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Um olhar visão do inconsciente
3
4
À clínica do feminino, que revela o
inominável, logo, um discurso sem
5
“Quando um homem está com uma mulher nos seus braços,
ele acredita possuí-la, enquanto ela se distrai com sua própria
cegueira.”
Sandra Lopes
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7
PREFÁCIO
Falei com Sandra pouco antes de iniciar este prefácio, me dizia como
estava após o término deste livro: “Desde ontem eu cancelei tudo, estou parada
respirar dói, pensar dói amar dói ouvir dói, viver dói Ana”. O que me impactou foi
a ausência de vírgulas na sua escrita: “estou parada respirar dói amar dói ouvir
dói”. Dessas coisas que a gente lê e encontra outros sentidos. Parada
respiratória, amar dói, dói amar, ouvir dói, dói ouvir, dói Ana. Pensei, Sandra
escreve com o corpo, e quanto mais corpo, mais escrita! Dora, é você?
É primavera de 2023, nenhuma flor, uma primavera ambivalente, frio e
chuva, umidade, humanidade à flor da pele, convidada a fazer o prefácio do
trabalho de Sandra. Imediatamente fiquei com uma aflição na barriga, meu corpo
é sensível ao enigma do desejo do Outro, “estou parada respirar dói, “e mal
posso falar, de tanto silêncio desdobrado em outros”2, viver dói Ana, sem vírgula
também.
1
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela, p. 36, 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1978.
2
LISPECTOR, Clarice. Água viva, p. 93. Rio de Janeiro: Arte Nova, 1973.
8
Quando recebi o manuscrito, fui olhar curiosa o título: “Um olhar a visão
do inconsciente”. Lacan3 nos diz que o olhar é o avesso da consciência, isso
inflou como massa de pão sob efeito de fermento dentro de mim. O olhar sempre
foi político em minha vida, cresci sendo comida pelo olhar do Outro, a criança
sabe que tem algo ali, a criança quer ser olhada por necessidade, por isso goza
muito menos que o adulto. Como Sandra diz, somos modelados pela tirania do
sintoma do Outro. Eu encarava como forma de resistência, “não quero que me
olhe, tá olhando o que?”, quero tomar banho em paz: colonizada, mas não
domesticada. “Olhe para mim quando olho para você, você precisa ser
supervisionada”: a criança não quer olhar porque sente medo. Cresci, sempre
(m)olhada, e na vida acadêmica em que muito transito, escutava: “você olha
sério”, diziam, “nossa, que cara feia essa sua, sempre com a testa franzida”. O
único olhar pelo qual me constituí foi esse, ameaçador para mim, e para o Outro,
mas desde a infância, acomodando-se a este olhar dei corpo a este olhar, eu me
tornei esse olhar, afinal, era eu quem olhava no olho daquele que olhava-me
como objeto.
Diz Sandra: “É pela relação do olhar e do ser olhado que será distinguida
a posição ativa e passiva e reflexiva do ato de olhar do sujeito que busca
reconhecer o mundo numa posição de dominância e dominado do Outro ao
Outro” (p. 15). Durante a vida persegui alguns olhares para mim, dos poucos que
persegui, muito me machuquei, vivia então “numa espécie de atordoado nimbo,
entre o céu e inferno”4
Um olhar a visão do inconsciente, que tudo tem de ver com meu processo
de análise, m(eu) sintoma. Esse livro me olharia, portanto, “dói Ana”, sem vírgulas
novamente. Não falarei dos conceitos que Sandra extrai da psicanálise, este
3
LACAN, Jacques. Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise (1964). 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
4
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela, p. 45, 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1978.
9
trabalho dispensa apresentação, Sandra logo faz ao início, o que destaco como
diferencial, é sua articulação com o livro “A hora da estrela” de Clarice Lispector
e a teoria de Freud e Lacan.
Entretanto, Sandra nos diz neste livro, que “quem vê não é o olho, é o eu”
(p. 12). Assim, há parte de mim, identificada à Macabéa, pois minha “mulherice
só me nasceria tarde" e “espelho não é coisa criada e sim, nascida”, diz
Lispector5. No entanto, Macabéa morre acidentada, Sandra acolhe Macabéa e
haja feminilidade para entender, aliás, só se consegue ler o feminino, sendo
feminino.
Neste trabalho, temos portanto, um jogo de espelhos que se intercalam,
entre Sandra e Rodrigo S.M, Sandra e Macabéa, além de que no livro “A hora da
estrela”, há também este jogo de espelhos entre Rodrigo S.M e Macabéa, mas
também de Clarice Lispector e Macabéa. Portanto, neste livro encontraremos,
Clarice, Macabéa e Sandra, as estrangeiras. Clarice e Sandra judias e Macabéa
se muda para uma cidade grande e é invisível, pois é um sujeito comum.
Sandra, em seu primeiro livro “Memórias entre uma poltrona e o divã”,
nos diz que foi por acidente que se tornou psicanalista.
5
LISPECTOR, Clarice. Água viva, p. 92-3. Rio de Janeiro: Arte Nova, 1973.
6
OLIVEIRA, Sandra Mara Lopes de. Memórias entre uma poltrona e o divã, p.
16, Bom Despacho: Literatura em Cena, 2023.
10
Ah, se pudesse eu pegar Macabéa, dar-lhe um bom banho,
um prato de sopa quente, um beijo na testa, enquanto a
cobria com um cobertor. E fazer que quando ela acordasse
encontrasse simplesmente o grande luxo de viver7.
7
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela, p.71, 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
8
Idem, p. 34
9
Idem, p. 73
10
Idem, p. 92
11
NUNES, Benedito. O tempo na narrativa, p.82. São Paulo: Ática, 1988.
11
partir dos recortes “separação, consulta a cartomante e morte”, e com isso
vamos costurando com os conceitos que Sandra extrai da psicanálise. Se trata
não somente do feminino, mas da santidade, a estrela. A sexualidade da mulher
só se faz neste acidente com o Outro, “não há relação com o Outro senão por
intermédio do que faz sentido na língua”12.
Sandra nos mostra na prática que devir do psicanalista é o de colocar algo
de si na psicanálise, isso tem efeito efervescente, porque, sendo ela não-toda,
com maestria, faz a psicanálise produzir a partir do seu balé. Quando a mulher
escreve, é sempre uma história de geminação. Mas há castas de psicanalistas,
ou seja: coloque algo de si, mas que esteja dentro de determinados códigos. No
entanto, me faço valer do que disse Hélène Cixous no livro “O riso da Medusa”,
quando ela diz: “transite nos círculos psicanalíticos, e, atravesse-os”13
Com isso gostaria de pontuar que Sandra, entre descoberta e invenção,
nos desloca para a invenção de uma clínica altamente sofisticada do feminino, e
isso é o que distingue a descoberta da invenção, como nos diz Heloisa Caldas14
enquanto a descoberta diz respeito a um objeto que já existe, a invenção diz
respeito a algo que deve portanto ser criado. Sandra, tu não fazes repetição
prosaica dos textos Lacanianos e isso muito nos enriquece. Que tu não percas
esse encantamento que levas tu a investigá-la. É preciso que a mulher escreva a
mulher, e que as mulheres leiam as mulheres, que elas estejam nos textos e na
vida, quando uma mulher escreve, sempre se trata de uma história de
geminação, pois a potência feminina e seu corpo apaixonado, seu corpo vertigem
escrevem as novas e outras mulheres, escrevem, portanto, as ambivalências
destes corpos subvertendo o discurso colonial-patriarcal.
12
FELMAN, Shoshana. La Folie et la Chose littéraire, p. 220. Paris: Seuil, 1978.
13
CIXOUS, Hélène. O riso da medusa. Trad. Natália Guerellus e Raíssa França
Bastos, p. 45. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.
14
CALDAS, Heloisa. Da voz à escrita: clínica psicanalítica e literatura. Rio de Janeiro: Contra
Capa Livraria, 2007.
12
É muito pouco o que ainda escrevemos até aqui. Que lembremos que
estamos em uma época de desvalorização de significados, se insistirmos em
executar a obra viril deles, estaremos repetindo os mesmos pontos de conexão,
mesmas rupturas, não somos um buraco de desejo de pênis, que lembremos que
o processo de desmasculinização envolve todos os dominados, o deleite pela
dominação sempre se tornou privilégio políticos de alguns, com uma grande
devastação ao longo dos séculos que resultou em uma disparidade de gênero,
linguagem e classe. Não precisamos construir nosso pensamento a partir de uma
relação heteronormativa com apenas um autor, pensar e introduzir outras
mulheres, e ir além da queixa do abandono deles, das inúmeras técnicas de
desumanização deles.
A história sobre a sexualidade das mulheres ainda está por escrever, se
vier a ser escrita, não será uma história prosaica e repetida, e será uma história
de festa de invenção de nossos corpos, de reversão, de ambivalência, porque
nós podemos ser nomeadas como enigmáticas, silêncio, mas serão estes,
sempre capazes de se olharem, de esboçarem palavras mudas. Que com tua
escrita continues a desmontar a lógica submetida aos dispositivos do discurso.
No seu livro, papel, no seu papel, vísceras, as suas.
Agradeço o generoso convite para fazer o prefácio dessa estrela de livro,
que ouçam então seus agudos sibilantes…
Ana Bernardes
Primavera de 2023
13
Referências
OLIVEIRA, Sandra Mara Lopes de. Memórias entre uma poltrona e o divã. Bom
Despacho: Literatura em Cena, 2023.
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SUMÁRIO
PREFÁCIO.......................................................................................................................
PRÓLOGO......................................................................................................................
EPÍLOGO :
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PRÓLOGO
Hoje pela manhã ao acordar e ir ao banheiro fazer minha higiene matinal, fiquei
alguns minutos vendo aquela imagem que estava refletida no espelho, fiquei
olhando como meu rosto estava se movimentando rápido, tão rápido que ali
olhando descobri algumas novas linhas.
Fiquei espantada como minha imagem havia tomado formas diferentes, ao ponto
de não mais me recordar do meu rosto antes daquela imagem refletida. Uma
18
aproximam, é preciso que a visão seja excluída do espaço da sessão analítica
para que surja a potência do olhar, provocada pela cegueira estendia no divã em
15
LACAN, J. (1972/2003). Outros escritos.”Estadio do espelho...” Rio de Janeiro: Zahar
19
formações do inconsciente, em busca de resgatar um objeto privilegiado e para
sempre perdido.
Quando pensei neste nome: Um olhar visão do inconsciente para este livro,
estava refletindo na possibilidade de escrever a respeito da escuta analítica, a
partir do olhar do analista as imagens relatadas pelo analisante sobre seu eu, que
relata a sua relação com o outro/Outro, contudo, também me deparei com a
importância de trazer aos meus leitores as distinções relevantes entre: olho,
olhar, visão e fascinação do inconsciente, para compreendermos a importância
dos objetos parciais ( oral, anal, escópico e invocatório), como também a
relevância daquilo que J, Lacan nomeou como um objeto pequeno a, objeto
causa de desejo e de angústia.
A cada livro que escrevo a partir dos meus desejos inconscientes, eu tenho me
proposto a utilizar da psicanálise de Freud à Lacan como uma teoria de base para
fundamentar a temática do livro, contudo, tenho um apreço especial à literatura
e a arte, principalmente à literatura brasileira escrita por mulheres, logo, me atrai
profundamente o simples e comum do leigo, como também aquilo que é empírico
de uma práxis analítica, pois, não haveria um único escrito teórico sem a práxis
clinica.
Por isto, ao longo deste livro vocês encontrarão a teórica psicanalítica trazida por
Freud e Lacan, distribuídas em quatro partes. Outrossim, vocês também
encontrarão em cada parte, uma análise da teoria a partir da estória de uma
nordestina franzina e de pouco volume que será nossa estrela, pois revelará o
insuportável da existência humana, suas fantasias, seus sintomas e sua
insistência em existir como um “povo anão e teimoso” que busca uma inscrição
a partir de um não-saber.
Nossa estrela se chama Macabéa, e é a protagonista principal da última obra
escrita por Clarice Lispector antes dela falecer, chamada de “A hora da estrela”16,
publicado em 1977. Esta obra é considerada uma das mais importantes e
aclamadas da literatura brasileira e é conhecida por sua prosa intensa e reflexiva,
além de explorar temas como: identidade, solidão, desigualdades sociais e a
16
LISPECTOR, C, (1977-1988) A hora da estrela, Rio de Janeiro: Nova Fronteira
20
própria arte de escrever, é uma obra complexa e rica em significados e
significações, e as interpretações podem variar de leitor para leitor.
Neste livro, Lispector elege como protagonista uma jovem nordestina pobre,
anônima e marginalizada, cuja existência é permeada pela insignificância social
e pelo cotidiano monótono. Macabéa representa o sujeito castrado, um sujeito
comum, muitas vezes invisível em meio à cidade grande.
Há o uso de um narrador, chamado Rodrigo SM que permite que Lispector crie
uma visão externa do Outro sobre Macabéa. O narrador não apenas conta a
história de Macabéa, mas também reflete sobre suas próprias experiências e
sentimentos ao escrever, este narrador “ficcional” nos traz interações e reflexões
com os personagens, trazendo camadas adicionais de subjetividade à narrativa.
É por uma leitura reflexiva, a partir da “A hora da estrela”, que vocês poderão
questionar a si mesmo como analista, que ocupa em uma análise o lugar do
Outro. Mas, insisto em lembrar-lhes que é apenas um lugar como semblante de
a, e é o analisante, pelo processo de transferência, que define o analista como
Outro para dizer-lhe de suas angústias e desamparos, como também fazer-se
sujeito onde só existe objetos.
Na parte Um do livro, estaremos preocupados em descrever e distinguir a relação
entre olho, olhar, visão e fascinação na topologia lacaniana, sem deixarmos de
acrescentar a importância que Freud atribuiu aos objetos parciais na elaboração
de sua teoria das pulsões.
Estaremos mediando o que está “entre” o olho, o olhar e a visão, logo, a
necessidade, à demanda e o sintoma, diante de uma pulsão que tem como base
um “dar-a-ver” por uma implicância de um “falta-a-ser”, objetivado pela demanda
pulsional da visão inconsciente.
Pensaremos na pulsão escópica relacionado as primeiras experiências de
satisfação, na correspondência da Coisa que nunca mais será alcançada, mas,
estará sempre presente na relação do sujeito com o Outro, aquilo que está
sempre lá despertando o interesse libidinal do sujeito, como uma Coisa de um
olhar.
Estudaremos a ética do olhar decorrente de um furo, na cegueira e inconsistência
do Outro do inconsciente, revelado pela lei da castração, do Nome-do-pai, e
21
transformando o sujeito para uma além do que é visto como eu, o que permitirá
extrair o objeto a como causa de desejo e fonte de libido.
É pela relação do olhar e do ser olhado que será distinguido as posições ativa,
passiva e reflexiva do ato de olhar do sujeito que busca reconhecer o mundo
numa posição de dominância e dominado do Outro ao Outro.
Na parte Dois, buscaremos estudar a relação da pulsão escópica e as formações
das fantasias inconscientes, de maneira a refletirmos sobre a propositura da
pulsão fazer uso da fantasia, mirando o prazer e se esbarrando com desprazer,
visto que a pulsão recalcada no inconsciente nunca abandona a tendência a
satisfação completa, levando o sujeito a compulsão à repetição em busca de
satisfação primária.
Nesta propositura buscaremos na arte de Diego Velásquez, no quadro de Las
meninas, de 1656, àquilo que Lacan17 encontrou para analisar a estrutura do
sujeito na posição com o Outro simbólico, para a estruturação de um
inconsciente estruturado pela linguagem, como também a dinâmica do olhar, da
fantasia, um “olhar do Outro” que fundamenta a constituição do eu e do
imaginário e do Outro simbólico.
Assim, Lacan encontra na dinâmica deste quadro uma maneira de pensar a
complexidade da imagem na sua visibilidade, a partir do momento que o sujeito
é atingido pela negatividade do olhar do Outro, – 𝜑, revelando a estrutura do
Outro, isto é, que o Outro é furado, e a verdade é apenas uma estrutura de ficção.
Ainda nesta parte do livro, encontraremos Lacan18, no seminário, Os quatros
conceitos fundamentais da psicanálise e O objeto da psicanálise, trazendo o tema
do olhar apoiado na topologia, uma maneira de descobrir a materialidade da
fantasia, um lugar em que o Outro reflete no sujeito suas imagens e seus ideais.
17
LACAN, J. (1965-1966). O Seminário, Livro 13: O objeto da psicanálise [Inédito]
18
LACAN, J. (1964/2008). O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da
Psicanálise, p. 206. Rio de Janeiro: Zahar.
LACAN, J. (1965-1966). O Seminário, Livro 13: O objeto da psicanálise [Inédito]
22
Para tanto, recorreremos ao livro de Nasio19, Meu corpo e suas imagens, em
busca de falarmos sobre as fantasias inconscientes construídas a partir das
interações complexas entre o corpo real, o corpo imaginário e o corpo simbólico,
para podermos estudar o falo imaginário, - phi (– 𝜑) e o falo simbólico (Φ).
Também, pensaremos o gozo escópico na equivalência do gozo do supereu, um
para além da vida, um olhar de morte, impossível de suportar, por ser angustiante
e mortífero. Assim, um olhar enquanto a, que poderá proporcionar para o sujeito
prazer e dor, um mais-de-olhar, pontos de divergências dos destinos pulsionais:
recalque e sublimação.
A partir da parte três do livro iremos rumo ao inconsciente, nisto faz-se
necessário circunscrever às voltas do objeto pequeno a, oferecido por Lacan ao
formalizar em seu ensino o objeto a como um lugar que abrirá para às formações
do inconsciente.
Considerando que o objeto que interessa a uma análise não diz sobre um objeto
real, mas de um objeto lógico que ampara as relações do sujeito com o
outro/Outro, um objeto alucinado ou fantasiado tanto faz, pois é a forma que o
sujeito utiliza para enquadrar a realidade, sendo esta marcada por inúmeras
perdas e separações necessárias a partir de operações precisas, digo, a partir
do corte significante, para que o sujeito seja inserido num processo de
subjetivação e linguagem.
Assim as fantasias serão responsáveis por capturar o objeto a, elevando-o a
condição de satisfação e gozo, como também capturar um objeto que falta ao
seu desejo, em outros termos, o sujeito encontrará na fantasia um objeto lógico,
causado desde as suas primeiras relações com o outro, “lá onde era ‘um-único-
um’”.
19
NASIO, J,D. (2009) Meu corpo e suas imagens, Rio de Janeiro: Zahar.
23
E será pela marcação no real de um único traço que buscaremos refletir sobre a
20
LACAN, J. (1962-1963/2005). O Seminário, Livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar.
24
Na parte Quatro, buscado um entendimento do inconsciente como uma estrutura
de linguagem, isto é, a ideia do inconsciente como repetição significante.
Assim, iremos transitar sobre o nascimento do sujeito subvertendo a verdade do
Outro, como também a inexistência da metalinguagem como um produto
totalizante da linguagem, aplicado no discurso cientifico que foraclui o sujeito em
prol de um objeto conclusivo.
A psicanálise se ocupa do sujeito do inconsciente na subversão do individuo
como unidade egóica, como imagens fabricadas pela cultura e pelo social, pois
acredita que ninguém se cura do inconsciente, mas, que pelas vias da linguagem
como estrutura poderá dizer d’alíngua materna que impulsiona um corpo, a partir
de significantes metafóricos a encontrar na linguagem, uma forma singular de
construir sua subjetividade, embora que, o corpo esteja mortificado pelo
significante do Outro.
Pensaremos, a partir da lógica do inconsciente à lógica dos conjuntos, em que o
sujeito do inconsciente questiona e mata o pai primitivo, naquilo em que Freud21
considerou o nascimento do sujeito sob a forma mítica da incorporação do pai
primitivo pelos filhos.
Lacan parte do pai, como um nome, um significante, em que emergirá o sujeito
como um processo lógico, ou seja, a partir do nada, da dúvida, da ausência, que
faz conjunto como também borda, logo, limite ao imperativo do pai.
Assim, Lacan pensa o sujeito, como uma transformação recorrente do
significante que remete a outro significante, Um Significante enquanto lugar, para
outro significante que se modifica a partir dos encadeamentos, tecendo sua
subjetividade e uma maneira de existir na realidade.
E finalizaremos com nossa estrela Macabéa22 transbordando de inconsciente,
digo, Um corpo causado pelo Outro, lugar em que o corpo d’a mulher enche-se
de angústia, pois não suporta carregá-los, lugar este que a “falta insiste em faltar”
e o sujeito morre por não suportar carregar os ideais do Outro.
21
FREUD, S. (1912-1914/2012). In Obras completas: Totem e Tabu. (Vol. XI). São Paulo:
Companhia das Letras.
22
LISPECTOR, C, (1977-1988) A hora da estrela, Rio de Janeiro: Nova Fronteira
25
Sandra Lopes
Fortaleza/ Brasil,12/10/2023
26
a pulsão não se prendeu a uma representação, ou não
se manifestou como um estado afetivo, nada
poderemos conhecer sobre ela. Não obstante,
quando falamos de moção pulsional inconsciente ou
de uma moção pulsional reprimida, não é senão por
um inofensivo descuido de expressão. Podemos
apenas referir-nos a uma moção pulsional cujo
representante-representação é inconsciente, pois
nada mais entra em consideração.”23
23
FREUD, S. (1915/2010) O Inconsciente, in: introdução ao Narcisismo, ensaios de
metapsicologia e outros textos, p. 182. São Paulo: Companhia das Letras
24
SOLER, COLETTE. (2021) De um trauma ao Outro, p. 73. São Paulo: Blucher
25
LACAN, J. (1958-1959/2016). O Seminário, Livro 6: O desejo e suas interpretações. Rio de
Janeiro: Zahar.
27
Lacan desenvolveu seu ensino, investigando o aparelho psíquico através de três
registros pulsionais: Real, Simbólico e Imaginário, para poder no final de seu
ensino, mais especificamente em 197926, dizer que nosso maior traumatismo ou
Troumatismo é ter nascido pelo desejo inconsciente do Outro, um desejo não-
sabido construído na cegueira do inconsciente.
É por um desejo obscuro que nosso estudo partirá, do olhar com destino ao
inconsciente, naquilo que convoca a colonização do significante e principalmente
a fenda subjetiva do desejo Outro. Iniciaremos pelo imaginário e simbólico para
podermos falar do furo no real como cifra inconsciente.
Lacan se deteve na temática sobre a pulsão escópica em várias momentos de
seu ensino, especialmente em O estádio do espelho27 e A agressividade em
psicanálise28. Também no Seminário, livro 10: a angústia29, quando aponta a
íntima relação da angústia com o olhar, especialmente o olhar do Outro. E mais,
ainda, no Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise30,
que recebeu o título de O olhar como objeto a minúsculo.
Nos primeiros anos do ensino de Lacan foram abordado a constituição do
registro imaginário para o psiquismo humano – O estádio do espelho (1949), a
dimensão imaginária ao lado do conjunto dos registros simbólico e do real.
Lacan31, faz referência ao livro O visível e o invisível, de Maurice Merleau-Ponty,
como também, A carta sobre os cegos para uso do que enxergam, de Diderot,
sem esquecermos da tragédia sofocliana de Édipo Rei, isto para abordar sobre a
angústia, a castração, e o objeto a.
Poderemos iniciar pensando o que há “entre” o olho, o olhar e a visão e a
fascinação, parafraseando Diderot, A carta sobre os cegos para uso do que
enxergam. É visto, que o olhar para psicanálise não é um olhar do sujeito, mas,
26
LACAN, J.(1979-1980). O seminário, livro 27: Dissoluçao . [Inédito]. Versão para circulação
interna da Ecuela Freudiana de Buenos Aires. Tradução de Ricardo E. Rodrigues Ponte.
27
(LACAN, J. [1949] 1998) O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos
é revelada na experiência psicanalítica, in: Escritos,
28
Idem
29
LACAN, J. (1962-1963/2005). O Seminário, Livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar.
30
LACAN, J. (1964/2008). O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da
Psicanálise, p. 206. Rio de Janeiro: Zahar.
31
Idem
28
sobre o sujeito, que visa o inapreensível, o invisível, o pulsional, e se apresenta
de maneira apagada e ao mesmo tempo fascinante à percepção do sujeito e que
lhe ocupa e perturba como uma luz que lhe cega diante do inapreensível do gozo
absoluto.
O olhar predomina sobre o olho, em outros termos, sempre há no visível, no
familiar um invisível, um estranho e fascinante, excluindo da consciência para
abrir-se ao inconsciente.
Lacan ao investigar o inconsciente estruturado como uma linguagem do Outro,
pensou no funcionamento psíquico mediante três registros: RSI (Real, Simbólico
e imaginário), e serão por meio destes registros que mediaremos a
correspondência entre olho, olhar, visão e fascinação.
32
NASIO, J,D. (2009) Meu corpo e suas imagens, Rio de Janeiro: Zahar.
29
Do ponto de vista do imaginário, a imagem é o eu, e o eu é tão imagem quanto
qualquer uma percebida, seguindo o exemplo do espelho podemos dizer que “eu
não vejo esta imagem, eu estou nesta imagem”33, porém, não sou esta imagem.
O eu está na imagem percebida, e esta imagem percebida é o eu, contudo, o eu
não percebe todas as imagens, apenas àquelas que se reconhece, isto é,
percebe imagens pregnantes34, termo este que poderemos pensar quando
Lacan35 se refere às construções dos semblantes.
Os semblantes são todas as imagens que promovem sentido para o eu, e para
psicanálise quando se fala em sentido é o sentido sexual, pois o eu é um ser
sexual.
O eu busca ajustar-se às imagens que lhe produzem sentido sexual, prazer ou
desprazer, o mundo para o eu é um mundo das imagens, e os semblantes estão
intimamente ligados às histórias, impressões e sensações do sujeito.
O eu como sexual tem como ponto de partida o Édipo, logo a castração, que
ameaça o sujeito no pênis imaginarizado, este pênis carrega forte tensão
imaginária, que Lacan nomeou como falo imaginário, o objeto da castração – 𝜑,
no qual o eu se identifica, o eu é, essencialmente o falo imaginário.
O eu, têm um ideal imaginário com a qual se compara e que busca sentido na
relação do imaginário com o simbólico, o eu busca, não apenas no prazer e
desprazer, mas, também busca uma imagem esperada e jubilosa e reconhecida
como imagem fálica.
Assim, poderemos usar a metáfora utilizada por Lacan ao descrever as camadas
do eu, que tem uma forma de “eu cebola”: Parafraseando Nasio36, a primeira
camada, são as imagens do eu, a segunda camada, as imagens pregnantes,
chegando no núcleo: falo imaginário – 𝜑.
33
NASIO, J.D (1995). O olhar em psicanálise, p. 45.Rio de janeiro: Zahar
34
O termo “imagens pregnantes” é um termo utilizado por Nasio quando se refere a consistência
imaginária, In: NASIO, J,D. (2009) Meu corpo e suas imagens, Rio de Janeiro: Zahar.
35
LACAN, J. (1971/2009). O Seminário, Livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio
de Janeiro: Zahar.
36
NASIO, J.D (1995). O olhar em psicanálise, p. 26.Rio de janeiro: Zahar
30
Lacan ao fazer uso de um sinal algébrico menos phi (– 𝜑), refere-se a primeira
letra de “falo” em grego, para dizer do falo imaginário ou imagem fálica.
Mas, por que Lacan utiliza do – phi (pequeno falo) para falar do falo imaginário ?
Porque o falo é representado por um conjunto de imagens (primeira camada),
como algo que se destaca, para mais ou para menos, naquilo que é fascinante e
obscuro, familiar e estranho, luz e sombra, sendo desta maneira uma “imagem
fenda”37
Então, o falo imaginário em forma de fenda é fascinante e ao mesmo tempo é
aterrorizador, e representa o gozo-objeto, por quê?
Porque é aquilo que ocupa e incomoda o sujeito, no mesmo tempo, algo do
agalmático e constante, e tem as similitudes aos orifícios do corpo que abrem e
fecham, fechamento e abertura de significantes, que fascinam e iluminam para o
gozo.
“O caráter de objeto agalmático como enfeite,
ornamento que se oferece aos deuses, é como o
trompe-l’oeil, uma armadilha para os olhares: agalma
engana o olho para fazer valer o olhar. De fato, é a
pulsão escópica que faz de uma pessoa um objeto
excitante e charmoso, com o caráter do belo. O objeto
olhar, enquanto objeto pulsional, emerge no campo de
desejo do sujeito e veste a quem causar o desejo do
sujeito de beleza, a pulsão.
O olhar é o objeto da angústia quando a pulsão
escópica se revela como pulsão de morte: o olhar é
portador de um gozo mortífero.”38
37
NASIO, J.D (1995). O olhar em psicanálise, p. 45.Rio de janeiro: Zahar
38
QUINET, A. (2002). Um olhar a mais,p.73. Rio de Janeiro: Zahar
31
sujeito percebe aquilo que vê e naquilo que é visto, a partir de um jogo de
imagens que nunca saberá o que irá ser revelado a seus olhos.
O processo ocorre pelo olho da criança diante de um espelho, antes mesmo de
falar e de andar, que reflete um corpo amparado pelo olho de um adulto em
confirmação.
Do ponto de vista cronológico e lógico, primeiro somos olhados, o Outro nos olha,
ainda que pela precocidade, os bebês humanos olham em direção àqueles que
os assistem, Lacan marca a queda que sofre o desejo, uma vez que nunca é
totalmente atendido.
“[...] o olhar opera numa certa queda, queda de
desejo, sem dúvida, mas, como dizer? O sujeito
não está aí de modo algum, ele é teleguiado”39.
39
NASIO, J.D (1995). O olhar em psicanálise, p. 52.Rio de janeiro: Zahar.
40
LACAN, J. (1962-1963/2005). O Seminário, Livro 10: A angústia, p.88. Rio de Janeiro: Zahar.
32
2- Do visto ao olhar:
Nos caminhos traçados até este momento de nosso estudo, podemos afirmar
que a angústia “não é sem objeto”41, contudo, não saibamos que objeto se trata
pois, “lá onde ele é, isso não se vê”42. Mas sabemos, como psicanalistas, que o
eu, busca uma imagem que lhe de sentido absoluto, a imagem como objeto de
gozo.
Outrossim, Freud e Lacan nos alerta da impossibilidade da satisfação pulsional,
e é por esta impossibilidade de gozo que o eu se desorganiza no que é visto, esta
fenda abre-se como um olhar para o inconsciente, diante do inapreensível,
enigmática, fascinante e pulsional.
É pela desorganização do eu como imagem que emerge o sujeito inconsciente
na sua impossibilidade de satisfação primária.
Quando Lacan enuncia a função fundamental do estádio do espelho na
propositura de marcar os vários momentos da relação do sujeito com o objeto,
ele apresenta, inicialmente, o plano da primeira identificação com a imagem
especular, a partir de um desconhecimento original com sua totalidade.
Em seguida vêm a referência transicional com o outro imaginário, seu
semelhante, e é por esta transacionalidade com o outro que surge a dificuldade
de discernir sua identidade da identidade do outro. Daí a introdução de um objeto
comum e de posse, na ideia de concorrência e rivalidade, ou seja, “ele é seu ou
é meu”.
No campo da posse, existem os objetos que podem ser partilhados e os que não
podem. Os objetos partilhados possuem função ambígua: rivalidade e acordo
para que possam ser trocados. Entretanto, há objetos que não entram no circuito
de objetos partilhados, como por exemplo àqueles equivalentes ao falo – o cíbalo
e o mamilo. Estes objetos não partilhados, mas reconhecíveis, tem o status de
41
Idem, p.101
42
Idem, p. 101
33
angústia, por ser anterior aos objetos partilhados e especuláveis, são objetos do
que se tratam o a.
43
Ibidem, p. 105
44
Ibidem, p. 109
34
Para compreendermos a passagem do especulável (imaginário) ao escópico
(real), buscaremos uma referência que Lacan faz no seminário45, livro 10, “a
angústia” à uma passagem de fantasia de felaçao do “Homem dos ratos”46 :
“O comportamento noturno e bem sucedido do Homem dos
ratos, quando, depois de obter sua própria ereção diante do
espelho, abre a porta de seu andar para a fantasia imaginada
do pai morto, a fim de exibir aos olhos desse fantasma o
estado atual de seu membro [...] nesta relação fantasística, o
papel do Outro, no modo de presença aqui constituído pela
morte – esse Outro, diria eu, forçando um pouco, que olha
fantasisticamente para a felação”47.
45
LACAN, J. (1962-1963/2005). O Seminário, Livro 10: A angústia, p.108. Rio de Janeiro: Zahar.
46
FREUD, S. (1909-1910) “O homem dos ratos, in: Observações sobre um caso de neurose
obsessiva, uma recordação de infância de Leonardo da Vinci e outros textos São Paulo:
Companhia das Letras
47
Prática sexual que consiste em estimular o pênis com a boca ou com a língua
35
O invisível é escópico, marcado pelo registro do real, pelo pulsional do olhar, por
um objeto causa de desejo e de angústia.
O simbólico é a visão ou subjetivação da marca do real no imaginário, logo, o que
o sujeito faz com sua castração, local das estruturas psíquicas (neurose, psicose
e perversão), das fantasias e sintomas do neurótico e perverso, dos delírios e
alucinações do psicótico.
A pulsão está mediando o que está “entre” o olho, o olhar e a visão, “entre” a
necessidade, a demanda e o sintoma, digo, que a pulsão estará na base do “dar-
a-ver” e “falta-a-ser”, que é objetivado pela demanda de uma visão inconsciente.
O olho e o olhar correspondem ao âmbito visual, na diferença entre real e o
imaginário, uma visão do simbólico, do inconsciente, seguindo a análise da
topologia lacaniana.
O sujeito é constituído no “entre”, do especular, do campo escópico e do
simbólico, em outros termos, do que é visível aos olhos e do que é invisível do
olhar surge o significante, logo, entre os registros real, simbólico e imaginário há
o movimento pulsional inconsciente.
O olhar se refere ao gozo, como um objeto mais-de-gozar, pensado por Lacan
em analogia ao mais-valia de Marx, em que o objeto a como valor do olhar é
conferido a um status de objeto causa de desejo e de angústia.
A pulsão escópica não está ancorado na necessidade, como as pulsões oral e
anal, que é representado como consistência material ao objeto a, mas, ao gozo
dos espetáculos e dos horrores, de maneira que o olhar só pode se ver ao preço
da cegueira, do desaparecimento do sujeito, do significante, do sintoma, o que
indica que toda pulsão é pulsão de morte.
A primeira percepção do Outro é oferecido ao sujeito pelo olhar, este que irá
revelar no sujeito sua fratura narcísica, uma experiência escópica que dirá sobre
um objeto para sempre perdido.
Poderemos pensar na pulsão escópica relacionado as primeiras experiências de
satisfação, que corresponderá a Coisa que nunca mais poderá ser alcançada,
nem na alucinação do desejo, nem na realidade, por maneira que ela foi
hipoteticamente olhada, cuja a imagem mnemônica irá se associar a traços de
memórias da excitação produzida por uma necessidade.
36
Freud descreve a Coisa como aquilo que está sempre presente na relação do
sujeito com o Outro, aquilo que está sempre lá, despertando o interesse libidinal
do sujeito, e por esta Coisa do olhar que o sujeito se movimenta em direção ao
Outro e pelo Outro.
A Coisa destacada por Lacan, é irrepresentável, impossível de apreender,
contudo, retorna como gozo na fantasia e no sintoma.
Desta maneira Lacan refere-se sobre o vazio da Coisa, da mesma forma que a
elaboração entre a Coisa e a lei: lá onde há das Ding como Coisa vazia, encontra-
se a lei moral, lei do supereu que comanda o sujeito. É através do conceito de
das Ding que é introduzida por Lacan a articulação entre lei e o real, de modo
que os significantes podem variar, mas a Coisa, fora do significante, permanece
a mesma, no interior do sujeito, a Coisa é presentificada como excluída, no qual,
Lacan nomeou como “extimidade”.
Assim, falamos que a Coisa analítica, é vazia, é escopeada, não especulável e
sem substância, todavia, é aquilo que em torno do qual o sujeito organiza-se
subjetivamente, como também, evocando o gozo através do objeto a nas
modalidades: oral, anal, escópica e invocante.
Do olho ao olhar podemos pensar da correspondência do imaginário e real. O
real é canteiro da pulsão, que encontra no gozo do olhar a satisfação, pois nossa
percepção visual é do domínio do imaginário, estruturado e sustentado pelo
simbólico.
Como já mencionamos acima a pulsão escópica, é discutido nos anos iniciais do
ensino de Lacan48, os quais descreve dois elementos derivados, especialmente,
da dimensão imaginária, a primeira do conjunto de registro, ao lado do simbólico
e do real.
Lacan49, a partir de Freud fala sobre a pulsão escópica e articula as posições
ativa, passiva e reflexiva, e apresenta seu raciocínio fazendo a distinção entre
olho e olhar, amparado pela referência à Merleau-Ponty em O visível e o invisível,
48
(LACAN, J. [1949] 1998) O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos
é revelada na experiência psicanalítica, in: Escritos,
49
LACAN, J. (1964/2008). O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fun- damentais da
Psicanálise, p. 206. Rio de Janeiro: Zahar.
37
e, diz que o visível depende do olho, e o do olhar, pois o olho e o olhar são
responsáveis pelo processo da constituição do sujeito, o a – a’, é simplesmente
olho e olhar, olhar e olho.
Em relação ao olhar é preciso enfatizar a distinção entre olhar e ser olhado,
apesar de fazer parte da mesma pulsão segundo Freud, convém distingui-las
pelas posições ativa, passiva e reflexiva.
O ato de olhar é possível pela posição ativa do sujeito, nesta posição o sujeito se
coloca como aquele que vê, que observa e que busca conhecer o mundo, uma
posição de controle e domínio pelo olhar.
Já a posição passiva ou de ser olhado, o sujeito é um objeto de olhar do outro-
Outro, sente-se observado e percebido pelo olhar do outro-Outro.
Somos “seres olhados no espetáculo do mundo”50, mundo que é, segundo Lacan
em mais um de seus neologismos, omnivoyeur, que olha e espreita tudo.
A posição reflexiva, o sujeito percebe-se como um objeto de olhar, mas também
é consciente de seu próprio olhar. Ele reconhece-se como aquele que olha e é
olhado, envolvendo uma dupla perspectiva, tanto como aquele que vê, quanto
como objeto do olhar.
Lacan sugere que o ato de olhar é um ato de poder, e diz do “empuxo daquele
que vê”, em que o olhar do sujeito pode influenciar ou afetar o objeto de sua
visão inconsciente. Esse empuxo está relacionado ao controle do objeto do
desejo, a partir da capacidade de impor uma visão ou uma interpretação sobre o
outro-Outro.
O registro simbólico, reduz a relação do sujeito ao significante, agindo como
barreira entre o imaginário e o real, presente em todo fenômeno da visão.
Nesta perspectiva, de três registros (RSI), o aparelho psíquico é estruturado: em
que o registro imaginário é do espelho da consciência, o registro simbólico, é
marcado pelo significante Nome-do-pai, e se estrutura pelo Édipo que esvazia o
gozo materno, e o real da pulsão, do invisível da angústia.
Lacan, no seminário sobre a angústia51 afirma que o olhar está sempre presente
na manifestação da angústia, na medida em que o olhar, enquanto objeto a, pode
50
Ibidem, p. 73.
51
LACAN, J. (1962-1963/2005). O Seminário, Livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar.
38
vir a simbolizar a falta expressa pela castração, [(- φ)], deixando o sujeito na
ignorância do para além das aparências.
Podemos pensar que o que é visto no espelho é angustiante, por não ser passível
de reconhecimento do Outro, é porque a relação que se estabelece com a
imagem especular faz com que o sujeito fique demasiadamente cativo da imagem
e sua relação com o Outro fica paralisada no significante que representa o sujeito.
No contexto da percepção visual, podemos pensar que o eu está para a visão e
o sujeito inconsciente está para o olhar, isto é para a.
O eu busca ocupar, pelo significante que representa o sujeito, o lugar do sujeito
dividido do inconsciente, barrando o olhar com objetos do desejo e da angústia.
O objeto a, em suas modalidades: oral, anal, olhar e voz, não são encontradas na
realidade, isto é, não são vistos, ouvidos, sentidos, tocados, nem experimentados,
pois, o objeto oral não é comido nem palatável; o anal sem cheiro; o olhar
invisível; e a voz, silenciosa, pois são objetos da pulsão como causa de desejo e
de angústia, diferentes dos objetos de desejos que buscam tamponar a falta
subjetiva e promover a satisfação através da fantasia.
Podemos encontrar o objeto a, como mais-de-gozar nos sonhos, no sintoma, no
olhar da vergonha, na inveja e no ciúme, de maneira velada e representado na
realidade, assim, podemos dizer que o olhar se apresenta como ponto invisível
da visão.
52
LACAN, J. (1964/2008). O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da
Psicanálise, p. 100. Rio de Janeiro: Zahar.
39
A ética do olhar decorre de um furo, isto é, o Outro é cego e inconsistente,
significante da lei da castração, do Nome-do-pai, fazendo o sujeito um ser para o
desejo, em que o olhar pode ser fonte para libido. Há uma barra sobre o olhar
que é o significante da lei da castração, o que permite a extração do objeto a no
campo da realidade.
Em recorrência a este objeto a, o olhar toma a dimensão do desejo, de um objeto
perdido, que em estado psíquico primitivo o sujeito obteve satisfação, de maneira
a buscar por repetição aquilo que Freud nomeou como “identidade de
percepção”, uma percepção visual da “imagem mnemônica” do objeto primevo,
que portanto é visual e corresponde à Coisa escópica que jamais é atingida pois
encontra-se no fundamento da experiência do desejo e que afeta o real do gozo
como algo impossível.
Esta experiência visual desperta curiosidade e interesse ao mundo visível,
contudo, o que emerge do visível é a barra ao gozo, um traço do significante, um
traço unário que apaga a Coisa, que é a marca da identificação do sujeito no
registro simbólico.
Mas, pensemos o que seria a Coisa analítica?
É o que faz o analisante retornar, na próxima semana, a sessão de análise, é pelo
real da Coisa, ou seja, pelo inapreensível do simbólico que o sujeito insiste num
dizer, naquilo do invisível do mundo dos objetos, que padece de significante, mas,
excede de significante da lei que vêm barrando o gozo, e paradoxalmente, toma
lugar do sujeito, com a Coisa.
A Coisa como um objeto para o gozo é simbolizável, e nisto, podemos pensar no
perverso sendo àquele que se consagra a tapar o buraco do Outro, ele está do
lado do fato de que o Outro existe, e “faz do perverso um auxiliar singular de
Deus”53.
A função isolável do olhar, em tudo que concerne ao campo da visão, escancara
a dificuldade de definição de: o que é um olhar, por isto delinearemos a relação
do olhar na perspectiva do exibicionista e do voyeur.
53
LACAN, J. (1968-1969/2008). O Seminário, Livro 16: De um outro ao outro, p. 345. Rio de
Janeiro: Zahar.
40
O exibicionista têm intenção de provocar o pudor, o susto, o eco, o risco, uma
pulsão reflexiva, que cadência o ativo e passivo. Na aparência ela é passiva, já
que dá a ver, e ativa, ao fazer aparecer o olhar no campo do Outro.
“É pelo gozo do Outro que o exibicionista zela”54, uma miragem que sugere a
ideia do Outro estar sempre ali na espreita, onde faz surgir o olhar, o real.
Já o que importa ao voyeur é interrogar no Outro o que não se pode ver, e buscar
uma sustentação ao inapreensível, um espiar no buraco da fechadura aquilo que
não se pode ver. Ser surpreendido na captura da fenda como aquele que não
enxerga nada coloca o voyeur numa posição de humilhação.
Lacan55, no seminário, livro 16, aborda não apenas a posição do olhar do
exibicionista e do voyeur como interroga a posição do objeto a na pulsão
sadomasoquista, diante do jogo com a dor entre um além e um aquém, dando
materialidade à um ponto cego, lugar do paraíso perdido do perverso.
Seja como for os paliativos que o homem utiliza para suportar a realidade, sendo
esta sentida como insuportável, Freud afirma que o objetivo maior do ser humano
é a busca de prazer “uma ausência de sofrimento e de desprazer”56 e “intenso
sentimento de prazer”, porém segue Freud “Nossa própria constituição, acredita,
restringe nossas capacidades de felicidade.”57
Freud classifica três fontes para o sofrimento humano: 1- “de nosso próprio
corpo, condenado a decadência e a dissolução ; 2- do mundo externo, que pode
voltar-se contra nós; 3- de nossos relacionamentos com outros homens”58.
Viemos ao mundo do Outro visando ser satisfeitos, saciados, saturados, contudo,
o que encontramos é um significante barrado ($), um Outro barrado e
inexistente, que confirma que o S, quando é marcado por uma barra no gozo,
vira objeto a, vira sujeito diante do desejo do Outro, e neste horror do
inapreensível, do invisível o sujeito se assujeita aos semblantes, sintomas e todas
as porcarias fálicas para conseguir ser visto e amado.
54
Idem, p. 246
55
ibidem
56
MARTINS, A. (2009). Pulsão de morte? Por uma clínica psicanalítica da potência, p. 92. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ.
57
Idem, p. 92
58
Idem, p.92
41
O sofrimento não compromete o prazer, pois, não existe um sem o outro, uma
coisa são os acontecimentos que marcam o sujeito, outra são os afetos ( medo,
angústia, horror, júbilo ...) que causaram no sujeito. Não tem jeito o sujeito para
se desenvolver psiquicamente terá que abrir mão do princípio, propriamente, de
prazer, em prol do princípio da realidade, regido por leis que regulam seus laços
sociais e culturais.
Um princípio da realidade que exige a mediações das pulsões, e normatiza um
ideal em detrimento das satisfações imaginárias, visto que, é pelo “princípio do
medo imaginário” que há a proposta à repressão e o recalque inconsciente,
daquilo que não pode ser visto das expressões expansivas e sexuais.
Freud nos apresenta sua ideia: “a irresistibilidade das pulsões perversas e, talvez,
a atração geral pelas coisas proibidas, encontram aqui uma explicação
econômica.”59. E seguindo esta linha de pensamento freudiano, podemos pensar
que o sujeito na impossibilidade de satisfação pulsional, busca “uma técnica para
afastar o sofrimento” que consiste no “deslocamento da libido”, reorientando os
objetivos pulsionais por meio de sublimações das pulsões, de maneira que as
satisfações pulsionais de grosseiras e primárias sejam refinadas e possíveis pelo
adestramento civilizatório.
Decerto, o prazer de ser olhado pelo Outro e principalmente de ser confirmado
narcisicamente aos olhos do Outro, está a maior parte do investimento psíquico
do sujeito que busca nas relações especulares a demarcação de seu lugar e de
sua existência, que busca um sentimento de confiança no outro, quando seu
corpo revela aquilo do invisível, isto, é da angústia.
Mas, a pulsão sempre estará na base de um “dar-a-ver” do sujeito, o que
proporciona visibilidade de si para o sujeito está no fundamento do que lhe é
afetado pelo olhar do Outro, logo, o estranho é o inapreensível do objeto a, objeto
invisível, que movimenta-se em busca de visibilidade diante da visão do
inconsciente, o que permite que o sujeito “toque com os olhos e desnude com o
olhar”60 o Outro a partir do gozo dos espetáculos e do horror, um objeto
agalmático, em que parte da cegueira inconsciente à materialidade do sintoma
59
Ibidem, p. 97
60
QUINET, A. (2002). Um olhar a mais, Rio de Janeiro: Zahar
42
para que, assim, possa sentir o ato de ser olhado pelo Outro. Um escopismo para
o desejo que vai sendo moldurado pela volta da pulsão, circundando uma
moldura para o real e revelando uma possível estabilidade da fantasia através da
demanda do inconsciente.
Estivemos até aqui pelos olhos do visível, mas, quais são os caminhos do invisível,
da cegueira inconsciente?
Podemos pensar que o olhar é uma forma velada do objeto a, não é visível, por
isto, não se encontra no campo da visão, apenas como um lugar de causa de
desejo, “O olhar é o invisível da visão.”61
Mas, também poderemos pensar que o eu encontra seu lugar na visão, no visto,
e o sujeito inconsciente e sua divisão subjetiva no olhar, como objeto a, logo, o
eu ocupa o lugar do sujeito dividido do inconsciente, ou seja, do percipiens da
visão do eu, no qual o visto, dá materialidade como perceptum, ocupando o lugar
do olhar e da angústia.
61
Ibidem, p. 50
62
Idem, p.50
43
portanto, tentam camuflar o furo do Outro, sendo possível pois, o espelho e o
quadro da fantasia possuem o objeto a do olhar, [i(a)] e [ ◊ a].
Neste sentido o sujeito em sua estratégia pulsional em direção ao objeto de
satisfação, pode atribuir diversos significados e significações ao olhar o Outro, e
é por estas diferenças que o sujeito se estrutura psiquicamente como neurótico,
perverso e psicótico.
O neurótico deposita no Outro um tributo de olhar que pode lhe causar desejo
ou angústia; o perverso entrega ao Outro o olhar para fazê-lo gozar; enquanto
que o psicótico tem no olhar do Outro imperativos de poder vigia-lo e puni-lo.
A teoria lacaniana do campo da visão inconsciente, trás o mundo daqueles que
veem e são visto, e que encontram na visão um olhar enigmático e agalmático,
para além do imaginário do espelho, isto é, para além do semelhante, que o espia
por detrás da janela da fantasia, lá onde aparece o olhar, a visão se decompõem.
Um inconsciente que reúne impressões de um corpo que vê e é visto, a partir de
um corpo estranho e enigmático. Logo podemos pensar na obra de arte mais
famosa do ocidente, “A Mona Lisa”, que atrai multidões para visualizar a pintura
de perto e registrar com suas maquinas fotográficas o olhar mais enigmático da
renascença:
44
Figura 4: A Mona Lisa – Leonardo da Vinci – 1503-150663
63
A Gioconda ou a Mona Lisa é um dos retratos mais emblemáticos da história da pintura.
Pintada por Leonardo da Vinci no século XVI, entrou nas coleções da corte francesa para depois
fazer parte das obras expostas no Museu do Louvre .
45
Por isto, poderemos dizer que o objeto a não é o objeto do desejo, e sim o que
causa o desejo, há uma supervalorização e fascinação deste objeto por parte do
sujeito, estando no que envolve o fetiche diante do desvelar da castração, no
brilho no nariz visto apenas pelo sujeito, do objeto agálma, na constância da
pulsão em busca de satisfação, mais-de-gozar, e no irresistível do olhar.
Somos sujeitos marcados por uma fenda, Spaltung, isto é, somos subordinados
e representados por um significante para outro significante, o sujeito é dividido
entre dois significantes, um “entre-dois”. O sujeito tem urgência da fala:
O objeto a, se apresenta para o sujeito como o real do sexo, que lhe escancara
sua divisão naquilo que corresponde ao consciente e inconsciente, a pulsão de
vida e pulsão de morte, saber e verdade, prazer e gozo.
Podemos pensar que o objeto a, é causa de desejo e o sujeito é o efeito desta
causa, sendo assim subvertido: a → , e é sua divisão o suporte para o desejo.
64
QUINET, A. (2002). Um olhar a mais, p. 76, Rio de Janeiro: Zahar
65
Idem, p. 77
46
O sujeito diante de um objeto olhar, encontra seu próprio estranhamento de um
sujeito falta-a-ser, e por isto, procura uma representação, por identificação ao
traço unário que herdou do Outro significante (S1 ), no qual ancora seu gozo. Em
outros termos, o sujeito diante do inapreensível do objeto escópico, que lhe causa
desejo como também angústia, procura uma maneira de se tornar visível por
intermédio do dito do Outro, que lhe define com significantes, por exemplo: feio,
bonito, burro ou inteligente, e ancora seu ser no gozo.
O sujeito se assujeita aos ideais e as leis do Outro e se opõe a sua condição de
sujeito como objeto a, o a é ocupado pela lei, e a divisão do sujeito entre
enunciado e enunciação é ocupado pelo imperativo “Tu és” que constitui a
determinação do sujeito pelo significante que constitui a alienação do sujeito ao
Outro, e o que permite separar o sujeito desta posição é seu status de objeto a,
“Lá onde a lei se apaga é o objeto olhar que emerge”66, e nisto, podemos dizer
que lá onde está o objeto não está o sujeito, as custas de seu apagamento, logo,
no registro do simbólico o sujeito está em conjunção e disjunção com a demanda
do Outro, [ ◊ D], no registro do real o sujeito está para a pulsão de seus objetos:
oral, anal, fálico, voz, olhar.
Assim, o matema da pulsão [ ◊ D], é inscrita pela relação do sujeito com a
demanda do Outro em relação a conjunção, [V] e disjunção, [^] representada
pelo inconsciente.
No entanto, a pulsão oral e anal estão estritamente no nível da demanda. O objeto
oral está na demando do bebê ao seio da mãe. O objeto anal está na demanda
da mãe às fezes do filho, no processo de controle esfincteriano.
A pulsão escópica não está para demanda e para necessidade do sujeito e sim
no desejo de olhar, não havendo significantes específicos para pulsão escópica
no inconsciente, a não ser por empréstimo dos significantes das pulsões que
demandam: oral e anal, por tais caminhos que “comemos com os olhos o Outro”.
A pulsão inconsciente é representada pela inscrição significante, a
Vorstellungreprasentanz, é por esta inscrição que a linguagem do Outro é
66
Ibidem, p. 80
47
enunciada pela fala do sujeito, e recalcada no inconsciente, como um conceito
limite entre o simbólico-real, em Freud, somático e psíquico, e pelo registro do
real como libido, no qual, Freud designou inicialmente como afeto.
Em outras palavras, as pulsões oral e anal, passam pelo registro da fala por estar
vinculado a demanda e a necessidade, já o escópico e o invocante: olhar e a voz,
para ser evocado pela fala é preciso estar vinculado por uma demanda oral ou
anal, contudo, pela não representividade inconsciente, o olhar e a voz se
apresentam da seguinte maneira: o olhar como objeto de desejo ao Outro, e a
voz como objeto de desejo do Outro, dando a estes objetos uma consistência
inapreensível.
Os objetos da pulsão oral, anal, olhar, voz, são objetos oriundos de castrações,
oral a perca do seio, anal a perca das fezes, o olhar como perca de olhar, a voz
como perca de ouvir.
!"#$%
O olhar sendo nosso objeto de estudo, tem a marca do falo faltante, &'
, um
67
QUINET, A. (2002). Um olhar a mais,p. 82, Rio de Janeiro: Zahar
48
pulsão escópica ou “pulsão-despertador”68, está presente no encontro do sujeito
com o sexual, um olhar tycke rumo às formações inconscientes.
68
Ibidem, p. 85
69
LISPECTOR, C, (1977-1988) A hora da estrela, Rio de Janeiro: Nova Fronteira
49
que um dia possa validar sua possibilidade de existir a partir de um não-ser
nordestino frente ao “ambicioso clã do sul do pais”70.
Parafraseando o prefácio “O grito do silêncio” de Eduardo Portella para esta obra
de Clarice, o narrador, ao longo da história, assumirá três formas diversas de
presença:
70
Idem, p.10
71
Ibidem, p. 11
72
Idem, p.12
50
Eu nasci na região sul deste país chamado Brasil, mas, muito cedo fui morar em
São Paulo e depois em Paris, e quando retornei ao Brasil também retornei a São
Paulo, até decidir passar minha “colheita” no Nordeste brasileiro,
especificamente em Fortaleza/Ce.
Quando tomei a decisão de me mudar para o Nordeste e lá construir um lugar
para ter meu filho e viver o que considero vida, fui questionada por uma pessoa
que me dirigiu a seguinte pergunta: “Sandra, mas lá nem leite condensado tem,
que tipo de vida você pensa em ter morando em um lugar subdesenvolvido?”.
Claro que não consegui responder, apenas ri, pois o inesperado é cômico e
revela certa estupidez, eu não consegui responder a alguém sem conhecimento
da diversidade e riqueza deste país, logo, pensei que tipo de teta esta moça
pensa que mama, a dos privilegiados?
Em “Mal-estar na civilização”73, Freud traz reflexões importantes acerca do papel
da cultura na condução do mal estar, naquilo que confere ao sentido e propósito
de vida, em que Freud aborda a pulsão de morte na relação entre cultura e o
Isso.
Desde o princípio desta obra Freud explicita que “cultura humana” é tudo aquilo
que difere da vida animal, deste modo a cultura é todo conhecimento do homem
de maneira a controlar as forças da natureza e extrair riqueza, além de constituir
os regulamentos necessários para os laços sociais, pois lembra-nos Freud da
impossibilidade do homem em viver sozinho, exigindo deste enormes sacrifícios
diante de certa renúncia pulsional.
Assim Freud escreve “toda cultura repousa em uma obrigação a trabalhar e uma
renúncia à pulsão, as culturas serão sempre ameaçadas pela rebeldia e pela
mania destrutiva dos participantes da cultura”74.
O quanto de sentido a cultura oferece ao homem? Para Freud “A cultura pouco
tem a temer das pessoas instruídas e dos que trabalham com o cérebro, pois
estas substituíram os “motivos religiosos”75.
73
FREUD, S. (1925-1926/2011). In: Obras completas: O futuro de uma ilusão, O mal-estar na
civilização e outros trabalhos (Vol. XXI). São Paulo: Cia das Letras.
74
MARTINS, A. (2009). Pulsão de morte? Por uma clínica psicanalítica da potência, p. 83. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ.
75
Idem, p. 87
51
Então poderemos pensar que a cultura como a religião oferecem sentido a vida
do homem, um certo sentimento de si mesmo, de pertencimento, de encontro e
significação, ou seja, a restauração do narcisismo ilimitado que fez do “homem a
imagem e semelhança de Deus”.
Mas, se o homem já é imagem de Deus, por que a semelhança, não seria um
pleonasmo, uma redundância semântica?
No contexto da análise de Lacan, podemos explorar a ideia de “imagem e
semelhança de Deus” de uma forma que dialoga com suas teorias sobre a
constituição do sujeito, o desejo e a linguagem.
A identidade do Eu é construída por meio de imagens e da entrada do sujeito no
mundo simbólico, que é mediado pela linguagem e pela cultura. O sujeito se
constitui como um Eu através da interação com os outros e da internalização da
lei do pai. Lacan enfatiza que essa identidade é sempre incompleta e
fragmentada, uma vez que está sujeito aos conflitos psíquicos.
Assim, em à “imagem de Deus”, podemos pensar na perspectiva de que a
imagem do eu é sempre por reflexos parciais na busca continua da imagem
perfeita e pelo desejo de ser reconhecido pelo Outro, na forma de plenitude ou
totalidade, dito que a imagem seja de Deus.
A “semelhança de Deus” é marcado por conflitos inconscientes, dos simulacros
da linguagem, já que o sujeito nunca conseguirá uma unidade perfeita, ou seja,
às semelhanças são impossíveis e inacessíveis ao sujeito, como é seu desejo
inconsciente.
Contudo, ainda, podemos notar que a separação entre cultura e natureza
pulsional desperta no homem um sentimento exacerbado de ameaça externa, de
desejo de combater aquilo que é estranho, escópico e inespeculável, pois
desperta às ameaças interna das pulsões.
E é por esta trilha do estranho e não da semelhança de Deus que iniciaremos
nossas reflexões em companhia de Macabéa, uma nordestina franzina, de pouco
volume e que nos apresenta que a verdadeira linguagem está no irreconhecível
da palavra.
Seguiremos pelos caminhos delineados por Lispector, ou seja, iniciaremos pelo
olhar do narrador sobre Macabéa, pois o princípio da vida humana acontece,
52
primeiramente, por um olhar estranho e irreconhecível do Outro, posteriormente,
um possível relato deste olhar do narrador e finalizaremos com uma tentativa de
comunicação entre o moço da praça publica e a nordestina que vive como uma
estrela cadente.
Nossos caminhos pela “A hora da estrela”, ao longo deste estudo, acontecerá
pelos linhames de Clarice Lispector, todavia, sem preocupações prêt-à-porter,
nada estará pronto e acabado, mesmo porque não conseguiríamos isto nesta
obra, mas, uma construção de encadeamentos de significantes, costurando o
real, o simbólico e o imaginário de um lugar em que o olhar ganha uma visão
inconsciente.
Então, iniciaremos pelo narrador Rodrigo S.M (Senhorita Macabéa) que inicia
fazendo uma ação reflexiva sobre o ato de escrever e questiona se terá êxito
como escritor diante de seu objeto, segundo ele, parco e sem atrativos como
Macabéa. Para tanto, se coloca de uma maneira que ao mesmo tempo que olha
é olhado pelo objeto, àquele que: “ninguém responde com um sorriso”, e de
inicio faz seu primeiro desabafo:
E diz de sua dificuldade em escrever sobre a nordestina, por ser um ser “inócua
e não fazer falta a ninguém”, e nesta complicação diz sobre sua vida, naquilo que
de mais verdadeiro é irreconhecível, “o interior é inexplicável, sem palavras que
a signifique”77.
Desta forma, podemos mensurar a identificação com o outro visível e ao mesmo
tempo invisível, desprezível, como um resto da sua própria divisão subjetiva.
E “esfregando as mãos uma na outra” revela que “o vazio tem seu valor e a
semelhança do pleno. Um meio de obter é não procurar, um meio de ter é o de
76
LISPECTOR, C, (1977-1988) A hora da estrela, p. 17, Rio de Janeiro: Nova Fronteira
77
Idem, p. 17
53
não pedir e somente acreditar que o silêncio que eu creio em mim é resposta a
meu – a meu mistério”78.
E diante do desconhecido de si pergunta: “sou um monstro ou isto é ser uma
pessoa?”79, e se depara com o desamparo, com o temível, com a necessidade, e
conclui: “quem se indaga é incompleto”80.
São pelos caminhos da existência humana que Rodrigo indaga sobre o tempo
cronológico e a finitude, pensando que o cotidiano é um caminho para morte,
uma “fotografia muda”81, em que as coisas de tão boas podem ficar ruins, porque
“o que amadurece plenamente pode apodrecer”82, e que a imagem visível não é
garantia para o olhar daquilo que é misterioso, do enigma do desejo do Outro, e
nisto Rodrigo nos diz de um tempo lógico, em que a imagem se contribui para
um aquém e além da linguagem, num tempo imensurável que cadência o
passado, o presente e o futuro.
É por uma ética ao inapreensível, que Rodrigo reflete e que ao mesmo tempo se
angustia diante da inconsistência lógica, em que o Outro é envolvido por sua
própria cegueira diante sua própria castração.
E é por esta cegueira visível, que Rodrigo fala da eternidade como sendo o dia
de hoje, e nos diz que a maior tragédia humana é presentificada no presente, isto
é, “o dia de amanhã será um hoje, e a eternidade, é um estado de coisa neste
momento”83.
E nesta dimensão em que o amanhã tomará corpo do hoje, que o vazio da Coisa
analítica é constituído, como à falta de significante que possa representar o
sujeito na ortopedia do eu, como uma impossibilidade de gozo devido a sua
eterna divisão subjetiva, em que o Édipo vela o vazio do gozo, e atribui seu caráter
proibitivo, e o sujeito crê na proibição de seu desejo e no futuro de uma ilusão.
E nesta impossibilidade de inscrição sobre a nordestina que Rodrigo é
assombrado por medos invisíveis e diz:
78
Ibidem, p. 20
79
Idem, p. 21
80
Idem, p.22
81
Idem, p.23
82
Idem, p. 23
83
LISPECTOR, C, (1977-1988) A hora da estrela, p. 25, Rio de Janeiro: Nova Fronteira
54
“Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar pedras...o
que me proponho contar parece fácil e à mão de todos, mas
a sua elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido
o que está quase apagado e que mal vejo. Com mãos de
dedos duros enlameados apalpar o invisível na própria lama
[...]. Por enquanto quero andar nu ou em farrapos, quero
experimentar pelo menos uma vez a falta de gosto que dizem
ter a hóstia. Comer a hóstia será sentir o insosso do mundo
e banhar-se no não. Isso será coragem minha, a de
abandonar sentimentos antigos já confortáveis”84
84
Idem, p. 25 - 26
55
para poder ser visto pelo Outro, e é nisto a implicância de sua insuficiência pois
sempre fracassa ao ser representado pela linguagem do Outro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
56
LACAN, J. (1968-1969/2008). O Seminário, Livro 16: De um outro ao outro, p.
345. Rio de Janeiro: Zahar.
LACAN, J. (1971/2009). O Seminário, Livro 18: de um discurso que não fosse
semblante. Rio de Janeiro: Zahar.
LACAN, J.(1979-1980). O seminário, livro 27: Dissolução . [Inédito]. Versão para
circulação interna da Ecuela Freudiana de Buenos Aires. Tradução de Ricardo E.
Rodrigues Ponte.
57
PARTE DOIS - A visão do corpo fantasiado
“Quando vejo meu rosto no espelho tenho que alertar-me que não sou esta
imagem, sou o que sinto desta imagem, trata-se de um sentido sexual para o
prazer e desprazer.” Sandra Lopes
85
O eu minúsculo para destacar a relação do eu com suas imagens
58
“A imagem inconsciente do corpo é o conjunto das
primeiras impressões gravadas no psiquismo infantil
pelas sensações corporais que um bebê, até mesmo
um feto, sente ao contato de sua mãe, ao contato
carnal, afetivo e simbólico com sua mãe. Sensações
que foram sentidas pela criança antes do domínio
completo da palavra e antes da descoberta de sua
imagem no espelho, isto é, antes dos três anos.”86
86
NASIO, J,D. (2009) Meu corpo e suas imagens, p. 21,Rio de Janeiro: Zahar.
87
(LACAN, J. [1949] 1998) O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos
é revelada na experiência psicanalítica, in: Escritos
88
NASIO, J,D. (2009) Meu corpo e suas imagens, Rio de Janeiro: Zahar.
59
com a minha imagem!. [...] Agora, a imagem do corpo-
visto prevalecerá sobre as imagens do corpo-vivido.
É, portanto, a partir dos três anos, e durante toda a
nossa existência, que a imagem do corpo-visto irá
impor-se incessantemente na consciência, em
detrimento das imagens do corpo-vivido, que, por sua
vez, serão relegadas e recalcadas no silêncio do
inconsciente.”89
89
NASIO, J,D. (2009) Meu corpo e suas imagens, p. 22,Rio de Janeiro: Zahar.
89
(LACAN, J. [1949] 1998) O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos
é revelada na experiência psicanalítica, in: Escritos
90
Idem
60
suficientes para garantir seu ideal narcísico diante do Outro, desta forma
emergem nas sensações atuais as imagens gravadas por sensações
inconscientes.
Contudo, as imagens inconscientes nunca se manifestam livremente, mas, por
“filigranas”, isto é, na decodificação que o analista realiza no processo de
transferência.
O termo “filigrana” tem origem na ourivesaria e refere-se a uma técnica de
trabalhar com os fios finos de metal (como ouro ou prata) para criar padrões
elaborados e intrincados:
61
Outrossim, não poderemos deixar de ressaltar que as imagens do inconsciente
são traços impressos de sensações sentidas pelo sujeito no decorrer do
desenvolvimento de sua sexualidade, nisto, podemos falar que o sujeito, em
análise, irá elaborar o luto dos objetos perdidos (oral, anal, olhar, som), ao longo
de sua existência, em que o corpo se torna a fonte fértil para a constituição do
inconsciente, não um corpo físico isolado, mas, um corpo impregnado pela
presença do outro/Outro, vibrante ao contato carnal e sexual.
Há nas imagens inconscientes do corpo, traços indeléveis das sensações
experimentadas na infância, traços duradouros e ativos pulsionalmente, que
fazem o sujeito reviver as primeiras sensações (prazer ou desprazer) sensoriais
de um corpo infantil.
Nasio91 em seu livro “Meu corpo e suas imagens” também aborda sobre as
imagens e traços sensoriais de um corpo-imagem, considerando dois elementos
distintos para a representação subjetiva:
Sensação percebida:
91
Ibidem
92
Idem, p. 22
62
experimentam a mesma memória inconsciente, o mesmo ritmo, as mesmas
sensações primitivas, subvertendo o tempo para manter o gozo - objeto.
Freud93 em seu texto, As pulsões e suas vicissitudes apresenta-nos os destinos
das pulsões como também destaca um conceito relacionado ao termo “apoio”,
para dizer sobre a base dos orifícios fisiológicos na qual nascem as pulsões.
Desta maneira, a pulsão apoia-se no erógeno do orifício fisiológico. Neste
contexto, os olhos não terão, apenas, a natureza de ver, mas de olhar, o escutar
assume-se na condição erógena da voz que entra, mas, de ameaça. O olhar e a
voz, são dois veículos através das quais se exercem a ameaça da castração,
assim, o olhar e a voz terão como atividade pulsional de tensionar, tensionar,
para poder relaxar, em busca de uma visão e uma sonoridade que ampare o
sujeito à ameaça de castração.
Para tanto, existem duas condições para que uma sensação seja imprimida como
imagem inconsciente, a primeira está intimamente relacionada com que Freud94
afirmou sobre a origem da pulsão nos orifício erógenos, logo, a primeira condição
é que as sensações sejam emanadas do corpo da criança em estado de desejo,
isto é, em busca do corpo da mãe para satisfazer-se, esta relação prevalecerá
como sensações experimentadas como prazer.
A segunda condição é que para tais sensações se tornem imagem inconsciente,
é necessário que ocorra a repetição para deixar uma marca, pois, a imagem
inconsciente do corpo é uma imagem tomada de ritmos e o corpo imagens de
emoções, no cadenciamento das trocas sensoriais e sensuais.
É no encontro carnal, corpo desejoso, carregado de intima tensão que as
emoções emergem de seres desejantes e simbólicos, que se constituirá e
permanecerá inscritos na memória inconsciente do sujeito.
É necessário ressaltar que o que se inscreve como imagem inconsciente do
corpo, não são caricias entre mãe-filho, mas a cadência tensional de um corpo
93
FREUD, S. (1915/2010) Os instintos e suas vicissitudes, in: introdução ao Narcisismo, ensaios
de metapsicologia e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras
94
ibidem
63
infantil, assim, a imagem inconsciente do corpo é imagem de ritmos pulsionais
de maior e menor tensão.
O desejo da criança percorre os significantes inconscientes como uma corrente
elétrica e acende produzindo correntes de visibilidade, isto é de imagem, logo, o
sujeito adulto terá visibilidade destas emoções por meios de representação
consciente, correspondente a imaginarização do simbólico (desejo da criança).
As representações do desejo inconsciente encadeiam-se segundo as leis da
linguagem, tendo um caráter de imagens, quando investidas pela corrente do
desejo.
Com isto, é possível pensar que o eu é constituído por representações mentais
das sensações corporais, como também por uma imagem especular duplicada
do corpo, portanto o eu é um sentimento, eminentemente, subjetivo constituído
por um eu-vivido e um eu-visto, que se entrelaçam em busca de conhecimento,
pois segundo Lacan o eu ocupa um “lugar do desconhecido”, onde o eu tem
como núcleo o pequeno falo (- 𝜑), que oscila nas certezas e nas ignorâncias de
si, por isto, a visão do corpo nunca é concreta, ora tende para mais, e outras para
menos, sempre uma imagem exagerada, sempre em excessos ou em falta.
Vemos o que o desejo inconsciente nos leva a ver, e nisto a imagem do corpo é
sempre falsa, uma miragem de um objeto perdido, percebido com olhos de amor
ou de ódio.
Nesta perspectiva, o relato do sujeito em análise sobre uma coisa que lhe é
importante, será sempre deformada por influência do que é visto e vivido, isto é,
o objeto será percebido sob o apogeu do consciente e do inconsciente.
Assim, o objeto real é percebido por intermédio das brumas das fantasias
inconscientes, [ ◊ a], em que o objeto é apreendido pela fenda da castração ,
do visível (imagem visto-consciente) e do invisível (imagem vivido-inconsciente).
64
Outro (“Encontro esse objeto bonito ou feio”, segundo
o cânone de beleza em vigor na sociedade); e a
imagem antiga do objeto superpondo-se e
deformando a imagem de hoje (“Percebo o objeto
velado pela imagem que conservo dele na minha
memória afetiva e inconsciente”)95.
95
NASIO, J,D. (2009) Meu corpo e suas imagens, p. 66,Rio de Janeiro: Zahar.
96
Idem
97
Termo utilizado por Nasio, In: NASIO, J,D. (2009) Meu corpo e suas imagens, Rio de Janeiro:
Zahar.
65
compreensível por que essas imagens, esses signos
não-verbais, são, para o clínico, verdadeiras garras
para apreender as emoções inconscientes do
paciente.”98
98
Ibidem, p.72
99
Idem p. 75
100
Idem, p. 76
66
Às vistas do sujeito estão as imagens e significantes, que ele se aliena, tanto
quanto ao seu semelhante, é preciso ser o outro para que o sujeito seja “eu”, isto
é, o outro é indispensável, fato este insuportável ao neurótico que não quer
depender de ninguém, e desconsidera a pluralidade de suas imagens psíquicas,
logo, de seus inúmeros “eu(s)”.
O significante, para Lacan é um “lugar-tenente” (lieu-tenant), um “representante
ou substituído” que tem como função mediar à experiência humana por
intermédio da linguagem e da cultura, a partir de um sistema de significantes,
significados e significações.
Para melhor exemplificarmos o corpo simbólico como um lugar-tenente,
utilizaremos do significante “elefante” utilizado por Lacan no seminário 1, Os
escritos técnicos de Freud101,e seguiremos em termos lacanianos.
O “significante” é a unidade básica da linguagem, um elemento material da
cadeia de significação que está associado a um “significado” ou representação
mental. No caso específico do exemplo, o som ou a palavra “elefante” é o
significante, enquanto a imagem mental ou representação mental de um elefante
é o significado.
Para Lacan, o significante “elefante” representa uma construção simbólica que
não se confunde com a coisa em si. O significante é um lugar-tenente do
significado, ou seja, é um substituto da coisa representada psiquicamente, e as
experiências do mundo do sujeito são mediadas por esta relação simbólica entre
significante, significado e significação, é esta relação que é convocada num
processo analítico.
Repito, a relação do “lugar-tenente” do significante elefante” está relacionado à
natureza da linguagem e da representação simbólica na teoria lacaniana, para
ficar mais compreensível vamos analisar cada um desses conceitos e sua
conexão com o exemplo do significante “elefante”:
101
LACAN, J. (1953-1954/2009). O Seminário, Livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de
Janeiro: Zahar.
67
1- Significante: Refere-se a uma palavra, som, ou imagem que representa
uma ideia ou contexto. No exemplo, o som ou a palavra “elefante” é o
significante específico relacionado a esse animal, mas, não o animal em si,
e sim àquilo que é subjetivamente representado;
2- Significado: É a representação mental ou conceito associado a um
significante. No exemplo, o significado é a imagem mental ou conceito de
um elefante, ou seja, do animal real;
3- Significação: É a relação entre um significante e seu significado, isto é, a
conexão que é estabelecida entre palavra ou som (significante) e o
conceito ou ideia (significado) que ele representa. Neste caso, a
significação está relacionada à associação que é feita entre a palavra
“elefante” (significante) e a imagem mental de um elefante (significado);
68
Na teoria lacaniana, a relação entre fantasia e as três ordens fundamentais da
experiência humana – o real, o simbólico e o imaginário – possibilita ao analista
a compreensão do funcionamento psíquico e da constituição do sujeito.
Considerando, que é pelo real que Lacan refere-se a uma dimensão que escapa
à simbolização e à representação, por ser do domínio do concreto, do caótico,
que causa ao sujeito sofrimento e angústia.
O simbólico, com um sistema de significação possibilita ao sujeito sua entrada na
linguagem e no campo das representações, de modo que, por intermédio da
linguagem, o sujeito pode mediar aquilo que é da experiência concreta de um
corpo de emoções e de um corpo de imagens.
O imaginário possibilita um vasto campo de variedades de imagens à
consistência do eu e seus ideais.
Ainda parafraseando Nasio102, a fantasia na perspectiva topológica de Lacan, é
uma construção psíquica do imaginário e se manifesta no simbólico como um
conjunto de significantes que dão formas as fantasias, sendo uma resposta a
incompletude, à falta e ao desejo, isto é, a fantasia “enforme” de “A”, surge como
uma tentativa de lidar com o inexorável do real, inapreensível e angustiante,
fornecendo um estrutura significativa para preencher os buracos do imaginário e
do simbólico.
As fantasias inconscientes podem ser construídas a partir das interações
complexas entre o corpo real, o corpo imaginário e o corpo simbólico, na tentativa
de amenizar as tensões correspondentes as interações entre as dimensões.
As fantasias do corpo real, que representam o corpo biológico, mas, não é o
corpo biológico, e sim emoções e afetos deste corpo, surgem a partir das marcas
corporais oriundas das sensações físicas desconfortáveis e traumáticas.
As fantasias do corpo imaginário são representações mentais das imagens, e
identificações com significantes que compõem as imagens do eu.
São as Imagens idealizadas do eu, que são construídas as fantasias de possuir
significantes fálicos, na perspectiva do sujeito sentir-se amado e adorado como
102
NASIO, J,D. (2009) Meu corpo e suas imagens, p. 66,Rio de Janeiro: Zahar.
69
um Outro, estes significantes fixam às imagens narcísicas para oferecerem
consistência ao eu.
As fantasias do corpo simbólico envolvem conflitos psíquicos expressos por meio
de significantes, significados e significações do Outro simbólico, conflitos que
refletem as relações do sujeito com o Outro furado, e revelam a sua
inconsistência e insuficiência simbólica em representar o sujeito da linguagem.
A imagem fálica ou falo imaginário está localizada no núcleo do eu, logo, o falo
imaginário é a imagem predominante, contudo, invisível, mas, marca como um
traço unário todas as imagens do eu, como um véu que esconde e ao mesmo
tempo revela o gozo e o desejo.
A imagem fálica possui um ritmo pulsional inconsciente, característico do menos
phi ( - 𝜑 ), obscuro e fascinante, que oscila na presença e na ausência do objeto
de gozo, isto é, entre o gozo e o desejo, nas quais a fantasia é modelada em
bordeamento de um objeto a, invisível e inapreensível:
Esta grafia menos phi ( - 𝜑 ), ou, - phi ( 𝜑 ), pequeno falo ou falo imaginário, se
distingue do falo simbólico ( 𝜙 ) com phi grande, phi maiúsculo. O primeiro faz
referência às imagens do eu, o segundo diz sobre os significantes fálicos que
buscam dar sustentação aos semblantes pregnantes ao eu, pela via dos ideais.
70
O sujeito movimenta-se, pulsionalmente, na mira de um objeto para satisfazer a
pulsão, mas, o que encontra é a falta, é por uma falta que o neurótico investe sua
energia psíquica, sua libido e seu tempo, a libido não quer saber da falta, e sim
do represamento de um objeto para que o sujeito possa gozar.
No final de seu ensino Lacan é categórico ao afirmar a impossibilidade da
satisfação do sujeito com seu objeto, “não há gozo absoluto”, o falo simbólico
( 𝜙 ) irá fracassar na tentativa de uma possível estabilidade com as imagens
ideais.
Poderíamos dizer que o olhar e a voz, expressam a ameaça de castração, e o
fracasso do sujeito diante de seu próprio prazer. E qual é a relação do sujeito
com aquilo que ameaça e aquilo que é ameaçado, nas quais a visão da fantasia
inconsciente se estrutura?
O que ameaça na castração é o ( - 𝜑 ) no corpo da mãe, uma zona obscura de
seu sexo. E o que é ameaçado na castração é ( - 𝜑 ) no corpo da criança, são as
sensações de seu sexo, seu corpo real.
“Temos um ( - 𝜑 ) à frente e um ( - 𝜑 ) atrás”103, da imagem fálica conferindo o
ritmo pulsional dos orifícios erógenos. O sujeito às bordas da fantasia [ ◊ a], é
constituído por sua divisão psíquica, digo, a fenda fálica é o que fascina e palpita,
juntamente com os movimentos cadenciados de maior tensão e menor tensão
dos orifícios erógenos.
Aquilo que a criança a vista no corpo de sua mãe é marcado ( - 𝜑 ) à frente, que
ofusca a visão e evoca a cegueira ( - 𝜑 ) a trás, ou seja, no próprio corpo do
sujeito.
“Sim, mas além do ( - 𝜑 ) lá e do ( - 𝜑 ) cá, há o olhar
que vai entre este aqui e aquele lá, e isso também é (
- 𝜑 )”104.
103
NASIO, J,D. (2009) Psicossomática: as formações do objeto a, p. 50,Rio de Janeiro: Zahar.
104
LACAN, J. (1964/2008). O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da
Psicanálise, p. 206. Rio de Janeiro: Zahar
71
Assim, Lacan nos apresenta que o olhar é o ( - 𝜑 ) que transita “entre” o corpo
do pequeno sujeito e da mãe, isto é, aquilo que se enceguece enquanto
luminosidade ou opacidade do falo imaginário ( - 𝜑 ).
Lacan105, nos seminários, Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise e O
objeto da psicanálise aborda o tema do olhar apoiado na topologia, de maneira a
descobrir o ( - 𝜑 ) na materialidade da fantasia, onde o Outro reflete as imagens
e seus ideais, sem a luz do Outro não haveria o olhar que cega o sujeito ao
mesmo tempo que o fascina.
Ao se referir ao objeto a, Lacan insiste em afirmar a imaterialidade deste objeto
como coisa invisível e abstrata dos objetos parciais, como marca do ( - 𝜑 ): o seio,
como objeto oral ligado à boca, que evoca consumir o objeto; as fezes, objeto
anal da pulsão de reter ou expulsar; a voz como pulsão invocante de sonoridade;
o olhar como objeto da pulsão escópica e cegueira inconsciente.
Freud106, em As pulsões e suas vicissitudes, considera que toda pulsão é uma
pulsão sexual, por ser auto-erótica, é pelo auto-erotismo da pulsão que é
marcado o caráter sexual da pulsão.
Assim, Freud apresenta o circuito da pulsão escópica : “O sujeito ‘olha’, ‘se olha’
e depois ‘é olhado’”, neste circuito está o sujeito que se vê por uma fenda, e o
Outro-tela é o enquadre da fantasia, um eu vidente que olha o sexo pela fenda
fálica do Outro e evoca clarão, cegueira e também fascinação. A fenda fálica do
Outro (sexo), olha para os olhos, e este olha para fenda fálica, movimento rítmico
da pulsão sexual.
A imagem fálica é uma imagem fascinante ao sujeito por ser evocante de gozo,
a imagem fálica não é libido, mas, a fantasia mais próximo da libido, que se
manifesta pela transitoriedade da presença e ausência do falo imaginário.
Neste contexto, podemos afirmar que o ato de olhar é um ato inconsciente,
desencadeado por uma fenda fálica (sexo) que provém do Outro, digo, de fora,
105
LACAN, J. (1962-1963/2005). O Seminário, Livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar.
LACAN, J. (1965-1966). O Seminário, Livro 13: O objeto da psicanálise [Inédito]
106
FREUD, S. (1915/2010) Os instintos e suas vicissitudes, in: introdução ao Narcisismo, ensaios
de metapsicologia e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras
72
traçados nas dimensões simbólicas e reais das pulsões inconscientes, das
fantasias inconscientes, e não mais do imaginário consciente do eu.
O olhar emerge de uma luz externa ao eu, e naquilo que a imagem fica turvado
consciente, abre-se para uma visão inconsciente, pois, o inconsciente está no
lapso e o olhar está nesta falha de visão consciente.
Deste modo, o raio visual parte em linha reta do olho para iluminar o objeto e
torna-lo visível, este ponto luminoso pode representar o olhar como fogo que
ascende, como objeto a, segundo Lacan107, causa de desejo inconsciente.
Conforme a figura 2, a satisfação da pulsão é paradoxal, e exige uma satisfação
constante, o que é impossível, pois o objeto está perdido e as pulsões sexuais
estão articuladas com a pulsão de morte.
Assim, a pulsão faz uso da fantasia na propositura de produzir prazer ao sujeito,
todavia, causa ao sujeito desprazer, pois a pulsão recalcada no inconsciente
nunca abandona a tendência à satisfação completa, o que leva o sujeito a
compulsão à repetição de uma experiência de satisfação primária.
É por uma diferença entre exigência pulsional e o prazer, que surge o desejo, é
na impossibilidade de satisfação absoluta que o desejo movimenta-se na
contramão do gozo, pois um gozo total seria a morte.
Ainda na figura 2, podemos falar da estrutura da pulsão, de modo de um ir-e-
voltar, o que fará Lacan dizer que a pulsão é um “se fazer”: “se fazer chupar”
para a pulsão oral, “se cagar” para a pulsão anal, e se fazer olhar, para a pulsão
escópica”108.
O objeto no qual a pulsão dá voltas, está do lado do Outro, é por este Outro que
o sujeito elabora o quadro das fantasias, assim, o Outro-tela é anteparo ao Outro
sexo.
A pulsão visa restaurar a posição do sujeito de objeto fálico para o Outro, onde o
olhar passa ser um suporte do desejo do Outro, perdido desde sempre. Nisto, o
107
LACAN, J. (1964/2008). O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da
Psicanálise, p. 206. Rio de Janeiro: Zahar
108
QUINET, A. (2002/2004) Um olhar a mais, p. 97, Rio de Janeiro: Zahar
73
sujeito presentifica o olhar enquanto objeto a, na medida que o olhar circula o
anel da pulsão.
Em “Além do princípio do prazer”, Freud nos apresenta os paradoxos dos
neuróticos através dos conceitos da pulsão de vida e pulsão de pulsão de morte.
E diz Freud sobre os neuróticos:
E define o “desprazer neurótico” como “um prazer que não pode ser sentido
como tal”. É por um tipo de prazer que se mistura com desprazer que o neurótico
se dedica como a verdade do gozo. O termo gozo, presente no ensino de Lacan
engloba satisfação pulsional nos paradoxos de prazer e desprazer, logo, no gozo
não há limites entre o prazer e o desprazer.
A vida pede movimento, a morte exige silêncio e impulsiona o sujeito em direção
ao inanimado, e afirma Lacan110, “a pulsão de morte é o que faz com que o
homem falhe diante do imperativo da vida”.
Podemos considerar o gozo escópico na equivalência do gozo do supereu, em
um para além da vida, por estar associado a pulsão de morte, exigindo do sujeito
o impossível de suportar, um olhar de morte, angustiante e mortífero, um estado
constante de vigiar-se. Assim o olhar enquanto a, poderá trazer ao sujeito prazer
109
FREUD, S. (1920/2010). “Além do principio do prazer”, in: História de uma neurose infantil [“O
homem dos lobos”], Além do principio do prazer e outros textos, p. 21, São Paulo: Companhia
das Letras
110
LACAN J. (1969-1970/1992). O Seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise, p.68, Rio de
Janeiro: Zahar.
74
e dor, um mais-de-olhar, pontos de divergências dos destinos pulsionais:
recalque e sublimação.
A sublimação está intimamente ligado ao olhar a partir do belo, preservando a
satisfação sem desvio da finalidade: a pulsão está para satisfação com objetos
equivalentes ao sexual.
Contudo, considerando a valência do ( - 𝜑 ), o gozo escópico também conota o
olhar como ameaçador e mau, e provoca a tensão psíquica exigindo o recalque
da representação de a. Há no mau-olhado um parentesco com a morte que
materializa um olhar malvado e severo sobre as imagens do eu.
O olhar traz o prazer quando escamoteia a castração e preenche a falta subjetiva
do sujeito, como falta fálica (a/-φ). E traz desprazer quando não cumpre o papel
de tamponar o furo da falta, numa separação entre a falta e o objeto (a >< -φ),
vivificando do corpo real a angústia ( ≡ φ).
Neste contexto, a fantasia, [ ◊ a], é um processo de imaginalização, digo, um
afastamento do sexual enquanto real, assim, a pulsão sexual é uma força
impulsora à imaginalização e simbolização.
A fantasia pode manter o enclausuramento do significante no imaginário, em vez
de, o significante deslizar metonimicamente como uma estrutura para o desejo,
onde o desejo é sempre de outra coisa, na condição de falta-a-ser.
No enclausuramento do significante é produzido falsas imagens do eu, o sujeito
se prende em uma metáfora (imaginária) onde a fantasia paralisa o desejo, não
como oposição da realidade, mas, de estrutura de unidade, uma gramática
fundamental de mundo.
Lacan111, no seminário, livro 14, A lógica do fantasma, busca traçar a fantasia
pela lógica, muito diferente do aprisionamento imaginário, com a função de
articular a realidade, sexualidade, a partir da estrutura do significante com
questionamentos das noções lógicas do universo do discurso.
Da imagem à estrutura da linguagem, do significante, uma maneira de Lacan
rejeitar a noção de universo do discurso, isto é, valores de verdades e falsidades
num universo restrito os quais isolam propriedades lógicas.
111
LACAN, J. O Seminário, livro 14, sessão de 14.6.1967.
75
Para a psicanálise o universo do discurso só existe com um furo, pois o
fechamento do discurso é um grande engodo imaginário com sérias
problemáticas com a ética e da moral.
Uma psicanálise consistente sob conjunto de valores e verdades, seria estar a
serviço dos canalhas, e a psicanálise tem como função um desserviço aos
canalhas, pois estes, acreditam na metalinguagem, logo, num universo que
servem alguns em detrimento de outros.
A fantasia não se opõe a realidade, mas, tem como função estruturá-la como uma
estrutura gramatical do mundo, embora que, não há separação entre ideia e
coisa, isto é, essência e aparência se confundem, como um véu que deixa
misturar a ideia e coisa a partir de um engano imaginativo.
Lacan112 faz referência ao livro de Deleuze113, Lógica do sentido, que aborda a
lógica do fantasma na perspectiva pendular, ou seja, a sexualidade funcionaria
como um “movimento pendular” de sexualização e dessexualização, movimentos
intrínseco e extrínseco, sendo que, o movimento inicial do fantasma seria de
dessexualização, isto é uma defesa contra a angústia do real do sexo.
Contudo, a máscara do fantasma, que tem como movimentos pendulares, vacila
e deixa entrever o real, por intermédio da lógica do a.
Para que possamos compreender a lógica do a proposto por Lacan no seminário,
livro 14, A lógica do fantasma, buscaremos no ano de 1966114, ano que Lacan
utiliza do quadro “As meninas” de Velásquez para se referir a fantasia,
distinguindo o plano-sujeito do plano-tela, em que o olhar está inscrito como
objeto a.
112
Ibidem
113
DELEUZE, G. (1969/2009) Lógica do sentido, São Paulo: editora Perspectiva
114
Idem
76
Figura 3: Las meninas, Velásquez 115
115
Tela: Las meninas de Diego Vlásquez, 1656, atualmente no museu do Prado - Madrid
77
Lacan utilizou deste quadro como ilustração da dinâmica do olhar, da fantasia e
da estrutura do sujeito na psicanálise. Ele argumentava que o quadro
encapsulava a noção do “olhar do Outro”, que é fundamental na constituição do
Eu e do outro imaginário e o Outro simbólico.
Vamos aqui, refletirmos juntos sobre algumas ideias-chaves que Lacan explorou
a respeito deste quadro:
Para Lacan a tela de Veláquez tem como objetivo apresentar o registro de
sensibilidade relacionado ao objeto a, na propositura de, a partir de uma
operação lógica, apresentar a consistência do sensível a partir da negatividade
do objeto a, no que, promove a construção lógica como funcionamento
inconsciente.
É a partir de um questionamento do universal que é inaugurado a modernidade
que problematiza o universo das representações, logo, da verdade da Coisa,
trazendo para a discussão do olhar a problematização do – 𝜑, naquilo que não se
dá a ver, mas, que pertence ao campo do olhar.
Neste contexto, o objeto a, como um registro da sensibilidade revela o
estrangeiro, o Outro, como também um estrangeiro que o sujeito faz para si.
Lacan estabelece também uma crítica ao totalitarismo, isto é, da montagem
simbólica e imaginária, o qual o real é excluído devido sua natureza de expor os
simulacros da linguagem do Outro.
Assim, constitui-se a máscara da fantasia como forma de encobrir o real, no qual
a fantasia do neurótico sempre fracassa, devido a lógica e politica do a, que é
vacilante e deixa entrever o real.
É nisto que Lacan pensa a dinâmica deste quadro, revelando a complexidade da
imagem na sua visibilidade, ao ser atingido pela negatividade do olhar do Outro,
– 𝜑, como um furo no real que revela que a verdade do Outro é furada.
No quadro, os personagens parecem se olharem, tanto para o espectador quanto
para os personagens dentro do próprio quadro, expondo como o olhar, o
estrangeiro em si é repetitivo nas relações e experiência subjetivas do sujeito da
linguagem.
A pintura de Velásquez, segundo Lacan, apresenta uma espécie de “cena
primária” da fantasia, onde o sujeito se coloca no lugar do olhar do Outro, vendo
78
a si mesmo como um objeto do olhar de alguém. Velásquez é um exemplo do
sujeito que age como intermediário entre o olhar do Outro (a realeza) e o
espectador (nós).
Lacan usou a distribuição espacial dos personagens no quadro para ilustrar a
complexidade da estrutura do sujeito. Ele viu na infanta Margarida Tereza como
um ponto focal que simboliza o objeto do desejo, cercado por outros
personagens que representam diferentes papéis na estrutura psíquica.
O papel da infanta Margarida Tereza, que está no centro da composição da tela,
corresponde a estrutura psíquica a partir da dinâmica do inconsciente, a partir
dos elementos que compõem a rede de olhares que propulsionam a pulsão
escópica, movimenta as identificações com o Outro e estrutura as fantasias a
partir da demanda inconsciente.
Assim, Lacan observou a infanta Margarida Tereza como uma espécie de objeto
de desejo inconsciente, que atrai os olhares e atenção dos outros personagens
na cena, proporcionado a partir do espaço especular, que ocupa o ponto nodal
da composição, e proporciona o jogo de olhares e identificação com o Outro.
Neste contexto a infanta Margarida Tereza está no centro do campo visual e
cercada por damas de honra e outros membros da corte, que representam
figuras de autoridade e poder. A interação dela com as damas da corte
representa a maneira que as identificações com o outro moldam a construção do
Eu e as fantasias inconscientes, ilustrando a dinâmica de como o sujeito se
constitui como objeto do olhar do Outro na formação da identidade e na
estruturação psíquica.
Este “olhar do Outro” como estrangeiro, refere-se ao impacto do olhar do Outro
sobre o sujeito na estruturação psíquica, afetando a constituição do corpo
imaginário e simbólico, a partir da oferta e efeito do significante naquilo que
Lacan nomeou como “corpsificação” ou “mortificação da carne”, que permite a
entrada do sujeito no campo da linguagem do Outro.
Ao destacar o ponto de fuga na pintura, que está localizado atrás de Velásquez,
simboliza a ideia de que o sujeito se coloca no lugar do olhar do Outro, ou seja,
sai da posição passiva à ativa e reflexiva do olhar, vendo a si mesmo como objeto
do olhar ao mesmo tempo que o Outro é seu objeto. Nesta dinâmica dos olhares,
79
do Outro, para o Outro e com o Outro (olha e é olhado), a pulsão contorna o
objeto a, a partir de um registro sensível de tempos lógicos, e a fantasia opera
em espaços de especulação, como também dos restos, distribuídos pelas redes
de olhares.
Desta maneira, Lacan lança mão da tela de Velásquez com o objetivo de
apresentar o registro de sensibilidade relacionado a materialidade do objeto a, a
partir da consistência de sensibilidade e do tempo lógico do objeto a constituído
pela negativação fálica – 𝜑 do objeto, tematizando a problematização do universal
e suas representações, no qual, insere neste universo a problemática do – 𝜑,
aquilo que não se dá a ver mas que pertence ao campo do olhar, que tem como
objetivo, não o que se dá a ver como empírico, objeto das imagens, mas, daquilo
do campo do sensível e inespecularmente estranho.
O quadro Las meninas, representaria o lugar-tenente da representação da
pulsão, seu Vorstellungsrepräsentenz, através da inscrição do sujeito no plano
quadro, introduzindo o sujeito e o gozo, naquilo que aponta a posição do sujeito,
sendo meramente o que um significante representa para outro significante, onde
a divisão do sujeito é constituinte e correlata do objeto do gozo da pulsão olhar.
A tela representa um momento, um tempo lógico, uma parada da imagem que
fixa esse instante em que Velásquez se afasta da tela, que está pintando para dar
uma olhada no modelo que foi introduzido na tela como um “olhador”, um lugar
de espectador, um olhar dirigido aqueles que olham a tela, ou seja, a uma Outra
cena que a da imagem visível, ao mesmo tempo que o pintor aparece invisível,
um instante de ver e ser visto, e coloca em cena um olhar impossível de ver: ver-
se vendo o que pinta.
Em tal contexto, Velásquez aproxima o instante de ver no momento de concluir,
em que o olhar do pintor embaralha o tempo cronológico, apagando a distinção
dos tempos: presente e passado, o que reduz o momento de concluir e o tempo
para compreender ao instante do olhar, como no tempo lógico.
Esse tempo do quadro é o tempo da fantasia que confere seu aspecto de mise-
en-scène, que Freud revelou como o inconsciente ao fato de situar ao nível
escópico da pulsão, sendo a fantasia uma encenação ativa a partir do desejo
sexual inconsciente.
80
Freud em 1897116 refere às fantasias: “são estruturas protetoras, sublimações dos
fatos, embelezamento deles e, ao mesmo tempo, servem como auto-absolvição”
aproximando das cenas primitivas que tem o caráter traumático para o sujeito.
116
FREUD, S, “Carta a Wilhelm Fliess n. 61”, ESB, I, p.267.
81
A HORA DA ESTRELA... “Cada coisa é uma palavra. E quando
não se tem, inventar-se-á. Esse vosso Deus que mandou
inventar...em fracasso me reduzi a mim mas pelo menos quero
encontrar o mundo e seu Deus...a palavra é fruto da palavra. Atingi-
la é o meu primeiro dever para comigo... Apesar de eu não ter nada
a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre
espantos meus ”117
“Esse vosso Deus que mandou inventar..., terei que me escrever todo através
dela por entre espantos meus”. A Coisa, como um objeto real, sob a lógica de a,
é percebido pelas brumas das fantasias inconscientes, [ ◊ a], de maneira que o
objeto é visto pela fenda da castração do sujeito diante do Outro.
É no encontro com o real de Macabéa que Rodrigo se intimida, sob as tensões
de suas emoções que emergem de desejos inconscientes. A fantasia é
construída sob o apogeu da castração simbólica, e de um objeto imaginário que
se constitui como metáfora, como substituição do objeto, logo, o sintoma do
sujeito. Muitas vezes o movimento metonímico do desejo fica comprometido
para dar formas às fantasias, uma tentativa de resposta a castração. Visto que a
fantasia busca “enforme” de “A”, uma tentativa de subverter a castração do
Outro e do sujeito, que para o neurótico é fomentado pelos excessos de
demandas pulsionais ao Outro.
117
LISPECTOR, C, (1977-1988) A hora da estrela,p; 24,26, 31, Rio de Janeiro: Nova Fronteira
82
imunda e rachada, cheia de cabelos, o que tanto
combinava com sua vida. Pareceu-lhe que o espelho
baço e escurecido não refletia imagem alguma.
Sumira por acaso a sua existência física?... Mas por
que trato dessa moça quando o que mais desejo é o
trigo puramente maduro e o ouro no estio?...Ela me
incomodava tanto que fiquei oco. Estou oco desta
moça. Por que ela não reage?”118
118
Ibidem, p. 32-33
83
respostas. Era lá tola de perguntar? E de receber um
não na cara? Talvez a pergunta vazia fosse apenas
para que um dia alguém não viesse a dizer que ela
nem ao menos havia perguntado.”119
A imagem fálica é uma luz forte advinda pelo o olhar do Outro, que ao mesmo
tempo que causa cegueira ou estranhamento, também causa fascinação e
conflitos entre o visível e o invisível do olhar.
Não esqueçamos que o falo imaginário localiza-se no núcleo do eu, assim para
toda visão inconsciente, o falo imaginário será uma imagem predominante,
porém invisível que marcará o sujeito como uma operação que implica em uma
questão dirigida ao Outro: Che Vuoi? – “Que queres de mim?”, esta questão que
marca o sujeito como um traço unário que sempre invocará ao sujeito um certo
estranhamento, como Rodrigo percebe o olhar de Macabéa, um véu que esconde
e ao mesmo tempo revela o gozo e o desejo.
Então, aqui paro e lhes pergunto: O que lhe ocupa daquilo que do Outro lhe
parece bizarro?
Lacan chama o significante de “lugar-tenente” (lieu-tenant) na constituição do
significado e significações, através do encadeamento dos significantes.
Um significante como um traço unário, busca nos encadeamentos dos
significantes um forma de representação psíquica inconsciente da pulsão,
Vorstellungsrepräsentenz, que convoca o sujeito a demandar ao Outro, a
questionar sobre o olhar lançado pelo Outro, um olhar enigmático da pulsão
inconsciente que busca uma representação consciente.
A relação entre o “lugar-tenente” e a pulsão inconsciente da demanda é
manifestado pela linguagem (os significantes) que atuam como intermediário
para a expressão das pulsões. A pulsão inconsciente da demanda não se
manifesta diretamente como um desejo claro e compreensível, mas é filtrada
através dos significantes e da linguagem.
119
Idem, p. 33
84
A demanda inconsciente se expressa através dos significantes e é moldada por
eles, tornando-se muitas vezes ambígua e obscura.
Na teoria lacaniana, o desejo é entendido como uma busca constante e insaciável
por alguma coisa, que o encontro é sempre adiado, nunca totalmente satisfeito.
Assim o desejo é estruturado em torno da lógica de a, naquilo que se faz
incompreensível para o sujeito.
A fantasia não se reduz ao imaginário e nem a imaginação da Coisa, mesmo que
seja utilizado de recordações, imaginadas ou inventadas. A fantasia é uma
imagem determinada por um significante, isto é, tem estrutura de linguagem que
quer comunicar algo, por ser inconsciente a fantasia é estruturada como uma
linguagem da pulsão.
A fantasia é um quadro que o sujeito busca preencher de maneira a tamponar o
furo do Outro, mas, lhe retorna como castração (-φ), diante do insuportável do
real do sexo, no qual o desejo é do Outro.
A partir da elaboração da fantasia como enquadramento do desejo do Outro,
podemos pensar no desejo ao Outro, desejo que Rodrigo manifesta diante do
estranho, um recuo intimidado, representado diante do olhar de Macabéa, para
não oferecer seu ser como objeto ao Outro.
Pensar no imaginário é pensar na libido e não no espelho, na imagem, é a libido
que envolverá a imagem que se reflete e se refratam no outro, a frente do sujeito.
Nesta perspectiva podemos pensar no cego, ele vive na dimensão imaginária
sem espelho e sem ver o outro, contudo, basta sentir-se visto que o estranho se
revela.
Desde Freud pensamos a fantasia como uma realidade psíquica, essa realidade
como construção simbólica e imaginária foi apresentado por Lacan120 sob a forma
do esquema R, que não quer dizer real, mas R de realidade.
Este esquema R é um conjunto das condições do objeto a, envolvendo toda
relação com o falo imaginário, isto é com a libido dirigida ao objeto e retornado
ao eu através das identificações com o outro.
120
LACAN, J. (1966/2003). Escritos. P. 553, Rio de Janeiro: Zahar.
85
Sugiro trazer aqui para nosso estudo a diferença entre real e realidade proposto
no ensino de Lacan, para tanto recorro à Macabéa para que possamos pensar
através da palavra, ainda que escrita, uma comunicação:
O real é estático não convoca movimento, é o que não muda, é o real do sexo,
mas, digo sexo não àquilo que é visualizado como órgão genital, mas o
inapreensível do sexo, àquilo de um olhar obscuro, como gozo impossível,
enigmático e traumático.
A realidade é pulsante, se abre e fecha, da mesma maneira que os orifícios
erógenos que buscam satisfação, abrindo-se como faz uma cadeia de significante
no ato da palavra circulante, por isto a realidade é mutável, “uma rosa a cada fim
de mês”, e nisto, a realidade é singular e subjetiva a cada sujeito.
121
LISPECTOR, C, (1977-1988) A hora da estrela, p. 40, Rio de Janeiro: Nova Fronteira
86
A realidade é o vai e vêm entre o Eu122 e as imagens, nos quais firmam-se as
identificações, os ideais do Eu e sobretudo o Outro que deseja.
Na realidade o Eu irá se identificar com a imagem completa, imagens parciais,
até se deparar com o Outro que deseja, sucessões de encontros identificadores
e encontro que é marcado pelo desejo da mãe.
Uma mãe desejante é aquela que não olha para seu filho, que desvia os olhos
dele, que convoca o enigma do olhar, seguindo sucessões de fantasias por parte
do sujeito (filho).
Contudo, toda realidade anuncia uma perda, algo do eu e da imagem cai como
resto pulsional, algo de obscuro, aquém e além do que é visto, excluído de libido.
É o que ex-siste ao conjunto, mas que define o conjunto e o encadeamento de
significantes na cadeia metonímica, desta maneira, S2 é o significante pai, Nome-
do-Pai, o ponto externo e obscuro que sustentará o desejo do sujeito e a
realidade.
Mas, a realidade não são só palavras e imagens, é também aquilo do que é mais
íntimo ao sujeito, o pulsional, o que faz o sujeito sentir, sendo assim, o exercício
da pulsão na trajetória à satisfação.
Para entendermos o susto de Macabéa ao trazer a questão: “quem sou eu?”,
podemos refletir sobre o que pode ser mobilizado da pulsão ao inserir tal questão
ao sujeito, que na sua fragilidade percebe seu desamparo, nos lugares mais
obscuro do ser, naquilo que Freud apresenta-nos da pulsão escópica em três
termos: “olhar, se olhar, ser olhado”123:
122
Eu e suas identificações com os significantes ofertados pelo tesouro dos significantes, nesta
condição manteremos o Eu maiúsculo .
123
FREUD, S. (1915/2010) Os instintos e suas vicissitudes, in: introdução ao Narcisismo, ensaios
de metapsicologia e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras
87
Figura 4: A pulsão escópica124
124
NASIO, J,D. (2009) Psicossomática: as formações do objeto a, p. 50,Rio de Janeiro: Zahar.
125
NASIO, J,D. (2009) Psicossomática: as formações do objeto a, p. 41,Rio de Janeiro: Zahar.
88
Figura 5 : O circuito pulsional em Lacan
126
Ibidem, p. 52
89
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NASIO, J,D. (2009) Meu corpo e suas imagens, Rio de Janeiro: Zahar.
90
NASIO, J,D. (2009) Psicossomática: as formações do objeto a, Rio de Janeiro:
Zahar.
91
PARTE TRÊS - Às voltas do objeto a
127
FREUD, S. (1911-1913/ 2010). Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado
em autobiografia [o caso Schreber], artigos sobre técnica e outros textos. São Paulo: Cia das
letras.
128
LACAN, J. (1972/2003). Outros escritos: Estadio do espelho... Rio de Janeiro: Zahar.
92
o sujeito ao vazio e a angústia, que pulsa de forma sexuada. Vazios que buscam
objetos contingenciais, vivenciados de forma extrema e angustiante, fazendo
oscilar as imagens “lá onde estava a realidade virtual da imagem, advém a
realidade ‘real’ do desejo”129.
Como foi visto, a fantasia não se opõem a realidade, “a fantasia constitui o
enquadre da realidade”130, já que, o sujeito utiliza da fantasia para capturar o
objeto que falta ao seu desejo.
Trata-se de extrair um objeto lógico, lá onde era “um-único-um, essa captura do
um, esse corte no real, de haver isolado um traço, um elemento, isso fez com que
algo fugisse; aquilo de que isso gozava”. 131
Assim Lacan132conclui que, a realidade e o prazer situam-se na mesma borda,
com seus objetos marcados com os traços de suas perdas.
Cabe a cada sujeito extrair seu objeto de satisfação, de maneira que cada falasser
(falta-a-ser) busque o que demarca a sua realidade, mas para isto, é importante
que o sujeito não se entretenha com grandes ideais e acordos universais,
imagens e fantasias, mas que, busque no objeto sua utilidade para dar aos ideais
um lugar de semblantes, que irá sempre oscilar diante dos falasseres, caso
contrário, a realidade e a fantasia tornar-se-ão aparelhos de gozo.
A primeira formalização de Lacan sobre o objeto a ocorreu no seminário, livro 10,
“a angústia”133, apresentando que o objeto a está situado a partir do imaginário e
do simbólico, e que demarca a alteridade no Outro a partir do simbólico, a partir
de uma sequência de extrações corporais ( o seio, as fezes, a voz, o olhar),
130
LACAN, J. (1972-1973/2003). “Alocução sobre as psicoses da criança”(1968) In: Outros
Escritos, Rio de Janeiro: Zahar
131
COTTES, F,J. (2008)“Traço Unário” In: “Scilicet: os objetos a na experiência psicanalítica,
Associação Mundial de Psicanálise, Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria
132
LACAN, J. (1972-1973/2008). O Seminário, Livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar.
133
LACAN, J. (1962-1963/2005). O Seminário, Livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar.
93
correlatos aos objetos perdidos em Freud, e representados pelos objetos não
especuláveis, em Lacan, digamos, o que falta à imagem.
Para Freud, a castração está diante dos olhos do sujeito, para Lacan é o objeto
olhar que surge enquanto real, “O objeto a, no entanto, independentemente da
forma em que aparece, é, a principio, um aparecimento no real: um objeto a
mais”134.
É este “objeto a mais” que causa angústia, um objeto que demarca a falta e o
impossível, sendo assim, um sinal de perigo, logo, do real, isto é, o real apresenta-
se para o sujeito de forma perigosa.
No seminário, livro 16, “De um Outro ao outro”135, Lacan inventa o mais-de-gozar,
homologo ao termo marxista “mais-valia”, e traz a lógica do objeto a, uma
consistência que falta ao Outro, numa produção a partir do furo do Outro, que o
sujeito busca na fantasia dar um enforme de Outro (A)136, perdendo seu status de
real, sendo que o real é “aquilo ao qual nada pode faltar, jamais”137.
Prosseguindo, Lacan no seminário, livro 20, “mais, ainda”138, o objeto a ganha
status de semblante, situando o a entre o simbólico e o real, um investimento da
imagem i(a) do ser, “um semblante do ser”139, “há uma afinidade do a com seu
envelope imaginário”140.
Neste contexto, podemos refletir que Lacan pensou, no primeiro momento, o
objeto a no seminário “a angustia” como uma presença do real, depois no
135
LACAN, J. (1968-1969/2008). O Seminário, Livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro:
Zahar.
136
Idem, p. 311
137
Idem, p.295
138
LACAN, J. (1972-1973/2008). O Seminário, Livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar.
139
Ibidem, p.293
140
Idem, p. 293
94
seminário “De um Outro ao outro” como consistência do Outro, para chegar no
seminário “mais, ainda” e dizer que o objeto a é semblante e que não pode
“sustentar-se na abordagem do real”141 e que “não cessa de não se escrever da
relação sexual”142. Assim o gozo só poderá ser interrogado por meio dos
semblantes, “o gozo só se interpela, só se evoca, só se cerca, só se elabora a
partir do semblante”143.
Desta forma o analista ocupará, no processo de análise, o local do semblante
para que o objeto a possa aparecer a partir do falasser, nisto, o real e o gozo
serão marcados a partir dos semblantes.
Então, como poderemos pensar a lógica do objeto a na função do analista,
quando o analista faz-se de semblante?
O desejo do sujeito tem uma razão de ser a partir de uma exigência pulsional,
isto é, inegável a psicanálise, a pulsão move o sujeito em direção ao objeto, um
mais-gozar, o qual lhe remete a sua própria forma de gozo, uma causa de gozo.
A única ferramenta do ofício de um analista é a palavra, na dimensão do
significante e na dimensão da causa do desejo, introduzida a partir da lógica do
inconsciente, em que Lacan no ano de “1969-1970144,elabora a ‘teoria dos
discursos’ de forma a colocar em estrutura as relações fundamentais que indicam
modos de aparelhamento do gozo, isto é, o enquadre da pulsão”145, o que faria
Lacan146 assinalar o objeto a como semblante e deslocar para o sinthoma, assim,
desloca o a no que era o real para os pareceres dos desejos.
Deste modo, o sujeito no inicio de um processo analítico constitui o analista como
o Outro que detém um saber, vestido de sujeito suposto saber, e circula nos
141
Ibidem, p. 294
142
Idem, p. 294
143
LACAN, J. (1972-1973/2008). O Seminário, Livro 20: Mais, ainda.p. 85, Rio de Janeiro: Zahar.
144
LACAN, J. (1969-1970/1992). O Seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro:
Zahar.
145
OLIVEIRA, S,M,L(2023)”Memórias entre uma poltrona e o divã”, p. 116, Bom Despacho:
Literatura em Cena
146
LACAN, J. (1972-1973/2008). O Seminário, Livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar.
95
significantes do Outro “armaduras feitas de substancia gozante”147 até perceber
o objeto a na queda do Outro, momento de que o objeto a revela a incompletude
e inconsistência do Outro, mas também um caminho como causa de desejo.
Propomos-lhes determos um pouco mais no desejo, ou seja, na direção que é
tomado um processo de análise, digo, “da intencionalidade à causalidade”148.
No que concerne uma análise há diferenças marcantes naquilo que é o pedido
de ajuda à demanda do inconsciente, passagem esta que leva àquele que sofre
de um sintoma evocar um por que, a partir deste momento, o sintoma faz-se
analítico e portanto sujeito à análise.
Podemos pensar que o que se inicia em uma análise é que o sujeito parte daquilo
que lhe falta em busca de um objeto:
d----------------à a
Para depois partir de um desejo “causado” onde o objeto é seu ponto de saída e
não de chegada:
a---------------à d
147
VIVAS, C, H. “Causa do desejo”, In: “Scilicet: os objetos a na experiência psicanalítica,
Associação Mundial de Psicanálise, p. 49, Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria
148
Ibidem, p. 47
96
O objeto causa de desejo, (savoir et faire avec) é o que Lacan denomina de objeto
a, o que movimenta o sujeito em sua vida, apesar do corpo ser mortificado pelo
significante e este ser canteiro do gozo, há resíduos que escapam o gozo e que
se movimentam em busca do desejo.
Mas, não podemos deixar à revelia que há um acontecimento do corpo enquanto
gozo, “afeto que afeta o corpo; libido que se ordena pelas formas de gozo,
recortadas das pulsões: objeto a”149, definido por Lacan como sintoma, uma
metáfora da verdade do Outro, significado pelo sujeito.
O afeto tem como condição um efeito de acontecimento, um traço único e
traumático, no entanto, duradouro, suficiente para ocupar o sujeito enquanto seu
sintoma.
Em Freud, os acontecimentos de um corpo sintomatizado recorrem de cenas
primitivas e seus excessos excitatórios que provocam aquilo que é o traumático
do sexo.
Para Lacan, os afetos, recorrente de cenas primitivas do imaginário edípico são
secundários, dando lugar aos afetos que se ligam ao traumático da lalingua, um
corpo recortado a partir de uma dupla demanda: ‘do’ Outro e ‘ao’ Outro, que
perturba e pode fazer sintoma, “um efeito de afeto”150 em lalingua o enigma do
sexo, em que seu efeito é aparelho de gozo, um insuportável, digamos, suporte
da não relação sexual, que deixa traço e um modo de gozo e satisfação de cada
um, na medida que o corpo é recortado em a.
Um acontecer no corpo ou no pensamento deixa o objeto a na contingência do
afeto que toca o excedente da linguagem do Outro, no qual produz sofrimento
psíquico.
Podemos dizer que nossa realidade é uma construção de significantes que se
remetem a outros significantes, identificações imaginárias e simbólicas, como
também de um lugar do sujeito enquanto sintoma que determina seu lugar no
mundo.
149
SIMONETTI, A. “Acontecimento de corpo”, p. 13, In: “Scilicet: os objetos a na experiência
psicanalítica, Associação Mundial de Psicanálise, Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria
150
Ibidem, p. 13
97
Mas, cabe também nesta realidade um ponto opaco que o sujeito neurótico nada
quer saber que é o lugar da perda, da insatisfação, contudo, é preciso a
insatisfação , para haver realidade, “é preciso perder para que haja realidade”151,
pois toda realidade carrega uma cicatriz, “cicatriz da perda”.
Mas, não esqueçamos que tudo isto iniciou pela fragilidade da imagem do outro,
a imagem virtual, trabalhado por Lacan no estádio do espelho152, um outro como
semelhante e refletido no espelho como sendo a imagem do sujeito.
Para que possamos entender o que Lacan diz sobre o outro (autre) e Outro
(Autre), pensemos que o primeiro, o outro/autre, escrito com a letra a minúscula,
qualifica nosso objeto, nosso semelhante. Já o Outro/Autre, com letra maiúscula
são imagens antropomórficas, em outras palavras a imagem que atribui a Deus
uma forma humana.
A invenção do objeto pequeno a em Lacan busca perguntar: Quem é esse diante
de mim? Quem é ele? Um estranho, uma imagem, uma voz, um olhar, um
cheiro...?
Um objeto que circulará no processo de uma análise, no momento que o
analisante, na cegueira do divã, sente-se incomodado com a presença estranha
do analista atrás dele, como uma voz, uma respiração, um Huhum!, um silêncio.
São por tantos caminhos já mencionados, que no seminário 20, mais, ainda,
depois de tantas voltas com os objetos a, Lacan diz que o analista faz-se de
semblante de objetos a, como sendo uma atitude essencial do analista a dar a
presença do estranho, diferente de assumir uma aparência, o semblante aplicado
pelo psicanalista vale por qualquer ideia, vale-se a partir de qualquer assunto,
desde uma obra de arte que o analisante queira falar, até seu bate-papo com o
padeiro na compra do francesinho matinal.
Não é fácil para o analista ser um vazio em si, para que o sujeito possa inscrever
suas questões, mas é o único caminho para uma análise, pois o analista amplia-
151
NASIO, J, D. (2012) “Psicossomática: as formações do objeto a”, p.25, Rio de Janeiro: Zahar
152
LACAN, J. (1972/2003). Outros escritos: Estadio do espelho... Rio de Janeiro: Zahar.
98
se a partir de seu próprio movimento inconsciente, na ausência de interpretações
conscientes.
Em uma análise os objetos a, possibilitam que algo de surpreendente aconteça,
como um acontecimento singular de um processo analítico.
Assim, o analista ao se colocar no lugar do semblante, possibilita que o a
compareça para ser interrogado como um saber inconsciente, ‘àquilo que só diz
a verdade’, este silenciar em si do analista (semblante), que promoverá um
interrogar aos ditos, de maneira a transformar o sintoma num significante que
abra caminhos para as visões do inconsciente.
Em “luto e melancolia”153 Freud se refere à um objeto perdido de que o sujeito
realiza o luto, Freud não utiliza a palavra ‘pessoa’, mas, ‘objeto’, ponto importante
que Lacan utiliza para falar do objeto pequeno a, de maneira que o sujeito busque
questionar e refletir “quem é este outro”, seu semelhante que promove sua
imagem de ser um objeto amado.
Assim, Freud inscreve que o sujeito faz o luto do objeto perdido, ‘a pessoa amada
e perdida’, um lugar que ficou vazio, que em outrora fora ocupado por uma
pessoa amada, “A pessoa amada não é uma imagem, a pessoa amada é um
corpo que prolonga seu corpo”.154
Esta pessoa amada também é representante da história do sujeito, esta pessoa
amada carregaria uma marca comum que o sujeito carrega vida afora, que marca
sua forma de amar e de gozar.
É em Psicologia das massas e análise do ego155, que Freud revela as formas de
identificações do sujeito com o objeto amado, são, traços de todos os objetos
que um dia amou e amará.
153
FREUD, S. (1915-2010) “Luto e Melancolia”, in: Introdução ao narcisismo, ensaios de
metapsicologia e outros escritos. São Paulo: Cia das letras.
NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p.94, Rio de Janeiro:
154
Zahar
155
FREUD, S. (1920-1923/2011) Psicologia das massas e análise do Eu e outros textos, São Paulo:
Cia das Letras.
99
“O sujeito é um traço comum dos objetos amados e perdidos no curso da vida”156,
foi exatamente isto que Lacan denominou como traço unário.
Assim o Outro amado, é para o sujeito, a imagem, o corpo, e um traço repetitivo
que ele amou.
A imagem é constituída pela dimensão imaginária de um outro como sua imagem,
o Outro como corpo fantasístico; o Outro como traços repetitivo de sua história,
resultado da dimensão simbólica; contudo, o Outro não revela sua essência, isto
é, não sabemos o por que deste Outro ser o eleito como objeto de amor; é neste
momento que o objeto a comparece pela dimensão do real.
Assim, quando Lacan refere-se a este Outro eleito como objeto de amor, diz de
um Outro fruto de uma construção imaginária, simbólica e real, sendo que é pela
fantasia e pelo gozo que seu corpo lhe pertence e lhe escapa.
Vale considerar, que o trabalho da psicanálise visaria as condições para que o
sujeito depare com o que está vindo de fora, como sendo um encontro com o
estranho nele mesmo, como a coisa mais esquisita do seu ser, um encontro com
o estranho, que é familiar ao mesmo tempo, presente em cada um de nós, que
Freud diz: “Ali onde estava Isso – o eu deve advir”157, um estranho que provocaria
o alívio do sintoma e uma possibilidade de cura de ter que ser ‘normal’.
Não é apenas a marca de – phi ( - 𝜑 ) na imagem que se funda o objeto a no
ensino lacaniano, há o enigma do desejo do Outro, com os significantes da
estrutura do inconsciente, revelando a energia subjacente à vida psíquica, ou
seja, é por uma causa que anima os desejos que constituem-se a impossibilidade
de um saber sobre os desejos do Outro, marcado pela letra a, o desejo como
causa e não como objeto.
É neste momento que poderemos elaborar a relação do a com o conjunto dos
significantes e com o significante do Um, por caminhos que opera a lógica do
inconsciente.
156
Ibidem, P.94
157
FREUD, S. (1920/2010). O inquietante. In: História de uma neurose infantil [“O homem dos
lobos”], Além do princípio do prazer e outros textos, p. 165, São Paulo: Cia das Letras.
100
Definiríamos formalmente que o objeto a é heterogêneo e não homogêneo à rede
de significantes como é o (S1 ), produzido por alguma coisa que excedente ao
conjunto de significantes.
Esse elemento que excede o conjunto de significantes é uma produção da
exterioridade do significante S1, um produto excedente do sistema de
significantes.
Desta maneira, o objeto a, excede o sistema do conjunto de significantes como
resíduo, pela sua heterogeneidade, e S1 excede o conjunto pela sua
homogeneidade, como um elemento de borda, visto que dará a consistência ao
conjunto de significantes.
Desta maneira o que ocorre são duas operações: o de S1 como elemento
externo e homogêneo a cadeia de significantes , e depois (a) como um produto
eliminado, produto residual e heterogêneo à cadeia de significantes, um resíduo
que movimentará a cadeia de significantes a partir de um dizer, a partir da
dimensão simbólica.
NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p.96, Rio de Janeiro:
158
Zahar
101
A insatisfação é fruto da cadeia de significantes, em que um significante remete
a outro significante e a outro, e nisto algo cai na irrepresentatividade, o objeto a
cai quando os significantes são encadeados e revelam o que afeta o corpo do
sujeito enquanto sintoma/significante e objeto/fantasia, para que desta forma o
sujeito possa se defender do real de seu corpo.
É importante que ressaltemos que a sucessão de significantes só acontecem
devido o Nome-do-Pai, em outros termos, só há consistência de encadeamento
de significantes na fala do sujeito quando existe um significante fora: “ou o objeto
cai quando um significante é remetido ao outro, ou o próprio objeto é a queda do
significante”159.
Outrossim, e quando há a falta do Nome-do-pai, logo a foraclusão, os
significantes não são remetidos a outros significantes, não havendo equivoco de
significantes, não há sintomas, sonhos e sim delírios e alucinações e afecções no
corpo, visto que em vez de um significante remeter a outro significante remeterá
ao gozo do corpo.
Isto ocorre no caso das psicoses e nas conversões neuróticas, no lugar do
significante remeter a outro significante, existe um acontecimento do corpo:
úlcera, psoríase, enxaquecas, desmaios..., fazendo o sujeito responder a uma
afecção, substituindo o apelo a um terceiro significante. Não existe o “ponto de
fuga” para um horizonte marcado pelo Nome-do-pai, não há destino, uma
realidade sem fronteira do eu e do outro, assim o sujeito torna-se sua afecção,
uma metáfora estagnada no corpo enquanto gozo.
O termo conversão em psicanálise diz respeito aos mecanismos relacionados
aos sintomas do corpo, que revelam os conflitos psíquicos em correspondências
aos desejos inconscientes nos quais o corpo é local de descarga, sendo assim a
conversão é uma maneira da energia libidinal conflitosa se manifestar.
Seguindo, o objeto a consagra o furo da estrutura do inconsciente, a partir da
pulsão que atrairá outros significantes, dando consistência à cadeia enquanto
borda, um objeto furo vivo, um mais-de-gozar, uma atração que anima o sistema
159
Ibidem, p. 27
102
causa de desejo, sendo que se movimentam por um fluxo de energia pulsional
no centro do oco, como também as bordas do furo inscrita no inconsciente.
O furo é uma abertura delimitada por um circulo, esta borda (circulo) se
movimenta quando há o movimento da fala, por caminhos marcados por energias
gozosas, que se animam abrindo e fechando o furo, localizado na estrutura do
inconsciente em que há enigma dos orifícios erógenos.
Assim, é a partir da borda que se movimenta pelo gozo, que mobilizam, e
produzem mais furos, que emerge o real, certo que na nossa vida psíquica só
existem furos gerados por tensões e movimentos do simbólico:
NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p. 65, Rio de Janeiro:
160
Zahar
161
Idem, p. 99
103
Os objetos perdidos de Freud: seio, fezes, e Lacan posteriormente a Freud, ao
desenvolver sua teoria do objeto a, acrescenta a voz e o olhar, foram
apresentados em Freud nos Três ensaios162, como objetos que o sujeito
“consome e perde”.
Lacan busca a partir dos objetos perdidos de Freud, uma segunda abordagem
para o objeto a, não sendo, apenas, objetos de gozo em si, mas objetos
destacáveis do corpo, neste contexto de objetos destacáveis do corpo circularão
as falas do sujeito, a partir das suas perdas irrecuperáveis que marcam um corpo
e que buscam uma linguagem na realidade repleta de furos.
E para falar das performances e as voltas dos objetos a, como elementos
destacáveis do corpo, que encontramos três condições de movimentos para a:
uma imaginária e duas simbólicas. As duas espécies de a que determinam a
dimensão imaginária são: seio e fezes, prolongamentos do corpo do sujeito
possíveis de serem ‘agarradas e soltadas’ do corpo.
A partir da dimensão simbólica de tais objetos: o seio e as fezes, são marcados
não, apenas, pelos prolongamentos do corpo, mas pelo o que separa do corpo,
sendo o seio ao desmame; e as fezes a defecação; relacionados diretamente com
orifícios erógenos que tensionam e soltam, a boca e o ânus, por bordas que
movimentam-se os significantes.
No tocante aos objetos parciais: voz e olhar são determinados apenas pela
dimensão simbólica, pois do ponto de vista do imaginário tais objetos são difíceis
de serem imaginados, neste panorama a dimensão simbólica possibilita que, a
partir de uma fenda que movimentam tais objetos, em que os olhos piscam e a
glote vibra dando origem a voz, os objetos estejam evanescentes a uma
simbolização:
162
FREUD, S. (1901-1905/2016). Três ensaios sobre a sexualidade. In: Obras completas: (Vol. VI).
São Paulo: Cia das Letras.
104
Figura 2: Dimensão imaginária e simbólica do objeto163
163
Ibidem, p.102
105
Figura 3: Circuito de uma dupla demanda164
O corte significante, diz dos desencontros entre demanda e objeto real, por
exemplo: a criança chora demandando alimento e a mãe o agasalha, isto nos
revela que o objeto real é transformado em uma abstração mental e alucinada,
devido aos desencontros entre as demandas ao Outro e do Outro. Esta seria a
marca do objeto a como objeto causa de desejo, deixando claro que o seio
desejado não é do corpo da mãe, mas, o seio psíquico que é produzido,
anunciado pela insatisfação do sujeito diante da demanda, sendo que o “seio
psíquico está diretamente ligado à relação da mãe com seu próprio corpo. O seio
do desejo da criança depende do desejo da mãe de dar o seio”165 .
NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p. 114, Rio de Janeiro:
164
Zahar
165
Ibidem, p. 104
166
LACAN, J. (1966/2003). Escritos: O falo e suas significações, p, 848, Rio de Janeiro: Zahar.
106
É o que nos revela a chave do Édipo, que não haveriam desejos incestuosos se
não houvessem desejos em cena, ou seja, o desejo da mãe e do filho, desejos
intensos e intoleráveis, deixando claro aos psicanalistas que o desejo que
interessaria a análise é o desejo do que foi produzido psiquicamente frente a
separação, e toda produção simbólica realizado a partir do corte significante que
levará o sujeito a fala.
Por isto que, podemos pensar em uma questão diante de analisantes que
apresentam fenômenos de adições: anorexia, bulimia, obesidade mórbida,
alcoolismo, consumo... e por ai afora, “você sente falta de quê?”, não seria o
objeto real, mas o objeto mental, produzido psiquicamente.
É o que ocorre, entre o seio, as fezes e a mãe, que interessa-nos como analistas,
o que convoca o objeto perdido, produzido psiquicamente, pois o desejo da
criança não é o mesmo da mãe, sendo que o objeto a, não é meramente um
objeto alucinado, mas, uma energia indefinível, um mais-gozar, um furo revestido
de semblantes de objeto, que cobrem um em-si intacto e recoberto por
semblantes.
Como pensar então, o objeto perdido, a quem pertence, a criança ou a mãe?
Não pertence a criança e nem a mãe, é o objeto a que cai entre-dois significantes,
na intersecção do Outro com o sujeito, uma não resposta chamada objeto a,
revestidos de “imagens semânticas relativas aos lugares erógenos do corpo: o
seio, o excremento, o olhar, a voz, pareceres de a, semblantes de ser”167, em que
a demanda é insatisfeita por não encontrar o objeto real, e o desejo por não
encontrar o objeto incestuoso, encontrando apenas, na fantasia sendo seus
substitutos:
167
Ibidem, p. 108
107
Figura 4: As três etapas da produção do objeto a168
168
Idem, p. 109
169
Idem, p. 305
108
Mas, para que as pulsões busquem nas fantasias inconscientes e nas
representações conscientes seus objetos de satisfações, haveria de ter ‘um’
objeto primeiro, ‘um’ unicamente, confirmado a partir de um objeto segundo,
fazendo que o objeto primeiro tornasse único a partir do dois, nisto, o dois
confirmaria um momento, um-único-momento, um momento lógico, fazendo do
objeto a um traço isolado pelo sujeito.
Este traço, marcado pelo sujeito poderia ter sido olhado, ouvido, experimentado,
retido ou eliminado, tanto faz cada um, um-a-um, marca seu bichinho de
estimação e leva à tira colo, começando tudo “de um golpe, o um e o sujeito [...]
um traço tomado, um traço isolado pelo sujeito” ., e em sequência outros
170
170
COTTES, F, G. “Traço unário”, In: “Scilicet: os objetos a na experiência psicanalítica,
Associação Mundial de Psicanálise, p. 340, Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria
109
traços sobre o corpo, caminhos que o sujeito busca de um momento
irrecuperável, pois foi comido, cagado, olhado e ouvido.
O objeto se foi, a coisa fugiu e desertou o sujeito deixando-o apenas com traços
sobre as bordas, a partir de um dito, na impossibilidade de um dizer da Coisa que
não foi dita ou foi mal-dita, deixando uma marca, uma cicatriz, um trauma no
corpo que faz-se coisa gozosa, agradável e desprazerosa.
É por isso que o sujeito neurótico apela em sua insatisfação histérica e na
impossibilidade obsessiva, por repetições de seus sintomas e pela estagnação
de uma imagem narcísica em que o sujeito paga um preço no imperativo do
goza!!!, dando ao sujeito um corpo que é amparado por bordas, pela verdade do
Outro absoluto e inacessível, sempre inacessível, que a fantasia busca modelar
na tirania dos sintomas.
171
Ibidem, p. 341
110
Para tanto, para refletirmos sobre o sintoma ancorado por suas fantasias, faz-se
importante ‘trocarmos em miúdos’ ou seria em objetos a?
Vamos utilizar do exemplo da anorexia, e de que maneira Lacan abordou tal
afecção. A anoréxica não quer este estado duplo (satisfação-insatisfação), logo
ela não visa a satisfação da necessidade (fome), e insatisfação do desejo, ela
mantem-se na insatisfação da necessidade e do desejo, “Ela quer que a
insatisfação esteja em toda parte”:
172
Ibidem, p. 107
111
“O desejo, certamente, é intolerável, mas protege o
sujeito contra a tendência, digamos, humana, que
habita em todos nós, de buscar o limite extremo, o
ponto de ruptura, a satisfação absoluta do incesto;
numa palavra, o gozo do Outro.”173
173
Ibidem, p. 110
112
A fala do analisante em cada análise se repetem em pontos constantes e
essenciais, que se tornam indícios para o reconhecimento das fantasias
inconscientes.
Pontos estes que iniciaremos em destacar, a partir das produções fantasísticas:
fantasias originais, produzidas em análise, e acima de tudo fantasias que
sustentam a própria transferência.
Ao focalizarmos nossos estudos em relação à fantasia, é preciso atentarmos
como esta se estrutura, assim, pensaremos no seguintes aspectos : a cena, os
personagens, poucos e repetitivos, a ação , afetos e emoções e a presença, na
cena, de uma parte do corpo.
A fantasia também é apresentada nos sonhos e devaneios, sempre a partir de
um ato que se repete, marcado por um verbo que está em relevância no campo
semântico, por exemplo, o verbo “sufocar”, que o analisante detalha
minuciosamente mas considera enigmático, pois se impõe a ele e se repete
independentemente de seu querer.
O verbo é situado como ação principal, que o analisante emprega em seu relato
e que designa a ação fantasística, como materialidade do significante que como
borda circunda e movimenta os orifícios erógenos, como também o traçado do
corte da dupla demanda.
Seguimos dando relevância ao afeto, a emoção ou tensão, o prazer ou a dor, que
estão vinculados aos personagens em relação ao sujeito.
É importante destacar que o sujeito é afetado pelo mais-gozar, como motor
inconsciente da ação fantasística, que se diferencia dos afetos vivenciados na
cena da fantasia, do prazer e da dor diante da fantasia.
Para entendermos esta diferenciação entre: mais-goza; afeto ou emoção; prazer
e dor; é preciso que seja demarcado o gozo inconsciente que movimenta a ação,
pois o gozo tem status de objeto a, ou seja, de objeto marcado no corpo como
objeto parcial, para considerarmos a lógica da fantasia que está localizada na
identificação do sujeito com o objeto.
A partir desta diferenciação podemos entrar na lógica da fantasia destacando
como uma estrutura de linguagem, na função inconsciente para um processo
analítico.
113
Então, retornemos os pontos importantes destacados acima que demarcam a
fantasia inconsciente, sendo estes: o sujeito, um objeto, um significante, e
imagens do eu.
A cada cenário fantasístico relatado pelo sujeito, podemos destacar sua posição
de objeto, por caminhos reflexivos em que o sujeito transita da atividade para
passividade (sadismo-masoquismo) e vice-versa, considerando que Lacan no
matema da fantasia, [ ◊ a], destaca a conjunção e disjunção do sujeito em
relação ao objeto, para que o analista possa observar sua posição de objeto do
gozo do Outro, como também, a perversidade contida na vivência do sujeito, uma
prática vergonhosa para ele e que busca manter em seus segredo mais íntimos.
Assim, a estrutura que se organiza a fantasia movimenta-se a partir da
identificação do sujeito transformado em objeto, “sou o objeto do desejo do
Outro”.
Para exemplificar utilizaremos o objeto olhar, que está sendo nosso ponto focal
de estudo, o sujeito não apenas olha, ele é transformado no olhar, como aquilo
que se torna estranho, um espectro a ser olhado pelo Outro, podendo revelar as
estranhezas do que lhe é mais intimo.
O sujeito se transforma pela sua fantasia, no objeto que ele perdeu, a partir do
corte significante olhar (verbo). Para exemplificarmos ainda, retornemos a figura
3, que Nasio174 apresenta-nos o circuito da dupla demanda, em que no primeiro
momento a demanda da criança à mãe é: “Estou com fome”, depois o segundo
momento a demanda da mãe: “Deixe-se alimentar, meu filho”, e o terceiro
momento a identificação em que o seio foi instituído como objeto do desejo, aqui
a fantasia está instituída a partir de um objeto alucinado ou fantasiado.
NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p. 114, Rio de Janeiro:
174
Zahar
114
alucinatórias de desejo”[...]. Freud rompeu com a falsa
intuição de relegar a psicose a um mundo à parte.
Essa bela expressão, ‘psicose do desejo”[...] Essas
produções psíquicas – fantasia, alucinação e sonho –
batizei-as de “formações do objeto a”175
NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p. 132, Rio de Janeiro:
175
Zahar
115
prazer, que está em direção ao objeto, logo, o gozo do Outro é a marcação do
significante no corpo do sujeito que promoverá sua identificação com objeto.
Para exemplificar o gozo do Outro, falaremos do voyeur que goza em espiar,
mas muito, mais ainda, em ser expiado, descoberto, desvelado e humilhado pelo
Outro, neste momento a fantasia perversa do neurótico coloca-o em relação ao
Outro como o maior idiota, humilhado, e ai seu corpo enche de tensão e ele goza
por ser rebaixado de maneira aviltante.
O neurótico fantasia o gozo do Outro, através de imagens de ser desvelado,
descoberto na sua perversidade mais intima, fantasiando a morte ou a felicidade
mais suprema.
O gozo-Outro é o gozo mais perigoso e implica o corpo inteiro e não uma parte
do corpo (seio, fezes...) e de significantes fálicos, é o gozo do suicida e do mítico
que busca com o corpo inteiro um encontro com Deus.
Para continuarmos às voltas do objeto a, iremos nos remeter ao grafo do desejo
construído por Lacan176, mais especificamente ao segundo andar do grafo do
desejo, a partir dos elementos estáveis do primeiro e segundo andar do grafo: A
(tesouro do significante); s(A) (significado-sintoma); m(moi-eu); i(a) (imagem);
I(A) (ideal do Eu); d (desejo); ($ ◊D) ( pulsão da demanda inconsciente); ($ ◊a)
(fantasma) e (significante da falta do Outro):
176
LACAN, J. (1956-1957/1995). O Seminário, Livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Zahar.
116
Figura 5: Segundo patamar do grafo do desejo
177
OLIVEIRA, S,M,L(2023)”Memórias entre uma poltrona e o divã”, p. 192, Bom Despacho:
Literatura em Cena
178
Idem, P. 201
117
A pulsão $ ◊D revela a dupla demanda e as operações lógicas possíveis em que
o sujeito realiza diante da demanda ao/do Outro no qual irá produzir sua
castração , como seu o gozo e seu desejo, como significante da falta do
Outro (gozo) e falta de um significante(desejo), a partir do enigma do desejo do
Outro, uma questão, “Che Vuoi?, que irá ocupar o sujeito em busca de um objeto
para tamponar a falta do Outro, significante da falta do Outro, “um significante
que poderia responder a falta ao/do Outro”179
É por uma operação psíquica diante do enigma do desejo do Outro que o sujeito
é barrado, logo, a existência da dimensão do real sobre o sujeito, objeto a,
representado pela fantasia, ($ ◊a), que estaria representando a dimensão do real,
para que a pulsão inconsciente se movimente a partir de uma demanda que dará
materialidade ao objeto a.
179
Idem
180
Ibidem, p. 202
118
A dimensão imaginária de e o Outro inaugura o objeto a sob formas de
imagens i(a) narcísicas e fantasísticas ($ ◊a), que põe o objeto a no jogo das
imagens. Assim, o se constituirá da mensagem inconsciente que revela ao
WACHSBERGER, H, “
181
”, In: “Scilicet: os objetos a na experiência psicanalítica, Associação
Mundial de Psicanálise, p. 304, Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria
119
que o Outro existe, para “lisonjear seu desejo para adormecer sua falta-a-
gozar”182.
182
Ibidem, p. 305
120
A HORA DA ESTRELA...Neste momento de nossa leitura, estamos
circulando do “meio” a caminho do final do livro de Lispector, e não é estranho
que o narrador, ainda, esteja circulando, as voltas, do vazio da nordestina, as
voltas de um a, um olhar, que convoca suas próprias estranhezas em relação ao
desejo do Outro, mas, que utiliza do outro, na suas semelhanças e
dessemelhanças, para conseguir falar daquilo que lhe é mais intimo, mais
perverso e mais inadequado.
121
“Maio, mês das borboletas noivas flutuando em
brancos véus. Sua exclamação talvez tivesse sido um
prenúncio do que ia acontecer no final da tarde desse
mesmo dia: no meio da chuva abundante encontrou
(explosão) a primeira espécie de namorado de sua
vida, o coração batendo como se ela tivesse englutido
um passarinho esvoaçante e preso. O rapaz e ela se
olharam por entre a chuva e se reconheceram como
dois nordestinos, bichos da mesma espécie que se
farejam. Ele a olhara enxugando o rosto molhado com
as mãos. E a moça, bastou-lhe vê-lo para torná-lo
imediatamente sua goiaba-com-queijo”183
183
LISPECTOR, C, (1977-1988) A hora da estrela, p. 51, Rio de Janeiro: Nova Fronteira
122
- “Olímpio de Jesus Moreira Chaves – mentiu
ele porque tinha como sobrenome apenas o de
Jesus, sobrenome dos que não têm pai, fora
criado por um padrasto que lhe ensinara o
modo fino de tratar pessoas para se aproveitar
delas e lhe ensinara como pegar mulheres.”
Macabéa, tentou esconder sua pouca compreensão diante de tantos nomes que
aquele rapaz carregara, mas fingiu desejo sem saber que tinha, e assim buscava
elaborar perguntas que pudesse dizer do desejo daquele rapaz de tantos nomes.
E muito cedo percebeu que não saberia mais se livrar daquele amor, pois estava
em “desespero de amor”.
Logo Macabéa descobriu que Olímpio trabalhava em uma metalúrgica como
operário, o que o definiria, segundo ele, como metalúrgico e não operário. E por
tais significantes, “metalúrgico e datilógrafa” que formavam uma “casal de
classe”, marcas fálicas que dariam a eles um representação de existir na
realidade do Outro, e na posse de tais semblantes conseguiriam falar um do outro
e circularem, no imaginário e simbólico, mascarando o real com maior segurança
na confirmação de um gozo do Outro.
Mas, foi a partir da revelação do desejo de Olímpio de ser deputado pelo Estado
da Paraíba que Macabéa ficou pensativa: “Quando nos casarmos então serei uma
deputada? Não queria, pois deputada parecia-lhe nome feio”.
E foi por tal constatação que Macabéa se deparou com a dupla demanda entre
ela e o rapaz, e que marcaria que o objeto do desejo de ambos se diferenciariam,
constatação que deixaria as vistas a impossibilidade de uma relação na
totalidade, pois gozavam de objetos diferentes, definindo a “Não relação sexual”,
a impossibilidade da relação de corpo inteiro.
E assim, seguiam o namoro falando de farinha, carne-de-sol, carne-seca,
rapadura e melado, objetos da infância de ambos e que provocavam condições
necessárias de prosseguirem com aquele namoro, um ato de dois inconscientes.
123
Ah! O amor, encontra na lógica da fantasia um objeto infantil, uma maneira de
fazer laços, fazer ato, fazer vida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
124
COTTES, F,J. (2008)“Traço Unário” In: “Scilicet: os objetos a na experiência
psicanalítica, Associação Mundial de Psicanálise, Rio de Janeiro: Contra Capa
Livraria
FREUD, S. (1901-1905/2016). Três ensaios sobre a sexualidade. In: Obras
completas: (Vol. VI). São Paulo: Cia das Letras.
125
LACAN, J. (1972/2003). Outros escritos: Estadio do espelho... Rio de Janeiro:
Zahar.
126
PARTE QUATRO – O inconsciente estruturado como uma linguagem
Iniciaremos a parte quatro deste livro levantando uma questão que durante muito
tempo, nos meus estudos em Lacan, ocupou-me como um enigma na
impossibilidade de uma resposta exata, por isto, levantarei aqui com vocês esta
mesma questão, para darmos inicio aos nossos estudos sobre o inconsciente
estruturado como uma linguagem:
Como é, que nasce o sujeito do inconsciente?
Vocês terão que segurar, um pouco, as vossas “piriquitas”184 pois precisamos
falar primeiro da inexistência da metalinguagem, para aceitarmos a ideia do
inconsciente como repetição significante.
Questionarmos a existência da metalinguagem significa constatarmos que não
existe uma linguagem-meta e uma linguagem-objeto, na medida de exigir que
uma linguagem se expresse de maneira conclusiva, fechada e universal, logo, de
uma linguagem-objeto, ela fracassará como função de linguagem.
Não conseguimos, nunca, fechar por completo o que desejamos falar, e nisto que
se funda o objetivo estrutural da linguagem.
Mas, por que tivemos a necessidade de falar da inexistência da metalinguagem
para falar do sujeito do inconsciente?
Não poderíamos falar do sujeito do inconsciente, sem antes percebermos que o
sujeito é afetado, constantemente, pelo seu inconsciente, ninguém se livra e se
cura do inconsciente, ele sempre encontrará um sintoma ou qualquer
acontecimento para poder ser escutado e se expressar.
O inconsciente tem um caráter ativo e vivo, com capacidade de alterar toda a fala
e realidade do sujeito, pois funciona como uma estrutura de linguagem, no qual,
um significante remete a outro significante e a partir disto modifica-se toda a
184
LACAN, J. (1972-1973/2008). O Seminário, Livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar. Neste
seminário há uma referência ao piriquito de Picasso (Lacan, 1972-73/2008, p.13), momento este
que Lacan enuncia a natureza dos semblantes.
127
cadeia de significante. É nisto que podemos afirmar a inexistência de uma
metalinguagem, visto que não existe uma linguagem completamente fechada,
sem que o sujeito do inconsciente subverta, pois toda linguagem está
diretamente exposta aos efeitos do inconsciente.
A psicanálise se ocupa do sujeito do inconsciente, que é as avessas do discurso
científico, este foraclui o sujeito em prol de um objeto conclusivo. Assim, a
psicanálise subverte o indivíduo como unidade egóica, com nome e corpo
totalitário, para dar lugar ao sujeito do inconsciente que se transforma pelo dizer
do dito.
Agora vocês poderão soltar as vossas “piriquitas” como expressão de um sujeito
que se transforma pelo ato da palavra, que a partir do nada, da dúvida, do
equivoco, da alteridade e castração, modifica os semblantes, na busca de um
estilo próprio de fala e de escrita, na intensão de bordear o real.
O sujeito do inconsciente questiona e mata o pai primitivo, para poder existir a
partir de um furo, do nada, um furo que ao mesmo tempo que dará consistência
a lógica dos conjuntos, também marcará o limite do imperativo do Outro a partir
de uma barra, de um corte, de um furo, digo de sua própria castração.
É pela castração que o sujeito se transforma, a partir de seus efeitos, a partir do
momento que remete Um significante, como lugar, para outro significante e
modifica-se todo o encadeamento da fala de um único dito.
Freud185, pensou o nascimento do sujeito sob a forma mítica da incorporação do
pai primitivo pelos filhos (identificação primária). Lacan propõe a concepção do
sujeito a partir da articulação lógica entre os conceitos de real, do furo e
significantes, engendramento que deu o nome de sujeito do inconsciente.
Lacan, propõe o nascimento do sujeito a partir de um processo lógico, a partir do
nada, de uma dúvida, de uma questão, e assim Lacan186 serve-se do conceito de
privação num sentido radicalmente novo, ou seja, serve-se deste conceito para
explicar o nascimento do sujeito do inconsciente a partir de três tempos edípicos.
185
FREUD, S. (1912-1914/2012). In Obras completas: Totem e Tabu. (Vol. XI). São Paulo:
Companhia das Letras.
186
LACAN, J. (1957-1958/1999). O Seminário, Livro 5: As formações do Inconsciente. Rio de
Janeiro: Zahar
128
Pois bem, para que surja o sujeito do inconsciente a partir da privação é
necessário que surja um buraco no real, pois o real é “aquilo ao qual nada pode
faltar, jamais 187, para que um ser surja do real é necessário que se cave um
buraco no real, que exista no real alguma coisa a menos, isto é, que o real seja
privado de algo, uma coisa a menos no real.
Todo pensamento lacaniano a respeito do surgimento do sujeito inconsciente
está intimamente relacionado a Um todo do qual se retira um elemento, sendo
que o real para Lacan são infinidades de coisas e seres homogêneos e vazios.
Contudo, o real não é sinônimo de vazio no sentido de oco, mas no sentido de
infinito, do lugar onde nada falta.
Sendo o real um lugar onde tudo é possível, o surgimento de um único (-1),
menos Um, caracteriza a positividade de um ser, mais Um (+1), o sujeito do
inconsciente:
187
LACAN, J. (1968-1969/2008). O Seminário, Livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro:
Zahar.
NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p. 65, Rio de Janeiro:
188
Zahar
129
É por Um -menos (-1), que se dará o nascimento do sujeito do inconsciente
(+1), um furo, que ao mesmos tempo, oferece consistência ao conjunto, e
demarca o limite como borda.
Em outras palavras, o sujeito do inconsciente surge como uma operação em que
Um elemento é retirado do real no sentido de infinitude, sendo assim, afetado por
uma falta, logo, o sujeito se ergue a partir de um obstáculo, de uma falta, uma
impossibilidade na infinitude do real.
Mas, como o analista, num processo analítico, identifica a fala de um sujeito do
inconsciente?
O sujeito do inconsciente revela-se num ato do analista, ao marcar o ato do
inconsciente, sendo que, a falta de Um significante que se revela em um ato que
surpreende e ultrapassa a intensão do analisante que fala, o sujeito do
inconsciente diz mais do que pretende dizer, e assim, se revela na sua própria
castração de dizer.
Mas, para que o ato inconsciente se manifeste é indispensável que um outro
sujeito do inconsciente escute e reconheça a importância do inconsciente, pois
o inconsciente busca ser escutado e reconhecido.
É na conjunção de dois atos inconscientes (do analista e do analisante), no setting
analítico, que o inconsciente se manifesta, não como um reservatório obscuro e
longínquo que busca ser interpretado, mas, o reconhecimento de dois sujeitos
inconscientes, que se entrelaçam diante de sua própria castração.
Dito isto, podemos pensar que o inconsciente é uma estrutura única, comum aos
parceiros analíticos, assim, constataremos a inexistência de dois inconscientes,
do analisante e do analista, mas apenas um único inconsciente produzido no seio
da transferência.
E Lacan afirma:
NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p. 52, Rio de Janeiro:
189
Zahar
130
A partir desta afirmação de Lacan utilizada por Nasio, podemos considerar que
não conhecemos o inconsciente como um saber, dito isto, declaramos que o
inconsciente não é tangível e apreensível como um saber, ele é inesperado, como
um sonho, um ato falho, um sintoma, como o pai, o Nome-do-Pai.
Mas, um nome isolado não faz cadeia e nem estrutura, é necessário que este
nome se repita e se inscreva como estrutura de linguagem, pois nomear não é
simplesmente um nome, é um ato que dará existência e consistência ao sujeito
do inconsciente, que se manifesta em estrutura de linguagem, por isto, o sujeito
é marcado por um nome, no qual ele responde quando é chamado pelo Outro
que o nomeou, como um código que se transforma em significação.
É preciso que enfatizemos que muitas vezes o processo de uma análise é
comprometida pela interpretação do analista que busca dar um sentido a um
acontecimento inconsciente formulando conceitos exatos, isto é lamentável, pois
o ato do inconsciente é um nome que não busca saber demais, mas,
surpreender-se e, a partir desta surpresa que modifica-se a cadeia de
significantes encadeados como uma estrutura.
Para que possamos dar seguimento ao nosso estudo sobre o inconsciente
estruturado como uma linguagem, faz-se imprescindível que deixemos claro a
distinção entre língua e linguagem.
É pelos efeitos da língua como linguagem falada, que a estrutura do inconsciente
movimenta-se e é exteriorizada, na fala inesperada do analisante.
Vamos entender isto melhor, já mencionamos que o repertório do inconsciente
se manifesta a partir de Um significante que pode ser expressa por um
acontecimento do corpo ou da palavra.
Estes acontecimentos, ou seja, as maneiras que o inconsciente utiliza para se
exteriorizar, são resultados dos efeitos produzidos pela língua, que expressa o
furo no real, revelando uma maneira particular de falar a língua materna.
131
Parafraseando Nasio190, Lacan criou um neologismo gráfico em que se solda o
Então, por que Lacan utiliza “d’ lingua” para construir seu aforismo: “O
inconsciente é estruturado como uma linguagem”?
Lacan elevou o inconsciente à categoria de linguagem, na perspectiva de uma
estrutura, cuja a unidade fosse o elemento significante, que fosse homogêneo
como conjunto e heterogêneo quanto realidade.
Assim, os significantes enodam-se entre si, a partir de um duplo movimento, de
substituição, (metáfora) e de ligação (metonímia).
A metáfora realiza o movimento de substituição, de maneira que o inconsciente
é exteriorizado sob a forma de Um significante marginalizado, que se movimenta
menos (-1) como falta e mais como excesso (+1), demarcando o lugar da
falta (desejo) e do excesso (gozo).
A metonímia é a ligação, a maneira de uma cadeia, que enlaça um significante ao
outro significante, delegando a um outro significante a marca do Um. Tais
movimentos, de substituição e ligação, proporcionam a estrutura a atualização,
de maneira ininterrupta.
O elemento menos (-1), marginalizado, coloca um buraco na cadeia de
significantes, e busca na borda o limite da estrutura, de maneira a dar mobilidade
NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p. 55, Rio de Janeiro:
190
Zahar
191
O na posição vertical é um arranjo da autora para dar relevância ao objeto a.
132
ao conjunto estruturado no inconsciente, a partir do buraco que permanecerá,
por ser uma estrutura de linguagem.
Assim, poderemos imaginar que os efeitos d’alingua no corpo, mantém o arranjo
de significantes que movimentam-se initerruptamente. Em outros termos, é pelo
furo no real, um buraco “onde nada falta”, que o corpo se manifesta como
192
FREUD, S. (1920/2010). “Além do principio do prazer”, in: História de uma neurose infantil [“O
homem dos lobos”], Além do principio do prazer e outros textos, São Paulo: Companhia das
Letras
133
abre-se o “passado das repetições para um futuro de repetições”, uma marca do
Um nos futuros sintomas, formando-se um conjunto comum.
NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p. 59, Rio de Janeiro:
193
Zahar
194
Ibidem, p. 59
134
atualizar como uma estrutura viva e em movimento. Em outras palavras, o
inconsciente funciona na ordem do Um, enquanto dito, e na ordem da estrutura
como conjunto de outros significantes, como dizer.
O inconsciente é inesperado no ato de fundar-se, um saber inapreensível, como
um nome, o Nome-do-Pai. Quando o pai funda o significante enquanto lei, esta é
fundada por repetição na estrutura, dando consistência e existência ao
significante do pai, e ao fazer isto dá-se existência à estrutura do inconsciente:
NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p. 61, Rio de Janeiro:
195
Zahar
135
Assim, poderemos afirmar que o inconsciente só funciona no ato de um dito, e a
estrutura se movimenta a partir deste ato, levando o inconsciente como uma
estrutura suposta a dizeres, atualizada pelo dito significante, logo, o inconsciente
é ao mesmo tempo dito e conjunto.
A trama inconsciente é compreendida a partir de um conjunto, em que é extraído
um elemento no seu interior, que reaparecerá como borda e como furo, então,
poderemos pensar o inconsciente sendo, como um conjunto menos (-1), furado
no interior, mas, limitado por um a mais (+1) como borda, que estará fora do
conjunto, assim, o Um ex-siste para que o conjunto exista.
Ao considerarmos o funcionamento do inconsciente, teremos que considerar a
existência de Um elemento único e exterior, que mantém o inconsciente numa
estrutura viva de linguagem: “o conjunto se organiza como uma trama ligada, na
qual falta um fio (furo), aquele que agora se converteu em borda”196, e nisto, o
inconsciente existe como ato de existência.
Assim, o sujeito do inconsciente é efeito de uma cadeia em funcionamento que
movimenta sob Um furo para fazer borda a partir da dialética de pares:
Metáfora/Metonímia; Um/Cadeia; Limite/Infinito; Dito/Dizeres; Recalcado/Retorno
do recalcado; S1 /S2; Ato/Iconsciente, visto que, é uma operação no seio da lógica
do inconsciente.
Com estas notações de pares, observamos a lógica do Um e do conjunto, onde
o Um é constituído, no manejo do analista, uma marca que levará o analisante à
palavra no trânsito do mais simples ao mais complexo.
Assim, podemos dizer que a linguagem é a condição própria para o inconsciente
“existir”, pois para o ser humano, que busca no significante metafórico a
presença do Outro, encontra o inconsciente, que o sujeito questiona “o que você
quer com isso?”, de modo que o Eu só possa demandar a oferta do Outro, assim,
o Eu é incorporado no discurso ou verdade do Outro.
Lacan, na “Introdução à edição alemã dos Escritos”197, diz que em uma análise a
fala transferencial faz com que o analista complete o sintoma do analisante, em
196
Ibidem
197
LACAN, J. (1972/2003). Outros escritos, p.555. Rio de Janeiro: Zahar.
136
outros termos, o analista faz-se destinatário do significante metafórico em que o
sujeito sustenta o discurso do Outro.
“Um canalha é o sujeito, diz Lacan, que quer fazer o Outro para alguém ou para
outrem [...]. o Outro com seu discurso tem antecedência e a precedência na
comunicação de fala, e, mais ainda, na constituição do sujeito”198
É o Outro que determina o que o sujeito fala ou quer, fazendo uso de semblantes
de saberes sobre o sujeito, e é nisto que a psicanálise busca marcar na fala do
sujeito do inconsciente, sob o nome de transferência, para que o sujeito possa
ver-se nesta condição de dominado pela verdade do Outro e saber-fazer com
isto, logo, um saber-fazer com seu desejo.
Para Freud o inconsciente diz: “a verdade da Coisa”, uma verdade recalcada e
que retorna como um “retorno do recalcado”, o qual o sujeito se defende. Assim,
o inconsciente, em suspenso enquanto verdade, enquanto demanda pulsional,
aguarda um acontecimento para revelar-se, logo, um olhar, uma voz, um toque,
uma emoção, um afeto.
O inconsciente desliza-se em uma dança, em que a fala é a música que embala
os parceiros: Um/Outro, Metáfora/Metonímia..., que rodam entre enunciado e
enunciação, e é por tais caminhos que acontece um processo de análise, sem
garantias de verdades absolutas, pois o sujeito é barrado, ($) diante o desejo do
Outro, , um Outro que é inconsistente diante de seu próprio enunciado, é nisto
que “os enunciados são de fingimento, a enunciação é demanda”199.
A escuta de um analista se acomoda, sempre, para uma mais além dos
enunciados, a partir de um significante metafórico, que emerge um ponto cego,
que pela marcação do analista, revela-se para uma estrutura metonímica da
linguagem.
Neste contexto, podemos pensar no sintoma que o sujeito apresenta no início de
uma análise, como um saber que lhe pertence, e dele descreve
minunciosamente, pois é logos, mas, que pouco revela sua dor constitutiva, mas,
que o sujeito se apega numa tentativa de falar daquilo que nada sabe.
198
SOLLER, C. (2020) O inconsciente: o que é isso, In: Coleção Ato Psicanalítico, p. 31, São
Paulo: Zagodoni
199
Ibidem, p. 36
137
Contudo, este sintoma como logos é uma prática de difícil associação livre, pois
comporta um saber instalado a partir de uma “verdade mentirosa” sobre o
sujeito, no qual a pulsão encontra para satisfazer-se, mas, pouco diz sobre os
desejos inconscientes.
O analista encontra a partir de um texto falado, um além do que se encontra no
sintoma como logos, isto é, além daquilo que o sujeito diz, encontrará aquilo que
está latente na fala e que propicia que o inconsciente circule como uma estrutura
de linguagem, que emerge do “que se diga”200, um sintoma analítico possível de
análise e de associações livres, assim, “o que quer que se diga” é atualizado, “hic
et nunc”, em outros termos, a linguagem é atualizada a partir de um dizer.
Então, a partir do que foi abordado até aqui, poderemos levantar um questão
primordial a ser considerado na práxis clínica. O que o analista escuta?
Escuta as significações que se fundam nas praticas e preconceitos da cultura e
do social.
Mas, foi Freud que inseriu uma escuta “flutuante”, para que o analista pudesse
se desprender ou se “distrair” das significações do discurso.
Assim Lacan segue com sua máxima “Não tenho que compreender”, é por tal
caminho que Lacan não quis dar ênfase as significações do discurso, em outras
palavras, há uma prevalência, no ensino lacaniano, do encadeamento da cadeia
de significantes, vamos ver isto na citação de Soller:
200
LACAN, J. (1973/2003). Aturdito, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar.
138
S1. Na linearidade da fala, esse S2 designa o
significante segundo, mais geralmente os sucessores
de S1”201
𝑆1 → 𝑆2
𝑆𝑖𝑔𝑛𝑖𝑓𝑖𝑐𝑎çã𝑜
SOLLER, C. (2020) O inconsciente: o que é isso, In: Coleção Ato Psicanalítico, p. 42, São
201
Paulo: Zagodoni
202
LACAN, J. (1957/2003). A instância da letra, In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar.
203
LACAN, J. (1958/2003). A direção do tratamento e os princípios de seu poder, In: Escritos. Rio
de Janeiro: Zahar.
139
está sendo falado pelo analisante, pois entender não há compromisso com
compreender, fechando-se em significação e conclusão:
!"#$"%"&'$() *+45ó7+/2
=
*+,-+.+/012 +40,+-á9+2
SOLLER, C. (2020) O inconsciente: o que é isso, In: Coleção Ato Psicanalítico, p. 32, São
204
Paulo: Zagodoni
140
É pela equivocação da fala como estrutura de linguagem que os elementos são
substituído, ou seja, o gozo S( ) pelo desejo (d), que encontra um entender/fazer
com a linguagem, pois o inconsciente manifesta-se pelos rateios, fracassos do
discurso do Outro, que se manifesta por gerações e repetições.
O inconsciente insiste com seu desejo através das repetições, naquilo que é
demandado nele diz Lacan205. Em Freud o desejo é sexual e recalcado, em
Lacan206, o desejo é singular ao sujeito, e que difere-se na transitoriedade dos
desejos como pluralidade, marcado pela competição imaginária diante dos
semelhantes.
O que marca o desejo é sua estrutura de infinidade, impossível de satisfazer-se
diante de um objeto único a pulsão, na qual Lacan marca o surgimento do sujeito
e que Freud chamou de desejo inconsciente, em outros termos, o desejo é
resultado do surgimento do sujeito que subverte a verdade do Outro, logo é
desejante.
A demanda é verbo que demanda algo da necessidade e do desamparo humano,
e devido a tal desamparo que o sujeito encontra uma maneira de existir fazendo
uso do significantes do Outro num percurso em que encontra significantes da
oralidade, analidade, em que a demanda enlaça o simbólico e também o real do
corpo, logo, da insuficiência simbólica, ou seja, um real que transborda o
simbólico.
O sujeito encontra no real um falta a ser, marcados por perdas e desamparos,
assim, “as necessidades passaram ao registro do desejo”207, é por assim que a
necessidade torna-se, “na medida em que sua realidade se oblitera tornando-se
símbolo de uma satisfação de amor”, onde o sujeito não encontra nada, e busca
205
LACAN, J. (1974/2003). Outros escritos, P. 513. Rio de Janeiro: Zahar
206
LACAN,J.(1964/2008). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise,
pp. 141-142, Rio de Janeiro: Zahar.
207
LACAN, (1960/1998), ESCRITOS, P. 821 in: SOLLER, C. (2020) O inconsciente: o que é isso,
In: Coleção Ato Psicanalítico, p.51, São Paulo: Zagodoni
141
no gozo a exigência da presença do Outro, ou seja de seu amor eterno via
movimento da pulsão.
SOLLER, C. (2020) O inconsciente: o que é isso, In: Coleção Ato Psicanalítico, p.52, São Paulo:
208
Zagodoni
142
A HORA DA ESTRELA...Chegamos no final da história de Macabéa, um final
não muito esperado considerando a lógica do romantismo inconsciente, onde há
a prevalência de uma verdade absoluta em que o objeto sempre será
insatisfatório ao corpo d’a mulher.
Neste romance de Clarice Lispector209, Macabéa não apenas me representa
enquanto mulher, mas, “a”(s) mulheres que buscam em significantes fálicos um
lugar para existir e encontram a feminilidade denunciando a insuficiência do
simbólico, logo, dos semblantes construídos pela cultura e seus ideais.
Mas, vamos trocar em “miúdos” ou seria em pequenos objetos a, a história de
Macabéa, para falarmos da lógica do inconsciente trazido de uma maneira
impecável por Lispector.
A nossa estrela Macabéa, foi aconselhada a ir em uma cartomante, para que ela
pudesse saber se tinha ou não um futuro, já que considerava sua vida “insossa”
diante da vida dos poucos que ela conhecia e que considerava ter vida:
209
LISPECTOR, C, (1977-1988) A hora da estrela, Rio de Janeiro: Nova Fronteira
210
Idem, p. 82
211
Idem
143
Macabéa assustada com tanta manifestação de carinho porque “faltava-lhe
antecedentes de tanto carinho”, percebia o luxo que o ambiente lhe oferecia,
“bebendo um pouco da sua frágil vida” até que seu momento de consultar sua
fortuna chegasse e anunciasse seu futuro.
Madama tece sua história de vida, antes mesmo de se colocar na posição de
testemunhar o futuro de Macabéa, dizendo que levava “vida fácil de mulheres”,
mas que Jesus havia lhe salvado, pois “já não valia muito no mercado” e resolveu
abrir uma casa para “mulher de vida fácil”, sendo a maneira que encontrou de
ganhar muito dinheiro, e aconselha Macabéa: “seja também fã de Jesus porque
ele o salvará”, pois a verdade do pai é suprema, e ele se ocupará de seu futuro
eterno.
Mas, se confunde entre o eterno e a carne:
E neste momento que Macabéa pensa no quanto sua vida é ruim sem ter sido
acolhida e experimentado o corpo de um homem, e fica atordoada com o quanto
madama acertará:
212
Ibidem, p.86
144
não me pague a consulta, sou madama de
recursos”213
Mas, Madama tinha muita intimidade com o divino, estando disposta a oferecer
um “futuro” a Macabéa, pois esta estava vazia de presente como de futuro, e
assim começa a revelar as boas notícias divinas, onde não há miséria, escassez,
nem infelicidades, e Macabéa absorve cada significantes que Madama lhe oferta,
significantes do Outro, como “ouvisse uma trombeta vinda dos céus”, ou seria
do imaginário envelopados por engodos narcísicos ?. Então, vamos ver para crer:
213
Ibidem 87
214
LACAN, J. (1969-1970/1992). O Seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise. p. 135, Rio de
Janeiro: Zahar, In: Oliveira, p. 25.
215
Ibidem, p.87
145
“Madama tinha razão: Jesus enfim prestava
atenção nela. [...] Você conhece algum
estrangeiro?
-Não senhora.
-Pois vai conhecer. Ele é alourado e tem olhos
azuis ou verdes ou castanhos ou preto, [...] este
estrangeiro parece chamar Hans, e é ele quem
vai se casar com você!”216
216
Idem, p.88
217
Idem, p.88
146
“Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber
se atravessaria a rua pois sua vida já estava
mudada. E mudada por palavras – desde
Moisés se sabe que a palavra é divina.
[...] Sentia em si uma esperança tão violenta
como jamais sentira tamanho desespero. Se
ela não era mais ela mesma, isso significava
uma perda que valia por um ganho. Assim
como havia sentença de morte, a cartomante
lhe decretara sentença de vida.”218
Mas, a vida prega suas peças, ou seria furos no real?, em que aquilo que
Macabéa chama de felicidade, isto é, tudo revelada, completo, sem nada a
desvelar, a vida naquilo que tensiona, tensiona e solta, mostrou que as perdas
valem mais como ganho, digo, a dúvida é ganho para o sujeito.
Então, ao dar um passo decidida a atravessar a rua um “enorme transatlântico o
Mercedes amarelo pegou-a – e neste instante em algum único lugar do mundo
um cavalo como resposta empinou-se em gargalhadas de relinchos.”219
“O carro de grande luxo” atirou Macabéa no chão, e um corpo de mulher estava
estendido no chão e com a cabeça sangrando, que cena cotidiana!!!, um corpo
de mulher não suporta tantos significantes oferecidos pelo dito do Outro, no caso,
da Madama cartomante, suas cartas ofereceram um destino cruel pois matara o
sujeito que duvida da verdade do Outro, e morre.
Macabéa morreu como sujeito e seu corpo se estrebuchou-se no chão sujo,
onde a única coisa que ela visualizou foi a erva daninha, também vista na entrada
da casa da Madama Carlota, que Macabéa considerou coisinhas insignificantes.
O narrador desistiu de Macabéa e a matou finalizando sua estória?
Talvez, porque não se faz história sem sujeito que subverta a verdade do Outro,
sem dúvida não há história e a palavra perde seu valor como estrutura de
linguagem.
218
Ibidem, p. 90
219
Idem, p.90
147
Na busca de ser “uma” mulher e morrer para as “coisinhas insignificantes”,
Macabéa encontrou “a” mulher, devastada e sem garantias fálicas (explosão)...,
por não suportar excesso de felicidade.
148
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, S. (1912-1914/2012). In Obras completas: Totem e Tabu. (Vol. XI). São Paulo:
Companhia das Letras.
FREUD, S. (1920/2010). “Além do principio do prazer”, in: História de uma neurose infantil [“O
homem dos lobos”], Além do principio do prazer e outros textos, São Paulo: Companhia das
Letras
LACAN, J. (1958/1998). A direção do tratamento e os princípios de seu poder, In: Escritos. Rio
de Janeiro: Zahar.
LACAN, (1960/1998), ESCRITOS, P. 821 in: SOLLER, C. (2020) O inconsciente: o que é isso, In:
Coleção Ato Psicanalítico, p.51, São Paulo: Zagodoni
NASIO, J, D. (1993) “Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan”, p. 65, Rio de Janeiro:
Zahar
SOLLER, C. (2020) O inconsciente: o que é isso, In: Coleção Ato Psicanalítico, p. 31, São
Paulo: Zagodoni
149
EPÍLOGO
Chegar ao final de um livro sempre é uma sensação estranha para mim, como se
não tivesse mais o que questionar, e isto faz como que o vazio se movimente em
um mais-de-gozar, e é esta força psíquica que questiono, pois não quero parar
de produzir questões que me levam ao encontro daquilo que é mais estranho em
mim, o inconsciente.
Falar do objeto pequeno a, no ensino de Lacan não foi um trabalho muito fácil,
confesso, muitas vezes parava de escrever e ficava diante da minha própria
cegueira, ai buscava uma outra leitura para dar uma consistência ao simbólico
que insistia em esvaziar diante da complexidade que esta temática anuncia no
ensino lacaniano.
Isto porque, falar dos objetos parciais (oral e anal) em Freud é dar sentido a uma
realidade psíquica, por caminhos que demandam um objeto para o gozo
fantasístico.
Contudo, atrever-me a discorrer, de uma maneira entendível, sobre os objetos
do desejo (olhar, voz) é ir pelos labirintos da nossa própria tragédia humana:
Como amar e ser amado por um objeto da qual nada se sabe? Um objeto que
tem estrutura de ficção, isto, me leva, algumas vezes, a uma certa descrença no
amor que insiste em operar sob os registros do imaginário e do simbólico e nada
quer saber sobre o registro do real.
Mas, para eu não cair no desalento da impossibilidade do amor como é da relação
sexual, recorro ao amor de transferência que compreendi na minha análise
pessoal, onde percebo que existe “Um” lugar lógico, “Um” lugar do significante
primeiro, que revisito quando me sinto em total desamparo.
Este lugar, que repito principalmente em análise, traz a possibilidade de eu estar
sempre dialogando com meu euzinho, que busca nas suas imagens uma forma
única de existir.
É como se eu tivesse que estar avisando a mim que em um mesmo corpo
existem emoções, afetos, e sensações extremamente contraditórios, logo, numa
150
mesma pessoa habita o bom e o mal, o belo e o feio, o visível e o invisível, para
que assim, eu possa ser mais generosa com as minhas próprias contingências.
Gostei de ter chegado até aqui na companhia de Macabéa com suas “coisinhas
insignificantes”, mas, deixo evidente a dor que senti quando ela acreditou na
verdade da Madama Carlota, fiquei parada, perplexa, no tiro que ela deu em seu
próprio pé ao se tornar convicta de possuir uma verdade sobre seu futuro a ponto
de confiar que um homem com nome de rato (Hans) pudesse dar-lhe uma pele
dourada.
Ah!!! Como senti tristeza neste momento por ela, por mim, e por você, pois
também, mesmo sem uma Madama Carlota, acreditei que ser esposa, mãe,
analista, “Toda”, pudesse me salvar de ser mulher, e conviver com meus próprios
pesadelos de não ter garantias de absolutamente nada, nadinha de nada.
E foi assim, que o narrador sob as penas de Lispector viu que mais nada podia
escrever, pois nada se escreve sobre o grande Outro, por nada lhe faltar, este é
o lugar inacessível da fala como da escrita, se há escrita ou fala há sujeito, um
sujeitinho cheio de “esquisitices”.
Macabéa apresentou-nos que o menos é mais, caminhos que nos traz uma
possibilidade de subjetividade onde o sujeito é castrado, mas, atuante por
caminhos perigosos da fala, com relevância de suas próprias insuficiências diante
do Outro que, segundo, Lacan nem existe fora da nossas próprias fantasias
infantilizadas.
Neste momento me sinto vazia, vazia de mim, “oca” de mim, não tenho
consistência imaginária para continuar escrevendo, ponto de nodamento,
momento de parar e ficar em silêncio para fazer com que a pulsão inconsciente
possa me impulsionar diante do perigo de nada desejar e permanecer com a
bunda nesta poltrona e um olhar vagando nos labirintos da minha própria
escuridão.
Esta noite, após ter finalizado este livro imaginei ter encontrado um sentimento
reconfortante de ter “cumprido” um propósito de escrever sobre o olhar e isto
me levaria a um lugar mais tranquilo, mais um engano do meu imaginário, pois
nada disto aconteceu, e isto se revelou no sonho desta noite “tranquila”.
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Sonhei que estava andando em uma estrada com minha bike, coisas que fiz
durante uma boa parte de minha vida, o ciclismo nas estradas, mas, no sonho
não era uma estrada nada fácil, esta era uma pista que iniciava em cima de uma
montanha, na qual estava no topo, a pista era lisinha ótima para a minha bike
magrela speed com pneus de aro 700c e diâmetro de 29”, para quem não sabe
são aqueles pneus com espessuras finas indicado para estradas.
Eu sempre fui acostumada a pedalar nas estradas, mas esta me apavorou pois
sabia se eu me atrevesse a descer eu iria morrer, a velocidade seria maior do
que a aderência dos pneus na estrada, eu sabia no sonho que iria morrer, e
vacilei, e parei ali atônica e chorei, mas eu não podia ficar ali pois iria também
morrer pois os carros que ali passavam estavam em altíssima velocidade, e se eu
ficasse seria atropelada. Então, sabia que poderia morrer de qualquer forma,
parada ou me arriscando, mas, tive dúvidas, e pensei que não aceitaria morrer
ali parada, tinha medo de me arriscar e descer em um lugar que nunca havia
descido, e nem soube como fui parar ali, que loucura, que estrada, que escolha
era esta, decidir que maneira iria morrer?
Pensei no meu corpo, que iria no mínimo ficar totalmente deformado se eu
sobrevivesse, o que poderia fazer com um corpo deformado, logo pensei: en-
forme seus restos.
Eu desci...explosão, silêncio, morte ou vida?
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