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A Perspectiva Antropológica do Papa Bento XVI

Dom Filippo Santoro

Um jornalista da televisão alemã, depois do V Encontro Mundial das Famílias na


Espanha, em Valença, em 2006, perguntou a Bento XVI porque nas suas homilias não
fez nenhuma referência crítica ao Governo Sapateiro por suas providencias no campo da
família e da moral sexual. O Papa respondeu: “Antes de tudo, devo dizer que eu
dispunha, ao todo, nas duas vezes em que me pronunciei, de apenas 20 minutos de
tempo para falar. E se alguém dispõe de tão pouco tempo, não pode começar dizendo
"Não!". É preciso estabelecer, primeiramente, o que efetivamente queremos, não é
mesmo? O Cristianismo, o Catolicismo não é um conjunto de proibições, mas uma
opção positiva. E é muito importante que evidenciemos isso novamente, porque essa
consciência, hoje, desapareceu quase completamente. Tem-se ouvido falar tanto sobre o
que não é permitido, que agora é preciso dizer: "Mas nós temos uma idéia positiva a
propor: o homem e a mulher foram feitos um para o outro e existe uma escala -
sexualidade, eros e agape, que são as dimensões do amor, e assim se forma, antes o
matrimônio como encontro repleto de felicidade, entre o homem e a mulher, e depois, a
família, que garante a continuidade entre as gerações, onde se realiza a reconciliação
das gerações, e onde as culturas também se podem encontrar. Antes de tudo, portanto, é
importante colocar em relevo aquilo que queremos [1]”. A antropologia de Papa
Ratzinger leva em conta a unidade integral do homem, é eminentemente positiva e
diante dos desafios do mundo moderno e contemporâneo valoriza plenamente a
condição humana. O Papa considera a pessoa humana como unidade de corpo e alma,
de homem e mulher, de individualidade e comunidade, em continuo dinamismo. O
homem é um peregrino, tem uma longa jornada a fazer, caracterizado pelo drama da
liberdade. A perspectiva do Papa é um convite à cultura atual a dilatar a razão, dilatar o
amor e a esperança.

A cultura tecnológica e a dilatação da razão

No seu discurso aos catedráticos na universidade de Regensburg, onde fora


professor, o papa Bento, os convidava a superar o ceticismo e o relativismo presentes na
cultura ocidental “ampliando o uso a razão”. O Papa afirmava: “No mundo ocidental, é
largamente dominante a opinião de que são universais apenas a razão positivista e as
formas de filosofia dela derivadas. Mas, as culturas profundamente religiosas do mundo
vêem, precisamente nesta exclusão do divino da universalidade da razão, um ataque às
suas convicções mais íntimas. Uma razão, que diante do divino é surda e repele a
religião para o âmbito das subculturas, é incapaz de inserir-se no diálogo das culturas
[2]”. E indicava a perspectiva por meio de um renovado diálogo entre fé e ciência:
“Desde há muito tempo que o Ocidente vive ameaçado por esta aversão contra as
questões fundamentais da sua razão, mas o único resultado seria sofrer um grande dano.
A coragem de abrir-se à vastidão da razão, e não a rejeição da sua grandeza – tal é o
programa pelo qual uma teologia comprometida na reflexão sobre a fé bíblica entra no
debate do tempo atual”.
No mundo atual, considera-se como forma suprema, a cultura tecnológica que
responde à pergunta sobre o “como” as coisas funcionam sem poder explicar o “porque”
elas existem e funcionam. Enquanto o aspecto científico é muito desenvolvido o aspecto
puramente filosófico da busca da verdade é deixado de lado e sobre as questões mais
importantes da vida domina um profundo ceticismo. O método científico matemático,
plenamente legítimo no seu campo, não pode responder à questão do significado, dos
sentimentos, dos afetos, do destino, relegadas no máximo na esfera da emoção e do
privado subjetivo.
Bento XVI afirma que, com esta crítica, não quer absolutamente negar o valor da
ciência: “Esta tentativa, feita apenas em linhas gerais, de crítica da razão moderna a
partir do seu interior não inclui de forma alguma a opinião de que agora se deva voltar
atrás, para antes do iluminismo, rejeitando as convicções da Idade Moderna. Tudo o que
é válido no desenvolvimento moderno do espírito, há de ser reconhecido sem reservas:
todos nos sentimos agradecidos pelas grandiosas possibilidades que isso abriu ao
homem e pelos progressos que nos foram proporcionados no campo humano”.
O que o papa propõe é: “Um alargamento do nosso conceito de razão e do seu
uso. Porque, juntamente com toda a alegria face às possibilidades do homem, vemos
também as ameaças que resultam destas mesmas possibilidades e devemos perguntar-
nos como poderemos dominá-las. Consegui-lo-emos apenas se razão e fé voltarem a
estar unidas duma forma nova; se superarmos a limitação autodecretada da razão ao que
é verificável na experiência, e lhe abrirmos de novo toda a sua amplitude”. E Bento XVI
indica o caminho para a razão científica de abrir-se à escuta das grandes tradições
religiosas sobre as questões fundamentais da existência humana. “Para a filosofia e, de
maneira diferente, para a teologia, a escuta das grandes experiências e convicções das
tradições religiosas da humanidade, especialmente da fé cristã, constitui uma fonte de
conhecimento; recusá-la significaria uma inaceitável redução do nosso escutar e
responder”.
Em 22 de dezembro de 2006, falando à Cúria Romana, o Papa afirmava: “Trata-
se da atitude que a comunidade dos fiéis deve assumir face às convicções e às
exigências que se afirmaram no iluminismo. Por um lado, devemos contrapor-nos a uma
ditadura da razão positivista que exclui Deus da vida da comunidade e das organizações
públicas, privando assim o homem dos seus específicos critérios de medida. Por outro
lado, é necessário aceitar as verdadeiras conquistas do iluminismo, os direitos do
homem e especialmente a liberdade da fé e da sua prática, reconhecendo neles
elementos fundamentais também para a autenticidade da razão”. Neste dinamismo que
se abre às questões fundamentais e à escuta das grandes experiências religiosas a razão
não é mortificada , mas resulta ampliada na sua verdadeira natureza.

A verdade e o amor

A atenção à verdade e à razão em Bento XVI está intimamente ligada ao tema do


amor que constituiu o conteúdo da sua primeira encíclica “Deus Caritas est”. Na homilia
na Catedral de Regensburg, a 12 de setembro de 2006, o Santo Padre havia dito: “O
ágape, o amor, é autenticamente a síntese da Lei e dos Profetas. Nele tudo está
envolvido; todavia, é um tudo que na vida quotidiana deve ser desenvolvido sempre de
novo”.
Na homilia da missa inaugural da V Conferência de Aparecida, a 13 de maio
deste ano, na Esplanada do Santuário de Nossa Senhora Aparecida, o Papa Bento XVI
afirmou: “É o amor que dá a vida, por isso a Igreja é convidada a difundir no mundo a
caridade de Cristo, para que os homens e os povos tenham vida e a tenham em
abundância. A Igreja deve ser discípula e missionária deste amor. Enquanto discípula é
capaz de deixar-se sempre atrair com renovado desejo por Deus que nos amou e nos
ama primeiro”.
O anúncio da Igreja comporta uma cultura feita de uma razão ampliada, mas,
sobretudo, feita de amor. A encíclica “Deus Caritas Est” apresenta a cultura do dom de
si e da gratuidade colocando no mundo do cálculo e do mercado um elemento novo: o
dom de si comovido e gratuito. Dilatar o amor por meio da gratuidade e o dom de si,
além de qualquer cálculo. A fé no Senhor ressuscitado oferece ao mundo de hoje esta
contribuição substancial que desde o início caracterizou a vida da Igreja católica por
meio de obras que atualizavam o amor de Cristo para com os sofredores, os pobres, os
abandonados.
Ganha assim pleno valor a “opção preferencial pelos pobres” que Bento XVI
identifica na sua raiz como “implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre
por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza (cf. 2Cor 8,9)” [3]. Texto amplamente
retomado na Conferência de Aparecida.
Viver esta experiência é possível porque alguém nos amou primeiro, e
determinou na nossa vida um coração novo, um horizonte novo, uma esperança nova.
Cristo ilumina e enriquece a experiência humana. Sendo discípula do Senhor e fixando a
presença de Cristo, bom samaritano, a Igreja se torna Samaritana dos nossos tempos,
edificando uma cultura da gratuidade e do ágape. “Viver o amor e, deste modo, fazer
entrar a luz de Deus no mundo: tal é o convite que vos queria deixar com a presente
Encíclica”(DCE 39).

Dilatar a esperança

A segunda Encíclica do Santo Padre Bento XVI amplia os elementos


antropológicos de sua mensagem com a proposta de “dilatar a esperança”. Com a a Spes
Salvi o papa afirma que (junto com a dilatação da razão é necessário dilatar a esperança)
a época moderna pensou realizar a liberdade humana, o Regnum hominis emancipando
o homem de qualquer condicionamento por meio da ciência e da técnica e depois por
meio de uma política que ia realizar um estágio final de perfeição. È esta a ideologia do
progresso que reduzido a puro progresso material leva a uma “destruição desoladora”
(SpS 21). “ Se ao progresso técnico não corresponde um progresso na formação ética do
homem, no crescimento do homem interior (cf. Ef 3,16; 2Cor 4, 16) então não é um
progresso, mas uma ameaça para o homem e para o mundo” (SpS 22).
No discurso inaugural da V Conferência de Aparecida Bento XVI havia
afirmado: “Tanto o capitalismo como o marxismo prometeram encontrar o caminho
para a criação de estruturas justas e afirmaram que estas, uma vez estabelecidas,
funcionariam por si mesmas; afirmaram que não só não teriam tido necessidade de uma
precedente moralidade individual, mas também que fomentariam a moralidade comum.
E esta promessa ideológica demonstrou-se falsa. Os fatos o comprovam” [4].
Não existe progresso sem o crescimento moral porque somente na liberdade é
possível viver uma vida plenamente humana. Bento XVI observa que Marx “Esqueceu
o homem e sua liberdade. Esqueceu que a liberdade permanece sempre liberdade,
inclusive para o mal. Pensava que, uma vez colocada em ordem a economia, tudo se
arranjaria. Seu verdadeiro erro é o materialismo: de fato, o homem não é só o produto
de condições econômicas, nem se pode curá-lo apenas do exterior criando condições
econômicas favoráveis” (SpS 21). Nem a ideologia do progresso determinado
unicamente pela ciência e pela técnica parece ter necessidade da liberdade humana e o
Papa, retomando algumas observações da Escola de Frankfurt, invoca uma autocrítica
da modernidade sobre este tema.
O principal problema da nossa civilização consiste no fato que a ciência e a
técnica procedem por acumulação, mas a liberdade moral capaz de conduzí-las não
procede por adição “simplesmente porque a liberdade do homem é sempre nova e deve
continuamente tomar as suas decisões” (SpS 24). Mesmo as melhores estruturas
funcionam somente graças à uma livre convicção moral que “não existe por si mesma,
mas deve ser sempre conquistada comunitariamente. ... A liberdade deve ser
incessantemente conquistada para o bem” (SpS 25).
Ao mesmo tempo considera necessária também uma autocrítica do cristianismo
moderno que “diante dos sucessos da ciência na progressiva estruturação do mundo,
tinha-se concentrado em grande parte somente no individuo e na sua salvação. Desse
modo restringiu o horizonte de sua esperança” (SpS 25).
Nesta Encíclica em muitos pontos Bento XVI corrige a idéia que a esperança
cristã tenha um valor apenas individual e aprofunda o significado comunitário da
esperança cristã e o seu influxo positivo sobre o mundo e a sociedade. A esperança se
dilata do campo individual ao campo social e da comunidade puramente terrena a algo
muito maior. “Quando alguém experimenta na sua vida um grande amor, conhece um
momento de « redenção » que dá um sentido novo à sua vida. Mas, rapidamente se dará
conta também de que o amor que lhe foi dado não resolve, por si só, o problema da sua
vida. É um amor que permanece frágil. Pode ser destruído pela morte. O ser humano
necessita do amor incondicionado. Precisa daquela certeza que o faz exclamar: « Nem a
morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro,
nem as potestades, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura
poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor » (Rom
8,38-39). Se existe este amor absoluto com a sua certeza absoluta, então – e somente
então – o homem está « redimido », independentemente do que lhe possa acontecer
naquela circunstância” (SpS 26). A dilatação da esperança por meio do encontro com
um amor que não termina é fonte de certeza de também de uma intensa construção da
vida da sociedade.
Bento XVI a partir dos ensinamentos de São Bernardo apresenta a imagem do
bosque. Os monges lavravam os campos desbastando contemporaneamente a sua alma:
“O terreno bravio de um bosque torna-se fértil, precisamente quando, ao mesmo tempo,
se deitam abaixo as árvores da soberba, se extirpa o que de bravio cresce nas almas e se
prepara assim o terreno onde possa prosperar pão para o corpo e para a alma” (SpS 15).
O trabalho da transformação da realidade é plenamente humano quando é, ao mesmo
tempo, o trabalho do crescimento moral da pessoa. Esta é a experiência cheia de
esperança que “prepara o novo paraíso”.
Há assim uma profunda unidade entre a esperança de Deus acolhida em nós e a
fadiga do compromisso para com os outros e com a sociedade, aliás a verdadeira força
deste empenho está naquela esperança.

Conclusão

Estas linhas da antropologia de Bento XVI que tocamos nos mostram uma
perspectiva eminentemente positiva e em diálogo com as propostas culturais mais
atentas do nosso tempo. A Igreja oferece ao nosso tempo um aporte substancial para
dilatar a razão, o amor e a esperança: uma proposta positiva apaixonada pela verdade,
pela justiça e pela felicidade das pessoas do nosso tempo

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Notas
[1] Entrevista do Papa Bento XVI, concedida à Bayerischer Rundfunk (ARD), ZDF,
Deutsche Welle e Rádio Vaticano. [Original em língua alemã. Castelgandolfo, 5 de
Agosto de 2006.]
[2] PAPA BENTO XVI, Discurso na Aula magna da Universidade de Regensburg, 12
de setembro de 2006.
[3] BENTO XVI, Discurso inaugural da V Conferência geral do episcopado da América
latina e do Caribe, Santuário de Aparecida, Domingo, 13 de maio de 2007, n 3.
[4] BENTO XVI, ibi, n.4.

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