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Direito e Urbanismo

Volume 1
Paisagem urbana e direito à cidade

Organizadores
Rosângela Lunardelli Cavallazzi
Cláudio Rezende Ribeiro

Rio de Janeiro
Editora PROURB
2020

Folha de Rosto.p65 1 22/11/2010, 11:13


Colaboraram neste volume Conselho Editorial
Flávio Soares Bertoldo Alcina Maria Pereira de Sousa
Juliana Oliveira Cavalcanti Barros (Universidade da Madeira, Portugal)
Renate Bochner de Araujo Alessia J. Magliacane (Centre Georg
Simmel/EHESS, França)
Revisão Clarissa Costa de Lima (Tribunal de
Marcelo da Rocha Lima Diego
Justiça do Rio Grande do Sul, Brasil)
Claudia Lima Marques (UFRGS, Brasil)
Projeto gráfico
Claudio Cesar Santoro Flavio Rapisardi (UNLP/UBA/
UNTREF, Argentina)
Capa Lawrence Herzog (San Diego State
Cláudio Rezende Ribeiro University, Estados Unidos)
Diagramação da versão digital Rosa Giles Carnero (Universidad de
Maria Ribeiro Calil Huelva, Espanha)
Denise Barcellos Pinheiro Machado
(PROURB/FAU/UFRJ, Brasil)

Organizadores da versão digital


Gabriela Fauth
Bernardo Mercante Marques

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Paisagem urbana e direito à cidade [livro eletrônico] / Cláudio Rezende


Ribeiro ... [et al.] ; organização Rosângela Lunardelli Cavallazzi ... [et al.].
-- 1. ed. -- Rio de Janeiro : Rosangela Lunardelli Cavallazzi, 2020. --
(Coleção direito e urbanismo ; 1)

Vários autores.
ISBN 978-65-00-15228-9

1. Arquitetura 2. Desenvolvimento sustentável 3. Direito urbanístico 4.


Espaço urbano 5. Patrimônio histórico 6. Paisagem urbana - Arquitetura
I. Ribeiro, Cláudio Rezende. II. Cavallazzi, Rosângela Lunardelli. III.
Título IV. Série.

21-53824 CDU-34:71(81)

Índices para catálogo sistemático:

1. Brasil : Direito urbano-ambiental 34:71(81)

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

Folha de Rosto [emenda p. 2] CORRETA.p65 2 23/11/2010, 14:05


Sumário

Apresentação 5

PAISAGEM URBANA E DIREITO: INTERFACES 7

Inquietudes acerca das práticas de planejamento e gestão democrática da


cidade e seus impactos na conformação da paisagem 9
Eloisa Carvalho de Araujo

Direito à cidade sustentável: um conjunto de direitos humanos que se


complementam 23
Nina Amir Didonet

Função social da propriedade e desapropriação: alguns mitos e


verdades 55
Daniel Almeida de Oliveira

PATRIMÔNIO HISTÓRICO E O PROJETO URBANO: UMA ABORDAGEM


CONCEITUAL 73

Memória, história, patrimônio e a proteção dos objetos do passado 75


Rodrigo Cury Paraizo

A relação entre o patrimônio histórico e a disputa urbana da memória no


espaço cordial 97
Cláudio Rezende Ribeiro

O projeto no espaço urbano: riscos da paisagem 123


Moema Falci Loures

Sumário.p65 3 21/11/2010, 12:22


PATRIMÔNIO HISTÓRICO E O PROJETO URBANO: CASOS-REFERÊNCIA 143

Parque do Flamengo: patrimônio em movimento 145


Denise Barcellos Pinheiro Machado, Lucia Maria Sá Antunes Costa,
Rosângela Lunardelli Cavallazzi

Desenvolvimento sustentável do município de Barreirinhas: planejamento


urbano e municipal 155
Gustavo Martins Marques

Transformações morfológicas na avenida Bueno Brandão em Viçosa (MG):


preservação versus verticalização 175
Geraldo Browne Ribeiro Filho

DIREITO À CIDADE: CASOS-REFERÊNCIA 197

Breves considerações acerca da proteção da paisagem urbana no


Brasil e na Itália 199
Daniel Gaio

O processo decisório de implantação de projetos hidrelétricos no Brasil.


Uma análise crítica à luz do estado de direito ambiental 213
Madalena Junqueira Ayres

A qualificação jurídica da prestação de serviços públicos como


relação de consumo 243
Karine Monteiro Prado

Sobre os autores 285

Sumário.p65 4 21/11/2010, 12:22


Apresentação

Um livro, como a cidade, ao alcançar seu leitor, esconde sob sua forma todo o
processo de sua produção. A classificação simples dos materiais de divulgação
científica existente encaixaria este trabalho em meio a diversas coletâneas de
artigos cada vez mais usuais em nosso meio acadêmico contemporâneo. No
entanto, essa generalização não esclarece os diferentes percursos realizados
por cada uma destas obras, igualando diferentes processos de forma imprecisa.
Nesse momento, portanto, desejamos trabalhar com intuito de elaborar
não apenas uma usual apresentação, mas um breve texto científico introdutório
que possibilitará enxergar esta obra de forma ao mesmo tempo concisa, coe-
rente e plural a partir da evidenciação de seu método de construção. Os doze
textos que seguem são fruto do trabalho coletivo do Grupo de Pesquisa Direito
e Urbanismo, que tem como premissa o estudo da paisagem sob a égide do
direito à cidade como um sistema composto por um feixe de direitos humanos.
Assim, pesquisadores com formações diversas, originalmente das áreas do
direito e do urbanismo, realizam seus estudos no intuito de construir um
diálogo possível e desejável entre diferentes esferas do saber em torno do
espaço urbano.
Os temas abordados por cada um dos autores constituem uma paisagem
de um pensamento social heterogêneo, refletindo, muitas vezes, nos choques
entre suas idéias, o tecido social conflituoso que é a cidade contemporânea
brasileira. Unindo-os, há o desejo de construir críticas teóricas e estudos de
casos-referência reveladores da difícil tarefa do intérprete da paisagem urbana
em direção ao dissenso democrático.
O processo de produção foi alimentado pela formação acadêmica. Os
artigos constituem desdobramentos de dissertações de mestrado e teses de

Apresentação.p65 5 19/11/2010, 10:58


6

doutorado no âmbito dos Programas de Pós-graduação de Urbanismo da UFRJ,


de Direito da PUC-Rio e de Direito da UERJ. A formação acadêmica construída
ao longo da história do grupo de pesquisa denota a delimitação teórico-meto-
dológica, a abordagem interdisciplinar, o eixo da eficácia social da norma
urbanística, a paisagem urbana como princípio de interpretação, enfim, o di-
reito à cidade em projeto urbano.
Essa afinidade perpassa o percurso do Grupo de Pesquisa Direito e
Urbanismo nas Práticas Sociais Instituintes, vinculado ao Diretório de grupos
de pesquisas do CNPq, estabelecendo um elo fundamental, qual seja, o diálogo
permanente e solidário entre pesquisadores nos níveis de graduação e pós-
graduação.
As idéias que guiaram a ordem de apresentação dos trabalhos contidos
nesta obra foram o objeto privilegiado e os campos de conhecimento de cada
artigo. Primeiro, o bloco de textos que debate a paisagem urbana e sua relação
com o direito; segundo, o que trata de patrimônio histórico e do projeto urbano
de forma conceitual; terceiro, o que estuda casos-referência a partir do olhar
de urbanistas; e. finalmente, o que prioriza o direito à cidade com o objetivo
de reconectar a idéia central do título desta obra.
Tanto esta obra como a continuidade das atividades do grupo não seriam
possíveis sem o apoio do CNPq e da FAPERJ; impossível também seria a reali-
zação deste trabalho sem o apoio do Programa de Pós-graduação em Urbanismo
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ (PROURB/FAU/UFRJ) e do
Programa de Pós-graduação em Direito do Departamento de Direito da PUC-
Rio; durante muito tempo, também nos apoiamos no Centro de Pesquisa e
Documentação da OAB/RJ. Todas estas siglas e nomes anteriores, é importante
que se explicite, reúnem generosas pessoas às quais somos gratos por todos
os trabalhos prestados.
Esperamos que o leitor descubra, a partir das leituras que se seguem,
material capaz de fomentar novas questões e novos pontos de vista sobre a
produção do espaço urbano brasileiro que auxiliem a continuar lutando pelo
direito à cidade.

Rio de Janeiro, outubro de 2010

Rosângela Lunardelli Cavallazzi


Cláudio Rezende Ribeiro

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PAISAGEM URBANA E DIREITO: INTERFACES

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Seção [Paisagem urbana].p65 8 19/11/2010, 10:59
Inquietudes acerca das práticas de
planejamento e gestão democrática da
cidade e seus impactos na conformação da
paisagem

Eloisa Carvalho de Araujo

APRESENTAÇÃO

O processo de formação urbana brasileiro tem sido extremamente complexo.


Apreender este processo significa adotar métodos, segundo uma abordagem
interdisciplinar, que possibilitem a sua tradução jurídico-urbanística. A análise
e interpretação urbanística da norma permitem-nos abordar um conjunto dos
aspectos e caracteres de uma cidade mediados por interesses individuais e
coletivos, cujo reflexo se verifica nas práticas de planejamento e gestão de-
mocrática da cidade. Nesse contexto, destaca-se a importância dos princípios,
sólidas referências para interpretação, que constituem via segura no sentido
de garantir ao espaço público urbano o pressuposto fundamental que qualifica
a cidade ao viabilizarem a eficácia social das normas urbanísticas. 1

1 Canaris, em 1989, já definia a importância dos princípios para dar coerência ao sistema
na Ciência do Direito. Segundo ele, princípios não valem sem exceção e podem entrar em
oposição ou contradição entre si, não têm pretensão de exclusividade, ostentam o seu
sentido próprio apenas numa combinação de complementação e restrição recíprocas e,
finalmente, necessitam, para a sua realização, da concretização através de subprincípios
e de valorações singulares com o conteúdo material próprio. No plano do direito pátrio,

Paisagem urbana e direito à cidade, Rio de Janeiro, 2010. p. 9-22. Coleção Direito e Urbanismo

Eloisa Araujo.p65 9 19/11/2010, 11:00


10 Eloisa Carvalho de Araujo

O presente artigo se insere como uma reflexão sobre a pesquisa em


curso denominada “Tradução jurídica e urbanística da paisagem urbana”, de
cujos objetivos aqui apresentados ressaltamos a contribuição teórico-meto-
dológica ao processo de construção do status epistemológico do campo do
Direito Urbanístico brasileiro; a contribuição para a eficácia social da norma-
tiva urbanística; a ampliação da tutela do direito à cidade; e a produção de
metodologia que permita ampliar a abordagem interdisciplinar e mediação
entre os campos do direito e do urbanismo.
A metodologia de desenvolvimento da pesquisa está estruturada nos
seguintes planos: 1) o da contribuição para a construção do estatuto epistemo-
lógico do Direito Urbanístico brasileiro; 2) o da eficácia social da norma; 3) o
das políticas públicas e da gestão democrática das cidades; e 4) dos instru-
mentos jurídicos e urbanísticos de tutela do direito à cidade.
Para melhor elucidar cada um desses planos, a metodologia da pesquisa
inclui a análise de casos-referência,2 buscando priorizar aqueles que conjugam
questões relativas à tutela do direito à cidade, a partir da gestão democrática
da cidade como princípio de interpretação.
A análise dos casos-referência, na perspectiva da eficácia social da norma,
está sendo elaborada com base em método sociojurídico crítico. Para tanto,
está em curso o estudo de municípios, através de seus planos diretores e da
legislação complementar, assim como do papel das políticas de reabilitação
de centros urbanos metropolitanos.
Nesse artigo, o município de São Gonçalo foi escolhido como caso-refe-
rência, sobretudo pelas peculiaridades afetas às suas características e à sua
localização.

destacamos o conceito de José Afonso da Silva, para quem os princípios são verdadeiros
mandamentos nucleares de um sistema.
2 Casos-referência, denominação introduzida e adotada por Cavallazzi em sua tese de dou-
torado (1993). Segundo a autora, o caso-referência permite a compreensão dos planos da
eficácia jurídica e da eficácia social da norma. Trata-se de caso exemplar, presente na
realidade (objeto real), que passa a constituir uma referência para a construção do objeto
de conhecimento. São casos exemplares, que pela sua importância e complexidade foram
adotados pelo grupo de pesquisa como paradigmas para que o grupo pudesse se
aprofundar no estudo da mediação entre direito e urbanismo, possibilitando a aplicação
das conclusões alcançadas em outros casos semelhantes.

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Inquietudes acerca das práticas de planejamento e gestão democrática da cidade 11
e seus impactos na conformação da paisagem

IMPASSES E POSSIBILIDADES

São muitos os impasses que se observam no campo do direito à cidade. Estes


concernem não só à questão da competência e equidade entre os campos do
direito e do urbanismo, acima referidos, mas também à prática participativa
da gestão urbana. No cenário que ora se apresenta, o que se impõe como
desafio principal é a necessidade de garantir a eficácia social da norma, ou
seja, de tornar exeqüível o conteúdo normativo segundo critérios de legitimi-
dade. Nesse sentido, é fundamental que a interpretação do sentido da norma
busque, sobretudo, um enfoque ampliado do alcance e importância do Plano
Diretor e permita a aplicação dos seus dispositivos.
Questões são reveladas, por ocasião da interpretação dos instrumentos
jurídico-urbanísticos, quanto à dimensão simbólica da cidade, 3 por exemplo,
em especial quanto àquela que aponta para a possibilidade de ampliação do
campo dos possíveis no que diz respeito à tutela da paisagem.
Na realidade, as recentes transformações da sociedade contemporânea 4
têm um significado especial para o indivíduo e afetam de alguma forma sua
qualidade de vida, seja em suas condições objetivas (moradia, transporte,
emprego, salário etc.), seja em suas condições subjetivas (culturais, afetivas,
espirituais, valores e crenças etc.), as quais, de certa forma, tentam se incor-
porar ao conteúdo normativo no âmbito dos planos, programas e projetos.
O princípio de interpretação da gestão democrática da cidade, como
gestão participativa, significa, antes de tudo, reconhecer o lugar da democracia.
Significa viabilizar a democracia participativa, novo paradigma constitucional
para as políticas públicas; ou seja, significa viabilizar a concreção da cidadania. 5

MEDIAÇÃO ENTRE O DIREITO E O URBANISMO: REFLEXÕES

Os estudos e leituras sobre as experiências em curso, em diversas cidades bra-


sileiras, sobretudo as que se inserem em um contexto metropolitano, apontam,

3 Entendendo-se aqui como a evocação de uma cidade multifacetada, com perspectivas de


construção cultural de uma paisagem.
4 Para Giddens, 1991, tal processo é agravado pelo fato de que a modernidade é inerentemente
globalizante e acena para a existência de um mundo exterior, mais extensivo e perigoso, que
conduz cada vez mais a uma transformação da intimidade no enfrentamento dos desafios.
5 Cf. Fernandes e Alfonsin, 2003.

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12 Eloisa Carvalho de Araujo

na perspectiva da mediação entre o direito e o urbanismo, para um campo em


que se compreenda em seu espaço próprio – culturalmente rico e diversificado
e que pertence a todos os seus habitantes –, o direito dessas pessoas de en-
contrar nesse espaço condições necessárias para sua realização política, social
e ecológica, assumindo deveres de solidariedade. 6
Nesse aspecto, a interpretação urbanística da norma possibilita-nos re-
velar algumas dimensões importantes a serem consideradas no desenvolvi-
mento de planos, programas e projetos para cidades contemporâneas, tais
como: o acesso à cidade, compreensão da cidade como bem público acessível
a todos; a cidade como produção histórica da população urbana, ou seja, que
os espaços construídos e as referências culturais e simbólicas conferem à
cidade uma fisionomia singular; a cidade mais atrativa, onde políticas públicas,
legitimadas pela população, contemplam uma distribuição mais democrática
de recursos, reorientando soluções socioespaciais e contemplando ações co-
letivas; a cidade com qualidade, onde prevalecem medidas voltadas para a
qualidade de vida urbana, que associam o equilíbrio ambiental com a demo-
cratização de equipamentos e serviços e com a redistribuição de recursos,
além do acesso à informação.
No entanto, percebe-se que a simples incorporação de certos conceitos
na legislação municipal e urbanística não significou, até o presente momento,
mudança expressiva na relação do Estado com o universo daqueles não incluí-
dos social e espacialmente na cidade. Esse fato que encontra explicação na
não socialização do controle da norma, pois no campo do uso e da ocupação
do solo há enormes contradições na gestão das administrações municipais,
que acabaram por ignorar a cidade real. 7
A Constituição Federal de 1988, no que diz respeito à competência dos
municípios para legislar, conferiu ao Poder Legislativo Municipal um papel
fundamental no que se refere ao estabelecimento das diretrizes gerais da
política de desenvolvimento urbano, com o objetivo de ordenar o pleno de-
senvolvimento das funções sociais da cidade e de garantir o bem-estar de

6 Conteúdo da “Carta mundial pelo direito à cidade”, apresentada no Fórum Social Mundial
de 2003.
7 Para Cavallazzi e Araujo, 2003, mesmo que caiba ao município a competência privativa
de legislar sobre assuntos de interesse local, ainda persistem, no campo do uso e ocupação
do solo, enormes contradições na gestão das administrações municipais, inviabilizando
a inclusão socioespacial de parcela significativa de população.

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Inquietudes acerca das práticas de planejamento e gestão democrática da cidade 13
e seus impactos na conformação da paisagem

seus habitantes, tendo como instrumento básico o Plano Diretor. 8 Também


ao município, na qualidade de entidade político-administrativa autônoma, nos
termos do art. 18 da Constituição Federal de 1988, foi atribuída a competência
privativa de “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial,
mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do
solo urbano”. 9 Detém, ainda, o município a competência privativa de legislar
sobre assuntos de interesse local, ou seja, aqueles em que se configure a pre-
dominância do interesse do município sobre o do estado ou o da União, reper-
cutindo direta e imediatamente na vida municipal.
Outro aspecto notável, constante na Constituição Federal, é a consagração
da função social da propriedade (inciso XXIII do art. 5º), no capítulo que trata
dos Direitos e deveres individuais e coletivos, ao lado da garantia ao direito de
propriedade (inciso XXII do art. 5º). Esse conceito de função social da proprie-
dade se refletiu no capítulo II do título VII da Constituição, quando vinculou a
função social da propriedade urbana ao “atendimento das exigências funda-
mentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”, estabelecendo
que “a política de desenvolvimento urbano tem por objetivo ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus
habitantes.” 10
No que se refere à função social da propriedade rural, o capítulo III do
mesmo título VII da CF, em seu art. 186, estabelece os requisitos para que se
verifique o atendimento a tal premissa. Nos termos do art. 182 da CF, cabe
aos municípios, especialmente àqueles com mais de 20.000 habitantes, e ao
Distrito Federal o atendimento dos seguintes requisitos: editar um Plano Diretor,
a ser aprovado pela Câmara Legislativa, que se constituirá como instrumento
básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana do respectivo
território; estabelecer a Política de Desenvolvimento Urbano, com o objetivo
de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e de garantir
o bem-estar de seus habitantes; e garantir o cumprimento da função social da
propriedade urbana, o que será alcançado mediante o atendimento das exi-
gências fundamentais de ordenação da cidade, expressas no Plano Diretor.

8 Art. 182 da Constituição Federal.


9 Art. 30, VIII, da Constituição Federal.
10 Art. 182 da Constituição Federal.

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14 Eloisa Carvalho de Araujo

Destacam-se, ainda nesse aspecto, instrumentos como o usucapião ur-


bano, 11 conferindo domínio àquele que “possuir como sua área urbana de até
duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e
sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, desde que não
seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”.
Em outro campo, a Lei Federal nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979,
que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano, considerada como norma
urbanística de caráter geral e que orienta os estados, o Distrito Federal e os
municípios sobre o assunto, permite aos mesmos editar normas complemen-
tares para atender às suas peculiaridades, desde que não sejam contrárias ao
estabelecido na legislação federal. Essa Lei já previa a possibilidade da Prefei-
tura Municipal ou do Distrito Federal virem a regularizar parcelamento não
autorizado ou executado sem a observância das determinações do ato admi-
nistrativo de licença, “para evitar lesão aos seus padrões de desenvolvimento
urbano e na defesa dos adquirentes de lotes” (art. 40 da Lei nº 6.766/79).
Porém, em decorrência dos padrões bastante rígidos estabelecidos pela mesma
para a realização de loteamento urbano, a regularização se tornara muito
difícil. Assim, foi editada a Lei Federal nº 9.785, de 29 de janeiro de 1999, a
qual introduziu diversas modificações na Lei nº 6.766/79, conferindo à legis-
lação municipal a importância devida quanto ao ordenamento de uso e ocu-
pação do solo e demonstrando a nítida preocupação com a questão social e
urbanística que envolve a regularização de loteamentos, em especial os de
baixa renda.
Por outro lado, a Lei nº 9.785/99 passou a se referir à legislação muni-
cipal, seja ao Plano Diretor ou a outro tipo de lei municipal, como fonte de
parâmetros para a determinação de índices urbanísticos, como, por exemplo:
os usos permitidos e os índices urbanísticos de parcelamento e de ocupação
do solo, que devem incluir obrigatoriamente as áreas mínimas e máximas de
lotes e os coeficientes máximos de aproveitamento, a serem definidos pela
legislação municipal para cada zona em que se divida o território do Município
(§ 1º do art. 4º da Lei nº 6.766/79, com a alteração da Lei nº 9.785/99); no caso
de regularização de um parcelamento pelo Poder Público, é admitida a possi-
bilidade de não atendimento ao disposto no § 1º do art. 4º da Lei nº 6.766/79,
ou seja, à alteração dos usos permitidos e dos índices urbanísticos de parcela-

11 Art. 183 da Constituição Federal.

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Inquietudes acerca das práticas de planejamento e gestão democrática da cidade 15
e seus impactos na conformação da paisagem

mento e ocupação do solo anteriormente fixados (§ 5º do art. 40 da Lei nº


6.766/79, incluído pela Lei nº 9.785/99); são considerados como de interesse
público os parcelamentos vinculados a planos ou programas habitacionais de
iniciativa das prefeituras municipais, do Distrito Federal ou de entidades auto-
rizadas por lei, especialmente as regularizações de parcelamentos ou assenta-
mentos. Nessas hipóteses a documentação exigida será a mínima indispensável
ao registro no cartório competente, sendo presumível que o poder público asse-
gurará a realização das obras e serviços necessários e aquelas necessárias para
prevenir as questões dominiais, sendo desconsideradas, pois, as exigências e
sanções pertinentes aos particulares que digam respeito a tais assuntos (art. 53-A
e seu parágrafo único da Lei nº 6.766/79, incluídos pela Lei nº 9.785/99).
A Lei nº 9.785/99 institui as Zonas Habitacionais de Interesse Social
(ZHIS), atualmente denominadas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS)
pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/01).
Atualmente, existe em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto
de Lei Federal nº 3.057, de 2000, que trata da Lei sobre o Parcelamento do
Solo para Fins Urbanos e a Regularização Fundiária Sustentável de Áreas Ur-
banas, revogadora da Lei nº 6.766/79. Tal projeto, que edita uma nova norma
de parcelamento do solo com objetivo de atender às mais recentes demandas
da sociedade, já teve vários substitutivos, tendo sido o último apresentado
em 01/12/2005 perante a Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara
dos Deputados.
Diante do quadro acima, ficam evidenciadas, a partir dos dispositivos
constantes do Estatuto da Cidade, duas grandes preocupações: o tratamento
das questões urbanísticas em conjunto com as questões ambientais e com o
cidadão, garantindo a este o direito a cidades sustentáveis, no que se inclui o
direito a moradia. Sobre tal direito, há que se relembrar que a Emenda Cons-
titucional nº 26, de 14/02/2000, introduziu na Constituição Federal, entre os
direitos sociais, o direito a moradia, com a instituição de uma regularização
fundiária, considerada em sua acepção ampla (tanto urbanística quanto ambien-
tal), principalmente em relação às ocupações por população de baixa renda,
permitindo o estabelecimento de normas especiais. A Emenda deu particular
atenção à população de baixa renda, indicando diversos instrumentos, entre
os quais: a instituição de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS); o usuca-
pião especial de imóvel urbano (para aquele que possua por cinco anos inin-
terruptos imóvel de até 250 m², desde que não seja público), destacando-se o

Eloisa Araujo.p65 15 19/11/2010, 11:00


16 Eloisa Carvalho de Araujo

usucapião coletivo permitido para áreas com dimensões superiores, ocupadas


por famílias de baixa renda; e a concessão de uso especial para fins de mora-
dia – vetada no Estatuto da Cidade, mas admitida pela Medida Provisória 2.220,
de 04.09.2001 – para ocupação de imóvel público (por cinco anos ininterruptos,
anteriores a 30/06/01, com dimensão de até 250 m²), permitida a concessão
coletiva para áreas com dimensões superiores, ocupadas por famílias de baixa
renda. Indicou, ainda, a assistência técnica e jurídica gratuita; a obrigatoriedade
da participação da sociedade na elaboração e no monitoramento do Plano
Diretor e na gestão democrática da cidade, por meio de participação em con-
selhos, debates, audiências, consultas públicas, conferências, de projetos de
lei surgidos da iniciativa pública e, ainda, da contribuição com planos, progra-
mas e projetos de desenvolvimento urbano, inclusive mediante uma gestão
orçamentária participativa. Por fim, salientou a necessidade de simplificação
da legislação sobre o parcelamento, uso e ocupação do solo e sobre as normas
edilícias, reduzindo-se, na medida do possível, a burocracia existente e os
custos, que forçosamente irão incidir, afinal, sobre os preços dos lotes.
De forma resumida, podemos ressaltar alguns instrumentos de política
urbana dirigidos ao controle da sobrevalorização/especulação imobiliária e à
regularização dos assentamentos informais e precários que têm forte interfe-
rência nas questões habitacionais: o usucapião urbano para áreas privadas; a
concessão do Direito Real de Uso de terras públicas; as Zonas ou Áreas de
Especial Interesse Social, que estabelecem parâmetros diferenciados do restante
da cidade para áreas ocupadas (loteamentos irregulares, favelas), vazios urba-
nos ou, ainda, propriedades privadas de interesse para habitações populares.
Outros instrumentos também podem ajudar, se forem aplicados ade-
quadamente, a amenizar problemas habitacionais, dentre os quais: o Solo
Criado – outorga onerosa do direito de construir –; o IPTU Progressivo, que
pode gerar renda para um Fundo de Desenvolvimento Urbano/Habitacional; e
as Operações Interligadas ou Urbanas, quando envolvem em suas negociações
projetos que beneficiam ou privilegiam as habitações populares.
Tais iniciativas configuram a modelagem de um marco político-institu-
cional para enfrentamento das necessidades habitacionais, em relação ao qual
ainda podemos destacar: a aprovação da Nova Política Habitacional, em 2004,
que inclui a revisão dos programas de urbanização de favelas e a ampliação
do acesso a moradia; a ampliação dos recursos e fontes; a inversão de priori-
dades – foco nas faixas de renda que ganham até 5 salários mínimos/mês,

Eloisa Araujo.p65 16 19/11/2010, 11:00


Inquietudes acerca das práticas de planejamento e gestão democrática da cidade 17
e seus impactos na conformação da paisagem

com ênfase na população que ganha até 3 salários mínimos/mês –; a ampliação


dos subsídios; a criação do Sistema e do Fundo Nacional de Habitação de
Interesse Social; novos programas de Assistência Técnica e Desenvolvimento
Institucional; e a articulação da participação dos estados e municípios na Polí-
tica Nacional de Habitação. Já mais recentemente, o lançamento do Programa
de Aceleração do Crescimento (PAC/Habitação), em 2008, incluiu ações no
âmbito da urbanização de favelas, da produção de novas moradias, da assis-
tência técnica para produção habitacional, da revisão/elaboração de Planos
de Habitação, consolidando, no mesmo ano, a formulação e regulamentação,
pelo Ministério das Cidades, do Plano Nacional de Habitação. Em 2009, tais
iniciativas consolidaram-se através do Programa Minha Casa Minha Vida e da
Medida Provisória 459/2009, que trata da regulamentação do referido programa
e da regularização fundiária de assentamentos urbanos.
De toda forma, algumas questões se colocam para a reflexão, no sentido
de orientar investimentos e ações no âmbito do direito a moradia. São elas:
Como garantir oferta de terra urbanizada compatível com a demanda de pro-
dução de habitação de interesse social para os próximos 15 anos? Como lidar
com a escassez relativa de terra apta para moradia e com os impactos urbanos
e ambientais da localização da moradia?

SÃO GONÇALO: A IMPORTÂNCIA DO CASO-REFERÊNCIA

O caso do município de São Gonçalo se insere aqui não só pela relevância do


tema a ser tratado, mas também por causa de suas características e sua loca-
lização. Integrante da região metropolitana do Rio de Janeiro, São Gonçalo se
situa próximo à cidade do Rio de Janeiro e junto à face leste da Baía de Guana-
bara, apresentando uma população total estimada de 987.104 habitantes e
uma taxa de urbanização de 100%. 12 O quadro social encontrado no município
o classifica como detentor de um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)
de 0,782, o que lhe confere perfil de uma população potencialmente deman-
dante de serviços sociais. Predomina quadro socioespacial de diferentes ca-
racterísticas urbanas conforme as diferentes localidades do município, que
são pouco integradas entre si e que estão dispersas no vasto território. São

12 Dados extraídos do Censo IBGE, 2000; e, a estimativa população de 2007, da Fundação


Cide.

Eloisa Araujo.p65 17 19/11/2010, 11:00


18 Eloisa Carvalho de Araujo

Gonçalo apresenta características de cidade dormitório, com largas faixas de


ocupações subnormais, grande contingente de população de baixa renda, mão-
de-obra farta e com postos de trabalho mais qualificados fora do município.
Trata-se de área estratégica, incorporada ao eixo de expansão Niterói / Itaboraí,
escolhida, dentre outras, para sediar instalações do Complexo Petroquímico
do Estado do Rio de Janeiro (COMPERJ) como o Centro de Inteligência e o
Centro de Escoamento Líquido do COMPERJ, este último servindo para arma-
zenamento intermediário, com o objetivo de aperfeiçoar o escoamento entre
Itaboraí e os terminais de carregamento na Baia de Guanabara.
Por um lado, impactos são previsíveis a partir de um cenário onde a dinâ-
mica demográfica e econômica se reflete sobre o território municipal e regional,
sobretudo com a implantação do COMPERJ e do possível arranjo físico-territo-
rial e econômico decorrente dessa implantação. Por outro, o município de São
Gonçalo apresenta uma paisagem composta por um complexo mosaico espacial,
com conotações sociais de toda ordem. A cidade, que poderia ter seu cresci-
mento criteriosamente planejado, vem se expandindo de forma desordenada,
produzindo uma paisagem urbana deteriorada e acabando por propiciar pai-
sagens permeadas por conflitos de natureza urbanística, ambiental e social. 13
Com a revisão de seu Plano Diretor já concluída, foi criada em São Gonçalo,
recentemente, legislação municipal sobre o tema da regularização fundiária.
Trata-se da Lei municipal nº 071/2007, 14 que aborda a questão da regularização
de áreas do município ocupadas de forma irregular para fins de moradia. 15

13 Informações do Plano Diretor Participativo do Município de São Gonçalo, 2006.


14 O título de moradia terá efeito para registro no cartório de registro de imóveis (RGI) e
pode ser transferido para os herdeiros em caso de falecimento do titular. Entretanto, o
herdeiro não poderá ter imóvel em seu nome e deverá residir no local. A comprovação
do tempo de moradia poderá ser feita apresentando um comprovante de pagamento de
conta de fornecimento de luz ou qualquer outro serviço. O dono do imóvel também
poderá acrescentar à sua posse o tempo de moradia de seu antecessor, desde que ambas
sejam contínuas. Com isso, a Prefeitura terá maior controle de seus imóveis (terras) e
regularizará a situação de outros que estão ocupados. Conseqüentemente, os novos imó-
veis irão pagar impostos e gerar mais receita para a Prefeitura.
Com o advento do Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro (COMPERJ), a
saída é regulamentar e normatizar, para que daqui em diante a Prefeitura possa ter um
controle maior sobre o crescimento habitacional da cidade.
15 Segundo depoimentos dos agentes públicos locais, a lei irá beneficiar inúmeras famílias
que moram em áreas invadidas e não possuem documentação legal de sua residência.

Eloisa Araujo.p65 18 19/11/2010, 11:00


Inquietudes acerca das práticas de planejamento e gestão democrática da cidade 19
e seus impactos na conformação da paisagem

No entanto, a nova lei só terá resultado positivo se for realizado um acompa-


nhamento contínuo por parte das autoridades na questão habitacional. A Pre-
feitura deverá acompanhar e cadastrar as famílias que hoje moram em terras
do município, identificando as áreas que não foram ocupadas com a finalidade
de preservá-las.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De todo modo, a interpretação sobre a normativa urbanística desse caso-refe-


rência, especialmente a advinda de profissionais do direito e de urbanistas,
contribui para a percepção do alcance ampliado do Plano Diretor, e da aplicação
de seus dispositivos, na construção de novos sentidos da norma urbanística,
segundo princípios da função social da cidade.
A interpretação dos princípios de planejamento e gestão democrática
da cidade, em pauta, nos permite observar que a eficácia social da norma, na
perspectiva da mediação entre os campos do direito e do urbanismo, só será
de fato alcançada se houver esforços no sentido de fortalecer institucional-
mente o município no que diz respeito à sua capacidade de formular políticas,
de responder a novos desafios e de incorporar, nos processos de formulação
e implementação de políticas públicas, novas temáticas e novas perspectivas,
características da sociedade contemporânea.

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Através desta, todos poderão regularizar a situação de seu imóvel e valorizar seu bem.
Nas áreas onde não for possível identificar todos os moradores, será dado o título de
concessão coletiva. O título de concessão de uso especial para fins de moradia não poderá
ser concedido em situações em que o possuidor tiver título de imóveis, utilizar o imóvel
para outros fins que não o de moradia, estiver em área de preservação ambiental ou em
área de risco. No caso de áreas de risco e de preservação ambiental, o município deverá
reassentar os cidadãos em outras áreas do município.

Eloisa Araujo.p65 19 19/11/2010, 11:00


20 Eloisa Carvalho de Araujo

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Eloisa Araujo.p65 21 19/11/2010, 11:00


22 Eloisa Carvalho de Araujo

RESUMO

Trata-se de artigo com base na pesquisa denominada “Tradução jurídica e


urbanística da paisagem urbana”, que, na perspectiva de promover o diálogo
entre urbanismo e direito, qualifica a interpretação do sentido da norma, bus-
cando, sobretudo, um enfoque ampliado do alcance e importância do Plano
Diretor que permita a aplicação dos seus dispositivos nos campos sociourba-
no e ambiental. O artigo, além de relacionar-se com a estrutura da referida
pesquisa nos planos do estatuto epistemológico do direito urbanístico brasi-
leiro, da eficácia social da norma, das políticas públicas e da gestão democrá-
tica das cidades, além dos instrumentos jurídicos e urbanísticos de tutela do
direito à cidade, inclui a análise de caso-referência do município de São Gon-
çalo, priorizando a conjugação de questões relativas à tutela do direito à cidade,
a partir da gestão democrática da cidade como princípio de interpretação.
Palavras-chave: urbanismo, direito urbanístico, cidade, norma, planejamento
e gestão urbana.

ABSTRACT

This article is based on Legal and urban translation of urban landscape search,
which, in view of promoting dialogue between urban and law, qualifies the
interpretation of the meaning of the standard seeking, above all, a focus broad-
ened the scope and importance of allowing Master Plan the implementation
of its devices, in camps and urban social environmental. The article also re-
lates to the structured of that research in the plans of: the epistemological
status of the Urban Brazilian Law; the effectiveness of the social norm; public
policy and democratic management of cities; and the legal instruments and
urban supervision of the City Rights. This includes the analysis of case-refer-
ence of São Gonçalo municipality, prioritizing those that combine issues con-
cerning supervision of the city rights, from the democratic management of
the city, as a principle of interpretation.
Keywords: urbanism, urban law, city, norm, urban planning and management.

Eloisa Araujo.p65 22 19/11/2010, 11:00


Direito à cidade sustentável: um conjunto
de direitos humanos que se complementam

Nina Amir Didonet

INTRODUÇÃO

As cidades são os locais onde se expressa de forma mais intensa e dramática


a degradação socioambiental. As perdas decorrentes dessa degradação vieram
se concentrando principalmente no meio urbano, não somente pelo modo
desordenado como as cidades vêm se estabelecendo, mas também em função
das atividades econômicas e sociais provenientes dos modelos de desenvolvi-
mento dominantes.
A partir da Constituição Federal de 1988, a cidade passou a ter uma
dimensão constitucional, expressa nos artigos 182 e 183, que formam o Capí-
tulo II – Da Política Urbana – do Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira.
Essa nova ordem constitucional institucionalizou o direito à cidade como um
direito humano fundamental, síntese de outros direitos humanos positivados –
dentre os quais o direito a moradia, a trabalho, ao meio ambiente sadio e à
gestão democrática –, os quais requerem, para sua garantia, a sustentabilidade
urbano-ambiental.
O pleno direito à cidade, portanto, deve ser entendido como o direito à
cidade sustentável, o que impõe a necessidade de se promover o diálogo entre
Paisagem urbana e direito à cidade, Rio de Janeiro, 2010. p. 23-53. Coleção Direito e Urbanismo

Nina Didonet.p65 23 21/11/2010, 11:35


24 Nina Amir Didonet

o direito urbanístico e o direito ambiental, no sentido de se afirmar que a


perspectiva jurídica urbano-ambiental é essencial para a garantia do direito à
cidade sustentável.
Buscando um caminho paralelo para as questões urbanas e ambientais,
que passaram a convergir para um mesmo terreno de desafios, este estudo
propõe, conforme interpretação do campo jurídico brasileiro e de documentos
internacionais por ele recepcionados, ser o direito à cidade sustentável um
pressuposto para o cumprimento das funções sociais da cidade. Além disso,
pretende demonstrar que para construir este direito à cidade que emerge da
nova ordem constitucional é preciso reconhecer que os direitos humanos que
o estruturam se interrelacionam de forma harmoniosa, sendo complementares
uns aos outros e reafirmando-se mutuamente.

A URBANIZAÇÃO NO BRASIL: APONTAMENTOS

As cidades constituem lugar privilegiado de realização dos direitos fundamen-


tais. É na cidade que se concentra a maioria das construções, infra-estruturas e
serviços, o sistema institucional e político. 1 A cidade é, também, um importante
centro de concentração e crescimento populacionais. Até 2030, 60% da humani-
dade estará vivendo em zonas urbanas, onde hoje vive 50% da população mun-
dial, o que correspondente a aproximadamente 3,4 bilhões de pessoas. 2
No Brasil, essa realidade ocupa cada vez mais espaço. Com a industrializa-
ção, que em 50 anos – entre 1930 e 1980 – cresceu a taxas médias de 7,5% a.a.,
o Brasil deixou de ter uma população predominantemente rural e moldou uma
sociedade urbana e industrial, promovendo a reorganização do território nacional
e a concentração industrial na região Sudeste. 3 O Relatório sobre a Situação da
População Mundial 2009, do Fundo das Nações Unidas para a População, revela
que as zonas urbanas no Brasil abrigam 86% da população do país, correspon-
dendo em 2009 a aproximadamente 166,5 milhões de habitantes. 4
O processo mundial de intensificação do fenômeno urbano tem como
uma de suas principais características o agravamento dos problemas ambientais

1 Corfee-Morlot, Cochran e Teasdal, 2008, p. 78.


2 Fundo das Nações Unidas para a População, 2009, p. 105.
3 Santos, 2008. p. 187.
4 Fundo das Nações Unidas para a População, 2009, p. 100.

Nina Didonet.p65 24 21/11/2010, 11:35


Direito à cidade sustentável: um conjunto de direitos humanos que se complementam 25

e dos conflitos socioambientais. 5 No Brasil, a rápida urbanização que se deu a


partir da década de 1930 acarretou transformações estruturais no território e
nas condições socioeconômicas, culturais e ambientais. 6 Com uma taxa de cres-
cimento urbano ainda expressiva – 1,5% entre 2005 e 2010 – o quadro urbano,
que hoje conta com mais de 5.500 municípios, ainda não se consolidou. 7
A produção do espaço urbano está permeada de desigualdades e esta-
beleceu-se, em grande escala, à revelia das normas urbanísticas e ambientais.
Nesse processo, podem ser verificadas duas instâncias opostas, uma adequada
à legislação e outra marcada pela ilegalidade e pela marginalidade. O resultado
são cenários urbanos marcados por situações consolidadas de exclusão social,
bem como uma diversidade de formas e de intensidades de degradação ambien-
tal. 8 Além disso, os processos combinados de urbanização e globalização têm
potencializado a adoção de padrões de produção e consumo que se revelam
insustentáveis a médio e a longo prazo. 9
A cidade marcada por esses obstáculos passou a ser palco da associação
de processos de injustiça social e de injustiça ambiental, 10 não sendo capaz
de produzir um desenvolvimento que atenda aos preceitos constitucionais de
equilíbrio ambiental e de qualidade de vida. Manter as opções das futuras

5 Evidências trazidas pelos levantamentos realizados pelo IBGE, pelo Worldwatch Institute
e pela European Foudation for the Improvement of Living and Working Conditions.
6 Fernandes, 2005, p. 181.
7 Fundo das Nações Unidas para a População, 2009, p. 100.
8 As desigualdades sociais fizeram aflorar os contornos da cidade informal, fruto da ocupa-
ção desordenada de espaços impróprios à habitabilidade. Os assentamentos irregulares,
excluídos da regularização fundiária e dos sistemas financeiros formais, somam aproxi-
madamente 40,5% dos domicílios urbanos do país e estão concentrados nas áreas prote-
gidas contra edificações ou não disponibilizadas para o mercado imobiliário formal pela
legislação urbano-ambiental (Maricato e Santos Júnior, p. 1). São regiões frágeis, protegidas
por sua função ambiental ou não passíveis de urbanização, que, uma vez ocupadas,
podem provocar enchentes, erosões, contaminações dos mananciais, entre outros desas-
tres socioambientais. Essas áreas são marcadas pela ausência do Poder Público e dos
serviços por ele prestados, o que levou a literatura a estabelecer dicotomias para a sua
denominação – por exemplo, legal/ilegal, formal/informal, oficial/não oficial –, que man-
tém forte conteúdo político ideológico.
9 As evidências apresentadas pelo IPCC mostram que tais padrões terão que sofrer alterações
substanciais com vistas a estancar e, se possível, reverter processos que levam ao
desequilíbrio ambiental global.
10 Sobre justiça ambiental, ver Cavedon, 2010, p. 161-185.

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26 Nina Amir Didonet

gerações e garantir a sobrevivência das espécies e de seu hábitat depende de


uma política de desenvolvimento urbano condizente com esses objetivos.
Entretanto, segundo Ermínia Maricato, “a política urbana nunca esteve
entre as prioridades do Estado brasileiro”, uma vez que

[o]s sucessivos governos nunca tiveram um projeto estratégico para as


cidades brasileiras envolvendo, de forma articulada, as intervenções no
campo da regulação do solo urbano, da habitação, do saneamento ambien-
tal, e da mobilidade e do transporte público. 11

Com o advento da Constituição Federal de 1988, o federalismo brasileiro


foi revitalizado, incluindo os municípios no rol dos entes federados e atribuindo-
lhes competências próprias. A estrutura político-administrativa da República
Federativa do Brasil 12 introduzida a partir dessa nova ordem constitucional
passa, então, a ser composta pela União, pelos estados membros, pelo Distrito
Federal e pelos municípios, 13 todos entes autônomos. 14
Essa autonomia, além de assentar-se em órgãos governamentais próprios,
pressupõe a repartição de competências 15 – definidoras de sua atuação nor-
mativa e administrativa – entre os entes federativos, o que vem a ser estabele-
cido pela própria Carta Magna e constitui o núcleo do Estado Federal. 16

11 Maricato e Santos Júnior, p. 3.


12 Como expõe José Afonso da Silva, o Brasil assumiu o federalismo como forma de Estado
com a proclamação da República, em 1889, tendo o Estado federal sido mantido desde
então, ainda que apenas formalmente na Constituição de 1967 e em sua Emenda 1/69,
vindo a ser declarado – e não instituído – também pela Constituição Federal de 1988
(Silva, 2003, p. 99).
13 Art. 1º e 18 da Constituição Federal.
14 Os pressupostos da autonomia federativa estão configurados nos arts. 18 a 42 da Cons-
tituição Federal.
15 Quanto ao conceito de competência, observa Diogo de Figueiredo Moreira Neto que, para
entendê-lo, é preciso associá-lo ao conceito de poder político, que é concentrado em
grande parte no Estado federal, sendo por isso denominado poder estatal, mas que é
distribuído espacial e funcionalmente entre os entes federados, inclusive aos Municípios.
Segundo o autor, a competência de cada ente seria a “quantidade ou qualidade do poder
que a lei atribui às entidades, órgãos ou agentes públicos para manifestar a vontade
estatal.” (Moreira Neto, 1992, p. 89.)
16 Cf. Silva, 2003, p. 100; 475.

Nina Didonet.p65 26 21/11/2010, 11:35


Direito à cidade sustentável: um conjunto de direitos humanos que se complementam 27

Cabe observar que o sistema de distribuição dos poderes estatais ado-


tado pela Constituição Federal reflete a necessidade de se concretizar o fenô-
meno da descentralização política, administrativa e financeira, processo
entendido como a “transferência de receitas e responsabilidades de políticas
públicas para as esferas infranacionais de governo”. 17
O cenário de redemocratização possibilitado pela Nova República a partir
de 1985 foi marcado pelo avanço da representação político-partidária de orien-
tação progressista e pelo decréscimo das forças políticas conservadoras, o
que levou a uma maior participação popular na gestão pública; uma crescente
alocação de recursos em gastos sociais, com uma maior participação dos esta-
dos e municípios no seu financiamento; e uma descentralização na realização
de investimentos públicos, com grande participação das esferas infranacionais
de governo. 18
Angela Penalva aponta que, embora esse processo de descentralização
tenha sido no “sentido de redemocratização das estruturas de poder e maior
compromisso com a efetividade dos direitos dos cidadãos”, 19 a formulação
de políticas públicas ainda se dá em um quadro de centralismo, encontrando –
estados e municípios – resistência do governo federal neste âmbito.
Grande influência é exercida, nesse sentido, pelo fato de a maioria dos
municípios e muitos Estados não terem condições financeiras e/ou técnicas
para implantar políticas formuladas localmente, e também porque várias polí-
ticas públicas necessitam que as infra-estruturas que garantem sua aplicação
ultrapassem o alcance local ou regional. 20
Além disso, emendas constitucionais posteriores a 1988 vêm sucessi-
vamente comprometendo a autonomia financeira dos estados e municípios,
como observa Angela Penalva e Liana Portilho Mattos. Enxergando criticamente
e com reserva o pacto federativo, as autoras o consideram, na verdade, um
simples arranjo que, embora tenha elevado o município à categoria de ente
federado, apenas o fez teoricamente, pois, na prática, o direito de pleno exer-
cício dessa condição não lhe foi garantido. 21

17 Santos, 2008, p. 183.


18 Ibid., p. 219.
19 Ibid., p. 218.
20 Ibid., p. 220.
21 Cf. Santos e Mattos, 2006, p. 731-752.

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28 Nina Amir Didonet

Verifica-se, portanto, o desafio de encontrar e consolidar uma estratégia


de crescimento com desenvolvimento humano que não recorra à concentração
do poder estatal. Desafio este que se torna mais complexo e urgente a partir
da percepção das cidades como agentes relevantes no contexto das mudanças
climáticas e dos efeitos dessas mudanças, seja contribuindo para o agravamen-
to desse contexto ou valendo-se de uma gestão urbana capaz de enfrentá-lo.
O mandamento constitucional de que os municípios devem assumir
um papel ativo e operante em relação às políticas públicas voltadas para a
proteção do meio ambiente em seu conceito amplo e para a sustentabilidade
urbano-ambiental, possuindo para o cumprimento desse objetivo competências
tanto legislativas quanto administrativas, constitui um enorme avanço para a
tutela do meio ambiente.
Não obstante essa conquista, a descentralização do poder estatal, para
possibilitar a transformação real dos conflitos urbano-ambientais, precisa não
apenas ser eficaz juridicamente, mas alcançar, pelo critério de legitimidade,
sua eficácia social. 22 Diante da necessidade de consolidação da autonomia
municipal, o reconhecimento do poder local conferido constitucionalmente
aparece, pois, como pressuposto para sua eficácia social, ou seja, para sua
exeqüibilidade propriamente dita.

ESPAÇO URBANO COMO DIREITO DIFUSO: MEIO AMBIENTE NATURAL E


CONSTRUÍDO

Criação humana, as cidades existiam na era agrária e na era industrial, mas


assumem novas características nesta nova era, essencialmente urbana, confor-
me a periodização do tempo histórico proposta por Henri Lefebvre. 23 Observa
o autor que a urbanização, originária do processo industrial de crescimento
da produção econômica, traduz-se em um fenômeno qualitativo, em uma pro-
blemática nova. 24
A cidade contemporânea, um lugar de múltipla e complexa significação,
não pode ser reduzida a um conceito demográfico, cujo critério é meramente

22 A referida legitimidade é reconhecida, no âmbito deste trabalho, como resultado da gestão


urbana democrática.
23 Cf. Lefebvre, 2008, p. 81.
24 Ibid., p. 80.

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Direito à cidade sustentável: um conjunto de direitos humanos que se complementam 29

quantitativo; nem a uma concepção econômica, pautada por elementos de


mercado. 25
Nesse sentido, Milton Santos observa:

Na medida em que a economia se altera profundamente, assim como a


sociedade correspondente, e na medida também em que os tipos de rela-
ções econômicas e de toda ordem mudam substancialmente, as cidades
se tornam rapidamente outra coisa em relação ao que eram até então. 26

Novas relações sociais são então formadas como manifestações repre-


sentativas do modelo civilizatório adotado pela sociedade industrializada,
que considera a cidade seu habitat, conforme demonstram os dados trazidos
anteriormente sobre a elevada taxa de urbanização no mundo – e no Brasil,
em particular.
Convém ressaltar que na evolução das sociedades destacou-se uma nova
lógica de estruturação do espaço urbano. Como sublinha Françoise Choay:

À medida que a cultura ocidental aprofunda sua tomada de consciência


de si através de uma reflexão sobre suas próprias realizações, a cidade
tende a tornar-se seu símbolo por excelência, e o comentário sobre a
cidade um lugar privilegiado para a expressão de uma visão do mundo
e de uma idéia de natureza humana. 27

Segundo Milton Santos, o espaço inclui, além dos homens com seus
diversos tipos de trabalho e de demanda: as firmas, com sua função de produ-
ção de idéias, bens e serviços; as instituições, responsáveis pela ordenação,
produção de normas e legitimações; as infra-estruturas, que são os artefatos
humanos, ou seja, “o trabalho humano materializado e geografizado”; e o
meio ecológico, que, para o autor, “é o conjunto de complexos territoriais que
constituem a base física do trabalho humano.” 28 Esses elementos interagem
uns com os outros a partir de relações que não são apenas bilaterais, mas

25 Cf. Silva, 2006, p. 24-25.


26 Santos, 2008, p. 64.
27 Choay, 1985, p. 68.
28 Santos, 2008, p. 16-17.

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30 Nina Amir Didonet

generalizadas, como esclarece o autor, formando um “Verdadeiro Sistema” de


sistemas. 29
A cidade, entendida como uma multiplicidade dialética de sistemas, no
conceito de Di Franco Ferrarotti trazido por José Afonso da Silva, inclui os
elementos constitutivos do espaço urbano e a interação entre eles. 30 De acordo
com a explicação de Di Franco Ferrarotti, os

diferentes sistemas que, em conjunto, constituem o fenômeno urbano


global, entram necessariamente em colisão uns com os outros e são
precisamente esta colisão, esse desencontro e esse conflito que estão na
base e que tornam possível o desenvolvimento da cidade. 31

Os conflitos sociais 32 que se dão no espaço urbano, típicos dessas rela-


ções generalizadas, geram o espaço e o tempo complexos da cidade, que é
composta tanto pelo urbano como pelo rural, tendo em vista suas caracterís-
ticas de interdependência.
Os conflitos decorrentes do processo de urbanização são, sobretudo,
socioambientais e se expressam na pobreza social, na poluição da água e do
ar, na segregação territorial e precariedade dos espaços ocupados e na perda
de áreas verdes, entre outros fatores. Na sociedade contemporânea, as questões
urbanas vinculadas à degradação socioambiental tornam-se cada vez mais
freqüentes e graves.
O surgimento das novas hipóteses de risco vem agravar esse quadro,
visto que a sociedade contemporânea, marcada pela imprevisibilidade dos
futuros possíveis, 33 passa a ser matizada também por novas formas de con-

29 Ibid., p. 25-26.
30 Cf. Ferraroti, apud Silva, 2006, p. 25.
31 Ibid.
32 É certo que as relações sociais são conflituosas por natureza: tanto sua produção quanto
sua remediação e seu reconhecimento são situações de conflito. Compreender, portanto,
que não é possível eliminar os conflitos ou resolvê-los, é pressuposto para o lançamento
de um novo olhar sobre eles. Em uma nova abordagem, o tratamento dos conflitos é
direcionado à sua transformação em chave para a compreensão das relações sociais con-
temporâneas. Diferente de considerar os conflitos somente como obstáculos a serem supe-
rados, essa nova perspectiva dialética de compreensão os vê também como possibilidades.
33 Sobre o tema, vide Giddens, 2000 e Beck, 2002, 1995, 1998.

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Direito à cidade sustentável: um conjunto de direitos humanos que se complementam 31

flito, o que torna ainda mais complexa a estrutura espacial e temporal da


cidade.
Na perspectiva de Rosângela Lunardelli Cavallazzi,

a paisagem urbana materializa os conflitos sociais em um processo com-


plexo, produto da conjugação dos elementos naturais e artificiais, con-
ceito que participa da construção do espaço urbano com a força dos seus
valores simbólicos. Paisagem urbana que cristaliza a produção de um
espaço urbano dinâmico, composto pela paisagem já consolidada, constan-
temente reinterpretada, a paisagem presente, constantemente modificada
por essa reinterpretação, e a paisagem futura, uma perspectiva. 34

O conteúdo da paisagem urbana é o “resultado do trabalho do homem


no mundo – a arte de transformar a natureza,” 35 conceito que vai além da
dicotomia que a conjugação de obras humanas sobre a natureza parece criar,
como acreditava Hannah Arendt. 36
No mesmo sentido, argumenta François Ost que:

[...] a paisagem é, sem dúvida, uma das melhores ilustrações do “meio”,


tal como o definimos (propriedade emergente das interações homem/
natureza), visto que não é senão a resultante, em constante transforma-
ção, das práticas e usos sociais de uma região determinada. 37

34 Cf. Cavallazzi, 2009.


35 Cavallazzi in Fernandes e Alfonsin, 2010, p. 8.
36 Hannah Arendt, em A condição humana, diferencia e separa o meio ambiente artificial
do natural, uma vez que o sentido arendtiano de “mundo” não se confunde com o de
“terra”, ambos representando a dicotomia do meio ambiente humano. A “terra”, segundo
a autora, é o ambiente natural, o que nos é dado. Entretanto, os homens, dotados de
criatividade, usam sua capacidade de trabalho para construir um segundo ambiente, um
mundo humano artificial. Para ela, o “mundo” se refere ao conjunto de artefatos e de
instituições criados pelos homens, que constituem aquilo que os unifica e os permite
estar simultaneamente separados. É o espaço artificial que sobrevive aos processos bioló-
gicos intergerações, possibilitando que se transcenda a mortalidade inerente ao homem
por meio da memória e das diversas possibilidades de linguagem. Cf. Arendt, 2008.
37 Ost, 1995, p. 301.

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32 Nina Amir Didonet

Com efeito, os homens, juntamente com o produto do seu trabalho


criativo, ou seja, o conjunto de artefatos e de instituições que produzem um
mundo artificial, influenciam o meio ambiente natural e são ao mesmo tempo
influenciados por este, transformando-o, criando algo novo, em um processo
cultural que revela a história humana.
A paisagem urbana como humanização da natureza, portanto, revela
uma dimensão cultural, pois cultura, nas palavras de Marilena Chauí, é “[...] a
maneira pela qual os humanos se humanizam e, pelo trabalho, desnaturalizam
a natureza por meio de práticas que criam a existência social, econômica,
política, religiosa, intelectual e artística.” 38
Essa característica do homem como artífice e, portanto, transformador
do meio, resultado do impulso humano permanente de construir, se intensificou
a partir da cultura material da modernidade, o que é sintetizado por Anthony
Giddens da seguinte forma:

A indústria moderna, modelada pela aliança da ciência com a tecnologia,


transforma o mundo da natureza de maneiras inimágináveis às gerações
anteriores. Nos setores industrializados do globo – e, crescentemente,
por toda parte – os seres humanos vivem num ambiente criado, um ambien-
te de ação que, é claro, é físico, mas não mais apenas natural. Não somente
o ambiente construído das áreas urbanas, mas a maioria das outras pai-
sagens também se torna sujeita à coordenação e controle humanos. 39

Nesse sentido, Milton Santos afirma que o meio ambiente natural, como
“natureza primeira”, deixou de existir quando “o homem se transformou em
homem social, através da produção social”. Para o autor, “[o] meio ecológico já
é meio modificado, e cada vez mais é meio técnico. Dessa forma, o que em
realidade se dá é um acréscimo ao meio de novas obras dos homens, a criação
de um novo meio a partir daquele que já existia [...]”.
Tal entendimento é adotado desde a Conferência de Estocolmo sobre o Meio
Ambiente Humano, realizada em 1972, 40 que reconhece em sua Declaração que:

38 Chauí, 2006, p. 114.


39 Giddens, 1991, p. 66. Grifos do autor.
40 A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, realizada na cidade de Estocolmo,
garantiu definitivamente, segundo Adauto Cardoso, “a legitimidade mundial da questão
ambiental”. Cf. Cardoso, 1991. p. 112.

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Direito à cidade sustentável: um conjunto de direitos humanos que se complementam 33

O homem é ao mesmo tempo obra e construtor do meio ambiente que o


cerca, o qual lhe dá sustento material e lhe oferece oportunidade para
desenvolver-se intelectual, moral, social e espiritualmente. Em larga e tortuo-
sa evolução da raça humana neste planeta chegou-se a uma etapa em que,
graças à rápida aceleração da ciência e da tecnologia, o homem adquiriu o
poder de transformar, de inúmeras maneiras e em uma escala sem preceden-
tes, tudo que o cerca. Os dois aspectos do meio ambiente humano, o natural
e o artificial, são essenciais para o bem-estar do homem e para o gozo dos
direitos humanos fundamentais, inclusive o direito à vida mesma. 41

Como se vê, o conceito de meio ambiente não pode mais estar restrito
ao aspecto natural, devendo abranger o que é artificial ou construído, no sen-
tido da atuação humana, e também os valores históricos e culturais, princi-
palmente quando o meio ambiente a ser considerado é aquele que constitui o
espaço urbano.
A perspectiva, no campo do direito, é a de uma visão da relação homem-
natureza que seja compatível com a proteção do meio ambiente assim consi-
derado. Embora a origem do direito ambiental esteja vinculada à lógica
antropocêntrica-utilitarista, em que o sentido da proteção do meio ambiente se
dá pela sua capacidade de aproveitamento pelo homem, 42 a tendência é o reco-
nhecimento pelo ordenamento jurídico do valor intrínseco do bem ambiental. 43

41 Parte 1. Disponível em: <www.mma.gov.br/estruturas/agenda21/_arquivos/estocolmo.


doc>. Acesso em: 14 set. 2009.
42 Sendim, 1998, p. 85-86.
43 Considerando o homem como centro ao qual está submetido todo o resto do universo,
situado acima ou fora da natureza, como a fonte de todos os valores, o antropocentrismo
clássico não leva em consideração os valores intrínsecos da natureza, mas tão somente
seu valor instrumental, que serve aos interesses humanos. É dado um valor à natureza
que, baseado nas preferências individuais das pessoas, é meramente instrumental e se
identifica com a sua capacidade de aproveitamento para fins humanos, correspondendo
a todas as possíveis relações de utilidade que ela pode representar para o homem. Existem
diferentes correntes que buscam romper com a lógica antropocêntrica-utilitarista, dentre
as quais se destaca o antropocentrismo alargado, o ecocentrismo, o biocentrismo e a
ecologia profunda. Os desdobramentos do debate conceitual sobre o antropocentrismo e
as diferentes concepções filosóficas sobre a relação homem-natureza que buscam superá-
lo são amplamente discutidos na literatura especializada, sob o ponto de vista da evolução
do direito ambiental, conforme se depreende da leitura de Milaré e Coimbra, 2004; Moreira,
2003; Sendim, 1998; Steigleder, 2004; e Ost, 1995.

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34 Nina Amir Didonet

Influenciado pela onda conscientizadora proveniente da Conferência


de Estocolmo, assim como pelas diretrizes e pelos objetivos que se delinearam
a partir do Relatório Nosso Futuro Comum, em 1987, e da Conferência das
Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em 1992
na cidade do Rio de Janeiro, 44 o Brasil, a partir da década de 1980, buscou
desenvolver e adotar uma legislação mais consistente, de visão global e sistê-
mica, sobre a tutela do meio ambiente.
Os marcos normativos voltados para a proteção do meio ambiente, como
as Leis 6.938/81 45 e 7.347/85, 46 a Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988 e a Lei 9.605/98, 47 entre outros, são representativos da cultura
da sociedade contemporânea, que busca superar as insuficiências herdadas
da cultura moderna. 48 Esse movimento proativo pelo aprimoramento da legis-
lação brasileira, no sentido de adoção de uma nova postura para a proteção
do meio ambiente, possibilitou o surgimento e a consolidação de um conceito

44 O Relatório Brundtland, ou “Nosso futuro comum”, foi elaborado pela Comissão Mundial
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1985, e desenvolveu o conceito de desen-
volvimento sustentável. Esse relatório foi posteriormente introduzido no âmbito inter-
nacional pela Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento,
realizada na cidade do Rio de Janeiro em 1992 e também conhecida como Rio-92 ou
Cúpula da Terra, e reforçado pela Agenda 21 na mesma conferência. Conceito controverso,
que possui diferentes versões, o desenvolvimento sustentável busca a compatibilização
entre crescimento econômico e conservação do meio ambiente, sem comprometimento
das necessidades das gerações futuras.
45 A Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), entre outros avanços, instituiu o
Sistema Nacional do Meio Ambiente; estabeleceu a responsabilidade objetiva do poluidor
de reparar os danos causados ao meio ambiente; e, de forma essencial para a o desenvol-
vimento da matéria, incorporou no ordenamento jurídico pátrio o meio ambiente como
objeto específico de proteção, em suas diversas manifestações.
46 A Lei 7.347/85 instituiu a ação civil pública como instrumento processual específico
para a proteção dos interesses difusos e coletivos, entre eles o meio ambiente, trazendo
as atitudes contrárias a seu equilíbrio e proteção para o âmbito da jurisdição.
47 A Lei dos Crimes Ambientais (Lei 9.605/98) dispõe sobre as sanções penais e administra-
tivas derivadas das condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. O advento desta lei
proporcionou a sistematização das sanções administrativas, a tipificação orgânica dos
crimes ambientais e a inclusão da pessoa jurídica como sujeito ativo desses crimes, signi-
ficando um avanço na tutela do meio ambiente.
48 Sobre o tema, a afirmação de Eros R. Grau: “Produto cultural, o direito é, sempre, fruto de
uma determinada cultura. Por isso não pode ser concebido como um fenômeno universal
e atemporal.” (Grau, 2008, p. 20)

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Direito à cidade sustentável: um conjunto de direitos humanos que se complementam 35

de cidade que tem reconhecido os diferentes elementos que a compõem e a


necessária integração e interdependência entre eles, no sentido de um caminhar
articulado das questões urbanas e ambientais, conforme será demonstrado.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, fruto de uma in-
tensa atuação dos movimentos sociais, o direito ao meio ambiente ecologica-
mente equilibrado passou a ser um direito fundamental da pessoa humana,
sendo dedicado ao assunto um capítulo próprio. 49
O fundamento e a extensão da proteção do meio ambiente no Brasil
emanam da genuína preocupação da Constituição Federal de 1988 com o tema,
revelada, sobretudo, através do conteúdo do art. 225. O referido dispositivo
constitucional desenha a estrutura de toda a proteção desse bem de uso comum
do povo, essencial à sadia qualidade de vida, caracterizado, a um só tempo,
por uma dimensão individual e uma dimensão coletiva no que se refere a seus
sujeitos e beneficiários. Por ter como característica principal a indeterminação
dos sujeitos, posto que o meio ambiente pertence a cada um de nós, individual-
mente, porém a todos nós, coletivamente, o direito ao meio ambiente é um
direito difuso, que inclui como titulares ainda as gerações futuras. Assim con-
ceituado constitucionalmente, o meio ambiente é, pela sua titularidade e fina-
lidade, um bem jurídico complexo, que conjuga, segundo a melhor doutrina, 50
os aspectos natural ou físico, artificial ou construído e cultural.
O meio ambiente natural compreende os elementos da natureza, colo-
cados à disposição do homem e para cuja criação ele não concorreu. Segundo
José Afonso da Silva, ele é constituído “pela interação dos seres vivos e seu
meio, onde se dá a correlação recíproca entre as espécies e a relação destas
com o ambiente físico que ocupam”, sendo nesse sentido a definição dada
pela Lei 6.938/81, no art. 3º, I. De acordo com definição do mesmo autor,
meio ambiente artificial é aquele “constituído pelo espaço urbano construído,
consubstanciado no conjunto de edificações (espaço urbano fechado) e dos
equipamentos públicos (ruas, praças, áreas verdes, espaços livres em geral:
espaço urbano aberto)”, 51 que se expressa nos artigos 21, XX, 182, e 183 da
Constituição Federal. O meio ambiente cultural, por sua vez, é definido tanto

49 Capítulo VI do Título VIII da Constituição Federal de 1988.


50 Nesse sentido são os conceitos de Milaré, 2005, p. 64; Silva, 2009, p. 20; e Coimbra, 2002,
p. 32.
51 Silva, 2009, p. 21.

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36 Nina Amir Didonet

por elementos artificiais como por elementos naturais, pois se constitui do


patrimônio turístico, paisagístico, arquitetônico, artístico, histórico, arqueo-
lógico e espeleológico, 52 conforme dispõem os artigos 215 e 216 da Consti-
tuição Federal.
Rosângela Lunardelli Cavallazzi observa, no entanto, que toda a paisagem
é cultural, pois é fruto da interpretação do homem e, portanto, o meio ambiente
cultural não é um terceiro aspecto e sim está imbricado em todo o meio ambiente,
principalmente naquele que constitui o espaço urbano. 53
Embora a Constituição de 1988 tenha previsto no art. 225 apenas os
elementos naturais (“recursos naturais e ecossistemas”) que compõem o meio
ambiente, o lugar em que foi inserido esse artigo – o Título sobre a Ordem
Social – sugere um conceito mais amplo, que incorpore ao termo, juntamente
com o meio natural, também o artificial e o cultural. 54 Essa conceituação
mais abrangente de meio ambiente pode ser inferida também da interpretação
sistemática e teleológica da Constituição, 55 em que o direito fundamental ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado é tutelado não apenas pelo art. 225,
mas também por diversos outros dispositivos constitucionais, tais como os
arts. 23, III, IV e VII, 24, I, VI, VII e VIII, 170, VI, 182, §2º, 186, I e II, 200, VIII e
216. 56
Reconhecendo, portanto, que a noção de equilíbrio do meio ambiente
perpassa a noção de equilíbrio entre o ambiente natural e o ambiente construí-
do, a Constituição Federal de 1988, ao institucionalizar o direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental da pessoa
humana, ampliou a tutela do espaço urbano. Dessa forma, a nova ordem consti-
tucional fundada a partir de 1988 possibilitou às cidades novas possibilidades,
na perspectiva da garantia do direito à cidade sustentável.

52 Cf. Fink e Pereira, 1996, p. 79.


53 Cf. Cavallazzi, 2010.
54 Cf. Coimbra, 2002, p. 35-36.
55 Segundo lição de Eros Grau, “[o] direito é também, no plano inferior ao dos princípios,
sistema de normas, no sentido de que elas se relacionam substantiva e formalmente.
Assim, cada norma é parte de um todo, de modo que não podemos conhecer a norma
sem conhecer o sistema, o todo no qual estão integradas.” Por isso a interpretação da
norma tem que ser sistemática e teleológica (Grau, 2008, p. 23).
56 Fink e Pereira, 1996, p. 80.

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Direito à cidade sustentável: um conjunto de direitos humanos que se complementam 37

MARCO CONSTITUCIONAL E A POLÍTICA URBANA: CONDIÇÕES PARA A


GARANTIA DO DIREITO À CIDADE SUSTENTÁVEL

A previsão, na Constituição Federal de 1988, de um capítulo sobre a política


urbana 57 inaugurou um novo cenário de possibilidades, criando condições, a
partir de suas diretrizes e instrumentos, para o Poder Público intervir na ordem
social urbana, “não somente como terceiro-árbitro, mas também como terceiro-
ordenador.” 58 A gestão urbana, então, encontra terreno fértil para se desen-
volver de forma mais democrática e voltada para a satisfação dos direitos
fundamentais.
Com a previsão do princípio da função social da cidade e da propriedade,
“a ordem jurídica de controle do desenvolvimento urbano foi totalmente re-
formada”, como destaca Edésio Fernandes, 59 passando a ser “reconhecida como
elemento constituinte da ordem pública, e, como tal, de interesse difuso”,
como acrescenta Liana Portilho Mattos. 60
Nessa nova ordem jurídico-urbanística, que tem como pilar estruturante
a função social da cidade e da propriedade pública e privada, 61 o direito de
propriedade não mais se reveste do caráter absoluto e intangível de outrora, 62
pois seu conteúdo social impossibilita que a propriedade seja utilizada em
detrimento do interesse da coletividade. O direito de propriedade torna-se
sujeito a limites que são impostos como pressupostos para o seu integral
reconhecimento pela ordem jurídica, visto que a sua função social gera deveres
de cunho coletivo que decorrem das exigências de convivência em sociedade,
refletindo preocupações complexas e difusas.
A função social da propriedade cria um ônus para o proprietário perante
a sociedade, que, tendo garantido seu domínio sobre o bem, deve atuar de
forma que a vantagem própria traga também vantagens sociais, pois que o

57 O Capítulo II – Da Política Urbana está inserido no Título VII – Da Ordem Econômica e


Financeira, e contém os arts. 182 e 183 da Constituição Federal.
58 Grau, 2008, p. 25-26. Grifos do autor.
59 Fernandes, 2002, p. 60.
60 Cf. Mattos, 2006, p. xiv.
61 Ibid., p. 35-36.
62 Correspondente ao sistema clássico de apropriação de bens instituído pelo Código Civil
de 1916 e fundado no princípio da propriedade individualista irrestrita (art. 524 da Lei
3.071/16).

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38 Nina Amir Didonet

direito de propriedade se desenvolve na satisfação da coletividade. 63 Esse


ônus consiste “em um conjunto de deveres e responsabilidades que permeia
toda a relação de propriedade, e não apenas limita seu exercício”, como observa
Cristiane Derani. 64 Atuando a função social da propriedade, como identifica
José Afonso da Silva, “na própria configuração estrutural do direito de proprie-
dade”, os deveres conexos a essa função social são indissociáveis do próprio
direiro de propriedade, ou seja, inerentes à sua garantia.
Segundo Jacques Távora Alfonsin, as linhas que demarcam os poderes
dos proprietários sobre a propriedade urbana estão definidos pelo objetivo
da política urbana exposto no art. 182 da Constituição, que é o “pleno desen-
volvimento das funções sociais da cidade” e a garantia do “bem-estar de seus
habitantes.” 65 Pois, como relembra Ricardo Pereira Lira acerca das considera-
ções de Eduardo Garcia de Enterría, a configuração da cidade é um fato coletivo
por excelência, e atribuir as decisões sobre esses fatos unicamente aos proprie-
tários significa incorrer em um “sistema político insustentável”, visto que os
membros da coletividade, inclusive os não-proprietários, “têm um verdadeiro
direito à Cidade”. 66
Nesse sentido, afirma Rosângela Lunardelli Cavallazzi que:

O papel do intérprete na definição do conteúdo da função social da


propriedade pública e privada implica na exata dimensão dos efeitos da
nova concepção, muito além da mera limitação do direito de propriedade,
de função social adotada pela Constituição de 1988. Redefine-se o sen-
tido da função social da propriedade pública e privada para abranger a
cidade. 67

Portanto, para que o exercício do direito de propriedade urbana harmo-


nize sua função social com a da cidade deve-se ter em conta o bem coletivo.
Isso torna a proteção de outros direitos fundamentais à sadia qualidade de
vida um pressuposto para a afirmação do princípio da função social da pro-

63 Cf. Derani, 2002, p. 59.


64 Ibid., p. 60.
65 Alfonsin, 2004, p. 49.
66 Lira, 1997, p. 160.
67 Cavallazzi, 2010, p. 14.

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Direito à cidade sustentável: um conjunto de direitos humanos que se complementam 39

priedade, 68 com vistas à construção de “um ‘território’ urbano, no qual o es-


paço ‘apropriado’ pelo direito de propriedade não se constitua num espaço
inapropriado à dignidade humana de todos os cidadãos que ali residem.” 69
Corrobora tal pensamento a consagração do princípio da função social
da propriedade e do princípio da defesa do meio ambiente, no art. 170 da
Constituição Federal, como princípios gerais da ordem econômica e financeira,
devendo ambos orientar o desenvolvimento econômico para que se proceda
de forma social e ambientalmente justa, para as gerações presentes e futuras.
Reconhecido constitucionalmente, o direito à cidade é um novo direito
fundamental positivado cuja origem está no pleno desenvolvimento das fun-
ções sociais da cidade e da propriedade e se expressa na síntese de diversos
direitos humanos anteriormente tutelados de forma individual. Considerado
como expressão do direito à dignidade da pessoa humana, ele é, segundo
Rosângela Cavallazzi, o núcleo de um sistema composto por um “feixe articu-
lado de direitos,” no qual se incluem o direito a moradia, a educação, a saúde,
a trabalho, aos serviços públicos, à preservação do patrimônio cultural, histó-
rico e paisagístico, ao meio ambiente natural e construído equilibrado. 70
Os avanços normativos nos regimes de proteção dos direitos humanos,
quando o direito à cidade é considerado um feixe de direitos articulados,
vêm ressaltar que a eficácia social desse direito depende da articulação dos
direitos que o integram, no sentido de uma complementaridade entre todos.
Isso significa compreender que, embora tenham sido institucionalizados em
diferentes épocas, os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e
ambientais que possibilitam o direito à cidade só o fazem na medida em que
não se excluam ou se diminuam, e sim se enriqueçam e se fortaleçam mutua-
mente.
É nesse sentido a tese da inter-relação ou indivisibilidade de todos os
direitos humanos defendida por Antônio Augusto Cançado Trindade, que alerta
que “[u]ma visão atomizada dos direitos humanos, não os relacionando uns
com os outros, pode facilmente levar a equívocos”. Essa concepção, comple-
menta o autor,

68 Cf. Derani, 2002, p. 11.


69 Alfonsin, 2004, p. 46.
70 Cf. Cavallazzi, 2007, p. 28.

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40 Nina Amir Didonet

com suas distorções, torna-se por outro lado possível pela teoria das
“gerações” de direitos: os direitos humanos, independentemente do modo
como são classificados, revelam uma natureza essencialmente comple-
mentar, interagem uns com os outros; não se “substituem” ou se “suce-
dem” uns aos outros, distintamente do que a invocação infeliz da imagem
da passagem das gerações pareceria indicar. 71

Afirma, portanto, que “[a] emergência de ‘novos direitos’ não pode ter tido o
propósito de comprometer ou minar os avanços e conquistas do passado,
senão o de consolidá-los, enriquecê-los e desenvolvê-los ainda mais.” 72
Sob essa pespectiva, o direito humano fundamental ao meio ambiente
equilibrado, conforme delineado pelo ordenamento jurídico brasileiro, “ao
invés de acarretar restrições ao exercício de outros direitos, vem enriquecer o
corpus dos direitos humanos consagrados”. 73 O direito ao meio ambiente,
portanto, veio somar-se aos direitos humanos preexistentes, todos de igual
relevância para a constituição plena do direito à cidade.
Esse entendimento vai ao encontro da interpretação sistemática e teleo-
lógica dos artigos 182 e 225 da Constituição Federal, que, em conjunto, têm o
objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
garantir o bem-estar de seus habitantes a partir da construção de um meio
ambiente urbano equilibrado, o qual compreende o meio ambiente natural, o
artificial e o cultural. Tal fato demonstra que os interesses públicos de natu-
reza urbanística não podem estar dissociados daqueles relacionados à manu-
tenção do meio ambiente natural ecologicamente equilibrado.
Celso Antonio Pacheco Fiorillo sintetiza sua concepção sobre o tema da
seguinte forma:

Com a edição da Constituição Federal de 1988, fundamentada em sistema


econômico capitalista que necessariamente tem seus limites impostos
pela dignidade da pessoa humana (art.1, incs. II e IV da CF), a cidade – e
suas duas realidades, a saber, os estabelecimentos regulares e os estabe-
lecimentos irregulares – passa a ter natureza jurídica ambiental, ou seja,

71 Trindade, 1993, p. 191-192.


72 Ibid., p. 224.
73 Ibid., p. 194.

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Direito à cidade sustentável: um conjunto de direitos humanos que se complementam 41

a partir de 1988 a cidade deixa de ser observada no plano jurídico a


partir de regramentos adaptados tão-somente aos bens privados ou pú-
blicos, e passa a ser disciplinada em face da estrutura jurídica do bem
ambiental (art. 225 da CF) de forma mediata e de forma imediata em
decorrência das determinações constitucionais emanadas dos arts. 182
e 183 da Carta Magna (meio ambiente artificial). 74

O pleno direito à cidade, portanto, subentende o direito à cidade sustentável,


sendo o diálogo entre as perspectivas jurídico-urbanística e jurídico-ambiental
essencial para a sua garantia.
Buscar o caminhar articulado das questões urbanas e ambientais, que
passaram a convergir para um mesmo terreno de desafios, significa compreen-
der que a sustentabilidade é um pressuposto para o cumprimento das funções
sociais da cidade. Essas funções, então, passam a ser qualificadas como funções
socioambientais da cidade e da propriedade, “a serem determinadas pela legis-
lação urbanística e ambiental através de processos políticos participativos,
sobretudo na esfera municipal.” 75
É importante, aqui, considerar o ensinamento de Guilherme Purvin de
Figueiredo, segundo o qual

a efetividade do princípio da função social da propriedade em sua dimen-


são ambiental significa simultaneamente a implementação dos valores
da ética ambiental, não só no que dia respeito à propriedade móvel,
mas a todas as suas outras formas, quer estejamos analisando bens de
consumo ou de produção, bens móveis, imóveis ou imateriais. 76

A ética ambiental, ao orientar os comportamentos humanos no sentido


da manutenção do equilíbrio ambiental, pressupõe que a relação homem-natu-
reza seja repensada. 77 O reconhecimento do meio ambiente como bem de
uso comum do povo, da supremacia do interesse público na sua proteção, do

74 Fiorillo, 2004, p. 277-278. Grifos do autor.


75 Mattos, 2006, p. xiv.
76 Figueiredo, 2004, p. 38.
77 Nas palavras de Josafá Carlos de Siqueira: “Assim, toda a ética denominada ambiental
visa a um conjunto de condutas normativas que tem por finalidade a articulação das
relações entre homem e natureza ou natureza e cultura.” (Siqueira, 2002, p. 29)

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42 Nina Amir Didonet

poder-dever do Poder Público e do direito-dever da sociedade de defendê-lo e


preservá-lo para as gerações presentes e futuras impõe o alargamento da função
social da propriedade. 78 O respeito à tutela constitucional do meio ambiente
condiciona, assim, o exercício legítimo do direito de propriedade.
Para a viabilização dos objetivos da política urbana pautada nas consi-
derações anteriormente mencionadas, foi aprovado, em 2001, o Estatuto da
Cidade, lei federal de política urbana exigida constitucionalmente. 79 Esse di-
ploma legal orienta o processo de interpretação das normas urbanísticas e
ambientais aplicáveis às cidades. É constituído por princípios e diretrizes que
possibilitam a eficácia social dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal, se
forem reconhecidos em uma prática de gestão participativa. Pautado pelos
princípios do direito urbanístico, o Estatuto da Cidade estabeleceu diretrizes
e objetivos e consolidou-se como um novo marco institucional que vem mobi-
lizando esforços de forma decisiva para a efetividade da nova ordem jurídico-
urbanística.
O referido marco legal abarca uma série de instrumentos jurídico-urba-
nísticos que devem ser empregados pela União, pelos Estados e, principalmente,
pelos municípios para a consecução de suas finalidades, dando a esses instru-
mentos novas conotações, eminentemente quanto à função social da proprie-
dade pública e privada. A aplicação pelos municípios do Plano Diretor e dos
demais instrumentos da política urbana previstos no Estatuto da Cidade deve
atender às diretrizes gerais nele consubstanciadas, de modo a ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana pública
e privada em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos,
bem como do equilíbrio ambiental (art. 1º, parágrafo único, da Lei 10.257/
2001).
Os artigos 1º e 2º do Estatuto da Cidade vislumbram a conexão entre o
meio ambiente natural, o construído e o cultural, a fim de garantir o seu equi-
líbrio os três. A concepção ampla de meio ambiente é, então, reconhecida
como formadora do espaço urbano integrado, tornando a variável ambiental
um pressuposto para a análise e fixação das exigências fundamentais de orde-

78 Vide o segundo item deste trabalho.


79 Considerando a competência da União para estabelecer normas gerais de direito urbanís-
tico (art. 24, I), em 10 de julho de 2001 foi sancionada a Lei Federal n° 10.257, conhecida
como Estatuto da Cidade.

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Direito à cidade sustentável: um conjunto de direitos humanos que se complementam 43

nação da cidade. 80 No art. 2º, I, 81 o Estatuto da Cidade faz constar a garantia


do direito a cidades sustentáveis como a primeira diretriz a ser observada
pelos municípios na elaboração e implantação do Plano Diretor, de forma a
prevenir e corrigir as distorções do crecimento urbano e seus efeitos negativos
sobre o meio ambiente.

POSSIBILIDADES NA PERSPECTIVA DA SUSTENTABILIDADE DAS CIDADES

Na medida em que os conflitos e a degradação socioambientais ganham cada


vez mais concretude e estando as cidades definitivamente inseridas no enca-
deamento desse processo, exige-se que o desenvolvimento, como um direito
humano fundamental, deve estar associado diretamente ao direito a um meio
ambiente ecologicamente equilibrado. 82 A sustentabilidade ambiental e a
melhoria da qualidade de vida são imperativos globais e constitucionais. 83
Cristaliza-se, portanto, a necessidade de enfrentar e transformar alguns dos
paradigmas dominantes, o que exige mudanças fundamentais nas estruturas
mais significativas da sociedade, desde aspectos que têm abrangência global
até aspectos da escala da vida pessoal e cotidiana.
Convém, por isso, a apresentação do que se conceituou como desenvolvi-
mento sustentável a partir de 1987, quando Gro Harlem Brundtland, presidente
da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, apresentou
perante a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) o Relató-
rio Nosso Futuro Comum. Segundo esse relatório, o desenvolvimento susten-
tável busca a compatibilizarão entre o crescimento econômico e a conservação
do meio ambiente, sem comprometer as necessidades das gerações futuras.
A origem da expressão desenvolvimento sustentável, como se vê, surgiu
da tentativa “de não se aceitar como uma fatalidade a idéia de que a relação
objetiva entre o desenvolvimento e a conservação de sua própria base natural

80 Cf. Figueiredo, 2005. p. 157.


81 “Art. 2º. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à
moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços
públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; [...]”
82 Cf. Trindade, 1993, p. 173.
83 Cf. Veiga, 2005, p. 187.

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44 Nina Amir Didonet

pudesse ser de caráter antagônico, e não apenas contraditório”, como observa


José Eli da Veiga. 84 Cristiane Derani, por sua vez, expõe dois aspectos que
justificam o vínculo estreito entre a atividade econômica e a proteção do mundo
natural:

O fator natureza ao lado do fator trabalho e do fator capital compõe a


tríade fundamental para o desenvolvimento da atividade econômica.
Isto seria o bastante para justificar a indissociabilidade entre direito
econômico e direito ambiental. Contudo, existe um outro ponto, tão ou
mais forte que este: a finalidade do direito ambiental coincide com a
finalidade do direito econômico. Ambos propugnam pelo aumento do
bem-estar ou qualidade de vida individual e coletiva. 85

A noção de desenvolvimento sustentável surge, então, da necessidade


de se vincular a temática do crescimento econômico com a do meio ambiente,
buscando superar as pressões a que a natureza está sujeita pela exploração
predatória de seus recursos. Dentre os 22 princípios jurídicos propostos pelo
Relatório Nosso Futuro Comum para informar o desenvolvimento sustentável
e a proteção ambiental, o Princípio 1 traz o meio ambiente sadio como um
direito humano fundamental. 86
No entendimento de Antonio Augusto Cançado Trindade, o desenvolvi-
mento sustentável é, portanto, a expressão dos vínculos existentes entre o
desenvolvimento e o meio ambiente, o desenvolvimento e os direitos humanos
e o meio ambiente e os direitos humanos. 87 Entretanto, desde o início o concei-
to foi alvo de críticas. Segundo Édis Milaré e José de Ávila A. Coimbra, o desen-
volvimento sustentável, como denominação e como estratégia, “não escapa a
uma cosmovisão antropocêntrica, apesar da proposta positiva que traz no
bojo.” 88

84 Cf. ibid., p. 190.


85 Derani, 2008, p. xxi. Grifos da autora.
86 “Todos os seres humanos têm o direito fundamental a um meio ambiente adequado a
sua saúde e bem estar.” (Trindade, 1993, p. 119, nota 15)
87 Uma das conclusões do Seminário Interamericano de Direitos Humanos e Meio Ambiente,
realizado em Brasília em 1992.
88 Milaré e Coimbra, 2004, p. 13.

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Direito à cidade sustentável: um conjunto de direitos humanos que se complementam 45

Ao longo da década de 1990, pelo menos no âmbito dos organismos


internacionais e das políticas governamentais em todo o mundo, a sustentabi-
lidade ambiental vai se firmando como requisito do desenvolvimento, pas-
sando a integrar os documentos e as declarações resultantes das conferências
mundiais desde então 89 e levando as partes signatárias a assumir o compro-
misso e o desafio de concretizar a noção de desenvolvimento sustentável.
Não há que se perder de vista, no entanto, que a sustentabilidade não é
um conceito cristalizado, pois permite várias possibilidades de interpretação,
e que por isso vem permeando diferentes discursos e incentivando práticas
de gestão as mais diversas. Como afirma Henri Acselrad, são expressões inter-
rogativas, “nas quais a sustentabilidade é vista como ‘um princípio em evolu-
ção’, ‘um conceito infinito’, ‘que poucos sabem o que é’, e ‘que requer muita
pesquisa adicional’”. 90 Segundo o autor, desde a construção do conceito de
desenvolvimento sustentável pelo Relatório Brundtland, diferentes “matrizes
discursivas” tentam explicar a noção de sustentabilidade, destacando-se as
noções vinculadas: a) à eficiência na utilização dos recursos naturais, com
vistas a combater o desperdício hoje presente no desenvolvimento, elevando
o mercado como instância reguladora do bem-estar das populações humanas;
b) à escala, no sentido de se estabelecer limites quantitativos ao crescimento
econômico e sua pressão sobre os recursos naturais, pois eficiência não basta
sem suficiência (“capacidade de suporte” do planeta); c) à equidade, segundo
a qual a razão basilar da degradação ambiental seria a mesma da desigualdade
social; d) à auto-suficiência, em que a sustentabilidade das economias nacionais
e comunidades tradicionais viria da liberdade destas diante das relações de
mercado internacionais difundidas globalmente; e e) à ética, segundo a qual a
sustentabilidade é associada a “um discurso atualizado sobre deveres e obri-
gações morais relativos às condições de existência da vida”. 91
Embora se reconheça a importância deste debate, também se deve reco-
nhecer a sua densidade e interdisciplinaridade, e uma pormenorização de

89 Dentre as conferências realizadas pela ONU nas duas últimas décadas, destacam-se as
seguintes: Infância, 1990, em Genebra; Meio Ambiente e Desenvolvimento Humano, 1992,
no Rio de Janeiro; População e Desenvolvimento, 1994, no Cairo; Pobreza e Desenvolvi-
mento Social, 1995, em Copenhague; Assentamentos Humanos – Habitat II, 1996, em
Instanbul; Mulher, 1997, em Beijing; Habitat 2 + 5, 2001, em Nova York.
90 Acselrad, 2009, p. 44.
91 Ibid., p. 43-52.

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46 Nina Amir Didonet

suas características levaria o presente trabalho para rumos diversos dos deli-
mitados pelo objeto de estudo. 92
O que se pode depreender do amplo debate teórico que explora a impre-
cisão e as insuficiências dessas expressões é que a sustentabilidade ambiental
como requisito do desenvolvimento das sociedades é uma meta a ser atingida.
Uma meta que tem como objetivo não um simples “aperfeiçoamento” do que
se convencionou como desenvolvimento, e sim uma verdadeira superação da
concepção determinada pelos padrões modernos de produção e consumo, ou
seja, uma “nova utopia de entrada no terceiro milênio”. 93
Ciente desse debate, o presente trabalho não pretende adotar um con-
ceito de sustentabilidade, que, na linguagem jurídica, representa a flexibilidade
de interpretação de um conceito jurídico indeterminado. Da mesma forma,
não convém adotar um conceito de desenvolvimento sustentável, visto que a
expressão constitui “uma espécie de quadratura do círculo”, como prevê José
Eli da Veiga. 94 O que se busca aqui é a produção de sentidos da sustentabili-
dade urbano-ambiental condizentes com a eficácia social do direito à cidade
no espaço e no tempo que se vive e que se projeta para o futuro.
A realização das funções sociais da cidade e a garantia do direito à
cidade sustentável pressupõem, portanto, a mudança da trajetória de desen-
volvimento das cidades, afim de adequá-las aos preceitos constitucionais de
proteção do meio ambiente e de realização da vida; e não o caminho inverso,
que tem sido percorrido, no sentido de tentar trazer os instrumentos jurídico-
ambientais e jurídico-urbanísticos para dentro da cidade pautada em modelos
de desenvolvimento tradicionais.
No âmbito das competências comuns e concorrentes de ordenação das
cidades e de proteção do meio ambiente, que é o lugar que os diferentes entes
da federação podem compartilhar, entre todos, a cidade que se quer projetar
para as futuras gerações deve-se incorporar de maneira transversal à sustenta-
bilidade, para se delinear um curso apropriado de gestão urbana condizente
com a garantia plena do direito à cidade.

92 Sobre o tema, cf. Veiga, 2005.


93 Ibid., p. 192; 208.
94 Ibid, p. 13. Ver também p. 14.

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Direito à cidade sustentável: um conjunto de direitos humanos que se complementam 47

CONCLUSÃO

Diante do contexto apresentado, em que são identificadas importantes perdas


socioambinetais decorrentes do processo complexo de formação urbana no
Brasil, torna-se urgente o estabelecimento de práticas urbanas capazes de
promover a transição para modelos de cidades sustentáveis, em que o desenvol-
vimento econômico e social esteja indissoluvelmente vinculado à qualidade
do meio ambiente.
A compreensão da cidade como um bem urbano-ambiental, em que é
reconhecida a conexão entre os aspectos natural, artificial e cultural do meio
ambiente, viabiliza a realização da função social da cidade e da propriedade
urbana, cumprindo o objetivo da política de desenvolvimento urbano previsto
constitucionalmente.
Entendida como pressuposto da função social da cidade, a sustentabili-
dade urbano-ambiental qualifica o direito humano fundamental à cidade como
o direito à cidade sustentável. Por isso, é necessário compreender e aperfeiçoar
o direito urbano-ambiental de forma a fortalecer e adequar a legislação muni-
cipal no sentido de garantir o direito à cidade sustentável conforme as diretrizes
apresentadas ao longo do desenvolvimento deste estudo.
Importante destacar, no entanto, que as novas bases normativo-concei-
tuais para a gestão e para o planejamento municipais adotadas deverão ser
seguidas de instrumentos adequados de supervisão e implementação, em que
todos devem ser sujeitos ativos – Poder Público, sociedade civil e cidadãos –
na busca de meios para assegurar a legitimidade das políticas públicas urbanas
e a eficácia social do direito à cidade sustentável.
Para que o objetivo de realização e continuidade temporal e espacial da
cidade como um lugar para a reprodução e manutenção da vida, em todas as
suas formas, seja alcançado, é essencial, no entanto, que os direitos humanos
que corporificam o direito à cidade sustentável sejam reconhecidos como
complementares uns aos outros.

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RESUMO

A degradação do ambiente e das condições de vida resulta de um modo de


abordar o desenvolvimento e o crescimento econômico e social, assim como
da dinâmica de estruturação do espaço urbano, que se tem mostrado insus-
tentável. A tutela constitucional do meio ambiente, em seu conceito amplo –
que envolve o natural e o construído e se expressa no cultural –, pressupõe a
qualificação do direito para além das perspectivas da racionalidade científica
que caracterizam o paradigma moderno de conhecimento. É a partir da com-
preensão de que o meio ambiente não se restringe única e exclusivamente aos
seus aspectos naturais, mas necessariamente se encontra em conexão direta
com aquilo que foi construído pelo homem, que se vislumbra a possibilidade
de transformação da relação homem-natureza. A perspectiva trazida por este
trabalho se fundamenta no diálogo entre as dimensões jurídico-urbanística e
jurídico-ambiental, diálogo que, ao longo da pesquisa, levou à compreensão
de que a sustentabilidade é um pressuposto para o cumprimento das funções
sociais da cidade. Essa perspectiva, portanto, é a de que o direito fundamental
ao meio ambiente veio somar-se aos direitos fundamentais preexistentes, no
sentido de uma complementaridade entre todos, subentendendo-se o pleno
direito à cidade como o direito à cidade sustentável.
Palavras-chave: sustentabilidade das cidades, direitos humanos, direito à ci-
dade sustentável, gestão urbana democrática.

ABSTRACT

The constitutional protection of the environment in its broadest sense – which


involves the natural concept and the constructed concept, both expressed in

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Direito à cidade sustentável: um conjunto de direitos humanos que se complementam 53

the culture concept – requires the definition of the right beyond the perspec-
tive of scientific rationality that characterize the modern paradigm of knowl-
edge. This work was written from the law perspective of the dialogue between
the concept of urban and the concept of environment, this dialogue led to the
realization that sustainability is a precondition for achieving the city’s social
functions. Therefore, this perspective understands that the fundamental right
to environment is compounded by preexisting fundamental rights in the sense
of a synergy between all of them, in this sense, the right to the city, in it entire
perspective, is the right to sustainable city.
Keywords: sustainability of cities, human rights, right to the city sustainable,
democratic urban management.

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Nina Didonet.p65 54 21/11/2010, 11:35
Função social da propriedade e
desapropriação: alguns mitos e verdades

Daniel Almeida de Oliveira

INTRODUÇÃO

Considerando o muito que já foi falado sobre a função social da propriedade,


era de se pensar que não haveria equívocos, na doutrina, na utilização do
conceito, bem como qualquer dificuldade em ministrar uma aula sobre o tema.
No entanto, após análise de vários textos de competentes autores, cons-
tatei contradições. E sempre as mesmas contradições, as quais, por sua singe-
leza, passam despercebidas. Mas são contradições graves, que dificultam o
ensino, a compreensão e, portanto, a discussão do tema. Tais contradições
têm o condão, inclusive, de impedir a discussão perante a sociedade sobre os
efeitos que a função social deve ter sobre a propriedade.
A afirmativa central deste texto é a de que caso seja aceita a idéia prati-
camente pacífica de que o proprietário que não cumpre a função social de sua
propriedade não terá a tutela, pelo Estado, de seu direito de propriedade, em
se declarando o não cumprimento da função social da propriedade, ter-se-á,
na hipótese, uma não-propriedade – inexistirá o direito de propriedade – e,
portanto, não haverá como incidir desapropriação sobre a mesma – uma vez
que não há como se desapropriar coisa não tida sob a propriedade de alguém.

Paisagem urbana e direito à cidade, Rio de Janeiro, 2010. p. 55-71. Coleção Direito e Urbanismo

Daniel de Oliveira.p65 55 21/11/2010, 23:58


56 Daniel Almeida de Oliveira

PROBLEMÁTICA

Numa aula, após eu explicar as origens filosóficas da função social, tentando


expor as conseqüências derivadas do não cumprimento da mesma pelo pro-
prietário – ainda dentro do campo do jusnaturalismo –, os alunos intervieram
dizendo que “não cumprida a função social, ocorrerá a desapropriação”.
Tal idéia, que insere uma ligação inerente entre função social e desapro-
priação, revelou-se incômoda. Rebati meus alunos. Eu havia incorporado aquela
afirmativa aparentemente incontestada dos constitucionalistas de que “a Cons-
tituição somente garante a propriedade que cumpre a sua função social”. Seria
uma conclusão quase imediata após uma análise racional: o Estado somente
deve garantir a propriedade de quem cumprir a função social a que ela deve
corresponder.
Deve-se explicar melhor essa idéia. A propriedade é um direito que se
sustenta na relação entre o proprietário e todos os demais membros da socie-
dade – essa é a teoria que se mantém vitoriosa entre os civilistas. 1 Ela só
existe se os “não proprietários” respeitarem o exercício do domínio do bem
pelo proprietário. Não há como se ter propriedade particular se os membros
da coletividade fizerem uso da coisa apropriada sem o consentimento do
“dono”. Nem mesmo por meio de uma forte repressão, pois não haveria con-
tingente suficiente para conter a população e, ainda que houvesse, a insegu-
rança quanto à manutenção da propriedade seria muito grande, haja vista a
quantidade de indivíduos que não a reconheceriam.
Por outro lado, caso a coletividade entenda por bem respeitar os domí-
nios individuais e passe a respeitá-los, garantir-se-á nessa sociedade o direito
à propriedade individual. O Estado, num segundo momento, positivará essa
garantia, levando-se em conta que, numa república, o Estado é a representação
da coletividade e dos interesses da coletividade – inclusive quanto a dever ou
não resguardar direito individual. Ou seja, o Estado irá declarar que, nos seus
limites, há um direito, o direito de propriedade individual. Como é ele mesmo
quem declarou esse direito, deve também respeitá-lo e fazer com que seja
cumprido.

1 O direito de propriedade (direito real) é oponível a todos e é exercido diretamente sobre


a coisa – sem estas duas características, que só são possíveis caso haja o consentimento
de um sem número de pessoas (a coletividade mesma), não há direito de propriedade
(direito real). Cf. Burgoa, 1972, p. 462 e ss.; e Gomes, 2001, p. 5-6.

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Função social da propriedade e desapropriação: alguns mitos e verdades 57

E o raciocínio continua: se é a coletividade que garante a existência do


direito de propriedade, este não deve se voltar contra ela. Isso decorre da
lógica. Porque no caso da propriedade se voltar contra a coletividade, esta não
teria mais interesse naquela e não teria porque querer sua proteção. Não ha-
veria razão – pelo menos no campo da argumentação, dos interesses – de a
coletividade continuar respeitando a propriedade privada. Pelo contrário, a
coletividade iria se voltar contra ela e querer sua eliminação.
Passando essa situação para o direito, pode-se dizer que o Estado é
legitimado pela coletividade. Então, os direitos positivados só são legítimos
se reconhecidos por essa mesma coletividade. Assim, como a coletividade
não teria interesse em reconhecer e, muito menos, em manter um direito que
lhe fere, o direito positivo deve deixar expresso que, tendo o possuidor de um
direito conferido pela sociedade cometido uma falta em relação a ela no exercí-
cio desse direito, este deixará de ser tutelado pelo Direito Positivo, pelo Estado.
Foi isso que, no dizer dos constitucionalistas brasileiros pesquisados, 2
ocorreu na Constituição Federal de 1988. Esta teria feito uma ressalva quanto
ao reconhecimento do direito de propriedade: “Art. 5º [...] XXII – é garantido o
direito de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá a sua função social”.
Repetindo o que se disse acima sobre o entendimento dos constitucionalistas:
a Constituição Federal só garante o direito de propriedade caso este seja exer-
cido de acordo com a sua função social, ou seja, enquanto este respeitar, ou ao
menos não ferir, os interesses da coletividade. Essa conclusão é encontrada
em praticamente todas as obras que tratam do tema. 3

2 Os seus nomes serão mencionados ao longo do texto.


3 Por todos, cito os que seguem. Silva, 1998, p. 286: “Com essa concepção é que o intérpre-
te tem que compreender as normas constitucionais, que fundamentam o regime jurídico
da propriedade: sua garantia enquanto atende sua função social.” (grifei); Collado, 1979,
p. 122: “a função social [...] constitui um princípio ordenador da propriedade privada e
fundamento da atribuição desse direito, de seu reconhecimento e da sua garantia mesma,
incidindo sobre seu próprio conteúdo.”; Oliveira e Theodoro, 2009: “Portanto, a função
social possui caráter de dever coletivo, estando o direito à propriedade garantido se sua
função social for cumprida”; Almeida, 2009: “A função social foi elevada a patamar de
garantia constitucional no inciso XXIII, do artigo 5o, que é topologicamente posicionado
de forma estratégica, imediatamente depois do inciso que garante o direito de proprie-
dade. Isso significa que o Estado deve garantir o direito de propriedade, mas somente
quando atender à sua finalidade social.”; e Mello: “[...] só se tem por atendida a função
social que condiciona o exercício do direito de propriedade, quando [...]” (grifei).

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58 Daniel Almeida de Oliveira

Talvez o fato de o conceito de função social ser muito vago tenha impe-
dido que se contestasse a afirmação acima. No entanto, tal assertiva encontra
um grande obstáculo quando se interpreta o art. 182 da CRFB. Isso porque tal
artigo diz que caberá ao Plano Diretor do Município conceituar o que vem a
ser a função social de cada imóvel urbano. E diz mais, em seu § 4º: no caso de
a propriedade urbana 4 não cumprir sua função social, o imóvel, numa etapa
final, será desapropriado com o pagamento de títulos.
Ou seja, a própria Constituição Federal confundiu os dois conceitos
(função social e desapropriação). Ela disse que, ainda que o Poder Público
declare que um imóvel sob propriedade não cumpre sua função social, ainda
assim ele apenas poderá desapropriar o imóvel. Não poderá declarar a sua
não-garantia/tutela pelo Estado. Não poderá declarar, portanto, a não existência
do direito de propriedade, na hipótese.
Os alunos tinham motivos para se sentirem confusos. Os estudiosos, e
principalmente os do Direito da Cidade e Urbanístico, não podem deixar de
rebater a falha da afirmativa “sem função social, não há garantia da proprie-
dade”. O Direito da Cidade e Urbanístico é um direito bastante concreto. As
fraquezas das teorias, nele, aparecem com uma enorme rapidez e evidência. O
que é, ao mesmo tempo, o seu ponto positivo e seu grande desafio. Caberia
ao professor resolver a celeuma. Foi o que tentei fazer, e, agora, exponho o
resultado.

METODOLOGIA

A dificuldade de os alunos entenderem que o não-exercício da função social


da propriedade pelo proprietário levaria ao não-reconhecimento da sua pro-
priedade e, portanto, à não-propriedade exigia um estudo do tema centrado
na Constituição Brasileira de 1988 – uma vez que ela realmente utilizava o
conceito função social junto com o conceito desapropriação. Obrigava a analisar
se, realmente, no Direito brasileiro, o não cumprimento da função social so-
mente possibilitaria a desapropriação, nunca permitindo a declaração pelo
Estado de uma não-propriedade – ao contrário do que os constitucionalistas
costumam afirmar. Ou seja, justamente o que constituía a causa da dificuldade
dos alunos na apreensão da teoria da função social da propriedade.

4 A expressão do dispositivo é “solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado”.

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Função social da propriedade e desapropriação: alguns mitos e verdades 59

Portanto, tentei fazer uma conciliação entre a análise jusnaturalista e a


análise juspositivista do tema – tendo em vista que o direito dificilmente con-
seguiu ter apenas uma dessas vertentes. Dessa forma, busquei elidir mitos
sobre o assunto e verificar até que ponto a teoria jusnaturalista da função
social tem eficácia no direito brasileiro. Analisei cada assertiva – principal-
mente os jargões – a respeito da função social, verificando sua validade pe-
rante o direito positivo brasileiro.
Cabe afirmar que os autores analisados que tratam da aplicação prática
da função social acabam, em seus textos, por sua competência intelectual e
prática, dando a solução jurídica adequada para a questão. O problema é que
a sua base argumentativa apresenta uma contradição que impede a aceitação
dessa solução, caso se faça uma leitura mais aprofundada. É o que se tentará
demonstrar a seguir.

O CONCEITO DE FUNÇÃO SOCIAL E DE DESAPROPRIAÇÃO

Não há como falar em função da propriedade sem fazer referência ao Princípio


Geral nº 10 da Declaração de Vancouver, enunciada pela Conferência das Nações
Unidas sobre Assentamentos Humanos, em junho de 1976, 5 in textual:

Princípio Geral nº 10: A terra é um dos elementos fundamentais dos


assentamentos humanos. Todo o Estado tem direito a tomar as medidas
necessárias para manter sob fiscalização pública o uso, a propriedade, a
disposição e a reserva de terras. Todo Estado tem direito a planejar e
administrar a utilização do solo, que é um dos seus recursos mais im-
portantes, de maneira que o crescimento dos centros populacionais, tanto
urbanos como rurais, se baseiem num plano amplo de utilização do
solo. Essas medidas devem assegurar a realização dos objetivos básicos
da reforma social e econômica para cada Nação, de conformidade com o
seu sistema e suas leis de propriedade da terra.

O pensamento, inserido no sistema político originário do processo da


Revolução Francesa, que atribuía valor fundamental à proteção do exercício
individual da propriedade combinada com seu caráter absoluto foi sendo supe-

5 Lira, 1997, p. 312.

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60 Daniel Almeida de Oliveira

rado em virtude dos conflitos deflagrados nas sociedades contemporâneas. 6


Estes mostraram a necessidade de ocorrerem modificações no instituto pro-
priedade, a serem implementadas pela intervenção do Estado.
Antes mergulhado nos interesses da classe burguesa, o exercício indivi-
dual da propriedade passou pela aplicação da teoria do abuso de direito, após
às limitações administrativas, chegando, finalmente, à concepção de que a
função social deveria integrar o conteúdo da propriedade. 7
Sobre a diferença entre função e limitação, disserta Carlos Ari Sundfeld: 8

Sempre se aceitou normalmente a imposição de obrigação de fazer ao


proprietário, como condição para o exercício do direito de propriedade.
São exemplos: a obrigação de construir muro, de limpar o terreno, apro-
var planta, de instalar extintor de incêndio. Do que nunca se cogitou,
porque incompatível com a propriedade individualista, foi da imposição
da obrigação de utilizar o imóvel, isto é, obrigação de exercer o direito
em benefício de um interesse social. E é justamente tal tipo de obrigação
que se deve impor com fundamento na função social.
Percebe-se que o fazer, nas duas hipóteses, tem um caráter distinto no
primeiro caso, o das limitações, trata-se de condição para o exercício do
direito. No segundo caso (função social), trata-se do dever de exercitar o
mesmo direito.

Também, sobre o tema, assevera Eros Grau: “o princípio de função social


da propriedade está integrado aos modernos conceitos de propriedade, donde
a evolução, das propriedades, para as propriedades-função social”, que, “em
razão de tal integração, transforma[m]-se em um dever de ação”, sendo “fór-
mula muito mais ampla do que a que se contempla na noção de poder de
polícia”. O autor conclui afirmando que “o exercício da propriedade são poderes
que se exercitam não exclusivamente no interesse de seus titulares, mas tam-
bém de terceiros”, estando o exercício da propriedade urbana (na qual integra
estruturalmente o princípio da função social) “vinculado a um destino urba-
nístico, definível pelo Poder Público”. 9

6 Ibid., p. 55.
7 Saule, 1997, p. 55.
8 Sunfeld, 1987, p. 11.
9 Grau, 1983, p. 133-134.

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Função social da propriedade e desapropriação: alguns mitos e verdades 61

Orlando Gomes, referindo-se à trajetória histórica da propriedade, afirma


que são tantas e de tantos tipos as restrições que vem sofrendo, no seu con-
teúdo e no seu exercício, que restou abalada até mesmo a sua condição tradi-
cional de direito privado. 10
Devemos ter em mente, por fim, o dogma de Santo Tomás, na Suma
Teológica, II-II, q. 66, a. 2, que entendia que uma coisa é o direito de apropriar,
outra a gestão da coisa apropriada. Assim, é lícito serem próprias as coisas –
este é o fundamento filosófico da propriedade para os jusnaturalistas. A uti-
lização, porém, deve ser feita como se as coisas fossem comuns. 11
Portanto, a função social não se confunde com as limitações – condições
para o exercício do direito. Ela interfere no próprio conteúdo do direito. Quando
o Estado exige a observância da função social da propriedade, ele está exigindo
que o uso deste instituto se dê também –, sendo direito em benefício de um
interesse social. No caso deste instituto ser usado a despeito do interesse
social ou, o que é pior, contrariando-o, sem o que, filosoficamente (e em tese),
não haverá propriedade, e, por lógica, inexistirá tutela estatal para sua manuten-
ção. Não por outra razão, a Constituição Federal trata, no § 4º de seu art. 182,
de instrumentos capazes de compelir que seja dada destinação social ao bem
urbano que não atenda às exigências fundamentais de ordenação da cidade,
expressa no plano diretor do município. Esse dispositivo prova que de fato
houve uma ruptura com o velho conceito de propriedade privada, muito em-
bora demonstre, também, que a Constituição de 1988 não incorporou a teoria
da função social na sua acepção pura – haja vista que, como se verá abaixo, a
Constituição, em regra, não coloca a função social como sendo condição de
existência do direito de propriedade.
O condicionamento da propriedade urbana à política urbana é outro
elemento que transmuta o clássico modelo da propriedade.
No Brasil, historicamente, a grande concentração de terras tem suas
origens desde as sesmarias, no início da colonização portuguesa. Momento
sócio-político-econômico de época menos distante, o fim da era da escravidão,
quando começamos a ter mão-de-obra livre, é capaz de nos mostrar melhor as
razões da estrutura das propriedades atuais e o porquê da grande importância
das reformas fundiárias – que não devem ser consideradas como um favor

10 Gomes, 2001, p. 119.


11 Ibid., p. 98.

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62 Daniel Almeida de Oliveira

para quem é beneficiado com terras, mas sim para todo o sistema produtivo
nacional, além da sociedade como um todo.
Nas palavras de Manoel Maurício de Albuquerque em sua Pequena histó-
ria da formação social brasileira, 12 referentes à declaração de Estado em 1842:

Como a profusão de datas de terras, tem, mais que outras causas, con-
tribuindo para a dificuldade que hoje se sente de obter trabalhadores
livres, é seu parecer que d’ora em diante sejam as terras vendidas sem
exceção alguma. Aumentando-se, assim o valor das terras e dificultando-
se conseqüentemente a sua aquisição, é de se esperar que o imigrado
pobre alugue o seu trabalho efetivamente por algum tempo, antes de
obter meios de se fazer proprietário.

Entendia-se que o sistema de produção da época necessitava de uma


concentração de terras e de aumento de mão-de-obra. Cada vez mais, os pro-
prietários queriam serviços a preços menores, e o meio explicitado acima
atendia sobremaneira aos anseios das classes dominantes, que passaram a
abusar do “instituto”, o que resultou na estrondosa desigualdade de acesso à
terra e de rendas entre os brasileiros.
As circunstâncias, nos últimos anos, são outras. Não mais são necessárias
as contenções de terras para gerar trabalhadores disponíveis e diminuir o
custo. Já são muitos os que dispõem apenas de seu corpo, que, sozinho, é
incapaz de gerar-lhes subsistência.
O Brasil, há tempos, tem menos postos de trabalho do que mão-de-
obra. Diante do quadro histórico supra, não é difícil concluir que, para amenizar
ambos os problemas, faz-se necessário adotar mecanismo inverso daquele
utilizado por nossos ancestrais em 1842, ou seja, adotar mecanismos que
diminuam a especulação imobiliária, fazer a reforma e regularização fundiária,
além de facilitar o acesso à terra.
Sobre a ligação entre a propriedade e a sua função social, Ricardo Lira
conclui:

[...] mas ela própria (propriedade) é uma função social, sobretudo quando
cria poderes inerentes a um bem de produção.

12 Albuquerque, 1981, p. 286.

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Função social da propriedade e desapropriação: alguns mitos e verdades 63

Nesse caso, a riqueza social aumenta, a distribuição da riqueza se faz


mais justamente, na medida em que, visando ao bem de todos, o inte-
resse protegido do dominus definha diante do interesse subordinado da
comunidade. 13

Então, o Poder Público pode (rectius, deve) não apenas (em razão do
poder de polícia) impor limites e condicionantes à propriedade para adequá-
la aos objetivos públicos, mas também obrigar o cumprimento do dever do
proprietário de destinar concretamente seu imóvel a atender um interesse
social, tendo como instituto de legitimação a função social.
Por fim, resta fazer uma observação. Como foi visto, deve o interesse
individual adequar-se ao interesse social. No entanto, a recíproca também é
verdadeira. Na realidade, o que determina a Constituição é que “devem com-
patibilizar-se o interesse individual e o interesse social”, ou seja, um deve
conviver ao lado do outro, não sendo apropriado argüir aqui a sobreposição
do interesse público sobre o privado, pois que a lógica constitucional resulta
na proibição de ser fixado um máximo de utilização do solo que reduza ao
extremo “a capacidade de uso e disposição da propriedade do solo urbano,
sob pena de se comprometer a possibilidade de utilização econômica do imóvel,
isto é, o fundamento do direito de propriedade.” 14

GARANTIA VERSUS DIREITO. FUNÇÃO SOCIAL: CONDIÇÃO DE VALIDADE


DA PROPRIEDADE OU FUNDAMENTO DA INTERVENÇÃO ESTATAL?

Como já dito, a função social é geralmente tida pela doutrina como condição
para a garantia do direito de propriedade pelo Estado.
José Afonso da Silva 15 assevera que “o intérprete tem que entender as
normas constitucionais que fundamentam o regime jurídico da propriedade:
sua garantia enquanto atende à sua função social [...].” (grifei).
Não obstante colocar a função social como condição de existência do
direito de propriedade, mais à frente o autor se contradiz: “Por outro lado, em
concreto, o princípio [da função social] não autoriza esvaziar a propriedade

13 Lira, 1997, p. 312-313.


14 Grau, 1983, p. 72.
15 Silva, 2006, p. 76 (grifo nosso).

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64 Daniel Almeida de Oliveira

de seu conteúdo essencial mínimo, sem indenização, porque este está assegu-
rado pela norma de sua garantia”. 16
Embora conflitante com a explicação do autor a respeito da função social,
o início desta última assertiva citada é correta: a função social, por ser direito
tão fundamental quanto o direito de propriedade, não poderia, em regra, eli-
miná-lo, mas tão só comprimi-lo. O mesmo não ocorre com sua parte final:
não é verdade que o princípio da função social não possa determinar a exclusão
do domínio sobre a coisa sem indenização do até então proprietário. Como se
verá abaixo, o princípio da função social pode, sim, em situações de grave
ofensa a este princípio, eliminar o direito de propriedade.
Em conclusão, encontram-se dois equívocos nos ensinamentos de José
Afonso da Silva sobre a relação entre a propriedade e a função social: i) a
função social positivada pela Constituição brasileira não é, em regra, condição
de validade do direito de propriedade; ii) a função social positivada pela Cons-
tituição brasileira pode sim autorizar a eliminação do direito de propriedade
individual, como realmente o faz no art. 243, caput e parágrafo único.
Sônia Rabello 17 afirma que:

Se por um lado, a Constituição faz nascer o direito à propriedade indivi-


dual, este direito já nasce limitado em função de um outro dispositivo
da própria Constituição, que dispondo sobre a ordem econômica e fi-
nanceira determina a necessária presença de interesse público e social
para seu exercício [o art. 170, caput e incisos II, III e IV].

Quanto à passagem acima, apenas caberia ressaltar que a função social


atinge toda propriedade, inclusive aquela “individual” do Estado – os bens do-
minicais. Os bens de uso comum e os de uso especial, que também seriam
propriedade do Estado, já estariam, por princípio, atendendo sua função social.
Todavia, a autora prossegue afirmando que o exercício do direito de pro-
priedade sem função social é inconstitucional. Diz que a propriedade não pree-
xiste à sua função, mas só existe, constitucionalmente, se estiver atrelada a ela. 18

16 Ibid., p. 77.
17 Rabello, 1991, p. 11.
18 Ibid., p. 11-12: “Podemos destarte concluir que, ao aparecer no mundo jurídico, a proprie-
dade nasce obrigatoriamente condicionada à sua função social. O exercício do direito de

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Função social da propriedade e desapropriação: alguns mitos e verdades 65

Ou seja, também Sônia Rabello coloca a função social como sendo condição
para se ter a garantia, constitucionalmente prevista, do direito de propriedade.
Sem aquela, esta não pode constitucionalmente ser reconhecida e garantida
pelo Estado. Esta é a sua conclusão.
Os civilistas já provaram que sem garantia não há direito. 19
Portanto, afirmar que “o Estado não garantirá o direito de propriedade”
é o mesmo que dizer que “o direito de propriedade não é reconhecido pelo
ordenamento jurídico estatal”, ou seja, que não há direito subjetivo à proprie-
dade – pelo menos não dentro do ordenamento jurídico estatal.
O problema ocorre quando a Constituição brasileira afirma, no art. 182,
§ 2º c/c § 4º, caput e inciso III; art. 184, caput; e art. 243, caput e parágrafo
único, que, em não se cumprindo a função social, haverá a desapropriação (ou
expropriação), sendo, no caso do art. 243, sem indenização, ou seja, confisco.
In textual:

Art. 182. [...]


§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano
diretor. [...]
§ 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica
para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do
proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado,
que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente
de:
III – desapropriação [...].
Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins
de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função
social [...].
Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas
culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropria-
das e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o
cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos [...]

propriedade, sem função social, é, pois, inconstitucional. A propriedade não preexiste à


sua função social, mas só existe, constitucionalmente, se está a ela atrelada.” (grifo nosso).
19 Por todos: Pereira, 2005; Venosa, 2008; e Rodrigues, 2003.

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66 Daniel Almeida de Oliveira

Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido


em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será
confiscado e reverterá em benefício de instituições e pessoal especiali-
zados no tratamento e recuperação de viciados e no aparelhamento e
custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão
do crime de tráfico dessas substâncias.

Note-se que todas essas previsões referem-se a casos de desapropriação


por interesse social – inclusive a última, em que se utilizam os bens apreendidos
para recuperar viciados e para combater o crime gerado pelo tráfico de drogas,
em favor da saúde e da segurança pública, que são direitos sociais, conforme
previsto no próprio dispositivo. Em todos esses dispositivos constitucionais,
há a previsão de sanção pelo não cumprimento da função social da propriedade
privada. Inclusive no último, em que, por ter ocorrido uma ofensa considerada
pelo constituinte como extremamente grave ao interesse social – o proprietário
do bem, no uso dele, atentou duas vezes contra a sociedade; ou seja, fez o
inverso do que seria a função social do seu bem –, resolveu-se legitimar, neste
caso, a desapropriação do bem sem o pagamento de indenização. Dito de outra
forma: como é toda a coletividade que permite a existência da propriedade
privada, em se tendo usado esta contra a coletividade, o Estado, como seu
representante, deixa de reconhecer o direito (de propriedade) em questão. 20
Dessa maneira, apenas na hipótese do art. 243 da Constituição brasileira a
função social poderia apresentar-se como condição de existência do direito de
propriedade. Em se declarando a ausência de função social naqueles termos –
uso de bens para fins de tráfico de entorpecentes ilegais e drogas afins –, o
Estado engolfa o bem, visto não mais reconhecer e, portanto, tutelar o direito
de propriedade até então exercido sobre o mesmo.
Sobre os demais casos – ou seja, quanto aos art. 182, § 2º c/c § 4º, caput
e inciso III; 184, caput, todos da CRFB –, o máximo que a Constituição autoriza
o Estado a fazer é desapropriar com indenização. Ou seja, declarando-se o
não cumprimento da função social da propriedade nesses casos, a medida

20 Observe-se que não se está “brincando com os direitos”, desrespeitando os ensinamentos


de Ronald Dworkin na sua obra Taking rights seriously (Levando os direitos a sério). Isto
porque se está em nível constitucional, discutindo direitos ainda no plano abstrato, veri-
ficando o conteúdo que a Constituição conferiu a eles, e não negando, simplesmente,
algum direito constitucional subjetivo.

Daniel de Oliveira.p65 66 21/11/2010, 23:58


Função social da propriedade e desapropriação: alguns mitos e verdades 67

mais drástica que o Estado pode tomar é retirar o bem da propriedade do


descumpridor do preceito constitucional em questão, reconhecendo, portanto,
o seu direito de propriedade. Não há como retirar o que não existe, não há
como ocorrer a translação da coisa com a respectiva contrapartida sem se
identificar e reconhecer o anterior dono e detentor da coisa.
Ou seja, o máximo que haverá aí é o não reconhecimento de uma das
faculdades do domínio (da propriedade): a faculdade de dispor do bem. Isso
porque o uso e o gozo do bem estarão contidos na indenização que o proprie-
tário inadimplente receberá. O proprietário só será tolhido da faculdade de
dispor do bem, ou melhor, será tolhido apenas da faculdade de decidir se
aliena ou não o bem. A única restrição ao seu direito de propriedade será,
pois, que ele terá que se desfazer da propriedade cogentemente, 21 em mo-
mento fixado por terceiro – no caso, o Estado.
Essa noção, apesar de não mudar imediatamente a conseqüência prática
dos dispositivos constitucionais citados, é fundamental para o debate de idéias
a respeito da função que deve ter a propriedade em nossa sociedade e para o
melhor entendimento do instituto. Consequentemente, é fundamental ao Es-
tado Democrático de Direito, porque é primordial ter pessoas conscientes dos
efeitos que os institutos jurídicos constitucionais possuem e possibilitar a
elas o debate a respeito da restrição ou ampliação desses efeitos.
Diz-se isso porque a função social é “vendida” comumente como sendo
um instrumento extremamente eficaz para se alcançar a justiça social. Real-
mente, a obrigação de sua observância pelo proprietário é salutar para a justiça
social. Mas não se pode esconder que a noção de função social adotada majo-
ritariamente pela Constituição brasileira comprime pouco a propriedade, san-
cionando de maneira leve o inadimplente desse instituto (função social).
Observe-se que não se está, neste momento, defendendo mudança da relação
constitucional entre função social e (direito de) propriedade, mas apenas afir-
mando que deve ser clara a exposição dos efeitos que a função social tem
sobre o proprietário.

21 Também nesse sentido, Fonseca et al., 1994. O próprio José Afonso da Silva reconhece
isso, embora sem se dar conta da importância de sua assertiva para a definição e esclareci-
mento sobre os efeitos que a função social positivada no Brasil tem sobre a propriedade.
Diz que “a desapropriação atinge o caráter de perpetuidade do direito de propriedade,
cortando-o coativamente.” (Silva, 2006, p. 413)

Daniel de Oliveira.p65 67 21/11/2010, 23:58


68 Daniel Almeida de Oliveira

Não é conveniente que doutrinadores continuem, após décadas, fazendo


afirmativas antagônicas como as expostas acima. Ou se sustenta que os cons-
titucionalistas estão corretos em sua tradicional assertiva – “o Estado garante
o direito de propriedade desde que cumprida a sua função social” – e conclui-
se pela possibilidade de o Estado absorver o imóvel descumpridor da sua
função social; ou deve-se declarar o equívoco daquela assertiva e expor os
efeitos que a Constituição confere, de fato, à função social.
A declaração de tal equívoco é necessária para que se reconheça que a
Constituição brasileira coloca a função social como fundamento de interven-
ções mais e menos profundas do Estado sobre a propriedade privada, geral-
mente apenas para permitir a manutenção do modo de produção social
existente, somente permitindo o não reconhecimento da propriedade individual
(sobre bem imóvel e bem móvel) no caso de sua utilização para fins de tráfico
ilícito de entorpecentes e drogas afins (art. 243, caput e parágrafo único, CF).
A retificação proposta facilita a percepção de que não houve quebra na
essência do instituto da propriedade privada, não obstante as modificações
que sofreu ao longo das últimas décadas no Brasil – inclusive com o advento
da Constituição de 1988. A função social da propriedade é mais retórica do
que efetiva, pois “não altera a concepção clássica do direito sobre a titularidade
do bem patrimonial, apenas substitui estrategicamente valores econômicos
no patrimônio proprietário expropriado”, 22 em regra – como demonstrado
acima. Em quantos textos tratando da função social da propriedade vemos
esta crítica inserida ou discutida? Quantos deles permitiriam ao leitor/aluno
pensar sobre essa hipótese?
Portanto, é forçoso concluir que não se deve falar que a função social
positivada pela Constituição (XXII, art. 5º, CF) é condição para se ter a garantia
do direito de propriedade (XXIII, art. 5º, CF). Dito de outro modo: é um equívoco
afirmar que, no Brasil, o proprietário que não cumpre a função social de sua
propriedade, em regra, perde o direito sobre a mesma – ou deixa de ter seu
direito de propriedade garantido pelo Estado, o que dá no mesmo.

22 Cf. Fonseca, 1996, p. 42. No mesmo sentido: Fonseca, 1994.

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Função social da propriedade e desapropriação: alguns mitos e verdades 69

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RESUMO

Caso seja aceita a idéia praticamente pacífica de que o proprietário que não
cumpre a função social de sua propriedade não terá a tutela, pelo Estado, de
seu direito de propriedade, em se declarando o não cumprimento da função
social da propriedade, ter-se-á, na hipótese, uma não-propriedade – inexistirá
o direito de propriedade – e, portanto, não haverá como incidir desapropria-
ção sobre a mesma – uma vez que não há como se desapropriar coisa não tida
sob a propriedade de alguém. Dessa forma, buscou-se fazer, neste artigo, uma
minuciosa análise dos dispositivos constitucionais sobre o tema, de modo a
identificar algumas verdades e mitos a respeito do instituto função social da
propriedade no ordenamento jurídico brasileiro.
Palavras-chave: Constituição, direito de propriedade, função social, desapro-
priação, confisco.

ABSTRACT

If it is accepted the current idea that the owner of a land, who did not comply
with the principle of social function when administrating his property, does
not have the authority by the State of his properties right. In this situation,

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Função social da propriedade e desapropriação: alguns mitos e verdades 71

due to the failure to comply with the principle of function of property, there
is what we call a “non-property” – the owner will not be entitled to ownership –
and therefore there is no possible way to expropriate the land – since it is not
possible to expropriate something that does not belong to someone. Thus, we
attempted to do a deep analysis of constitutional articles on the subject, in
order to identify some truths and myths about the institute of social function
of property in the Brazilian legal system.
Keywords: Constitution, property right, social function, expropriation, con-
fiscation.

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PATRIMÔNIO HISTÓRICO E O PROJETO URBANO:
UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

Seção [Patrimônio histórico - abordagem conceitual].p65


73 19/11/2010, 11:02
Seção [Patrimônio histórico - abordagem conceitual].p65
74 19/11/2010, 11:02
Memória, história, patrimônio e a proteção
dos objetos do passado

Rodrigo Cury Paraizo

O patrimônio é um desenvolvimento moderno do conceito de monumento.


Enquanto este pode ser visto como uma invariante cultural – de um modo ou de
outro, em especial na forma de marcos físicos de caráter fúnebre, será difícil
encontrar sociedade humana sem algum tipo de mecanismo de produção de
monumentos –, o patrimônio é um tipo de objeto cultural bastante mais espe-
cífico e localizado no tempo e no espaço. O patrimônio é fruto das revoluções
Francesa e Industrial, quando as mudanças na sociedade ocidental criaram uma
ruptura na percepção temporal cotidiana e na própria hierarquia de valores
sociais.
A aspiração monumental – e patrimonial, por extensão – tem origem na
luta contra as mudanças instituídas pelo ciclo da vida. De fato, o próprio monu-
mento é a instituição de uma mudança, criação que se configura como marco
estável para as gerações que virão. O monumento constitui uma maneira de ser
percebido ao longo do tempo – e mesmo fora do tempo, ao proclamar a eternidade
dos valores que representa –, enquanto simultaneamente é um reconhecimento
da perenidade humana. É uma inscrição da presença do passado na paisagem.
Longe de querer esgotar o assunto, ou mesmo de oferecer uma definição
categórica e acabada de cada conceito, o objetivo aqui é articular a noção de
Paisagem urbana e direito à cidade, Rio de Janeiro, 2010. p. 75-96. Coleção Direito e Urbanismo

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76 Rodrigo Cury Paraizo

patrimônio com as de memória, história e monumento, para entender o seu


papel na mediação entre o passado e a vida atual, com especial interesse nas
relações da norma com a proteção desses objetos.

MEMÓRIA

David Lowenthal considera que o passado tanto coexiste com o presente, da


forma que sentimos por nossa “apreensão largamente inconsciente da vida
orgânica”, 1 quanto é apartado dele por nossa autoconsciência. Reconhecendo
que as pessoas têm maior ou menor influência do passado em suas vidas, ele
examina três fontes de conhecimento que constituem as principais vias de
acesso deste à nossa consciência presente: memória, história e relíquias (ou
artefatos).2 Além disso, conclui que essas vias de acesso devem ser utilizadas
em conjunto se quisermos elaborar um relato significativo e crível do passado. 3
Há dois significados principais que relacionamos ao conceito de memó-
ria: a consciência individual do passado, tributária de processos biológicos e
psicológicos que lidam com a experiência da passagem do tempo; e a repre-
sentação coletiva do passado, que faz referência tanto aos objetos que docu-
mentam as ações humanas quanto ao uso estabelecido desses objetos, sendo
uma construção social e histórica.
De acordo com Jacques Le Goff, 4 o primeiro sentido “remete-nos em
primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem
pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa
como passadas”. A memória é o passado que experienciamos, sua percepção
modelada por nossos filtros culturais, biológicos e psicológicos de modo aná-
logo à maneira pela qual experienciamos o espaço. 5

1 Lowenthal, 2005a, p. 186-187. No original: “largely unconscious apprehension of organic


life” (tradução nossa).
2 Em um trabalho posterior (2005b), Lowenthal se refere especificamente a heritage
(patrimônio) e confere ao termo várias propriedades semelhantes a relics (relíquias ou
artefatos), ainda que heritage seja mais abrangente.
3 Ibid., p. 249.
4 Le Goff, 2005, p. 409.
5 Cf. Hall, 1971. Uma diferença importante é que podemos revisitar um espaço e comparar
nossas percepções com as de visitas passadas (ainda que, fazendo-o, tenhamos que nos
fiar na fragilidade da memória, por um lado, e levar em conta possíveis variações nos

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Memória, história, patrimônio e a proteção dos objetos do passado 77

A memória é essencial para nosso senso de identidade e continuidade.


Lembrar, no entanto, é um processo que está longe de ser neutro, regular ou
imutável. Afirma Cristina Freire: “A memória humana não armazena simples-
mente, mas reconstrói seus conteúdos”. 6 As memórias mudam e são revisadas
de acordo com o presente. Mesmo memórias completamente falsas – seja como
um (raro) fruto de invenção ex nihilo, ou (mais comumente) um amálgama de
fatos e distorções – têm potência suficiente, quando há crença, para moldar a
identidade tanto quanto qualquer memória verdadeira. 7
A memória é tanto lembrar quanto esquecer: como observa Lowenthal
a partir do conto “Funes, el memorioso”, de Jorge Luis Borges, “para que uma
memória tenha significado é preciso esquecer a maior parte do que vimos”. 8
Selecionar é o que nos permite criar os esquemas mentais abstratos básicos e
organizar e agrupar eventos e sensações. Portanto, conforme Lowenthal, a
função principal da memória não é preservar o passado, mas “adaptá-lo para
enriquecer e manipular o presente”, 9 melhorando nosso entendimento através
de reconstruções seletivas direcionadas por nossa situação no presente.
Mesmo como indivíduos, necessitamos das memórias dos outros, ao
menos “para confirmar nossas próprias e torná-las duradouras”. 10 O papel
principal da memória coletiva é prover um quadro de referência comum para
nossas lembranças individuais. Halbwachs 11 afirma que é em sociedade que
elaboramos nossas memórias e que é pela sociedade que somos instados a
reavivá-las, na maioria dos casos; e, ao fazê-lo, nos colocamos em sua perspec-
tiva e nos consideramos parte de seu grupo social. Somos, portanto, dependentes
desses quadros referenciais para a própria construção de nossas lembranças,
bem como para fazermos uso delas.

elementos que compõem a percepção espacial, por outro). Já o tempo é percebido apenas
uma vez – e cabe à memória trazer o passado à mente diversas vezes, de diversas formas.
6 Freire, 1997, p. 126.
7 Lowenthal, 2005a, p. 200.
8 Ibid., p. 204. No original: “for a memory to have meaning we must forget most of what
we have seen” (tradução nossa).
9 Ibid., p. 210.
10 Ibid., p. 196. No original: “to confirm our own and to give them endurance” (tradução
nossa).
11 Halbwachs, 1992, p. 38.

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78 Rodrigo Cury Paraizo

A MEMÓRIA E A COLETIVIDADE

Andreas Huyssen teme, dada nossa cultura saturada de mídia, que a sobrecarga
de memória resultante e o correspondente oblívio possam comprometer esse
papel:

[...] fica claro que velhas abordagens da memória coletiva – tal como a
de Maurice Halbwachs, que pressupõe formações de memórias sociais e
de grupos relativamente estáveis – não são adequadas para dar conta da
dinâmica atual da mídia e da temporalidade, da memória, do tempo
vivido e do esquecimento. As contrastantes e cada vez mais fragmentadas
memórias políticas de grupos sociais e étnicos específicos permitem
perguntar se ainda é possível, nos dias de hoje, a existência de formas
de memória consensual coletiva e, em caso negativo, que forma de coesão
social e cultural pode ser garantida sem ela. 12

De fato, o contexto em que Halbwachs considerou o fenômeno dos qua-


dros referenciais da memória coletiva pode ser caracterizado como mais estável
que o atual, em termos culturais e sociais. Mas sua abordagem considera que
as memórias ocorrem na forma de sistemas que permitem diferentes associações
entre memórias, que, por sua vez são dependentes das diferentes associações
entre pessoas; 13 há tantas memórias coletivas quanto instituições. Assim, o
fato de um mesmo indivíduo pertencer, ainda que fragmentariamente, a diver-
sos grupos sociais pode ser interpretado apenas como uma forma mais com-
plexa de um mesmo fenômeno.
Vale observar, ainda, que algum grau de anonimato (e, por extensão, de
falta de uma identidade forte), na forma de privacidade, sempre foi um dos
atrativos da cidade, em contraste com vilas rurais onde todos se conhecem e
sabem tudo a respeito uns dos outros. 14 A heterogeneidade intrínseca dos
habitantes da cidade é precisamente o que torna a urbe um espaço político
por excelência: aprender a lidar com o outro e com a diferença é um dos
requisitos básicos para viver em um ambiente urbano, e coletividade não deve

12 Huyssen, 2000, p. 19.


13 Halbwachs, 1992, p. 53.
14 Jacobs, 2003, p. 62-63.

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Memória, história, patrimônio e a proteção dos objetos do passado 79

ser confundida com comunidade. Por “coletividade” entendemos a formação


de um grupo mais ou menos consciente de si, que tenta alcançar consensos
por meio da política, para se apresentar aos outros com alguma coesão. “Comu-
nidade” se refere a um grupo que, nas palavras de Bauman, compartilha um
entendimento “natural” e “tácito” – verdadeiras comunidades, portanto, são
imanentes: o próprio ato de fazê-las autoconscientes, objeto de contemplação
e exame, é um sinal do fim delas, pois “a comunidade só pode estar dormente –
ou morta”. 15
Na verdade, isso realça o fato de que identidades coletivas contêm mais
de invenção do que de história – e quanto mais conscientes disso, melhor
podemos lidar com a construção de nossas próprias identidades e com o nosso
pertencimento a diferentes grupos. Mais que isso, melhor lidaremos com o
gerenciamento de nosso patrimônio cultural ao percebê-lo como resultado de
escolhas conscientes, mais comprometidas com nossos desejos e necessidades
presentes do que com uma ligação inquestionável e inquebrável com nossos
antepassados e seus costumes. Não se altera, com tal fato, a premissa básica
de que nossa percepção do tempo e a própria construção da memória são
modeladas por aqueles à nossa volta, vivos ou mortos. As mídias introduzem
transformações em ambos os níveis de interação social e, mesmo, irrupções
de um no outro, chegando a borrar a linha que os separa; mas não muda o
fato que nosso quadro de referência depende dessa interação. Estamos condi-
cionados a essas referências mentais para perceber o tempo e o passado.

A MEMÓRIA COLETIVA

A memória coletiva é o quadro de referência mais ou menos compartilhado


sobre o passado entre pessoas da mesma coletividade. Como a história, tem
por função tentar construir uma versão integral e institucional do passado.
Ao contrário dessa, não se baseia necessariamente em documentos, mas, prin-
cipalmente, em fragmentos da memória oral socialmente construídos; suas
conclusões não estão abertas à discussão e à revisão, mas são reforçadas pela
tradição e almejam o consenso. A memória coletiva implica ainda uma abor-
dagem mais ou menos consensual do passado: mesmo embasada em objetos
do passado (relíquias e artefatos) ou por relatos integrais e institucionalmente

15 Bauman, 2003, p. 17.

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80 Rodrigo Cury Paraizo

científicos do passado (história), o que realmente conta é como a coletividade


se reporta aos eventos do passado e o que faz deles.
O quadro de referência proveniente da memória coletiva é de funda-
mental importância para as práticas patrimoniais. De acordo com Halbwachs,

[...] essas memórias [...] não consistem apenas em uma série de imagens
individuais do passado. Elas são ao mesmo tempo modelos, exemplos e
elementos de aprendizado. Elas expressam a atitude geral do grupo;
não apenas reproduzem sua história, mas também definem sua natureza
e suas qualidades e fraquezas. 16

A memória, vivenciada coletivamente, é uma das instâncias definidoras


de elementos a serem preservados, tanto do ponto de vista objetivo – por
exemplo, qual edifício preservar – quanto do ponto de vista mais subjetivo e
sutil do arcabouço de valores tradicionais a serem representados e preservados
para as gerações em formação.
A narrativa, que é em essência um ato mnemônico, denota que a lingua-
gem tem uma importância fundamental para a memória. A linguagem é tanto
parte do quadro de referência da memória – mesmo nossas lembranças de-
pendem da elaboração da memória em linguagem – quanto o principal meio
de compartilhar as lembranças com outros, dando suporte à sua natureza
social, 17 já que a memória em si está apenas na mente do indivíduo. Segundo
Halbwachs, as convenções verbais constituem “o mais elementar e estável
quadro referencial de memória coletiva”. 18
Uma vez escritas, as palavras e a relação com o passado que elas repre-
sentam podem estar abertas à interpretação, mas sua fixidez impede a recria-
ção do passado no presente. A memória coletiva, ainda que aspire a um relato
integral do passado, é fragmentária e episódica, enquanto a história faz uso
de discursos integrais para explicar episódios e fragmentos do passado.

16 Halbwachs, 1992, p. 59. No original: “these memories [...] consist not only of a series of
individual images of the past. They are at the same time models, examples, and elements
of teaching. They express the general attitude of the group; they not only reproduce its
history but also define its nature and its qualities and its weaknesses” (tradução nossa).
17 Le Goff, 2005, p. 421.
18 Halbwachs, 1992, p. 45. No original: “the most elementary and the most stable framework
of collective memory” (tradução nossa).

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Memória, história, patrimônio e a proteção dos objetos do passado 81

HISTÓRIA

História é o conhecimento ativo do passado, construído a partir de registros


empiricamente testáveis, embasando uma interpretação integral e contingente
desse passado. 19 É complementar à memória – o que não impede que possam
contradizer-se, eventualmente. Suas fontes são validadas de acordo com cri-
térios científicos que estabelecem sua autenticidade; podem ser incorporadas
ou descartadas, dentro desses mesmos critérios, de acordo com a intenção da
versão do passado que o historiador pretende erigir. Essa necessidade de provas
também conecta a história a instituições, que podem dar ao historiador e a
suas fontes maior ou menor credibilidade perante seus pares e perante a socie-
dade. Nas palavras de Le Goff, 20 “a história é bem a ciência do passado, com a
condição de saber que este passado se torna objeto da história, por uma re-
construção incessantemente posta em causa”. Trata-se de uma perspectiva
construída e refletida – ou seja, de um ponto de vista selecionado – de fatos e
eventos, referenciados por documentos.
Se a memória tem uma instância coletiva, comunicação e consciência
social fazem parte da própria natureza da história: historicidade é uma noção
de grupo e ajuda a perpetuar o senso de identidade coletiva tanto quanto a
memória trabalha pela individualidade. 21 A história, como a memória, também
está sujeita a alterações, manipulações e erros: a diferença é que a prática
social e científica da história, tal como a entendemos hoje, a tornam um pro-
cesso aberto e verificável, baseado em racionalidade, provas e evidências, sendo,
portanto, mais estável que a memória e mais aberta ao escrutínio do que a
memória coletiva. De fato, Le Goff define a história como a forma científica
da memória coletiva, 22 considerando que há duas histórias, aquela da memória
coletiva e aquela dos historiadores:

a primeira é essencialmente mítica, deformada, anacrônica, mas constitui


o vivido desta relação nunca acabada entre o presente e o passado. É
desejável que a informação histórica, fornecida pelos historiadores de

19 Lowenthal, 2005a, p. 212.


20 Le Goff, 2005, p. 26.
21 Lowenthal, 2005a, p. 213.
22 Le Goff, 2005, p. 525.

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82 Rodrigo Cury Paraizo

ofício [...], corrija esta história tradicional falseada. A história deve escla-
recer a memória e ajudá-la a retificar os seus erros. 23

Le Goff está absolutamente correto, claro, mas trata a questão de um


ponto de vista específico – aquele da ciência histórica, para a qual o fato da
memória coletiva contar histórias incongruentes, deformadas e manipuladas
é um defeito, e não uma característica importante ou mesmo essencial. A
memória coletiva pode se expressar em instituições diferentes das científicas,
e seus objetivos podem simplesmente não incluir precisão, neutralidade ou
coerência, mas privilegiar a coesão ou o controle social, por exemplo.
A história pode ser entendida como a representação do passado. Como
qualquer representação, é socialmente compartilhada, enquadrando parte da
realidade, e privilegiando alguns de seus aspectos sobre outros. Faz uso de
narrativas, relatos de apreensão integral de um dado passado; a própria história
científica é constituída por narrativas. Mas os próprios procedimentos cientí-
ficos que as regulam são socialmente construídos e ligados à história, sua
própria historicidade localizando-os no tempo e no espaço; vale dizer apenas
que, por científicos, são continuamente abertos ao escrutínio geral e podem
sempre ser contestados e aperfeiçoados. O historiador permanentemente re-
constrói e reinterpreta o passado, quer porque novos documentos emergem
de tempos em tempos, quer porque os documentos existentes são reinterpre-
tados. Como afirma Le Goff: “é inútil acreditar num passado independente
daquele que o historiador constrói”. 24

MONUMENTOS E RELÍQUIAS

Ao contrário da memória e da história, elas próprias processos, monumentos


e relíquias são objetos do passado, remanescentes (e reminiscentes) desses
processos. Esses vestígios são essenciais para a percepção, se não da história,
da historicidade. Em outras palavras, eles podem não promover à primeira
vista o conhecimento do que aconteceu no passado, mas de imediato apre-
sentam a consciência de que há um passado – e que este coexiste com o pre-
sente. Curiosamente, por sua natureza única e física, esses objetos estão de

23 Ibid., p. 29.
24 Ibid., p. 25.

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Memória, história, patrimônio e a proteção dos objetos do passado 83

certa forma mais expostos à degradação do que as memórias e a história, que,


uma vez representadas e registradas, podem ser difundidas e reproduzidas.
O termo “relíquia” é mais imediatamente relacionado a objetos materiais
de pequeno porte e de cunho religioso, mas também remete aos componentes
imateriais desses objetos, ou seja, aos valores que atribuímos a eles. O termo
soa mais abrangente que “monumento”, uma vez que comumente associamos
monumentos apenas a edifícios e obras de arte públicas, apesar de lidarmos
mais frequentemente com objetos de qualidade monumental fisicamente bem
menores, como pinturas, documentos legais e mapas, por exemplo. Isso porque,
como afirma Le Goff, “o documento é monumento”, 25 em especial dada a sua
utilização pelo poder, pois, intencionalmente ou não, é característica dos mo-
numentos ajudar a perpetuar o poder das sociedades históricas. Le Goff nota
que, na Roma Antiga, a palavra monumentum, derivada do verbo monere, que
quer dizer “fazer lembrar”, em geral se referia a uma obra comemorativa de
arquitetura ou escultura ou a uma obra fúnebre destinada a perpetuar a me-
mória de alguém. 26
A relíquia alcança seu efeito pela presença. Discussões de autenticidade
à parte, é preciso estar diante dela – ou aceitar que se esteja, ou, no mínimo,
saber que ela está localizada em um ponto preciso do espaço – para que ela
suscite a noção de um legado do passado. Ainda assim, é na presença física
do objeto que esse efeito se realiza em termos emocionais, traduzindo-se em
sentimentos quase religiosos.
Vale notar que a conotação religiosa do termo “relíquia” está longe de
ser inadequada, face ao modo como nossa sociedade se relaciona com esses
objetos. De acordo com Choay, os primeiros monumentos eram de fato relacio-
nados à morte, cumprindo uma função religiosa, e, se nos ativermos ao sentido
original do termo “monumento”, perceberemos que ele se direciona mais às
emoções do que á razão:

A natureza afetiva do seu propósito é essencial: não se trata de apresen-


tar, de dar uma informação neutra, mas de tocar, pela emoção, uma
memória viva. Nesse sentido, chamar-se-á monumento tudo o que for
edificado por uma comunidade de indivíduos para rememorar ou fazer

25 Ibid., p. 538.
26 Ibid., p. 526.

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84 Rodrigo Cury Paraizo

com que outras gerações rememorem acontecimentos, sacrifícios, ritos


ou crenças. [O passado selecionado que ele celebra] pode, de forma di-
reta, contribuir para preservar a identidade de uma comunidade étnica
ou religiosa, nacional, tribal ou familiar. 27

Segundo Aloïs Riegl:

Por monumento, no sentido mais antigo e verdadeiramente original do


termo, entende-se uma obra criada pela mão do homem e edificada com
o objetivo preciso de conservar sempre presente e viva na consciência
das gerações futuras a lembrança de um ato ou de um destino. 28

Riegl restringe essa definição aos monumentos “intencionais”, ainda


que ponderando acerca da dificuldade de definir quando existe ou não a in-
tenção original de rememoração e conservação.
Argan lembra que os povos da Antigüidade construíram seus edifícios
monumentais não apenas para que suas formas sobrevivessem ao tempo, mas
“com a idéia de que permanecessem eternamente válidos os valores que esses
edifícios deveriam representar”. 29
Para o “monumento original” de Choay, é importante também a sua
função antropológica de enfrentamento do oblívio e da morte, através de sua
resistência ao tempo, combatendo a entropia; como nota Freire, 30 “uma relação
entre morte e maravilhamento”. Podemos relacionar esse aspecto com o valor
de antiguidade de Riegl, ligado à demonstração sensível da passagem do tempo:

O monumento não é mais que o substrato sensível necessário para pro-


duzir sobre o espectador esta impressão difusa, suscitada no homem
moderno pela representação do ciclo necessário do desenvolvimento e

27 Choay, 2001, p. 18.


28 Riegl, 1984, p. 35. No original: “Par monument, au sens le plus ancien et véritablement
originel du terme, on entend une oeuvre créée de la main de l’homme et edifiée dans le
but précis de conserver toujours présent et vivant dans la conscience des générations
futures le souvenir de telle action ou telle déstinée.” (tradução nossa).
29 Argan, 1993, p. 226.
30 Freire, 1997, p. 94.

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Memória, história, patrimônio e a proteção dos objetos do passado 85

da morte, da emergência do singular a partir do geral, e de seu progres-


sivo e inelutável retorno ao geral. Esta impressão [...] suscita apenas a
sensibilidade e a afetividade... 31

No entanto, a percepção do ciclo da vida (inclusive como apontado por


Riegl ao se referir ao valor de antiguidade – “valeur de l’ancienneté ”) deve
fazer incorporar à noção de preservação também as de destruição e esqueci-
mento como fatores essenciais para a própria continuidade da criação e, por-
tanto, da vida. Nem tudo deve ser preservado. Na verdade, segundo Argan, 32
a escolha de um objeto para preservação implica na subscrição dos demais à
destruição, daí o perigo das listas de preservação de critérios muito rígidos.
Por outro lado, faz sentido representar algo da própria destruição como parte
desse processo, quando nada, para nos lembrar da sua participação no ciclo
vital. Segundo Freire, “A ruína é, nesse sentido, fundadora de um imaginário
histórico e tem um sentido físico e psicológico a um só tempo. Como estética
da existência possibilita considerar a destruição como fator de renovação”. 33

PATRIMÔNIO CULTURAL

O patrimônio, entendido como uma das maneiras de lidar com o passado,


refere-se à utilização e à transmissão social de objetos do passado, especial-
mente em relação à sua apreciação e ao estabelecimento de seus valores. A
palavra “patrimônio”, hoje, está espalhada em diversos domínios, e seu signi-
ficado em cada um deles ecoa nos outros: em direito, por exemplo, há a noção
de um objeto passado de uma geração a outra e as possibilidades implícitas
de usufruto presente desse objeto; em genética, a passagem de um legado
familiar é atualizada no momento mesmo da concepção, na mistura do patri-
mônio genético dos pais e na atuação posterior do ambiente sobre essa pré-
configuração de elementos.

31 Riegl, 1984, p. 46. No original: “Le monument n’est plus que le substrat sensible nécessaire
pour produire sur le spectateur cette impression diffuse, suscitée chez l’homme moderne
par la répresentation du cycle nécessaire du devenir et de la mort, de la émergence du
singulier hors du géneral, et de son progressif et inéluctable rétour au géneral. Cette
impression […] met seulement en jeu la sensibilité et l’affectivité...” (tradução nossa)
32 Argan, 1993, p. 83.
33 Freire, 1997, p. 165.

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86 Rodrigo Cury Paraizo

A expressão “patrimônio cultural” inclui não apenas objetos físicos, mas


também suas contrapartes imateriais, como contos, danças, canções, rituais,
paisagens, bem como os valores atribuídos a esses objetos. Uma vez que “pa-
trimônio” está relacionado com propriedade, o termo também se refere a bens,
o que implica a necessidade de gerenciar esses recursos. Objetos patrimoniais
são uma das fontes da história, mas, para usar o conceito de Le Goff – um
monumento é um documento usado por aqueles que estão no poder –, 34 en-
quanto a história trata esses objetos primariamente como documentos, reco-
nhecendo sua condição de monumentos, o ponto de vista patrimonial lida
com eles primariamente como monumentos, aproveitando-se de sua natureza
documental para legitimar esse status.
O patrimônio cultural não deve ser confundido com a memória coletiva,
ainda que os dois conceitos tenham muito em comum: a memória coletiva é
um consenso que pode incluir esses objetos para reforçar sua versão do pas-
sado; o patrimônio é constituído justamente por esses objetos e pelos valores
que a sociedade assinala como incorporados por eles, assim como pela trans-
missão de ambos, objetos e valores, de uma geração ou grupo para outro. Na
verdade, os valores seriam mais importantes do que os próprios objetos; mas,
sem os objetos, a transmissão seria excessivamente abstrata:

São as conexões familiares, não as coisas antigas em si, que as pessoas


querem manter [...] Várias locações simbólicas e históricas em uma ci-
dade são raramente visitadas pelos seus habitantes [...] Mas a ameaça de
destruição desses lugares trará uma forte reação, mesmo daqueles que
nunca os visitaram, e que talvez nunca o façam. A sobrevivência desses
conjuntos não visitados, dos quais apenas se fala a respeito, traduz um
sentido de segurança e continuidade. Uma arte do passado foi preservada
por ser boa, e isso é uma promessa de que o futuro preservará o presente. 35

34 Le Goff, 2005, p. 535.


35 Lynch, 1972, p. 39-40. No original: “It is the familiar connections, not all the old physical
things themselves, that people want to retain […] Many symbolic and historic locations
in a city are rarely visited by its inhabitants […] But a threat to destroy these places will
evoke a strong reaction, even from those who have never seen, and perhaps never will
see, them. The survival of these unvisited, hearsay settings conveys a sense of security
and continuity. A portion of the past has been saved as being good, and this promises
that the future will so save the present.” (tradução nossa).

Rodrigo Paraizo.p65 86 19/11/2010, 11:04


Memória, história, patrimônio e a proteção dos objetos do passado 87

É diferente ainda da tradição, entendida aqui como a repetição de per-


formances, ou ritos, em sentido amplo, que são considerados portadores de
autoridade justamente porque provêm do passado de modo inalterado. Mesmo
que sofra mudanças (o que ocorre), a tradição não admite a revisão para usos
e costumes presentes, uma vez que isso minaria sua força primeira – aquilo
que sobrevive sem alterações do passado é tido como positivo justamente por
sua continuidade e integridade. O patrimônio cultural, por outro lado, mesmo
que inclua hoje ritos e performances, expandindo a noção de objeto patrimo-
nial cultural, tem justamente a preocupação de atualizar nossas relações com
esses objetos, para proveito de nossa situação atual. Alterá-los ou não é uma
questão até certo ponto irrelevante, enquanto os objetos servirem às necessi-
dades do presente. Naturalmente, objetos que sofram excessivas transforma-
ções podem se tornar irreconhecíveis ou simplesmente inúteis. Vale lembrar
que políticas de preservação, em geral delineadas com o intuito de evitar
mesmo as mínimas mudanças, não são as únicas maneiras de gerenciar o
patrimônio, apenas estão entre as mais aceitas nos dias atuais – entre outras
razões, porque, em caso de dúvida sobre os futuros usos ou sobre a relevância
de determinado objeto, é melhor preservá-lo do que eliminar possibilidades,
modificando-o de alguma forma.
O patrimônio cultural se concentra na transmissão de valores sociais,
visando a coesão da coletividade e o estabelecimento de identidades. Sua essên-
cia vem do conceito de patriotismo, mas possui maior abrangência: de acordo
com Fonseca, 36 a noção de patrimônio artístico e histórico emergiu no con-
texto da formação dos estados-nação e da ideologia do nacionalismo, enquanto
o patrimônio cultural responde simultaneamente a organizações internacionais
e a comunidades locais. Ele provê elementos para a comunicação simbólica
entre os membros da coletividade, uma base comum pela qual ela própria
pode se identificar, criando um sentido de estabilidade. 37
O patrimônio cultural é constituído por uma coleção de objetos patrimo-
niais. Gonçalves 38 considera que essa coleção tem natureza fragmentária, con-
figurando sinais visíveis de uma totalidade significativa e longínqua, com uma
coerência igualmente distante e elusiva, representada pela “nação”. Pondera

36 Fonseca, 2005, p. 25.


37 Lynch, 1972, p. 40.
38 Gonçalves, 1996, p. 128.

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88 Rodrigo Cury Paraizo

ainda que esses fragmentos (edifícios, praças, lugares) podem ser considerados
supérfluos para os processos narrativos aos quais estão ligados, mas que na
verdade são essenciais para o que denomina de “efeito barthesiano de reali-
dade” do conceito de nação, uma noção abstrata dessa forma tornada concreta.
O autor considera ainda que a retórica da perda é “parte da própria
estratégia discursiva de apropriação de uma cultura nacional”. 39 Mais do que
implicar que só pode existir a perda uma vez constituído o patrimônio, é
preciso reconhecer que a iminência da perda faz parte da própria essência do
patrimônio. Freire considera mesmo que a visibilidade do monumento au-
menta com seu desaparecimento:

A primeira constatação é que os monumentos não são facilmente vistos.


O hábito com que os monumentos deixem de ser vistos, sendo notados
mais pela sua ausência, pela constatação de sua falta. Em outras palavras,
os monumentos só podem ser notados quando não ocupam mais o mesmo
lugar, quando criam espaços vazios.
A visibilidade a que nos referimos aqui é fruto da interação, da apropria-
ção. [...]
A função social revigorada é que se coloca como a condição de visibili-
dade para os monumentos. 40

O patrimônio é constituído por objetos selecionados do passado, mas


também inclui a interpretação social desses objetos: de acordo com Lynch,

a preservação não é simplesmente salvaguardar coisas que são antigas,


mas manter uma resposta do presente a elas. Essa resposta pode ser
transmitida, perdida ou modificada. Pode sobreviver para além do próprio
objeto real. Devemos esperar visões conflitantes do passado, baseadas
nos valores conflitantes do presente. 41

39 Ibid., p. 89.
40 Freire, 1997, p. 101.
41 Lynch, 1972, p. 53. No original: “For preservation is not simply saving of old things but
the maintaining of a response to those things. This response can be transmitted, lost, or
modified. It may survive beyond the real thing itself. We should expect to see conflicting
views of the past, based on the conflicting values of the present” (tradução nossa).

Rodrigo Paraizo.p65 88 19/11/2010, 11:04


Memória, história, patrimônio e a proteção dos objetos do passado 89

Talvez em parte alguma isso seja tão explícito quanto em Jerusalém,


onde os locais sagrados possuem significados completamente diferentes para
muçulmanos, cristãos e judeus.

PATRIMÔNIO COMO RECURSO DO PRESENTE

Os objetos do passado requerem recursos da coletividade para que possam ser


inscritos como patrimônio: não apenas recursos materiais, para auxiliar na sua
manutenção física, mas também uma alocação emocional oriunda do investi-
mento de tempo pessoal para manter vivas as conexões com o objeto. Por exem-
plo, ao se falar em animação social do lugar patrimonial, ou de um lugar ao
qual pertence um objeto patrimonial, estamos falando das pessoas que escolhem
gastar seu tempo ali, ao invés de em outro lugar. Ao se lembrar de edificações
marcantes, não é apenas uma seleção que se obtém, mas uma ordenação segundo
as importâncias relativas, por critérios tanto objetivos quanto subjetivos.
As razões para as diferentes alocações dos recursos individuais do tempo
e da mente podem variar e, na verdade, podem não estar diretamente relacio-
nadas com o objeto patrimonial em si ou com as razões institucionais pelas
quais ele é patrimônio, mas fornecem argumentos para manter esse objeto,
tanto como objeto quanto como patrimônio. Consideremos uma praça com
um monumento antigo – um grupo escultórico ou uma edificação tombada –,
popular entre os habitantes da cidade pela sua animação. O usufruto direto
do monumento pode não ser o objetivo principal, mas definitivamente faz
parte da ambiência. Seu desparecimento, ou mesmo sua decadência, ao des-
caracterizar essa ambiência, pode desestimular as pessoas a visitarem o local,
mesmo que nenhuma delas vá lá especificamente para visitar o monumento.
Sendo um problema de seleção e alocação de recursos, todos os objetos
incluídos como patrimônio devem ser pesados em relação a seus pares – vale
a pena proteger uma igreja específica, dado o conjunto de igrejas protegidas?
O que representa essa igreja para sua coletividade e para o seu contexto urbano?
Ela ainda possui valores significativos para a sociedade, mesmo que esses
valores difiram dos originais, ou novos valores devem ser atribuídos para
reinseri-la no contexto da vida urbana? Com a representação do patrimônio
não será diferente: ainda que cada representação, como marcador, altere por
si própria o conjunto de representações, bem como as relações entre elas,
esse conjunto será sempre relevante para a influência da representação.

Rodrigo Paraizo.p65 89 19/11/2010, 11:04


90 Rodrigo Cury Paraizo

VALORES DO PATRIMÔNIO

Riegl discorre sobre valores que atribuímos aos monumentos, os quais se


tornam portadores, mais do que de informações, de significados. Segundo
Freire, “o monumento é uma projeção de um determinado sentido de tempo
sobre o espaço”. 42 As relíquias têm um poder de comunicação que precede
suas eventuais atribuições e é relativamente independente da formação cultural
do observador: elas transmitem o senso de passado; ou, na descrição de Riegl,
o valor de antiguidade. 43 Na verdade, o significado da relíquia isolada tende
a se restringir apenas a esse sentido do passado, como assevera Lowenthal:
“Para a maioria das pessoas, as relíquias tornam o passado mais importante,
mas não mais conhecido.” 44
Quando o aparato da designação é posto em movimento – ou simples-
mente quando há uma necessidade afetiva de nomeá-lo e de conferir-lhe uma
narrativa, ainda que imaginada –, 45 as relíquias se tornam recipientes de versões
qualificadas do passado. De acordo com Riegl, esses valores são de duas ordens:
valores de rememoração – que incluem os valores de antiguidade, de reme-
moração intencional e histórico-documental – e valores de atualidade – que
compreendem os valores de uso e de arte, este, por sua vez, subdividido ainda
em valores de novidade e de obra de arte relativa. Da mesma forma que lugares
são partes do espaço com significado atribuído, as relíquias e monumentos
não possuem significados fixos, sendo seus sentidos atribuídos pelas diferentes
sociedades com as quais entram em contato.
O patrimônio cultural não é necessariamente guiado pela ciência histó-
rica, aproximando-se mais do mito – como Lowenthal nota, ele “é sancionado
não por prova de suas origens, mas pela exploração presente.” 46 O próprio
patrimônio, ao contrário de seus objetos, não está aberto ao escrutínio da

42 Freire, 1997, p. 118.


43 Riegl, 1993, p. 46.
44 Lowenthal, 2005a, p. 249. No original: “For most people, relics render the past more
important but not better known” (tradução nossa).
45 Vem à mente o caso da sede da Fundação Oswaldo Cruz, em Manguinhos, no Rio de
Janeiro. O edifício eclético, em estilo mourisco, é tomado por várias pessoas como uma
espécie de castelo antigo.
46 Lowenthal, 2005b, p. 127. No original: “is sanctioned not by proof of origins but by
present exploits.” (tradução nossa).

Rodrigo Paraizo.p65 90 19/11/2010, 11:04


Memória, história, patrimônio e a proteção dos objetos do passado 91

lógica dos historiadores, apenas à fé dos seus herdeiros, que das imprecisões
e erros recontam fábulas arquetípicas para nutrir a coesão social.
A função primária do patrimônio é prover subsídios para a formação de
esquemas mentais coletivos de identidade. Portanto, privilegia a simplicidade
e os valores simples; não exclui a complexidade per se, apenas ocorre que as
mensagens simples alcançam mais pessoas com mais facilidade. Depois que
esse pano de fundo é estabelecido na infância, na vida adulta os membros da
coletividade conseguem perceber nuances nesses valores, ao se tornarem cons-
cientes de seus papéis na construção da coesão social, reconhecendo que as
histórias associadas ao patrimônio podem ser tanto alegorias como fatos his-
tóricos; alguns poucos irão mesmo se dedicar a desconstruir esses mitos pa-
trimoniais. O problema do conhecimento superficial do passado não é um
problema, do ponto de vista patrimonial, simplesmente porque é parte de sua
essência. A função do patrimônio é, basicamente, estabelecer um quadro refe-
rencial de valores de identidade no presente.
A interpretação dos objetos do passado, então, assume o papel de esta-
belecer vínculos capazes de fomentar esses valores. De acordo com Malpas:

a importância do patrimônio cultural reside no modo como ele nos


mostra algo sobre nós mesmos e sobre o mundo ao qual pertencemos
[...] O papel da interpretação do patrimônio, então, é permitir à visitante
o reconhecimento daquilo que, de certa forma, já lhe pertence, mas nem
sempre isso é tarefa fácil. 47

Ressalvemos que a valorização responsável do patrimônio deve estar


sempre acompanhada da noção de que o estudo e a interpretação da história
provêm instrumentos indispensáveis para a relativização e desconstrução de
mitos e discursos. As ferramentas da ciência histórica facilitam ainda a ligação
com outras culturas, seja pela possibilidade de interpretação diferenciada de
documentos, pela consciência do viés nos relatos do passado ou ainda pela
possibilidade de revisão como um testemunho do estatuto incessantemente

47 Malpas, 2006, p. 174. No original: “the importance of cultural heritage lies in the way in
which it shows us something about ourselves and about the world to which we belong
[…] The task of heritage interpretation, then, is to enable the visitor to recognise that
which is, in a certain sense, already her own, but this is not always an easy task.” (tradução
nossa).

Rodrigo Paraizo.p65 91 19/11/2010, 11:04


92 Rodrigo Cury Paraizo

mutável do passado e da imperfeição intrínseca do seu conhecimento. A carta


de Ename, sobre integridade intelectual e autenticidade na apresentação de
paisagens e sítios históricos e arqueológicos, bem como a carta do ICOMOS
sobre a interpretação e apresentação de sítios do patrimônio cultural, 48 enfatiza
a necessidade de acompanhamento histórico e arqueológico adequado na pro-
dução dessas interpretações, assim como de colaboração entre as instituições
patrimoniais e as comunidades locais para a criação de estruturas simbólicas
significativas.
A valorização do patrimônio é uma característica de nossa época que
pode ser creditada a uma percepção diferente da passagem do tempo:

Enquanto, em nosso mundo, o novo substitui o antigo, no deles [na


época pré-moderna] o novo não era senão um outro aspecto do eterno
[...] Daí poucos desejarem preservar o que era antigo. Os únicos vestígios
do passado que os europeus medievais conservavam eram talismãs prin-
cipescos e ícones espirituais – as vestimentas e traços corporais de santos
e soberanos. 49

Jeudy 50 identifica que o tema do patrimônio conferiu certa consistência


social às diretrizes políticas, criando um consenso de outro modo dificilmente
obtenível. Na verdade, o consenso, se não a unanimidade, é sempre um dos
objetivos do patrimônio no que concerne à definição da identidade de um
grupo. O patrimônio, como os lugares, pode adquirir diferentes significados
para diferentes pessoas, e, por poéticos que esses significados possam ser, é
apenas quando fazem parte de uma visão compartilhada que adquirem uma
possível relevância política capaz de levar à ação ou de justificá-la.
A transmissão do patrimônio é sempre um ato de apropriação por parte
daqueles que o recebem, mas para registrar o nível de engajamento destes, é
preciso referir os usos posteriores, tanto em intenção quanto na prática. Ações

48 Silberman, 2007.
49 Lowenthal, 2005b, p. 13. No original: “While in our world the new replaces the old, in
theirs [in pre-Modern times] the new was but another aspect of the eternal […] Hence few
desired to preserve what was old. The only vestiges of the past medieval Europeans
conserved were princely talismans and spiritual icons – the vestments and bodily traces
of saints and sovereigns.” (tradução nossa).
50 Jeudy, 2005, p. 26.

Rodrigo Paraizo.p65 92 19/11/2010, 11:04


Memória, história, patrimônio e a proteção dos objetos do passado 93

presentes envolvendo o patrimônio traduzem o grau de apropriação daqueles


que o herdaram, que varia da re-nomeação à transfiguração. Usar os mármores
do Coliseu para construir igrejas e palácios em Roma é uma tradução direta
da visão do objeto como uma gigantesca pedreira – melhor empregada, por-
tanto, como fonte de material para embelezar a cidade, do que como um
símbolo de um império decaído a ser reverenciado ou lamentado. Pode ter
sido uma terrível perda para os historiadores do império romano, um docu-
mento destruído, e também para as gerações posteriores que tiveram suas
escolhas patrimoniais reduzidas, mas aqueles que assim o empregaram obti-
veram exatamente o que desejavam, de modo bastante objetivo.
Freire teme, por outro lado, os efeitos da aceleração da experiência da
história sobre os monumentos:

[...] os suportes materiais da memória coletiva tornam-se estranhos, faltam-


nos códigos e referências para assimilá-los e interpretá-los. Perdeu-se o
enredo que abre sua decifração na história. Resta-nos, assim, sua esteti-
zação, sua percepção como mero arranjo formal. 51

Pode-se questionar se há realmente esse perigo ou não, se o que se


entende como aceleração da história não seria simplesmente o crescimento
exponencial da informação disponível, ou seja, da quantidade de documentos
disponíveis; e se nossa própria fisiologia não nos levaria, em determinado
ponto, a assimilar essa massa de informações de modo mais seletivo. De todo
modo, o fato é que a percepção dos monumentos está diretamente ligada à
percepção de seus valores.

CONCLUSÕES

História e patrimônio são modos diferentes, porém complementares, de lidar


com o passado. É preciso entender suas diferenças e similaridades para fazer
escolhas mais conscientes ao lidar com as necessidades de um e de outro, em
especial quando entram em conflito. A história lida com o passado por meio
de relatos científicos, verificáveis e documentados. O patrimônio, por sua vez,
mesmo que a comprovação por documentos reforce sua aura, lida primaria-

51 Freire, 1997, p. 147.

Rodrigo Paraizo.p65 93 19/11/2010, 11:04


94 Rodrigo Cury Paraizo

mente com nossas expectativas presentes em relação ao passado e aos valores


que ele nos traz. Patrimônio e história são ambos conceitos construídos, mas
o primeiro é mais claramente fundamentado em nossos desejos e necessidades
presentes, enquanto o segundo é baseado em um quadro referencial científico
guiado pela racionalidade – mesmo que também seja influenciado pelas paixões
humanas.
O patrimônio cultural tem um papel importante em nossa sociedade,
como conjunto valioso de objetos sociais que ajudam a promover a coesão
social através do recurso à memória coletiva. É usado para transmitir valores
sociais que auxiliam a criar essa coesão e a estabelecer identidades. Para fazer
com que os valores desses objetos sejam percebidos e apreciados pelas infor-
mações a seu respeito, diversas mediações devem ser feitas. Tanto quanto
preservar os objetos em si, é importante incluí-los em narrativas patrimoniais
significativas, tanto pela transmissão das narrativas tradicionais quanto na
constante recriação daquelas que têm os habitantes das cidades como prota-
gonistas cotidianos. Por fim, é preciso ressaltar que a mudança nas percepções
dos objetos patrimoniais sinaliza a dependência destes em relação às necessi-
dades do presente, e a partir delas devem ser construídas as políticas de pre-
servação e transmissão do patrimônio.

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Rodrigo Paraizo.p65 94 19/11/2010, 11:04


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RESUMO

Este artigo examina os conceitos de história e patrimônio, entendendo-os como


modos diferentes, ainda que complementares, de lidar com o passado, com o
objetivo de permitir a construção de metodologias de proteção do patrimônio
cultural mais conscientes. A diferença essencial entre os dois conceitos reside

Rodrigo Paraizo.p65 95 19/11/2010, 11:04


96 Rodrigo Cury Paraizo

na constituição de um conhecimento sobre o passado, no caso da história, ou


na criação de estímulos emocionais a partir de objetos do passado para a ação
no presente, no caso do patrimônio. Os conceitos correlatos de memória e
monumento são utilizados para lançar luz sobre o tema, ressaltando o caráter
construído das lembranças e dos valores monumentais em torno de narrativas
sobre o passado. Enquanto a memória é formada pela contínua rememoração
individual e social do passado, o que inclui o processo de distorção daquilo que
é lembrado, o monumento é constituído por um objeto ao qual se atribui, prima-
riamente, a qualidade da permanência invariável no fluxo do tempo.O argumento
essencial reside no entendimento do patrimônio como um recurso a ser utilizado
no presente. Os valores a ele atribuídos estão em constante atualização, de
modo que a gestão desse patrimônio deve passar pelo entendimento de sua
função no presente, oriunda da sua reinterpretação e reinserção em novos con-
textos simbólicos.
Palavras-chave: patrimônio cultural, história, memória coletiva, objetos pa-
trimoniais.

ABSTRACT

This paper examines the concepts of history and property, understanding them
as different ways, yet complementary, of dealing with the past, in order to
allow the construction of better methodologies for protection of cultural heritage.
The essential difference between the two concepts lies in the establishment of
a knowledge about the past, for the history, and the creation of emotional stim-
uli from objects from the past to the present action in the case of heritage. The
correlated concepts of memory and monument are used to further clarificate
the issue, highlighting the notion that both remembrances and monumental
values are in fact built around narratives about the past. While memory is formed
by the continuous rememoration of the past, both individually and socially –
which includes the implied distortion of the past generated by remembrance
itself –, the monument is an object to which is primarily attributed the quality
of invariable permanence in time. The main argument is that heritage must be
understood as a resource to be used by present times. The values we attribute
to each heritage object must be submitted to their present function, originated
in their reinterpretation and reinsertion in a new symbolic context.
Keywords: cultural heritage, history, collective memory, heritage objects.

Rodrigo Paraizo.p65 96 19/11/2010, 11:04


A relação entre o patrimônio histórico e a
disputa urbana da memória no espaço
cordial *

Cláudio Rezende Ribeiro

Este artigo conduz à evidenciação da existência de uma espacialidade própria


da formação histórica e social brasileira, que se funda na negação do conflito
social reforçada pela inexistência de caminhos abertos de disputa social por
um passado múltiplo que representaria aqueles conflitos negados. Afirma-se
que essa espacialidade reforça as caracteríticas cordiais descritas por Sérgio
Buarque de Holanda, podendo ser denominada como produção do espaço cordial.
Como ponto de referência metodológica do texto que se segue, afirma-
se que o termo “conflito” está intrinsecamente ligado ao termo “urbano”.
Quando se afirma que o conflito acompanha o urbano, considera-se que a
relação espaço-sociedade é considerada urbana quando aberta a embates e
disputas que são forjados e percebidos tanto no campo das idéias quanto no
campo das ações.
A análise que se segue constrói uma perspectiva crítica a respeito de
como o patrimônio histórico nacional, a partir da forma de tratamento dada
ao conjunto de bens imóveis urbanos tombados da cidade de Ouro Preto,

* Este artigo apresenta um recorte das reflexões realizadas pelo autor em sua tese de dou-
toramento, realizado no Programa de Pós-graduação em Urbanismo da UFRJ. Cf. Ribeiro,
2009.

Paisagem urbana e direito à cidade, Rio de Janeiro, 2010. p. 97-122. Coleção Direito e Urbanismo

Cláudio Rezende.p65 97 22/11/2010, 00:02


98 Cláudio Rezende Ribeiro

adquire um viés de autoritarismo simbólico descolado de uma perspectiva de


ampliação ou progressão da cidadania no contexto social brasileiro.
A partir da teoria lefebvriana da produção do espaço, constata-se que a
concepção de Ouro Preto como um símbolo paisagístico nacional tornou essa
cidade, entendida aqui como seu núcleo urbano original, um local onde os
conflitos sociais e espaciais se diluem em torno de um debate estético e técnico
concretizado em seus espaços de representação. Esse duplo viés – da técnica
aliada à estética – é entendido aqui como ferramenta política que possibilita o
encobrimento de outras relações sociais cotidianas conflituosas e cria uma
espécie de bruma que faz de Ouro Preto um tipo de cidade que vive a passagem
dos tempos e suas consequentes transformações de maneira particular, mas
que, no entanto, funciona metonimicamente como uma condensação da disputa
simbólica de todo o espaço da memória nacional.
As práticas sociais pautadas na cordialidade relacionadas ao patrimônio
nacional são ditadas por um congelamento temporal que acompanha os discur-
sos oficiais ao recortarem e negarem, em Ouro Preto, parte do que se passava
no cotidiano colonial que se formou em meio a estritas e repressivas regras
de convivência, com consequentes e permanentes respostas revoltosas e con-
flituosas que extrapolam, por exemplo, o contexto extraordinário da chamada
Inconfidência Mineira. As Minas Gerais, e especificamente Vila Rica, eram con-
sideradas um território hostil aos governantes que por lá passavam. 1 A escolha
da memória que se tornou hegemônica e nacional elidiu os inúmeros conflitos
existentes outrora e projetou no presente uma impossibilidade simbólica de
se construir o espaço nacional a partir da disputa social.
Essa relação de mascaramento dos conflitos em nome de uma comunhão
social em torno de uma idéia de nação pode ser lida sob um viés de confirmação
do legado de nossas raízes sociais e políticas estudadas por Sérgio Buarque
de Holanda, que culmina em seu conceito do homem cordial. 2 Como ilustração

1 Sobre este tema, conferir as obras de Mello e Souza, 1999 e 2004.


2 “Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será a
cordialidade – daremos ao mundo o ‘homem cordial’. A lhaneza no trato, a hospitalidade,
a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam,
com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que perma-
nece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões do convívio, informados no meio
rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’,
civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo e extremamente
rico e transbordante.” (Holanda, 1999, p. 146-147)

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A relação entre o patrimônio histórico e a disputa urbana da memória no espaço cordial 99

breve desse fenômeno, veja-se a descrição encontrada na inscrição da cidade


em pauta no Livro do Tombo do IPHAN, a qual ilustra esse discurso oficial de
maneira clara:

A fase áurea da produção se estendeu de 1725 até mais ou menos 1750,


quando começam a ser notados os primeiros sintomas da decadência
das minas. O grande êxito da atividade nesse período se reflete nas
moradias, que ganham novos acréscimos, suas varandas de trás se am-
pliam, surgem os forros de madeira, as portas e janelas ganham almo-
fadas. 3

Esta descrição sucinta e seletiva da exploração aurífera nas Minas Gerais


demonstra a memória escolhida para perdurar: a fase áurea e os melhoramen-
tos que a mesma trouxe para Vila Rica, desconsiderando a opacidade dos seus
espaços já presente na época colonial, que se forjou em meio a extrema desi-
gualdade social e pobreza. Tal discurso se arraigou no senso comum e no
imaginário que envolve Ouro Preto, e pode-se afirmar que dominam tanto a
condução de visitas turísticas, culturais e educacionais que se pretendem por-
tadoras de um caráter histórico, quanto as referências à cidade nos grandes
meios midiáticos, em geral.
No entanto, a historiografia contemporânea vem, a duras penas, des-
manchando essa imagem simplificada e barrocamente ilusória da vida colonial.
Estudos mais recentes demonstram, inclusive, que essa “fase áurea” era res-
trita a determinados círculos – ou classes – sociais, que suplantavam inclusive
as questões de raça, já que também para muitos “brancos” exploradores de
ouro não havia nenhuma condição de enriquecimento ou mesmo de melhoria
qualitativa das condições de vida devido ao forte autoritarismo patrimonia-
lista que era exercido pelo estado colonial em nome da manutenção de uma
desigualdade das relações metrópole-colônia e, em âmbito mais particular,
daqueles que pertenciam ou não à Família Estado. 4 Um exemplo desses estudos

3 IPHAN, 1986.
4 Esta relação entre família e Estado será abordada de forma mais detida no decorrer deste
artigo; por hora, vale ressaltar a colocação que Holanda faz sobre o tema na abertura do
capítulo “O homem cordial”, de sua obra Raízes do Brasil: “O Estado não é uma ampliação
do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas
vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo

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100 Cláudio Rezende Ribeiro

é Desclassificados do ouro, 5 em que a historiadora Laura de Mello e Souza faz


uma releitura da vida das Minas Gerais setecentista, demonstrando como a
opressão imperava fosse sobre os escravos, fosse sobre os mestiços mais po-
bres, sobrando apenas alguns poucos casos de um enriquecimento esplendo-
roso. Estes são muito bem retratados por obras que hoje são tidas como das
mais significativas de Ouro Preto, segundo o discurso oficial, como a impo-
nente e bela Casa dos Contos, sem mencionar as Igrejas ou um dos exemplos
mais marcantes, o Palácio dos Governadores, concebido como um edifício
militar: um forte em plena praça (ver Fotografia 1).

Fotografia 1: Detalhe do Palácio dos Governadores (posteriormente Escola de


Minas, hoje pertencente à UFOP), um forte em plena praça.

familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição.”
(Holanda, 1999, p. 141). A partir desta clara definição, o autor vai mostrar como esta é
mais uma idéia que se transforma num grande mal-entendido no Brasil.
5 Ver nota 1 supra.

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A relação entre o patrimônio histórico e a disputa urbana da memória no espaço cordial 101

Essa crítica histórica, no entanto, continua ausente nas representações do


espaço ouro-pretano, assim como em seus espaços de representação que, con-
juntamente e dialeticamente, interferem nas práticas sociais cotidianas da cidade
e por elas são refletidos. Essa ausência evidencia a prática de anulação das relações
de conflito como fator de manutenção do espaço de uma memória cordial que
serve como possibilidade de dominação simbólica e efetiva de um corpo social
que, de acordo com os novos estudos históricos, sempre se viu de frente com a
opressão em todos os momentos de sua história, mas sempre respondeu a essa
opressão de forma revoltosa, configurando um ambiente de conflito intenso.
Uma das origens da efetivação desse domínio simbólico realizado no
campo da memória e que deve ser destacado como um fator ligado às raízes
que forjaram o homem cordial e que interferem na manutenção da produção
e reprodução da vida social ouro-pretana contemporânea é a herança admi-
nistrativa colonial portuguesa. Sabe-se que a hierarquia entre os Governos
Gerais, Ouvidorias, Relações e congêneres não possuía, pode-se dizer, uma
linha hierárquica muito clara na administração da metrópole portuguesa e,
como não poderia deixar de ser, em suas colônias. Mandos e desmandos, ambos
muitas vezes oficiais, sempre foram regra; fator fundamental para a formação
da cordialidade, por exacerbar a pessoalidade das relações sociais como res-
posta a tantas leis impossíveis de serem seguidas. Pessoalidade cujo objetivo
era garantir um mínimo social para a (sobre)vivência individual. Faoro comenta
ironicamente esta questão: “De Dom João I a Getúlio Vargas, numa viagem de
seis séculos, uma estrutura político-social resistiu a todas as transformações
fundamentais, aos desafios mais profundos, à travessia do oceano largo”. 6
Tal fenômeno ocorre ainda nas cidades contemporâneas, onde não se
estabeleceram regras impessoais efetivas de convívio e práticas sociais. Planos
diretores, por exemplo, são seguidamente ignorados por quem os produz; os
poderes municipais desautorizam e são desautorizados a todo momento pelos
seus pares de outras instâncias dessa formação nacional periférica. Resta ao
habitante da cidade a opressão conjunta de todas as regras que funcionam
contra ele na proporção direta de sua exclusão dessa grande família que é o
Estado brasileiro.
Essa herança é forte em Ouro Preto, onde a instância de regulação urbana
legítima pós Constituição de 1988, a prefeitura municipal, não encontra, ou

6 Faoro, 2001, p. 866.

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102 Cláudio Rezende Ribeiro

não procura, respaldo perante o órgão federal de “controle estético local”, o


IPHAN, que acaba por desempenhar papel de regulador urbano maior, conforme
se conseguiu perceber em pesquisas e entrevistas realizadas na cidade. 7 Há
sete décadas presente na vida dos ouro-pretanos, a instituição patrimonial
continua sendo o maior ponto de referência no tocante aos assuntos relacio-
nados à produção e reprodução do espaço. 8
Dentro desse cenário de dominação, a autoridade do especialista ainda
é condição tida como necessária para a absorção da construção social de um
patrimônio histórico. Ainda se mantém um discurso onde a população ouro-
pretana, principalmente a menos escolarizada, mais pobre e moradora de áreas
menos centrais, necessitaria de uma educação patrimonial para compreender
os motivos da preservação de um patrimônio que supostamente deveria re-
presentá-la como parte integrante da cidadania brasileira. Mesmo quando se
tenta construir uma visão mais crítica a respeito do assunto, 9 a resposta cos-
tuma recair na possibilidade de construção da uma legitimidade em forma de
educação patrimonial. Não há um questionamento efetivo sobre a não legitimi-
dade, o não reconhecimento e a não aceitação, por parte da população, desse
patrimônio que lhe foi imposto. Não se encontra formado um campo de críticas
que suscitem a possível presença de uma negação deliberada da história social
que é contada pelos espaços tombados, o qual sugeriria um necessário rear-
ranjo tanto da forma quanto do conteúdo da construção da memória nacional.
Este artigo tenta contribuir para o preenchimento dessa lacuna ao questionar,
dentre outras coisas, a eficácia e a legitimidade de se criar programas de educa-
ção patrimonial que não considerem um pluralismo histórico como ponto de
partida.
Há sete décadas existem conflitos em relação à forma dada a este patri-
mônio – Ouro Preto –, 10 há sete décadas não se consegue manter este patrimô-
nio da maneira como o discurso iphaniano o desejava; no entano, tais conflitos

7 Cf. Ribeiro, 2009.


8 Entrevistas realizadas com os técnicos do IPHAN local demonstraram uma tentativa de
alteração desse cenário. Cf. Ribeiro, 2009.
9 Sobre este assunto, conferir o livro Hotel Pilão, de Grammont, 2006, no qual a autora,
sob um viés diferente do do presente artigo, questiona a legitimidade social do patrimônio.
10 Ouro Preto foi considerada monumento nacional no ano de 1933, antes mesmo da criação
do IPHAN. Cf. IPHAN, 1986.

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A relação entre o patrimônio histórico e a disputa urbana da memória no espaço cordial 103

são travestidos de carência cultural. A idéia que se constrói como senso comum,
e prática comum, é a de que esses conflitos se dão por desconhecimento da
verdade histórica; ainda há quem afirme que esses conflitos deveriam e seriam
resolvidos através da educação – significando, nesse contexto, convencimento
ou imposição. Muito pelo contrário, o que se quer evidenciar é que uma “incom-
preensão do patrimônio” pode ser traduzida por uma negação de identificação
entre o representante e o representado. Muitas vezes os monumentos não
servem de representação legítima àquilo que se deseja denominar como nação.
Portanto, em vez de ser sintoma de falta de educação ou preparo, essa negação
representacional demonstra que o conjunto social que se afirma como nação
exige ser construído sob o desafio de se assumir representações conflituosas
e heterogêneas em sua produção e reprodução e rejeita a tentativa de ser
forjado por um autoritário viés de mando.
Não se quer dar a entender que um patrimônio nacional – ou de qualquer
outra instância de organização social –, que um patrimônio histórico público,
enfim, deva ou mesmo possa ser aceito ou incorporado de forma natural,
imediata e ampla. Muito pelo contrário, afirma-se que patrimônio histórico
trata de disputa social e de disputa social urbana quando se concretiza no
âmbito da paisagem. Porém, quer-se evidenciar a existência de uma lacuna
crítica a respeito da forma de construção e condução do patrimônio histórico
nacional brasileiro que se naturaliza discursivamente e desvaloriza aqueles
que, de alguma forma, o recusam. Para realizar tal tarefa há que se fazer,
portanto, duas reflexões: uma sobre a questão da educação patrimonial e outra
sobre o significado de se habitar um patrimônio.

PATRIMÔNIO E CIDADANIA: UMA RELAÇÃO CONCEITUAL

Considerando-se a nação como uma construção histórica e, portanto, em per-


manente transformação, em que, no caso brasileiro, é perceptível a perma-
nência de um caráter cordial na sociedade, é necessário se perguntar como
pode o patrimônio edificado auxiliar no rompimento deste – o caráter cordial
da sociedade – e na transformação daquela – a nação –, tanto em relação a seu
passado e seu presente quanto a seu futuro. Esta pergunta se faz importante
posto que introduz uma vertente espacial em um debate no qual nação, história,
tradição e rompimento são peças-chave, evidenciando um encontro conflituoso
na espacialização do debate.

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104 Cláudio Rezende Ribeiro

Entenda-se que, ao se incorporar a questão patrimonial nessa querela,


abre-se a possibilidade de se repensar antigas questões, como a contida na
usual pergunta: como devemos transformar a sociedade para que ela respeite
e compreenda o patrimônio? Porém, é proposta aqui uma inversão nesse debate,
isto é: como pode o patrimônio edificado interferir na edificação de uma cida-
dania e, conseqüentemente, na transformação do que se entende por nação? 11
O primeiro aspecto a ser levado em conta nessa reflexão é a permanência
do caráter cordial em uma sociedade industrial, como é o caso da sociedade
brasileira. Segundo Sérgio Buarque de Holanda, a cordialidade haveria de ser
rompida com a transformação da sociedade, posto que à época de realização
da obra o autor apontava a cordialidade como um caráter residual de um tempo
e de um espaço social descompassados em relação à promessa (hoje já consoli-
dada) de mudança em direção à industrialização por que passava o Brasil.
Ora, em se tratando hoje o Brasil de um país industrializado, mesmo
que periférico, e que ainda possui claramente em suas relações sociais os
traços da cordialidade, fica evidente que esse “descompasso” revela, na ver-
dade, a ausência de um rompimento total com o modo, digamos, “ruralista”
da sociedade brasileira. Houve um longo passo econômico, mas a perna social
não se moveu, de tão inchada.
Pode-se imaginar, portanto, que tudo que diz respeito ao campo estrita-
mente econômico caminha cada vez mais na velocidade dos fluxos monetários
internacionais, enquanto as relações sociais não apenas empacam como um
jegue teimoso, mas muitas vezes recuam como um caranguejo. Aliás, para
não se cair na armadilha de um dualismo é necessário esclarecer que o aspecto
econômico só avança nessa rapidez exatamente por causa da lentidão dos
progressos sociais. E as relações espaciais transitam entre esses dois modelos,
refletindo concretamente a síntese do retrato estranho que se pintou a respeito

11 José Maria Gómez faz uma interessante reflexão a respeito das transformações nacionais
e da cidadania, que amplia o debate travado neste estudo: “É preciso ser também, com
um mínimo de direitos, obrigações e garantias institucionais, “cidadão do mundo” [...]:
um cidadão que tem acesso e é reconhecido como membro de comunidades políticas
interligadas – a do Estado-nação, a de regiões supra-estatais e a da ordem global –, exer-
cendo assim cidadanias múltiplas e diversas” (Gómez, 2000, p. 134). É bom deixar claro
que Gómez não prega a formação de um Estado mundial reconhecedor dessa cidadania
global – o que também é assumido pelo presente estudo, assim como se reconhece essa
necessidade de uma re-significação social do que deva ser a cidadania contemporânea
em direção a uma globalização, ou melhor, a um internacionalismo cidadão.

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A relação entre o patrimônio histórico e a disputa urbana da memória no espaço cordial 105

de um país repleto de transformações e permanências, coincidentes num mesmo


espaço.
Os conflitos espaciais acabam por evidenciar tal dicotomia quando a
forma de apropriação “cordial” do espaço, por ser familiar e patrimonialista,
age em conjunto com a forma de transformação do espaço baseada no econô-
mico; em outras palavras, a apropriação privada da coisa pública (traço funda-
mental da cordialidade) serve à transformação exigida pelo capital. E, no meio
dessa dicotomia cúmplice, fica o patrimônio edificado vendo ruir consigo a
função social das propriedades pública e privada.
E eis que se retoma o pensamento do início deste item: não será a partir
da transformação social que se conseguirá revalorizar o patrimônio, mas é a
partir deste que se poderá auxiliar na revalorização daquela. Para tal, há que
se trabalhar, junto ao conceito de patrimônio edificado, a sua apropriação
pública, na direção de uma possível edificação de cidadania ou de alguma
outra relação social que corresponda a um caráter menos perverso na idéia de
transformação, ou mesmo superação, da nação; lembrando-se que a nação,
como instituição histórica que é, vive em constante transformação.
Para problematizar a questão da apropriação, é interessante recorrer a
Lefebvre, que em sua La production de l’espace contrapõe espaço apropriado
a espaço dominado. O autor debate uma diferenciação entre os dois conceitos,
segundo a qual, no limite, o espaço apropriado – ligado a permanências e à
identidade – seria o da família (o interior de uma casa) e o espaço dominado
seria o espaço público, comunitário (a rua). Continuando sua análise, Lefebvre
expõe o fato da dominação espacial ter-se superposto à apropriação a partir,
por exemplo, da ação do Estado, quando este controla o espaço público.
Seria interessante, segundo o autor, trabalhar a dicotomia entre espaço
apropriado e espaço dominado, no sentido de produzir um espaço diferencial,
entendido aqui como espaço de autonomia, em um sentido amplo e humano
da palavra. Lefebvre reforça em sua obra que a retomada da apropriação espa-
cial é fator fundamental para uma transformação social, seguindo uma linha
de pensamento em que essa retomada significaria um enfraquecimento do
poder de dominação do Estado. O que não significa sugerir que o espaço da
família deverá se equivaler ao dominante, muito pelo contrário: essa nova
apropriação seria tanto uma superação da dominação realizada pelo Estado
quanto uma renovação de um domínio familiar, em favor, como já foi dito, de
um espaço de autonomia.

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106 Cláudio Rezende Ribeiro

Tal conceituação parece importante para o tema aqui trabalhado, mas é


necessário problematizá-la em função de uma formação social capitalista não
clássica ou periférica. No Brasil as coisas se deram de forma diversa da reali-
dade francesa, ou capitalista ocidental, lefebvriana, e as diferenças residem
de forma proeminente na relação entre Estado e Família, por exemplo. Um
dos traços da cordialidade é o tratamento da coisa pública como privada,
tomando-se, portanto, o Estado como extensão da Família. Esta constatação
leva obrigatoriamente a uma reinterpretação da relação entre o que vem a ser
“apropriação” e o que vem a ser “dominação”, termos que vão se mesclar e se
confundir cordialmente.
Como classificar o espaço público (entendendo o patrimônio urbano
edificado como participante do espaço público) no Brasil? Ora, na medida em
que o espaço público seria aquele cujo controle estaria a cargo do Estado,
chegando-se ao extremo no caso de espaços monumentais nacionais, poder-
se-ia afirmar que os espaços públicos brasileiros, como quer Lefebvre, seriam
espaços tipicamente de dominação. No entanto, ao se afirmar que o Estado e,
conseqüentemente, a coisa pública são tratados no Brasil como uma extensão
familiar – privatizante, portanto –, pode-se pensar em um espaço de dominação
apropriada. O espaço público, portanto, pode ser interpretado, no Brasil, como
aquele onde o Estado autoriza e estimula sua privatização e, até mesmo, sua
privação. O caráter de apropriação exerce um peso nessas relações espaciais,
que acabam por pressionar as dinâmicas explicitadas por Lefebvre em uma
direção inversa à autonomia ou à convivência relacional das dinâmicas espaciais.
O mesmo acontece em relação ao patrimônio, que, como já ficou dito,
encaixa-se na categoria espaço público na medida em que carrega consigo
uma tal carga simbólica que desfaria a possibilidade de caracterização priva-
tista do mesmo. No entanto, seguindo a tradição da formação cordial, mesmo
o espaço simbólico é passível de privatização – em termos bem mais sutis. A
própria relação do IPHAN com a história demonstra uma espécie de apropria-
ção, ou dominação, do espaço simbólico por um projeto que se firmava em
relações e idéias pessoais, no caso, a crença na arquitetura moderna como
redentora do progresso pelos especialistas da formação original do IPHAN.
A repetição de tais práticas leva a crer que o caráter de apropriação fala
mais alto do que o de dominação. Há uma clara apropriação “familiar” de um
bem cuja permanência não diria mais respeito a esta esfera, reforçando o que
diz DaMatta sobre o caso brasileiro: “Em outros termos, há uma nação brasi-

Cláudio Rezende.p65 106 22/11/2010, 00:02


A relação entre o patrimônio histórico e a disputa urbana da memória no espaço cordial 107

leira que opera fundada nos seus cidadãos, e uma sociedade brasileira que
funciona fundada nas mediações tradicionais”. 12 É esta sociedade, ou família,
que aqui fala mais alto.
Ora, seguindo a idéia clássica de formação da nação, este espaço deveria
ser o espaço do cidadão, gerido por uma relação fundada na entidade nação;
porém como o brasileiro, usualmente, não percebe nem constrói uma relação
segundo esses padrões, ele relega o que é nacional ao Estado – do qual, supos-
tamente, não faz parte. O Estado é visto como um outro, ou, conforme já se
observou, como uma família à parte, à qual não se pertence e na qual, muito
menos, se interfere. Trata-se de mais uma “idéia fora de lugar”. 13
Note-se que, segundo esses exemplos, o espaço cordial ganha ares de
negação do urbano, isto é: ao invés do exercício do conflito, o que se realiza é
sua negação por meio da indiferença ou da intolerância, reflexos da não iden-
tificação do público com seu espaço. Este fenômeno deve possuir alguma re-
lação com a não identificação desse mesmo público com sua memória. Milton
Santos faz uma observação importante ao debater o espaço do cidadão, que
ilustra bem o que tenta-se aqui compreender:

Quando o homem se defronta com um espaço que não ajudou a criar,


cuja história desconhece, cuja memória lhe é estranha, esse lugar é a
sede de uma vigorosa alienação. Mas o homem, um ser dotado de sensi-
bilidade, busca reaprender o que nunca lhe foi ensinado, e vai pouco a
pouco substituindo a sua ignorância do entorno pelo conhecimento, ainda
que fragmentário. O entorno vivido é lugar de uma troca, matriz de um
processo intelectual. 14

A citação de Milton Santos ajuda a esclarecer a falha dos discursos que


insistem em dizer, por exemplo, que a população ouro-pretana não está ainda
apta a compreender os significados do patrimônio nacional. Ao que parece,
ela não apenas compreendeu o significado, mas o transforma a todo momento,
ao negar diversas regras construtivas a que foi submetida. Não se quer inge-

12 DaMatta, 1987, p. 95.


13 Cf. o famoso texto de Roberto Schwarz (2001), “As idéias fora de lugar”, e sua apropriação
por Hermínia Maricato (2002): “As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias”.
14 Santos, 2002, p. 81.

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108 Cláudio Rezende Ribeiro

nuamente defender certas transformações espaciais em nome de um discurso


que reforça ao extremo a propriedade privada, atrelando esta ao direito de
construir, discurso que é comum encontrar nesses locais e que nega a coleti-
vidade simbólica de um bem em nome da possibilidade de apropriação total
por parte do proprietário. Mas é fato que o discurso nacional sobre o patrimônio
pautou-se em um futuro desenvolvimentista que, quando alcançou a superfície
da cidade-símbolo, lhe foi negado peremptoriamente, em nome da manutenção
de um passado imposto pelo Estado.
Concorda-se que o conhecimento do espaço vivido é fonte de autonomia,
de rompimento com uma alienação que alcança níveis extremos no momento
em que adentra a própria formação concreta de uma sociedade em relação a
seu passado. Quando o homem cordial se associa a um passado por proximi-
dade com o futuro que se lhe mostra inevitável, como foi o caso da tese desen-
volvimentista do Estado Novo, acaba por negar-lhe outros passados existentes
que poderiam lhe servir de referência para a construção de seu presente.
Não que tais traços sejam rígidos e eternos na sociedade, mas percebe-
se que nela a confusão entre apropriação e dominação se dá de forma a corro-
borar o seu caráter cordial. A conseqüência primeira de tal situação é que há
uma cisão, ou melhor, uma descontinuidade entre espaço público e privado,
descontinuidade que se constrói na manutenção de uma “ultra-apropriação”
dos espaços – sejam eles públicos ou privados –, cujo resultado é a exclusão
do sentido relacional esperado em um espaço que se denomine como urbano.
Tal fato ainda se complica quando acrescem formas de gerenciamento do
espaço pelo Estado, que nos últimos tempos tem-nas transferido para o setor
privado, ampliando assim essa “promiscuidade” quase Freyreana de sua pro-
dução.
Outra conseqüência é a degeneração do espaço público simbólico, que
perde sua característica de conjunto exatamente devido a essa descontinuidade
de práticas que incorrem sobre o mesmo. Uma área tombada qualquer, que
possua uma escala urbana, acaba por se transformar atomizadamente no que
diz respeito às transformações individuais de imóveis que fazem parte do
conjunto. A nação se vê enfraquecida em seu espaço simbólico, demonstrando
para aqueles que querem enxergar o fracasso de sua tentativa de discurso
unificador da sociedade.

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A relação entre o patrimônio histórico e a disputa urbana da memória no espaço cordial 109

ENTRE A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E O PATRIMÔNIO EDUCATIVO

Como superar, ainda que conceitualmente, essa situação, de forma a alcançar


uma relação mais edificante entre o cidadão, o patrimônio e a nação, no caso
brasileiro? Conforme afirmado anteriormente, o senso comum prega que é a
partir da educação que ocorre a transformação dessa situação. Assim, somente
um “povo educado” seria capaz, por exemplo, de reconhecer um patrimônio
como público e, conseqüentemente, estabelecer uma relação de pertencimento
mais estreita com um Estado-nação. Vale ressaltar que uma solução desse
tipo costuma colocar a educação acima de outras instituições sociais e, por
conseguinte, descolada das mesmas. A educação é considerada como um ente
construído em um mundo abstrato, tão distante da realidade do suposto ci-
dadão quanto a própria nação o é; não sendo, portanto, incorporada, mas
imposta.
Outra vertente comum anuncia a necessária e urgente alteração de leis,
no intuito de, ao atualizá-las, considerar o problema como resolvido. Inde-
pendentemente das definições do que vem a ser educação, no primeiro caso,
ou de qual o sentido de mudança atribuído, no segundo, é importante destacar
que tais idéias, tão impregnadas no senso-comum, contêm um ponto de inter-
seção, que é a caracterização desta nação como periférica.
A constante convicção de que instituições abstratas são capazes de re-
solver verticalmente os problemas sociais é típica da constituição de uma
nação que foi formada, ela própria, imersa em tal crença. Esse traço positivista
da construção nacional, que perdura ainda hoje, quando das tentativas de
solucionar diversas mazelas, encontra abrigo histórico na maneira pela qual
se deu a formação do mito nacional por parte de seu órgão oficial, o IPHAN,
conforme destacado anteriormente.
Afirma-se com isso que, seguindo uma tendência positivista, foi construí-
da uma instituição – oficializada, aliás, por decreto (Decreto 25/37) – na qual
esse traço – das idéias como construtoras da realidade – ficou realçado na
medida em que foi legitimado a partir de discursos de diversos intelectuais
que conduziram o órgão, construtor e divulgador do caráter nacional. A idéia
assumida como sendo a de nação brasileira foi construída por mentes eruditas,
letradas, para então ser implementada e apresentada aos cidadãos, a exemplo
de tantos outros processos oficiais do país. Foi um reconhecimento externo,
ou alteado, que contou ao cidadão qual era seu patrimônio, e essa externali-

Cláudio Rezende.p65 109 22/11/2010, 00:02


110 Cláudio Rezende Ribeiro

dade era exatamente a esfera do Estado, que nunca foi parte integrada à vida
do brasileiro.
Não se pretende, com essa observação, desconsiderar toda a história e o
papel relevante do IPHAN, muito menos diminuir sua importância, a de seus
fundadores – que atuaram na sua chamada “fase heróica” – e, obviamente, a
dos que ainda hoje mantêm viva a atuação do Instituto, agindo talvez de forma
bem mais heróica do que outrora. Muito pelo contrário, é importante que
sejam discutidas alternativas para a atuação do mesmo, bem como de outros
órgãos semelhantes, de diferentes esferas de poder, em vez de se desmantelá-
los de vez em nome, por exemplo, do mercado, como querem muitos.
A questão patrimonial – notadamente a do patrimônio edificado e urba-
no, mas não somente – possui um caráter tão importante para a (trans)formação
nacional que deve adquirir um grau primário na formação social. Invertendo
as propostas colocadas anteriormente, segundo as quais deveria ser realizada
alguma ação (abstrata) para que o patrimônio fosse salvaguardado, o que se
propõe é que a partir do conhecimento e do reconhecimento do patrimônio
seja permitida a construção de novas relações de sociabilidade capazes de,
em um movimento crítico, superar questões permanentes da história, plurali-
zando passados. Questões permanentes, repita-se, por estarem naturalizadas –
estado insustentável quando se considera a produção de um espaço público e
simbólico como histórica e, portanto, transformável.
A incorporação de práticas coletivas e relacionais que busquem uma
ampliação da percepção patrimonial por parte da população deve ser integrada
ao próprio conceito de patrimônio, de forma a possibilitar uma revisão de
práticas que influenciem e transformem o modo pelo qual o espaço do patri-
mônio é apropriado pela sociedade, seja através de sua visitação, seja a partir
de sua habitação, equilibrando a balança entre a apropriação e a dominação
na direção da superação dessa dicotomia.
Pensa-se, aqui, em práticas sociais (pedagógicas?) que possibilitem um
rompimento da distância existente entre o espaço público e seu habitante, ou
seja, uma aproximação, ou talvez uma fusão do Estado e do cidadão na direção
de uma autonomia a partir do espaço. Imagina-se que, muito além de uma
educação patrimonial, onde “patrimônio” aparece adjetivamente, o que deve-
se pensar em realizar é uma patrimonialização educativa, em que “patrimônio”
readquira um caráter substantivo e possibilite, enfim, que os cidadãos cons-
truam, não apenas simbolicamente, a sua cidade, superando a cordialidade

Cláudio Rezende.p65 110 22/11/2010, 00:02


A relação entre o patrimônio histórico e a disputa urbana da memória no espaço cordial 111

em nome daquilo que lhes convier, posto que é a partir de uma prática trans-
formadora que uma mudança se dará. Uma mudança como essa significa,
inclusive, revisão do passado, pluralizando-o.
Mas esse adiantamento propositivo adquire aqui ainda um caráter es-
peculativo, cujo objetivo é exercitar a compreensão do que ocorre na produção
do espaço cordial nos monumentos nacionais. Antes de decretar uma idéia de
rompimento na ação, é importante ter em mente os processos de formação da
situação atual e, principalmente, a maneira pela qual a atualidade se produz.
Esta produção está intimamente ligada ao fato de que os locais tidos como
patrimônio nacional são cidades contemporâneas, habitadas. Habitar o patri-
mônio requer um pensar e um agir próprios.

OURO PRETO NA ERA DE SUA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA

Para compreender a especificidade do gesto de habitar o patrimônio, é preciso


considerar uma distinção que merece um olhar mais aprofundado: a relação
dialética entre um produto e uma obra de arte, assim como entre as caracte-
rísticas histórica e memorial de um monumento, que se relacionam com o
primeiro par dialético citado e interferem bastante no significado de se habitar
o patrimônio. Leia-se um esclarecimento feito por Choay a respeito da relação
existente entre um monumento e um monumento histórico a partir da teoria
de Alois Riegl:

Outra diferença fundamental observada por A. Riegl, no começo do sé-


culo XX: o monumento é uma criação deliberada (gewollte) cuja destinação
foi pensada a priori, de forma imediata, enquanto o monumento histó-
rico não é, desde o princípio, desejado (ungewollte) e criado como tal;
ele é constituído a posteriori pelos olhares convergentes do historiador
e do amante da arte, que o selecionam na massa dos edifícios existentes,
dentre os quais os monumentos representam apenas uma parte. Todo
objeto do passado pode ser convertido em testemunho histórico sem que
para isso tenha tido, na origem, uma destinação memorial. De modo in-
verso, cumpre lembrar que todo artefato humano pode ser deliberada-
mente investido de uma função memorial. 15

15 Choay, 2001, p. 25-26. Grifo do autor.

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112 Cláudio Rezende Ribeiro

O esclarecimento feito pela autora é peça chave para o entendimento da


condição de monumento histórico da cidade de Ouro Preto. A questão reside
na mescla entre o histórico e o memorial que se deu na criação dos monumen-
tos brasileiros, fruto da cordialidade. O que acontece, no Brasil, é que, ao
inverso do indicado por Riegl, os objetos memoriais de uma classe social
foram convertidos em históricos de um todo nacional. A visão crítica da qual
é impregnada a ciência histórica foi aqui destituída de sua amplitude, na
medida em que houve uma apropriação cordial da história, em que apenas
certo tipo de memória foi considerada legítima, notadamente a pertencente
aos que produziam o Estado – o qual, como se sabe, é nesse caso imiscuído de
fortes traços familiares. Houve uma “dominação apropriada” dos valores histó-
ricos em função da manutenção de certa memória que excluiu diversos sujeitos
sociais dessas recordações e que criou – parafraseando o termo de Mello e
Souza – uma nova linhagem de desclassificados, os desclassificados históricos.
A legitimidade desse patrimônio memorial fez-se, em parte, por meio
da operação de equalização técnica dos produtos espaciais de Ouro Preto – ao
ser criada uma equivalência, no discurso iphaniano regido por Lucio Costa, 16
entre concreto armado e o pau-a-pique, chamando-se este de “barro-armado” –;
mas também a partir de um discurso estético forte, que lembrava que a cidade
de Ouro Preto fora tombada inicialmente segundo seus dotes estéticos – e,
mesmo a cidade tendo sido incluída há décadas em outros Livros do Tombo,
a prática não acompanhou esse gesto.
É mantido ainda um intenso discurso estetizante quando a preservação
do patrimônio dito “histórico” da cidade é debatida. Já foi vista a existência
de certo clamor por uma educação patrimonial que incuta nos habitantes da
cidade um saber, ou um gosto, que valide seus olhares em relação ao patrimônio
na direção de torná-los apropriados pelos ouro-pretanos. É ainda difícil, no
entanto, um direcionamento de ação no sentido inverso, ou seja, a construção
social de um patrimônio de modo a adequá-lo aos diversos estratos sociais e,
porque não, às diversas classes sociais que produzem aquele espaço. Afonso
Carlos Marques dos Santos também se apoia em Riegl ao abordar o movimento
relacional existente entre a obra de arte e a história:

A arte, revelava Riegl [...] interessava de início de “um ponto de vista


puramente histórico” e o monumento como um elo indispensável no
16 Cf. Costa, 1997.

Cláudio Rezende.p65 112 22/11/2010, 00:02


A relação entre o patrimônio histórico e a disputa urbana da memória no espaço cordial 113

desenvolvimento da história da arte. Compreendido neste sentido, o


“monumento artístico” seria, portanto, na realidade, um “monumento
da história da arte”, seu valor, considerado deste ponto de vista, seria
menos artístico que histórico. Daí resultaria sem sentido a distinção
entre monumentos artísticos e monumentos históricos, uma vez que os
primeiros estariam incluídos nos últimos e com eles se confundindo. 17

A relação entre arte e história se mostra, portanto, como uma pedra


indispensável na construção social do patrimônio histórico. Como foi dito
anteriormente, em terras brasileiras essa construção se deu de forma amalga-
mada e invertida, considerando-se o que foi posto por Afonso dos Santos;
deu-se criando bases para uma estetização memorial. Não houve uma histori-
cização dos monumentos artísticos, mas sim um preenchimento estético de
recordações. A situação do patrimônio histórico em Ouro Preto nunca se li-
bertou dessa origem e não se alcançou o status de história, em um sentido
crítico e abrangente, que conduzisse a um debate amplo dos rompimentos
sociais ocorridos ao longo do percurso “civilizatório” brasileiro. A seletividade
da memória, apoiada em um discurso técnico e estético, prevaleceu e deu
origem a transformações espaciais que se calcavam na imposição de um gosto
memorial.
Lefebvre também debateu a questão sobre a propriedade de obra (de
arte) ou de produto intrínseca a certas cidades, tomando como exemplo maior
a cidade de Veneza. Chegou à conclusão de que a obra integra a cidade que é
produzida, já que, nesse caso, não há a intencionalidade da criação artística,
sendo essa própria característica sua atribuída socialmente, produzida conti-
nuamente, posto que habitada e sempre renovada.
Mas foi Benjamin quem melhor conseguiu sintetizar a condição artística
do espaço produzido, ao analisar uma outra forma de produção contemporânea
estética, o cinema. Em seu famoso A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica, o autor examina a situação das artes com o advento da industrialização,
que, ao contrário do que queriam os modernos do IPHAN, rompe com diversos
modos de existência anteriores. Tratando do caso específico do cinema, Ben-
jamin acaba por esclarecer não só a grandeza e o alcance que a chamada
sétima arte atinge nos tempos modernos, mas a mudança fundamental dos

17 Santos, 2007, p. 123.

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114 Cláudio Rezende Ribeiro

tempos industriais, em que a quantidade acaba por se transformar em quali-


dade. Inicialmente, é importante notar uma aproximação entre o cinema e a
arquitetura realizada pelo próprio autor e que autoriza, de certa forma, as
aproximações que se fazem a seguir: “[...] a pintura não pode ser objeto de
uma recepção coletiva, como foi sempre o caso da arquitetura, como antes foi
o caso da epopéia, e como hoje é o caso do cinema”. 18
Essa apropriação coletiva é determinada, em parte, no caso da arquite-
tura, pelo fato de seu produto ser habitado (em um sentido amplo do termo)
e, portanto, receber diferentes significações tanto de seus habitantes quanto
daqueles que o apropriam como objeto construtor da paisagem urbana coti-
diana. Da mesma forma, a arquitetura é objeto de recepção coletiva em relação
ao tempo, plano em que adquire significação memorial ou histórica, sendo
importante ressaltar que “coletividade” não pressupõe “universalidade”, “ho-
mogeneidade” e muito menos “democracia”, como pode-se perceber no caso
em que certa coletividade se apropria de paisagens em nome de sua memória,
ao mesmo tempo negando a memória de outros coletivos. A descrição da
produção do cinema feita por Benjamin revela uma similitude ainda maior
com a do patrimônio histórico quando observada a seguinte passagem:

O filme acabado não é produzido de um só jato, e sim montado a partir


de inúmeras imagens isoladas e de sequências de imagens entre as quais
o montador exerce seu direito de escolha – imagens, aliás, que poderiam,
desde o início da filmagem, ter sido corrigidas, sem qualquer restrição. 19

Pode-se afirmar que, da mesma forma, há escolhas do que deverá ou


não ser lembrado, condição primordial de existência do patrimônio, sem a
qual arrisca-se a viver a tormenta do personagem de “Funes, o memorioso”,
de Borges. 20 A questão que se coloca em todo o percurso deste estudo é
sobre quem possuiu e quem ainda detém o papel de montador da cena patri-
monial, ou, ainda, para que platéia foi produzido esse filme.
Importante ressaltar a característica primordial da reprodutibilidade,
responsável pela produção dos espaços complexos resultantes da política do

18 Benjamin, 1996, p. 188.


19 Ibid., p. 174.
20 O conto – no qual o personagem Funes se torna incapaz de esquecer – é aqui retomado
através da consideração que Castro Rocha (2004) faz do mesmo.

Cláudio Rezende.p65 114 22/11/2010, 00:02


A relação entre o patrimônio histórico e a disputa urbana da memória no espaço cordial 115

IPHAN em Ouro Preto. A reprodução do espaço estabelecida pelo IPHAN se


deu pelo viés industrial da equação técnica cordial entre colonial e moderno
(o barro-armado). Essa reprodutibilidade dos “edifícios coloniais”, no entanto,
por ser uma consequência não prevista pela teoria iphaniana, é considerada
como ilegítima ao ser produzida e reproduzida pelos habitantes da cidade:

Generalizando, podemos dizer que a técnica da reprodução destaca do


domínio da tradição o objeto reproduzido. Na medida em que ela multi-
plica a reprodução, substitui a existência única da obra por uma exis-
tência serial. E, na medida em que essa técnica permite à reprodução vir
ao encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto
reproduzido. Esses dois processos resultam num violento abalo da tradi-
ção, que constitui o reverso da crise atual e a renovação da humanidade.
Eles se relacionam intimamente com os movimentos de massa, em nossos
dias. 21

A ação dos movimentos de massa, neste caso, mesmo que não deliberada-
mente organizada, pode ser dada como de exemplo de resposta dos ouro-pre-
tanos à política preservacionista, ao atualizar o objeto colonial, reproduzindo-o
à sua maneira. Esse gesto acabou sendo legitimado pelo Estado através da
reconstrução de um casarão pela FIEMG (Federação das Indústrias de Minas
Gerais) em plena praça Tiradentes, viabilizado com a ajuda da técnica, sempre
acompanhada da política – que determinou a autorização daquela cena pelo
diretor do filme, possuidor de olhar privilegiado pelo poder institucional a ele
atribuído. A tradição criada pelo IPHAN foi abalada por sua própria condição
dúbia de conciliação de opostos. A manutenção da cena barroca como legítima
memória oficial ganhou seu revés quando o choque com a indústria se fez
menos doce e distante que o desejado, interferindo diretamente no cenário
intocável, ou melhor, tocável apenas pela mão de comando. De todas as pre-
missas adotadas pelo IPHAN em Ouro Preto, talvez apenas o aspecto barroco
tenha perpetuado quando esta instituição permitiu, ou teve que permitir, a
ilusória reconstrução do Hotel Pilão pela FIEMG. A mistura de técnicas, tão
temida pela pureza da ação original iphaniana e tão fomentada pelo caráter
cordial de seu discurso, atingiu seu ápice e legitimou, de uma vez por todas, a

21 Benjamin, 1996, p. 168-169.

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116 Cláudio Rezende Ribeiro

junção impossível da colônia e da república, mas agora através da mão visível


do mercado (ver Fotografia 2).

Fotografia 2: Centro Cultural da FIEMG, na Praça Tiradentes de Ouro Preto.


Casarão reconstruído nos moldes setecentistas, após incêndio.

Para que se compreenda melhor a prática social presente na produção


desse espaço complexo, há que se realizar uma reflexão mais direta sobre o
significado de habitar esse espaço, seja como coadjuvante, protagonista ou,
na maioria dos casos, antagonista.

CONCLUSÃO: HABITANDO O ESPAÇO CORDIAL

Habitar o patrimônio requer certa estratégia de conduta social que envolve


diversos fatores, os quais vão desde o reconhecimento do lugar em que se
vive como sendo representante de uma memória coletiva – ou seletiva – até
reações às regras e normas que são fruto dessa condição. Maria Gravari-Barbas
coloca que:

Cláudio Rezende.p65 116 22/11/2010, 00:02


A relação entre o patrimônio histórico e a disputa urbana da memória no espaço cordial 117

[...] o fato de “habitar o patrimônio” não é neutro. As populações que aí


habitam devem fazer face ao duplo peso da memória e das restrições
ligadas ao quadro da vida.
Habitar em um lugar carregado de história, revestido de sentido não
somente para aqueles que o habitam, mas igualmente para grupos sociais
maiores, implica relações múltiplas, nuançadas, às vezes contraditórias
entre o Homem e o seu meio. 22

Essa condição complexa, pautada pela não neutralidade, é percebida


por diversos moradores de diversos sítios históricos em todo o mundo, onde
a necessidade de memória e de história atuam de forma a criar a necessidade
desses espaços simbólicos:

[...] Um lugar patrimonial só pode ser habitado ao preço de alterações,


de modificações, de inscrições, “sob pena, para seu proprietário, de per-
manecer o visitante de uma concha vazia de sentidos” (N. Ortar). Só pode
ser habitado se for transformado. Cada sociedade e cada época colocam
de forma precisa aquilo que consideram ser os limites aceitáveis desta
transformação, mas em todos os casos parece ser mais importante in-
sistir sobre o que é transformado do que sobre o que perdura. No fim
das contas, é através da leitura das transformações que se pode obter
um olhar mais pertinente sobre o investimento nos lugares realizado
por aqueles que o habitam. 23

22 Gravari-Barbas, 2005, p. 15, tradução do autor. No original: “[...] le fait d’’habiter le


patrimoine’ n’est pas neutre. Les populations qui y habitent doivent faire face au double
poids de la mémoire et des contraintes liées au cadre de vie.
Habiter dans un lieu chargé d’histoire, revêtu de sens non seulement pour ceux qui y
habitent, mais également pour des groupres sociaux plus larges, implique des relations
multiples, nuancées, voire contradictoires entre l’Homme et son milieu. “
23 Ibid., p. 24, tradução do autor. No original: “[...] Un lieu patrimonial ne peut être habite
qu’au prix de changements, de modifications, d’inscriptions, ‘sous peine, pour son
propriétaire, de rester le visiteur d’une coquille vide de sens’ (N. Ortar). Il ne peut être
habite que s’il est transformé. Chaque société et chaque époque pose certes ce qu’elle
considère être les limites acceptables de cette transformation, mais dans tous les cas il
semble tout aussi important d’insister sur ce qui est transformé que sur ce qui perdure.
Au bout du compte, c’est à travers la lecture des transformations qu’on peut porter un
regard plus pertinent sur l’investissement des lieux par ceux qui y habitent.”

Cláudio Rezende.p65 117 22/11/2010, 00:02


118 Cláudio Rezende Ribeiro

Os espaços simbólicos nacionais brasileiros, representados aqui pela ci-


dade de Ouro Preto, não permitem, pela forma como foram forjados, essas
percepção e ação transformadoras de seus habitantes como alimento constante
das relações sociais que se pautam no âmbito da memória. É preciso que se
conheça e se reconheça a dinâmica autoritária da produção e reprodução desses
símbolos para que se adquira força teórica e prática suficientes para transformar
um espaço que pode ser considerado como sendo um espaço cordial.
O espaço cordial será produzido onde e quando houver a convivência de
discursos inconciliáveis que não se evidenciem como tal em forma de conflito.
Essa relação sempre se dará de forma opressiva e extremamente individuali-
zante, por exemplo, quando espaços públicos se transformam, disfarçadamente,
em privados, em nome de um progresso técnico. A técnica, aliás, nesse espaço,
será sempre naturalizada, posto que a naturalização de uma atividade humana
é, por si só, conciliação de discursos opostos. Foi esta característica que garantiu
a progressão dócil e o convívio amistoso, embora ao mesmo tempo opressor,
de um passado com um futuro garantidor de uma finalidade social e espacial
“desenvolvimentista”, que negou a heterogeneidade da história em nome de
uma formação que se forjou como nação. Ana Clara Torres Ribeiro realiza uma
reflexão a respeito da exploração cultural do patrimônio histórico que reforça
as consequências advindas da cordialidade espacial:

Transformados em atratores de fluxos de consumidores animados por


promessas de acesso à cultura, os ambientes urbanos preservados, higie-
nizados e estetizados por um gesto potencialmente único oferecem re-
sistência à apreensão da vida de relações que animava e articulava,
explicando-os, palácios e casebres. Sem dúvida, o estímulo à contempla-
ção, que é tão presente nos arranjos estetizantes dos acervos históricos
e na cenarização clean ajustada ao tipo médio do consumidor de cultura,
equaliza lugares e desconstrói possibilidades de aprendizado. 24

Essa negação do aprendizado pelo espaço remete à dificuldade de se


formar cidadãos a partir dele. Muito pelo contrário, como afirma Milton Santos,
vive-se a formação de consumidores mais-que-perfeitos, em vez de cidadãos
plenos:

24 Ribeiro, 2004, p. 98. Grifo do autor.

Cláudio Rezende.p65 118 22/11/2010, 00:02


A relação entre o patrimônio histórico e a disputa urbana da memória no espaço cordial 119

O consumidor não é o cidadão. Nem o consumidor de bens materiais,


ilusões tornadas realidades como símbolos: a casa própria, o automóvel,
os objetos, as coisas que dão status. Nem o consumidor de bens imate-
riais ou culturais, regalias de um consumo elitizado como o turismo e
as viagens, os clubes e as diversões pagas; ou de bens conquistados
para participar ainda mais do consumo, como a educação profissional,
pseudo-educação que não conduz ao entendimento do mundo. 25

Pode-se dizer o mesmo das diversas formas de educação patrimonial


que negam a apropriação autônoma e crítica de um espaço, fornecendo, assim,
explicações prontas que transformam a possibilidade de conhecimento em
acumulação de informações consumíveis.
Junte-se a isso que o espaço cordial também será produzido onde e
quando houver esse híbrido de legalidade e ilegalidade, formalidade e infor-
malidade, inserido em uma lógica normativa que parte de ideais necessaria-
mente alheios à realidade de sua aplicação e que, portanto, servem ora a uma
configuração social, ora ao seu oposto, criando um estigma de incerteza e
insegurança urbana que só não é sentido por quem faz parte da criação e do
domínio dessas lógicas. A eficácia jurídica das normas não acompanha seu
par social. Trata-se de um espaço que se molda, assim, na continuidade social
enrijecida por uma autoridade técnico-política e alheia à possibilidade de de-
bate e de conflito social legitimado.

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25 Santos, 2002, p. 56.

Cláudio Rezende.p65 119 22/11/2010, 00:02


120 Cláudio Rezende Ribeiro

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RESUMO

Este artigo constrói uma crítica à construção social do patrimônio histórico


nacional edificado a partir do caso-referência da cidade de Ouro Preto. To-
mando como conceito chave o de “homem cordial”, de Sérgio Buarque de
Holanda, assim como a teoria da produção do espaço lefebvriana, introduz
um debate no âmbito dos estudos espaciais-urbanos, demonstrando como a
memória nacional se apóia na produção de um espaço cordial. As práticas de
educação patrimonial, a eficácia social da norma referente ao tombamento,
assim como a legitimidade decisória dos órgãos oficiais sobre o que deve ou
não constituir a memória nacional são expostas no texto de modo a estabelecer
um conflito, ainda que teórico, sobre o campo da preservação e a contribuir
para a discussão das relações entre patrimônio histórico e construção da ci-
dadania.
Palavras-chave: Ouro Preto, herança histórica, educação patrimonial.

ABSTRACT

The following paper is based on social relations observed through its spatial
bias in order to build new forms of understanding the practices over the pres-
ervation of cultural heritage related to urban sites in Brazil. Among many
cities eligible to be the main object of this study, it was Ouro Preto the chosen
due to its privileged interface with Brazilian national identity. A new concept
was here created as a manner of bringing different analysis to the field of
urban studies, that is, the “cordial space”. It came out from the crossing of

Cláudio Rezende.p65 121 22/11/2010, 00:02


122 Cláudio Rezende Ribeiro

two different key concepts, the Henri Lefebvre’s production of space and Sérgio
Buarque de Holanda’s “cordial man”. Thus, it was possible to evidence the
way the policies of heritage preservation in urban sites become a form of
space and social domination due to the “cordiality” that remains even in the
representations of the space as in the spaces of representation as well in the
social practices that one can observe in a city like Ouro Preto. It was also
possible to determinate new possibilities in spatial production in this city due
to new forms of technical spread that takes place there nowadays.
Keywords: Ouro Preto, historic heritage, patrimonial education.

Cláudio Rezende.p65 122 22/11/2010, 00:02


O projeto no espaço urbano: riscos na
paisagem *

Moema Falci Loures

Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos. Nada é


mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a si
mesmo, idéias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas
pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não domina-
mos. São variabilidades infinitas cuja desaparição e aparição coincidem.
São velocidades infinitas, que se confundem com o nada incolor e silencio-
so que percorrem, sem natureza nem pensamento. É o instante que não
sabemos se é longo ou curto demais para o tempo. Recebemos chicotadas
que latem como artérias. Perdemos sem cessar nossas idéias. É por isso
que queremos tanto agarrarmo-nos a opiniões prontas. Pedimos somente
que nossas idéias se encadeiem segundo um mínimo de regras constantes,
e a associação de idéias jamais teve outro sentido: fornecer-nos regras
protetoras, semelhança, contigüidade, causalidade que nos permitem

* Recuperamos neste artigo algumas questões trabalhadas pelo autor na dissertação de


mestrado realizada no Programa de Pós-graduação em Urbanismo da UFRJ: Previsibilidade
e imprevisibilidade: fronteiras móveis do Projeto-Urbano (Loures, 2006). Também introdu-
zimos reflexões que estão sendo desenvolvidas no âmbito da tese de Doutorado, também
no Programa de Pós-graduação em Urbanismo da UFRJ.

Paisagem urbana e direito à cidade, Rio de Janeiro, 2010. p. 123-142. Coleção Direito e Urbanismo

Moema Loures.p65 123 19/11/2010, 11:07


124 Moema Falci Loures

colocar um pouco de ordem nas idéias, passar de uma outra a outra


segundo uma ordem do espaço e do tempo, impedindo nossa “fantasia”
(o delírio, a loucura) de percorrer o universo no instante, para engendrar
nele cavalos alados e dragões de fogo. Mas não haveria nem um pouco
de ordem nas idéias, se não houvesse também nas coisas ou estados de
coisas, como um anti-caos objetivo [...]
Deleuze e Guattari, 2004, p. 259.

PARTE I

Projeto - (s.m.) [do lat. Projectu, part. Pass. de projicere, ‘lançar adiante’.] 1
(adj.) [do Lat. projectus, p.p. de projicere, lançar.] 2

Possibilidades no verbete Projeto

Defendemos aqui a idéia que o Projeto no urbano está entre o conceitual e


experimental; entre o previsível e o imprevisível. Dupla denominação: ‘Projeto’
e ‘urbano’. Mas Afinal o que entendemos por Projeto?
De acordo com Bluteau 3 – Vocabulario Portuguez e Latino – foi durante
as Conferências Eruditas, ano de 1696, que se passou a admitir na língua
portuguesa o verbete Projeto com o mesmo sentido da língua francesa:

Projet: “[...] fignifica hum penfamento, feguido de reflecção immediata


[...] o intento fe fórma na idea, a que fe fegue o confenfo, para ao depois
Fe executar [...] Projecto fe deriva de Projicere, lançar, porque na língua
Franceza o primeiyo ufo de Projet, foy fignificar coufa lançada por papel,
para ajudar a memória na execução da mefma coufa.” 4

O Projeto é “previsão, predição, predisposição, plano, ordenação, pre-


determinação, etc., bem como modo de ser ou de agir próprio de quem recorre

1 Ferreira, 1975.
2 Silva, 1844.
3 Bluteau, 1712.
4 Transcrição exata do dicionário Bluteau, 1712. Observa-se a troca do ‘s’ por ‘f’.

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O projeto no espaço urbano: riscos na paisagem 125

a possibilidades” 5. O que se constrói é sempre uma imagem do futuro, a pos-


sibilidade que haja um futuro.
O Projeto lida com problema e possibilidade; intenção e transformação;
é parte daquilo que ainda não é, mas poderá ser ou já é. A natureza do Projeto
é incerta, na medida em que não existe um objetivo puro, quando não muda o
objeto mudam os métodos para interpretá-lo. Ao mesmo tempo, o mundo em
que se projeta é instantâneo e imprevisível.
O Projeto está contaminado pela condição da imprevisibilidade, mas, tam-
bém, pelo desejo do autor de certeza e segurança. Esta contaminação entre
certeza e imprevisibilidade gera um desequilíbrio ou uma contradição imanente
ao projeto, o que já elimina a possibilidade de interpretá-lo de forma dual: ou
certo ou imprevisível. A certeza é uma falácia, porém possui um efeito simbó-
lico real. Certeza como mecanismo de dispersão do invisível e do imprevisível.
Resgatamos que durante o Renascimento, quando a noção de Projeto
passa a ser associada à noção de desenho, o Projeto passa a estar mais vincu-
lado à idéia de previsão. O desenho torna-se uma ferramenta capaz de fixar
uma imagem do objeto antes de sua realização. “A arquitetura muda de signi-
ficado: adquire um rigor intelectual e uma dignidade cultural que a distin-
guem do trabalho mecânico, e a tornam semelhante às artes liberais: a ciência
e a literatura” 6.
O Projeto desvincula-se do “fazer” e passa a ser mediado pelo desenho
ocorrendo a gênese da separação entre criação e execução. Brunelleschi define
as regras da perspectiva como um novo método de trabalho que se destaca
como mecanismo de antecipação e permite representar, e inventar, os objetos
do mundo visível.
Por outro lado, lembramos que esboços já eram utilizados antes do
Renascimento, no entanto o desenho não era o instrumento fundamental, não
era promessa, não havia a necessidade da descrição prévia; o desenho era
presença sem conhecimento, afirma Moneo 7.

5 Abbagnano, 2003.
6 Benévolo, 2004, p. 404.
7 Conferência Rafael Moneo. Vallés: Idear, representar, construir. XI Congreso Internacional
de Expresión Gráfica Arquitectónica – Funciones del Dibujo en la Producción actual de la
Arquitectura. Organização: Departamento de Expresión Gráfica Arquitectónica da Escuela
Técnica Superior de Arquitectura, Universidad de Sevilla y Universidad de Cádiz. Reales
Atarazanas, Sevilha, Espanha. 10 de maio de 2006.

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126 Moema Falci Loures

O desenho podia antecipar a capacidade de pensar, a idéia, mas não a


definia. A perspectiva, por outro lado, aos poucos, se transforma em uma
norma – plantas, seções, valores instrumentais, axonometria. Segundo Eco 8:

[...] os desenvolvimentos de uma ciência e da prática da perspectiva


testemunham o amadurecimento de uma consciência da função da sub-
jetividade interpretante em face da obra. Contudo, é, outrossim, ponto
pacífico que tais convicções levavam a agir justamente em oposição à
abertura e a favor do fechamento da obra: os vários artifícios de pers-
pectiva representam exatamente outras tantas concessões feitas às exi-
gências da situacionalidade do observador para levarem-no a ver a figura
no único modo certo possível, aquele para o qual o autor (arquitetando
artifícios visuais) procurava fazer convergir a consciência do fruidor.

Alguns dicionários 9, principalmente os mais recentes, definem o verbete


Projeto, quando se referem à arquitetura, como um plano de edificações que
contém uma parte gráfica e outra descritiva, esquivando-se da noção de Pro-
jeto como hipótese. A representação gráfica se impõe como instrumento de
memória, educação, experimentação, comunicação e como um modo domi-
nante de concepção do Projeto; como um símbolo do ofício do arquiteto 10.
Frisamos, também, a confusão entre o verbete Projeto (projet, no francês,
progetto, no italiano), em inglês design, e o verbete desenho. Assim, ao mesmo
tempo que observamos um crescimento significativo dos desenhos como arti-
fício de Projeto, como ferramenta de pensar, representar e prever o Projeto 11,
a noção de Projeto vai sendo substituída pela noção de desenho. No entanto,
ainda em 1696, no Vocabulario portuguez e latino 12, consta a seguinte coloca-
ção: “[...] Diffenho, Modello, Delineação também não forao admittidos em lugar
de Projecto [...]”. Frisamos que desenho não é Projeto.

8 Eco, 2005, p. 42.


9 Almeida, 1898; Aulete, 1970; Ferreira, 1975; entre outros.
10 Ver Barki, 2003.
11 É neste período que, também, surge o conceito de cidade enquanto objeto construído,
junto à idéia de arranjo espacial (Choay, 1985).
12 Bluteau, 1712.

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O projeto no espaço urbano: riscos na paisagem 127

Concomitantemente, suscitamos que a modernidade é marcada inicial-


mente pela exacerbação dos princípios de ordem, unidade e simplicidade que
vão ao longo dos anos delimitando a realidade escondida atrás das aparências
de confusão, pluralidades e complexidades. Le Corbusier 13 afirma que a grande
cidade é fenômeno de força em movimento; fala das cidades em desespero,
no desespero das cidades; reconhece a imprevisibilidade, enquanto acredita
que a ação do arquiteto/urbanista está ligada ao gesto previsível na cidade
imprevisível. Diante isso proclama 14: “Prever, é tudo quanto é preciso, mas
também o que é indispensável e urgente”.
No entanto, não devemos subestimar os modernos 15 e pensar que eles
não tinham consciência da imprevisibilidade. A tentativa de camuflar as incer-
tezas já apontava para a sua existência, e para “obsessão delirante de encontrar
a pedra fundamental” 16. A obsessão pelo previsível é um dos principais para-
digmas que acompanha a modernidade.
Já na poética de Bachelard 17 identificamos a compreensão do Projeto
como uma simulação analógica da concretização, um ato de previsibilidade
que recorre a possibilidades. Murad18 instiga que o Projeto é:

[...] um pretexto de Imaginação que teima em originar objetos no Mundo.


[...] não se desenvolve em uma horizontalidade, não segue uma conti-
nuidade linear, sucessiva, crescente e portanto previsível. Ele [o Projeto]
é primordialmente uma dinâmica de rupturas, de descontinuidades, de
oscilações entre ascensão e o aprofundamento.

Argan 19 nos suscita dizendo que: “nunca se projeta para, mas contra
alguém ou alguma coisa [...] contra a resignação ao imprevisível, ao acaso, à

13 Le Corbusier, 2000, passim 24-51.


14 Ibid., p. 64.
15 Os modernos (movimento moderno na primeira metade do século XX) propõem uma
idéia fictícia de previsibilidade visando o controle dos conflitos a partir de um mesmo
ponto de vista.
16 Morin, 2002, p. 277.
17 Bachelard, 2008.
18 Murad, 1999, passim 22-17.
19 Argan, 2000.

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128 Moema Falci Loures

desordem, aos golpes cegos dos acontecimentos, ao destino”, na tentativa de


se fixar um presente no qual se pretende agir, mas nos escapa.
O autor 20 identifica a crise do Projeto à crise da noção de sujeito e
indivíduo, à crise do desejo, da impulsão que nos faz inventar coisas no mundo;
à crise do destino da humanidade; à crise daquilo que impulsiona o ser a criar
Projetos na aventura imprevisível da criação humana. A negação do sujeito é
um recuo ao Projeto, ao “Eu Criador” 21. Argan 22 recomenda tentar reencontrar
o sentido da arte no sentido do ato de projetar; através da lição da arte que,
durante a história, foi entendida como sendo aquela mais livre da providência
incontrolável do destino e, por isso, a mais preparada para projetá-la.

Introduzindo o verbete Projeto-Urbano

Após o resgate da noção de Projeto entre as fronteiras móveis da previsibili-


dade e imprevisibilidade, propomos fazer uma breve passagem pelo verbete
Projeto-Urbano. Instigamos que esta expressão recupera em alguns pontos as
idéias implícitas no verbete Projeto, reconhecendo a cidade como um sistema
aberto e o Projeto como um processo.
O verbete Projeto-Urbano como o utilizamos no Brasil vem do francês
Projet Urbain 23. Um termo que se difundiu na década de 70, como uma respos-
ta ao Urbanismo Racionalista implementado pelos CIAM 24 e como uma propos-
ta de revisão do sistema de Planejamento Urbano. O Projeto-Urbano surge junto
a uma política de redefinição do papel do Estado, ou seja, junto à crise do
Estado centrado nas políticas federais. Surgem novas necessidades de imple-
mentação e gestão de Projetos baseadas em um Estado marcado pela descen-
tralização, desregulamentação e flexibilização dos instrumentos normativos.
Quanto à cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, observa-se em 1992 a
Conferência Mundial das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável –

20 Id., 1989.
21 A noção do “Eu Criador” e do gesto de desejo na criação do Projeto está vinculada à obra
de Murad, 1999.
22 Argan, 1989.
23 Na França o verbete “Projet Urbain” assume novas acepções como: “Projet de Ville” (mais
falado pelos habitantes); “Plan Stratégique” ou “Projet Mairie” e “Projet Urbain” (“Charte
Spatiale”). Ingallina, 2003.
24 Congresso Internacional da Arquitetura Moderna.

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O projeto no espaço urbano: riscos na paisagem 129

Rio 92 – que desperta um novo cenário do urbanismo carioca, no qual uma


série de Projetos Urbanos são realizados. Destacamos o primeiro Rio-Orla e o
Projeto Rio Cidade, os quais se inserem numa nova forma de gestão. O Projeto-
Urbano associa-se cada vez mais à capacidade do Estado de gerir recursos,
planos, projetos e obras e é o reflexo de um maior dinamismo municipal.
Solà-Morales 25, por outro lado, afirma que o Projeto-Urbano surge na
década de 20, nos países da Holanda, Dinamarca, Espanha, etc, como uma
forma de articulação da arquitetura moderna com Projetos sociais.
A partir de outro viés, Nuno Portas 26 afirma que, ainda na década de
60, este verbete foi utilizado para conotar Projetos-Urbanos de arquitetura de
apreciável dimensão e complexidade que pretendiam configurar o que deveria
ser a cidade moderna. Estas contribuições surgem a partir do Team X, grupo
de arquitetos que pensavam a cidade dentro da lógica do Urbanismo Moderno,
desenvolvendo Projetos unitários de arquitetura de apreciável dimensão e
complexidade que pretendiam configurar para além de seus limites físicos o
que deveria ser a cidade moderna. Já a década de 70, é para Portas a segunda
geração de Projetos-Urbanos.
Resumidamente, podemos dizer que o verbete Projeto-Urbano vem sendo
difundido principalmente a partir da década de 70 junto às transformações
sociais, econômicas e políticas; um verbete que surge para definir um Novo
tipo de Urbanismo, uma nova expressão crítica, afirma Roncayolo 27.
O Projeto-Urbano aparece como forma de resolver a contradição entre o
Plano de Conjunto e o Urbanismo de Fragmento, sustenta Moscato 28. No mesmo
viés, Tsiomis 29 afirma que o Projeto-Urbano aparece como uma noção de subs-
tituição ao Planejamento e ao “plano de ordenamento” que vigorou do pós-
guerra aos anos 70. Segundo o autor 30, o Projeto-Urbano é uma qualificação
espacial e também um procedimento, que envolve a articulação do tecido
espacial e do tecido social.

25 Sola Morales, 1987.


26 Portas, 1998.
27 Roncayolo, 2002.
28 Moscato, 1995.
29 Tsiomis, 2003.
30 Id., 1996.

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130 Moema Falci Loures

No Congresso Internacional 31, intitulado “Projet Urbain” 92: de l’intention


à realisation, discutiu-se os equívocos pelo uso maciço da expressão “Projeto-
Urbano”. Na Brochura da apresentação consta que o Projeto-Urbano:

[...] se transforma no meio para lutar contra a cidade explodida preparando-


a para acolher progressivamente programas e arquiteturas. O Projeto-
Urbano é também uma maneira de lutar contra a cidade que exclui, a
cidade do “zoneamento”. É a tentativa de obter a complexidade urbana,
trabalhando sobre a totalidade do território urbano com a mesma profun-
didade, ou com uma maior complexidade, para os bairros e as populações
em dificuldade. É um outro modo de fazer a cidade ou de não deixar que
se desfaça sob pequenas operações esparsas ou incoerentes 32.

O Projeto-Urbano é polissêmico e flutuante, afirma Tsiomis 33, e é uma


resposta ao Movimento Moderno que compreendia a cidade como um catálogo
de conhecimento impossibilitando dar flexibilidade às suas determinações
normativas, em especial ao zoneamento, principal instrumento do Plano. Nuno
Portas 34 frisa que o Projeto-Urbano é a dimensão estratégica (Projeto) com a
consciência da complexidade (Plano). O Plano é uma estratégia territorial, enquanto
o Projeto é o ato de dar “forma” a esta estratégia. O Projeto é mediação e desafio
e, ao contrário do que acontecia dentro do planejamento convencional, não é
mais um produto derivado do plano que obedece a uma lógica preestabelecida.
Além disto, Portas 35 suscita que não adianta apenas verificar as condi-
ções de viabilidade financeira ou técnica e a presunção de servir o interesse
coletivo; desde o princípio deve haver a preocupação de informação e formação
do consenso necessário para a sua aceitação política. A articulação entre os
diversos atores é essencial para a viabilização e implementação do Projeto-
Urbano, afirma Portas.

31 Organizado pelo DAU, do Ministère de l’Equipement, du Logement et des Tranports,


Stransburg, set. 1992.
32 Apud Entrevista com o arquiteto e urbanista José Cláudio Gomes. Por Adalberto da Silva
Retto Júnior, Norma Regina Truppel Constantino e Marta Enokibara. Disponível em: <http://
www.vitruvius.com.br/entrevista/gomes/gomes.asp>.
33 Tsiomis, 2003.
34 Portas, 1996.
35 Id., 1998.

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O projeto no espaço urbano: riscos na paisagem 131

Ingallina 36 define três dimensões para o Projeto-Urbano: Espacial; Eco-


nômica e Social, as quais se articulam com o Tempo – tempo das decisões; da
concepção e da mudança da produção do espaço, das formas e da sociedade.
Outra questão que gostaríamos de levantar é a proximidade do Projeto-
Urbano com a realidade urbana, ou seja, do Urbanismo como ação 37 e articu-
lação. O problema não é mais construir, ou idealizar cidades perfeitas, mas
sim intervir na cidade existente, dentro das perspectivas sociais, econômicas,
culturais e suas escolhas (ou alternativas) espaciais.
Não existe um consenso no Campo disciplinar sobre o verbete Projeto-
Urbano, muitos pontos de vistas se confrontam. A proposta desta passagem
foi apenas articular algumas contribuições que possam delimitar esta noção.
O importante aqui é reconhecer o Projeto-Urbano como uma postura crítica
de ação diante a cidade imprevisível.

PROjeto e PROcesso

É fato que o Urbanismo sempre reconheceu a cidade complexa, a cidade mu-


tável, o seu cenário de intervenção. No início esse reconhecimento é dado por
oposição, o Projeto como ato de previsibilidade no meio imprevisível que
poderia supostamente tornar-se previsível. Posteriormente, a crítica, a falta
de Projeto, tudo se torna demasiadamente imprevisível. Através do Projeto-
Urbano, muitas vezes volta-se a reconhecer a importância do Projeto que não
deixa de ser um ato de previsibilidade, contudo que implica o reconhecimento
do princípio da incompletude e da incerteza.
A noção de Projeto unida à idéia de processo passa, assim, a fazer parte
do discurso no Campo do Urbanismo. O Urbanismo coloca-se como um campo
experimental, institui-se a possibilidade da dúvida, conceitualmente infinita.
A dúvida como a possibilidade potencial para a cidade. O Projeto que agiliza
e transforma é uma visão do possível; soluções ensaiadas.
Urbanismo Processual, suscita Ascher 38. Projeto como processo legítimo
e não como Projeto de controle. Quanto a isto afirma 39:

36 Ingallina, 2003.
37 Choay, 1985.
38 Ascher, 1998.
39 Ibid.

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132 Moema Falci Loures

Considerar a cidade como complexa, e não somente como complicada


[...] que constitui um sistema aberto, que os seus equilíbrios são instáveis;
que as variações menores podem engendrar mudanças consideráveis; e
que evoluções são geralmente irreversíveis[...] não pode pretender ser
previsivo, programático, sistemático, imperativo, devendo antes consti-
tuir-se com base numa racionalidade limitada em contexto de incertezas
[...] o urbanismo no sentido alargado que utilizamos a palavra deve
mobilizar instrumentos capazes de admitir flutuações, criatividade, in-
certeza, contradição, ambigüidade, imprecisão [...]

O Projeto-Urbano passa a ser visto como um sistema aberto, uma exten-


são do possível (Koolhaas) 40, uma démarche, um caminhar (Tsiomis) 41; como
uma utopia de processo e não como uma utopia de resultado (Ascher) 42. Pro-
jeto no mundo das ambivalências, no mundo moderno, no momento em que
a noção de ordem foi descoberta e já é senso comum.

PARTE II

Após termos recuperado dois verbetes de grande importância para o campo


do Urbanismo – Projeto e Projeto-Urbano – e diante o reconhecimento do campo
do Urbanismo do Projeto como um sistema aberto, passaremos agora a refletir
sobre possibilidades criativas do Projeto no espaço urbano. O Projeto como
transbordamento da realidade, nas fronteiras móveis entre a previsibilidade e
a imprevisibilidade.

Projeto como interferência e transbordamento: bloco de sensações

Quando chegamos a um horizonte já existe outro. 43

Assim como observamos anteriormente, muitas vezes utiliza-se a ex-


pressão Projeto-Urbano para categorizar um urbanismo não racionalista que

40 Koolhaas et al., 1996.


41 Tsiomis, 1996.
42 Ascher, 1998.
43 Palestra 01 dez. 2008 – Au Détour du Monde – Raymond Depardon et Paul Virilio –
Fondation Cartier, Paris, França. Quand on arrive à un horizon il y a autre.

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O projeto no espaço urbano: riscos na paisagem 133

busca contextualizar o Projeto através de um diálogo com uma expectativa


local. Acreditamos, no entanto, que neste processo de diálogo com a realidade
percebida a dimensão criativa do Projeto se perde, o Projeto se transforma em
uma reprodução, representação ou algum tipo de resposta à realidade visível.
Como poderíamos apreender a dimensão criativa do Projeto no espaço
urbano? Partimos da possibilidade de pensar o Projeto no espaço urbano não
como ruptura – modernos – ou como algum tipo de continuidade e sim como
possibilidade de transbordamento que envolve o espaço “entre” a ruptura e a
continuidade.
Acreditamos que o Projeto no espaço urbano não se reduz ao que podería-
mos denominar de adaptação à realidade, ou seja, ao que nos é percebido, ou
àquilo que Rosalind Krauss 44 denomina de Percepção de Similitude – estratégia
para reduzir tudo que nos é estranho, tanto no tempo como no espaço, àquilo
que já conhecemos e somos – mas sim à possibilidade de interferência, de
experimentação.

Se o meu edifício é um elemento irritante para o contexto no qual ele


está localizado, isto pode ser benéfico e ajuda a ativar um vislumbre do
que está acontecendo ao redor. O arquiteto pode, de tempos em tempos,
fazer uma obra irritante, provocadora 45.

Frisamos que a importância do Projeto no urbano é deixar o espaço


aberto ao imprevisível, vazios suficientes que permitam a experimentação. O
Projeto deve resolver e expressar as situações e tensões. É a disponibilidade
de intervenção sobre o imprevisto; sobre cidade aberta, sobretudo a cidade
que permite a expressão dos conflitos. Dominar um destino aberto é uma
utopia e impede a imaginação. 46
É no desejo de tudo expor e de tudo revelar que pouco se revela. Na
tentativa de esgotar o mundo ele perde seu encanto. Teríamos como desafio a

44 Krauss, 1984.
45 Entrevista com Tschumi, E2-Contest, 2002, p. 107. Tradução do autor. Original: Si mon
bâtiment lui-même joue un rôle d’irritant a rapport au contexte dans lequel il se trouve,
cela peut être bénéfique, et permettre d’activer un peu ce qui se passe autour. L’architecte
peut, de temps en temps, faire œuvre d’irritant, de provocateur.
46 Tsiomis, 2003.

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134 Moema Falci Loures

tarefa de projetar algo que quando vire Projeto já não é mais Projeto, é devir
cidade, homem e Paisagem.
O homem tem necessidades. Necessitamos de segredos. A força do Pro-
jeto está em revelar o que está escondido. Devir-revelação, devir-sensação.

[...] é a dificuldade de “descobrir” a arquitetura que a torna intensamente


desejável. Esse desvelamento é parte do prazer da arquitetura. 47

De acordo com Tschumi48 a arquitetura ao invés de ser socialmente ou


contextualmente inclusiva deveria se manifestar em oposição, suscitar tensão,
não inclusão direta. O autor nos questiona como transformar o ponto de vista
da própria disciplina.

A arquitetura assemelha-se a uma figura mascarada. Ela não pode ser


facilmente desvelada. 49

A arquitetura e o urbanismo, no entanto, vem sendo utilizada por outras


disciplinas para estruturar seus discursos e freqüentemente sendo associada
à noção de estabilidade, solidez e hierarquia. Tschumi cita expressões como:
“the foundations of society” ou “the structure of the law”, ou “being the archi-
tect of a policy”. Arquitetura como algo que dá permanência às coisas que não
são permanentes.

[...] porque geralmente as pessoas querem que a arquitetura seja uma


representação da certeza, elas querem que a arquitetura seja identificada
como uma marca. E elas não gostam quando dizemos “sim”, ela vai
funcionar por enquanto, mas não acredite que para sempre. 50

47 Tschumi, 1996, p. 94.


48 Nesta passagem utilizo trechos da Entrevista de Bernard Tschumi por Liliana Gómez, em
junho de 2005 em Nova York. Disponível em: <http://www.puntocero.de/content/
tschumi.html>. Acesso em: jan. 2009.
49 Tschumi, 1996, p. 94.
50 Tradução do autor. Original: [...] because generally people want architecture to be the
representation of certainty, they want architecture to be identity branding. And they do
not like when you tell them “yes”, it is going to work for a while, but do not believe in it
forever!

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O projeto no espaço urbano: riscos na paisagem 135

Tschumi suscita que o arquiteto e o usuário são formadores da arquite-


tura: o primeiro pela concepção do Projeto – concebendo a arquitetura de
forma a possibilitar a experiência estética – e segundo por meio de sua expe-
riência estética – tendo consciência do ato de experimentação. De acordo com
ele a dimensão real do espaço –a materialidade do espaço- solicita a experiência.
Assim podemos dizer que o Projeto do espaço urbano depende da intera-
ção entre o Projeto e o usuário/intérprete, que é a experiência 51, poderíamos
dizer o movimento-experimentação.
A experiência permite tornar sensíveis as forças insensíveis que povoam
o mundo, e que nos afetam, nos fazem devir. Ao passar do tempo, o que se
conserva no Projeto, independente do criador, é um bloco de sensações com-
posto por afectos e perceptos. De acordo com Deleuze e Guattari 52 só se atinge
o percepto ou o afecto como seres autônomos e suficientes, independente do
criador e daqueles que experimentam ou os experimentaram.

Riscos da Paisagem

No processo de experimentação, o Projeto deixa de ser Projeto, passa a fazer


parte de um grande tecido daquilo que denominamos realidade. Neste pro-
cesso o Projeto já é Paisagem 53, jamais permanece no seu estado doado, mas
que ao ser tocado já é tratado, se envolve em um movimento do que nos é
dado, assumindo novos sentidos.
Assim a cada vez que pensamos ingenuamente constatamos a presença
da Paisagem e é aí posta a questão de uma mudança possível dos nossos
dispositivos perceptivos. Vasto tecido de referências implícitas, produção de
imagens, atividade intensa de ficção que nos habita e que nós não sabemos
entender a importância, nem a magia 54.
Mas será porque que a Paisagem nos livra do sentimento de perfeição
das coisas, mais freqüentemente, aquele sentimento associado à obra de arte

51 Tschumi, 1996.
52 Deleuze e Guattari, 2004, p. 218.
53 Entendemos a Paisagem como movimento e ação – “an idea formation [...] on going
movement” (Corner, 1999) – opondo-se à noção tradicional que compreende a Paisagem
como algo estático e contemplativo. Paisagem como verbo (atuante), temporalidades,
corpo de memórias, caminho de uma alternativa, lugar de ação, espaço inventado.
54 Cauquelin, 2000, p. 23.

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136 Moema Falci Loures

ou ao Projeto? Como que a Paisagem provoca um entusiasmo de outro gênero


que a simples satisfação?
O prazer da Paisagem, suscita Cauquelin, não está no sentimento de
satisfação quanto a um objeto que funciona bem ou uma obra que é conside-
rada arte (obra de arte); não está implícito o sentimento de uma legitimidade
possível que se confronta com o prazer dado pelas coisas. Confrontação esta
do que está presente perante nós e os critérios de validade existentes em
outros lugares, alhures. A Paisagem tem necessidade nula de se legitimar 55.
A Paisagem não possui categorias de julgamento habituais que dá valor
ao objeto e classifica-o como obra de arte (ou Projeto), ou seja, categorias de
julgamento estético. A Paisagem nos relega um sentimento fundador, forças
elementares, é o começo e o fim do mundo.
A Paisagem nos liga àquilo que nos é mais profundo, por isso vinculá-la
com o que existe antes da nossa existência, ligação da Paisagem ao natural, à
origem. Sentimento da perfeição imediata, no instante, intuição instantânea 56.
A forma simbólica filtra e moldura nossa percepção da Paisagem – um
priori que está incluso em um sistema de orientações e de valores recordados,
produtos de uma gênese (origem). São feitos enquadramentos da Paisagem,
fragmentos que são nossos, que têm limites infinitos mesmo que enquadrados;
variações de sensações que se desencadeiam em nós mesmos.
Paisagem, também, como representação figurativa destinada a seduzir
o olho do espectador para um movimento de ilusão perspectiva. Na perspec-
tiva é onde está o nascimento da Paisagem, o mistério da Paisagem, a imagem
atravessada, direcionada ao infinito. Perspectiva como passagem através.
A Paisagem traduz para nós uma relação íntima com o mundo. Intermédio
de uma conversação infinita, vínculo de emoções cotidianas. O retorno à realidade
não é exatamente o mesmo, é duplo, transformação da realidade em imagem e
da imagem em realidade. Artifício da imagem que assegura uma realidade pos-
sível. Experimentamos instantes de enquadramento... a Paisagem continua.
O Projeto como transbordamento é a possibilidade de potencializar forças
da Paisagem. Paisagem que excita e estimula desejos junto a novas possibili-
dades expansivas. A Paisagem não vista, mas que doa a visão 57.

55 Ibid., p. 108.
56 Ibid., p. 112.
57 Id., 2002, p. 27.

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O projeto no espaço urbano: riscos na paisagem 137

Depararmo-nos com a Paisagem no tocar ver de cada instante; como


possibilidade de expansão e criação; como o que fica do Projeto, mas também
o que vai. É perene e instantânea, guarda o movimento infinito.
A Paisagem nos revela lacunas no campo do Urbanismo, suscita novos
olhares que reconheçam o movimento e a participação ativa do sujeito na sua
construção. Falamos em contemporaneidade (ou pós-modernidade como alguns
preferem), mas ainda reproduzimos a matriz moderna através do método de
relações binárias: casa/rua; público/ privado; formal/ informal; periférico/
central; natural/urbano; Paisagem urbana/Paisagem natural. A Paisagem pode
revelar o intermezzo (Deleuze e Guattari) 58, devir captura, conteúdo próprio
do desejo, consistência do real.
O objetivo da arte, com os meios do material, é arrancar o percepto das
percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar o
afecto das afecções, como passagem de um estado a um outro. Extrair um
bloco de sensações, um puro ser de sensações 59.
Acreditamos que o grande desafio que temos como arquitetos é a capa-
cidade de deixar o Projeto aberto à experimentação, o Projeto em um estado
de vir a ser Paisagem, homem e cidade. Precisamos reconhecer a realidade
como devir: combinar e permutar para manifestar os segredos do mundo e
liberar as intensidades criativas.

Projeto – Projeto-Urbano – Projeto no espaço urbano – Paisagem

Na primeira parte buscamos a recuperação dos verbetes Projeto e Projeto-


Urbano na construção de sentidos. Frisamos mais uma vez a importância do
verbete Projeto como processo, um sistema aberto que se inicia quando parece
ter terminado e que vive em um estado de devir. Paralelamente o Projeto-
Urbano reconhece a cidade aberta, sobretudo a cidade que permite a expressão
dos conflitos.
Sugerimos, então, pensar o Projeto- Urbano ou o Projeto no espaço ur-
bano como um cenário. Algo instantâneo que com o tempo vai se redefinindo
e que se insere dentro das temporalidades. Um cenário que não deixa de ser
um gesto de previsibilidade, mas que abre margem ao imprevisível.

58 Deleuze e Guattari, 2004.


59 Ibid., p. 217.

Moema Loures.p65 137 19/11/2010, 11:07


138 Moema Falci Loures

Ao mesmo tempo este artigo é uma manifestação contrária aos Projetos


que buscam a continuidade do que existe ou do que percebemos e denomina-
mos realidade.
Acreditamos que o desafio do Projeto no espaço urbano está no trans-
bordamento da realidade, o Projeto precisa ir além do que somos ou do que
pretendemos ser. O projeto no espaço urbano como construção de forças, não
como construção de formas.
Na Paisagem encontramos as forças do Projeto, pois a Paisagem aproxima
o Projeto das suas dimensões mais naturais; aproxima o homem da sua natu-
reza sensível. E para que projetamos? Não seria para construir blocos de sen-
sações?
Existe sem dúvida uma linha tênue entre romper e transbordar. O trans-
bordamento poderia ser um tipo de ruptura. Voltamos aos modernos? Ou à
sensibilidade moderna alinhada ao reconhecimento da imprevisibilidade?

Aqui não é a inteligência que é um móvel com gavetas. É o móvel com


gavetas que é uma inteligência. 60
Mas o verdadeiro armário não é um móvel cotidiano. Ele não se abre
todos os dias. Assim como uma alma que não se confia, a chave não está
sobre a porta. 61

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60 Bachelard, 2008, p. 81 e 82. Tradução do autor. Original: C’est pas ici l’intelligence qui
est un meuble à tiroir. C’est le meuble à tiroir qui est une intelligence.
61 Ibid., p. 84. Tradução do autor. Original: Mais la véritable armoire n’est pas un meuble
quotidien. Elle ne s’ouvre pas tous les jours. Ainsi d’une âme qui ne se confie pas, la clef
n’est pas sur la porte.

Moema Loures.p65 138 19/11/2010, 11:07


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Moema Loures.p65 141 19/11/2010, 11:07


142 Moema Falci Loures

RESUMO

Este artigo desenvolve-se no âmbito de (re)ativar a noção de Projeto (Projeto-


Urbano/Projeto no espaço urbano), questionando-o a partir das fronteiras da
previsibilidade e imprevisibilidade. O Projeto no espaço urbano não como
ruptura ou como continuidade, mas como transbordamento; não como cons-
trução de formas mas como construção de forças. O Projeto no espaço urbano
que depende da interação entre a obra e o usuário/intérprete que é a experiên-
cia. Neste instante o Projeto já é Paisagem, riscos da paisagem, vasto universo
de referências implícitas. Buscamos, assim, através destas reflexões instigar
que o grande desafio que temos como arquitetos/urbanistas é a capacidade
de deixar o Projeto aberto à experimentação, o Projeto em um estado de vir a
ser Paisagem, homem e cidade. Precisamos reconhecer o Projeto como devir:
combinar e permutar para manifestar os segredos do mundo e liberar as in-
tensidades criativas.
Palavras-chave: projeto, projeto-urbano, espaço urbano, paisagem.

ABSTRACT

This article is developed in the context of (re)activating the concept of Design


(Urban Design/Design in urban space), questioning it from the frontier of
predictability and unpredictability. Design in the urban space not as a rupture
or continuity, but as an overflow; not as a construction of forms but as con-
struction of forces. Design in the urban space wich depends on the interac-
tion between the work and the user/interpreter, that is the experience. At this
moment the Design is already Landscape, landscape hazards, vast universe of
implicit references. Thus we seek through these reflections. Thus we seek to
instill through these discussions that the greatest challenge we have as archi-
tects/planners is the ability to leave the Design open to experimentation, De-
sign in a state of becoming Landscape, man and city. We must recognize the
design as becoming: combine and exchange to express the world’s secrets and
liberate the creative strengths.
Keywords: design, urban design, urban space, landscape.

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PATRIMÔNIO HISTÓRICO E O PROJETO URBANO:
CASOS-REFERÊNCIA

Seção [Patrimônio histórico - casos-referência].p65


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Seção [Patrimônio histórico - casos-referência].p65
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Parque do Flamengo: patrimônio em
movimento

Denise Barcellos Pinheiro Machado


Lucia Maria Sá Antunes Costa
Rosângela Lunardelli Cavallazzi

INTRODUÇÃO

Parques públicos são locais nos quais normalmente os elementos da natureza


predominam. Mas são também locais que refletem intenções humanas. Neles,
elementos da natureza são organizados de acordo com padrões, técnicas e
critérios que refletem os valores das sociedades que os concebem e utilizam.
Parques são, portanto, paisagens culturais. Mesmo sendo uma paisagem na
qual os elementos da natureza estão fortemente presentes, parques “falam” a
respeito das intenções humanas.
Por essa razão, em muitas cidades ao redor do mundo, os parques rece-
beram o status de patrimônio histórico, o que aponta para seu valor como
lugares carregados de significados simbólicos, culturais e históricos. Não
apenas os parques do século XIX mas também os parques públicos projetados
ao longo do século XX foram reconhecidos como patrimônio histórico, como
é o caso do Parque do Flamengo, localizado na cidade do Rio de Janeiro, Brasil.
O Parque do Flamengo é um dos mais importantes exemplos do paisa-
gismo brasileiro: uma via parque à beira-mar, com uma praia artificial entre
seus muitos outros equipamentos de lazer. É um dos três maiores parques do

Paisagem urbana e direito à cidade, Rio de Janeiro, 2010. p. 145-153. Coleção Direito e Urbanismo

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146 Denise Barcellos Pinheiro Machado, Lucia Maria Sá Antunes Costa, Rosângela Lunardelli Cavallazzi

Rio de Janeiro, com seus 120 hectares centralmente situados entre o centro
da cidade e áreas residenciais da zona sul do Rio, às margens da Baía de
Guanabara. Foi projetado para ser uma via parque urbana por um grupo de
profissionais que incluía nomes importantes da arquitetura e do paisagismo
moderno no Brasil e criado a partir de uma extensão das margens da baía por
meio de um aterro. Está localizado em um dos mais espetaculares sítios pai-
sagísticos da cidade, onde várias montanhas enquadram a paisagem da Baía
de Guanabara, incluindo o Pão de Açúcar.

A CRIAÇÃO DO PARQUE E TRANSFORMAÇÕES NA PAISAGEM

A paisagem natural do Rio de Janeiro determina muito do caráter visual da


cidade, trazendo uma imagem forte, com a predominância das montanhas e
florestas urbanas que ficam muito perto do mar. Com o passar dos anos, os
cariocas têm se relacionado com essa paisagem natural de modo apaixonado
e contraditório. Por um lado, demonstram um profundo afeto pelo lugar e
orgulho pelo privilégio de usufruir esse sítio único. Por outro, essa mesma
paisagem tem sido negada e destruída quando é obstáculo para o estabeleci-
mento ou extensão do tecido urbano. O Parque do Flamengo é um dos exemplos
dessas transformações da paisagem urbana. O imenso aterro às margens da
baía só foi possível com a demolição do Morro de Santo Antônio, localizado
no centro da cidade e perto da Baía de Guanabara. A transformação da paisa-
gem, portanto, implicou na destruição da paisagem natural para a construção
de uma paisagem cultural – um parque público e um novo marco paisagístico
para a cidade.
Os debates a respeito da demolição do Morro de Santo Antônio e a
construção de um aterro às margens da baía acontecem desde os anos 1800.
Entretanto, a efetiva demolição do morro e a criação do aterro começaram
apenas em meados dos anos 1950, enquanto o início da construção do Parque
ocorreu em 1960. Isso só foi factível dado o específico momento histórico e
político da cidade e do país. Em 1960, o Rio de Janeiro deixou de ter o presti-
gioso título de capital do Brasil, quando funções políticas e administrativas
foram transferidas para Brasília. A nova administração da cidade, na figura
do governador Carlos Lacerda, estava envolvida em grandes obras públicas
que seriam importantes para manter a cidade em uma proeminência nacional
e internacional. Além disso, o Rio de Janeiro deveria ser preparado para as

Rosângela Cavallazzi.p65 146 21/11/2010, 17:44


Parque do Flamengo: patrimônio em movimento 147

celebrações do IV Centenário de sua fundação, que aconteceria em 1965. Nesse


sentido, a imagem da cidade tornou-se uma questão importante. Uma via par-
que com um caráter monumental se encaixaria perfeitamente nesses propósi-
tos – resolveria problemas de tráfego, principalmente em relação à conexão
entre centro e zona sul – e traria uma nova área de lazer para a cidade, tudo
isso situado em um dos mais impressionantes sítios paisagísticos da cidade.
O Parque foi concebido desde o início como um cartão de visitas – um lugar
que estaria em foco para a celebração do aniversário de fundação da cidade.
Para o projeto do novo Parque, em 1960, foi formado um grupo de
trabalho com os mais importantes profissionais brasileiros em várias áreas
do conhecimento, incluindo o arquiteto Affonso Eduardo Reidy 1. Ele foi um
dos mais importantes arquitetos brasileiros que, a partir dos anos 1930, trou-
xeram uma interpretação brasileira para o movimento moderno internacional
em Arquitetura e Urbanismo. Foi responsável pelo planejamento urbano do
Parque do Flamengo, definindo suas principais estruturas, o perfil curvilíneo
à beira-mar, o zoneamento dos diferentes usos em diferentes partes do Parque
e o projeto de algumas edificações, entre elas o Museu de Arte Moderna, cujo
projeto e execução é inclusive anterior ao projeto do Parque. Roberto Burle
Marx foi outro nome importante do grupo de trabalho, parte de uma elite
cultural brasileira que buscou participar do Movimento Moderno Internacional
a partir de um discurso de projeto que fosse culturalmente específico. Com
formação de pintor, Burle Marx trouxe uma contribuição única para a definição
do paisagismo moderno, apresentando uma nova interpretação para a arqui-
tetura paisagística no Brasil e no exterior 2.
Presidido por Carlota de Macedo Soares (Lota), amiga pessoal do gover-
nador Carlos Lacerda, o grupo de trabalho produziu uma concepção de parque
urbano completamente nova para o Rio de Janeiro. O Parque do Flamengo foi
o primeiro parque a oferecer quadras esportivas e oportunidades para recrea-
ção ativa, assim como culturais, além de lazer contemplativo. Nesse sentido,
pode ser considerado um ponto de mudança em termos de desenho de parque,
e conseqüentemente uso, no Rio de Janeiro, rompendo com a influência euro-
péia dos desenhos dos parques públicos do século XIX, que predominavam na
cidade até então.

1 Cf. Bonduki, 2000.


2 Cf. Motta, 1984; Adams, 1991.

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148 Denise Barcellos Pinheiro Machado, Lucia Maria Sá Antunes Costa, Rosângela Lunardelli Cavallazzi

O Parque do Flamengo foi oficialmente inaugurado em outubro de 1965,


no final da administração Carlos Lacerda. Estava ainda incompleto não apenas
em termos do plantio da vegetação como também vários equipamentos do
projeto original ainda estavam para ser construídos. Contudo, a necessidade
política de associar o nome do governador à imagem do Parque impôs-se, sob
forte pressão do pouco tempo que restava de mandato e do dinheiro a ser
despendido.
A pressa em inaugurar o Parque pode ser constatada nas manchetes de
jornal da época. Ao mesmo tempo que festividades estavam sendo noticiadas,
a mídia também discutia os trabalhos em andamento no Parque. Os folhetos
promocionais enfatizavam o significado do Parque para as crianças, mostrando
a variedade de opções que poderiam ser encontradas nesse novo espaço. As
festividades incluíam competições esportivas, regatas, música, teatro de ma-
rionetes, entre outros eventos, numa tentativa de mostrar as potencialidades
do Parque tal como fora concebido: um espaço livre com caráter recreacional,
educacional e cultural. Entretanto, para o grupo de trabalho, não seria suficiente
simplesmente inaugurar o Parque para garantir que ele cumpriria as funções
para as quais fora concebido.

DUAS ESTRATÉGIAS POLÍTICAS

Uma das primeiras decisões do grupo de trabalho foi restringir o número de


obras arquitetônicas no Parque. Isso foi de enorme importância para garantir
sua integridade e seu caráter de espaço livre. Sem tal compromisso, o espaço
do aterro teria sido ocupado com grandes obras arquitetônicas de caráter
monumental, continuando um processo de ocupação já iniciado com o Museu
de Arte Moderna e com o Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial.
Na verdade, durante a construção do Parque do Flamengo, aconteceram muitas
pressões políticas para adicionar edifícios ao Parque. Burle Marx 3 comentou
que “foi um ‘milagre’ que tivesse havido uma administração empenhada em
preservar [o Parque] de pessoas ou instituições ambiciosas interessadas no
seu uso comercial”. Era portanto necessário garantir que o projeto inicial do
parque público não fosse modificado pelas administrações subseqüentes e
que o uso predominante da área como um parque público fosse mantido.

3 Burle Marx, 2004, p. 41.

Rosângela Cavallazzi.p65 148 21/11/2010, 17:44


Parque do Flamengo: patrimônio em movimento 149

O grupo de trabalho respondeu a essas pressões desenvolvendo duas


estratégias: a primeira foi o tombamento do Parque do Flamengo, com o obje-
tivo de garantir que seria mantido de acordo com o projeto original e que
nenhuma outra construção ou edifício seria adicionada; a segunda foi a criação
da Fundação Parque do Flamengo, com a responsabilidade de administrar o
Parque.
O Parque do Flamengo foi tombado em abril de 1965 pelo IPHAN (Insti-
tuto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), em resposta a uma solici-
tação do próprio governador. Isso ocorreu antes de o Parque estar concluído,
ou mesmo inaugurado. Lota ressaltou sua importância: o tombamento era
necessário para salvaguardar o Parque do Flamengo das enormes pressões
para ocupação que surgiriam em razão do alto valor da área.
O tombamento foi uma estratégia inteligente e inovadora. Nada além
do que havia sido definido pelo grupo de trabalho seria adicionado à área. O
objetivo do tombamento, conforme reconheceu o presidente do IPHAN à época,
foi principalmente defender a paisagem, o Parque como espaço livre. Um dos
seus argumentos foi que o projeto arquitetônico e urbanístico de Affonso
Eduardo Reidy e sua equipe, e os jardins de Roberto Burle Marx, formavam
um complexo de rara beleza e interesse social do qual a cidade do Rio de
Janeiro poderia orgulhar-se.
O tombamento refletiu a importância política, estética e social do Parque
do Flamengo. Politicamente, refletiu a consciência de que o Parque poderia
ser ameaçado por subseqüentes acordos entre políticos e incorporadores imo-
biliários. Esteticamente, o tombamento reconheceu que o Parque era um lugar
de beleza inquestionável e que poderia ser adulterado por alterações e gestão
inadequada. Finalmente, o tombamento reconheceu que o Parque era um lugar
de significado social que deveria ser preservado na forma como fora projetado,
a fim de cumprir os objetivos para os quais fora concebido.
A ação do grupo de trabalho demonstrou que foi acertada. Nos anos
subseqüentes, o IPHAN recebeu várias solicitações relativas a autorizações
para novas construções no Parque, mas a grande maioria delas foi negada.
Dentre as que foram negadas, destacamos uma proposta para construção do
que seria o Centro de Convenções do Estado da Guanabara (1974); um edifício
que abrigaria a Câmara Municipal do Estado do Rio de Janeiro (1975) e o
Museu Oceanográfico para a Marinha (1976). Em contrapartida, esse Instituto
também aprovou construções que não estavam no projeto original do Parque,

Rosângela Cavallazzi.p65 149 21/11/2010, 17:44


150 Denise Barcellos Pinheiro Machado, Lucia Maria Sá Antunes Costa, Rosângela Lunardelli Cavallazzi

incluindo as quadras de tênis (1976), uma estação meteorológica (1967), o


Monumento Estácio de Sá (1969), o edifício da Marina da Glória, além de duas
outras passarelas.
A segunda estratégia para garantir a integridade do Parque foi a criação
da Fundação Parque do Flamengo para administrar a área. Lota, juntamente
com arquitetos, escritores e artistas, começou uma campanha pública na im-
prensa, apelando para os membros da Câmara Municipal para que votassem a
favor da criação da Fundação. O argumento principal era que o Parque consti-
tuía uma obra de grande significado social para a cidade e que a complexidade
de sua gestão não poderia ser desempenhada por uma única autoridade pú-
blica. Entretanto, o período era politicamente muito difícil para o governador
Carlos Lacerda: seu partido perdera as eleições para governador do Estado da
Guanabara. Pois foi nesse período de transição política que o governador decre-
tou a criação da Fundação Parque do Flamengo, no final de sua administração.
A Fundação Parque do Flamengo foi criada em outubro de 1965, com o
intuito de substituir o grupo de trabalho original por um corpo administrativo
com a incumbência de manter e administrar a área. De acordo com o decreto,
os objetivos da Fundação incluíam a conclusão do projeto urbanístico, arqui-
tetônico e paisagístico, assim como o zelo pela segurança, conservação e admi-
nistração do Parque. Além disso, a fundação deveria “preservar a beleza da
paisagem da Baía de Guanabara e criar e manter um centro educacional e
recreativo para a população carioca.” Na realidade, a estratégia que estava por
trás da criação da Fundação Parque do Flamengo era uma tentativa de garantir
a implementação do Parque não apenas nos seus aspectos físicos mas também
em seus aspectos culturais, sociais e recreativos para os quais fora concebido.
Diferentemente da estratégia do tombamento, de que o aterro se tornaria um
parque urbano, a estratégia de criar uma fundação estava relacionada com a
prática cotidiana no Parque. Era uma tentativa de manter o controle sobre os
destinos do Parque independentemente das mudanças políticas e governa-
mentais. A Fundação Parque do Flamengo era dirigida por uma Diretora Exe-
cutiva – Lota – e por um conselho administrativo formado por 11 membros,
todos eles nomeados pelo governador.
Entretanto, essa estratégia não foi tão bem-sucedida quanto a do tom-
bamento, e o perfil do Parque como um espaço político tornou-se cada vez
mais claro a partir dos eventos subseqüentes. O Parque do Flamengo foi uma
das grandes obras do governo Carlos Lacerda, e a Fundação passou a repre-

Rosângela Cavallazzi.p65 150 21/11/2010, 17:44


Parque do Flamengo: patrimônio em movimento 151

sentar simbolicamente sua política. Imediatamente após a posse do novo go-


vernador eleito, Negrão de Lima, a Câmara Municipal votou pelo fechamento
da Fundação. Em agosto de 1966, a Fundação foi oficialmente extinta, e em
outubro de 1966 a administração do Parque foi transferida. A Fundação Parque
do Flamengo teve uma vida muito curta, e a idéia de desenvolver um centro
cultural e recreativo no Parque nunca foi implementada.
Nenhum outro parque público no Rio de Janeiro fora tombado sem ter
sido concluído, nem houve uma Fundação criada especificamente para a admi-
nistração e controle de suas atividades. A natureza intensamente política de
sua criação e a acirrada disputa envolvendo a Fundação revelam o significado
do Parque para a cidade. O Parque do Flamengo nunca foi apenas outra área
verde para recreação ou mais um lugar de amenidades, ou nunca simples-
mente uma via parque. O Parque do Flamengo surgiu também como um espaço
com um poderoso caráter simbólico e político. Suas múltiplas camadas de
significados começavam a tornar-se visíveis.

CONCLUSÕES

Em virtude da localização do Parque, era inevitável que ele se tornasse um


dos símbolos da administração que conduzia sua construção. A natureza po-
lítica da criação do Parque do Flamengo ficou claramente revelada tanto pelo
seu tombamento anterior à sua inauguração quanto pelas acirradas disputas
que envolveram a criação da Fundação Parque do Flamengo.
Entretanto, como ressaltado anteriormente, a estratégia do tombamento
foi de fundamental importância para garantir que o Parque continuaria sendo
na cidade um espaço livre nos anos subseqüentes. A falta de compreensão do
valor de parques públicos foi refletida nas diversas tentativas de adicionar
edifícios ao Parque do Flamengo, ameaçando dessa forma seu caráter como
espaço livre público. Esse não é entretanto um problema que afeta apenas o
Parque do Flamengo. Por exemplo, Spirn 4 também menciona as várias tentati-
vas de uso do Central Park em Nova York para a construção de uma variedade
de outros edifícios, desde teatros de ópera até igrejas. Parece ser comum uma
visão geral de que espaços livres e áreas verdes públicas são áreas à espera de
serem construídas. Em razão dessa atitude predatória, é vital que autoridades

4 Spirn, 1984.

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152 Denise Barcellos Pinheiro Machado, Lucia Maria Sá Antunes Costa, Rosângela Lunardelli Cavallazzi

públicas investidas de responsabilidade de cuidar de espaços públicos o façam


da melhor forma possível. Politicamente, espaços livres devem ser protegidos,
uma vez que representam fundamentalmente um bem público. No caso do
Parque do Flamengo, o tombamento foi sua melhor defesa.
Depois de todos esses anos, o Parque ainda se encontra inacabado. Vários
equipamentos ficaram por ser construídos, enquanto outros que não consta-
vam no projeto original foram incluídos, apesar do tombamento. Na verdade,
em termos de experiência proporcionada às pessoas, o Parque do Flamengo
estará sempre incompleto. Parques, como paisagens socialmente construídas
que refletem intenções e valores humanos, estão sempre em constante pro-
cesso de transformação e interpretação. Eles têm, nas palavras de Lerup 5,
“uma maravilhosa incompletude e abertura”. Nesse sentido, o Parque do Fla-
mengo não reflete apenas os valores dos que o conceberam e projetaram, mas
também os valores dos que dele usufruem. O Parque está em constante adap-
tação aos usuários e vice-versa. Aqui se revela um dos mais difíceis aspectos
do status de tombamento de parques públicos. Como paisagens culturais, eles
são verdadeiros patrimônios em movimento.

REFERÊNCIAS

ADAMS, W. H. Roberto Burle Marx: the unnatural art of the garden. New York:
The Museum of Modern Art, 1991.

BONDUKI, N. Affonso Eduardo Reidy. São Paulo: Blau, 2000.

BURLE MARX, R. Projetos de paisagismo de grandes áreas. In: TABACOW, J.


(Org.). Roberto Burle Marx: Arte e Paisagem. São Paulo: Studio Nobel, 2004.

LERUP, L. Building the Unfinished: architecture and human action. London:


Sage Publications, 1997.

MOTTA, F. Roberto Burle Marx e a Nova Visão da Paisagem. São Paulo:Livraria


Nobel, 1984.

SPIRN, A. W. The Granite Garden: Human Nature and Human Design. New
York: Basic Books, 1984.

5 Lerup, 1977, p. 20.

Rosângela Cavallazzi.p65 152 21/11/2010, 17:44


Parque do Flamengo: patrimônio em movimento 153

RESUMO

Parques públicos trazem oportunidades privilegiadas no que diz respeito a


novos vocabulários de projeto em estudos urbanos e paisagísticos, e o Movi-
mento Moderno trouxe importantes contribuições para essa discussão. Este
trabalho pretende contribuir para o debate sobre a preservação de espaços
livres oriundos do período modernista. Tendo como foco o Parque do Fla-
mengo, no Rio de Janeiro, o trabalho trata do valor de projeto desses espaços
a partir de uma discussão sobre seu status como patrimônio paisagístico. O
Parque do Flamengo é uma via parque à beira-mar, criada a partir de um
aterro às margens da Baía de Guanabara durante os anos 1960. Concebido,
desde seu início para ser um marco, o Parque foi tombado antes mesmo de
ser inaugurado. Este trabalho argumenta que um parque histórico é uma pai-
sagem cultural, sujeita a diferentes interpretações e apropriações ao longo
dos anos, e, como tal, seu manejo enquanto patrimônio deve ser considerado.
Palavras-chave: patrimônio histórico, Parque do Flamengo, Rio de Janeiro.

ABSTRACT

Public parks have been privileged opportunities regarding new design vocabu-
lary in urban and landscape studies, and Modern Movement has brought im-
portant contributions for this discussion. This paper aims to contribute to the
debate concerning preservation of Modern Movement’s public open spaces.
Focusing on Parque do Flamengo, in Rio de Janeiro, Brazil, the paper deals
with the design value of these spaces through a discussion of their status as a
heritage landscape. Parque do Flamengo is a waterfront parkway created by
means of a landfill at the shores of Guanabara Bay during the 1960s. Created
to be a Modern landmark from the very beginning, the park was subject to a
preservation order without being even inaugurated. This paper argues that a
heritage park is a cultural landscape, subject to different interpretations and
appropriations over the years, and as such its management as a heritage should
be regarded.
Keywords: historic heritage, Parque do Flamengo, Rio de Janeiro.

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Desenvolvimento sustentável do município
de Barreirinhas: planejamento urbano e
municipal

Gustavo Martins Marques

INTRODUÇÃO

Cidades e sociedades periféricas, isoladas, com baixos índices de qualidade


de vida e situadas em regiões pobres dos países em desenvolvimento são
alvos fáceis para os interesses capitalistas e suscetíveis ao controle destes
sobre suas potencialidades econômicas. As elites dessas localidades agem como
principais agentes mediadores de tal dominação, contribuindo para a obstrução
de um processo adequado de desenvolvimento sustentável.
A cidade de Barreirinhas, no estado do Maranhão, é conhecida pelo iso-
lamento geográfico, pela estagnação econômica, pela fragilidade social, pelos
atrativos naturais e pela proximidade do Parque Nacional dos Lençóis. A ex-
pansão do acesso rodoviário até essa cidade, aliada à divulgação dos atrativos
naturais, promoveu o turismo local; porém, este vem ocorrendo desprovido
de planejamento adequado e marcado pela aproximação de investidores exter-
nos e da elite local, interessados na implantação de diversos tipos e escalas de
empreendimentos. Em adição, o cenário local, do qual o despreparo urbano
generalizado é marca constitutiva, e a fragilidade institucional e social não
estão promovendo a integração e a sinergia necessárias entre ações e investi-
Paisagem urbana e direito à cidade , Rio de Janeiro, 2010. p. 155-174. Coleção Direito e Urbanismo

Gustavo Marques.p65 155 22/11/2010, 00:36


156 Gustavo Martins Marques

mentos públicos e privados no espaço urbano e têm induzido novos empreen-


dimentos a buscar localizações distantes da cidade, em meio aos atrativos
naturais, em velocidade acelerada.
Os resultados são visíveis na expansão desordenada, nos impactos am-
bientais e na especulação imobiliária, sem falar na falta de prioridade para as
principais vocações e necessidades locais. Ou seja, o que se vê é a implantação
de um modelo de crescimento urbano e econômico sem compromisso com as
carências, prioridades, características e dependências locais.
O crescimento em curso em Barreirinhas está longe de ser uma referência
de desenvolvimento sustentado, compreendendo-se este como uma “ação de
tornar um meio humano mais avançado ou mais organizado”, 1 ou, em uma
visão mais complexa, um “processo multidimensional, que envolve a reorga-
nização e a reorientação completa dos sistemas econômico e social”. 2 O pro-
cesso de crescimento local não está promovendo o incremento das estruturas,
dos comportamentos, das instituições, da economia, nem a redução das desi-
gualdades e a erradicação da miséria, como recomenda Todaro, e, conseqüen-
temente, a questão humana não está sendo enfatizada, como argumenta
Mabogunge em relação a esses casos. 3
Assim, é necessário que sejam criadas condições para a ruptura dessa
realidade e que se busquem meios de desenvolvimento sustentável. Dessa
maneira, este trabalho procura estudar estratégias de promoção de uma cidade
periférica, localizada em uma região de interesse ambiental e turístico de um
estado pobre de um país em desenvolvimento, que combinem crescimento
econômico, preservação da natureza e redução da pobreza.

CONTEXTO AMBIENTAL E SANEAMENTO

O município de Barreirinhas possui 2.477 km² de área e está localizado na


região nordeste do estado do Maranhão, como mostra a Figura 1, distando
aproximadamente 345 km de São Luís. Possui uma população de 39.669 habi-
tantes, dos quais 13.209 têm seus domicílios na zona urbana e 26.460, na
zona rural. 4

1 Goulet, 1971, p. 318.


2 Todaro, 1994, p. 98.
3 Cf. Mabogunge, 1989.
4 IBGE, 2000.

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Desenvolvimento sustentável do município de Barreirinhas: planejamento urbano e municipal 157

Figura 1: Mapa de localização do município de Barreirinhas

Fonte: <http://www.zee.ma.gov.br>.

Barreirinhas possui características ambientais peculiares. Grande parte


da cobertura natural é composta por solo arenoso, principalmente por dunas
e paleodunas, sendo que aproximadamente 40% do Parque Nacional dos Lençóis
Maranhenses, com 155.000 (cento e cinqüenta e cinco mil hectares), está dentro
dos limites do município. Além disso, existem abundantes recursos hídricos,
entre rios, riachos, igarapés, cursos d’água subterrâneos e o oceano Atlântico,
no litoral. 5
Esse cenário é responsável pela exuberância e pela fragilidade de Bar-
reirinhas, pois o dinamismo desse ecossistema muitas vezes é incompatível

5 GEDE, 2000a.

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158 Gustavo Martins Marques

com as atividades humanas, e é exatamente neste ponto que o planejamento


se faz necessário, viabilizando a ocupação das áreas sem perda de potencial
turístico e ambiental, que hoje constitui a principal atividade econômica local. 6
Na região de Barreirinhas existem áreas onde é possível ocupação sem
geração de danos ou impactos graves ao meio ambiente. Porém, a maioria
dessas áreas possui ecossistemas dinâmicos e frágeis e, conseqüentemente, a
ocupação humana não se sustenta, pois nesses casos, além de agredirem o
meio, os assentamentos promovem a insegurança entre os próprios usuários
e até prejudicam a economia do município; um exemplo é o das dunas livres
e manguezais, mostrados nas Figuras 2 e 3, que são locais com importantes
acervos naturais e grandes atrativos turísticos da região.

Figura 2: Lagoas e dunas

Fonte: <http://www.zee.ma.gov.br>.

A região entre a cidade de Barreirinhas e o Caburé, banhada pelo rio


Preguiças, é a área de maior interesse turístico, devido ao seu esplendor e à
proximidade dos Lençóis e da foz do rio. É, portanto, uma área vulnerável à
especulação imobiliária e ao crescimento predatório. Dessa forma, em respeito
à realidade dos recursos naturais levantados ao longo das margens do rio e de

6 Ibid.

Gustavo Marques.p65 158 22/11/2010, 00:36


Desenvolvimento sustentável do município de Barreirinhas: planejamento urbano e municipal 159

suas adjacências, foram criadas regiões de conservação ambiental e interesse


turístico, as quais possuem restrições, recomendações de usos e ocupações
definidas por Lei. 7

Figura 3: Foto do Caburé: rio Preguiças e o mar; ao fundo,


os Pequenos Lençóis

Fonte: <http://www.zee.ma.gov.br>.

A Proposta de Lei do Plano Diretor estabelece uma gradação para a


utilização e ocupação do espaço, em harmonia com o meio e coerente com o
desenvolvimento econômico e com a qualidade ambiental, possibilitando a
manutenção do turismo integrado a outras atividades mais intimamente rela-
cionadas com a população local. Neste sentido, a Proposta de Lei, entre outras
questões, induz à necessidade de integração e compatibilização entre ações e
programas de valorização ambiental desenvolvidos pelos órgãos públicos, bem
como estabelece normas, índices, critérios, métodos e padrões de extração,
utilização e manejo dos recursos naturais.
Assim, são criadas regiões estratégicas de conservação ambiental e in-
teresse turístico tanto para os povoados localizados próximos à foz do rio
Preguiças e ao Parque Nacional dos Lençóis quanto para Caburé e Ponta de

7 GMarques, 2003.

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160 Gustavo Martins Marques

Brasília, bem como para as margens do rio Preguiças e Adjacências, conforme


ilustra a Figura 4. Nessas regiões o plano induz a um desenvolvimento com
baixos índices de densidade populacional e dotado de instrumentos rigorosos
de preservação ambiental, através de mecanismos como: limite de taxas de
ocupação; estabelecimento de normas, índices, critérios, métodos e padrões
de saneamento; desenvolvimento de sistemas individualizados e coletivos;
normatização de meios adequados de coleta, seleção e destinação final de
lixo e efluentes; abastecimento de água potável; estabelecimento de, no mínimo,
1 km de distância entre ancoradouros e atracadouros; criação de zonas de
preservação ambiental; e reserva de áreas para aterro controlado, no povoado
de Mandacaru, e para aterro Sanitário, no de Barreirinhas.

Figura 4: Regiões Estratégicas de Conservação Ambiental e Interesse


Turístico do Caburé, de Ponta de Brasília, das Margens do Rio
Preguiças e Adjacências, e do Perímetro Urbano

Fonte: GMarques, 2003.

Dentro do perímetro urbano da sede de Barreirinhas, o Plano Diretor


visa promover o pleno desenvolvimento das atividades turísticas e das demais
atividades locais, de maneira integrada e sustentada. Os mesmos valores e

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Desenvolvimento sustentável do município de Barreirinhas: planejamento urbano e municipal 161

preocupações – como a conservação das águas e a biodiversidade da região –


são adotados no zoneamento da sede do município, como será possível obser-
var mais à frente, no Zoneamento da Cidade de Barreirinhas. 8

A REALIDADE SOCIAL E ECONÔMICA

A pecuária, o beneficiamento do pescado, do caju, do buriti e de outros es-


pécimes nativas, além da produção hortifrutigranjeira, do artesanato e da
apicultura, foram atividades pioneiras na economia do município. Em 1959,
tiveram destaque a fabricação de aguardente de cana e de mandioca, o estabele-
cimento de usinas para beneficiamento de arroz, de salga e de pescado, além
da indústria salineira em pequena escala.
Segundo Paula 9, no período de 1991 a 1995, entre outros aspectos, a
cultura do caju apresentou um significativo crescimento, com destaque para
a CAJUMAR (pequena fábrica de beneficiamento da castanha), que surgiu como
uma perspectiva de crescimento econômico para o município. No entanto, o que
representaria uma maior circulação de capital e arrecadação de impostos para a
administração municipal não chega a se efetivar, pois a fábrica nunca foi ativada.
Atualmente, a economia da maioria da população é sustentada basica-
mente por atividades relacionadas à extração vegetal (carnaúba, buriti, cocos
nucifera, lenha, madeira e carvão vegetal), ao artesanato realizado a partir da
fibra de buriti, ao cultivo da castanha de caju, à pesca, à farinha de mandioca,
ao turismo, ao pequeno comércio varejista e à agropecuária de subsistência,
sendo que alguns desses setores vêm registrando um declínio de produção,
conforme ilustra a Tabela 1, em virtude da falta de aprimoramento técnico, de
capital de giro e de capacidade de transporte. 10

Tabela 1: Quadro comparativo da produção agrícola do município nos anos


1995 e 2000
Produtos Produção – 1995 Produção – 2000
Mandioca 95.820 ton. 15.298 ton.
Milho 4.032 ton. 836 ton.
Feijão 1.085 ton. 264 ton.
Fonte: Sebrae, 2002.

8 Ibid.
9 Cf. Paula, 1997.
10 EMBRAPA, 2003.

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162 Gustavo Martins Marques

A partir da década de 1990, surgiram iniciativas de marketing e promoção


dos Lençóis Maranhenses, além da construção da estrada de acesso ao muni-
cípio; em decorrência, o turismo apresentou desenvolvimento, com índices
expressivos de crescimento de visitantes. Porém, por outro lado, houve redução
na taxa de permanência destes, pois em 1999 foi registrada a presença de
5.290 turistas que permaneceram em média 2,8 dias na cidade e, já em 2001,
12.100 turistas visitaram a cidade e permaneceram uma média de 1,67 dias. 11
Sobre esta atividade – o turismo –, cabe observar que um pólo bem
sucedido, como o pretendido para o município em questão, se relaciona ge-
ralmente à boa qualidade de vida de seus cidadãos, e de estada, de seus visi-
tantes, às ofertas de serviços e aos atrativos variados para serem consumidos
e utilizados, e, além disso, as atividades correlatas ao advento do turismo
exigem qualificação social. No entanto, essa realidade está distante das possi-
bilidades dos moradores locais na atualidade, pois apesar do turismo ter che-
gado ao local, o retorno qualitativo ambiental e, principalmente, social para o
município foi quase nulo, inexistindo, assim, desenvolvimento no sentido
amplo do conceito.
O entendimento sobre a matéria também inclui aspectos relacionados
ao meio ambiente, à sociologia e à psicologia, pois, de acordo com Goulet, 12
qualquer mobilização nesse sentido deve considerar alguns componentes
básicos, tais como a preservação da natureza, da auto-estima e da liberdade,
princípios costumeiros e eficientes para mover uma sociedade de um estado
subdesenvolvido para uma posição melhor. Goulet acredita ainda que o cres-
cimento econômico intenso e a distribuição igualitária de seus benefícios são
conduzidos por fatores mais globais, conhecidos – tais como o acúmulo de
capital, o crescimento populacional e o progresso tecnológico – e muitas vezes
externos às condições locais, sobretudo em regiões pobres e periféricas de
países subdesenvolvidos.
Argumenta-se também que as políticas de desenvolvimento devem con-
siderar a melhoria da produção, do nível de vida, das oportunidades de trabalho
e de fatores não econômicos, como a organização do poder e das institui-
ções. 13 Esses aspectos podem incluir ainda a reorganização fundiária, a es-

11 GEDE, 2003.
12 Cf. Goulet, 1971.
13 Todaro, 1994.

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Desenvolvimento sustentável do município de Barreirinhas: planejamento urbano e municipal 163

tratificação social, a estrutura de crédito, o acesso à saúde e à educação, a


simplificação da burocracia governamental e a reavaliação das atitudes das
elites econômica e política, todos pontos cruciais e ainda insolúveis no caso
em estudo.
Diante dessas visões, o Plano de Desenvolvimento Municipal de Barrei-
rinhas visa estimular a manutenção e o aparecimento de outras atividades
econômicas que venham a fazer interface com a atividade turística, tornando
o município mais estável economicamente. Para tanto, será necessário investir
na educação da população local e em pesquisas, a fim de que seja feito o uso
adequado dos recursos naturais disponíveis.
A educação está concentrada apenas na instrução elementar primária,
oferecida primordialmente à população residente e adjacente à sede, o que
indica uma deficiência no atendimento à população da zona rural. As matrí-
culas apresentam crescimento nos últimos anos, como demonstra a Tabela 2;
no entanto, o ensino ainda é precário, pois não existem escolas profissionali-
zantes, e, além disso, a taxa de escolaridade da população, relativa ao Ensino
Médio, é de apenas 4,48%, e relativa à alfabetização, é somente de 61,4%, de
acordo com o IBGE – 2000.

Tabela 2: Matrículas na Sede do Setor Educacional

Ano Matrículas no Ensino Fundamental Matrículas no Ensino Médio

1991 1o grau – 8 947 matrículas 2o grau – 104 matrículas


1995 1o grau – 10.609 matrículas 2o grau – 245 matrículas
2o grau – 245 matrículas
2002 Ensino Fundamental 13.310 matrículas Ensino médio – 604 matrículas
Ensino Médio – 604 matrículas
Fonte: GDH, 2000a.

A saúde apresenta crescimento na oferta de leitos, como mostra a Tabe-


la 3. Contudo, ainda é pouco, pois alguns índices, como o de mortalidade
infantil, estimada em 92,33% óbitos por mil habitantes, apontam para a ur-
gência de investimentos neste setor. Além disso, não há maternidade, nem
posto de assistência da previdência nacional (INSS), e a estrutura da rede de
saúde do município conta com somente um hospital, dois centros de saúde e
três laboratórios; até 2003, havia apenas três médicos na cidade, permanecendo
cada um deles 15 dias por mês na cidade.

Gustavo Marques.p65 163 22/11/2010, 00:36


164 Gustavo Martins Marques

Tabela 3: Oferta de leitos hospitalares no município

Ano Número de leitos Leito per capita

1991 4 (quatro) 7.370 hab./leito


1992 42 (quarenta e dois) 702 hab./leito
1995 45 (quarenta e cinco) 736 hab./leito
1997 45 (quarenta e cinco) 695 hab./leito
2000 45 (quarenta e cinco) 881 hab./leito
2001 76 (setenta e seis) 521 hab./leito
Fonte: GDH, 2000b.

A saúde também é comprometida pela baixa qualidade das moradias,


pois, de acordo com o IBGE, 14 do total de 7.725 domicílios, apenas 1.907 têm
abastecimento de água através da rede geral, 4.280 são abastecidos por poços
ou nascentes e 1.538 têm outra fonte de abastecimento. Além disso, desse
total de domicílios, 3.083 não possuem banheiro ou sanitários, contrapondo-
se aos 4.642 restantes. O abastecimento de água potável ocorre apenas na
sede, e esta, por sua vez, não dispõe de esgotamento sanitário e as obras com
esta finalidade estão paralisadas. Segundo levantamento do Programa de Agen-
tes Comunitários de Saúde em todo o município, apenas 4,73% dos domicílios
possui torneira em casa, 16,60% utiliza torneiras coletivas e 71,01% utiliza
outras fontes de consumo. 15 A energia elétrica chega a 75% dos lares urbanos
e a 25% da população rural, e nos povoados é comum a presença de geradores
movidos a querosene para a produção privada de energia.
No geral, os moradores de Barreirinhas ainda vivem em um contexto de
vida modesto e com baixos índices de qualidade de vida, o que, de certa ma-
neira, diminui a integração dos moradores com a atividade turística. Contudo,
vêem-se melhorias em curso na área urbana, nos setores saúde, educação e
infra-estrutura de água e esgoto, e essas ações já produzem reflexos, como o
crescimento de 43% da população urbana, contra 15,1% da população rural,
em 2000. 16 Essa transformação, por outro lado, também resulta da incapaci-
dade agrícola de absorver a mão de obra; das dificuldades atravessadas pelas
atividades de sobrevivência da população rural; da concorrência pesqueira,

14 IBGE, 2000.
15 CONSULPLAN, 2001.
16 IBGE, 2000.

Gustavo Marques.p65 164 22/11/2010, 00:36


Desenvolvimento sustentável do município de Barreirinhas: planejamento urbano e municipal 165

no litoral da região, com barcos de empresas de outros estados; e do advento


recente do turismo no município, com a conseqüente implantação de instala-
ções voltadas para o atendimento aos visitantes, como pousadas e restaurantes.
As propostas do Plano Diretor de Barreirinhas e da Lei de Zoneamento,
Parcelamento, Usos e Ocupação do Solo buscam, entre outras metas, a organi-
zação do espaço urbano, bem como a ascensão econômica e social da população
local, com o objetivo de que esta possa efetivamente se envolver no processo
de transformação e usufruir dos benefícios em curso. Para isso, é necessário
haver compatibilização de demanda e oferta quanto às necessidades básicas,
indução de investimentos privados junto à sede – combinado com a redução
das ocupações em áreas ambientais virgens –, capacitação humana, geração
de renda e trabalho, reserva de zonas, espaços e equipamentos voltados aos
interesses coletivos, e usos mistos do espaço, com integração de atividades
culturais, de lazer, comércio, valorização paisagística, transporte, esporte,
educação, saúde, hospedagem e serviços públicos.
São incluídas também nas propostas a criação de zonas e espaços de
interesse social. As propostas estabelecem ainda diretrizes, normas e referên-
cias para o desenvolvimento de ações e programas específicos em áreas como
saneamento, infra-estrutura e preservação da natureza da sede, dos povoados
e das regiões próximas às áreas de interesse ambiental, como se verá com
maiores detalhes mais à frente. Através do ordenamento e desenvolvimento
da cidade, acredita-se que os investimentos privados serão atraídos para o
meio urbano, e conseqüentemente as reservas naturais ficarão menos vulne-
ráveis às ocupações de novos empreendimentos e assentamentos.

DESENVOLVIMENTO URBANO

Nos itens anteriores foi ressaltado que em Barreirinhas as ocupações e os


assentamentos são dispersos, socialmente frágeis, sem infra-estrutura e muitas
vezes próximos às reservas naturais. Além disso, os principais povoados de
Barreirinhas e a sede são integrados, basicamente, pela via fluvial e apresentam
um recente, acelerado e desordenado crescimento, em função da nova facili-
dade de acesso ao município, do advento do turismo e da intensa atividade
imobiliária. Delineia-se, assim, um contexto ambiental, institucional e social
bastante frágil, que, por sua vez, gera um uso e uma ocupação do solo descon-
trolados, tanto no meio rural como no urbano.

Gustavo Marques.p65 165 22/11/2010, 00:36


166 Gustavo Martins Marques

O turismo vem se tornando um grande agente de transformação social,


econômica, ambiental e da paisagem urbana, algumas vezes colocando em
risco o meio ambiente e a integridade dos habitantes e da região. Por outro
lado, em função dessa atividade Barreirinhas vem recebendo importantes ini-
ciativas de infra-estrutura urbana, como o aterro sanitário, a rede de água e
esgoto e a estação de tratamento, além do novo aeroporto; no entanto, todas
essas obras estão paralisadas.
Há necessidade de preparação do município para o processo de desenvol-
vimento turístico, a qual inclui a limitação das ocupações e expansões próximas
às reservas ambientais e a ampliação das possibilidades na sede. No entanto,
esta ainda é considerada desinteressante por moradores e visitantes, em função
do contexto de infra-estrutura, serviços e realidade social ser frágil e desorde-
nado. A construção de um cenário turístico atraente exige um programa de
investimentos complexo, em várias áreas, 17 que inclui a melhoria dos indica-
dores sociais, dos serviços, dos transportes, da infra-estrutura, da acomodação,
da arquitetura, do paisagismo, da urbanização, da cultura, do lazer, do co-
mércio, do marketing, da educação, dos sistemas de treinamento e de todos
esses fatores serem integrados em um sistema de gerenciamento adequado.
Essa complexidade de ações requer uma política estrutural cuidadosa,
planejada e gradual, que respeite a capacidade de investimento e a velocidade
de ascensão social, tanto local quanto regional, a fim de reduzir as desigual-
dades sociais e regionais.
O núcleo urbano propriamente dito possui uma área de 358,63 hectares –
sem incluir o novo aeroporto, que tem 260,21 hectares –, uma população de
13.209 hab. e, conseqüentemente, uma densidade bruta urbana de cerca de
36,83 hab./ha, densidade considerada baixa e que deve ser preservada. O centro
da cidade é constituído por escassos espaços e modestas vias que, juntamente
com as áreas do aeroporto, do rio Preguiças, do riacho Tibúrcio e do beira-rio –
conforme a Figura 5 –, com as faixas e zonas lindeiras, a estrada de acesso na
região sudoeste da cidade, além dos vazios do bananal e do Cruzeiro, contí-
guos ao centro e ao norte da região urbana, formam as principais referências
urbanas existentes. E nessas áreas estão as maiores concentrações comerciais,
institucionais e de serviços, e, por conseguinte, os pontos de grande possibi-
lidade de atração para instalação de novas atividades e edificações.

17 Hartshorm, 1992.

Gustavo Marques.p65 166 22/11/2010, 00:36


Desenvolvimento sustentável do município de Barreirinhas: planejamento urbano e municipal 167

Figura 5: Cais improvisado no beira-rio de Barreirinhas

Fonte: Fotografia produzida por Gustavo Martins Marques, 2003.

Essas características naturais e urbanas restringem o crescimento da


cidade, pois, além do exposto acima, a leste há o aeroporto, e a oeste, os
limites legais do Parque dos Lençóis; assim, as alternativas de expansão urbana
ficam disponíveis basicamente na região sul e, de forma mais limitada, na
direção norte, o que inclui as penínsulas existentes contíguas ao centro e
áreas do outro lado do rio, como o cantinho.
A proposta leva em conta as potencialidades e dificuldades existentes,
pois, como foi visto, além do rio, Preguiças que margeia a cidade, dentro do
perímetro urbano da sede existem várias limitações naturais e urbanas a serem
compatibilizadas. A proposta busca também evitar o adensamento populacio-
nal elevado, o crescimento descontrolado e os comprometimentos urbanos,
econômicos e ambientais da região. Dessa forma, a estrutura urbana sugerida
valoriza o crescimento em caracol, de maneira a evitar tanto os grandes vazios
quanto a especulação e propiciar a redução dos custos de investimento e de
manutenção dos serviços públicos. Assim, a forma composta por anéis e radiais
simplifica o zoneamento e facilita a circulação, embora esta solução apresente
uma tendência ao adensamento e à valorização das áreas centrais, o que pode
ser evitado estimulando-se o desenvolvimento de outras regiões disponíveis
nas proximidades do centro, integrando-as por vias arteriais estruturais e
adaptando a solução às condições naturais existentes
A estruturação urbana proposta para Barreirinhas valoriza a preserva-
ção ambiental, o crescimento econômico diversificado, o desenvolvimento
social e institucional, a preservação ambiental, o processo de urbanização
equilibrado, a organização e a integração geográfica e a acessibilidade à infra-
estrutura e aos serviços para todas as regiões e todos os segmentos sociais e
econômicos existentes na cidade; valoriza, portanto, a sinergia entre as ativi-
dades.

Gustavo Marques.p65 167 22/11/2010, 00:36


168 Gustavo Martins Marques

A proposta orienta as novas áreas de crescimento em direção às regiões


contíguas ao centro e ao núcleo urbano e populacional mais significativo e
busca a convergência entre os diversos interesses locais, quer públicos, quer
privados. Dessa maneira, foi proposto um crescimento contínuo, progressivo
e em etapas, sendo que, inicialmente, as áreas a serem ocupadas devem estar
contíguas e próximas ao centro, para terem boa acessibilidade e proximidade
da infra-estrutura. As densidades populacionais dessas áreas devem ser man-
tidas baixas, para evitar congestionamento, inviabilização da infra-estrutura,
especulação imobiliária e comprometimento do ambiente urbano e ambien-
tal. A integração das regiões é garantida por meio de um sistema viário com-
posto por anel, vias estruturais, corredores e locais, para os quais há ampliações
previstas, conforme demonstra a Figura 6.

Figura 6: Mapa de zoneamento urbano

1 Rio Preguiças 6 Zona de Proteção Ambiental


2 Aeroporto 7 Zona de Interesse Social
3 Via de acesso 8 Zona Industrial Leve
4 Zona Central 9 Áreas de Atividades Hortifrutigranjeiras
5 Zona de Expansão 10 Anel Viário

Fonte: GMarques, 2003b.

O equilíbrio urbano, social, econômico e ambiental do conjunto é com-


plementado com a distribuição de tipos, padrões e portes de uso e ocupação
adequados a cada região urbana. Dessa forma, as novas edificações e atividades,
principalmente os equipamentos comuns, institucionais, públicos e coletivos,
são direcionadas para as regiões próximas ao centro, como é o caso da zona

Gustavo Marques.p65 168 22/11/2010, 00:36


Desenvolvimento sustentável do município de Barreirinhas: planejamento urbano e municipal 169

de interesse social e dos bairros de expansão Carnaubal e Cruzeiro. Dessa


forma, a proposta busca baixos índices de ocupação; evita adensamentos, va-
zios urbanos e congestionamentos; otimiza a infra-estrutura e os serviços
existentes na região central; e facilita o pleno funcionamento do centro admi-
nistrativo da cidade.
Os bairros de expansão Cruzeiro e Carnaubal apresentam características
especiais, pois além de estarem próximos ao centro, correspondem às únicas
áreas serpenteadas várias vezes pelo rio Preguiças, com estreitas faixas de
terra entre as águas do rio, apresentando, dessa forma, potencial urbano e
ambiental capaz de aglutinar e integrar usos, interesses e vocações paisagísti-
cas, econômicas, sociais, espaciais e de transporte.
Assim, o acesso a esses bairros ocorre através do anel viário, binários
do centro e por vias estruturais e locais humanizadas; além disso, a Lei de
Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo prevê para a região desses
bairros a integração dos sistemas de transporte terrestre e fluvial.
A Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo pensada
para esses bairros valoriza a paisagem natural e, particularmente, a mata ciliar,
de modo que nas áreas com recursos naturais ainda virgens na extremidades
norte dos bairros há zonas de proteção ambiental. Ao longo das margens do
rio Preguiças há um grande anel de lazer e de proteção, que, por sua vez,
encontra a estreita faixa de terra entre o centro e o bairro do Cruzeiro, onde
foram criados vazios e transparências com vista para rio em três direções e
reservados espaços abertos para o lazer e fechados para o comércio, a cultura
e evento, como mostra a Figura 7.
A Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo valoriza a
baixa densidade e os baixos índices de ocupação e aproveitamento dos terrenos
e lotes; valoriza o entorno das edificações, a recreação, o esporte e as mani-
festações culturais; e estimula usos diversificados do espaço, incluindo aqueles
voltados para o turismo, a hospedagem, eventos, cultura, educação especia-
lizada, comércio, serviços e moradia.

ORGANIZAÇÃO INSTITUCIONAL MUNICIPAL

O poder público local ainda não assumiu o papel de principal condutor do


processo de planejamento e de suas estratégias. Ao contrário, ele se encontra
a reboque dos acontecimentos e transformações urbanos e limitado por suas

Gustavo Marques.p65 169 22/11/2010, 00:36


170 Gustavo Martins Marques

carências e deficiências administrativas, técnicas, físicas e humanas. O plano


em questão é o primeiro grande instrumento regulador e facilitador da gestão
municipal; no entanto, muitos passos precisam ser dados, pois são de funda-
mental importância a capacitação humana e profissional, a estruturação admi-
nistrativa, o incremento da receita, a implantação de rotinas administrativas,
a criação de sistema de controle de informações municipais e a instrumenta-
lização técnica da Prefeitura de Barreirinhas.

Figura 7: Detalhamento do núcleo de desenvolvimento urbano

Fonte: GMarques, 2003.

Gustavo Marques.p65 170 22/11/2010, 00:36


Desenvolvimento sustentável do município de Barreirinhas: planejamento urbano e municipal 171

Destaque especial precisa ser dado à questão ambiental, ao desenvolvi-


mento do Plano Setorial de Saneamento Municipal e, particularmente, às Re-
giões Estratégicas de Conservação Ambiental e Interesse Turístico criadas.

CONCLUSÕES

Cidades periféricas, isoladas, pobres e próximas a atrações naturais e turísticas


são vulneráveis ao interesse e ao controle do capital, e as conseqüências desse
processo podem ser a desigualdade e a desordem social, urbana e ambiental,
pois, à medida em que cresce o transporte e a divulgação, o turismo local é
incrementado, porém este, sem planejamento prévio e adequado, desencadeia
a especulação imobiliária, o crescimento de empreendimentos sem regula-
mentação, os impactos ambientais e os conflitos sociais, culturais e econômicos
locais.
É importante o estabelecimento de um plano diretor, de planos comple-
mentares, de regulamentações e normas gerais sobre diversos aspectos, bem
como o combate a ocupações e expansões predatórias e agressivas ao meio
natural; o incremento da educação, da saúde e das condições de habitação; e
ainda a qualificação do espaço urbano como forma de atração adequada de
investimentos e integração social e econômica. Também é fundamental a ca-
pacitação administrativa, técnica, humana, física e legal das instituições, através
de processos e modelos de desenvolvimento, de planejamento e de gestão
participativa do município que priorizem sempre as condições, demandas e
interesse locais, especialmente as dos setores mais frágeis da sociedade.

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RESUMO

Cidades periféricas, isoladas, pobres e dotadas de atrativos naturais e turísticos


possuem frágeis processos de desenvolvimento e são vulneráveis aos interesses
e ao controle do capital. Tal é o caso do município de Barreirinhas, no Maranhão.
A estrada de acesso e a divulgação dos atrativos naturais promoveram o turismo
local e o crescimento de empreendimentos, os quais se deram, porém, sem
planejamento. O resultado tem sido a expansão desordenada, a dispersão de
assentamentos, a especulação imobiliária e os impactos ambientais. Assim, é
necessário que sejam criadas condições para a implantação e gestão de um
processo de desenvolvimento apropriado, sensível à realidade econômica, na-
tural, social e urbana local. Este trabalho pretende estudar estratégias de de-
senvolvimento sustentável para o caso em questão, bem como buscar diretrizes
de desenho urbano que promovam a qualificação do espaço e a atração de
investimentos adequados ao meio.
Palavras-chave: desenvolvimento, planejamento urbano, desenho urbano,
meio ambiente.

ABSTRACT

Cities that are outlying, isolated, poor and endowed with natural and touristic
attractions have a fragile development processes and are vulnerable to the
interests and the control of capital. This is the case of the city of Barreirinhas
in Maranhao State. The access road and the advertisement of natural attractions
promoted tourism in the city and the growth of local enterprises, both the
tourism and the local enterprises were developed without planning. The result
has been urban sprawl, spread of settlements, land speculation and environ-

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174 Gustavo Martins Marques

mental impacts. Thus, it is necessary that conditions are created for the de-
ployment and management of an appropriate development process, taking in
consideration the economic, social and urban characteristics of the local. This
work aims to study strategies of sustainable development for the case in ques-
tion, as well as, it seeks to develop urban design guidelines to promote the
qualification of space and to attract adequate investments to the city.
Keywords: development, urban planning, urban design, environment.

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Transformações morfológicas na
avenida Bueno Brandão em Viçosa (MG):
preservação versus verticalização

Geraldo Browne Ribeiro Filho

INTRODUÇÃO

Este artigo discute as principais transformações morfológicas sofridas pela


Av. Bueno Brandão, 1 localizada na área central da cidade de Viçosa (MG), na
primeira década do século XXI (ver Figura 1). Projetada na segunda década do
século XX, na mesma época da construção do ramal e da estação ferroviários,
a avenida recebeu tratamento estético privilegiado. As edificações em estilo
eclético, construídas ao longo da avenida no início da terceira década do sécu-
lo XX, formavam um conjunto arquitetônico e urbanístico que marcou a pai-
sagem da cidade durante muitos anos.
No entanto, a partir da década de 1980, a via passou a ser alvo preferencial
de empresários da construção civil, que viam naquela avenida – com grandes
lotes e “velhos” sobrados, considerada de boa localização, paisagisticamente

1 A avenida recebeu este nome em homenagem a Júlio Bueno Brandão (1858-1931), político
mineiro que governou por duas vezes o estado: nos períodos de 1908 a 1909 e de 1910
a 1914. Tudo indica que esta homenagem se deve aos estreitos laços de amizade entre o
homenageado e Arthur Bernardes, ex-Presidente da República (1922-1926), que nasceu
em Viçosa e foi secretário de Finanças no segundo governo de Bueno Brandão.

Paisagem urbana e direito à cidade , Rio de Janeiro, 2010. p. 175-196. Coleção Direito e Urbanismo

Geraldo Ribeiro.p65 175 22/11/2010, 00:06


176 Geraldo Browne Ribeiro Filho

agradável e larga, segundo o padrão viário da cidade – o local ideal para a


construção de grandes edifícios, em um processo de expansão e consolidação
da área central como núcleo comercial e de prestação de serviços.

Figura 1: Gravura de Afonso Penna (1997): Largo da Estação e Av. Bueno Brandão

Fonte: Pompéia Bicalho.

Paulatinamente, os sobrados em estilo eclético, que eram parte funda-


mental do conjunto urbanístico do local, passaram a dar lugar a grandes edi-
fícios, em um processo de desconfiguração da paisagem urbana 2 ali existente,
a qual marcou, por mais de sessenta anos, a memória dos viçosenses (ver
Figuras 2 e 3).
Na década de 1990, ao constatar o interesse do setor construção civil
por essa área, o Conselho da Cultura e do Patrimônio Cultural e Ambiental do
município procurou atuar, mas não foi além do tombamento da estação ferro-
viária e da balaustrada que divide a parte alta da parte baixa da avenida. O
conjunto arquitetônico, mesmo dotado de inegável interesse quanto à preser-
vação cultural, não mereceu o mesmo tratamento jurídico-urbanístico.

2 A noção de paisagem adotada neste trabalho tem como referência as pesquisas conduzidas
por Cavallazzi e D’Oliveira, 2002, p. 295, que abordam “a paisagem como um bem de
todos, difuso, [...]. A paisagem sinaliza a prioridade do espaço público em face do privado,
o uso coletivo em face do individual, a preservação da natureza e sua transformação
equilibrada diante da degradação, o ambiente natural e construído em harmonia, apesar
do descompasso da estruturação espacial urbana”.

Geraldo Ribeiro.p65 176 22/11/2010, 00:06


Transformações morfológicas na avenida Bueno Brandão em Viçosa (MG): 177
preservação versus verticalização

Figura 2: Vista parcial da Av. Bueno Brandão (parte alta)

Figura 3: Av. Bueno Brandão ao fundo e Estação Ferroviária

Fonte: fotos do autor.

Tudo indica que o conjunto arquitetônico não foi tombado na época


para evitar resistência a uma política de preservação que se iniciava no muni-
cípio. Naquele momento, pretendia-se primeiramente tombar bens públicos
ou bens de uso público, como nos casos da Estação Ferroviária, do Balaustre,
do Colégio de Viçosa e da Estação Ferroviária de Silvestre. Os bens imóveis
privados seriam incluídos na política de preservação quando a população es-
tivesse mais familiarizada com o instrumento do tombamento. Após anos, o
tombamento de bens imóveis privados somente vem sendo possível quando
associado ao instrumento transferência do direito de construir.

Geraldo Ribeiro.p65 177 22/11/2010, 00:06


178 Geraldo Browne Ribeiro Filho

Assim, apoiado no Estatuto da Cidade e no Plano Diretor local, atual-


mente, na primeira década do século XXI, o Conselho busca alternativas para
tentar salvar duas edificações de serem demolidas para dar lugar à construção
de grandes edifícios. No entanto, o “sucesso” foi apenas parcial e questionável
do ponto de vista estético e ambiental. A alternativa encontrada foi a aplicação
do instrumento urbanístico conhecido como “transferência do direito de cons-
truir”, que surgiu como uma forma de compensar o proprietário por possíveis
prejuízos econômicos causados pelo processo de tombamento de sua proprie-
dade.
No entanto, no caso de Viçosa, a transferência do direito de construir,
que deveria ser exercida em outras áreas, mais propícias à verticalização, como
forma de preservar a integridade da paisagem em que se insere o bem tombado,
foi exercida no mesmo terreno. Com isso, o processo de verticalização não
deixou de avançar, e os bens tombados, pode-se dizer, praticamente desapa-
receram sob a massa de concreto e vidro dos grandes edifícios.
Considerando-se que as formas urbanas e arquitetônicas são reflexos
da sociedade que as produziu, bem como das condições históricas, econômicas
e políticas de cada momento, este artigo visa contribuir não só para a compreen-
são das transformações morfológicas da Av. Bueno Brandão, mas também
para o entendimento e com o debate sobre a dinâmica, ou lógica, de transfor-
mações da área central de uma cidade de pequeno porte demográfico, como é
o caso de Viçosa. O centro de uma cidade tem papel essencial quanto à iden-
tidade e à referência de seus cidadãos e visitantes. Nas áreas centrais encon-
tram-se as sedimentações e as estratificações da história de uma cidade. À
medida em que objetos arquitetônicos e urbanísticos são demolidos e/ou
conservados, identidade, memória e referência da população também se mo-
dificam.
Busca-se, assim, com este artigo, ao estudar a formação e as transfor-
mações dos espaços urbanos, compreender a lógica subjacente a esse processo,
com vistas a identificar as formas mais apropriadas cultural e socialmente
para a preservação desses espaços, para intervenção ou mesmo para o desen-
volvimento de projetos para novas áreas.
No próximo item, tentar-se-á descrever o processo de urbanização re-
cente de Viçosa, bem como a intensidade e a velocidade das transformações
morfológicas na área central da cidade em direção à verticalização e à perda
de patrimônio arquitetônico de interesse cultural.

Geraldo Ribeiro.p65 178 22/11/2010, 00:06


Transformações morfológicas na avenida Bueno Brandão em Viçosa (MG): 179
preservação versus verticalização

VIÇOSA: PROCESSO DE RÁPIDA URBANIZAÇÃO

Os anos 1970 marcam o início do processo de verticalização da área central


de Viçosa e de maior expansão de seu território. Inicialmente, foram construí-
dos edifícios de até quatro pavimentos, mas, com o passar dos anos, logo os
edifícios chegaram aos 15 pavimentos (ver Figura 4).

Figura 4: Vista geral de Viçosa (MG)

Fonte: www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=952100.

O que motivou esse processo de expansão horizontal e vertical foi princi-


palmente a federalização da Universidade, 3 instalada em seu território, em
campus localizado próximo à área central. A Universidade, que era estadual, no
fim de 1969 foi federalizada e passou a receber aporte significativo de recursos
financeiros para sua manutenção, expansão física, criação de novos cursos de
graduação e pós-graduação e para contratação de pessoal. O aumento do número
de estudantes e do quadro de professores e funcionários, em curto espaço de
tempo, pressionou a demanda por habitação. Novos loteamentos, bairros e até

3 Não pode deixar de serem mencionadas, como contributos para o crescimento da cidade,
principalmente de suas periferias, as políticas de modernização do campo deste período
e a disciplina financeira imposta pela pelo FMI e Banco Mundial ao país, que contribuíram
para acentuar a migração campo-cidade (Davis, 2006, p. 25).

Geraldo Ribeiro.p65 179 22/11/2010, 00:06


180 Geraldo Browne Ribeiro Filho

condomínios fechados foram criados. Áreas faveladas surgiram, como o Re-


benta Rabicho e o Alto Santa Clara. O preço da terra urbanizada aumentou
substancialmente em razão do aumento repentino de demanda. O setor cons-
trução civil se aproveitou do momento favorável, inclusive dos fartos financia-
mentos do BNH – Banco Nacional de Habitação –, para se expandir e fortalecer.
A mudança no processo de crescimento urbano pode ser notada por
meio dos dados populacionais fornecidos pelo IBGE. Em 1960, Viçosa possuía
uma população de apenas 21.120 habitantes, sendo 11.778 pessoas habitando
a área rural e 9.342, a área urbana. O município era, portanto, tipicamente
rural, e pode-se dizer que seu processo de desenvolvimento era lento.
A partir da década de 1970, a população urbana começa a crescer de
forma acentuada, ao mesmo tempo em que ocorre um esvaziamento da área
rural. Assim, em 1970, a população total sobe para 25.784 habitantes (22%), a
população rural decresce para 8.784 habitantes, e a urbana cresce a uma taxa
de mais de 80%, chegando à marca de 17.000 habitantes. Ou seja, em um
período de apenas 10 anos a população urbana quase dobra. Em 1980, a popu-
lação urbana quase dobra novamente, totalizando 31.143 habitantes, enquanto
a rural decresce ainda mais – 7.512 habitantes –, o que mostra uma tendência
de esvaziamento do campo.
Nas décadas seguintes, o crescimento da população urbana continuou,
mas em um ritmo menor. Em 1990, a população urbana chega a ser de 49.320
habitantes, com uma taxa de crescimento de 60% na década. Em 2000, esta
taxa cai acentuadamente para cerca de 21%. A população urbana é de 59.896
habitantes e a rural, de 5.014 habitantes.
Recentemente, em 2007, o IBGE realizou nova contagem populacional,
na qual computou que Viçosa possui uma população total de 70.404 habitantes,
sendo 65.040 habitantes (92,38%) residentes na zona urbana e 5.464 na zona
rural (7,62%). A taxa de crescimento populacional nesse período de sete anos
foi de 8,6%. Somada a essa população “fixa”, pode-se considerar ainda uma
população “flutuante” estimada de 15.000 habitantes, composta predominan-
temente por estudantes de graduação e de pós-graduação que, mesmo não
registrados pelas estatísticas oficiais, demandam por todo tipo de serviço na
cidade e participam da concorrência por moradia, estabelecendo principal-
mente as conhecidas “repúblicas estudantis”.
Como pode ser observado através dos dados apresentados, o período
mais crítico do processo de urbanização se deu exatamente entre as décadas

Geraldo Ribeiro.p65 180 22/11/2010, 00:06


Transformações morfológicas na avenida Bueno Brandão em Viçosa (MG): 181
preservação versus verticalização

de 1960 e 1980, com taxas que chegaram a mais de 80% em cada década ou
6,7% ao ano. Esse crescimento não implicaria problema algum se fosse acom-
panhado, no mínimo, de provimento de infraestrutura e de serviços urbanos
suficientes, além de ordenamento territorial planejado de forma sustentável
e com qualidade. Não foi o que aconteceu. Mesmo crescendo a taxas elevadas,
o poder público não proveu as condições adequadas para que Viçosa se desen-
volvesse de forma equilibrada. As poucas normas urbanísticas existentes no
período crítico (Lei de Parcelamento do Solo Urbano e Código de Obras) prati-
camente não foram aplicadas. Esse crescimento desequilibrado e sem planeja-
mento público (ou planejado pelo mercado) fica ainda mais realçado quando
comparado à estrutura urbana do campus universitário (ver Figuras 5 e 6).

Figura 5: Vista aérea – tecido urbano – contraste cidade x UFV

Figura 6: Vista aérea – verticalização

Fonte: www.google.com.br.

Geraldo Ribeiro.p65 181 22/11/2010, 00:06


182 Geraldo Browne Ribeiro Filho

Atualmente, na cidade, outro boom de crescimento está em andamento


com a implantação do projeto de expansão da Universidade denominado REUNI –
Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades
Federais Brasileiras. A Universidade tem recebido aporte financeiro significa-
tivo, criado novos cursos de graduação, construído novos edifícios e contratado
professores e técnicos administrativos. O setor construção civil tem se movi-
mentado rapidamente no sentido de buscar atender à demanda gerada por
essa nova expansão. O momento atual é novamente favorável ao setor, na
medida em que o Governo Federal coloca à disposição dele e da população
vários programas de financiamento habitacional, como, por exemplo, o Pro-
grama Minha Casa Minha Vida.
Diferentemente do período anterior (1960-1990), durante o qual o arca-
bouço normativo urbanístico era precário, Viçosa conta, desde 2000, com nova
estrutura legislativa, de que são parte integrante o Plano Diretor, a Lei de
Zoneamento, Ocupação e Uso do Solo, a Lei de Parcelamento do Solo Urbano,
o Código de Obras e o Código Ambiental, além de ter criado o Instituto Muni-
cipal de Planejamento, com o objetivo de gerir o processo de desenvolvimen-
to urbano. Soma-se a essas normas urbanísticas de caráter municipal o Estatuto
das Cidades – lei federal que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição
Federal, aprovada em 2001. Esta lei coloca à disposição do poder público instru-
mentos jurídico-urbanísticos de combate à especulação imobiliária. Contudo,
este conjunto de normas pouco tem servido para ordenar o desenvolvimento
da cidade visando o cumprimento de sua função social.
O que pode ser verificado é que a rápida urbanização, acrescida pelo
papel regressivo do poder público, tem contribuído para que a cidade se de-
senvolva praticamente de acordo com os interesses privados, ou de mercado,
mais especificamente dos mercados imobiliário e da construção civil. Em fun-
ção disso, Viçosa tem apresentado uma série de problemas típicos das metró-
poles brasileiras, agravados pelo fato de estar situada em região montanhosa,
de topografia com declividades acentuadas, entre os quais: ocupação das
margens dos córregos, despejo dos esgotos nesses córregos – poluindo-os –,
engarrafamentos, 4 violência urbana, áreas faveladas e acentuado processo de

4 Para uma população aproximada de 85.000 habitantes, contando-se os estudantes, Viçosa


possui cerca de 25.000 veículos transitando por suas ruas (http://www.skyscrapercity.
com/showthread.php?t=952100).

Geraldo Ribeiro.p65 182 22/11/2010, 00:06


Transformações morfológicas na avenida Bueno Brandão em Viçosa (MG): 183
preservação versus verticalização

verticalização das edificações em determinadas áreas da cidade, que ocasionam


densificação excessiva ao, se comparar com a infraestrutura disponível.
O patrimônio arquitetônico de interesse cultural e histórico está sendo
rapidamente dilapidado. De acordo com Carvalho (2004), “muitos imóveis
representativos da história da cidade já foram demolidos, perdendo-se vários
conjuntos edificados, tendo em vista a impotência das ações públicas perante
a avidez do mercado imobiliário.” A autora afirma ainda que,

[e]mbora seja uma cidade de médio porte (possui atualmente cerca de


80.000 habitantes), a dinâmica imobiliária em Viçosa é muito intensa.
Os lotes nas áreas centrais chegam a assumir valores de mercado ina-
creditáveis para uma cidade de interior. A falta de lotes vazios no centro,
aliada ao próprio padrão fundiário típico de cidades do final do século
XVIII, cujos lotes são muito estreitos e profundos, tornam muito baixa a
oferta de terrenos e elevam sobremaneira o preço do metro quadrado.
Com isso, aumenta a pressão sobre os imóveis de valor histórico locali-
zados no centro e nas suas imediações. 5

Em vista disso, a paisagem urbana está, cada vez mais, marcada pelos
traços da modernidade capitalista neoliberal, representada, principalmente, pelos
grandes edifícios residenciais e comerciais e pela destruição do patrimônio de
interesse histórico, em um processo que Brenner e Theodore 6 denominam de
“destruição criativa”. 7

A AV. BUENO BRANDÃO: FORMAÇÃO HISTÓRICA

Projetada no ano de 1914, a avenida já nasceu com o nome de Bueno Brandão


e recebeu tratamento estético privilegiado; não apenas nas recomendações
para as construções das edificações que iriam ocupar os seus lotes, mas tam-
bém no muro de arrimo de pedras, encimado por balaustrada, dividindo a

5 Carvalho, 2004, p. 1.
6 Brenner e Theodore, 2002, p. 351.
7 O conceito de “destruição criativa” é usado pelos autores para descrever as trajetórias
geograficamente desiguais, socialmente regressivas e politicamente voláteis de mudanças
institucionais/espaciais que têm sido cristalizadas sob as condições do capitalismo neoli-
beral.

Geraldo Ribeiro.p65 183 22/11/2010, 00:06


184 Geraldo Browne Ribeiro Filho

parte alta (Av. Bueno Brandão) da parte baixa (atual Av. Sebastião Lopes de
Carvalho) (ver Figura 7). A Resolução 345, de 17 de janeiro de 1914, da Câmara
Municipal de Viçosa autorizava a abertura de uma avenida, “que se denominará
Bueno Brandão, ao longo da linha férrea em construção, entre a praça Emílio
Jardim e a rua Santa Rita [...]”.

Figura 7: Av. Bueno Brandão – vista aérea

Fonte: www.google.com.br.

Para a construção da avenida aproveitou-se o leito de abertura do ramal


da ferrovia. 8 Essa variante ferroviária foi construída em 1914, quando foi
erguida também a estação ferroviária no largo denominado “praça Mal. Deodo-
ro”, em local mais ou menos eqüidistante das Praças da Matriz e do Rosário.
A Bueno Brandão foi construída em duas etapas. A primeira, segundo a
Resolução 376, de 31 de março de 1919, da Câmara Municipal, foi iniciada em
1919 e corresponde ao trecho compreendido entre a atual praça Mário Del
Giúdice e a travessa Belo Lisboa, local onde existem duas rampas de acesso
ligando parte alta – parte baixa. Na época, a Câmara, além de aprovar “a planta
de abertura da avenida”, determinou que as fachadas das edificações que
fossem construídas tivessem platibandas e que o pé direito mínimo – “do
soalho ao forro” – fosse de “dezoito palmos” (Resolução 376, de 31/03/1919).
A Câmara determinou ainda que todas as edificações naquela avenida
fossem alinhadas, acompanhando o traçado da via, e que as portas tivessem
de “11 a 12 palmos de altura e de 4 palmos a 1 metro de largura, sendo as
janelas proporcionais [...]”. A Resolução n. 396 da Câmara Municipal, aprovada
em 1920, fornece indicações de que o conjunto edificado tenha sido fruto de

8 A ferrovia “The Leopoldina Railway” foi construída em Viçosa em 1884, mas passava a
cerca de 6 km da área central.

Geraldo Ribeiro.p65 184 22/11/2010, 00:06


Transformações morfológicas na avenida Bueno Brandão em Viçosa (MG): 185
preservação versus verticalização

projeto, com o objetivo de se criar um padrão arquitetônico e urbanístico


único, pois aprova “planta levantada pelo Dr. Luiz Lengruber para a construção
de casas na Av. Bueno Brandão”.
A segunda etapa foi construída no fim dos anos 1960 9 e estendeu a
avenida até a praça Emílio Jardim. Essa intervenção de prolongamento, mesmo
sendo mais recente, procurou seguir o padrão urbanístico já existente, com o
muro de arrimo encimado por balaustres. A diferença entre um trecho e outro
pode ser facilmente percebida através do estilo arquitetônico das construções.
Enquanto no primeiro trecho predominam sobrados em estilo eclético, no
outro podem ser vistas edificações mais modernas.
A construção do ramal ferroviário, que passa pela área central, bem
como da estação ferroviária e da Av. Bueno Brandão, além do suporte econô-
mico advindo da nova expansão da produção de café, criou as condições favo-
ráveis para que no núcleo central da cidade o acesso ao uso e à ocupação se
desse pelos segmentos sociais de maior poder aquisitivo. O estilo – predomi-
nantemente o eclético – e o padrão arquitetônico dos casarios e sobrados, dos
hotéis e dos estabelecimentos comerciais que ainda permanecem nesse en-
torno indicam a presença privilegiada da elite cafeeira, dos representantes do
capital comercial e de profissionais liberais. Para reforçar essa idéia, uma pessoa
que nasceu e morou na avenida afirmou que ela era conhecida na época como
a “rua dos doutores”, em referência aos médicos, dentistas e advogados que
ali residiam.
As fachadas do conjunto de casarões constituíam elemento urbano de
grande importância na Av. Bueno Brandão. As edificações se relacionavam
com o espaço urbano através delas, visto que, diferentemente das demais
ruas e avenidas da cidade, onde o espaço público é delimitado por planos de
fachadas nos dois lados da rua, na Bueno Brandão o plano de fachadas localiza-
se apenas de um lado. Do outro lado, uma balaustrada se estende por toda a
extensão da avenida. Das janelas dos sobrados e ao longo da calçada que
margeia a balaustrada pode-se obter uma vista privilegiada da área da estação
ferroviária e da área central da cidade, tendo em vista o desnível existente
entre a avenida e a referida área.
As fachadas da Bueno Brandão adquirem importância diferenciada, em
comparação com as de outras ruas de Viçosa, por terem sido previamente proje-

9 Governo Geraldo Faria (1967-1970).

Geraldo Ribeiro.p65 185 22/11/2010, 00:06


186 Geraldo Browne Ribeiro Filho

tadas, segundo indicam as normas já mencionadas, junto com a própria avenida,


com o objetivo de formar um conjunto urbanístico único. Observa-se ali uma
repetição de padrões urbanísticos e arquitetônicos, tais como gabarito (sobra-
dos), larguras das fachadas, alinhamento, escadarias laterais, platibandas etc.
Nota-se, portanto, um esforço de padronização estética que busca a ostentação
e o prestígio, com vistas a propiciar uma nova imagem para a cidade, exuberante
para a época, e causar uma “boa impressão” aos visitantes ou passageiros e até
mesmo para os moradores da cidade, usuários do sistema ferroviário.
Assim, durante cerca de 70 anos, o primeiro trecho da avenida perma-
neceu preservado em sua essência, até que, nos anos de 1980, sofreu uma
primeira intervenção que impactou decisivamente o conjunto arquitetônico/
urbanístico existente. Um dos sobrados ecléticos, localizado próximo às rampas
de acesso à estação, foi demolido para dar lugar a um edifício com 15 pavi-
mentos (ver Figura 8).

Figura 8: Primeiro edifício (15 pavimentos) – década 1980

Fonte: foto do autor.

Geraldo Ribeiro.p65 186 22/11/2010, 00:06


Transformações morfológicas na avenida Bueno Brandão em Viçosa (MG): 187
preservação versus verticalização

Era o primeiro sinal dado pelos empreendedores da construção civil de


que a área central estava passando por transformações importantes – conso-
lidando-se como área de negócios – e que não seria mais limitada pela área da
estação ferroviária. As “casas velhas e antigas” da Av. Bueno Brandão deveriam
dar lugar a prédios modernos, destinados, principalmente, às famílias que
moravam no centro – que transformaram suas residências em comércios e
serviços, mas que queriam continuar a morar na região central. O urbanismo
de qualidade estava com seus dias contados ao passar a se sujeitar à rentabi-
lidade do solo e à especulação imobiliária e fundiária.
Com a expansão do comércio e dos serviços na área central, ainda nas
décadas de 1980 e de 1990, algumas edificações sofreram reformas que visavam
a adequação à nova demanda. Proprietários, aproveitando-se da rápida valori-
zação dos imóveis na área central, preferiram vendê-los ou transformá-los em
ponto comercial ou de prestação de serviços (ver Figura 9).

Figura 9: Edificação adaptada para serviço e comércio

Fonte: foto do autor.

Durante a década de 1990, seguiram-se outras demolições e construção


de novos edifícios no contexto de expansão e valorização dos imóveis na área
central (ver Figura 10).
Na virada do século XX para o XXI, nova investida do setor construção
civil levou o Conselho da Cultura e do Patrimônio Cultural e Ambiental do

Geraldo Ribeiro.p65 187 22/11/2010, 00:06


188 Geraldo Browne Ribeiro Filho

município, com apoio do poder público, a propor uma alternativa para a pre-
servação do patrimônio arquitetônico e urbanístico da avenida, alternativa
que consistiu na aplicação do instrumento transferência do direito de construir.

Figura 10: Anos 1990 – verticalização

Fonte: foto do autor.

A ideia que embasa este instrumento é a de que o proprietário de terreno


urbano tem o direito de construir uma área proporcional à área do terreno.
Quando essa ideia chegou ao Brasil, mais particularmente em São Paulo, em
1976, importada principalmente da França e dos Estados Unidos da América, 10

10 O modelo proposto em 1976 para São Paulo foi inspirado no “plafond legal de densité”,
instituído em 1975 em toda a França, e no “development right transfer”, instituído em
1973 no Plano de Chicago (Brasil, 2001).

Geraldo Ribeiro.p65 188 22/11/2010, 00:06


Transformações morfológicas na avenida Bueno Brandão em Viçosa (MG): 189
preservação versus verticalização

o índice ou coeficiente de aproveitamento proposto era igual a 1. Isto queria


dizer que o proprietário do terreno teria direito de construir uma edificação
com área construída no máximo igual à área do terreno. Caso ele quisesse
construir além dessa área, teria que adquirir o excedente do poder público. O
preço pago para usufruir desse direito serviria para dotar a região com os
equipamentos urbanos exigidos pelo adensamento provocado pela nova cons-
trução, bem como para preservar edificações de valor histórico e cultural (Brasil,
2001, p. 68).
No caso de edifícios de valor cultural, o instrumento em questão surge
como uma forma de compensar o proprietário pelos possíveis prejuízos eco-
nômicos decorrentes do tombamento de sua edificação. Quando, por exemplo,
é tombado um prédio de dois pavimentos, como é o caso dos casarões locali-
zados na Av. Bueno Brandão – região da área central onde é permitido cons-
truir edifícios de múltiplos andares –, o proprietário se sente prejudicado, já
que seu imóvel fica congelado, já que não pode exercer plenamente sobre seu
terreno o potencial virtual que lhe é concedido pela legislação. A legislação da
transferência do direito de construir busca, portanto, ressarcir o proprietário,
na medida em que ele poderá, através dela, transferir para terceiros seu direito
de construir a mais, em outra área onde essa limitação não exista.
Com o passar do tempo, outras cidades passaram a aplicar o instru-
mento de forma crescente e adaptando a idéia conforme suas realidades. Curi-
tiba e Belo Horizonte, por exemplo, passaram a permitir que a transferência
do direito de construir se desse para o mesmo lote, em vez de destinar outras
áreas na cidade, mais infra-estruturadas e que pudessem receber o impacto
de maior adensamento, para a transferência desse excedente.
Viçosa preferiu adotar o instrumento com a permissão da transferência
do potencial construtivo para o mesmo terreno. Prevista no Plano Diretor,
aprovado em 2000, como Operação Urbana, sua aplicação contou com partici-
pação decisiva do Conselho da Cultura e do Patrimônio Cultural e Ambiental
do município, que buscou uma saída legal para tentar preservar os imóveis de
valor histórico, artístico e arquitetônico que estavam passando por um pro-
cesso de demolições sucessivas e sem critério (Carvalho, 2004).
Duas leis específicas foram aprovadas pela Câmara Municipal instituindo
a transferência do potencial construtivo na avenida. A primeira foi a Lei n. 1.560,
de 19 de novembro de 2003, que autorizava o uso da “Transferência do Direito
de Construir” com o objetivo de preservar um imóvel de interesse histórico,

Geraldo Ribeiro.p65 189 22/11/2010, 00:06


190 Geraldo Browne Ribeiro Filho

onde funcionou o primeiro hospital da cidade (Ver Figura 11). Segundo Carvalho
(2004), a elaboração dessa lei contou com uma fase de negociações entre o
Conselho de Cultura e do Patrimônio Cultural e Ambiental e os proprietários
do imóvel, que já possuíam o projeto arquitetônico de um edifício para o
local. De acordo com a autora,

Após amplos debates com os proprietários e o arquiteto responsável


pelo projeto, decidiu-se pela preservação de 1/3 do volume do edifício,
de modo que se conservasse a fachada e parte do telhado colonial de 4
águas. O potencial construtivo decorrente da preservação foi utilizado
no próprio terreno, gerando um ganho na área total construída. 11

Figura 11: Fachada frontal do primeiro hospital de Viçosa (MG), antes da


demolição parcial

Fonte: Arquivo Rolf Jentschz.

Para efeito de cálculo do potencial transferido, o terreno foi dividido


em duas áreas: uma para recepção (área 1) e outra para preservação (área 2).
Para a área destinada à recepção houve um adicional do Coeficiente de Apro-
veitamento (CA), que passou para 2,95 vezes o valor da área de preservação
(60,50m2). A área 2 foi tombada e foram impedidas alterações nas caracterís-
ticas da fachada frontal, de parte da cobertura, que manteve sua inclinação, e
de 35% da volumetria do corpo principal da residência. A lei isenta o imóvel

11 Carvalho, 2004, p. 1.

Geraldo Ribeiro.p65 190 22/11/2010, 00:06


Transformações morfológicas na avenida Bueno Brandão em Viçosa (MG): 191
preservação versus verticalização

de IPTU, desde que o proprietário o mantenha “em condições adequadas de


habitabilidade”. 12
Como se pode observar através da seqüência de fotos, a configuração
final, resultante da intervenção, é bastante questionável, levando-se em conta
as dimensões estética e urbanística. A fachada preservada é praticamente absor-
vida pela escala da edificação, não se destacando na paisagem urbana enquanto
patrimônio cultural (Ver Figura 12).

Figura 12: Fachada frontal do primeiro hospital de Viçosa (MG), após a


aplicação do instrumento

Fonte: foto do autor.

A segunda intervenção foi respaldada pela Lei n. 1.780, de 31 de outubro


de 2006 – [que] Autoriza a transferência do potencial construtivo nos termos
da Lei n. 1.383/2000 13 e dá outras providências.

12 Viçosa, 2003.
13 Esta é a lei do Plano Diretor que, no cap. V, prevê as operações urbanas.

Geraldo Ribeiro.p65 191 22/11/2010, 00:06


192 Geraldo Browne Ribeiro Filho

Com base na experiência anterior, o poder público, na tentativa de salvar


mais um sobrado eclético da avenida, tombado por força do Decreto n. 4.057/
2006 e conhecido como a “casa verde”, autoriza seu proprietário a “transferir
o potencial construtivo para o mesmo imóvel” (ver Figura 13). A lei delega ao
Instituto de Planejamento do Município de Viçosa – IPLAM – o cálculo do po-
tencial construtivo a ser transferido ao imóvel receptor e da área líquida de
construção do imóvel receptor, por meio de parâmetros previstos na legislação
municipal e em regulamentos devidamente registrados em processo próprio. 14

Figura 13: Av. Bueno Brandão – “Casa Verde” (1996)

Fonte: foto do autor.

A referida lei é explícita no atendimento aos interesses do proprietário,


no que diz respeito à verticalização, tornando sem efeito inclusive o gabarito
para a área estabelecido pela Lei n. 1.420/2000 – Ocupação, Uso do Solo e
Zoneamento do Município de Viçosa, que já é excessivo.

O potencial construtivo previsto no caput poderá ser incorporado ao


mesmo imóvel do proprietário [...] podendo, inclusive, ser transforma-
do em acréscimo de pavimentos acima do gabarito estabelecido pela Lei
nº 1.420/2000 (Ocupação, Uso do Solo e Zoneamento do Município de
Viçosa), desde que aprovado pelo IPLAM em processo próprio.

14 Viçosa, 2006.

Geraldo Ribeiro.p65 192 22/11/2010, 00:06


Transformações morfológicas na avenida Bueno Brandão em Viçosa (MG): 193
preservação versus verticalização

Diferentemente da intervenção anterior, em que se preservou apenas a


fachada da edificação do “antigo hospital”, nesse caso verifica-se que a “casa
verde” foi poupada em quase toda sua volumetria. No entanto, a massa edifi-
cada construída no próprio terreno, sobre o sobrado, compromete mais uma
vez a paisagem (ver Figura 14).

Figura 14: “Casa Verde” – 2009, após a aplicação do instrumento

Fonte: foto do autor.

CONCLUSÃO

Procurou-se, neste artigo, discutir as principais transformações na paisagem


urbana da Av. Bueno Brandão a partir da década de 1980, quando a avenida
passou a ser alvo preferencial dos empresários da construção civil, interessados
na construção de grandes edifícios.

Geraldo Ribeiro.p65 193 22/11/2010, 00:06


194 Geraldo Browne Ribeiro Filho

Criada no início do século XX e tendo se aproveitado da transferência


do ramal ferroviário para a área central da cidade, tudo indica que, por inicia-
tiva do poder público, a Bueno Brandão foi planejada. Durante cerca de 60
anos a via permaneceu preservada em seu conjunto; a partir dos anos 1980,
no entanto, sua paisagem urbana passa a ser desconfigurada por ações do
mercado da construção civil – e o planejamento sucumbe frente ao mercado.
Primeiramente, as transformações ocorreram através da mudança de uso, que,
em algumas edificações, deixou de ser residencial para se converter em co-
mercial e de prestação de serviços. O processo de verticalização veio logo em
seguida, de modo que a herança cultural – o conjunto arquitetônico urbanís-
tico – que havia sido deixada para as novas gerações de viçosenses passou a
ser dilapidada pelos interesses da especulação imobiliária.
Ao permanecerem apenas alguns casarões, permeados por grandes edifí-
cios, o conjunto arquitetônico-urbanístico deixou definitivamente de existir,
a paisagem urbana se desconfigurou.
As tentativas feitas para salvar o patrimônio cultural por intermédio do
instrumento transferência do direito de construir não alcançaram resultados
satisfatórios. As edificações tombadas foram dissimuladas pelo expressivo
volume das edificações construídas no mesmo lote, assim como também pelas
edificações do entorno. Além disso, a verticalização permitida causou densi-
ficação indesejada na área, sobrecarregando a infraestrutura, já saturada.
A transferência do direito de construir é um importante instrumento à
disposição do município, mas que deve ser aplicado com critérios e em con-
junto com outros dispositivos legais que possam, por exemplo, dar suporte
na escolha de áreas para receber o potencial construtivo, na avaliação de possí-
veis impactos urbanísticos e ambientais etc.
Deve-se ainda destacar o papel exercido pelo Conselho da Cultura e do
Patrimônio Cultural e Ambiental do município nessas tentativas, o qual, mesmo
sendo consultivo e enfrentando os poderosos interesses do setor construção
civil local, buscou alternativas para preservação das edificações de interesse
cultural. No entanto, as duas experiências relatadas mostram que o papel do
Conselho pode avançar no trato de outras situações semelhantes às da Av.
Bueno Brandão: desaconselhando a transferência do potencial construtivo para
o mesmo terreno e, concomitantemente, promovendo ações que se traduzam
em uma cidade que se desenvolva cumprindo sua função social.

Geraldo Ribeiro.p65 194 22/11/2010, 00:06


Transformações morfológicas na avenida Bueno Brandão em Viçosa (MG): 195
preservação versus verticalização

REFERÊNCIAS

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lece diretrizes gerais da política urbana. Brasília: Câmara dos Deputados, Coor-
denação de Publicações, 2001. Série fontes de referência. Legislação; n. 40.

BRENNER, Neil; THEODORE, Nick. Cities and the geographies of “actually existing
neoliberalism”. Antipode. Disponível em: <http://www.ingentaconnect.com/
content/bpl/anti/2002/00000034/00000003/art00002> Acesso em: 07 fev.
2009. p. 349-379.

CARVALHO, Aline Werneck Barbosa de. A transferência do potencial construtivo


como mecanismo de preservação do patrimônio cultural: uma experiência con-
creta em Viçosa. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/minhacidade/
mc089/mc089.asp>. Acesso em: 03 set. 2009.

DAVIS, Mike. Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006.

LAMAS, J. M. R. G. Morfologia urbana e desenho da cidade. Lisboa: Fundação


Calouste Gulbenkian, 1995.

PANERAI, Philippe. Análise urbana. Brasília: Universidade de Brasília, 2006.

RIBEIRO FILHO, Geraldo Browne. A formação do espaço construído: cidade e


legislação urbanística em Viçosa, MG. 254p. Dissertação (Mestrado em Urba-
nismo) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1997.

VIÇOSA. Resolução n. 319 de 04 de julho de 1912.

______. Resolução n. 345 de 17 de janeiro de 1914.

______. Resolução n. 376 de 31 de março de 1919.

______. Resolução n. 396 de 29 de novembro de 1920.

RESUMO

Este artigo discute as principais transformações morfológicas sofridas pela


Av. Bueno Brandão, em Viçosa, MG, na primeira década do século XXI. O artigo
debate a forma como se deu a apropriação do instrumento urbanístico da
transferência do direito de construir como forma de preservação do patrimônio

Geraldo Ribeiro.p65 195 22/11/2010, 00:06


196 Geraldo Browne Ribeiro Filho

histórico. As edificações em estilo eclético formavam um conjunto arquitetônico


e urbanístico que marcou a paisagem da cidade durante muitos anos. A partir
da década de 1980, no entanto, esses imóveis passaram a ser alvo preferencial
dos empresários da construção civil, que viam os grandes lotes e “velhos” so-
brados como locais ideais para a construção de grandes edifícios, em um pro-
cesso de expansão e consolidação da área central como núcleo comercial e de
prestação de serviços. O Conselho da Cultura e do Patrimônio Cultural e Ambien-
tal do município, ao buscar alternativa para tentar salvar duas edificações da
demolição com a aplicação do referido instrumento, não alcançou resultados
satisfatórios. A transferência do direito de construir é um importante instru-
mento à disposição do município, mas que deve ser aplicado de acordo com
critérios e em conjunto com outros dispositivos legais que possam, por exemplo,
dar suporte na escolha de áreas que receberão o potencial construtivo, na ava-
liação de possíveis impactos urbanísticos e ambientais etc.
Palavras-chave: paisagem urbana, patrimônio cultural, preservação, morfo-
logia urbana, verticalização.

ABSTRACT

This article discusses the main morphological transformations undergone in


this first decade of this century by Av Bueno Brandão in Viçosa, MG. The article
discusses how the instrument of transfer of the right to build was appropriate
as a way of preserving its historical heritage. The buildings in eclectic style
formed an architectural and urban planning that marked the city’s landscape
for many years. From the 1980s, however, has become the prime target of the
construction companies that saw large lots and “old” mansions, the ideal place
to build large buildings, in a process of expansion and consolidation of the
central and core business and provide services. The Council for Culture and
Culture and Enviroment Heritage of the City sought alternatives to try to save
two buildings from demolition through the implementation of this instrument,
but it has not achieved satisfactory results. This is an important tool for the
city, but that should be applied with discretion and with other legal provisions,
which may, for example, support the choice of areas to receive constructive
potential in the assessment of possible impacts and urban environmental etc.
Keywords: cityscape, cultural heritage, preservation, urban morphology, pig-
gybacking.

Geraldo Ribeiro.p65 196 22/11/2010, 00:06


DIREITO À CIDADE: CASOS-REFERÊNCIA

Seção [Direito à cidade].p65 197 20/11/2010, 18:22


Seção [Direito à cidade].p65 198 20/11/2010, 18:22
Breves considerações acerca da proteção da
paisagem urbana no Brasil e na Itália

Daniel Gaio

O CONCEITO JURÍDICO DE MEIO AMBIENTE E OS SEUS LIMITES

É necessário inicialmente destacar que em virtude da ampla utilização do


termo “meio ambiente” pelo direito brasileiro – acolhido, inclusive, pela Consti-
tuição Federal brasileira –, 1 torna-se inadequado utilizar a expressão “ambiente”
do modo como o utilizam alguns países europeus. 2
É igualmente relevante esclarecer que, não obstante vários campos do
conhecimento – tais como a biologia, a geografia e a sociologia – possuírem
conceitos próprios de meio ambiente, 3 a abordagem aqui se limitará à discus-
são sobre a possibilidade de construir um conceito a partir do direito, com
especial enfoque no âmbito territorial ambiental.

1 Cf. art. 225, caput, da Constituição Federal – CF. No mesmo sentido, ver Machado, 2001,
p. 123-124.
2 Cf. Cecchetti, 2000, p. 1 e ss.; Canotilho e Moreira, 2007, p. 844 e ss.; Martin Mateo, 1977,
p. 72 e ss.
3 Cf. Jordano Fraga, 1995, p. 75-76. Entretanto, o pressuposto básico originário que ainda
se mantém diz respeito às relações entre o homem e o meio em que vive. Cf. Claval,
2007, p. 19-20.

Paisagem urbana e direito à cidade , Rio de Janeiro, 2010. p. 199-212. Coleção Direito e Urbanismo

Daniel Gaio.p65 199 21/11/2010, 11:44


200 Daniel Gaio

Embora seja possível constatar a existência de normas ambientais em


diversos momentos históricos, 4 foi em decorrência dos efeitos causados pelo
intenso crescimento econômico das últimas décadas – entre os quais a redução
dos recursos naturais e da biodiversidade, a poluição, a saturação e a desca-
racterização das cidades e das paisagens – que se tornou indispensável a per-
manentemente regulação do meio ambiente pelo direito. 5
Percebe-se que respostas a esses problemas foram historicamente apli-
cadas de forma fragmentada por meio de inúmeras legislações específicas e
especializadas – o que remonta, no plano teórico, à individualização dos sabe-
res –, 6 restando, contudo, verificar em que medida é possível, ou mesmo rele-
vante, elaborar um conceito jurídico de meio ambiente que possa abranger a
globalidade dos seus elementos.
No direito brasileiro, tendo como base a classificação de Giannini, 7 des-
taca-se uma formulação unitária do meio ambiente, a partir da interação do
conjunto de elementos naturais, culturais e artificiais. 8 Ocorre que o autor
italiano reconhece não ter elaborado um conceito jurídico, econômico ou so-
ciológico, mas somente uma síntese verbal. 9
Independentemente do relevante esforço teórico despendido na tenta-
tiva de uma conceituação jurídica, a acentuada diversidade dos elementos e a
permanente inserção de novas regulações ambientais demonstram a insuficiên-
cia e a fragilidade dos resultados alcançados. 10 Na realidade, do ponto de

4 Cf. Jordano Fraga, 2007, p. 15-19.


5 Predieri, 1981, p. 513; mesmo que superada a concepção clássica de antropocentrismo, ba-
seada na apropriação indiscriminada dos recursos naturais, não há como negar que a proteção
ambiental é indispensável para assegurar a existência das atuais e futuras gerações huma-
nas. Essa perspectiva – que pode ser denominada de “antropocentrismo alargado”, por pres-
supor que o homem é parte integrante do meio ambiente, e a partir da qual pode-se exigir
uma postura ética –, é claramente adotada pela Constituição brasileira, como se depreende
da análise do seu art. 225, caput. Sobre essa concepção, ver Leite, 2000, p. 75-81. Entretanto,
vale lembrar que o texto constitucional brasileiro igualmente protege os animais de forma
autônoma ao proibir que sejam tratados com crueldade (Cf. art. 225, § 1o, VII, CF).
6 Cf. Deléage, 1994, p. 301.
7 Cf. Giannini, 1973, p. 23.
8 Cf. Silva, 1981, p. 435; e, mais recentemente, Silva, 2007, p. 20.
9 Cf. Giannini, 1976, p. 207-215, p. 212; um quadro geral acerca do posicionamento da
doutrina italiana sobre a matéria pode ser consultado em Cecchetti, 2000, p. 69, nota 50.
10 Cf. Morbidelli, 2001, p. 3-4.

Daniel Gaio.p65 200 21/11/2010, 11:44


Breves considerações acerca da proteção da paisagem urbana no Brasil e na Itália 201

vista concreto, mais importante do que uma definição – por vezes genérica ou
meramente formal – é a concepção que embasa a política relativas ao meio
ambiente.
Nesse sentido, tem sido predominante uma visão global e unitária do
meio ambiente, 11 notadamente porque os efeitos de determinada intervenção,
seja ela de natureza modificativa ou protetora, produzirão impactos em bens
de diferentes ordens. Exemplo dessa interdependência são as conseqüências
que uma política de combate à poluição igualmente produz na paisagem e na
biodiversidade. 12 É justamente em virtude desse efeito irradiante que se cons-
titui a concepção unitária de meio ambiente, pois, embora existam bens sin-
gulares e suas respectivas estruturas de proteção, o ponto de interseção e de
justificação de todas as políticas ambientais é a busca permanente do equilíbrio
ecológico.
Em consonância com essa concepção, a Constituição brasileira estabe-
lece que a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
está diretamente relacionada ao cumprimento de um conjunto de ações espe-
cíficas, 13 sendo, pois, insuficiente a proteção isolada de bens singulares. 14
Não há como negar o acerto da Constituição em considerar uma intrínseca
ligação entre meio ambiente ecologicamente equilibrado e sadia qualidade de
vida, 15 embora esta seja mais ampla, 16 além de ser subjetivamente valorada. 17
Apesar de essa temática permitir inúmeras abordagens, interessa aqui
tratar de algumas possibilidades de apropriação pelo plano urbanístico dos
conteúdos ambientais, em especial da paisagem.

11 Cf. Canotilho e Moreira, 2007, p. 844-845; Caravita, 2005, p. 25; e Leite, 2000, p. 75.
12 Cf. Predieri, 1981, p. 510.
13 Cf. o art. 225, § 1o, CF.
14 Cf. Cecchetti, 2000, p. 73.
15 Cf. art. 225, caput, CF.
16 Como afirmam Canotilho e Vital Moreira (2007, p. 845): “a qualidade de vida é um resul-
tado, uma conseqüência derivada da interacção de múltiplos factores no mecanismo e
funcionamento das sociedades humanas e que se traduz primordialmente numa situa-
ção de bem-estar físico, mental, social e cultural, no plano individual e em relações de
solidariedade e fraternidade no plano colectivo”.
17 Exemplificando a condição subjetiva da qualidade de vida, Spantigati afirma que o barulho
de uma discoteca pode ser motivo de atração ou de repulsa. Cf. Spantigati, 1999, p. 223.

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202 Daniel Gaio

A PAISAGEM E O PAPEL DO PLANO URBANÍSTICO

Ainda que passível de análise mais complexa, pode-se dizer que a tradição
brasileira em matéria de proteção do meio ambiente se realiza a partir de dois
objetivos principais: o equilíbrio ambiental – aqui entendido principalmente
como os “processos ecológicos essenciais à manutenção da vida” – 18 e a pre-
servação de bens que sejam representativos da história da sociedade humana
ou da cultura em geral.19 Em ambas as situações é fundamental que se proceda
à delimitação territorial dos espaços que possuam atributos necessários ao
cumprimento de tais finalidades, o que torna relevante a justificativa dos
critérios adotados para caracterizá-los como bens protegidos. 20
Entretanto, deve-se preliminarmente advertir que, não obstante a indis-
cutível importância dos “bens ambientais tradicionais”, estes são insuficientes
para assegurar uma adequada qualidade de vida nas cidades. Isso porque, em
sentido amplo, o equilíbrio ambiental urbano depende substancialmente do
modelo de planejamento adotado, que pode ser objetivamente aferido em
quesitos como: padrões de adensamento, níveis de poluição, proporção de
áreas verdes por habitante, temperatura, ventilação, áreas de lazer e demais
espaços livres. Em suma, a incorporação da temática ambiental na política
urbana vai além da delimitação espacial de áreas protegidas, mas abrange a
totalidade do seu território.
Na realidade, a dimensão ambiental acima mencionada já estava pre-
sente desde o surgimento do urbanismo moderno, 21 na medida em que o seu
pressuposto básico é o de garantir o bem-estar dos habitantes da urbe. Todavia,
apenas nas últimas décadas é que vem sendo construída culturalmente uma
configuração globalizante de meio ambiente urbano, sobretudo em decorrência

18 Essa expressão foi cunhada por Herman Benjamin para demonstrar as primeiras preocu-
pações ecológicas. Cf. Benjamin, 2005, p. II. Diferentemente, Afonso da Silva assinala
que essas áreas são “representativas de ecossistemas”. Cf. Silva, 2001, p. 11-17.
19 Cf. Souza Filho, 1997, p. 15-16. Veja-se que a Constituição Federal brasileira claramente
ressalta esses dois campos de proteção. Cf. o art. 216 e o art. 225.
20 Registre-se que o próprio texto constitucional identificou, de maneira direta, alguns
ecossistemas a serem protegidos (Cf. art. 225, §4o, da CF), o que não retira o dever do
poder público de identificar os demais espaços territoriais em suas respectivas unidades
federativas (Cf. art. 225, §1o, III, CF; e art. 216, §1o, CF).
21 Cf. Le Corbusieu, 1993, item 12.

Daniel Gaio.p65 202 21/11/2010, 11:44


Breves considerações acerca da proteção da paisagem urbana no Brasil e na Itália 203

da velocidade em que as cidades vêm se transformando. Exemplo paradigmá-


tico desse processo de construção social é o que diz respeito à paisagem, pois
vai do desconhecimento quanto ao significado conceitual do termo à sua ca-
racterização como totalidade do território. Impõe-se aqui sublinhar que, por
diversos momentos, a paisagem é objeto de tutela autônoma e, em outros,
considerada parte integrante dos bens culturais, o que exige que os conceitos
sejam tratados de maneira conjunta.
Nas primeiras décadas do século passado, 22 o conceito de paisagem –
embora isso também se estendesse aos bens culturais – era circunscrito ao
“excepcional” valor estético do seu objeto. 23 Mas já a partir do fim da Segunda
Guerra Mundial são percebidas manifestações doutrinárias favoráveis à am-
pliação dos bens a serem protegidos, destacando-se os textos preliminares
que culminaram na “Convenção para a proteção de bens culturais em caso de
conflito armado” (1954). 24 Outro relevante ponto de inflexão conceitual é o
extenso relatório produzido por especialistas italianos em 1964, pois, ao abran-
ger na sua categorização todos os bens que se constituíam como testemunhas
materiais de valor de civilização, possibilitou a proteção de quaisquer bens
representativos do passado ou do presente. 25 Veja-se que a Carta de Veneza
(1964), embora tenha rompido com a obrigatoriedade do valor excepcional,
manteve o requisito temporal para a caracterização do valor cultural, 26 o que
impossibilitaria o tombamento do Parque do Flamengo antes mesmo da sua
inauguração oficial. 27

22 A referência a esse marco temporal não significa a exclusão da proteção de determinados


bens em épocas anteriores, cujas justificativas de tutela abrangiam razões estéticas, orna-
mentais, religiosas ou de demonstração de poder. Cf. Grisolia, 1952, p. 19 e ss.
23 Nesse sentido, ver as constituições do Brasil (art. 1o, caput, e §2o do DL 25/37), da Itália
(art. 1o, da Lei 1497/1939; e art. 1o, da Lei 1089/1939) e da França (Lei de 02 de maio de
1930). Cf. Desideri, 2009, p. 302; e Cecchetti, 2006, p. 224.
24 Dentre outras questões, destacam-se: a não distinção temporal dos bens a serem prote-
gidos; a ampliação dos bens; a distinção entre móveis e imóveis; e a abolição do vínculo
de titularidade dominial como critério justificativo de um tratamento diverso. Cf. Grisolia,
1952, p. 143-154.
25 Cf. Commissione D’Indagine Per La Tutela E La Valorizzazione Del Patrimonio Storico,
Archeologico, Artistico, E Del Paesaggio, 1966, p. 143; e Giannini, 1976, p. 09-10.
26 Cf. art. 1o.
27 Para outros detalhes acerca do tombamento do Parque do Flamengo, cf. Castro, 2006.

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204 Daniel Gaio

Esse novo entendimento rompe com o caráter aristocrático da concepção


de paisagem, ao permitir que quaisquer bens, inclusive os produzidos pela
cultura popular, possam ser considerados representativos. 28 De acordo com
essa compreensão, os bens a serem protegidos não podem estar dissociados
dos valores e referências culturais existentes em dada comunidade – 29 como
se verifica, no município de Porto Alegre, na reivindicação do reconhecimento
de uma “caixa d’água” sem qualquer característica arquitetônica especial como
bem cultural, 30 ou na rejeição, por meio de uma consulta pública, da instalação
de empreendimentos imobiliários que descaracterizavam a paisagem da orla
do Guaíba. 31
Esses exemplos estão em consonância com o conceito constitucional de
patrimônio cultural, que abrange bens de natureza imaterial e material porta-
dores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira. 32 Idêntica concepção possui, por exemplo,
a legislação italiana vigente, ao incluir, dentre outros bens, os que constituem
testemunho dos valores da civilização – no caso dos bens culturais – e os que
expressam valores históricos, culturais, naturais, morfológicos e estéticos do
território – em relação aos bens paisagísticos. 33
Por outro lado, é necessário assinalar que o caráter amplo dessas defi-
nições não significa conferir dignidade constitucional a todas as obras huma-
nas – que, em sentido antropológico, podem ser chamadas de cultura –, mas
somente àquelas que são representativas, caracterizadoras de uma referência

28 Cf. Ainis, 1991, p. 90-91.


29 Cf. Boscolo, 2009, p. 61.
30 Cf. Guimarães, 2000, p. 305.
31 Cf. Folha de São Paulo, Caderno Cotidiano, 24 ago. 2009. Para a defesa de que os pontos
de vista da população sejam considerados quando da elaboração de políticas urbanas,
ver Arantes, 2004, p. 259.
32 Cf. art. 216, caput, CF. Anote-se que a Constituição Federal diferencia os bens culturais
históricos dos paisagísticos, englobando-os de maneira abrangente como “patrimônio
cultural”. Entretanto, essa denominação não é repetida pelo art. 24, VII, CF, que se refere
a “patrimônio cultural” e a “patrimônio paisagístico”. De modo ainda diferente, o art. 23,
III, CF, trata das “paisagens notáveis”. Cf. Silva, 2001, p. 100. Veja-se que na abordagem
legislativa atual da Itália (Cf. art. 2o, no 01 a 03, do DL 42/2004) há uma coincidência
com a configuração dada pelo art. 216 da Constituição brasileira.
33 Cf. art. 131, no 01 e 02, do DL 42/2004, com redação dada pelo DL 63/2008; e art. 10, no
03, “a”, do DL 42/2004.

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Breves considerações acerca da proteção da paisagem urbana no Brasil e na Itália 205

cultural. 34 Contudo, em se tratando de paisagem, a tarefa de identificar o


cumprimento desses requisitos é extremamente complexa, a começar pela
própria indefinição quanto à sua conceituação, que tem variado no tempo
conforme a apropriação e o significado que lhe sejam dados.
No início do século XX, já era bastante difundida entre os geógrafos a
idéia de que a paisagem era intensamente modelada pela ação dos homens. 35
Atualmente é quase impossível afirmar a existência de espaços que não sofram
algum tipo de influência humana, 36 pois mesmo em áreas inacessíveis podem
ser verificados os efeitos decorrentes da poluição e das mudanças climáticas.
Em outras palavras, se toda a paisagem natural é de alguma maneira alterada
pelo homem, tudo pode ser considerado paisagem cultural. 37
Nesse sentido, a paisagem urbana abrange não apenas as belezas natu-
rais, mas tudo o que foi objeto de contínua modificação pelo homem, como
os monumentos e os demais edifícios, as praças e o traçado urbano. Mas além
dos elementos físico-territoriais, a paisagem urbana é igualmente composta
pelas tradições imateriais, pelos comportamentos e pelos modos de usar os
espaços físicos da cidade. 38
Interessante destacar que uma política global de ordenamento urbano
foi defendida pela Conferência Geral da Organização das Nações Unidas (1962),
quando esta recomendou que a salvaguarda das paisagens se estendesse a
todo o território, pois as paisagens urbanas são as mais ameaçadas, especial-
mente pelas obras de construção e pela especulação imobiliária. Atualmente
essa política faz parte da Convenção Européia da Paisagem (2000), de maneira
que os países signatários se comprometem a integrar a paisagem nas suas
políticas de ordenamento do território e de urbanismo, bem como em quais-
quer outras políticas com eventual impacto direto ou indireto na paisagem. 39
Assinale-se que a proteção da paisagem por intermédio do plano urba-
nístico não é estranha ao direito italiano, seja quando este procede à individua-

34 Cf. Silva, 2001, p. 35; e Souza Filho, 1997, p. 50.


35 Cf. Claval, 2007, p. 23-24.
36 Cf. Predieri, 1981, p. 506; e Giannini, 1976, p. 12.
37 Cf. Sauer, 2004, p. 59.
38 Cf. Canclini, 1994, p. 99; Predieri, 1969, p. 18-19. Embora a paisagem abranja a totalidade
do território, esses conceitos não são sinônimos. Cf. Santos, 2004, p. 103-107.
39 Cf. art. 5o, “d”.

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206 Daniel Gaio

lização de localidades específicas, 40 seja quando leva em consideração a pro-


teção ambiental no planejamento da totalidade do território. 41 A regulação
global da paisagem igualmente é prevista de maneira ainda mais nítida pela
legislação vigente, que dispõe que a normativa do uso do solo deve ser sub-
metida ao plano paisagístico ou, alternativamente, deve considerar os valores
paisagísticos nos planos urbanístico-territoriais. 42
Não obstante a codificação italiana ter mantido em seu texto algumas
áreas já salvaguardadas anteriormente, 43 a maior parte dos bens a serem pro-
tegidos são apenas enumerados de modo abstrato; 44 ou seja, a verificação do
seu alcance dependerá substancialmente do conteúdo elaborado em nível re-
gional.
Outro ponto relevante é a prioridade dada ao processo de individuali-
zação dos bens, transformando essas áreas em bens paisagísticos. O mesmo
não ocorre em relação aos demais espaços urbanos, as chamadas “paisagens
ordinárias”, 45 embora em sentido genérico a legislação preveja o uso consciente
do território e a salvaguarda das características paisagísticas dos vários con-
textos. 46
Nesse sentido, defende-se que a proteção da paisagem não se restrinja
aos bens paisagísticos, os quais, em virtude dessa atribuição, estão sujeitos a
um regime jurídico especial. Embora seja inviável estender análoga salvaguarda
a todo o território urbano, a preservação dos demais espaços “não protegidos”
é igualmente relevante para manter a identidade cultural entre as pessoas e
seu território. Desse modo, propõe-se que a política urbana considere a proteção
de valores paisagísticos presentes em todo o espaço urbano, tornando-se fun-
damental incorporá-la à definição do uso e ocupação do solo e ao processo de
licenciamento de empreendimentos que possam descaracterizar a paisagem.

40 Cf. art. 5o, Lei 1497/39; e o art. 7o, no 05, da Lei 1150/42, com redação dada pela Lei 1187/
68.
41 Cf. art. 80, do Decreto 616/77; Predieri, 1981, p. 514; e Cavallo, 1990, p. 410-411.
42 Cf. art. 135, no 01, do DL 42/2004, com redação dada pelo DL 63/2008.
43 Essas áreas, previstas pela Lei 431/85, foram mantidas pelo art. 135, no 01, do DL 42/
2004 (com redação dada pelo DL 63/2008), embora os planos paisagísticos possam mo-
dular a intensidade do vínculo. Cf. Desideri, 2009, p. 331.
44 Cf. Desideri, 2009, p. 332.
45 Cf. ibid., p. 333.
46 Cf. art. 155, no 02-bis, do DL 42/2004, com redação dada pelo DL 63/2008.

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Breves considerações acerca da proteção da paisagem urbana no Brasil e na Itália 207

Assinale-se que a proteção da paisagem “em sentido amplo” não signi-


fica engessar o desenvolvimento urbano – que, aliás, é resultado de uma relação
dialética entre transformação e conservação –, 47 mas contribuir para que a
política urbana se vincule progressivamente à melhoria dos padrões ambientais
nas cidades. 48 Isso equivale a dizer que, ao contrário dos bens culturais imo-
biliários – os quais pretende-se que sejam imutáveis, 49 pois as mudanças sig-
nificariam a sua descaracterização –, a paisagem está em contínuo processo
de mudança e, portanto, sendo reinterpretada pela comunidade de acordo
com os valores existentes em um dado momento histórico. 50 Diferentemente,
em um contexto em que a paisagem não é valorada, as transformações urbanas
resultam no aniquilamento de registros significativos para a memória social.51
No que se refere ao direito brasileiro, pode-se observar que, em geral, a
legislação federal não abarca a proteção da paisagem como elemento vincu-
lante do planejamento urbano. Isso porque, tendo o Estatuto da Cidade esta-
belecido que a salvaguarda do “patrimônio paisagístico” é uma das diretrizes
gerais da política urbana, 52 apenas no que se refere ao instrumento do Estudo
de Impacto de Vizinhança existe a obrigatoriedade de analisar os efeitos em
relação à paisagem. 53 Ademais, não há qualquer menção direta à proteção da
paisagem no capítulo referente ao plano diretor municipal, 54 embora este

47 Cavallo, 1990, p. 401.


48 Recorde-se que o bem-estar dos habitantes se constitui, conforme determinação consti-
tucional, como um dos objetivos da política de desenvolvimento urbano. Cf. art. 182,
caput, CF. Para uma análise acerca da funcionalidade ambiental de alguns instrumentos
de política urbana, cf. Silva, 2008, p. 306-323.
49 Isso não significa que o conceito de bem cultural possa ser ampliado de modo que “novas”
tipologias representativas sejam igualmente consideradas como objeto de proteção es-
pecial.
50 Cf. Predieri, 1981, p. 513-514; Boscolo, 2009, p. 61. Como observa Herman Benjamin
(2005, p. III), “a proteção da paisagem é igualmente um longo e inacabado processo
histórico”.
51 Cf. Cavallazzi e Oliveira, 2002, p. 296.
52 Cf. art. 2o, XII, da Lei 10257/01. Registre-se que o legislador conceitua “patrimônio
cultural” em sentido estrito, ao contrário do que dispõe a Constituição federal (Cf. art.
216).
53 Cf. art. 37, VII, da Lei 10257/01. Assinale-se que a efetividade do Impacto de Vizinhança
no contexto urbano depende ainda dos requisitos mínimos para a sua exigibilidade, con-
forme dispuser o plano diretor municipal.
54 Cf. art. 39 a 42, da Lei 10257/01.

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208 Daniel Gaio

seja definido pela Constituição Federal como o instrumento básico da política


de desenvolvimento urbano. 55
Mesmo que a concepção do Estatuto da Cidade não tenha privilegiado a
proteção da paisagem por parte do planejamento urbano, o legislador e a
administração pública municipal dispõem de competência constitucional pró-
pria para realizar tal tarefa. 56 Em relação aos demais entes federativos, mere-
cem destaque: as áreas de preservação permanente do Código Florestal, 57 que
se assemelham aos espaços protegidos diretamente pela Lei previstos no di-
reito italiano; 58 e o sistema de proteção paisagística do litoral, instituído de
maneira inovadora pelo estado do Paraná no início da década de 1980, que
consistiu na delimitação de espaços protegidos – 59 paisagens notáveis como:
as áreas limítrofes à orla marítima, às baías, aos estuários e aos canais – e no
detalhamento do zoneamento urbano-ambiental, dando atenção às condições
de aproveitamento urbanístico e demais condicionantes ambientais. 60
Independentemente da competência dos demais entes federativos, o
regime constitucional atribui aos municípios um campo de atuação privilegia-
do para que intervenham na organização do espaço urbano. Nesse sentido,
assumir a proteção da paisagem como uma das finalidades da política urbana
significa aproximar o planejamento das aspirações comunitárias e ampliar a
qualidade de vida nas cidades. Contudo, alguns desafios ainda necessitam ser
enfrentados, como a seleção dos parâmetros para a valoração da paisagem –

55 Cf. art. 182, § 1o, CF.


56 Cf. art. 216, § 1o; art. 225, § 1o, IV; art. 182, § 1o; art. 24, VII; art. 23, III. Como exemplo
do exercício dessa competência legislativa, citem-se as experiências relacionadas à
vinculação da concessão da licença urbanística ao cumprimento de obrigações ambientais,
como a manutenção ou o reflorestamento de áreas verdes. Cf. Gaio, 2008, p. 357-363.
57 Cf. art. 1o, § 2o, II, da Lei 4771/65, acrescentado pela Medida Provisória 2166-67/2001.
58 Previstas originalmente pela Lei 431/85, foram mantidas pelo art. 135, no 01, do DL 42/
2004 (com redação dada pelo DL 63/2008).
59 Cf. Lei 7389/80. Atualmente a matéria se encontra regida pela Lei 12243/98.
60 Cf. o Dec. 2722/84. Assinale-se que o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná entendeu
que este Decreto não conflita com a legislação estadual posteriormente editada (Lei 12243/
98). Cf. TJPR. MS 096180400, I Grupo de Câmaras Cíveis. Ac. 3671. Unânime. Rel. Des.
Nério Spessato Ferreira. Julgado em 16 ago. 2001. Publicado em 17 set. 2001. Confir-
mando a validade da legislação estadual, ver: Superior Tribunal de Justiça. Ação Rescisória
756. 1ª Seção. Maioria. Rel. Min. Teori Albino Zavascki. Julgado em 27 fev. 2008. Publicado
em 14 abr. 2008.

Daniel Gaio.p65 208 21/11/2010, 11:44


Breves considerações acerca da proteção da paisagem urbana no Brasil e na Itália 209

tanto no momento de criação dos bens paisagísticos quanto na existência de


conflitos com outros valores – e a integração do quesito “paisagem” à estrutura
do licenciamento urbanístico. 61

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61 Cf. Desideri, 2009, p. 327 e 330-333.

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diritto dell’ambiente. Rivista Giuridica dell’Ambiente, Milano, n. 2, p. 221-236,
1999.

RESUMO

O intenso crescimento urbano ocorrido nas últimas décadas tem suscitado


um amplo debate sobre o modelo de planejamento a ser adotado para garantir
um equilíbrio ambiental nas cidades. Ao mesmo tempo, ganha destaque a
proteção da paisagem como referência concreta de qualidade de vida e de
preservação dos valores de uma comunidade. A partir desse contexto, o pre-
sente texto aborda a necessidade de uma concepção unitária de meio ambiente
para, em seguida, demonstrar a possibilidade e a importância de integrar a
proteção da paisagem na política de desenvolvimento urbano.
Palavras-chave: paisagem, planejamento, urbano, ambiente, Itália.

ABSTRACT

The intense urban growth which has happened during the last decades has
raised a debate about the planning model to be adopted in order to secure an
environmental balance in the cities. At the same time, the protection of the
landscape as a concrete reference of the quality of life and the preservation of
a community’s values has obtained prominence. From this context, the cur-
rent text approaches the need of a unitary conception of the environment and
then demonstrates the possibility and importance of integrating the landscape
protection into the urban development policy.
Keywords: landscape, planning, urban, environment, Italy.

Daniel Gaio.p65 212 21/11/2010, 11:44


O processo decisório de implantação de
projetos hidrelétricos no Brasil. Uma análise
crítica à luz do estado de direito ambiental *

Madalena Junqueira Ayres

INTRODUÇÃO

A questão tratada no presente artigo, norteado por uma análise jurídica à luz
da legislação constitucional e infraconstitucional brasileira, diz respeito a
problemáticas ambientais vividas no processo decisório para a implantação
de usinas hidrelétricas no Brasil, no âmbito tanto do planejamento energético
quanto do licenciamento ambiental. O objetivo do presente trabalho é discu-
tir algumas das controvérsias ambientais existentes nessas fases e demons-
trar como o processo de licenciamento está sobrecarregado por questões
relevantes, como a da participação pública na concepção do projeto de hidre-
létricas, questões estas que deveriam estar sendo observadas, sob o ponto de
vista socioambiental, desde o enfoque do planejamento energético.

* O presente artigo é oriundo de pesquisa consolidada na Dissertação de Mestrado apre-


sentada ao Programa de Pós-Graduação em Teoria do Estado e Direito Constitucional da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção
do título de Mestre em Direito, já defendida e aprovada em abril de 2009. Orientadora:
Prof.ª Rosângela Lunardelli Cavallazzi.

Paisagem urbana e direito à cidade , Rio de Janeiro, 2010. p. 213-241. Coleção Direito e Urbanismo

Madalena Ayres.p65 213 22/11/2010, 00:11


214 Madalena Junqueira Ayres

Ora, o uso da energia é essencial para a satisfação das necessidades


humanas. Em decorrência disso, o aumento da produção energética nas socie-
dades contemporâneas de economia de mercado configura uma realidade que
teve origem na Revolução Industrial, momento em que o capitalismo industrial
se apoiou no uso do carvão mineral e na máquina a vapor. 1 2

Atualmente, diante da crescente demanda por aumento da produção


energética – para atender aos consumidores individuais e ao consumo gerado
pela indústria e pela economia –, a doutrina especializada discute as alternati-
vas energéticas necessárias para amparar mercados de produção e de consumo
em constante expansão. No Brasil, a expansão energética se apóia no modelo
que ressalta o predomínio da hidroeletricidade como matriz energética do
país. Conforme dados oficiais, 3 mais de 73% da energia elétrica brasileira é
gerada em grandes usinas hidrelétricas.
No entanto, a implantação de usinas hidrelétricas, seja no Brasil ou em
outras partes do mundo, 4 gera enormes custos socioambientais, os quais nem

1 Cf. La Rovere, 2001, p. 68-69.


2 Durante o período entre o fim da Segunda Guerra Mundial e início da chamada Guerra
Fria, o modelo de produção do mundo ocidental industrial se estabelece. O consumo de
energia alcança patamares altíssimos, tendo, como protagonistas, o petróleo e a energia
nuclear. Cf. Leroy, 2007, p. 9.
3 Segundo dados da ANEEL, o Brasil possui uma capacidade de geração de hidroeletricidade
igual a 73,41% do total produzido dentre os empreendimentos energéticos em operação
atualmente. Cf. <http://www.aneel.gov.br>. Acesso em 31.01.2009.
4 A Comissão Mundial de Barragens – comissão independente instituída em 1997, sobre-
tudo com o intuito de examinar a eficácia da construção de grandes barragens e estudar
alternativas para o desenvolvimento de recursos hídricos e energéticos – produziu relatório
cujo sumário afirma: “Os cinco países onde mais se construíram barragens são respon-
sáveis por mais de três quartos de todas as grandes barragens em todo o mundo [...],
sendo que cerca de dois terços de todas as grandes barragens do mundo estão localizadas
em países em desenvolvimento. A energia hidrelétrica é responsável por mais de 90% da
produção total de eletricidade em 24 países, entre eles o Brasil e a Noruega. Metade das
grandes barragens do mundo foram construídas exclusivamente para irrigação e estima-
se que as barragens contribuam com 12% a 16% da produção mundial de alimentos.
Além disso, em pelo menos 75 países, grandes barragens foram construídas para controlar
inundações e em muitas nações barragens continuam como os maiores projetos indivi-
duais em termos de investimento.” (p. 12) Os cinco países referidos são: China, com 46%
das barragens construídas no mundo; Estados Unidos, com 14%; Índia, com 9%; Japão,
com 6% e Espanha, com 3%. Relatório disponível em: <http://www.dams.org//docs/
overview/cmb_sumario.pdf.>. Acesso em: 29.09.2008.

Madalena Ayres.p65 214 22/11/2010, 00:11


O processo decisório de implantação de projetos hidrelétricos no Brasil. 215
Uma análise crítica à luz do estado de direito ambiental

sempre são contabilizados ou, na linguagem econômica, devidamente inter-


nalizados.
Nesse sentido, estudos relevantes recentes 5 explicitam a reorganização
do espaço público pelo privado, com alterações substanciais das relações (so-
ciais, ambientais, políticas e culturais) por ocasião da implantação de usinas
hidrelétricas, em razão de interesses econômicos hegemônicos. A sociedade
local vê-se obrigada, invariavelmente, a aceitar a implantação de tal empreen-
dimento, sem chance de compreender a íntegra de sua execução. Mesmo diante
de tais constatações, o modelo hidrelétrico continua sendo priorizado na política
energética brasileira, conforme demonstram os números supramencionados.
Além das inúmeras contradições e conflitos de natureza econômica,
política, ambiental, social e também urbana que, geralmente, envolvem a im-
plantação de uma hidrelétrica, há que se ressaltar a diversidade das propostas
sobre a apropriação dos recursos naturais existentes. Sob a rubrica do termo
amplo e genérico desenvolvimento sustentável, 6 há tanto discursos e práticas
realmente preocupados com a temática ambiental, como, no sentido oposto,
tendentes a priorizar o chamado crescimento econômico 7 a qualquer custo.

5 Nesse sentido, recorremos a Vainer, 2007; Vainer, 2004; Vainer, 1990; Rothman, 2002;
Rezende, 2007; Zhouri, 2006; Gonçalves, 2005; e Rothman, 1993.
6 Para um estudo aprofundado sobre o tema no cenário internacional, com a apresentação
das várias vertentes econômicas, e para explicar a noção de desenvolvimento sustentável,
cf. Veiga, 2006.
7 Neste ponto, vale lembrar a sempre atual lição de Celso Furtado, que distingue cresci-
mento econômico de desenvolvimento econômico. Para o referido autor, “[o] crescimento
econômico, tal qual o conhecemos, vem se fundando na preservação dos privilégios das
elites que satisfazem seu afã de modernização; já o desenvolvimento se caracteriza pelo
seu projeto social subjacente. Dispor de recursos para investir está longe de ser condição
suficiente para preparar um melhor futuro para a massa da população. Mas quando o
projeto social prioriza a efetiva melhoria das condições de vida dessa população, o cres-
cimento se metamorfoseia em desenvolvimento.” (Furtado, 2004, p. 484). Sobre outro
prisma, cf. Coutinho, 2007, p. 22; in verbis: “A aceleração do crescimento econômico no
processo de acumulação capitalista tem como suporte essencial a superexploração da
força de trabalho, que não se restringe apenas ao local de trabalho, como a fábrica, por
exemplo, mas se projeta em todo o espaço urbano. Entretanto, da perspectiva do capital,
a abundância de mão-de-obra significa salários sempre baixos e elevadas taxas de mais-
valia e, como observa Campanário: ‘Politicamente, esta situação não se tem traduzido
em poder de apropriação, por parte das classes populares, das condições gerais de repro-
dução, isto é, os equipamentos coletivos e seus ‘efeitos úteis’. Assim, a reprodução passa
também por mecanismos ‘informais’ caracterizados pela autodestruição, favelamento e
outras formas de reprodução doméstica de valores de uso.’” (Campanário, 1984, p. 14)

Madalena Ayres.p65 215 22/11/2010, 00:11


216 Madalena Junqueira Ayres

Lamentavelmente, a considerar a atual conjuntura de nosso ordenamento


jurídico, há discursos tidos como inaceitáveis presentes em determinados
setores da administração pública, os quais se encaminham no sentido de que
a preocupação com a preservação do meio ambiente ecologicamente equili-
brado vem impondo obstáculos ao desenvolvimento do país, conceito este
que, na maior parte das vezes, é traduzido por crescimento econômico. 8
Realizada esta breve introdução, é importante ressaltar que, para a im-
plantação de tais empreendimentos, passa-se pelo planejamento energético,
dividido basicamente em três etapas, a saber: estudos de inventário hidrelé-
trico, estudos de viabilidade e execução do projeto.
O licenciamento ambiental, por seu turno, é a ultima etapa da execução
do projeto, sendo certo que – como será visto mais adiante – inúmeras questões
de extrema relevância, por não terem sido tratadas a contento em fases ante-
riores, geram diversos conflitos durante o processo de licenciamento.

PLANEJAMENTO ENERGÉTICO

O tema do planejamento energético no Brasil é bastante incipiente e ainda


tem muito a se desenvolver, sendo usualmente pautado por políticas energé-
ticas motivadas por circunstâncias momentâneas ou por influências externas,
sem observar uma visão integrada e voltada para a sustentabilidade socioam-
biental. A crise energética ocorrida em 2001 é um dos exemplos mais recentes
de como o Brasil encara a questão do planejamento energético.
Neste trabalho, a intenção é de demonstrar, do ponto de vista normativo
e de eficácia da norma, alguns problemas relativos ao tratamento da questão
ambiental no âmbito do planejamento energético.

8 Na discussão sobre o licenciamento ambiental da hidrelétrica do Rio Madeira, por exemplo,


houve uma divisão de opiniões dentro do Governo Federal, tendo o Presidente Lula ques-
tionado a demora na concessão de licença ambiental pelo IBAMA por entender que as
hidrelétricas seriam fundamentais para o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)
e para o aumento da produção energética do país. Na época, realizou fortes exigências ao
Ministério do Meio Ambiente, então presidido pela Ministra Marina Silva, tendo afirmado
expressamente, em tom irritado: “Agora não pode por causa do bagre, jogaram o bagre
no colo do Presidente. O que eu tenho com isso? Tem que ter uma solução”. Tais fatos
foram amplamente noticiados na imprensa nacional, conforme reportagem de Luciana
Nunes Leal no jornal Estado de São Paulo, datada de 20 de abril de 2007, disponível em:
<http://www.estado.com.br/editorias/2007/04/20/pol-1.93.11.20070420.1.1.xml>. Aces-
so em: 06.01.2008.

Madalena Ayres.p65 216 22/11/2010, 00:11


O processo decisório de implantação de projetos hidrelétricos no Brasil. 217
Uma análise crítica à luz do estado de direito ambiental

Apesar de se notar algum avanço no âmbito mais específico da avaliação


dos projetos, com o aumento da introdução de métodos e modelos multi- e
interdisciplinares, que permitem uma avaliação mais apropriada da complexi-
dade da questão ambiental, 9 há, ainda, em todo o processo de planejamento,
uma grande predominância do entendimento voltado para a supervalorização
da análise do ponto de vista técnico-econômico.
Pontuaremos a seguir alguns aspectos da legislação que reforçam a afir-
mação supra, dificultando a adoção de uma visão mais integrada e interdisci-
plinar que permita a incorporação não compartimentada da questão ambiental
no planejamento energético.
Formalmente, o processo de planejamento e monitoramento da expan-
são da oferta de energia elétrica, alterado pelo novo modelo normativo do
setor elétrico,10 desde 2004, é de responsabilidade, respectivamente, da Em-
presa de Pesquisa Energética (EPE) e do Comitê de Monitoramento do Setor
Elétrico (CMSE), com o apoio da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL),
responsável pela regulação e fiscalização das atividades dos concessionários.
Embora haja uma orientação oficial no sentido de que seja incorporada,
nessa fase do processo decisório, a dimensão socioambiental, conforme sugere,
inclusive, o Manual de Inventário Hidrelétrico Eletrobrás (2007), o fato é que,
efetivamente, como pretendemos demonstrar ao fim deste trabalho, tal variante
não é considerada na tomada de decisões sobre a expansão da produção hi-
droenergética.
É necessário, no entanto, ter sempre em mente a premissa de que a
implantação de uma hidrelétrica é o produto de um conjunto múltiplo de
decisões, 11 coordenado e dirigido pelo setor elétrico, mas com a participação

9 Cf. Reis e Cunha, 2006, p. 181.


10 Em dezembro de 2003, foram editadas duas medidas provisórias (MP n. 144 e MP n. 145)
que estabeleciam a base legal para a implantação do novo modelo normativo, as quais introdu-
ziam importantes alterações no ordenamento institucional vigente estabeleciam que as de-
cisões acerca do planejamento energético estariam centralizadas no âmbito governamental.
Mantiveram, todavia, a concepção de livre concorrência nos mercados de geração e
comercialização, bem como de regulação nos segmentos de transmissão e distribuição. Em
março de 2004, após inúmeras discussões e críticas aos textos das medidas provisórias
acima mencionadas junto à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal (e de diversas emendas
realizadas ao texto original), foram sancionadas as leis n. 10.847 e 10.848. A primeira auto-
rizou a criação da EPE e a segunda definiu as regras de comercialização de energia elétrica.
11 Cf. Falcão, 1991, p. 37.

Madalena Ayres.p65 217 22/11/2010, 00:11


218 Madalena Junqueira Ayres

ativa dos demais setores – o ambiental e o hídrico, especialmente – e da


sociedade.

Estudos de inventário hidrelétrico 12

Os estudos de inventário hidrelétrico são conceituados pela Resolução 393/


98 13 da ANEEL como etapa de estudos de engenharia em que se define o
potencial hidrelétrico de uma bacia hidrográfica, mediante o estudo de divisão
de quedas e a definição prévia do aproveitamento ótimo de que tratam os §§ 2º
e 3º do art. 5º da Lei n. 9.074, de 7 de julho de 1995.
Nessa etapa, procede-se a pesquisas e sondagens para a identificação
dos aproveitamentos da bacia hidrográfica e para a seleção dos mais viáveis.
A realização dos estudos de inventário é, portanto, de fundamental importância
para a definição do chamado “aproveitamento ótimo”. É a fase em que o setor
elétrico deve buscar uma atuação compartilhada com os setores hídrico e
ambiental, a fim de que o inventário final não tome uma dimensão unilateral,
respeitando, assim, os diversos segmentos envolvidos na questão.
A análise do chamado “aproveitamento ótimo” assume um papel im-
portante nessa etapa. Sua a definição é regulada pela Lei n. 9.074, de 7 de
julho de 1995, e pelo Decreto n. 2.003, de 10 de setembro de 1996 (artigo 3º,
§3º). A referida lei estabelece, entre outros itens, que o aproveitamento de
potenciais hídricos será objeto de concessão. Nas licitações, cabe ao poder
concedente especificar as finalidades do aproveitamento (ou da implantação)
da usina. Assim, nenhuma dessas atividades pode ser licitada sem a definição
de “aproveitamento ótimo”, conceituado pela lei como “todo potencial definido
em sua concepção global pelo melhor eixo do barramento, arranjo físico geral,
níveis d’água operativos, reservatório e potência, integrante da alternativa
escolhida para divisão de quedas de uma bacia hidrográfica.” 14

12 Antes dessa etapa, são realizados estudos prévios para estimativa do potencial hidrelé-
trico, em que se procede à analise preliminar das características da bacia hidrográfica,
especialmente quanto aos aspectos topográficos, hidrológicos, geológicos e ambientais,
no sentido de verificar sua vocação para geração de energia elétrica. Tal análise baseia-se
em dados já disponíveis em escritório, permite uma primeira avaliação do potencial e
realiza estimativa de custo do aproveitamento da bacia hidrográfica, definindo as priori-
dades para a etapa posterior dos inventários hidrelétricos.
13 ANEEL. Resolução 393/98. Art. 1º.
14 Lei Federal n. 9074/95. Art. 5º, parágrafo 3º.

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O processo decisório de implantação de projetos hidrelétricos no Brasil. 219
Uma análise crítica à luz do estado de direito ambiental

Como se pode observar, a noção de aproveitamento ótimo, tópico central


no inventário hidrelétrico, de acordo com a definição legal acima referida,
leva em consideração apenas o pressuposto da eficiência energética. Assim,
não abrange a eficiência social e ambiental. 15
O critério legal, pode-se assim dizer, encontra-se em dissonância com
os ditames inerentes à tutela ambiental previstos na Carta Magna de 1988
(art. 225 da CF/88), 16 já que a escolha do melhor eixo de barramento, sob a
ótica do aproveitamento ótimo, não leva em consideração o dever de preser-
vação ambiental imposto ao poder público e à coletividade (art. 225, caput da
CF/88); não tem como preocupação a preservação e a restauração dos processos
ecológicos essenciais, 17 a manutenção da diversidade 18 e a proteção da flora
e fauna; 19 e, especialmente, sua escolha não é embasada em um estudo prévio
de impacto ambiental 20 (parágrafo único, inciso IV), já que este somente é
realizado posteriormente, na fase de licenciamento ambiental, quando da
análise do projeto de empreendimento hidrelétrico apresentado por determi-
nada empresa para a concessão de licença prévia.
Contudo, embora haja a previsão do art. 13 da Resolução da ANEEL,
segundo a qual deverá ser formalizada consulta aos órgãos ambientais (para
definição dos estudos relativos aos aspectos do ambiente) e aos órgãos res-
ponsáveis pela gestão dos recursos hídricos, nos níveis estadual e federal,
para que haja a “melhor definição do aproveitamento ótimo e a garantia do
uso múltiplo dos recursos hídricos”, tal visão continua sendo compartimentada,

15 Vainer, 2007, p. 5.
16 “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”
17 “Art. 225 (omissis) § 1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder
Público: I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo
ecológico das espécies e ecossistemas.”
18 “Art. 225 (omissis). § 1º [...] II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio
genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material
genético.”
19 “Art. 225 (omissis). § 1º [...] VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as
práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies
ou submetam os animais a crueldade.”
20 “Art. 225 (omissis). § 1º [...] IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade
potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio
de impacto ambiental, a que se dará publicidade.”

Madalena Ayres.p65 219 22/11/2010, 00:11


220 Madalena Junqueira Ayres

já que a identificação do aproveitamento ótimo já foi realizada, utilizando-se


meramente critérios de eficácia econômico-energética.
No entanto, uma questão surge: mesmo quando o Estudo de Inventário
Hidrelétrico é elaborado com observância de todas as dimensões socioambien-
tais (o que, na maioria das vezes não ocorre), este é remetido apenas para a
ANEEL, para análise e aprovação, sem o prévio conhecimento do órgão ambien-
tal envolvido. O órgão licenciador somente é informado oficialmente de algum
aproveitamento quando recebe, após um longo período de tempo, o pedido
de Licença Prévia – LP. 21
Por outro lado, em relação ao necessário dialogo entre o setor energético
e o setor hídrico, a legislação de gestão dos recursos hídricos avançou e deu
fundamento jurídico para que os demais setores usuários da água e os estados
federados participassem da tomada de decisões pelo setor elétrico e, até mesmo,
para que pudessem questionar a regularidade das decisões previamente toma-
das por aquele e pela administração pública federal, em razão do princípio
dos usos múltiplos da água.
Nesse sentido, dispõe a Lei n. 9433/97 que estão sujeitos à outorga pelo
poder público, para uso de recursos hídricos, os aproveitamentos dos poten-
ciais hidrelétricos. 22 A referida outorga e a utilização de recursos hídricos,
para fins de geração de energia elétrica, estará subordinada ao Plano Nacional
de Recursos Hídricos, obedecida a disciplina da legislação setorial específica. 23
Estabelece, ainda, que toda outorga estará condicionada às prioridades de
uso estabelecidas nos Planos de Recursos Hídricos. Deverá preservar, enfim,
seus múltiplos usos e respeitar a classe em que o corpo d’água estiver enquadra-
do e a manutenção de condições adequadas ao transporte aquaviário, quando
for conveniente. 24
Portanto, em princípio, a outorga para fins de aproveitamento hidráulico
somente pode ser concedida se estiver de acordo com as prioridades estabele-
cidas pelo Plano de Recursos Hídricos. Ademais, a Resolução nº 37, de 26 de
março de 2004, do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), estabelece
diretrizes para a outorga de tais recursos para a implantação de barragens em

21 Cf. Burian, 2008.


22 Lei Federal n. 9433/97. Art. 12, inciso IV.
23 Ibid. Art. 12, parágrafo 2º.
24 Ibid. Art. 13, caput e parágrafo único.

Madalena Ayres.p65 220 22/11/2010, 00:11


O processo decisório de implantação de projetos hidrelétricos no Brasil. 221
Uma análise crítica à luz do estado de direito ambiental

corpos d’água sob o domínio dos estados, do Distrito Federal ou da União.


Traz, ainda, os conceitos de “barragens” e “reservatório”, entre outros, decli-
nando os documentos e procedimentos necessários para a outorga de uso de
recursos hídricos para empreendimentos hidrelétricos, destacando que, dentre
os documentos, deverá o pedido ser instruído com a manifestação setorial,
quando necessária, sendo que a ausência desta não é obstáculo à continuidade
do processo. 25 Há previsão, ainda, de que – nos casos de alteração significativa
do regime do rio da quantidade ou qualidade do corpo hídrico – deverão ser
observadas também as diretrizes emanadas do respectivo comitê de bacia
hidrográfica. 26
Nesse ponto, é oportuna a análise de Paulo Affonso Leme Machado, 27
que condena a concessão de outorga sem a observância dos Planos de Recursos
Hídricos, o que ocorre com ligeira freqüência. Afirma, expressamente:

O setor elétrico obedece aos princípios, estratégias, diretrizes e concep-


ções da nova Lei de Política Nacional de Recursos Hídricos, ainda que
sua especificidade seja reconhecida. Na outorga para fins de geração de
energia elétrica não se aplicará legislação de exceção, não se cogitando
nem de favoritismo, nem de juízo preconcebido [...] Assim, a utilização
dos potenciais hidráulicos para fins de geração de energia elétrica, ao
aplicar a disciplina setorial específica, não pode ignorar e contrariar os
Planos Estaduais de Recursos Hídricos e os Planos de Recursos Hídricos
das bacias hidrográficas, mesmo não havendo Plano Nacional de Recursos
Hídricos.

Estudos de viabilidade dos aproveitamentos hidrelétricos

A segunda etapa é relativa aos estudos de viabilidade de cada aproveitamento


hidrelétrico. Compreende o aprofundamento do conhecimento sobre as con-
dições físicas, ambientais e socioeconômicas da área onde se situa o aprovei-
tamento, possibilitando a elaboração dos estudos de viabilidade técnica,

25 Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Resolução n. 37/2004. Art. 4º, caput e parágrafos
1º e 2º.
26 Ibid. Art. 4º, parágrafo 4º.
27 Machado, 2000, p. 447.

Madalena Ayres.p65 221 22/11/2010, 00:11


222 Madalena Junqueira Ayres

socioambiental e econômica. Nessa etapa são realizadas investigações de campo


no local, para dimensionamento do aproveitamento, do reservatório, da sua
área de influência e das obras de infraestrutura local e regional necessárias.
Com a presença de equipes técnicas na região do projeto, são ocasionados os
primeiros movimentos e ações dos segmentos representativos das comunida-
des, associados aos mais diversos interesses despertados pela futura usina
hidrelétrica. Com base nesses estudos, são preparados o Estudo de Impacto
Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) de um empreendi-
mento, para fins de obtenção da Licença Prévia (LP) junto aos órgãos ambientais.
A Resolução n. 395/98 da ANEEL objetiva, portanto, estabelecer os proce-
dimentos gerais para: (1) registro, seleção e aprovação de estudos de viabilidade
e de projeto básico de empreendimentos de geração hidrelétrica; (2) autorização
de exploração de potenciais hidráulicos até 30.000 kW; e (3) emissão de decla-
ração de utilidade pública, para fins de desapropriação (ou instituição de ser-
vidão administrativa) das áreas necessárias à implantação de instalações de
geração de energia elétrica.
Após a conclusão, os estudos de viabilidade técnica e os estudos socioam-
bientais são submetidos, respectivamente, à aprovação da EPE e do órgão am-
biental (IBAMA ou órgão ambiental estadual, conforme o caso). A aprovação
desses estudos constitui a declaração da viabilidade técnica e socioambiental
do projeto que, assim, estará apto a integrar o programa de licitações.
Nesse modelo normativo a EPE é responsável pelo cumprimento das
exigências nas duas etapas anteriores e, também, pela obtenção da licença
prévia ambiental (LP), ficando as demais – ou seja, a Licença de Instalação (LI)
e a Licença de Operação (LO) – sob responsabilidade do futuro concessionário.
Uma crítica merece ser realizada quanto à alteração efetuada na legisla-
ção, neste particular, para atender aos reclamos dos empreendedores. Anterior-
mente, segundo a sistemática regular do licenciamento ambiental, a licença
prévia somente poderia ser obtida após o término do processo de licitação e o
conhecimento do concessionário responsável pela exploração do potencial
hidráulico. Porém, o novo modelo instituído para o setor hidrelétrico acabou
por se curvar aos argumentos de seus defensores, que protestavam no sentido
de que nenhuma empresa privada se interessaria em participar da licitação de
um aproveitamento sem saber se – e em que condições – seria obtida a licença
ambiental. Essa inversão do processo de licenciamento ambiental, obviamente,
gera prejuízos à análise socioambiental do projeto, pois a empresa responsável

Madalena Ayres.p65 222 22/11/2010, 00:11


O processo decisório de implantação de projetos hidrelétricos no Brasil. 223
Uma análise crítica à luz do estado de direito ambiental

pela elaboração do EIA/RIMA e pela solicitação da licença prévia não necessa-


riamente é a vencedora da licitação. 28
De fato, pode ocorrer que o empreendedor, após a licença prévia, queira
modificar o projeto original ou discorde de determinados critérios e premissas
adotados no EIA/RIMA apresentado. Isso, por si só, já é um complicador des-
necessário a um processo que já é por demais complexo. Tal situação é fonte
de inúmeros problemas no processo de licenciamento ambiental. Recen-
temente, no caso do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, o projeto objeto
de licença prévia foi, posteriormente, alterado pelo Consórcio Energia Susten-
tável do Brasil SA – Enersus, vencedor da licitação, tendo sido deslocada a
localização do empreendimento originalmente prevista nos Estudos de Viabi-
lidade Ambiental e no Estudo de Impacto Ambiental, sem a realização prévia
de novos estudos ambientais. 29
Ademais, outra incoerência é que, na prática, o empreendedor obtém a
concessão sem ter assumido qualquer tipo de compromisso com as populações
atingidas ou com o órgão ambiental e, ainda, sem ter participado das audiências
públicas, momento singular em que se formaliza a participação pública no
processo de licenciamento ambiental.
A mera inclusão dos termos da licença ambiental, com eventuais condi-
cionantes, no edital de licitação, em nosso entender, apenas explicita uma
assunção formal de compromisso. Não traduz de forma legítima a preocupação
do vencedor da licitação em observar seus termos, já que este não participou
da etapa anterior, de extrema relevância para o processo de licenciamento
ambiental.

28 Cf. Vainer, 2007.


29 A mudança na localização do empreendimento, realizada posteriormente à concessão
da licença prévia e sem a realização de novos estudos ambientais para tanto, motivou a
propositura de ações judiciais, como a ação civil pública movida pelos ministérios públi-
cos Federal e Estadual em litisconsórcio (Processo n. 2008.41.00.005474-0), em trâmite
perante a 3ª Vara Federal de Rondônia; a ação popular movida por Ivan Marcelo Neves,
secretário executivo do FBMOS – Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais (pro-
cesso n. 2008.41.00.007290-0) –, com pedido de tutela antecipada, junto à 3ª Vara Federal
da seção judiciária de Rondônia, em face do IBAMA, ANA e Consórcio ENERSUS – Energia
Sustentável do Brasil S/A.

Madalena Ayres.p65 223 22/11/2010, 00:11


224 Madalena Junqueira Ayres

Etapa de implantação do projeto

A terceira etapa – de implantação do empreendimento – é de responsabilidade


do vencedor da licitação, a quem foi outorgada a concessão para a construção
e operação do empreendimento. Ela é fiscalizada pela ANEEL e monitorada
pelo Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE). Verificam-se, com o
efetivo início das obras civis, fatores que trazem outras conseqüências para a
região do empreendimento, como a vinda de contingente populacional inte-
ressado nas oportunidades de trabalho oferecidas pela construção da usina.
Nesse particular, cumpre tratar do processo de licitação necessário para
a concessão de empreendimento dessa natureza, regido pela Lei n. 8.666/93,
que institui normas para a realização de licitações e para a assinatura de
contratos de concessão de serviços públicos, o que inclui a outorga de conces-
sões de aproveitamentos hidrelétricos.
Assim, em conformidade com os artigos 6º e 12º da referida Lei, deverão
ser realizados e aprovados estudos de impacto ambiental como requisito para
análise dos projetos básicos e executivos de obras e serviços. Dispõe, ainda, o
artigo 5º, que o poder concedente deve justificar a conveniência da outorga
de concessão, além de caracterizar seu objeto, área e prazo, previamente à
publicação do edital de licitação. A motivação, no caso da concessão de apro-
veitamento de potencial hidráulico, advirá das análises que culminam com a
elaboração do Plano Decenal de Geração – PDG. Já a caracterização do empreen-
dimento se dará após a aprovação dos estudos de viabilidade, etapa em que
se inicia a análise individualizada dos aproveitamentos.
A lei de licitações exige a apresentação de Projeto Básico 30 e Executivo. 31
Por sua vez, tanto no projeto básico quanto no executivo certos requisitos
devem ser considerados: a) a segurança, a funcionalidade e a adequação ao

30 Segundo o art. 6º, inciso IX, da Lei de Licitações, o Projeto Básico é o “conjunto de ele-
mentos necessários e suficientes, com nível de precisão adequado, para caracterizar a
obra ou serviço, ou complexo de obras ou serviços objeto da licitação, elaborado com
base nas indicações dos estudos técnicos preliminares, que assegurem a viabilidade técnica
e o adequado tratamento do impacto ambiental do empreendimento, e que possibilite a
avaliação do custo da obra e a definição dos métodos e do prazo de execução.”
31 Este é definido pelo art. 6º, inciso X, como o conjunto dos elementos necessários à exe-
cução completa da obra, de acordo com as normas pertinentes da Associação Brasileira
de Normas Técnicas – ABNT.

Madalena Ayres.p65 224 22/11/2010, 00:11


O processo decisório de implantação de projetos hidrelétricos no Brasil. 225
Uma análise crítica à luz do estado de direito ambiental

interesse público, bem como a economia na execução, conservação e operação;


b) a possibilidade de emprego de mão-de-obra, de materiais, de tecnologia e
de matérias-primas existentes no local para execução, conservação e operação;
c) a facilidade na execução, conservação e operação, sem prejuízo da durabi-
lidade da obra ou do serviço; d) a adoção das normas técnicas, de saúde e de
segurança do trabalho adequadas; e e) a previsão de impactos ambientais.
Embora, no último item, a lei fale em “impactos ambientais”, há que se
considerar a noção mais ampliada de impacto ambiental, a fim de abranger os
aspectos sociais e econômicos do projeto em discussão. Isso inclui a avaliação
do impacto da obra sobre as atividades agrícolas e industriais, sobre o meio
urbano ou rural, sobre os usos potenciais dos recursos ambientais, sobre a
saúde pública e sobre a qualidade de vida em geral da população atingida. 32
Na referida etapa, são intensificadas as negociações com representantes
tanto das comunidades locais quanto das atingidas pelas barragens, especial-
mente em relação ao processo de remanejamento populacional (além de dis-
cussões sobre mitigação e compensação pelos impactos socioambientais
ocasionados pelo empreendimento), culminando com a celebração de acordos
para a implantação desses programas, detalhados no Projeto Básico Ambiental
(PBA). Ocorre que este documento, de importância fundamental no trato da
remoção das famílias do local onde será instalada a hidrelétrica, somente é
exigido na etapa de obtenção da Licença de Instalação (LI), ou seja, após a
licença prévia. Isso contribui para a demora e a instabilidade do processo,
sempre tumultuado, de remoção das populações atingidas e de pagamento
das indenizações, fazendo com que, invariavelmente, quando da operação da
hidrelétrica, a questão social ainda não tenha sido concluída.
Por seu turno, a Lei de Concessões (Lei n. 8987/95), no artigo 23, esta-
belece 15 cláusulas essenciais aos contratos de concessão – mas nenhuma
delas menciona impactos socioambientais. A única referência ao meio ambiente
vem ditada no artigo 29, inciso X, que inclui, entre as incumbências do poder
concedente, a de “estimular o aumento da qualidade, produtividade, preser-
vação do meio ambiente e conservação”. 33
O atual modelo normativo do setor elétrico não supriu a aludida omissão,
incluindo cláusulas de observância obrigatória, no que diz respeito aos aspectos

32 Cf. Mirra, 2002, p. 31-32.


33 Cf. Vainer, 2007.

Madalena Ayres.p65 225 22/11/2010, 00:11


226 Madalena Junqueira Ayres

socioambientais já tradicionalmente conhecidos na implantação de projetos


hidrelétricos, que diminuem, por exemplo, a margem de autonomia quanto à
negociação individual que ocorre entre a empresa e a população atingida,
principalmente no que concerne ao pagamento de indenizações e ao reassen-
tamento obrigatório.
A não-intervenção do poder público em questões como essas faz com
os interesses do empreendedor em diminuir os custos da produção de energia
sobreponham-se aos interesses da população afetada, que luta pela manutenção
de uma qualidade de vida digna. A equação é simples: a legislação prevê que
o poder público, como detentor do direito de uso do potencial hidrelétrico,
possa transferir para a iniciativa privada, por meio de concessão, tal direito
de exploração, porém não estabelece regras mínimas para a observância das
condições de vida e de moradia da população atingida pelo empreendimento.
Tal omissão, logicamente, contribui para o aumento da desigualdade e da
exclusão sociais.
Em virtude das irregularidades e contradições ocasionadas pelo novo
modelo normativo do setor elétrico, impõe-se a adoção de uma “agenda socioam-
biental” que

deverá contemplar questões herdadas da etapa anterior e questões de-


correntes do próprio processo de reestruturação.
Considerando as conseqüências que as decisões tomadas no âmbito do
setor elétrico têm no processo de estruturação do território, no desen-
volvimento regional, na minimização ou reiteração de desigualdades
regionais e sociais, bem como na gestão de recursos ambientais, hídricos
em primeiro lugar, é indispensável proceder a uma ampla e decisiva
democratização do processo de planejamento de longo, médio e curto
prazos do setor elétrico. 34

Assim, após a apresentação dos procedimentos que constituem a fase


inicial do planejamento energético, verifica-se que, embora existam algumas
referências na legislação setorial sobre a observância de aspectos socioambien-
tais, essas variantes ficam subdimensionadas quando da concepção e da im-
plantação dos projetos hidrelétricos. A dimensão econômico-energética se

34 Ibid., p. 12.

Madalena Ayres.p65 226 22/11/2010, 00:11


O processo decisório de implantação de projetos hidrelétricos no Brasil. 227
Uma análise crítica à luz do estado de direito ambiental

sobrepõe àquela e acaba ditando os rumos do processo decisório, até mesmo


pelo fato de que a lei incumbe ao setor energético a condução desse processo.
A articulação entre os diversos setores torna-se, enfim, difícil e passível
de entraves por envolver, em cada âmbito (energético, ambiental ou hídrico), o
cumprimento de uma série de regras e de cronogramas de naturezas complexas,
que dizem respeito a elementos técnicos (obras de engenharia e execução do
projeto), econômico-financeiros (financiamento) e socioambientais (licencia-
mento ambiental, remanejamento populacional) com perspectivas distintas.
Portanto, apesar dos significativos avanços da normativa na esfera am-
biental, ainda hoje se percebe que a primeira fase de planejamento, a cargo
dos órgãos integrantes do setor elétrico, não se coaduna com os ditames da
tutela ambiental assegurados pela Constituição Federal, no estabelecimento
do dever do poder público de defender e preservar o meio ambiente ecologi-
camente equilibrado (art. 225 da CF/88). O papel de condução do processo
gera, no mais das vezes, uma interferência indevida do setor energético na
análise da viabilidade ambiental, por meio de mecanismos de pressão, para
que as licenças ambientais sejam rapidamente concedidas.
As imperfeições acima identificadas, na legislação infraconstitucional
em vigor, e as distorções que ocorrem no processo decisório, sob o ponto de
vista socioambiental, acabam por contribuir para o aumento dos conflitos
inerentes à implantação de tais projetos hidrelétricos.

O PROCESSO DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL DE HIDRELÉTRICAS.


CRÍTICAS

No processo de licenciamento ambiental, observa-se que diversas questões,


como a discussão acerca da viabilidade ambiental do projeto, encontram-se
mal alocadas, já que dizem respeito, em realidade, ao campo do planejamento,
o que leva o referido processo a uma sobrecarga de controvérsias não dirimidas
na fase própria.
O licenciamento ambiental de empreendimentos do setor elétrico recebeu
disciplina específica através das resoluções CONAMA 01/86 e 06/87, além do
art. 225, parágrafo 1º, IV da Constituição Federal, da Lei n. 6938/81 e do
Decreto n. 99.274/90.
Após a crise energética ocorrida em 2001, foram estabelecidas novas
regras para licenciamento ambiental de empreendimentos que objetivavam

Madalena Ayres.p65 227 22/11/2010, 00:11


228 Madalena Junqueira Ayres

reforçar o setor elétrico brasileiro, a fim de permitir maior celeridade ao pro-


cesso de licenciamento. Isto posto, editaram-se a Medida Provisória 2198 e a
Resolução CONAMA 279/2001, e, a partir da vigência de tais atos normativos,
passam a existir dois sistemas de licenciamento: um “comum”, 35 não simpli-
ficado, em que devem ser obedecidas todas as formalidades do processo de
licenciamento previstas na Resolução CONAMA 06/87; e outro, “especial” 36
ou simplificado, para o licenciamento dos empreendimentos do setor elétrico
de impacto ambiental de pequeno porte ou de pequeno potencial de impacto
ambiental. Por intermédio deste último, admite-se a dispensa, por parte do
órgão ambiental, da realização de EIA/RIMA e da audiência pública; o EIA/
RIMA e a audiência pública são substituídos pelo Relatório Ambiental Simpli-
ficado (RAS) e pela Reunião Técnica Informativa, com prazo máximo de ses-
senta dias para a tramitação do processo.
Assim, de acordo com o disposto no art. 2º, VI, VII e XI da Resolução 01/
86, na hipótese de usinas hidrelétricas com potencial acima de 10 MW, o licen-
ciamento ambiental deverá ser precedido de EIA/RIMA, garantida a realização
de audiência pública.
Não obstante a relevância do licenciamento ambiental para a concreti-
zação da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6938/81), é forçoso reco-
nhecer a existência de falhas e contradições no uso de tal instrumental para a
implantação de projetos hidrelétricos no Brasil.
Estudos específicos, como o de Carlos B. Vainer,37 no âmbito da sociologia
do ambiente, criticam o modelo de licenciamento ambiental adotado até os
dias de hoje, afirmando que os relatórios de impacto ambiental não são capazes
de prever o surgimento de movimentos de resistência – as lutas e a organização
das populações atingidas pelas barragens. Haveria um ponto cego no instru-
mental teórico-conceitual que ambienta ou naturaliza as populações, tornando-
as sujeitos incapazes de se conceber como portadores de direitos e interesses
e, em decorrência, de se constituírem atores em condições de atuar de forma
autônoma “na transformação do ambiente de implantação das barragens em
arena de conflito social e político.” 38 As populações atingidas, “naturalizadas,

35 Mirra, 2008, p. 154.


36 Ibid. p. 155.
37 Vainer, 2004.
38 Ibid., p. 186.

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O processo decisório de implantação de projetos hidrelétricos no Brasil. 229
Uma análise crítica à luz do estado de direito ambiental

reificadas, destituídas de subjetividade e, conseqüentemente, impossibilitadas


de se constituírem em sujeitos” 39 não podem ser pensadas como agentes sociais
coletivos, portadores de reivindicações e ativos politicamente.
Portanto, a falta do reconhecimento de tal subjetividade específica pro-
voca uma assimetria no tocante à posição tomada pela população atingida em
relação aos empreendedores para efetivar suas vontades políticas.
Embora esteja o licenciamento ambiental mais vinculado a analises téc-
nicas, as decisões tomadas no referido processo têm natureza tanto técnica
quanto política, sendo certo que a decisão sobre a concessão (ou não) da licença
ambiental é, em verdade, uma decisão política, baseada em argumentos técni-
cos que servem para fundamentá-la. 40
Todavia, para a tomada de tal decisão política não são observados (e
garantidos) métodos e procedimentos que assegurem de maneira efetiva a
participação das populações atingidas, principais interessadas na causa.
Além disso, observa-se freqüentemente uma ausência de avaliação de
sustentabilidade socioambiental da obra hidrelétrica, o licenciamento ambien-
tal pautando-se pelo “paradigma da adequação”, ou seja, restringindo o de-
sempenho do licenciamento ambiental à discussão sobre as melhores medidas
mitigadoras e compensatórias necessárias para adaptação do projeto às exi-
gências do órgão licenciador. Essa é a analise elaborada por Andréa Zhouri et
al. 41 quanto à atuação do órgão responsável pelo licenciamento de Minas Ge-
rais – 42 COPAM (Conselho de Política Ambiental) nos licenciamentos ambientais
nos processos de hidrelétricas nesse estado.
Por outro lado, a falta de participação pública efetiva, tanto na elaboração
dos termos de referência para a preparação do EIA/RIMA (o que contribui
para a ausência de transparência durante a sua confecção), quanto após a
entrega destes ao órgão licenciador, é sempre salientada como um dos pontos
mais críticos do processo de licenciamento ambiental. Outros pontos proble-
máticos são a dificuldade de acesso físico do público às informações constantes
do RIMA e de entendimento da linguagem técnica utilizada nos estudos, 43

39 Ibid.
40 Cf. Rezende, 2007, p. 69-70.
41 Cf. Zhouri, Laschefski e Pereira, 2006, p. 99-101.
42 No estado de Minas Gerais, encontram-se três das maiores bacias hidrográficas do Brasil,
sendo o estado alvo da política de expansão de hidroeletricidade.
43 Zhouri, Laschefski e Pereira, 2006, p. 103-106.

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230 Madalena Junqueira Ayres

bem como a baixa qualidade dos estudos ambientais, revelada por informações
superficiais ou, mesmo, pela falta de informações necessárias, sendo cons-
tante a exigência, pelo órgão licenciador, de complementação de informações.
Evidentemente, a falta de participação e de informação adequada pre-
judica a transparência no processo de licenciamento ambiental. Muitas vezes,
quando a população interessada toma conhecimento do projeto, este já está
em fase avançada de análise, o que acaba por inviabilizar a efetividade da
participação pública.
No que diz respeito à fase da consulta pública, de absoluta importância
para que a população em geral tome conhecimento do teor do projeto hidre-
létrico, esta tem se limitado ao depósito dos estudos ambientais nos órgãos
públicos, sem que haja uma conduta mais específica, através da formulação
do chamado “plano de comunicação social”. 44
Em relação às audiências públicas propriamente ditas, momento em
que o projeto hidrelétrico é exposto à comunidade e que está sujeito a ques-
tionamentos, críticas, sugestões e novas informações, o que se verifica nos
processos de licenciamento ambiental é que a participação deixa de ser incor-
porada efetivamente ao processo. O ato da audiência pública passa a se confi-
gurar como modo de cumprimento de normas legais. 45
Ademais, não há, no atual modelo institucional de licenciamento ambien-
tal, uma fase exclusiva para a discussão acerca da viabilidade do projeto e
outra para, após a demonstração da sua viabilidade, o debate sobre as medidas
mitigadoras e compensatórias necessárias, já que na fase preliminar essas
duas questões – em princípio contraditórias – devem ser discutidas paralela-
mente. Não há, também, previsão sobre a constituição de espaços institucionais
próprios de participação após a fase da concessão de licença prévia – o que
seria bastante oportuno, considerando que os conflitos socioambientais se
intensificam nas fases de instalação e operação do projeto. 46
Com efeito, as críticas, acima realizadas, ao licenciamento ambiental
não o descredenciam como instrumento de grande relevância na prevenção
de impactos causados por atividades potencialmente poluidoras, fato este

44 Rezende, 2007, p. 75.


45 Cf. Zhouri, Laschefski e Pereira, 2006, p. 106-107.
46 Rezende, 2007, p. 241.

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O processo decisório de implantação de projetos hidrelétricos no Brasil. 231
Uma análise crítica à luz do estado de direito ambiental

que deve ser enaltecido. 47 A ausência, entretanto, de um debate amplo e par-


ticipativo nas fases anteriores ao próprio licenciamento – abrangendo as etapas
dos estudos hidrelétricos e de viabilidade técnica e ambiental – sobrecarrega
a fase de licenciamento ambiental. Tal circunstância, somada à existência de
imperfeições no aludido processo, gera as incongruências e contradições apon-
tadas pela doutrina apresentada.
Nas situações acima apontadas, o direito posto não alcança plenamente
a sua finalidade, que é a de garantir que a participação da sociedade influencie
no processo decisório – haja vista que, por força de mandamento constitucional
(Art. 225 da Constituição Federal), cabe à coletividade, juntamente como o
poder público, o dever de preservar o meio ambiente. A gestão democrática
da tutela ambiental, por meio da participação pública, está prevista no princípio
10 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992. 48
Na esfera internacional, é fundamental a menção à Convenção sobre Acesso à
Informação, Participação Pública no Processo de Tomada de Decisões e Acesso
à Justiça em Matéria Ambiental, elaborada em 1998, em Arhus, na Dinamarca
(mas em vigor somente a partir de outubro de 2001). Sua relevância se deve ao
fato de ter estabelecido princípios gerais adotados e a serem adotados não
somente pela Comunidade Européia e seus Estados-membros, mas por toda a
comunidade internacional dos países.
Assim, questões como a falta de informação adequada, a participação
pública efetiva – especialmente nas fases anteriores ao licenciamento ambiental
e posteriores à licença prévia –, e a motivação da licença com base em infor-
mações trazidas pelo público – por ocasião da audiência pública ou em qualquer
outra fase do processo – não dependem da proteção formal de instrumentos

47 É bom lembrar que, em meio à lógica mercantilista, que prioriza o crescimento econômico
a qualquer custo e enfatiza a necessidade de aumento da produção energética, o
licenciamento ambiental de hidrelétricas é visto como verdadeiro “entrave burocrático”.
48 Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. “Princípio 10 – A melhor
maneira de tratar questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado,
de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo deve ter acesso
adequado a informações relativas ao meio ambiente de que disponham autoridades pú-
blicas, inclusive informações sobre materiais e atividades perigosas em suas comunidades,
bem como a oportunidade de participar em processos de tomada de decisões. Os Estados
devem facilitar e estimular a conscientização e a participação pública, colocando a infor-
mação à disposição de todos. Deve ser propiciado acesso efetivo a mecanismos judiciais
e administrativos, inclusive no que diz respeito à compensação e reparação de danos.”

Madalena Ayres.p65 231 22/11/2010, 00:11


232 Madalena Junqueira Ayres

para sua garantia, mas, sim, do estabelecimento de condições concretas de


eficácia desses instrumentos. 49
Por sua vez, na fase de planejamento energético não se verifica uma
articulação com o setor ambiental.
De fato, o aparato administrativo-governamental no setor energético
construiu um modelo energético altamente centralizado e inflexível a outras
interferências. 50 Daí certos questionamentos – como, por exemplo, quanto à
manutenção da matriz energética baseada na implantação de fontes hidrelé-
tricas; quanto a estudos de alternativas ao projeto hidrelétrico; ou, ainda,
quanto à definição do aproveitamento ótimo do potencial hídrico –, que deve-
riam ser realizados na etapa de planejamento, somente serem levados à dis-
cussão pública, formalmente, no processo de licenciamento ambiental. Na
fase anterior a este, quando decisões importantes, que causam impactos ao
meio ambiente, são tomadas pela administração pública, a participação pública
obrigatória não se verifica.
Estando em jogo a ação da administração pública, em seus vários setores,
é importante reconhecer a mudança de paradigmas em relação a sua atuação
ocorrida com a introdução de novos valores relacionados ao Estado pós-moder-
no, notadamente aqueles inseridos no contexto do Estado de direito ambiental.
Prioriza-se, a partir desse novo paradigma, a observância dos direitos
fundamentais e da democracia integral (substancial, e não apenas formal). Assim,
cumpre ao Estado afirmar o seu primado de valores, garanti-los e promovê-los
através de políticas públicas adequadas, sempre pautado pelos dois macroprin-
cípios: o dos direitos fundamentais e do da democracia substancial. 51
Não há de se admitir, pois, no âmbito do planejamento e da administra-
ção pública, a racionalidade e a objetividade impostas pelo Estado moderno
para a obtenção de sua legitimidade. No Estado moderno, a lógica dominante
é a da razão, marcada pelas características da abstração e da objetividade; são
estes conceitos, sobretudo, os “instintos infalíveis da burocracia para as con-
dições da conservação de seu poder dentro do Estado próprio.” 52

49 Cf. Ayala, 2007, p. 89.


50 Cf. Zhouri, Laschefski e Pereira, 2006, p. 102.
51 Cf. Moreira Neto, 2008, p. 24.
52 Weber, 2004, p. 216.

Madalena Ayres.p65 232 22/11/2010, 00:11


O processo decisório de implantação de projetos hidrelétricos no Brasil. 233
Uma análise crítica à luz do estado de direito ambiental

Max Weber, no estudo da dominação burocrática – uma construção do


Estado moderno –, já afirmava que “a razão decisiva do avanço da organização
burocrática sempre foi sua superioridade puramente técnica sobre qualquer
outra forma”. 53 Segundo o autor, “precisão, rapidez, univocidade, conheci-
mento da documentação, continuidade, discrição, uniformidade, subordinação
rigorosa, diminuição de atritos e custos materiais e pessoais alcançam o ótimo
numa administração rigorosamente burocrática.”
Portanto, a burocracia e suas técnicas, bem explicadas nas palavras do
autor, mascaram as razões adotadas pela administração pública na tomada
de decisões, que, no Estado moderno, priorizam a “objetividade” e a “calcula-
bilidade dos resultados”, garantidores da segurança jurídica. Essa peculiari-
dade da atividade burocrática, bem-vinda ao capitalismo, é louvada, pois
“desumaniza”, elimina os elementos sentimentais na execução das tarefas
oficiais. 54
Não passou despercebido ao estudioso, porém, a questão da chamada
“tendência democrática” que pretende “minimizar a dominação”. Porém, a
dominação burocrática, em nome da “igualdade jurídica” – que exige garantias
jurídicas contra a arbitrariedade da administração e a objetividade racional
formal da administração –, prevaleceu sobre a possibilidade de influência atra-
vés da opinião pública, causadora de inequívocos “sentimentos irracionais”. 55
Afirma o autor:

Particularmente para as massas não-possuidoras, a “igualdade jurídica”


formal e a aplicação do direito e administração “calculáveis”, tais como
as exigem os interesses “burgueses”, não trazem vantagem alguma. Para
elas, como é natural, o direito e a administração têm de estar a serviço
do nivelamento das oportunidades de vida econômicas e sociais diante
dos possuidores, e esta função eles apenas podem exercer quando ado-
tam, em grande parte, um caráter informal (de justiça de cádi), devido
ao seu conteúdo ético. 56

53 Ibid., p. 212.
54 Ibid., p. 212-213.
55 Ibid., p. 216.
56 Ibid., p. 217.

Madalena Ayres.p65 233 22/11/2010, 00:11


234 Madalena Junqueira Ayres

No novo paradigma do Estado democrático de direito, diverso dos parâ-


metros acima mencionados a respeito do Estado moderno, a administração
pública assume papel mais político do que técnico. Nessa mudança de para-
digma, deve-se assistir à passagem da política como “administração técnica
de homens e coisas” para a política “como governo dos homens mediado pela
gestão das coisas”, pois não se deve aceitar a “tecnicização administrativa da
política” que acarreta na sua despolitização. 57
A vinculação de decisões administrativas a análises estritamente técnicas
impede a intervenção dos cidadãos no Estado. Esse, no entanto, não deve ser
o escopo esperado da atuação estatal, tanto no planejamento energético como
na execução dos planos de expansão de energia elétrica e, ainda, na efetiva
implantação de usinas hidrelétricas.
O atual texto constitucional faz emergir um novo paradigma ético-jurí-
dico presente na questão ambiental, que pretende fugir da “compreensão coi-
sificadora, exclusivista, individualista e fragmentária da biosfera.” 58 Esse novo
paradigma, sensível à saúde coletiva, às expectativas das gerações futuras, à
manutenção das funções ecológicas e ao adequado uso dos recursos naturais,
permite a defesa de uma nova ordem pública que valoriza a responsabilidade
da coletividade em relação aos problemas do planeta Terra. 59
Por conseguinte, é preciso reconhecer a existência de um Estado de di-
reito ambiental, introduzido pela Constituição Federal de 1988 (art. 225 da
CF/88), que, além de ser um Estado de direito democrático e social, é também
regido por princípios de natureza ambiental. Esse Estado de direito ambiental
aponta para formas novas de participação democrática na adoção das políticas
públicas, sejam elas ambientais ou não.60 61

57 Cf. Chauí, 2007, p. 284.


58 Benjamin, 2007, p. 66.
59 Ibid.
60 No mesmo sentido, doutrinadores brasileiros e estrangeiros. Canotilho (2007, p. 5) trata
da “ecologização da ordem jurídica portuguesa” e defende a existência de um “Estado de
Direito Ambiental e Ecológico”. Ver, ainda, Benjamin, 2007, p. 121-124; Morato Leite,
2002, p. 24.
61 O doutrinador português Vasco Pereira da Silva, tratando da dimensão histórica dos
direitos humanos, defende que o direito humano ao meio ambiente surge no chamado
Estado Pós-social, através do qual se retorna à idéia de proteção do indivíduo contra o
poder, de ameaças tanto de entidades públicas como privadas. No Estado Pós-social há
uma alteração da lógica da atividade administrativa, que deixa de ser orientada em função

Madalena Ayres.p65 234 22/11/2010, 00:11


O processo decisório de implantação de projetos hidrelétricos no Brasil. 235
Uma análise crítica à luz do estado de direito ambiental

Segundo Antonio Herman Benjamin, 62 algumas conseqüências podem,


assim, ser extraídas da adoção desse entendimento: (1) o reconhecimento de
um dever constitucional genérico de não degradar, base de um regime de
exploração limitada e condicionada; (2) a proteção ambiental como direito
fundamental; (3) a legitimação constitucional da função de intervenção do
Estado na economia; (4) a redução da discricionariedade administrativa; (5) a
ampliação da participação pública e a imposição de limites ao direito de pro-
priedade, reconhecendo a sua dimensão ambiental; e (6) a conformação das
políticas públicas no sentido da vedação ao retrocesso ambiental.
Ora, a concepção de um Estado de direito ambiental leva em conta tam-
bém a existência de um direito ambiental integrativo 63 que enseja uma signi-
ficativa alteração no modo de regulação das atividades e projetos, pois não
busca, de forma isolada, fiscalizar uma determinada atividade ou instalação,
mas acompanhar todo o processo produtivo e de funcionamento dessas sob o
ponto de vista ambiental.
Avançando um pouco mais na tutela constitucional ambiental, entende-
se aqui, como J. J. Gomes Canotilho, 64 que a força normativa da chamada
“constituição ambiental” dependerá da concretização do programa jurídico-
constitucional, pois qualquer constituição do ambiente só poderá lograr tal
força se os vários agentes públicos e privados que atuam sobre o ambiente
colocarem-na como finalidade e medida das suas decisões.
A concretização da Constituição Federal está relacionada, em última
análise, à cidadania participativa, que compreende uma ação conjunta do poder
público e da sociedade na proteção ambiental. Para que um Estado de direito
ambiental se estruture e se edifique é imprescindível uma democracia ambien-
tal que imponha a participação de todos na defesa e preservação ambientais.
A seu turno, a participação no processo decisório ambiental, seja em
que esfera de poder for – Executivo, Legislativo ou Judiciário –, acarreta trans-
parência e legitimidade da decisão proferida, contribuindo sobremaneira para
a conscientização da problemática ambiental.

da resolução pontual de conflitos, para se tornar uma atividade conformadora da reali-


dade social. Cf. Silva, 2008, p. 21-24.
62 Benjamin, 2007, p. 69-76. O autor trata de tais conseqüências como “benefícios materiais
da constitucionalização”.
63 Esta expressão foi utilizada pelo autor português J. J. Gomes Canotilho, 2004, p. 8-9.
64 Id., 2007, p. 5.

Madalena Ayres.p65 235 22/11/2010, 00:11


236 Madalena Junqueira Ayres

É importante observar que a Carta Magna não fechou os olhos a tal


imperativo, ao prever, no já citado art. 225, a necessária participação de todos,
os mais diversos atores sociais – grupos de cidadãos, ONGs, movimentos sociais,
cientistas, setor privado, poder público, entre outros – na gestão ambiental.
A questão da cidadania ambiental é de fundamental relevância para a
discussão a respeito das decisões tomadas no processo de decisão da implan-
tação das hidrelétricas, já que a principal queixa em tais processos é da exis-
tência de um déficit democrático 65 constante, com a priorização, no âmbito
decisional, da vontade do poder público e dos setores privados da economia.
Hoje, a construção de uma cidadania plena exige um equilíbrio entre os
dois espaços – o público e o privado –, pois o predomínio excessivo de um
pólo pode inviabilizar o outro.
Vieira e Bredariol 66 afirmam, então, que:

A prática da cidadania depende de fato da reativação da esfera pública,


onde indivíduos podem agir coletivamente e se empenhar em delibera-
ções comuns sobre todos os assuntos que afetam a comunidade política.
Em segundo lugar, a prática da cidadania é essencial para a constituição
da identidade política baseada em valores de solidariedade, autonomia
e do reconhecimento da diferença. Cidadania participativa é também
essencial para obtenção da ação política efetiva, desde que ela habilite
cada indivíduo para ter algum impacto nas decisões que afetam o bem-
estar da comunidade. [...]

Amartya Sen, citando Andrew Dobson, fala da importância do “cidadão


ecológico” 67 que, movido por uma sensibilidade social e por uma reflexão ponde-
rada, amplia suas responsabilidades cívicas para lidar com os desafios ambientais.
E a cidadania ambiental é um importante pilar da sustentabilidade so-
cioambiental, compatível com a proposta de implantação do Estado de direito
ambiental, pois cumpre duas funções: a de advertência quanto ao déficit demo-
crático e a de compromisso em relação à constituição de uma nova cidadania,
não meramente formal, mas real e efetiva.

65 Cf. Leite e Ayala, 2002.


66 Vieira e Bredariol, 2006, p. 29.
67 Dobson, apud Sen, 2004, p. 18.

Madalena Ayres.p65 236 22/11/2010, 00:11


O processo decisório de implantação de projetos hidrelétricos no Brasil. 237
Uma análise crítica à luz do estado de direito ambiental

CONCLUSÃO

Seguindo os novos parâmetros estabelecidos pelo Estado de direito ambiental,


para que a administração pública torne a sua atuação eficaz, em seus diversos
setores, sob o ponto de vista da sustentabilidade socioambiental, é preciso,
antes de tudo, que ela esteja aberta à participação pública.
O processo decisório para a implantação de hidrelétricas, por sua vez,
revela, desde a fase de planejamento, impactos na esfera ambiental, razão
pela qual impõe-se uma mudança na forma de atuação da administração pú-
blica, hoje setorizada, para que as decisões acerca de tais empreendimentos
sejam tomadas de forma articulada e conjunta.
Assim, melhoria qualitativa da gestão dos recursos ambientais no Brasil
passa pela necessária articulação entre os setores energético, ambiental e hí-
drico, possibilitando a gestão democrática desde o início do planejamento
energético. Essa mudança de perspectiva fará com que o processo de licencia-
mento ambiental se torne mais eficiente, na medida em que cabe à adminis-
tração pública buscar incorporar no planejamento energético as discussões
ambientais – como, por exemplo, a viabilidade ambiental de planos de expansão
de energia elétrica e, conseqüentemente, os projetos de construção de hidre-
létricas previstos em seu bojo.
É preciso dizer que se a dimensão socioambiental não for devidamente
incorporada ao processo de planejamento energético corre-se o risco de haver
um direito que é ambiental e um sistema jurídico não-ambiental. 68

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68 Cf. Borges, 1998, p. 15.

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O processo decisório de implantação de projetos hidrelétricos no Brasil. 241
Uma análise crítica à luz do estado de direito ambiental

RESUMO

O presente artigo reflete sobre algumas problemáticas havidas no processo


decisório para implantação de hidrelétricas no Brasil, sob o ponto de vista
socioambiental. A abordagem interdisciplinar envolve as várias etapas de tal
processo, especialmente o licenciamento ambiental, fase final para a execução
do projeto hidrelétrico. O trabalho enfatiza também a necessária mudança de
paradigma de atuação da administração pública na condução do referido pro-
cesso, com a observância do princípio da participação pública amplamente
assegurado pela Constituição Federal, bem como pela legislação internacional.
No âmbito dogmático-jurídico, é elaborada uma análise crítica sobre os ins-
trumentos legais previstos no ordenamento jurídico nacional, com a finalidade
de redefini-los e potencializar a sua aplicação na perspectiva da dimensão
socioambiental.
Palavras-chave: direito ambiental, planejamento energético, licenciamento
ambiental, hidrelétricas, participação pública.

ABSTRACT

This paper is aimed at a analysis on issues occurred in the decision-making


process for the implementation of hydroelectric power plants in Brazil, based
on a social and environmental point of view. An interdisciplinary approach
comprises all the steps of this process, especially environmental licensing, which
is the final step for the execution of the hydroelectric project. This paper also
highlights the paradigmatically change at the action of Public Administration
in conducting such process, observing the principle of public participation as-
secured by Federal Constitution and International Law. Within the dogmatic
and legal scope, a critical analysis on the legal tools available in the national
legal ordinance is made, aiming at redefining them and empowering their ap-
plicability in the perspective of the social and environmental dimension.
Keywords: environmental law, hydroelectric power plants, environmental li-
censing, hydroelectric plants, governmental participation.

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Madalena Ayres.p65 242 22/11/2010, 00:11
A qualificação jurídica da prestação de
serviços públicos como relação de consumo

Karine Monteiro Prado

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

A tutela do usuário de serviços públicos sempre foi considerada como parte


integrante, tão somente, do objeto de estudo do direito constitucional e do
direito administrativo. Todavia, com o advento do Código de Defesa do Con-
sumidor (CDC), 1 a situação se modifica, já que a disciplina normativa do CDC
alçou à categoria jurídica de consumidor, a par de outras, determinados usuá-
rios de serviços públicos. 2
No rol dos usuários de serviços públicos há aqueles que são juridica-
mente considerados consumidores e que, portanto, estão sob a tutela protetiva
da codificação especial. Nosso objetivo, então, é identificar quais usuários de
serviços públicos são consumidores, caracterizando a relação jurídica da qual
fazem parte como uma verdadeira relação de consumo.

1 Lei 8.078/90.
2 O CDC se refere expressamente à prestação de serviços públicos em três oportunidades:
a) no artigo 4º, inciso VII; b) no artigo 6º, inciso X; e c) no artigo 22.

Paisagem urbana e direito à cidade , Rio de Janeiro, 2010. p. 243-284. Coleção Direito e Urbanismo

Karine Prado.p65 243 20/11/2010, 18:38


244 Karine Monteiro Prado

O CDC não definiu o que é relação de consumo, mas apontou os ele-


mentos constitutivos desse vínculo jurídico, ou seja, os sujeitos e o objeto da
relação, informando, ainda, que seu objetivo primordial é proteger, especifi-
camente, um desses sujeitos, o consumidor, pois este se encontra vulnerável
no mercado de consumo. Podemos, então, conceituar a relação jurídica de
consumo da seguinte forma: é a relação estabelecida entre um consumidor e
um fornecedor, tendo por objeto a aquisição ou a fruição de um produto ou de
um serviço, de acordo com a disciplina normativa do CDC de proteção dos
vulneráveis (os consumidores).
A relação de consumo, como toda relação jurídica, possui características
próprias, envolvendo sujeitos de direitos situados em posições antagônicas,
que interagem para a transmissão de bens e a consecução dos fins que deram
origem à formação da relação. 3 Dessa forma, para a consecução de nosso
objetivo, analisaremos os elementos da relação de consumo no contexto da
prestação de serviços públicos, quais sejam: seus sujeitos, isto é, o consumidor
e o fornecedor desses serviços; e seu objeto, ou seja, o próprio serviço público.
Fixadas essas premissas, demonstraremos, então, que o vínculo estabe-
lecido entre o fornecedor de serviços públicos e determinados usuários desses
serviços preenche todos os pressupostos necessários para a configuração de
uma relação jurídica de consumo.

O CONCEITO JURÍDICO DE CONSUMIDOR

Recordemos que o CDC possui quatro conceitos de consumidor. O primeiro é


o do art. 2º, caput, que estabelece o conceito de “consumidor” propriamente
dito ou, como costuma ser chamado, consumidor stricto sensu. A esse são
acrescentadas três estipulações equiparativas: a) a do parágrafo único do
mesmo art. 2º, que se refere à coletividade de consumidores; b) a do art. 17,
que equipara a consumidor todas as vítimas de acidentes de consumo; e c) a
do art. 29, que estende a proteção legal a todas as pessoas, determináveis ou
não, expostas às práticas comerciais e contratuais previstas no CDC.
Os conceitos elencados no parágrafo único do art. 2º e no art. 17 não
trouxeram acirrada celeuma jurídica como a que ocorreu na interpretação do
art. 2º, caput, e do art. 29.

3 Cf. Lisboa, 2000, p. 296.

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A qualificação jurídica da prestação de serviços públicos como relação de consumo 245

No tocante ao conceito de consumidor stricto sensu, podemos sintetizar


os seguintes posicionamentos que tomaram forma nesses mais de 20 anos de
vigência do CDC:
a) o finalista, que considera que o consumidor é o agente vulnerável no
mercado de consumo e só pode ser entendido como sendo o destinatário
final de toda a atividade econômica (produção, circulação, distribuição e con-
sumo), que adquire ou utiliza um produto ou serviço para uso próprio ou de
sua família, ou seja, sem qualquer finalidade econômica (lucrativa). Neste con-
ceito não se encaixa o de intermediário que adquire produtos para distribuição,
de indústrias ou fábricas que adquirem matérias-primas para transformação
e inclusão nos produtos fornecidos, nem tampouco a aquisição de produtos
que não são utilizados diretamente na sua cadeia produtiva (como os uniformes
dos empregados), pois estes teriam seu ônus econômico agregado à atividade
produtiva, repassando-se o custo ao público, que seria, então, o verdadeiro
destinatário final do processo econômico. Apenas por analogia, e de forma
excepcional, poder-se-ia considerar os exercentes de uma atividade econômica
como consumidores, desde que restasse comprovada, em cada caso concreto,
sua condição de vulnerabilidade diante de seus interlocutores; 4
b) o maximalista, que entende que consumidor é aquele que adquire ou
utiliza um produto ou serviço como usuário final do bem, sem finalidade de
transformação ou incorporação em uma determinada atividade econômica,
mas que pode ter caráter instrumental na sua realização. Assim, tanto a dona
de casa que compra um fogão quanto o advogado que compra computadores
para o escritório ou a fábrica que adquire os uniformes para seus empregados
são considerados consumidores. Nos dois últimos exemplos, ainda que se
possa considerar, de forma extrema, que o material de escritório do advogado
(livros, papéis, computadores etc.) ou os materiais auxiliares de uma atividade
produtiva (como uniformes, alimentos, aparelhos de segurança etc.) são utili-
zados (consumidos) para o desenvolvimento das atividades de fornecedor de
serviços advocatícios ou industriais, esses materiais não se destinam, posterior-
mente, ao mercado de consumo, mas sim à destinação final dada pelo advo-
gado ou pela empresa. 5

4 Tal corrente é capitaneada pela professora Cláudia Lima Marques. Cf. entre outras obras
da autora, Marques, 2005.
5 Dentre outros, cf. Gouvêia, 1997, p. 187-192; Macedo Júnior, 1998, p. 46; e Donato, 1993,
p. 108 e ss.

Karine Prado.p65 245 20/11/2010, 18:38


246 Karine Monteiro Prado

Em relação à interpretação do art. 29 do CDC, também houve controvérsia


entre as correntes finalista e maximalista:
a) segundo os finalistas, para a extensão do conceito de consumidor do
art. 29, é necessária, de acordo com a sistemática do CDC, a constatação in
concreto da vulnerabilidade da pessoa exposta às práticas comerciais e contra-
tuais condenadas pelo código. Apenas foi superado o requisito da destinação
final para a caracterização do consumidor equiparado prevista no artigo 29. 6
Assim, o agente econômico ou o profissional liberal, mesmo não sendo desti-
natário final fático e econômico do bem adquirido ou do produto utilizado,
pode vir a ser beneficiado pelas normas tutelares do CDC, na hipótese do
artigo 29, desde que comprovada, in casu, sua vulnerabilidade;
b) já os maximalistas sustentam a aplicação do art. 29 do CDC, indistin-
tamente, aos chamados contratos interempresariais. 7 Afirmam que essa regra
socorreria os não consumidores, ou seja, as pessoas físicas ou jurídicas não
enquadradas na definição do artigo 2º, caput, do CDC, desde que diante das
práticas comerciais do capítulo V ou das disposições do capítulo VI. O art. 29,
ao equiparar a consumidores todas as pessoas determináveis ou não, estaria
disciplinando relações jurídicas de toda ordem, não estabelecendo limitações
ou discriminações à equiparação. 8 O CDC teria presumido, in abstracto, a
vulnerabilidade desse consumidor equiparado, pela mera exposição a essas
práticas comerciais e contratuais.
Entendemos que a razão está, em ambos os casos, com o posicionamento
finalista. O CDC foi criado para proteger os vulneráveis, os diferentes, os mais
fracos, e o seu fundamento de validade, a Constituição Federal da República
(CR/88), guia essa interpretação. O artigo 5º, inc. XXXII, identificou o consu-
midor como um novo sujeito de direitos fundamentais. 9 Ao afirmar que todos
são iguais perante a lei, garantindo a inviolabilidade do direito à igualdade, a
CR/88 determinou, ao mesmo tempo, que o Estado promovesse a defesa de
um sujeito específico: o consumidor.
Defende-se aquele que precisa de proteção especial. O princípio da igual-
dade material busca reequilibrar essa situação de desigualdade por meio da

6 Cf. Marques, 2005, p. 355.


7 Cf. Marins, 1996, p. 95-104.
8 Ibid., p. 99.
9 Cf. Marques, 2005, p. 257.

Karine Prado.p65 246 20/11/2010, 18:38


A qualificação jurídica da prestação de serviços públicos como relação de consumo 247

instituição de leis infraconstitucionais que forneçam tratamento diferenciado


aos desiguais, na medida de sua dessemelhança. De imediato, portanto, já
temos a idéia de que o consumidor é um agente que necessita de proteção, ou
seja, de uma tutela especial, por estar em uma situação de inferioridade ou
desequilíbrio diante de seu interlocutor.
Mais à frente, no artigo 170, inc. V, a CR/88 elencou a defesa do consu-
midor como um dos princípios da ordem econômica, com o objetivo de asse-
gurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social.
Dessa forma, a defesa do consumidor surgiu, também, como um princípio
limitador da livre iniciativa, preocupado “com a necessidade de se dar proteção
adequada à massa dos consumidores”. 10
Observe-se que, diante dessas regras, sem perder de vista o princípio
fundamental da República da dignidade da pessoa humana 11 e os objetivos
fundamentais da solidariedade social 12 e da justiça distributiva, 13 fica claro
que o legislador constituinte rompeu com os propósitos produtivistas e patri-
monialistas tão freqüentes em tema de direitos do consumidor. 14 Assim, o
constituinte brasileiro não teria somente incluído a tutela dos consumidores
no rol das garantias fundamentais, mas fornecido, também, um caráter ins-
trumental a essa tutela, funcionalizando os interesses patrimoniais do consu-
midor à proteção de sua dignidade e aos valores existenciais. Trata-se, portanto,
de tutelar a pessoa humana – em uma particular situação de inferioridade
frente ao fornecedor –, que se encontra vulnerável numa dada hipótese especí-
fica, mais do que proteger o consumidor como uma categoria ou classe privi-
legiada, em detrimento dos empresários. 15
A compreensão das regras do CDC se dá pelo entendimento de que seus
destinatários se encontram descompassados e de que, devido a isso, a conse-
cução do primado da igualdade importa no tratamento tendente a diminuição
dessa dessemelhança. 16 O critério discriminador que implica no reconheci-

10 Fonseca, 1993, p. 389.


11 Art. 1º, inciso III da CR/88.
12 Art. 3º, inciso I, da CR/88.
13 Art. 3º, inciso III, da CR/88.
14 Cf. Tepedino, 2002, p. 111.
15 Ibid., passim.
16 Cf. Silva, 1993, p. 156.

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248 Karine Monteiro Prado

mento dessa situação de desigualdade é justamente o posto na regra do inci-


so I, do artigo 4º, do CDC, ou seja, “o reconhecimento da vulnerabilidade do
consumidor no mercado de consumo.” 17
A não pressuposição da vulnerabilidade do consumidor colocaria de-
terminados sujeitos em posição privilegiada em relação a seus fornecedores,
de acordo com as regras protetivas especiais do CDC, inviabilizando a aplicação
do princípio da igualdade. Portanto, estender as prerrogativas do código a
agentes que delas prescindem implica neutralizar o referido aspecto compen-
satório da lei. 18 Assim, o pressuposto da vulnerabilidade do consumidor deve
nortear a interpretação de todos os dispositivos do CDC, ou seja, tanto a do
art. 2º, caput, como a do art. 29.
Admitindo a tese maximalista, estaríamos tratando, no mais das vezes,
desigualmente pessoas que se encontram no mesmo pé de igualdade. De fato,
não há diferença entre um “consumidor-fornecedor” que adquire um “insumo”
de sua produção e um “consumidor-fornecedor” que está com seu produto
final terminado e no mercado. 19 Nenhum desses agentes econômicos possui
direitos fundamentais mais importantes e prevalentes sobre o outro, pois nas
relações entre empresários não há conflitos de direitos humanos – os referentes
à defesa do consumidor – mas apenas ordem constitucional econômica a re-
gular o mercado e o relacionamento interempresarial. 20

17 Marques, 2005, p. 320-330. A vulnerabilidade, segundo Cláudia Lima Marques, se apresenta


sob quatro formas distintas: a técnica, a jurídica, a fática e a informacional. A vulnerabilidade
técnica consistiria na inferioridade de conhecimentos específicos relacionados com o produto
ou serviço consumido, sendo por isso o comprador mais facilmente enganado quanto às
características do bem ou quanto a sua utilidade. A vulnerabilidade jurídica ou científica
seria a falta de conhecimentos jurídicos específicos, de contabilidade ou de economia. A
vulnerabilidade fática ou sócio-econômica decorreria da superioridade do fornecedor diante
do outro parceiro contratual, advinda do seu maior poderio econômico, de posição de mo-
nopólio – fático ou jurídico – ou em razão do caráter essencial do produto ou serviço. Tendo
em vista essa situação específica, o fornecedor fixa unilateralmente as regras contratuais,
às quais o consumidor é obrigado a se submeter diante de uma necessidade de consumo.
Já a vulnerabilidade informacional consiste no déficit informacional que caracteriza o con-
sumidor, a revelar, atualmente, o maior fator de desequilíbrio em relação aos fornecedores,
estes sim, os únicos que detêm, de fato, a informação (Marques, 2005, p. 320-330).
18 Cf. Gouvêa, 1997, p. 188.
19 Cf. Marques, 2005, p. 375.
20 Ibid., p. 376. Correta a lição de Antônio Herman V. Benjamin, quando sustenta que o fato
de uma pequena e média empresa adquirir um produto ou um serviço fora de sua espe-

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A qualificação jurídica da prestação de serviços públicos como relação de consumo 249

Observe-se que a extensão do campo de aplicação do CDC, objetivada


pelos posicionamentos maximalistas, foi motivada pela defasagem do sistema
jurídico comum da época em que surgiram e se desenvolveram. A falta de
regras jurídicas no sistema comum 21 que se referissem ao paradigma da boa-
fé objetiva, da função social e da intervenção reequilibradora nos contratos –
regras existentes no sistema especial do CDC – foi o principal fator que levou
à busca desenfreada pela incidência da tutela consumerista em determinadas
relações jurídicas, inclusive as interempresariais. Interpretações extensivas e
analógicas do CDC foram intensamente realizadas e ocasionaram sua aplicação,
muitas vezes, a sujeitos que não se encontravam, necessariamente, em situação
de desequilíbrio (vulnerabilidade), ofendendo sua finalidade constitucional.
Nesse diapasão, com muita propriedade, demonstra Adalberto Pasqua-
lotto que o CCB/2002 trouxe um importante elemento para a definição de
consumidor que estaria, talvez, a selar a controvérsia sobre o campo de apli-
cação do CDC: o conceito de empresário posto no art. 966. 22 O dispositivo
definiu o empresário como sendo aquele que “[...] exerce profissionalmente
atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de
serviços”. A definição é harmônica com a de fornecedor do caput do art. 3º do
CDC, que estipula, expressamente, a transformação como atividade própria
do fornecedor, além de assinalar todas as etapas do processo econômico an-
teriores ao consumo. 23 A aplicação conjunta do CCB/2002 e do CDC estaria a
excluir do conceito de consumidor todo e qualquer empresário.
De fato, como afirma Cláudia Lima Marques, as relações interempresa-
riais são relações, a priori, entre iguais, recebendo do CCB/2002 um tratamento
justo e eqüitativo. 24 Apenas excepcionalmente poder-se-ia equiparar um dos
empresários a consumidor, como na hipótese do art. 29, pois, em geral, um
empresário não está “exposto” (submetido) às práticas comerciais e contratuais
elencadas pelo CDC.

cialidade e conhecimento técnico não quer dizer, necessariamente, que o faça nas mesmas
condições assemelhadas ao consumidor individual ou familiar, pois se pressupõe, devido
à sua atividade lucrativa, que se cerque de meios mais seguros para defesa de seus inte-
resses (Benjamin, 1988, p. 77).
21 Cuja norma geral, à época, era o Código Civil Brasileiro de 1916 (CCB/1916).
22 Pasqualotto in Pfeiffer e Pasqualotto, 2005, p. 146.
23 Ibid., p. 146.
24 Cf. Marques, 2004, p. 51.

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250 Karine Monteiro Prado

Adalberto Pasqualotto ensina, ainda, que o CCB/2002 trouxe uma se-


gunda contribuição à definição do âmbito de aplicação do CDC: a regra do
parágrafo único do art. 966. Tal dispositivo estabelece que não é empresário
“[...] quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artís-
tica, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício
da profissão constituir elemento de empresa.” 25 Então, segundo o autor, o
art. 966 e seu parágrafo único determinariam a aplicação do CCB/2002 ao
empresário, excluindo dessa categoria os profissionais liberais que não estão
organizados empresarialmente. A esses, por sua vez, seria aplicável o CDC na
“aquisição e utilização de instrumentos de trabalho e de material afim”, não
sendo levado em conta “o seu uso instrumental, e sim a condição prevalecente
de vulnerabilidade inerente ao conceito equiparativo de consumidor, do art. 29,
CDC”. 26 Parece, então, que o autor não admite também que os profissionais
liberais sejam consumidores stricto sensu, inclusive na aquisição de instru-
mentos e material para uso instrumental na sua atividade econômica, mas
somente por equiparação, na hipótese restrita do art. 29.
Portanto, diante desses argumentos, a aplicação conjunta do CCB/2002
e do CDC estaria a excluir do conceito de consumidor stricto sensu os exercentes
de uma atividade econômica (empresários ou profissionais liberais), apenas
admitindo a equiparação desses a consumidores na hipótese do artigo 29,
mas desde que comprovada, no caso concreto, a sua vulnerabilidade diante
do parceiro econômico.
A jurisprudência do próprio STJ, que durante um bom tempo adotou o
posicionamento maximalista em suas decisões, 27 vem, gradativamente, modi-
ficando essa orientação. Vejam-se, por exemplo, o teor das seguintes decisões:

EMENTA
CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS
MORAIS. EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE FORNECIMENTO DE ENERGIA.
DESPACHO SANEADOR. RELAÇÃO DE CONSUMO. ART. 2º DO CDC. ILE-
GITIMIDADE ATIVA “AD CAUSAM”. [...]

25 Pasqualotto, 2005, p. 147.


26 Ibid., p. 147.
27 Cf. Marques, 2005, p. 143. Como exemplo, vide, dentre outros, os seguintes julgados:
REsp. n. 142042/RS, DJ 19/12/1997; REsp. 208.793/MT, DJ 01/08/2000; REsp. n. 263229/
SP, DJ 09/04/2001.

Karine Prado.p65 250 20/11/2010, 18:38


A qualificação jurídica da prestação de serviços públicos como relação de consumo 251

3. No tocante ao segundo aspecto – inexistência de relação de consumo


e conseqüente incompetência da Vara Especializada em Direito do Con-
sumidor – razão assiste ao recorrente. Ressalto, inicialmente, que se
colhe dos autos que a empresa-recorrida, pessoa jurídica com fins lu-
crativos, caracteriza-se como consumidora intermediária, porquanto se
utiliza do serviço de fornecimento de energia elétrica prestado pela recor-
rente, com intuito único de viabilizar sua própria atividade produtiva.
Todavia, cumpre consignar a existência de certo abrandamento na inter-
pretação finalista, na medida em que se admite, excepcionalmente, desde
que demonstrada, in concreto, a vulnerabilidade técnica, jurídica ou eco-
nômica, a aplicação das normas do CDC. Quer dizer, não se deixa de
perquirir acerca do uso, profissional ou não, do bem ou serviço; apenas,
como exceção e à vista da hipossuficiência concreta de determinado
adquirente ou utente, não obstante seja um profissional, passa-se a con-
siderá-lo consumidor [...] 28

EMENTA
DIREITO DO CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. CONCEITO DE CONSU-
MIDOR. PESSOA JURÍDICA. EXCEPCIONALIDADE. NÃO CONSTATAÇÃO
NA HIPÓTESE DOS AUTOS. FORO DE ELEIÇÃO. EXCEÇÃO DE INCOMPE-
TÊNCIA. REJEIÇÃO.
- A jurisprudência do STJ tem evoluído no sentido de somente admitir a
aplicação do CDC à pessoa jurídica empresária excepcionalmente, quando
evidenciada a sua vulnerabilidade no caso concreto; ou por equiparação,
nas situações previstas pelos arts. 17 e 29 do CDC.[...] 29

Analisando o conjunto das decisões do STJ após a entrada em vigor do


CCB/2002, a professora Cláudia Lima Marques ensina que o mesmo está ado-
tando uma interpretação finalista mais aprofundada e madura, aumentando
o subjetivismo na aferição de quem deve ser considerado consumidor; relati-

28 REsp. 661.145/ES, Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ 28/03/2005. Grifo nosso.


29 REsp. 684.613/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 01/07/2005. Grifo nosso. No mesmo
sentido, cf. REsp. 660.026/ RJ, Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ 27/06/2005; REsp. 476.428/
SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 09/05/2005; Resp. 541.867/BA, Rel. p/acórdão Min.
Barros Monteiro, DJ 16/05/2005; AgRg no Resp nº 687.239/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi,
DJ 02/05/2006 e o Resp. 913.711, Rel. Min. Mauro Campbell, DJ 16.09.2008.

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252 Karine Monteiro Prado

vizando, porém, o finalismo, permitindo o tratamento de casos difíceis de


forma diferenciada, com a equiparação a consumidor quando demonstrada a
vulnerabilidade em cada caso concreto. 30 Para a referida autora, essa tendência
nova na jurisprudência consiste em um “finalismo aprofundado” ou em uma
“interpretação finalista aprofundada”: 31

Esta nova linha, em especial do STJ, tem utilizado expressamente, sob o


critério finalista e subjetivo, a equiparação do art. 29 do CDC, em se
tratando de pessoa jurídica que comprova ser vulnerável e atua fora do
âmbito de sua especialidade [...]. Aqui, exige-se a prova da vulnerabili-
dade in concreto, como requer a teoria finalista, mas o aprofundamento
é visível. 32

Podemos perceber, então, que depois desses mais de 20 anos de aplicação


do CDC, e dos mais de sete anos do CCB/2002, a jurisprudência da Corte
Especial, finalmente, vem reconhecendo33 o que a teoria finalista já afirmava:
consumidor stricto sensu é a pessoa natural ou física, destinatária final de
todo o processo econômico, aquele que adquire ou utiliza um produto ou
serviço para uso próprio e de sua família. Os exercentes de uma atividade
econômica não são consumidores, pois, em regra, não precisam de proteção
especial. Excepcionalmente, poderão vir a ser considerados consumidores,
desde que provada sua vulnerabilidade no caso concreto, principalmente na
hipótese equiparativa do artigo 29 do CDC.

30 Cf. Marques, 2005, p. 347.


31 Ibid., p. 305.
32 Ibid., p. 346.
33 Frise-se, todavia, que tal posicionamento ainda não está sedimentado, como muito bem
observa Leonardo Roscoe Bessa, “[...] pois existem acórdãos recentes que simplesmente
referem-se à antiga discussão de ser o produto ou serviço insumo, fomento ou meio de
incrementar a atividade empresarial.” (Bessa, 2009, p. 65). Vide os seguintes acórdãos do
STJ: Resp. 716.386, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, DJ 15.09.2008; CC 92.519, Rel.
Min. Fernando Gonçalves, DJ 04.03.2009; AgRg no Ag 834.673, Rel. Min. Fernando Gon-
çalves, DJ 09.03.2009. Em tais decisões foram utilizados argumentos da teoria maximalista
para análise da incidência ou não do CDC.

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A qualificação jurídica da prestação de serviços públicos como relação de consumo 253

CONCEITO DE FORNECEDOR

O CDC estabeleceu que “fornecedor” é gênero do qual são espécies o fabricante,


o produtor, o montador, o criador e o comerciante, dentre outros, podendo
ser o fornecedor uma pessoa física, jurídica, pública ou privada, com persona-
lidade brasileira ou estrangeira, incluindo-se, ainda, os entes despersonaliza-
dos. São fornecedores todos os participantes do ciclo produtivo-distributivo
consistente nas atividades descritas no artigo 3º, §1º e §2º do CDC. 34
Veja-se que o CDC aponta como sendo fornecedor aquele que oferece
produtos ou serviços no mercado de consumo. Restringir-nos-emos, no entanto,
devido à dimensão do trabalho, apenas à análise do conceito jurídico do for-
necedor de serviços.
A prestação de serviços envolve ações humanas – ações de fazer, não
fazer ou dar alguma coisa –, podendo ser material (transporte, pintura etc.),
financeira (seguro, crédito etc.) ou intelectual (médico, assessoria jurídica
etc.). 35
De acordo com a definição do artigo 3º, in fine, combinada com o seu
§2º, para a caracterização do fornecedor de serviços é suficiente que este
desenvolva qualquer atividade 36 de prestação de serviços no mercado de con-
sumo, 37 desde que remunerada, não sendo imprescindível o caráter profissio-
nal do fornecedor, sendo necessário apenas que ele exerça essa atividade de
maneira contínua. 38
O entendimento do termo atividade, por si só, não leva ao de profissio-
nalidade, caso esteja desacompanhado de mais algum elemento que caracte-
rize a finalidade propriamente profissional. O CDC refere-se a qualquer atividade

34 Cf. Denari, 1998, p. 144.


35 Cf. Donato, 1993, p. 117.
36 Em relação ao termo atividade, veja-se a lição de Newton De Lucca: “O ato, como sabemos,
consiste numa ação isolada praticada por alguém. Trata-se de algo episódico ou ocasional.
Na atividade, ao contrário, há uma sucessão de atos, praticados de maneira organizada,
de molde a caracterizar-se numa constante oferta de bens ou serviços à coletividade.”
(De Lucca, 2003, p. 135).
37 Entenda-se mercado de consumo como sendo “[...] o conjunto das relações de troca de
bens e de prestação de serviços, praticadas pelos diversos agentes econômicos, em de-
terminado tempo e lugar”. (De Lucca, 2003, p. 163).
38 Cf. Marques, 2005, p. 393.

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254 Karine Monteiro Prado

de prestação de serviços, sendo sua finalidade a de incluir um grande número


de prestadores de serviços no âmbito de sua aplicação, com a “dependência
única de ser o co-contratante um consumidor”, 39 não importando se o forne-
cedor de serviços exerce essa atividade como sua profissão. É o que ocorre,
por exemplo, com um médico que é proprietário de vários imóveis, reside em
apenas um deles e oferece o remanescente a título de locação residencial, “[...]
a fim de auferir rendimento adicional aos seus ganhos de médico.” 40 Caso se
tratasse de ato isolado de locação, não se poderia considerar o médico como
fornecedor, pois ele não estaria desenvolvendo uma atividade de prestação de
serviços. Todavia, se esse médico possui vários imóveis (dez, quinze, vinte
etc.) e os oferece para locação, não temos atos isolados, mas sim uma série
repetida de atos, que caracteriza uma atividade imobiliária. Não se trata, po-
rém, de considerar o médico como um profissional da área imobiliária. 41
O § 2º, do artigo 3º do CDC elenca outro requisito, este sim imprescindí-
vel para que o fornecimento de um serviço possa ser caracterizado como uma
relação de consumo: o da remuneração. Assim, os “[...] serviços gratuitos con-
sistentes em atos de camaradagem, os decorrentes de parentesco e vizinhan-
ça, conhecidos como favores, não será serviço a que a lei empresta tutela”. 42
É importante esclarecer que o CDC não adotou a distinção clássica de
contratos de prestação de serviços onerosos ou gratuitos, mas sim a denomi-
nação de negócios remunerados ou não-remunerados, estabelecendo que so-
mente os remunerados estão sob seu âmbito de aplicação. 43 A opção pela
expressão “remuneração” fez com que fosse incluído um número maior de
serviços sob o regime de proteção do CDC, pois permitiu a inclusão dos serviços
indiretamente remunerados, ou seja, “quando não é o consumidor individual
que paga, mas a coletividade (facilidade diluída no preço de todos) ou quando

39 Ibid., p. 394.
40 O exemplo é de De Lucca, 2003, p. 138.
41 Em sentido contrário, entendendo ser necessário o requisito da profissionalidade, cf.
Barcellos, 2007, p. 121-122. Todavia, a autora compreende que “serviço profissional” é
“aquele prestado por agente com formação especializada na área ou que exerça a atividade
com habitualidade” (Barcellos, 2007, p. 122, nota de rodapé n. 117). Portanto, para a
autora, o simples exercício de uma atividade de forma habitual já configuraria a pro-
fissionalidade.
42 Almeida, 2002, p. 42.
43 Cf. Marques, 2005, p. 394.

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A qualificação jurídica da prestação de serviços públicos como relação de consumo 255

ele paga indiretamente o ‘benefício gratuito’ que está recebendo.” 44 Tal cir-
cunstância não seria possível caso o CDC tivesse previsto apenas a tutela do
fornecimento de serviços onerosos, que impõem, necessariamente, a obrigação
de pagamento, isto é, de remuneração direta.
A expressão remuneração deve ser entendida não apenas como repre-
sentativa da remuneração direta do serviço, ou seja, do pagamento que foi
efetuado de forma direta, mas, também, compreendendo a remuneração que
o fornecedor retira do benefício comercial indireto, advindo de prestações de
serviços aparentemente gratuitas, mas que na verdade encontram sua remune-
ração embutida em outros custos. 45 Os efeitos positivos do marketing também
captam consumidores, como na hipótese do oferecimento de cartões de milhas
na utilização de serviços de transportes aéreos. 46 A partir do momento que o
consumidor recebe esse cartão, é óbvio que deixará de contratar com outra
empresa que não fornece o mesmo benefício, simplesmente para não perder o
número de milhas já acumuladas. Veja-se que essa circunstância vincula os
consumidores a uma determinada empresa específica, trazendo a essa empresa
aumento nos lucros, principalmente em relação à concorrência que não oferece
os mesmos benefícios ou não participa do mesmo programa. Diante desse
contexto, verifica-se, nitidamente, a falácia da gratuidade desses serviços. 47
Dessa forma, então, podemos concluir que para a prestação de serviços
configurar uma relação de consumo é necessário que o fornecedor desenvolva
essa atividade de maneira habitual e contínua, ainda que não o faça profissio-
nalmente, devendo essa atividade ser remunerada pelo consumidor, direta ou
indiretamente, nos termos acima explicitados.

SERVIÇOS PÚBLICOS: ESPÉCIE DE ATIVIDADE ECONÔMICA

Conceituar “serviços públicos” não é um problema jurídico recente. A razão de


ser dessa longa controvérsia doutrinária reside no fato de tentar-se fornecer uma
definição precisa de serviço público ou de fornecer uma lista acabada deles. 48

44 Ibid., p. 394.
45 Cf. Marins, 1993, p. 82.
46 O exemplo é de Marques, 2005, p. 396.
47 Cf. Marques, 1999, p. 126.
48 Cf. Aguillar, 1999, p. 111.

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256 Karine Monteiro Prado

Existem inúmeras definições de serviços públicos, as mais diversas possíveis,


porém percebe-se que em algumas dessas definições nem sempre há um com-
promisso em fazer coincidir o conceito de serviço público apresentado com
os critérios constitucionalmente fixados para a sua individualização. 49
Os conceitos existentes variam tanto historicamente como de acordo
com a escola do pensamento jurídico a qual se filiam. A conceituação de ser-
viços públicos varia de acordo com as sociedades e as épocas, as tendências
sociais ou individualistas, dependendo da vida econômica e da superestrutura
cultural, especialmente moral e filosófica. 50
Nos dias atuais, a maior parte da doutrina ensina que a discussão do
conceito de serviço público versa, principalmente, sobre o que está previsto
no ordenamento jurídico, ou seja, quais atividades o Estado, por meio do
Poder Legislativo, erigiu ao patamar de serviço público, conforme os limites
constitucionais. 51
Em que pese todas essas controvérsias, entendemos, concordando com
Eros Roberto Grau, que o serviço público é um tipo de atividade econômica. 52
Para o autor, a atividade econômica se divide em duas espécies: o serviço
público e a atividade econômica em sentido estrito. Para que não haja confusão
na utilização dos termos, o autor adota a denominação de atividade econômica
quando se trata da atividade econômica em sentido amplo, ou seja, quando se
refere ao gênero do qual é espécie a atividade econômica em sentido estrito.
Essa diferenciação é de extrema relevância, posto que o texto constitucional
utiliza a mesma denominação “atividade econômica” para situações diversas,
quais sejam: a) a do artigo 173 e seu §1º, que se refere à atividade econômica
em sentido estrito, pois o texto constitucional, in casu, indica quais são as
hipóteses em que é permitido ao Estado a exploração direta de atividade cuja
titularidade é do setor privado; b) a do artigo 174, que alude à atividade eco-
nômica em sentido amplo, por respeitar a globalidade de atuação do Estado
como agente normativo e regulador; e c) a do artigo 170, caput, cuja expressão
“atividade econômica” conota gênero e não espécie, devido ao fato do preceito
afirmar que toda atividade econômica, inclusive a desenvolvida pelo Estado

49 Ibid., p. 112.
50 Cf. Wald, 1986, p. 201.
51 Cf. Di Pietro, 2004, p. 97.
52 Cf. Grau, 2003, p. 82.

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A qualificação jurídica da prestação de serviços públicos como relação de consumo 257

na área dos serviços públicos, deve ser fundada na valorização do trabalho


humano e na livre iniciativa, objetivando assegurar a todos uma existência
digna, conforme os ditames da justiça social e observados os princípios da
soberania nacional, da propriedade privada, da função social da propriedade
privada, da livre concorrência e da defesa do consumidor, entre outros. 53
A distinção entre serviços públicos e atividades econômicas em sentido
estrito deve ser aferida em função das vicissitudes das relações existentes
entre as forças sociais, isto é, entre o capital e o trabalho. 54 Destarte, o que é
considerado econômico e o que não é considerado econômico é historicamente
determinado, “[...] surgindo, no sistema capitalista, como construção sobre a
lógica do lucro”. 55 Dessa forma, tudo aquilo que a classe capitalista considerar
como sendo matéria de especulação lucrativa será reivindicado para a área da
economia e, portanto, para a reserva de preferência de sua organização e ex-
ploração pelas empresas privadas, consubstanciando a chamada atividade
econômica em sentido estrito. Por outro lado, o campo daquilo que for consi-
derado como não econômico irá corresponder, exatamente, aos serviços pú-
blicos. 56 Nesse sentido, veja-se o seguinte trecho:

Pretende o capital reservar para sua exploração, como atividade econô-


mica em sentido estrito, todas as matérias que possam ser, imediata ou
potencialmente, objeto de profícua especulação lucrativa. Já o trabalho
aspira atribua-se ao Estado, para que este as desenvolva não de modo
especulativo, o maior número possível de atividades econômicas (em
sentido amplo). É a partir deste confronto – do estado em que tal confronto
se encontrar, em determinado momento histórico – que se ampliarão ou
reduzirão, correspectivamente, os âmbitos das atividades econômicas
em sentido estrito e dos serviços públicos. Evidentemente, a ampliação
ou retração de um ou outro desses campos será função do poder de reivin-
dicação, instrumentado por poder político, de um e outro, capital e traba-
lho. A definição, pois, desta ou daquela parcela da atividade econômica
em sentido amplo como serviço público é – permanecemos a raciocinar

53 Ibid., p. 93-98, passim.


54 Ibid., p. 98.
55 Grau, 1988, p. 112.
56 Ibid., p. 112.

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258 Karine Monteiro Prado

em termos de modelo ideal – decorrência da captação, no universo da


realidade social, de elementos que informem adequadamente o estado,
em um certo momento histórico, do confronto entre interesses do capital
e do trabalho. 57

Esse critério auxilia o intérprete na identificação desta ou daquela par-


cela da atividade econômica em sentido amplo como modalidade de serviço
público ou de atividade econômica em sentido estrito, que não deve ocorrer
somente no plano dos modelos ideais, à margem da ordem jurídica. 58 Efeti-
vamente, o que deve ser determinante é o exame da Constituição Federal,
compreendendo-se que o serviço público não é um conceito, mas uma noção
plena de historicidade. 59
Há hipóteses nas quais o próprio texto constitucional elevou à categoria
de serviços públicos certa parcela da atividade econômica (em sentido amplo),
dividindo-os em serviços públicos privativos e serviços públicos não privati-
vos. 60 Os primeiros são aqueles cuja prestação é privativa do Estado, ou seja,
da União, dos Estados-membros e dos Municípios, ainda que admitida a pos-
sibilidade de entidades do setor privado desenvolverem-na, em regime de
concessão ou permissão, de acordo com o artigo 175 da CR/88. Já os serviços
públicos não privativos são aqueles que tanto podem ser desenvolvidos pelo
setor público quanto pelo setor privado, independentemente de concessão ou
permissão, sem perderem, todavia, a sua qualificação jurídica. 61 Os serviços
de educação e saúde são exemplos dessa espécie de serviços públicos. 62 Não
importaria, portanto, quem prestasse esses serviços, se a Administração Pú-
blica ou os particulares, pois, em qualquer hipótese, estaríamos diante de um
serviço público. 63
Já no que se relaciona aos serviços públicos do tipo privativo, extrai-se
da análise do texto do artigo 21 da CR/88 a conclusão de que são serviços

57 Id., 2003, p. 98-99. Grifos nossos.


58 Ibid., p. 99.
59 Ibid.
60 Ibid., p. 105.
61 Cf. ibid. Veja-se, em sentido contrário, entendendo que tais serviços perdem a qualidade
de públicos quando são prestados pelo setor privado: Mello, 2005, p. 649.
62 Ibid.
63 Grau, 2003, p. 106.

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A qualificação jurídica da prestação de serviços públicos como relação de consumo 259

públicos, em geral, as prestações dos serviços referidas nos seus incisos X, XI


e XII. No tocante ao texto do §2º do artigo 25, chega-se à conclusão de que há
serviço público na prestação de serviços de gás canalizado. Por fim, quanto ao
texto do artigo 30, inciso V, a conclusão é de que há serviço público na prestação
de transporte coletivo local. 64
A partir dos ensinamentos do Eros Roberto Grau, constata-se que a sim-
ples leitura do texto constitucional não basta para se identificar como sendo
serviço público a exploração de uma determinada atividade pelo Estado. De
acordo com o artigo 21, XXIII, da CR/88, a exploração de serviços e instalações
nucleares de qualquer natureza e o exercício do monopólio estatal sobre a
pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o
comércio de minérios nucleares e seus derivados, por exemplo, são atividades
de competência da União, mas, seguramente, não constituem serviços públicos.
Consistem em atividades econômicas em sentido estrito, em regime de mono-
pólio. 65 É certo que as atividades econômicas em sentido estrito são de titu-
laridade do setor privado; contudo, podem ser exploradas pelo Estado, nas
hipóteses do artigo 173, isto é, nos casos em que for necessário aos imperativos
da segurança nacional ou devido a relevante interesse coletivo e nas hipóteses
fixadas pela própria Constituição, como é o caso inciso XXIII, do artigo 21. 66
Além desses casos, a atuação do Estado no campo da atividade econômica em
sentido estrito está prevista, também, no artigo 177, que versa sobre o mono-
pólio do petróleo e do gás natural. 67
Dessa forma, “[...] a mera atribuição de determinada competência ati-
nente à prestação de serviços ao Estado não é suficiente para definir essa
prestação como serviço público”, 68 devendo sempre ser verificado se a atri-

64 Ibid.
65 Ibid., 109. Monopólio é um tipo de regime jurídico próprio das atividades econômicas em
sentido estrito desenvolvidas pelo Estado, ao lado do regime de competição, onde também
figuram entidades do setor privado. Já em relação à prestação de serviços públicos, temos
o regime de privilégio, onde somente cabe ao Estado ou aos seus delegados a prestação
desses serviços. Nesta última hipótese, o setor privado também pode atuar, mediante a
concessão ou a permissão do serviço público, não descaracterizando o regime de privilégio.
(Grau, 2003, p. 118-119).
66 Ibid., p. 108-109.
67 Ibid., p. 109.
68 Ibid.

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260 Karine Monteiro Prado

buição constitucional do exercício dessa competência atende à imposição dos


interesses do trabalho, em confronto com os interesses do capital, ou se, ao
revés, outras razões determinaram a atribuição desse exercício ao Estado. 69
Assim, o que justifica a atuação do Estado como agente da atividade econômica
em sentido estrito, nas hipóteses do artigo 21, XXIII, e do artigo 177, são
razões creditadas aos imperativos da segurança nacional 70 e ao relevante inte-
resse coletivo.
O Estado, portanto, quando exerce atividade econômica em sentido
amplo, em função de imperativo da segurança nacional ou para atender a
relevante interesse coletivo, desenvolve atividade econômica em sentido es-
trito; por outro lado, quando exerce uma atividade econômica para acatar a
um interesse social, desenvolve um serviço público. 71
A Constituição, através de diretrizes, programas e fins que enuncia,
além de identificar novas áreas de atuação do serviço público, indica a inten-
sidade a ser adotada na prestação das atividades que o caracterizam. 72 É,
pois, sob esse ponto de vista e levando em consideração todo o exposto, que
Eros Roberto Grau entende por serviço público

[...] a atividade explícita ou supostamente definida pela Constituição


como indispensável, em um determinado momento histórico, à realização
e ao desenvolvimento da coesão e da interdependência social [...], ou,
em outros termos, atividade explícita ou supostamente definida pela
Constituição como serviço existencial relativamente à sociedade em um
determinado momento histórico [...]. 73

Dessa forma, a identificação dos casos nos quais uma atividade assume
caráter existencial em relação à sociedade é conformada pelo texto constitu-
cional de acordo com os termos analisados neste tópico, sendo certo que a

69 Ibid.
70 Ibid.
71 Ibid., p. 111, onde também afirma que o interesse coletivo e o interesse social são distintos
entre si, ainda que ambos sejam espécies do gênero interesse público.
72 Ibid., p. 113.
73 Ibid., p. 117-118.

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A qualificação jurídica da prestação de serviços públicos como relação de consumo 261

Constituição é um dinamismo onde “[...] se tomam as forças que a ela, bem


assim ao Direito, conferem vida”. 74
Está com razão, então, o autor, quando afirma que os movimentos de
redução ou de ampliação das parcelas da atividade econômica em sentido
amplo que consubstanciam serviço público refletem a atuação das forças so-
ciais – do trabalho e do capital – em uma determinada época, forças sociais
que, evidentemente, também são conformadas pela Constituição. 75 Assim,
atente-se, mais uma vez, para o fato de que a interpretação constitucional,
imprescindível ao desvendamento do quanto por ela definido para a qualifi-
cação dos serviços públicos, explícita ou supostamente, envolve a interpreta-
ção dos fatos, na forma como se manifestam em um determinado momento
específico. 76

APLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR À PRESTAÇÃO


DE SERVIÇOS PÚBLICOS

Posição atual da doutrina

Definidos e devidamente caracterizados o consumidor, o fornecedor e os ser-


viços públicos, pergunta-se: a prestação de serviços públicos está sob a tutela
protetiva do CDC? Em caso afirmativo, todas as categorias de serviços públicos
estão sob o âmbito de aplicação do CDC? É através das respostas a essas
perguntas que será possível a qualificação da prestação de serviços públicos
como uma relação de consumo.
Podemos dividir a doutrina nacional, ainda controversa nesse tema, em
três vertentes: a) a que tangencia a problemática da aplicabilidade do CDC aos
serviços públicos e não a analisa de maneira mais detalhada; b) a que considera
que somente os serviços públicos diretamente remunerados pelo usuário do
serviço – os serviços públicos uti singuli – estão sob o âmbito de aplicação do
CDC; e c) aquela, a qual nos filiamos, que entende que a prestação de serviços
públicos é uma relação de consumo, independentemente da forma de sua
remuneração, ou seja, quer seja ela remunerada direta ou indiretamente pelo

74 Ibid., p. 117.
75 Ibid.
76 Ibid., p. 118.

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262 Karine Monteiro Prado

usuário do serviço público – abrangendo, portanto, tanto os serviços públicos


uti singuli quanto os uti universi. 77
Os adeptos da primeira vertente fogem deliberadamente da questão
concernente ao âmbito de abrangência do CDC no tocante à prestação de ser-
viços públicos, atendo-se, apenas, à tutela prevista em seu artigo 22. 78
A segunda vertente doutrinária considera a prestação de serviços públicos
como relação de consumo somente na hipótese em que haja uma remuneração
direta por parte do usuário do serviço, 79 podendo-se destacar três posiciona-
mentos específicos: a) o que considera a prestação de serviços públicos como
relação de consumo se o serviço for remunerado mediante o pagamento de
uma taxa; 80 b) o que considera como relação de consumo a prestação de
serviços públicos remunerada apenas mediante o pagamento de tarifas; 81 e

77 Relembre-se a consagrada classificação de Hely Lopes Meirelles: “Serviços ‘uti universi’


ou gerais: são aqueles que a Administração presta sem ter usuários determinados, para
atender à coletividade no seu todo, como os de polícia, iluminação pública, calçamento e
outros dessa espécie. Esses serviços satisfazem indiscriminadamente a população, sem
que se erijam em direito subjetivo de qualquer administrado à sua obtenção para seu
domicílio, para sua rua ou para seu bairro. Estes serviços são indivisíveis, isto é, não
mensuráveis na sua utilização. Daí por que, normalmente, os serviços uti universi devem
ser mantidos por imposto (tributo geral), e não por taxa ou tarifa, que é remuneração
mensurável e proporcional ao uso individual do serviço. Serviços ‘uti singul’ ou individuais:
são os que têm usuários determinados e utilização particular e mensurável para cada
destinatário, como ocorre com o telefone, a água e a energia elétrica domiciliares. Esses
serviços, desde que implantados, geram direito subjetivo à sua obtenção para todos os
administrados que se encontrem na área de sua prestação ou fornecimento e satisfaçam
as exigências regulamentares. São sempre serviços de utilização individual, facultativa e
mensurável, pelo que devem ser remunerados por taxa (tributo) ou tarifa (preço público),
e não por imposto.”(Meirelles, 2005, p. 320-322, grifo do autor).
78 Cf. dentre outros: Lazzarini, 1999, p. 143-150; Menezello, 1996, p. 232-235; Farena, 2001,
p. 93-106.
79 Essa também é a opinião reinante no STJ. Cf. dentre outros: 702.214/CE, DJ 02.05.2005;
REsp 705.203/SP, DJ 07.11.2005; REsp 775.215/RS, DJ 03/04/2006; REsp 898.769/RS,
DJ 12/04/2007; REsp 947.613/RS, DJ 24/09/2007; REsp 976.722/MG, DJ 13/02/2008;
REsp 986.415/RS, DJ 25/02/2008.
80 Costa, 1997, p. 103. A taxa é uma espécie tributária, de acordo com o art. 145, II, da CR/
88. Vide, ainda, o art. 77 e 79 do Código Tributário Nacional (CTN).
81 Cf. dentre outros: Lopes, 1998, p. 120; Lisboa, 2000, p. 302; Filomeno, 2001, p. 53; Bonatto
e Morais, 2001, p. 99-111; Novais, 2006, p. 168 e ss.

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A qualificação jurídica da prestação de serviços públicos como relação de consumo 263

c) o que afirma que é relação de consumo a prestação de serviços públicos


remunerada mediante o pagamento de uma taxa ou tarifa. 82
No tocante ao primeiro posicionamento, Regina Helena Costa afirma
que é a exigência de remuneração específica posta no §2º, artigo 3º, do CDC
que determina quais serviços públicos se sujeitam a sua disciplina legal. Para
a autora, somente os serviços públicos específicos e divisíveis, isto é, os uti
singuli, como o fornecimento de energia elétrica e água, estariam sob o âmbito
de aplicação do CDC, sendo que tais serviços seriam pagos apenas através do
recolhimento de taxas. 83
O segundo posicionamento da segunda vertente doutrinária somente
admite que a prestação de serviços públicos configure uma relação de consumo
quando sejam remunerados mediante tarifas ou preços públicos, o que ocor-
reria na prestação de alguns serviços uti singuli. Nessa hipótese, estar-se-ia
diante de uma relação de direito privado, pois, do contrário, caso o serviço
fosse remunerado por meio do pagamento de uma taxa ou de qualquer outro
tributo, a relação jurídica estabelecida seria tributária, isto é, de direito público,
sendo diversas as figuras de consumidor e de contribuinte, que não se confun-
diriam. 84
Segundo Elaine Cardoso de Matos Novais, tanto os serviços uti universi
como os uti singuli são remunerados.85 Os primeiros de forma indireta, custea-
dos por impostos e contribuições sociais em geral. 86 Os segundos de forma
direta, mediante o pagamento de uma taxa ou tarifa, ambas instrumentos
remuneratórios dos serviços públicos específicos e divisíveis. Todavia, a autora
sustenta que quando está fornecendo os serviços públicos uti universi ou os
serviços públicos uti singuli remunerados por taxas, o Estado investe-se, em
ambos os casos, na posição de agente político e não de agente econômico,
posição esta que não seria a de um “fornecedor no mercado de consumo”. 87
Assim, para a autora, somente os serviços públicos tarifados são objeto de

82 Cf. entre outros: Donato, 1993, p. 123; Pasqualotto, 199-, p. 132; Marques, 2005, p. 561-
578; Bessa, 2009, p. 115-120; Macedo Júnior, 2001, p. 83.
83 Cf. Costa, 1997, p. 102-103.
84 Cf. Filomeno, 2001, p. 53; Bonatto e Moraes, 2001, p. 101-111.
85 Cf. Novais, 2006, p. 154-156.
86 Ibid., p. 155.
87 Ibid., p. 159-160; 169.

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264 Karine Monteiro Prado

uma relação jurídica de consumo, “[...] já que, nesses casos não há relação
jurídico-tributária e o Estado não se reveste da autoridade estatal”. 88
Para o terceiro e último posicionamento dessa vertente doutrinária,
apenas existiria relação de consumo quando a prestação de serviços públicos
fosse remunerada diretamente pelo usuário do serviço, quer mediante o pa-
gamento de uma taxa, quer, indistintamente, pelo pagamento de uma tarifa
ou preço público. Tal circunstância acontece na prestação dos serviços públicos
uti singuli, que são pagos através de taxas ou tarifas, 89 ficando excluídos da
incidência do CDC os serviços uti universi, já que não são prestados em virtude
de um vínculo contratual, mas sim meramente cívico, entre o cidadão e o
Estado. 90 Sustenta-se que os serviços públicos universais, que não são pagos
diretamente pelos cidadãos, não poderiam ser objeto de tutela do CDC, pois,
nessa hipótese, o Estado não se caracterizaria como um profissional, 91 ou,
ainda, porque tais serviços, pela sua própria natureza, constituiriam funções
inerentes do Poder Público. 92
Leonardo Roscoe Bessa ensina que somente os serviços públicos uti singuli
estão sujeitos ao CDC, independentemente da natureza jurídica de sua remu-
neração, pois apenas tais serviços é que seriam prestados no mercado de con-
sumo, ao contrário dos serviços públicos universais que estariam fora desse
mercado. O autor ainda sustenta que deve “[...] haver certa correspondência
entre o valor pago e o serviço prestado (relação econômica de troca). [...] Simpli-
ficando, deve haver correlação entre o que se paga e o que se recebe (ou se
deveria receber)”, 93 concluindo que somente se submetem à disciplina do CDC
os serviços públicos cuja remuneração seja feita diretamente pelo consumidor.
Em resumo, os adeptos da segunda corrente doutrinária entendem que
apenas a prestação de serviços públicos uti singuli pode ser considerada como
relação de consumo, havendo aqueles que restringem sua opinião à prestação
dos serviços públicos singulares remunerados apenas por tarifas. A contro-
vérsia cinge-se, em geral, à questão da natureza jurídica da remuneração direta

88 Ibid., p. 171.
89 Cf. Pasqualotto, 199-, p. 132; Marques, 2005, p. 564.
90 Cf. Marques, 2005, p. 564.
91 Cf. Pasqualotto, 199-, p. 134-135.
92 Cf. Donato, 1993, p. 125.
93 Bessa, 2009, p. 117.

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A qualificação jurídica da prestação de serviços públicos como relação de consumo 265

desses serviços públicos: se tributária ou não. Nesse ínterim, não olvidamos a


problemática que envolve tal questão, amplamente discutida pela doutrina
tributarista. 94 Contudo, devido, mais uma vez, à dimensão do presente traba-
lho, não nos posicionaremos a respeito do tema. Frise-se que tal postura não
é prejudicial, pois consideramos que a prestação de serviços públicos é uma
relação de consumo, quer seja ela direta ou indiretamente remunerada, o que
direciona para segundo plano a discussão a respeito da natureza jurídica da
remuneração direta do serviço público uti singuli. Nosso entendimento é muito
mais amplo e está a incluir toda e qualquer espécie de serviço público, inde-
pendentemente da forma de sua remuneração.
Essa é a opinião da terceira e última vertente a respeito do tema. 95
Antônio Herman V. Benjamin afirma, expressamente, que qualquer “[...]
serviço público – seja ele público stricto sensu ou de utilidade pública, seja uti
universi ou uti singuli – deve ser prestado de forma adequada, eficiente e
segura.” 96 Comentando o artigo 22 do CDC, o referido autor, ao explicar que
os serviços públicos essenciais são aqueles indispensáveis à vida em comuni-
dade, ou seja, à sociedade de consumo, aponta que se incluem nesse conceito
não só os “[...] serviços públicos stricto sensu (os de polícia, os de proteção da
saúde), mas ainda os serviços de utilidade pública (os de transporte coletivo,
os de energia elétrica, os de gás, os de telefone, os de correios)”. 97 Assim,
para o autor, qualquer espécie de serviço público está sob o âmbito de aplicação
da lei consumerista.

94 Temos duas posições principais a respeito da diferença entre taxas e tarifas: a) a que
considera que os serviços públicos específicos e divisíveis somente podem ser remune-
rados mediante taxas, ou seja, tributos vinculados a uma atuação estatal, de acordo com
o artigo 145, II, da CR/88; e b) a que entende que os serviços públicos específicos e
divisíveis podem ser remunerados mediante taxas ou tarifas, conforme o tipo específico
do serviço público uti singuli. Sobre o assunto, vide, entre outros: Torres, 1998, p. 157-
168; Ataliba, 1984, p. 152-154; Carrazza, 2004, p. 481-506; Coelho, 2005, p. 156-157.
95 Cf. Benjamin in Oliveira, 1991, p. 110; Capucho, 2002, p. 107-112; Almeida, 2002, p. 43; 99;
Alvim in Alvim et al, 1995, p. 158-164; Cazzaniga, 1994, p. 144-160; Nunes, 2005, p. 112;
Oliveira Filho, 2004, p. 137-138. Entretanto, reconhecemos que não encontramos posicio-
namentos nos tribunais a respeito dessa tese. Apenas em sentido contrário: STJ-MC 1853/
SP, Rel. Min. José Delgado, DJ 18.11.1999; REsp 260.578-MG, Rel. Min. José Delgado, DJ
23/10/2000; REsp 233.664/MG. Rel. Min. Garcia Vieira, DJ 02/12/1999.
96 Benjamin, 1991, p. 110, grifo nosso.
97 Ibid., p. 111.

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266 Karine Monteiro Prado

Essa também é a opinião de João Batista de Almeida, de Thereza Alvim,


Gláucia Aparecida Ferraroli Cazzaniga, Luiz Antônio Rizzato Nunes e Rodrigo
Priolli de Oliveira Filho, que, ao abordarem o tema, afirmam, em linhas gerais,
que o CDC não discriminou quais seriam as categorias de serviços públicos
que estariam sob seu âmbito de tutela, apontando como exemplos de serviços
públicos prestados ao consumidor tanto hipóteses de serviços públicos uti
singuli quanto uti universi. 98
Fábio Jun Capucho argumenta que não seria sustentável o posiciona-
mento doutrinário que apenas considera a prestação dos serviços públicos
que são pagos diretamente pelos seus usuários como relação de consumo,
devido ao fato de que restariam albergadas tão somente sob o pálio do CDC
as atividades que são classificadas como impróprias do Estado. De fato, essas
atividades seriam as que mais se aproximariam dos serviços prestados pelos
particulares; contudo, “[...] estar-se-ia desprezando o nítido intento do legislador
de fazer incutir no âmbito do serviço público a mesma dinâmica proposta
para o setor privado, de harmonização das relações de consumo”. 99 O autor
afirma que:

[...] por serviço público, para efeitos da incidência do aparato legal de


consumo, devem [sic] ser entendida toda e qualquer atividade prestada
pelo Poder Público, por si ou por terceiros (concessionários, permissio-
nários) sob sua direção e controle, independentemente da forma de sua
remuneração. 100

Com apoio nessa terceira vertente doutrinária e com a análise dos argu-
mentos expostos anteriormente, quando examinamos os elementos componen-
tes de uma relação jurídica de consumo, qualificamos a prestação de serviços
públicos a determinados usuários desses serviços como uma verdadeira relação
de consumo, independentemente da forma de sua remuneração.

98 Cf. Almeida, 2002, p. 43; 99; Alvim, 1995, p. 160; Cazzaniga, 1994, p. 157; Nunes, 2005,
p. 112-113; Oliveira Filho, 2004, p. 137-138.
99 Capucho, 2002, p. 109.
100 Ibid. Grifo do autor.

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A qualificação jurídica da prestação de serviços públicos como relação de consumo 267

A prestação de serviços públicos como relação de consumo


independentemente da forma de sua remuneração

Diante de todas as considerações feitas, não há dúvida de que o CDC se aplica


à prestação de serviços públicos. Não se poderia chegar a outra conclusão, a
não ser que se considerasse letra morta as disposições dos artigos 3º, caput,
4º, inciso VII, 6º, inciso X, e 22 do CDC, que tratam da temática.
As normas protetivas do CDC se aplicam a toda e qualquer prestação de
serviços públicos, não estando excluída do seu âmbito de aplicação qualquer
espécie desse serviço. É claro que a medida e a intensidade dessa tutela espe-
cífica podem variar conforme as características de cada serviço público, 101
mas não obstam a que o vínculo existente entre o usuário do serviço público
e o seu fornecedor seja considerado como uma relação de consumo.
Dissemos que para a constatação de uma relação de consumo basta que
haja a presença conjunta de um consumidor, de um fornecedor e de um pro-
duto ou serviço objeto desse vínculo jurídico, nos termos postos pelo CDC.
De posse, então, de todas as premissas traçadas, demonstraremos que a pres-
tação de serviços públicos constitui uma verdadeira relação consumo, preen-
chendo todos os requisitos necessários para essa qualificação jurídica.
Alguns usuários de serviços públicos se encaixam perfeitamente na
definição de consumidor. Aqui também deverá ser avaliada a questão da des-
tinação final dada ao uso do serviço público para que o usuário possa ser
considerado consumidor.
O consumidor stricto sensu de serviços públicos, então, é a pessoa física
e sua família, que utilizam esse serviço na sua vida diária. A vulnerabilidade
fática desse sujeito de direitos fundamentais diante do fornecedor de serviços
públicos é inerente a essa relação jurídica. Recorde-se que existem serviços
públicos privativos do Estado, prestados por seus próprios órgãos ou por en-
tidades privadas em regime de concessão ou permissão, e serviços públicos

101 Como, à guisa de exemplo, o poder revisional do juiz diante da hipótese de onerosidade
excessiva, que não poderá ser aplicado na hipótese de serviços públicos remunerados
mediante tributos (impostos ou taxas), por se tratar de remunerações advindas de impo-
sição legal, só podendo ter seu valor pecuniário reduzido mediante promulgação da le-
gislação tributária específica que modifique, por exemplo, a alíquota do tributo. Tal tema
consiste em um dos desdobramentos do raciocínio aqui exposto, suscitando intenso
debate.

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268 Karine Monteiro Prado

não-privativos, cuja prestação pode ser desenvolvida tanto pelo setor público
quanto pelo setor privado, independentemente de concessão ou permissão.
No primeiro caso, é óbvio que diante dessa total exclusividade na prestação
do serviço, o usuário submete-se ao que é imposto pelo fornecedor em razão
da sua necessidade de consumo, ainda mais se for considerado o caráter es-
sencial desse serviço.
Quem, nos dias atuais, no âmbito de sua vida privada, pode sobreviver
sem acesso à água tratada, à energia, aos serviços telefônicos etc.? Os consu-
midores desses serviços públicos não podem recorrer a outro fornecedor, caso
o serviço seja prestado de forma inadequada ou ineficiente, devido à própria
sistemática constitucional que estipula um verdadeiro monopólio fático 102 do
regime de prestação desses serviços. Inclusive, diante dessa circunstância, o
STJ vem considerando como consumidores – por analogia ou utilizando-se
das hipóteses de equiparação – os exercentes de uma atividade econômica
que utilizam um serviço público, desde que demonstrada, no caso concreto, a
vulnerabilidade desses últimos. 103
Indiscutível, também, a vulnerabilidade fática no tocante à prestação
dos serviços públicos não privativos, como a saúde e a educação, quando
prestados pelo setor público. 104 Nem se argumente que, nessa hipótese, o
consumidor teria a liberdade de não utilizar o serviço prestado pelo próprio
Estado, caso este fosse inadequado, e recorrer ao setor privado para o atendi-
mento de suas necessidades. Sabemos que a maior parte de nossa população
está excluída do acesso aos bens mais essenciais para o desenvolvimento digno
de sua personalidade – o chamado mínimo existencial –, tais como a moradia,
a educação, a alimentação, a saúde etc. Aqueles que utilizam um serviço pú-
blico não privativo prestado pelo Estado sequer podem entabular contratos

102 Entenda-se aqui o termo monopólio no seu sentido comum, como expressão da exclusi-
vidade de exploração de um determinado produto ou serviço, e não no sentido jurídico,
como regime de exploração de atividade econômica em sentido estrito, prestada pelo
Estado, como as previstas no artigo 177 da CR/88.
103 É o caso dos julgados: REsp nº 263.229/SP e REsp 661.145/ES.
104 Não é controverso o entendimento de que tais serviços, quando são prestados pelo setor
privado, configuram uma relação de consumo. O que se discute, conforme visto, é a
natureza jurídica desse serviço quando prestados nessa hipótese: se consistem em serviços
privados ou se continuam sendo serviços públicos. Para nós, como já demonstramos,
tais serviços continuam sendo públicos.

Karine Prado.p65 268 20/11/2010, 18:38


A qualificação jurídica da prestação de serviços públicos como relação de consumo 269

com o setor privado, pois não dispõem das condições econômicas exigidas
pelos planos de saúde ou pelos estabelecimentos de ensino particular, por
exemplo. Resta a essas pessoas, tão somente, desfrutar dos serviços prestados
pelo Estado – quando isso chega a ser possível –, na medida e nas condições
em que são fornecidos, ainda que de forma precária, como ocorre na maior
parte das vezes.
É latente, portanto, o desequilíbrio advindo do vínculo estabelecido entre
o consumidor de serviços públicos e o seu fornecedor, sendo imprescindível a
tutela especial dessa relação jurídica para que, também nesse caso, atenda-se
ao princípio da igualdade material e, conseqüentemente, do equilíbrio nas
relações entre consumidores e fornecedores, estipulada no artigo 4º, inciso III,
do CDC. Daí a inclusão da pessoa jurídica pública no rol dos fornecedores
elencado no artigo 3º, caput, do CDC.
O prestador de serviços públicos preenche todos os requisitos necessá-
rios para que possa ser considerado fornecedor de acordo com as disposições
do CDC. Relembre-se que o código estipulou que para a configuração de um
fornecedor de serviços basta que ele desenvolva qualquer atividade de presta-
ção de serviços. Ora, a prestação de serviços públicos nada mais é do que uma
atividade desenvolvida de forma organizada e contínua, pois consiste em uma
série de atos devidamente coordenados entre si.
Conceito que se relaciona diretamente ao de fornecedor é o de serviços;
e, também quanto a esse aspecto, os serviços públicos são totalmente enqua-
dráveis. Recorde-se que a maior parte da doutrina considera somente os ser-
viços públicos diretamente remunerados, os denominados serviços públicos
uti singuli, sob a tutela protetiva do código.
Um primeiro argumento dos que defendem essa posição é que apenas
nessa hipótese o Estado poderia ser considerado profissional, devido ao fato
de ser pago pelo serviço realizado. 105 Com a devida vênia, esse argumento é
inconsistente, pelo fato do CDC não exigir o requisito da profissionalidade
para o fornecimento de serviços. Repita-se, mais uma vez, que, no tocante à
prestação de serviços, a disciplina do código adotou um posicionamento amplo,
buscando abarcar um número maior de atividades. In casu, necessita-se apenas
que o fornecimento de serviços seja feito de maneira contínua, prescindindo-
se de investigações quanto ao caráter profissional ou não do fornecedor.

105 Cf. Pasqualotto, 199-, p. 134-135.

Karine Prado.p65 269 20/11/2010, 18:38


270 Karine Monteiro Prado

Um segundo argumento é o de que, na prestação dos serviços públicos


uti universi, o Estado não estaria agindo como um parceiro contratual, e o
vínculo advindo entre ele e o cidadão seria decorrente do seu jus imperii, o
que impossibilitaria o reconhecimento da aplicabilidade do CDC. 106 Ora, o
CDC não se refere a contrato de consumo, mas à relação de consumo, 107 vín-
culo jurídico que pode ter sua gênese em vários tipos de fatos jurídicos, inclu-
sive os contratos. Há hipóteses de relação de consumo em que os interlocutores
(ou apenas um deles) não fazem parte de um contrato de consumo. Exemplos:
a) o caso de estudantes de um colégio, que são consumidores dos serviços
educacionais, intervindo diretamente na relação de consumo, conforme o ar-
tigo 2º, caput e parágrafo único do CDC, apesar de não terem contratado com
a entidade educacional, pois o contrato foi celebrado por seus pais; b) ou a
hipótese de um indivíduo que assiste uma publicidade e é induzido a erro,
mas que não chega a contratar um serviço ou comprar um produto, e que está
sob a tutela do CDC, de acordo com o seu artigo 29. 108 Dessa forma, o vínculo
estabelecido entre o usuário do serviço público uti universi e o fornecedor, 109
imposto pela CR/88, não obsta a qualificação dessa relação jurídica como
sendo de consumo.
Outro argumento contrário à nossa tese seria o da exigência de remune-
ração direta feita pelo usuário para a configuração de uma relação jurídica de
consumo de serviços públicos, o que somente ocorreria em relação à prestação
dos serviços uti singuli. Ora, como já demonstrado, o pagamento é apenas
uma das formas de remuneração dos serviços. O §2º do art. 3º do CDC exige
apenas que o serviço seja remunerado para que possa ser considerado objeto
de uma relação de consumo, o que no caso da prestação de serviços públicos
pode ocorrer tanto de forma direta, através do pagamento feito por meio de
uma taxa ou tarifa, ou indiretamente, quando o serviço público é pago por
toda a coletividade, ou seja, quando os custos de sua manutenção são divididos
entre os cidadãos. Veja-se que o usuário do serviço público está incluso nessa
coletividade e contribui, portanto, de forma indireta para a remuneração desse
serviço.

106 Cf. Bonatto e Moraes, 2001, p. 101; Marques, 2005, p. 564; Novais, 2006, p. 159-160.
107 Vide artigo 4º do CDC, dentre outros. Cf. Nery Júnior, 2004, p. 494.
108 Os exemplos são de Marques, 2005, p. 368.
109 Bem como para os remunerados mediante taxa.

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A qualificação jurídica da prestação de serviços públicos como relação de consumo 271

Conforme visto, mesmo os serviços ditos gratuitos estão sob o âmbito


de aplicação do CDC, desde que remunerados indiretamente, como, por exem-
plo, as amostras grátis, os estacionamentos gratuitos em estabelecimentos
comerciais e o transporte coletivo municipal de idosos acima de 65 anos. 110
Observe-se que, nesse último exemplo, estamos diante da prestação de um
serviço público. Com razão Cláudia Lima Marques quando, abordando o as-
sunto, afirma que:

[...] a remuneração não é direta pelo idoso beneficiado, mas indireta, pelo
preço pago por toda a coletividade e pelo benefício da manutenção da
concessão pública daquele fornecedor de serviços de transportes coletivos.
Tais atividades são de “consumo” e a relação que se estabelece com os
idosos é regida pelo CDC e pelas regras especiais desta oferta gratuita. 111

Veja-se, portanto, que a questão da gratuidade ou, adotando uma ter-


minologia tecnicamente mais correta, da remuneração indireta dos serviços,
também envolve os serviços públicos uti singuli, e não apenas os serviços
públicos uti universi. Também os serviços públicos de vacinação, por exemplo,
são específicos, divisíveis e prestados à população sem uma contraprestação
imediata, 112 sendo mantidos, assim, da mesma forma que os serviços públicos
universais, ou seja, pelas receitas gerais do Estado, que compreendem, em
sua grande maioria, o recolhimento de impostos.
Na verdade, todos os serviços públicos são remunerados pelos usuários
de alguma forma, quer diretamente, por meio do pagamento de uma taxa ou
tarifa, quer indiretamente, através do pagamento de impostos. Portanto, a dife-
renciação entre serviços públicos uti singuli ou uti universi não importa para
fins da incidência normativa do CDC. Em ambos os casos estão preenchidos os
requisitos necessários para a qualificação de uma relação jurídica de consumo.
Tratar essas hipóteses de maneira diversa daquela empregada nas prestações
dos serviços ditos privados, apesar de possuírem claramente a mesma ratio,
seria tratar desigualmente situações iguais ou, no mínimo, equivalentes.

110 Cf. Marques, 2005, p. 394-395. A gratuidade dos serviços de transportes coletivos urbanos
para os idosos está prevista no art. 230, §2º, da CR/88.
111 Marques, 2005, p. 400.
112 Cf. Carazza, 2004, p. 490.

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272 Karine Monteiro Prado

Discordamos, ainda, das opiniões que entendem que a prestação de


serviços públicos universais seria uma atividade desenvolvida “fora do mer-
cado de consumo”. 113 Ora, se o mercado de consumo é constituído pelo con-
junto de relações de troca de bens e prestação de serviços que são praticadas
pelos agentes econômicos, a prestação de serviços públicos, quer seja a refe-
rente aos serviços públicos uti universi, quer seja em relação aos serviços
públicos uti singuli, faz parte desse mercado também, pois, como foi visto,
nada mais é do que uma espécie de atividade econômica desenvolvida pelo
Estado. 114
Podemos perceber que a resistência da doutrina e da jurisprudência em
considerar a prestação de serviços públicos uti universi 115 como uma relação
de consumo está na circunstância de que o vínculo existente entre o fornecedor
do serviço público e o usuário adviria de uma relação jurídica de direito público,
de natureza administrativa e tributária e, devido a isso, não seria possível a
aplicabilidade do CDC in casu, pois este seria um corpo de normas a reger
relações entre particulares, ou seja, de direito privado.Não se justifica esse
argumento face à realidade política e socioeconômica atual. Direito público e
direito privado são duas searas do direito que não possuem mais liames es-
tanques e pré-definidos. É o que será demonstrado a seguir.

A superação da dicotomia entre direito público e direito privado.


A interdisciplinaridade do Código de Defesa do Consumidor

Não é de hoje que está em crise a distinção entre direito público e direito
privado. 116 A grande dicotomia público-privado 117 só tem razão de ser em

113 Cf. Novais, 2006, p. 159-160; Bessa, 2007, p. 172-173.


114 Obviamente, a atuação do Estado no exercício de atividades econômicas no mercado de
consumo, seja a de prestação de serviços públicos ou mesmo em atividades econômicas
em sentido estrito, possuem tratamentos jurídicos específicos e diversos da atuação dos
demais agentes econômicos na produção e circulação de bens e serviços privados (como,
por exemplo, a venda de alimentos, imóveis, computadores, prestação de serviços
advocatícios, contábeis etc.), pois não visam exclusivamente o lucro, como estes, mas
sim a coesão e interdependência social, no primeiro caso, e ao interesse coletivo, no
segundo caso. Cf. Derani, 2002, p. 58.
115 Ou ainda, para alguns autores, aqueles remunerados mediante taxa.
116 Cf. Giorgianni, 1998, p. 35-55; Perlingieri, 1999, p. 52-55; 284-285.
117 Expressão utilizada por Norberto Bobbio (1991, p. 13-31).

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A qualificação jurídica da prestação de serviços públicos como relação de consumo 273

uma sociedade em que seja possível a distinção entre as esferas de liberdade


dos indivíduos e de autoridade do Estado, pois nela, conseqüentemente, há a
possibilidade de se diferenciar o que constitui o interesse privado e o que cons-
titui o interesse público. 118 Essa era a sociedade encontrada no modelo liberal
de organização política do Estado do século XVIII e de até meados do século
XIX. O direito privado, nesse sistema, visava de modo completo e exclusivo a
regulação do estatuto dos particulares, ou seja, o indivíduo era o centro do
ordenamento jurídico, no qual a propriedade privada e o contrato constituíam
os pilares do sistema, constitucionalizando uma determinada concepção de vida
econômica relacionada, intrinsecamente, à idéia liberal. 119 A finalidade do di-
reito privado era disciplinar a vida dos indivíduos no seio da sociedade.
Esse modelo de sociedade não persiste mais na conjuntura política so-
cioeconômica contemporânea, tendo o direito privado, assim como o direito
público, passado por transformações históricas intensas nesses mais de cento
e cinqüenta anos. 120 O modelo liberal começou a se transformar a partir do
fim do século XIX, quando teve início o processo de concentração econômica,
acompanhado da crescente politização dos conflitos sociais, e generalizou-se
no decorrer do século XX. Aos poucos foi sendo atribuída ao Estado a função
de equilibrar a liberdade dos indivíduos com as necessidades da sociedade. 121
O conteúdo do direito privado foi-se modificando paulatinamente. O que antes
consistia apenas em proteção do indivíduo frente ao “Príncipe”, agora contém
uma série de regras destinadas a disciplinar algumas atividades da vida social,
nas quais são adotados certos instrumentos jurídicos específicos, permitindo
o ingresso no direito privado de novos operadores econômicos constituídos
por entes públicos ou até mesmo pelo Estado. 122
O sistema clássico de direito privado individualista do liberalismo não
mais persiste nos moldes de outrora, interpenetrando-se as searas pública e
privada, em um complexo de funções concorrentes e complementares. 123 Essas

118 Cf. Perlingieri, 1999, p. 53 e Giorgianni, 1998, p. 38-39.


119 Cf. Giorgianni, 1998, p. 41.
120 Ibid., p. 40.
121 Ibid., p. 42.
122 Ibid., p. 43.
123 Nesse sentido, a lição de Pietro Perlingieri (1999, p. 53): “[...] em uma sociedade como a
atual, torna-se difícil individuar um interesse particular que seja completamente autô-
nomo, independente, isolado do interesse dito público.”

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274 Karine Monteiro Prado

alterações se solidificaram a partir do momento em que os princípios funda-


mentais dos diversos ramos do direito, inclusive os de direito privado, foram
inseridos nas Constituições dos Estados democráticos e tornaram-se as normas
constitucionais diretivas para a reconstrução do sistema jurídico. 124 É o cha-
mado processo de constitucionalização do direito. 125 O direito constitucional
passou a refletir os valores sobre os quais o sistema jurídico deve ser baseado.
Assim, “[...] a ética da autonomia ou da liberdade foi substituída por uma
ética da responsabilidade ou da solidariedade”, da mesma forma que a “[...]
tutela da liberdade (autonomia) do indivíduo foi substituída pela noção de
proteção à dignidade da pessoa humana”. 126
Todas essas circunstâncias causam, imediatamente, um processo de
releitura da summa divisio entre direito público e direito privado, em razão de
o valor a partir do qual passa a se orientar todo o ordenamento jurídico ser a
dignidade da pessoa humana, que constitui “[...] um ponto de confluência de
interesses individuais e coletivos, os quais, por isso, não mais podem ser rela-
cionados em termos antagônicos, mas, sim, complementares”. 127 Frise-se que:

[...] no Estado Democrático de Direito, delineado pela Constituição de


1988, que tem entre seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e
os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o antagonismo público-
privado perdeu definitivamente o sentido. Os objetivos constitucionais
de construção de uma sociedade livre, justa e solidária e de erradicação da
pobreza colocaram a pessoa humana – isto é, os valores existenciais –
no vértice do ordenamento jurídico brasileiro, de modo que tal é o valor
que conforma todos os ramos do direito. 128

Dessa forma, atualmente, a dinâmica entre as esferas pública e privada


deve ser observada não como composta por termos inseparáveis, opostos e
impermeáveis, mas que se interpenetram, sendo imprescindível, de uma vez
por todas, a reconstrução do ordenamento jurídico sob uma perspectiva dia-

124 Cf. Moraes, 1999, p. 105.


125 Sobre o tema, vide, sobretudo, as obras Hesse, 1995; e Flórez-Valdés, 1991.
126 Moraes, 1999, p. 106. Grifo nosso.
127 Negreiros, 2001, p. 346.
128 Moraes, 1993, p. 26.

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A qualificação jurídica da prestação de serviços públicos como relação de consumo 275

lética que objetive a ponderação entre as normas ditas de caráter público e as


de direito privado, fixando-se parcerias entre elas, para que seja garantida,
em suas múltiplas e concretas dimensões, a existência socializada, livre e
digna da pessoa humana. 129
Pode-se dizer que a summa divisio entre direito público e direito privado
só é legítima se e enquanto algumas relações jurídicas corresponderem a uma
diversidade de instrumentos, de normas públicas e de princípios, pois ainda
existe certa parcela de instrumentos jurídicos “[...] tradicionalmente predis-
postos para a disciplina das relações pessoais e patrimoniais dos sujeitos do
mesmo modo que existem outros instrumentos que servem para relações que
intercedem entre os indivíduos e os poderes públicos.” 130 Todavia, mesmo
nesses casos, ainda que seja predominante o interesse de particulares, sempre
estará presente o interesse dito da coletividade, ou seja, público. 131 O mesmo
ocorre na situação inversa: onde predomine o interesse público, sempre estará
presente, ainda que mediatamente, o interesse dos indivíduos.
Em razão da atual realidade sociojurídica, a diferença entre direito pú-
blico e direito privado não é mais qualitativa, mas quantitativa, 132 na medida
em que tanto o interesse público quanto o interesse privado podem vir a
prevalecer em uma relação jurídica específica, mas não de forma exclusiva,
sempre havendo a presença dos dois, ainda que em doses diferenciadas. Por-
tanto, não há que se falar em uma delimitação precisa entre as esferas do
público e do privado.
As relações jurídicas de consumo, principalmente as que têm por objeto
a prestação de serviços públicos, são exemplos de que não existe mais a rígida
contraposição entre as searas do direito público e do direito privado. As rela-
ções de consumo são demasiadamente complexas, exigindo uma interação
interdisciplinar de normas de direito material e processual, como as de natu-
reza civil, comercial, penal, administrativa, processual civil etc. 133

129 Cf. Negreiros, 2001, p. 369, e Perlingieri, 1999, p. 284-285.


130 Giorgianni, 1998, p. 46.
131 Exemplos: atribuição de função social à propriedade, determinação do conteúdo dos
negócios jurídicos, objetivação da responsabilidade civil etc.
132 Perlingieri, 1999, p. 54.
133 Cf. Nery Júnior, 1998, p. 344; Donato, 1993, p. 35-36.

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276 Karine Monteiro Prado

A disciplina normativa do CDC é constituída por “normas de ordem


pública e de interesse social” 134 e, portanto, aplicam-se às relações jurídicas
pertencentes a todos os ramos do direito. Também nessa hipótese, procurar-
se-á a tutela da dignidade humana do consumidor, especialmente do consu-
midor de serviços públicos, superando-se a dicotomia entre direito público e
direito privado para que a defesa da Constituição se efetue no seio de uma
construção teórica e prática mais generosa. 135 Daí não ser coerente o argu-
mento de que a prestação de serviços públicos não é uma relação de consumo,
por ser considerada uma relação jurídica de direito administrativo e tributário,
ou seja, de direito público. A interseção com esses ramos do direito é evidente
diante da necessidade do exame do próprio conceito de serviço público, 136
mas não é suficiente para a tutela do usuário desse serviço.
Assim, em qualquer que seja o ramo do direito haverá a incidência do
CDC, desde que estejam presentes os pressupostos necessários para a confi-
guração de uma relação de consumo, ou seja, desde que estejam presentes
um consumidor, um fornecedor e um produto ou serviço fornecido no mercado
de consumo. Entender, portanto, que os impostos, assim como as taxas, cons-
tituem um mecanismo remuneratório das relações de consumo travadas com
o Estado, remete-nos à necessidade de compatibilizar e adequar a normativa
do direito público com o regime de proteção do CDC, sempre com base na
matriz constitucional e em sua axiologia. 137

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A prestação de serviços públicos constitui uma relação de consumo desde


que estejam presentes todos os elementos necessários para sua configuração.
Assim, como foi visto, não é todo usuário de serviço público que pode ser
considerado consumidor. Adotando a teoria finalista, entendemos que sob os
auspícios do CDC somente está protegido o usuário que é destinatário final e
econômico da prestação de serviços públicos, ou seja, aquele que o utiliza
para seu próprio uso pessoal e o de sua família. Nessa hipótese, estamos diante

134 Vide artigo 1º do CDC.


135 Cf. Freitas, 2001, p. 37.
136 Cf. De Lucca, 2003, p. 210.
137 Cf. Macedo Júnior, 2001, p. 82.

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A qualificação jurídica da prestação de serviços públicos como relação de consumo 277

de um consumidor de serviços públicos, sujeito portador de direitos funda-


mentais. Excepcionalmente, desde que provada a vulnerabilidade no caso con-
creto, poder-se-á considerar outros usuários de serviços públicos como sendo
consumidores, em especial com a aplicação da hipótese de equiparação legal
do artigo 29 do CDC.
Não há como se negar que o Estado, ao prestar serviços públicos à comuni-
dade, por si ou por seus agentes, o faz nos moldes exigidos para a caracterização
de um fornecedor de serviços no mercado de consumo, pois está desenvolvendo
uma atividade econômica contínua, organizada e remunerada, já que todos
os serviços públicos são, de forma direta (os uti singuli) ou indireta (os uti
universi), remunerados por seus usuários. O CDC pretendeu incluir sob o âmbito
de sua aplicação qualquer tipo de serviço público, desde que esteja sendo
utilizado por um consumidor. Essa conclusão é corroborada pelos dispositivos
do CDC.
O artigo 6º, inciso X, dispõe que é direito básico do consumidor “a ade-
quada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral”. Veja-se que o CDC
se referiu genericamente aos serviços públicos, sendo que a própria CR/88
dispõe que Administração Pública obedecerá ao princípio da eficiência. 138
Dessa forma, é inadmissível considerar que os serviços públicos uti universi
estão excluídos dessa obrigação legal.
A regra do artigo 22 também é genérica, atribuindo um regime especial
de responsabilidade civil aos prestadores de serviços públicos, não especifi-
cando um determinado tipo de serviço. Observe-se, então, que as obrigações
de fornecer um serviço adequado, eficiente, seguro e, quanto aos essenciais,
contínuo referem-se tanto aos serviços universais quanto aos singulares, ou
seja, aos de saúde, de educação, de energia elétrica, de telefonia etc.
Em nenhum momento o CDC se referiu a serviços públicos pagos dire-
tamente pelo consumidor. A discriminação das espécies de serviços públicos
para a incidência do CDC provocaria verdadeiras disparidades entre os níveis
de proteção dispensados aos consumidores dos serviços diretamente remu-
nerados e àqueles indiretamente remunerados, o que não seria razoável.
Obviamente, o desenvolvimento da atividade econômica de prestação
de serviços públicos possui regras próprias que a diferenciam do exercício da
atividade econômica em sentido estrito, quer seja a praticada pelo setor pri-

138 Vide art. 37, caput, da CR/88.

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278 Karine Monteiro Prado

vado, quer seja a praticada pelo próprio Estado em razão dos imperativos da
segurança nacional ou devido a relevante interesse coletivo. Mas tal circuns-
tância não tem o condão de afastar a incidência do CDC.
O CDC representa não só uma mudança de paradigma de uma perspec-
tiva liberal e individualista para uma visão social e asseguradora do equilíbrio
entre os partícipes de uma relação de consumo, mas também ratifica a evolução
do relacionamento entre o Estado e os cidadãos por inserir o primeiro, justa-
mente, dentro desse contexto. O equilíbrio de direitos e obrigações deverá se
manifestar também nas relações travadas entre os consumidores dos serviços
públicos e o Estado.
O CDC, além de regular a disciplina jurídica das relações de consumo,
tem como objetivo promover a harmonização dos interesses dos seus partíci-
pes, 139 pautada pelo equilíbrio entre as posições dos agentes envolvidos. Esse
equilíbrio há de se manifestar, também, no âmbito das relações travadas entre
os consumidores de serviços públicos e seus prestadores. 140 Considerar como
de consumo certas relações travadas entre os usuários de serviços públicos e
os fornecedores desses serviços nada mais é do que buscar o equilíbrio entre
os interesses dos cidadãos e os interesses do aparelhamento administrativo.
Conclui-se, portanto, que os argumentos contrários a nossa tese não são
suficientes para impedir a aplicação do CDC à prestação de serviços públicos. A
resistência a esse entendimento não se justifica mais diante do atual contexto
jurídico socioeconômico, principalmente diante do caráter essencial e irrenun-
ciável dessa atividade. A prestação dos serviços públicos uti universi ou uti
singuli aos consumidores desses serviços preenche todos os requisitos neces-
sários para que se qualifique como uma relação jurídica de consumo, e não
tratá-la de tal forma é recusar a plena efetivação do sistema protetor do CDC.

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139 Vide art. 4º, inciso III, do CDC.


140 Cf. Capucho, 2002, p. 107.

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282 Karine Monteiro Prado

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RESUMO

O artigo trata da aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor à prestação


de serviços públicos. Nele, analisa-se a relação jurídica existente entre o usuá-
rio do serviço público e o Estado ou outro fornecedor do serviço, que a quali-
fica como uma verdadeira relação de consumo. Demonstra-se que o usuário
de serviços públicos é juridicamente considerado consumidor, assertiva indi-
cativa da frágil dicotomia entre direito privado e direito público. Parte-se de
uma perspectiva interdisciplinar, que envolve as esferas do direito constitucio-
nal, do direito do consumidor, do direito civil e do direito administrativo,
com vistas a demonstrar que a análise do tema exige a superação dos tradicio-
nais campos específicos dessas áreas do conhecimento jurídico. Conjugam-se
os ensinamentos de cada disciplina, na medida em que é analisado o papel
social que o Código de Defesa do Consumidor trouxe não somente às relações
jurídicas ditas privadas, mas também àquelas que sempre foram consideradas,
eminentemente, públicas, como as relações estabelecidas entre os usuários
de serviços públicos e os fornecedores desses serviços.
Palavras-chave: Código de Defesa do Consumidor, serviços públicos, relação
de consumo.

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284 Karine Monteiro Prado

ABSTRACT

The paper discusses the applicability of the Consumer Protection Code to the
provision of public services. In it, it is analyzed the legal relationship between
the user of public services and the state, or other service provider, wich qual-
ifies it as a true consumer relationship. It shows that the user of public serv-
ices is legally considered consumer, statement indicating the fragile dichotomy
between private and public law. It starts with an interdisciplinary perspective,
involving the spheres of constitutional law, consumer law, civil law and ad-
ministrative law, in order to demonstrate that the analysis of this topic re-
quires the overcoming of the traditional fields specific to those areas of legal
knowledge. The teachings of each discipline are combined, as it is analyzed
the social role that the Code of Consumer Protection brought not only to the
so called private legal relations, but also to those who have always been con-
sidered, eminently, public, as the relationships established between users of
public services and the providers of these services.
Keywords: Code of Consumer Protection, public services, consumer relation-
ship.

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Sobre os autores

Cláudio Rezende Ribeiro


Doutor em Urbanismo pelo PROURB/FAU/UFRJ (2009), mestre em Planeja-
mento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e graduado em Arquitetura e Urba-
nismo. Professor adjunto e pesquisador do Curso de Mestrado Profissional
em Planejamento Regional e Gestão de Cidades da Universidade Candido Mendes
em Campos dos Goytacazes. Pesquisador do Grupo Direito e Urbanismo.

Daniel Almeida de Oliveira


Mestre em Direito da Cidade pela UERJ (2006) e graduado em Direito pela UERJ.
Doutorando em Teoria do Estado e Direito Constitucional na Pontifícia Universi-
dade Católica do Rio de Janeiro e professor de Direito Constitucional e de Direito
Administrativo. Procurador Federal. Pesquisador do Grupo Direito e Urbanismo.

Daniel Gaio
Mestre em Direito pela Universidade de Lisboa (2003) e graduado em Direito
pela Universidade Federal do Paraná. Doutorando em Direito na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro e professor de Direito Ambiental,
Urbanístico e Constitucional. Pesquisador do Grupo Direito e Urbanismo.

Denise Barcellos Pinheiro Machado


Possui pós-doutorado pela École Doctorale Villes et Environnement, é doutora
em Urbanismo pelo Institut d’Urbanisme de Paris - Université de Paris XII
(Paris-Val-de-Marne) e graduada em Arquitetura. Professora Titular e pesqui-
sadora do PROURB/FAU/UFRJ. Diretora da FAU-UFRJ. Consultora do Grupo de
Pesquisa Direito e Urbanismo.

Sobre os autores.p65 285 20/11/2010, 18:46


286 Sobre os autores

Eloisa Carvalho de Araujo


Doutora em Urbanismo pelo PROURB/FAU/UFRJ (2006), mestre em Geografia
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e graduada em Arquitetura e
Urbanismo. Professora da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal Fluminense - EAU/UFF e pesquisadora associada do PROURB/UFRJ.
Pesquisadora do Grupo Direito e Urbanismo.

Geraldo Browne Ribeiro Filho


Doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ (2006), mestre
em Urbanismo pelo PROURB/FAU/UFRJ e graduado em Engenharia civil. Pro-
fessor Adjunto e pesquisador do Departamento de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade Federal de Viçosa. Pesquisador do Grupo Direito e Urbanismo.

Gustavo Martins Marques


Mestre em Planejamento Urbano pela Oxford Brookes University (1996) e gra-
duado em Arquitetura e Urbanismo. Doutorando em Urbanismo pelo PROURB/
FAU/UFRJ. Professor da Universidade Estadual do Maranhão. Pesquisador do
Grupo Direito e Urbanismo.

Karine Monteiro Prado


Mestre em Direito Civil pela UERJ (2003) e graduada em Direito. Diretora do
BRASILCON. Professora da ESA-OAB/ES, da EESMP-ES e do Curso de Direito da
FAESA. Pesquisadora do Grupo Direito e Urbanismo.

Lucia Maria Sá Antunes Costa


Doutora em Paisagismo pela University College London e graduada em Arqui-
tetura e Urbanismo. Professora Titular e pesquisadora do PROURB/FAU/UFRJ,
integra a coordenação do Mestrado Profissional em Arquitetura Paisagística
junto ao mesmo Programa de Pós-Graduação. Consultora do Grupo de Pesquisa
Direito e Urbanismo.

Madalena Junqueira Ayres


Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2009)
e graduada em Direito pela UERJ. Professora e pesquisadora de Direito Ambien-
tal. Promotora de Justiça no Estado do Rio de Janeiro. Pesquisadora do Grupo
Direito e Urbanismo.

Sobre os autores.p65 286 20/11/2010, 18:46


Sobre os autores 287

Moema Falci Loures


Mestre em Urbanismo pelo PROURB/FAU/UFRJ (2006) e graduada em Arquite-
tura e Urbanismo. Doutoranda em Urbanismo pelo PROURB/FAU/UFRJ, atua
em projetos de arquitetura e urbanismo - Espaço IMAginal. Pesquisadora do
Grupo Direito e Urbanismo.

Nina Amir Didonet


Mestre em Direito pela PUC-Rio (2010), especialista em Direito Ambiental Bra-
sileiro e graduada em Direito. Pesquisadora do Grupo Direito e Urbanismo.

Rodrigo Cury Paraizo


Doutor (2009) e Mestre em Urbanismo pelo PROURB/FAU/UFRJ e graduado
em Arquitetura e Urbanismo. Professor Adjunto de Expressão Gráfica e pes-
quisador na FAU-UFRJ. Pesquisador do Grupo Direito e Urbanismo.

Rosângela Lunardelli Cavallazzi


Possui pós-doutorado em Direito Urbanístico na École Doctorale Villes et En-
vironnement Université Paris 8, é doutora em Direito pela UFRJ, mestre em
Direito pela UFSC e graduada em Direito e História. Professora, pesquisadora
e orientadora de teses do PROURB/FAU/UFRJ e da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. É líder do Grupo de Pesquisa Direito e Urbanismo,
vinculado ao Diretório de Grupos de Pesquisas do CNPq.

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