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Telma de Souza Birchal

CIÊNCIA, ÉTICA E SOCIEDADE: a regulação da prática


científica

Telma de Souza Birchal*

Neste texto, pretendemos mostrar como, nas últimas décadas, a relação entre a ciência e a ética
tornou-se central na prática científica. Questões recentes desafiam o comprometimento do
conhecimento científico com uma visão objetiva das coisas e com a promoção da felicidade.
Para pensar tais questões, tomamos de empréstimo o conceito de prática, tal como explicitado
pelo filósofo moral escocês Alasdair MacIntyre, no intuito de compreender a relação entre as
questões propriamente ligadas ao conhecimento científico e as questões ligadas à utilidade da
ciência. Como conclusão, julgamos que cabe destacar uma tarefa atual para os cientistas: a de
defender não só os clássicos valores intrínsecos da ciência, definidores de sua própria prática,
mas também de atentar para o lugar vital que a ciência ocupa em nossa sociedade e para os seus
chamados valores extrínsecos, que, na verdade, fazem parte de seu modus operandi.
PALAVRAS-CHAVE: Ciência. Ética. MacIntyre. Prática.

O fator utilidade faz a ciência pós-acadêmica desdobramentos de um conhecimento; se o conhe-


responsável por suas operações diante das pes-
soas e instituições fora da comunidade científi- cimento deve ou não ser objeto de propriedade (o
ca. Isto é mais do que a questão de limitar a tema das patentes ou do direito da pessoa aos teci-
liberdade dos cientistas na busca do conheci-
dos de seu corpo, por exemplo).
mento ‘por ele mesmo’. Isto infunde no ethos ci-
entífico a ética como o mundo a conhece. A ciên- Como ponto de partida, abordaremos duas
cia pós-acadêmica, estando muito mais direta- ideias centrais a respeito da ciência e que a defini-
mente conectada com a sociedade em geral, tem
que compartilhar seus valores e preocupações ram desde sua origem na chamada Revolução Ci-
mais amplos. (Ziman, 2000) entífica do século XVII: 1ª – o conhecimento cien-
tífico é comprometido com uma visão objetiva das
Neste texto, pretendemos mostrar como, nas
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coisas, obtida mediante pesquisa e crítica, o que
últimas décadas, a relação entre a ciência e a ética implica ser ele desvinculado de quaisquer outros
tornou-se central na prática científica.1 Um iniciante interesses e crenças; 2ª – o conhecimento científi-
na pesquisa científica encontra hoje uma série de co leva à promoção da felicidade do ser humano,
questões que não existiam, ou pelo menos não se ao redundar num maior controle e domínio da
colocavam com clareza, há vinte ou trinta anos atrás, natureza, proporcionando-lhe conforto e vida boa.
tais como: a ética na pesquisa com seres humanos Para pensar esse problema, tomamos de em-
ou animais; o caráter útil ou nocivo dos possíveis préstimo o conceito de prática, tal como é explicitado
* Doutora em Filosofia. Professora Universidade Federal pelo filósofo moral escocês Alasdair MacIntyre, no
de Minas Gerais.
Av. Antônio Carlos, 6627. Pampulha. Cep: 31270-901 - intuito de compreender a relação entre as questões
Belo Horizonte, MG - Brasil. tbirchal@gmail.com propriamente ligadas ao conhecimento científico e
1
Este texto origina-se de palestra proferida no XI Con-
gresso da Sociedade Brasileira de Toxicologia, ocorrido as questões ligadas à utilidade da ciência:
em Araxá, em novembro de 2010. Foi, portanto, pensa-
do, tendo em vista um público formado em sua maioria Vamos entender como prática as atividades hu-
por cientistas e estudantes da área de ciências biológicas.
Agradeço a Ivan Domingues pelas sugestões que contri- manas colaborativas, que visam a um fim ou bem
buíram para dar ao artigo sua forma final. interno a elas e exigem certos padrões de exce-

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lência para serem realizadas. O leque das práti- A palavra filosofia significa o estudo da sabedo-
cas é amplo: artes, ciências, jogos, política no sen- ria, e por sabedoria entendemos não só a prudên-
tido aristotélico, constituição e sustento da famí- cia nos negócios, mas um perfeito conhecimento
lia (MacIntyre, 2001, p. 316). de todas as coisas que o homem pode saber, tanto
para a conduta de sua vida, quanto para a con-
servação da saúde e a invenção de todas as ar-
As práticas definem-se por seus fins inter- tes”. (Carta do autor ao tradutor dos Princípios
nos e têm também fins externos. Tomemos como de Filosofia – itálico nosso).
exemplo um jogo, como o de futebol. Seu objetivo
é fazer gols e, para isso, exigem-se padrões de pre- Com palavras de seu tempo, o filósofo colo-
paro físico, agilidade e inteligência, para armar as ca o projeto tecnológico no cerne da ciência, mas,
jogadas. O fim interno do futebol é, então, ganhar de algum modo, o localiza em seguida ao conheci-
a partida. Não se trata, porém, de ganhar de qual- mento.
quer jeito (comprando o juiz, por exemplo), e, sim,
jogando segundo as regras e desempenhando bem
o papel de time. Se um time ganhou porque com- FINS INTERNOS E FINS EXTERNOS À CIÊN-
prou o juiz, não podemos dizer, de verdade, que CIA: primeira aproximação
houve uma vitória, ou mesmo que houve um jogo.
De tudo isso se conclui que faltar aos seus fins ou Antes de enfrentar a pergunta formulada
valores internos corrompe a própria prática do jogo. acima, passemos a uma análise mais detida dos
Uma prática tem, também, fins externos. Por fins ou valores internos e externos à ciência. Em
exemplo: o jogador quer, além de jogar bem, ga- sua acepção mais tradicional, a ciência pode ser
nhar dinheiro e fama. Mas ele poderia ficar rico e definida como a busca ou produção do conheci-
famoso de outras maneiras: exercendo outra pro- mento. Ora, se a relação com o conhecimento é a
fissão, casando-se com uma mulher rica e famosa característica mais essencial da ciência, então pode-
etc. Assim, certos fins de uma prática só podem mos aceitar que a produção do conhecimento obje-
ser obtidos mediante determinada prática, e esses tivo é a sua finalidade específica, e a objetividade,
são seus fins internos.Os fins internos são, por- um valor indispensável a essa prática. As regras e
tanto, constitutivos das práticas. Já os fins exter- normas de funcionamento da atividade científica
nos podem ser alcançados de modos diversos. serão construídas tendo em vista esse fim.
Pensando a ciência a partir dessa ideia, po- O exemplo abaixo, cuja fonte na internet
demos, a princípio, dizer que seus fins (ou valo- está perdida, mostra o quanto a objetividade e a
res) internos dizem respeito à objetividade e à uni- verdade são constituintes da prática científica.
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versalidade do conhecimento científico e que os Comparem-se duas situações: um cientista que


fins (ou valores) externos são, por exemplo, o re- frauda os resultados de sua pesquisa e um políti-
conhecimento do cientista, na forma de recompen- co que mente para obter votos. Não defendemos
sas materiais ou simbólicas (posição de destaque que um caso seja moralmente mais grave do que o
na comunidade científica). Podemos acrescentar outro, mas o certo é que, no segundo caso, a men-
ainda, na categoria de fins externos, os diversos tira não impossibilita a prática política – ao contrá-
resultados por ela produzidos, como o desenvol- rio, o grande Maquiavel fala que, às vezes, ela se
vimento de tecnologias, o bem estar, etc. Será, no torna necessária –, enquanto, no primeiro caso, a
entanto, o avanço tecnológico possibilitado pela mentira, na forma da fraude, corrói essencialmente
ciência realmente um fim externo a ela? Onde loca- a prática científica. O compromisso com a objetivi-
lizar, na categorização de MacIntyre, a tecnologia? dade é essencial num caso, talvez não em outro.
Essa é a questão que desenvolveremos. Já Assim, alguns valores sempre acompanham
no sec. XVII, Descartes associa conhecimento e a ciência e implicam uma série de normas que de-
técnicas: vem obrigatoriamente fazer parte dela – e que re-

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centemente foram descritos como “integridade em princípios correspondem à ideia que se tem da
pesquisa”. Interesses pessoais ou de grupo, finan- ciência, ou seja, ao que se pensa que a ciência deve
ceiros ou ideológicos, não devem interferir na busca ser. Para falar em termos weberianos: trata-se de
da verdade. O importante a observar é que a pró- um “tipo ideal”, que descreve o que é essencial a
pria comunidade científica trata de construir me- essa prática. Ainda, como já vimos, caso esses
canismos que possibilitam resguardar seus valores princípios sejam abandonados de forma sistemá-
internos, como mostrou o caso recente de Marc tica, a própria existência da atividade científica
Hauser. O famoso pesquisador em psicologia estará comprometida.
evolucionista foi acusado de falsear dados, o que Para abordar os fins externos à ciência, é pre-
resultou em investigação do ocorrido pela Univer- ciso utilizar uma estratégia que pensa a ciência não
sidade de Harvard e, inclusive, em afastamento só em sua dimensão propriamente epistemológica,
temporário do cientista de seu posto. mas como uma atividade que se insere em um con-
Um grande sociólogo da ciência, Robert texto mais amplo. A abordagem desse tópico im-
Merton, num artigo de 1942, assim definiu os prin- portante é de competência dos chamados Estudos
cípios diretores da ciência, ou seu ethos próprio: Sociais das Ciências. Mostraremos, no entanto, que
comunalismo (o conhecimento científico deve vis- tais fins têm uma dimensão ética, ou, pelo menos,
to como conhecimento público, compartilhado); permitem um questionamento ético.
universalismo (nenhuma contribuição deve ser Podemos identificar os fins externos da ci-
excluída por critérios de raça, gênero, nacionali- ência, na medida em que essa atividade permite
dade ou outro do tipo – a ciência não pode refletir ao cientista ganhar reconhecimento e, em alguns
nenhum particularismo – a ciência não tem pá- casos, fama, dinheiro e poder. Já vimos que esses
tria); desinteresse (a finalidade não pode ser outra fins não são constitutivos da ciência. Também o
senão o próprio conhecimento, a ciência está aci- bem estar, a felicidade e o conforto que pretende-
ma do interesse particular dos cientistas); e orga- mos atingir com o progresso da ciência e da técni-
nização de maneira cética (não aceita afirmações ca poderiam ser vistos como fins extrínsecos, já
sem antes submetê-las à prova). Mais recentemen- que: 1º – bem estar, felicidade e conforto podem
te, o físico e sociólogo John Ziman sintetizou os ser alcançados por outros meios; e 2° – muita gen-
princípios acima com a sigla CUDOS,2 defenden- te duvida que tal progresso, ao fim e ao cabo, de
do a ideia de que eles definem a forma clássica da fato, contribua para a felicidade ou o bem estar da
chamada “ciência acadêmica”. Tais princípios po- humanidade.

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dem ser remetidos todos a um único fim ou valor:
o conhecimento objetivo.
É claro que Merton, ao descrever a ciência O NOVO MODELO DE CIÊNCIA E A FLUIDEZ
ainda na primeira metade do sec. XX, sabia que a DAS FRONTEIRAS ENTRE FINS INTERNOS E
realidade vivida poderia não corresponder à sua EXTERNOS
descrição teórica. Por exemplo, nem sempre o ci-
entista revela a verdade e nem sempre ele é desin- No entanto, a ciência realiza, como nenhu-
teressado – há vaidades e, mais seriamente, há os ma outra atividade, o fim de dominação da nature-
casos de fraude, mais ou menos famosos. Mas, se za pela técnica. Deixando de lado a discussão so-
o que é condensado na sigla CUDOS não descre- bre se o progresso da técnica contribui ou não para
ve, na prática, a realidade, sem dúvida os cinco a felicidade humana – uma questão há muito tem-
2
Aqui há um jogo de palavras a partir do termo inglês po polêmica, basta lembrar o primeiro Discurso de
kudos, que significa: “busca de reconhecimento e de Rousseau –, perguntamos aqui, apenas, se o desen-
respeito por uma realização”. No caso, mais do que hon-
rarias ou aplausos, o cientista quer o reconhecimento de volvimento da técnica pode ser considerado um fim
suas descobertas como verdadeiras, independentemen-
te de quaisquer circunstâncias. externo à ciência ou se, ao contrário, é constitutivo

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dela, ao lado da produção do conhecimento. pelo ethos da ciência industrial, mas, sim, afirma
Essa questão se torna mais pertinente se que os dois modos de praticar a ciência convivem
considerarmos novamente a análise do já citado nos dias de hoje e podem, muitas vezes, entrar em
sociólogo da ciência, John Ziman. Ao sintetizar o conflito. Tal conflito é vivido por cientistas das
modelo mertoniano de ciência com a sigla CUDOS, mais diferentes áreas, mas não apenas por eles.
ele também levantou a questão: será que esse mo- Ora, é preciso lembrar que não é nova a
delo, que descreve bem o ethos da ciência acadê- ideia de que a ciência é algo útil e deve ter uma
mica tal como praticada desde sua origem até a aplicação prática. Ela é importante pelo menos
consolidação da sociedade industrial, continua desde a origem da ciência moderna, como vimos
valendo para a ciência tal como se mostra a partir acima, na citação de Descartes – o qual nunca de-
do final do século XX? Não é o caso de entrarmos fendeu que se deve buscar o “conhecimento pelo
aqui nas importantes diferenciações estabelecidas por conhecimento”. No entanto, para o modelo tradi-
Ziman. Gostaríamos, no entanto, de reter sua descri- cional de ciência, a utilidade do conhecimento é
ção da forma de ciência que ele chama de pós-acadê- uma questão de simples aplicação, um desdobra-
mica, redefinida por sua íntima relação com as exi- mento do que se passa, bastante autonomamente,
gências de uma sociedade globalizada, pós-industri- na ordem da investigação. Na medida em que hoje,
al e de mercado, cuja manifestação mais acabada como vimos, o desenvolvimento da pesquisa de-
poderia ser definida por uma nova sigla – PLACE: pende tanto das tecnologias quanto do financia-
Proprietário (o conhecimento é privatizado); Local mento pela sociedade, a ciência contemporânea
(voltado para a solução e problemas locais e con- parece ser dirigida pela dimensão prática ou por seus
cretos); Autoritário (dirigido por uma autoridade resultados. No caso das tecnociências, o desenvolvi-
gerencial – o boss); Comissionado (encomendado: mento tecnológico não pode mais ser considerado
a pesquisa não é livre e desinteressada); Especi- simplesmente um fim externo a essa prática.
alizado (assunto de expert). À figura um tanto soli- É importante levar em conta ainda que o
tária e independente do cientista clássico, que po- surgimento das tecnociências tornou o conheci-
dia desenvolver seus conhecimentos com poucos mento científico crucial para a sociedade como um
recursos – pensemos, por exemplo, nas descober- todo. Não precisamos lembrar ao leitor a imensa
tas de Pasteur –, segue-se, em nossa época, uma transformação que a humanidade experimentou, e
figura e uma experiência coletivas. O desenvolvi- de maneira intensa, nos últimos 50 anos, como
mento da pesquisa, hoje, não raro envolve uma efeito da condução sistemática da investigação das
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equipe numerosa, integrando pessoas de vários ciências naturais em todos os seus campos. Por-
lugares do planeta, e exige o uso de equipamentos que a ciência interfere profundamente na vida so-
fora do alcance de qualquer cidadão particular. Em cial, econômica e política, ela, hoje, tornou-se mais
consequência, a produção da tecnologia não se se- do que nunca um assunto social, econômico e
para da atividade de pesquisa: a tecnologia é, não político. Cientistas e pesquisadores ocupam não
apenas um fim produzido pelo conhecimento, mas apenas as páginas dos jornais, mas o imaginário e
o próprio meio de alcançá-lo. Tanto é assim que o dia a dia da sociedade: filmes (Gattaca, Blade
falamos em tecnociências, amalgamando, numa só Runner), livros de ficção (Solar, de Ian McEwan)
realidade, o aspecto teórico e os desdobramentos ou de não ficção (A vida imortal de Henrietta Lacks,
práticos do conhecimento. Ainda o aspecto utilitá- de Revecca Skloot) e até seriados de TV (The Big
rio intervém na visão clássica da autonomia da pes- Bang Theory) têm a ciência ou os cientistas como
quisa e coloca problemas para ela, na medida em protagonistas. Todos sabem que os efeitos do de-
que se quer um conhecimento gerador de efeitos. senvolvimento científico são e serão profundamente
Ziman não propõe que o ethos da ciência sentidos. O aspecto útil ou nocivo desses efeitos
acadêmica tenha sido simplesmente substituído tem necessariamente de ser avaliado. Por isso a

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questão da regulamentação da atividade científica que a ciência importa para muita gente, pois tem a
tornou-se tão importante – e um ponto tão difícil ver com valores de vários tipos.
de ser estabelecido. A tão celebrada autonomia do cientista an-
Na medida em que o desenvolvimento ci- tigo deu lugar ao gerenciamento da pesquisa pelas
entífico interfere cada vez mais na sociedade, é políticas científicas, que têm como objetivo intro-
compreensível que os chamados valores intrínse- duzir critérios de prioridade que reflitam os valo-
cos da ciência não sejam mais suficientes para res e necessidades de uma dada sociedade – e,
regulá-la. Ou seja, é necessário que a prática cien- nesse sentido, interferem na busca do conhecimen-
tífica se inscreva, como prática social, no conjunto to, ao priorizar uma dada pesquisa ao invés de
de valores compartilhados pela sociedade. Por isso, outra. Tal tipo de direcionamento, ou mesmo de
parece-nos que a tendência atual de uma maior intervenção, é cada vez mais justificado na medi-
regulação da ciência pela sociedade é uma realida- da em que a ciência hoje, mais do que uma potên-
de que não pode ser ignorada e que veio para ficar. cia de produção de conhecimento, é uma potência
de produção de formas de vida. Ademais, as polí-
ticas definem prioridades e exigem escolhas. Per-
Dois exemplos de regulação manece, é claro, o problema ético de definir o que
é ou não é prioritário (já que os recursos não são
Os Comitês de Ética em Pesquisa – institu- ilimitados) e o que é ou não é moral em pesquisa
ídos obrigatoriamente no Brasil a partir de 1996 – (há casos controversos, como a pesquisa com cé-
são cada vez mais numerosos e podem interferir lulas-tronco).
até mesmo na metodologia de pesquisa, caso os
métodos propostos, embora adequados para obter
dados importantes, sejam considerados perigosos CONCLUSÃO
para o bem estar ou desrespeitem os direitos de
pessoas envolvidas nela. Isso significa que, junta- A ciência tornou-se, como tecnociência, dra-
mente com o valor do conhecimento e do progres- maticamente útil ou nociva, motivo pelo qual a
so científico, há também a noção de que o bem- sociedade, incluindo a comunidade científica, é
estar e, sobretudo, a autonomia das pessoas (o di- chamada também a pensar e a participar de seu
reito de escolha) contam e valem. O fato de, na novo aspecto. Aqui é importante registrar que “uti-
história recente da ciência, o consentimento dos lidade” é um conceito ético, ou seja, não é um

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sujeitos envolvidos numa pesquisa ter ganhado cada dado empírico e muito menos algo que possa ser
vez maior importância e maior escopo mostra que definido no interior de uma ciência. “A utilidade é
a prática da ciência e da pesquisa envolve neces- um conceito moral. Não pode ser determinada sem
sariamente múltiplos valores. A discussão sobre o referência a objetivos ou a valores humanos mais
“direito aos tecidos”3 retirados, por exemplo, em gerais [...]” (Ziman, 2000, p. 74). O que é ou pare-
processos terapêuticos, relaciona-se não propria- ce útil a uns pode ser ou parecer nocivo a outros,
mente com possíveis riscos ao bem estar da pes- a exemplo da discussão sobre os transgênicos.
soa, mas, sim, e sobretudo, com o direito de o Um ponto de vista consensual ou mais
possível doador saber o destino dos tecidos de englobante a esse respeito tem de ser construído
seu corpo (que tipo pesquisa será feita, quem vai social e politicamente. Essa nos parece ser, em sín-
ganhar dinheiro com ela etc.). A regulação dessas tese, uma das tarefas mais importantes para os ci-
práticas no detalhe é uma tarefa difícil e controver- entistas hoje: a de defender não só os clássicos
sa, mas o debate em torno dos problemas mostra valores intrínsecos da ciência, definidores de sua
3
própria prática, mas também de atentar para o lu-
Sobre esse ponto, ver o livro de Rebecca Skloot sobre as
células HeLa. gar vital que a ciência ocupa em nossa sociedade e

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para os seus chamados valores extrínsecos, que, REFERÊNCIAS


afinal, não são tão extrínsecos assim, fazendo par-
te de seu modus operandi. LACEY, Hugh. Valores e atividade científica. São Paulo:
Editora 34, 2008. v.1, 2010, v.2.
MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. Trad. Jussara
Simões. Bauru,SP: Editora EDUSC, [1981] 2001.
Recebido para publicação em 28 de setembro de 2012 MERTON, Robert King. A ciência e a estrutura social de-
Aceito em 04 de novembro de 2012 mocrática. In: _______. Sociologia: teoria e estrutura. Trad.
Miguel Maillet. São Paulo: Mestre Jou, 1[1942] 1970.
SKLOOT, Rebecca. A vida imortal de Henrietta Lacks. Trad.
Ivo Koritowiski. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
ZIMAN, J. M. Real science – what it is and what it means.
Cambridge: Cambridge University Press, 2000.
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SCIENCE, ETHICS AND SOCIETY: the SCIENCE, ÉTHIQUE ET SOCIÉTÉ: réglementer


regulation of scientific practice la pratique scientifique
Telma de Souza Birchal Telma de Souza Birchal

In this paper, we wish to show how, in the Dans cette étude, nous nous proposons de
past decades, the relationship between science and montrer comment, au cours des dernières
ethics became central in scientific practice. Recent décennies, la relation entre la science et l’éthique
questions challenge the commitment of scientific est devenue centrale dans la pratique scientifique.
knowledge with an objective view of things and Des questions récentes mettent au défi le compromis
the promotion of happiness. To reflect on such de la connaissance scientifique d’avoir une vision
issues, we borrowed the concept of practice, as objective des choses et de viser la promotion du
outlined by the Scottish moral philosopher bonheur. Pour examiner ces questions, nous avons
Alasdair MacIntyre, so as to understand the relation emprunté le concept de pratique, tel qu’il est
between the questions properly pertaining to explicité par le philosophe moral écossais Alasdair
scientific knowledge and those linked with the MacIntyre, afin de comprendre la relation existante
utility of science. By way of conclusion, we think entre les questions directement liées à la
it relevant to stress a current task of scientists, not connaissance scientifique et les questions liées à
only that of defending the classic values intrinsic l’utilité de la science. En conclusion, il nous semble
to science, defining its own practice, but also that important de mettre en évidence une tâche actuelle
of considering the vital place occupied by science qui incombe aux scientifiques, celle de défendre
in our society, thus calling attention to its extrinsic non seulement les valeurs classiques intrinsèques
values, which in fact are part of its modus operandi. à la science, définissant leur propre pratique, mais
aussi d’être attentifs à la place vitale qu’occupe la
science dans notre société et à ses valeurs dites
extrinsèques qui, en vérité, font partie de leur modus
operandi.

KEY-WORDS: Science. Ethics. MacIntyre. Practice. Mots-clés: Science. Éthique. MacIntyre. Pratique.

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Telma de Souza Birchal - Doutora em Filosofia. Professora Universidade Federal de Minas Gerais. Dedica-se
também a temas ligados a ética e a bioética. Fez parte da Diretoria da ANPOF, gestões 2009-2010 e 2011-
2013. Publicações recentes: Régard sur soi, l’esprit qui connaît: figures de la subjectivité chez Montaigne et
Descartes. Montaigne Studies: an interdisciplinary forum, v. 25, p. 31-38, 2013; Pais surdos têm o direito de
tentar ter filhos surdos? Revista Opinião Filosófica, v. 3, p. 5-13, 2012; A seleção genética de embriões deve
ser proibida por ofender os direitos dos portadores de deficiência? Pensando: revista de Filosofia (UFPI), v. 3,
p. 100, 2012 (os dois últimos em co-autoria com Lincoln Frias).

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