Você está na página 1de 163

DIREITO, ESPAÇO E

TERRITÓRIO:
A DISPUTA DA CIDADE
5 6

Anais do Seminário
DIREITO, ESPAÇO E
TERRITÓRIO:
A DISPUTA DA CIDADE
2014

Florianópolis
UFSC
2016
7 8

ANAIS DO SEMINÁRIO DIREITO, ESPAÇO E TERRITÓRIO: A DISPUTA DA CIDADE


(2014)
SUMÁRIO
Coordenação Científica Apresentação
Profa. Dra. Jeanine Nicolazzi Philippi [Jeanine Nicolazzi Philippi – Tutora PET DIREITO UFSC] 10

Comissão Organizadora Programação do evento 14


Ana Maria Garcia, Bruna Martins Costa, Carla Avellar Lopes, Eduardo Contini de
Figueiredo, Flávio Leal Binati, Gaia Tornquist, Guilherme Rudolfo Scheide, João Vitor
Francelino Martins, Lariane Vialli, Maila Weber Mello, Marja Mangili Laurindo, Murilo
Eixo - Demandas cidadãs e movimentos sociais urbanos
Rodrigues da Rosa, Renata Volpato, Rodrigo Timm Seferin, Roger de Oliveira Franco,
Priscilla Batista da Silva Cidadania à jurisdição: uma proposta de desenho institucional de
garantia de direitos [Gustavo Marques Krelling] 16
Apoio
PET/MEC, CCJ/UFSC
O lugar dos juristas na (re)produção do direito no Brasil: um ensaio à luz
Revisão e diagramação do conceito de cidadania [Danielle Espezim dos Santos, Helena Schiessl
Maria Luiza Galle Lopedote Cardoso, Macell C. Leitão] 31

Capa Ocupações urbanas: reconhecimento e redistribuição


Marina Barcelos de Oliveira, Alexandre de Maio (Ilustração) [Luiz Fernando Vasconcelos de Freitas] 66

D598 Anais do Seminário Direito, Espaço e Território : a disputa da cidade – Participação popular e direito à cidade: a audiência pública para a
2014 / Coordenação científica Jeanine Nicolazzi Philippi. – 1. ed. – construção democrática da cidade
Florianópolis: PET DIREITO/UFSC, 2016. [Ana Luisa Ruffino, Ludymila Aparecida Rizzo Cardoso] 82
325p.

Inclui bibliografia. Eixo - Governos locais, gestão urbana e ordenamentos das cidades
ISBN 978-85-64093-13-3

Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader. A regularização fundiária e a concretização da função social da cidade
Modelo de acesso: World Wide Web [Adriana Marques Rossetto, Andressa De Souza Da Silva, Zenildo
< http://petdireito.ufsc.br/>
Título da página da Web (acesso em 26 jul. 2016). Bodnar] 106

1. Direito. 2. Espaço. 3. Território. 4. Cidade. I. Título. II. Philippi, Jeanine As transformações de uma cidade: a “Republiqueta Marxista” que se
Nicolazzi
CDU: 340 tornou “Administração Municipal Modelo” - Lages/SC
[Fabiano Garcia] 126
PET DIREITO UFSC
Posição Jurídica Do Município No Federalismo Brasileiro [Bruno Arthur
Campus Universitário Trindade, Centro de Ciências Jurídicas, Sala 108
Hochheim] 153
Florianópolis/SC – CEP 88036-970
www.petdireito.ufsc.br / petdirufsc@gmail.com
9 10

Eixo - Novas identidades urbanas e construção de subjetividades


APRESENTAÇÃO
Pichação em Joinville-SC e a sua (in)adequação social
[Denis Fernando Radun, Patricia Dela Justino] 185

Eixo - Controle social na cidade


Jeanine Nicolazzi Philippi*

Entre deslocamentos indígenas e a efetividade do direito Lacan, na década de 1970, alertou: o discurso capitalista
[Isabella Cristina Lunelli] 210
anda às mil maravilhas, não pode andar melhor. Mas anda rápido
Eixo - Teorias críticas do Direito: o debate sobre o espaço demais, se consome.1 Esse esgotamento, no entanto, não ocorrerá
Em defesa da moradia: o caso da Vila Autódromo e a biopolítica sobre as antes que ele tenha consumido tudo – os recursos, a natureza e,
favelas [Clarissa Pires De Almeida Naback, Thula Rafaela De Oliveira
Pires] 233 inclusive, os indivíduos que a ele servem.

Reflexões acerca da participação popular na produção do espaço urbano Ordinariamente associada à noção de destruição
em tempos de globalização criadora, essa dinâmica do capitalismo move engrenagens letais,
[Vanessa Rodrigues Ferreira] 258
garantido que nada aconteça... Fiéis a esse movimento, as
Eixo - Geopolítica e formação do espaço urbano
universidades empenham-se na supressão programada do
Cidadania periférica: um olhar sobre a produção desigual do espaço pensamento e do circuito do desejo dele decorrente.
urbano desde a América Latina [Ana Beatriz Oliveira Reis, Marcela
Münch De Oliveira E Silva, Mariana Gomes Peixoto Medeiros] 282 A diferença, a dúvida e a crítica severa são mostras de
O Centro De Eventos do Ceará: Fortaleza, uma metrópole uma reflexão profunda que implica considerar a realidade a
empreendedora? [Jamile Maia Younes] 301
partir de uma atitude segundo a qual não é possível – e

*
Professora dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina. Tutora do PET DIREITO UFSC. Membro
do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-Graduação em Direito da
UFPR.
1
LACAN, Jacques. O seminário – o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1991.
11 12

tampouco desejável – conhecê-la, ou nela atuar, sem um prévio e discussão fundamental sobre espaço, território e disputa pela
denso exame dos fundamentos do saber e da ação. Esse “estilo cidade. No Brasil, o grande déficit habitacional, a ineficiência – e
crítico” – que não é apenas teórico, mas uma postura perante a baixa qualidade – dos transportes públicos, a violência urbana,
vida – se desfaz sob o imperativo da produção exacerbada da os despejos violentos e os constantes conflitos pela e na cidade –
mesmice que comanda a nossa frenética imobilidade. que ficaram ainda mais expostos com as obras realizadas para
receber os megaeventos como a Capa do Mundo de 2014 e as
Sob as ruínas do pensamento crítico prospera – na
Olimpíadas de 2016 – mostram a ineficácia dos instrumentos
academia – o apagamento sistemático de tudo aquilo que não
jurídicos e políticos para a solução dos graves problemas das
pode ser quantificável e, com ele, uma indústria questionável de
cidades brasileiras que, como sabemos, não oferecem condições
textos, organizada através de critérios de avaliação e
adequadas de vida para a maior parte da população.
desempenho que eleva ao status de intelectual, autores que se
citam mutuamente, assinam trabalhos de terceiros, terceirizam o Realizado em outubro de 2014, o Seminário Direito,
ensino e coagem orientandos a lhes conceder co-autoria. Espaço e Território: a Disputa da Cidade reuniu urbanistas,
Silenciar diante desse fato equivale servir-lhe voluntariamente geógrafos, cientistas políticos e juristas que analisaram os
em uma rendição que demonstra menos a força dos que problemas urbanos do Brasil e apontaram caminhos possíveis
imprimem tal andamento à vida acadêmica do que a debilidade para solucioná-los2. Nestes Anais, estão registrados os trabalhos
ética dos que aceitam fazer parte desse jogo de degradação da apresentados durante o evento, reunidos em dois eixos
palavra e de aniquilamento do seu portador. principais: Urbe e Biopolítica – segregação espacial e territorial;
e Cidade como Espaço de Luta - exercício da cidadania e
Nesse ambiente performático – nutrido com índices da
produção de subjetividade.
meritocracia produtivista, o Grupo PET-Direito da Universidade
Federal de Santa Catarina não desiste da tarefa de inspirar o
duro desejo de despertar. Distanciando-se do tédio dos discursos
2
medidos a metro, o PET-Direito/UFSC propôs, em 2014, a Para saber mais: https://seminariodireitoecidade.wordpress.com/, acesso em
jul.2016.
13 14

Quando discursou no Occupy Wall Street Zizek lembrou PROGRAMAÇÃO DO EVENTO


que, hoje, o possível e o impossível estão dispostos de uma
29 de outubro de 2014 (quarta-feira)
maneira estranha. Nos domínio da liberdade pessoal, da Auditório do Fórum Norte da Ilha – UFSC
13h30 Comunicações orais
tecnologia científica, o impossível está se tornando cada vez mais 18h00 Início do credenciamento
18h30 Abertura oficial
possível (ou pelo menos é o que dizem)... Por outro lado, no 19h00 Painel de abertura – “A questão urbana no Brasil”, com João Sette
domínio das relações econômicas e sociais, somos bombardeados o Whitaker (FAU-USP) e Elson Manoel Pereira (Geografia – UFSC)

tempo todo por um do discurso ‘você não pode’ se envolver em atos


30 de outubro de 2014 (quinta-feira)
políticos coletivos (que necessariamente terminam no terror Auditório do Fórum Norte da Ilha – UFSC
09h00 Mesa de discussão “A cidade e a biopolítica”, com Alexandre Nodari,
totalitário), ou aderir ao antigo Estado de bem-estar social (ele Diego Cervelin e Rafael Cataneo Becker
13h30 Comunicações orais
nos transforma em não competitivos e leva à crise econômica), ou 18h00 Conferência “A segregação espacial em Florianópolis”, com Maria Inês
Sugai (Arq. UFSC)
se isolar do mercado global. Quando medidas de austeridade são 20h00 Conferência “Território, Cidadania e a Disputa por Direitos”, com
impostas dizem-nos repetidas vezes que se trata do que tem que Alexandre Fabiano Mendes (PUC-RJ)

ser feito. Quem sabe não chegou a hora de inverter as coordenadas


31 de outubro de 2014 (sexta-feira)
do que é possível e impossível?3 Auditório do Fórum Norte da Ilha – UFSC
09h00 Mesa de discussão “A produção do espaço urbano e suas repercussões no
âmbito do direito”, com Leandro Gorsdof (UFPR) e Thiago Hoshino (MP-PR)
13h30 Comunicações orais
19h00 Painel “O controle social na Cidade”, com Marildo Menegat (UFRJ) e Vera
Regina Pereira de Andrade (UFSC)

3
ZIZEK, Slavoj. A tinta vermelha. https://blogdaboitempo.com.br/2011/10/11/a-
tinta-vermelha-discurso-de-slavoj-zizek-aos-manifestantes-do-movimento-occupy-
wall-street/
15 16

CIDADANIA À JURISDIÇÃO: UMA PROPOSTA DE


DESENHO INSTITUCIONAL DE GARANTIA DE DIREITOS 4

Gustavo Marques Krelling5

Resumo: Neste artigo pretende-se demonstrar de maneira teórica e


propositiva instrumentos jurisdicionais de garantias para a
concretização de direitos. Tem-se por base a Teoria da Interpretação
Constitucional como Legitimação da Democracia, de Peter Häberle.
Neste contexto contemporâneo, evidenciam-se propostas de desenhos
institucionais democráticos na elaboração de decisões jurisdicionais,
Eixo diagnosticando em que medida se concebem como instrumentos
jurídicos de eficácia sociopolítica à consolidação da cidadania na
DEMANDAS CIDADÃS E MOVIMENTOS SOCIAIS cidade.
URBANOS Palavras-chave: Instituições públicas; direitos humanos; controle
jurisdicional; direito à cidade; participação cidadã.

1 Introdução
Inicialmente, evidencia-se uma breve análise histórica dos
4
O presente artigo é resultado inicial de estudos e pesquisas realizados no período de
2014 junto ao Núcleo de Constitucionalismo Contemporâneo, Internacionalização e
Cooperação da Fundação Universidade Regional de Blumenau - FURB.
5
Pós-Graduando em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito
Constitucional - ABDConst. Graduado em Direito pela Fundação Universidade
Regional de Blumenau – FURB. Membro do Núcleo de Pesquisa em Novas
Institucionalidades de Participação do Programa de Pós-Graduação em Políticas
Públicas da Universidade Federal do Paraná - UFPR. Pesquisador do Núcleo de
Constitucionalismo e Democracia do PPGD/UFPR. Curitiba – PR – Brasil. E-mail:
gmkrelling@gmail.com.
17 18

direitos humanos, pretendendo demonstrar a ampliação de defesa das do controle concentrado ou difuso de constitucionalidade.
liberdades sociais, políticas e interculturais na medida em que se No âmbito de uma jurisdição constitucional que se pretende ser
reconhece a força normativa dos regramentos internacionais e democrática, serão demonstrados aspectos elencando a essencialidade
constitucionais de direitos. Nesse contexto, a atuação jurisdicional de um processo de julgamento que seja constituído por mecanismos de
hodierna enfrenta o desafio de permanecer umbilicalmente interligada a acesso dos (e para os) sujeitos de direitos, assim como visando verificar
uma aplicação das normas que leve em consideração as demandas da em que medida o atual desenho institucional da esfera pública brasileira
cidadania participativa.
incentiva um debate coletivo que se inter-relacione às demandas da
Dessa maneira, tem-se como hipótese que os dilemas participação cidadã.
jurisdicionados envolvem a atuação contributiva permanente da
cidadania diante da necessidade de levar a sério a relação de
2 Concepção de Direitos Humanos na Contemporaneidade
complementaridade entre a instituição pública e as demandas dos
movimentos sociais urbanos. Na perspectiva em que democracia é Nesta primeira análise, é essencial ter em mente uma breve
formada pela união de cidadãos, consideram-se pensamentos de razão compreensão histórica para poder refletir sobre o presente. No processo
pública aqueles que primam pela aplicabilidade de uma “hermenêutica histórico, político-jurídico e cultural dos direitos humanos, consagram-
jurídico-dialógica” de promoção, proteção, defesa e garantia do bem se elementos dialéticos para a relação entre indivíduo e Poder Público.
comum. Passando por diversos textos e contextos, fundamenta-se na defesa de
direitos dos cidadãos e nos próprios deveres das instituições públicas.
Concentrando a análise no contexto brasileiro hodierno, a
segunda seção enfatiza a relevância do tema à propositura de Em sentido amplo, as revoluções ocorridas no final do século
instrumentos que apontam para um desenho institucional participativo XVIII tiveram grande relevância no sentido de dar expressão jurídico-
que mire as demandas cidadãs na Jurisdição Constitucional. Com normativa ao pensamento humanitário e humanista, dando ênfase aos
efeito, reflete-se a respeito do desafio à concretude das demandas de direitos humanos como direitos propriamente ditos (direito positivo)
movimentos sociais em um estado democrático contemporâneo, cuja para a conquista de ideários contemporâneos de cidadania. Entendendo
intervenção jurisdicional é concebida como um direito, seja no âmbito os direitos humanos como conquistas históricas arduamente alcançadas,
19 20

tem-se a aplicação das normas enquanto técnica de racionalização do nas declarações internacionais marcaram uma passagem do “súdito ao
poder e proteção à liberdade. cidadão”. Nesse contexto que mira a garantia de direitos, as demandas
de uma sociedade complexa ensejam a sua concretude em um desenho
Em um contexto histórico recente, a Declaração Universal de
jurídico-político que leve a sério os direitos humanos.
Direitos Humanos (1948) estabelece projeção normativa internacional
aos direitos humanos. Inova ao se estabelecer concepção marcada pela
indivisibilidade e indisponibilidade dos Direitos. Os catálogos dos
3 O Direito Constitucional como uma Ciência de Direção
direitos civis e políticos se relacionam aos direitos econômicos, sociais
A força normativa constitucional necessita aplicar novos
e culturais, conjugando um ideário de cidadania.
instrumentos de comando. Estabelecidos por intermédio de institutos
Dessa maneira, os direitos humanos são considerados marcos baseados em critérios de controle dirigido, seja pela perspectiva de
da proteção da vida, instituídos pela relação entre instituições públicas e conformação, regulação, alteração intencional ou finalística das
movimentos sociais. Concebe-se primazia nas relações de direitos e diversas situações de caráter coletivo e difuso em que se pode
deveres ao ser humano, pelo próprio, genuíno e universal feito de propugnar no processo jurisdicional.
existir. Nesse sentido, Norberto Bobbio reflete que os direitos não
Na trilha do Mestre de Coimbra, a direção não deve conceber-
nascem todos de uma vez, nascem quando devem ou podem nascer6.
se como “ordem autocrática do Estado soberano, juridicamente imposta,
Sob o viés da Teoria Crítica dos Direitos Humanos, mesmo antes deve compreender esquemas múltiplos de mecanismos acionados
que as exigências de direitos possam estar dispostas cronologicamente por vários atores sociais” (CANOTILHO, 2010, p. 24).
em diversas fases ou gerações, suas espécies são sempre, com relação
Com base nos ensinamentos de J.J. Gomes Canotilho, é
aos poderes constituídos, apenas duas: ou impedir os malefícios de tais
possível manter tendencialmente a ideia de direção constitucional como
poderes ou obter seus benefícios.
forma de se conceber uma nova estatalidade às demandas sociais
Ao se considerar precedente aberto pelas revoluções liberais, judicializadas. Portanto, cumpre destacar o debate sobre o modo como
podemos, então, compreender que os direitos humanos normatizados se assegura a direção de concretização de direitos.
6
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 19. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1992.
21 22

O conceito de direção é assim um conceito analítico que Inspirados nos ideários dirigentes, pretendemos desenvolver
engloba vários meios de direção ao lado do direito [...]
impondo-se mesmo a conjugação de vários instrumentos uma reflexão na perspectiva de que os dilemas jurisdicionais podem
de direção para que sejam obtidos os fins desejados. [...] o
institucionalismo centrado nos atores depende de uma envolver a atuação contributiva dos autores de direitos. Nessa trilha, dá-
direção político-social entendido como um sistema
intencional e comunicativo de ação influenciadora da se especial atenção aos ensinamentos de uma “Sociedade Aberta dos
conformação de relações sociais orientadas para o bem Intérpretes da Constituição”.
comum (CANOTILHO, 2010, p. 23-26).
Pensando o Direito Constitucional como uma ciência de textos Neste viés de Peter Häberle (2002), tem-se um ideário de
e contextos, em que se pretende decidir num espaço de reflexão formação da democracia pela associação contributiva dos cidadãos.
democrático jurisdicional, tem-se a pretensão desafiadora de se Para o autor, é essencial se estabelecer mecanismos e critérios de
investigar em que medida o constitucionalismo cidadão se evidencia no consolidação de uma cultura de garantia de participação cidadã nas
Brasil. instituições públicas, sejam elas executivas, legislativas, deliberativas
ou jurisdicionais.
No âmbito do Estado Democrático, destaque-se que a
aplicação da justiça precisa estar alicerçada além da técnica de freios e No magistério de Boaventura de Souza Santos:
contrapesos. Ao contraponto, sobressai a necessidade de consolidação Os processos de democratização parecem partilhar um
elemento comum: a percepção da possibilidade da
de fundamentadas decisões dialógicas. Estabelecidas por instrumentos
inovação entendida como participação ampliada de atores
que envolvem critérios de acesso plural na articulação entre os atores sociais de diversos tipos em processo de tomada de
decisão (SANTOS, 2002, p. 59).
sociais e as instituições públicas.
Com efeito, democracia não se constitui tão somente pela
É nesse contexto que se afirma a inter-relação entre sujeitos de existência de determinados organismos representativos, mas pela
direitos e demandas constitucionais de participação cidadã, aplicabilidade de fundamentais direitos à participação cidadã.
enriquecendo a complexidade do debate do sistema de justiça hodierno. Democracia é o domínio do cidadão, não do povo. A
democracia do cidadão está muito próxima da ideia que
concebe a democracia a partir dos direitos fundamentais e
não a partir da concepção segundo a qual o povo soberano
4 A necessidade da Participação Cidadã nas Instituições limita-se apenas a assumir o lugar do monarca. Essa
perspectiva é uma relativização do conceito de povo –
Jurisdicionais termo sujeito a entendimentos equívocos – a partir da
23 24

ideia de cidadão! (HÄBERLE, 2002, p. 20-38). temáticas ao direito à participação cidadã nas esferas públicas. Cuida-
Nessa perspectiva, pretende o autor auferir a hermenêutica se, portanto, de entender a democracia jurisdicional como processo de
constitucional enquanto mecanismo de legitimidade democrática. A sua construção cultural da cidadania, que envolve a cooperação dos autores
contribuição paradigmática está entre as principais teorias do de direitos, para além da delegação de responsabilidade formal
constitucionalismo hodierno e é elencada, inclusive, por diversos (HÄBERLE, 2002, p. 36-50).
juristas latino-americanos. Gilmar Ferreira Mendes e André Rufino do
Propugna-se pelo aprimoramento da participação, cujo ideário
Vale destacam:
perpassa pela aplicabilidade de uma justiça cidadã na própria jurisdição
As duas últimas décadas tem sido marcadas pela difusão
constitucional. De tal modo, são fundamentais as lições dessa teoria da
dos sistemas de jurisdição constitucional em novas
democracias, principalmente na Europa oriental, Ásia e interpretação constitucional como instrumento de legitimação da
América Latina, assim como pelo fortalecimento e
consolidação do arcabouço institucional do Estado democracia.
constitucional em diversos países, processos nos quais o
pensamento de Peter Häberle tem contribuído de forma Carolina Reis Jatobá Coêlho preleciona a jurisdição
decisiva. [...] Nesse aspecto, seu especial interesse pela
América Latina resultou na ideia de construção de um constitucional enquanto espaço de um Estado cooperativo, com abertura
direito constitucional comum (MENDES; VALE, 2009, p.
1-31). dos processos à opinião social, permitindo pluralidade de sujeitos na
O formato diretivo eleva a Constituição à instrumentalidade do participação das atividades públicas (COÊLHO, 2012, p. 98-130).
controle de constitucionalidade. Nesse arraigado temático, vinculando
O pensamento de Peter Häberle se complementa a partir da
suas decisões hermenêuticas com a sociedade, estabelece-se a
premissa de que quem vive a norma acaba por pluralmente interpretá-la.
necessidade de que os desenhos institucionais da jurisdição fomentem
Isso significa dizer que os sujeitos de direitos integram a sociedade
de maneira efetiva o debate democrático, sobretudo se legitimando
aberta e, portanto, têm legitimidade descentralizada para articular de
enquanto instituição pública que se complementa – e não se sobressai –
maneira cooperativa suas vivências plurais.
às demandas cidadãs e aos movimentos sociais.
O desenvolvimento dos institutos se torna pluralista porque
Nesse sentido, é essencial a análise de institutos horizontais de
atingem o desafio além da formação da própria decisão hermenêutica.
transparência e acessibilidade às relações plurais, identificando novas
Na sociedade aberta dos intérpretes da constituição, as atuações da
25 26

jurisdição constitucional permanecem essencialmente interligadas à Nessa lógica, os cidadãos vivenciam as consequências das
consolidação cidadã que se pretende almejar. decisões do Estado, ao que se pode considerar como consequência
eficácia horizontalmente vinculada. De acordo com Peter Häberle, é
O processo democrático sugerido implica em mediação
preciso considerar que a vivência da norma está estabelecida além de
específica das possíveis relações de poder entre Estado e sociedade, a
quem detém o monopólio da interpretação da Constituição. O
qual se constitui a partir de critérios para tornar-se garantia aos direitos
destinatário da norma é participante ativo das consequências do
fundamentais.
contexto regulado (HÄBERLE, 2002).
Numa sociedade aberta, ela se desenvolve também por
meio de formas refinadas de mediação do processo
Nesta ótica, à instituição pública incumbe, então, a
público e pluralista da política e da práxis cotidiana,
especialmente mediante a realização dos Direitos competência de uma espécie de arbitragem do debate jurídico
Fundamentais. Democracia desenvolve-se mediante a
controvérsia sobre alternativas, sobre possibilidades e democrático. Conciliadores das relações de concretude da
sobre necessidades da realidade (HÄBERLE, 2002, p.
36). normatividade constitucional, os julgadores devem se posicionar
Para além do regime representativo eleitoral, o exercício da enquanto diretores no controle jurisdicional (HÄBERLE, 2010).
cidadania permanece aliado à manifestação cooperativa da comunidade No Estado Democrático, os atores são próprios sujeitos de
nas decisões cotidianas da práxis. Por esse viés, a Constituição pode ser direitos. A norma constitucional pode ser considerada um contrato
compreendida como um processo dinâmico que se desenvolve vivendo, social em que a população age ativamente nas decisões estatais, em que
e os cidadãos também são responsáveis pela duração e a qualidade da o círculo de participantes do contrato social ou constitucional precisa
vida constitucional (MELO, 2013, p. 38). também abranger a sociedade aberta (HÄBERLE, 2010).
No Estado brasileiro que se constitucionaliza como social, é Torna-se essencial levar a sério a concepção de participação
atribuída à instituição judicial a legitimidade de poder de garantia com a cidadã no controle jurisdicional, de modo que subsiste a necessidade de
aplicação do controle de constitucionalidade. O modo de inserção dos fortalecimento da sociedade civil, processo que engloba decisivamente
movimentos sociais na jurisdição torna-se elemento protagonista na a justiça social e a jurisdição constitucional. Preleciona Milena Petters
disputa pela concretização da constituição (BOLZAN, 2013, p. 93-120). Melo:
27 28

Quanto mais fortes as reivindicações e a organização da eficientes de comunicação e transparência com a sociedade, de modo
sociedade civil na luta por seus direitos tanto mais
provável uma resposta garantista do Estado, e vice-versa: que liberdade política e direitos humanos sejam normas fundamentais.
um Estado promotor de direitos tende a espelhar uma
sociedade formada por cidadãos informados, Na República Federativa do Brasil, especialmente após as
reivindicantes, atores da floração contínua de novos
direitos, e da materialização expansiva de direitos já promessas constitucionais de 1988, verificou-se uma crescente
positivados (MELO, 2013, p. 37).
judicialização da vida, rótulo que identifica o fato de que inúmeras
Bolzan de Morais entende que a jurisdição não pode tornar-se
questões de grande repercussão moral, econômica e social passaram a
um espaço alheio às mudanças paradigmáticas do processo
ter sua instância final decisória no Judiciário (BARROSO, 2013).
democrático. O autor preleciona que a judicialização do cotidiano
impõe o estabelecimento de novas práticas metodológicas para a Além do processo de formação da interpretação, também o seu
construção da decisão judicial, contexto em que se coloca como desenvolvimento se torna pluralista. Nessa perspectiva, a jurisdição

primazia a legitimidade do debate democrático-participativo em um constitucional e a cidadania podem ser consideradas a partir de um
Estado de jurisdição constitucional (BOLZAN, 2013). pensamento interligado, que implica em mediação sóciojurídica entre
instituições públicas e movimentos sociais urbanos.
Cuida-se, assim, de atribuir à jurisdição constitucional a
missão precípua e institucional de ponderar a participação da sociedade
civil para a proteção eficaz da tutela dos direitos fundamentais. 5 Considerações finais
Nesse paradoxo entre judicialidade, movimentos sociais e
Sociedade Aberta e Jurisdição Constitucional pertencem,
hoje, inseparáveis, uma da outra. [...] Cada Estado democracia, fato é que uma sociedade intercultural deve ter como
constitucional precisa se manter sensível às novas chances
e riscos, e a Jurisdição constitucional pode ajudar neste primazia a garantia dos direitos fundamentais, capaz de englobar
processo. Ela pode limitar um excesso de abertura e
consolidar uma essência política comum, contudo, precisa instrumentos plurais de acesso ao controle jurisdicional. Diante desse
também impor e exortar a abertura (HÄBERLE, 2010, p.
140).
contexto, as decisões das instituições públicas, arraigadas de demandas

Para Carolina Reis Jatobá Coêlho (2012, p. 116), nos Estados cidadãs, podem ter maior legitimidade ao estabelecerem enfoque nas

Democráticos o Poder Público precisa estabelecer mecanismos visões que considerem uma cultura política de participação cidadã
capaz de alicerçar efeitos práticos ao bem comum.
29 30

HÄBERLE, Peter. A sociedade aberta dos intérpretes da constituição:


contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da
Referências bibliográficas Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. 2. ed. Porto Alegre: Fabris
Editor, 2002.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional
______________. A jurisdição constitucional na sociedade aberta.
contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo
Trad. Italo Roberto Fuhrmann e Souza e Ingo W. Sarlet. In: SARLET,
modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
Ingo W; TAVARES, André Ramos; LEITE, George Salomão (orgs).
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 19. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, Estado Constitucional e Organização do Poder. São Paulo: Saraiva,
1992. 2010.
BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis. A jurisprudencialização da MELO, Milena Petters. A transição democrática e a constituição
Constituição: a audiência pública jurisdicional, abertura processual e cidadã: os direitos fundamentais no desenho de um estado de justiça
democracia participativa. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel social concretamente realizável. Material didático para as aulas da
Severo; ENGELMANN, Wilson (Org.). Constituição, sistemas sociais Especialização em Direito Constitucional, disciplina: Direitos
e hermenêutica: anuário do programa de Pós-Graduação em Direito da Fundamentais Sociais. Curitiba: Academia Brasileira de Direitos
UNISINOS: mestrado e doutorado. Porto Alegre: Livraria do Constitucional, 2013.
Advogado. São Leopoldo: UNISINOS, 2013.
MENDES, Gilmar Ferreira; VALE, André Rufino do. O pensamento de
CANOTILHO, J.J. Gomes. O direito constitucional como ciência de Peter Härbele na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
direção – o núcleo essencial de prestações sociais ou a localização Brasília: Observatório da Jurisdição Constitucional, v. 2, p. 1-31, 2009.
incerta da socialidade (contributo para a reabilitação da força normativa Disponível em <http://ojs.idp.edu.br/docs/Peter_Harbele_pdf >. Acesso
da “constituição social”. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; CORREIA, em 05 mai. 2014.
Marcus Orione Gonçalves; CORREIA, Érica Paula Barcha Correia
SANTOS, Boaventura de Souza. Democratizar a democracia: os
(Coord.). Direitos fundamentais sociais. São Paulo: Saraiva, 2010.
caminhos da democracia participativa. Rio e Janeiro: Civilização
COÊLHO, Carolina Reis Jatobá. Interpretação constitucional acerca da Brasileira, 2002.
lei da anistia: a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº
153 e o necessário encontro do passado e futuro por meio do debate
social. In: GONET, Paulo Gustavo. (Org.). A eficácia das decisões
judiciais com foco nas decisões da jurisdição constitucional do STF.
Brasília: Instituto de Direito Público, 2012, p. 98-130. Disponível em:
<http://www.idp.edu.br/publicacoes/portal-de-ebooks/947-a-eficacia-
das-decisoes-judiciais-com-foco-nas-decisoes-da-jurisdicao-
constitucional> . Acesso em: 10 mar 2014.
31 32

O LUGAR DOS JURISTAS NA (RE)PRODUÇÃO DO DIREITO cidadania, indicando a perpetuação camuflada da seletividade do
direito por parte dos juristas.
NO BRASIL: UM ENSAIO À LUZ DO CONCEITO DE
Palavras-chave: Direito. Cidadania. Modernidade periférica. Casa de
CIDADANIA Acolhimento.

Danielle Espezim dos Santos7 1 Introdução


Helena Schiessl Cardoso8 A violência estatal cotidiana produzida no judiciário possui
Macell Cunha Leitão 9 como fundamento de legitimidade a ideia de que os juristas aplicam ao
caso concreto o direito estabelecido de acordo com a participação dos
Resumo: O trabalho objetiva analisar as condições que possibilitam o sujeitos que estão a ele submetidos, garantindo a igualdade formal de
reconhecimento institucional pelo sistema de justiça brasileiro dos
direitos e obrigações entre todos os indivíduos. Tendo como
direitos de indivíduos formalmente iguais. Após resgatar o conceito de
cidadania, busca caracterizar o capitalismo periférico vivenciado no significante mestre o “discurso da cidadania”, esse mito moderno
Brasil e, por conseguinte, o lugar dos juristas no reconhecimento
cumpre a função social de nos fazer crer que as ordens judiciais são
institucional dos (sub)cidadãos. Ao final, exemplificando com base em
uma decisão judicial, pretende-se desconstruir o discurso igualitário da uniformes e previsíveis e, portanto, que os juristas levam em conta em

7
suas decisões exclusivamente aspectos objetivos estabelecidos pela
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Especialista em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade do norma geral e abstrata.
Desenvolvimento do Estado de Santa Catarina (UDESC). Mestra e Doutoranda em
Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Professora da Malgrado esse discurso esteja assimilado no senso comum
Universidade do Sul de Santa Catarina e da Escola Superior da Magistratura do
Estado de Santa Catarina (ESMESC). teórico que circula socialmente em torno dos juristas e suas funções,
8
Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em
Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal não se pode desconsiderar que, antes de intrinsecamente verdadeiro, sua
(ICPC), em convênio com a Universidade Positivo (UP). Mestre em Direito pela
Universidade Federal do Paraná (PPGD/UFPR). Doutoranda em Direito pela formulação atende a condições histórico-sociais específicas, produzidas
Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Professora de Direito
no contexto europeu e assimiladas no Brasil por um processo de
Processual Penal na Universidade da Região de Joinville (Univille) e Professora
licenciada da Associação Catarinense de Ensino (ACE). Advogada Criminal. transculturação que envolve o passado colonial.
9
Graduado em Direito pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Mestre em
Teoria, História e Filosofia do Direito e Doutorando em Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Bolsista Capes.
33 34

Diante dessa realidade, busca-se, no presente trabalho, analisar No que diz respeito ao conceito de “cidadania”, impõe-se
as condições efetivas que possibilitam o reconhecimento institucional destacar que é possível vislumbrar um discurso dominante10 na teoria
igualitário de direitos e se – como se pretende problematizar – a jurídica contemporânea que não é neutro e precisa ser historicizado para
modernização periférica implica a aplicação diferencial e seletiva de ser melhor compreendido. Trata-se de um discurso associado ao
direitos e obrigações pelos juristas. moderno Estado de Direito e à organização da sociedade capitalista
ocidental, o qual, segundo Vera Regina Pereira de Andrade (1993, p. 29
Para tanto, o presente ensaio partirá inicialmente de um breve
ss; 2003, p. 66 ss), possui uma matriz epistemológica e uma matriz
resgate do conceito de “cidadania”, entendido como pedra angular do
político-ideológica concreta.
discurso que legitima a existência das principais instituições modernas,
no sentido de compreender como o “moinho de gastar gente”, que Assim, por um lado, epistemologicamente, a cultura jurídica
caracteriza o capitalismo periférico vivenciado no Brasil, configura uma dominante, calcada no positivismo normativista, reduz o discurso da
situação ímpar de desigualdade estrutural, limitando a expansão do cidadania ao direito positivo vigente, isto é, a norma. A cidadania é
status intersubjetivamente reconhecido de cidadão pelos juristas. vista estaticamente como um status atribuído pelo Estado de Direito ao
Pretender-se-á, ao final, com fulcro em uma ilustração empírica, obtida indivíduo e seu conteúdo define-se com base na legislação
em decisão sobre a instalação de Casa de Acolhimento em constitucional que, por sua vez, carrega um conjunto de valores
Florianópolis, ensaiar uma desconstrução para a falácia que, invocando reconhecido oficialmente como (supostamente) derivado do consenso
a igualdade ínsita ao conceito de cidadania, assegura a perpetuação social. No entanto, segundo Andrade (1993, p. 31-2), tal perspectiva
camuflada da seletividade do direito. exclusivamente normativista exclui do discurso jurídico da cidadania
qualquer problemática histórica, axiológica, sociológica, econômica e
política e, assim, descarta todos os âmbitos de significação que não
2 O conceito de cidadania como fundamento do Estado de Direito
digam respeito ao dever-ser estatizado como sendo “meta-jurídicos”.

10
Salienta-se que, embora seja um discurso dominante, não se trata de um discurso
monolítico, pois há, inclusive no Brasil, contradiscursos que buscam ampliar o
conceito de cidadania.
35 36

Por outro lado, político-ideologicamente, a cultura jurídica século XIX, infiltrando-se também na cultura jurídica dominante
12
dominante está alicerçada no liberalismo político europeu, no qual o brasileira , sendo possível identificar-se um processo de
13
individualismo se destaca como fundamento da ordem jurídico-política “transnacionalização” .
e no qual imperam, como basilares princípios de organização da Certamente há uma funcionalidade por trás da assimilação
sociedade e do Estado, o princípio da igualdade perante a lei, da universal do referido discurso nas sociedades capitalistas, tendo em
preservação da liberdade individual (e seus desdobramentos), da vista que, nestas formações sociais, o próprio Estado integra as relações
supremacia da vontade popular e, consequentemente, o Estado de
de dominação. A aceitação consensual e a legitimação da regulação
Direito, a democracia representativa e a tripartição dos poderes. Por estatal e, consequentemente, do poder coercitivo (legal) do Estado se
conseguinte, identifica-se no discurso dominante da cidadania, fundamenta no discurso da cidadania, pois, num Estado de cidadãos
conforme Andrade (1993, p. 40), uma excessiva ênfase nos direitos (supostamente) livres e iguais em direitos e deveres perante a lei, as
políticos stricto sensu (votar e ser votado; exercer funções públicas), os mediações nação, cidadania e povo
quais acabam por preencher e esgotar o conteúdo do status de
funcionam como instâncias generalizadoras que, ao
cidadania. mobilizarem solidariedades coletivas, possibilitam a
organização do consentimento por sobre os
É imperioso salientar que, embora o discurso moderno da fracionamentos e antagonismos (conflitos) sociais. Sua
articulação permite apresentar ‘o’ Estado (representativo)
cidadania tenha sua gênese na história europeia – com especial destaque como agente de conquista e custódia do ‘interesse geral’,
encarnando uma racionalidade superior e a defesa
para a simbólica Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do imparcial de uma ordem jurídica justa (ANDRADE,
1993, p. 56).
Cidadão de 1791 –, verifica-se a sua difusão praticamente “universal”11
na realidade político-institucional das sociedades capitalistas a partir do

12
“A cultura jurídica dominante no Brasil é herdeira de duas grandes matrizes
11
“A universalidade consiste então no fato de que as sociedades qualificadas por (alienígenas) das quais deriva suas condições de produção e possibilidade: do
relações capitalistas, a partir desse momento da história, se depararam com o discurso positivismo normativista, em nível epistemológico, e do liberalismo, em nível
da cidadania, cujo significado moderno – que o distingue de outras formas históricas político-ideológico, donde resulta sua caracterização como uma cultura jurídica
de cidadania – envolve genericamente a relação do indivíduo frente ao estado nacional positivista de inspiração liberal” (ANDRADE, 2003, p. 66).
13
a que juridicamente se vincula (de forma que todo cidadão é cidadão de um Estado) A “transnacionalização” do conceito de cidadania aqui é tomada como o potencial
estabelecendo-o como formalmente livre e igual aos demais perante a lei” universalista do conceito, o qual acaba por funcionar fora do seu lugar de origem. Para
(ANDRADE, 2003, p. 68). uma melhor compreensão do termo, compare com ANDRADE, 2003, p. 35.
37 38

A constatação da universalidade do fenômeno da cidadania nas democrático e transformador (emancipação), sendo imprescindível,
sociedades capitalistas contemporâneas, contudo, não permite concluir portanto, reconhecê-lo como um processo histórico dialético
que a cidadania apresente práticas sociais e tratamentos jurídicos (ANDRADE, 1993, p. 71; 2003, p. 64 ss).
idênticos por toda parte, já que adquire materialização específica em Assim, por um lado, enquanto aprisionado nos limites restritos
cada formação social concreta (ANDRADE, 1993, p. 50, p. 68). e estáticos do conceito liberal de cidadania, no qual o status de
No Brasil, destaca-se que as Constituições historicamente têm cidadania é atribuído unilateralmente pelo Estado (único locus do poder
feito referência aos termos cidadania e nacionalidade – sem maior e da política) e o seu conteúdo é reduzido aos direitos políticos em
precisão e distinção conceitual – e que o conteúdo a eles subjacente sentido estrito a serem exercidos no contexto da democracia
sempre esteve ligado à construção jurídica da nacionalidade, inexistindo representativa no momento eleitoral, não se vislumbra a dinamicidade e
alusão a (outros) direitos de cidadania não vinculados ao direito da construção conflitiva do conceito já apontada na original tese de
nacionalidade (ANDRADE, 1993, p. 47). Considerando ainda a Thomas Marshall14, bem como a necessidade da constante ampliação de
tendência do positivismo normativista dos juristas brasileiros, conforme seu conteúdo conforme as necessidades dos cidadãos numa sociedade
síntese de Andrade (1993, p. 13): claramente heterogênea. Sendo o conteúdo da cidadania compreendido

[...] a cidadania parece, no discurso jurídico dominante, exclusivamente com base na norma (constitucional), impede-se a
como categoria estática e cristalizada – tal qual sua
tematização daquilo que é taxado como extranormativo e regulam-se os
inscrição nas Cartas constitucionais brasileiras – tendendo
a ser identificada com a nacionalidade – caso em que são
analisadas tão-somente as formas triviais de aquisição e 14
Ao analisar o desenvolvimento da cidadania na Inglaterra, Marshall verificou que o
perda desta última – ou diferenciada da nacionalidade,
conceito de cidadania foi paulatinamente ampliando o seu significado, pois enquanto
caso em que é estabelecida como pressuposto da
no século XVIII girava em torno da “liberdade individual” e seus corolários (elemento
cidadania, para finalmente, aparecer provida de conteúdo:
civil), passíveis de salvaguarda através dos tribunais, no século XIX começa a incluir
a soma da nacionalidade mais direitos políticos,
a “participação no poder político” (elemento político) através do parlamento e
concebidos basicamente como direitos eleitorais (votar e
conselhos locais e, enfim, no século XX, o “bem-estar” (elemento social) por meio do
ser votado) [sem grifos no original].
do sistema educacional e dos serviços sociais (MARSHALL, 1967). Certamente,
Refletindo sobre esse discurso da cidadania, Andrade chama trata-se de uma tese circunscrita à realidade da história inglesa, intransponível sem
maiores ressalvas à realidade brasileira (Conforme apontado em CARVALHO,
atenção para a sua ambiguidade, pois ora o discurso apresenta um 2001.). Contudo, é uma reflexão original quanto ao estabelecimento de uma tipologia
dos direitos de cidadania (civis, políticos, sociais), bem como valiosa para o
potencial autoritário e conservador (regulação), ora um potencial reconhecimento da dinamicidade do conceito de cidadania a ser historicizado em cada
formação social concreta.
39 40

conflitos sociais com base no discurso da obediência e da igualdade conquistar novos direitos (humanos). Por conseguinte, a cidadania é
perante a lei. dinamicamente construída, tanto individual quanto coletivamente. E
aqui se deve destacar a importância dos atores sociais tradicionalmente
Por outro lado, paradoxalmente, a (suposta) igualdade de todos
excluídos do pacto de cidadania celebrado simbolicamente pelo homem
os cidadãos cria um espaço discursivo democrático e transformador
branco europeu na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, ou
para eventuais lutas judiciais e políticas – encampadas pelos mais
seja, mulheres, crianças, idosos, negros, índios, não proprietários, não
diversos atores sociais – de concretização dos direitos existentes e de
heterossexuais etc.
reivindicação de novos direitos (humanos) 15.

Tal dimensão pode trazer em seu bojo – tal qual a Na sociedade brasileira contemporânea a mobilização política
dimensão autoritária pode trazer um caráter legitimador –
destes segmentos e a noção ampliada de cidadania podem ser
um caráter contestatório da dominação capitalista,
podendo questionar, inclusive, suas próprias contradições vislumbradas nas mais variadas pautas de luta. Nas palavras de Andrade
e fundamentos, entre os quais a apropriação da cidadania
como um instrumento de legitimação do Estado (2003, p. 72-3),
(ANDRADE, 1993, p. 73).
Ilustram uma tal constatação a luta dos trabalhadores
Em um sentido democrático e emancipatório, deve-se então (que não é nova) situada no âmago do conflito capital x
compreender a cidadania num sentido mais ampliado, isto é, no trabalho e das classes sociais; a luta das mulheres, dos
negros, dos índios, das minorias sexuais, dos sem-terra,
contexto de uma democracia participativa e como o direito de todos os dos sem-teto e tantas outras, as quais encontram sentido
de suas reivindicações determinado pela forma concreta
atores sociais (indivíduos, grupos, classes, movimentos sociais etc.) de de desigualdade, sujeição e discriminação a que estão
submetidos certos indivíduos enquanto associação e não
apenas individualmente [sem grifos no original].
15
Aqui é interessante fazer referência ao conceito (igualmente dinâmico) de direitos
humanos contido na obra de Alessandro Baratta, pois o autor os associa à satisfação Por fim, delineado esquematicamente o discurso dominante da
das necessidades reais do “homem” em sua existência concreta. O homem é portador cidadania na cultura jurídica dominante no Brasil, analisar-se-á, no final
de necessidades reais e, tomado numa perspectiva dinâmica, suas capacidades e
necessidades variam de acordo com o contexto histórico-social. É possível afirmar que do presente artigo, demanda judicial atinente à concretização do direito
quanto maior for a capacidade social de produção material e cultural, tanto maior é o
grau de satisfação das necessidades e, por consequência, aumenta também o nível de de habitação, com o intuito de apontar, na práxis judicial, o papel dos
capacidades individuais e dos grupos. Nas palavras do autor: “Podemos assim definir
as necessidades reais como as potencialidades de existência e de qualidade de vida das juristas na concretização e construção da cidadania e/ou subcidadania e,
pessoas, dos grupos e dos povos, que correspondem a um determinado grau de
desenvolvimento da capacidade de produção material e cultural em uma formação por conseguinte, identificar as eventuais dimensões autoritárias e/ou
econômico-social” (BARATTA, 2004, p. 337).
41 42

emancipatórias do discurso jurídico da cidadania. Antes disso, no do desgaste da população que recruta no país ou que
importa (RIBEIRO, 2013, p. 20, sem grifos no original].
entanto, será esboçado nos próximos tópicos um aprofundamento em
Enquanto modelo de estruturação societária, o país e seu povo
relação à formação do povo brasileiro, bem como o lugar dos juristas no
foram fundados em um modelo novo de escravismo e numa servidão
reconhecimento institucional dos (sub)cidadãos.
continuada ao mercado mundial, porém encontra, neste mesmo povo,
uma “[...] inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade, num

3 A formação do povo brasileiro e a cidadania nacional povo tão sacrificado, que alenta e comove a todos os brasileiros”
(RIBEIRO, 2013, p. 19).
No contexto deste artigo, a abordagem sobre cidadania passará
igualmente pela perspectiva antropológica presente na pesquisa de A contradição aparece nas matrizes étnicas que se encontram e

Darcy Ribeiro, isto porque (a) o pesquisador foi incansável no contato que concorrem para a construção do país e foram “gastas” num

com todos os povos – e seus registros – formadores da cidadania processo de construção e de serviço ao mercado mundial. Ao mesmo

nacional, tendo produzido conhecimento sobre este assunto durante tempo que poderia ter se dado a configuração de uma sociedade

uma extensão considerável do século XX; e (b) é importante resgatar o multiétnica marcada por oposições e por lealdades étnicas próprias, o

olhar dialético por dentro do processo de formação do povo brasileiro, que resulta é uma “macroetnia” com as raízes visíveis, somaticamente,

buscando uma alternativa ao olhar exclusivamente externo sobre o mas não objetivamente na dinâmica do povo-nação (RIBEIRO, 2013, p.

fenômeno. 19-21).

Ribeiro classificou o povo brasileiro, em fins do século XX, Na perspectiva de Ribeiro (2013, p. 228-244), a formação

como um “povo-nação”, enquadrado em um Estado e território, para cultural do povo brasileiro se entrelaçou com distinções de cor e de

viver seu destino. Porém, marcado pela motivação dos colonizadores, classe. Os números da última década do século XX demonstram que as

desde o início do processo de chegada destes, de criar um: diferenças são marcantes em termos de inserção no mercado de
trabalho, de remuneração e de escolaridade, para pardos e negros, em
proletariado externo. [...] um implante ultramarino da
expansão europeia, que não existe para si mesmo, mas benefício de brancos. O paradoxo da história, denunciado por Florestan
para gerar lucros exportáveis pelo exercício da função de
provedor colonial de bens para o mercado mundial através Fernandes, é que o negro se transforma na pedra de toque da capacidade
43 44

do Brasil de forjar uma democracia, propriamente dita, como suporte da dessa gastança, como num moinho, só que de gastar gente e outras
chamada “modernidade civilizatória”. riquezas, se mantém:

Em outro aspecto central, a discriminação e o distanciamento Nada é mais continuado, tampouco tão permanente ao
longo destes cinco séculos, do que essa classe dirigente
entre grupos se dá em função de critérios de “posse” e de “estilos de exógena e infiel a seu povo. No afã de gastar gentes e
matas, bichos e coisas para lucrar, acabam com as
vida”, em outras palavras, de classe, como segue: florestas mais portentosas da terra, desmontam morrarias
incomensuráveis, na busca de minerais. Erodem e arrasam
As enormes distâncias sociais que medeiam entre pobres e terras sem conta. Gastam gente aos milhões (RIBEIRO,
remediados, não apenas em função de suas posses, mas 2013, p. 68-9).
também pelo seu grau de integração no estilo de vida dos
grupos privilegiados – como analfabetos ou letrados, O processo descrito, e já seria de esperar que assim
como detentores de um saber vulgar transmitido
oralmente ou de um saber moderno, como herdeiros da acontecesse, resultou em uma camada senhorial que julga ter em suas
tradição folclórica ou do patrimônio cultural erudito, mãos uma massa trabalhadora apta a ser gasta no processo produtivo,
como descendentes de famílias bem situadas ou de origem
humilde ‐, opõem pobres e ricos muito mais do que com direito apenas a comer enquanto trabalha, a fim de repor energias
negros e brancos (RIBEIRO, 2013, p. 236).
produtivas, e de reproduzir-se para repor a mão-de-obra gasta
No processo histórico de formação do Brasil foi recorrente
(RIBEIRO, 2013, p. 212).
uma luta por unificação potencializadora e reforçadora de “[...]
repressão social e classista, como separatistas, movimentos que eram Para Ribeiro (2013, p. 26), uma reordenação social, sem
meramente republicanos ou anti-oligárquicos” (RIBEIRO, 2013, p. 23). convulsão social e como reformismo democrático não é impossível,
mas improvável, dado o fato de poucos milhares acessarem a maior
Além das distâncias acima descritas, há a característica
parte do território e fazerem com que milhões de trabalhadores se
intencional do processo formativo – a criação de um proletariado
urbanizem e passem a habitar famelicamente as favelas, “[...] em nome
externo – que foi fortemente descrita por Ribeiro (2013, p. 68) como
da manutenção de velhas leis. Cada vez que um político nacionalista ou
uma “gastança de gentes”: um povo marcado principalmente pela
populista se encaminha para a revisão da institucionalidade, as classes
mestiçagem para servir à dinâmica do capitalismo mundial, e que se
dominantes apelam para a repressão e a força”.
forma como “[...] uma morena humanidade em flor.” A recorrência
A novidade no povo brasileiro, para Ribeiro (2013, p. 454), é
sua condição de “nova Roma”, no sentido de que, apesar do colonizador
45 46

e até por causa do que ele trouxe à conformação do povo, e em função Antes de esclarecer determinadas noções que permitem ensaiar
das condições favoráveis à criatividade e à superação trazidas pelas uma hipótese para esse problema é importante retomar a centralidade
etnias formadoras, é possível antever saídas inimagináveis em outros que essa ideia possui no discurso juridicista subjacente às instituições
países e culturas já existentes e exauridas em suas próprias histórias. modernas, à medida que o poder judiciário, independente e autônomo,
constitui de maneira exemplar o signo da “neutralidade ideológica”,
É nesta sociedade brasileira que se propõe a análise do papel
assegurando, assim, sua serena condição de árbitro imparcial dos
dos juristas e sua instituição judiciária como operacionalizadora de uma
conflitos (interindividuais) e da segura aplicação da lei. Quer dizer, nos
(sub)cidadania estrutural ao sistema econômico ocidental, considerando
marcos da modernidade instituída, o judiciário emerge “como portador
sua funcionalidade na seleção e estigmatização de grupos em países
de um conjunto de promessas ou funções declaradas, vinculadas ao
periféricos.
pilar da emancipação (defesa de interesses e direitos, justiça, solução de
conflitos) e esta discursividade de um poder a serviço do homem,
4 O lugar dos juristas no reconhecimento institucional dos constitui o horizonte ideológico, sob o qual se desenvolve até hoje a sua
(sub)cidadãos legitimação” (ANDRADE, 2000).

Diante do que foi exposto e levando em consideração que as Não se trata, por outro lado, de um discurso que se constitui
instituições estatais têm como fundamento de legitimidade a igualdade por acaso. Afirmar o lugar neutro dos juristas na aplicação de um
formal de direitos e obrigações entre os cidadãos, questiona-se no direito estabelecido de acordo com as regras democráticas confirma a
presente tópico em que medida a desigualdade estrutural, que marca crença do homem comum que as aspirações de todos os segmentos
profundamente o processo de modernização periférica vivenciado no sociais são igual e legitimamente protegidas, garantindo a estabilidade
Brasil, implica o reconhecimento diferencial e seletivo dos direitos das instituições existentes (FARIA, 1984, p. 20). Seguindo os efeitos
pelos juristas. Isto é, trata-se de colocar em questão a forma como as significativos de todo mito 16 bem-sucedido, transmite-se a ideia de
diferenças de classe são reproduzidas de maneira opaca na própria
16
esfera estatal que possui a função declarada de garantir coercitivamente Luis Alberto Warat alertava que o mito consiste em um discurso “cuja função é
esvaziar o real e pacificar consciências, fazendo com que os homens se conformem
o pacto entre cidadãos livres e iguais. com a situação que lhes foi imposta socialmente, e que não só aceitem como veneram
as formas de poder que engendraram essa situação. Reduzidos à sua caracterização
47 48

unidade substancial entre as classes que constituem a sociedade, compartilhada por todos os segmentos sociais. Quer dizer, a despeito
obscurecendo “todas as contradições sociais e todos os conflitos de das inegáveis diferenças de classe, a existência de uma esfera moral
interesses em nome do fim pragmático de se imaginar uma comunidade autônoma generalizada e consensual nesses países permitiu uma
que está ‘no mesmo barco’” (SOUZA, 2012, p. 15-6). homogeneização social e generalização do tipo de personalidade e
economia emocional adequados aos valores institucionais nascentes.17
Entretanto, malgrado o projeto moderno da cidadania no Brasil
Nos países periféricos, por outro lado, as “práticas” modernas foram
esteja teoreticamente assentado nos mesmos pilares (regulação e
anteriores às “ideias” modernas: pelas razões explicadas no tópico
emancipação) de suas raízes coloniais, as singularidades desse processo
anterior, mercado e Estado foram importados no Brasil de fora para
de modernização em países periféricos implicam, até hoje, nas suas
dentro, deixando parcelas significativas da população à margem dos
possibilidades de concretização. Aliás, para ser ainda mais exato sobre
próprios pressupostos sociais e psicossociais necessários ao novo
esse ponto: “o ‘subdesenvolvimento’ é precisamente uma ‘produção’ da
ambiente concorrencial (SOUZA, 2012, p. p. 96-8).
expansão do capitalismo” (OLIVEIRA, 2003, p. 33). Assim, não há
razões para a pressuposição, tão ingênua quanto inquestionada, que as Nesse caso, não é possível interpretar as especificidades do
funcionalidades do judiciário brasileiro sejam idênticas às declaradas na funcionamento das instituições no Brasil sem compreender a maneira
modernidade central. com que elas se enraizaram socialmente no país. O processo de
modernização periférica aqui vivenciado foi constitutivamente marcado
Nas sociedades nucleares do ocidente, assim como nas grandes
pelo abandono à própria sorte dos escravos e dos dependentes
civilizações orientais, uma concepção de mundo de fundo religioso
formalmente livres, os quais irão formar o que Jessé Souza denomina
regulava e legitimava o contexto tradicional em todas as suas práticas
sociais e institucionais (SOUZA, 2012, p. 95), permitindo que as
17
Interpretando a teoria de Charles Taylor, Jessé Souza aponta que “instituições como
instituições modernas (Estado racional centralizado e Mercado Estado e mercado, assim como as demais práticas sociais e culturais, já possuem
implícita e inarticuladamente uma interpretação acerca do que é bom, do que é
competitivo) fossem erigidas a partir de uma visão articulada – valorável perseguir, do valor diferencial dos seres humanos etc.” (2012, p. 28). Sendo
assim, apesar da crença do senso comum da vida cotidiana e da filosofia ou ciência
dominantes que contrapõem nossas intuições naturais às reações morais advindas da
política, pode afirmar-se que a função básica dos mitos é a de criar a sensação coletiva socialização, “formulamos sentido para nossas vidas com base na relação que
de despolarização e neutralidade, a qual permite a apresentação da força social em estabelecemos com as avaliações fortes que formam a referência última da condução
termos de legalidade supra-racional e apriorística” (Cf. WARAT, 1994, p. 194). da vida do sujeito moderno” (2012, p. 29).
49 50

provocativamente de “ralé” dos imprestáveis ao novo sistema transmitido familiarmente de modo invisível na socialização familiar,
impessoal, “sem o arcabouço ideal que, nas sociedades centrais, foi o como se as disposições do mundo moderno – e.g., disciplina,
estímulo último para o gigantesco processo de homogeneização do tipo autocontrole e pensamento prospectivo – fossem inerentes à própria
contingente e improvável que serve de base à economia emocional condição humana, permitindo, assim, que o fracasso do indivíduo de
burguesa, e que permite a sua generalização também para as classes determinadas classes seja visto socialmente e assimilado pelo próprio
subalternas” (SOUZA, 2012, p. 128).18 sujeito como culpa individual (SOUZA, 2010, p. 24; 51).

A percepção desse processo permite destacar à primeira vista A naturalidade dos “bons modos”, da “boa fala” e dos
“bons comportamentos” passa a ser percebida como
um mecanismo invisível bastante eficaz na manutenção de uma radical mérito individual, pelo esquecimento do processo lento e
custoso, típico da socialização familiar, que é peculiar a
desigualdade de classe, à medida que ela se legitima exatamente na cada classe social específica. Esquecida a gênese social de
todo privilégio – no fundo um privilégio de sangue como
afirmação dissimulada de uma igualdade de oportunidades intrínseca a todo privilégio pré-moderno –, os indivíduos das classes
todos os cidadãos em oposição ao “privilégio” que teria ficado em dominantes podem aparecer como produto “mágico” do
talento divino e se reconhecerem mutuamente como seres
tempos pré-modernos. Em outras palavras, a violência simbólica mais especiais merecedores da felicidade que possuem.
[...] A linguagem do corpo – mais fundamental, imediata
brutal nos países periféricos consiste em negar toda a “construção social
e imperceptível que a linguagem mediada pelas palavras e
do privilégio” como elemento específico de determinadas classes, pelo discurso – opera como uma espécie de tradutor
universal da posição social ocupada individualmente na
hierarquia social. A “distinção social”, negada e reprimida
na dimensão explícita e consciente da vida [...] retorna de
18
Ressalte-se que, ao contrário do que defende parcela significativa do pensamento modo opaco e implícito e, por conta disso mesmo, com a
social brasileiro, não se busca com essas ideias colocar em xeque o caráter virulência típica da agressão – espontânea e imperceptível
efetivamente moderno do Brasil, à medida que as mediações institucionais das –, sem defesa possível. O “racismo de classe” não permite
relações privadas em âmbito estatal e as exigências de novas posturas no mercado defesa porque nunca se assume enquanto tal (SOUZA,
competitivo modificaram profundamente as relações pessoais institucionais e que 2010, p. 48-9).
caracterizavam o período pré-moderno. Conforme o ensino de Jessé Souza: “A
reeuropeização teve, nesse contexto primitivo, um caráter de reconquista Contudo, não se trata de um problema restrito às formas
ocidentalizante e de transformação profunda não só de hábitos, costumes e mores, mas invisíveis de transmissão de valores imateriais e consequente
também de introdução de valores, normas, formas de comportamento e estilos de vida
novos destinados a se constituírem em critérios revolucionários de classificação e reprodução da desigualdade estrutural em países periféricos. A
desclassificação social. O que foi introduzido a partir de 1808 foi todo um novo
mundo material e simbólico, implicando a repentina valorização de elementos inexistência do processo de generalização do tipo humano adequado aos
ocidentais e individualistas em nossa cultura mediante a influência de uma Europa.”
(2012, p. 140). imperativos das instituições modernas inviabiliza a expansão do status
51 52

intersubjetivamente reconhecido de cidadão (SOUZA, 2012, p. 98). A e interesses próprios que se constituem a partir da incorporação de um
eficácia social da regra jurídica da igualdade – fundamento do conceito habitus específico, somente os arautos do juridicismo podem manter
moderno de cidadania – não pode ser assegurada apenas formalmente, intacta a crença mitológica na neutralidade do judiciário na produção do
senão através do compartilhamento transclassita da noção de dignidade direito em relação aos conflitos de classe.
em sociedades que conseguiram homogeneizar a economia emocional É necessário lembrar que toda sociedade constitui mecanismos
de seus membros numa medida significativa. Sem esse “respeito de legitimação da desigualdade que justificam o acesso diferencial das
atitudinal” (Taylor), no sentido não jurídico de “levar o outro em
pessoas aos bens e oportunidades disponíveis. Pode-se mencionar, por
consideração”, não é possível concretizar a própria dimensão jurídica da exemplo, a “ideologia do desempenho” (Kreckel) que, baseada na tríade
cidadania e da igualdade perante a lei (SOUZA, 2012, p. 167). meritocrática – qualificação, posição e salário –, não só estimula e
Dessa forma, é possível destacar a especificidade do lugar premia a capacidade de desempenho objetiva, como sinaliza o valor
ocupado pelos próprios juristas na (re)produção institucional do direito, relativo das pessoas, dando a impressão que se trata de princípios
à medida que esses profissionais surgem no ocidente como grupo de universais e neutros, abertos à competição meritocrática (SOUZA,
status distinto, isto é, enquanto organização fundada em educação 2012, p. 170-2). Assim, independente da origem de classe particular de
formal, prestígio ocupacional ou estilo de vida próprios, possuindo um determinado jurista, o longo processo de incorporação de seu habitus
compartilhamento mínimo de ideias e de interesses concretos específico e a percepção social positiva de seu “desempenho” permitem
(TRUBEK, 2007, p. 167). Pierre Bourdieu destacava que o habitus dos concebê-lo como “cidadão completo”, estimulando-lhes, assim, ao
juristas comporta todo um trabalho que parece ter por finalidade a reconhecimento seletivo dos direitos àqueles cidadãos que possuem
aquisição de uma postura física de magistrado, combinando uma série “valor social” similar. Não por acaso, o ínfimo estranhamento social em
de virtudes que se materializam em disposições corporais relação aos salários exorbitantes do judiciário no Brasil.
(BOURDIEU, 2003, p. 4)19. Nesse caso, se os juristas possuem crenças Não se busca afirmar com isso que os juristas agem

19
deliberadamente no sentido de afirmar ou negar a cidadania a
Lenio Streck destaca que o saber profissional dos juristas constitui um “capital
simbólico” no sentido de formar “uma ‘riqueza’ reprodutiva a partir de uma intrincada determinados indivíduos de acordo com seu pertencimento a
combinatória entre conhecimento, prestígio, reputação, autoridade e graus
acadêmicos” (STRECK, 2011, p. 105). determinada classe social. Trata-se do que Luis Alberto Warat
53 54

denominava, referindo-se ao conceito de senso comum teórico dos sentença final, passando por advogados, testemunhas,
promotores, jornalistas etc., que, por meio de um acordo
juristas, de um disciplinamento anônimo de seus atos de decisão e implícito e jamais verbalizado, terminam por inocentar o
atropelador. O que liga essas intencionalidades
enunciação: um emaranhado de costumes intelectuais que – forjados na individuais de forma subliminar e que conduz ao acordo
implícito entre elas é o fato objetivo e ancorado
própria práxis jurídica – são aceitos como verdades de princípios, institucionalmente do não valor humano, posto que é
ocultando a dimensão política das ideias aceitas pelos juristas precisamente o valor diferencial entre os seres humanos
que está atualizado de forma inarticulada em todas as
(WARAT, 2004, p. 29). Esses costumes intelectuais funcionam, assim, nossas práticas institucionais e sociais (SOUZA, 2012, p.
175)21.
como uma forma de pacificação das consciências, permitindo que os
Com base nessas explicações podemos esboçar uma
juristas reproduzam sua visão de mundo de maneira socialmente
inteligibilidade possível sobre as razões pelas quais os juristas, sempre
legitimada20.
situados no camarim da história, realizam o controle social das massas
Por essa razão, malgrado “seus potenciais emancipatórios, o excluídas. Não se trata, como se pode ver, de uma deliberação
judiciário-instituição foi desde sempre um braço nobre da regulação consciente de negar cidadania a determinados indivíduos ou grupos,
social e, portanto, um poder funcionalizado para a reprodução da antes, o contrário: os profissionais do direito – ávidos consumidores das
estrutura social (capitalista e patriarcal), de suas instituições e relações verdades aceitas pelo senso comum teórico dos juristas – acreditam
sociais” (ANDRADE, 2000). Em países periféricos como o Brasil em firmemente cumprirem suas funções técnico-jurídicas de maneira neutra
que parcela significativa da população jamais possuiu as precondições e objetiva, sem levar em conta os aspectos subjetivos das partes
necessárias para corresponder aos valores subjacentes às instituições processuais. Os fios invisíveis dos mecanismos de reconhecimento
modernas, existe uma espécie de consenso, pré-reflexivo e naturalizado, social (empatia) e institucional (cidadania) possibilitam que os agentes
que sugere implicitamente que algumas pessoas estão acima e outras 21
Marcelo Neves (1995, p. 17; 22) aponta para a tendência de instrumentalização
abaixo da lei. Conforme explica Jessé Souza: política do direito no Brasil: “seja por meio da mutação casuística das estruturas
normativas, principalmente durante os períodos autoritários, ou através do jogo de
Existe como que uma rede invisível que une desde o interesses particularistas bloqueadores do processo de concretização normativa. Nesse
policial que abre o inquérito até o juiz que decreta a contexto, a autonomia privada (‘direitos humanos’) e a autonomia pública (‘soberania
popular’), embora, em regra, declaradas no texto constitucional, são rejeitadas
mediante os mecanismos de desestruturação política do processo concretizador da
20
Para uma ilustração dessa explicação, ver o documentário “Justiça” de Maria Constituição”, permitindo que “os sobrecidadãos utilizam regularmente o texto
Augusto Ramos, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=75P1KTTTjj0>. constitucional democrático – em princípio, desde que isso seja favorável aos seus
Acesso em 8jul2014. interesses e/ou para proteção da ‘ordem social’”.
55 56

sejam selecionados de acordo com a sua irrelevância na reprodução das outros elementos da política de assistência social no Brasil – a
relações sociais, o que recai “sobre as opressões étnicas (negros, árabes, regulamentação do serviço de acolhimento em regime de período
índios), o local de moradia (pobres de periferia) ou as formas de integral – por meio de abordagem não invasiva – como meio de
atuação (movimentos sociais), imobilizando o potencial de oposição persecução de autonomia e desligamento do aparato social e/ou
contra o sistema de todos esses agentes” (MENEGAT, 2012, p. 50). caritativo.22

Poucos casos poderiam ilustrar de maneira tão apropriada o A ação principal de Dano Infecto foi proposta no foro da
que se intenta ensaiar no presente trabalho como a decisão judicial Comarca da Capital e teve negado pedido de liminar de suspensão da
analisada a seguir. inauguração da casa de acolhimento; esta denegação de liminar foi
objeto de agravo de instrumento interposto no Tribunal de Justiça de
Santa Catarina, ora analisado.
5 Da cidadania institucionalizada à invisibilização do subcidadão:
Na visão do autor da ação, nos termos do relatório do recurso
ilustração empírica a partir do julgamento do pedido de suspensão
no Tribunal de Justiça de Santa Catarina:
da inauguração da Casa de Acolhimento em Florianópolis
[...] o abrigo é Instituição Assistencial não permitida sua
Um morador do bairro escolhido pela Prefeitura Municipal de ocupação em solos predominantemente residencial e
turístico, conforme Lei no Complementar n. 1/1997. [...] a
Florianópolis para instalar casa de acolhimento de adultos com hábitos instalação terá interferência na segurança, sossego e
de rua (população em situação de rua) se valeu de Ação de Dano Infecto saúde. [...] direito de vizinhança. (SANTA
CATARINA,2013, p. 142)
– processo nº 023.12.068087-7 intentada em 5 de dezembro de 2012 –
A causa de pedir, nesse caso, é a inclusão de equipamento
para obter medida de “[...] suspensão da inauguração da Casa de
comunitário em área de destinação diversa, em função do plano diretor
Acolhimento instalada na Rua Professora Maria Julia Franco, no bairro
do município; explica-se: a casa de acolhimento, como equipamento
Jose Mendes em Florianópolis-SC” (SANTA CATARINA, 2013, p.
ligado à política de assistência social, não poderia funcionar em área
142).
22
A Prefeitura Municipal de Florianópolis, em julho de 2014, mantém duas casas de
A Resolução 109 de novembro de 2009 (BRASIL, 2009) do acolhimento, segundo seu sítio da internet. Disponível em
<http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/semas/index.php?cms=protecao+social+especial
Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) acolheu – entre +de+alta+complecomple&menu=5>. Acesso em 8jul2014.
57 58

turística e residencial, em que consiste a localidade escolhida pelo classificada assim como ZR-2 [Zona Residencial 2] (fls. 85/87), com
Município de Florianópolis. uso proibido e incompatível com a destinação da área para instalação de
Unidade de Acolhimento de cunho assistencial (fls. 88/89)” (SANTA
Nos termos do Plano Diretor em vigor à época, equipamentos
CATARINA, 2013, p. 143).
de assistência social são destinados às Áreas Comunitárias
Institucionais (ACI’s), sendo que, na hipótese atacada pelo morador do A decisão judicial ressalta a assistência social como direito,
bairro escolhido, seria inaugurado em Área Turística Residencial reputando serem “[...] direitos socioassistenciais de acolhimento de
(ATR).23 indivíduos e famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade
e risco social e pessoal [...]”, mas não se refere à condição de direito
O autor da ação, no que obteve a concordância do
fundamental, tendo em vista a localização constitucional daquela, em
Desembargador Relator, se baseou na interpretação de que o uso da área
seus artigos mais explícitos: artigo 6º (direito social), artigo 203
com fins assistenciais é proibido e incompatível com o plano diretor.
(conteúdo e destinatários do direito fundamental à assistência social) e
O que se analisa, tendo em vista a perspectiva da atuação dos
artigo 204 (diretrizes/princípios do direito fundamental à assistência
juristas na manutenção de uma cidadania seletiva, são os fundamentos
social); sem prescindir dos princípios constitucionais da cidadania, da
da decisão, em sede de Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC),
dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho – por
pela concessão de liminar de suspensão da inauguração da
mais que sempre haja o cotejamento com os valores sociais da livre
casa/instituição destinada a acolhimento – resgate, acolhida e
iniciativa no mesmo dispositivo –, constantes dos artigos 1º e 3º
fortalecimento – de pessoas com rompimento/fragilização de vínculos
(BRASIL, 1988).
familiares e comunitários.
Menciona, apenas, que há uma “[...] pública e notória tragédia
O TJSC acolhe integralmente a pretensão, ainda que em fase
social que se abate sobre os moradores de rua [...]” e que a Secretaria
liminar; escreve o relator: “Perlustrando os autos, observa-se que a área
Municipal de Assistência Social de Florianópolis deverá enfrentar o
situada no Bairro José Mendes é predominantemente residencial,
“[...] problema social dos moradores de rua, primando pelo
23
Tudo nos termos dos artigos 10, 11, 13, 14, 36 e 37 da Lei nº 1/1997, que dispõe reordenamento de suas ações de forma a garantir o atendimento da
sobre o zoneamento, o uso e a ocupação do solo no Distrito Sede de Florianópolis e dá
outras providências.
59 60

Política Nacional de Assistência Social” (SANTA CATARINA, 2013, item “Pousadas, Albergues de Turismo e Paradouros” ou no item
p. 143). “Orfanatos, Asilos e Similares”. Tendo em vista que não obteve posição
suficientemente sustentável no seu “enquadramento por analogia”,
Para um jurista, “política nacional” tem força bem menos
assume que se deveria encontrar juízos urbanísticos para decidir o caso.
vinculante do que um “direito fundamental”. Não se superou em
Direito, nem se visualiza superar por motivos de gênese do fenômeno O desembargador relator se valeu, assim, da posição de um
jurídico, a legalidade como imperativo (nos termos do Artigo 5º, II: técnico – superintendente, à época – do órgão de planejamento urbano
“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão da cidade (Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis - IPUF)
em virtude de lei”) (BRASIL, 1988). Assim, afirmar a relevância de um em parecer administrativo acerca da viabilidade do empreendimento
problema social é uma concessão à realidade gritante, mas não chega a discutido que, em suma: refere conhecer “[...] as regras da justiça social
obrigar juridicamente os poderes públicos, na mesma proporção que a e da tolerância inerente às diferenças dos cidadãos [...]”, mas também
roupagem de um direito fundamental confere. afirma a incompatibilidade entre a casa de acolhimento de população de
rua e a natureza da região escolhida (SANTA CATARINA, 2013, p.
Outro aspecto estruturante da decisão foi o que o
143).
desembargador relator chamou de “enquadramento por analogia”,
cotejando os dispositivos do Plano Diretor em vigor em Florianópolis, e A posição do técnico em urbanismo aponta “[...] flagrante
concluindo que seria impossível considerar que uma instituição de incorreção, tanto urbanística quanto social [...]”, extrapolando um
acolhimento de indivíduos moradores de rua seja equiparado a discurso de sua área de origem (arquitetura) e se posicionando acerca de
estabelecimento de turismo, como tentou o Diretor de Arquitetura e um suposto dano à tranquilidade do local, já que aduz: “[...] partindo do
Urbanismo da Secretaria Municipal do Meio Ambiente e princípio de que o conjunto das diferenças é um dos formadores da
Desenvolvimento Urbanos de Florianópolis. qualidade das cidades e que a aprovação interferiria danosamente na
condição de área pacata e predominantemente residencial daquele setor
Por aquela razão – o enquadramento aparentemente
equivocado do agente do executivo – o desembargador perscrutou o urbano” (SANTA CATARINA, 2013, p. 143).

Plano Diretor para avaliar se a casa de acolhimento se enquadraria no


61 62

Na afirmação de que o conjunto das diferenças é formador da ao direito de vizinhança, posto que interferiria: “[...] na segurança,
qualidade das cidades como pressuposto de constatação de incorreção sossego e saúde da coletividade local. Em suma, para o caso dos autos
da instalação de casa de acolhimento em zona residencial e urbanística, não adianta remediar a situação diária de 30 moradores de rua para
há uma contradição. Contradição esta que não é levada em conta na prejudicar uma coletividade, na ‘velha expressão de tapar um buraco
decisão de utilizar o parecer como fundamento de decisão judicial em para abrir outro’” (SANTA CATARINA, 2013, p. 144).
grau de recurso que pleiteia liminar.

E mais, o discurso técnico conclui sobre questão complexa:


6 Considerações finais
“[...] A população de rua precisa ser convenientemente atendida e a
O discurso da cidadania, exercido pelos juristas, não se
calamidade enfrentada, mas a localização de locais cotidianos da
sustenta na dinâmica social brasileira, que desde a sua formação e
assistência deve ser procurada, como preconiza o Plano Diretor [...]”
mantendo certo padrão periférico até os dias atuais, não reproduz
(SANTA CATARINA, 2013, p. 143)24.
igualdade alguma.
Sendo essa a saída para o problema de enquadramento por O padrão da cidadania nacional tem sido marcado pela
analogia, o parecer do técnico em urbanismo, mesmo tendo sido exclusão no passo de critérios, ora patrimoniais, ora raciais, sempre
discutível em sua destituição de aspectos outros (subjetivismo, por retomando o ideário eugênico, mesmo que as roupagens sejam alteradas
exemplo) e sofrendo com certa incoerência, é alçado a fundamento da de período para período.
decisão do tribunal em apreço. O conceito de ralé abarca esses padrões e denuncia a aplicação
A decisão de deferir a liminar de suspensão da instalação da nada igualitária da lei pelos juristas. A igualdade baseia o discurso
casa de acolhimento é baseada na constatação de que há uma grave moderno, porém como uma promessa a ser descumprida, tendo em vista
lesão de difícil reparação, em face da flagrante ilegitimidade e afronta as estruturas segregacionistas que mantêm o funcionamento do sistema
político-econômico hegemônico no Ocidente e necessariamente
24
Embora não seja essencial na análise aqui pretendida, cumpre informar: o relator
chama atenção para o fato que a Prefeitura Municipal teria decidido mal e às pressas, desigual em sede de modernização periférica.
em face da pressão ministerial (Ministério Público do Estado de Santa Catarina) via
Ação Civil Pública (023.12.040906-5) com liminar (fls. 99/106) no sentido de
instalação em sessenta dias de casa de acolhimento na cidade.
63 64

Concretiza o argumento da aplicação diferencial e seletiva de BRASIL. Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS).
Tipificação nacional dos serviços socioassistenciais. Resolução nº 109
direitos e obrigações pelos juristas na modernização periférica, por
de 11 de novembro de 2009. Publicada no Diário Oficial da União em
manter o funcionamento do sistema vigente, o caso de proibição de 25 de novembro de 2009. Disponível em
http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/secretaria-nacional-de-
instalação de Casa de Acolhimento para pessoas em situação de rua e as
assistencia-social-snas/cadernos/tipificacao-nacional-de-servicos-
interpretações e aplicações assumidas pelos juristas, de modo a adotar socioassistenciais/tipificacao-nacional-de-servicos-socioassistenciais.
Acesso em 8 jul 2014.
argumentos de perito em arquitetura e urbanismo para fundamentar
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
decisão complexa envolvendo direitos fundamentais, como igualdade, (CRFB/1988). Disponível em
assistência social, moradia, para referir o mínimo. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilad
o.htm. Acesso em 8 jul 2014.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho.
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001.
Referências bibliográficas
FARIA, José Eduardo. Retórica política e ideologia democrática: a
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A colonização da justiça pela legitimação do discurso jurídico liberal. Rio de Janeiro : Edições Graal,
justiça penal: potencialidades e limites do Judiciário na era da 1984.
globalização neoliberal. Revista Katálysis, n. 1., 2000.
MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status.
______. A Ilusão de Segurança Jurídica: do controle da violência à Trad. Meton Porto Gadelha. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
violência do controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, MENEGAT, Marildo. Estudos sobre Ruínas. Rio de Janeiro: Revan,
2003. Instituto Carioca de Criminologia, 2012.
______. Cidadania: do direito aos direitos humanos. São Paulo: Editora NEVES, Marcelo. Do pluralismo jurídico à miscelânea social: o
Acadêmica, 1993. problema da falta de identidade da(s) esfera(s) de juridicidade na
______. Sistema Penal Máximo x Cidadania Mínima: Códigos da modernidade periférica e suas implicações na América Latina. Direito
violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, em Debate, n° 05, Ed. UNIJUÍ, 1995.
2003. OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista. O ornitorrinco. São
BARATTA, Alessandro. Derechos humanos: entre violencia estructural Paulo: Boitempo, 2003.
y violencia penal. Por la pacificación de los conflictos violentos. In: RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil.
Criminología y sistema penal. Buenos Aires: IBdef, 2004, p. 334-356. 3ª edição. 4ª reimpressão. São Paulo : Editora Schwarcz, 2013.
BOURDIEU, Pierre. Los juristas, guardianes de la hipocresía colectiva. RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes?: para uma
Jueces para la Democracia, Madrid, 2003. crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro : Editora FGV, 2013.
65 66

SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento n. OCUPAÇÕES URBANAS: RECONHECIMENTO E


2013.004748-6. Capital. Relator: Des. Rodolfo C. R. S. Tridapalli.
REDISTRIBUIÇÃO
Diário de Justiça Eletrônico ano, 6, nº 1562, 2013.
SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma
sociologia política da modernidade periférica. 2ª ed. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2012. Luiz Fernando Vasconcelos de Freitas25
______. Os batalhadores brasileiros. Nova classe média ou nova classe
trabalhadora? Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma Resumo: O trabalho tem como intuito afirmar que as ocupações
exploração hermenêutica da construção do direito. 10 ed. rev., atual. e urbanas podem ser registradas no contexto da luta por redistribuição,
ampl. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2011. ou seja, luta pela apropriação da riqueza expressa na efetivação do
direito à moradia, e, ao mesmo tempo, na dimensão da luta por
TRUBEK, David. Max Weber sobre direito e ascensão do capitalismo.
reconhecimento, manifestada na formação de uma identidade forjada
Revista Direito GV. São Paulo, v. 3(1), 2007.
na alegação de que é justo ocupar terrenos ociosos para garantir a
WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito I: interpretação da moradia adequada.
lei temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1994.
Palavras-chave: Ocupações urbanas; reconhecimento; redistribuição.
______. Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.
1 Introdução

O presente trabalho busca abordar as ocupações urbanas dentro


do contexto da luta por redistribuição, ou seja, luta por riqueza
materializada em direitos sociais. Por outro lado, pela dimensão da
busca por reconhecimento, corporificada pela noção de que a luta
travada nas ocupações de terrenos ociosos, muitas vezes retidos pela
especulação imobiliária, é uma luta justa.

25
Bacharel e mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Bolsista CAPES/REUNI.
67 68

As ocupações urbanas, espontâneas ou organizadas, são uma suficiente para aquisição de uma moradia na cidade formal e aqueles
realidade nas cidades brasileiras – são uma forma de produção de que não possuem essa condição.
moradias que atende a grandes setores sociais que não têm condições de Além disso, será utilizada como abordagem teórica a noção de
adquirir uma unidade habitacional pelas vias do mercado imobiliário paridade de participação elaborada por Nancy Fraser. De acordo com
formal. essa visão, a justiça requer arranjos que guardem relação com a correta
Tais ocupações estão ligadas à territorialização da pobreza na distribuição dos recursos materiais e, lado outro, condições de respeito a
medida em que a dita cidade informal é desguarnecida de equipamentos determinados padrões institucionalizados de valoração cultural.
públicos, de saneamento básico, de estrutura viária, de meios de
mobilidade adequados e de serviços públicos de qualidade. Já na cidade
2 Ocupações Urbanas
formal todos esses serviços são disponibilizados a quem tem condições
de arcar com os custos de uma moradia situada em regiões “bem A condição sócio-econômica é um dos fatores determinantes
localizadas”. para ocupação do solo urbano. Há espaços ditos formais e há a cidade
informal constituída em favelas, vilas, aglomerados e ocupações
Instala-se, diante desse fato, uma contradição: a cidade é
urbanas formadas a partir das condições financeiras da população que
produzida coletivamente, mas é apropriada por pequenos setores
se localiza no espaço a partir da sua capacidade econômica. As camadas
abastados. São grandes massas de pessoas que trabalham na construção
pobres estão circunscritas às periferias da cidade.
das cidades por meio da construção civil, do setor de serviços, dos
serviços estatais, mas que moram em locais conhecidos como a não A territorialização da pobreza é um fenômeno que cinde a
cidade – lugares desprovidos de qualquer infraestrutura urbana. cidade em duas: a cidade formal, chamada de “asfalto” pelos moradores
do “morro”, e bem provida de infraestrutura urbana, lugar em que os
Procura-se, assim, desenvolver uma reflexão sobre as
direitos são exercidos plenamente por seus moradores. De outro lado, o
ocupações urbanas como forma de rompimento com a lógica formal de
“morro” - as favelas –, onde a privação de direitos está limitada pela
apropriação do espaço e afirmar que existe uma relação entre riqueza e
localização espacial.
pobreza a partir da localização espacial daqueles que possuem renda
69 70

O espaço urbano, dentro dessa realidade, é o espaço da A Carta foi produzida como forma de juridicizar demandas
segregação, o espaço da divisão entre aqueles que conseguem exercer o populares por cidades mais justas e igualitárias. As Cidades cumpririam
direito à cidade, que tem acesso à saneamento básico, à mobilidade sua função social ao repartir de forma equilibrada os bens que nela são
urbana e à moradia adequada e as grandes massas que não tem esses produzidos tais como cultura, lazer, riquezas materiais, de forma a
direitos assegurados. garantir o exercício dos direitos sociais a todas as pessoas.

Cumpre assentar que para esse trabalho entende-se o direito à No entanto, a habitação urbana, elemento fundamental para um
cidade a partir da Carta mundial pelo Direito à cidade. Tal carta foi padrão de vida adequado, está vinculada a um modelo perverso de
elaborada e aprovada por dezenas de organizações com a finalidade de produção capitalista em que somente é possível acessar a cidade formal
fortalecer as pautas dos movimentos sociais urbanos. O conceito foi e seus benefícios, tais como serviços públicos e espaços de lazer, por
formulado em três etapas: no Fórum Social das Américas, em Quito, no via do potencial econômico. Além disso, a moradia adequada e bem
ano de 2004, no Fórum Mundial Urbano, em Barcelona e em 2005 no V localizada custa caro.
Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Está estabelecido no artigo I, Dessa forma, grandes parcelas da população não conseguem
2, da Parte I (Disposições Gerais) da Carta:
efetivo acesso à cidade e à moradia, em função da total mercantilização
O Direito a Cidade é definido como o usufruto eqüitativo do solo e em razão da apropriação do espaço urbano pelo capital
das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade,
democracia e justiça social; é um direito que confere imobiliário especulativo que transforma o direito à moradia adequada
legitimidade à ação e organização, baseado em seus usos
e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício em simples mercadoria.
do direito a um padrão de vida adequado. O Direito à
Cidade é interdependente a todos os direitos humanos Essas dificuldades no acesso e no estabelecimento da moradia
internacionalmente reconhecidos, concebidos
integralmente e inclui os direitos civis, políticos, guardam relação com o processo de formação da pobreza na medida em
econômicos, sociais, culturais e ambientais. Inclui
também o direito a liberdade de reunião e organização, o que o lugar na cidade determina o acesso ou a privação de direitos. O
respeito às minorias e à pluralidade ética, racial, sexual e
cultural; o respeito aos imigrantes e a garantia da
lugar de habitação na cidade determina de que forma o indivíduo irá
preservação e herança histórica e cultural (Carta Mundial acessar e usufruir dos serviços públicos, de que forma ele irá se
pelo Direito à Cidade, 2005).
71 72

alimentar, qual serão suas oportunidades de lazer e de como ela irá se metropolitana de Belo Horizonte. (Brasil, Secretaria Nacional de
inserir no mercado de trabalho. Habitação, 2007). Além disso, conforme dados da Pesquisa Nacional
por Amostragem de Domicílios de 2007 (PNAD - IBGE), estima-se que
Diante desse quadro de diferenciação espacial na cidade a
há no Brasil 54 milhões de pessoas vivendo em condições inadequadas
partir de classe sociais, tem-se que os elevados valores do solo
de moradia.
urbanizado e a dificuldade do acesso à moradia por amplas parcelas da
sociedade determinam a segregação socioespacial de grandes Esses dados confluem com uma outra realidade das cidades
contingentes de pessoas que são obrigadas a buscar em áreas distantes brasileiras: a regra na produção de moradias é a ilegalidade e não as
do centro seus locais de moradia. Lugares muitas vezes desprovidos de formas previstas no ordenamento jurídico urbanístico. O enorme déficit
infraestrutura e equipamentos públicos urbanos essenciais à dignidade habitacional justifica a ilegalidade na produção do espaço. Edésio
humana. Fernandes, jurista e urbanista, assim se manifesta sobre a questão:

A renda das classes populares consubstanciada, em muitas Não se pode mais discutir legalidade sem se discutir
ilegalidade, sobretudo no Brasil e nos países onde a
situações, na percepção de um salário mínimo não lhes permite adquirir ilegalidade das formas de produção do espaço urbano não
constitui a exceção, mas a regra. Se consideradas as
um imóvel pelas vias formais estabelecidas pelo ordenamento jurídico formas de acesso à terra urbana e construção de moradia,
entre 40% e 80% da população urbana das grandes
ou até mesmo pagar o aluguel de uma moradia adequada. cidades brasileiras vivem ilegalmente, sendo que o
mesmo fenômeno tem crescido em cidades de porte
Importa ressaltar que segundo estudo da Secretaria Nacional de médio e mesmo em cidades pequenas (FERNANDES,
2006).
Habitação do Ministério das Cidades elaborado pelo Centro de
Resta claro que a produção de moradia por meio das ocupações
Estatística e Informações da Fundação João Pinheiro (CEI/FJP), em
urbanas de terrenos ociosos, sejam elas espontâneas ou organizadas, é a
parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
única saída que resta para várias famílias. Essa forma de aquisição da
(PNUD), o déficit habitacional estimado no Brasil em 2007 era de
moradia, classificada muitas vezes como ilegal, é na realidade a regra
6,273 milhões de domicílios, dos quais 5,180 milhões, ou 82,6%, estão
na produção do espaço. Tal fato ocorre diante da escassez de recursos
localizados em áreas urbanas. Somente no Estado de Minas Gerais, há
de centenas de milhares de famílias que não conseguem comprar uma
um déficit habitacional de 521.085 moradias, sendo 129.404 na região
73 74

unidade habitacional por meio de financiamentos empreendidos junto à Duas concepções de lutas sociais em torno da justiça se
Caixa Econômica Federal, por exemplo. apresentam: uma que visa combater as estruturas de reprodução
material da vida, focadas em um modelo econômico desigual que
Soma-se a isso a ausência, por parte dos entes públicos, de
explora a mão de obra gerando riqueza para poucos e miséria para
política habitacional efetiva que gere um efetivo combate ao déficit
muitos; definida como redistribuição. E outra, com natureza cultural,
habitacional e à mercantilização da terra urbana. As ocupações, então,
baseada em modelos sociais de representação que de alguma forma
são uma forma de assegurar uma necessidade humana fundamental – o
excluiriam o outro desencadeando a luta por reconhecimento.
direito à moradia, direito a ter um lugar adequado para se viver, em que
haja a possibilidade de uma vida digna e saudável. Nancy Fraser trabalha a tensão entre reconhecimento e
redistribuição a partir dos sujeitos que vivenciam as injustiças:
Na próxima etapa desse trabalho busca-se afirmar que essas
ocupações urbanas não estão relacionadas apenas com uma demanda Os dois conceitos divergem na concepção de quais são os
grupos que vivenciam injustiças. No sistema em que a
econômica imediata – garantia da moradia digna como forma de prioridade é a distribuição, são as classes sociais no
sentido amplo, definidas primeiro em termos econômicos,
recomposição salarial – mas também, em um momento posterior, com que sofrem injustiças segundo a relação com o mercado
ou com os meios de produção. O exemplo clássico,
uma luta por reconhecimento da legitimidade dessas ocupações. oriundo da teoria marxista, é a classe trabalhadora
explorada, mas essa concepção inclui também grupos
imigrantes, minorias étnicas etc. No sistema em que o
reconhecimento é prioridade, a injustiça não está
3 Ocupações urbanas como forma de luta por reconhecimento e diretamente ligada às relações de produção, mas a uma
falta de consideração. O exemplo mais comum são os
redistribuição grupos étnicos que os modelos culturais dominantes
proscrevem como diferentes e de menor valor, assim
Historicamente as lutas sociais se centraram na distribuição de como os homossexuais, as “raças”, as mulheres. As
reivindicações ligadas à redistribuição exigem, em geral,
riqueza como elemento fundante - era preciso alterar a forma de a abolição dos dispositivos econômicos que constituem a
base da especificidade dos grupos, e como consequência
distribuição dos bens materiais de forma a atender os postulados de desse processo essas reivindicações tenderiam a promover
a indiferenciação entre esses grupos. Ao contrário, as
justiça social. Ocorre que nos últimos anos a luta por reconhecimento reivindicações ligadas ao reconhecimento, que se apoiam
nas diferenças presumidas dos grupos, tendem a promover
toma corpo, centrada no respeito às diferenças, em um contexto de a diferenciação (quando não o fazem performativamente,
formação de identidades individuais e coletivas. antes de afirmar seu valor). Política de reconhecimento e
75 76

política de redistribuição figuram, portanto, em tensão Nessa toada, reconhecimento e redistribuição são necessários e
(FRASER, 2012).
indissociáveis para a fundamentação de um conceito amplo de justiça.
Diante dessa polarização seria a categoria dos sem-teto um
Essas duas dimensões seriam imprescindíveis para que se alcance
grupo econômico atingido pelo injusto mercado capitalista de terras e
justiça para todos – equalização na distribuição de bens materiais e
pela má distribuição de renda ou um grupo que sofre uma diferenciação
igualdade nos processos de valoração cultural.
social de ordem cultural e, diante da violação, luta por reconhecimento?
Transportando esse debate para a questão dos sem-teto e a
Com a autora citada compreende-se que a implantação de uma
relação com as ocupações urbanas, nota-se que existe uma luta direta
situação de justiça não deve prescindir de uma das duas dimensões e
pela satisfação de direitos sociais que reverbera diretamente na
deve abarcar tanto redistribuição como reconhecimento. Fraser afirma
qualidade de vida de determinadas famílias. Uma entidade familiar que,
que essas duas esferas são dimensões fundamentais da justiça e não
ao ocupar determinada terra ociosa, se livra do aluguel pode
podem ser mutuamente irredutíveis. Para tanto deve haver paridade
redirecionar esse dinheiro para garantir outros direitos: melhorar a
participativa:
alimentação, realizar alguma atividade de lazer ou até mesmo garantir o
Como já foi dito, o centro normativo da minha concepção
é a noção de paridade de participação. De acordo com vestuário dos filhos.
essa norma, a justiça requer arranjos sociais que permitam
a todos os membros (adultos) da sociedade interagir uns Assim, a luta por moradia em uma ocupação urbana é, dentre
com os outros como parceiros. Para que a paridade de
participação seja possível, eu afirmo que, pelo menos, outros fatores, uma luta por recomposição salarial e de aumento do
duas condições devem ser satisfeitas. Primeiro, a
distribuição dos recursos materiais deve dar-se de modo potencial de consumo de bens fundamentais para a qualidade de vida
que assegure a independência e voz dos participantes.
das pessoas. Torna-se, dessa forma, uma luta por redistribuição de
Essa eu denomino a condição objetiva da paridade
participativa. (...) riqueza, por qualidade de vida, por moradia digna e por outros direitos
Ao contrário, a segunda condição requer que os padrões
institucionalizados de valoração cultural expressem igual
sociais tais como a alimentação e o lazer.
respeito a todos os participantes e assegurem igual
oportunidade para alcançar estima social. Essa eu Por outro lado, os ocupantes lutam por uma condição
denomino condição intersubjetiva de paridade
participativa (FRASER, 2007). intersubjetiva de paridade participativa como diz Nancy Fraser. Há uma
situação de desrespeito por parte da sociedade em geral que criminaliza
77 78

as ocupações urbanas e, de outro lado, há uma total falta de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de Minas
Gerais – ALMG -, a pedido do deputado Durval Ângelo,
sensibilidade do executivo municipal, no caso exemplificativo da que realizou Audiência Pública na ALMG sobre as
Ocupações Camilo Torres e Dandara, discutindo a
cidade de Belo Horizonte, em abrir qualquer mesa de negociação e de reivindicação de desapropriação das áreas das Ocupações
Dandara e Camilo Torres, por meio de ofício solicitou ao
reconhecer a legitimidade das ocupações. prefeito Márcio Lacerda que se reunisse com as
Comissões de Direitos Humanos e de Participação
Como exemplo da criminalização de ocupações urbanas Popular da ALMG, representantes da Câmara Municipal
de Belo Horizonte, da CPT, do Instituto Helena Greco e
colaciona-se trecho de um blog feito para combater a ocupação Dandara das Comunidades Dandara e Camilo Torres, para discutir
a situação das mais de 1.200 famílias sem-casa e sem-
– localizada em Belo Horizonte: terra que estão lutando por um sagrado direito: viver com
dignidade. Somente, após 22 dias, no dia 26 de maio de
A população dos Bairros Garças, trevo e Céu Azul, que 2009, Márcio Lacerda respondeu NEGATIVAMENTE ao
fazem limite ao terreno invadido pelo MST, é pedido acima referido. (COMISSAO PASTORAL DA
radicalmente contra à invasão desde o seu começo no dia TERRA, 2009).
09/04/09, os índices de criminalidade na região tem
aumentado muito. São assaltos e arrombamentos de casas Diante dessas posturas reiteradamente afirmadas pelo poder
fora os ocorridos dentro do terreno invadido. (...)
executivo municipal e pela sociedade em geral, os moradores de
Alertamos aqui quanto a degradação ambiental, estão
acabando com as poucas árvores existentes dentro do ocupações urbanas empreendem uma luta por reconhecimento, por
terreno, as fogueiras à noite são constantes. Também,
estão acabando com as nascentes que existem dentro do afirmação de igualdade no que toca ao respeito dos membros da
terreno. Na parte sul do mesmo já existe uma totalmente
prejudicada pelo esgoto jogado na mesma (DANDARA, sociedade – não há diferença entre um morador da cidade formal e um
2009).
morador de uma ocupação, de uma favela, de uma vila.
Observe-se, ainda, denúncia feita em 2009 no blog da
Nas palavras de Nancy Fraser haveria uma luta por justiça no
comunidade Dandara sobre a falta de abertura do poder executivo
âmbito das valorações culturais, para que estabeleçam iguais
municipal no que toca à temática das ocupações:
oportunidades e, dessa forma, os membros de uma ocupação
A CPT vem também repudiar a forma insensível e dura
com a qual o prefeito Márcio Lacerda vem se negando a alcançarem estima social. Em outros termos, para que alcancem
ouvir as razões e as reivindicações justas dos pobres que,
de forma organizada, lutam por um direito humano social paridade participativa em sua vertente intersubjetiva.
elementar: o direito de morar com dignidade. A crueldade
do prefeito está sendo revelada reincidentemente, via
Rádio Itatiaia e de outras formas, conforme denunciamos
abaixo.No dia 04 de maio de 2009, a Comissão de
79 80

4 Considerações finais Em arremate, frisa-se que com fundamento em Nancy Fraser


Buscou-se elucidar a relação entre localização espacial na argumentou-se que as ocupações urbanas travam uma luta em dois
cidade e a oferta de bens e serviços. Argumentou-se que a localização âmbitos bem delimitados: uma dimensão intersubjetiva fundada no
na cidade guarda relação com a renda de determinados grupos sociais, reconhecimento e outra objetiva calcada na redistribuição. Deve-se
sendo que a população pobre não consegue acessar o mercado pensar a justiça a partir dessas duas dimensões, pois desconsiderar
imobiliário pelas vias formais. alguma delas é trabalhar com um conceito de justiça incompleto.

As áreas urbanas providas de serviços públicos essenciais e


infra-estrutura são destinadas aos setores médios e classes altas
Referências bibliográficas
enquanto aos setores populares resta a insegurança da posse em regiões
BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Habitação.
periféricas das cidades. Tal situação demonstra o quadro de segregação Déficit Habitacional no Brasil 2007/ Ministério das Cidades, Secretaria
urbana imposto a grandes contingentes populacionais. Nacional de Habitação. – Brasília, 2009. Disponível em:
http://www.fjp.gov.br/index.php/servicos/81-servicos-cei/70-deficit-
As ocupações urbanas, diante desse quadro, apresentam-se habitacional-nobrasil. Acesso em 10/06/2013.
como uma alternativa de moradia digna encontrada por um grande Carta Mundial pelo Direito à Cidade. Disponível em:
<http://www.forumreformaurbana.org.br/index.php/documentos-do-
contingente de famílias. Tais ocupações se constituem como forma de fnru/41-cartas-e-manifestos/133-carta-mundial-pelo-direito-a-
luta por redistribuição de bens essenciais para a vida digna e, ao mesmo cidade.html> Acesso em: 25/04/2013.
tempo, como luta por reconhecimento. COMISSAO PASTORAL DA TERRA, Coordenação. Denuncia: O
prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda, numa postura
As ocupações tornam-se uma importante maneira de liberação antidemocrática, nega diálogo com o povo pobre que luta de forma
de recursos antes despendidos com o aluguel, por exemplo, e organizada, 2009. Disponível em: <
http://ocupacaodandara.blogspot.com.br/2009/07/denuncia-o-prefeito-
materializando-se como forma de redistribuição material. De outro lado,
de-belo-horizonte.html>. Acesso em 21/06/2013.
travam uma luta por reconhecimento no que toca a sua justa
DANDARA, Invasão. Invasão na Pampulha: as fotos falam por si,
reivindicação e forma de luta social pela efetivação de direitos.
2009. Disponível em:
81 82

<http://invasaodandara.blogspot.com.br/2009/08/invasao-na-pampulha- PARTICIPAÇÃO POPULAR E DIREITO À CIDADE: A


as-fotos-falam-por.html>. Acesso em: 21/06/2013. AUDIÊNCIA PÚBLICA PARA A CONSTRUÇÃO
FERNANDES, Edésio. Direito e Gestão na Construção da Cidade DEMOCRÁTICA DA CIDADE
Democrática no Brasil In: As Cidades da cidade. Brandão, Carlos
Antônio Leite (org.). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
FRASER, Nancy. Igualdade, identidades e justiça social. Disponível Ana Luisa Ruffino26
em: <http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1199 >Acesso em
Ludymila Aparecida Rizzo Cardoso27
21/06/2013.
FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética. São Paulo: Lua Nova,
2007. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ln/n70/a06n70.pdf>
Resumo: Este artigo descreve e investiga a utilização do instituto da
Acesso em 21/06/2013.
audiência pública. Busca observar este mecanismo como forma de
efetivação da democracia participativa no processo de licenciamento
ambiental, a fim de construir o direito à cidade através da gestão
democrática. O tema é tratado sob o paradigma da insuficiência do
modelo hegemônico/representativo, tendo em vista as complexidades
das relações sociais da contemporaneidade e buscando auxílio no
referencial contra-hegemônico/participativo da democracia.
Palavras-chave: Democracia participativa; Audiência pública;
Licenciamento ambiental.

1 Introdução

A presente pesquisa tem por objetivo analisar os aspectos da


audiência pública como mecanismo efetivo de participação popular. A

26
Graduanda do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina – UEL,
participante do projeto Integrado de Extensão nº1680 – LUTAS: Formação e
Assessoria em Direitos Humanos. Email: analuisa.ruffino@gmail.com.
27
Graduanda do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina – UEL,
participante do projeto Integrado de Extensão nº1680 – LUTAS: Formação e
Assessoria em Direitos Humanos. Email: ludymila.rizzo@gmail.com.
83 84

fim de trilhar este caminho, é necessário voltar o olhar aos anseios da


população por uma democracia realmente democrática, isto é, que seja
2 Insuficiência da democracia representativa e o ensejo pela
realmente um espelho dos anseios da população. Para isso, nada melhor
democracia participativa
do que uma democracia participativa e deliberativa em que o
O Estado Democrático de Direito surgiu das lutas contra o
pensamento do povo influencie de fato nas decisões de interesse
absolutismo, influenciado pelos direitos naturais. O seu ideal começou a
comum. A insatisfação da contemporaneidade com o modelo
ser formado no século XVIII, e trouxe consigo noções de valores
tradicional de democracia representativa trouxe uma nova concepção de
fundamentais à concretização do mesmo. Vimos, portanto, a busca dos
democracia, mais comumente denominada de participativa, que fez com
sistemas políticos para efetivar tais valores.
que fossem inseridos no ordenamento jurídico brasileiro mecanismos
capazes de viabilizar a participação popular e trazendo, dessa forma, a Três movimentos político-sociais influenciaram os princípios
sociedade civil para o campo de tomada de decisões. que conduzem o Estado Democrático de Direito: a Revolução Inglesa, a
Revolução Americana e a Revolução Francesa. Seriam garantidos os
Assim, há uma evidente contraposição entre a concepção
direitos naturais, com a participação do povo no governo, tornando
hegemônica/elitista e contra-hegemônica/popular de democracia que
possível a realização dos princípios da supremacia da vontade popular,
deve ser compreendida para o estudo do mecanismo de participação
da preservação da liberdade e da igualdade de direitos (DALLARI,
popular escolhido, a audiência pública.
2012, p. 148 e 150).
Resta salientar que no âmbito do meio-ambiente, no que diz
Contudo, houve a solidificação de um modelo hegemônico de
respeito ao seu tratamento legal, foi idealizado o paradigma
democracia (democracia liberal, representativa) que, segundo Santos
participação popular como base de sua criação e construção. A defesa
(2002, p. 32),
do meio ambiente diz respeito ao Poder Público e toda a coletividade; a
todos pertence o direito de tê-lo preservado. Portanto, a participação apesar de globalmente triunfante, não garante mais que
uma democracia de baixa intensidade baseada na
popular, principalmente nos processos de licenciamento ambiental, privatização do bem público por elites mais ou menos
restritas, na distância crescente entre representantes e
torna-se de extrema importância para a consolidação da democracia representados e em uma inclusão política abstrata de feita
de exclusão social.
participativa, como será explorado.
85 86

Consiste em uma democracia burocratizada, centralizadora e Há um constante processo de formação de normatividade em


elitizada, imposta pela globalização neoliberal, que nem sempre garante decorrência dos conflitos, interesses e necessidades dos sujeitos em
que as identidades minoritárias tenham expressão. Assim sendo, este prol do alijamento do processo de participação social e pela repressão
modelo não consegue corresponder às expectativas de uma sociedade da satisfação das mínimas necessidades (WOLKMER, 2003, p.7). Os
com intensa complexidade política, social, econômica e jurídica, como novos sujeitos emergentes, tendo sua dignidade mitigada e sua
é a contemporânea. Neste sentido, Wolkmer (2001, p. 253) afirma que: condição de vida tratada sem preocupações, nos dizeres de Wolkmer,

a implementação e alargamento da sociedade democrática (2003 p. 07), buscam


descentralizadora só se completa com a efetiva
participação e controle por parte dos movimentos e na singularidade da crise que atravessa o imaginário
grupos comunitários. Na medida em que a democracia jurídico-político e que degenera as relações da vida
burguesa formal e o convencional de representação cotidiana, a resposta para transcender a exclusão e as
(partidos políticos) envelhecem e não conseguem privações provêm da força contingente de sujeitos
absorver e canalizar as demandas sociais, criam-se as coletivos populares que, pela consciência de seus reais
condições de participação para as novas identidades interesses, são capazes de criar e instituir novos direitos.
coletivas insurgentes.
Deste modo, na década de 50 surgem lutas populares e o
Desse modo, ao lado do modelo hegemônico/representativo, se
impulso inicial de organização para a mudança social. Até então, as
coloca o modelo contra-hegemônico de democracia participativa, que se
lutas ocorriam em momentos pontuais, porém em 1960, como
mostra descentralizadora, emancipatória e popular, criando um diálogo
caracterizador dos novos movimentos sociais, surge o movimento
entre Estado e sociedade civil que é indispensável à complexidade das
estudantil, que procura se organizar em coordenações de forma
relações existentes na contemporaneidade e à construção de espaços de
horizontal e se pauta no alcance não só de reivindicações materiais, mas
discussão e decisão democrática, sendo a complementaridade das duas
de reivindicações que transcendiam a materialidade e almejavam crítica
formas de democracia um dos caminhos para a reinvenção da
à cultura consumista. O movimento trazia a tona uma organização em
emancipação social (SANTOS, 2002, p. 32).
rede, aspecto inerente aos novos movimentos sociais, concretizada na
troca de experiências com outros estudantes em estados e países, como

3 Contexto dos novos movimentos sociais no Brasil afirma Dmitruk (2004, p. 115):
87 88

vislumbra-se a atuação conjunta de jovens pertencentes a (2003, p. 7), há nas sociedades latino-americanas uma particularidade
todas as classes sociais, de universidades públicas e
privadas, com diversas demandas e que juntam esforços com relação à demanda pelos direitos:
para a conquista conjunta delas.
ao contrário das condições sociais, materiais e culturais
Contudo, com o Golpe Militar de 1964, tais lutas foram reinantes nos países centrais do Primeiro Mundo, nas
abafadas devido a forte repressão dirigida a toda e qualquer forma de sociedades latino-americanas, as demandas e as lutas
históricas têm como objetivo a implementação de direitos
manifestação. Os mecanismos de democracia representativa como a em função das necessidades de sobrevivência e
subsistência da vida. Por isso, em tais sociedades,
liberdade de imprensa, o direito a livre associação e o pluripartidarismo marcadas por um cenário de dominação política,
espoliação econômica e desigualdades sociais, nada mais
foram mitigados e, até mesmo, vetados pelo regime ditatorial. Neste natural que configurar a pluralidade permanente de
conflitos, contradições e demandas por direitos.
período, a Igreja se coloca como resistência à opressão através de
Os novos movimentos sociais são, na visão do autor
instituições como as Comunidades Eclesiais de Base e as Pastorais da
supracitado, pautados pela busca de emancipação social e da efetivação
Terra.
de direitos fundamentais. Não mais pura e simplesmente pela conquista
Na década de 70, envolvidos com o clima de
do poder estabelecido, mas pela busca da construção da cidadania, isto
redemocratização, os novos movimentos sociais de caráter
é, de direitos dialeticamente constituídos em decorrência das
reivindicatório e participativo tomaram força, constituindo, segundo
necessidades inviabilizadas pela espoliação dos oprimidos.
SILVA (2001, p.79):

importantes fontes de direitos. Para isso, basta elencarmos


algumas reivindicações inseridas no contexto dos NMS’s, 4 O Movimento pela Reforma Urbana e a incorporação de
tais como os direitos da mulheres, dos homossexuais, os
direitos ecológicos, dos negros, dos “favelados”, dos mecanismos de participação à Constituição Federal
índios, entre tantos outros. É importante notar que tais
movimentos influenciaram de maneira direta a elaboração O processo de urbanização no Brasil se revelou drástico e
da Constituição Federal de 1988.
Ademais, as necessidades e carências dos indivíduos estão em incapaz de lidar com a própria grandeza. A crise mundial de 1929

constante e permanente processo de redefinição, já que são modificadas afetou a produção do café paulista, levando a população às cidades em

pelo almejar individual e, consequentemente, coletivo, impulsionado busca de empregos. Anos após, em 1945, com o fim da Segunda Guerra

por circunstâncias históricas. Neste sentido, de acordo com Wolkmer Mundial e o incentivo à industrialização, mais pessoas buscaram a
89 90

sobrevivência nas cidades. Isto ocorreu com elevada intensidade até o subscritas por mais de 30 mil eleitores e assinadas por, pelo menos, três
final da década de 70, quando o crescimento tomou medidas mais entidades civis.
acentuadas. Uma das pautas do movimento era a introdução do capítulo
Não havia, portanto, infraestrutura para abrigar todos aqueles sobre “Reforma Urbana” na Constituição da República Federativa de
que migraram do campo para a cidade, e também não era a prioridade 1988. Assim, apoiado por setores da Igreja Católica, o Movimento pela
da burguesia que a infraestrutura atingisse a todas as classes sociais de Reforma Urbana, por iniciativa popular, angariou mais de 130 mil
forma igualitária. Sobressaíam os interesses do capital. Em decorrência assinaturas a fim de inserir mecanismos de proteção ao Direito
disso, houve a organização de atores sociais, como ressalta Bassul Urbanístico na Constituição. E assim o fez, não exatamente como
(2002): previa, mas conquistando algo muito importante.

Cada vez mais agudas, as carências urbanas ensejaram a A emenda era regida por três princípios: o direito à cidade e à
formação de grupos de pressão organizados, conhecidos
por "movimentos sociais urbanos", que passaram a exigir cidadania, a gestão democrática da cidade, e a função social da cidade e
providências do poder público e marcaram o cenário
metropolitano nos anos 1970 e 80. da propriedade (BASSUL, 2002). Assim sendo, a Constituição passou a
Desde então, ocorre um intenso embate entre aqueles que tratar de "Direito Urbanístico" (art. 24, I) e trouxe um capítulo
tendem a mudança social e a parcela conservadora da população, específico à "Política Urbana" (arts. 182 e 183), em que estão implícitos
enraizada na própria formação de caráter latifundiário e elitista do tais princípios e novas diretrizes à concepção jurídico-positiva de
Brasil. cidade.

Uma das muitas conquistas do Movimento pela Reforma É importante destacar que a própria inserção do princípio da
Urbana em meio ao conservadorismo e as forças contrapostas, gestão democrática da cidade se deu através de uma forma de
emergidos no plano político, foi a sua participação na Assembleia participação popular na criação de novos direitos. É coerente pensar que
Constituinte (1986 – 1988) convocada pela Emenda Constitucional nº as decisões correspondentes à cidade devem, também, ser tratadas com
26, de 1985, que previa no art. 24 de seu Regimento Interno a prioritária participação popular.
possibilidade do envio de propostas para emendas populares, desde que
91 92

Portanto, segundo Wolkmer (2001, apud PEDRO JACOB, A mudança do paradigma e a demanda por uma democracia
1990, p. 254), a efetividade da participação depende de “condições” e com um viés mais participativo fizeram com que, como foi exposto
28
“instrumentos operacionalizadores” . Através de mecanismos anteriormente, novos mecanismos surgissem, como por exemplo a
positivados de democracia participativa, como a iniciativa legislativa da audiência pública, que consiste em um canal de troca de informações
comunidade, o veto popular, os conselhos de políticas públicas, os entre a sociedade e o Poder Público nos âmbitos Administrativo,
plebiscitos, o referendo popular, as audiências públicas, etc., é possível Judiciário e Legislativo, visando a democratização das decisões do
o encontro de um novo modo de política, o qual não exclui totalmente o Poder Público. Segundo Cabral (2008, p. 03),
paradigma da democracia representativa burguesa/elitista, mas traz a é uma reunião aberta em que a autoridade responsável
colhe da comunidade envolvida suas impressões e
possibilidade de setores organizados serem capazes de expressar suas
demandas a respeito de um tema que será objeto de uma
necessidades. decisão administrativa. Cabe frisar que não só o consenso
é objetivado na audiência pública, tendo também o
dissenso preciosa valia.
Assim, não há uma norma ou lei que trate de um procedimento
5 Audiência pública e os seus aspectos gerais
específico para a audiência pública, tendo em vista os diferentes lugares
28
Duas são as “condições” fundamentais: a) a presença de organizações de interesse
em que está inserida no ordenamento e os aspectos dos quais pode
popular na esfera pública local; b) a ocupação estratégica de cargos ou funções tratar. Contudo, podemos encontrar pontos comuns quando se trata de
também no âmbito distrital ou municipal por parte dos indivíduos, lideranças ou
partidos comprometidos com as causas comunitárias. Na medida em que amplia seu procedimento. No item a seguir trataremos da audiência
politicamente a pluralidade de esferas sociais, o espaço político unificado e
homogêneo das formas de representação tradicional (partidos políticos e sindicatos) especificamente no que tange o licenciamento ambiental.
cede lugar a uma proliferação de práticas coletivas canalizadas agora pelos
movimentos sociais, associações voluntárias em geral, corpos intermediários, comitês
de fábricas, conselhos comunitários e municipais, juntas distritais, comunidades
religiosas de base, órgãos colegiados e instituições culturais etc. É nessa nova forma
de fazer política que se institui a cidadania coletiva. Uma cidadania que nasce com a
6 Audiência pública no âmbito do Licenciamento Ambiental para a
participação democrática dos diversos setores da sociedade na tomada de decisões e construção do Direito à cidade
na solução de problemas pela descentralização de competências, recursos e riquezas e
pela criação de mecanismos de controle sobre o Estado, assegurados pela real
efetividade de um pluralismo político e jurídico, firmado em novas bases de Como já foi ressaltado, a audiência pública é um instrumento
legitimação.Outro aspecto ainda a considerar é com relação aos “mecanismos
de participação direta da população que objetiva a democratização das
operacionalizadores” que podem melhor operacionalizar a prática da democracia
participativa de base local.
93 94

políticas públicas. Em relação ao meio ambiente, toma-se a audiência A partir desse processo, se o projeto for aprovado, será
pública como mecanismo de diálogo entre o poder público e a concedida uma licença, que é a permissão para a localização, instalação,
população afetada por um empreendimento que possa causar poluição ampliação e operação de tais empreendimentos utilizadores dos
ou degradação ao meio ambiente por utilizar-se de recursos ambientais, recursos ambientais previamente mencionados, estabelecendo as
objeto, portanto, de licenciamento ambiental. condições, restrições e medidas de controle ambiental que deverão ser
obedecidas pelo empreendedor (CONAMA, 1997, art. 1º, II). As
De acordo com a Resolução nº 237/1997 do Conselho
licenças poderão ser Prévia, de Instalação ou de Operação e devem se
Nacional Do Meio Ambiente – CONAMA, o licenciamento ambiental é
adequar a fase do procedimento, de acordo com a natureza do
um:
empreendimento ou atividade (CONAMA, 1997, art. 8º29).
procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental
competente licencia a localização, instalação, ampliação e
O processo de licenciamento ambiental é complexo e depende
a operação de empreendimentos e atividades utilizadoras
de recursos ambientais , consideradas efetiva ou da definição e análise, por meio do órgão ambiental competente, de
potencialmente poluidoras ou daquelas que, sob qualquer
forma, possam causar degradação ambiental, documentos, projetos e estudos ambientais do empreendimento a ser
considerando as disposições legais e regulamentares e as
normas técnicas aplicáveis ao caso (art. 1º, I – Resolução licenciado; do requerimento de licença ambiental pelo empreendedor;
CONAMA nº 237/1997).
de vistorias técnicas, quando se demonstrarem necessárias; e ainda,
Portanto, o licenciamento ambiental é um processo em que se
29
verificarão os possíveis danos que um empreendimento pode causar ao Art. 8º: O Poder Público, no exercício de sua competência de controle, expedirá as
seguintes licenças:I - Licença Prévia (LP) - concedida na fase preliminar do
meio ambiente e, caso eles existam, como podem ser reduzidos, a fim planejamento do empreendimento ou atividade aprovando sua localização e
concepção, atestando a viabilidade ambiental e estabelecendo os requisitos básicos e
de minimizar os prejuízos à sociedade. Ou, ainda: condicionantes a serem atendidos nas próximas fases de sua implementação;II -
Licença de Instalação (LI) - autoriza a instalação do empreendimento ou atividade de
trata-se de um mecanismo cuja função é enquadrar as acordo com as especificações constantes dos planos, programas e projetos aprovados,
atividades causadoras de impacto sobre o meio ambiente, incluindo as medidas de controle ambiental e demais condicionantes, da qual
o que pode ser feito por meio de adequação ou de constituem motivo determinante;III - Licença de Operação (LO) - autoriza a operação
correção de técnicas produtivas e do controle da matéria- da atividade ou empreendimento, após a verificação do efetivo cumprimento do que
prima e das substâncias utilizadas. (FARIAS, apud consta das licenças anteriores, com as medidas de controle ambiental e condicionantes
ANTUNES, p. 147) determinados para a operação.
Parágrafo único - As licenças ambientais poderão ser expedidas isolada ou
sucessivamente, de acordo com a natureza, características e fase do empreendimento
ou atividade.
95 96

quando couber, realização de audiência pública, entre outras medidas linguagem acessível, para que todos possam compreender as vantagens
cabíveis, dependendo das necessidades e do tipo de empreendimento ou e desvantagens do projeto, bem como as consequências de sua
atividade a ser licenciado (CONAMA, 1997, art. 10º). efetivação (CONAMA, 1997, art. 9º).

O órgão licenciador poderá, ainda, exigir de empreendimentos Assim como o requerimento de licença, que deve ser publicado
e atividades que causem degradação considerável ao meio ambiente o na imprensa e tornado público, o EIA/RIMA também deve ser colocado
Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e seu respectivo relatório de à disposição da comunidade para que qualquer cidadão, principalmente
impacto sobre o meio ambiente (RIMA), como dispõe o artigo 3º da os interessados e possivelmente afetados pelo empreendimento ou
Resolução CONAMA nº 237/1997 e a Constituição Federal em seu atividade, possa acompanhar o licenciamento, fiscalizar possíveis
artigo 225, §1º, IV: irregularidades, assim como questionar as autoridades para que estas

Art 3º: A licença ambiental para empreendimentos e protejam direitos seus e de toda a coletividade (ANTUNES, 2010, p.
atividades consideradas efetiva ou potencialmente
149).
causadoras de significativa degradação do meio
dependerá de prévio estudo de impacto ambiental e
respectivo relatório de impacto sobre o meio ambiente Embora, muitas vezes, todas estas medidas de publicidade não
(EIA/RIMA), ao qual dar-se-á publicidade, garantida a
realização de audiências públicas, quando couber, de
sejam efetivadas em razão da burocratização ou devido à falta de
acordo com a regulamentação. tradição democrática, elas garantem o princípio do contraditório.
Art. 225, §1, IV - exigir, na forma da lei, para instalação
de obra ou atividade potencialmente causadora de Entretanto, como bem expõe Antunes (2010, p. 150), são as audiências
significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio
públicas que representam a prevalência de tal princípio:
de impacto ambiental, a que se dará publicidade.
Cabe frisar que o EIA é uma ferramenta do licenciamento as audiências públicas, ainda que de caráter meramente
consultivo, indicam a prevalência do contraditório do
ambiental e antecedente a sua outorga. É um estudo minucioso e licenciamento ambiental uma vez que a comunidade
interessada a ser atingida pelo empreendimento poderá
complexo, realizado por profissionais legalmente habilitados, que visa levar as razões de seu descontentamento ao órgão
ambiental.
verificar os riscos do empreendimento que pretende-se instalar
A realização de audiência pública no tocante ao licenciamento
(MACHADO, 2001). A partir do EIA será emitido o RIMA, relatório
ambiental é de suma importância para a consolidação de uma
deste estudo, que deve ser elaborado de forma clara e objetiva, com
democracia dita efetivamente democrática, bem como para a
97 98

concretização da supremacia do interesse público em ter o meio prevenção de danos ambientais, pois é esperado que, a partir desse
ambiente preservado, visto que este pertence a toda a coletividade e o diálogo, surja um consenso sobre a efetivação ou não do
acesso a um meio ambiente equilibrado é essencial à qualidade de vida empreendimento ou atividade que está sendo licenciado.
da população. Como garante a Constituição Federal brasileira: Nesse sentido, Braga (2004) elucida:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente
A participação pública está prevista no processo de
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo
licenciamento ambiental com os objetivos de garantir: a
e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
divulgação de informações sobre os projetos a serem
Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
licenciados; a apreciação de possíveis riscos à qualidade
preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
ambiental das áreas de influência dos empreendimentos; a
Deste modo, questões atinentes ao meio ambiente, proposição de medidas mitigadoras e de controle
ambiental, para se reduzir os danos ambientais; e a
especialmente sobre sua poluição ou degradação, merecem ser captação das expectativas e inquietações das populações
afetadas, permitindo ao órgão gestor recolher as
consultadas pela coletividade por meio de disponibilização do estudo de manifestações e os interesses dos diferentes grupos
sociais.
impacto ambiental e das audiências públicas, que tem a finalidade
Outro aspecto relevante é a construção de políticas públicas
preconizada no Art. 1º, da Resolução CONAMA nº 009/87:
que esse momento pode fomentar, como dispõe Assunção (2008):
Art. 1º. A audiência pública referida na Resolução
CONAMA n. 001/86, tem por finalidade expor aos Nota-se que se a audiência pública possibilitar um debate
interessados o conteúdo do produto em análise e do seu consistente entre Estado e Sociedade e se os resultados, as
referido RIMA, dirimindo dúvidas e recolhendo dos manifestações, as opiniões, os questionamentos forem
presentes as críticas e sugestões a respeito. acolhidos pelo Estado, o momento pode ser fértil para a
construção de políticas públicas que sejam reflexo das
A finalidade da audiência pública no licenciamento ambiental características próprias de cada comunidade, com suas
é, portanto, de se fazer conhecer pela população o conteúdo do RIMA – aspirações específicas de desenvolvimento.

que justamente para esse fim deve contar com linguagem clara e Contudo, a audiência pública para licenciamento ambiental não

objetiva, sem termos técnicos, como já foi exposto – para que esta possa possui caráter de decisão, sua natureza é meramente consultiva e não

comentá-lo e manifestar-se a seu respeito. Além de possibilitar o vincula totalmente a decisão do poder público aos seus resultados.

diálogo com o Poder Público, que é essencial para a efetivação da Estas, porém, devem ser motivadas e ao menos embasadas no que foi

democracia, a audiência pública é um verdadeiro instrumento de discutido e sugerido na audiência, explicitando as razões de seu
acatamento ou rejeição.
99 100

Quanto à obrigatoriedade da realização da audiência pública, Destarte, é a partir de todo este processo de licenciamento
esta está atrelada à determinação de Órgão Público quando este julgar ambiental e participação popular que devem ser efetivados os princípios
necessário ou à solicitação por entidade civil pelo Ministério Público ou ambientais e constitucionais de proteção ao meio ambiente, prezando
por cinquenta ou mais cidadãos. Assim, se ela for determinada e não pela prevalência do princípio do interesse público de tê-lo conservado
realizada, a licença concedida não terá validade. Além disso, a em detrimento do interesse privado, que é, geralmente, o de obtenção de
audiência deve ser realizada sempre visando a maior participação lucro perante a utilização dos recursos naturais.
popular, devendo ocorrer em local acessível aos interessados e,
Como a maioria da população brasileira atualmente vive em
dependendo da complexidade do tema ou da localização dos áreas urbanas, é na cidade que ocorre a maior parte dos embates entre o
solicitantes, poderá ocorrer mais de uma audiência sobre o mesmo interesse público de se ver o meio ambiente - tanto o natural, como o
projeto (CONAMA, 1997, art. 2º). material/urbano - preservado e o interesse privado de se utilizar dos
Ademais, é necessário que os cidadãos tenham prévio acesso recursos naturais e dos espaços urbanos para a consolidação do capital.
ao EIA/RIMA para que possam se informar e ter mais subsídios para as Esta participação popular no meio ambiente urbano também
discussões. Mesmo assim, no início da audiência pública, o órgão
está prevista na legislação brasileira. O Estatuto da Cidade dispõe:
licenciador deve fazer uma exposição objetiva do projeto e de seu
Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno
respectivo RIMA para que se iniciem as discussões (CONAMA, 1997, desenvolvimento das funções sociais da cidade e da
propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes
art. 3º). gerais (...) XIII – audiência do Poder Público municipal e
da população interessada nos processos de implantação de
Ao final da audiência será lavrada uma ata sucinta (CONAMA, empreendimentos ou atividades com efeitos
potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural
1997, art. 4º), a qual também se dará publicidade. É justamente com ou construído, o conforto ou a segurança da população
(...)
base nesta ata (bem como no RIMA) que o licenciador dará o parecer
Art. 43.Para garantir a gestão democrática da cidade,
final, aprovando ou não o projeto (CONAMA, 1997, art. 5º). A decisão deverão ser utilizados, entre outros, os seguintes
instrumentos (...) II – debates, audiências e consultas
final, como já salientado, não está absolutamente vinculada aos públicas (...)
resultados da audiência, mas os frutos dela advindos não podem ser
ignorados pelo órgão licenciador.
101 102

A instalação de diversos tipos de indústrias, a realização de cidade também é preservar o meio ambiente urbano, visando sempre a
obras civis como a construção de rodovias, ferrovias e retificação de qualidade de vida dos cidadãos.
curso de água, e também de serviços de utilidade, como a transmissão
de energia elétrica e o tratamento e destinação de resíduos sólidos
7 Considerações finais
urbanos (CONAMA, 1997, Anexo I), são apenas alguns exemplos de
empreendimentos e atividades que estão sujeitos a licenciamento Dogmaticamente, vimos que a audiência pública é um bom
ambiental e que podem afetar o bem-estar da população urbana, caminho a ser trilhado a fim de alcançar o princípio da democracia
merecendo, portanto, chegar ao seu conhecimento para que seja participativa popular, dita contra-hegemônica. Entretanto, tendo em
possível caminhar em direção à construção do direito à cidade. vista o ínfimo número de pessoas que comparece às audiências e a
prevalência do interesse das elites, sua materialização prática é ainda
A Carta Mundial pelo Direito à Cidade dispõe que:
incipiente.
1.1 As cidades devem ser um espaço de realização de
todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, Essa incipiência ocorre, possivelmente, pelos fundamentos
assegurando a dignidade e o bem estar coletivo de todas
as pessoas, em condições de igualdade, equidade e justiça, antipopulares em que se apoiou nossa formação político-social, uma vez
assim como o pleno respeito a produção social do habitat.
Todas as pessoas têm direito a encontrar nas cidades as que, em decorrência da supressão da voz do povo efetuada pela elite,
condições necessárias para a sua realização política,
econômica, cultural, social e ecológica, assumindo o fomos uma colônia sufocada em prol dos interesses da metrópole, o que
dever a solidariedade. dificulta, até os dias atuais, a construção da cidadania. Também cria-se
1.2 Todas as pessoas têm direito a participar através de
formas diretas e representativa na elaboração, definição e um abismo entre os preceitos normativos constitucionais e sua
fiscalização da implementação das políticas públicas e do
orçamento municipal nas cidades para fortalecer a
aplicabilidade, infelizmente, porque continua não sendo do interesse das
transparência, eficácia e autonomia das administrações elites e dos detentores do poder que haja uma população esclarecida e
públicas locais e das organizações populares.
politicamente emancipada.
Deste modo, torna-se claro que para a construção e
consolidação do direito à cidade é imprescindível a participação popular Os mecanismos do ordenamento aqui abordados garantem a
em questões que envolvam o meio ambiente. Construir o direito à participação popular, o que pode ser tratado, sob uma ótica otimista,
como uma vitória da democracia participativa, formulada como forma
103 104

de resistência e ampliação do espaço público e provida da legitimidade Econômico, Salvador, v. 13, p.1-17, fev./mar./abr. 2008. Disponível em:
<http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-13-FEVEREIRO-
da soberania popular. Contudo, observada diante do contexto do
2008-ANTONIO CABRAL.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2014.
capitalismo, encontra diversas limitações estruturais e dificuldades de CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE - CONAMA.
efetivação, mesmo sendo institucionalizada. Resolução nº 237 de 19 de dezembro de 1997. Regulamenta os aspectos
de licenciamento ambiental estabelecidos na Política Nacional do Meio
Ambiente. Disponível em:
http://www.mma.gov.br/port/conama/res/res97/res23797.html Acesso
Referências bibliográficas em: 16 de Agosto de 2015.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado.
ANTUNES, Paulo de Bessa - Direito Ambiental. 12ª ed. Rio de Janeiro:
30ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2011.
Editora Lumen Juris, 2010.
DMITRUK, Érika Juliana. A analítica do Poder e o Direito: as
ASSUNÇÃO, Linara Oeiras. A participação popular nas audiências
possibilidades do pluralismo jurídico como resposta dinâmica do
públicas para licenciamento ambiental. Revista Científica do Curso de
Direito às relações de Poder. 2004. Dissertação (Mestrado em Direito).
Direito do Ceap, Macapá, v. 1, n. 1, p.1-9, jan. 2011. Semestral.
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
Disponível em:
<http://www.ceap.br/ojs/index.php/RDC/article/view/6/2>. Acesso em: MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 12
10 jul. 2014. ed.. São Paulo: Malheiros Editores, 2004
BASSUL, José Roberto. Reforma urbana e Estatuto da SANTOS, Boaventura de Sousa; AVRITZER, Leonardo. Para ampliar
Cidade. Eure, Santiago, v. 28, n. 84, p.113-144, set. 2002. Disponível o cânone democrático. IN: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.).
em: <http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612002008400008>. Acesso Democratizar a Democracia: Os caminhos da democracia participativa.
em: 10 set. 2014. Porto: Edições Afrontamento, 2002.
BRAGA, Raul Nunes. Direito e Gestão Ambiental. Rio de Janeiro: SILVA, Geyson Gonçalves da. Pluralismo jurídico, ética da libertação
Esplanada, 2004. e a construção de uma nova cidadania. 2001. Dissertação (Mestrado
em Direito). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
BRASIL. (2001) Lei 10.257 de 10 de julho de 2001: Regulamenta os
artigos 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais VÁRIOS. Carta Mundial Pelo Direito à Cidade. 2006. Disponível em:
da política urbana e dá outras providências. Brasília: Congresso http://www.polis.org.br/uploads/709/709.pdf . Acesso em 10 Jul. 2014.
Nacional. WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa uma nova cultura. 3º Ed. São Paulo: Editora Alfa Omega, 2001.
do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: Novo paradigma de
CABRAL, Antonio. Os efeitos processuais da audiência legitimação. Disponível em: www.mundojuridico.adv.br . Acesso em
pública. Revista Eletrônica de Direito Administrativo 10 Jul. 2014.
105 106

A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA E A CONCRETIZAÇÃO


DA FUNÇÃO SOCIAL DA CIDADE

Adriana Marques Rossetto30


Andressa de Souza da Silva31
Zenildo Bodnar32

Resumo: O presente trabalho objetiva analisar a regularização


fundiária e seus efeitos na concretização da função social da cidade,
através dos paradigmas estabelecidos pelo Estatuto da Cidade, para o
fim de demonstrar o interesse pluridimensional da regularização de
Eixo títulos na tutela de interesses da coletividade, através da cidade e do
indivíduo, sob a ótica de um Estado Democrático e igualitário de
Direito. Para tanto, partiu-se do seguinte problema de pesquisa: os
GOVERNOS LOCAIS, GESTÃO URBANA E aglomerados subnormais causam a ausência dos direitos inerentes à
ORDENAMENTOS DAS CIDADES função social da cidade? Quanto à metodologia, foi aplicado o método
indutivo.
Palavras-chave: Regularização fundiária; função social da cidade;
direito à cidade sustentável; direito à moradia; Estatuto da Cidade.
30
Doutora pela UFSC. Coordenadora e docente no Programa de Pós Graduação em
Urbanismo, História e Arquitetura das Cidade na Universidade Federal de Santa
Catarina. E-mail: amarquesrossetto@gmail.com. Telefone: (48) 3721-7759. Currículo
Plataforma Lattes disponível em: http://lattes.cnpq.br/3802510077342121.
31
Graduanda do curso de Direito na UNIVALI. Membra do grupo de pesquisa e
extensão Paidéia, cadastrado no CNPq. Bolsista de pesquisa do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) do CNPq. E-mail:
andressa.souzaa.silva@gmail.com. Telefone: (47) 9621-7593. Currículo Plataforma
Lattes disponível em: http://lattes.cnpq.br/9492216403875859.
32
Doutor pela UFSC. Juiz Federal e Professor na UNIVALI. E-mail:
zenildo.bodnar1@gmail.com. Telefone: (47) 91389554. Currículo Plataforma Lattes
disponível em: http://lattes.cnpq.br/9173159162465306.
107 108

De acordo com o censo demográfico do IBGE realizado em


2010, foram identificados, em caráter nacional, 15.868 setores
1 Introdução
censitários em aglomerados subnormais. A partir desses dados, busca-se
A moradia, como direito social, está concentrada no
na regularização fundiária o escape de socorro para os sujeitos dessa
fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, que
crítica realidade, que objetiva não apenas a simples titulação, mas a
constitui vínculo intrínseco ao indivíduo como integrante da sociedade,
aplicação dos direitos correlacionados que se estabelecem através da
onde busca proporcionar condições dignas capazes de efetivar o gozo
função social da propriedade em relação de interdependência com a
de seus direitos.
função social da cidade. Nesse contexto, problematiza-se a relação entre
Nessa perspectiva, destaca-se o direito à cidade sustentável, aglomerados subnormais e a deficiência na implementação dos direitos
que, a partir da nova ordem constitucional de 1988, passou a ser um inerentes à função social da cidade.
bem digno de especial proteção jurídica. O constituinte reconheceu a
Tem-se, a partir desse enfoque, como objetivo geral analisar a
importância da outorga de um tratamento jurídico específico e
regularização fundiária e seus efeitos na concretização da função social
adequado para a tutela do habitat em que vive a maioria da população
da cidade, através dos paradigmas estabelecidos pelo Estatuto da
brasileira, como condição para a qualidade de vida digna.
Cidade, para o fim de demonstrar o interesse pluridimensional da
No entanto, a migração do campo para o meio urbano refletiu regularização de títulos na tutela de interesses da coletividade, através
em um crescimento populacional vertiginoso das cidades, gerando da cidade e do indivíduo.
impactos graves em sua estrutura pela ausência de suporte e
Tais premissas estão estabelecidas pelo Estatuto da Cidade,
receptividade para essa grande demanda populacional. Essa falta de
que outorgou a competência da estrutura e organização dos Municípios
adequação urbana é o resultado do cenário atual, composto pela
para planos diretores próprios, regendo-se cada qual com suas
desigualdade social, ausência de infraestrutura básica, materializando-se
particularidades, para o fim de promover os objetivos constitucionais e
em aglomerados subnormais.33

maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período


33
Segundo o IBGE (2010, p. 2), aglomerado subnormal “é um conjunto constituído recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em
de, no mínimo, 51 unidades habitacionais (barracos, casas, etc.) carentes, em sua geral, de forma desordenada e/ou densa”.
109 110

materializar um Estado de Direito regido pela dignidade da pessoa Marcadas por aglomerados, as cidades refletem um regime de
humana. discrepância social, privando direitos básicos, com reflexos
contundentes na dignidade da pessoa humana. Tais fatos são alarmantes
O presente trabalho se orientará pelo método indutivo, com a
e demonstram o retrocesso de desenvolvimento urbano em que a
aplicação das técnicas do referente, e fichamento.
sociedade vive, em especial, na temática moradia. Segundo Mukai
(2007, p. 69), a ausência de planejamento deu origem a este retorno aos
2 O Estatuto da Cidade e a instrumentalidade do planejamento problemas de habitação:
urbanístico
[...] a ausência de Política Urbana, o que deu margem a
um crescimento desordenado das grandes cidades no
O movimento migratório social do meio rural para o urbano foi Brasil e, por conseguinte, exacerbou problemas antigos
das cidades brasileiras, problemas que remontam os
uma das principais causas para ineficiência do cumprimento da função tempos coloniais.
social da cidade. A ausência de receptibilidade tanto em âmbito Com este cenário crítico consolidado, busca-se no Estatuto da
estrutural quanto econômico destinou à população migratória medidas Cidade um escape de socorro, trazendo planejamento e políticas de
de invasão e construções informais de habitação, solidificando os organização, com a finalidade de reversão desse caos que se
aglomerados subnormais. estabeleceu, atribuindo-se principalmente aos Municípios a
De acordo com dados do IBGE (2010, p. 3), os aglomerados responsabilidade do desenvolvimento e estrutura do ambiente urbano.
subnormais são definidos através dos critérios: Assim sendo, o Estatuto da Cidade foi editado para
a) Ocupação ilegal da terra, ou seja, construção em regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição da República
terrenos de propriedade alheia (pública ou particular) no
momento atual ou em período recente (obtenção do título Federativa do Brasil de 1988. O seu objetivo é estabelecer normas de
de propriedade do terreno há dez anos ou menos); e b)
Possuir pelo menos uma das seguintes características: • ordem pública e interesse social para regular o uso da propriedade
urbanização fora dos padrões vigentes - refletido por vias urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos
de circulação estreitas e de alinhamento irregular, lotes de
tamanhos e formas desiguais e construções não cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.
regularizadas por órgãos públicos; ou • precariedade de
serviços públicos essenciais, tais quais energia elétrica,
coleta de lixo e redes de água e esgoto.
111 112

Segundo os entendimentos de Canuto (2008, p. 109), o propriedade, da dignidade da pessoa humana, da função
social das cidades dentre outros como elementos
Estatuto da Cidade tem o escopo de obter: estruturadores da política urbana no país, ficando
responsável a União pela fixação das diretrizes gerais, que
[...] a plenitude das políticas públicas direcionadas ao servirão de parâmetros para as municipalidades. A estas,
cidadão e, nesse objetivo, integrar transporte, habitação, no entanto, compete o maior desafio de todos: a aplicação
planejamento urbano, meio ambiente, saúde, educação, prática e concreção dos objetivos estabelecidos e
saneamento básico, patrimônios históricos e buscados para as cidades.
arquitetônico, todos trabalhados com gestão democrática.
A carga valorativa que o plano diretor confere aos Municípios
As referidas políticas serão realizadas através de planos
demonstra a importância do diagnóstico prévio dos anseios sociais, não
diretores que representam, sob a égide constitucional, a autonomia
apenas de ordem imediatista, mas almejando o futuro crescimento do
urbana transferida para cada Município para a criação e
meio urbano; para tanto, a elaboração desses planejamentos “devem
desenvolvimento de medidas próprias materializadas neste plano. Salles
contar necessariamente com a participação da população e de
(et al, 2014, p. 84) indica que:
associações representativas dos vários segmentos econômicos e sociais,
[...] a política específica de desenvolvimento urbano toca não apenas durante o processo de elaboração e votação, mas, sobretudo,
ao Governo Municipal, que deve promover o seu
implemento primando pelo exato atendimento às na implementação e gestão das decisões ali definidas” (SANTIN, 2013,
necessidades e exigências do bem-estar coletivo. A
“função social” a ser convertida em regra positivada pelo p. 200).
plano diretor veio incumbida de estabelecer os padrões de
crescimento, ordenando a reorganização das cidades em É nessa ponte de ligação entre o crescimento da cidade e o bem
atenção as peculiaridade e carências locais.
estar dos cidadãos que se evidencia a finalidade do Estatuto da Cidade e
Neste sentido, põe-se em discussão a municipalização da
suas diretrizes, na qual se verifica a relação de interdependência de
responsabilidade de execução da ordem urbanística, pois, com o
direitos supramencionada, buscando efetivar uma política democrática
advento do Estatuto da Cidade, o plano diretor é o principal instrumento
de planejamento através de uma relação de comunicação entre o que é
concretizador da função social da cidade, ficando a cargo dos
necessário para a efetivação do direito da coletividade e as diretrizes do
municípios o seu desenvolvimento, conforme destaca Nunes (2013):
planejamento urbano municipal.
Trazendo novel empoderamento dos municípios
brasileiros, que serão doravante os executadores e
implementadores das políticas urbanas, a Carta Magna de
1988 observou os princípios da função social da
113 114

3 A regularização fundiária e a relação pluridimensional de seus várias diretrizes, sendo um dos principais instrumentos a regularização
reflexos fundiária, que visa garantir a titulação de imóveis pacificamente
ocupados que não gozam de direitos reais de moradia. Portanto, o
Uma das principais ferramentas para a garantia da proteção ao
referido instrumento tem o objetivo de fazer a transição da posse para o
direito à moradia, que, por força da Emenda Constitucional nº 26, de 14
real direito de propriedade, efetivando o direito à moradia, bem como a
de fevereiro de 2000, foi introduzido no rol de direitos sociais
inserção de moradores de risco a um novo destino.
(elencados no artigo 6º da Constituição Federal de 1988), é a
regularização fundiária, prevista no Estatuto da Cidade, a qual tem A Lei n. 11. 977/2009 trouxe a contextualização da
como finalidade a garantia da proteção do titular do imóvel, bem como regularização fundiária:
os efeitos e direitos oriundos dessa titulação. Art. 46. A regularização fundiária consiste no conjunto
de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais
Por meio do Estatuto da Cidade, a competência do que visam à regularização de assentamentos irregulares e
à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito
planejamento urbano das cidades foi conferida ao poder municipal, a social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções
sociais da propriedade urbana e o direito ao meio
qual foi delegada pela Constituição Federal de 1988, com previsão no ambiente ecologicamente equilibrado.
artigo 182. Eis o teor do artigo 182: Deve-se pensar nesse instrumento a partir de um aspecto
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, pluridimensional, pois tem efeitos não apenas de caráter jurídico,
executada pelo Poder Público municipal, conforme
diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o estando a sua abrangência inserida nas políticas sociais, econômicas e
pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
garantir o bem- estar de seus habitantes. sustentáveis do ambiente regularizado. Sob esse contexto, destacam-se

As disposições contidas no mencionado artigo “garantem ao os entendimentos de Oliveira e Nuñes (2014, p.85):

munícipe não apenas o direito a um meio ambiente equilibrado, mas [...] a regularização fundiária é um processo mais amplo
que aquele previsto nos instrumentos jurídicos. Trata-se
também meios para a sua manutenção, habitação, condições adequadas de um fenômeno pluridimensional, capaz de focar tanto
no trabalho jurídico, quanto no urbanístico, no físico e no
de trabalho, recreação, circulação humana e o pleno desenvolvimento social, de forma a adequar o processo às demandas da
de todas as suas funções” (MATIAS, 2006, p. 32). comunidade em que se dá, isto é deve articular as
questões jurídicas com as sociais.
Para a realização dessas garantias, o Estatuto da Cidade trouxe Assim, a sua implementação não diz respeito apenas à
115 116

regularização tabular, ou seja, ao direito de propriedade, mas contempla cidades brasileiras mais justas, humanas e democráticas,
com condições dignas de vida, para exercício dos direitos
um conjunto de medidas a serem implementadas em diversas civis e políticos, econômicos, sociais, culturais e
ambientais e, nesse sentido garantir o direito à terra
perspectivas, buscando alcançar a função da propriedade ao indivíduo urbana, à moradia, ao saneamento, à infraestrutura
urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho
para o fim de concretizar a função social da cidade para o coletivo. e ao lazer.
Melo (2011, p. 15) afirma que: Assim, essa relação difusa depende de um esforço dualista, ou
Outorgar tão somente um título ou registro a esses seja, da sociedade e poder público, que juntos devem estabelecer uma
moradores, sem garantir um nível adequado de moradia,
infraestrutura básica como água, esgoto, energia elétrica e relação de cooperação de interesses; portanto se deve pensar nos efeitos
até espaços livres para lazer e atividades sociais, é ferir o
princípio básico constante do primeiro artigo do texto da regularização fundiária como caminho de ligação para a
constitucional como fundamento da República que é a concretização do direito constitucional à cidade.
dignidade de pessoa humana.
É por meio dessas premissas que a regularização transcende a Nesse sentido, “a regularização fundiária é uma legítima
titulação e vai ao encontro da função social da cidade, que estabelece aspiração dos moradores que foram compelidos a ocupar ou comprar
um caráter relacional entre a sociedade e o poder público, terrenos nessa situação. Isso quando se trata, obviamente, de moradores
demonstrando a natureza difusa da regularização fundiária. sem opção [...]” (NALINI, 2011, p. 164).

Nesse caráter difuso está inserido os interesses individuais do Assim, percebem-se que os efeitos da regularização
possuidor da terra, intrínsecos à dignidade da pessoa humana, quais ultrapassam a sua nomenclatura, retirando do poder público, em
sejam o uso e o gozo da moradia onde já se estabeleceu a posse, bem especial das cidades, a inércia da aplicação de políticas públicas da
como o caminho da função social da cidade que atinge o bem-estar da região regularizada, incumbindo medidas de reintegração urbana efetiva
coletividade e, em conjunto, integra o conteúdo basilar de direitos. para o bem-estar do meio coletivo.

Essa ligação de interesses remonta ao ideal de cidade


sustentável. Conforme Canuto (2008, p. 111):
4 Os efeitos da regularização fundiária na concretização da função
O direito às cidades sustentáveis se enquadra na categoria social da cidade
dos direitos difusos e sua realização cumpre o objetivo
pretendido com o desenvolvimento urbano: tomar as
117 118

O modelo de urbanização atual vem demonstrando a Este modelo de dignidade não pode ser medido ou estagnado,
necessidade de maior atenção do poder público nas políticas pelo contrário, o poder público deve a cada dia buscar políticas que
habitacionais, em especial a regularização fundiária, que se tornou venham idealizar esse modelo de sociedade como fonte a priori de sua
instrumento indispensável para o cumprimento da função social da responsabilidade de tutela de interesses sociais. Kant (2007, p. 64)
cidade, através do modelo constitucional de sustentabilidade. Neste contribui com a temática, afirmando que a dignidade é “o que se faz
sentido, Oliveira (2009, p. 26) entende que: condição para alguma coisa que seja fim em si mesma, isso não tem

[...] para o alcance da sustentabilidade da cidade, é simplesmente valor relativo ou preço, mais um valor interno, e isso quer
essencial o respeito e, principalmente, a efetividade do
dizer dignidade”.
princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, a
ser realizado através do direito à terra urbana, à moradia,
ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao Esse valor imensurável da dignidade deve ser primeiramente
transporte, aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer.
observado pelo viés da moradia, dada a segurança que ela confere ao
Essa dignidade tratada na sustentabilidade das cidades consiste
possuidor da terra, sendo o primeiro vínculo do ser humano com o meio
nos direitos basilares que o poder público deve proporcionar ao
social.
cidadão. Sarlet (2012, p. 73) leciona que a dignidade da pessoa humana
É a partir desse foco que a regularização fundiária tem-se
representa:
apresentado como instrumento regulador de uma série de direitos
[...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em
cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito entrelaçados, tendo como fundamento básico a promoção da segurança
e consideração por parte do Estado e da comunidade,
implicando, neste sentido, um complexo de direitos e física, social e psíquica para o cidadão. O foco de sua implementação
deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto
contempla a melhoria da qualidade de vida, que ultrapassa as políticas
contra todo e qualquer ato de cunho degradante e
desumano, como venham a lhe garantir as condições públicas e abrange toda a estrutura da função social da cidade, desde a
existenciais mínimas para uma vida saudável, além de
propiciar e promover sua participação ativa e co- concepção de projetos até a efetiva atuação do poder público e do
responsável nos destinos da própria existência e da vida
em comunhão com os demais seres humanos, mediante o indivíduo.
devido respeito aos demais seres que integram a rede da
vida. Desse modo, o escopo das políticas de regularização fundiária
é promover a sustentabilidade espacial. Segundo Mendes (2009):
119 120

A sustentabilidade espacial abrange a organização do por essa relação de interdependência bifásica que se dá a concretização
espaço e obedece a critérios superpostos de ocupação
territorial e entrelaçados em uma rede natural duradoura das garantias constitucionais urbanas.
para tentar recuperar, com esta complexa e diversificada
trama, a qualidade de vida, a biodiversidade e a escala Em análise da função social da propriedade, destaca-se o
humana em cada fragmento, em cada bairro do sistema.
caráter individual, buscando nesse a segurança física, territorial,
Essa sustentabilidade, realizada através da regularização de
exteriorizada a partir de uma integração social de conhecimento público
títulos, é pregada através de um conceito amplo, livrando-se das
e jurídico da moradia, pertencente de forma exclusiva àquele possuidor.
correntes do sentido estrito e transcendendo para a concretização no
meio social, coligada à função social da cidade, tanto para o meio A função social da propriedade exige alguns pontos
individual no aspecto da propriedade, quanto para a cidade no contexto modificativos urbanos basilares, pois a simples titulação não cumpre
geral habitacional. Assim, com a sua função primordial; é necessário que se dispensem mudanças

[...] não basta pensar a questão da regularização apenas do subjacentes a esse modelo fático aparente. Segundo Alvarenga (2011, p.
ponto de vista dos direitos individuais dos moradores de 7):
assentamentos informais, isto é, da segurança individual
da posse: é preciso pensar como esses programas
[...] a função social da propriedade urbana se dá por meio
combinando estratégias de planejamento urbano e
da correta utilização do espaço urbano, nos termos do
processos de gestão democrática-podem também garantir
Plano Diretor municipal. Ela deve se preocupar com a
interação socioespacial (FENANDES apud MUKAI,
racionalidade da ocupação do solo, organizando e
2007, p. 29).
reorganizando as cidades, indicando os locais dotados de
Nesse ínterim, interpreta-se que o centro efetivador das infra-estrutura e de equipamentos urbanos que podem ser
ocupados, assim como os locais que não comportam
relações sociais do indivíduo apresenta-se de forma estrita nas cidades, adensamento, como nas áreas de risco e de proteção aos
mananciais. É a busca pela melhor organização do espaço
a partir de um contexto social, as quais fundam-se na responsabilidade urbano, contribuindo sensivelmente para a qualidade de
vida da população e para a socialização da propriedade.
do poder público de dispor aos cidadãos de meios básicos de vida
É a partir dos resultados que se estabelecerá a função social da
social.
cidade, concretizada a partir desses atos subsequentes realizados
Portanto, para a concretização da função social da cidade é
internamente na moradia do cidadão para o meio externo, através da
necessário analisar primeiramente a função social da propriedade, pois é
obrigatoriedade de melhoria na qualidade dos serviços públicos
121 122

essenciais à vida em sociedade. Assim, conforme Matias (2006, p. 32), cumprir e realizar as dimensões de direitos correlacionados com a
pela função social da cidade: função social da cidade.

[...] garantem ao munícipe não apenas o direito a um meio Assim, tem-se demonstrado a importância da regularização de
ambiente equilibrado, mas também meios para sua
manutenção, habitação, condições adequadas de trabalho, títulos para a efetivação do direito à cidade, interpretado através da
recreação, circulação humana e o pleno desenvolvimento
de todas as suas funções. Tal responsabilidade é relegada dignidade da pessoa humana, estabelecida como fundamento do Estado
ao Município, que deverá viabilizar o atendimento às
necessidades básicas de seus habitantes. Democrático de Direito, para buscar a proteção do indivíduo e a

Conclui-se, então, que a cidade só cumpre sua função social concretização de seus direitos na sociedade.

quando assegura um enfoque garantista entre a função social da Nesse sentido, Nalini (2011, p. 38) destaca que “o teto é
propriedade e da cidade, voltada à efetivação da dignidade da pessoa imprescindível à garantia da maior parte de todos os demais direitos
humana, partindo desse foco relacional de reciprocidade entre o pertinentes ao ser pensante”. Dessa forma, a concessão de títulos,
interesse da coletividade e o poder municipal. através da carga valorativa que abarca, é o caminho para a reversão da
insustentabilidade nas cidades, efetivando o direito à moradia e os
direitos fundamentais conexos, concretizando assim a função social da
5 Considerações finais
cidade.
A realidade caótica da urbanização brasileira demonstra os
Portanto, a concretização da função social da cidade consiste
reflexos da falta de planejamento estrutural, que tem violado direitos
na relação da materialização eficaz da função social da propriedade,
basilares dos seres humanos em sociedade, restringindo importante
canalizada sob a ótica do direito do possuidor da terra, que após obter a
âmbito nuclear de proteção, a sua moradia.
titulação do imóvel adquire a proteção formal. É essa proteção que
É neste ínterim que surge a importância de políticas públicas atende a necessidade social e, principalmente, psíquica do possuidor, o
de habitação, em especial a regularização fundiária, tendo como qual, após a titulação, obtém o sentimento de segurança e integração da
responsabilidade efetivar o direito de propriedade, não apenas como um propriedade, a partir de uma leitura constitucional de vida digna.
simples ato de concessão de titulação de moradia, mas com objetivo de
123 124

Referências bibliográficas MATIAS, Jefferson Ortiz. Áreas verdes como elemento da cidade
sustentável. 2006. 120 f. Dissertação (Mestrado em Direito Ambiental)
ALVARENGA, Luiz Carlos. A concessão de uso especial para fins de - Universidade do Estado do Amazonas, Manaus.
moradia como instrumento de regularização fundiária e acesso à
MELLO, Henrique Ferraz de. Regularização fundiária inominada
moradia. Revista de direito imobiliário. Brasília, v, 65, Dez, 2011.
urbana. Revista de Direito Imobiliário. Brasília, v 74, Jan, 2013.
Disponível em: < http://www.cjf.jus.br / caju/FUNDIARIA-2.pdf >
Disponível em: < http://www.cjf.jus.br/ caju/FUNDIARIA-7.pdf>.
Acesso em 08 set. 2014.
Acesso em 08 set. 2014.
BRASIL. Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009. Dispõe sobre o
MELO, Marcelo Augusto de. O direito à moradia e o papel do registro
Programa Minha Casa, Minha Vida. PMCMV e a Regularização
de imóveis na regularização fundiária. Revista de direito imobiliário.
Fundiária de Assentamento localizados e, áreas urbanas e dá outras
Brasília, v. 2, Dez, 2011. Disponível em: <
providências. In: Diário Oficia l da União, Brasília. v. 540, n. 128, p. 2.
http://www.cjf.jus.br/caju/FUNDIARIA-1.pdf > Acesso em 08 set.
8 de jul. 2009.
2014.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa
MENDES, Jefferson Marcel Gross. Dimensões da sustentabilidade.
do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998.
Revista das Faculdades Santa Cruz, v. 7, n. 2, julho/dezembro, 2009.
CANUTO, Elza Maria Alves. O direito à moradia urbana como um dos
MUKAI, S. T. Regularização fundiária sustentável urbana e seus
pressupostos para a efetivação da dignidade da pessoa humana. Tese
instrumentos.2007. 162 f. Dissertação. (Mestrado em Direito do Estado)
(Doutorado em geografia) - Universidade Federal de Uberlândia.
– Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
Uberlândia, 2008.
NALINI, José Renato et al. Regularização fundiária. 2ª ed. Rio de
COSTA, Maria Amélia. O direito à moradia urbana e a necessidade da
Janeiro: Forense, 2014.
análise das normas do estatuto da cidade à luz do princípio da
dignidade da pessoa humana. 2007. 138 f. Dissertação (Mestrado em NALINI, José Renato. Direitos que a cidade esqueceu. São Paulo:
Direito) - Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro. Revista dos Tribunais, 2011.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA NUNES, M. S. Os Efeitos da Regularização Fundiária de Área Urbana
(IBGE). Censo Demográfico 2010: Aglomerados subnormais – Consolidada em Área de Preservação Permanente: Uma Discussão
Primeiros resultados. Disponível em: Sobre a extensão do Benefício Previsto no Artigo 65, § 2° da Lei n° 12.
<http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/0000 651/2012. Revista Brasileira de Direito Ambiental. Brasília, n. 35, p.
0006960012162011001721999177.pdf>. Acesso em 08 set. 2014. 37-111, Jul./Set, 2013. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/
caju/FUNDIARIA-8.pdf>. Acesso em 09 set. 2014.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007. OLIVEIRA, F. L. DE; NUÑES, I. S. Os direitos à moradia e à
propriedade: um estudo de caso da regularização fundiária urbana em
favelas cariocas. Direitos Fundamentais & Justiça/ Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul Programa de Pós
125 126

Graduação, Mestrado e Doutorado. Porto Alegre, n. 26, p. 78-110, AS TRANSFORMAÇÕES DE UMA CIDADE: A
Jan/Mar, 2014.
“REPUBLIQUETA MARXISTA” QUE SE TORNOU
PRESTES, V. B.et al. Regularização fundiária: como implementar. /
Ministério Público do Rio Grande do Sul. Centro de Apoio Operacional “ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL MODELO” - LAGES/SC.
da Ordem Urbanística e Questões Fundiárias. 1. ed. Rio Grande do Sul,
2011.
SANTIN, J.R. Estatuto da Cidade e instrumentos de política urbana Fabiano Garcia34
para valorização do patrimônio histórico, cultural, paisagístico e
ambiental. Revista de direito ambiental. Brasília. v.70, p 195-213,
Abr./Jun.2013. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/ Resumo: a partir dos entrelaçamentos complexos entre
caju/planejamento.urbano_12.pdf>. Acesso em 9 set. 2014. industrialização, urbanização e cultura política, tentamos discutir neste
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos artigo as transformações de uma cidade do ponto de vista histórico. A
fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9 ed. Porto Alegre: partir de um ciclo econômico local conhecido como “ciclo da madeira”
Livraria do Advogado, 2012. em Lages/SC, buscamos elucidar algumas mudanças decorridas no
espaço urbano para compreender o contexto em que ações de
participação popular foram formuladas e executadas na década de
1970, e que levaram a cidade a ser conhecida como “administração
municipal modelo” no período de abertura política.
Palavras-chave: Urbanização; Industrialização; Movimento
Democrático Brasileiro; Ditadura Militar.

1 Introdução

Em 10 de junho de 1978, um membro da oligarquia


catarinense, Jorge Bornhausen, em depoimento ao Jornal de Santa
Catarina, assinalou a necessidade de evitar o que intitulou de

34
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História/ PPGH-UFSC, bolsista
CAPES e membro da linha Sociedade, Política e Cultura no mundo contemporâneo.
Contato: f.garcia7@hotmail.com
127 128

“republiquetas marxistas”, referindo-se a Lages e a gestão do MDB que taxativa oposição daqueles que sempre estiveram no centro do poder,
ali se constituía. Segundo ele, aquilo nada trazia “para o progresso seja nos governos locais ou a frente do governo do Estado.
catarinense”. Já em 1983, o secretário do interior de São Paulo, Chopin
Tavares de Lima, afirmou que: “a experiência democrática em Lages é
2 Os indícios de transformação de uma cidade
um modelo para todo Brasil” (F. de São Paulo, 1983, p.23). Como
podemos notar, existiu uma grande polarização e tensão em relação aos Sentados no calçadão/
os bois esperam/
diferentes significados políticos de uma determinada gestão municipal, os fazendeiros engordarem.
Raul Arruda Filho
ora implicando em uma oposição taxativa (sobretudo da velha
No último século e meio, o processo de urbanização e a
oligarquia, da direita e políticos filiados à ARENA), ora de adesão
reconfiguração das cidades foram intensificados de forma muito díspar
manifesta em defesa da experiência, e neste último caso, principalmente
em muitas partes do mundo, acompanhando, de algum modo, o
por parte de grupos da sociedade civil que estavam preocupados com a
desenvolvimento das diferentes fases da industrialização. É possível
redemocratização do país e se opunham ao regime militar naquele
afirmar ainda que as cidades modernas (pequenas, médias e grandes),
contexto, além de vereadores e prefeitos eleitos pelo MDB.
após a Revolução Industrial, passaram a assumir uma posição
Para compreendermos um pouco melhor a natureza política
fundamental para os agrupamentos humanos, pois se tornaram as bases
desta “republiqueta”, no entanto, parece sugestivo compreender alguns
materiais onde ocorrem decisões econômicas e políticas e também onde
entrelaçamentos ocorridos num contexto local anterior à ditadura militar,
as pessoas ao redor do planeta experienciam suas vidas. Além disso,
pois esses fatores dizem respeito às transformações de uma cidade, de
tornam-se um espaço de suma importância para o desenvolvimento do
sua vida política, da forma de sua urbanização e os vários nexos
capital, pois a Revolução Industrial “dilatou as cidades e tornou-as
possíveis entre essas esferas com um ciclo econômico local ocorrido no
centros de consumo e produção do capitalismo” (RANGEL, 2009,
século XX. De um ponto de vista histórico, muito dos projetos
p.111).
oferecidos pela gestão “A força do povo”, entre 1977 e 1982, que
Embora a urbanização anteceda a industrialização, a cidade, a
trataremos a seguir, parecem fazer mais sentido do que a simples e
partir de longos processos, passou a ser efetivamente o seu principal
129 130

espaço de produção e reprodução, pois o seu caráter de concentração, Mas afinal, diante dessas transformações, como pode o
densidade e administração teve grandes impactos na produção e no historiador se apropriar de uma “cidade” como objeto de reflexão
consumo das mercadorias (SPÓSITO, 2000). O que não implica dizer histórica? Thompson (1981, p.243) já frisava que a história é a
que o meio rural encontrou o seu fim, ao contrário. Conforme Raymond “disciplina do contexto e do processo”. Compreender, portanto, a
Williams (2001, p.478): “a cidade é apenas uma maneira convencional relação complexa da industrialização e da urbanização a partir dessa
de se ver essa espécie de transformação; e o campo, como agora quase definição, ao que tudo indica, nos ajuda a esclarecer elementos
todos sabem, é sem dúvida outra”. importantes de transformações que se deram em determinado tempo e
espaço, além de implicar em reflexões interessantes sobre aspectos dos
A expansão da extração da madeira nas matas de araucária, por
processos políticos que, em alguma medida, ainda são nossos
exemplo, e o aumento do número de serrarias no planalto serrano de
contemporâneos e fazem parte, de algum modo, do nosso “legado”. É o
Santa Catarina, caracterizando o processo de industrialização da
que tentaremos tratar a seguir.
madeira durante o século XX, trouxe mudanças significativas para
inúmeras localidades, sobretudo, se pensarmos na questão do êxodo
rural e na reconfiguração do espaço urbano. Foi um contingente muito
2.1 O início de um processo de modernização
grande de homens e mulheres que se deslocaram do campo para a
Em 1858, o viajante francês Robert Avé-Lallemant, ao passar
cidade. E esse é o caso da cidade de Lages que em três décadas (1940-
pela vila de Lages, assim a descreveu: “Nunca vi tanta indolência, ou
1970) teve um aumento relativamente significativo de sua população
melhor, tanta preguiça como entre os camponeses de Lajes. Não é
urbana: de 8.558 para 83.577 habitantes, sendo a primeira cidade
notável, por exemplo, que na cidade central de um município onde
catarinense a atingir 100.000 habitantes até a década de 1970 (PEIXER,
pastam centenas de milhares de reses não se encontre uma libra de
2002, p.17)35.
manteiga para comprar?” (1980, p.69) 36 . De um modo mais poético,

em História, vinculado à linha de pesquisa Sociedade, política e cultura no mundo


35
Tentei me deter brevemente sobre essas mudanças em outro trabalho - Rupturas, contemporâneo, sob orientação do Prof. Dr. Adriano Luiz Duarte.
36
permanências e transição: a “força do povo” em Lages-SC (1977-1982). Trabalho de O nome da cidade catarinense foi grafado com “J” até a década de 1960.
Conclusão de Curso em História. UFSC, Florianópolis, 2013. Continuo pesquisando Posteriormente a grafia é adotada com “G”, Lages. A mudança foi motivada pela
essas questões em Projeto de Mestrado apresentado ao Programa de Pós-Graduação existência de outro munícipio, Lajes, no Rio Grande do Norte.
131 132

mas ainda pouco lisonjeiro, em 1920 o escritor paulista Paulo Setúbal, De toda forma, Lages do início do século passado, é preciso
tendo Lages como pano de fundo, também escreveu a respeito, quando dizer, passou por um modesto processo de “modernização” em virtude,
viajou para lá em 1918 a fim de se curar de uma enfermidade. Há, pelo principalmente, das necessidades e orientações políticas da “elite” local
menos, duas passagens em dois de seus poemas que nos interessam aqui. e da administração dos coronéis. Em 1901 foi construído o prédio do
O primeiro trecho encontra-se em A vila: “Lembro-me bem dessa vilota paço municipal e em 1913 foi finalizado o prédio do Grupo Escolar
rude/ onde eu me fui, sem gosto e sem saúde/ buscar um pouso para os Colégio Vidal Ramos, um dos maiores do Estado. Em 1922 foi
meus cansaços/ Que terra triste e sertaneja! A escola, a hospedaria, a finalizada a construção da catedral diocesana, monumento oficial do
antiga Igreja/ E a capelinha do Senhor dos Passos”. E o segundo trecho poder da religião católica local - instituição que tinha muita dificuldade
em A forasteira: “E ali, na vila, nessa pobre aldeia/ tão incolor, tão em doutrinar e se relacionar com a população cabocla (Cf. SERPA,
rústica, tão feia/ Povoada de caboclos indigentes/ a forasteira com seu 1989). Antes mesmo desse período, a pequena cidade já contava com
ar touriste/ com seu chapéu de plumas, com seu chiste/ chocava o povo alguns jornais com breve circulação pela cidade: O Lageano, de 1883,
e deslumbrava as gentes”. Bom, a vida na pequena cidade não parecia O Escudo de 1886, A Gazeta de Lages de 1892 e O Município, de 1896.
muito animada para esses nossos visitantes. Parte do perímetro urbano passou a ter iluminação pública a
É sugestivo, guardado todas as particularidades, que base de gás em 1910. Novas ruas foram abertas e houve instalação da
Thompson (2013, p.289), ao analisar um momento de transição e de rede elétrica em 1913. Em 1915, além da instalação da rede telefônica,
disciplina do trabalho na Inglaterra, em Tempo, Disciplina de Trabalho chega à cidade uma filial da Casa Carl Hoepecke, uma das maiores
e Capitalismo Industrial, tenha encontrado um depoimento de um deão empresas comerciais do sul do país naquele período. Em 1918 foi aberta
em 1745, Josiah Tucker, para quem: “as pessoas das classes inferiores ainda uma agência do Banco Nacional do Comércio, além do
eram totalmente degeneradas. Os estrangeiros (pregava Tucker) surgimento de novos prédios públicos. No início do século XX,
consideravam as pessoas comuns de nossas cidades populosas os portanto, a administração municipal da cidade investiu em algumas
miseráveis mais dissolutos e depravados na face da terra”. O mundo, ao mudanças tentando desassociar-se daquela imagem de modesta vila
que tudo indica, conta a bastante tempo com esses peculiares interiorana do século XIX. Como destaca Peixer (2002, p.49), foi “uma
observadores.
133 134

manutenção das práticas tradicionais dos coronéis revestida de 'ares espaço urbano, como atestou Victor Antônio Peluso Junior na década
modernos'”. de 1940. É somente alguns anos depois que essa condição insinua se
alterar de alguma forma. Em 1942, algo notável e sugestivo parece
Para a maioria da população, no entanto, é admissível supor
transformar aquele tom melancólico presente nos textos dos viajantes
que parte deste conjunto de transformações era bem pouco acessível,
citados acima, pois segundo a matéria do Jornal Guia Serrano:
posto que o acesso ao “ar modernizante” tinha como premissa, em boa
parte dos casos, o lugar social que os habitantes ocupavam, e que o Grande tem sido a concorrência no terreno migratório.
Semanalmente chegam a esta cidade muitas famílias
perímetro urbano tinha ainda proporções irrisórias em relação ao fixando residência. Explica-se esse êxodo considerando o
fato de que Lages, cuja fama de região farta e rica já
restante da área do município, onde viviam a maioria das pessoas. transpôs fronteiras, está se industrializando, o que em
outros termos significa - Lages terá em breve vida
Sendo assim, sua densidade demográfica era muito baixa. Com esses própria... (1942, p.16).37
novos ares também chegou a imposição da lei, forjada a partir dos Dez anos mais tarde, o Jornal Região Serrana (1954) avalia,
códigos e padrões de civilidade e conduta das classes dominantes, como parte dos impactos desse processo: “Lajes cada vez mais vê aumentada
expressa o Código de Posturas de 1895, proposto ao território nacional. a sua população. A enorme quantidade de gente que para cá afluem
No seu artigo 117, por exemplo, ele proibia, entre outras coisas; “fazer frequentemente não é, composta de pessoas abastadas. São pessoas
samba ou batuques, quaisquer que sejam as denominações, dentro das pobres, que precisam trabalhar a fim de poderem continuar a viver”.
ruas da cidade e das povoações; andar pelas ruas indecentemente
vestido com roupas dilaceradas [...] viver sem ocupação lícita [...]”.
Como bem indicou Zilma Peixer (2002, p.61), é “interessante observar 3 O ciclo da madeira: espaço e política

que esses comportamentos que a lei delineava como proibitivos, de Contudo, foi especialmente a partir da década de 1940 que
modo geral, eram frequentes nos grupos populares”. Lages passou por uma série de alterações na sua configuração social,

Como importante centro regional comercial, cujas raízes econômica e política. Nesse período há uma importante remodelação da

remontam ao período do “caminho das tropas” do século XVIII, Lages


ainda mantinha seu status de “cidade de fazendeiros” na primeira 37
Os recortes deste Jornal estão disponíveis pela pesquisa de: MIRANDA, Silmara
Luciane. Lages 1940: discursos e remodelações urbanas. Dissertação de mestrado em
metade do século XX, mesmo que com algumas alterações no seu História, Florianópolis: UFSC, 2001.
135 136

economia local e uma transição peculiar de um modelo baseado na madeireira “a garantir-lhe um futuro sorridente”. Existiam 166
pecuária, para a exploração da madeira. Além de absorver a mão de estabelecimentos industriais, 122 especialmente dedicados à madeira
obra local e regional da década de 1950, essa atividade superou a serrada e 2 à caixa de madeira desarmada (RIO DE JANEIRO, 1956,
pecuária em importância econômica. Este também foi o momento no p.238-240).
qual se intensificou o processo de “industrialização” da madeira, A composição social lageana também se alterou
conforme nos mostrou Ari Martendal (1980). Durante esse período de significantemente a medida que novos contingentes de pessoas foram
intensa exploração dos recursos naturais da região, o município teve sua
chegando à cidade. Migrantes do Rio Grande do Sul (principalmente
população quadruplicada (SCHWALB, 2009, p.27) e passou a receber das colônias italianas da serra gaúcha) tornaram-se os principais
grandes contingentes de trabalhadores, configurando-se como polo responsáveis pela intensificação do processo de exploração do pinheiro
receptor do êxodo rural da região. Durante a expansão do ciclo da e incremento de técnicas de corte e tratamento da madeira
madeira surgiram ao menos 50 novos bairros na cidade (PEIXER, 2002, (MARTENDAL, 1980). Vanessa Muniz (2012, p.25) destaca que 50
p.60). famílias libanesas migraram de São Paulo para abrir comércio,
No seu auge e, principalmente, a partir da década de 1950, a principalmente lojas de roupas e calçados. Além disso, “várias agências
região tornou-se econômica e politicamente influente, especialmente o bancárias passam a ser instaladas nesse período juntamente com as
município de Lages, que deteu o título de principal economia do Estado principais agências de serviço social, SESI, SESC e SENAI”
(GOULARTI, 2003) e elegeu cinco governadores e um senador que (QUINTEIRO, 1991, p.103). Essas mudanças influenciaram
assumiu “pro tempore” a presidência da República (HILDEBRANDO, diretamente na especialização dos serviços oferecidos no município,
2009). O município chegou a ocupar o primeiro lugar no país em além de alterarem o espaço urbano. O Jornal Região Serrana, em 1954,
produção de madeira bruta, comercializando 61% da madeira exportada sublinhava: “O crescimento da cidade é um descalabro. Ela continua se
para outros países. Foi também responsável por significativa parte da desenvolvendo desordenadamente, com ruas tortas e desencontradas,
madeira consumida pela construção da nova capital federal a partir de praças em miniatura (quando aparecem) e becos sem saída”.
1957 (COSTA, 1982, p.914). De acordo com a Enciclopédia brasileira No entanto, é importante destacar que são os caboclos oriundos
dos municípios, de 1956, Lages tinha como fonte de riqueza a indústria do meio rural - prováveis sucessores daquela geração “indigente”
137 138

caracterizada pela “indolência e preguiça” e pessoas com as quais a Se em 1947 as eleições para prefeito e para a câmara de
igreja tinha dificuldades de se relacionar (como reclamavam os vereadores contaram com 10.547 votos da população (LAGES, 2008,
viajantes citados no início deste texto) - é que vão ser os principais p.16) e foram disputadas apenas pelo Partido Social Democrata (PSD)39
responsáveis pela produção nas madeireiras e serrarias 38, trabalhando e pela União Democrática Nacional (UDN), partidos da oligarquia
em diferentes fases desse processo: o corte, o carregamento, o catarinense, em 1958 registraram-se 26.102 votos e cinco partidos
empilhamento da madeira, o transporte e a operação dos mais diversos políticos disputaram o pleito: o PSD, a UDN, o PTB, o PDC (Partido
tipos de maquinários. Martendal (1980, p.48) enfatiza que aqueles Democrata Cristão) e o PL (Partido Libertador). O maior número de
caboclos que haviam migrado para a cidade são os principais membros eleitores acabou não só legitimando os políticos estabelecidos como
na formação de bairros e vilas como: “Centenário, Santa Helena, Vila também minou suas chances de coação, uma vez que o “preço” do voto
Nova, São Luiz, Curva da Morte, Várzea, Penha, Guarujá, Triângulo, havia sido transformado e, com isso, surge um novo espaço para
Lomba Seca e Passo Fundo”. negociação que resulta em novas exigências. Portanto, temos uma
curiosa relação de “mão dupla” entre certo tipo de desenvolvimento
A partir do desenvolvimento da indústria madeireira, a cidade
econômico e a reconfiguração da cultura política local, ao menos no que
se reestruturou para atender as novas demandas desse setor econômico,
diz respeito a questão partidária.
surgindo, desta forma, postos de gasolina, borracharias, fábricas de
reboques e carrocerias, lojas de peças e acessórios, oficinas mecânicas, Porém, a cidade, que já era um polo regional consolidado,
entre outros. Os “gringos”, como eram chamados os migrantes da serra “despreparada para absorver os contingentes liberados, migrantes por
gaúcha, tornariam-se os “novos ricos” da cidade, substituindo “aos fatores de mudança, assistiu ao crescimento significativo de sua
fazendeiros, cobiçando permanentemente o poder para desbancar os população marginal” (MARTENDAL, 1980, p.33). Este dado é
políticos tradicionais” (MARTENDAL, p.42-44). importante ao considerarmos que são exatamente esses sujeitos que

39
Principalmente depois da consolidação política de Nereu Ramos que “durante a
38
Martendal é um dos primeiros pesquisadores a se concentrar no sujeito “caboclo”. permanência de Getúlio Vargas no Executivo Federal, esteve na liderança do governo
Certamente o “tipo social” característico da população lageana. O autor também do Estado”. FÁVERO, Tâmyta Rosa. Tramas e desenlaces eleitorais: o cenário
diferencia as diferentes partes do processo e a integração desse sujeito na exploração político na “velha Lages” durante a ditadura militar (Lages, SC, Década de 70).
da madeira. Monografia. Florianópolis, UDESC, 2010, p.24.
139 140

compõem as periferias da cidade no decorrer da década de 1960 e 1970: com o domínio oligárquico (QUINTEIRO, 1991, p.110). É neste
a mão-de-obra “não qualificada” - oriunda dos campos e propriedades momento também que emergem novas lideranças locais, acompanhadas
rurais do município de Lages e de outros municípios da região - a de práticas políticas inéditas e novos eleitores (ou clientela).
população cabocla e a massa de desempregados que resolveu, devido ao Nos anos de 1980, Lages contava com uma população de
fechamento das serrarias, aguardar alguma oferta de trabalho 155.293 habitantes dos quais 79,6% residiam na zona urbana, e dos seus
temporário em outros setores. quase 7.000km² de território 97% se caracterizavam como rural. Ou
Segundo a pesquisa de Peluso Jr (1944, p.135), realizada ainda seja, uma densa e complexa concentração humana no meio urbano, com
nos anos 1940: inúmeros problemas sociais advindos da falta de moradia adequada,

Verificou ainda que o trabalhador braçal representava a alimentação regular, saneamento básico, acesso aos serviços públicos -
maior porcentagem da população urbana, sendo seus
como instituições de educação e saúde - e carência de serviços e
elementos, em grande parte, pertencentes à raça negra ou
mestiça. Com isso, o nível de vida dessa classe é bastante equipamentos em geral, em relação aos quais a população tinha quase
baixo e oferece contrastes impressionantes com o meio
em que vive. O rebanho de gado vacum é numeroso, mas nenhum acesso.
nem assim as crianças tomam leite regularmente. As
tropas de gado destinadas às populações do litoral descem Em consequência disso, os sujeitos que até então estavam
do planalto diariamente, mas a carne não figura como excluídos das decisões políticas, passaram a incorporar
base da alimentação da classe pobre de Lages. O regime em seus discursos a necessidade e garantia de condições
alimentar baseia-se no feijão e no milho. de existência mínimas, são “novos sujeitos”, “indivíduos,
até então dispersos e privatizados, que passam a definir-se,
A indústria madeireira, que antes perfazia 64,5% do total de a reconhecer-se mutuamente, a decidir e agir em conjunto
estabelecimentos industriais de Lages (SILVA, 1985, p.68), deu e a redefinir-se a cada efeito resultante das decisões
40
atividades realizadas .
indícios, no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, de seu fim.
Os trabalhadores de renda salarial baixa, excluídos dos
Acabou o pinheiro e, consequentemente, muitas serrarias e madeireiras
processos de decisão política e agrupados nos bairros e periferias,
fecharam ou reduziram suas atividades (MARTENDAL, 1980, p.46). O
processo de urbanização, a aglomeração humana em diferentes bairros 40
A frase é de Marilena Chauí, referindo-se aos sujeitos do trabalho de Eder Sader,
da cidade e a decadência das fazendas de gado, associados às alterações que acreditamos, enquadra-se perfeitamente ao que estamos nos referindo. Prefacio.
In: SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas
locais e nacionais do modelo econômico e político, acabaram de vez e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo (1970-80). 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1988, p.10.
141 142

tornam-se os novos “atores sociais” da década de 1970 nos meios 1970, e que nos primeiros anos de 1980 se tornou, para alguns, a
urbanos e em nível nacional. Essa era a ambiência política naquele “administração municipal modelo”.
momento. Em 1985, escrevia Weffort (p.98): “na área dos movimentos
populares, assistiu-se, nos últimos dez anos, a uma extraordinária
4 “Lages, a força do povo”, 1977-1982.
proliferação das sociedades de bairro”. Thomas Skidmore (1990, p.13),
nesse sentido, observou: Mas eis que o país se depara com o golpe civil militar em 1964.
A partir de 1965, com o Ato Institucional n.2 (AI-2)41, foram 14 anos de
Um conjunto de atores históricos sobre os quais muito se
tem falado são certas organizações de nível local, com as bipartidarismo no país. De um lado a ARENA, partido de apoio e base
comunidades eclesiais de base, as associações de bairro e
a atividade sindical em nível de fábrica. [...] Todos do regime militar, e de outro o MDB, oposição consentida que aos
brandiram sua força política, embora em diferentes
ocasiões e para fins diversos. A continuação das pesquisas poucos conquistou um importante espaço de atuação política no país.
sobre o papel daqueles grupos será essencial, não somente
para revelar como o Brasil emergiu do regime autoritário, Nas palavras de Carlos Nelson Coutinho (1992, p.50):
mas também para esclarecer a dinâmica e o potencial “progressivamente a fachada legal foi se enchendo de conteúdo real, o
democrático da Nova república.
Surgem, portanto, reivindicações em um novo contexto MDB se tornou uma efetiva frente política de oposição”. Em Santa

político e econômico que, presumivelmente, colaboraram para o Catarina o partido foi organizado logo no final de 1965, mas fundado

deslocamento do eixo das decisões políticas e favoreceram que a somente em 1966 e em Lages, tendo, segundo a pesquisa de Elizabeth

prioridade de atuação do poder público mudasse o enfoque de suas Farias da Silva (1985), sua primeira reunião em julho daquele ano.

ações. E é aqui, finalmente, que podemos pensar os impactos dessas Houve, portanto, uma nova conformação político-partidária, organizada

transformações locais para a coadunação das propostas a nível nacional em nível nacional, que influenciou diretamente as disputas políticas

do MDB na década de 1970, principalmente considerando o documento locais.

conhecido como “ação municipalista” de 1976. É nesse contexto que Também na área econômica, com o passar dos anos, as
podemos compreender a execução e o caráter dos projetos da gestão decisões dos militares impactaram diretamente a vida da maioria dos
responsável por administrar a “republiqueta marxista” no final nos anos
41
Lei disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-02-65.htm .
Acesso em Out. 2014.
143 144

brasileiros, colaborando para aprofundar a precária situação de à frente da prefeitura até 1976. Sua eleição ficou conhecida como o
trabalhadores como aqueles que acumulavam-se nas periferias de Lages marco que assinalou o fim da era política da família Ramos e pelas
após os anos do “ciclo da madeira” (que, em partes e termos nacionais, reformas na área urbana da cidade que agradaram bastante a “nova
pode ser entendido como um legado deixado pelos anos “dourados” da classe média”. Durante os anos dessa primeira gestão do MDB, o
política econômica desenvolvimentista do governo Vargas e de arquiteto Dirceu Carneiro, enquanto vice-prefeito, iniciou uma espécie
Juscelino Kubistchek). O salário mínimo caiu 25% no governo Castelo de “campanha paralela” onde criou contato direto com a população -
Branco (SKIDMORE, 1990), porém entre 1969 e 1973 o PIB brasileiro principalmente com os caboclos que residiam na área rural de onde era
atingiu uma taxa de crescimento anual de 9% - chegando a 11% em proveniente - distanciando-se assim de Juarez, que era tido como mais
1973 -, fenômeno que ficou conhecido como “milagre econômico” moderado.
(EVERS, 1982, p.97). Esse processo só foi possível, segundo Régis de Num período anterior, Dirceu se envolveu com o ambiente
Castro Andrade (1982, p.140), pela adoção de medidas como o arrocho político da década de 1960. Antigo líder secundarista em Lages, ele foi
salarial e a concentração de renda e propriedade, impostas à força. presidente do Centro Acadêmico da Faculdade de Arquitetura de Porto
Greves foram proibidas e sindicalistas foram perseguidos. Alegre, onde estudou até 1971. Também fez parte dos protestos na
Paralelamente a este processo, O MDB foi, aos poucos, capital gaúcha contra o regime e acompanhou as reuniões de diversos
conquistando legitimidade diante da população e apostando na via grupos, inclusive do PCB. No MDB, era muito próximo das lideranças
democrática e popular. Grupos que optaram pela luta armada haviam identificadas com os “autênticos”, principalmente dos líderes gaúchos.
sido abatidos pelo regime e, em decorrência disto, diversos setores da Em Lages, enquanto vice-prefeito, esteve à frente de projetos como o
esquerda partiram para uma “política de alianças que ia à direção de “Viva seu bairro”, que foi uma espécie de piloto para a elaboração de
setores mais moderados da oposição, tendo como objetivo ampliar o outros projetos desenvolvidos em sua gestão, a partir de 1977. Carneiro,
movimento da sociedade civil contra a ditadura militar” (ARAUJO, é preciso dizer, venceu as eleições para prefeitura em 1976 com a
2007, p.323). Em 1968, o MDB quase venceu a ARENA em Lages, maioria dos votos - ultrapassando o número de votos de todos os outros
com 12.912 votos (QUINTEIRO, 1991, p.114). Já em 1972, ganhou a três candidatos juntos. Isto implica dizer que, no mínimo, suas
eleição com pouca diferença de votos. Juarez Furtado, advogado, ficou
145 146

propostas (e as do MDB) estavam em consonância com as demandas o assessor de comunicação Ilson Chaves, o secretário da cultura
populares42. Antônio Munarim, Sônia Beltrame e Nini Candido, entre outros
(QUINTEIRO, 1991, p.137). Entre os projetos especiais desenvolvidos
Um ponto importante a ser sublinhado é que os prefeitos
podem ser destacados: o projeto de incentivo a criação da Associação
eleitos pelo MDB foram orientados por um documento urdido em 1976,
de Moradores de Bairros, o projeto de Hortas Comunitárias, o Projeto
em um encontro no Rio Grande do Sul. Esse documento foi intitulado
Lageano de Habitação, ações comunitárias na área de Saúde, a
“ação municipalista” e orientou parte da ação política desenvolvida em
formação de Núcleos Agrícolas, Ações Culturais, Mostras do Campo, a
Lages. Segundo Eliana Tavares dos Santos (2008), “o debate em torno
Escola do Povo, incentivo e popularização do teatro popular, o projeto
da ‘participação popular’ tomou maior evidência e sistematicidade entre
arte nos bairros, entre outros. Segundo Lori Silveira (2004, p.1): “esses
as ‘lideranças gaúchas’ que atuaram nos movimentos de contestação ao
projetos especiais podem ser definidos como propostas alternativas de
regime militar nas campanhas para vereador de 1976”, sendo que “o
organização popular, com sentido de trabalho coletivo e que perseguiam
Instituto de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais (IEPES) do MDB
um processo de conscientização política”, e complementa a autora:
organizou naquele ano uma espécie de curso para prefeitos e vereadores
“com a finalidade, ainda de melhorar as condições de vida tanto da
com base em um documento chamado "O MDB e a Ação
população urbana periférica, quando da população rural”.
Municipalista" que teve repercussão nacional”.
Segundo Munarim (1990, p.162) o que ocorreu, “foi o
No plano local, a “equipe Dirceu Carneiro” desenvolveu o que
resultado da combinação das necessidades reais e forças potenciais das
intitularam de “projetos especiais”. Essa equipe era formada, sobretudo,
classes subalternas da sociedade com a vontade política de um grupo de
por jovens da classe média, saídos da universidade, militantes do
agentes sociais que ocuparam o poder público municipal [...]”. É nesse
movimento estudantil da década de 1960, a exemplo de Dirceu Carneiro,
contexto que surge o lema: “Lages, a força do povo”. Dessa forma, os
42
Embora Dirceu Carneiro tenha uma atuação louvável como administrador público e projetos tentaram corresponder precisamente às novas necessidades que
como liderança política nesse momento, ainda é preciso superar o personalismo em
torno dele, principalmente buscando entender a sua posição não como jovem político estavam colocadas, sobretudo, pelas classes populares, articulando uma
e outsider, mas como um estabelecido. Parece que as coisas se tornam mais precisas
se traçarmos as suas redes de sociabilidade com a política estabelecida, e não ao proposta política nacional (a ação municipalista do MDB), com os
contrário, além de focar na atuação inconteste de Teresa Carneiro, então vereadora e
esposa de Dirceu.
147 148

aspectos políticos, econômicos e culturais locais. Isso foi o que permitiu nossa cultura política, principalmente no período de transição e
Maurício Tragtenberg à época enfatizar: “a luz vem de Lages”43. “redemocratização” do país, observados, especialmente, pelo viés das
associações civis do final da década de 1970 e 1980, e sua ação na
formação daquilo que se intitulou de “democracia participativa”, no
5 Considerações finais
qual os modelos municipais mais citados daquele contexto são, Lages
Lages, por fim, de pequena cidade comercial e decadente do (SC), Piracicaba (SP) e Boa Esperança (ES).
início do século, acabou se transformando, no contexto de emergência
No final da década de 1970, é necessário dizer, a experiência
da sociedade civil durante o regime militar, no terreno de uma
acumulada nos longos anos de resistência possibilitou o retorno dos
importante experiência política local. Dessa forma, com os seus
movimentos sociais, importante fator de pressão durante a abertura
diferentes “status” - de “vilota rude” à “princesa da serra” nos anos
(RODRIGUES, 1990, p.4). O acúmulo dessas experiências indicou uma,
1940 e de “republiqueta marxista” à “administração municipal modelo”
segundo expressão de Jucirema Quinteiro (1991, p.224), “força social
nos 1970 e 1980 - podemos destacar a forma como a mudança dos
inovadora”, que desdobrou-se e ampliou-se, chegando a conquistar
regimes políticos e dos ciclos econômicos podem afetar a vida urbana e
importantes municípios e produzindo práticas e alternativas concretas
algumas dessas transformações.
de poder popular. Este processo tem um de seus pilares “fincados” nos
Finalmente, o que esse artigo se propôs a analisar, para além movimentos sociais que emergiram na metade da década de 70 e, talvez,
do interessante desafio de equacionar a relação local/nacional, abrange esta seja uma importante chave de leitura para compreender “a força do
questões que também podem ser relacionadas à: i) um momento povo”.
específico do país em plena ditadura militar, regime que interrompeu e
Resta ainda, em alguma medida, tentarmos refletir sobre duas
alterou um processo político e econômico advindo do pós-guerra; ii)
interessantes questões com as quais encerro este artigo. A primeira
sobre parte do processo de expansão capitalista em um país periférico;
formulada em entrevista por Leandro Konder: “será que esse
além de nos apontar questões interessantes para refletir sobre parte da
movimento de massas tem uma força na qual nós podemos nos apoiar,

43
ou é só aparência? Será que o movimento de massas tem força própria
Prefácio em ALVES, Márcio Moreira. A força do Povo: democracia participativa
em Lages. São Paulo: Brasiliense, 1980, p.7. ou será uma força ilusória?” (KONDER, p.27). E em outro momento,
149 150

David Harvey questiona: “será que o espantoso ritmo e a escala da EVERS, Tilman. Sobre o comportamento político das classes médias no
Brasil, 1963-1977. In: KRISCHKE, Paulo J. (org.). Brasil do “milagre”
urbanização nos últimos 100 anos contribuíram para o bem-estar do
a “abertura”. São Paulo: Cortez, 1982.
homem?”. Resta a nós, arriscarmos alguns palpites. FÁVERO, Tâmyta Rosa. Tramas e desenlaces eleitorais: o cenário
político na “velha Lages” durante a ditadura militar (Lages, SC,
Década de 70). Monografia. Florianópolis, UDESC, 2010.
Referências bibliográficas GARCIA, Fabiano. Rupturas, permanências e transição: a “força do
povo” em Lages-SC (1977-1982).
ALVES, Márcio Moreira. A força do Povo: democracia participativa
GOULARTI, A. Formação Econômica de Santa Catarina.
em Lages. São Paulo: Brasiliense, 1980.
Florianópolis: Cidade Futura, 2003.
ARRUDA FILHO, Raul. Um Abraço Pra Quem Fica. Lages: Edição do
HILDEBRANDO, Valdemiro. Um novo eldorado madeireiro? notas
Autor, 1984.
sobre produtividade industrial nos Campos de Lages. Cadernos de
ANDRADE, Régis de Castro. A economia do capitalismo selvagem. In: economia. Unochapecó, v.13, n.24. 2009. Disponível em:
KRISCHKE, Paulo J. (org.). Brasil do “milagre” a “abertura”. São http://bell.unochapeco.edu.br/revistas/index.php/rce/article/view/1164
Paulo: Cortez, 1982. Acesso em Nov. 2014.
ARAUJO, Maria Paula Nascimento. Lutas democráticas contra a KONDER, Leandro. Entrevista a SADER, Emir; PINASSI, Maria
ditadura. In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão. Revolução e Orlanda; COUTINHO, Carlos N. In: Rev. Margem Esquerda n.5. São
Democracia: 1964 (...). Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2007. Paulo: Boitempo, p.27.
AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagens pelas províncias de Santa KRISCHKE, Paulo J. (org.). Brasil do “milagre” a “abertura”. São
Catarina, Paraná e São Paulo (1858). São Paulo: Ed. Universidade de Paulo: Cortez, 1982.
São Paulo, 1980.
MARTENDAL, José Ari Celso. Processos produtivos e trabalho-
BRASIL. Ato Institucional n.2. Out. 1965. Lei disponível em: educação: a inclusão do caboclo catarinense na indústria madeireira.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-02-65.htm Acesso em Out. Rio de Janeiro: FGV, 1980.
2014.
MIRANDA, Silmara Luciane. Lages 1940: discursos e remodelações
Câmara Municipal de Lages. Memórias do legislativo lageano. urbanas. Dissertação de mestrado em História, Florianópolis: UFSC,
Governo do Estado de Santa Catarina. 2008. 2001.
COSTA, L. O Continente das Lagens. Florianópolis: Fundação MUNARIM, Antônio. A práxis dos movimentos sociais na região
Catarinense de Cultura, 1982, serrana. Dissertação de mestrado em Educação. Florianópolis: UFSC,
COUTINHO, Carlos Nelson. Democracia e socialismo: questões de 1990.
princípio e contexto brasileiro. São Paulo: Cortez, 1992.
151 152

MUNIZ, Vanessa Aparecida. Sociabilidades e namoros na década de SILVA, Elizabeth Farias da. O MDB/PMDB em Lages: análise de um
70 – Lages (SC). Dissertação de mestrado em História. Florianópolis: partido de oposição no governo (1972-1982). Dissertação de Sociologia
UDESC, 2012. política. Florianópolis: UFSC, 1985, p.68.
PEIXER, Zilma Isabel. A cidade e seus tempos: o processo de SILVEIRA, Lori Terezinha da. Mostras do campo de Lages: educação
constituição do espaço urbano em Lages. Lages: Uniplac, 2002. e cultura na democracia participativa (1977 – 1983). Dissertação de
mestrado em Educação. Florianópolis: UFSC, 2004, p.1
PELUSO JR. Victor Antonio. Santa Catarina na Exposição do X
Congresso Brasileiro de Geografia. Revista Brasileira de Geografia. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo 1964-1985. 4 ed.
Ano V, nº 3, Rio de Janeiro: CNG/IBGE julho-setembro de 1944. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
QUINTEIRO, Jucirema. A “Força do povo” em Lages: mas o que foi SPÓSITO, 2000.
mesmo, esta experiência? Dissertação de mestrado em Filosofia da THOMPSON, E. P. A Miséria da Teoria ou um planetário de erros.
educação. São Paulo: PUC, 1991. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
RANGEL, Carlos Roberto da Rosa. “A cidade como objeto da THOMPSON, E. P. Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo
historiografia”. Saeculum – Revista de História. [21]; João Pessoa, jul./ industrial. In; Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras,
dez. 2009 2013.
RODRIGUES, Marly. O Brasil da abertura: de 1974 à constituinte. 5 WEFFORT, Francisco C. Por que democracia? 3 ed. São Paulo:
ed. São Paulo: Atual, 1990. Brasiliense: 1985.
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena:
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura.
experiências, falas e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo São Paulo: Cia das Letras. 2011.
(1970-80). 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.10.
SCHWALB, Loren Fischer. O teatro nas ruas de Lages: reconstrução
do imaginário cênico em espaços públicos – as experiências do grupo
Gralha Azul (1970) e do grupo de teatro Menestrel Faze-dô (1990).
Dissertação de mestrado. Universidade do Estado de Santa Catarina –
UDESC, 2009.
SERPA, Elio. Igreja e catolicismo popular no planalto catarinense
(1891 – 1930). Dissertação de mestrado. Florianópolis: UFSC, 1989.
SETÚBAL, Paulo. Alma Cabocla: poesia. 8 ed. São Paulo: Saraiva,
1964.
153 154

POSIÇÃO JURÍDICA DO MUNICÍPIO NO FEDERALISMO A grosso modo, pode-se dizer que o município dispõe
BRASILEIRO sobretudo do interesse local; as demais atribuições que a Constituição
lhe outorga são, em geral, manifestações desse conceito. Temas como
gestão urbana e ordenamento das cidades são assuntos de claro interesse
Bruno Arthur Hochheim44
local, de modo que o município é o ente precipuamente responsável por
eles 45 , agindo sempre observando normas constitucionais como a do
Resumo: O município passa a receber amplo destaque com a direito à moradia, a da função social da propriedade e a da função social
Constituição de 1988. Suas atribuições gravitam sobretudo em torno do da cidade. Normas como o plano diretor e o plano de mobilidade urbana
interesse local, sendo ele responsável por temas como gestão urbana.
Há, todavia, discussão doutrinária sobre a posição jurídica do surgem nesse contexto como instrumentos do município para que ele
município, o que pode influir no seu grau de liberdade. Face a isso, cuide desses temas.
analisar-se-á a definição de federalismo, a fim de se chegar a uma
conclusão acerca do status do município. Como as definições de Há, todavia, debate na doutrina acerca da posição jurídica
federalismo usualmente aventadas pela doutrina têm suas limitações,
elaborar-se-á concepção diversa, baseada na semelhança do fenômeno desse governo local no Brasil – sobre se o município é de fato ente da
com a separação de poderes. federação ou não. Essa discussão é de grande importância para temas
Palavras-chave: federalismo brasileiro; município; conceito de como regulação urbana, pois suas conclusões podem influir na
federalismo; estrutura do federalismo.
liberdade que o município tem para agir na regulação da cidade.

O propósito desse artigo é estudar a posição jurídica do


1 Introdução
município no Brasil, a fim de se concluir acerca da liberdade que o
A Constituição da República Federativa do Brasil dá amplo município tem na regulação da cidade. Iniciar-se-á o trabalho
destaque à figura do município, chegando mesmo a listá-lo como parte analisando o debate sobre a posição jurídica do município no Brasil. A
da República em seu artigo 18 e dotando-o de um amplo rol de fim de se chegar a uma conclusão, passar-se-á a estudar a própria
atribuições.
45
O que não significa que ele seja o único responsável por isso. É de se destacar o
papel da União, à qual cabe dispor normas gerais sobre o tema, seja por força de uma
44
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestrando em previsão genérica como a do art. 24, I, seja por força de disposição mais específica
Direito na Universidade de Brasília. como a do art. 182.
155 156

estrutura do federalismo, chegando-se à conclusão de que as teorias FERREIRA FILHO, 1990, p.212, 2011, p.86; MENEZES DE
tradicionais a respeito do tema têm seus problemas. Propor-se-á então ALMEIDA, 2013, p.701; MORAES, 2010, p.283; TAVARES, 2010,
concepção diversa de federalismo, pautada na semelhança entre p.1114, p.1118).
federalismo e separação de poderes, vindo-se então a discorrer sobre a Nessa corrente, todavia, pode haver variações. Há quem
posição jurídica do município no Brasil. entenda que os municípios são, tais quais os estados, entes da federação
(FERREIRA FILHO, 2011, p.86), mas também afirme que os estados

2 O Debate sobre a Posição do Município no Federalismo Brasileiro são constitucionalmente descentralizados em municípios (FERREIRA
FILHO, 2011, p.83), de modo que o Brasil seria, na verdade, um caso
A Constituição Federal tem várias disposições sobre os
de “federalismo de segundo grau”. Há, para o autor, um “[…] duplo
municípios: no art. 1º, estabelece que eles também formam a República
grau de federalismo: o federalismo dos Estados e o federalismo dos
Federativa do Brasil; no art. 18, lista-os como parte da República,
Municípios em cada Estado” (FERREIRA FILHO, 1990, p.211-2).
estabelecendo que são autônomos; no art. 29, determina que reger-se-ão
por lei orgânica, aprovada em dois turnos e com quorum qualificado, Por outro lado, há quem tenha visão oposta, afirmando que foi

procedimento típico de alteração constitucional; no art. 30, lista suas um equívoco do constituinte incluir os municípios como componentes

principais competências; nos arts. 182 e 183, estabelece mais da federação (SILVA, 2009, p.101), ou mesmo que a própria

competências. Face a todas essas disposições, questiona-se qual é a Constituição desmente o que solenemente proclama em seu artigo

posição do município no federalismo brasileiro, havendo dissenso sobre primeiro (CARRAZZA, 2010, p.175).

o tema, o qual é mesmo reconhecido (MENEZES DE ALMEIDA, Para a defesa dessa posição, utilizam-se diferentes argumentos.
2013, p.701). Defende-se que não há representação dos municípios no Congresso

Por um lado, a maioria da doutrina entende que o município é Nacional, não participando da formação da vontade jurídica da União, o

ente da federação, já que ele, tal qual o estado, tem um campo de que inviabilizaria sua caracterização como entes da federação

atuação próprio, delimitado pela Constituição Federal, sendo sua lei (CARRAZZA, 2010, p.175; MENDES; BRANCO, 2010, p.865); que a

orgânica sua constituição (BASTOS, MARTINS, 1988, p.221, p.232-3; intervenção nos municípios está a cargo dos estados-membros onde eles
157 158

estão situados, o que mostraria que aqueles estariam vinculados a estes jurídica dotada de grande autonomia, derivando suas competências
(MENDES; BRANCO, 2010, p.865; SILVA, 2009, p.475); que a diretamente da Constituição Federal – único fundamento de validade de
criação, incorporação, fusão e desmembramento dos municípios far-se- suas leis – e tendo seu próprio poder constituinte decorrente
ão por lei estadual, nos termos da Constituição, o que mostraria que eles (CARRAZZA, 2010, p.175-6); ou que o município tem poder
continuariam a ser divisões dos estados (CARRAZZA, 2010, p.175-6; constituinte, expresso na sua lei orgânica (MENDES; BRANCO, 2010,
SILVA, 2009, p.475); que, diferentemente da União e dos estados, os p.871). Tenta-se conciliar os consideráveis poderes que a Constituição
municípios não têm poder judiciário (MENDES; BRANCO, 2010, atribui ao município à tese de que ele não é ente da federação
p.865); que a competência originária do STF para resolver conflitos afirmando-se que “A solução é: o Município é um componente da
entre entes da federação não abrange os casos em que o município seja federação, mas não entidade federativa” (SILVA, 2009, p.101). O
um dos pólos (MENDES; BRANCO, 2010, p.865); que a Constituição município é componente da República Federativa, sem ter natureza de
usa onze vezes das expressões unidade federada e unidade da entidade federativa. Não fica clara, todavia, a diferença entre um e outro;
Federação (no singular ou no plural) referindo-se apenas a estados e o que significa ser componente da federação sem ser, ao mesmo tempo,
Distrito Federal, sem envolver os municípios (SILVA, 2009, p.640); entidade federativa.
que não existe federação de municípios, apenas de estados, não sendo Como se pode ver, a questão da posição do município no
aqueles estados-membros de segunda classe dentro destes. Isso seria Brasil não está pacificada, restando controversa. Para se definir
contrário à autonomia federativa tanto dos estados quanto dos adequadamente sua posição na federação brasileira, passar-se-á a
municípios, uma vez que ela pressuporia território próprio, não discorrer sobre o federalismo, com o objetivo de, brevemente, defini-lo,
compartilhado, além de, com isso, se ter uma federação muito complexa, para então se decidir sobre o status do município.
com entidades superpostas (SILVA, 2009, p.474-5).

Interessantemente, mesmo os autores críticos à tese de que o


3 Concepções acerca do Federalismo
município é integrante da federação brasileira fazem concessões
consideráveis. Diz-se, por exemplo, que o município ocupa posição
sobranceira e privilegiada na ordem jurídica brasileira, sendo pessoa
159 160

Tradicionalmente entende-se que o Estado federal é composto outro. A Constituição Federal é a norma suprema do Estado, devendo
por União e estados46, sendo aquela soberana e sobrepondo-se a estes; todas as outras, inclusive as constituições estaduais, serem compatíveis
47
os estados, contudo, têm sua esfera própria de autonomia , na qual com ela. O poder constituinte pertence à União, podendo ela moldar as
estão livres dos desígnios federais, decidindo como irão agir – a União instituições políticas. A União altera a Constituição; há participação por
não deveria, a princípio, invadir a esfera de autonomia estadual (nesse parte dos estados, uma vez que eles compõem o Senado, mas quem
sentido, a título de exemplo, Dallari, 2012, p.256; Meirelles, Aleixo, altera a norma última do ordenamento é a União. União, ou União
Burle Filho, 2012, p.63; Mendes, Branco, 2010, p.84848; Pinto Ferreira, Federal, implícita ou explicitamente, é tida como o mesmo que Estado
1989, p.374)49. União e estados possuem em muitos aspectos igualdade Federal.
jurídica, de modo que não podem invadir a esfera de atribuições um do Esse modelo, contudo, tem suas limitações e contradições, não
46
Para maior clareza, iremos aqui e nas próximas seções tratar do federalismo em sua dando conta de todos os problemas envolvendo o federalismo.
configuração clássica, na qual figuram apenas União e estados. Para resolver a questão
do município no Brasil iremos, posteriormente, incluí-lo na análise. Pode-se apontar, por exemplo, que a noção de supremacia da
47
Seguindo a formulação clássica (expressa, por exemplo, em MENDES, BRANCO,
2010, p.848), soberano é o poder que define a própria esfera de atribuições, não Constituição e a de igualdade jurídica entre União e estados são
estando condicionado a qualquer outro. O soberano não reconhece internamente
ninguém que lhe seja igual nem internacionalmente ninguém que lhe seja superior. Já incompatíveis: por um lado, se ambos os entes são iguais, não há razão
autônomo é aquele que tem seu círculo de atribuições definido por um poder que lhe é
externo, tendo liberdade para agir dentro – e somente dentro – desse círculo. Donde se para que as constituições de ambos não tenham a mesma posição
conclui, também, que a existência de um poder autônomo requer a existência de outro
poder que o tenha criado.
hierárquica; por outro, a ideia de supremacia da Constituição da União
48
Fernanda Dias Menezes de Almeida (2013, p.701-2) defende que esses autores exige que a Constituição Federal seja superior às estaduais, o que
sustentam concepção diversa de federalismo; entendemos, contudo, que eles
defendem a visão aqui exposta. Não se faz menção expressa a uma distinção entre derruba a ideia de igualdade.
União e outra coletividade que abranja todo o território nacional.
49
Em outro trabalho (HOCHHEIM, 2014, p.13) defendemos que Ferreira Filho, em Do mesmo modo, a ideia de que os estados estão resguardados
determinada obra (Curso de Direito Constitucional, 2011, p.83) tem uma visão de
federalismo como a aqui descrita. Fernanda Dias Menezes de Almeida (2013, p.701- das ações da União que invadam suas competências têm seus poréns.
2), todavia, afirma que o autor defende concepção diversa de federalismo, indicando
outra obra sua (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, 3. Ed. São Paulo: Ela leva à conclusão de que a autonomia dos estados bloqueia a
Saraiva, 2000, v.1, p.138). Analisando-se sua indicação (infelizmente, tivemos acesso
não à edição por ela indicada, apenas a outra muito mais antiga, de 1990) chega-se à soberania da União – o que não faz muito sentido. Soberano é, afinal,
conclusão indubitável que ele de fato defende visão diversa acerca do federalismo,
razão pela qual mudamos de posicionamento. No Curso seu posicionamento não se aquele que não encontra iguais ou superiores na esfera interna do
encontra tão claro quanto nos Comentários.
161 162

Estado. Sua ação não pode ser bloqueada no âmbito interno, ele é se está a se mexer ou não na Constituição. Enquanto no nível legal as
sempre superior. competências estaduais são óbice à ação federal, no constitucional isso
não ocorre, podendo a União ignorá-las (dependendo de se há ou não
A ideia de que o poder constituinte pertence à União tem seus
limitação de alteração constitucional quanto ao federalismo). Qual a
inconvenientes. Federalismo é forma de Estado, consubstanciada na
razão dessa ambivalência da União?
Constituição do Estado – pode-se decidir por essa forma ou por outra, a
unitária. É só a partir da criação da Constituição que a forma é definida. Ademais, o modelo força uma diferenciação teórica
O poder constituinte, todavia, existe antes da própria Constituição, uma intransponível entre estados unitários e estados federais, o que não pode
vez que é ele que a cria. Ao se dizer que o poder constituinte pertence à acontecer. Afinal, ambos são igualmente Estados – o federal é tão
União diz-se, no fim, que a União, através da Constituição, opta pela Estado quanto o unitário. Ambos são Estados, sendo a decisão quanto a
forma de Estado federal, criando União e estados. O que é tautológico, sua forma meramente acidental. Devem esses ter uma estrutura comum,
uma vez que leva à conclusão de que é a União que cria a União. Do pelo menos até a escolha da forma de Estado. Mas pelo modelo
mesmo modo, pode-se aduzir que a existência de algo pressupõe os correntemente defendido, não há nada em comum. O que há é a União
próprios limites desse algo. Ora, os limites da União estão encarnados criando a federação, já que possui o poder constituinte; um Estado
pelos estados-membros 50 . Como é que pode a União existir – e, unitário não pode adotar a mesma concepção, uma vez que não possui
consequentemente, existirem seus limites baseados nas autonomias União. Deve adotar alguma outra concepção qualquer. Se ambos são
estaduais – antes mesmo de se decidir a forma de Estado, antes mesmo igualmente Estados, por que não há uma estrutura comum? Por que não
de haver estados-membros, os quais criariam os limites da União? se parte de uma estrutura comum, a qual, em algum momento, se
diferencia entre federalismo e unitarismo?
No fim, a União tem um papel indefinido, confuso nesse
modelo. Ou ela tem que respeitar a autonomia estadual, sendo por esta Como se pode constatar, a teoria tradicional acerca do
bloqueada, ou pode passar por cima dela – um ou outro a depender de federalismo apresenta uma série de problemas. Além de ser tautológica,

50
ela ora afirma que a União é superior aos estados, ora estabelece que é
A grosso modo. No fim, os limites da União são definidos pela Constituição, que
pode tanto limitar seus poderes ao determinar que certa matéria é de competência de igual a eles, levando ao paradoxo da autonomia estadual que pode
outro ente quanto limitá-los ao definir proibições constitucionais, como as vedações
federativas do art. 19 da Constituição brasileira. bloquear a soberania federal, além de afirmar que a Constituição da
163 164

União é superior às dos estados ao mesmo tempo em que estabelece que Essa abordagem tem seus méritos. Ela resolve a tensão
União e estados possuem igualdade jurídica. Ademais, ela leva a uma resultante de a União ser igual e superior aos estados ao mesmo tempo,
diferenciação teórica insuperável entre as formas federal e unitária de uma vez que a cinde em duas figuras, a União e a República Federativa
Estado, não dando margem a qualquer elemento comum entre elas – o do Brasil. Aquela passa a ser o governo central, entidade contraposta
que não faz sentido, pois ambos são Estados, apenas com diferenças aos estados, autônoma assim como eles; esta, por sua vez, passa a ser
contingentes no que tange a sua organização interna. Assim sendo, entidade superior, detentora da soberania. Da mesma forma, some o
deve-se concluir que esse modelo não basta para explicar o fenômeno problema da autonomia que pode bloquear a soberania: os estados-
federalista, devendo ele ser substituído por outro. membros bloqueiam apenas ações da União, entidade juridicamente
igual a eles, que adentrem em suas competências.
Não por acaso, vem despontando uma teoria alternativa do
federalismo, a qual defende estrutura diversa para o fenômeno. Essa visão, contudo, não é livre de inconvenientes: ela nada
Entende-se, resumidamente, que se deve distinguir entre União e mais faz do que misturar pontos de vista completamente distintos, o
República Federativa do Brasil: enquanto aquela é o governo central, interno e o externo. Que do ponto de vista externo o Estado é soberano,
contraposto aos governos locais, esta é a soma desses elementos. A isso é fora de dúvida; nesse aspecto, não há diferença entre federalismo
República Federativa do Brasil é a junção de União, estados, e unitarismo – não se questiona isso. Mas internamente não se resolve a
municípios e Distrito Federal, sendo a detentora da soberania. Nesse questão. Tem que se demonstrar, do ponto de vista interno, qual das
modelo, a República Federativa do Brasil, ou o Estado Federal, como diferentes coletividades é soberana.
por vezes é denominada, é pessoa jurídica de Direito Internacional Ao se defender a ideia de que a soberania cabe ao Estado
Público, enquanto a União é pessoa de direito público interno, tal qual sujeito de Direito Internacional, e não aos entes internos, diz-se que
os estados-membros, sendo autônoma. A República Federativa do internamente há apenas entes autônomos, o que é insustentável. Tem de
Brasil age através dos órgãos da União na arena internacional haver internamente algo superior que crie os entes autônomos, uma
(BASTOS, MARTINS, 1988, p.220; FERREIRA FILHO, 1990, p.139- coletividade com esses poderes. A soberania também existe do ponto de
40; MENEZES DE ALMEIDA, 2013, p.701; MORAES, 2010, p.276; vista interno, de modo que é preciso que haja um soberano nas relações
SILVA, 2009, p.99-100, p.492-3; TAVARES, 2010, p.1083). internas.
165 166

Esse ponto de vista, por exemplo, não explica a repartição de


competências, como ela é criada, nem o que pode alterá-la. Do mesmo
4 Federalismo como Fenômeno semelhante à Separação de Poderes:
modo, quem cria a Constituição? Ou a própria União e os estados-
O Estado como um todo
membros? Não há como afirmar que a União é que cria tudo, pois não
As diferentes concepções de federalismo padecem de
há como um ente autônomo decidir a extensão da própria autonomia,
problemas, não dando conta satisfatoriamente de explicar essa forma de
nem a de outro ente com que esteja em relação de coordenação.
Estado. Surgem inúmeros problemas, como o raciocínio tautológico, o
Se for o Estado sujeito de Direito Internacional, abandona-se a fato de a União ser tanto igual quanto superior aos estados, a falta de
ótica externa, e passa-se a uma interna, já que a coletividade passa a um soberano interno, a confusão entre as óticas externa e a interna.
agir internamente, sem ter qualquer relação com a arena internacional – Deve-se, portanto, formular concepção diversa de federalismo, que dê
não age então como sujeito de Direito Internacional. Deve-se ter por conta desses mais variados fatores.
resposta um elemento interno do Estado, não se podendo usar o Estado
A solução para esse problema já foi indicada há muito tempo,
do ponto de vista do Direito Internacional para se explicar como se dá
ainda que isso não tenha sido notado pela doutrina em geral. Por vezes,
internamente a divisão de atribuições. São óticas distintas, que não
afirma-se que, no fim, federalismo e separação de poderes são o mesmo
podem ser simultaneamente utilizadas. Só se pode utilizar uma de cada
fenômeno, apenas pautado em critérios diversos. Assim, afirma-se que a
vez.
separação de poderes é uma repartição horizontal de funções, enquanto
Como se vê, tampouco essa conceituação de federalismo o federalismo é uma repartição vertical (MENDES, BRANCO, 2010,
consegue explicar satisfatoriamente o fenômeno, uma vez que carrega p.852; GAMPER, 2005, p.1308); que a “Federação nada mais é do que
consigo uma série de problemas insanáveis, como a confusão entre os a transplantação para o plano geográfico da tripartição de poderes, no
pontos de vista interno e externo, a ausência de entidade internamente
plano horizontal, de Montesquieu” (BASTOS; MARTINS, 1988, p.215);
soberana e a indefinição quanto ao que cria a Constituição e a repartição que a separação de poderes é descentralização orgânica do poder
de competências entre os entes. Deve-se, portanto, usar concepção político, enquanto o federalismo é sua descentralização espacial
distinta. (PIOVESAN, 2010, p.80); ou, menos diretamente, que “a
167 168

descentralização é também uma fórmula de limitação do poder. É Federalismo e separação de poderes, portanto, nada mais são
geradora de um sistema de freios e contrapesos propícios à liberdade” do que fenômenos muito semelhantes: são desconcentrações de poder,
(FERREIRA FILHO, 2011, p.79); ou, também de maneira não tão cada uma baseada em critérios distintos. Usando os termos de Piovesan,
direta, que enquanto a separação de poderes é uma separação entre enquanto esta é descentralização orgânica, aquele é descentralização
poderes, horizontal, o federalismo é uma entre os níveis de poder, espacial. Assim sendo, não há razão para não se dar a mesma estrutura
vertical (TAVARES, 2010, p.1115)51. aos dois.

Ora, se ambos são o mesmo fenômeno, pautado apenas em Desse modo, assim como o poder constituinte cria os poderes
critérios diversos, por que não se enxerga ambos do mesmo jeito? Na legislativo, executivo e judiciário, o Estado como um todo cria a União
separação de poderes entende-se que a tripartição clássica não basta por e os estados-membros, sendo hierarquicamente superior a eles. A União
si só para explicar os poderes estatais. Cria-se um superior, o poder e os estados, portanto, são autônomos, possuindo cada um uma esfera
constituinte, o qual cria e conforma os demais poderes. Por que não própria de competências. O Estado como um todo, por sua vez, é
aplicar então a mesma visão ao federalismo? Fazendo-se isso, os soberano, sendo internamente incontrastável e criando os demais. Ele é
diferentes entes da federação, como União e estados, passam a ser o todo, toda a estrutura estatal, sendo a União e os estados apenas parte
criados e conformados por uma instância superior, que pode ser dele, assim como as províncias são apenas parte do Estado onde se
denominada Estado como um todo. Assim como há uma cisão entre adota o unitarismo.
poder legislativo e poder constituinte, há outra entre União e Estado Deve-se ter claro em mente o que significa dizer que o Estado
52
como um todo . como um todo é soberano: a rigor, uma estrutura não pode ser soberana;
quando se afirma sua soberania, quer-se tão somente dizer que ele é a
51
“A democracia, como se sabe, implica, dentre outras coisas, o reconhecimento coletividade última do Estado, não havendo qualquer outra que lhe seja
da descentralização não entre os poderes (horizontal), mas também entre os
níveis de poder (vertical). O federalismo entra exatamente aqui, ne ste último
igual ou superior. A soberania é um poder que só pode pertencer a uma
ponto, possibilitando a distribuição do poder entre diversas camadas de poder” pessoa ou a um grupo de pessoas, não pode pertencer a uma construção.
(TAVARES, 2010, p.1115).
52
Essa seção é, em essência, um resumo muito limitado de um estudo que fizemos Essa pessoa ou grupo de pessoas são os verdadeiros soberanos, criando
sobre a questão em outro trabalho. Para maiores detalhes, bem como a abordagem de
questões relacionadas, mas aqui não levantadas, ver HOCHHEIM, 2014. o Estado e o mantendo. No Brasil, soberano é o povo.
169 170

Poder constituinte originário e Estado como um todo ligam-se visão. Isso vale mesmo para federalismos criados com a fusão de
claramente. Ao exercer o poder constituinte originário, o soberano Estados até então independentes: as soberanias dos diferentes Estados
refunda juridicamente o Estado, alterando a estrutura do Estado até se amalgamam no processo, deixando de existir; passa a haver apenas
então existente (ou cria um novo, caso não haja previamente um Estado, uma, nova, que então cria o novo Estado53. É o todo que cria as partes,
ou caso ocorra cisão territorial num Estado previamente existente). Mas, de modo que é o Estado como um todo que cria os entes da federação,
deve-se ressaltar, para se exercer o poder constituinte originário tem-se não o contrário54.
necessariamente uma organização mínima, um governo mínimo sobre a
A Constituição, a Constituição Federal, a norma última do
população de determinado território; não há como dissociar um do outro, ordenamento jurídico estatal é, na verdade, norma do Estado como um
já que exercer o poder constituinte originário implica, necessariamente, todo – e não da União. O poder constituinte originário, que a cria,
exercer certo poder sobre as pessoas de determinado lugar. O Estado pertence ao Estado como um todo, de modo que a própria Constituição
como um todo já existe nesse momento, ainda que um tanto quanto só pode ser um produto seu. A União não tem, no Brasil, constituição
desorganizado – ele existe, e exerce seus poderes, só que sem uma
53
Os estados até então existentes deixam de existir, não vinculando em nada o novo
regulação constitucional. Só se encontrará plenamente organizado após Estado criado. Este pode mesmo ignorar suas instituições e territórios,
reconfigurando-os, criando novas divisões, etc. Prova disso é a reunificação alemã: A
a efetiva criação da Constituição. Em se optando pela forma federal de Alemanha Oriental, unitária, juntou-se à Ocidental, federal, mas aquela não passou a
ser um estado-membro desta. Seu território foi dividido em diferentes partes, as quais
Estado, criam-se a União e os estados-membros, os quais se subordinam
passaram a ser estados-membros da federação alemã.
54
diretamente ao Estado como um todo. Na formação de federalismo através da união de Estados até então independentes
diz-se tradicionalmente que estes perdem sua soberania mas mantêm sua autonomia.
Essa afirmação, a rigor, não é correta. Só se mantém o que já se tinha desde o início,
Com isso, fica claro que a criação de um Estado federal se dá de modo que o que se afirma é que os estados sempre tiveram essa autonomia. Isso
sempre de cima para baixo; afinal, o todo, o Estado como um todo cria não é possível.
A diferença entre soberania e autonomia é de qualidade, não de quantidade, de modo
todos os entes. A criação de um Estado só pode se dar de cima para que a soberania não é uma espécie de autonomia ampliada, nem esta se encontra
incluída no conceito de soberania. Soberano é o poder que define a própria esfera de
baixo, uma vez que a soberania é una e indivisível. Caso se admitisse atribuições; autônomo, o que tem sua esfera de atribuições determinada por um poder
exterior a ele, como visto. Trata-se de conceitos completamente incompatíveis, não
uma construção de baixo para cima, estar-se-ia também admitindo que podendo nada ser, ao mesmo tempo, autônomo e soberano; é-se um ou outro, ou
nenhum, mas nunca ambos. O que ocorre é que os Estados até então soberanos
o Estado foi formado por outras entidades, as quais poderiam, a perdem sua sua soberania e deixam de existir, sendo os estados-membros criados pela
qualquer momento, desfazê-lo. A soberania é incompatível com essa nova federação autônomos. Os estados-membros não mantêm sua autonomia, mas a
recebem do novo Estado.
171 172

própria. Ela poderia tê-la, isso seria juridicamente possível, mas se configuração é apenas que os governos central e locais tenham cada um
optou no Brasil (assim como se costuma fazer pelo mundo) em fazer sua esfera própria de competências, constitucionalmente definida 57 .
com que a constituição do todo organizasse diretamente a União, não Basicamente, essa é a visão que propomos para o Estado federal. Com
dando margem à existência de uma constituição da União55. base nela, definiremos a posição do município no Brasil.

Sendo a coletividade última, o Estado como um todo cria todas


as demais, fundando-as juridicamente. Elas são emanações suas, são
5 A Posição do Município no Federalismo Brasileiro
partes do todo configurado por ele. Desse modo, ele cria a União e os
Como visto, federalismo é fenômeno no qual uma coletividade
estados, ambos autônomos, cada um com sua esfera própria de
superior, soberana, o Estado como um todo, cria outras coletividades, a
atribuições. Deve-se notar que não há forma que deva ser seguida pelo
União e os estados, tendo cada uma delas seu campo próprio de
Estado como um todo: ele tem total liberdade para formular instituições
atribuições constitucionalmente definido. Resta definir o status do
e coletividades como desejar. A decorrência lógica disso é que o
município no Brasil.
federalismo é fenômeno essencialmente flexível, plástico, dinâmico,
podendo assumir as mais variadas formas 56 . O essencial para sua Segundo a Constituição, o município é diretamente
subordinado a ela mesma, tendo um campo próprio de competências

55 responsabilidade fiscal (art. 169, § 4º, CF), hipóteses nas quais ela pode legislar
Quanto aos estados no Brasil, optou-se pelo contrário, como geralmente se faz: eles
estabelecendo deveres a outros entes.
podem ter suas próprias constituições. Mas essa é apenas decisão política contingente, 57
A rigor, a visão aqui proposta não é de todo nova. Através de outro caminho,
não é essencial ao federalismo que os estados-membros tenham suas próprias
partindo não da semelhança entre separação de poderes e federalismo, e sim da
constituições; assim como tradicionalmente faz com a União, o Estado como um todo
descentralização e da coordenação entre diferentes esferas jurídicas, constatamos que
pode também optar por organizar diretamente os estados, também não dando margem
Kelsen a defendeu no passado, ou defendeu algo muito similar (Allgemeine
à existência de constituições estaduais. Ou pode, naturalmente, optar por não
Staatslehre, de 1925). O autor defendia então que a federação compõe-se de três
organizar diretamente nem União nem estados, permitindo com que ambos tenham
esferas: a do todo, a da União e a dos estados. Assim, existem ordens jurídicas
suas constituições. Isso tudo, frise-se, é sempre contingente, podendo assumir distintas
distintas, sendo que a superior, a da federação, a do todo, cria e condiciona as demais,
formas – de modo que nem a existência de constituição estadual nem a capacidade
União e estados. Já em Allgemeine Staatslehre, de 1925, o autor delineava essa
estadual de auto-organização são essenciais ao federalismo.
56 estrutura. Para uma análise mais detalhada sobre os posicionamentos de Hans Kelsen
O que se reflete, por exemplo, na repartição de competências. Ela pode ocorrer das
acerca do federalismo, ver HOCHHEIM, 2014, p.87-99. Por alguma razão que não
mais variadas formas: concedendo-se a competência remanescente aos estados;
pudemos rastrear, contudo, o autor mudou de posicionamento ao longo da vida,
concedendo-se-a à União; criando-se competência concorrente ou exclusiva;
defendendo posteriormente concepção diversa, apresentada em General Theory of the
determinando-se que um ente pode legislar de modo a vincular outros entes, como nos
Law and the State.
casos da competência da União para legislar sobre legislação tributária (art. 146, CF) e
173 174

constitucionalmente definidas, ou, em outras palavras, autonomia variações, tendo não dois, mas três tipos de entes: a União, os estados e
constitucional, oponível tanto aos estados quanto à União; agindo os municípios58.
qualquer um desses dois dentro da autonomia municipal, esta resultará Os argumentos apresentados contra a caracterização do
violada, sendo inválido o ato estadual ou federal. Ora, como é que se município como entidade da federação não procedem. Vejamos o
pode não o considerar membro da federação? É clara sua igualdade porquê.
jurídica em relação à União e aos estados, bem como seu campo próprio
Não há razões para se exigir que uma entidade tenha
de atribuições exclusivas.
representação no Congresso Nacional (ou órgão equivalente) para que
O federalismo é fenômeno extremamente amplo, flexível, não seja ente da federação. Isso nada mais é do que conferir ao federalismo
estando preso a determinada fórmula previamente dada. Plasticidade na uma forma excessivamente rígida. Tomemos, por exemplo, os Estados
sua configuração é sua regra – isso há de se ter sempre em mente. Unidos da América, primeira experiência histórica de Estado federal, e
Ora, mesmo a separação de poderes é flexível, podendo-se façamos com eles um exercício mental. Imagine-se um outro Estado
criar estruturas diferentes para ela – não se está preso apenas ao modelo federal, idêntico aos Estados Unidos, mas distinto num detalhe:
clássico dos três poderes. E o Brasil é exemplo disso, seja pela ausência de representação dos estados-membros no Congresso. Deixaria
Constituição atual, onde se discute o status do Ministério Público e sua ele, com isso, de ser um Estado federal? Deixar-se-ia de ter dois
configuração ou não como um “quarto poder”, seja pela Constituição do governos num mesmo território, juridicamente iguais, cada um atuando
Império, que claramente previa um quarto poder, o poder moderador. numa área própria, livre da interferência do outro? Faria sentido
considerar esse Estado como não sendo federal só por causa da ausência
E, assim como não é necessário haver apenas os três poderes
de representação dos estados no Congresso? Parece-nos que não.
clássicos, podendo haver variações, pode haver também mais tipos de
entes no federalismo – sendo esse o caso do município na ordem A representação dos governos locais no Congresso não é
jurídica brasileira atual. O federalismo brasileiro apresenta suas necessária à configuração do federalismo – tampouco à caracterização

58
Além do DF, é claro, o qual possui tanto as competências dos estados quanto a dos
municípios (com exceção de algumas atribuições mais ligadas ao exercício da força,
as quais se encontram na esfera de atribuições da União).
175 176

deles como entes da federação, portanto. O que ocorre aqui é um apego foi simples racionalização do trabalho. O federalismo, deve-se lembrar,
demasiado à experiência histórica, iniciada pelos Estados Unidos, tendo é fenômeno essencialmente plástico, podendo assumir diversas
as federações subsequentes a copiado. Mas, deve-se notar, pode-se a configurações.
qualquer momento escolher modelo diverso, moldando-se federalismo Igualmente não prospera o argumento concernente à
diferente. intervenção no município ser feita pelo estado. Mais uma vez, pode-se
Se a representação dos governos locais não é essencial ao dizer que houve escolha política com o sentido de racionalizar o
federalismo, nem à configuração desses governos como entes da trabalho: em vez de se sobrecarregar o presidente da República com a
federação, não há por que se exigi-la do município para que ele seja realização desse tipo de intervenção, delegou-se a função aos
considerado ente da federação. governadores. Além disso, deve-se ponderar que é a Constituição
Federal que configura a federação, ocorrendo a intervenção no
Da mesma forma, não procede o argumento de que a criação e
município nos moldes por ela definidos. Se é a própria Constituição que
demais alterações territoriais do município dar-se-ão por lei estadual.
regula essa intervenção, como é que pode o município não ser ente da
Deve-se ressaltar que os estados são criados e têm suas alterações
federação59?
territoriais feitas por lei federal, mas, a despeito disso, não se diz que
eles não são membros da federação; por que, então, defender-se o
59
Ademais, ao realizar a intervenção, o governador age não como órgão do estado-
inverso no que tange aos municípios? De qualquer forma, não fica claro membro, mas como órgão do Estado como um todo – da mesma forma que o
por que razão o fato de lei estadual realizar essas medidas desmentiria o presidente da República, ao realizar intervenção federal, também age como órgão do
Estado como um todo. O Estado como um todo tem seus próprios órgãos, como o
status do município como ente da federação; eles, afinal, não deixam de Congresso Nacional ao emendar a Constituição. Em virtude das limitações desse
artigo, remetemos a questão para outro trabalho nosso, HOCHHEIM, 2014, p.40-45,
ter um campo próprio de atribuições, nem deixam de ter sua existência p.98-99. Numa síntese muito apertada, pode-se dizer que Hans Kelsen entendia que os
órgãos ligados à intervenção federal na Constituição de Weimar, quer para determinar
constitucionalmente assegurada com isso. A questão, no fim, é de se ocorreu hipótese de intervenção, quer para executá-la, eram órgãos do todo, mesmo
que, em outras circunstâncias, agissem como órgãos da União. Agem como órgãos do
escolha política: em vez de se atravancar a pauta do Congresso com a todo, uma vez que o que está em jogo é a Constituição de Weimar, a norma última do
criação e demais alterações territoriais envolvendo cada um dos Estado, que é a Constituição do todo. Concordamos com a visão do austríaco (embora
já fôssemos da opinião de que o Congresso e o tribunal responsável por interpretar a
milhares de municípios brasileiros, preferiu-se deixar cada Assembleia Constituição agissem como órgãos do todo por vezes, não havíamos atentado para o
papel do executor da intervenção federal até então; dada a solidez da argumentação,
Legislativa se encarregar dos municípios em seu território. O que houve convencemo-nos dela) e a adaptamos ao caso brasileiro, onde tanto o presidente
177 178

O fato de os julgamentos de litígios envolvendo os municípios União. Nenhuma coletividade, a rigor, tem território exclusivo no
não se dar originariamente no STF pode ser explicado com o mesmo federalismo, ele é sempre compartilhado por dois ou mais entes.
raciocínio da racionalização do trabalho. Para não se aumentar a carga Quanto ao fato de o texto constitucional não usar expressões
de trabalho e de processos do STF, que já é considerável, optou-se por como unidade federada para se referir aos municípios, pode-se levantar
não fazê-lo julgar originariamente litígios entre entidades da federação que o próprio autor que lança essa objeção entende que nem todas as
nos quais os municípios sejam um dos pólos da lide. Mas isso em nada entidades autônomas da federação são entidades federadas: “A União é
vulnera sua autonomia constitucional, que continua existindo, com
a entidade federal formada pela reunião das partes componentes,
campo próprio de atribuições, de modo que o argumento não procede. constituindo pessoa jurídica de Direito Público interno, autônoma em
O federalismo é fenômeno flexível, deve-se lembrar, não se relação às unidades federadas (ela é unidade federativa, mas não é
prendendo a moldes rígidos. Dessa forma, não há o menor problema em unidade federada) […]” (SILVA, 2009, p.493, grifo nosso), de modo
os municípios não terem poder judiciário próprio. Não é por causa disso que o uso dessa expressão não é o decisivo para se considerar uma
que eles deixarão de ter uma esfera própria de competências coletividade como entidade da federação. É claro, a União pode ser
constitucionalmente delimitada, própria dos entes da federação. Desse exceção, já que ela é o governo central, não um governo local,
modo, o argumento de que a inexistência de judiciário municipal obsta diferentemente de estados e municípios. Mas se todos eles (União,
à configuração dessa coletividade como ente da federação não tem estados, municípios, Distrito Federal) são entidades autônomas,
razão de ser. constituindo a República Federativa do Brasil (SILVA, 2009, p.493),
para que distingui-los? Só por causa de uma ideia de formação de
Tampouco parece haver problema no fato de estados e
federalismo pela associação de entidades? E como fica no caso de uma
municípios compartilharem os mesmos territórios; a União e os estados
federação formada pela mudança de forma de um Estado previamente
compartilham, afinal, o território nacional. Toda federação tem, por
existente? Tem razão de ser a distinção?
definição, entidades superpostas, nem que sejam apenas os estados e a
Ademais, deve-se reconhecer que o texto constitucional nem
sempre é de todo coerente. Podem-se mencionar os artigos primeiro e
quanto os governadores são responsáveis por intervenções constitucionalmente
previstas. dezoito: ora a União é declarada ente da federação, ora ela é omitida do
179 180

rol de entes. Ademais, pela literalidade do texto constitucional, sequer infraconstitucionais do Estado, uma vez que faltam as competências
existe poder constituinte derivado no Brasil, uma vez que não há municipais. Só se pode falar de federalismo de segundo grau se as
qualquer menção expressa a esse termo ou a similar. O procedimento de competências do ente local territorialmente menor forem parte das
alteração da Constituição está previsto no art. 60, que faz parte do competências que a Constituição do todo concede ao ente local
capítulo do poder legislativo. Desse modo, não há razão para se territorialmente maior, de modo que este é, na verdade, uma federação
entender que esse detalhe seja decisivo no que tange à caracterização ou dentro de uma federação. Não sendo este o caso, o município é ente no
não do município como ente da federação. O fundamental não é tanto o mesmo plano que estados e União.
termo que se usa para designar o município, mas a estrutura jurídica que Pode-se concluir, portanto, que o município é ente da
a Constituição a ele concede. federação no Brasil. Tal qual os estados-membros e União, ele é criado
De qualquer forma, como visto, a federação é criada de cima pelo Estado como um todo através da Constituição, a qual lhe concede
para baixo e não o contrário. Desse modo, não há por que se falar de esfera de competências próprias, não podendo os demais entes nela
“federação de estados” ou “federação de municípios”. Ambos são entes interferir. Por ser o federalismo elemento essencialmente flexível,
igualmente criados pelo Estado como um todo no Brasil, de modo que características como ausência de representação no Congresso Nacional
não são nem os estados nem os municípios que formam o Estado e ausência de poder judiciário próprio não são óbice à sua
brasileiro. caracterização como tal.

Deve-se mencionar que também não procede a posição de que


existe no Brasil um “federalismo de segundo grau”, no qual municípios 6 Considerações finais
seriam entidades internas aos estados-membros. De acordo com a
A concepção tradicional de federalismo tem uma série de
Constituição, aqueles estão no mesmo plano que estes, tendo cada um
problemas dos quais não consegue dar conta, devendo ser substituída.
competências próprias e oponíveis ao outro; as competências
Não por acaso, vem se consolidando na doutrina brasileira concepção
municipais existem em paralelo em relação às estaduais, não sendo
diversa de federalismo, a qual propugna que a União é autônoma e que
mera parte delas. Prova disso é que a soma das competências da União
a República Federativa do Brasil é o todo, sendo formada pelas
e as dos estados-membros não resulta, no Brasil, em todo os poderes
181 182

entidades autônomas e sendo pessoa jurídica de Direito Internacional. pelo município, através de instrumentos como o plano diretor, tendo ele
Essa tese, todavia, tampouco logra êxito, uma vez que contém seus ampla liberdade para essa regulação. Essa competência municipal,
próprios problemas. Outra concepção se faz necessária. todavia, não exclui a competência da União para traçar normas gerais
sobre o tema. A repartição de competências, afinal, pode se dar das
Com base na semelhança entre federalismo e separação de
mais variadas formas, e o Estado como um todo, através da
poderes, sustenta-se que, tal qual o poder constituinte na separação de
Constituição, determina que diretrizes do tema sejam traçadas pelo
poderes, existe uma coletividade superior no federalismo, denominada
governo central.
Estado como um todo. Este, soberano, cria e conforma União e estados,
autônomos.

Assim sendo, o federalismo é fenômeno imensamente flexível, Referências bibliográficas


podendo tomar as mais diversas formas. Umas das variações possíveis é BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à
a existência de mais tipos de entes – como o município no Brasil, que se Constituição do Brasil (Promulgada em 5 de outubro de 1988). V. 1,
São Paulo: Saraiva, 1988.
submete diretamente à Constituição e tem suas atribuições criadas e
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988).
protegidas por ela. Os municípios, tal qual os estados e a União, tem Disponível em:
suas próprias esferas de atribuições, nas quais outros entes não podem <www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao.htm>.
Acesso em: 04 abr 2015.
interferir. Como o federalismo é fenômeno essencialmente variável,
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional
características como ausência de representação dos municípios no Tributário. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
Congresso ou ausência de poder judiciário próprio não são óbice à sua DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 31.
caracterização como ente da federação. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição
Sendo o município ente da federação, chega-se à conclusão de Brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, v. 1, 1990.
que ele possui igualdade jurídica em relação à União e aos estados, não ____________. Curso de Direito Constitucional. 37. ed. São Paulo:
podendo eles intervir no seu campo de atribuições. Temas como gestão Saraiva, 2011.

urbana e ordenamento das cidades devem ser precipuamente regulados


183 184

GAMPER, Anna. A “Global Theory of Federalism”: The Nature and


Challenges of a Federal State. German Law Journal. Bonn, V. 06, N. 10,
2005, p.1297-1318.
HOCHHEIM, Bruno Arthur. Análise Jurídica do Estado Federal: Uma
tentativa de conceituação do federalismo. Disponível em:
<https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/124809> Acesso
em: 04 abr 2015.
KELSEN, Hans. Allgemeine Staatslehre. Berlin: Verlag von Julius
Springer, 1925.
MEIRELLES, Hely Lopes; ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE
FILHO, José Emmanuel. Direito Administrativo Brasileiro. 38. ed. São
Paulo: Malheiros Editores, 2012.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
Eixo
MENEZES DE ALMEIDA, Fernanda Dias. Comentário ao artigo 18. In:
CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.;
STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. NOVAS IDENTIDADES URBANAS E CONSTRUÇÃO DE
São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.
SUBJETIVIDADES
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 26. Ed. São Paulo:
Atlas, 2010.
PINTO FERREIRA, Luiz. Comentários à Constituição Brasileira. 1.
vol. São Paulo: Saraiva, 1989.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional
Internacional. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 32.
ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 8. ed., São
Paulo: Saraiva, 2010.
185 186

PICHAÇÃO EM JOINVILLE-SC E A SUA (IN)ADEQUAÇÃO cada dia mais presente nos espaços urbanos, atribuindo-lhes uma nova
SOCIAL imagem que a critério de alguns faz parte dessa identidade e, para
outros, polui o ambiente visual e não pode ser considerado parte da
estética da cidade. A disputa por um espaço nos muros e nas paredes de
Denis Fernando Radun60
grandes edifícios tornou-se cada vez mais acirrada, e em Joinville-SC
Patricia Dela Justino61
tal realidade não poderia ser diferente.

Resumo: A pichação se faz cada dia mais presente nos espaços Joinville está situada na região norte de Santa Catarina, sendo
urbanos. A concorrência por um espaço nos muros e nas paredes de conhecida como a cidade dos príncipes, das flores, das bicicletas, da
grandes edifícios tornou-se cada vez mais disputada. Em Joinville-SC
tal realidade não é diferente. O objetivo do presente artigo é investigar ordem social; foi colonizada por europeus, e seus cidadãos são
a relação de tal conduta com a teoria da adequação social e de que vocacionados às artes, à cultura e prezam pela preservação do
modo esse conflito pode ser interpretado à luz do direito penal diante
das características de ordem e disciplina atribuídas ao povo patrimônio histórico.
joinvilense.
Diante desse cenário, importa questionar de que modo são
Palavras-chave: pichação; teoria da adequação social; espaço
urbano. acionados os mecanismos do sistema penal para reagir ao fenômeno da
pichação em Joinville. Considerando os discursos ordeiros, seria
possível falar em uma adequação social da conduta de pichação?
1 Introdução
A presente pesquisa se encontra em fase inicial e tem como
Nas últimas décadas, diante do crescente processo de
objetivo principal identificar de que modo a conduta da pichação
industrialização e o surgimento de cidades com novas identidades,
movimentou a máquina punitiva do Estado em Joinville, diferenciando-
ligadas a esse novo modelo de produção, a pichação vem se tornando
a do grafite e investigando sua relação com a aplicabilidade da teoria
jurídica da adequação social.
60
Especialista em Direito Constitucional. Professor do curso de Direito da
UNISOCIESC. E-mail: denisradun@gmail.com. Telefone: (47) 9979-8545. Currículo Na primeira parte deste artigo, será demonstrada a diferença
Plataforma Lattes disponível em: <http://lattes.cnpq.br/9071956455479643>.
61
Acadêmica do curso de Direito da UNISOCIESC. E-mail: conceitual entre a pichação e o grafite e alguns aspectos relevantes
patricia.djustino@gmail.com. Telefone: (47) 9901-6900.
187 188

acerca da alteração legislativa ocorrida em 2011 com a edição da Lei n. típica, ou seja, não é mais um crime contra o meio ambiente. Para tanto,
12.408 que descriminalizou a conduta do grafite, por intermédio do foram estabelecidos alguns requisitos que devem ser obedecidos,
Projeto de Lei n. 709/2007, proposto pelo deputado Geraldo Magela. cumulativamente. Assim estabelece o parágrafo segundo do artigo 65
da Lei n. 9.605/1998:
A segunda parte apresentará algumas experiências acerca do
modo como a pichação é retratada em Joinville e destacará a veiculação Art. 65. Pichar ou por outro meio conspurcar edificação
ou monumento urbano:
de uma ampla campanha da Prefeitura Municipal contra os atos de Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
[...]
“vandalismo”, agenciando o pichador como protagonista, assim como a § 2o Não constitui crime a prática de grafite realizada com
o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado
opinião de alguns leitores dos jornais locais acerca de matérias que mediante manifestação artística, desde que consentida
possuem a pichação como foco. pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou
arrendatário do bem privado e, no caso de bem público,
com a autorização do órgão competente e a observância
Por fim, far-se-á uma análise de das experiências observadas das posturas municipais e das normas editadas pelos
órgãos governamentais responsáveis pela preservação e
relacionando-as com a teoria da adequação social, criada por Hans conservação do patrimônio histórico e artístico nacional.
Welzel e debatida por alguns doutrinadores, como Eugênio Raúl Tal alteração legislativa foi resultado do Projeto de Lei n.
Zaffaroni, Juarez Cirino dos Santos, entre outros. 706/2007, proposto pelo deputado Geraldo Magela. Esse projeto de lei,
além de descriminalizar a conduta do grafite, objetivou penalizar os
comerciantes que vendessem tintas do tipo aerossol para menores de
2 Pichação versus grafite
dezoito anos, considerando que esses seriam os principais autores do
A Lei de Crimes Ambientais (Lei n. 9.605/1998), em seu delito de pichação, conforme informação colhida do próprio endereço
artigo 65, durante treze anos, criminalizou de maneira irrestrita aquele eletrônico da Câmara dos Deputados62.
que pichava, grafitava ou por outro meio conspurcava edificação ou
monumento urbano.
62
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei n. 706/2007. Disponível em:
Este artigo foi alterado pela Lei n. 12.408, de 25 de maio de <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=86EBE
2011. De acordo com a nova redação, grafitar não é mais uma ação B7FF8A519B01C1534702FE7350E.proposicoesWeb2?codteor=471793&filename=T
ramitacao-PL+706/2007>. Acesso em 03 abr. 2015.
189 190

No documento anexo ao projeto de lei, o relator, deputado Assim, é possível identificar o grafite como um termo remetido
Geraldo Ronow, em seu voto, destacou que: a pintura feita em paredes e muros; é visto como uma arte urbana, uma

O autor do Projeto de Lei nº 706/2007, ilustre Deputado manifestação artística em espaços públicos, com um viés crítico ou não,
Magela, oportunamente age no sentido de coibir a
para determinadas situações que acometem o ambiente urbano.
poluição visual nos centros urbanos. As lamentáveis
pichações que todos os dias vemos nos muros e prédios Todavia, essa identificação, aparentemente, aproxima-se do significado
são um desrespeito à paisagem urbana, à propriedade e à
Lei. de pichação, que será abordado a seguir.
No mais das vezes, são ações promovidas por
adolescentes, muitos dos quais lamentavelmente A pichação, por sua vez, é interpretada comumente de modo
envolvidos com gangues, se não violentas, no mínimo
delinqüentes. Tendo esse fato em consideração, propõe o pejorativo, como um ato de vandalismo63, no qual a questão estética
Deputado que se proíba a venda de tintas em embalagens
fica em segundo plano. Possivelmente, o fator mais importante para
spray a menores de idade.
O relator destaca, ainda, que a “redação diferencia pichação tratar a pichação desse modo seja o fato de não haver anuência do

(tida como ilegal) de grafite (manifestação artística com o proprietário do bem ou autorização de órgão público ou responsável

consentimento do proprietário da edificação)”. Essa afirmação nos pela conservação e preservação do patrimônio histórico e artístico

instiga a identificar de que modo se pode individualizar e diferenciar as nacional que recebeu a intervenção. Também, a pichação, do mesmo

condutas de pichação e de grafite. modo que o grafite, pode estar associada ao objetivo demonstrar a
insatisfação de alguns grupos com determinadas questões sociais,
De acordo com o Dicionário Aurélio (2009, p. 997), a grafite
servindo de veículo para demonstração da insatisfação, além de
refere-se a “palavra, frase ou desenho, geralmente de caráter jocoso,
problematizar as disputas pelo direito à cidade, especialmente a
informativo, contestatório ou obsceno, em muro ou parede de local
conquista dos espaços urbanos.
público”. Para corroborar com a definição da palavra, Rodrigues (2011,
p. 429) afirma que o grafite é “uma inscrição ou um desenho pintado ou O Dicionário Aurélio (2009, p. 1.555) define pichação como

gravado sobre um suporte que não é normalmente previsto para este “dístico, em geral de caráter político, escrito em muro de via pública” e

finalidade, como paredes, muros e outras superfícies externas de


63
De acordo com o Dicionário Aurélio (2009, p. 2034) vandalismo é “destruição
edificações”. daquilo que, por sua importância tradicional, pela antiguidade ou pela beleza merece
respeito”.
191 192

pichar como “escrever (dizeres políticos, mensagens cifradas de Nesse contexto, acerca do objeto material do referido delito,
gangues, etc.) em muros ou paredes”. Conforme Moraes (2005): imperioso trazer à baila a lição de Rodrigues (2011, p. 425-426):

Fica claro que a origem da palavra pichação guarda É qualquer edificação ou monumento urbano. Edificação
estreita relação com o uso de mensagens escritas e o é edifício, construção, casa, prédio. Monumento é obra ou
grafite refere-se a desenhos. Logo, podemos afirmar que construção que se destina a transmitir à posteridade a
pichação é a utilização de escrita de qualquer espécie memória de fato ou pessoa notável. Urbano é aquilo que
(tinta ou relevo) para veicular mensagens ou palavras em se situa na cidade e não na zona rural.
paredes, muros ou qualquer fachada, seja com finalidade [...]
de protesto, ou não. Já o grafite seria uma expressão O que o legislador busca proteger aqui, são as edificações
artístico-visual (plástica ou não) que utiliza um conjunto comuns e os monumentos situados a céu aberto em
de palavras e/ou imagens a fim de transmitir uma logradouros públicos, tais como bustos, esculturas,
mensagem reflexiva. estátuas, obeliscos, arcos, chafarizes, marcos e outros, da
ação desfigurada de vândalos denominados pichadores,
Conforme o artigo 65 da Lei n. 9.605/1998, com a redação como também de quaisquer outras formas de
conspurcação.
alterada pela Lei n. 12.408/2011, constitui crime o ato de “pichar ou por
outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano”, visando com Assim, o objeto material do crime de pichação está relacionado
isso a proteção ao ordenamento urbano, objeto jurídico tutelado pela aos espaços situados na cidade, excluindo-se desse crime os escritos
referida norma, como preceitua Moraes (2005). O agente deve agir com realizados no ambiente rural, conforme definição da norma penal.
o dolo de conspurcar, sujar, manchar o patrimônio urbano, não elidindo Por fim, conforme Rodrigues (2011, p. 431), é de
o crime a beleza ou o objeto escrito, uma vez que tal ato por si só é conhecimento comum que as pichações são geralmente praticadas por
considerado crime ambiental. menores de dezoito anos e, com a finalidade de tentar coibir
Nesse ínterim, importante relacionar o conceito de bem indiretamente a prática dessa conduta criminosa, a Lei n. 12.408/2011
jurídico, que conforme lição de Bitencourt (2015, p. 43-44) seria o “fio também criou uma infração administrativa que proíbe a venda de tintas
condutor para a fundamentação e limitação da criação e formulação dos em embalagens do tipo aerossol a menores de dezoito anos. Dessa
tipos penais; por outro lado, auxilia na aplicação dos tipos penais forma, apenas maiores de dezoito anos mediante apresentação do
descritos na Parte Especial, orientando a sua interpretação e o limite no documento de identidade é que poderá adquirir tal produto. Ainda, a
âmbito da punibilidade”. nota fiscal de venda deverá ter a identificação do comprador.
193 194

Compete mencionar também que tal crime é de ação penal Penal). Dessa forma, verifica-se a ausência de publicização de dados
pública incondicionada, conforme previsão expressa no artigo 26 da Lei oficiais acerca de tais crimes ambientais.
n. 9.605/1998. O crime de dano tem como bem juridicamente protegido o
Desse modo, fica amplamente demonstrada com a alteração patrimônio, seja ele público ou privado, móvel ou imóvel. Para que se
legislativa anteriormente discutida, a vontade do legislador em punir os consume esse crime é necessário o dolo de danificar, o indivíduo tem
pichadores e etiquetá-los como os vândalos da cidade, pouco que agir com o ânimo de destruir, inutilizar ou deteriorar a coisa alheia,
importando, inclusive, se o proprietário do espaço pichado sentiu-se sendo sua conduta determinada tão somente para essa finalidade.
ofendido ou incomodado com a pichação, prevendo a ação penal Diante disso, fica evidente que os tipos penais apresentados
pública incondicionada para referidas condutas tidas como crime. destinam-se a proteger bens jurídicos completamente distintos. O
Com o debate de tais aspectos e das inovações trazidas pelo primeiro, previsto no artigo 163 do Código Penal, tem por objetivo
legislador, caberá a análise do referido crime na cidade de Joinville-SC, tutelar e proteger o patrimônio da vítima, seja público ou privado;
objeto deste estudo. enquanto o segundo, tipificado pelo artigo 65 da Lei n. 9.605/1998, tem
por finalidade preservar o ordenamento urbano, direito difuso
(MORAES, 2005).
3 Pichação em Joinville-SC
É tão verdade que a pichação é considerada um ato de
Ao se iniciar a pesquisa, em conversa com agentes da Polícia
vandalismo, dissociada da aura artística que paira sobre o grafite, que
Civil de Joinville-SC, houve a informação de que não há campo próprio
foi objeto de campanha pela Prefeitura Municipal de Joinville em
no sistema de registro dos boletins de ocorrência para o crime de
setembro de 2014, com o objetivo de conscientizar a população acerca
pichação, diante do baixo número de notícias desses fatos, sendo
da depredação do patrimônio público e privado, sendo amplamente
impossível se realizar um levantamento estatístico, pois, segundo os
veiculada na mídia local, em rádio, televisão, outdoors e outros
agentes, as práticas relacionadas à pichação são registradas em boletins
materiais publicitários, com a seguinte imagem:
de ocorrência classificadas como crime de dano (artigo 163 do Código
Figura 1 – Imagem da campanha contra o vandalismo
195 196

Não importa se têm idade para votar ou se já são maiores de idade.


Brasil, País da impunidade!”. A leitora Ana Raizer, em 28 de agosto de
2014, disse que “pichar é crime contra o patrimônio, seja ele público ou
privado. E quem picha é criminoso, bandido, e tem que ser tratado
como qual”. Ainda, em 28 de setembro de 2014, o leitor Diogo
Fonte: Página Portal Joinville64 escreveu o seguinte comentário acerca do episódio: “Os policias
poderiam pichar esses vagabundos todos para aprender, bando de
Todavia, conforme mencionado anteriormente, não há dados
marginais sem cultura.”
oficiais que apontem para a necessidade de tal campanha estimuladora
da movimentação da máquina punitiva estatal, por intermédio do 190. Tal campanha foi criticada em um blog joinvilense, o Chuva
Ademais, sequer há campanha policial no mesmo nível que o Ácida, pelo escritor Silveira (2014), principalmente no tocante aos
promovido pela Prefeitura Municipal de Joinville. gastos exacerbados com a produção e a promoção de tal veiculação na
mídia local. Ainda, criticou-se que seja esta a prioridade do governo,
Dois meses antes do início da referida campanha, o jornalista
uma vez que, na época em que a Prefeitura Municipal lançou a
Alves (2014), por intermédio do jornal Gazeta de Joinville, jornal local
campanha de conscientização contra todos os atos de vandalismo,
de considerável alcance à população, veiculou uma notícia de três
Joinville-SC encontrava-se às escuras, com diversos postes de
adolescentes que foram apreendidos após picharem paredes e muros de
iluminação pública com suas luzes queimadas, várias ruas esburacadas,
residências e estabelecimentos comerciais na região do bairro Iririú da
obras paradas, entre diversos outros problemas.
cidade objeto deste estudo.
Tal publicação rendeu diversos comentários, alguns apoiando a
Dos comentários pronunciados na referida matéria, pode-se
opinião do escritor da referida matéria, e outros emitindo críticas
destacar o do leitor Hito, em 15 de julho de 2014 que disse que
contrárias, fazendo pouco caso das péssimas condições em que a cidade
“deveriam fazer com que os vagabundos bebessem o que sobrou na lata.
se encontrava e apoiando uma intervenção ainda maior para os

64
pichadores.
Disponível em: <http://www.portaljoinville.com.br/v4/noticias/2014/09/prefeitura-
promove-campanha-contra-o-vandalismo>. Acesso em set. 2014.
197 198

Alguns dias após a divulgação da campanha, mais


precisamente em 24 de setembro de 2014, o jornal “A Notícia” publicou
matéria acerca de um vídeo postado nas redes sociais, por uma pessoa
que filmou a ação de um pichador na área leste da cidade.

E, mais uma vez, apareceu um comentário, dessa vez de um


leitor chamado Roberto Silva, o qual disse: “o que fazer se a polícia
civil e os pais não fazem nada? Fica de tocaia e mete bala!!! Proteja seu
patrimônio! Uma coisa é certa, isso tem que acabar, por bem ou por Fonte: Arquivo Pessoal65

mal. E tem vereadorzinho que defende estes vagabundos. Isso não é arte A partir dessas considerações, de que modo a lesividade do ato
e é bem diferente de grafite.”. pode ser interpretada à luz da teoria da adequação social? Seria possível
Diante de todos esses comentários elencados acima, verifica-se aproximar toda essa discussão da teoria da adequação social? É o que se
que a pichação é considerada pelos leitores como inaceitável, chegando- discutirá no próximo item.
se a sugerir que a matéria fosse tratada em nível de legislação municipal
ou que na repreensão deveria ser empregada violência, embora o
4 A (in)adequação social da prática de pichação
legislador federal tenha considerado a conduta como de menor
potencial ofensivo e estabelecido diversos benefícios criminais para De um lado, vários são os comentários de pessoas que se

aqueles que picham a cidade. mostram totalmente contrárias à ação dos pichadores, e a maioria delas
rotulando-os como marginais. Aparentemente, tal conduta não é aceita
O debate acerca do caráter criminal atribuído à prática da
pela maior parte da sociedade joinvilense, que até exterioriza a vontade
pichação também é verificado por quem pratica esses atos,
de aplicação de penas mais rígidas e severas para tal conduta.
manifestando seu posicionamento por meio de pichações, conforme se
verifica na figura abaixo:
65
Fotografia 1: Pichação em Joinville-SC Fotografia tirada em 13 de fevereiro de 2015 na Rua Dr. Plácido Olímpio de
Oliveira, n. 904, bairro Bucarein, Joinville-SC.
199 200

Por outro lado, não é possível identificar registros de A Lei n. 12.408/2011, que alterou o artigo 65 da Lei n.
ocorrências policiais que possam repercutir na abertura de um processo 9.605/1998, retirando do tipo penal o ato de grafitar, traz certo
criminal por essa prática, podendo-se entender que, em Joinville-SC, as questionamento relacionado ao que se quer proteger com tal
ações reclamadas não são suficientes para acionar a justiça criminal. modificação. Conforme se verificou nos tópicos acima, não há
diferença em si entre pichação e grafite. O bem jurídico tutelado é o
Assim, buscando-se compreender o problema apresentado com
meio ambiente. Se o grafite não agride o meio ambiente, qual razão de
a aproximação da teoria da adequação social, inicialmente, convém
se considerar que a pichação agride?
destacar que, conforme Welzel (2001, p. 47), idealizador de tal teoria:

Uma ação converte-se em delito se infringe a ordem da Ademais, em relação ao entendimento do que seria a teoria da
comunidade de um modo previsto em um dos tipos legais
adequação social, colaciona-se o entendimento de Zaffaroni (2011, p.
e pode ser reprovável ao autor no conceito de
culpabilidade. A ação tem que infringir, por conseguinte, 489):
de um modo determinado a ordem da comunidade: tem
que ser “típica” e “antijurídica”; e há de ser, além disso, A partir da premissa de que o direito penal somente
reprovável ao autor como pessoa responsável: tem que ser tipifica condutas que têm certa “relevância social”, posto
“culpável”. A tipicidade, a antijuridicidade e a que do contrário não poderiam ser delitos, deduz-se, como
culpabilidade são os três elementos que convertem a ação consequência, que há condutas que, por sua “adequação
em delito. social”, não podem ser consideradas como tal
Em suma, a teoria/princípio da adequação social preconiza que (WELZEL). Essa é a essência da chamada teoria da
“adequação social da conduta”: as condutas que se
as condutas socialmente adequadas e aceitas pela coletividade não consideram “socialmente adequadas” não podem ser
delitos, e, portanto, devem ser excluídas do âmbito da
devem ser punidas, uma vez que não haverá o efetivo alcance penal. tipicidade.
Ademais, Greco (2014, p. 95-96), corrobora com tal
De acordo com Greco (2012, p. 56) tal princípio tem como
entendimento acrescentando que:
uma de suas vertentes a finalidade de “fazer com que o legislador
repense os tipos penais e retire do ordenamento jurídico a proteção Encontra-se o legislador, na qualidade de pesquisador e
selecionador das condutas ofensivas aos bens jurídicos
sobre aqueles bens cujas condutas já se adaptaram perfeitamente à mais importantes e necessários ao convívio em sociedade,
impedido de criar tipos penais incriminadores que
evolução da sociedade.”. proíbam condutas que já estejam perfeitamente aceitas e
toleradas por essa mesma sociedade, pois, caso contrário,
estaria, na verdade, compelindo a população a cometer
crimes, uma vez que, estando a sociedade acostumada a
201 202

praticar determinados comportamentos, não mudaria a sua ligados ao princípio em estudo, que traduzem o
normal maneira de ser pelo simples fato do surgimento de comportamento da sociedade em determinada época,
uma lei penal que não teve a sensibilidade suficiente para servirão de norte, também, para o exegeta quando da
discernir condutas inadequadas socialmente daquelas interpretação típica, a fim de que os modelos de conduta
outras que não são toleradas pela sociedade. aparentemente proibidas ou impostas pela lei penal
estejam em perfeita sintonia com o sentimento social.
Realça, portanto, que o legislador não deve criar tipos penais
Todavia, a adequação social deve levar em conta as mudanças
para condutas que já são aceitas e toleradas pela sociedade, uma vez
ocorridas na sociedade após a criação dos tipos penais. Condutas que
que assim estaria, na verdade, submetendo as pessoas a cometerem
foram criminalizadas podem, hoje, serem perfeitamente adequadas ao
crimes, não podendo tal conduta ser tolerada.
momento histórico em que a sociedade vive, não sendo conveniente
Para Greco (2014, p. 97), “o princípio da adequação social será puni-las.
de grande valia para que não sejam proibidas, impostas ou mesmo
A respeito desse momento posterior à existência do tipo penal,
mantidas condutas que já estejam perfeitamente assimiladas pela
na lição de Santos (2005, p. 37-38):
sociedade”.
A opinião dominante compreende a adequação social
Conforme Welzel (2001, p. 60), “as condutas socialmente como hipótese de exclusão da tipicidade, mas existem
setores que a consideram como justificante, como
adequadas não são necessariamente exemplares, mas apenas condutas exculpante, ou como princípio geral de interpretação da
lei penal. Não há dúvida que a adequação social é um
que se mantêm dentro dos limites da liberdade de atuação social.”. princípio geral que orienta a criação e a interpretação da
lei penal, mas sua atribuição à antijuridicidade pressupõe
Ainda, complementa Welzel (2001, p. 60) que “a adequação a ultrapassada concepção do tipo livre-de-valor, e sua
compreensão como exculpante pressupõe uma inaceitável
social é de certo modo uma espécie de pauta para os tipos penais: identificação entre a adequação social de determinadas
ações e a natureza proibida do injusto.
representa o âmbito ‘normal’ da liberdade de atuação social, que lhes
Assim, de acordo com o referido autor, a opinião dominante é
serve de base e é considerada (tacitamente) por eles.”.
que a teoria da adequação social exclui a tipicidade.
Greco (2014, p. 96) complementa a ideia acerca da teoria da
A teoria utilizada pelo Brasil para que exista um crime é a
adequação social:
teoria tripartite, que, conforme Santos (2005, p. 5), “define crime como
Merece destaque, ainda, o fato de que ao princípio da
adequação social se atribui, também, uma função
interpretadora dos tipos penais. Os costumes, intimamente
203 204

ação típica, antijurídica e culpável”. Deste modo, não havendo não significa dizer que a sanção penal é desnecessária,
porquanto a nítida vontade do legislador foi de institui-la,
tipicidade, não há crime. mas sim que a sanção penal será quantificada
proporcionalmente. É dizer: o delito é sim relevante e seu
Acerca da pichação, verifica-se que o legislador decidiu por menor potencial foi levado em conta na definição das
penas em abstrato. (SÃO PAULO, Tribunal de Justiça,
bem mantê-la como crime ambiental. Todavia, atribui-lhe pena Ap. nº 0007640-08.2010.8.26.0292, Relator: Des. Otávio
de Almeida Toledo, 2013)
relativamente baixa, para a qual cabem diversos benefícios penais, por
Assim, percebe-se que tal conduta, apesar de não se mostrar de
se tratar de uma conduta de menor potencial ofensivo.
grande importância para os atores do processo penal, foi considerada
Nesse sentido, observa-se na jurisprudência paulista: pelo legislador como uma conduta criminosa, que merece a repreensão
Pichação de edificação urbana. Crime ambiental. Lesão de maneira proporcional e adequada à lesividade, não se reconhecendo
ao ordenamento urbano. Lei nº 9.605/98. Prova.
Testemunhos da vítima e de policial civil. Perícia no local sua adequação social.
dos fatos. Suficiência à procedência da ação penal. Menor
lesividade das condutas já consideradas pelo legislador, Por fim, em razão da natureza do ato de pichação, interpretado
ao escolher as penas cominadas e benefícios cabíveis.
Penas fixadas nos menores patamares, definido valor como um meio de manifestação, um ato de protesto de determinados
mínimo para indenização da vítima. Pretendida isenção do
pagamento de custas. Inadmissibilidade. Caso o réu não grupos da sociedade civil para reivindicar direitos e praticar a cidade,
tenha condições de arcar com as despesas do processo,
quando associado a pouca atenção dada pelos atores do processo penal
possível seu sobrestamento por cinco anos, nos termos do
artigo 12 da Lei nº 1.060/50. Questão a ser verificada em ao ato da pichação, essa natureza deve ser levada em consideração na
sede de Execução Criminal. Apelo improvido. (SÃO
PAULO, Tribunal de Justiça, Ap. nº 0007640- análise da tipicidade da conduta e, talvez, servir como exculpante ou
08.2010.8.26.0292, Relator: Des. Otávio de Almeida
Toledo, 2013, grifa-se) excludente de tipicidade, cujo debate poderá ser tema para outros
Ainda, colhe-se do corpo do referido acórdão: trabalhos.

E se o legislador houve por bem criminalizar as condutas,


não é dado ao aplicador do Direito ignorar o que preceitua
a Lei. Assim, a pichação de edificações urbanas,
6 Considerações finais
encampadas pela proteção do Direito Penal, foi
compreendida como fato inaceitável na sociedade e que
demanda punição dos infratores, claro que em intensidade Percebe-se no decorrer do presente trabalho que a diferença
proporcional e adequada. (...) Permito-me acrescentar que
a reprovabilidade, na espécie, se não é das mais elevadas, entre grafite e pichação para efeitos legais é muito sutil, sendo o grafite
205 206

até equiparado à pichação em determinadas situações. Mas há de se demonstra que é inegável o papel simbólico da repressão desses
apontar a questão estética como a principal diferenciação entre as duas agentes, por meio da criminalização da conduta.
condutas. Entretanto, analisar o fenômeno da pichação, aproximando-o
Em Joinville-SC, diante da cultura e das características dos estudos da tipicidade, permite perceber a complexidade do
atribuídas ao seu povo e elencadas no início do presente artigo, verifica- fenômeno e que essa deve ser considerada no momento do Estado
se que a pichação abala muitas pessoas, as quais consideram uma punir.
afronta à ordem e um desrespeito com a cidade, conforme comentários
proferidos em notícias veiculadas por jornais de grande expressão local.
Referências bibliográficas
Inclusive as ações desse gênero identificadas na cidade levaram a
Prefeitura Municipal a veicular campanha publicitária estimulando a ALVES, Cristiano. Três adolescentes são apreendidos após pichação.
Gazeta de Joinville. Joinville, 15 jul. 2014. Disponível em:
denúncia de atos de vandalismo, utilizando-se como símbolo do <http://www.gazetadejoinville.com.br/wp/?p=6918>. Acesso em 5 mar.
vândalo o pichador. 2015.
BRASIL. Lei nº 9.605/1998. Dispõe sobre as sanções penais e
Assim, apesar de constatar que são registrados poucos boletins administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio
de ocorrência em relação ao delito tipificado no artigo 65 da Lei n. ambiente, e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm>. Acesso em 5
9.605/1998 nas delegacias da cidade, não se pode afirmar que houve mar. 2015.
uma adequação social do tipo penal e que tal conduta é relativamente BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral
aceita pela sociedade, pois se verificou que não há uma publicitação de 1. 21. Ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

dados oficiais. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei n. 706/2007.


Disponível em:
Outrossim, na maioria das vezes não se busca a tutela <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessi
onid=86EBEB7FF8A519B01C1534702FE7350E.proposicoesWeb2?co
jurisdicional por meio da movimentação da máquina punitiva do dteor=471793&filename=Tramitacao-PL+706/2007>. Acesso em 3 abr.
Estado. Ademais, a análise das fontes escolhidas para este ensaio 2015.
GRECO, Rogério. Curso de direito penal – parte geral. Vol. 1. 14. Ed.
Rio de Janeiro: Impetus, 2012.
207 208

GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio: uma visão minimalista <http://www.chuvaacida.info/2014/09/alguma-coisa-acontece-entre-


do Direito Penal. 7. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014. beira-rio-e.html>. Acesso em 5 mar. 2015.
Morador publica em rede social vídeo de pichação sendo feita em muro WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico-penal: uma introdução à
na zona Leste de Joinville. A Notícia. 24 set. 2014. Disponível em: doutrina da ação finalista. Tradução de Luiz Regis Prado. São Paulo:
<http://anoticia.clicrbs.com.br/sc/geral/noticia/2014/09/morador- Editora Revista dos Tribunais, 2001.
publica-em-rede-social-video-de-pichacao-sendo-feita-em-muro-na- ZAFFARONI, Eugênio. Manual de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1. 9.
zona-leste-de-joinville-4605903.html>. Acesso em 5 mar. 2015. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
MORAES, Vinicius Borges de. A pichação e a grafitagem na óptica do
direito penal - delito de dano ou crime ambiental? In: IBCCRIM –
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Rio Grande do Sul, Boletim
n. 150, maio 2005. Disponível em:
<http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/2982-A-
picha%C3%A7%C3%A3o-e-a-grafitagem-na-%C3%B3ptica-do-
direito-penal---delito-de-dano-ou-crime-ambiental?>. Acesso em 29 set.
2014.
RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Crime de pichação e restrição de
comercialização de tinta spray de acordo com a Lei 12.408, de 25 de
maio de 2011. In: CAPPELLI, Silvia; LECEY, Eladio. Revista de
Direito Ambiental. Ano 16. Vol. 63. Jul.-set./2011. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2011.
SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. 4. Ed.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação criminal n. 0007640-
08.2010.8.26.0292, da 16ª Câmara de Direito Criminal. Apelante:
Marcos Aparecido Silva Junior. Apelado: Ministério Público do Estado
de São Paulo. Relator: Des. Otávio de Almeida Toledo. São Paulo, 3 de
setembro de 2013. Disponível em:
<https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/resultadoCompleta.do;jsessionid=8FE4F43
22DAA142FBEF58685AE74BECF>. Acesso em 8 mar. 2015.
SILVEIRA, Felipe. Alguma coisa acontece entre a Beira-rio e a São
João. Chuva Ácida. 17 set. 2014. Disponível em:
209 210

ENTRE DESLOCAMENTOS INDÍGENAS E A EFETIVIDADE


DO DIREITO

Isabella Cristina Lunelli66

Resumo: A partir de dados empíricos de aumento populacional de


indígenas na cidade, a pesquisa teórica que aqui se apresenta busca
dar algumas contribuições para a compreensão dos motivos que
desencadeiam os deslocamentos indígenas do meio rural para o meio
urbano. Desmistificando as noções do imaginário popular de uma
irreversível “extinção” dos indígenas – com sua assimilação e
integração à “civilização” –, os dados aqui trazidos nos revelam sua
Eixo presença, seus fluxos migratórios dentro do território brasileiro e,
sobretudo, dão amostras de suas causas: a busca pela efetividade de
CONTROLE SOCIAL NA CIDADE direitos.
Palavras chave: migrações; direitos; indígenas.

1 Introdução

Uma análise teórica da centralidade das reivindicações sociais


indígenas no Brasil nos remete indiscutivelmente aos determinismos –
histórico-jurídico-econômicos – que seguem presentes na questão do

66
Aluna do curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Direito na
Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD-UFSC/Brasil), mestre em Teoria,
Filosofia e História do Direito (PPGD/UFSC), especialista em Teoria Geral do Direito
(ABDCONST) e Direito Administrativo (UNICURITIBA), graduada em Direito (UP).
isalunelli@hotmail.com.
211 212

reconhecimento estatal dos seus territórios. A luta pelo reconhecimento estão submetidos, levantando uma pauta necessária ao debate
da ocupação de terras pelos indígenas é uma luta atual, mas igualmente acadêmico sócio-jurídico atual. Por fim, conclusões são tecidas.
centenária, se considerarmos que desde o achamento da Terra de Vera
Cruz, o que se fez foi expulsar os povos originários de suas terras, não
2 Demarcação de terras indígenas: meios de proteção de direitos
reconhecendo sua presença e ocupação (SOUZA FILHO, 2003, p. 19).
dos índios
A pesquisa teórica, mas embasada em dados empíricos, que
Pensar nas lutas sociais e reivindicações indígenas no contexto
aqui se apresenta busca dar algumas contribuições para a compreensão
brasileiro nos remete, indiscutivelmente, à luta pela terra, pelo seu
desta luta quinhentista historicamente negada.
direito à terra.
Desmistificando as noções do imaginário popular de uma
Por “terra” devemos considerar não apenas a extensão
irreversível “extinção” dos indígenas – com sua assimilação e
territorial, o território, mas também, o meio ambiente, os recursos
integração à “civilização” –, os dados aqui trazidos nos revelam sua
naturais. Aqui, a terra enquanto demanda fundamental dos povos
presença, seus fluxos migratórios dentro do território brasileiro e,
indígenas brasileiros é “entendida como espaço de vida e liberdade de
sobretudo, dão amostras de suas causas.
um grupo humano” e, justamente por considerar-lhe como espaço de
Para tanto, o texto é estruturado em três partes. Na primeira vida, “assume a proporção da própria sobrevivência dos povos”. A
parte, apresentamos noções jurídicas sobre a questão da demarcação dos interdependência vivida com os povos e seu meio ambiente expressa-se
territórios indígenas (TIs), refletindo principalmente, sobre a inércia inclusive como referência cultural, a ponto da “existência física de um
estatal diante das reivindicações indígenas. Dando continuidade, a território, com um ecossistema determinado e o domínio, controle ou
segunda parte, baseados em dados estatísticos sobre a presença indígena saber que tenha o povo sobre ele, é determinante para a própria
dentro e fora de terras indígenas e nos fluxos migratórios observados existência do povo” (SOUZA FILHO, 2012, p. 119-120).
entre os Censos de 2000 e 2010 de indígenas entre o campo e a cidade,
De fato, decorrentes da participação ativa de movimentos
lançamos algumas considerações sobre suas causas. E, na terceira parte
indígenas na Constituinte de 1988 e o apoio de diversas entidades, o
deste texto, contextualizamos as condições de marginalização a que
Direito Estatal Brasileiro reconhece a existência e os direitos dos povos
213 214

indígenas, garantindo constitucionalmente sua cultura e seus “direitos reconhece, em seu art. 14, aos povos indígenas seu direito à propriedade
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” (art. 231, e posse sobre terras tradicionalmente ocupadas, cabendo aos governos a
Constituição de 1988). Entretanto, conforme a previsão legal, aos proteção e efetividade de tais direitos.
indígenas é dada somente a posse permanente das terras, restando à E, aumentando o coro sobre esses direitos – o que demonstrava
União sua propriedade – na qual as Terras Indígenas (TI) são tratadas a insuficiente eficácia da normativa 67 – a Declaração das Nações
como bens da União. De certa forma, ratificou em nível constitucional o Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e Tribais, de 2007, vem
que já estava previsto infraconstitucionalmente com a Lei n.º 6.001/73,
assim, outra vez, pronunciar em seu artigo 26, o direito dos povos
o chamado “Estatuto do Índio”. indígenas sobre suas terras, territórios e recursos que possuam.
O Estatuto do Índio (Lei n.º 6.001/73) considera como “terras Referindo-se, ainda, que compete aos Estados assegurar o
indígenas”, conforme art. 17, “as terras ocupadas ou habitadas”, “as “reconhecimento e proteção jurídicos a essas terras, territórios e
áreas reservadas” (estabelecidas pela União, nas modalidades de reserva recursos” (NAÇÕES UNIDAS, 2008, p. 14).
indígena, parque indígena e colônia agrícola indígena, havendo a Daí que o procedimento de demarcação das terras indígenas é
menção também de possibilidade de Território Federal Indígena) e “as
o meio de garantir não apenas o direito dos povos indígenas sobre suas
terras de domínio das comunidades indígenas” (terras de domínio terras, territórios e recursos, mas, sobretudo, o reconhecimento estatal
indígena). Ainda, há a previsão das áreas interditadas pela Funai quando
da terra indígena. Em outras palavras, a demarcação é um nascer
tratar-se da proteção de índios isolados, qual prevê sua interdição jurídico das terras indígenas desde o ponto de vista Estatal, de forma
concomitantemente ou não com o processo de demarcação. No tocante
que, somente com sua demarcação é garantida legalmente aos indígenas
à aplicação do dispositivo constitucional (art. 231), somente são o uso exclusivo sobre determinada terra.
consideradas as terras indígenas as tradicionalmente ocupadas.
Aqui traçamos uns parênteses necessários para enfatizar que,
A Convenção n.º 169, da Organização Internacional do embora os direitos territoriais originários (o simples direito indígena à
Trabalho (OIT), sobre Povos Indígenas e Tribais, aprovada pelo
67
Decreto Legislativo n.º 143/2002 e dotada de executoriedade pelo Consta na referida declaração um reconhecimento da “necessidade urgente de
respeitar e promover os direitos intrínsecos dos povos indígenas, [...], especialmente
Decreto n.º 5.051/2014, reforçando a previsão constitucional, os direitos às suas terras, territórios e recursos” (NAÇÕES UNIDAS, 2008, p. 4).
215 216

terra) sejam considerados imprescritíveis e independam do A terceira etapa consistira na possibilidade de manifestação de
reconhecimento formal, é só com a demarcação que o Estado reconhece qualquer interessado durante o prazo de 90 (noventa) dias contados da
68
e passa a prestar – ao menos teoricamente – a proteção a essas terras. publicação mencionada; tendo a FUNAI, então, 60 (sessenta) dias, para
Fecha parênteses. elaborar pareceres sobre as razões de todos os interessados e
encaminhar o procedimento ao Ministro da Justiça.
Tal procedimento administrativo de demarcação de terras pelo
Estado é determinado pelo Estatuto do Índio (Lei n.º 6.001/73) que, c/c Ao chegar às mãos do Ministro da Justiça, dando início à
o Decreto n.º 1775/96, estipula prazos para o cumprimento de cada uma quarta etapa, este terá 30 (trinta) dias para declarar os limites da Terra
das sete etapas que envolvem o processo de demarcação e coloca sob Indígena, devendo: (a) expedir portaria declaratória de posse,
cargo da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) o início e sua declarando os limites da área e determinando a sua demarcação física e
orientação. administrativamente, (b) prescrever diligências a serem cumpridas em
mais 90 (noventa) dias; ou (c) desaprovar a identificação, publicando
As sete etapas compreendem: elaboração de estudos
decisão que fundamente-se em alegações de que não se tratam de
antropológicos e complementares, sendo o primeiro realizado por
“terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em
antropólogo, cabendo o auxílio de um grupo técnico especializado para
caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as
a realização do segundo; ao final, o grupo apresentará um relatório
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu
sujeito à aprovação pelo Presidente da própria FUNAI. Esta seria a
bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo
segunda fase, qual prevê legalmente um prazo de 15 (quinze) dias para
seus usos, costumes e tradições” (art. 231, § 1º)
tal aprovação e, posteriormente, publicação no Diário Oficial da União
(DOU) e no Diário Oficial nas esferas estaduais e municipal. Declarados os limites da área da TI, a FUNAI fica encarregada
de promover a demarcação física, enquanto o INCRA (Instituto
68
Mesmo não sendo objeto dessa exposição, não poderíamos deixar de mencionar os
debates calorosas que interpretações recentes dos ministros das supremas cortes
Nacional de Colonização e Reforma Agrária), em caráter prioritário,
brasileiras tem inflamado; principalmente ao pretenderem fixar um marco temporal procederá ao reassentamento de eventuais ocupantes não-índios – sendo
para a demarcação, ao suporem que somente as terras habitadas por indígenas na data
da promulgação da constituição de 1988 é que seriam alvos de demarcações futuras. esta a quinta etapa, chamada “Demarcação Física”. Por fim, submete-se
Ignorando, obviamente, toda a história de violência impetrada sobre os povos
indígenas obrigando-os a retirarem-se de suas terras sob pena de extermínio. ao Presidente da República para homologação, que ratificará a
217 218

demarcação física por meio de um decreto presidencial. Uma vez com domicílio em terras indígenas somava-se 517.383,70 sendo que o
homologado, a terra demarcada deverá ser registrada em até 30 (trinta) número de indígenas com domicílio fora das terras indígenas somava-se
dias perante a circunscrição imobiliária (cartório de imóveis da comarca 379.534. Para compor estes dados em 2010, foram identificadas 505
correspondente) e na Secretaria de Patrimônio da União do Ministério terras indígenas, que representavam então 11,6% do território brasileiro
da Fazenda (SPU/MF). (106.739.926 de hectares), em sua grande maioria localizados na
chamada jurisdição da Amazônia legal.
Não bastasse a determinação legal para cumprimento das
etapas do processo de demarcação, compreendido como um A atualização dos dados concernentes à situação fundiária das
determinismo na prioridade destas ações, restou expressamente previsto TIs no Brasil, pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), apresenta
no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em seu artigo 67, um número expressivo de 1.047 TIs. Destas, a considerar as TI que não
o prazo de 05 (cinco) anos, contados a partir da promulgação da foram reservadas ou homologadas (com registro no CRI e/ou SPU), é
Constituição em 05/10/1988, para que a União concluísse a demarcação possível chegar à conclusão que aproximadamente metade das terras
das terras indígenas. Tal prazo já havia sido mencionado no Estatuto do indígenas não estão efetivamente reconhecidas pelo Estado. 71 Isto, é
Índio, em seu art. 65, qual determinava ao Poder Executivo o mesmo
prazo para “a demarcação das terras indígenas, ainda não demarcadas”. Acesso em: 20/09/2014. Segundo dados disponíveis no site da Funai, registram-se 69
referências de índios ainda não contatados, além de existirem grupos que estão
requerendo o reconhecimento de sua condição indígena junto ao órgão federal
Segundo o último censo oficial divulgado pelo Instituto indigenista. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), datado de 2010, a sao. Acesso em 20 de setembro 2014.
70
Curiosamente os dados revelam que do total habitantes dentro das terras indígenas é
população indígena era de 896.917 habitantes (0,4% da população de 567.582 pessoas; sendo que 438.429 declaram-se indígenas, 78.954 não se
declaram indígenas, mas se consideram indígenas e 30.691 não se declaram e nem se
total).69 Ainda segundo o censo, o número de indígenas contabilizados consideram indígenas. Disponível em:
ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_dos_In
digenas/pdf/tab_3_01.pdf>. Acesso em 20 de setembro de 2014.
69 71
Segundo consta no “Censo Demográfico 2010: Características gerais dos indígenas. A recente Carta Pública aos candidatos e candidatas à Presidência da República
Resultados do universo”, Río de Janeiro, 2012, “neste conjunto, não estão divulgada pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), datada de
contabilizados povos indígenas brasileiros considerados “índios isolados”, pela 15/09/2014 comprova este fato ao reivindicar a “demarcação de todas as terras
própria política de contato, como também indígenas que estão em processo de indígenas. Há um passivo de mais de 60% das terras indígenas não demarcadas,
reafirmação étnica após anos de dominação e repressão cultural e, consequentemente, situação que gera conflitos desfavoráveis para os nossos povos”. Disponível em: <
ainda não estão se autodeclarando como tal”. Disponível em: < https://mobilizacaonacionalindigena.wordpress.com/2014/09/15/carta-publica-aos-
http://indigenas.ibge.gov.br/images/indigenas/estudos/indigena_censo2010.pdf>. candidatos-e-candidatas-a-presidencia-da-republica/>. Acesso em 28/09/2014.
219 220

claro, sem levar em contas as 337 TIs “sem providência” (CIMI, 2013) O colonizado no contexto atual vem a representar os grupos e
que sequer se deram a instauração do procedimento de demarcação pela agentes que estão em constante desvantagem e desigualdade, sofrendo
FUNAI. as mazelas e injustiças provindas da ideologia hegemônica das classes
dominantes ou elites privilegiadas. A tomada de consciência desta
Sendo a demarcação um ato declaratório pelo qual o Estado
situação ainda existente é observada na ocorrência de conflitos
reconhece a ocupação e uso da terra exclusiva ao indígena, garantindo e
fundiários e disputas pela terra indígenas; o que nos remete à afirmação
protegendo seu direito à terra, evidente que o ato de demarcação é
de que os territórios indígenas no Brasil “[...] no século XXI seguem
indiscutivelmente o primeiro direito a ser resguardado pelo Estado.
sendo colônias” (BÁRCENAS in BERRAONDO, 2006, p. 425) a
Na medida em que é na terra indígena em que a reprodução
serem espoliadas e mantidas sob domínio.
cultural dos povos indígenas é, substancialmente perpetrada; negar esse
direito quando requerido, é negar a própria continuidade existencial dos
povos indígenas. 3 Quando demarcar não é proteger: As causas da imigração

Óbvio é que, negando-se a tais atos, o Estado segue resistindo indígena para a cidade

ao seu reconhecimento, sem romper com uma atitude presente desde o Os dados trazidos pelo IBGE no último censo de 2010, mais do
período colonial. Com a conquista, as atividades implementadas pela que revelar que 57,68% dos indígenas viviam em territórios indígenas
Coroa Portuguesa com a colonização cingiram-se na implementação em 2010 – aproximadamente 517.383 indígenas –, revelam que
dos anseios econômicos marcado pelas atividades extrativistas e aproximadamente 42,3% não vivem dentro desses territórios, nos
agrícolas; vendo as colônias, sobretudo, como fonte de matéria-prima e remetendo a um total de 379.534 indígenas. Do total de indígenas que
manufaturas a espalharem-se pelo mercado europeu. assim se declararam ao senso, 36,2% viviam em zonas urbanas
(321.748 habitantes) e 60,8%, nas zonas rurais (499.753 habitantes).
Superada, ao menos teoricamente é assim afirmado, a fase
colonial, a relação política-administrativa de metrópole/colônia se Aquém das hipóteses em que a expansão dos limites
desfaz. Contudo, a relação social e econômica de geográficos das cidades passam a incorporar terras indígenas; este
colonizador/colonizado não se extingue; apenas modifica-se. número expressivo de indígenas vivendo fora de Terras Indígenas
221 222

reflete, sobretudo, as dificuldades que enfrentam os povos indígenas de aumentando o número de habitantes que se declararam indígena nas
permanecer e sobreviver em seus próprios territórios. cidades.

Mesmo quando a muito custo são demarcadas, o Estado pouco Ao tentarem descrever, e de certa forma justificar, o aumento
tem se esforçado em proteger esse direito. A FUNAI ao explicar os do número de indígenas em centros urbanos, apontam especialmente
motivos, denuncia que afetados constantemente por invasores dois fatores. O primeiro – que também explica o aumento significativo
relacionados “à atividade agropecuária, à exploração mineral, à populacional indígena entre os censos de 1991 e 2000 – refere-se ao
extração madeireira e à construção de rodovias e hidrelétricas”, [...] “o processo de etnicidade (ou de “etnogênese”) a que estão submetidos
resultado disso é o afastamento dos índios de suas terras e até o seu desde o final do século XX, onde um número cada vez maior passa a se
extermínio, levando à degradação ambiental do território indígena e reconhecer (autodeclarar-se) indígena.
comprometendo a sobrevivência e a qualidade de vida das sociedades Esse fenômeno sócio-cultural recente é muito bem descrito
72
que o habitam”. Além das invasões e degradações territoriais e pelo chileno José Bengoa (2007), ao abordar a emergência das
ambientais, os casos de “exploração sexual, aliciamento e uso de identidades étnicas na América Latina. Explica o Autor que “como
drogas, exploração de trabalho, inclusive infantil, mendicância, êxodo
todas as identidades humanas o ser indígena também é uma construção
desordenado causando grande concentração de indígenas nas social” (BENGOA, 2007, p. 10) e, o aumento populacional indígena
cidades”.73 pode ser explicado a partir de um crescimento da auto-definição como
Além disto, comparando os dados dos Censos de 1991 a 2010, “ser indígena”.
pode-se perceber um aumento da proporção da população indígena Se antes eram cidadãos comuns, ao compreenderem a
domiciliada em áreas urbanas, o que veio a corroborar um fenômeno de diminuição da carga pejorativa que passa a existir sobre a definição de
imigração de indígenas das áreas rurais para as áreas urbanas,
indígena e um aumento dos debates sobre a questão indígena, estes
passam a se identificarem e assim a se autodeclararem.
72
Disponível em: <http://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-e- Emergir tem dois sentidos. De um lado, é algo que estava
povoamento/historia-indigena/terras-indigenas>. Acesso em 27 de setembro de 2014. de certo modo submerso e que surge, por exemplo, da
73
Disponível em: <http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem- água e, por outro lado, é algo que tem uma urgência
sao?start=1#>. Acesso em 20 de setembro de 2014.
223 224

especial, é algo urgente. Se diz comumente que tem indígena para a cidade pode ser resultado de uma compreensão de que
ocorrido uma emergência. Não é, portanto, causalidade o
título [...]. Porque na década e meia que passou, na nas cidades há um maior acesso de direitos e políticas públicas.
América Latina tem emergido uma novo acot, os povos
indígenas; e, a questão indígena tem se transformado em Sem descartar, logicamente, as constantes ameaçam a que
um assunto da mais alta urgência (BENGOA, 2007, p.
13).74 estão submetidos nas áreas rurais, independentes da efetiva demarcação,
Para o Autor, são diversos os processos que explicam a partem da compreensão dos indígenas de que, nas cidades, esses teriam
“emergência indígena” constatada a partir dos anos noventa na América mais acesso e mais garantias de direitos.
Latina; apontando a globalização como um dos fatores para a
Dentre os direitos buscados estão, sobretudo, a saúde e a
valorização das identidades locais (BENGOA, 2007, p. 43).
educação. A busca de emprego e melhores condições de vida –
Um, dentre outros fatores, seria também o ajuste estrutural incluindo aqui a segurança, moradia digna – também passam a
pelo que passou os Estado com a incidência do capitalismo neoliberal. configurar uma imagem utópica da cidade enquanto provedora de uma
A diminuição do Estado frente ao processo de modernização dos países vida digna.
periféricos latino-americanos acentuou a pobreza, a exclusão e a
A questão é que, quando lá chegam, além de não encontrarem
marginalização de seus habitantes que se re-organizam em movimentos
o que buscavam, passam a sofrer os preconceitos e a invisibilidade
sociais na busca de condições para sobreviverem. Tal foi constatado
social de seus direitos violados.
com os movimentos indígenas. Sendo, sobretudo a partir desses
Um exemplo muito emblemático é a presença indígena na
movimentos, que a emergência indígena é explicada.
cidade de São Paulo. No referido censo, na cidade de São Paulo consta
Outro fator apontado para justificar a constatação do censo de
a presença declarada de 12.977 indígenas; tornando-a o quarto
aumento da população indígena nas cidades é o de que a migração
município do Brasil, em termos de população absoluta, com maior
74
Tradução livre de: “Emerger tiene dos sentidos. Por una parte es algo que estaba en população indígena. Estão presentes povos Guarani, Pankararu,
cierto modo hundido y que surge, por ejemplo del agua y por otro lado es algo que
tiene una premura especial, es algo urgente. Se dice comúnmente que ha ocorrido uma
Pankararé, Fulni-ô, Terena, Kaingang, KaririXocó, Atikum, Potiguara,
emergencia. No es por tanto causalidad el título [...]. Porque en la década y media que entre outras etnias.
ha pasado en América Latina ha emergido un nuevo actor, los pueblos indígenas; y, la
cuestión indígena se ha transformado en un assunto de la más alta urgência”
(BENGOA, 2007, p. 13).
225 226

Quatro anos após a realização do censo de 2000, onde se inalcançáveis apesar das peregrinações impostas à sua garantia. Para
constatou a existência de uma população de 63.789 indígenas no Estado tanto, tem-se apoiado na autoidentificação, reafirmando sua identidade
de São Paulo, a Comissão Pró-Índio de São Paulo organizou uma étnica e enquanto possuir de direitos.
oficina, com apoio de outras entidades, chamada “Índios na Cidade de
São Paulo”. Reunidos diversos povos indígenas, constataram que “a
4 Direitos dos índios: deslocamentos em busca de efetividade
maior parte dos índios que vivem na Grande São Paulo mora em casas
de aluguel ou favelas” sendo que “muitos estão desempregados e A questão a ser considerada é que o indígena quando sai de sua
dependem de atividades no trabalho informal para sua sobrevivência” terra tradicionalmente ocupada – que muitas vezes seguem sem sequer
(CPI-SP, 2004, p. 12); refletindo a ausência de efetividade de direitos ser assim reconhecidas, demarcadas e declaradas pelo Estado – não
mesmos quando perseguidos pelos indígenas. deixa de ser indígena (CPI-SP, 2004, p. 26).

São diversas as dificuldades enfrentadas pela população Segundo a legislação vigente, os critérios utilizados para a
indígena em São Paulo. Além dos problemas encontrados
pela população das periferias de forma geral (como falta definição de indígena seguem os dispostos na Convenção 169, da OIT,
de emprego, condições precárias de moradia, violência,
falta de assistência à saúde), também enfrentam
consistindo na “auto-declaração e consciência de sua identidade
problemas específicos, como a invisibilidade perante a indígena” e “no reconhecimento dessa identidade por parte do grupo de
sociedade em geral, a desconsideração do poder público,
o questionamento de suas identidades étnicas e a falta de origem”.75
um espaço coletivo para suas manifestações culturais. O
preconceito por ser índia e pobre e o medo da violência
Portanto, para ser índio é preciso identificar-se enquanto tal e
foram as principais dificuldades que Maria Inácia Fulni-ô
encontrou em São Paulo desde que chegou. Arrumar ser identificado pelo povo que pertence como tal. Não havendo,
emprego, por exemplo, tornava-se difícil por causa do
sotaque: “A gente tinha que falar sem o sotaque porque, portanto, quaisquer exigências legais de que para ser considerado
se você falar puxado, não servia para ser babá, senão a
criança ia pegar aquele sotaque.” (CPI-SP, 2004, p. 11). indígena deva utilizar-se de acessórios simbólicos, como cocares e
Para reverter a frustração das expectativas de alcance de penachos, para assim ser considerado. Nem, tampouco, há restrições
efetividade de direitos, bem como o preconceito social, a etnogênese
tem servido para que os povos indígenas se organizem em movimentos, 75
As frases expostas foram retiradas do site da FUNAI. Para mais informações
consultar: http://www.funai.gov.br/index.php/todos-ouvidoria/23-perguntas-
reafirmando sua identidade na busca desses direitos que seguem frequentes/97-pergunta-3. Acesso em 01 de Abril 2015.
227 228

legais para essa definição, como a utilização de bens de consumo de É indiscutível que o aumento populacional indígena nas
outras culturas, tal como celular, computadores. cidades impõe-nos, enquanto juristas, uma provocação sobre o debate –
reconhecendo os limites – da efetividade de direitos dos índios,
Na compreensão de Dalmo de Abreu Dallari, ao falarmos de
enquanto pessoa, no exercício do Direito à cidade. Impõe-nos, também,
“direitos dos índios” devemos considerar “pelo menos três faces desses
em um outro viés, um debate sobre a efetividade de direitos dos índios,
direitos: o direito do índio enquanto pessoa, o direito do índio enquanto
enquanto indígenas, dentro da cidade.
brasileiro e os direitos especiais do índio” (CPI-SP, 2004, p. 25).

Antes de índio, o índio é pessoa e, portanto, possui todos Ciente de que o Estatuto da Cidade, lei n.º 10.257/2001,
os direitos que as demais pessoas têm na Constituição:
determina que no desenvolvimento das funções da cidade seja garantida
direito à vida, direito a não sofrer violência, direito à
saúde, à educação, etc. Além dos direitos que todas as a gestão democrática e participativa e a justa distribuição dos benefícios
pessoas e todos os brasileiros têm, os índios ainda têm
alguns direitos especiais pelo fato de serem índios. (CPI- do processo de urbanização, dentre outras diretrizes dispostas no art. 2º
SP, 2004, p. 25)
da referida lei; obvio é a insuficiência e inadequação de políticas
E, independentemente de quais direitos os indígenas tem
públicas aplicadas aos indígenas enquanto pessoas, brasileiros.
buscado nas cidades, a reflexão passa sobre a efetividade desses direitos
assegurados. Se não há um debate de garantia de direitos aos indígenas
sequer enquanto pessoas comuns, muito menos há um debate e uma
Por efetividade trataremos como a materialização, a
inclusão dos indígenas enquanto portadores de “direitos especiais”.
concretização no mundo dos fatos do Direito. E isso vai mais além dos
limites científicos positivistas impostos por uma teoria pura do direito. A ausência de planos diretores, leis municipais e políticas
públicas concretas voltadas à questão indígena negam a cidade
Como explicou Barroso (1995, p. 66), não se trata da “eficácia
enquanto um local de afirmação dos direitos dos índios (CPI-SP, 2013).
jurídica, como possibilidade de aplicação da norma”, pois outrora já
Sem terras e sem direitos, não encontram nem no meio rural, muito
fora concluído que todas as normas constitucionais tem eficácia jurídica
menos na cidade, a efetividade de direitos consagrados pela ordem
e “são aplicáveis nos limites de tal eficácia”. Trata-se, sim, da eficácia
normativa vigente.
social, referindo-se aos “mecanismos para sua real aplicação, para sua
O não entendimento dos indígenas como membros de sua
efetividade”. própria sociedade, de seu próprio povo, e da sociedade
229 230

nacional é um obstáculo ainda não superado e passa pelo sua expressão positivista, pragmática e técnica. Diante disto, compete a
respeito e reconhecimento de sua autonomia. Situação que
é agravada no espaço urbano e, sabidamente, essa nós compreender a ação sociológica do Direito não como um produto
incompreensão fundamenta um cenário de exclusão social
e política dos Povos Indígenas (CPI-SP, 2013, p. 109). abstrato, mas sobretudo como categoria histórica, corresponde a um
regime social determinado por uma cultura, parte de uma episteme
específica. Só a partir disto, podemos delinear uma alternativa para se
5 Considerações finais
pensar sobre as diferenças empíricas entre positivação e efetividade dos
Refletir por que ainda há tanta dificuldade em alcançar o
direitos indígenas, das questões ambientais e econômicas na realidade
reconhecimento estatal da ocupação territorial indígena, revela que a
brasileira.
luta indígena não é apenas pelo reconhecimento do Estado, mas,
prioritariamente, pela efetividade e aplicação dos direitos reconhecidos
pelo Estado. Referências bibliográficas

As reivindicações indígenas pelas demarcações territoriais BÁRCENAS, Francisco Lopez. Autonomías indígenas em América: de
la demanda de reconocimiento a su construcción. In BERRAONDO,
partilham muito das lutas atuais vividas pelos movimentos e povos Mikel (Coord.). Pueblos Indígenas y derechos humanos. Bilbao:
indígenas; mas não se esgotam nisso. As demarcações de terras Universidad de Deusto, 2006 . P. 423-450.
indígenas é apenas um dos direitos que, a custo de muito sangue BARROSO, Luis Roberto. A efetividade das normas constitucionais
revisitada. Revista de Direito Processual Geral, Rio de Janeiro, 1995,
indígena, tem sido alvo de busca de efetividade. p. 60-98.
Os deslocamentos indígenas, enquanto fenômenos de migração BENGOA, José. La emergencia indígena en América Latina. Chile:
Fondo de Cultura Económica, 2007.
e aumento populacional indígena nas cidades, tem expressado bem a
BRASIL, 2014, Constituição da República Federativa do
busca de efetividade de direitos consagrados e não garantidos. Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompila
Somente afastando-se de uma perspectiva do puro formalismo do.htm>. Acesso em 02/09/2014.
a-histórico e abstrato, sem desprezar a referência normativa do Direito é CIMI (Conselho Indigenista Missiónario). Relatório Violência contra
que entendemos que dimensão política que nos cabe assumir é a de os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2013. Disponível em:

compreender o Direito dentro de sua expressão histórica, indo além de


231 232

<http://cimi.org.br/pub/RelatorioViolencia_dados_2013.pdf>. Acesso
em 27/09/2014.
COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO (CPI-SP). Índios na
cidade de São Paulo. São Paulo, 2004. Disponível em: <
http://www.cpisp.org.br/pdf/indios1.pdf>. Acesso em 01 de abril 2015.
______. A Cidade como afirmação dos direitos indígenas. São Paulo,
2013. Disponível em: <
http://www.cpisp.org.br/indios/upload/editor/files/IndiosnaCidade.pdf>.
Acesso em 01 de Abril 2015.
FUNAI.Disponível em: <http://www.funai.gov.br>. Acessos em 20 de
set 2014 e 01 de abril 2015.
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Censo
Demográfico 2010: Características gerais dos indígenas. Resultados do
universo. Rio de Janeiro, 2012.
Eixo
NAÇÕES UNIDAS. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos
dos Povos Indígenas. Rio de Janeiro: Centro de Informação das Nações
Unidas, 2008. Disponível em: < TEORIAS CRÍTICAS DO DIREITO:
http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/documents/DRIPS_pt.pdf>.
O DEBATE SOBRE O ESPAÇO
Acesso em 04 de março 2015.
SOUZA Filho, Carlos Frederico Marés. A Função Social da Terra.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003.
______. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba:
Juruá Editora, 2012.
233 234

EM DEFESA DA MORADIA: O CASO DA VILA Civil Pública – ACP, movida pelo Município do Rio de Janeiro, que
AUTÓDROMO E A BIOPOLÍTICA SOBRE AS FAVELAS pleiteou a desocupação total dos moradores. As decisões judiciais foram
favoráveis à comunidade e, concomitantemente, os moradores
conseguiram obter o título de concessão real de uso em 1995, o qual foi
Clarisse Pires de Almeida Naback76
fruto do processo de regularização fundiária deflagrado no início da
Thula Rafaela de Oliveira Pires77
década de 9078.

Resumo: A remoção da Vila Autódromo reforça a necessidade de Agora, no contexto dos megaeventos, o atual governo
repensar a proteção do direito à moradia. Apesar de, na década de 90, municipal investe contra a sua permanência. Em 2009, na cidade de
essa favela ter passado por um processo de regularização fundiária,
recentemente muitas famílias deixaram o local, sendo pressionadas a Copenhagen, quando foi anunciado que o Rio de Janeiro seria a cidade
aceitarem as ofertas da Prefeitura (reassentamento ou indenização). sede dos próximos jogos olímpicos, Eduardo Paes, recém eleito no
Esse artigo tem como pretensão discernir, através do aporte teórico do
filósofo Michel Foucault, e do estudo histórico de Rafael Gonçalves, os pleito de 2008 para a Prefeitura, declarou imediatamente que era
mecanismos de poder que tornam possível a remoção e a degradação necessária a remoção da Vila Autódromo para a construção de um
do ambiente urbano de um espaço considerado favela.
Centro de Mídia 79 . Segundo o novo prefeito, os moradores seriam
Palavras-chave: Vila Autódromo; favela; biopolítica; remoção;
moradia. reassentados em um conjunto habitacional do programa Minha Casa
Minha Vida, denominado Residencial Parque Carioca 80.

1 Introdução Entretanto, outros motivos foram, sucessivamente,


apresentados para a remoção: a necessidade da implementação do
Entre condomínios de classe média e a construção do Parque
"corredor de segurança", a construção do corredor expresso da
Olímpico, localiza-se a Vila Autódromo, uma comunidade que sofre um
processo gradativo de remoção. Desde 1993 corre na justiça uma Ação 78
O estudo sobre a Vila Autódromo faz parte de uma pesquisa de caso desenvolvida
durante o mestrado Teoria do Estado e Direito Constitucional da PUC-Rio, pela autora
Clarissa Naback, junto a orientação de Thula Pires.
76 79
Bacharel em Direito pela UFRJ e mestranda no programa de pós-graduação em Favela Vila Autódromo será removida, diz Paes. O Globo, Rio de Janeiro, 05 de
Direito da PUC-RJ – bolsista Capes. outubro de 2009, p. 11
77 80
Mestre e Doutora em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Cadastro para a remoção de favela começa na quarta. O Globo, Rio de Janeiro, 17
Professora de Direito Constitucional da PUC-Rio. de outubro de 2011
235 236

Transolímpica, a duplicação da Av. Abelardo Bueno e instalação de proferidas, a juíza de direito permitiu o prosseguimento das demolições,
vias de acesso ao Parque Olímpico. Em 2013, o prefeito Eduardo Paes condicionando-as apenas à comprovação em juízo do "termo de entrega
realizou reuniões com moradores da Vila Autódromo, nas quais de chaves". O que é interessante destacar é que ela opina à favor do
discursava que não faria nenhuma remoção forçada, apresentando o processo de reassentamento, uma vez que o Parque Carioca seria uma
reassentamento como principal oferta de moradia para os moradores habitação mais "adequada" do que uma favela:
que seriam atingidos pelos traçados das vias, ou mesmo para aqueles Não há como admitir-se que a DP, em absoluta inversão
de papéis, venha a pretender que determinada comunidade
que o desejassem. Além disso, apontou também a possibilidade de
mantenha-se em área favelizada quando o ente Municipal
negociar indenizações das casas81. está a possibilitar sua remoção para conjunto habitacional
novo, de qualidade, e repita-se, com sua anuência (grifo
nosso)82.
De 2011 a 2014, agentes do governo municipal visitaram a
A partir dessa decisão, percebe-se a construção negativa do
Vila Autódromo com vistas na negociação e no cadastramento das
espaço favela, que não é reconhecida como um habitat adequado. Aqui,
famílias para o reassentamento no Parque Carioca. Nesse último ano,
a remoção é baseada em um discurso de defesa da moradia dos próprios
parcela dos moradores se mudaram para os apartamentos oferecidos
habitantes da Vila Autódromo, cujo reassentamento imposto é
pela Prefeitura. Aqueles que ficaram, atualmente convivem em um
apresentado como uma habitação de qualidade.
ambiente cada vez mais degradado: os canteiros de obras do Parque
Olímpico invadem mais e mais a área do assentamento; as demolições Não há judicialmente nenhuma determinação de remoção da
das casas negociadas atingem tubulações e prédios vizinhos, Vila Autódromo. Trata-se de uma remoção que ocorre menos em
prejudicando o recebimento de água e a segurança da habitação local; função de uma lei ou de uma decisão judicial, e mais em razão das
os escombros das casas demolidas que foram abandonados no local. ingerências políticas sobre aquele espaço. Mesmo em um suposto
contexto de segurança jurídica, é possível que uma área considerada
A Defensoria Pública, que patrocina a comunidade, tentou por
"favelizada" seja ameaçada de remoção. Com base nesse caso,
uma nova ACP suspender as demolições a fim de resguardar a
pretende-se abordar os sentidos e efeitos das representações construídas
segurança e a habitabilidade daquele espaço. Em uma das decisões

82
Decisão proferido no processo de 1ª instância da Ação Civil Pública 0075959-
81
Informações obtidas junto aos moradores e em arquivos de audiovisual pessoal. 18.2013.8.19.0001, 5ª Vara de Fazenda Pública. Comarca da Capital, Rio de Janeiro.
237 238

sobre as favelas e quais as tecnologias de poder possibilitam a remoção (GONÇALVES, 2013, p. 98). Agache, assim, previu a erradicação das
de determinado espaço. alvenarias erguidas ao longo dos morros, desde que acompanhada da
construção de vilas-jardins operárias, como uma "etapa de educação"
para "preparar para uma vida mais normal" (VALLADARES, 2005, p.
2 O direito à moradia e a subnormalidade da favela: termos de um
49).
contexto pós-constitucional
A favela como "espaço anormal" esteve presente não só em
Em 1991, o IBGE passou a adotar para as favelas a definição
discussões urbanísticas como também em representações legais. O
de "aglomerados subnormais", caracterizados pela ausência de título de
Código de Obras de 1937, durante o Estado Novo, atribuiu status ilegal
propriedade, irregularidades das vias e tamanhos dos lotes, ou carência
à favela. Ele assim previu a extinção das "habitações anti-higiênicas",
de serviços públicos essenciais 83 . Nos Planos Diretores do Rio de
com o controle das favelas existentes, impedindo a expansão,
Janeiro de 1992 e de 2011, a favela foi caracterizada pela "precariedade
construção ou comercialização de imóveis e sua substituição por
da infraestrutura urbana e de serviços públicos, vias estreitas e de
"habitação de tipo mínimo" (VALLADARES, 2005, p. 52).
alinhamento irregular, lotes de forma e tamanho irregular e construções
Na década seguinte, foram construídos alguns Parques
não licenciadas, em desconformidade com os padrões legais". O último
Proletários, que eram alternativas políticas provisórias, em que as
plano adicionou ainda o atributo de "ocupação clandestina".
famílias eram remanejadas para casas de madeira até que as favelas,
Nesses termos, a favela é um espaço representado como um
onde moravam, fossem "devidamente" urbanizadas (GONÇALVES,
desvio urbano-legal. Essa representação heterotópica não é, porém,
2013). Nessa época, a preocupação sobre moradia estava atrelada à
uma construção recente. Podemos citar, como exemplo, o Plano Agache
figura do "trabalhador" - característica da política varguista. Os Parques
(1927), elaborado pelo arquiteto francês Alfred Agache para a
não tinham apenas um objetivo habitacional, mas exerciam também
prefeitura de Mattos Pimenta, o qual trouxe a primeira construção
uma função pedagógica ao trabalhador e sua família.
técnica da favela. Nele, a favela aparece como uma "cidade-satélite",
Nessa mesma linha, podemos mencionar as políticas
"composta por uma população nômade, avessa às regras de higiene"
remocionistas efetuadas durante o período da ditadura militar, nas quais
83
Nesse sentido, ver: < http://www.ibge.gov.br>
239 240

moradores eram remanejados para os conjuntos habitacionais, do direito à moradia e do direito à cidade passou a permear diversas
financiados pelo Banco Nacional de Habitação - BNH (GONÇALVES, normas constitucionais e infraconstitucionais.
2013). A ideia era promover a moradia através de políticas de acesso à Na Constituição Federal, previu-se o direito social à moradia
propriedade privada, que reforçavam ainda mais a construção da (art. 6º); inseriu-se um capítulo sobre política urbana, no qual foi
ilegalidade dessas ocupações populares. Tratava-se de mais uma vez estabelecido como objetivo o pleno desenvolvimento das funções
"normalizar" a favela, agora através de uma política habitacional, que sociais da cidade (arts. 182 e 183); distribui-se competências
incluísse os moradores no sistema de propriedade (envolvendo
legislativas para os três entes federativos (art. 21, XX, e art.182), dentre
financiamento, pagamento de tributos, etc.). as quais a construção de moradias, melhorias das condições
Nesses casos, observamos a remoção acompanhada de um habitacionais e de saneamento básico (art. 23, IX); e foi relativizada a
discurso sobre o habitat. Atualmente, inúmeros reassentamentos no propriedade privada mediante o cumprimento da sua função social, com
programa MCMV foram, de igual modo, utilizados como alternativas penalidades relacionadas ao estabelecimento escalonado de imposto
durante o processo de remoção. Isso pode ser constatado no artigo progressivo, parcelamento/construção compulsórios ou sua
Desapropriação e remoções para tornar o Rio de Janeiro competitivo desapropriação (art. 182).
(2014), de Cristina Lontra Nacif e Lucas Faulhaber, que a partir de Cita-se também o Estatuto da Cidade (Lei 10.257 de 2001),
dados do Gerenciamento de Terras e Reassentamento da Secretaria que dispôs, dentre outras diretrizes gerais, sobre a regularização
Municipal de Habitação, fizeram um levantamento para onde iam os fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda,
moradores removidos, observando que boa parte deles recebiam aluguel com normas espaciais de urbanização, uso e ocupação do solo (art. 2º,
social para posterior reassentamento (NACIF e FAUHABER, 2014). XVI); prevendo os institutos da concessão de direito real de uso,
Ao que parece, existe um continnum histórico, mas vale concessão de uso especial para fins de moradia e usucapião especial de
destacar que os dispositivos legais hoje dispõem sobre diferentes imóvel urbano (art. 4o).
direitos e garantias de proteção à moradia. Através de uma mobilização A Constituição Estadual do Rio de Janeiro e a Lei Orgânica do
em torno da reforma urbana, a tônica da gestão democrática da cidade, Município do Rio de Janeiro acompanharam essas diretrizes,
241 242

assegurando, dentre outros instrumentos: o direito real de concessão favela, antes registrada no Código de Obras, e dificultou o exercício
real de uso; a criação de Zonas de Especial Interesse Social, que político dos deslocamentos forçados.
atribuem parâmetros urbanísticos mais flexíveis para possibilitar a Nesse sentido, a regularização fundiária da Vila Autódromo é
promoção de serviços públicos e a urbanização local; a usucapião fruto da expansão de direitos relativos à moradia e urbanização das
especial urbano e a permanência dos serviços públicos independente da favelas. Em certa medida, a abertura do processo de regularização
regularidade da ocupação. fundiária e os títulos de concessão real de uso foram termos que frearam
O cenário jurídico se tornou mais favorável às favelas, judicialmente a tentativa de remoção promovida na década de 90.
principalmente em relação aos direitos relativos à moradia e à posse. O historiador Rafael Gonçalves menciona que dentre as
Em certa medida, a nova expansão jurídica contribuiu para a políticas urbanas de integração da favela à cidade, a regularização
regularização fundiária e urbanização, dispondo de vários instrumentos fundiária não foi substancialmente promovida, comparada aos
jurídicos. Tanto na Constituição do Estado (1989), quanto na Lei programas de urbanização, que vêm sendo implementados desde a
Orgânica do Município (1990), as favelas passaram a pertencer década de 1980 (primeiro por Leonel Brizola e depois no programa
juridicamente à esfera da política urbana. Nos mesmos documentos, a
Favela Bairro, de Cesar Maia). Para ele, isso manteve as favelas em
remoção se tornou um procedimento de aplicação excepcional, nas uma zona jurídica de informalidade, e não foi capaz de romper com o
situações em que as condições físicas das áreas colocassem em risco a estigma da ilegalidade (GONÇALVES, 2013). Entretanto, o caso da
vida dos moradores (art. 429 da Lei Orgânica do Município do Rio de Vila Autódromo aponta uma inversão desse registro: a iniciação do
84
Janeiro e art. 234 da Constituição Estadual ). A nova normatividade processo de remoção de um assentamento popular com título, mas
sobre o espaço urbano conseguiu diluir, relativamente, a ilegalidade da considerado favela nos termos do poder público, ou seja, um
aglomerado subnormal.
84
O art. 429, VI dispões da seguinte forma: "urbanização, regularização fundiária e
titulação das áreas faveladas e de baixa renda, sem remoção dos moradores, salvo Por isso, a "(a)normalidade", ou estigma, da favela não pode
quando as condições físicas da área ocupada imponham risco de vida aos seus
habitantes (...)". Da mesmo forma, expressa o art. 234 da Constituição Estadual do Rio ser entendida apenas através do binômio legal/ilegal. A arquitetura, o
de Janeiro: "urbanização, regularização fundiária e titulação das áreas faveladas e de
baixa renda, sem remoção dos moradores, salvo quando as condições físicas da área urbanismo, ou mesmo a medicina no final do século XIX foram
imponham risco à vida de seus habitantes".
243 244

disciplinas que, de um modo ou de outro, auxiliaram na classificação filósofo trata de demonstrar como a norma médica, à margem ou
das favelas como lugares insalubres, desordenados, precários, inseguros acoplada à atividade jurídica, foi delineando três figuras de anormais: o
- um sub-urbanismo. Trata-se de uma (a)normalidade produzida por monstro, que infringe tanto as leis naturais como jurídicas (como
discursos e práticas institucionais, geralmente acopladas ao direito. exemplo, a hermafrodita); o incorrigível, que aparece nas instituições
Nesse mesmo sentido, as políticas habitacionais, promovidas como disciplinares (escola, exército, convento etc.); e o onanista, com o
resposta ao fenômeno favela, foram formas de normalizar um modo de problema que surge referente ao corpo sexualizado da criança
moradia, conforme os padrões urbanísticos. (FOUCAULT, 2010b).

Esses estudos tratam da normalização destinada a sujeitos,


relacionada ao processo de constituição da figura dos anormais,
3 A disciplina, a biopolítica e o habitar a cidade: notas sobre a
desdobrado em uma rede institucional complexa. O que vale ressaltar
normalização de um espaço urbano a partir da obra de Michel
nessa obra é o modo como Foucault procurou compreender a produção
Foucault
da norma, não através de uma estrutura legal, mas no desdobramento de
No curso Os Anormais (1974), o filósofo Michel Foucault
atividades, que poderíamos chamar de "marginais", como o próprio
esclarece que a norma não se restringe ao papel de interdição, mas
desenvolvimento dos exames médico-legais, ou mesmo a utilização da
carrega também um âmbito positivo de intervenção e transformação:
psiquiatria, que, no século XX, ultrapassaria as instituições hospitalares
mediante a construção de "enunciados verdadeiros fabrica certas
e judiciárias, para se tornar um "tratamento" direcionado a toda
fronteiras, certos binômios ('normal e patológico', 'doentes e sãos', o
sociedade.
'perigoso e o inofensivo'), sobre os quais operam diversos mecanismos
Foucault relaciona o saber e os mecanismos de poder ao
de individualização" (FOUCAULT, 2010b, p. 37).
processo de normalização. Essa relação é observada em seus estudos
Nesse curso, Michel Foucault discorre sobre como nas
genealógicos na década de 70, em que o filósofo procura entender o
conjunções entre o judiciário e o médico, ou a psiquiatra, foi se
desenvolvimento de procedimentos e aparelhos de verificação (os
constituindo diferentes mecanismos de poder como forma de controle
regimes de verdade) (FOUCAULT, 2010a). Não há para o teórico uma
dos "anormais", o que ele chama de poder normalizador. Em síntese, o
exterioridade entre o saber e o poder: embora específicas, as práticas de
245 246

poder se articulam com técnicas de saber, como a ciência foi para o leproso era expulso da cidade. Aqui, a exclusão ocorreria a partir de um
ocidente. conjunto jurídico - regulamentos, leis e até rituais religiosos -, que vão
operar através de uma "divisão tipo binária" entre leprosos e não
Em A vontade de saber (1976), primeiro tomo do livro
leprosos (FOUCAULT, 2008, p. 13).
História da Sexualidade, a problemática da sexualidade retorna, mas
aqui o filósofo avança para pensar como o sexo se tornou, a partir do O segundo exemplo trata de uma técnica de quarentena,
século XVII, mais do que um objeto de repressão: um elemento exercida principalmente no século XVI até o século XVII, sobre
importante para a disciplina do corpo e a regulação da população. Sobre cidades consideradas pestilentas. Nelas, não foi mais efetuada uma
esses dois níveis, individual e global, as formas de controle da exclusão total dos doentes, mas desenvolvida uma vigilância e uma
sexualidade atravessaram a emergência de um poder que se organizava série de regulamentos, que trataram de prescrever os comportamentos e
cada vez mais em torno da gestão da vida, através de duas tecnologias: a circulação, distribuir os corpos em um espaço, determinando que
a disciplina e o biopoder (FOUCAULT, 2013). horas uma pessoa pode entrar e sair, o que ela deve comer, com quem
ela pode ter contato etc. Diferentemente, os novos procedimentos que
Trata-se, para o filósofo, de um deslocamento dos mecanismos
emergiram no século XVIII, como a inoculação, já não mais separaram,
de poder, antes baseados na racionalidade do poder soberano, no direito
nem esquadrinharam determinados corpos em um espaço, mas
sobre a vida e a morte, para a partir do século XVIII se encarregarem
passaram a determinar e averiguar os riscos e probabilidades de uma
cada vez mais dos "espaços de existência": "o corpo, a saúde, as
doença em uma população, e procurar não mais anular, mas frear os
maneiras de se alimentar e de morar, as condições de vida, todo o
efeitos de uma epidemia (FOUCAULT, 2008).
espaço da existência" (FOUCAULT, 2013, p. 156).
Nesse viés, Foucault diferencia entre a lei, a disciplina e o
Para entender melhor esses apontamentos, vale recorrer, de
biopoder (respectivamente), processos diferentes de normalização.
forma breve, a três exemplos que Foucault desenvolve no curso
Enquanto a lei se refere ao gládio, operando entre um binômio a partir
Segurança, Território e População: o banimento dos leprosos, a cidade
pestilenta, e as técnicas de inoculação. O primeiro caso se refere a um daquilo que é proibido, a norma na disciplina atua mais como um
“contradireito” operando de forma específica, classificando e
sistema medieval de separação entre os doentes e os sãos, onde o
hierarquizado indivíduos: "Elas tem o papel preciso de introduzir
247 248

assimetrias insuperáveis e de excluir reciprocidades" (FOUCAULT, Esse "poder sobre a vida" funcionou em duas vertentes: de um
1987, p. 183). A norma da biopolítica, por sua vez, será uma resultante lado pelas técnicas disciplinares sobre um corpo-máquina, isto é, “a
de um parâmetro de normalidade, identificável através das variáveis de anátomo-política do corpo humano"; de outro, por dispositivos
uma realidade. Aqui, o “normal” será traçado com base na “curva da reguladores (ou de segurança), no sentido de uma biopolítica da
normalidade”, e nesse sentido: “a operação de normalização vai população, tida como corpo-espécie (FOUCAULT, 2013). Ambas
consistir em fazer essas diferentes distribuições de normalidades tecnologias agiram, cada uma a sua maneira, sobre os "espaços de
funcionarem umas em relações às outras e [em] fazer de sorte que as existência" (o corpo, a saúde, as maneiras de se alimentar, de morar
mais desfavoráveis sejam trazidas às mais favoráveis” (FOUCAULT, etc.). Assim, elas foram aplicadas de forma difusa (na família, na
2008, p. 82). medicina, nas escolas, na polícia, na administração de coletividades) e
intervieram também sobre processos econômicos, potencializando a
Foucault não coloca as descontinuidades das tecnologias de
expansão das forças de produção, mas garantindo a docilização e
poder em forma de progressão: primeiro viria o mecanismo da lei para a
sujeição desses corpos, hierarquizando e criando hegemonias no corpo
soberania, depois a tecnologia disciplinar moderna, e, por fim, o
social - distribuindo uma valoração e utilidade da vida.
biopoder. Em suas palavras, trata-se de "edifícios complexos" onde as
técnicas se aperfeiçoam e se complicam: "o que vai mudar é o sistema A normalização, então, aparece como efeito de um poder que
de correlação entre os mecanismo jurídico-legais, os mecanismos se encarrega cada vez mais da vida. A norma aqui não opera como a lei
disciplinares e os mecanismos de segurança" (FOUCAULT, 2010b, p. que, de forma geral e abstrata, proíbe e exige obediência. Ao contrário,
11). essa "velha mecânica da soberania", a lei, vai funcionar cada vez mais
como norma. (FOUCAULT, 2010a. p. 213). Mais do que restringir ou
Entretanto, a mudança que Foucault quer assinalar, entre os
interditar, ela opera, assim, de forma positiva, a mais e a menos do
séculos XVII e XVIII, trata do relativo deslocamento das relações de
sistema jurídico: hierarquiza, valoriza, atua e produz cesuras (normais,
poder e da produção de saber que passam a centrar cada vez mais na
anormais e subnormais). Se nos últimos séculos houve uma produção
vida: "A velha potência da morte em que se simbolizava o poder
"ruidosa e crescente" de leis e códigos, isso foi, para Foucault, um
soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos
efeito regressivo de "formas que tornam aceitáveis um poder
corpos e pela gestão da vida" (FOUCAULT, 2013, p. 152).
249 250

normalizador" (FOUCAULT, 2013. p. 157): espaço, o tratamento disciplinar das multiplicidades no espaço. Um

Não quero dizer que a lei se apague ou que as instituições exemplo específico foram as construções das Vilas Operárias, no século
de justiça tendam a desaparecer; mas que a lei funcione
XIX, que não tinham apenas a intenção de possibilitar moradias mais
cada vez mais como norma, e que a instituição judiciária
se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos salubre aos operários - em contraponto às aglomerações das habitações
(médicos, administrativos.) cujas funções são sobretudo
reguladores (idem). em cortiços e pequenos quartos no centro das cidades - mas também de
A própria cidade aparece na obra de Foucault como objeto estabelecer melhor controle sobre o trabalhador.
desses "edifícios complexos". Foucault não chegou a desenvolver um
Foucault também demonstra que, no século XVIII, cidades em
estudo específico sobre o urbano, mas suas reflexões atravessaram esse
expansão comercial foram objeto de outro estilo de urbanização. Ele
tema. Por elas, depreende-se que a cidade foi muitas vezes o laboratório
recorre ao exemplo de Nantes, uma cidade em desenvolvimento
de discursos, de técnicas, regimes de verdade e procedimentos de poder.
econômico, que colocava outros problemas: potencialização das trocas
No curso Segurança, Território e População (1977-78), Foucault
comerciais, no interior da cidade e com o entorno rural; as questões de
demonstra que três mecanismos atuaram na organização do espaço: o
higiene e arejamento contra a proliferação de miasmas mórbidos nos
mecanismo jurídico-legal da soberania, o disciplinar e o da segurança.
bairros demasiadamente apertados; e a vigilância de ruas, onde se
De um lado, os dispositivos de segurança e disciplinares intensificavam os afluxos de pessoas, tendo em vista a supressão das
foram, segundo o autor, uma resposta a todo o problema que a cidade muralhas.
colocava à soberania - esse lugar caracterizado pela coexistência densa,
Aqui, há um deslocamento de uma técnica disciplinar, que
diversidade, liberdade e pelo governo de si: "No fundo foi necessário
trabalhava com a construção de espaço vazio e artificial para uma
reconciliar a cidade com a legitimidade da soberania" (FOUCAULT,
urbanização real, que passa a lidar com uma série de dados materiais
2008, p. 84). Se a soberania pensava o espaço pelos termos do território,
existentes (rios, topografia, aglomerações, etc.). Ele chama de
as técnicas disciplinares e biopolíticas foram necessárias para
mecanismo de segurança os dispositivos que vão intervir em um espaço
restabelecer um governo sobre a cidade.
dado, de modo a potencializar ou despotencializar certos efeitos
As técnicas disciplinares interferiram na vida urbana através (roubos, doenças, epidemias, escassez etc.).
de diferentes dispositivos que articularam, a partir da arquitetura do
251 252

Vale mencionar que urbanismo como um saber emerge no fácil encontrar na cidade operária. E depois vocês tem
uma série de mecanismos que são ao contrário,
século XIX e XX na Europa, quando a organização do espaço, sua mecanismos regulamentadores, que incidem sobre a
população enquanto tal e que permitem, que induzem
arquitetura, passavam a ser importantes para condução de certos comportamentos de poupança, por exemplo, que são
vinculados ao habitat, à locação do habitat e,
comportamentos, não apenas como signos de uma estética ou eventualmente, à sua compra. Sistemas de seguro-saúde
ostentação do poder soberano. Cada vez mais, tratava-se de como ou de seguro-velhice; regras de higiene que garantem a
longevidade ótima da população, pressões que a própria
resolver problemas de salubridade, da proliferação de doenças, de certas organização da cidade exercem sobre a sexualidade,
portanto sobre a procriação; as pressões que se exercem
condutas sexuais e da abertura de vias em cidades adensadas, com sobre a higiene das famílias; os cuidados dispensados às
crianças; a escolaridade, etc. (FOUCAULT, 2010a, p.
aglomerações de moradias precárias da classe operária (CHOAY, 2000). 211).

A cidade, assim, foi ao mesmo tempo um objeto do recorte Nesse exemplo, percebemos que a própria habitação, não por

geométrico e da disposição de seus elementos pelo projeto artificial dos acaso, foi um elemento-alvo das duas tecnologias. Vemos aqui a

urbanistas e alvo dos mecanismos reguladores de locação, seguro- construção de uma arquitetura disciplinar (cada família em sua casa, e

saúde, higiene ... toda uma regulação da vida, produzindo uma cada membro em um cômodo) como técnicas reguladoras que atuam

normalização urbanística que cruza "conforme uma articulação não só no campo da saúde pública, como no próprio campo econômico

ortogonal, a norma da disciplinar e a norma da regulamentação" (poupança, seguro, financiamento, etc.). São procedimentos sobre o

(FOUCAULT, 2010 p. 213). No curso Em Defesa da Sociedade (1976), habitat (casa) que procuram conduzir a uma determinada prática de

isso se torna mais claro: habitar a cidade (modo de vida/subjetividade). Nesse sentido que as
ingerência, o poder normalizador sobre um espaço estão
(...) Examinem algo como a cidade operária. A cidade
operária, tal como existe no século XIX, o que é? Vê-se correlacionadas no próprio processo de normalização do sujeito que
muito bem como ela se articula, de certo modo
perpendicularmente, mecanismos disciplinares de habita.
controle sobre o corpo, sobre os corpos, por sua
quadrícula, pelo recorte mesmo da cidade, pela
localização das famílias (cada uma numa casa) e dos
indivíduos (cada um num cômodo). Recorte por
indivíduos, em visibilidade, normalização dos
4 Considerações finais
comportamentos, espécie de controle policial espontâneo
que se exerce assim pela própria disposição espacial da
cidade: toda uma série de mecanismos disciplinares que é
253 254

Se pensarmos no contexto urbano carioca, as favelas foram de habitação, tonando-se a remoção cada vez mais um "edifício
tratadas como uma urbanidade periférica em relação a normalização complexo".
produzida pelo urbanismo formal. A favela como espaço anormal não Enfatiza-se mais uma vez que o contexto pós-constitucional,
surge apenas no registro da ilegalidade, mas através de uma rede em decorrência da forte mobilização pela reforma urbana, trouxe
complexa de instituições, de distribuições entre mecanismos de saber e mudanças favoráveis às favelas, incluindo algumas políticas que se
poder. Ali, operaram e ainda operam diuturnamente: funcionários direcionaram para sua urbanização e regularização. Talvez seja por isso
públicos, políticos, assistente sociais, judiciário, polícia/milícia, igrejas,
que a favela agora apareça em uma escala mais complexa de uma
ou seja, uma série de aparelhos e agentes, cuja atuação constitui uma "quase normalidade" - ao invés da ilegalidade - entre tantos direitos e
rede de ingerência sobre ela. garantias relacionadas ao direito à cidade.
Como pensar a remoção nesse contexto? Vale observar que No entanto, para a Vila Autódromo, o conjunto habitacional
não se trata apenas da expulsão de pessoas, mas da remoção de um retorna como a moradia mais "adequada", oferecida pelos Estado. O
espaço, a retirada de um habitar a cidade. Nesse sentido, podemos que vale ressaltar também, é que atualmente a Prefeitura divulga
pensar, a princípio, uma semelhança dessa prática com as técnicas de
diferentes opções, possibilitando a própria negociação da indenização.
poder destinadas ao problema da lepra, descrito por Foucault como
Assim, ela atua na base do "convencimento", isto é,
exemplo do funcionamento do mecanismo legal.
procurando constranger e persuadir os moradores a aceitarem o
No entanto, a remoção não envolve simplesmente a expulsão reassentamento ou suas ofertas de indenização. Mesmo com diversas
de determinadas pessoas que habitam certo espaço, mas também toda garantias jurídicas, mesmo sem nenhuma determinação judicial que
uma rede de ingerências sobre o habitat. Em relação a morfologia da obrigue os moradores a desocuparem o local, o poder procura estimular
favela, se os Parque Proletários procuraram disciplinar os favelados a
e forçar os moradores a negociarem o que eles não queriam, através de
partir de uma educação à vida urbana, os conjuntos habitacionais dos uma intervenção direta no espaço e nas relações sociais. Nesse campo
anos 60 e 70 constituíram uma disciplinarização da produção espacial molecular, conversando com cada família, com cada morador, a
da moradia. Nesse período, os moradores das favelas removidas eram
obrigados a se adequarem às formas colocadas pelo sistema financeiro
255 256

Prefeitura age de forma biopolítica, atuando sobre as diferenças dos


desejos e das necessidades, e intervindo no ambiente urbano.
Referências bibliográficas
Desse modo, a remoção também decorre da modificação de Ação Civil Pública, 5ª Vara de Fazenda Pública, Tribunal de Justiça do
um espaço, ao torná-lo insalubre. E aqui podemos perceber uma Rio de Janeiro, Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, nº
0075959-18.2013.8.19.0001.
contradição: como, no contexto legal que prepondera a defesa da
BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República do Brasil.
moradia - que não deixa de ser biopolítico - se torna "normal" a VadeMecum. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
degradação de um ambiente urbano que prejudica a habitabilidade local? BRASIL, Lei n. 10.257, 10 de julho de 2001. Estatuto da Cidade. 13ª
ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
Nesse ponto, Foucault aponta que no campo de normalização,
CHOAY, Françoise. A regra e o modelo. São Paulo: Editora
a partir de uma cesura dos grupos de indivíduos – os "anormais", ou Prospectiva, 1985.
indivíduos portadores de um estigma, ou mesmo contra um grupo CHOAY, Françoise. O urbanismo: utopias e realidades, uma antologia.
étnico - o racismo foi o mecanismo que tornou possível o exercício 5ª ed.São Paulo: Editora Prospectiva, 2000.

contra a vida. Aqui, a biopolítica foi promovida ao revés, "em defesa da FAULHAUBER, L; NACIF, C. Desapropriações e remoções para
tornar o Rio de Janeiro mais "competitivo". In: SANCHEZ, F.
sociedade", da proteção dos "normais"85. BIENENSTEIS, G. OLIVEIRA, F. NOVAIS, P. (orgs). A copa do
mundo e as cidades: políticas, projetos e resistência. Niterói: Editora da
Sem ignorar o racismo social da população negra e de origem UFF, 2014.
nordestina, que habita em significativa proporção às favelas, podemos FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade: curso no Collège de
nos lançar o desafio de pensar que racismo biopolítico atinge também France. Tradução Maria Ematina Galvão. 2ª ed. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2010a.
seus "espaços de existências". Ou seja, opera mediante a normalizações
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber.
urbanísticas, e atua contra a própria forma de habitar a cidade por essas Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon de
pessoas (seus modos de vida, sua subjetividade) - no registro da Albuquerque. 14ª ed. Rio de Janeiro:Edições Graal, 2013.
FOUCAULT, Michel. Os Anormais. Tradução: Eduardo Brandão. São
produção de diferenças, de heterotopias.
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010b.
85
Seus trabalhos discorrem principalmente sobre a formação do racismo desenvolvido FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado
entre o final do século XIX e a segunda guerra mundial, pautado em teorias no Collège de France (1977-1978). Tradução de Eduardo Brandão. São
evolucionistas e estudos biológicos (FOULCAULT, 2010a). Paulo: Martins Fontes, 2008.
257 258

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. REFLEXÕES ACERCA DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NA
Tradução de Rachel Ramalhete. 20ª ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO EM TEMPOS DE
GONÇALVES, R. Favelas do Rio de Janeiro. História e Direito. Rio de
Janeiro: PUC, 2013. GLOBALIZAÇÃO

IBGE, Censo 2010. Disponível em:


http://www.censo2010.ibge.gov.br/agsn/. Acesso em 15 fevereiro de
2010. Vanessa Rodrigues Ferreira86

RIO DE JANEIRO, Constituição (1989). Constituição do Estado do


Rio de Janeiro. ALERJ. Disponível em:
http://www.alerj.rj.gov.br/processo6.htm. Acesso em 13 de novembro Resumo: Este artigo objetiva verificar se a inclusão da sociedade civil
de 2014. nos processos decisórios de planejar a cidade conseguiria modificar o
modo de produção segregador e excludente do espaço urbano
RIO DE JANEIRO, Rio de Janeiro, Lei Orgânica (1990). Lei Orgânica
hodierno. Para isso, buscar-se-á analisar as formas de planejamento
do Município. Procuradoria Geral do Município, 2ª ed. Rio de Janeiro:
urbano adotados no Brasil e que tipo de participação popular se
Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Município, 2010.
procura fortalecer nesses mesmos processos de pensar a cidade.
Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/1659124/DLFE-
222901.pdf/LeiOrganica.pdf. Acesso em 13 de novembro de 2014. Palavras-chave: planejamento urbano; participação popular;
produção do espaço urbano.
RIO DE JANEIRO, Rio de Janeiro, Plano Diretor (2011). Lei
Complementar, nº 111 de 2011. Disponível em:
http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/139339/DLFE-
229591.pdf/LeiComplementar1112011PlanoDiretor.pdf. Acesso em: 13 1 Introdução
de novembro de 2014.
O presente artigo se propõe a discutir e a refletir a participação
S/A. Cadastro para a remoção de favela começa na quarta. O Globo,
Caderno Rio, Rio de Janeiro, 17 de outubro de 2011, p. 14. popular na produção do espaço urbano. Em outras palavras, quer-se
S/A. Favela Vila Autódromo será removida, diz Paes. O Globo, analisar se a inclusão da sociedade civil nos processos decisórios de
Caderno Rio, Rio de Janeiro, 05 de outubro de 2009, p. 11.
planejar a cidade conseguiria modificar o modo de produção segregador
VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela: do mito de
origem a favela.com. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. e excludente do espaço urbano hodierno. Esse exame se justifica porque
uma das grandes mudanças da legislação pátria, bem como do
entendimento de parcela significativa dos especialistas em urbanismo,
86
Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009-2014).
259 260

foi a inserção da participação popular nas tomadas de decisão sobre os traz em seu bojo a dimensão real do espaço urbano, ignorando todas as
rumos das cidades no país. Assim, pretendo adentrar brevemente em suas contradições e conflitos a ela inerentes.
três “modelos” de planejamento que identifico serem importantes: o Segundo Lima Jr (2010), o planejamento urbano pode ser
tecnicista-moderno, de elaboração exclusiva dos especialistas e de definido sob diferentes ópticas:
monopólio estatal; o planejamento com participação popular, o qual
seja tratado como o conjunto de técnicas aplicadas ao
vincula as reivindicações da sociedade civil às políticas urbanas espaço físico ou como a soma das táticas de governo para
a cidade – remetem sempre a um ideal normativo, um
promovidas pelo Estado; e o planejamento estratégico, que busca paradigma para ação, ponto de convergência de escolhas
relativas aos princípios, meios, objetivos e atores do
adequar as cidades ao mundo globalizado –, para, enfim, problematizar processo decisório.
a hipótese desta pesquisa87. No Brasil, a preocupação com a regulamentação dos espaços
se deu em momento posterior ao surgimento de uma vida urbana. De
um modo geral, até o século XIX, a política urbana se resumiu a
2 Do planejamento a portas fechadas à inclusão da participação
padrões de construção fixados em lei, sempre à moda das elites e
popular no planejamento e gestão urbana
desvinculado das realidades daqueles que estavam à margem do sistema
O planejamento remonta uma ideia de proposição de metas
e, não raras vezes, operou pela proibição de moradias coletivas e
futuras, a fim de se alcançar um modelo ideal. No planejamento
construção dos chamados cortiços (MARICATO, 2012).
tradicional, os problemas percebidos são tidos como desvios do modelo
No início do século XX, surgiu uma nova forma de pensar e
idealizado, os quais existem apenas nas matrizes discursivas do saber
gerir as cidades denominado Movimento Higienista que, aliado ao
competente (RODRIGUES, 2008). Igualmente, o planejamento urbano
conhecimento médico da época, buscava adequar os espaços urbanos, a
objetiva a cidade ideal, ocupação harmônica e integrada das áreas
fim de evitar a ocorrência de epidemias. Concomitantemente às práticas
urbanas voltadas para o desenvolvimento. Raramente o planejamento
do Movimento Higienista, promovia-se o embelezamento paisagístico e

87
eram implantadas as bases legais para um mercado imobiliário de corte
Os três “modelos” de planejamento listados não traduzem uma classificação firmada
pela literatura acerca do planejamento urbano, mas serão utilizados aqui tão somente capitalista. A população excluída desse processo era expulsa para
para uma melhor compreensão dos momentos históricos em que são
(predominantemente) empregados no Brasil. morros e franjas da cidade (MARICATO, 2002).
261 262

A expulsão dos pobres constituía uma nova forma de casos, entretanto, pretende, na verdade, ocultá-las
(VILLAÇA, 2004, grifo do autor).
revitalizar as “áreas feias” das centralidades da cidade, o que
O modelo tecnicista teve seu auge na ditadura militar. Uma
possibilitou a arrancada do mercado especulativo e a adoção de padrões
quantidade inédita de planos diretores foi elaborada nesse período. O
urbanísticos inspirados nas cidades europeias, com a construção de
plano diretor como ideologia se fortalecia, entendido como a solução
cidades-jardins, a exemplo dos famosos planos Agache, na cidade do
para o caos e crescimento descontrolado. Paradoxalmente, durante o
Rio de Janeiro, e Prestes Maia, na cidade de São Paulo (VILLAÇA,
regime militar, a cidade paralela – aquela que cresce à margem da
2004).
legalidade – alcançou patamares nunca antes vistos (MARICATO,
Entre os anos 1940 e 1980, há uma inversão da residência da 2012).
população brasileira do campo para a cidade. Nesse período também se
Diante desse descompasso entre cidade-ideal e a cidade-legal,
verifica uma mudança de paradigma no urbanismo, agora sob a
era preciso modificar a forma de pensar os rumos da cidade. O
hegemonia burguesa urbana: embelezamento e melhoramento dão lugar
planejamento tecnicista (feito a portas fechadas) e fragmentário (atuante
a eficiência, ciência e técnica (MARICATO, 2012).
apenas em porções da cidade) vai perdendo força, uma vez que se
A política urbana continuou a ser monopolizada pelo Estado, demonstrou ineficaz para (re)organizar a produção do espaço urbano.
sob o auxílio de especialistas, técnicos e “conhecedores” da cidade. Ao revés, essa metodologia colaborou, em muitos casos, para reforçar a
Ignorando o saber popular e desvinculado da realidade das cidades, os negação de cidade para a maioria da população.
planos diretores se voltavam ao papel – que de nada serviam – e aos
A reflexão acerca das práticas alcançadas com o planejamento
poucos foram engavetados ou esquecidos. O que ganhou, de fato,
estritamente tecnicista e o período de redemocratização do país
repercussão foi o plano como ideologia:
contribuíram para a inclusão da participação popular no processo de
esvaziado de seu conteúdo e reduzido a discurso, alteram- planejar e gerir as cidades. Com isso, verifica-se uma disputa da
se os conceitos de “plano” e “planejamento”. O
planejamento urbano no Brasil passa a ser identificado sociedade civil frente ao monopólio estatal na produção de normas e na
como atividade intelectual de elaborar planos. Uma
atividade fechada dentro de si própria, desvinculada das execução das políticas atinentes ao espaço urbano.
políticas públicas e da ação concreta do Estado, mesmo
que, eventualmente, procure justificá-las. Na maioria dos
263 264

2.1 A constitucionalização da política urbana Logo no início da redemocratização em 1985, diante de uma
nova situação de postulações e agentes políticos, surge o Movimento
O planejamento urbano participativo começa a ganhar
Nacional pela Reforma Urbana (MNRU), criado por setores da Igreja
visibilidade entre os especialistas em urbanismo e áreas conexas. A
Católica de tendência progressista, lideranças de movimentos urbanos,
expressão reforma urbana surgiu pela primeira vez em 1963, no
setores não-governamentais, técnicos de assessoria aos movimentos
Seminário sobre Habitação e Reforma Urbana, realizado pelo Instituto
urbanos e intelectuais, com participação significativa de professores da
de Arquitetos do Brasil (IAB), no Hotel Quitandinha, na cidade de
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
Petrópolis, no Estado do Rio de Janeiro (SILVA, 2003). O objetivo do
Seus fundamentos estavam definidos na sua própria denominação, com
encontro era diagnosticar e elaborar soluções para a problemática
o propósito de discutir, articular e elaborar uma proposta global sobre a
urbana daquele período, visando a inclusão do tema nas pautas do
questão urbana no país com vistas à elaboração da nova constituição
governo de João Goulart, as chamadas “reformas de base” (FROTA,
(SILVA, 2003).
2008).
Ao assumir uma nova ética social, o MNRU objetivava a
Fora do âmbito institucional, os movimentos sociais surgidos
politização da questão urbana pela denúncia e pela crítica da
no Brasil na década de 1970 foram gestados a partir das lutas e dos
desigualdade espacial a partir da negação da não-cidade, da cidade
protestos urbanos num contexto bem particular. De início, as
paralela, clandestina ou espoliada. As principais plataformas do
reivindicações se limitaram às comunidades de bairro e a questões
movimento, incluídas na Emenda Constitucional de Reforma Urbana,
pontuais, geralmente em torno de carências daquele local e sem grandes
foram: a) função social da cidade e função social da propriedade; b)
articulações políticas. Posteriormente, devido ao fim do milagre
direito à cidade e à cidadania; e, c) gestão democrática da cidade.
econômico brasileiro e pelo crescente desejo de redemocratização do
país, os movimentos assumiram uma postura mais politizada e A maior conquista social do MNRU, sem dúvidas, foi a
abrangente, que foram fundamentais para, mais tarde, estabelecerem a inserção do capítulo “Da Política Urbana”, dentro do Título VII “Da
transição democrática (SILVA, 2003). Ordem Econômica e Financeira”, expressos nos artigos 182 e 183 na
Constituição Federal de 1988. Além disso, o art. 5º, XXIII, condicionou
o direito de propriedade à observância de sua função social. Justamente
265 266

por expressar que “a propriedade urbana cumpre sua função social políticas públicas. Ocorre que a mera absorção de pautas populares no
quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade plano diretor não é garantia de melhorias substanciais das cidades, isto
expressas no plano diretor” (art. 182, § 2º, CRFB/88) e por apresentar é, não necessariamente inverte a lógica excludente da produção do
mecanismos que sancionem o desrespeito à função social da espaço urbano.
propriedade urbana - parcelamento ou edificação compulsórios; O Estatuto da Cidade prometeu uma nova roupagem ao plano
imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no diretor, qualificando-o como “participativo”, em contraposição aos
tempo e desapropriação-sanção (art. 182, § 4º, CRFB/88) - é que se
velhos planos tecnicistas feitos exclusivamente por especialistas em
pode falar em uma mudança de paradigma na política urbana. A urbanismo. Acreditava-se (e ainda se acredita) que a participação
propriedade deixa de ser um direito ilimitado, perpétuo, de cunho popular conseguiria dar maior efetividade aos planos diretores,
estritamente individual para ser subordinada à função social. porquanto o diagnóstico da comunidade e as propostas obtidas pelo
No âmbito infraconstitucional, destaca-se a norma geral federal “consenso” não haviam sido considerados até então.
regulamentadora dos artigos 182 e 183 da Carta Magna, denominada A grande inovação não mudou, de fato, os caminhos da
Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001). Rolnik (2001) elenca três
política urbana. Os diagnósticos feitos em audiências públicas
grandes conquistas contempladas pela referida lei: revelaram o que todos já sabiam há tempos: a cidade hodierna é um
um conjunto de novos instrumentos de natureza espaço caótico e desordenado. As inúmeras demandas populares foram
urbanística voltados para induzir mais do que normatizar
as formas de uso e ocupação do solo; uma nova estratégia pautadas e muitas incluídas na redação dos planos diretores, mesmo
de gestão que incorpora a ideia de participação direta do
cidadão em processos decisórios sobre o destino da cidade quando sua viabilidade de execução ultrapassava os limites
e a ampliação das possibilidades de regularização das
posses urbanas, até hoje situadas na ambígua fronteira orçamentários dos municípios, ou ainda, quando as competências
entre o legal e o ilegal. extrapolavam as da esfera municipal. O sonhado consenso das pautas
Importante destacar a inclusão da participação popular em para a construção da “cidade que queremos” se mostrou utópico, visto
todas as fases de elaboração do plano diretor como um dos seus que os interesses dos setores da sociedade civil são antagônicos. Em seu
requisitos de validade, bem como a necessidade de representantes da lugar, viu-se uma disputa de interesses entre segmentos da sociedade e
própria sociedade civil na implementação, controle e gestão das entre os próprios bairros, transformando o plano diretor em um palco de
267 268

negociações de cunho individualista. Aqueles grupos mais organizados transformador e de resistência para servir como elemento legitimador
politicamente (o empresariado e as elites) conseguiram se firmar, das práticas estatais.
demonstrando que a participação popular, em muitos dos processos de
elaboração dos planos diretores, serviu para reafirmar as práticas
3 Novo discurso em tempos de globalização: o planejamento
desenvolvimentistas que imperam na cidade. A participação na
estratégico
elaboração dos planos revelou-se, portanto, uma formalidade – uma
adequação à lei, nesse caso, ao Estatuto da Cidade. O fim dos anos 80 e início da década de 90 ilustrou um
momento curioso no cenário pátrio. Como visto, pela primeira vez a
Não obstante, o velho planejamento tecnicista não fora
Constituição Federal incluiu em seu texto um capítulo exclusivo para
totalmente abandonado. A visão tecnocrática dos planos e do processo
tratar da política urbana, atribuindo aos municípios a execução dessa
de elaboração das estratégias de regulação urbanística continuou a
política. Posteriormente, leis infraconstitucionais trouxeram a
estabelecer padrões idealistas, ignorando qualquer dimensão que
obrigatoriedade da participação popular em todos os processos
reconheça conflitos, o que colaborou com o fortalecimento e a
decisórios de planejamento e gestão urbana.
reprodução de um modelo fragmentário de cidade. Nesse sentido,
Rolnik (1997) afirma que: É nesse período também que o planejamento estratégico de
cidades tornou-se referência para as práticas urbanísticas. Cumpre
a dificuldade de se avançar em direção a uma Reforma
Urbana decorre do grande poder de interesses destacar que a emergência desse novo modelo de planejamento não foi
econômicos, mas também da existência de uma cultura
urbanística — dos meios políticos e técnicos — que não um fenômeno isolado,
consegue ver o processo de produção dos assentamentos
precários, irregulares, ilegais como uma forma específica mas tratou de analisar diferentes espaços sociais nos quais
e particular de urbanização, com sua própria dinâmica foi adotado. Primeiramente, nos EUA, lugar onde a
econômica e institucional, vendo-a, outrossim, como abordagem estratégica foi sistematizada a fim de ser
desvio de um sistema que deveria funcionar empregada na empresa (Harvard University) e adaptada
perfeitamente. para as cidades (São Francisco). Depois, em Barcelona,
centro de difusão para a América Latina. Por fim, no Rio
Dessarte, a participação popular se mostrou uma qualificadora de Janeiro, que inspirou diversas experiências brasileiras
do processo tecnicista de planejamento urbano na maior parte das (LIMA JR, 2010).

cidades brasileiras. De fato, retirou-se grande parte de seu potencial


269 270

Os planejamentos estratégicos foram implementados sob a Noções como sociedade de mercado, competição e
égide de uma nova conjuntura: a globalização. Em linhas gerais, pode- globalização indicam novas bases cognitivas para repensar a cidade. Na
se dizer que globalização representa o processo de hegemonização da contemporaneidade, o local deve se sujeitar ao global se quiser se
ideologia neoliberal, com o objetivo de ajustar a crise estrutural da manter no “jogo”. Isso implica em “um reordenamento do espaço
economia mundial capitalista. mundial, uma nova e instável geografia da produção e circulação da
riqueza, na qual se assiste ao crescimento econômico de algumas
As mudanças advindas desse projeto globalizador, segundo
cidades e regiões e ao declínio de outras” (LIMA JR, 2010).
Lima Jr (2010), manifestam-se em diversas dimensões da vida social.
Pelo viés econômico, significa a “integração de mercados financeiros, a Em tempos de globalização, o planejamento urbano, intrínseco
reorganização da empresa, a dispersão da atividade industrial, a nova à ideia de Estado, passa a adquirir lógicas e técnicas até então estranhas
divisão internacional do trabalho e o crescimento do comércio à administração pública. O sistema gerencial vai tomando seu espaço,
mundial”. Na dimensão política, assistiu-se ao enfraquecimento das juntamente com características que lhe são inerentes: eficiência,
barreiras comerciais e financeiras estatais e ao aparecimento das objetividade, flexibilidade e adoção dos parâmetros da iniciativa
organizações multinacionais como os novos atores. No âmbito cultural, privada como padrão a ser perseguido (LIMA JR, 2010).
a globalização “foi a difusão das categorias de análise da sociedade A forma de pensar o local em relação ao global traz consigo a
identificadas com o pensamento liberal”, alicerce ideológico que necessidade de reconsiderar a natureza dos problemas urbanos, “até
objetivou conformar a sociedade ao mercado. então concebidos em termos das carências e dos conflitos
Essa perspectiva retoma o recorte economicista de sociedade, experimentados por uma comunidade” (LIMA JR, 2010). Para elucidar
pensada como mercado, fazendo com que o desenvolvimento social e o tal constatação, o aludido autor cita como exemplo a segregação
desenvolvimento econômico sejam expressões sinônimas. Além disso, a espacial: antes era tomada como “falência do convívio entre os estratos
globalização é apontada como “processo simultaneamente irreversível e sociais”; no planejamento estratégico, não se configura como um
desejável” (LIMA JR, 2010). problema em si ou como um ponto fraco. Ao revés, muitas das vezes a
segregação espacial é um objetivo a ser perseguido, a fim de tornar
parte da cidade competitiva aos olhos dos investidores internacionais.
271 272

Retomando o que foi dito na seção anterior, a questão urbana atores locais naturalizar a ordem social e invocar identidades territoriais
no Brasil se apresentou primeiro sob a óptica desenvolvimentista e e imagens correspondentes” (SÁNCHEZ apud LIMA JR, 2010).
tecnocrática para, posteriormente, materializar-se na politização dos A participação no planejamento estratégico adquiriu outra
problemas associados à urbanização. Em seguida, uma agenda conotação. Na verdade, esse modelo concebe um universo social sem
reformista voltou sua perspectiva à justiça social e à democracia, e foi atores (LIMA JR, 2010), ou seja, ignora o papel das disputas para
incorporada a legitimação da participação popular nos processos definir a representação legítima da realidade ou dos meios de sua
decisórios junto ao Estado. Sob esse ponto de vista, a cidade se mostra
modificação.
como terreno da luta política e como lugar da construção da cidadania
Os defensores do planejamento estratégico afirmam que a
(LIMA JR, 2010).
única participação que interessa é aquela que mobiliza os interesses
Por ser recente, sobretudo quanto visualizada no campo gerais da cidade, diferentemente da participação política, vista como
normativo, a política urbana de cunho participativo deveria ser problemática, pois evidenciava os conflitos e interesses antagônicos
reforçada nos anos seguintes à sua implantação. O que se observa, presentes no tecido social. A aversão à “participação política” se dá
contudo, é que a agenda reformista vem perdendo prestígio a um novo
justamente porque se trata apenas da relação entre Estado e citadinos,
discurso de planejamento: o estratégico. Consoante Vainer (2012) desprezando toda a ênfase do setor empresarial voltado aos interesses
redefinir a problemática urbana em termos de do capital internacional.
competitividade e produtividade significou um
rompimento radical com a pauta de reivindicações
populares do período de democratização, que havia
Nesse novo discurso não há espaços para dissensos ou para
contribuído para conformar a experiência de planejamento qualquer modelo de cidade que não obedeça à lógica hegemônica. A
urbano em importantes municípios no Brasil, a partir da
década de 80. técnica a ser adotada é a mesma para todas as cidades do mundo,
Importante salientar que as práticas municipais participativas fazendo com que elas se pareçam umas com as outras. Isso faz com que
que se consolidavam desde o fim do regime militar são incongruentes o nível de competitividade entre elas seja diretamente proporcional às
com o planejamento estratégico, uma vez que este “acionou forças opções de barateamento dos investimentos privados feitos nas cidades
sociais em torno de projetos hegemônicos que permitiam a alguns pelas grandes corporações. Ademais, a apropriação das cidades por
273 274

interesses empresariais globalizados depende do banimento da política, democracia, contudo, com novos atores. As cidades devem amparar os
da eliminação do conflito, da anulação da história e da negação do ideais dos segmentos estratégicos, que são os interesses das grandes
exercício de cidadania. corporações, em detrimento dos grupos com escassa relevância
estratégica, representados pelo povo (VAINER, 2012 – grifo do autor).
A implementação do planejamento estratégico não seria
possível sem a intervenção pública, isto é, sem a abertura advinda do A unicidade técnica do planejamento estratégico tem como
próprio Estado a esse tipo de apropriação da cidade. O projeto de pressuposto a necessidade de consenso (VAINER, 2012 – grifo do
“separação rígida entre o público e o privado” (BORJA; CASTELLS autor). Ao construir um discurso unívoco, extrai-se toda a personalidade
apud VAINER, 2012), com suas proposições de parcerias entre o do sujeito da fala e se projetam suas pretensões no “sujeito-cidade”: a
empresariado e o Estado, não se alia ao princípio da supremacia do cidade deseja, a cidade necessita, a cidade objetiva, etc. Desse modo,
interesse público. Muito longe de ser um sistema meramente gerencial aceita-se com naturalidade os desejos, necessidades e objetivos da
ou operacional, em que ambos os setores visam o bem comum, como cidade, porquanto há uma consciência generalizada em buscar uma
diversas fábulas descritas e defendidas pela doutrina administrativista, cidade melhor, mais competitiva e, principalmente, uma cidade
esse sistema de parcerias se revela na submissão do Estado ao interesse vencedora.
privado das grandes empresas. Em outros termos, ao Estado incumbe A questão urbana não pode se resumir a competitividade entre
todo o ônus dos investimentos públicos em infraestrutura, concretização as cidades. Querer esgotar as reflexões acerca da produção do espaço
de grandes obras, a fim de abrir caminho para a instalação de empresas urbano a um “realismo” restrito ao mercado é a estratégia por detrás do
multinacionais, tornando a cidade competitiva e atrativa ao capital planejamento estratégico (LIMA JR, 2010). Diante desse cenário, mais
internacional. do que exigir a participação popular, é preciso questionar que tipo de
Com efeito, o fim da separação rígida entre o setor público e o participação está-se fortalecendo nas práticas discursivas bem como na
privado nada mais é do que o repasse total dos centros de decisão do sua execução.
Estado para o setor privado. Consequentemente, há uma reestruturação
de significados do poder local, em que a constituição e a legitimação da
4 Necessidade de uma cidadania insurgente
nova cidadania regressam analogicamente à acepção grega de
275 276

A participação popular está ligada à concepção de cidadania. prometem cidadanias mais igualitárias e, com isso, mais
justiça e dignidade na organização dessas diferenças. Na
Só participa efetivamente da vida política quem consegue se visualizar prática, porém, a maioria das democracias vivencia
conflitos tremendos entre seus cidadãos, na medida em
como cidadão. A partir dessa premissa, cabe questionar o que é que seus princípios entram em choque com preconceitos
quanto aos termos da incorporação nacional e da
cidadania e quem são os cidadãos. distribuição de direitos. Na realidade, os conflitos entre
cidadãos aumentaram significativamente com as
Para Holston (2013), cidadania “é sempre um processo em extraordinárias democratização e urbanização do século
XX.
construção, o que dá a cada geração a confiança de poder reconstruí-la”.
As cidades são palcos da luta por inclusão de direitos e
Peguemos como exemplo os protestos de rua: seus participantes
reconhecimento de cidadania. Isso porque nelas são visíveis os
denunciam antigas injustiças e confrontam privilégios enraizados dentro
conflitos, as injustiças e os privilégios que detêm os cidadãos
de determinada sociedade. Isso se traduz na construção de uma nova
diferenciados (ou cidadãos de fato). Mais do que isso, a urbanização
cidadania, diversa daquela cidadania universal.
global criou condições especialmente voláteis na medida em que as
No Brasil, a cidadania possui caráter bilateral, uma vez que é cidades se enchem de cidadãos marginalizados ou de não-cidadãos, que
universal quanto à sua filiação e desigual quanto à distribuição contestam a exclusão (HOLSTON, 2013). Por conseguinte, novos
(HOLSTON, 2013). Em outros termos, embora todos sejam filiados à cidadãos surgem para expandir a cidadania democrática, ao mesmo
nação, nem todos tem os mesmos direitos, pois há no sistema pátrio tempo em que novas formas de violência e exclusão a corroem.
privilégios legalizados que demonstram existir uma cidadania
Novamente, peguemos como exemplo o cenário brasileiro,
diferenciada. Essa desigualdade legitimada esvazia a máxima de que
mais precisamente o processo de urbanização a partir dos anos 1950:
todos são iguais perante a lei.
uma grande onda migratória trouxe para as cidades muitos daqueles que
Segundo Holston (2013), todos os Estados nacionais lutam foram barrados pelo meio urbano legal, razão pela qual foram
para administrar as diferenças sociais que distinguem seus habitantes: compelidos a construir as periferias. Nota-se que esse processo de
Algumas das medidas por eles adotadas são drásticas, “fazer a cidade” ensejou a formulação de vários níveis de
como escravidão, migração forçada e genocídio. Mas a
maior parte deles administra essas diferenças de acordo “autoconstrução”, não somente de casas, comunidades e cidades, mas
com as formulações de igualdade e de desigualdade que
definem suas cidadanias. As democracias, em particular, também de novas relações políticas, do Direito, das identidades, enfim,
277 278

“autoconstrução de uma cidadania que se insurgia contra o regime características) podem ser verificados em alguns dos planos diretores
entrincheirado de privilégios legalizados” (HOLSTON, 2013). Ao dos municípios do país.
lutarem por seus direitos nas cidades, esses novos habitantes A participação popular é uma ferramenta importantíssima
transformam o próprio conceito de “direito”, que passa a ver visto não quando se disputa um projeto de cidade hoje e futuramente. É
como privilégio e sim como reconhecimento à contribuição do cidadão. fundamental que a participação da sociedade como um todo se dê não
Nasce, daí, uma cidadania insurgente. somente dentro das esferas deliberativas das instituições, sob pena de se
Quando se afirma que é preciso fortalecer a participação subverter a ordem já posta, isto é, a manutenção dos interesses das
popular nos processos decisórios de planejar e gerir a cidade, quer-se, classes dominantes. Seja pela cooptação na esfera estatal, seja pela
na verdade, fortalecer as formas de resistência e mobilização popular retirada de cena em nome de um projeto globalizado de cidade, aos
frente aos mandos dos detentores do poder político. Como toda ação mandos e desmandos da esfera privada, é preciso questionar que tipo de
tem uma reação, em uma democracia, o aparelho estatal vai tentar participação popular estamos a legitimar.
desmobilizar a ação popular pela cooptação desse movimento, até que Respondendo a hipótese anteriormente firmada: não, a inclusão
seja neutralizado sem que perca a aparência de “popular”. É essa
da sociedade civil nos processos decisórios de planejar a cidade não
cidadania entrincheirada que este artigo vem denunciar e pedir, aos garante um modo de produção espacial menos segregador e menos
leitores, reflexão acerca de como a participação popular vem sendo exclusivo. Isso porque a participação popular que vemos nas audiências
articulada e aplicada. públicas dos planos diretores municipais, por exemplo, estão sendo
“tratoradas” no plano real, servindo apenas de elemento de validade
para as decisões do poder público a serviço do empresariado
5 Considerações finais
local/global.
O que se buscou na presente pesquisa foi esboçar quais os
A cidadania insurgente, como forma de resistência e
caminhos que o planejamento urbano brasileiro trilhou e trilha. Embora
persistência da participação popular deslegitimada pelos poderes
se tenha desenvolvido os três “modelos” de planejamento de forma
públicos e privados, talvez seja o principal trunfo das camadas menos
linear, cumpre esclarecer que todos esses modelos (ou ao menos suas
279 280

abastadas da sociedade frente a modelos hegemônicos de cidade, de MARX, Murilo. Cidade no Brasil terra de quem?. São Paulo: Nobel,
1991.
direito e de poder político.
RODRIGUES, Arlete Moysés Rodrigues. O espaço urbano e as
estratégias de planejamento e produção da cidade. In: PEREIRA, Elson
Manoel (Org.). Planejamento urbano no Brasil: conceitos, diálogos e
Referências bibliográficas práticas. Chapecó: Argos, 2008.
ROLNIK, Raquel. Estatuto da Cidade: instrumento para as cidades que
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa
sonham crescer com justiça e beleza. In: SAULE JÚNIOR, Nelson;
do Brasil. Disponível em: <
ROLNIK, Raquel. Estatuto da Cidade: novos horizontes para a reforma
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
urbana. São Paulo: Pólis, 2001. p. 5-10.
Acesso em 5 abr.2015.
_____. Planejamento Urbano nos Anos 90: novas perspectivas para
FROTA. Henrique Botelho. Reforma urbana e a nova ordem jurídico-
velhos temas. In: RIBEIRO, Luís César de Queiroz; SANTOS JR.,
urbanística no Brasil. In: Anais do XXI Encontro Regional de
Orlando Alves dos. (Org). Globalização, Fragmentação e Reforma
Estudantes de Direito e Encontro Regional de Assessoria Jurídica
Urbana: o futuro das cidades brasileiras na crise. 2. ed. Rio de Janeiro:
Universitária: 20 anos de Constituição. Parabéns! Por quê?.
Civilização Brasileira, 1997. p. 351-360.
RIBEIRO, Danilo Ferreira (Org). Crato/ CE: Fundação Araripe, 2008.
Disponível em: SILVA, Éder Roberto da. O Movimento Nacional pela Reforma Urbana
<http://www.urca.br/ered2008/CDAnais/pdf/Convidados/Henrique_FR e o Processo de Democratização do Planejamento Urbano no Brasil.
OTA.pdf>. Acesso em: 20 mar.2015. 143f. Dissertação. (Mestrado em Engenharia Urbana) - Programa de
Pós-Graduação em Engenharia Urbana da Universidade Federal de São
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo:
Carlos, São Carlos, 2003.
Companhia das Letras, 1995.
VAINER, Carlos. Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia
HOLSTON, James. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e
discursiva do planejamento estratégico urbano. In: ARANTES, Otília;
da modernidade no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos (Org). A cidade do
LIMA JR, Pedro de Novais. Uma estratégia chamada “planejamento pensamento único: desmanchando consensos. 7. ed. Petrópolis: Vozes,
estratégico”: deslocamentos espaciais e a atribuição de sentidos na 2012.
terapia do planejamento urbano. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.
VILLAÇA, Flávio. Uma contribuição para a história do planejamento
MARICATO, Ermínia. As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias: urbano no Brasil. In: DEÁK, Csaba; SCHIFFER, Sueli Ramos (Org). O
planejamento urbano no brasil. In: ARANTES, Otília; MARICATO, processo de urbanização no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade
Ermínia; VAINER, Carlos (Org). A cidade do pensamento único: de São Paulo, 2004. p. 169-244.
desmanchando consensos. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
_____. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 2002.
281 282

CIDADANIA PERIFÉRICA: UM OLHAR SOBRE A


PRODUÇÃO DESIGUAL DO ESPAÇO URBANO DESDE A
AMÉRICA LATINA

Ana Beatriz Oliveira Reis88


Marcela Münch de Oliveira e Silva89
Mariana Gomes Peixoto Medeiros90

Resumo: O objetivo deste trabalho é, a partir de experiências urbanas


em duas metrópoles da América Latina, Rio de Janeiro e Buenos Aires,
contribuir na reflexão a respeito da produção desigual do espaço
Eixo ensejada pelo capitalismo, especialmente o capitalismo globalizado.
Procurar-se-á, a partir de categorias teóricas como reestruturação
GEOPOLÍTICA E FORMAÇÃO DO ESPAÇO URBANO produtiva capitalista, relação centro-periferia, direito à cidade, e
cidadania. Para compreender de que maneira essa produção desigual
do espaço reflete uma cidadania diferenciada na periferia do
capitalismo.
Palavras-chave: Globalização; Desigualdades; Socioterritoriais;
Cidadania; América Latina.

1 Introdução

88
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da
Universidade Federal Fluminense (UFF); reis.aboliveira@gmail.com; 32- 8705-3130.
89
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da
Universidade Federal Fluminense (UFF); marcelamunch@gmail.com; 21-981070156.
90
Advogada e mestre em Direito da Cidade na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) marigopeme@gmail.com; 21-99106-9181.
283 284

Este trabalho pretende, a partir do resgate de experiências Enquanto nos países capitalistas centrais, o mercado privado
urbanas em duas metrópoles da América Latina, Rio de Janeiro e atende a maior parte de seus residentes, nos periféricos, esse alcance é
Buenos Aires, contribuir para a reflexão a respeito da configuração restrito, e exclui aqueles que não têm condições de acessá-lo. E mesmo
desigual do espaço urbano, intensificada pelo fenômeno da globalização as políticas públicas não tem dado conta de frear essa segregação
- e seu reflexo no acirramento de uma cidadania diferenciada, em países espacial, como é o caso do programa Minha Casa Minha Vida que, após
da periferia do capitalismo. alguns anos de sua implementação, não reduziu o déficit habitacional, e
funcionou como mais um instrumento de gentrificação nas cidades
Embora a ideia de globalização como um processo ao qual
brasileiras91.
estão todos fadados a submeter-se seja atualmente sedimentada e aceita
de forma ampla, o olhar a ser adotado aqui encara este fenômeno por Dessa forma, resta aos habitantes precarizados da cidade irem
uma faceta distinta, especialmente no que tange seus efeitos na cidade. em busca de habitação - através de técnicas de autoconstrução e auto
Associa-se a globalização a uma fase atual do desenvolvimento do urbanização - em regiões nas quais a infraestrutura urbana é insuficiente
capitalismo, iniciada na década de 1980, que tem como características a ou inexistente. Há, portanto, uma verdadeira espoliação do direito à
financeirização e que tende a promover um intenso processo de cidade de uma parcela considerável dos, em tese, cidadãos.
concentração de capital e riqueza principalmente nos países periféricos
91
(BIENENSTEIN, 2000). Com relação ao programa Minha Casa, Minha Vida, implementado em 2009, no
governo Lula, há muitas ponderações a serem elaboradas. A principal delas é que os
Os impactos dessas mudanças, perniciosos às metrópoles em terrenos comprados pelas empreiteiras que realizam as obras são muito afastados dos
centros urbanos, o que acaba por gerar uma falta de integração dos moradores
geral, verificam-se ainda mais nefastos nos países periféricos onde beneficiados com a cidade. Além disso, uma política habitacional eficiente no
combate ao déficit não precisa (e não deveria) necessariamente ser baseada na
sequer o Welfare State e o fordismo se desenvolveram plenamente, de transferência de propriedade e na financeirização (crédito) como paradigmas. Ao
invés de promover a redução do déficit habitacional, como consequência, acaba por
maneira que formaram-se aqui o que Maricato (2007) chama de “ilhas ocorrer um aumento desse índice. O que pode ser comprovado em recente pesquisa
sobre o déficit habitacional, da Fundação Pinheiro (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO,
de primeiro mundo” cercadas de ocupação ilegal promovidas por 2013. Disponível em: http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/noticias-em-
favelas, cortiços, e loteamentos clandestinos. O resultado desta destaque/2680-fundacao-joao-pinheiro-e-ministerio-das-cidades-divulgam-os-
resultados-do-deficit-habitacional-municipal-no-brasil (consultado em 19/12/2013 às
reestruturação capitalista implica, portanto, na exclusão total de 22:46h), responsável pelos dados oficiais utilizados pelo Ministério das Cidades, que
divulgou um aumento desse número desde o início do programa Minha Casa, Minha
parcelas significativas da população dos países periféricos. Vida em franca expansão atualmente no país.
285 286

Usa-se a expressão “em tese” porque, a cidadania, a não ser Enquanto técnica de pesquisa, adota-se a revisão bibliográfica
concebida em sua formulação liberal como mera titularidade de direitos de obras que tratam do tema, ora por uma abordagem mais teórica, ora
em abstrato, é negada a esses indivíduos, desprovidos de qualquer através do estudo de pesquisas de campo realizadas na América Latina.
capacidade de ingerência nas escolhas que determinam a gestão da As duas experiências analisadas neste trabalho, o bairro “El
cidade, ainda mais numa sociedade capitalista periférica, em que ainda Tanque”, em Buenos Aires, e as ocupações urbanas “Zumbi de
predominantemente a organização do desenvolvimento é pensada não Palmares” e “Quilombo das Guerreiras”, na Zona Portuária do Rio de
de forma autônoma, mas de forma subordinada, subalternizada a países
Janeiro refletem a segregação espacial produzida nessas cidades pelo
centrais. Esses indivíduos vivem na “corda bamba” em moradias que se capitalismo.
realizam às margens do Estado, porém por ele toleradas, e quando a lei
O caso do bairro “El Tanque” foi retirado do artigo da autora
a eles se revela, é para, no interesse do capital financeiro, do mercado
Daniela Soldano, contido no livro “Cidades Latino-americanas”, uma
imobiliário, expulsá-los mais uma vez.
coletânea de artigos de autores latino-americanos que abordam, sob
As hipóteses a serem destrinchadas são, portanto: i) a perspectivas territoriais distintas, a desigualdade urbana na América
globalização, entendida como processo de reestruturação internacional
Latina. A autora desenvolveu uma pesquisa empírica nessa localidade
do capital, tem um efeito excludente de produção e reprodução de entre 2003-2010, focada, basicamente, no olhar próprio de seus
desigualdade sócio-espacial nas metrópoles; ii) este efeito é ainda pior habitantes. Já as experiências das ocupações urbanas “Quilombo das
em regiões periféricas como a América Latina, tendo como resultado a Guerreiras” e “Zumbi dos Palmares”, por sua vez, foram tiradas de
espoliação do direito à cidade e da cidadania da imensa maioria da trabalhos realizados pelo autor Enzo Bello, no curso de seu doutorado
população. na UERJ, no Rio de Janeiro, no período entre 2010 e 2011.
Como ferramenta, utilizam-se as categorias teóricas da
reestruturação produtiva capitalista, da relação centro-periferia neste
2 Globalização, Cidadania e Espaço Urbano
sistema econômico global, do direito à cidade, e da cidadania, e como
Entende-se a globalização enquanto uma fase do processo de
lente, as especificidades da região latino-americana.
expansão do capitalismo, baseado na internacionalização do capital
287 288

caracterizada pela “flexibilidade dos processos de trabalho, dos exploração de países a margem desse sistema. Nessa lógica os países da
mercados de trabalho, dos produtos e dos padrões de consumo” América Latina, por exemplo, cumpririam importante papel para a
(HARVEY, 2013, p.140). Destaca-se ainda que o capital não pode ser manutenção da ordem econômica global através da exportação de
compreendido como uma coisa, mas sim como “um processo de matérias-primas fornecendo-se assim os insumos necessários para as
circulação entre produção e realização” (HARVEY, 2005, p. 71) . que as grandes empresas mundiais fabriquem seus produtos a baixo
custo se tornando mais competitivas. Isso só é possível a partir da
Ao longo da história, o processo de produção capitalista vem
exploração do trabalho da população mais pobre bem como dos
passando por diferentes fases, adaptando-se de maneira a amenizar as
recursos naturais dos países que até pouco tempo eram reconhecidos
contradições inerentes ao próprio sistema para manter as altas taxas de
pela expressão “terceiro mundo”. Atualmente, os países periféricos
lucros derivada da exploração do trabalho. Na globalização, nova fase
também cumprem importante papel enquanto consumidores dos
do capitalismo, pela primeira vez, o capital consegue vencer as barreiras
produtos das grandes empresas mundiais sendo o “consumo de massas”
geográficas e políticas que impediam a sua internacionalização. O
essencial para garantir toda lucratividade necessária ao
processo de produção capitalista passa a envolver, não sem resistência,
desenvolvimento do capital.
locais até pouco tempo desconhecidos. Percebe-se ainda que a
flexibilização aliada a processos de financeirização do capital A partir do fenômeno da globalização, as noções de tempo e
intensificados a partir da década de 1980, promovem a maior espaço também são redefinidas. Com o aprimoramento da técnica,
concentração de riquezas e, consequentemente, o agravamento das novas formas de comunicação são criadas, o que permitem a interação
desigualdades sociais principalmente nos países periféricos. em tempo real entre pessoas e processos em diferentes partes do mundo.
O local e o global passam a se confundir: um acontecimento num local
O termo periférico é aqui empregado com base na teoria
geograficamente isolado passa a repercutir no mundo inteiro assim
sistema-mundo, proposta por Immanuel Wallerstein (1990) segundo a
como a padronização de estilos de vida passam a ser o denominador
qual cada país teria sua função pré-estabelecida na economia capitalista
comum de várias cidades em diferentes continentes.
embora isso nem sempre seja evidente. Alguns países como Estados
Unidos, Alemanha e Japão estariam no centro do capitalismo sendo No campo da economia, a globalização passa a permitir a
necessária, para que a hegemonia desses países seja mantida, a descentralização do processo de produção de forma a ampliar ainda
289 290

mais os lucros das grandes empresas mundiais que tendem, cada vez sobre essa questão ao afirmar que “não é que o Estado se ausente ou se
mais, a alcançar o monopólio em detrimento da falência dos pequenos torne menor. Ele apenas omite quanto ao interesse das populações e se
produtores locais que não possuem condições de concorrer com torna mais forte, mais ágil, mais presente, ao serviço da economia
tamanho poder econômico e também político. Percebe-se desde o final dominante” (SANTOS, 2012, p.66).
da do século XX que, embora as sedes dessas empresas permaneçam Não é possível pensar, como alerta Wallerstein, que os
nos países do centro do capitalismo, a produção passa a ser realizada desenvolvimentos econômico e social são uma tendência natural de
em diferentes partes do mundo, priorizando-se, para tanto, a exploração
todos os países, em especial, dos países periféricos.
do trabalho da população dos países periféricos que não tem, se quer, os
É absolutamente impossível que a América Latina se
direitos trabalhistas mais elementares reconhecidos e se vê obrigada a desenvolva, não importa quais sejam as políticas
governamentais, porque o que se desenvolve não são os
trabalhar em condições desumanas de forma a garantir a sua países. O que se desenvolve é unicamente a economia
mundial capitalista e esta economia é de natureza
sobrevivência bem como a de seus familiares. polarizadora (WALLERSTEIN, 1997/1998, p. 249).

Essa nova forma de divisão internacional do trabalho (também A reorganização do espaço urbano cumpre importante papel
denominada como terceira divisão) só conseguiu se estabelecer a partir para a expansão e consolidação do processo de globalização da
do advento dessas novas tecnologias. Ela ainda se constitui como uma economia. Nessa nova lógica, as cidades passam a ser pensadas
nova fase do imperialismo tendo em vista a maior influência do enquanto mercadoria possuindo cada uma delas diferentes valores num
mercado na vida cotidiana das populações ao mesmo tempo em que se mercado que incentiva a competição entre as diversas metrópoles.
amplia a vulnerabilidade dos governos locais em relação às regras do Observa-se que em várias cidades do mundo há em curso processos de
mercado. revitalização urbanística que buscam reorganizar as cidades a fim de
facilitar a circulação mercadorias e a prestação de serviços.
O Estado, nessa nova fase do capitalismo, terá papel
fundamental na criação das condições necessárias para a reorganização A revitalização dos centros históricos é um fenômeno comum
do sistema de produção capitalista. O advento do neoliberalismo e a á várias metrópoles. Esses centros encontravam-se abandonados pelo
expressão “Estado Mínimo” leva-nos a reflexão de um estado cada vez poder público e, muitas vezes, em vias de degradação. Ainda que
menos interventor. Contudo, Milton Santos faz um importante alerta ausentes os equipamentos urbanos essenciais, os centros foram sendo
291 292

ocupados pelas populações carentes. Esses locais, embora muitas vezes atender os benefícios da urbanização e qual o melhor modelo de
associados à violência e ao consumo de drogas, são estratégico devido à desenvolvimento a ser aplicado ao espaço urbano.
disponibilidade de emprego e a proximidade com a prestação de Contudo, no momento em que o capital se internaliza
serviços públicos e privados. Com a intensificação do processo de aumentando ainda mais as desigualdades sociais e tornando ainda mais
urbanização e com a necessidade de adequar o espaço urbano às frágeis as condições sociais dos trabalhadores que se veem cada vez
necessidades do capital, o mercado busca dominar essas áreas a fim de mais explorado, o exercício da cidadania se torna ainda mais difícil.
substituir a população de baixa renda por potenciais consumidores da
Nos países periféricos, em especial na América Latina, a globalização
mercadoria “cidade” que apenas parte da população pode comprar. revela seu lado mais nefasto em que a pobreza passa a ser estrutural.
Sendo assim, verifica-se em muitas cidades a intensificação Milton Santos afirma que nessa nova fase do capitalismo há uma
dos processos de gentrificação no qual as populações históricas desses “produção globalizada da pobreza ainda que esteja presente nos países
centros se vêm expulsa cada vez mais para a periferia das cidades. Essa mais pobres” (2012, p. 69).
expulsão pode ser direta através de práticas remocionistas ou indiretas, A precarização das condições sociais é ainda mais singular
através do aumento do custo de vida nessas áreas que passam a ser alvo
para aquelas populações das grandes metrópoles dos países periféricos
dos promotores imobiliários interessados na nova vizinhança que que sentem os efeitos da internacionalização do capital ao mesmo
poderá arcar com os custos de morar num centro revitalizado repleto de tempo em que o espaço urbano passa a se adaptar as novas exigências
serviços e próximo ao local de trabalho. da economia global.
Verifica-se, portanto, a negação do direito à cidade de Sendo assim, torna-se fundamental verificar como tem sido
inúmeras pessoas. Esse direito se relaciona diretamente com o exercício exercida a cidadania por essas populações diante da globalização e das
da cidadania uma vez que compreende não apenas prestações materiais
novas intervenções urbanísticas nas grandes metrópoles. A
relacionadas à moradia, a mobilidade urbana e ao acesso a contextualização feita nesse primeiro momento, ainda que de maneira
equipamentos urbanos, por exemplo. O direito à cidade é o direito de simplificada e generalizada, se apresenta como importante ferramenta
poder dizer como devem ser construídas nossas cidades, a quem deve
293 294

analítica para a melhor compreensão dos estudos de casos propostos No início dos anos oitenta, operadores imobiliários lotearam e
nesse trabalho e que serão realizados no próximo capítulo. venderam as terras do bairro, promovendo-o como um novo paraíso;
paralelamente, outros assentavam-se ilegalmente em terras fiscais e
privadas, ou as compravam de terceiros que teriam usurpado as terras.
3 O caso do Bairro El Tanque e as Ocupações no Rio De Janeiro:
Um Olhar Desde A América Latina A vivência no bairro revelou aos seus novos moradores uma
realidade precária, de ausência de infra-estrutura e serviços, todavia não
A intenção, ao trazer as experiências de duas metrópoles da
era uma opção estar ali, tampouco sair em busca de um novo lugar.
América Latina, Buenos Aires e Rio de Janeiro, foi justamente refletir
sobre a similitude dos efeitos da globalização, entendida como fase Boa parte dos recém-chegados foram empurrados à região pelo
atual do capitalismo, na produção do espaço latino-americano. mercado imobiliário, e não tinham condições de retornar ao centro
urbano. Por outro lado, os que ali estavam ilegalmente, “sem papéis”,
Procurou-se, portanto, abordar duas facetas dessa produção: a
tinham no “El Tanque” sua única possibilidade de ter um lugar para
que parte do capital no sentido da segregação do espaço urbano, criando
viver.
cada vez mais sujeitos/territórios isolados e invizibilizados, e a
resistência a essa periferização, com o movimento de ocupação de A ocupação recente do bairro produziu ainda uma alteração
lugares abandonados em centros urbanos, que não só dão vida a esses drástica de sua identidade, através de transformações na paisagem (de
espaços como dão vida e protagonismo aos que lhe ocupam. um bairro bucólico e rural para uma periferia urbana), e nas próprias
relações sociais, que passaram a ser travadas ali sobre o signo da
desconfiança e do não reconhecimento, em razão do aumento
3.1 O caso “El Tanque” significativo do número dos moradores.
O Bairro “El tanque” está situado na periferia da região
A partir da leitura das experiências cotidianas dos moradores
metropolitana de Buenos Aires, no distrito de José Clemente Paz, a 35
deste bairro de Buenos Aires, é possível observar como as marcas da
quilômetros da capital. A região é uma zona de interface entre o
desigualdade social estão presentes na vida da população, seja na forma
tradicional subúrbio e um novo periurbano (SOLDANO, 2014).
do não acesso a serviços, na imobilidade urbana que os restringe a um
295 296

cotidiano circunscrito ao bairro, ou mesmo no sentimento de Avenida Francisco Bicalho, no centro do Rio de Janeiro. O prédio
marginalização face à sociedade, a partir de uma dicotomia centro- pertencia à Companhia Docas do Rio de Janeiro e estava abandonado
periferia, em que a periferia cada vez mais isolada e desintegrada da há mais de 15 anos, sem qualquer cuidado de manutenção de sua infra-
cidade. estrutura. A motivação da ocupação, segundo seus moradores, era a
reivindicação de uma política habitacional voltada à população de baixa
renda (BELLO, 2013).
3.2 As Ocupações Urbanas “Quilombo das Guerreiras” e Zumbi dos
O ato de ocupar um prédio público na área central não foi,
Palmares”
contudo, um episódio espontâneo e isolado, mas sim o resultado de um
As experiências das ocupações urbanas “Quilombo das
longo processo de articulação e discussão entre sujeitos que habitavam
Guerreiras” e “Zumbi dos Palmares”, por sua vez, referem-se às
áreas desprivilegiadas de serviço e condições dignas de moradia. Tais
ocupações de dois imóveis abandonados na área central da cidade,
discussões envolveram desde qual seria o perfil dos integrantes da
locais em vias de degradação, abandonados há décadas pelo poder
ocupação até o local ideal onde ela deveria ser feita (BELLO, 2013).
público. Nelas, o direito de morar perto do centro econômico da cidade
A ocupação “Zumbi dos Palmares” nasceu em abril de 2005,
onde se encontram as maiores oportunidades de emprego bem como
quando mais de 100 pessoas ocuparam o prédio número 53 da Avenida
vasta prestação de serviços foi reivindicado por pessoas que arcam
Venezuela, no centro do Rio de Janeiro. O prédio pertencia ao Instituto
cotidianamente com os ônus da cidade pensada enquanto mercadoria e
Nacional de Seguro Social (INSS), e estava abandonado já mais de 20
que não privilegia a mobilidade urbana dos moradores da periferia.
anos (BELLO, 2013).
Seus moradores dividiam-se entre pessoas que tinham moradia formal,
porém em lugares sem uma infraestrutura de serviços adequados, e O critério decisivo para a escolha do imóvel a ser ocupado foi
aqueles para quem a moradia ilegal era uma alternativa de a centralidade da zona portuária, uma região que facilita o acesso a uma
sobrevivência. rede de serviços sociais inexistentes nos locais de origem de boa parte
dos moradores da ocupação (BELLO, 2013).
A ocupação “Quilombo das Guerreiras” nasceu em outubro de
2006, quando mais de 150 famílias ocuparam o prédio número 49 da
297 298

Como na “Quilombo das Guerreiras”, esta ocupação foi fruto 4 Considerações finais
de um conjunto de reuniões com o objetivo de elaborar um regimento Ambos os objetos empíricos são ricos em coadunar com a tese
interno para cadastro de pessoas na moradia. Além disso, logo que inicial, enquanto consequências de um processo de deslocamento
chegaram ao imóvel, se organizaram para recuperar a infra-estrutura do impulsionado pela especulação imobiliária, que mais do que inviabilizar
local a fim de torná-lo apto a abrigar todos os pretensos moradores. o acesso à moradia, inviabiliza a cidadania dos habitantes pobres das
Assim agindo, estes sujeitos, num processo ativo de cidadania, tomaram cidades. Enquanto no primeiro caso aborda-se justamente a situação dos
o protagonismo de um conjunto de ações que a princípio esperavam
moradores de um bairro isolado em termos de serviços e de visibilidade
partir do Estado – dar uma utilidade social a prédios abandonados, no cenário urbano, resultado de um processo de gentrificação, no
tornando-os um meio de reduzir o déficit de moradia popular. segundo aborda-se a reação desta mesma parcela indesejada de
Nas duas ocupações, portanto, desenvolveu-se um processo de população da cidade, que agora se recusa a ser expulsa e ocupa, ainda
resistência ao fenômeno da gentrificação, caracterizado pela expulsão que em condições precárias, prédios públicos que não servem à sua
induzida pelo poder público da população pobre de áreas centrais destinação.
abandonada, levado a cabo por indivíduos que fizeram valer seu direito
A esses indivíduos excluídos pelo mercado e pelo Estado,
à cidade, que não se restringe ao simples habitar, mas ao direito a viver essas ocupações representam uma possibilidade de se inserir no cenário
e realizar-se em meio a uma forma humana de relações sociais urbano, de nele se fazerem visíveis novamente, e serem ouvidos não
92
(HARVEY, 1993) . enquanto consumidores de uma mercadoria (a cidade), mas enquanto
cidadãos que têm direito a participar dos processos que determinam as
92
Embora não seja objeto deste artigo propriamente, não há como deixar de condições em que viverão, e qual será o modelo de relações sociais em
mencionar que ambas as ocupações foram removidas pelo poder público, em 2014 e
2011, sob o pretexto do Projeto Porto-Maravilha, uma mega intervenção urbana que esse modo de vida se dará.
destinada à revitalização da Zona Portuária. Sob o argumento da necessidade de
regeneração da área, seus antigos moradores foram expulsos para dar lugar a um 322.400 metros quadrados de área computável de escritórios corporativos e área total
projeto que pretende transformá-la num polo cultural, gastronômico e comercial. construída incluindo espaços comerciais e subsolos cerca de 450.000 metros
Exemplo disso é o empreendimento que objetivamente ensejou a remoção da quadrados. O empreendimento será desenvolvido no Porto Maravilha – a Zona
ocupação Quilombo das Guerreiras, TRUMP TOWERS RIO, que segunda sua própria Portuária localizada na região central do Rio de Janeiro. Esse projeto será o primeiro
descrição retirada do site oficial - http://www.trumptowersrio.com/pt-br/o-projeto/, com o nome do TRUMP no Brasil e o maior complexo urbano de escritórios
“será um conjunto de cinco torres AAA de 150 metros de altura com 38 andares, corporativos nos países BRIC”.
299 300

O que está em jogo, portanto, é toda uma forma espontânea e em: http.:www.geocritiq.com/2014/01/marsella-2013-el-urbanismo-
como-arma-de destrucción-masiva/. Acesso em nov. 2014.
cooperativa de viver a cidade e o território, que não é aceita e nem
GOHN, Maria da Glória Marcondes. A pesquisa na produção do
contemplada pela forma de planejamento urbano vigente (modo conhecimento: questões metodológicas. EccoS – Revista Científica, São
empreendendorista de gerir a cidade – a cidade é uma mercadoria!). Paulo, v. 7, n. 2, p. 253-274, jul./dez. 2005. Disponível em:
http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/715/71570202.pdf . Acesso em
Diante de um crescente processo de segregação socioespacial, os nov. 2014.
moradores foram desenvolvendo suas vidas às margens do mercado HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo, Loyola,2013.
imobiliário e da exploração da prestação formal de serviços e ______. Rebel Cities: From the right to the city to the urban revolution.
infraestrutura. Isso lhes permite criar uma dinâmica de vida, que a London/New York: Verso, 2012.
“inclusão pelo consumo” do neodesenvolvimentismo e os padrões de ______. A produção capitalista do espaço.São Paulo: Annablume.
2005.
vida das classes mais abastada, não dão conta de preencher. Por isso a
MARICATO, Ermínia. Globalização e Política Urbana na Periferia do
luta pela permanência em seus territórios, mas com a necessidade de Capitalismo. In: As Metrópoles e a Questão Social Brasileira.
conquista de melhorias e condições cada vez mais dignas de vida. RIBEIRO, Luiz e JUNIOR, Orlando (Orgs). Editora Revan, 2007.
______.Metrópole, legislação e desigualdade. ESTUDOS
AVANÇADOS 17 (48), 2003.

Referências bibliográficas SANTOS, Milton. Por uma outra globalização.Rio de Janeiro: Record,
2012.
BELLO, Enzo. A cidadania na luta política dos movimentos sociais SOLDANO, Daniela. La desigualdad social en contextos de relegación
urbanos. Caxias do Sul: Educs, 2013. urbana. Un análisis de las experiencias y los significados del espacio
BIENENSTEIN, G. Globalização e Metrópole: a relação entre as (Gran Buenos Aires, 2003-2010). In: CIUDADES
escalas global e local – o Rio de Janeiro. Anais do IX Encontro LATINOAMERICANAS: Desigualdad, segregación y tolerância.
Nacional da ANPUR; Rio de Janeiro, 2001. Buenos Aires, CLACSO, 2014.
FARIAS, Luiz Antônio Chaves de. & PRADO, Felipe Silva. A WALLESTEIN, Immanuel. A reestruturação capitalista e o sistema
espacialidade do PAC I no Estado do Rio de Janeiro: reflexo de um mundial. Perspectivas, São Paulo, v.20/21, p. 249-267, 1997-1998.
“desenvolvimentismo” ou um “novo desenvolvimentismo”? . p.7 In: Disponível em:
Anais do XV ENANPUR: Recife, 2013. https://seer.fclar.unesp.br/perspectivas/article/download/2069/1696 .
Acesso em nov. 2014.
GARNIER, J.P. Marsella 2013: el urbanismo como arma de destrucción
massiva. Geocrítica – Plataforma digital Ibero-americana. Disponível ______. Sistema mundo moderno. Porto: Edições Afrontamento, 1990.
301 302

O CENTRO DE EVENTOS DO CEARÁ: FORTALEZA, UMA Equipamentos como o CEC, entre outras intervenções e ícones
METRÓPOLE EMPREENDEDORA? urbanos, nos dão indícios de como tem ocorrido a (re)produção do
espaço urbano na metrópole Fortaleza. A necessidade de estimular o
desenvolvimento econômico via parcerias com agentes produtores do
Jamile Maia Younes93
espaço torna-se um reflexo das tendências do processo de
mundialização e globalização, em que diversas estratégias são
Resumo: Este artigo buscou analisar se efetivamente o discurso do reformuladas para a reprodução e circulação de capital.
empreendedorismo urbano tem se materializado nas gestões urbanas
da metrópole Fortaleza-CE, a partir da análise de intervenções e O estímulo a novos setores de atividades e a intensificação de
políticas executadas entre 2004 e 2012, com foco no equipamento
Centro de Eventos do Ceará (CEC). Verificou-se que as políticas e outros setores como o de comunicações, inovações tecnológicas,
intervenções, assim como o equipamento, são estratégias calcadas no serviços e turismo, ocasionam mudanças estruturais nas cidades.
empreendedorismo urbano, destinadas a fomentar a competitividade de
Fortaleza dentro do mercado regional e internacional de cidades, No desenvolvimento histórico do capitalismo, o urbano se
visando alavancar o desenvolvimento econômico da metrópole.
constitui como elemento vital para o modo de produção capitalista. Já o
Palavras-chave: Empreendedorismo Urbano; mercantilização dos
espaços; reestruturação produtiva. Estado moderno, cujo surgimento se dá com o desenvolvimento do
capitalismo, desempenha papel chave no planejamento das cidades e
nas consequentes adequações às novas necessidades dos regimes de
1 Introdução
acumulação.
O Centro de Eventos do Ceará (CEC), equipamento turístico
A captação de investimentos e circulação de capitais são
localizado na Av. Washington Soares, no bairro Edson Queiroz em
executados em espaços seletivos nos territórios. A modernização do
Fortaleza-CE, teve sua construção iniciada em 2009, sendo oficialmente
território cearense, através dos incentivos maciços a atividades como
inaugurado no ano de 2012. Destinado a eventos, feiras, shows, o CEC
Turismo, Indústria e Agronegócio (setores estratégicos) viabiliza uma
vem para consolidar o setor de turismo de eventos no estado do Ceará.
vasta infraestrutura em pontos seletivos do espaço para atração de
93
Licenciada em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará. E-mail: empresas, fortalecendo as políticas calcadas na perspectiva neoliberal,
jamilemy2010@hotmail.com.
303 304

de fomento a lógica empresarial, e, consequentemente, reflete também local como condutor do crescimento econômico, no planejamento
no pensar e planejar as cidades. estratégico, marketing urbano e também na apropriação cultural da
história e do patrimônio das cidades.
As gestões das cidades, frente a este processo, modificam-se
estruturalmente. A busca incessante de desenvolver economicamente os Este “novo empreendedorismo” revela uma o viés da
espaços e de trazer rentabilidade reproduz um discurso empreendedor, competitividade entre cidades, que se reestruturam para alcançar uma
dos espaços como potencialidades mercadológicas e enquanto atração modernização adequada aos interesses de seus investidores. Estas
de consumo, fomentando uma competitividade no mercado regional e mudanças nos padrões urbanos intensificam-se a partir da crise do
internacional de cidades. regime de acumulação fordista nos anos 1970 nos países desenvolvidos
(a crise do regime de acumulação fordista é discutida em maiores
O desenvolvimento destas práticas é embasado pelo discurso
detalhes na seção 2). Uma série de cidades, como veremos a seguir,
do empreendedorismo urbano. Conforme Harvey (2005), este discurso
estabeleceram alianças e intervenções em seus espaços urbanos,
propõe transformações dentro da esfera política, econômica e cultural,
objetivando a superação da crise econômica vivida. Devemos lembrar
relativas ao aceleramento do desenvolvimento de tecnologias, produção
que cada cidade desenvolve um padrão diferenciado, sendo necessário
de bens e serviços e também a intensificação da divisão espacial do
considerar as particularidades de cada realidade.
consumo das cidades.
As cidades brasileiras não fogem a essa lógica. Metrópoles e
Estas estratégias de atração de investimentos, que em primeira
capitais como Rio de Janeiro, Curitiba e Recife desenvolvem uma série
instância, aparentam elevar a qualidade de vida e buscam inovações
de políticas voltadas para dinamizar suas cidades, através de
para a cidade através da inserção destes espaços pelo consumo
planejamentos estratégicos destinados a fomentar a competitividade,
caracterizam o que pode ser chamado de “novo” empreendedorismo
juntamente a alianças entre Estado e agentes privados.
urbano, ideologia do urbanismo que se caracteriza pelo conjunto de
ações políticas e econômicas que visam o crescimento econômico das Fortaleza também, nas últimas décadas, tem sua produção do
cidades e metrópoles, pautando-se em parcerias público-privadas (PPP), espaço financiada por alianças entre os agentes sociais, principalmente
formação de coalizões entre políticos e empresários, ênfase do poder
305 306

da ação do Estado e do capital privado, em setores como o da indústria, outras políticas direcionadas para a atração de capitais? Quais são os
setor imobiliário e o setor do turismo. impactos no espaço urbano desta corrida pela competitividade?

A mudança dos espaços urbanos seletivos de Fortaleza reflete Para tal análise, faz-se necessário realizar primeiramente uma
este processo de empreendedorismo, seja através de requalificações contextualização de como se desenvolve o discurso do
urbanas, obras direcionadas a megaeventos, equipamentos turísticos, empreendedorismo urbano e seus reflexos nas políticas, planos e
entre outros. As propagandas, notícias, reportagens têm a programas que buscam o desenvolvimento econômico nas cidades do
responsabilidade de promover a venda e “normalização” destes espaços, capitalismo tardio; verificar quais as principais intervenções urbanas
naturalizando assim o empreendedorismo adotado politicamente, calcadas no discurso empreendedor e seus impactos na produção do
enquanto “única” alternativa possível para as economias locais. espaço urbano em Fortaleza e avaliar se o CEC é um equipamento cuja
ação estratégica está interligada a outras políticas para impulsionar a
O CEC, construído com a finalidade de alavancar o turismo de
competitividade.
eventos no Estado, é promovido como uma obra indispensável para
melhorar os índices econômicos, que, de acordo com o marketing
efetuado, beneficiam também a população como um todo.
2 Empreendedorismo Urbano: O discurso empreendedor em suas
Por trás das aparências que colocam o equipamento enquanto diversas escalas e a realidade das metrópoles brasileiras
uma grande oportunidade e um marco à Fortaleza, fundamental para o No livro A Produção Capitalista do Espaço, capítulo “Do
desenvolvimento econômico da metrópole, surgem alguns Administrativo ao Empreendedorismo: a transformação da governança
questionamentos: que tipo de empreendedorismo urbano tem se urbana no capitalismo tardio”, David Harvey (2005) discute sobre este
desenvolvido em Fortaleza? Que políticas e intervenções foram gradual processo de transição referente à gestão das cidades.
materializadas entre 2004 e 2012 e estão consoantes com o discurso
O início das transformações administrativas ocorre com a crise
empreendedor? O CEC se configura como uma ação estratégica,
do regime de acumulação fordista, na década de 1970. A crise
objetivando consolidar Fortaleza enquanto metrópole apta para atrair
impulsionou projetos de reestruturação nos moldes de acumulação de
investimentos e consumo? Este equipamento está interligado com
capital, visando combater o Estado assistencialista, em que os altos
307 308

custos do Estado de Bem Estar Social (welfare state) ocasionaram dinamização de bens simbólicos e no bem-estar de sua população
exorbitante endividamento público e uma consequente recessão (CASTELS & BORJA, 1996, p.1).
econômica no sistema dos países capitalistas industrializados É importante ressaltar que “a existência de singularidades nos
(HOBSBAWM, 1995). modos concretos de sua aplicação nas distintas localidades, em função
Como resposta a rigidez dos fluxos econômicos e aos contratos de conjunturas específicas” (COMPANS apud MOURA, 2005 [1997],
firmados entre capital e trabalho no modelo fordista-keynesiano, gerou- p.21), ou seja, cada realidade terá configurações específicas, elementos
se uma profunda reestruturação no tocante ao papel do Estado dentro da que irão interagir ou então aplicados de forma e intensidade
economia (HARVEY, 1992). diferenciadas. Algumas cidades apresentarão esferas que caracterizam o
empreendedorismo urbano de forma mais desenvolvida e integrada a
A crise do sistema produtivo se revela no urbano. O discurso
outras esferas ao mesmo tempo em que algumas cidades incorporam a
sobre o modelo de Estado do regime fordista – planejador,
ideia do empreendedorismo, tendo esferas mais desenvolvidas do que
assistencialista e interventor na economia – torna-se desacreditado
outras.
frente à crise do regime de acumulação. A administração estatal precisa
buscar novos rumos, pautada na ênfase às ações locais, com foco Como características do empreendedorismo urbano, Harvey
empreendedor, flexibilização e gastos enxutos (lógica empresarial). (2005) discorre acerca destas estratégias competitivas de comunicações
(aeroportos, e tele portos, por exemplo), criação de eventos
As gestões urbanas adotam em seus planejamentos e políticas
espetaculares, de locais para o consumo, com investimentos em pontos
esta lógica empresarial. A recuperação do patrimônio histórico-cultural,
estratégicos, como fundamentais para cultivar o empreendedorismo das
promoção de grandes transformações urbanísticas, melhorias nos
cidades e metrópoles. Essas esferas interligadas dão o ritmo ao
serviços básicos, alianças com agentes privados e capital estrangeiro
crescimento das economias locais.
(promovendo turismo e grandes eventos) refletem o aumento da
participação da esfera local como agente fomentador do Grande parte das cidades e metrópoles investem
desenvolvimento. As cidades assumem sua centralidade na criação e principalmente na questão da divisão espacial do consumo, através da
309 310

arte, do espetáculo, dos eventos e negócios para criar um ambiente Este planejamento foi financiado por um Consórcio
favorável tanto para a diversão como para o trabalho. Mantenedor constituído por 51 empresas e associações empresariais e
contaria com a consultoria da empresa catalã TUBSA – Tecnologias
No Brasil, os orçamentos destinados aos municípios são
Urbanas Barcelona S.A – presidida por Jordi Borja, ex-prefeito de
reforçados com novas atribuições relativas às áreas de educação, saúde,
Barcelona nos anos 90 (COMPANS, 2005, p.193).
mobilidade, infraestrutura e transporte, reforçando o papel do município
enquanto gestor das cidades, apesar dos recursos, as metrópoles Sobre o planejamento estratégico, Compans explana que
enfrentam ainda graves problemas estruturais nos setores de habitação, de acordo com os consultores catalães, o produto desse
método de planejamento é um “projeto de cidade” que
saneamento, mobilidade, entre outros.
consiste fundamentalmente em uma agenda de ações e de
intervenções físicas capaz de orientar coerentemente a
Diversas metrópoles têm adotado planejamentos estratégicos e atuação governamental, de facilitar a captação de
investimentos e o engajamento do setor empresarial na
o marketing urbano, enquanto estratégias para este desenvolvimento execução de ações específicas mediante a formação de
local. A pioneira das metrópoles brasileiras é o Rio de Janeiro. Explana parcerias púbico-privadas, e de construir um consenso
político em torno desta agenda (COMPANS, 2005,
Silva “No Brasil, em meados da década de 1990, algumas cidades p.192).

contrataram empresas de consultoria para realizar tais planos. O Rio de O planejamento estratégico enquanto instrumento para
Janeiro se orgulhava de ser uma das primeiras a estar entre essas capitalizar os espaços da cidade e torná-los mais rentáveis, não traz
cidades a elaborarem seu plano” (SILVA, 2012, p. 284). grandes diferenciações de objetivos entre o planejamento estratégico de
uma para outra cidade, reproduzindo a mesma essência mercadológica e
No Rio, o início deste processo ocorre com a eleição do
sem analisar as particularidades de cada espaço (COMPANS, 2005).
prefeito César Maia (1993-1997). Um dos elementos básicos do
empreendedorismo urbano é a adoção de um planejamento estratégico; O planejamento estratégico do Rio de Janeiro se desenvolve,
A elaboração de um convênio entre a Prefeitura, Associação Comercial culminando recentemente, nos anúncios do Rio de Janeiro como sede
do Rio de Janeiro (ACRJ) e a Federação das Indústrias do Rio de de megaeventos como a Copa do Mundo 2014 e Olimpíadas 2016,
Janeiro (FIRJAN) resultou em um acordo, dando inicio a um dando continuidade aos projetos iniciados nos anos 1990, acentuando as
planejamento estratégico. intervenções voltadas a especulação e ao consumo. A construção de
311 312

shoppings, museus, centros culturais, modernização de portos Fortaleza, a partir de certo momento, se confunde com a própria história
marítimos, entre outros, transformam o Rio de Janeiro no “coração do do Estado” (SILVA, 1992, p.21). A competição urbana já é travada com
empreendedorismo do Brasil”. outras cidades do Ceará no século XVIII, indicando a relevância
econômica que se concretiza com o desenvolvimento da cultura
Em outras cidades, como Fortaleza, não existe necessariamente
algodoeira e da exportação de gado.
um planejamento estratégico, de acordo com o modelo adotado
internacionalmente, mas desenvolve-se uma espécie de “planejamento Com a conquista da independência referente ao
estratégico sem plano” ou “empreendedorismo periférico”, no qual desmembramento da Capitania de Pernambuco (1799) a então Vila
buscam construir atributos para qualificarem sua inserção no cenário Fortaleza no final do séc. XIX torna-se fundamental para a expansão do
competitivo internacional e regional, através da imitação de outros mercado algodoeiro. As facilidades portuárias e a construção de
centros urbanos (SILVA, 2012, p.1). ferrovias conectando o sertão com a Vila se traduzem em um aumento
da mobilidade, que são refletidas com o aumento das emigrações,
Compreender quais e como são executadas estas estratégias
principalmente a população que fugia da seca no sertão e pessoas da
direcionadas a consolidar a metrópole como polo competitivo, assim
elite, com alto poder aquisitivo. O trânsito de mercadorias também se
como os impactos destes projetos, equipamentos e planos direcionados
intensifica, sendo que a exportação de algodão e de outros produtos
na reestruturação dos espaços, são fundamentais para visualizar quais os
fortifica o desenvolvimento comercial e em 1823, a Vila se eleva a
caminhos urbanos e de que maneiras o discurso empreendedor tem
condição de cidade, desencadeando a partir desse fortalecimento
influenciado a produção do espaço urbano de Fortaleza.
comercial considerável crescimento demográfico.

Este crescimento demográfico também está ligado devido às


3 Fortaleza, uma metrópole empreendedora? Transformações
fortes secas no interior do Ceará, ocasionando o aumento da área urbana
urbanas estratégicas direcionadas a competitividade
(SILVA, 1992). Porém este crescimento não gerou a ampliação da
Fragmentos de uma totalidade que reproduz as condições de infraestrutura e equipamentos coletivos essenciais, induzindo a
realização do capital, muitas mudanças têm ocorrido na produção do população do interior que não possuía terras a procurar espaços que
espaço urbano em Fortaleza. Conforme SILVA, “a história da
313 314

estivessem disponíveis para construírem suas moradias, em locais reestruturar a economia, através da flexibilização das relações de
vulneráveis e sem infraestrutura adequada. trabalho e a desregulamentação do mercado.

Já na década de 1960, os primeiros passos são dados para o Desde o final da década de 1980, Fortaleza reestrutura-se
processo de industrialização no Ceará, fomentando a competitividade também de maneira intensa. As políticas capitaneadas pelas gestões
do Estado dentro do território nacional. O processo de industrialização urbanas de Fortaleza auxiliam e fortalecem a perspectiva
tardia que engloba o Nordeste do país intensifica-se aos poucos, empreendedora e competitiva da metrópole, considerando as diferenças
principalmente com os incentivos da Superintendência do dos desenvolvimentos desiguais geográficos em cada particularidade.
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Os incentivos a Como exemplos de políticas, requalificações que são
industrialização são consequência da reestruturação industrial e busca executadas e tem influências do discurso empreendedor, podemos
pelo barateamento da produção, facilitando o processo de elencar três bastante importantes para a metrópole: a requalificação da
descentralização das áreas manufatureiras tradicionais que direcionaram Praia de Iracema (PI), as obras voltadas ao megaevento Copa do Mundo
o deslocamento da planta industrial para outras regiões (BERNAL, 2014 e o CEC.
2004).
No bairro turístico PI, uma série de intervenções da Prefeitura
Gradualmente, a partir dos anos 1980, a “transição da cidade Municipal de Fortaleza, do Governo do Estado e Governo Federal, tem
provinciana e acanhada para uma metrópole, com ares de modernidade consolidado cada vez mais o espaço para o turismo e lazer, receptor de
que acolhe movimentos financeiros, sociais e culturais” (BERNAL, grande contingente de turistas. A construção de equipamentos como o
2004, p.21) se consolida na realidade de Fortaleza. No final dos anos Centro Cultural Dragão do Mar, requalificação paisagística, entre outras
1980, uma série de medidas e políticas calcadas no empreendedorismo infraestruturas, consolidam o bairro como um dos principais pontos
são realizadas, visíveis influências da reestruturação produtiva.
visitados tanto para o turismo como para o lazer na metrópole.
A reestruturação produtiva, desenvolvida nos países Esta requalificação urbana objetivou renovar fluxos de pessoas
industrializados capitalistas e, posteriormente, com suas e fluxos econômicos Na PI, uma série de fatores, como a localização
particularidades, nos países latinos americanos e no Brasil, busca geográfica, as amenidades e a própria história do bairro, são elementos
315 316

estratégicos que auxiliam na mercantilização de um clima agradável à iniciativa privada. O megaevento tornou-se uma “justificativa” para dar
metrópole. O projeto “Nova Praia de Iracema”, iniciado em 2008 e continuidade ao “ordenamento” e a higienização dos espaços, buscando
capitaneado pela Prefeitura Municipal de Fortaleza envolve uma série a melhoria das cidades.
de intervenções dentro do bairro, como reforma de antigos Estas “melhorias” se efetivam com as requalificações urbanas,
equipamentos, reurbanização e construção de museus. Articulado em atração de megaeventos, construção de museus, centros culturais,
duas fases, o projeto prevê gastos no total de R$ 42.792,385. centros de negócios, juntamente com suas alianças estratégicas, para
O megaevento Copa do Mundo 2014 é outro projeto que viabilizar estas intervenções. A Copa do Mundo de 2014, nas cidades-
ratifica o desenvolvimento da ideia do empreendedorismo urbano na sede estão gerando diversos impactos para sua implantação,
metrópole. O panorama de investimentos, no total, previu gastos de principalmente a remoção de famílias para a continuidade das obras.
mais de 25 bilhões de reais. Em Fortaleza, mais de um bilhão e 600 Ainda sobre intervenções e equipamentos que reforçam a
milhões de reais estiveram disponíveis para as 23 obras e intervenções competitividade da metrópole Fortaleza dentro do mercado de cidades,
destinadas a Copa. o CEC, como veremos, também está inserido nesta lógica. Retomemos
Os sete eixos de investimentos transitaram na reestruturação do esta discussão no próximo capítulo.
aeroporto Pinto Martins, reforma do Estádio Governador Plácido
Castelo (Castelão); mobilidade urbana, com a implantação do Veículo
4 Centro de Eventos do Ceará, uma ação estratégica em Fortaleza?
Leve sobre Trilhos (VLT) pela Companhia Cearense de Transportes
Metropolitanos (METROFOR); a reforma do Porto de Fortaleza; A construção do CEC iniciada em 2009, realizada pelo
Segurança Pública; ampliação do setor hoteleiro e investimentos no Governo do Estado do Ceará, em consórcio com as empreiteiras Galvão
Turismo e Telecomunicações. Engenharia, Mendonça 66 Andrade Construtora e SH, reforçam a
importância do bairro Edson Queiroz. Destinada aos eventos, feiras,
A execução de um megaevento como a Copa do Mundo
shows de grande porte, entre outras atrações, tem atraído grande fluxo
consiste na possibilidade de reestruturar e intervir nas cidades, com
de pessoas ao bairro.
grandes aportes de recursos e investimentos tanto do Estado quanto da
317 318

Sobre a construção do equipamento turístico, uma das conforme documento “Impactos Econômicos da Operacionalização do
executantes - a Galvão Engenharia S/A - é uma das empresas parceiras Centro de eventos do Ceará” (IPECE, 2012).
do Governo Estadual, construindo diversas obras, seja através das O objetivo do governo estadual com a implantação do CEC é
licitações e consórcios estabelecidos. ampliar o número de eventos, (sobretudo os de maior dimensão) atrair
A articulação das gestões das cidades e o capital privado são mais turistas para o Ceará, ampliar a infraestrutura já disponível para a
essenciais para a reprodução da lógica empreendedora, necessária para realização de eventos e fortalecer, consequentemente, a economia
o fortalecimento da economia mercantil. O CEC se configura como cearense (IPECE, 2012, p.3).
atendimento de uma exigência por parte dos principais agentes que A consolidação destes moldes de competitividade no mercado
desenvolvem o turismo na metrópole, como associações de restaurantes, de cidades, pronta a atrair capitais, fluxo de pessoas e investimentos
bares, hotelaria, entre outros, sendo os planos de marketing e questão de tem apoio dos mais diversos meios de comunicação. O discurso do
negócios fundamentais para a promoção do equipamento. empreendedorismo urbano é aceito por grande parte da população, que
No Ceará, o setor de turismo, principalmente na modalidade de visualiza cada vez mais a cidade como empresa; qualidade de vida
turismo sol e mar (visitação de praias) tem se fortalecido nos últimos como consumo; urbanização excludente como progresso, entre outros
anos, tendo Fortaleza conquistado posições importantes em pesquisas: é aspectos.
a quarta capital mais visitada por turistas brasileiros em 2012 A criação de um clima de negócios precisa também de um
(MINISTÉRIO DO TURISMO, 2012) e elencada por pesquisa do clima agradável na metrópole. Quem se desloca para participar de
Ministério do Turismo como a segunda cidade mais desejada a ser eventos, reuniões, também busca entretenimento. As opções de lazer
visitada. precisam ser adequadas às demandas de quem vem consumir os
Conforme estatísticas de 2006 a 2010, feiras, seminários, espaços, ou seja, o turismo de eventos está totalmente associado ao
simpósios, entre outros eventos, atraíram mais de 365 mil participantes, turismo de sol e mar (modalidade turística já consolidada na capital).
sendo em média os participantes 40% turistas e 60% visitantes, Mesmo inaugurado recentemente, o CEC configura-se como
uma possibilidade de deslanchar o turismo de eventos com a realização
319 320

de eventos culturais, empresariais, religiosos, acadêmicos e outros de competitividade da metrópole e do Ceará. Calcado no discurso
diversas temáticas, sendo estratégico para a competitividade e empreendedor, da necessidade de se alavancar o desenvolvimento
reforçando o discurso empreendedor. econômico dos espaços, este equipamento torna-se um complemento
para outras intervenções da metrópole com as mesmas
O turismo se desenvolve com o advento da modernização,
intencionalidades.
acumulação e reprodução do capital (BEDIM, 2008). O trabalho
assalariado condiciona o tempo não produtivo como exceção, como As “apostas” e investimentos para uma metrópole baseada na
transitório... E os espaços direcionados tanto ao turismo e lazer (assim ideologia empreendedora e competitiva acentuam desigualdades e
como os signos que são produzidos relativos a estas atividades) problemáticas de ordem maior. Não que o investimento em setores
impulsionam sistemas de valores e ideias, que ditam padrões estratégicos seja a única causa dos problemas macroestruturais de
homogeneizadores no sentido do consumo, da viagem e das próprias Fortaleza, mas enquanto o discurso empreendedor e modernizador,
práticas deste “tempo livre” (BEDIM, 2008). Isto reforça o ideário calcado nas alianças que definem o “bem comum” das cidades e
empreendedor, no sentido de reforçar ainda mais a mercantilização dos metrópoles continuar a se difundir, “representando” supostamente a
espaços. totalidade do plano local, as desigualdades e segregação não findarão
com o crescimento econômico, já que este mesmo crescimento
A prática do turismo se associa ao tempo do não trabalho,
beneficia apenas uma minoria que lucra com este modelo.
supostamente o “tempo livre” dos trabalhadores. O turismo é a
mercadoria por excelência, em que a padronização do tempo não
produtivo está pronta para consumo. Como o próprio tempo do não
5 Considerações finais
trabalho é tempo social, mediado pela produção, os espaços relativos ao
As gestões das cidades, na configuração atual do
turismo e lazer são incorporados ao mundo da mercadoria (BEDIM,
desenvolvimento histórico, têm projetado intervenções, projetos e
2008).
planos baseados no empreendedorismo urbano. Reflexo das
A lógica da incorporação ou construção de espaços turísticos reestruturações econômicas e produtivas do regime de acumulação e
enquanto mercadoria é reforçada pelo CEC, estratégico a dos arranjos institucionais e políticos do Estado, a condução de um
321 322

projeto baseado no discurso empreendedor é apontada como única da alta estação. Construído pelo Governo Estadual enquanto
possibilidade para o desenvolvimento econômico, sendo que esta lógica reivindicação do trade turístico, seu funcionamento contribui para
repercute nas metrópoles, cidades brasileiras e de outros países. diversas empresas, que também trabalham na captação de eventos para
o equipamento, indicando alianças entre ambos os setores para o
Diversas cidades e metrópoles brasileiras têm aderido a este
fortalecimento da competitividade da metrópole.
discurso, seja através da elaboração de planejamentos estratégicos e
maciço marketing urbano, com a produção de imagens e propagandas O discurso do empreendedorismo reforça os caminhos da
voltadas para “vender” as cidades. Metrópoles como Rio de Janeiro, urbanização capitalista: segregadora e intensificadora das desigualdades
Curitiba, Salvador tem desempenhado um forte investimento nestes socioespaciais. As gestões priorizam investimentos em espaços
setores, baseados no discurso do empreendedorismo urbano. seletivos, infraestrutura e equipamentos que não respondem a totalidade
da metrópole.
Em Fortaleza, não existe um planejamento estratégico definido
ou um plano referente a diretrizes para o empreendedorismo urbano, Os impactos reforçam a tendência do valor de uso perdendo-se
porém é perceptível a incorporação deste discurso em políticas, na modernização capitalista, sendo o valor de troca e da produção de
intervenções urbanas e construção de equipamentos turísticos, mercadorias alimentados para o processo basilar da (re)produção de
impulsionando a competitividade da metrópole. Criar uma atmosfera mais-valia. A incorporação dos espaços na circulação de mercadorias
agradável, renovando espaços e tornando-os mais atrativos são reflete a extensão do trabalho abstrato em todas as dimensões do
preceitos baseados na mercantilização dos espaços, em que os espaços cotidiano, em que o turismo transforma-se em uma atividade
devem ser produzidos para e acima de tudo alavancar o padronizada e homogênea, envolvida sempre na esfera do consumo dos
desenvolvimento econômico. espaços. O CEC reforça esta lógica, em que as estruturas para o turismo
são instrumentos para geração de mais-valia.
O CEC se configura como mais uma ação estratégica que
reforça essa lógica, consolidando a modalidade do turismo de eventos Os equipamentos, políticas, projetos e intervenções destinados
na atração de pessoas e auxiliando o aumento do fluxo turístico em a intensificar a competitividade da metrópole, sejam no
outras épocas que não sejam necessariamente do turismo de sol e mar desenvolvimento das esferas de tecnologia, da atividade turística e suas
323 324

contradições, como o boom imobiliário, dão continuidade à estruturação A negação do predomínio do valor de troca e de
da cidade enquanto instrumento da realização do capital. O aumento do mercantilização dos espaços precisa se intensificar a partir do
custo de vida, as desigualdades sociais, as remoções das populações entendimento de que as metrópoles e cidades não são produtos da
para estes projetos demonstram a perversidade do processo de produção, circulação, distribuição do capital, mas sim uma
valorização do capital. possibilidade de processo construtivo... Entendendo a cidade não mais
como produto, e sim como obra (LEFEBVRE, 1978).
O fato é que o discurso do empreendedorismo ressalta que as
melhorias das cidades irão beneficiar a todos, demonstrando-se O acesso à cidade se restringe a quem pode participar (e cuja
enquanto ideologia, uma vez que as intervenções e políticas não participação se resume basicamente ao poder do consumo) da
viabilizam maior acessibilidade da população aos equipamentos mercantilização dos espaços e de quem está inserido na esfera do
construídos. A aparência se torna a essência: enquanto a desigualdade consumo: enquanto persistir o processo de modernização excludente, a
social apenas aumenta, as imagens e matérias vinculadas nas mídias, produção do espaço urbano continuará modelada por esta segregação
para o mercado de cidades, retratam uma metrópole diferente. A socioespacial.
produção do espaço urbano calcada na competitividade beneficia
Faz-se necessário a busca por uma cidade enquanto obra,
estritamente a poucos, porém é repassada enquanto benefício a todos. idealizando a luta por uma cidade que não seja um produto externo, a
Enquanto a urbanização capitalista se expandir, atendendo a parte das nossas vontades e instrumento da economia mercantil que
ampliação do processo de reprodução de capital, as cidades estamos inseridos. A verdadeira luta deve ser contra a ordem vigente,
continuaram como ferramentas para a propagação de ideologias como a contra o conforto imediato do capital, que nos condiciona a miséria do
do empreendedorismo urbano, que garantam a acumulação de capital e cotidiano e da ilusão de segurança do consumo. É no sentido contrário
que mantenha a divisão de classes. E estes impactos recaem que retomaremos o controle de nossas vidas.
principalmente à classe trabalhadora, mão de obra que sustenta todos
estes privilégios. Referências bibliográficas
325 326

BEDIM, B. Turismo, espaço e tempo social: acepções teóricas da


modernidade em movimento. Revista Geografias, Belo Horizonte,
2008.
BERNAL, M.C.C. A metrópole emergente: a ação do capital
imobiliário na estruturação urbana de Fortaleza. Fotaleza: Editora UFC,
2004.
CASTELLS, M. BORJA, J. As cidades como atores políticos. Novos
Estudos: CEBRAP, nº 45, 1996.
COMPANS. R. Empreendedorismo Urbano: entre o discurso e a
prática. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
HARVEY, D. A produção capitalista do espaço. São Paulo:
Annablume, 2005.
_________. Condição Pós-Moderna. 21ª ed. São Paulo: Edições
Loyola, 1992.
HOBSBAWM, E. A Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
INSTITUTO DE PESQUISA E ESTRATÉGIA ECONÔMICA DO
CEARÁ. Informe: Impactos Econômicos da Operacionalização do
Centro de Eventos do Ceará (CEC). Governo do Estado do Ceará,
2012.
LEFEBVRE, H. O direito à cidade. 5ª edição. São Paulo: Centauro:
2001.
SILVA, E. R. O Planejamento Estratégico sem plano: uma análise do
empreendedorismo urbano no Brasil. Revista de Geografia e
Ordenamento do Território, n.º 2, 2012.
SILVA, J. Quando os incomodados não se retiram: uma análise dos
movimentos sociais em Fortaleza. Fortaleza: Multigraf Editora, 1992.

Você também pode gostar