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CINCIA TICA E SOCIEDADE A Regulao Da Prtica A
CINCIA TICA E SOCIEDADE A Regulao Da Prtica A
Neste texto, pretendemos mostrar como, nas últimas décadas, a relação entre a ciência e a ética
tornou-se central na prática científica. Questões recentes desafiam o comprometimento do
conhecimento científico com uma visão objetiva das coisas e com a promoção da felicidade.
Para pensar tais questões, tomamos de empréstimo o conceito de prática, tal como explicitado
pelo filósofo moral escocês Alasdair MacIntyre, no intuito de compreender a relação entre as
questões propriamente ligadas ao conhecimento científico e as questões ligadas à utilidade da
ciência. Como conclusão, julgamos que cabe destacar uma tarefa atual para os cientistas: a de
defender não só os clássicos valores intrínsecos da ciência, definidores de sua própria prática,
mas também de atentar para o lugar vital que a ciência ocupa em nossa sociedade e para os seus
chamados valores extrínsecos, que, na verdade, fazem parte de seu modus operandi.
PALAVRAS-CHAVE: Ciência. Ética. MacIntyre. Prática.
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lência para serem realizadas. O leque das práti- A palavra filosofia significa o estudo da sabedo-
cas é amplo: artes, ciências, jogos, política no sen- ria, e por sabedoria entendemos não só a prudên-
tido aristotélico, constituição e sustento da famí- cia nos negócios, mas um perfeito conhecimento
lia (MacIntyre, 2001, p. 316). de todas as coisas que o homem pode saber, tanto
para a conduta de sua vida, quanto para a con-
servação da saúde e a invenção de todas as ar-
As práticas definem-se por seus fins inter- tes”. (Carta do autor ao tradutor dos Princípios
nos e têm também fins externos. Tomemos como de Filosofia – itálico nosso).
exemplo um jogo, como o de futebol. Seu objetivo
é fazer gols e, para isso, exigem-se padrões de pre- Com palavras de seu tempo, o filósofo colo-
paro físico, agilidade e inteligência, para armar as ca o projeto tecnológico no cerne da ciência, mas,
jogadas. O fim interno do futebol é, então, ganhar de algum modo, o localiza em seguida ao conheci-
a partida. Não se trata, porém, de ganhar de qual- mento.
quer jeito (comprando o juiz, por exemplo), e, sim,
jogando segundo as regras e desempenhando bem
o papel de time. Se um time ganhou porque com- FINS INTERNOS E FINS EXTERNOS À CIÊN-
prou o juiz, não podemos dizer, de verdade, que CIA: primeira aproximação
houve uma vitória, ou mesmo que houve um jogo.
De tudo isso se conclui que faltar aos seus fins ou Antes de enfrentar a pergunta formulada
valores internos corrompe a própria prática do jogo. acima, passemos a uma análise mais detida dos
Uma prática tem, também, fins externos. Por fins ou valores internos e externos à ciência. Em
exemplo: o jogador quer, além de jogar bem, ga- sua acepção mais tradicional, a ciência pode ser
nhar dinheiro e fama. Mas ele poderia ficar rico e definida como a busca ou produção do conheci-
famoso de outras maneiras: exercendo outra pro- mento. Ora, se a relação com o conhecimento é a
fissão, casando-se com uma mulher rica e famosa característica mais essencial da ciência, então pode-
etc. Assim, certos fins de uma prática só podem mos aceitar que a produção do conhecimento obje-
ser obtidos mediante determinada prática, e esses tivo é a sua finalidade específica, e a objetividade,
são seus fins internos.Os fins internos são, por- um valor indispensável a essa prática. As regras e
tanto, constitutivos das práticas. Já os fins exter- normas de funcionamento da atividade científica
nos podem ser alcançados de modos diversos. serão construídas tendo em vista esse fim.
Pensando a ciência a partir dessa ideia, po- O exemplo abaixo, cuja fonte na internet
demos, a princípio, dizer que seus fins (ou valo- está perdida, mostra o quanto a objetividade e a
res) internos dizem respeito à objetividade e à uni- verdade são constituintes da prática científica.
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centemente foram descritos como “integridade em princípios correspondem à ideia que se tem da
pesquisa”. Interesses pessoais ou de grupo, finan- ciência, ou seja, ao que se pensa que a ciência deve
ceiros ou ideológicos, não devem interferir na busca ser. Para falar em termos weberianos: trata-se de
da verdade. O importante a observar é que a pró- um “tipo ideal”, que descreve o que é essencial a
pria comunidade científica trata de construir me- essa prática. Ainda, como já vimos, caso esses
canismos que possibilitam resguardar seus valores princípios sejam abandonados de forma sistemá-
internos, como mostrou o caso recente de Marc tica, a própria existência da atividade científica
Hauser. O famoso pesquisador em psicologia estará comprometida.
evolucionista foi acusado de falsear dados, o que Para abordar os fins externos à ciência, é pre-
resultou em investigação do ocorrido pela Univer- ciso utilizar uma estratégia que pensa a ciência não
sidade de Harvard e, inclusive, em afastamento só em sua dimensão propriamente epistemológica,
temporário do cientista de seu posto. mas como uma atividade que se insere em um con-
Um grande sociólogo da ciência, Robert texto mais amplo. A abordagem desse tópico im-
Merton, num artigo de 1942, assim definiu os prin- portante é de competência dos chamados Estudos
cípios diretores da ciência, ou seu ethos próprio: Sociais das Ciências. Mostraremos, no entanto, que
comunalismo (o conhecimento científico deve vis- tais fins têm uma dimensão ética, ou, pelo menos,
to como conhecimento público, compartilhado); permitem um questionamento ético.
universalismo (nenhuma contribuição deve ser Podemos identificar os fins externos da ci-
excluída por critérios de raça, gênero, nacionali- ência, na medida em que essa atividade permite
dade ou outro do tipo – a ciência não pode refletir ao cientista ganhar reconhecimento e, em alguns
nenhum particularismo – a ciência não tem pá- casos, fama, dinheiro e poder. Já vimos que esses
tria); desinteresse (a finalidade não pode ser outra fins não são constitutivos da ciência. Também o
senão o próprio conhecimento, a ciência está aci- bem estar, a felicidade e o conforto que pretende-
ma do interesse particular dos cientistas); e orga- mos atingir com o progresso da ciência e da técni-
nização de maneira cética (não aceita afirmações ca poderiam ser vistos como fins extrínsecos, já
sem antes submetê-las à prova). Mais recentemen- que: 1º – bem estar, felicidade e conforto podem
te, o físico e sociólogo John Ziman sintetizou os ser alcançados por outros meios; e 2° – muita gen-
princípios acima com a sigla CUDOS,2 defenden- te duvida que tal progresso, ao fim e ao cabo, de
do a ideia de que eles definem a forma clássica da fato, contribua para a felicidade ou o bem estar da
chamada “ciência acadêmica”. Tais princípios po- humanidade.
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dela, ao lado da produção do conhecimento. pelo ethos da ciência industrial, mas, sim, afirma
Essa questão se torna mais pertinente se que os dois modos de praticar a ciência convivem
considerarmos novamente a análise do já citado nos dias de hoje e podem, muitas vezes, entrar em
sociólogo da ciência, John Ziman. Ao sintetizar o conflito. Tal conflito é vivido por cientistas das
modelo mertoniano de ciência com a sigla CUDOS, mais diferentes áreas, mas não apenas por eles.
ele também levantou a questão: será que esse mo- Ora, é preciso lembrar que não é nova a
delo, que descreve bem o ethos da ciência acadê- ideia de que a ciência é algo útil e deve ter uma
mica tal como praticada desde sua origem até a aplicação prática. Ela é importante pelo menos
consolidação da sociedade industrial, continua desde a origem da ciência moderna, como vimos
valendo para a ciência tal como se mostra a partir acima, na citação de Descartes – o qual nunca de-
do final do século XX? Não é o caso de entrarmos fendeu que se deve buscar o “conhecimento pelo
aqui nas importantes diferenciações estabelecidas por conhecimento”. No entanto, para o modelo tradi-
Ziman. Gostaríamos, no entanto, de reter sua descri- cional de ciência, a utilidade do conhecimento é
ção da forma de ciência que ele chama de pós-acadê- uma questão de simples aplicação, um desdobra-
mica, redefinida por sua íntima relação com as exi- mento do que se passa, bastante autonomamente,
gências de uma sociedade globalizada, pós-industri- na ordem da investigação. Na medida em que hoje,
al e de mercado, cuja manifestação mais acabada como vimos, o desenvolvimento da pesquisa de-
poderia ser definida por uma nova sigla – PLACE: pende tanto das tecnologias quanto do financia-
Proprietário (o conhecimento é privatizado); Local mento pela sociedade, a ciência contemporânea
(voltado para a solução e problemas locais e con- parece ser dirigida pela dimensão prática ou por seus
cretos); Autoritário (dirigido por uma autoridade resultados. No caso das tecnociências, o desenvolvi-
gerencial – o boss); Comissionado (encomendado: mento tecnológico não pode mais ser considerado
a pesquisa não é livre e desinteressada); Especi- simplesmente um fim externo a essa prática.
alizado (assunto de expert). À figura um tanto soli- É importante levar em conta ainda que o
tária e independente do cientista clássico, que po- surgimento das tecnociências tornou o conheci-
dia desenvolver seus conhecimentos com poucos mento científico crucial para a sociedade como um
recursos – pensemos, por exemplo, nas descober- todo. Não precisamos lembrar ao leitor a imensa
tas de Pasteur –, segue-se, em nossa época, uma transformação que a humanidade experimentou, e
figura e uma experiência coletivas. O desenvolvi- de maneira intensa, nos últimos 50 anos, como
mento da pesquisa, hoje, não raro envolve uma efeito da condução sistemática da investigação das
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equipe numerosa, integrando pessoas de vários ciências naturais em todos os seus campos. Por-
lugares do planeta, e exige o uso de equipamentos que a ciência interfere profundamente na vida so-
fora do alcance de qualquer cidadão particular. Em cial, econômica e política, ela, hoje, tornou-se mais
consequência, a produção da tecnologia não se se- do que nunca um assunto social, econômico e
para da atividade de pesquisa: a tecnologia é, não político. Cientistas e pesquisadores ocupam não
apenas um fim produzido pelo conhecimento, mas apenas as páginas dos jornais, mas o imaginário e
o próprio meio de alcançá-lo. Tanto é assim que o dia a dia da sociedade: filmes (Gattaca, Blade
falamos em tecnociências, amalgamando, numa só Runner), livros de ficção (Solar, de Ian McEwan)
realidade, o aspecto teórico e os desdobramentos ou de não ficção (A vida imortal de Henrietta Lacks,
práticos do conhecimento. Ainda o aspecto utilitá- de Revecca Skloot) e até seriados de TV (The Big
rio intervém na visão clássica da autonomia da pes- Bang Theory) têm a ciência ou os cientistas como
quisa e coloca problemas para ela, na medida em protagonistas. Todos sabem que os efeitos do de-
que se quer um conhecimento gerador de efeitos. senvolvimento científico são e serão profundamente
Ziman não propõe que o ethos da ciência sentidos. O aspecto útil ou nocivo desses efeitos
acadêmica tenha sido simplesmente substituído tem necessariamente de ser avaliado. Por isso a
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questão da regulamentação da atividade científica que a ciência importa para muita gente, pois tem a
tornou-se tão importante – e um ponto tão difícil ver com valores de vários tipos.
de ser estabelecido. A tão celebrada autonomia do cientista an-
Na medida em que o desenvolvimento ci- tigo deu lugar ao gerenciamento da pesquisa pelas
entífico interfere cada vez mais na sociedade, é políticas científicas, que têm como objetivo intro-
compreensível que os chamados valores intrínse- duzir critérios de prioridade que reflitam os valo-
cos da ciência não sejam mais suficientes para res e necessidades de uma dada sociedade – e,
regulá-la. Ou seja, é necessário que a prática cien- nesse sentido, interferem na busca do conhecimen-
tífica se inscreva, como prática social, no conjunto to, ao priorizar uma dada pesquisa ao invés de
de valores compartilhados pela sociedade. Por isso, outra. Tal tipo de direcionamento, ou mesmo de
parece-nos que a tendência atual de uma maior intervenção, é cada vez mais justificado na medi-
regulação da ciência pela sociedade é uma realida- da em que a ciência hoje, mais do que uma potên-
de que não pode ser ignorada e que veio para ficar. cia de produção de conhecimento, é uma potência
de produção de formas de vida. Ademais, as polí-
ticas definem prioridades e exigem escolhas. Per-
Dois exemplos de regulação manece, é claro, o problema ético de definir o que
é ou não é prioritário (já que os recursos não são
Os Comitês de Ética em Pesquisa – institu- ilimitados) e o que é ou não é moral em pesquisa
ídos obrigatoriamente no Brasil a partir de 1996 – (há casos controversos, como a pesquisa com cé-
são cada vez mais numerosos e podem interferir lulas-tronco).
até mesmo na metodologia de pesquisa, caso os
métodos propostos, embora adequados para obter
dados importantes, sejam considerados perigosos CONCLUSÃO
para o bem estar ou desrespeitem os direitos de
pessoas envolvidas nela. Isso significa que, junta- A ciência tornou-se, como tecnociência, dra-
mente com o valor do conhecimento e do progres- maticamente útil ou nociva, motivo pelo qual a
so científico, há também a noção de que o bem- sociedade, incluindo a comunidade científica, é
estar e, sobretudo, a autonomia das pessoas (o di- chamada também a pensar e a participar de seu
reito de escolha) contam e valem. O fato de, na novo aspecto. Aqui é importante registrar que “uti-
história recente da ciência, o consentimento dos lidade” é um conceito ético, ou seja, não é um
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In this paper, we wish to show how, in the Dans cette étude, nous nous proposons de
past decades, the relationship between science and montrer comment, au cours des dernières
ethics became central in scientific practice. Recent décennies, la relation entre la science et l’éthique
questions challenge the commitment of scientific est devenue centrale dans la pratique scientifique.
knowledge with an objective view of things and Des questions récentes mettent au défi le compromis
the promotion of happiness. To reflect on such de la connaissance scientifique d’avoir une vision
issues, we borrowed the concept of practice, as objective des choses et de viser la promotion du
outlined by the Scottish moral philosopher bonheur. Pour examiner ces questions, nous avons
Alasdair MacIntyre, so as to understand the relation emprunté le concept de pratique, tel qu’il est
between the questions properly pertaining to explicité par le philosophe moral écossais Alasdair
scientific knowledge and those linked with the MacIntyre, afin de comprendre la relation existante
utility of science. By way of conclusion, we think entre les questions directement liées à la
it relevant to stress a current task of scientists, not connaissance scientifique et les questions liées à
only that of defending the classic values intrinsic l’utilité de la science. En conclusion, il nous semble
to science, defining its own practice, but also that important de mettre en évidence une tâche actuelle
of considering the vital place occupied by science qui incombe aux scientifiques, celle de défendre
in our society, thus calling attention to its extrinsic non seulement les valeurs classiques intrinsèques
values, which in fact are part of its modus operandi. à la science, définissant leur propre pratique, mais
aussi d’être attentifs à la place vitale qu’occupe la
science dans notre société et à ses valeurs dites
extrinsèques qui, en vérité, font partie de leur modus
operandi.
KEY-WORDS: Science. Ethics. MacIntyre. Practice. Mots-clés: Science. Éthique. MacIntyre. Pratique.
Telma de Souza Birchal - Doutora em Filosofia. Professora Universidade Federal de Minas Gerais. Dedica-se
também a temas ligados a ética e a bioética. Fez parte da Diretoria da ANPOF, gestões 2009-2010 e 2011-
2013. Publicações recentes: Régard sur soi, l’esprit qui connaît: figures de la subjectivité chez Montaigne et
Descartes. Montaigne Studies: an interdisciplinary forum, v. 25, p. 31-38, 2013; Pais surdos têm o direito de
tentar ter filhos surdos? Revista Opinião Filosófica, v. 3, p. 5-13, 2012; A seleção genética de embriões deve
ser proibida por ofender os direitos dos portadores de deficiência? Pensando: revista de Filosofia (UFPI), v. 3,
p. 100, 2012 (os dois últimos em co-autoria com Lincoln Frias).
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