito]

22
Para tanto, recorreremos ao livro de Nasio19, Meu corpo e suas imagens, em
busca de falarmos sobre as fantasias inconscientes construídas a partir das
interações complexas entre o corpo real, o corpo imaginário e o corpo simbólico,
para podermos estudar o falo imaginário, - phi (– 𝜑) e o falo simbólico (Φ).
Também, pensaremos o gozo escópico na equivalência do gozo do supereu, um
para além da vida, um olhar de morte, impossível de suportar, por ser angustiante
e mortífero. Assim, um olhar enquanto a, que poderá proporcionar para o sujeito
prazer e dor, um mais-de-olhar, pontos de divergências dos destinos pulsionais:
recalque e sublimação.
A partir da parte três do livro iremos rumo ao inconsciente, nisto faz-se
necessário circunscrever às voltas do objeto pequeno a, oferecido por Lacan ao
formalizar em seu ensino o objeto a como um lugar que abrirá para às formações
do inconsciente.
Considerando que o objeto que interessa a uma análise não diz sobre um objeto
real, mas de um objeto lógico que ampara as relações do sujeito com o
outro/Outro, um objeto alucinado ou fantasiado tanto faz, pois é a forma que o
sujeito utiliza para enquadrar a realidade, sendo esta marcada por inúmeras
perdas e separações necessárias a partir de operações precisas, digo, a partir
do corte significante, para que o sujeito seja inserido num processo de
subjetivação e linguagem.
Assim as fantasias serão responsáveis por capturar o objeto a, elevando-o a
condição de satisfação e gozo, como também capturar um objeto que falta ao
seu desejo, em outros termos, o sujeito encontrará na fantasia um objeto lógico,
causado desde as suas primeiras relações com o outro, “lá onde era ‘um-único-
um’”.

19
NASIO, J,D. (2009) Meu corpo e suas imagens, Rio de Janeiro: Zahar.

23
E será pela marcação no real de um único traço que buscaremos refletir sobre a

lógica do objeto a e a lógica da fantasia, -lógica de um traço que o sujeito


busca para construir suas relações de amor, de desamparo, de desejo e de gozo.
Visto que, encontraremos no ensino de Lacan, a partir do seminário, livro 10, “a
angústia”20 a marca de um objeto a partir do imaginário e do simbólico,
demarcando a alteridade no Outro em uma sequência de extrações corporais (o
seio, as fezes, a voz e o olhar), um objeto a como um “objeto a mais” que causa
angústia por oferecer a falta e uma impossibilidade de um objeto para seu desejo.
Percorreremos também o seminário, livro 16, “De um Outro ao outro”, em que
Lacan nos apresenta sua formulação sobre um mais-de-gozar, isto é, uma

tentativa -mais de conseguir a consistência que falta ao Outro, a partir da


produção do furo que o sujeito busca dar um enforme de Outro (A), e assim o
objeto a perderá seu status de real para ir em direção às criações fantasísticas.
Mas é no seminário, livro 20, “mais, ainda”, que o objeto a ganha seu valor de
semblante, momento este que estaremos destacando o papel do analista como
lugar de semblantes de a, possibilitando às voltas dos objetos a como operações
simbólicas, de separação e subjetivação.
Ainda, na parte três consideraremos às voltas do objeto a por caminhos de um
grafo, o grafo do desejo, e daremos relevância às diferenças trazida pelo ensino
lacaniano entre necessidade, demanda e desejo, trazendo o por que da
importância do desejo para a vida subjetiva e psíquica, sendo ao mesmo tempo
intolerável, por revelar a falta constitutiva do sujeito e do Outro.
O grafo do desejo nos possibilitará compreender, a partir da dupla demanda

inconsciente, a castração e o gozo do sujeito e do Outro, e seu esforço -mais


de dar consistência ao Outro a partir da fantasia, ou seja, a partir de um enforme
de (A), e assim, buscaremos responder questões recorrentes nas supervisões
clínica de analistas, questões que permeiam tais dúvidas: Como localizar a
fantasia inconsciente na fala do analisante?; Como localizar o objeto a em um
processo de análise?

20
LACAN, J. (1962-1963/2005). O Seminário, Livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar.

24
Na parte Quatro, buscado um entendimento do inconsciente como uma estrutura
de linguagem, isto é, a ideia do inconsciente como repetição significante.
Assim, iremos transitar sobre o nascimento do sujeito subvertendo a verdade do
Outro, como também a inexistência da metalinguagem como um produto
totalizante da linguagem, aplicado no discurso cientifico que foraclui o sujeito em
prol de um objeto conclusivo.
A psicanálise se ocupa do sujeito do inconsciente na subversão do individuo
como unidade egóica, como imagens fabricadas pela cultura e pelo social, pois
acredita que ninguém se cura do inconsciente, mas, que pelas vias da linguagem
como estrutura poderá dizer d’alíngua materna que impulsiona um corpo, a partir
de significantes metafóricos a encontrar na linguagem, uma forma singular de
construir sua subjetividade, embora que, o corpo esteja mortificado pelo
significante do Outro.
Pensaremos, a partir da lógica do inconsciente à lógica dos conjuntos, em que o
sujeito do inconsciente questiona e mata o pai primitivo, naquilo em que Freud21
considerou o nascimento do sujeito sob a forma mítica da incorporação do pai
primitivo pelos filhos.
Lacan parte do pai, como um nome, um significante, em que emergirá o sujeito
como um processo lógico, ou seja, a partir do nada, da dúvida, da ausência, que
faz conjunto como também borda, logo, limite ao imperativo do pai.
Assim, Lacan pensa o sujeito, como uma transformação recorrente do
significante que remete a outro significante, Um Significante enquanto lugar, para
outro significante que se modifica a partir dos encadeamentos, tecendo sua
subjetividade e uma maneira de existir na realidade.
E finalizaremos com nossa estrela Macabéa22 transbordando de inconsciente,
digo, Um corpo causado pelo Outro, lugar em que o corpo d’a mulher enche-se
de angústia, pois não suporta carregá-los, lugar este que a “falta insiste em faltar”
e o sujeito morre por não suportar carregar os ideais do Outro.

21
FREUD, S. (1912-1914/2012). In Obras completas: Totem e Tabu. (Vol. XI). São Paulo:
Companhia das Letras.

22
LISPECTOR, C, (1977-1988) A hora da estrela, Rio de Janeiro: Nova Fronteira

25
Sandra Lopes
Fortaleza/ Brasil,12/10/2023

PARTE UM –Olhos para especular, Olhos para olhar

Qual a diferença entre olho, olhar, visão e fascinação na topologia lacaniana?


Vemos um mundo filtrado pela subjetividade de quem o constrói, isto é, uma
construção do imaginário e simbólico, de um remetente que posta suas
representações, semblantes, significantes e fantasias, e por estas o destinador
organiza-se naquilo que Freud nomeou de Outra cena- Vorstellungrepräsentanz
(representante - representação) ou representante psíquico da pulsão, designado
pelo inconsciente, que é cifrado como a cena do Outro, cuja função está ligada
a estruturação do aparelho psíquico e da mente, tanto inconsciente como
consciente, abarcando os três pontos de vista da teoria psicanalítica: o
topográfico, o econômico e o dinâmico.
No texto “O Inconsciente”, Freud segue falando que:

“… uma pulsão nunca pode tornar-se objeto da


consciência, somente a representação que
representa a pulsão é que pode. Mesmo no
inconsciente, uma pulsão não pode ser representada
de outra forma, a não ser por uma representação. Se

26
a pulsão não se prendeu a uma representação, ou não
se manifestou como um estado afetivo, nada
poderemos conhecer sobre ela. Não obstante,
quando falamos de moção pulsional inconsciente ou
de uma moção pulsional reprimida, não é senão por
um inofensivo descuido de expressão. Podemos
apenas referir-nos a uma moção pulsional cujo
representante-representação é inconsciente, pois
nada mais entra em consideração.”23

Há o que se escapa do campo do falante, o real escapa, o Outro intervém com o


que lhe falta, com o que ele não pode inscrever, pois a própria lógica comporta
um furo, um vazio, o Outro incide sob sua própria carência, pelo Troumatismo24.
Em outros termos, quando a criança, em algum dia, interpela seus pais sobre
seus desejos inconscientes de trazer ao mundo um filho, e em sua resposta
encontra-se um furo, o não saber dos desejos de seus pais, “era a hora”,
“aconteceu”, por quê?, concluí-se que o Outro não sabe o que deseja e por que
desejou ter filhos, e, quando o Outro é questionado há furo na linguagem, e este
furo se chama Outro, , o significante de uma falta no Outro.
Mas, o que falta a este Outro, o gozo ou o significante?
Lacan25, formulou que o Outro não existe, então onde há gozo o Outro não se
encontra, nisto, o gozo do ser falante sempre é um gozo colonizado pelo
significante e sua imagem, pela representação do Outro, em um saber da lógica
inconsciente.
Podemos considerar que a psicanálise freudiana foi constituída por dois
importantes conceitos: o inconsciente e a teoria das pulsões, e por tais caminhos

23
FREUD, S. (1915/2010) O Inconsciente, in: introdução ao Narcisismo, ensaios de
metapsicologia e outros textos, p. 182. São Paulo: Companhia das Letras

24
SOLER, COLETTE. (2021) De um trauma ao Outro, p. 73. São Paulo: Blucher
25
LACAN, J. (1958-1959/2016). O Seminário, Livro 6: O desejo e suas interpretações. Rio de
Janeiro: Zahar.

27
Lacan desenvolveu seu ensino, investigando o aparelho psíquico através de três
registros pulsionais: Real, Simbólico e Imaginário, para poder no final de seu
ensino, mais especificamente em 197926, dizer que nosso maior traumatismo ou
Troumatismo é ter nascido pelo desejo inconsciente do Outro, um desejo não-
sabido construído na cegueira do inconsciente.
É por um desejo obscuro que nosso estudo partirá, do olhar com destino ao
inconsciente, naquilo que convoca a colonização do significante e principalmente
a fenda subjetiva do desejo Outro. Iniciaremos pelo imaginário e simbólico para
podermos falar do furo no real como cifra inconsciente.
Lacan se deteve na temática sobre a pulsão escópica em várias momentos de
seu ensino, especialmente em O estádio do espelho27 e A agressividade em
psicanálise28. Também no Seminário, livro 10: a angústia29, quando aponta a
íntima relação da angústia com o olhar, especialmente o olhar do Outro. E mais,
ainda, no Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise30,
que recebeu o título de O olhar como objeto a minúsculo.
Nos primeiros anos do ensino de Lacan foram abordado a constituição do
registro imaginário para o psiquismo humano – O estádio do espelho (1949), a
dimensão imaginária ao lado do conjunto dos registros simbólico e do real.
Lacan31, faz referência ao livro O visível e o invisível, de Maurice Merleau-Ponty,
como também, A carta sobre os cegos para uso do que enxergam, de Diderot,
sem esquecermos da tragédia sofocliana de Édipo Rei, isto para abordar sobre a
angústia, a castração, e o objeto a.
Poderemos iniciar pensando o que há “entre” o olho, o olhar e a visão e a
fascinação, parafraseando Diderot, A carta sobre os cegos para uso do que
enxergam. É visto, que o olhar para psicanálise não é um olhar do sujeito, mas,

26
LACAN, J.(1979-1980). O seminário, livro 27: Dissoluçao . [Inédito]. Versão para circulação
interna da Ecuela Freudiana de Buenos Aires. Tradução de Ricardo E. Rodrigues Ponte.
27
(LACAN, J. [1949] 1998) O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos
é revelada na experiência psicanalítica, in: Escritos,
28
Idem
29
LACAN, J. (1962-1963/2005). O Seminário, Livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar.
30
LACAN, J. (1964/2008). O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da
Psicanálise, p. 206. Rio de Janeiro: Zahar.
31
Idem

28
sobre o sujeito, que visa o inapreensível, o invisível, o pulsional, e se apresenta
de maneira apagada e ao mesmo tempo fascinante à percepção do sujeito e que
lhe ocupa e perturba como uma luz que lhe cega diante do inapreensível do gozo
absoluto.
O olhar predomina sobre o olho, em outros termos, sempre há no visível, no
familiar um invisível, um estranho e fascinante, excluindo da consciência para
abrir-se ao inconsciente.
Lacan ao investigar o inconsciente estruturado como uma linguagem do Outro,
pensou no funcionamento psíquico mediante três registros: RSI (Real, Simbólico
e imaginário), e serão por meio destes registros que mediaremos a
correspondência entre olho, olhar, visão e fascinação.

1- Olhos para ver:

O que é visível do outro é especular, marcado pelo registro imaginário, formador


de imagens [i(a)] do eu, capturado pelo olho e ampliado pela visão, no qual, o
sujeito busca formar-se enquanto unidade ortopédica, de um semelhante que
diga quem “és tu” para poder gozar de um saber sobre si mesmo.
O olho é domínio do registro imaginário, que busca satisfação pelo gozo, onde o
eu é constituído por um mundo de imagens, [i(a)], pela imagem do outro no
espelho, imagem especular, e é estruturado e sustentado pelo simbólico, cujo o
sujeito se encontra “entre” significantes que representam o sujeito para outros
significantes, mundo do visível.
O que é a dimensão imaginária em Lacan?
É a dimensão da relação do eu com o mundo das imagens. Não somos a imagem
do espelho, mas, do ponto de vista do eu, a imagem é o eu. Gosto muito do que
Françoise Dolto32 insiste em destacar às mães, quando a criança está diante do
espelho: “Esta é sua imagem”. Dolto ressalta a importância em salientar que a
criança não é a imagem, e que a imagem é do eu, ou seja, o que há é a alteridade
especular e esta é falsa.

32
NASIO, J,D. (2009) Meu corpo e suas imagens, Rio de Janeiro: Zahar.

29
Do ponto de vista do imaginário, a imagem é o eu, e o eu é tão imagem quanto
qualquer uma percebida, seguindo o exemplo do espelho podemos dizer que “eu
não vejo esta imagem, eu estou nesta imagem”33, porém, não sou esta imagem.
O eu está na imagem percebida, e esta imagem percebida é o eu, contudo, o eu
não percebe todas as imagens, apenas àquelas que se reconhece, isto é,
percebe imagens pregnantes34, termo este que poderemos pensar quando
Lacan35 se refere às construções dos semblantes.
Os semblantes são todas as imagens que promovem sentido para o eu, e para
psicanálise quando se fala em sentido é o sentido sexual, pois o eu é um ser
sexual.
O eu busca ajustar-se às imagens que lhe produzem sentido sexual, prazer ou
desprazer, o mundo para o eu é um mundo das imagens, e os semblantes estão
intimamente ligados às histórias, impressões e sensações do sujeito.
O eu como sexual tem como ponto de partida o Édipo, logo a castração, que
ameaça o sujeito no pênis imaginarizado, este pênis carrega forte tensão
imaginária, que Lacan nomeou como falo imaginário, o objeto da castração – 𝜑,
no qual o eu se identifica, o eu é, essencialmente o falo imaginário.
O eu, têm um ideal imaginário com a qual se compara e que busca sentido na
relação do imaginário com o simbólico, o eu busca, não apenas no prazer e
desprazer, mas, também busca uma imagem esperada e jubilosa e reconhecida
como imagem fálica.
Assim, poderemos usar a metáfora utilizada por Lacan ao descrever as camadas
do eu, que tem uma forma de “eu cebola”: Parafraseando Nasio36, a primeira
camada, são as imagens do eu, a segunda camada, as imagens pregnantes,
chegando no núcleo: falo imaginário – 𝜑.

33
NASIO, J.D (1995). O olhar em psicanálise, p. 45.Rio de janeiro: Zahar

34
O termo “imagens pregnantes” é um termo utilizado por Nasio quando se refere a consistência
imaginária, In: NASIO, J,D. (2009) Meu corpo e suas imagens, Rio de Janeiro: Zahar.

35
LACAN, J. (1971/2009). O Seminário, Livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio
de Janeiro: Zahar.
36
NASIO, J.D (1995). O olhar em psicanálise, p. 26.Rio de janeiro: Zahar

30
Lacan ao fazer uso de um sinal algébrico menos phi (– 𝜑), refere-se a primeira
letra de “falo” em grego, para dizer do falo imaginário ou imagem fálica.
Mas, por que Lacan utiliza do – phi (pequeno falo) para falar do falo imaginário ?
Porque o falo é representado por um conjunto de imagens (primeira camada),
como algo que se destaca, para mais ou para menos, naquilo que é fascinante e
obscuro, familiar e estranho, luz e sombra, sendo desta maneira uma “imagem
fenda”37
Então, o falo imaginário em forma de fenda é fascinante e ao mesmo tempo é
aterrorizador, e representa o gozo-objeto, por quê?
Porque é aquilo que ocupa e incomoda o sujeito, no mesmo tempo, algo do
agalmático e constante, e tem as similitudes aos orifícios do corpo que abrem e
fecham, fechamento e abertura de significantes, que fascinam e iluminam para o
gozo.
“O caráter de objeto agalmático como enfeite,
ornamento que se oferece aos deuses, é como o
trompe-l’oeil, uma armadilha para os olhares: agalma
engana o olho para fazer valer o olhar. De fato, é a
pulsão escópica que faz de uma pessoa um objeto
excitante e charmoso, com o caráter do belo. O objeto
olhar, enquanto objeto pulsional, emerge no campo de
desejo do sujeito e veste a quem causar o desejo do
sujeito de beleza, a pulsão.
O olhar é o objeto da angústia quando a pulsão
escópica se revela como pulsão de morte: o olhar é
portador de um gozo mortífero.”38

O eu é modelado pela imagem do outro [i(a)] no espelho, sendo um objeto visível


pela especularidade com o outro, o que distingue do campo escópico, registro
real e pulsional do objeto a, que marca um resto que escapa o olho especular e
que produz angústia. É entre o visível do especulável e o invisível do escópico o

37
NASIO, J.D (1995). O olhar em psicanálise, p. 45.Rio de janeiro: Zahar
38
QUINET, A. (2002). Um olhar a mais,p.73. Rio de Janeiro: Zahar

31
sujeito percebe aquilo que vê e naquilo que é visto, a partir de um jogo de
imagens que nunca saberá o que irá ser revelado a seus olhos.
O processo ocorre pelo olho da criança diante de um espelho, antes mesmo de
falar e de andar, que reflete um corpo amparado pelo olho de um adulto em
confirmação.
Do ponto de vista cronológico e lógico, primeiro somos olhados, o Outro nos olha,
ainda que pela precocidade, os bebês humanos olham em direção àqueles que
os assistem, Lacan marca a queda que sofre o desejo, uma vez que nunca é
totalmente atendido.
“[...] o olhar opera numa certa queda, queda de
desejo, sem dúvida, mas, como dizer? O sujeito
não está aí de modo algum, ele é teleguiado”39.

A angústia é um corte, cujo o sulco é o real, o inesperado, uma notícia que


exprime um “pressentimento”, que não é entendido, mas que está ali no invisível
da pulsão, por isto, a angústia é “aquilo que não engana, o que está fora de
dúvida.., a angústia não é a dúvida, é a causa da dúvida.”40
Muito das nossas relações com o outro são especulares, posições de certezas
de ter um lugar de reconhecimento no outro, porém, há momentos em que a
imagem que acreditamos estar contida no outro modifica, e deixa de surgir a
posição do olho, e o valor da imagem começa a se modificar, o olhar aparece no
espelho e não mais reflete o eu, desembocando um sentimento de estranheza,
uma porta aberta para a angústia.
Então, como ocorre a transformação de um objeto visível, situável e reconhecível
para um objeto privado e irreconhecível?
Que momento ocorre esta transformação do especular para o escópico, gerador
de angústia e devastação?

39
NASIO, J.D (1995). O olhar em psicanálise, p. 52.Rio de janeiro: Zahar.

40
LACAN, J. (1962-1963/2005). O Seminário, Livro 10: A angústia, p.88. Rio de Janeiro: Zahar.

32
2- Do visto ao olhar:

Nos caminhos traçados até este momento de nosso estudo, podemos afirmar
que a angústia “não é sem objeto”41, contudo, não saibamos que objeto se trata
pois, “lá onde ele é, isso não se vê”42. Mas sabemos, como psicanalistas, que o
eu, busca uma imagem que lhe de sentido absoluto, a imagem como objeto de
gozo.
Outrossim, Freud e Lacan nos alerta da impossibilidade da satisfação pulsional,
e é por esta impossibilidade de gozo que o eu se desorganiza no que é visto, esta
fenda abre-se como um olhar para o inconsciente, diante do inapreensível,
enigmática, fascinante e pulsional.
É pela desorganização do eu como imagem que emerge o sujeito inconsciente
na sua impossibilidade de satisfação primária.
Quando Lacan enuncia a função fundamental do estádio do espelho na
propositura de marcar os vários momentos da relação do sujeito com o objeto,
ele apresenta, inicialmente, o plano da primeira identificação com a imagem
especular, a partir de um desconhecimento original com sua totalidade.
Em seguida vêm a referência transicional com o outro imaginário, seu
semelhante, e é por esta transacionalidade com o outro que surge a dificuldade
de discernir sua identidade da identidade do outro. Daí a introdução de um objeto
comum e de posse, na ideia de concorrência e rivalidade, ou seja, “ele é seu ou
é meu”.
No campo da posse, existem os objetos que podem ser partilhados e os que não
podem. Os objetos partilhados possuem função ambígua: rivalidade e acordo
para que possam ser trocados. Entretanto, há objetos que não entram no circuito
de objetos partilhados, como por exemplo àqueles equivalentes ao falo – o cíbalo
e o mamilo. Estes objetos não partilhados, mas reconhecíveis, tem o status de

41
Idem, p.101
42
Idem, p. 101

33
angústia, por ser anterior aos objetos partilhados e especuláveis, são objetos do
que se tratam o a.

Figura 1: A escolha de objeto43

Figura 2: O desdobramento da borda44

Na figura 1 e 2, há um caminho para refletirmos a respeito dos objetos


especulares e escópicos, de maneira a considerar o eu [moi] ser uma superfície
que se duplica diante do visível do olho e do imaginário i(a), como também é
negativado – 𝜑 pelo falo imaginário.

43
Ibidem, p. 105
44
Ibidem, p. 109

34
Para compreendermos a passagem do especulável (imaginário) ao escópico
(real), buscaremos uma referência que Lacan faz no seminário45, livro 10, “a
angústia” à uma passagem de fantasia de felaçao do “Homem dos ratos”46 :
“O comportamento noturno e bem sucedido do Homem dos
ratos, quando, depois de obter sua própria ereção diante do
espelho, abre a porta de seu andar para a fantasia imaginada
do pai morto, a fim de exibir aos olhos desse fantasma o
estado atual de seu membro [...] nesta relação fantasística, o
papel do Outro, no modo de presença aqui constituído pela
morte – esse Outro, diria eu, forçando um pouco, que olha
fantasisticamente para a felação”47.

Nesta perspectiva poderemos pensar na figura 2, que o primeiro representa o


vaso com o seu gargalo, isto é, o buraco deste gargalo, a segunda é a
transformação produzida na borda, ou seja, a identificação a nível do desejo, do
estranho e inespeculavel, isto é, de a. Na relação da imagem quando ela se
duplica, algo como resto fica de fora, inacessível a libido na apreensão do objeto,
assim é constituído o falo, logo, o pequeno a, trazendo uma distinção entre o eu
e o não-eu, sendo este exterior ao eu, o objeto causa de desejo e um objeto que
sinaliza a angústia, que indica algo da ordem da interrupção ou suspenção
especular.
É na medida que esse lugar vazio é visado e delimitado pela materialidade da
imagem especular que apresenta seu limite, uma hiância, uma abertura, logo uma
borda que marca um limite do mundo ilusório do reconhecimento. Essa borda,
esse enquadramento, essa hiância, na borda do espelho e no sinalzinho ◊ que
media o sujeito e o objeto na fantasia.

45
LACAN, J. (1962-1963/2005). O Seminário, Livro 10: A angústia, p.108. Rio de Janeiro: Zahar.
46
FREUD, S. (1909-1910) “O homem dos ratos, in: Observações sobre um caso de neurose
obsessiva, uma recordação de infância de Leonardo da Vinci e outros textos São Paulo:
Companhia das Letras

47
Prática sexual que consiste em estimular o pênis com a boca ou com a língua

35
O invisível é escópico, marcado pelo registro do real, pelo pulsional do olhar, por
um objeto causa de desejo e de angústia.
O simbólico é a visão ou subjetivação da marca do real no imaginário, logo, o que
o sujeito faz com sua castração, local das estruturas psíquicas (neurose, psicose
e perversão), das fantasias e sintomas do neurótico e perverso, dos delírios e
alucinações do psicótico.
A pulsão está mediando o que está “entre” o olho, o olhar e a visão, “entre” a
necessidade, a demanda e o sintoma, digo, que a pulsão estará na base do “dar-
a-ver” e “falta-a-ser”, que é objetivado pela demanda de uma visão inconsciente.
O olho e o olhar correspondem ao âmbito visual, na diferença entre real e o
imaginário, uma visão do simbólico, do inconsciente, seguindo a análise da
topologia lacaniana.
O sujeito é constituído no “entre”, do especular, do campo escópico e do
simbólico, em outros termos, do que é visível aos olhos e do que é invisível do
olhar surge o significante, logo, entre os registros real, simbólico e imaginário há
o movimento pulsional inconsciente.
O olhar se refere ao gozo, como um objeto mais-de-gozar, pensado por Lacan
em analogia ao mais-valia de Marx, em que o objeto a como valor do olhar é
conferido a um status de objeto causa de desejo e de angústia.
A pulsão escópica não está ancorado na necessidade, como as pulsões oral e
anal, que é representado como consistência material ao objeto a, mas, ao gozo
dos espetáculos e dos horrores, de maneira que o olhar só pode se ver ao preço
da cegueira, do desaparecimento do sujeito, do significante, do sintoma, o que
indica que toda pulsão é pulsão de morte.
A primeira percepção do Outro é oferecido ao sujeito pelo olhar, este que irá
revelar no sujeito sua fratura narcísica, uma experiência escópica que dirá sobre
um objeto para sempre perdido.
Poderemos pensar na pulsão escópica relacionado as primeiras experiências de
satisfação, que corresponderá a Coisa que nunca mais poderá ser alcançada,
nem na alucinação do desejo, nem na realidade, por maneira que ela foi
hipoteticamente olhada, cuja a imagem mnemônica irá se associar a traços de
memórias da excitação produzida por uma necessidade.

36
Freud descreve a Coisa como aquilo que está sempre presente na relação do
sujeito com o Outro, aquilo que está sempre lá, despertando o interesse libidinal
do sujeito, e por esta Coisa do olhar que o sujeito se movimenta em direção ao
Outro e pelo Outro.
A Coisa destacada por Lacan, é irrepresentável, impossível de apreender,
contudo, retorna como gozo na fantasia e no sintoma.
Desta maneira Lacan refere-se sobre o vazio da Coisa, da mesma forma que a
elaboração entre a Coisa e a lei: lá onde há das Ding como Coisa vazia, encontra-
se a lei moral, lei do supereu que comanda o sujeito. É através do conceito de
das Ding que é introduzida por Lacan a articulação entre lei e o real, de modo
que os significantes podem variar, mas a Coisa, fora do significante, permanece
a mesma, no interior do sujeito, a Coisa é presentificada como excluída, no qual,
Lacan nomeou como “extimidade”.
Assim, falamos que a Coisa analítica, é vazia, é escopeada, não especulável e
sem substância, todavia, é aquilo que em torno do qual o sujeito organiza-se
subjetivamente, como também, evocando o gozo através do objeto a nas
modalidades: oral, anal, escópica e invocante.
Do olho ao olhar podemos pensar da correspondência do imaginário e real. O
real é canteiro da pulsão, que encontra no gozo do olhar a satisfação, pois nossa
percepção visual é do domínio do imaginário, estruturado e sustentado pelo
simbólico.
Como já mencionamos acima a pulsão escópica, é discutido nos anos iniciais do
ensino de Lacan48, os quais descreve dois elementos derivados, especialmente,
da dimensão imaginária, a primeira do conjunto de registro, ao lado do simbólico
e do real.
Lacan49, a partir de Freud fala sobre a pulsão escópica e articula as posições
ativa, passiva e reflexiva, e apresenta seu raciocínio fazendo a distinção entre
olho e olhar, amparado pela referência à Merleau-Ponty em O visível e o invisível,

48
(LACAN, J. [1949] 1998) O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos
é revelada na experiência psicanalítica, in: Escritos,
49
LACAN, J. (1964/2008). O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fun- damentais da
Psicanálise, p. 206. Rio de Janeiro: Zahar.

37
e, diz que o visível depende do olho, e o do olhar, pois o olho e o olhar são
responsáveis pelo processo da constituição do sujeito, o a – a’, é simplesmente
olho e olhar, olhar e olho.
Em relação ao olhar é preciso enfatizar a distinção entre olhar e ser olhado,
apesar de fazer parte da mesma pulsão segundo Freud, convém distingui-las
pelas posições ativa, passiva e reflexiva.
O ato de olhar é possível pela posição ativa do sujeito, nesta posição o sujeito se
coloca como aquele que vê, que observa e que busca conhecer o mundo, uma
posição de controle e domínio pelo olhar.
Já a posição passiva ou de ser olhado, o sujeito é um objeto de olhar do outro-
Outro, sente-se observado e percebido pelo olhar do outro-Outro.
Somos “seres olhados no espetáculo do mundo”50, mundo que é, segundo Lacan
em mais um de seus neologismos, omnivoyeur, que olha e espreita tudo.
A posição reflexiva, o sujeito percebe-se como um objeto de olhar, mas também
é consciente de seu próprio olhar. Ele reconhece-se como aquele que olha e é
olhado, envolvendo uma dupla perspectiva, tanto como aquele que vê, quanto
como objeto do olhar.
Lacan sugere que o ato de olhar é um ato de poder, e diz do “empuxo daquele
que vê”, em que o olhar do sujeito pode influenciar ou afetar o objeto de sua
visão inconsciente. Esse empuxo está relacionado ao controle do objeto do
desejo, a partir da capacidade de impor uma visão ou uma interpretação sobre o
outro-Outro.
O registro simbólico, reduz a relação do sujeito ao significante, agindo como
barreira entre o imaginário e o real, presente em todo fenômeno da visão.
Nesta perspectiva, de três registros (RSI), o aparelho psíquico é estruturado: em
que o registro imaginário é do espelho da consciência, o registro simbólico, é
marcado pelo significante Nome-do-pai, e se estrutura pelo Édipo que esvazia o
gozo materno, e o real da pulsão, do invisível da angústia.
Lacan, no seminário sobre a angústia51 afirma que o olhar está sempre presente
na manifestação da angústia, na medida em que o olhar, enquanto objeto a, pode

50
Ibidem, p. 73.
51
LACAN, J. (1962-1963/2005). O Seminário, Livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar.

38
vir a simbolizar a falta expressa pela castração, [(- φ)], deixando o sujeito na
ignorância do para além das aparências.

“Quando, no amor, peço um olhar, o que há de


fundamentalmente insatisfatório e sempre falhado, é
que – Jamais me olhas lá de onde te vejo. [...]
Inversamente, o que eu olho não é jamais o que quero
ver.”52

Podemos pensar que o que é visto no espelho é angustiante, por não ser passível
de reconhecimento do Outro, é porque a relação que se estabelece com a
imagem especular faz com que o sujeito fique demasiadamente cativo da imagem
e sua relação com o Outro fica paralisada no significante que representa o sujeito.
No contexto da percepção visual, podemos pensar que o eu está para a visão e
o sujeito inconsciente está para o olhar, isto é para a.
O eu busca ocupar, pelo significante que representa o sujeito, o lugar do sujeito
dividido do inconsciente, barrando o olhar com objetos do desejo e da angústia.
O objeto a, em suas modalidades: oral, anal, olhar e voz, não são encontradas na
realidade, isto é, não são vistos, ouvidos, sentidos, tocados, nem experimentados,
pois, o objeto oral não é comido nem palatável; o anal sem cheiro; o olhar
invisível; e a voz, silenciosa, pois são objetos da pulsão como causa de desejo e
de angústia, diferentes dos objetos de desejos que buscam tamponar a falta
subjetiva e promover a satisfação através da fantasia.
Podemos encontrar o objeto a, como mais-de-gozar nos sonhos, no sintoma, no
olhar da vergonha, na inveja e no ciúme, de maneira velada e representado na
realidade, assim, podemos dizer que o olhar se apresenta como ponto invisível
da visão.

52
LACAN, J. (1964/2008). O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da
Psicanálise, p. 100. Rio de Janeiro: Zahar.

39
A ética do olhar decorre de um furo, isto é, o Outro é cego e inconsistente,
significante da lei da castração, do Nome-do-pai, fazendo o sujeito um ser para o
desejo, em que o olhar pode ser fonte para libido. Há uma barra sobre o olhar
que é o significante da lei da castração, o que permite a extração do objeto a no
campo da realidade.
Em recorrência a este objeto a, o olhar toma a dimensão do desejo, de um objeto
perdido, que em estado psíquico primitivo o sujeito obteve satisfação, de maneira
a buscar por repetição aquilo que Freud nomeou como “identidade de
percepção”, uma percepção visual da “imagem mnemônica” do objeto primevo,
que portanto é visual e corresponde à Coisa escópica que jamais é atingida pois
encontra-se no fundamento da experiência do desejo e que afeta o real do gozo
como algo impossível.
Esta experiência visual desperta curiosidade e interesse ao mundo visível,
contudo, o que emerge do visível é a barra ao gozo, um traço do significante, um
traço unário que apaga a Coisa, que é a marca da identificação do sujeito no
registro simbólico.
Mas, pensemos o que seria a Coisa analítica?
É o que faz o analisante retornar, na próxima semana, a sessão de análise, é pelo
real da Coisa, ou seja, pelo inapreensível do simbólico que o sujeito insiste num
dizer, naquilo do invisível do mundo dos objetos, que padece de significante, mas,
excede de significante da lei que vêm barrando o gozo, e paradoxalmente, toma
lugar do sujeito, com a Coisa.
A Coisa como um objeto para o gozo é simbolizável, e nisto, podemos pensar no
perverso sendo àquele que se consagra a tapar o buraco do Outro, ele está do
lado do fato de que o Outro existe, e “faz do perverso um auxiliar singular de
Deus”53.
A função isolável do olhar, em tudo que concerne ao campo da visão, escancara
a dificuldade de definição de: o que é um olhar, por isto delinearemos a relação
do olhar na perspectiva do exibicionista e do voyeur.

53
LACAN, J. (1968-1969/2008). O Seminário, Livro 16: De um outro ao outro, p. 345. Rio de
Janeiro: Zahar.

40
O exibicionista têm intenção de provocar o pudor, o susto, o eco, o risco, uma
pulsão reflexiva, que cadência o ativo e passivo. Na aparência ela é passiva, já
que dá a ver, e ativa, ao fazer aparecer o olhar no campo do Outro.
“É pelo gozo do Outro que o exibicionista zela”54, uma miragem que sugere a
ideia do Outro estar sempre ali na espreita, onde faz surgir o olhar, o real.
Já o que importa ao voyeur é interrogar no Outro o que não se pode ver, e buscar
uma sustentação ao inapreensível, um espiar no buraco da fechadura aquilo que
não se pode ver. Ser surpreendido na captura da fenda como aquele que não
enxerga nada coloca o voyeur numa posição de humilhação.
Lacan55, no seminário, livro 16, aborda não apenas a posição do olhar do
exibicionista e do voyeur como interroga a posição do objeto a na pulsão
sadomasoquista, diante do jogo com a dor entre um além e um aquém, dando
materialidade à um ponto cego, lugar do paraíso perdido do perverso.
Seja como for os paliativos que o homem utiliza para suportar a realidade, sendo
esta sentida como insuportável, Freud afirma que o objetivo maior do ser humano
é a busca de prazer “uma ausência de sofrimento e de desprazer”56 e “intenso
sentimento de prazer”, porém segue Freud “Nossa própria constituição, acredita,
restringe nossas capacidades de felicidade.”57
Freud classifica três fontes para o sofrimento humano: 1- “de nosso próprio
corpo, condenado a decadência e a dissolução ; 2- do mundo externo, que pode
voltar-se contra nós; 3- de nossos relacionamentos com outros homens”58.
Viemos ao mundo do Outro visando ser satisfeitos, saciados, saturados, contudo,
o que encontramos é um significante barrado ($), um Outro barrado e
inexistente, que confirma que o S, quando é marcado por uma barra no gozo,
vira objeto a, vira sujeito diante do desejo do Outro, e neste horror do
inapreensível, do invisível o sujeito se assujeita aos semblantes, sintomas e todas
as porcarias fálicas para conseguir ser visto e amado.

54
Idem, p. 246
55
ibidem
56
MARTINS, A. (2009). Pulsão de morte? Por uma clínica psicanalítica da potência, p. 92. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ.
57
Idem, p. 92
58
Idem, p.92

41
O sofrimento não compromete o prazer, pois, não existe um sem o outro, uma
coisa são os acontecimentos que marcam o sujeito, outra são os afetos ( medo,
angústia, horror, júbilo ...) que causaram no sujeito. Não tem jeito o sujeito para
se desenvolver psiquicamente terá que abrir mão do princípio, propriamente, de
prazer, em prol do princípio da realidade, regido por leis que regulam seus laços
sociais e culturais.
Um princípio da realidade que exige a mediações das pulsões, e normatiza um
ideal em detrimento das satisfações imaginárias, visto que, é pelo “princípio do
medo imaginário” que há a proposta à repressão e o recalque inconsciente,
daquilo que não pode ser visto das expressões expansivas e sexuais.
Freud nos apresenta sua ideia: “a irresistibilidade das pulsões perversas e, talvez,
a atração geral pelas coisas proibidas, encontram aqui uma explicação
econômica.”59. E seguindo esta linha de pensamento freudiano, podemos pensar
que o sujeito na impossibilidade de satisfação pulsional, busca “uma técnica para
afastar o sofrimento” que consiste no “deslocamento da libido”, reorientando os
objetivos pulsionais por meio de sublimações das pulsões, de maneira que as
satisfações pulsionais de grosseiras e primárias sejam refinadas e possíveis pelo
adestramento civilizatório.
Decerto, o prazer de ser olhado pelo Outro e principalmente de ser confirmado
narcisicamente aos olhos do Outro, está a maior parte do investimento psíquico
do sujeito que busca nas relações especulares a demarcação de seu lugar e de
sua existência, que busca um sentimento de confiança no outro, quando seu
corpo revela aquilo do invisível, isto, é da angústia.
Mas, a pulsão sempre estará na base de um “dar-a-ver” do sujeito, o que
proporciona visibilidade de si para o sujeito está no fundamento do que lhe é
afetado pelo olhar do Outro, logo, o estranho é o inapreensível do objeto a, objeto
invisível, que movimenta-se em busca de visibilidade diante da visão do
inconsciente, o que permite que o sujeito “toque com os olhos e desnude com o
olhar”60 o Outro a partir do gozo dos espetáculos e do horror, um objeto
agalmático, em que parte da cegueira inconsciente à materialidade do sintoma

59
Ibidem, p. 97
60
QUINET, A. (2002). Um olhar a mais, Rio de Janeiro: Zahar

42
para que, assim, possa sentir o ato de ser olhado pelo Outro. Um escopismo para
o desejo que vai sendo moldurado pela volta da pulsão, circundando uma
moldura para o real e revelando uma possível estabilidade da fantasia através da
demanda do inconsciente.

3- De um olhar à visão, ou, de uma visão ao olhar:

Estivemos até aqui pelos olhos do visível, mas, quais são os caminhos do invisível,
da cegueira inconsciente?
Podemos pensar que o olhar é uma forma velada do objeto a, não é visível, por
isto, não se encontra no campo da visão, apenas como um lugar de causa de
desejo, “O olhar é o invisível da visão.”61
Mas, também poderemos pensar que o eu encontra seu lugar na visão, no visto,
e o sujeito inconsciente e sua divisão subjetiva no olhar, como objeto a, logo, o
eu ocupa o lugar do sujeito dividido do inconsciente, ou seja, do percipiens da
visão do eu, no qual o visto, dá materialidade como perceptum, ocupando o lugar
do olhar e da angústia.

Figura 3: O eu especular sobre o sujeito do desejo inconsciente62

A visão especular do eu como imagem do outro i(a)] é apenas um envelope


imaginário do objeto, isto é, a fantasia, [ ◊ a], que encena sua relação com o
objeto.
A imagem narcísica esconde o sujeito do desejo, o sujeito dividido ( ) enquanto
que o quadro da fantasia mostra a falta, a negligência com o objeto da demanda
inconsciente, assim, ambos são construções imaginárias e enganadoras,

61
Ibidem, p. 50
62
Idem, p.50

43
portanto, tentam camuflar o furo do Outro, sendo possível pois, o espelho e o
quadro da fantasia possuem o objeto a do olhar, [i(a)] e [ ◊ a].
Neste sentido o sujeito em sua estratégia pulsional em direção ao objeto de
satisfação, pode atribuir diversos significados e significações ao olhar o Outro, e
é por estas diferenças que o sujeito se estrutura psiquicamente como neurótico,
perverso e psicótico.
O neurótico deposita no Outro um tributo de olhar que pode lhe causar desejo
ou angústia; o perverso entrega ao Outro o olhar para fazê-lo gozar; enquanto
que o psicótico tem no olhar do Outro imperativos de poder vigia-lo e puni-lo.
A teoria lacaniana do campo da visão inconsciente, trás o mundo daqueles que
veem e são visto, e que encontram na visão um olhar enigmático e agalmático,
para além do imaginário do espelho, isto é, para além do semelhante, que o espia
por detrás da janela da fantasia, lá onde aparece o olhar, a visão se decompõem.
Um inconsciente que reúne impressões de um corpo que vê e é visto, a partir de
um corpo estranho e enigmático. Logo podemos pensar na obra de arte mais
famosa do ocidente, “A Mona Lisa”, que atrai multidões para visualizar a pintura
de perto e registrar com suas maquinas fotográficas o olhar mais enigmático da
renascença:

44
Figura 4: A Mona Lisa – Leonardo da Vinci – 1503-150663

O grande Leonardo da Vinci experenciava a pintura como uma “cosa mentale”,


ele pensava a pintura como uma representação mental daquele que pinta, visto
por aquele que é um expectador.
Podemos pensar o corpo como uma “cosa mentale”, que mobiliza grande parte
da energia psíquica do sujeito, sendo este assujeitado à uma imagem de que é
visto pelo Outro e absorvido pelo eu.
Sendo assim, o eu é uma fusão íntima daquilo que é visto e daquilo que é olhado,
ou seja, a imagem visível de nosso corpo no espelho, e a imagem mental de
nossas sensações físicas.
E é nisto que a fenomenologia lacaniana da percepção visual sustenta, que existe
articulação significante a nível das sensações, emoções e afetos, que o sujeito aí
se encontra dividido entre um saber e um não saber, e que o olhar como causa
de desejo ou de angústia, mantém a condição de permanência, estabilidade e
existência.
Assim, para a psicanálise o objeto da pulsão escópica, o olhar, é um objeto
exemplar como causa de desejo, pois a desmontagem dessa pulsão revela o
movimento do sujeito no laço da pulsão, é o que se vê no sintoma neurótico em
que o olhar está em jogo, que permite representar a inconsistência do Outro
pela falta de materialidade do objeto a.
O objeto a, é o anzol que fisga o sujeito para o desejo, experimentando o objeto
a como causa do desejo. Sendo por isto que em análise o objeto privilegiado é
esse objeto, pela sua imaterialidade, sendo um objeto não para o conhecimento,
mas, para a experiência.
O tempo do objeto a é o instante do olhar, apreendido pelo tempo lógico e na
antecipação da certeza, pois o tempo se apresenta na precipitação do sujeito em
se concluir e subjetivar no desejo do Outro, assim, o objeto a está “entre” a
antecipação e o a posteriori, logo, ele não é um objeto fenômeno, mas, um objeto
da causalidade.

63
A Gioconda ou a Mona Lisa é um dos retratos mais emblemáticos da história da pintura.
Pintada por Leonardo da Vinci no século XVI, entrou nas coleções da corte francesa para depois
fazer parte das obras expostas no Museu do Louvre .

45
Por isto, poderemos dizer que o objeto a não é o objeto do desejo, e sim o que
causa o desejo, há uma supervalorização e fascinação deste objeto por parte do
sujeito, estando no que envolve o fetiche diante do desvelar da castração, no
brilho no nariz visto apenas pelo sujeito, do objeto agálma, na constância da
pulsão em busca de satisfação, mais-de-gozar, e no irresistível do olhar.
Somos sujeitos marcados por uma fenda, Spaltung, isto é, somos subordinados
e representados por um significante para outro significante, o sujeito é dividido
entre dois significantes, um “entre-dois”. O sujeito tem urgência da fala:

“Ele não é quem fala, mas de quem fala, um falta-a-


ser mais do que ser, ele não tem substância nem
representação no significante.[...]. Esse status de
objeto do sujeito é representado na fantasia como
está anotado no matema que Lacan propôs ( ◊ a),
que deve ser lido como sujeito desejo de a, no qual o
sujeito tem todas as relações possíveis com esse a,
objeto do desejo do Outro, objeto causa do desejo do
sujeito.”64

O objeto a, se apresenta para o sujeito como o real do sexo, que lhe escancara
sua divisão naquilo que corresponde ao consciente e inconsciente, a pulsão de
vida e pulsão de morte, saber e verdade, prazer e gozo.
Podemos pensar que o objeto a, é causa de desejo e o sujeito é o efeito desta
causa, sendo assim subvertido: a → , e é sua divisão o suporte para o desejo.

“O olhar é a causa do sujeito escópico, aquele


que, no campo visual, é sujeito do desejo, e
para isso é preciso que o sujeito consinta em
se apagar diante do objeto olhar.”65

64
QUINET, A. (2002). Um olhar a mais, p. 76, Rio de Janeiro: Zahar

65
Idem, p. 77

46
O sujeito diante de um objeto olhar, encontra seu próprio estranhamento de um
sujeito falta-a-ser, e por isto, procura uma representação, por identificação ao
traço unário que herdou do Outro significante (S1 ), no qual ancora seu gozo. Em
outros termos, o sujeito diante do inapreensível do objeto escópico, que lhe causa
desejo como também angústia, procura uma maneira de se tornar visível por
intermédio do dito do Outro, que lhe define com significantes, por exemplo: feio,
bonito, burro ou inteligente, e ancora seu ser no gozo.
O sujeito se assujeita aos ideais e as leis do Outro e se opõe a sua condição de
sujeito como objeto a, o a é ocupado pela lei, e a divisão do sujeito entre
enunciado e enunciação é ocupado pelo imperativo “Tu és” que constitui a
determinação do sujeito pelo significante que constitui a alienação do sujeito ao
Outro, e o que permite separar o sujeito desta posição é seu status de objeto a,
“Lá onde a lei se apaga é o objeto olhar que emerge”66, e nisto, podemos dizer
que lá onde está o objeto não está o sujeito, as custas de seu apagamento, logo,
no registro do simbólico o sujeito está em conjunção e disjunção com a demanda
do Outro, [ ◊ D], no registro do real o sujeito está para a pulsão de seus objetos:
oral, anal, fálico, voz, olhar.
Assim, o matema da pulsão [ ◊ D], é inscrita pela relação do sujeito com a
demanda do Outro em relação a conjunção, [V] e disjunção, [^] representada
pelo inconsciente.
No entanto, a pulsão oral e anal estão estritamente no nível da demanda. O objeto
oral está na demando do bebê ao seio da mãe. O objeto anal está na demanda
da mãe às fezes do filho, no processo de controle esfincteriano.
A pulsão escópica não está para demanda e para necessidade do sujeito e sim
no desejo de olhar, não havendo significantes específicos para pulsão escópica
no inconsciente, a não ser por empréstimo dos significantes das pulsões que
demandam: oral e anal, por tais caminhos que “comemos com os olhos o Outro”.
A pulsão inconsciente é representada pela inscrição significante, a
Vorstellungreprasentanz, é por esta inscrição que a linguagem do Outro é

66
Ibidem, p. 80

47
enunciada pela fala do sujeito, e recalcada no inconsciente, como um conceito
limite entre o simbólico-real, em Freud, somático e psíquico, e pelo registro do
real como libido, no qual, Freud designou inicialmente como afeto.
Em outras palavras, as pulsões oral e anal, passam pelo registro da fala por estar
vinculado a demanda e a necessidade, já o escópico e o invocante: olhar e a voz,
para ser evocado pela fala é preciso estar vinculado por uma demanda oral ou
anal, contudo, pela não representividade inconsciente, o olhar e a voz se
apresentam da seguinte maneira: o olhar como objeto de desejo ao Outro, e a
voz como objeto de desejo do Outro, dando a estes objetos uma consistência
inapreensível.

Objeto oral Demanda ao Outro


Objeto anal Demanda do Outro
Olhar Desejo ao Outro
Voz Desejo do Outro
Figura 5: Objetos da pulsão67

Os objetos da pulsão oral, anal, olhar, voz, são objetos oriundos de castrações,
oral a perca do seio, anal a perca das fezes, o olhar como perca de olhar, a voz
como perca de ouvir.
!"#$%
O olhar sendo nosso objeto de estudo, tem a marca do falo faltante, &'
, um

objeto separado do sujeito, perdido desde sempre, sendo assim, o escopismo


está sempre presente em todo momento subjetivo do sujeito da linguagem como
uma pulsão de dar-se à ver, para um dar-se à saber, e, é neste sentido que a

67
QUINET, A. (2002). Um olhar a mais,p. 82, Rio de Janeiro: Zahar

48
pulsão escópica ou “pulsão-despertador”68, está presente no encontro do sujeito
com o sexual, um olhar tycke rumo às formações inconscientes.

A HORA DA ESTRELA...Fiquei dias pensando em uma base literária para


embalar nossos estudos de: Um olhar visão do inconsciente, a princípio
imaginei várias obras brasileiras fantásticas, pensei em Dom Casmurro, de
Machado de Assis, cheguei a passar um fim de semana nas areias da praia do
Futuro/Fortaleza – Ce com Bentinho e Capitu, li o que ele falava e sentia por
Capitu e ela por ele, mas, não houve transferência, não seriam eles que iriam
transitar conosco nos canteiros do olhar rumo ao inconsciente.
Enquanto escrevia a base teórica de Freud à Lacan deste livro eu perambulava,
toda manhã feito uma sonambula acompanhada de uma xícara de café amargo,
na minha biblioteca, e com meus dedos curiosos eu buscava realizar um encontro
com uma obra que me fizesse perguntas, mas, que também provocasse meu
silêncio, para que despertasse em mim o mistério do inconsciente.
Até que em um dia de pouco sol e muita chuva em Fortaleza encontro Clarice
Lispector, que me entrega “A hora da estrela”69.
Nesta obra encontraremos uma Clarice comprometida com uma nordestina que
revela o insuportável da insuficiência simbólica diante da supervalorização das
respostas ao outro especular, desvelando a grandeza escondida na falta de
respostas, na imagem vazia de símbolos rumo ao enigma do desejo, marcado
pelos encontros e desencontros de um povo do Nordeste brasileiro, teimoso para

68
Ibidem, p. 85
69
LISPECTOR, C, (1977-1988) A hora da estrela, Rio de Janeiro: Nova Fronteira

49
que um dia possa validar sua possibilidade de existir a partir de um não-ser
nordestino frente ao “ambicioso clã do sul do pais”70.
Parafraseando o prefácio “O grito do silêncio” de Eduardo Portella para esta obra
de Clarice, o narrador, ao longo da história, assumirá três formas diversas de
presença:

“A primeira delas faz do monólogo do narrador o fio


condutor da ação e da reflexão, da linguagem e da
metalinguagem. Já no segundo momento, embora sem abrir
mão das pausas ou ingerências monologais, o narrador
prefere o puro e simples relato, contando, descrevendo, mas
retornando à proteção vertical do monólogo. Só no terceiro
desdobramento, a conversa entre a moça e o rapaz no banco
da praça pública constitui um escasso exemplo – o narrador
passa a palavra ao outro”71.

Neste livro, Lispector utiliza da linguagem como um lugar da existência do ser


humano, na proporção de que é pela performatividade ou plasticidade do
simbólico, isto é, da linguagem como uma atividade da fala, a partir de um
“sentido secreto”, que se abre o silêncio do inconsciente para uma sentença de
vida – “a cartomante lhe decretara sentença de vida, pois, Macabéa era uma
pessoa “grávida de futuro”72.
Eu já havia lido esta obra de Lispector quando eu tinha uns 25 anos, mas, foi ao
reler, para dar substrato humano ao nosso estudo, aos 55 anos, que pude
perceber uma tônica diferente, a gloriosa Macabéa de um certo “não sei”
escancara a complexidade das relações no bojo do inespeculável, da angústia e
do horror a um povo que se faz sintoma de uma maioria que consideram-se
gigante, quase uma “raça pura” de preconceito, misoginia e homofobia.

70
Idem, p.10
71
Ibidem, p. 11
72
Idem, p.12

50
Eu nasci na região sul deste país chamado Brasil, mas, muito cedo fui morar em
São Paulo e depois em Paris, e quando retornei ao Brasil também retornei a São
Paulo, até decidir passar minha “colheita” no Nordeste brasileiro,
especificamente em Fortaleza/Ce.
Quando tomei a decisão de me mudar para o Nordeste e lá construir um lugar
para ter meu filho e viver o que considero vida, fui questionada por uma pessoa
que me dirigiu a seguinte pergunta: “Sandra, mas lá nem leite condensado tem,
que tipo de vida você pensa em ter morando em um lugar subdesenvolvido?”.
Claro que não consegui responder, apenas ri, pois o inesperado é cômico e
revela certa estupidez, eu não consegui responder a alguém sem conhecimento
da diversidade e riqueza deste país, logo, pensei que tipo de teta esta moça
pensa que mama, a dos privilegiados?
Em “Mal-estar na civilização”73, Freud traz reflexões importantes acerca do papel
da cultura na condução do mal estar, naquilo que confere ao sentido e propósito
de vida, em que Freud aborda a pulsão de morte na relação entre cultura e o
Isso.
Desde o princípio desta obra Freud explicita que “cultura humana” é tudo aquilo
que difere da vida animal, deste modo a cultura é todo conhecimento do homem
de maneira a controlar as forças da natureza e extrair riqueza, além de constituir
os regulamentos necessários para os laços sociais, pois lembra-nos Freud da
impossibilidade do homem em viver sozinho, exigindo deste enormes sacrifícios
diante de certa renúncia pulsional.
Assim Freud escreve “toda cultura repousa em uma obrigação a trabalhar e uma
renúncia à pulsão, as culturas serão sempre ameaçadas pela rebeldia e pela
mania destrutiva dos participantes da cultura”74.
O quanto de sentido a cultura oferece ao homem? Para Freud “A cultura pouco
tem a temer das pessoas instruídas e dos que trabalham com o cérebro, pois
estas substituíram os “motivos religiosos”75.

73
FREUD, S. (1925-1926/2011). In: Obras completas: O futuro de uma ilusão, O mal-estar na
civilização e outros trabalhos (Vol. XXI). São Paulo: Cia das Letras.

74
MARTINS, A. (2009). Pulsão de morte? Por uma clínica psicanalítica da potência, p. 83. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ.
75
Idem, p. 87

51
Então poderemos pensar que a cultura como a religião oferecem sentido a vida
do homem, um certo sentimento de si mesmo, de pertencimento, de encontro e
significação, ou seja, a restauração do narcisismo ilimitado que fez do “homem a
imagem e semelhança de Deus”.
Mas, se o homem já é imagem de Deus, por que a semelhança, não seria um
pleonasmo, uma redundância semântica?
No contexto da análise de Lacan, podemos explorar a ideia de “imagem e
semelhança de Deus” de uma forma que dialoga com suas teorias sobre a
constituição do sujeito, o desejo e a linguagem.
A identidade do Eu é construída por meio de imagens e da entrada do sujeito no
mundo simbólico, que é mediado pela linguagem e pela cultura. O sujeito se
constitui como um Eu através da interação com os outros e da internalização da
lei do pai. Lacan enfatiza que essa identidade é sempre incompleta e
fragmentada, uma vez que está sujeito aos conflitos psíquicos.
Assim, em à “imagem de Deus”, podemos pensar na perspectiva de que a
imagem do eu é sempre por reflexos parciais na busca continua da imagem
perfeita e pelo desejo de ser reconhecido pelo Outro, na forma de plenitude ou
totalidade, dito que a imagem seja de Deus.
A “semelhança de Deus” é marcado por conflitos inconscientes, dos simulacros
da linguagem, já que o sujeito nunca conseguirá uma unidade perfeita, ou seja,
às semelhanças são impossíveis e inacessíveis ao sujeito, como é seu desejo
inconsciente.
Contudo, ainda, podemos notar que a separação entre cultura e natureza
pulsional desperta no homem um sentimento exacerbado de ameaça externa, de
desejo de combater aquilo que é estranho, escópico e inespeculável, pois
desperta às ameaças interna das pulsões.
E é por esta trilha do estranho e não da semelhança de Deus que iniciaremos
nossas reflexões em companhia de Macabéa, uma nordestina franzina, de pouco
volume e que nos apresenta que a verdadeira linguagem está no irreconhecível
da palavra.
Seguiremos pelos caminhos delineados por Lispector, ou seja, iniciaremos pelo
olhar do narrador sobre Macabéa, pois o princípio da vida humana acontece,

52
primeiramente, por um olhar estranho e irreconhecível do Outro, posteriormente,
um possível relato deste olhar do narrador e finalizaremos com uma tentativa de
comunicação entre o moço da praça publica e a nordestina que vive como uma
estrela cadente.
Nossos caminhos pela “A hora da estrela”, ao longo deste estudo, acontecerá
pelos linhames de Clarice Lispector, todavia, sem preocupações prêt-à-porter,
nada estará pronto e acabado, mesmo porque não conseguiríamos isto nesta
obra, mas, uma construção de encadeamentos de significantes, costurando o
real, o simbólico e o imaginário de um lugar em que o olhar ganha uma visão
inconsciente.
Então, iniciaremos pelo narrador Rodrigo S.M (Senhorita Macabéa) que inicia
fazendo uma ação reflexiva sobre o ato de escrever e questiona se terá êxito
como escritor diante de seu objeto, segundo ele, parco e sem atrativos como
Macabéa. Para tanto, se coloca de uma maneira que ao mesmo tempo que olha
é olhado pelo objeto, àquele que: “ninguém responde com um sorriso”, e de
inicio faz seu primeiro desabafo:

“Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade


através de muito trabalho”76.

E diz de sua dificuldade em escrever sobre a nordestina, por ser um ser “inócua
e não fazer falta a ninguém”, e nesta complicação diz sobre sua vida, naquilo que
de mais verdadeiro é irreconhecível, “o interior é inexplicável, sem palavras que
a signifique”77.
Desta forma, podemos mensurar a identificação com o outro visível e ao mesmo
tempo invisível, desprezível, como um resto da sua própria divisão subjetiva.
E “esfregando as mãos uma na outra” revela que “o vazio tem seu valor e a
semelhança do pleno. Um meio de obter é não procurar, um meio de ter é o de

76
LISPECTOR, C, (1977-1988) A hora da estrela, p. 17, Rio de Janeiro: Nova Fronteira
77
Idem, p. 17

53
não pedir e somente acreditar que o silêncio que eu creio em mim é resposta a
meu – a meu mistério”78.
E diante do desconhecido de si pergunta: “sou um monstro ou isto é ser uma
pessoa?”79, e se depara com o desamparo, com o temível, com a necessidade, e
conclui: “quem se indaga é incompleto”80.
São pelos caminhos da existência humana que Rodrigo indaga sobre o tempo
cronológico e a finitude, pensando que o cotidiano é um caminho para morte,
uma “fotografia muda”81, em que as coisas de tão boas podem ficar ruins, porque
“o que amadurece plenamente pode apodrecer”82, e que a imagem visível não é
garantia para o olhar daquilo que é misterioso, do enigma do desejo do Outro, e
nisto Rodrigo nos diz de um tempo lógico, em que a imagem se contribui para
um aquém e além da linguagem, num tempo imensurável que cadência o
passado, o presente e o futuro.
É por uma ética ao inapreensível, que Rodrigo reflete e que ao mesmo tempo se
angustia diante da inconsistência lógica, em que o Outro é envolvido por sua
própria cegueira diante sua própria castração.
E é por esta cegueira visível, que Rodrigo fala da eternidade como sendo o dia
de hoje, e nos diz que a maior tragédia humana é presentificada no presente, isto
é, “o dia de amanhã será um hoje, e a eternidade, é um estado de coisa neste
momento”83.
E nesta dimensão em que o amanhã tomará corpo do hoje, que o vazio da Coisa
analítica é constituído, como à falta de significante que possa representar o
sujeito na ortopedia do eu, como uma impossibilidade de gozo devido a sua
eterna divisão subjetiva, em que o Édipo vela o vazio do gozo, e atribui seu caráter
proibitivo, e o sujeito crê na proibição de seu desejo e no futuro de uma ilusão.
E nesta impossibilidade de inscrição sobre a nordestina que Rodrigo é
assombrado por medos invisíveis e diz:

78
Ibidem, p. 20
79
Idem, p. 21
80
Idem, p.22
81
Idem, p.23
82
Idem, p. 23
83
LISPECTOR, C, (1977-1988) A hora da estrela, p. 25, Rio de Janeiro: Nova Fronteira

54
“Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar pedras...o
que me proponho contar parece fácil e à mão de todos, mas
a sua elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido
o que está quase apagado e que mal vejo. Com mãos de
dedos duros enlameados apalpar o invisível na própria lama
[...]. Por enquanto quero andar nu ou em farrapos, quero
experimentar pelo menos uma vez a falta de gosto que dizem
ter a hóstia. Comer a hóstia será sentir o insosso do mundo
e banhar-se no não. Isso será coragem minha, a de
abandonar sentimentos antigos já confortáveis”84

Rodrigo nos propõem um experimento com aquilo que é inapreensível na


totalidade, logo, com o estranho e escópico do nosso sintoma, para tanto sugere
que é no vazio da palavra, sem significação do Outro ou ao Outro, que o afeto
angústia se instala pois “existir é coisa de doido, caso de loucura. Porque existir
não é lógico”.
O inconsciente propõe-nos sua lógica por intermédio de suas formações
psíquicas ( sintomas, sonhos, chistes, atos falhos), que buscam pelo princípio do
prazer, isto é, pelos processos primários, satisfazerem as pulsões inconscientes
( oral, anal, olhar e voz).
O sujeito busca uma maneira de ser amado plenamente no campo da linguagem
do Outro, lugar de alienação do sujeito ao Outro simbólico, e fora da significação
dada pelo Outro, o sujeito é atacado pelo o estranho de seu ser, pelo real de seu
corpo, aquilo que escapa da imagem, o insuportável de sua existência, mas, que
não há como evitar, levando Rodrigo diante de seu enigma: “Por que escrevo
sobre uma jovem que nem pobreza enfeitada tem?” e ele mesmo responde:
“Para ser mais do que eu, pois tão pouco sou” e portanto, é pelo estranho, o
inapreensível que Rodrigo se entrega em um para além do que é visto, em busca
de uma nova representação, de um dizer do sujeito que diante de sua castração,
de um “entre” enunciado e enunciação, afirma-se em uma operação simbólica

84
Idem, p. 25 - 26

55
para poder ser visto pelo Outro, e é nisto a implicância de sua insuficiência pois
sempre fracassa ao ser representado pela linguagem do Outro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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56
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SOLER, COLETTE. (2021) De um trauma ao Outro, p. 73. São Paulo: Blucher

57
PARTE DOIS - A visão do corpo fantasiado

“Quando vejo meu rosto no espelho tenho que alertar-me que não sou esta
imagem, sou o que sinto desta imagem, trata-se de um sentido sexual para o
prazer e desprazer.” Sandra Lopes

A imagem inconsciente do corpo é considerado pela psicanálise um dos


conceitos importantes no que representa o sujeito em sua urgência em
comunicar-se com o Outro. É por uma imagem inconsciente do corpo que a
escuta do analista se funda, naquilo em que o sujeito busca ser visto e
reconhecido como um objeto fálico para o Outro, isto é, que o sujeito seja
reconhecido, tal como ele é e onde é, onde o eu85, narcisicamente, é apreciado
pelo Outro.
Então, o que podemos entender do que seja uma imagem do corpo?
Em uma equação bem simples, a imagem é o duplo de um objeto considerado
original, existindo cada um em espaços diferentes. Assim poderemos considerar
que o duplo do corpo poderá ser um reflexo no espelho ou uma fotografia, ou
também uma representação mental, consciente ou inconsciente.
O que é a imagem inconsciente do corpo?
No setting analítico o analista escuta as imagens do eu, construída pelo
imaginário e pelo simbólico, mas, também o analista-escuta está diante das
sensações, emoções e afetos, experienciadas pelo sujeito em sua relação com o
Outro, e que o sujeito expressa um saber na sonorização das palavras, sendo seu
código intimo, peculiar e subjetivo.

85
O eu minúsculo para destacar a relação do eu com suas imagens

58
“A imagem inconsciente do corpo é o conjunto das
primeiras impressões gravadas no psiquismo infantil
pelas sensações corporais que um bebê, até mesmo
um feto, sente ao contato de sua mãe, ao contato
carnal, afetivo e simbólico com sua mãe. Sensações
que foram sentidas pela criança antes do domínio
completo da palavra e antes da descoberta de sua
imagem no espelho, isto é, antes dos três anos.”86

No decorrer do desenvolvimento psíquico a criança é fascinada por sua silhueta


como imagem, diz Lacan no “estádio do espelho”87. Mas é por uma desilusão na
impropriedade da imagem refletida e experienciada pela criança, que Françoise
Dolto88 caracteriza como um verdadeiro abalo, um trauma no psiquismo da
criança, em que Dolto, na contramão de Lacan que revela o prazer com a
imagem, afirma o sofrimento que invade a criança de três anos que descobre que
ela não é a imagem, mas, que a imagem é a aparência de si.
É a desilusão que o sujeito esquece, ou seja, sua decepção de não poder se
apropriar da imagem fálica e lisonjeira do parecer, para tanto, é por uma
insistência dos pareceres que o sujeito dedica sua vida em negligência às suas
sensações internas, é o que está fora de si que o sujeito busca ocupar-se,
esquecendo o que de dentro lhe implica nas suas escolhas e imagens, utilizando
da imagem especular em beneficio ao narcisismo.

“Uma vez que as imagens do espelho me enganaram,


pois bem, agora sou eu que vou enganar o mundo

86
NASIO, J,D. (2009) Meu corpo e suas imagens, p. 21,Rio de Janeiro: Zahar.

87
(LACAN, J. [1949] 1998) O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos
é revelada na experiência psicanalítica, in: Escritos

88
NASIO, J,D. (2009) Meu corpo e suas imagens, Rio de Janeiro: Zahar.

59
com a minha imagem!. [...] Agora, a imagem do corpo-
visto prevalecerá sobre as imagens do corpo-vivido.
É, portanto, a partir dos três anos, e durante toda a
nossa existência, que a imagem do corpo-visto irá
impor-se incessantemente na consciência, em
detrimento das imagens do corpo-vivido, que, por sua
vez, serão relegadas e recalcadas no silêncio do
inconsciente.”89

Parafraseando Nasio90, é pela imagem de um corpo visto, de pareceres do Outro,


que o sujeito se dedica conscientemente, de maneira que as imagens das
sensações internas, de um corpo-vivido, são recalcadas, logo, a amnésia infantil
busca livrar o sujeito das tensões oriundas de sua sexualidade, que tornarão
invisível ao consciente e pulsante no inconsciente.
No entanto, as imagens inconscientes de um corpo-vivido são, ativamente
reativados, quando o sujeito se vê diante de uma desorganização de sua própria
imagem narcísica, tempos este marcados por uma crise existencial, exemplos:
adolescência e velhice, onde há um estranhamento do eu narcisístico diante do
eu imagem [i(a)], nos quais se agitam emoções e afetos inconscientes e
recalcados, o sujeito fica confuso diante de uma imagem que não mais
representa seu eu.
O exemplo dado da adolescência e da velhice, são momentos de crise dado por
uma desorganização de imagens narcísicas, contudo, nós psicanalistas
recebemos cotidianamente sujeitos que buscam uma análise devido ao fato de
que seus sintomas (atenção, dedicação e esforços...) não estão mais sendo

89
NASIO, J,D. (2009) Meu corpo e suas imagens, p. 22,Rio de Janeiro: Zahar.

89
(LACAN, J. [1949] 1998) O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos
é revelada na experiência psicanalítica, in: Escritos

90
Idem

60
suficientes para garantir seu ideal narcísico diante do Outro, desta forma
emergem nas sensações atuais as imagens gravadas por sensações
inconscientes.
Contudo, as imagens inconscientes nunca se manifestam livremente, mas, por
“filigranas”, isto é, na decodificação que o analista realiza no processo de
transferência.
O termo “filigrana” tem origem na ourivesaria e refere-se a uma técnica de
trabalhar com os fios finos de metal (como ouro ou prata) para criar padrões
elaborados e intrincados:

Figura 1: filigranas de metal

Na psicanálise, o termo “filigrana” pode ser usado metaforicamente para se


referir a detalhes ou padrões sutis e complexos presentes no discurso do sujeito
sob transferência. Neste sentido, as “filigranas” podem ser entendidas como
elementos inconscientes, que se manifestam a partir dos registros do real,
simbólico e imaginário, os quais, o analista decodifica através de sua escuta ativa
que busca, na malha tecida pelas fantasias inconscientes, àquilo que sustentam
os sintomas conscientes.
Sendo assim, o inconsciente manifesta-se pela marcação do analista na fala do
sujeito que faz uso da linguagem do Outro, é no Outro furado, , que está a
importância do simbólico, é pelo simbólico que o sujeito irá reorganizar as
imagens inconscientes e dar novas simbolizações, dando aos afetos uma
representação nas quais há conjunção e disjunção entre um corpo-visto e um
corpo-vivido.

61
Outrossim, não poderemos deixar de ressaltar que as imagens do inconsciente
são traços impressos de sensações sentidas pelo sujeito no decorrer do
desenvolvimento de sua sexualidade, nisto, podemos falar que o sujeito, em
análise, irá elaborar o luto dos objetos perdidos (oral, anal, olhar, som), ao longo
de sua existência, em que o corpo se torna a fonte fértil para a constituição do
inconsciente, não um corpo físico isolado, mas, um corpo impregnado pela
presença do outro/Outro, vibrante ao contato carnal e sexual.
Há nas imagens inconscientes do corpo, traços indeléveis das sensações
experimentadas na infância, traços duradouros e ativos pulsionalmente, que
fazem o sujeito reviver as primeiras sensações (prazer ou desprazer) sensoriais
de um corpo infantil.
Nasio91 em seu livro “Meu corpo e suas imagens” também aborda sobre as
imagens e traços sensoriais de um corpo-imagem, considerando dois elementos
distintos para a representação subjetiva:
Sensação percebida:

“Sentida no instante, e a imagem que dela se imprime


no inconsciente. Não sentimos nenhuma emoção,
viva, agradável ou dolorosa sem que,
simultaneamente, imprima-se sua representação
psíquica. Repito: todo vivido afetivo e corporal intenso,
consciente ou não, deixa seu traço indelével no
inconsciente.”92

Neste sentido, o inconsciente é constituído por uma memória de emoções vividos


de um corpo infantil, que coincidem com as sensações do presente do adulto,
logo, as sensações se condensam na condição em que o corpo atual experimenta
sentimentos de um corpo de criança. Dois corpo: da criança; e do adulto;

91
Ibidem

92
Idem, p. 22

62
experimentam a mesma memória inconsciente, o mesmo ritmo, as mesmas
sensações primitivas, subvertendo o tempo para manter o gozo - objeto.
Freud93 em seu texto, As pulsões e suas vicissitudes apresenta-nos os destinos
das pulsões como também destaca um conceito relacionado ao termo “apoio”,
para dizer sobre a base dos orifícios fisiológicos na qual nascem as pulsões.
Desta maneira, a pulsão apoia-se no erógeno do orifício fisiológico. Neste
contexto, os olhos não terão, apenas, a natureza de ver, mas de olhar, o escutar
assume-se na condição erógena da voz que entra, mas, de ameaça. O olhar e a
voz, são dois veículos através das quais se exercem a ameaça da castração,
assim, o olhar e a voz terão como atividade pulsional de tensionar, tensionar,
para poder relaxar, em busca de uma visão e uma sonoridade que ampare o
sujeito à ameaça de castração.
Para tanto, existem duas condições para que uma sensação seja imprimida como
imagem inconsciente, a primeira está intimamente relacionada com que Freud94
afirmou sobre a origem da pulsão nos orifício erógenos, logo, a primeira condição
é que as sensações sejam emanadas do corpo da criança em estado de desejo,
isto é, em busca do corpo da mãe para satisfazer-se, esta relação prevalecerá
como sensações experimentadas como prazer.
A segunda condição é que para tais sensações se tornem imagem inconsciente,
é necessário que ocorra a repetição para deixar uma marca, pois, a imagem
inconsciente do corpo é uma imagem tomada de ritmos e o corpo imagens de
emoções, no cadenciamento das trocas sensoriais e sensuais.
É no encontro carnal, corpo desejoso, carregado de intima tensão que as
emoções emergem de seres desejantes e simbólicos, que se constituirá e
permanecerá inscritos na memória inconsciente do sujeito.
É necessário ressaltar que o que se inscreve como imagem inconsciente do
corpo, não são caricias entre mãe-filho, mas a cadência tensional de um corpo

93
FREUD, S. (1915/2010) Os instintos e suas vicissitudes, in: introdução ao Narcisismo, ensaios
de metapsicologia e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras

94
ibidem

63
infantil, assim, a imagem inconsciente do corpo é imagem de ritmos pulsionais
de maior e menor tensão.
O desejo da criança percorre os significantes inconscientes como uma corrente
elétrica e acende produzindo correntes de visibilidade, isto é de imagem, logo, o
sujeito adulto terá visibilidade destas emoções por meios de representação
consciente, correspondente a imaginarização do simbólico (desejo da criança).
As representações do desejo inconsciente encadeiam-se segundo as leis da
linguagem, tendo um caráter de imagens, quando investidas pela corrente do
desejo.
Com isto, é possível pensar que o eu é constituído por representações mentais
das sensações corporais, como também por uma imagem especular duplicada
do corpo, portanto o eu é um sentimento, eminentemente, subjetivo constituído
por um eu-vivido e um eu-visto, que se entrelaçam em busca de conhecimento,
pois segundo Lacan o eu ocupa um “lugar do desconhecido”, onde o eu tem
como núcleo o pequeno falo (- 𝜑), que oscila nas certezas e nas ignorâncias de
si, por isto, a visão do corpo nunca é concreta, ora tende para mais, e outras para
menos, sempre uma imagem exagerada, sempre em excessos ou em falta.
Vemos o que o desejo inconsciente nos leva a ver, e nisto a imagem do corpo é
sempre falsa, uma miragem de um objeto perdido, percebido com olhos de amor
ou de ódio.
Nesta perspectiva, o relato do sujeito em análise sobre uma coisa que lhe é
importante, será sempre deformada por influência do que é visto e vivido, isto é,
o objeto será percebido sob o apogeu do consciente e do inconsciente.
Assim, o objeto real é percebido por intermédio das brumas das fantasias
inconscientes, [ ◊ a], em que o objeto é apreendido pela fenda da castração ,
do visível (imagem visto-consciente) e do invisível (imagem vivido-inconsciente).

“É através do filtro de uma fantasia composta de


quatro lentes deformantes que percebemos a coisa
real que conta efetivamente para nós. As quatro lentes
são: os sentimentos (“Eu a amo”); a lembrança
(“Encontro hoje o mesmo objeto de ontem”); o grande

64
Outro (“Encontro esse objeto bonito ou feio”, segundo
o cânone de beleza em vigor na sociedade); e a
imagem antiga do objeto superpondo-se e
deformando a imagem de hoje (“Percebo o objeto
velado pela imagem que conservo dele na minha
memória afetiva e inconsciente”)95.

A partir de tais considerações sugeridas por Nasio96 há condições de refletirmos


sobre o duplo do eu, seja em condições de uma imagem reflexo visível; uma
representação mental consciente ou inconsciente; ou um ato; sempre estará na
condição de duplo, ou seja, a imagem visual é duplo do corpo, a imagem mental
é duplo das sensações; e a imagem ação é duplo das emoções inconsciente.
No inconsciente, a emoção circula, sempre, dramatizada numa situação cênica,
uma “protoimagem”97, esta pode permanecer inconsciente ou voltar a
consciência, impondo-se em um comportamento (imagem-ação), tipo um
sintoma que se apresenta na consciência em oposição a um sentimento
inconsciente.

“As imagens-ação não se formam em duas


dimensões, mas em três, elas não se desenham em
nossa consciência, realizam-se concretamente numa
atitude corporal involuntária suscetível de ser
interpretada pelo psicanalista como reveladora de
uma emoção congelada no inconsciente. Em suma, as
imagens-ação são posturas, mímicas ou gestos
espontâneos, imagens vividas no lugar de refletidas,
atuadas mais que representadas. É perfeitamente

95
NASIO, J,D. (2009) Meu corpo e suas imagens, p. 66,Rio de Janeiro: Zahar.

96
Idem
97
Termo utilizado por Nasio, In: NASIO, J,D. (2009) Meu corpo e suas imagens, Rio de Janeiro:
Zahar.

65
compreensível por que essas imagens, esses signos
não-verbais, são, para o clínico, verdadeiras garras
para apreender as emoções inconscientes do
paciente.”98

Mas, retornemos a fantasia, segundo Nasio99 ao realizar sua leitura em Lacan


sobre o corpo: real, simbólico e imaginário, Nasio pensa em um corpo fantasiado
a partir de três corpos: corpo real, corpo imaginário e corpo simbólico.
O corpo real revela o inexoráveis das sensações, dos desejos e do gozo, logo, o
real do corpo.
O corpo imaginário é o que é visto, e o corpo simbólico é acima de tudo um
significante, corpo simbolizado.
O corpo é sempre fantasiado, “quando o sinto, ele assume o status de real;
quando o vejo, assume o status de imaginário; e quando provoca uma mudança
em minha vida assume o status de significante.”100
O corpo que se apresenta à escuta do analista é o corpo fantasiado, de modo
que o sujeito o descreve através de seu relato daquilo que lhe é importante. No
que concerne importância ao sujeito, o analista escuta um corpo real, corpo das
sensações, do gozo, do desejo e da angústia.
Ao descrever a angústia o analisante forma uma imagem mental das sensações,
exemplo: “estou sufocada”, esta imagem consciente faz-se pregnante quando
associada a um episódio infantil relacionado a sua história de vida, uma
“protoimagem” consistente e repetitiva por ser uma imagem corporal inscrita no
inconsciente.
O corpo imaginário é um corpo “relâmpago”, que apresenta a silhueta de um
corpo original e especular, e que é visto como “de fora”, visível e fascinante, que
pode ser fonte de atração ou rejeição, digo, sentimentos de amor e ódio, contudo,
sempre furado, mesmo que não à vista do sujeito.

98
Ibidem, p.72
99
Idem p. 75
100
Idem, p. 76

66
Às vistas do sujeito estão as imagens e significantes, que ele se aliena, tanto
quanto ao seu semelhante, é preciso ser o outro para que o sujeito seja “eu”, isto
é, o outro é indispensável, fato este insuportável ao neurótico que não quer
depender de ninguém, e desconsidera a pluralidade de suas imagens psíquicas,
logo, de seus inúmeros “eu(s)”.
O significante, para Lacan é um “lugar-tenente” (lieu-tenant), um “representante
ou substituído” que tem como função mediar à experiência humana por
intermédio da linguagem e da cultura, a partir de um sistema de significantes,
significados e significações.
Para melhor exemplificarmos o corpo simbólico como um lugar-tenente,
utilizaremos do significante “elefante” utilizado por Lacan no seminário 1, Os
escritos técnicos de Freud101,e seguiremos em termos lacanianos.
O “significante” é a unidade básica da linguagem, um elemento material da
cadeia de significação que está associado a um “significado” ou representação
mental. No caso específico do exemplo, o som ou a palavra “elefante” é o
significante, enquanto a imagem mental ou representação mental de um elefante
é o significado.
Para Lacan, o significante “elefante” representa uma construção simbólica que
não se confunde com a coisa em si. O significante é um lugar-tenente do
significado, ou seja, é um substituto da coisa representada psiquicamente, e as
experiências do mundo do sujeito são mediadas por esta relação simbólica entre
significante, significado e significação, é esta relação que é convocada num
processo analítico.
Repito, a relação do “lugar-tenente” do significante elefante” está relacionado à
natureza da linguagem e da representação simbólica na teoria lacaniana, para
ficar mais compreensível vamos analisar cada um desses conceitos e sua
conexão com o exemplo do significante “elefante”:

101
LACAN, J. (1953-1954/2009). O Seminário, Livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de
Janeiro: Zahar.

67
1- Significante: Refere-se a uma palavra, som, ou imagem que representa
uma ideia ou contexto. No exemplo, o som ou a palavra “elefante” é o
significante específico relacionado a esse animal, mas, não o animal em si,
e sim àquilo que é subjetivamente representado;
2- Significado: É a representação mental ou conceito associado a um
significante. No exemplo, o significado é a imagem mental ou conceito de
um elefante, ou seja, do animal real;
3- Significação: É a relação entre um significante e seu significado, isto é, a
conexão que é estabelecida entre palavra ou som (significante) e o
conceito ou ideia (significado) que ele representa. Neste caso, a
significação está relacionada à associação que é feita entre a palavra
“elefante” (significante) e a imagem mental de um elefante (significado);

A dimensão simbólica é crucial na constituição do sujeito e das fantasias


inconscientes. Para Lacan o inconsciente é estruturado como uma linguagem, e
os desejos, sintomas, sonhos e chistes, medos e conflitos psíquicos são
expressos por meio de símbolos e metáforas nos discursos.
Nestas condições poderemos refletir sobre a fantasia inconsciente sendo
estruturado a partir de um corpo real, corpo vivido de emoções; corpo imaginário,
corpo visto na imagem; corpo símbolo, corpo significante.
Em síntese, o analista-escuta estará nos meandros das sensações-imagens
(protoimagem) do sujeito, que pode permanecer inconsciente ou tornar-se
consciente. Uma imagem esburacada pela libido como um corpo vivido ou corpo
de sensações, desejos e gozo.
O analista escuta o analisante aquilo que corresponde a imagem de um corpo
visto a partir de um semelhante e a dependência do sujeito com o que está “de
fora” mas, canteiro do “eu”, imagem também esburacada quanto o corpo das
sensações.
Em sequência o corpo significante é que nomeia um corpo e cria a relação dada
na realidade e significações que o sujeito constrói na sua existência.

68
Na teoria lacaniana, a relação entre fantasia e as três ordens fundamentais da
experiência humana – o real, o simbólico e o imaginário – possibilita ao analista
a compreensão do funcionamento psíquico e da constituição do sujeito.
Considerando, que é pelo real que Lacan refere-se a uma dimensão que escapa
à simbolização e à representação, por ser do domínio do concreto, do caótico,
que causa ao sujeito sofrimento e angústia.
O simbólico, com um sistema de significação possibilita ao sujeito sua entrada na
linguagem e no campo das representações, de modo que, por intermédio da
linguagem, o sujeito pode mediar aquilo que é da experiência concreta de um
corpo de emoções e de um corpo de imagens.
O imaginário possibilita um vasto campo de variedades de imagens à
consistência do eu e seus ideais.
Ainda parafraseando Nasio102, a fantasia na perspectiva topológica de Lacan, é
uma construção psíquica do imaginário e se manifesta no simbólico como um
conjunto de significantes que dão formas as fantasias, sendo uma resposta a
incompletude, à falta e ao desejo, isto é, a fantasia “enforme” de “A”, surge como
uma tentativa de lidar com o inexorável do real, inapreensível e angustiante,
fornecendo um estrutura significativa para preencher os buracos do imaginário e
do simbólico.
As fantasias inconscientes podem ser construídas a partir das interações
complexas entre o corpo real, o corpo imaginário e o corpo simbólico, na tentativa
de amenizar as tensões correspondentes as interações entre as dimensões.
As fantasias do corpo real, que representam o corpo biológico, mas, não é o
corpo biológico, e sim emoções e afetos deste corpo, surgem a partir das marcas
corporais oriundas das sensações físicas desconfortáveis e traumáticas.
As fantasias do corpo imaginário são representações mentais das imagens, e
identificações com significantes que compõem as imagens do eu.
São as Imagens idealizadas do eu, que são construídas as fantasias de possuir
significantes fálicos, na perspectiva do sujeito sentir-se amado e adorado como

102
NASIO, J,D. (2009) Meu corpo e suas imagens, p. 66,Rio de Janeiro: Zahar.

69
um Outro, estes significantes fixam às imagens narcísicas para oferecerem
consistência ao eu.
As fantasias do corpo simbólico envolvem conflitos psíquicos expressos por meio
de significantes, significados e significações do Outro simbólico, conflitos que
refletem as relações do sujeito com o Outro furado, e revelam a sua
inconsistência e insuficiência simbólica em representar o sujeito da linguagem.
A imagem fálica ou falo imaginário está localizada no núcleo do eu, logo, o falo
imaginário é a imagem predominante, contudo, invisível, mas, marca como um
traço unário todas as imagens do eu, como um véu que esconde e ao mesmo
tempo revela o gozo e o desejo.
A imagem fálica possui um ritmo pulsional inconsciente, característico do menos
phi ( - 𝜑 ), obscuro e fascinante, que oscila na presença e na ausência do objeto
de gozo, isto é, entre o gozo e o desejo, nas quais a fantasia é modelada em
bordeamento de um objeto a, invisível e inapreensível:

Figura 2 : O circuito pulsional em Lacan

Esta grafia menos phi ( - 𝜑 ), ou, - phi ( 𝜑 ), pequeno falo ou falo imaginário, se
distingue do falo simbólico ( 𝜙 ) com phi grande, phi maiúsculo. O primeiro faz
referência às imagens do eu, o segundo diz sobre os significantes fálicos que
buscam dar sustentação aos semblantes pregnantes ao eu, pela via dos ideais.

70
O sujeito movimenta-se, pulsionalmente, na mira de um objeto para satisfazer a
pulsão, mas, o que encontra é a falta, é por uma falta que o neurótico investe sua
energia psíquica, sua libido e seu tempo, a libido não quer saber da falta, e sim
do represamento de um objeto para que o sujeito possa gozar.
No final de seu ensino Lacan é categórico ao afirmar a impossibilidade da
satisfação do sujeito com seu objeto, “não há gozo absoluto”, o falo simbólico
( 𝜙 ) irá fracassar na tentativa de uma possível estabilidade com as imagens
ideais.
Poderíamos dizer que o olhar e a voz, expressam a ameaça de castração, e o
fracasso do sujeito diante de seu próprio prazer. E qual é a relação do sujeito
com aquilo que ameaça e aquilo que é ameaçado, nas quais a visão da fantasia
inconsciente se estrutura?
O que ameaça na castração é o ( - 𝜑 ) no corpo da mãe, uma zona obscura de
seu sexo. E o que é ameaçado na castração é ( - 𝜑 ) no corpo da criança, são as
sensações de seu sexo, seu corpo real.
“Temos um ( - 𝜑 ) à frente e um ( - 𝜑 ) atrás”103, da imagem fálica conferindo o
ritmo pulsional dos orifícios erógenos. O sujeito às bordas da fantasia [ ◊ a], é
constituído por sua divisão psíquica, digo, a fenda fálica é o que fascina e palpita,
juntamente com os movimentos cadenciados de maior tensão e menor tensão
dos orifícios erógenos.
Aquilo que a criança a vista no corpo de sua mãe é marcado ( - 𝜑 ) à frente, que
ofusca a visão e evoca a cegueira ( - 𝜑 ) a trás, ou seja, no próprio corpo do
sujeito.
“Sim, mas além do ( - 𝜑 ) lá e do ( - 𝜑 ) cá, há o olhar
que vai entre este aqui e aquele lá, e isso também é (
- 𝜑 )”104.

103
NASIO, J,D. (2009) Psicossomática: as formações do objeto a, p. 50,Rio de Janeiro: Zahar.

104
LACAN, J. (1964/2008). O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da
Psicanálise, p. 206. Rio de Janeiro: Zahar

71
Assim, Lacan nos apresenta que o olhar é o ( - 𝜑 ) que transita “entre” o corpo
do pequeno sujeito e da mãe, isto é, aquilo que se enceguece enquanto
luminosidade ou opacidade do falo imaginário ( - 𝜑 ).
Lacan105, nos seminários, Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise e O
objeto da psicanálise aborda o tema do olhar apoiado na topologia, de maneira a
descobrir o ( - 𝜑 ) na materialidade da fantasia, onde o Outro reflete as imagens
e seus ideais, sem a luz do Outro não haveria o olhar que cega o sujeito ao
mesmo tempo que o fascina.
Ao se referir ao objeto a, Lacan insiste em afirmar a imaterialidade deste objeto
como coisa invisível e abstrata dos objetos parciais, como marca do ( - 𝜑 ): o seio,
como objeto oral ligado à boca, que evoca consumir o objeto; as fezes, objeto
anal da pulsão de reter ou expulsar; a voz como pulsão invocante de sonoridade;
o olhar como objeto da pulsão escópica e cegueira inconsciente.
Freud106, em As pulsões e suas vicissitudes, considera que toda pulsão é uma
pulsão sexual, por ser auto-erótica, é pelo auto-erotismo da pulsão que é
marcado o caráter sexual da pulsão.
Assim, Freud apresenta o circuito da pulsão escópica : “O sujeito ‘olha’, ‘se olha’
e depois ‘é olhado’”, neste circuito está o sujeito que se vê por uma fenda, e o
Outro-tela é o enquadre da fantasia, um eu vidente que olha o sexo pela fenda
fálica do Outro e evoca clarão, cegueira e também fascinação. A fenda fálica do
Outro (sexo), olha para os olhos, e este olha para fenda fálica, movimento rítmico
da pulsão sexual.
A imagem fálica é uma imagem fascinante ao sujeito por ser evocante de gozo,
a imagem fálica não é libido, mas, a fantasia mais próximo da libido, que se
manifesta pela transitoriedade da presença e ausência do falo imaginário.
Neste contexto, podemos afirmar que o ato de olhar é um ato inconsciente,
desencadeado por uma fenda fálica (sexo) que provém do Outro, digo, de fora,

105
LACAN, J. (1962-1963/2005). O Seminário, Livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar.
LACAN, J. (1965-1966). O Seminário, Livro 13: O objeto da psicanálise [Inédito]

106
FREUD, S. (1915/2010) Os instintos e suas vicissitudes, in: introdução ao Narcisismo, ensaios
de metapsicologia e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras

72
traçados nas dimensões simbólicas e reais das pulsões inconscientes, das
fantasias inconscientes, e não mais do imaginário consciente do eu.
O olhar emerge de uma luz externa ao eu, e naquilo que a imagem fica turvado
consciente, abre-se para uma visão inconsciente, pois, o inconsciente está no
lapso e o olhar está nesta falha de visão consciente.
Deste modo, o raio visual parte em linha reta do olho para iluminar o objeto e
torna-lo visível, este ponto luminoso pode representar o olhar como fogo que
ascende, como objeto a, segundo Lacan107, causa de desejo inconsciente.
Conforme a figura 2, a satisfação da pulsão é paradoxal, e exige uma satisfação
constante, o que é impossível, pois o objeto está perdido e as pulsões sexuais
estão articuladas com a pulsão de morte.
Assim, a pulsão faz uso da fantasia na propositura de produzir prazer ao sujeito,
todavia, causa ao sujeito desprazer, pois a pulsão recalcada no inconsciente
nunca abandona a tendência à satisfação completa, o que leva o sujeito a
compulsão à repetição de uma experiência de satisfação primária.
É por uma diferença entre exigência pulsional e o prazer, que surge o desejo, é
na impossibilidade de satisfação absoluta que o desejo movimenta-se na
contramão do gozo, pois um gozo total seria a morte.
Ainda na figura 2, podemos falar da estrutura da pulsão, de modo de um ir-e-
voltar, o que fará Lacan dizer que a pulsão é um “se fazer”: “se fazer chupar”
para a pulsão oral, “se cagar” para a pulsão anal, e se fazer olhar, para a pulsão
escópica”108.
O objeto no qual a pulsão dá voltas, está do lado do Outro, é por este Outro que
o sujeito elabora o quadro das fantasias, assim, o Outro-tela é anteparo ao Outro
sexo.
A pulsão visa restaurar a posição do sujeito de objeto fálico para o Outro, onde o
olhar passa ser um suporte do desejo do Outro, perdido desde sempre. Nisto, o

107
LACAN, J. (1964/2008). O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da
Psicanálise, p. 206. Rio de Janeiro: Zahar

108
QUINET, A. (2002/2004) Um olhar a mais, p. 97, Rio de Janeiro: Zahar

73
sujeito presentifica o olhar enquanto objeto a, na medida que o olhar circula o
anel da pulsão.
Em “Além do princípio do prazer”, Freud nos apresenta os paradoxos dos
neuróticos através dos conceitos da pulsão de vida e pulsão de pulsão de morte.
E diz Freud sobre os neuróticos:

“Conseguem chegar por caminhos indiretos a


uma satisfação direta ou substitutiva; esse
acontecimento, que em outros casos seria uma
oportunidade de prazer, é sentido pelo ego
como desprazer”109.

E define o “desprazer neurótico” como “um prazer que não pode ser sentido
como tal”. É por um tipo de prazer que se mistura com desprazer que o neurótico
se dedica como a verdade do gozo. O termo gozo, presente no ensino de Lacan
engloba satisfação pulsional nos paradoxos de prazer e desprazer, logo, no gozo
não há limites entre o prazer e o desprazer.
A vida pede movimento, a morte exige silêncio e impulsiona o sujeito em direção
ao inanimado, e afirma Lacan110, “a pulsão de morte é o que faz com que o
homem falhe diante do imperativo da vida”.
Podemos considerar o gozo escópico na equivalência do gozo do supereu, em
um para além da vida, por estar associado a pulsão de morte, exigindo do sujeito
o impossível de suportar, um olhar de morte, angustiante e mortífero, um estado
constante de vigiar-se. Assim o olhar enquanto a, poderá trazer ao sujeito prazer

109
FREUD, S. (1920/2010). “Além do principio do prazer”, in: História de uma neurose infantil [“O
homem dos lobos”], Além do principio do prazer e outros textos, p. 21, São Paulo: Companhia
das Letras

110
LACAN J. (1969-1970/1992). O Seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise, p.68, Rio de
Janeiro: Zahar.

74
e dor, um mais-de-olhar, pontos de divergências dos destinos pulsionais:
recalque e sublimação.
A sublimação está intimamente ligado ao olhar a partir do belo, preservando a
satisfação sem desvio da finalidade: a pulsão está para satisfação com objetos
equivalentes ao sexual.
Contudo, considerando a valência do ( - 𝜑 ), o gozo escópico também conota o
olhar como ameaçador e mau, e provoca a tensão psíquica exigindo o recalque
da representação de a. Há no mau-olhado um parentesco com a morte que
materializa um olhar malvado e severo sobre as imagens do eu.
O olhar traz o prazer quando escamoteia a castração e preenche a falta subjetiva
do sujeito, como falta fálica (a/-φ). E traz desprazer quando não cumpre o papel
de tamponar o furo da falta, numa separação entre a falta e o objeto (a >< -φ),
vivificando do corpo real a angústia ( ≡ φ).
Neste contexto, a fantasia, [ ◊ a], é um processo de imaginalização, digo, um
afastamento do sexual enquanto real, assim, a pulsão sexual é uma força
impulsora à imaginalização e simbolização.
A fantasia pode manter o enclausuramento do significante no imaginário, em vez
de, o significante deslizar metonimicamente como uma estrutura para o desejo,
onde o desejo é sempre de outra coisa, na condição de falta-a-ser.
No enclausuramento do significante é produzido falsas imagens do eu, o sujeito
se prende em uma metáfora (imaginária) onde a fantasia paralisa o desejo, não
como oposição da realidade, mas, de estrutura de unidade, uma gramática
fundamental de mundo.
Lacan111, no seminário, livro 14, A lógica do fantasma, busca traçar a fantasia
pela lógica, muito diferente do aprisionamento imaginário, com a função de
articular a realidade, sexualidade, a partir da estrutura do significante com
questionamentos das noções lógicas do universo do discurso.
Da imagem à estrutura da linguagem, do significante, uma maneira de Lacan
rejeitar a noção de universo do discurso, isto é, valores de verdades e falsidades
num universo restrito os quais isolam propriedades lógicas.

111
LACAN, J. O Seminário, livro 14, sessão de 14.6.1967.

75
Para a psicanálise o universo do discurso só existe com um furo, pois o
fechamento do discurso é um grande engodo imaginário com sérias
problemáticas com a ética e da moral.
Uma psicanálise consistente sob conjunto de valores e verdades, seria estar a
serviço dos canalhas, e a psicanálise tem como função um desserviço aos
canalhas, pois estes, acreditam na metalinguagem, logo, num universo que
servem alguns em detrimento de outros.
A fantasia não se opõe a realidade, mas, tem como função estruturá-la como uma
estrutura gramatical do mundo, embora que, não há separação entre ideia e
coisa, isto é, essência e aparência se confundem, como um véu que deixa
misturar a ideia e coisa a partir de um engano imaginativo.
Lacan112 faz referência ao livro de Deleuze113, Lógica do sentido, que aborda a
lógica do fantasma na perspectiva pendular, ou seja, a sexualidade funcionaria
como um “movimento pendular” de sexualização e dessexualização, movimentos
intrínseco e extrínseco, sendo que, o movimento inicial do fantasma seria de
dessexualização, isto é uma defesa contra a angústia do real do sexo.
Contudo, a máscara do fantasma, que tem como movimentos pendulares, vacila
e deixa entrever o real, por intermédio da lógica do a.
Para que possamos compreender a lógica do a proposto por Lacan no seminário,
livro 14, A lógica do fantasma, buscaremos no ano de 1966114, ano que Lacan
utiliza do quadro “As meninas” de Velásquez para se referir a fantasia,
distinguindo o plano-sujeito do plano-tela, em que o olhar está inscrito como
objeto a.

112
Ibidem
113
DELEUZE, G. (1969/2009) Lógica do sentido, São Paulo: editora Perspectiva
114
Idem

76
Figura 3: Las meninas, Velásquez 115

O quadro de Veláquez ( figura 3), de 1656, foi chamado inicialmente de El cuadro


de la família ou La família real, mas, a partir do século XIX, o quadro passa a ter
a denominação de Las meninas (As damas de companhia). O quadro Las
meninas, retrata a corte do rei Felipe IV da Espanha e apresenta uma cena
intrigante e complexa. No centro do quadro, a infanta Margarida Teresa, filha do
rei, está cercada por suas damas de honra e pelos membros da corte. No entanto,
o que torna o quadro especialmente interessante é que Velásquez incluiu a si
mesmo na pintura, no canto esquerdo, retratando-se enquanto pinta o retrato da
família real. Além disso, há um espelho ao fundo com o reflexo do rei e da rainha,
que estão posicionados fora do campo de visão do espectador.

115
Tela: Las meninas de Diego Vlásquez, 1656, atualmente no museu do Prado - Madrid

77
Lacan utilizou deste quadro como ilustração da dinâmica do olhar, da fantasia e
da estrutura do sujeito na psicanálise. Ele argumentava que o quadro
encapsulava a noção do “olhar do Outro”, que é fundamental na constituição do
Eu e do outro imaginário e o Outro simbólico.
Vamos aqui, refletirmos juntos sobre algumas ideias-chaves que Lacan explorou
a respeito deste quadro:
Para Lacan a tela de Veláquez tem como objetivo apresentar o registro de
sensibilidade relacionado ao objeto a, na propositura de, a partir de uma
operação lógica, apresentar a consistência do sensível a partir da negatividade
do objeto a, no que, promove a construção lógica como funcionamento
inconsciente.
É a partir de um questionamento do universal que é inaugurado a modernidade
que problematiza o universo das representações, logo, da verdade da Coisa,
trazendo para a discussão do olhar a problematização do – 𝜑, naquilo que não se
dá a ver, mas, que pertence ao campo do olhar.
Neste contexto, o objeto a, como um registro da sensibilidade revela o
estrangeiro, o Outro, como também um estrangeiro que o sujeito faz para si.
Lacan estabelece também uma crítica ao totalitarismo, isto é, da montagem
simbólica e imaginária, o qual o real é excluído devido sua natureza de expor os
simulacros da linguagem do Outro.
Assim, constitui-se a máscara da fantasia como forma de encobrir o real, no qual
a fantasia do neurótico sempre fracassa, devido a lógica e politica do a, que é
vacilante e deixa entrever o real.
É nisto que Lacan pensa a dinâmica deste quadro, revelando a complexidade da
imagem na sua visibilidade, ao ser atingido pela negatividade do olhar do Outro,
– 𝜑, como um furo no real que revela que a verdade do Outro é furada.
No quadro, os personagens parecem se olharem, tanto para o espectador quanto
para os personagens dentro do próprio quadro, expondo como o olhar, o
estrangeiro em si é repetitivo nas relações e experiência subjetivas do sujeito da
linguagem.
A pintura de Velásquez, segundo Lacan, apresenta uma espécie de “cena
primária” da fantasia, onde o sujeito se coloca no lugar do olhar do Outro, vendo

78
a si mesmo como um objeto do olhar de alguém. Velásquez é um exemplo do
sujeito que age como intermediário entre o olhar do Outro (a realeza) e o
espectador (nós).
Lacan usou a distribuição espacial dos personagens no quadro para ilustrar a
complexidade da estrutura do sujeito. Ele viu na infanta Margarida Tereza como
um ponto focal que simboliza o objeto do desejo, cercado por outros
personagens que representam diferentes papéis na estrutura psíquica.
O papel da infanta Margarida Tereza, que está no centro da composição da tela,
corresponde a estrutura psíquica a partir da dinâmica do inconsciente, a partir
dos elementos que compõem a rede de olhares que propulsionam a pulsão
escópica, movimenta as identificações com o Outro e estrutura as fantasias a
partir da demanda inconsciente.
Assim, Lacan observou a infanta Margarida Tereza como uma espécie de objeto
de desejo inconsciente, que atrai os olhares e atenção dos outros personagens
na cena, proporcionado a partir do espaço especular, que ocupa o ponto nodal
da composição, e proporciona o jogo de olhares e identificação com o Outro.
Neste contexto a infanta Margarida Tereza está no centro do campo visual e
cercada por damas de honra e outros membros da corte, que representam
figuras de autoridade e poder. A interação dela com as damas da corte
representa a maneira que as identificações com o outro moldam a construção do
Eu e as fantasias inconscientes, ilustrando a dinâmica de como o sujeito se
constitui como objeto do olhar do Outro na formação da identidade e na
estruturação psíquica.
Este “olhar do Outro” como estrangeiro, refere-se ao impacto do olhar do Outro
sobre o sujeito na estruturação psíquica, afetando a constituição do corpo
imaginário e simbólico, a partir da oferta e efeito do significante naquilo que
Lacan nomeou como “corpsificação” ou “mortificação da carne”, que permite a
entrada do sujeito no campo da linguagem do Outro.
Ao destacar o ponto de fuga na pintura, que está localizado atrás de Velásquez,
simboliza a ideia de que o sujeito se coloca no lugar do olhar do Outro, ou seja,
sai da posição passiva à ativa e reflexiva do olhar, vendo a si mesmo como objeto
do olhar ao mesmo tempo que o Outro é seu objeto. Nesta dinâmica dos olhares,

79
do Outro, para o Outro e com o Outro (olha e é olhado), a pulsão contorna o
objeto a, a partir de um registro sensível de tempos lógicos, e a fantasia opera
em espaços de especulação, como também dos restos, distribuídos pelas redes
de olhares.
Desta maneira, Lacan lança mão da tela de Velásquez com o objetivo de
apresentar o registro de sensibilidade relacionado a materialidade do objeto a, a
partir da consistência de sensibilidade e do tempo lógico do objeto a constituído
pela negativação fálica – 𝜑 do objeto, tematizando a problematização do universal
e suas representações, no qual, insere neste universo a problemática do – 𝜑,
aquilo que não se dá a ver mas que pertence ao campo do olhar, que tem como
objetivo, não o que se dá a ver como empírico, objeto das imagens, mas, daquilo
do campo do sensível e inespecularmente estranho.
O quadro Las meninas, representaria o lugar-tenente da representação da
pulsão, seu Vorstellungsrepräsentenz, através da inscrição do sujeito no plano
quadro, introduzindo o sujeito e o gozo, naquilo que aponta a posição do sujeito,
sendo meramente o que um significante representa para outro significante, onde
a divisão do sujeito é constituinte e correlata do objeto do gozo da pulsão olhar.
A tela representa um momento, um tempo lógico, uma parada da imagem que
fixa esse instante em que Velásquez se afasta da tela, que está pintando para dar
uma olhada no modelo que foi introduzido na tela como um “olhador”, um lugar
de espectador, um olhar dirigido aqueles que olham a tela, ou seja, a uma Outra
cena que a da imagem visível, ao mesmo tempo que o pintor aparece invisível,
um instante de ver e ser visto, e coloca em cena um olhar impossível de ver: ver-
se vendo o que pinta.
Em tal contexto, Velásquez aproxima o instante de ver no momento de concluir,
em que o olhar do pintor embaralha o tempo cronológico, apagando a distinção
dos tempos: presente e passado, o que reduz o momento de concluir e o tempo
para compreender ao instante do olhar, como no tempo lógico.
Esse tempo do quadro é o tempo da fantasia que confere seu aspecto de mise-
en-scène, que Freud revelou como o inconsciente ao fato de situar ao nível
escópico da pulsão, sendo a fantasia uma encenação ativa a partir do desejo
sexual inconsciente.

80
Freud em 1897116 refere às fantasias: “são estruturas protetoras, sublimações dos
fatos, embelezamento deles e, ao mesmo tempo, servem como auto-absolvição”
aproximando das cenas primitivas que tem o caráter traumático para o sujeito.

116
FREUD, S, “Carta a Wilhelm Fliess n. 61”, ESB, I, p.267.

81
A HORA DA ESTRELA... “Cada coisa é uma palavra. E quando
não se tem, inventar-se-á. Esse vosso Deus que mandou
inventar...em fracasso me reduzi a mim mas pelo menos quero
encontrar o mundo e seu Deus...a palavra é fruto da palavra. Atingi-
la é o meu primeiro dever para comigo... Apesar de eu não ter nada
a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre
espantos meus ”117

“Esse vosso Deus que mandou inventar..., terei que me escrever todo através
dela por entre espantos meus”. A Coisa, como um objeto real, sob a lógica de a,
é percebido pelas brumas das fantasias inconscientes, [ ◊ a], de maneira que o
objeto é visto pela fenda da castração do sujeito diante do Outro.
É no encontro com o real de Macabéa que Rodrigo se intimida, sob as tensões
de suas emoções que emergem de desejos inconscientes. A fantasia é
construída sob o apogeu da castração simbólica, e de um objeto imaginário que
se constitui como metáfora, como substituição do objeto, logo, o sintoma do
sujeito. Muitas vezes o movimento metonímico do desejo fica comprometido
para dar formas às fantasias, uma tentativa de resposta a castração. Visto que a
fantasia busca “enforme” de “A”, uma tentativa de subverter a castração do
Outro e do sujeito, que para o neurótico é fomentado pelos excessos de
demandas pulsionais ao Outro.

“Ela era incompetente. Incompetente para vida.


Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Só vagamente tomava
conhecimento da espécie de ausência que tinha de si
em si mesma...foi ao banheiro para ficar sozinha
porque estava toda atordoada. Olhou-se
maquinalmente ao espelho que encimava a pia

117
LISPECTOR, C, (1977-1988) A hora da estrela,p; 24,26, 31, Rio de Janeiro: Nova Fronteira

82
imunda e rachada, cheia de cabelos, o que tanto
combinava com sua vida. Pareceu-lhe que o espelho
baço e escurecido não refletia imagem alguma.
Sumira por acaso a sua existência física?... Mas por
que trato dessa moça quando o que mais desejo é o
trigo puramente maduro e o ouro no estio?...Ela me
incomodava tanto que fiquei oco. Estou oco desta
moça. Por que ela não reage?”118

As fantasias inconscientes são interações complexas entre um corpo real, um


corpo imaginário e um corpo simbólico.
Quando pensamos nas fantasias do corpo real, nos deparamos imediatamente
com imagens vazias de compreensão da Coisa em si, (visto a fala acima de
Rodrigo), mas, pulsante de emoções e afetos deste corpo, oriundas de sensações
físicas dolorosas e traumáticas.
São pelas imagens idealizadas do eu, que se formam as imagens especulares,
fantasias de um narcisismo exacerbado que molduram o vazio constitutivo da
Coisa em si.
Contudo, são pelos conflitos psíquicos expressos por intermédios de
significantes, significados e significações que o sujeito se depara com a
insuficiência do simbólico que revela que esta imagem do Outro é furada, e
para sempre incompleta, para isto seguimos com mais uma fala de Rodrigo:

“Viu ainda dois olhos enormes, redondos, saltados e


interrogativos – tinha olhar de quem tem uma asa
ferida – distúrbio talvez da tireoide, olhos que
perguntavam. A quem interrogava ela? A Deus? Ela
não pensava em Deus, Deus não pensava nela, Deus
é de quem conseguir pegá-lo. Na distração aparece
Deus. Não fazia perguntas. Adivinhava que não há

118
Ibidem, p. 32-33

83
respostas. Era lá tola de perguntar? E de receber um
não na cara? Talvez a pergunta vazia fosse apenas
para que um dia alguém não viesse a dizer que ela
nem ao menos havia perguntado.”119

A imagem fálica é uma luz forte advinda pelo o olhar do Outro, que ao mesmo
tempo que causa cegueira ou estranhamento, também causa fascinação e
conflitos entre o visível e o invisível do olhar.
Não esqueçamos que o falo imaginário localiza-se no núcleo do eu, assim para
toda visão inconsciente, o falo imaginário será uma imagem predominante,
porém invisível que marcará o sujeito como uma operação que implica em uma
questão dirigida ao Outro: Che Vuoi? – “Que queres de mim?”, esta questão que
marca o sujeito como um traço unário que sempre invocará ao sujeito um certo
estranhamento, como Rodrigo percebe o olhar de Macabéa, um véu que esconde
e ao mesmo tempo revela o gozo e o desejo.
Então, aqui paro e lhes pergunto: O que lhe ocupa daquilo que do Outro lhe
parece bizarro?
Lacan chama o significante de “lugar-tenente” (lieu-tenant) na constituição do
significado e significações, através do encadeamento dos significantes.
Um significante como um traço unário, busca nos encadeamentos dos
significantes um forma de representação psíquica inconsciente da pulsão,
Vorstellungsrepräsentenz, que convoca o sujeito a demandar ao Outro, a
questionar sobre o olhar lançado pelo Outro, um olhar enigmático da pulsão
inconsciente que busca uma representação consciente.
A relação entre o “lugar-tenente” e a pulsão inconsciente da demanda é
manifestado pela linguagem (os significantes) que atuam como intermediário
para a expressão das pulsões. A pulsão inconsciente da demanda não se
manifesta diretamente como um desejo claro e compreensível, mas é filtrada
através dos significantes e da linguagem.

119
Idem, p. 33

84
A demanda inconsciente se expressa através dos significantes e é moldada por
eles, tornando-se muitas vezes ambígua e obscura.
Na teoria lacaniana, o desejo é entendido como uma busca constante e insaciável
por alguma coisa, que o encontro é sempre adiado, nunca totalmente satisfeito.
Assim o desejo é estruturado em torno da lógica de a, naquilo que se faz
incompreensível para o sujeito.
A fantasia não se reduz ao imaginário e nem a imaginação da Coisa, mesmo que
seja utilizado de recordações, imaginadas ou inventadas. A fantasia é uma
imagem determinada por um significante, isto é, tem estrutura de linguagem que
quer comunicar algo, por ser inconsciente a fantasia é estruturada como uma
linguagem da pulsão.
A fantasia é um quadro que o sujeito busca preencher de maneira a tamponar o
furo do Outro, mas, lhe retorna como castração (-φ), diante do insuportável do
real do sexo, no qual o desejo é do Outro.
A partir da elaboração da fantasia como enquadramento do desejo do Outro,
podemos pensar no desejo ao Outro, desejo que Rodrigo manifesta diante do
estranho, um recuo intimidado, representado diante do olhar de Macabéa, para
não oferecer seu ser como objeto ao Outro.
Pensar no imaginário é pensar na libido e não no espelho, na imagem, é a libido
que envolverá a imagem que se reflete e se refratam no outro, a frente do sujeito.
Nesta perspectiva podemos pensar no cego, ele vive na dimensão imaginária
sem espelho e sem ver o outro, contudo, basta sentir-se visto que o estranho se
revela.
Desde Freud pensamos a fantasia como uma realidade psíquica, essa realidade
como construção simbólica e imaginária foi apresentado por Lacan120 sob a forma
do esquema R, que não quer dizer real, mas R de realidade.
Este esquema R é um conjunto das condições do objeto a, envolvendo toda
relação com o falo imaginário, isto é com a libido dirigida ao objeto e retornado
ao eu através das identificações com o outro.

120
LACAN, J. (1966/2003). Escritos. P. 553, Rio de Janeiro: Zahar.

85
Sugiro trazer aqui para nosso estudo a diferença entre real e realidade proposto
no ensino de Lacan, para tanto recorro à Macabéa para que possamos pensar
através da palavra, ainda que escrita, uma comunicação:

“Achava que cairia em grave castigo até risco de


morrer se tivesse gosto. Então defendia-se da morte
por intermédio de um viver de menos, gastando
pouco de sua vida para esta não acabar. Essa
economia lhe dava alguma segurança pois, quem cai,
do chão não passa. Teria ela a sensação de que vivia
para nada? Nem posso saber, mas acho que não. Só
uma vez se fez uma trágica pergunta: quem sou eu?
Assustou-se tanto que parou completamente de
pensar. Mas eu que não chego a ser ela, sinto que vivo
para nada. Sou gratuito e pago as contas de luz, gás
e telefone. Quanto a ela, até mesmo de vez em
quando ao receber o salário comprava uma rosa”121

O real é estático não convoca movimento, é o que não muda, é o real do sexo,
mas, digo sexo não àquilo que é visualizado como órgão genital, mas o
inapreensível do sexo, àquilo de um olhar obscuro, como gozo impossível,
enigmático e traumático.
A realidade é pulsante, se abre e fecha, da mesma maneira que os orifícios
erógenos que buscam satisfação, abrindo-se como faz uma cadeia de significante
no ato da palavra circulante, por isto a realidade é mutável, “uma rosa a cada fim
de mês”, e nisto, a realidade é singular e subjetiva a cada sujeito.

121
LISPECTOR, C, (1977-1988) A hora da estrela, p. 40, Rio de Janeiro: Nova Fronteira

86
A realidade é o vai e vêm entre o Eu122 e as imagens, nos quais firmam-se as
identificações, os ideais do Eu e sobretudo o Outro que deseja.
Na realidade o Eu irá se identificar com a imagem completa, imagens parciais,
até se deparar com o Outro que deseja, sucessões de encontros identificadores
e encontro que é marcado pelo desejo da mãe.
Uma mãe desejante é aquela que não olha para seu filho, que desvia os olhos
dele, que convoca o enigma do olhar, seguindo sucessões de fantasias por parte
do sujeito (filho).
Contudo, toda realidade anuncia uma perda, algo do eu e da imagem cai como
resto pulsional, algo de obscuro, aquém e além do que é visto, excluído de libido.
É o que ex-siste ao conjunto, mas que define o conjunto e o encadeamento de
significantes na cadeia metonímica, desta maneira, S2 é o significante pai, Nome-
do-Pai, o ponto externo e obscuro que sustentará o desejo do sujeito e a
realidade.
Mas, a realidade não são só palavras e imagens, é também aquilo do que é mais
íntimo ao sujeito, o pulsional, o que faz o sujeito sentir, sendo assim, o exercício
da pulsão na trajetória à satisfação.
Para entendermos o susto de Macabéa ao trazer a questão: “quem sou eu?”,
podemos refletir sobre o que pode ser mobilizado da pulsão ao inserir tal questão
ao sujeito, que na sua fragilidade percebe seu desamparo, nos lugares mais
obscuro do ser, naquilo que Freud apresenta-nos da pulsão escópica em três
termos: “olhar, se olhar, ser olhado”123:

122
Eu e suas identificações com os significantes ofertados pelo tesouro dos significantes, nesta
condição manteremos o Eu maiúsculo .
123
FREUD, S. (1915/2010) Os instintos e suas vicissitudes, in: introdução ao Narcisismo, ensaios
de metapsicologia e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras

87
Figura 4: A pulsão escópica124

É sabido que a pulsão é movimento de voltas, entre a psique e o somático, na


construção da realidade psíquica, há algo de externo ao sujeito que dá
sustentação à realidade, digo, há imagens e significantes que formam a realidade,
ao mesmo tempo que algo do mais intimo do corpo do sujeito é convocado. É
pelas voltas de um dentro e fora, realizado pela pulsão, que Macabéa viu-se
olhada pelo olhar do Outro, experiência esta que convoca um olhar-se, assim “se
quiserem falar de realidade, devem aceitar esta ideia de que é a coisa mais
externa e, ao mesmo tempo, mais interna, a tal ponto que não há interno nem
externo”125
Eu chegaria a afirmar que o susto de Macabéa sobre a questão “quem sou eu?”
é marcado como um corte que comporta o ponto mais opaco de sua realidade,
contudo, é por este ponto obscuro que a realidade é construída por bordeamento
da lógica do a, isto é, a pulsão bordeia o objeto a, bordejamento de um objeto
escópico e não especular:

124
NASIO, J,D. (2009) Psicossomática: as formações do objeto a, p. 50,Rio de Janeiro: Zahar.

125
NASIO, J,D. (2009) Psicossomática: as formações do objeto a, p. 41,Rio de Janeiro: Zahar.

88
Figura 5 : O circuito pulsional em Lacan

Desta maneira a pulsão realiza um trabalho de espiral, ou seja, o movimento da


pulsão é a de dar voltas, revelando o estatuto do objeto a que é a de dar voltas
pelos vieses da palavra falada, o que acontece em uma sessão de análise, “o
objeto a é o condensador do gozo”126, , isto é, o objeto a como condensador do
gozo revela ao sujeito o que está perdido (seio, fezes, voz e olhar) no qual ele
busca recuperar a todo custo, no entanto, sempre fracassa devido a
impossibilidade do gozo absoluto, é esta a função do a revelar ao sujeito a
impossibilidade satisfatória da pulsão com objeto de gozo. das fantasias

inconscientes. Ele usou a complexidade da cena e dos olhares no ilustrar os

126
Ibidem, p. 52

89
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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90
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Zahar.

QUINET, A. (2002/2004) Um olhar a mais, Rio de Janeiro: Zahar

91
PARTE TRÊS - Às voltas do objeto a

Até o presente momento em nossos estudos poderemos afirmar que, desde a


psicanálise de Freud127, há um compromisso da psicanálise de pontuar que a
realidade do sujeito responde aos princípios e leis reguladoras, logo, tais
princípios são os mesmos que regem o prazer: “desejar, trabalhar para obter
prazer, segundo o principio de menor energia”.
Neste contexto, Freud é taxativo ao dizer dos princípios para os prazeres que
inserem no sujeito em um “ato de julgamento que exige uma decisão”, são pelos
princípios destas leis que a realidade é consolidada ao sujeito, apesar de seus
furos.
Para Freud a realidade seria um regulador do prazer, enquanto que Lacan
subverte a termodinâmica do prazer em Freud, ao dar ênfase as perdas, aos
restos da relação do sujeito com a linguagem do Outro.
Tal extração, isto é, o que é perdido na relação do sujeito com o Outro, faz-se
determinante na condução do sujeito diante de seu desejo, uma perda totalmente
fundante de realidade, mas também, contingencial à posição do sujeito com seu

objeto de satisfação, isto é, estamos falando d’ realidade naquilo que convoca


os afetos mais obscuros e íntimos, daquilo que lhe causa desejos ou gozo.
Para Lacan a realidade do corpo é virtual, no qual podemos constatar na sua
abordagem do estádio do espelho128, contudo, uma imagem furada, que convoca

127
FREUD, S. (1911-1913/ 2010). Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado
em autobiografia [o caso Schreber], artigos sobre técnica e outros textos. São Paulo: Cia das
letras.

128
LACAN, J. (1972/2003). Outros escritos: Estadio do espelho... Rio de Janeiro: Zahar.

92
o sujeito ao vazio e a angústia, que pulsa de forma sexuada. Vazios que buscam
objetos contingenciais, vivenciados de forma extrema e angustiante, fazendo
oscilar as imagens “lá onde estava a realidade virtual da imagem, advém a
realidade ‘real’ do desejo”129.
Como foi visto, a fantasia não se opõem a realidade, “a fantasia constitui o
enquadre da realidade”130, já que, o sujeito utiliza da fantasia para capturar o
objeto que falta ao seu desejo.
Trata-se de extrair um objeto lógico, lá onde era “um-único-um, essa captura do
um, esse corte no real, de haver isolado um traço, um elemento, isso fez com que
algo fugisse; aquilo de que isso gozava”. 131
Assim Lacan132conclui que, a realidade e o prazer situam-se na mesma borda,
com seus objetos marcados com os traços de suas perdas.
Cabe a cada sujeito extrair seu objeto de satisfação, de maneira que cada falasser
(falta-a-ser) busque o que demarca a sua realidade, mas para isto, é importante
que o sujeito não se entretenha com grandes ideais e acordos universais,
imagens e fantasias, mas que, busque no objeto sua utilidade para dar aos ideais
um lugar de semblantes, que irá sempre oscilar diante dos falasseres, caso
contrário, a realidade e a fantasia tornar-se-ão aparelhos de gozo.
A primeira formalização de Lacan sobre o objeto a ocorreu no seminário, livro 10,
“a angústia”133, apresentando que o objeto a está situado a partir do imaginário e
do simbólico, e que demarca a alteridade no Outro a partir do simbólico, a partir
de uma sequência de extrações corporais ( o seio, as fezes, a voz, o olhar),

ROY, D.(2008) “Realidade” In: “Scilicet: os objetos a na experiência psicanalítica, Associação


129

Mundial de Psicanálise, Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria

130
LACAN, J. (1972-1973/2003). “Alocução sobre as psicoses da criança”(1968) In: Outros
Escritos, Rio de Janeiro: Zahar

131
COTTES, F,J. (2008)“Traço Unário” In: “Scilicet: os objetos a na experiência psicanalítica,
Associação Mundial de Psicanálise, Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria

132
LACAN, J. (1972-1973/2008). O Seminário, Livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar.

133
LACAN, J. (1962-1963/2005). O Seminário, Livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar.

93
correlatos aos objetos perdidos em Freud, e representados pelos objetos não
especuláveis, em Lacan, digamos, o que falta à imagem.
Para Freud, a castração está diante dos olhos do sujeito, para Lacan é o objeto
olhar que surge enquanto real, “O objeto a, no entanto, independentemente da
forma em que aparece, é, a principio, um aparecimento no real: um objeto a
mais”134.
É este “objeto a mais” que causa angústia, um objeto que demarca a falta e o
impossível, sendo assim, um sinal de perigo, logo, do real, isto é, o real apresenta-
se para o sujeito de forma perigosa.
No seminário, livro 16, “De um Outro ao outro”135, Lacan inventa o mais-de-gozar,
homologo ao termo marxista “mais-valia”, e traz a lógica do objeto a, uma
consistência que falta ao Outro, numa produção a partir do furo do Outro, que o
sujeito busca na fantasia dar um enforme de Outro (A)136, perdendo seu status de
real, sendo que o real é “aquilo ao qual nada pode faltar, jamais”137.
Prosseguindo, Lacan no seminário, livro 20, “mais, ainda”138, o objeto a ganha
status de semblante, situando o a entre o simbólico e o real, um investimento da
imagem i(a) do ser, “um semblante do ser”139, “há uma afinidade do a com seu
envelope imaginário”140.
Neste contexto, podemos refletir que Lacan pensou, no primeiro momento, o
objeto a no seminário “a angustia” como uma presença do real, depois no

STEVENS, A. (2008) “Real” In: “Scilicet: os objetos a na experiência psicanalítica, Associação


134

Mundial de Psicanálise, Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria

135
LACAN, J. (1968-1969/2008). O Seminário, Livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro:
Zahar.

136
Idem, p. 311

137
Idem, p.295

138
LACAN, J. (1972-1973/2008). O Seminário, Livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar.

139
Ibidem, p.293

140
Idem, p. 293

94
seminário “De um Outro ao outro” como consistência do Outro, para chegar no
seminário “mais, ainda” e dizer que o objeto a é semblante e que não pode
“sustentar-se na abordagem do real”141 e que “não cessa de não se escrever da
relação sexual”142. Assim o gozo só poderá ser interrogado por meio dos
semblantes, “o gozo só se interpela, só se evoca, só se cerca, só se elabora a
partir do semblante”143.
Desta forma o analista ocupará, no processo de análise, o local do semblante
para que o objeto a possa aparecer a partir do falasser, nisto, o real e o gozo
serão marcados a partir dos semblantes.
Então, como poderemos pensar a lógica do objeto a na função do analista,
quando o analista faz-se de semblante?
O desejo do sujeito tem uma razão de ser a partir de uma exigência pulsional,
isto é, inegável a psicanálise, a pulsão move o sujeito em direção ao objeto, um
mais-gozar, o qual lhe remete a sua própria forma de gozo, uma causa de gozo.
A única ferramenta do ofício de um analista é a palavra, na dimensão do
significante e na dimensão da causa do desejo, introduzida a partir da lógica do
inconsciente, em que Lacan no ano de “1969-1970144,elabora a ‘teoria dos
discursos’ de forma a colocar em estrutura as relações fundamentais que indicam
modos de aparelhamento do gozo, isto é, o enquadre da pulsão”145, o que faria
Lacan146 assinalar o objeto a como semblante e deslocar para o sinthoma, assim,
desloca o a no que era o real para os pareceres dos desejos.
Deste modo, o sujeito no inicio de um processo analítico constitui o analista como
o Outro que detém um saber, vestido de sujeito suposto saber, e circula nos

141
Ibidem, p. 294

142
Idem, p. 294

143
LACAN, J. (1972-1973/2008). O Seminário, Livro 20: Mais, ainda.p. 85, Rio de Janeiro: Zahar.

144
LACAN, J. (1969-1970/1992). O Seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro:
Zahar.

145
OLIVEIRA, S,M,L(2023)”Memórias entre uma poltrona e o divã”, p. 116, Bom Despacho:
Literatura em Cena

146
LACAN, J. (1972-1973/2008). O Seminário, Livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar.

95
significantes do Outro “armaduras feitas de substancia gozante”147 até perceber
o objeto a na queda do Outro, momento de que o objeto a revela a incompletude
e inconsistência do Outro, mas também um caminho como causa de desejo.
Propomos-lhes determos um pouco mais no desejo, ou seja, na direção que é
tomado um processo de análise, digo, “da intencionalidade à causalidade”148.
No que concerne uma análise há diferenças marcantes naquilo que é o pedido
de ajuda à demanda do inconsciente, passagem esta que leva àquele que sofre
de um sintoma evocar um por que, a partir deste momento, o sintoma faz-se
analítico e portanto sujeito à análise.
Podemos pensar que o que se inicia em uma análise é que o sujeito parte daquilo
que lhe falta em busca de um objeto:

d----------------à a

Para depois partir de um desejo “causado” onde o objeto é seu ponto de saída e
não de chegada:

a---------------à d

Naquilo que convoca: d----------à a, trata-se da “cena do desejo” ou “desejo-


intenção”, que leva o sujeito à materialidade de a, logo, a urgência de objetos.
Neste momento o sujeito encontra-se na dimensão imaginária do desejo e
consequentemente do objeto.
É considerável a diferença do momento: a---------à d, quando o sujeito corre
atrás de seu desejo, em um saber fazer com a falta (savoir et faire avec), um
saber fazer com seu desejo, isto é, o que do gozo resiste a significação, e eleva
o sujeito enquanto subjetividade nas fronteiras entre o eu e o outro.

147
VIVAS, C, H. “Causa do desejo”, In: “Scilicet: os objetos a na experiência psicanalítica,
Associação Mundial de Psicanálise, p. 49, Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria

148
Ibidem, p. 47

96
O objeto causa de desejo, (savoir et faire avec) é o que Lacan denomina de objeto
a, o que movimenta o sujeito em sua vida, apesar do corpo ser mortificado pelo
significante e este ser canteiro do gozo, há resíduos que escapam o gozo e que
se movimentam em busca do desejo.
Mas, não podemos deixar à revelia que há um acontecimento do corpo enquanto
gozo, “afeto que afeta o corpo; libido que se ordena pelas formas de gozo,
recortadas das pulsões: objeto a”149, definido por Lacan como sintoma, uma
metáfora da verdade do Outro, significado pelo sujeito.
O afeto tem como condição um efeito de acontecimento, um traço único e
traumático, no entanto, duradouro, suficiente para ocupar o sujeito enquanto seu
sintoma.
Em Freud, os acontecimentos de um corpo sintomatizado recorrem de cenas
primitivas e seus excessos excitatórios que provocam aquilo que é o traumático
do sexo.
Para Lacan, os afetos, recorrente de cenas primitivas do imaginário edípico são
secundários, dando lugar aos afetos que se ligam ao traumático da lalingua, um
corpo recortado a partir de uma dupla demanda: ‘do’ Outro e ‘ao’ Outro, que
perturba e pode fazer sintoma, “um efeito de afeto”150 em lalingua o enigma do
sexo, em que seu efeito é aparelho de gozo, um insuportável, digamos, suporte
da não relação sexual, que deixa traço e um modo de gozo e satisfação de cada
um, na medida que o corpo é recortado em a.
Um acontecer no corpo ou no pensamento deixa o objeto a na contingência do
afeto que toca o excedente da linguagem do Outro, no qual produz sofrimento
psíquico.
Podemos dizer que nossa realidade é uma construção de significantes que se
remetem a outros significantes, identificações imaginárias e simbólicas, como
também de um lugar do sujeito enquanto sintoma que determina seu lugar no
mundo.

149
SIMONETTI, A. “Acontecimento de corpo”, p. 13, In: “Scilicet: os objetos a na experiência
psicanalítica, Associação Mundial de Psicanálise, Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria

150
Ibidem, p. 13

97
Mas, cabe também nesta realidade um ponto opaco que o sujeito neurótico nada
quer saber que é o lugar da perda, da insatisfação, contudo, é preciso a
insatisfação , para haver realidade, “é preciso perder para que haja realidade”151,
pois toda realidade carrega uma cicatriz, “cicatriz da perda”.
Mas, não esqueçamos que tudo isto iniciou pela fragilidade da imagem do outro,
a imagem virtual, trabalhado por Lacan no estádio do espelho152, um outro como
semelhante e refletido no espelho como sendo a imagem do sujeito.
Para que possamos entender o que Lacan diz sobre o outro (autre) e Outro
(Autre), pensemos que o primeiro, o outro/autre, escrito com a letra a minúscula,
qualifica nosso objeto, nosso semelhante. Já o Outro/Autre, com letra maiúscula
são imagens antropomórficas, em outras palavras a imagem que atribui a Deus
uma forma humana.
A invenção do objeto pequeno a em Lacan busca perguntar: Quem é esse diante
de mim? Quem é ele? Um estranho, uma imagem, uma voz, um olhar, um
cheiro...?
Um objeto que circulará no processo de uma análise, no momento que o
analisante, na cegueira do divã, sente-se incomodado com a presença estranha
do analista atrás dele, como uma voz, uma respiração, um Huhum!, um silêncio.
São por tantos caminhos já mencionados, que no seminário 20, mais, ainda,
depois de tantas voltas com os objetos a, Lacan diz que o analista faz-se de
semblante de objetos a, como sendo uma atitude essencial do analista a dar a
presença do estranho, diferente de assumir uma aparência, o semblante aplicado
pelo psicanalista vale por qualquer ideia, vale-se a partir de qualquer assunto,
desde uma obra de arte que o analisante queira falar, até seu bate-papo com o
padeiro na compra do francesinho matinal.
Não é fácil para o analista ser um vazio em si, para que o sujeito possa inscrever
suas questões, mas é o único caminho para uma análise, pois o analista amplia-

151
NASIO, J, D. (2012) “Psicossomática: as formações do objeto a”, p.25, Rio de Janeiro: Zahar

152
LACAN, J. (1972/2003). Outros escritos: Estadio do espelho... Rio de Janeiro: Zahar.

98
se a partir de seu próprio movimento inconsciente, na ausência de interpretações
conscientes.
Em uma análise os objetos a, possibilitam que algo de surpreendente aconteça,
como um acontecimento singular de um processo analítico.
Assim, o analista ao se colocar no lugar do semblante, possibilita que o a
compareça para ser interrogado como um saber inconsciente, ‘àquilo que só diz
a verdade’, este silenciar em si do analista (semblante), que promoverá um
interrogar aos ditos, de maneira a transformar o sintoma num significante que
abra caminhos para as visões do inconsciente.
Em “luto e melancolia”153 Freud se refere à um objeto perdido de que o sujeito
realiza o luto, Freud não utiliza a palavra ‘pessoa’, mas, ‘objeto’, ponto importante
que Lacan utiliza para falar do objeto pequeno a, de maneira que o sujeito busque
questionar e refletir “quem é este outro”, seu semelhante que promove sua
imagem de ser um objeto amado.
Assim, Freud inscreve que o sujeito faz o luto do objeto perdido, ‘a pessoa amada
e perdida’, um lugar que ficou vazio, que em outrora fora ocupado por uma
pessoa amada, “A pessoa amada não é uma imagem, a pessoa amada é um
corpo que prolonga seu corpo”.154
Esta pessoa amada também é representante da história do sujeito, esta pessoa
amada carregaria uma marca comum que o sujeito carrega vida afora, que marca
sua forma de amar e de gozar.
É em Psicologia das massas e análise do ego155, que Freud revela as formas de
identificações do sujeito com o objeto amado, são, traços de todos os objetos
que um dia amou e amará.

153
FREUD, S. (1915-2010) “Luto e Melancolia”, in: Introdução ao narcisismo, ensaios de
metapsicologia e outros escritos. São Paulo: Cia das letras.

NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p.94, Rio de Janeiro:
154

Zahar

155
FREUD, S. (1920-1923/2011) Psicologia das massas e análise do Eu e outros textos, São Paulo:
Cia das Letras.

99
“O sujeito é um traço comum dos objetos amados e perdidos no curso da vida”156,
foi exatamente isto que Lacan denominou como traço unário.
Assim o Outro amado, é para o sujeito, a imagem, o corpo, e um traço repetitivo
que ele amou.
A imagem é constituída pela dimensão imaginária de um outro como sua imagem,
o Outro como corpo fantasístico; o Outro como traços repetitivo de sua história,
resultado da dimensão simbólica; contudo, o Outro não revela sua essência, isto
é, não sabemos o por que deste Outro ser o eleito como objeto de amor; é neste
momento que o objeto a comparece pela dimensão do real.
Assim, quando Lacan refere-se a este Outro eleito como objeto de amor, diz de
um Outro fruto de uma construção imaginária, simbólica e real, sendo que é pela
fantasia e pelo gozo que seu corpo lhe pertence e lhe escapa.
Vale considerar, que o trabalho da psicanálise visaria as condições para que o
sujeito depare com o que está vindo de fora, como sendo um encontro com o
estranho nele mesmo, como a coisa mais esquisita do seu ser, um encontro com
o estranho, que é familiar ao mesmo tempo, presente em cada um de nós, que
Freud diz: “Ali onde estava Isso – o eu deve advir”157, um estranho que provocaria
o alívio do sintoma e uma possibilidade de cura de ter que ser ‘normal’.
Não é apenas a marca de – phi ( - 𝜑 ) na imagem que se funda o objeto a no
ensino lacaniano, há o enigma do desejo do Outro, com os significantes da
estrutura do inconsciente, revelando a energia subjacente à vida psíquica, ou
seja, é por uma causa que anima os desejos que constituem-se a impossibilidade
de um saber sobre os desejos do Outro, marcado pela letra a, o desejo como
causa e não como objeto.
É neste momento que poderemos elaborar a relação do a com o conjunto dos
significantes e com o significante do Um, por caminhos que opera a lógica do
inconsciente.

156
Ibidem, P.94
157
FREUD, S. (1920/2010). O inquietante. In: História de uma neurose infantil [“O homem dos
lobos”], Além do princípio do prazer e outros textos, p. 165, São Paulo: Cia das Letras.

100
Definiríamos formalmente que o objeto a é heterogêneo e não homogêneo à rede
de significantes como é o (S1 ), produzido por alguma coisa que excedente ao
conjunto de significantes.
Esse elemento que excede o conjunto de significantes é uma produção da
exterioridade do significante S1, um produto excedente do sistema de
significantes.
Desta maneira, o objeto a, excede o sistema do conjunto de significantes como
resíduo, pela sua heterogeneidade, e S1 excede o conjunto pela sua
homogeneidade, como um elemento de borda, visto que dará a consistência ao
conjunto de significantes.
Desta maneira o que ocorre são duas operações: o de S1 como elemento
externo e homogêneo a cadeia de significantes , e depois (a) como um produto
eliminado, produto residual e heterogêneo à cadeia de significantes, um resíduo
que movimentará a cadeia de significantes a partir de um dizer, a partir da
dimensão simbólica.

“O objeto a é o heterogêneo, como excesso gerado


pelo sistema formal dos significantes. É uma produção
que aparece como um excesso muito diferente do
elemento significante, que como borda, dá
consistência ao conjunto. [...] O sistema, portanto,
precisa de dois fatores para ter consistência: um
elemento externo (S1 ) e, depois, um produto
eliminado (a). O significante externo (S1 ) é
homogêneo ao conjunto de significantes, sua relação
é simbólica; inversamente do produto residual, a, de
natureza real, e heterogêneo ao conjunto de
significantes.”158

NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p.96, Rio de Janeiro:
158

Zahar

101
A insatisfação é fruto da cadeia de significantes, em que um significante remete
a outro significante e a outro, e nisto algo cai na irrepresentatividade, o objeto a
cai quando os significantes são encadeados e revelam o que afeta o corpo do
sujeito enquanto sintoma/significante e objeto/fantasia, para que desta forma o
sujeito possa se defender do real de seu corpo.
É importante que ressaltemos que a sucessão de significantes só acontecem
devido o Nome-do-Pai, em outros termos, só há consistência de encadeamento
de significantes na fala do sujeito quando existe um significante fora: “ou o objeto
cai quando um significante é remetido ao outro, ou o próprio objeto é a queda do
significante”159.
Outrossim, e quando há a falta do Nome-do-pai, logo a foraclusão, os
significantes não são remetidos a outros significantes, não havendo equivoco de
significantes, não há sintomas, sonhos e sim delírios e alucinações e afecções no
corpo, visto que em vez de um significante remeter a outro significante remeterá
ao gozo do corpo.
Isto ocorre no caso das psicoses e nas conversões neuróticas, no lugar do
significante remeter a outro significante, existe um acontecimento do corpo:
úlcera, psoríase, enxaquecas, desmaios..., fazendo o sujeito responder a uma
afecção, substituindo o apelo a um terceiro significante. Não existe o “ponto de
fuga” para um horizonte marcado pelo Nome-do-pai, não há destino, uma
realidade sem fronteira do eu e do outro, assim o sujeito torna-se sua afecção,
uma metáfora estagnada no corpo enquanto gozo.
O termo conversão em psicanálise diz respeito aos mecanismos relacionados
aos sintomas do corpo, que revelam os conflitos psíquicos em correspondências
aos desejos inconscientes nos quais o corpo é local de descarga, sendo assim a
conversão é uma maneira da energia libidinal conflitosa se manifestar.
Seguindo, o objeto a consagra o furo da estrutura do inconsciente, a partir da
pulsão que atrairá outros significantes, dando consistência à cadeia enquanto
borda, um objeto furo vivo, um mais-de-gozar, uma atração que anima o sistema

159
Ibidem, p. 27

102
causa de desejo, sendo que se movimentam por um fluxo de energia pulsional
no centro do oco, como também as bordas do furo inscrita no inconsciente.
O furo é uma abertura delimitada por um circulo, esta borda (circulo) se
movimenta quando há o movimento da fala, por caminhos marcados por energias
gozosas, que se animam abrindo e fechando o furo, localizado na estrutura do
inconsciente em que há enigma dos orifícios erógenos.
Assim, é a partir da borda que se movimenta pelo gozo, que mobilizam, e
produzem mais furos, que emerge o real, certo que na nossa vida psíquica só
existem furos gerados por tensões e movimentos do simbólico:

Figura 1: Matriz da estrutura: o todo, o furo e o Um160

“...o seio, o cíbalo, o olhar, a voz; essas partes


destacáveis, mas intrinsicamente ligadas ao corpo, é
disso que se trata no objeto a.”
J. Lacan161

NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p. 65, Rio de Janeiro:
160

Zahar

161
Idem, p. 99

103
Os objetos perdidos de Freud: seio, fezes, e Lacan posteriormente a Freud, ao
desenvolver sua teoria do objeto a, acrescenta a voz e o olhar, foram
apresentados em Freud nos Três ensaios162, como objetos que o sujeito
“consome e perde”.
Lacan busca a partir dos objetos perdidos de Freud, uma segunda abordagem
para o objeto a, não sendo, apenas, objetos de gozo em si, mas objetos
destacáveis do corpo, neste contexto de objetos destacáveis do corpo circularão
as falas do sujeito, a partir das suas perdas irrecuperáveis que marcam um corpo
e que buscam uma linguagem na realidade repleta de furos.
E para falar das performances e as voltas dos objetos a, como elementos
destacáveis do corpo, que encontramos três condições de movimentos para a:
uma imaginária e duas simbólicas. As duas espécies de a que determinam a
dimensão imaginária são: seio e fezes, prolongamentos do corpo do sujeito
possíveis de serem ‘agarradas e soltadas’ do corpo.
A partir da dimensão simbólica de tais objetos: o seio e as fezes, são marcados
não, apenas, pelos prolongamentos do corpo, mas pelo o que separa do corpo,
sendo o seio ao desmame; e as fezes a defecação; relacionados diretamente com
orifícios erógenos que tensionam e soltam, a boca e o ânus, por bordas que
movimentam-se os significantes.
No tocante aos objetos parciais: voz e olhar são determinados apenas pela
dimensão simbólica, pois do ponto de vista do imaginário tais objetos são difíceis
de serem imaginados, neste panorama a dimensão simbólica possibilita que, a
partir de uma fenda que movimentam tais objetos, em que os olhos piscam e a
glote vibra dando origem a voz, os objetos estejam evanescentes a uma
simbolização:

162
FREUD, S. (1901-1905/2016). Três ensaios sobre a sexualidade. In: Obras completas: (Vol. VI).
São Paulo: Cia das Letras.

104
Figura 2: Dimensão imaginária e simbólica do objeto163

Podemos verificar a partir da figura 2, que o seio e as fezes são elementos de a


com materialidades imaginárias, que convocam uma extensão do sujeito a partir
das proeminências de tais objetos que o sujeito agarra e solta.
O elemento voz é marcado pela movimentação da fala, de maneira que o objeto
voz desliga-se e separa-se do corpo do sujeito, marcando uma fala que separa o
objeto do corpo de maneira irrecuperável, a partir da fenda de um orifício
palpitante.
É a partir da demanda do Outro, não mais como semelhante, que há a separação
do objeto, como também é pelo grito aclamando o objeto que o sujeito afirma-se
como demandante e desejante.
Considerando, que é por uma dupla demanda que poderemos aplicar a terceira
condição simbólica, do objeto a, ou seja, a demanda do sujeito dirigido ‘ao’
Outro(A) e ‘do’ Outro (A), ao sujeito, agora o Outro maiúsculo, marcando a
separação dos objetos: seio e fezes, assim tais objetos sofrerão o corte
significante:

163
Ibidem, p.102

105
Figura 3: Circuito de uma dupla demanda164

O corte significante, diz dos desencontros entre demanda e objeto real, por
exemplo: a criança chora demandando alimento e a mãe o agasalha, isto nos
revela que o objeto real é transformado em uma abstração mental e alucinada,
devido aos desencontros entre as demandas ao Outro e do Outro. Esta seria a
marca do objeto a como objeto causa de desejo, deixando claro que o seio
desejado não é do corpo da mãe, mas, o seio psíquico que é produzido,
anunciado pela insatisfação do sujeito diante da demanda, sendo que o “seio
psíquico está diretamente ligado à relação da mãe com seu próprio corpo. O seio
do desejo da criança depende do desejo da mãe de dar o seio”165 .

“É entre o seio e a mãe que passa


o plano de separação que faz do
seio o objeto perdido em causa
no desejo”166

NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p. 114, Rio de Janeiro:
164

Zahar

165
Ibidem, p. 104

166
LACAN, J. (1966/2003). Escritos: O falo e suas significações, p, 848, Rio de Janeiro: Zahar.

106
É o que nos revela a chave do Édipo, que não haveriam desejos incestuosos se
não houvessem desejos em cena, ou seja, o desejo da mãe e do filho, desejos
intensos e intoleráveis, deixando claro aos psicanalistas que o desejo que
interessaria a análise é o desejo do que foi produzido psiquicamente frente a
separação, e toda produção simbólica realizado a partir do corte significante que
levará o sujeito a fala.
Por isto que, podemos pensar em uma questão diante de analisantes que
apresentam fenômenos de adições: anorexia, bulimia, obesidade mórbida,
alcoolismo, consumo... e por ai afora, “você sente falta de quê?”, não seria o
objeto real, mas o objeto mental, produzido psiquicamente.
É o que ocorre, entre o seio, as fezes e a mãe, que interessa-nos como analistas,
o que convoca o objeto perdido, produzido psiquicamente, pois o desejo da
criança não é o mesmo da mãe, sendo que o objeto a, não é meramente um
objeto alucinado, mas, uma energia indefinível, um mais-gozar, um furo revestido
de semblantes de objeto, que cobrem um em-si intacto e recoberto por
semblantes.
Como pensar então, o objeto perdido, a quem pertence, a criança ou a mãe?
Não pertence a criança e nem a mãe, é o objeto a que cai entre-dois significantes,
na intersecção do Outro com o sujeito, uma não resposta chamada objeto a,
revestidos de “imagens semânticas relativas aos lugares erógenos do corpo: o
seio, o excremento, o olhar, a voz, pareceres de a, semblantes de ser”167, em que
a demanda é insatisfeita por não encontrar o objeto real, e o desejo por não
encontrar o objeto incestuoso, encontrando apenas, na fantasia sendo seus
substitutos:

167
Ibidem, p. 108

107
Figura 4: As três etapas da produção do objeto a168

É por tais composituras fantasísticas que os objetos a, objetos causa de desejos,


serão elaborados sob as vertentes do sujeito e dos objetos, caracterizados pelos
objetos parciais (seio, fezes, olhar e voz) a partir de um “pronto a fornecer peças
descartáveis”169, ou seja, cada objeto seria as formas de linguagens do corpo,
representadas pelas fantasias inconscientes, no entanto os objetos a insistirão
em faltarem às representações do inconsciente e do gozo do Outro, pois os
objetos a confere uma consistência lógica e não da carne.
Assim o objeto a é uma aposta de risco fundador do sujeito e de suas relações
com os objetos causa de desejos, e é na experiência analítica que é movimentado
o simbólico e consequentemente a queda do Outro.
Vale lembrar que Lacan dividiu os quatros objetos a em: objetos da demanda:
em que o objeto oral seria a demanda feita ‘ao’ Outro e objeto anal da demanda
‘do’ Outro; e objetos do desejo: desejo ‘do’ Outro como objeto voz; e desejo ‘ao’
Outro, o objeto olhar, referido na parte um deste livro.
Os objetos a, representados pelos objetos parciais, são objetos das pulsões
inconscientes, regidos pelos princípios do prazer, e modelados pelas fantasias
que buscam satisfações pulsionais a partir de representações conscientes, uma
maneira de coisificar, a partir das ilusões conscientes daquilo que são
evanescentes no inconsciente.

168
Idem, p. 109

169
Idem, p. 305

108
Mas, para que as pulsões busquem nas fantasias inconscientes e nas
representações conscientes seus objetos de satisfações, haveria de ter ‘um’
objeto primeiro, ‘um’ unicamente, confirmado a partir de um objeto segundo,
fazendo que o objeto primeiro tornasse único a partir do dois, nisto, o dois
confirmaria um momento, um-único-momento, um momento lógico, fazendo do
objeto a um traço isolado pelo sujeito.
Este traço, marcado pelo sujeito poderia ter sido olhado, ouvido, experimentado,
retido ou eliminado, tanto faz cada um, um-a-um, marca seu bichinho de
estimação e leva à tira colo, começando tudo “de um golpe, o um e o sujeito [...]
um traço tomado, um traço isolado pelo sujeito” ., e em sequência outros
170

traços, elementos extraídos do primeiro por contágio.


Laços que o sujeito estabelecem com o Outro, a partir de um único momento
lógico tomado naquilo que escutou, olhou, experimentou, conteve ou liberou,
laços que por contágios tecem as malhas do inconsciente, duplicados por
significações, laços que instauram um saber absoluto e unificador a partir da
castração do sujeito.
Neste contexto poderíamos ainda questionar, mas de ‘ato’ o que seria o objeto a
em Lacan?
Uma letra, apenas uma letra a que marca um problema, uma questão, uma
ausência ainda não resolvido, é por esta ausência que o sintoma como uma das
formações inconscientes insiste em repetir, sem parar, sem solução, pois é o furo
opaco de nossa ignorância, nosso ponto real que o olhar convoca à revisitação
constante sem possibilidade de construir uma verdade, pois é vazio de sentido.
Então, vamos pensar no que é lógico deste objeto a, marcado e isolado por um
único traço em que movimentará a pulsão inconsciente, essa captura do um, esse
corte no real, isolado como um único traço fez-se também fugidio daquilo que
isso gozava, e que deixou de gozar, o objeto foi perdido, porém sonhado a ser
encontrado, um regresso ao gozo da coisa que jamais regressa, mas deixou

170
COTTES, F, G. “Traço unário”, In: “Scilicet: os objetos a na experiência psicanalítica,
Associação Mundial de Psicanálise, p. 340, Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria

109
traços sobre o corpo, caminhos que o sujeito busca de um momento
irrecuperável, pois foi comido, cagado, olhado e ouvido.
O objeto se foi, a coisa fugiu e desertou o sujeito deixando-o apenas com traços
sobre as bordas, a partir de um dito, na impossibilidade de um dizer da Coisa que
não foi dita ou foi mal-dita, deixando uma marca, uma cicatriz, um trauma no
corpo que faz-se coisa gozosa, agradável e desprazerosa.
É por isso que o sujeito neurótico apela em sua insatisfação histérica e na
impossibilidade obsessiva, por repetições de seus sintomas e pela estagnação
de uma imagem narcísica em que o sujeito paga um preço no imperativo do
goza!!!, dando ao sujeito um corpo que é amparado por bordas, pela verdade do
Outro absoluto e inacessível, sempre inacessível, que a fantasia busca modelar
na tirania dos sintomas.

“Depois, quando isso goza assim, estamos


certos de que não estamos mais no momento
lógico! Isso lhe dá o sentimento de vida ou, em
todo caso, de ter um corpo – e somente um –
como superfície que suporta suas bordas”171

Pensaremos, que o sujeito ao utilizar as bordas ou semblantes visa uma relação


em que os objetos a transitam no prazer e desprazer (satisfação-insatisfacao) em
relação as suas necessidades e demandas ao Outro e do Outro, satisfação a
partir da captura de imagens do objeto, e insatisfação diante de suas
necessidades e demandas, nisto, a insatisfação marcada pela dimensão
simbólica.
Na prática, o analista se depara, no primeiro momento com o sintoma do
analisante, e no prosseguir de uma análise verifica as fantasias que dão
consistências aos sintomas, sendo que é preciso que o sintoma, a partir da
análise, se transforme em significante para que movimente a cadeia de
significantes, na qual o sujeito realizará a travessia da fantasia.

171
Ibidem, p. 341

110
Para tanto, para refletirmos sobre o sintoma ancorado por suas fantasias, faz-se
importante ‘trocarmos em miúdos’ ou seria em objetos a?
Vamos utilizar do exemplo da anorexia, e de que maneira Lacan abordou tal
afecção. A anoréxica não quer este estado duplo (satisfação-insatisfação), logo
ela não visa a satisfação da necessidade (fome), e insatisfação do desejo, ela
mantem-se na insatisfação da necessidade e do desejo, “Ela quer que a
insatisfação esteja em toda parte”:

“Não, não quero comer para não me satisfazer,


e não quero me satisfazer para ter certeza de
que meu desejo permanecerá intacto – e não
apenas o meu, mas também, o de minha
mãe”172

Lacan deixa-nos as vistas as distinções entre: necessidade, demanda e desejo,


e insiste em afirmar que o desejo é oriundo da impossibilidade do desejo
incestuoso, de maneira que o seio precisa ser destacado como objeto erótico.
A necessidade de alimento advém da fome, isto podemos considerar com muita
clareza, contudo, a demanda sempre é insatisfeita porque nunca obtém o objeto
real que almeja, e enquanto desejo é insatisfeito porque é incestuoso, em outras
palavras, o sujeito tem o alimento oferecido pelo seio, mas, não para satisfação
incestuosa, isto lhe é negado, assim, verá sua demanda insatisfeita e fantasiará o
objeto de seu desejo.
Em que consiste o desejar?
Em alucinar o objeto desejado, criado pela conjugação da relação da mãe e do
filho, sendo o objeto alucinado diferenciado do objeto real, pois é resultado do
elo desejante mãe-filho, revelando que não há satisfação no ato da nutrição e
nem no ato do incesto, logo, nem com a necessidade, nem com a demanda, e
muito menos com o desejo incesto, que lhes é impossível, desejar o objeto
alucinado equivale a evitação da via da necessidade e do incesto.

172
Ibidem, p. 107

111
“O desejo, certamente, é intolerável, mas protege o
sujeito contra a tendência, digamos, humana, que
habita em todos nós, de buscar o limite extremo, o
ponto de ruptura, a satisfação absoluta do incesto;
numa palavra, o gozo do Outro.”173

A importância deste momento em nosso estudo é entendermos a lógica da


fantasia a partir das voltas dos objetos a, para tanto, faz-se importante que
levantemos as questões que é recorrente nas supervisões clínicas que realizo
com analistas, que trazem seus casos clínicos com dificuldades em localizarem
a fantasia inconsciente, desenvolvidas a partir do corte significante, e implícito
nos sintomas.
As questões que frequentemente os analistas em supervisão levantam são: Como
se apresenta a fantasia na clínica? Como identificar o objeto a, como marca do
significante?
Para que possamos identificar os objetos a em um processo de análise,
começaremos por identificar a fantasia, lá estará o a, como um corte no real,
presentificado como aparelho de gozo e de causa de desejo.
Para Freud as fantasias, conscientes ou inconscientes, são consideradas
constantes criações psíquicas, que ele chamava de “preto-branco” para mostrar-
nos as plasticidades das fantasias, ou seja, as mobilidades que as fantasias
assumem em mudarem, initerruptamente de registros, consciente para
inconsciente e vice e versa, mesmo que na maior parte permaneçam
inconsciente.
Voilà, lá onde está a fantasia encontraremos os objetos de gula, espiação,
expiação, retenção, intimidação, vociferação..., um significante que marcou o
corpo do sujeito, como traço, como trauma.

173
Ibidem, p. 110

112
A fala do analisante em cada análise se repetem em pontos constantes e
essenciais, que se tornam indícios para o reconhecimento das fantasias
inconscientes.
Pontos estes que iniciaremos em destacar, a partir das produções fantasísticas:
fantasias originais, produzidas em análise, e acima de tudo fantasias que
sustentam a própria transferência.
Ao focalizarmos nossos estudos em relação à fantasia, é preciso atentarmos
como esta se estrutura, assim, pensaremos no seguintes aspectos : a cena, os
personagens, poucos e repetitivos, a ação , afetos e emoções e a presença, na
cena, de uma parte do corpo.
A fantasia também é apresentada nos sonhos e devaneios, sempre a partir de
um ato que se repete, marcado por um verbo que está em relevância no campo
semântico, por exemplo, o verbo “sufocar”, que o analisante detalha
minuciosamente mas considera enigmático, pois se impõe a ele e se repete
independentemente de seu querer.
O verbo é situado como ação principal, que o analisante emprega em seu relato
e que designa a ação fantasística, como materialidade do significante que como
borda circunda e movimenta os orifícios erógenos, como também o traçado do
corte da dupla demanda.
Seguimos dando relevância ao afeto, a emoção ou tensão, o prazer ou a dor, que
estão vinculados aos personagens em relação ao sujeito.
É importante destacar que o sujeito é afetado pelo mais-gozar, como motor
inconsciente da ação fantasística, que se diferencia dos afetos vivenciados na
cena da fantasia, do prazer e da dor diante da fantasia.
Para entendermos esta diferenciação entre: mais-goza; afeto ou emoção; prazer
e dor; é preciso que seja demarcado o gozo inconsciente que movimenta a ação,
pois o gozo tem status de objeto a, ou seja, de objeto marcado no corpo como
objeto parcial, para considerarmos a lógica da fantasia que está localizada na
identificação do sujeito com o objeto.
A partir desta diferenciação podemos entrar na lógica da fantasia destacando
como uma estrutura de linguagem, na função inconsciente para um processo
analítico.

113
Então, retornemos os pontos importantes destacados acima que demarcam a
fantasia inconsciente, sendo estes: o sujeito, um objeto, um significante, e
imagens do eu.
A cada cenário fantasístico relatado pelo sujeito, podemos destacar sua posição
de objeto, por caminhos reflexivos em que o sujeito transita da atividade para
passividade (sadismo-masoquismo) e vice-versa, considerando que Lacan no
matema da fantasia, [ ◊ a], destaca a conjunção e disjunção do sujeito em
relação ao objeto, para que o analista possa observar sua posição de objeto do
gozo do Outro, como também, a perversidade contida na vivência do sujeito, uma
prática vergonhosa para ele e que busca manter em seus segredo mais íntimos.
Assim, a estrutura que se organiza a fantasia movimenta-se a partir da
identificação do sujeito transformado em objeto, “sou o objeto do desejo do
Outro”.
Para exemplificar utilizaremos o objeto olhar, que está sendo nosso ponto focal
de estudo, o sujeito não apenas olha, ele é transformado no olhar, como aquilo
que se torna estranho, um espectro a ser olhado pelo Outro, podendo revelar as
estranhezas do que lhe é mais intimo.
O sujeito se transforma pela sua fantasia, no objeto que ele perdeu, a partir do
corte significante olhar (verbo). Para exemplificarmos ainda, retornemos a figura
3, que Nasio174 apresenta-nos o circuito da dupla demanda, em que no primeiro
momento a demanda da criança à mãe é: “Estou com fome”, depois o segundo
momento a demanda da mãe: “Deixe-se alimentar, meu filho”, e o terceiro
momento a identificação em que o seio foi instituído como objeto do desejo, aqui
a fantasia está instituída a partir de um objeto alucinado ou fantasiado.

“Freud nunca distinguiu nitidamente as estruturas do


sonho, da fantasia e da alucinação. Reconheceu não
poder diferenciar estas três formações psíquicas.
Agrupou-as sob a denominação de “psicoses

NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p. 114, Rio de Janeiro:
174

Zahar

114
alucinatórias de desejo”[...]. Freud rompeu com a falsa
intuição de relegar a psicose a um mundo à parte.
Essa bela expressão, ‘psicose do desejo”[...] Essas
produções psíquicas – fantasia, alucinação e sonho –
batizei-as de “formações do objeto a”175

Neste momento podemos retornar a pergunta inicial: Como identificar a fantasia


e o objeto a na análise?
Aonde está a fantasia inconsciente está o a, transformando o sujeito em objeto:
seio, excremento, olhar, voz, momento que o sujeito funde-se com o objeto
separado, definido por Lacan no matema (S a), sujeito como agente da fantasia,
nisto, o sujeito como resultado do corte significante, objeto causa motora da
fantasia representado por um , como causa eficiente do gozo.
O sujeito em questão é o sujeito do inconsciente, um efeito da experiência
inconsciente que produz fantasia, assim, o objeto a, sendo objeto do desejo na
fantasia, assume diversas formas corporais, marcado pelo furo na estrutura, ou
seja, Um e o todo.
O objeto a, pode também ser contemplado pelo fluxo energético produzido
psiquicamente como mais-gozar no inconsciente, determinando a posição da
necessidade, demanda, desejo e da fantasia, a partir de um furo que movimenta
a pulsão em direção ao objeto.
A partir de tudo que foi desenvolvido até aqui, poderemos elaborar mais uma
questão; “Onde está o gozo?”
A resposta é singular, no corpo que experencia uma tensão excessiva, que não
é prazer, pois este é rebaixamento de tensão.
Se pensarmos que o mais-gozar é um fluxo continuo da pulsão inconsciente, por
isto que, anteriormente, fizemos a distinção com o afeto ou emoção, a dor e o

NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p. 132, Rio de Janeiro:
175

Zahar

115
prazer, que está em direção ao objeto, logo, o gozo do Outro é a marcação do
significante no corpo do sujeito que promoverá sua identificação com objeto.
Para exemplificar o gozo do Outro, falaremos do voyeur que goza em espiar,
mas muito, mais ainda, em ser expiado, descoberto, desvelado e humilhado pelo
Outro, neste momento a fantasia perversa do neurótico coloca-o em relação ao
Outro como o maior idiota, humilhado, e ai seu corpo enche de tensão e ele goza
por ser rebaixado de maneira aviltante.
O neurótico fantasia o gozo do Outro, através de imagens de ser desvelado,
descoberto na sua perversidade mais intima, fantasiando a morte ou a felicidade
mais suprema.
O gozo-Outro é o gozo mais perigoso e implica o corpo inteiro e não uma parte
do corpo (seio, fezes...) e de significantes fálicos, é o gozo do suicida e do mítico
que busca com o corpo inteiro um encontro com Deus.
Para continuarmos às voltas do objeto a, iremos nos remeter ao grafo do desejo
construído por Lacan176, mais especificamente ao segundo andar do grafo do
desejo, a partir dos elementos estáveis do primeiro e segundo andar do grafo: A
(tesouro do significante); s(A) (significado-sintoma); m(moi-eu); i(a) (imagem);
I(A) (ideal do Eu); d (desejo); ($ ◊D) ( pulsão da demanda inconsciente); ($ ◊a)
(fantasma) e (significante da falta do Outro):

176
LACAN, J. (1956-1957/1995). O Seminário, Livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Zahar.

LACAN, J. (1957-1958/1999). O Seminário, Livro 5: As formações do Inconsciente. Rio de


Janeiro: Zahar.

LACAN, J. (1958-1959/2016). O Seminário, Livro 6: O desejo e suas interpretações. Rio de


Janeiro: Zahar.

116
Figura 5: Segundo patamar do grafo do desejo

“O grafo do desejo foi construído por Lacan em dois


patamares para representar o eixo imaginário, o eixo
simbólico e o eixo do real. [...] O grafo do desejo é uma
maneira de Lacan relacionar a estrutura de linguagem do
inconsciente, tomando-o como base a construção de um
grafo.”177

A recorrência ao grafo do desejo, aqui, em nosso estudo, nos possibilitará dar


relevância aos seguintes matemas: : à $ ◊D, a partir da cadeia de significante
inconsciente, presente no segundo andar do grafo, revelando o gozo e a
castração do sujeito e do Outro por intermédio da lei do pai, (NP) que interdita o
gozo absoluto.
“O grafo enfatiza na articulação do primeiro e segundo
patamar a dimensão imaginária e simbólica do corpo. A
dimensão imaginária do corpo comparece no vetor i(a)à m
e a dimensão simbólica na cadeia significante inconsciente,
à $ ◊D, em que, o sujeito só terá acesso ao corpo pela
palavra, pelo significante, pelo Outro.”178

177
OLIVEIRA, S,M,L(2023)”Memórias entre uma poltrona e o divã”, p. 192, Bom Despacho:
Literatura em Cena

178
Idem, P. 201

117
A pulsão $ ◊D revela a dupla demanda e as operações lógicas possíveis em que
o sujeito realiza diante da demanda ao/do Outro no qual irá produzir sua
castração , como seu o gozo e seu desejo, como significante da falta do
Outro (gozo) e falta de um significante(desejo), a partir do enigma do desejo do
Outro, uma questão, “Che Vuoi?, que irá ocupar o sujeito em busca de um objeto
para tamponar a falta do Outro, significante da falta do Outro, “um significante
que poderia responder a falta ao/do Outro”179
É por uma operação psíquica diante do enigma do desejo do Outro que o sujeito
é barrado, logo, a existência da dimensão do real sobre o sujeito, objeto a,
representado pela fantasia, ($ ◊a), que estaria representando a dimensão do real,
para que a pulsão inconsciente se movimente a partir de uma demanda que dará
materialidade ao objeto a.

“Em Lacan, o objeto a é um conceito fundamental que


representa um objeto imaginário e sempre faltante e que é
buscado pelo sujeito para satisfazer a pulsão. Este objeto a,
não pode ser encontrado na realidade por ser uma
construção psíquica imaginária, assim o objeto sempre é
perdido para que a pulsão continue a circular.”180

O segundo patamar do grafo do desejo revelaria a dimensão do gozo, ( A de


A barrado) que busca um objeto do desejo (gozo), como também um objeto
causa de desejo (d).
A introdução no grafo do desejo do matema (significante do Outro barrado),
revela o estatuto do Outro como lugar da fala, visto que o Outro está submetido
às necessidades da linguagem, uma falta que significaria o desejo (d), o que o
destitui de toda onipotência e verdades absolutas.

179
Idem
180
Ibidem, p. 202

118
A dimensão imaginária de e o Outro inaugura o objeto a sob formas de
imagens i(a) narcísicas e fantasísticas ($ ◊a), que põe o objeto a no jogo das
imagens. Assim, o se constituirá da mensagem inconsciente que revela ao

sujeito a falha do Outro .


“A falta significantizada pelo ‘significante falo’ à uma hiância ‘irredutível ao
significante’, deixam imutável a escritura de ”181, em outros termos, Lacan
insiste em enfatizar que: “não há Outro do Outro”; o “Outro é castrado”; “não há
universo da linguagem”; “o pai está morto”; o “Outro não existe”.
Todos estes aforismos certificam que o Outro (A) é uma construção imaginária e
fantasística do sujeito que se vê desamparado com as incertezas da linguagem
que não tampona a falta, mas, revela.
Assim, a fantasia irá “enforme de A” a partir de um objeto escópico, a partir do
objeto a. A fantasia será a tentativa utilizada pelo sujeito de suprir o significante
faltante no Outro, ou seja, a castração do Outro, no qual ele fracassa pois o real
insiste em se inscrever na linguagem.
A fantasia eleva a função do significante, dos objetos (oral, anal, olhar e voz), da
necessidade, e da demanda inconsciente, contudo, o gozo falta ao Outro,
tornando-o inconsistente e inexistente.
Lacan não hesita em revelar a imaterialidade do objeto a, da mesma maneira que
a inconsistência do Outro como coisa invisível e abstrata dos objetos parciais,
uma marca de – phi ( - 𝜑 ), em que a oralidade é marcado pelo consumo do
objeto, o objeto anal remete a pulsão de reter e soltar, a voz como a sonoridade
do silêncio e finalmente o olhar que revela a cegueira do inconsciente.
Mas, a fantasia traz suas ambivalências, isto é, ao mesmo tempo que sustenta o
desejo às voltas de a, assegura o gozo do Outro. E como isto acontece?
Amando o Outro, “este amor vagabundo, que me joga na parede e me chama de
lagartixa” e que é estranho pois nada se sabe do amado, assim, o sujeito afirma

WACHSBERGER, H, “
181
”, In: “Scilicet: os objetos a na experiência psicanalítica, Associação
Mundial de Psicanálise, p. 304, Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria

119
que o Outro existe, para “lisonjear seu desejo para adormecer sua falta-a-
gozar”182.

182
Ibidem, p. 305

120
A HORA DA ESTRELA...Neste momento de nossa leitura, estamos
circulando do “meio” a caminho do final do livro de Lispector, e não é estranho
que o narrador, ainda, esteja circulando, as voltas, do vazio da nordestina, as
voltas de um a, um olhar, que convoca suas próprias estranhezas em relação ao
desejo do Outro, mas, que utiliza do outro, na suas semelhanças e
dessemelhanças, para conseguir falar daquilo que lhe é mais intimo, mais
perverso e mais inadequado.

Não há como negar o quanto Rodrigo salienta a vida miserável de Macabéa, -


realidade de um corpo virtual como uma imagem furada, que convoca a angústia
de existir do narrador e que pulsa em direção ao encontro de uma resposta, um
saber que venha enquadrar o real em sua realidade, a partir da apreensão de
um objeto para satisfação pulsional, um saber que falta sobre o desejo
inconsciente.
Rodrigo não encontra respostas em Macabéa, o que encontra é seu próprio vazio
recorrente de um traço isolado, um significante, um olhar, um verbo, de que ele
possa falar através de Macabéa, daquilo que de mais cego há em si.
Mas, é pelo verbo amar, um único verbo, que carrega em si quatro letras que a
personagem de Macabéa ganha voz, um verbo que corta o real na parcialidade
dos objetos e que impõe ao sujeito moderação do gozo com possibilidade de
desejos.
É na busca de um dizer, na perspectivas de fazer laços com o Outro, que
Macabéa sente-se na urgência de operar uma fala, naquilo que nada sabe sobre
o amor e sobre o Outro.
Para tanto, o verbo amar convida Macabéa a uma operação complexa e que
evoca para o cenário imaginário uma castração simbólica, que movimentam os
desejos mais obscuros, fazendo com que o verbo amar deslize metonimicamente
na cadeia de significantes, em uma operação de risco, pois “Amar é dar o que
não se tem a quem não quer”, onde o verbo amar dilata-se em movimento entre
o conhecido e desconhecido, do que se mistura e principalmente, do que separa
o sujeito do Outro, e que revela o mistério de um traço comum que se cruzam
com a história de cada um.

121
“Maio, mês das borboletas noivas flutuando em
brancos véus. Sua exclamação talvez tivesse sido um
prenúncio do que ia acontecer no final da tarde desse
mesmo dia: no meio da chuva abundante encontrou
(explosão) a primeira espécie de namorado de sua
vida, o coração batendo como se ela tivesse englutido
um passarinho esvoaçante e preso. O rapaz e ela se
olharam por entre a chuva e se reconheceram como
dois nordestinos, bichos da mesma espécie que se
farejam. Ele a olhara enxugando o rosto molhado com
as mãos. E a moça, bastou-lhe vê-lo para torná-lo
imediatamente sua goiaba-com-queijo”183

Depois dos olhares “entre a chuva”, seguiu-se o momento de trocarem seus


nomes, o rapaz teve de súbito um estranhamento quando Macabéa disse seu
nome e comentou: “Me desculpe mas até parece doença, doença de pele”, e
logo ela se justificou dizendo que seria resultado de uma promessa feita por sua
mãe a “Nossa Senhora da Boa Morte”, caso ela vingasse, confirmando a
seriedade das promessas no sertão da Paraíba. Após Macabéa dizer seu nome
e os motivos que confirmavam sua existência, seguiu-se um silêncio doloroso, no
qual ela temeu que significasse o fim de seu “recém-namorado” e resolveu
quebrar o gelo:

- “Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?”

Foi apenas no terceiro encontro que Macabéa, encheu-se de coragem e


perguntou ao rapaz seu nome:

183
LISPECTOR, C, (1977-1988) A hora da estrela, p. 51, Rio de Janeiro: Nova Fronteira

122
- “Olímpio de Jesus Moreira Chaves – mentiu
ele porque tinha como sobrenome apenas o de
Jesus, sobrenome dos que não têm pai, fora
criado por um padrasto que lhe ensinara o
modo fino de tratar pessoas para se aproveitar
delas e lhe ensinara como pegar mulheres.”

Macabéa, tentou esconder sua pouca compreensão diante de tantos nomes que
aquele rapaz carregara, mas fingiu desejo sem saber que tinha, e assim buscava
elaborar perguntas que pudesse dizer do desejo daquele rapaz de tantos nomes.
E muito cedo percebeu que não saberia mais se livrar daquele amor, pois estava
em “desespero de amor”.
Logo Macabéa descobriu que Olímpio trabalhava em uma metalúrgica como
operário, o que o definiria, segundo ele, como metalúrgico e não operário. E por
tais significantes, “metalúrgico e datilógrafa” que formavam uma “casal de
classe”, marcas fálicas que dariam a eles um representação de existir na
realidade do Outro, e na posse de tais semblantes conseguiriam falar um do outro
e circularem, no imaginário e simbólico, mascarando o real com maior segurança
na confirmação de um gozo do Outro.
Mas, foi a partir da revelação do desejo de Olímpio de ser deputado pelo Estado
da Paraíba que Macabéa ficou pensativa: “Quando nos casarmos então serei uma
deputada? Não queria, pois deputada parecia-lhe nome feio”.
E foi por tal constatação que Macabéa se deparou com a dupla demanda entre
ela e o rapaz, e que marcaria que o objeto do desejo de ambos se diferenciariam,
constatação que deixaria as vistas a impossibilidade de uma relação na
totalidade, pois gozavam de objetos diferentes, definindo a “Não relação sexual”,
a impossibilidade da relação de corpo inteiro.
E assim, seguiam o namoro falando de farinha, carne-de-sol, carne-seca,
rapadura e melado, objetos da infância de ambos e que provocavam condições
necessárias de prosseguirem com aquele namoro, um ato de dois inconscientes.

123
Ah! O amor, encontra na lógica da fantasia um objeto infantil, uma maneira de
fazer laços, fazer ato, fazer vida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

124
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126
PARTE QUATRO – O inconsciente estruturado como uma linguagem

Iniciaremos a parte quatro deste livro levantando uma questão que durante muito
tempo, nos meus estudos em Lacan, ocupou-me como um enigma na
impossibilidade de uma resposta exata, por isto, levantarei aqui com vocês esta
mesma questão, para darmos inicio aos nossos estudos sobre o inconsciente
estruturado como uma linguagem:
Como é, que nasce o sujeito do inconsciente?
Vocês terão que segurar, um pouco, as vossas “piriquitas”184 pois precisamos
falar primeiro da inexistência da metalinguagem, para aceitarmos a ideia do
inconsciente como repetição significante.
Questionarmos a existência da metalinguagem significa constatarmos que não
existe uma linguagem-meta e uma linguagem-objeto, na medida de exigir que
uma linguagem se expresse de maneira conclusiva, fechada e universal, logo, de
uma linguagem-objeto, ela fracassará como função de linguagem.
Não conseguimos, nunca, fechar por completo o que desejamos falar, e nisto que
se funda o objetivo estrutural da linguagem.
Mas, por que tivemos a necessidade de falar da inexistência da metalinguagem
para falar do sujeito do inconsciente?
Não poderíamos falar do sujeito do inconsciente, sem antes percebermos que o
sujeito é afetado, constantemente, pelo seu inconsciente, ninguém se livra e se
cura do inconsciente, ele sempre encontrará um sintoma ou qualquer
acontecimento para poder ser escutado e se expressar.
O inconsciente tem um caráter ativo e vivo, com capacidade de alterar toda a fala
e realidade do sujeito, pois funciona como uma estrutura de linguagem, no qual,
um significante remete a outro significante e a partir disto modifica-se toda a

184
LACAN, J. (1972-1973/2008). O Seminário, Livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar. Neste
seminário há uma referência ao piriquito de Picasso (Lacan, 1972-73/2008, p.13), momento este
que Lacan enuncia a natureza dos semblantes.

127
cadeia de significante. É nisto que podemos afirmar a inexistência de uma
metalinguagem, visto que não existe uma linguagem completamente fechada,
sem que o sujeito do inconsciente subverta, pois toda linguagem está
diretamente exposta aos efeitos do inconsciente.
A psicanálise se ocupa do sujeito do inconsciente, que é as avessas do discurso
científico, este foraclui o sujeito em prol de um objeto conclusivo. Assim, a
psicanálise subverte o indivíduo como unidade egóica, com nome e corpo
totalitário, para dar lugar ao sujeito do inconsciente que se transforma pelo dizer
do dito.
Agora vocês poderão soltar as vossas “piriquitas” como expressão de um sujeito
que se transforma pelo ato da palavra, que a partir do nada, da dúvida, do
equivoco, da alteridade e castração, modifica os semblantes, na busca de um
estilo próprio de fala e de escrita, na intensão de bordear o real.
O sujeito do inconsciente questiona e mata o pai primitivo, para poder existir a
partir de um furo, do nada, um furo que ao mesmo tempo que dará consistência
a lógica dos conjuntos, também marcará o limite do imperativo do Outro a partir
de uma barra, de um corte, de um furo, digo de sua própria castração.
É pela castração que o sujeito se transforma, a partir de seus efeitos, a partir do
momento que remete Um significante, como lugar, para outro significante e
modifica-se todo o encadeamento da fala de um único dito.
Freud185, pensou o nascimento do sujeito sob a forma mítica da incorporação do
pai primitivo pelos filhos (identificação primária). Lacan propõe a concepção do
sujeito a partir da articulação lógica entre os conceitos de real, do furo e
significantes, engendramento que deu o nome de sujeito do inconsciente.
Lacan, propõe o nascimento do sujeito a partir de um processo lógico, a partir do
nada, de uma dúvida, de uma questão, e assim Lacan186 serve-se do conceito de
privação num sentido radicalmente novo, ou seja, serve-se deste conceito para
explicar o nascimento do sujeito do inconsciente a partir de três tempos edípicos.

185
FREUD, S. (1912-1914/2012). In Obras completas: Totem e Tabu. (Vol. XI). São Paulo:
Companhia das Letras.
186
LACAN, J. (1957-1958/1999). O Seminário, Livro 5: As formações do Inconsciente. Rio de
Janeiro: Zahar

128
Pois bem, para que surja o sujeito do inconsciente a partir da privação é
necessário que surja um buraco no real, pois o real é “aquilo ao qual nada pode
faltar, jamais 187, para que um ser surja do real é necessário que se cave um
buraco no real, que exista no real alguma coisa a menos, isto é, que o real seja
privado de algo, uma coisa a menos no real.
Todo pensamento lacaniano a respeito do surgimento do sujeito inconsciente
está intimamente relacionado a Um todo do qual se retira um elemento, sendo
que o real para Lacan são infinidades de coisas e seres homogêneos e vazios.
Contudo, o real não é sinônimo de vazio no sentido de oco, mas no sentido de
infinito, do lugar onde nada falta.
Sendo o real um lugar onde tudo é possível, o surgimento de um único (-1),
menos Um, caracteriza a positividade de um ser, mais Um (+1), o sujeito do
inconsciente:

Figura 1: Matriz da estrutura: o todo, o furo e o Um188

187
LACAN, J. (1968-1969/2008). O Seminário, Livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro:
Zahar.

NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p. 65, Rio de Janeiro:
188

Zahar

129
É por Um -menos (-1), que se dará o nascimento do sujeito do inconsciente
(+1), um furo, que ao mesmos tempo, oferece consistência ao conjunto, e
demarca o limite como borda.
Em outras palavras, o sujeito do inconsciente surge como uma operação em que
Um elemento é retirado do real no sentido de infinitude, sendo assim, afetado por
uma falta, logo, o sujeito se ergue a partir de um obstáculo, de uma falta, uma
impossibilidade na infinitude do real.
Mas, como o analista, num processo analítico, identifica a fala de um sujeito do
inconsciente?
O sujeito do inconsciente revela-se num ato do analista, ao marcar o ato do
inconsciente, sendo que, a falta de Um significante que se revela em um ato que
surpreende e ultrapassa a intensão do analisante que fala, o sujeito do
inconsciente diz mais do que pretende dizer, e assim, se revela na sua própria
castração de dizer.
Mas, para que o ato inconsciente se manifeste é indispensável que um outro
sujeito do inconsciente escute e reconheça a importância do inconsciente, pois
o inconsciente busca ser escutado e reconhecido.
É na conjunção de dois atos inconscientes (do analista e do analisante), no setting
analítico, que o inconsciente se manifesta, não como um reservatório obscuro e
longínquo que busca ser interpretado, mas, o reconhecimento de dois sujeitos
inconscientes, que se entrelaçam diante de sua própria castração.
Dito isto, podemos pensar que o inconsciente é uma estrutura única, comum aos
parceiros analíticos, assim, constataremos a inexistência de dois inconscientes,
do analisante e do analista, mas apenas um único inconsciente produzido no seio
da transferência.
E Lacan afirma:

“É exatamente isso o que digo. Não temos


meios de saber se o inconsciente existe fora da
psicanálise”189

NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p. 52, Rio de Janeiro:
189

Zahar

130
A partir desta afirmação de Lacan utilizada por Nasio, podemos considerar que
não conhecemos o inconsciente como um saber, dito isto, declaramos que o
inconsciente não é tangível e apreensível como um saber, ele é inesperado, como
um sonho, um ato falho, um sintoma, como o pai, o Nome-do-Pai.
Mas, um nome isolado não faz cadeia e nem estrutura, é necessário que este
nome se repita e se inscreva como estrutura de linguagem, pois nomear não é
simplesmente um nome, é um ato que dará existência e consistência ao sujeito
do inconsciente, que se manifesta em estrutura de linguagem, por isto, o sujeito
é marcado por um nome, no qual ele responde quando é chamado pelo Outro
que o nomeou, como um código que se transforma em significação.
É preciso que enfatizemos que muitas vezes o processo de uma análise é
comprometida pela interpretação do analista que busca dar um sentido a um
acontecimento inconsciente formulando conceitos exatos, isto é lamentável, pois
o ato do inconsciente é um nome que não busca saber demais, mas,
surpreender-se e, a partir desta surpresa que modifica-se a cadeia de
significantes encadeados como uma estrutura.
Para que possamos dar seguimento ao nosso estudo sobre o inconsciente
estruturado como uma linguagem, faz-se imprescindível que deixemos claro a
distinção entre língua e linguagem.
É pelos efeitos da língua como linguagem falada, que a estrutura do inconsciente
movimenta-se e é exteriorizada, na fala inesperada do analisante.
Vamos entender isto melhor, já mencionamos que o repertório do inconsciente
se manifesta a partir de Um significante que pode ser expressa por um
acontecimento do corpo ou da palavra.
Estes acontecimentos, ou seja, as maneiras que o inconsciente utiliza para se
exteriorizar, são resultados dos efeitos produzidos pela língua, que expressa o
furo no real, revelando uma maneira particular de falar a língua materna.

131
Parafraseando Nasio190, Lacan criou um neologismo gráfico em que se solda o

artigo e o substantivo, “ língua”191, para pensar a língua, a língua materna, a


partir da relação da criança com a mãe. É pela língua materna, língua da pele,
isto é, de tudo que envolve o corpo, afetos e sensações, que Lacan refletiu sobre

a natureza d’ lingua que goza.

Lacan busca n’ lingua para sublinhar o quanto o inconsciente se manifesta a


partir de um elemento exteriorizado, um elemento gozado, uma língua ligado ao
corpo, a língua da mãe, mamado pela criança que busca falar uma fala carregada
de sentido, de imagem do corpo.

Então, por que Lacan utiliza “d’ lingua” para construir seu aforismo: “O
inconsciente é estruturado como uma linguagem”?
Lacan elevou o inconsciente à categoria de linguagem, na perspectiva de uma
estrutura, cuja a unidade fosse o elemento significante, que fosse homogêneo
como conjunto e heterogêneo quanto realidade.
Assim, os significantes enodam-se entre si, a partir de um duplo movimento, de
substituição, (metáfora) e de ligação (metonímia).
A metáfora realiza o movimento de substituição, de maneira que o inconsciente
é exteriorizado sob a forma de Um significante marginalizado, que se movimenta

menos (-1) como falta e mais como excesso (+1), demarcando o lugar da
falta (desejo) e do excesso (gozo).
A metonímia é a ligação, a maneira de uma cadeia, que enlaça um significante ao
outro significante, delegando a um outro significante a marca do Um. Tais
movimentos, de substituição e ligação, proporcionam a estrutura a atualização,
de maneira ininterrupta.
O elemento menos (-1), marginalizado, coloca um buraco na cadeia de
significantes, e busca na borda o limite da estrutura, de maneira a dar mobilidade

NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p. 55, Rio de Janeiro:
190

Zahar

191
O na posição vertical é um arranjo da autora para dar relevância ao objeto a.

132
ao conjunto estruturado no inconsciente, a partir do buraco que permanecerá,
por ser uma estrutura de linguagem.
Assim, poderemos imaginar que os efeitos d’alingua no corpo, mantém o arranjo
de significantes que movimentam-se initerruptamente. Em outros termos, é pelo
furo no real, um buraco “onde nada falta”, que o corpo se manifesta como

impossibilidade de gozo, como falta, manifestado a partir da fala, logo, d’ língua


materna.
Desta maneira o inconsciente é marcado por um saber movido pela força do
gozo, que busca numa cadeia metonímica a produção de um significante

metafórico que manifeste “ lingua” materna, cujo o gozo é do corpo.


Freud192 utiliza do conceito de automatismo de repetição, para destacar que a
pulsão inconsciente busca uma representação, logo, um objeto de satisfação,
pelas vias da renovação e repetição.
Lacan utiliza desta designação, automatismo de repetição para acentuar a lógica
do inconsciente, a partir do caráter contraditório de renovação e repetição, cujo
a lógica não é de substituir algo antigo por algo novo, mas, de repetir e renovar
um lugar, o lugar do significante Um, um lugar que será ocupado por
acontecimentos diferentes.
Assim, ao ocupar o lugar do significante Um, o acontecimento diferente identifica-
se com o lugar do Um, e é investido de função de significante metafórico e se
alinha, imediatamente, na cadeia metonímica de todos os outros significantes,
desta maneira, o que se repete é o papel do Um tornando-se idêntico ao
significante original.
O significante metafórico, quando ocupa o lugar do significante Um, está sozinho,
e irá se repetir nas variações do sintoma, por exemplo, como um acontecimento
da lógica do inconsciente, ao mesmo tempo que, torna-se idêntico ao Um que
precedeu, abre-se aos outros significantes na cadeia a qual se sucederá, ou seja,

192
FREUD, S. (1920/2010). “Além do principio do prazer”, in: História de uma neurose infantil [“O
homem dos lobos”], Além do principio do prazer e outros textos, São Paulo: Companhia das
Letras

133
abre-se o “passado das repetições para um futuro de repetições”, uma marca do
Um nos futuros sintomas, formando-se um conjunto comum.

“Descubro então duas instâncias: um único


sintoma, aquele que está atuante, e o conjunto
virtual dos sintomas passados e futuros. Eu
diria que o inconsciente é uma cadeia infinita
mas limitada, infinita por ser infinitamente ativa
para produzir metáforas, e limitada como ato
pela metáfora produzida. A cadeia não
permanece estática, mas se desloca num
movimento alternante e repetitivo. Hoje
aparece determinado dito, determinado
sintoma, mas, amanhã, outro sintoma surgirá
no mesmo lugar, no lugar do Um”193

Nesta perspectiva, a lógica da repetição funcionaria a partir do dito enunciado


pelo analisante, isto é, a partir do Um, que opera como marca na cadeia dos
outros significantes. Na espera de um dizer, o dito permanece inconsciente, cujo
a cegueira subverte o momento de ser dito, podendo ser no sintoma, no sonho,
no chiste ou atos falhos. O dito é sempre um ato de dizer, inesperado, enquanto
o dizer permanece na expectativa de ser dito, assim, o “dito significante é a
colocação do inconsciente em ato, ou ainda, que o inconsciente existe no ato de
ser dito”194
Quando Lacan sustenta que o inconsciente é estruturado como uma linguagem,
revela que o inconsciente existe no ato de um dito, no entanto, como estrutura o
inconsciente é um suposto saber depois do ato de ser dito, levando-o a se

NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p. 59, Rio de Janeiro:
193

Zahar

194
Ibidem, p. 59

134
atualizar como uma estrutura viva e em movimento. Em outras palavras, o
inconsciente funciona na ordem do Um, enquanto dito, e na ordem da estrutura
como conjunto de outros significantes, como dizer.
O inconsciente é inesperado no ato de fundar-se, um saber inapreensível, como
um nome, o Nome-do-Pai. Quando o pai funda o significante enquanto lei, esta é
fundada por repetição na estrutura, dando consistência e existência ao
significante do pai, e ao fazer isto dá-se existência à estrutura do inconsciente:

Cadeia inconsciente dos dizeres (S2 )

Dito enunciado (S1 )

Figura 2: O inconsciente no ato de Um dito195

NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p. 61, Rio de Janeiro:
195

Zahar

135
Assim, poderemos afirmar que o inconsciente só funciona no ato de um dito, e a
estrutura se movimenta a partir deste ato, levando o inconsciente como uma
estrutura suposta a dizeres, atualizada pelo dito significante, logo, o inconsciente
é ao mesmo tempo dito e conjunto.
A trama inconsciente é compreendida a partir de um conjunto, em que é extraído
um elemento no seu interior, que reaparecerá como borda e como furo, então,
poderemos pensar o inconsciente sendo, como um conjunto menos (-1), furado
no interior, mas, limitado por um a mais (+1) como borda, que estará fora do
conjunto, assim, o Um ex-siste para que o conjunto exista.
Ao considerarmos o funcionamento do inconsciente, teremos que considerar a
existência de Um elemento único e exterior, que mantém o inconsciente numa
estrutura viva de linguagem: “o conjunto se organiza como uma trama ligada, na
qual falta um fio (furo), aquele que agora se converteu em borda”196, e nisto, o
inconsciente existe como ato de existência.
Assim, o sujeito do inconsciente é efeito de uma cadeia em funcionamento que
movimenta sob Um furo para fazer borda a partir da dialética de pares:
Metáfora/Metonímia; Um/Cadeia; Limite/Infinito; Dito/Dizeres; Recalcado/Retorno
do recalcado; S1 /S2; Ato/Iconsciente, visto que, é uma operação no seio da lógica
do inconsciente.
Com estas notações de pares, observamos a lógica do Um e do conjunto, onde
o Um é constituído, no manejo do analista, uma marca que levará o analisante à
palavra no trânsito do mais simples ao mais complexo.
Assim, podemos dizer que a linguagem é a condição própria para o inconsciente
“existir”, pois para o ser humano, que busca no significante metafórico a
presença do Outro, encontra o inconsciente, que o sujeito questiona “o que você
quer com isso?”, de modo que o Eu só possa demandar a oferta do Outro, assim,
o Eu é incorporado no discurso ou verdade do Outro.
Lacan, na “Introdução à edição alemã dos Escritos”197, diz que em uma análise a
fala transferencial faz com que o analista complete o sintoma do analisante, em

196
Ibidem
197
LACAN, J. (1972/2003). Outros escritos, p.555. Rio de Janeiro: Zahar.

136
outros termos, o analista faz-se destinatário do significante metafórico em que o
sujeito sustenta o discurso do Outro.
“Um canalha é o sujeito, diz Lacan, que quer fazer o Outro para alguém ou para
outrem [...]. o Outro com seu discurso tem antecedência e a precedência na
comunicação de fala, e, mais ainda, na constituição do sujeito”198
É o Outro que determina o que o sujeito fala ou quer, fazendo uso de semblantes
de saberes sobre o sujeito, e é nisto que a psicanálise busca marcar na fala do
sujeito do inconsciente, sob o nome de transferência, para que o sujeito possa
ver-se nesta condição de dominado pela verdade do Outro e saber-fazer com
isto, logo, um saber-fazer com seu desejo.
Para Freud o inconsciente diz: “a verdade da Coisa”, uma verdade recalcada e
que retorna como um “retorno do recalcado”, o qual o sujeito se defende. Assim,
o inconsciente, em suspenso enquanto verdade, enquanto demanda pulsional,
aguarda um acontecimento para revelar-se, logo, um olhar, uma voz, um toque,
uma emoção, um afeto.
O inconsciente desliza-se em uma dança, em que a fala é a música que embala
os parceiros: Um/Outro, Metáfora/Metonímia..., que rodam entre enunciado e
enunciação, e é por tais caminhos que acontece um processo de análise, sem
garantias de verdades absolutas, pois o sujeito é barrado, ($) diante o desejo do
Outro, , um Outro que é inconsistente diante de seu próprio enunciado, é nisto
que “os enunciados são de fingimento, a enunciação é demanda”199.
A escuta de um analista se acomoda, sempre, para uma mais além dos
enunciados, a partir de um significante metafórico, que emerge um ponto cego,
que pela marcação do analista, revela-se para uma estrutura metonímica da
linguagem.
Neste contexto, podemos pensar no sintoma que o sujeito apresenta no início de
uma análise, como um saber que lhe pertence, e dele descreve
minunciosamente, pois é logos, mas, que pouco revela sua dor constitutiva, mas,
que o sujeito se apega numa tentativa de falar daquilo que nada sabe.

198
SOLLER, C. (2020) O inconsciente: o que é isso, In: Coleção Ato Psicanalítico, p. 31, São
Paulo: Zagodoni
199
Ibidem, p. 36

137
Contudo, este sintoma como logos é uma prática de difícil associação livre, pois
comporta um saber instalado a partir de uma “verdade mentirosa” sobre o
sujeito, no qual a pulsão encontra para satisfazer-se, mas, pouco diz sobre os
desejos inconscientes.
O analista encontra a partir de um texto falado, um além do que se encontra no
sintoma como logos, isto é, além daquilo que o sujeito diz, encontrará aquilo que
está latente na fala e que propicia que o inconsciente circule como uma estrutura
de linguagem, que emerge do “que se diga”200, um sintoma analítico possível de
análise e de associações livres, assim, “o que quer que se diga” é atualizado, “hic
et nunc”, em outros termos, a linguagem é atualizada a partir de um dizer.
Então, a partir do que foi abordado até aqui, poderemos levantar um questão
primordial a ser considerado na práxis clínica. O que o analista escuta?
Escuta as significações que se fundam nas praticas e preconceitos da cultura e
do social.
Mas, foi Freud que inseriu uma escuta “flutuante”, para que o analista pudesse
se desprender ou se “distrair” das significações do discurso.
Assim Lacan segue com sua máxima “Não tenho que compreender”, é por tal
caminho que Lacan não quis dar ênfase as significações do discurso, em outras
palavras, há uma prevalência, no ensino lacaniano, do encadeamento da cadeia
de significantes, vamos ver isto na citação de Soller:

“O texto, em sua linearidade, tem sentido, no sentido


da direção , que implica, aliás, tempo. Simbolizamos
essa linearidade por S1 à S2 . Notemos que, aliás, S2
é ambíguo nos matemas de Lacan. Ele designa tanto
o significante segundo, ponto de estofo da frase, isto
é, que fecha uma significação, quanto os significantes
do inconsciente, seu saber inesgotável e cortado dos

200
LACAN, J. (1973/2003). Aturdito, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar.

138
S1. Na linearidade da fala, esse S2 designa o
significante segundo, mais geralmente os sucessores
de S1”201

𝑆1 → 𝑆2
𝑆𝑖𝑔𝑛𝑖𝑓𝑖𝑐𝑎çã𝑜

Figura 3: Significante segundo, ponto de ambiguidade

Podemos observar na fala do analisante aquilo que Lacan nos mostra em A


instância da letra202, que a cada frase falada encontramos uma sucessão do lugar
do S1, que estará sendo remetido a outro significante S2, e neste acontecimento
da fala, os significantes serão encadeados como correntes de significado e
significações.
São por tais caminhos de enodamentos de significantes que Lacan203 em A
direção do tratamento..., enfatiza que a escuta do analista movimenta-se no
sentido de entender [entendre], e jamais compreender [compréhension] o que

SOLLER, C. (2020) O inconsciente: o que é isso, In: Coleção Ato Psicanalítico, p. 42, São
201

Paulo: Zagodoni

202
LACAN, J. (1957/2003). A instância da letra, In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar.

203
LACAN, J. (1958/2003). A direção do tratamento e os princípios de seu poder, In: Escritos. Rio
de Janeiro: Zahar.

139
está sendo falado pelo analisante, pois entender não há compromisso com
compreender, fechando-se em significação e conclusão:

“O imaginário não se reduz às imagens, ele inclui todas as


significações partilhadas que a linguagem permite. O que faz
com que Lacan, quando usa o matema que extrai de
(
Saussure, ) , coloque o simbólico na linha daquilo que se

ouve [entendre] de significante, e o imaginário na linha


subposta do significado; o imaginário não se reduz, portanto,
à imagem, mas inclui a significação”204

!"#$"%"&'$() *+45ó7+/2
=
*+,-+.+/012 +40,+-á9+2

Figura 4: A visão do inconsciente

O inconsciente busca na linguagem uma maneira de se expressar como uma


estrutura, e por caminhos da linguagem como uma estrutura que encontramos
elementos: da pulsão inconsciente ($ ◊ D), do gozo S( ), da fantasia ($ ◊ a), do
desejo (d), do tesouro do significante (A), do sintoma S(A).

SOLLER, C. (2020) O inconsciente: o que é isso, In: Coleção Ato Psicanalítico, p. 32, São
204

Paulo: Zagodoni

140
É pela equivocação da fala como estrutura de linguagem que os elementos são
substituído, ou seja, o gozo S( ) pelo desejo (d), que encontra um entender/fazer
com a linguagem, pois o inconsciente manifesta-se pelos rateios, fracassos do
discurso do Outro, que se manifesta por gerações e repetições.
O inconsciente insiste com seu desejo através das repetições, naquilo que é
demandado nele diz Lacan205. Em Freud o desejo é sexual e recalcado, em
Lacan206, o desejo é singular ao sujeito, e que difere-se na transitoriedade dos
desejos como pluralidade, marcado pela competição imaginária diante dos
semelhantes.
O que marca o desejo é sua estrutura de infinidade, impossível de satisfazer-se
diante de um objeto único a pulsão, na qual Lacan marca o surgimento do sujeito
e que Freud chamou de desejo inconsciente, em outros termos, o desejo é
resultado do surgimento do sujeito que subverte a verdade do Outro, logo é
desejante.
A demanda é verbo que demanda algo da necessidade e do desamparo humano,
e devido a tal desamparo que o sujeito encontra uma maneira de existir fazendo
uso do significantes do Outro num percurso em que encontra significantes da
oralidade, analidade, em que a demanda enlaça o simbólico e também o real do
corpo, logo, da insuficiência simbólica, ou seja, um real que transborda o
simbólico.
O sujeito encontra no real um falta a ser, marcados por perdas e desamparos,
assim, “as necessidades passaram ao registro do desejo”207, é por assim que a
necessidade torna-se, “na medida em que sua realidade se oblitera tornando-se
símbolo de uma satisfação de amor”, onde o sujeito não encontra nada, e busca

205
LACAN, J. (1974/2003). Outros escritos, P. 513. Rio de Janeiro: Zahar

206
LACAN,J.(1964/2008). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise,
pp. 141-142, Rio de Janeiro: Zahar.

207
LACAN, (1960/1998), ESCRITOS, P. 821 in: SOLLER, C. (2020) O inconsciente: o que é isso,
In: Coleção Ato Psicanalítico, p.51, São Paulo: Zagodoni

141
no gozo a exigência da presença do Outro, ou seja de seu amor eterno via
movimento da pulsão.

“A demanda de amor que se desenvolve para além


das demandas transitivas, e que se funda sobre a falta
a ser do sujeito, fala com os significantes das pulsões
parciais, donde a expressão: a pulsão, tesouro dos
significantes, escreve $ ◊ D.”208

SOLLER, C. (2020) O inconsciente: o que é isso, In: Coleção Ato Psicanalítico, p.52, São Paulo:
208

Zagodoni

142
A HORA DA ESTRELA...Chegamos no final da história de Macabéa, um final
não muito esperado considerando a lógica do romantismo inconsciente, onde há
a prevalência de uma verdade absoluta em que o objeto sempre será
insatisfatório ao corpo d’a mulher.
Neste romance de Clarice Lispector209, Macabéa não apenas me representa
enquanto mulher, mas, “a”(s) mulheres que buscam em significantes fálicos um
lugar para existir e encontram a feminilidade denunciando a insuficiência do
simbólico, logo, dos semblantes construídos pela cultura e seus ideais.
Mas, vamos trocar em “miúdos” ou seria em pequenos objetos a, a história de
Macabéa, para falarmos da lógica do inconsciente trazido de uma maneira
impecável por Lispector.
A nossa estrela Macabéa, foi aconselhada a ir em uma cartomante, para que ela
pudesse saber se tinha ou não um futuro, já que considerava sua vida “insossa”
diante da vida dos poucos que ela conhecia e que considerava ter vida:

“Não foi difícil achar o endereço da Madama


Carlota e essa facilidade lhe pareceu bom sinal.
O apartamento térreo ficava na esquina de um
beco e entre as pedras do chão crescia capim
– ela o notou porque sempre notava o que era
pequeno e insignificante.”210

A madama a recebe já anunciando o quanto tinha intimidade com o divino:


“O meu guia já tinha me avisado que você vinha me ver, minha
queridinha... minha florzinha.”211

209
LISPECTOR, C, (1977-1988) A hora da estrela, Rio de Janeiro: Nova Fronteira

210
Idem, p. 82
211
Idem

143
Macabéa assustada com tanta manifestação de carinho porque “faltava-lhe
antecedentes de tanto carinho”, percebia o luxo que o ambiente lhe oferecia,
“bebendo um pouco da sua frágil vida” até que seu momento de consultar sua
fortuna chegasse e anunciasse seu futuro.
Madama tece sua história de vida, antes mesmo de se colocar na posição de
testemunhar o futuro de Macabéa, dizendo que levava “vida fácil de mulheres”,
mas que Jesus havia lhe salvado, pois “já não valia muito no mercado” e resolveu
abrir uma casa para “mulher de vida fácil”, sendo a maneira que encontrou de
ganhar muito dinheiro, e aconselha Macabéa: “seja também fã de Jesus porque
ele o salvará”, pois a verdade do pai é suprema, e ele se ocupará de seu futuro
eterno.
Mas, se confunde entre o eterno e a carne:

“— Você sabe, meu amor, que cheiro de


homem é bom? Faz bem à saúde. Você
já sentiu cheiro de homem?
- Não senhora.
- Mas, Macabeazinha, que vida
horrível a sua! Que meu amigo Jesus
tenha dó de você. Filhinha! Mas que
horror!”212

E neste momento que Macabéa pensa no quanto sua vida é ruim sem ter sido
acolhida e experimentado o corpo de um homem, e fica atordoada com o quanto
madama acertará:

- Quanto ao presente, queridinha, está horrível


também. Você vai perder o emprego e já perdeu o
namorado, coitadinha de vocezinha. Se não puder,

212
Ibidem, p.86

144
não me pague a consulta, sou madama de
recursos”213

“A posição do pai real tal como Freud a articula, ou seja,


como um impossível, é o que faz que o pai seja imaginado
necessariamente como privador. Não são vocês, nem ele,
nem eu, que imaginamos, isso vem da própria posição. De
modo algum é surpreendente que reencontremos sem
cessar o pai imaginário. É uma dependência necessária,
estrutural, de algo que justamente nos escapa, o pai real. E
o pai real, está estritamente fora de cogitação defini-lo de
uma maneira segura que não seja uma agente da
castração”214

Mas, Madama tinha muita intimidade com o divino, estando disposta a oferecer
um “futuro” a Macabéa, pois esta estava vazia de presente como de futuro, e
assim começa a revelar as boas notícias divinas, onde não há miséria, escassez,
nem infelicidades, e Macabéa absorve cada significantes que Madama lhe oferta,
significantes do Outro, como “ouvisse uma trombeta vinda dos céus”, ou seria
do imaginário envelopados por engodos narcísicos ?. Então, vamos ver para crer:

“[...] sua vida vai mudar completamente! E digo


mais: vai mudar a partir do momento em que
você sair da minha casa! Você vai se sentir
outra.”215

213
Ibidem 87
214
LACAN, J. (1969-1970/1992). O Seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise. p. 135, Rio de
Janeiro: Zahar, In: Oliveira, p. 25.
215
Ibidem, p.87

145
“Madama tinha razão: Jesus enfim prestava
atenção nela. [...] Você conhece algum
estrangeiro?
-Não senhora.
-Pois vai conhecer. Ele é alourado e tem olhos
azuis ou verdes ou castanhos ou preto, [...] este
estrangeiro parece chamar Hans, e é ele quem
vai se casar com você!”216

E a partir destas revelações de futuro, Madama começou a dizer como Macabéa


deveria se arrumar para: aumentar os peitos, o cabelo, e tomar corpo de mulher,
tudo que um corpo de mulher teria que ter para que um homem pudesse se
apropriar dele e por fim ser amada eternamente.
E assim, Macabéa saiu da casa da Madama “grávida de futuro”, contudo, tais
possibilidades de futuro foi um tanto excessivo para o corpo de Macabéa, tudo
tensionou, corpo e mente, “não sabia o que pensava, parecia que tinham dado
um forte cascudo na cabeça de ralos cabelos, sentia-se tão desorientada como
se tivesse acontecido uma felicidade. [...] estava conhecendo pela primeira vez o
que os outros chamavam de paixão: estava apaixonada por Hans.”217
Madama Carlota acertara tudo? Sim, acredita Macabéa para poder pensar no
futuro, convicta, a partir de tantas revelações, que sua vida era miserável, e
entristeceu por pensar que se julgava feliz existindo sem tantos significantes que
ela pudesse se ver, se olhar, e dizer: eu me vejo!!!

216
Idem, p.88
217
Idem, p.88

146
“Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber
se atravessaria a rua pois sua vida já estava
mudada. E mudada por palavras – desde
Moisés se sabe que a palavra é divina.
[...] Sentia em si uma esperança tão violenta
como jamais sentira tamanho desespero. Se
ela não era mais ela mesma, isso significava
uma perda que valia por um ganho. Assim
como havia sentença de morte, a cartomante
lhe decretara sentença de vida.”218

Mas, a vida prega suas peças, ou seria furos no real?, em que aquilo que
Macabéa chama de felicidade, isto é, tudo revelada, completo, sem nada a
desvelar, a vida naquilo que tensiona, tensiona e solta, mostrou que as perdas
valem mais como ganho, digo, a dúvida é ganho para o sujeito.
Então, ao dar um passo decidida a atravessar a rua um “enorme transatlântico o
Mercedes amarelo pegou-a – e neste instante em algum único lugar do mundo
um cavalo como resposta empinou-se em gargalhadas de relinchos.”219
“O carro de grande luxo” atirou Macabéa no chão, e um corpo de mulher estava
estendido no chão e com a cabeça sangrando, que cena cotidiana!!!, um corpo
de mulher não suporta tantos significantes oferecidos pelo dito do Outro, no caso,
da Madama cartomante, suas cartas ofereceram um destino cruel pois matara o
sujeito que duvida da verdade do Outro, e morre.
Macabéa morreu como sujeito e seu corpo se estrebuchou-se no chão sujo,
onde a única coisa que ela visualizou foi a erva daninha, também vista na entrada
da casa da Madama Carlota, que Macabéa considerou coisinhas insignificantes.
O narrador desistiu de Macabéa e a matou finalizando sua estória?
Talvez, porque não se faz história sem sujeito que subverta a verdade do Outro,
sem dúvida não há história e a palavra perde seu valor como estrutura de
linguagem.

218
Ibidem, p. 90
219
Idem, p.90

147
Na busca de ser “uma” mulher e morrer para as “coisinhas insignificantes”,
Macabéa encontrou “a” mulher, devastada e sem garantias fálicas (explosão)...,
por não suportar excesso de felicidade.

148
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S. (1912-1914/2012). In Obras completas: Totem e Tabu. (Vol. XI). São Paulo:
Companhia das Letras.

FREUD, S. (1920/2010). “Além do principio do prazer”, in: História de uma neurose infantil [“O
homem dos lobos”], Além do principio do prazer e outros textos, São Paulo: Companhia das
Letras

LACAN, J. (1957-1958/1999). O Seminário, Livro 5: As formações do Inconsciente. Rio de


Janeiro: Zahar

LACAN, J. (1957/2003). A instância da letra, In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar

LACAN, J. (1958/1998). A direção do tratamento e os princípios de seu poder, In: Escritos. Rio
de Janeiro: Zahar.
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Coleção Ato Psicanalítico, p.51, São Paulo: Zagodoni

LACAN,J.(1964/2008). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise,


pp. 141-142, Rio de Janeiro: Zahar.

LACAN, J. (1972/2003). Outros escritos, p.555. Rio de Janeiro: Zahar.

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LACAN, J. (1974/2003). Outros escritos, P. 513. Rio de Janeiro: Zahar

LISPECTOR, C, (1977-1988) A hora da estrela, Rio de Janeiro: Nova Fronteira

NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p. 65, Rio de Janeiro:
Zahar

SOLLER, C. (2020) O inconsciente: o que é isso, In: Coleção Ato Psicanalítico, p. 31, São
Paulo: Zagodoni

149
EPÍLOGO

Chegar ao final de um livro sempre é uma sensação estranha para mim, como se
não tivesse mais o que questionar, e isto faz como que o vazio se movimente em
um mais-de-gozar, e é esta força psíquica que questiono, pois não quero parar
de produzir questões que me levam ao encontro daquilo que é mais estranho em
mim, o inconsciente.
Falar do objeto pequeno a, no ensino de Lacan não foi um trabalho muito fácil,
confesso, muitas vezes parava de escrever e ficava diante da minha própria
cegueira, ai buscava uma outra leitura para dar uma consistência ao simbólico
que insistia em esvaziar diante da complexidade que esta temática anuncia no
ensino lacaniano.
Isto porque, falar dos objetos parciais (oral e anal) em Freud é dar sentido a uma
realidade psíquica, por caminhos que demandam um objeto para o gozo
fantasístico.
Contudo, atrever-me a discorrer, de uma maneira entendível, sobre os objetos
do desejo (olhar, voz) é ir pelos labirintos da nossa própria tragédia humana:
Como amar e ser amado por um objeto da qual nada se sabe? Um objeto que
tem estrutura de ficção, isto, me leva, algumas vezes, a uma certa descrença no
amor que insiste em operar sob os registros do imaginário e do simbólico e nada
quer saber sobre o registro do real.
Mas, para eu não cair no desalento da impossibilidade do amor como é da relação
sexual, recorro ao amor de transferência que compreendi na minha análise
pessoal, onde percebo que existe “Um” lugar lógico, “Um” lugar do significante
primeiro, que revisito quando me sinto em total desamparo.
Este lugar, que repito principalmente em análise, traz a possibilidade de eu estar
sempre dialogando com meu euzinho, que busca nas suas imagens uma forma
única de existir.
É como se eu tivesse que estar avisando a mim que em um mesmo corpo
existem emoções, afetos, e sensações extremamente contraditórios, logo, numa

150
mesma pessoa habita o bom e o mal, o belo e o feio, o visível e o invisível, para
que assim, eu possa ser mais generosa com as minhas próprias contingências.
Gostei de ter chegado até aqui na companhia de Macabéa com suas “coisinhas
insignificantes”, mas, deixo evidente a dor que senti quando ela acreditou na
verdade da Madama Carlota, fiquei parada, perplexa, no tiro que ela deu em seu
próprio pé ao se tornar convicta de possuir uma verdade sobre seu futuro a ponto
de confiar que um homem com nome de rato (Hans) pudesse dar-lhe uma pele
dourada.
Ah!!! Como senti tristeza neste momento por ela, por mim, e por você, pois
também, mesmo sem uma Madama Carlota, acreditei que ser esposa, mãe,
analista, “Toda”, pudesse me salvar de ser mulher, e conviver com meus próprios
pesadelos de não ter garantias de absolutamente nada, nadinha de nada.
E foi assim, que o narrador sob as penas de Lispector viu que mais nada podia
escrever, pois nada se escreve sobre o grande Outro, por nada lhe faltar, este é
o lugar inacessível da fala como da escrita, se há escrita ou fala há sujeito, um
sujeitinho cheio de “esquisitices”.
Macabéa apresentou-nos que o menos é mais, caminhos que nos traz uma
possibilidade de subjetividade onde o sujeito é castrado, mas, atuante por
caminhos perigosos da fala, com relevância de suas próprias insuficiências diante
do Outro que, segundo, Lacan nem existe fora da nossas próprias fantasias
infantilizadas.
Neste momento me sinto vazia, vazia de mim, “oca” de mim, não tenho
consistência imaginária para continuar escrevendo, ponto de nodamento,
momento de parar e ficar em silêncio para fazer com que a pulsão inconsciente
possa me impulsionar diante do perigo de nada desejar e permanecer com a
bunda nesta poltrona e um olhar vagando nos labirintos da minha própria
escuridão.
Esta noite, após ter finalizado este livro imaginei ter encontrado um sentimento
reconfortante de ter “cumprido” um propósito de escrever sobre o olhar e isto
me levaria a um lugar mais tranquilo, mais um engano do meu imaginário, pois
nada disto aconteceu, e isto se revelou no sonho desta noite “tranquila”.

151
Sonhei que estava andando em uma estrada com minha bike, coisas que fiz
durante uma boa parte de minha vida, o ciclismo nas estradas, mas, no sonho
não era uma estrada nada fácil, esta era uma pista que iniciava em cima de uma
montanha, na qual estava no topo, a pista era lisinha ótima para a minha bike
magrela speed com pneus de aro 700c e diâmetro de 29”, para quem não sabe
são aqueles pneus com espessuras finas indicado para estradas.
Eu sempre fui acostumada a pedalar nas estradas, mas esta me apavorou pois
sabia se eu me atrevesse a descer eu iria morrer, a velocidade seria maior do
que a aderência dos pneus na estrada, eu sabia no sonho que iria morrer, e
vacilei, e parei ali atônica e chorei, mas eu não podia ficar ali pois iria também
morrer pois os carros que ali passavam estavam em altíssima velocidade, e se eu
ficasse seria atropelada. Então, sabia que poderia morrer de qualquer forma,
parada ou me arriscando, mas, tive dúvidas, e pensei que não aceitaria morrer
ali parada, tinha medo de me arriscar e descer em um lugar que nunca havia
descido, e nem soube como fui parar ali, que loucura, que estrada, que escolha
era esta, decidir que maneira iria morrer?
Pensei no meu corpo, que iria no mínimo ficar totalmente deformado se eu
sobrevivesse, o que poderia fazer com um corpo deformado, logo pensei: en-
forme seus restos.
Eu desci...explosão, silêncio, morte ou vida?

Silêncio, Silêncio, Silêncio, Silêncio, Silêncio, Silêncio, Silêncio, Silêncio...

Por que não escrever sobre o silêncio no próximo livro?

Sandra Lopes, 19/10/2023

152

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