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González Rey, F. L. O que oculta o silêncio epistemológico da Psicologia?


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O que oculta o silêncio epistemológico da Psicologia?

What the psychology’s epistemological silence hides?

Fernando Luis González Rey1

Resumo
No artigo, discute-se a relação entre teoria, epistemologia e método em Psicologia. Revê-se brevemente a história da Psicologia,
considerando-se essa relação, e são apresentadas e discutidas três formas de distorção no uso da teoria por psicólogos – a que
resulta de tendências ateóricas que privilegiam a empiria, a que transforma as teorias em dogmas e a da hegemonia do
instrumentalismo. Argumenta-se que, dessas distorções, resulta tanto um mau uso da teoria, quanto um mau uso da empiria.
Finalmente, faz-se a proposta de uma pesquisa qualitativa em que o tema da subjetividade é desenvolvido numa perspectiva
cultural-histórica.
Palavras-Chave: Teoria, epistemologia, método, subjetividade, perspectiva cultural-histórica.

Abstract
This paper discusses the relationship between theory, epistemology, and method in Psychology. The history of Psychology is briefly
revisited, taking into consideration this relationship, and three forms of distortion in the use of theory by psychologists are
introduced and discussed – the one which results from atheoretical trends which privilege empiricism, the one which turns the
theories into dogmas, and the one of the hegemony of instrumentalism. It is argued that these distortions result in a bad use of the
theory and in a bad use of the empiricism. Finally, a qualitative research is proposed in which the issue of subjectivity is developed
from a cultural-historical perspective.
Key words: Theory, epistemology, method, subjectivity, cultural-historical approach.

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Centro Universitário de Brasília - Faculdade de Educação da Universidade de Brasília.

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Pesquisas e Práticas Psicossociais, 8(1), São João del-Rei, janeiro/junho 2013
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INTRODUÇÃO um saber válido, preciso, preditivo e de amplas
possibilidades de generalização. O giro da
A Psicologia, logo após seu reconhecimento ciência à tecnologia se apoiou na proliferação
oficial como ciência particular, momento crescente dos testes psicológicos em diferentes
associado historicamente à fundação do esferas da atividade humana, o que se
laboratório de W. Wundt em Leipzig, em 1875, legitimou na concepção de ciência hegemônica
se dedicou à pesquisa experimental das nas ciências naturais.
funções psíquicas, ainda que, na Europa, nunca Como sempre aconteceu na historia da
tenha abandonado suas preocupações com os Psicologia, os autores se preocuparam mais
processos não suscetíveis de estudo com a importação acrítica de modelos e
experimental, como o próprio Wundt instrumentos hegemônicos das outras ciências
expressou em relação à Volkerpsikhologii. do que com a especificidade das questões que
Porém, o núcleo mais forte da Psicologia norte- a Psicologia deveria desenvolver. A Psicologia,
americana, no princípio do século XX, se sem uma representação teórica clara sobre o
organiza ao redor dos discípulos de Wundt – J. seu campo, se converteu numa ciência
Cattel, Stanley Hall e Titchener –, o último, um empírica que se assumiu como positivista,
inglês radicado nos Estados Unidos. Esses ainda que tenha ignorado, de forma geral, as
autores, longe de preservarem as interessantes questões teóricas e filosóficas
preocupações teóricas e filosóficas do seu desenvolvidas por Comte e Durkheim.
mestre Wundt, se orientaram para uma O positivismo partia de uma representação
Psicologia mais empírica e instrumental, em ordenada e regular do mundo, passível de ser
que a experimentação foi tomando um caráter conhecido mediante leis que permitiam definir
cada vez mais ascético. Isso valeu críticas a relações regulares entre diferentes processos e
Titchener que, no inicio de sua carreira nos fenômenos que aconteciam nele. Nesse
Estados Unidos, mantinha um tipo de sentido, o positivismo partia da ideia de uma
experimentação mais participativa, semelhante ciência precisa e preditiva, atributos que, no
à realizada por Wundt (Danziger, 1990). Nessa positivismo lógico (Círculo de Viena, Carnap e
situação, muito teve a ver o desenvolvimento outros), evoluíram para o rigor da análise
acelerado do capitalismo norte-americano e lógico-linguística, apoiada também por Popper,
suas demandas de pessoal idôneo para garantir que tomou distância crítica do positivismo ao
a eficiência da indústria e dos diferentes se centrar na refutação em lugar da
campos de capacitação de pessoas, o que demonstração (o que limitava a universalidade
também influenciara o desenvolvimento da do saber pretendida pelos autores positivistas).
educação. Popper sinalizou o caráter histórico do saber
A separação das ciências particulares da humano.
Filosofia, ocorrida na segunda parte do século A Psicologia ignorou os aspetos filosóficos
XVIII, tornou-se um princípio reitor da ciência que fundamentaram os métodos da ciência e,
na segunda metade do século XIX e princípios por anos, funcionou como se só existisse um
do XX, quando o sucesso da ciência nas modelo de ciência, no caso, o instrumentalista-
transformações tecnológicas gerou uma visão empírico, pois realmente nem positivista foi.
tecnocrática e aplicada de sua legitimidade e Essa característica do saber psicológico tem
sucesso. Na Psicologia, essa visão de ciência se sido sinalizada como “fetichismo
expressou numa orientação instrumentalista metodológico” (Koch, 1992) e como
utilitária no desenvolvimento das pesquisas e “metodolatria” (Danzinger, 1990). Essa
dos recursos de sua prática profissional, Psicologia empírica funcionou durante décadas
processos que se alimentaram muito por meio de um paradigma de ciência em que
rapidamente do uso dos testes psicológicos, a estatística ocupou o centro sobre o qual se
que tiveram em Francis Galton sua figura legitimavam as afirmações do saber.
pioneira nos começos do século XX. Os testes, Porém, a Psicologia também tem tido como
no imaginário da Psicologia, criaram a ilusão de característica uma pluralidade de fontes que

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têm estimulado a emergência das diferentes possível para o emprego com sucesso desses
teorias que convergem em seu métodos.
desenvolvimento. Assim, a psicanálise, Esses dois caminhos paralelos, a clínica e
também no século XIX, emerge do corpo de pesquisa, longe de interagirem entre si, se
uma psiquiatria que se deparou com uma fecharam um em relação ao outro, o que deu
“doença” que afetava o funcionamento início a outra das fortes tendências do
somático de diversas formas, mas que não se desenvolvimento da Psicologia: a
apoiava em causas orgânicas: a histeria. Com fragmentação por temas e escolas que se
Charcot, no século XIX, a histeria se convertia legitimaram por vias diferentes e que
em objeto do saber positivo, ao ser coexistiram se identificando como saberes que,
considerada doença, o que ajudou a superação incluídos numa mesma disciplina, nada tinham
dos preconceitos e do estigma social que ver uns com os outros. Foi precisamente
dominante em relação ao transtorno. Mas, ao esse estado de coisas da Psicologia no início do
se incluir a histeria na representação de século XX que inspirou a aguda crítica de
doença, novos processos de institucionalização Vygotsky plasmada em sua obra O sentido
e rituais afetaram a condição das pessoas que histórico da crise da Psicologia (1982), onde
padeciam dela. fazia um chamado ao desenvolvimento de uma
Frente a esse desafio e partindo de Psicologia Geral.
importantes antecedentes, tanto na Filosofia Esse quadro da Psicologia e os seus
(Nietzsche), como na própria Psiquiatria desdobramentos não é o objetivo do presente
(Herbart, Janet e Breuer), Freud levantou trabalho. Porém, é muito importante para
hipóteses sobre a natureza psicogênica dos compreender a debilidade da teoria e as
sintomas histéricos, com uma consistência que distorções em seu uso que têm dominado
superou os seus antecessores. Foi assim que nossa ciência, assim como a ausência de
uma representação teórica em trabalhos orientados para a relação entre o
desenvolvimento, que se alimentava dos teórico, o epistemológico e o metodológico em
processos terapêuticos, inaugurou uma nova nossa disciplina, temas que são o foco do
epistemologia na Psicologia e, por sua vez, presente trabalho.
aparecia como uma nova forma no uso da
teoria. Porém, o sentido clínico do trabalho de
Freud e seu próprio positivismo médico não lhe AS DISTORÇÕES NO USO DA TEORIA EM
permitiram avançar na dimensão PSICOLOGIA: AVANÇANDO NUMA
epistemológica e metodológica nesse novo REPRESENTAÇÃO DIFERENTE DO TEÓRICO
caminho, o que explica o fato de que, por
muito tempo, a psicanálise fica confinada A distorção no uso e a compreensão da
essencialmente ao campo da clínica. Sobre teoria se expressam, na Psicologia, de três
essa diferença entre clínica e ciência, a formas principais. A primeira é a das
Psicologia perpetuou, durante anos, a tendências ateóricas que consideraram a
dicotomia entre o método clínico e o empiria como princípio e fim de todo saber e
experimental. Confinada às técnicas, a usam conceitos apenas para rotular os eventos
Psicologia como ciência ficou órfã de um e comportamentos concretos opera-
modelo teórico. Isso acarretou, por algumas cionalizáveis, sobre os quais definem as
décadas, que só fosse considerada ciência a variáveis a estudar, as que irão nortear tanto
Psicologia que apoiava a sua pesquisa em as pesquisas experimentais, como aquelas
métodos experimentais ou em instrumentos centradas na correlação estatística entre
adequadamente validados para medir variáveis variáveis. Esse tipo de pesquisas se apoia na
susceptíveis de correlações estatísticas, o que, neutralidade do pesquisador e, delas, as ideias
de fato, implicou que ambas as formas se resultaram totalmente excluídas, o que levou a
apoiaram no comportamento, única alternativa uma representação do teórico como processo

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de rotulação dos dados obtidos, sendo esses não pretendemos que uma construção
rótulos apenas descrições que sinalizam individual seja algo mais do que uma
evidências empíricas. Essa tendência conjetura que aguarda exame, confirmação
caracterizou o tipo de pesquisa reconhecida ou rejeição (p. 265).
como científica em Psicologia até a década dos
anos setenta do século passado, quando outras Freud defende, nesse momento de sua vida,
alternativas metodológicas ganharam força na que nunca uma construção individual pode ser
investigação psicológica e a discussão interpretada de forma direta, fora do processo
epistemológica ganhou espaço na Psicologia. integral de análise, o que, na realidade, é uma
A segunda forma das distorções no uso das construção do analista que se inspira e se
teorias é a sua transformação em dogma, em alimenta na representação teórica mais geral
saber “verdadeiro e universal” que, a priori, que a psicanálise lhe deu. Toda interpretação é
orienta as significações sobre o material um ato de autoria e, como tal, precisa de novos
empírico. Um exemplo desse tipo de uso da conceitos e ideias que só de forma mediata
teoria na Psicologia tem sido a forma em que encontraram o seu significado em termos da
certa psicanálise tem orientado a pesquisa e a teoria mais abrangente que a apoiou, o que,
prática profissional. Nesse uso da teoria pela também, pode implicar novos caminhos no
psicanálise institucionalizada como dogma, o desenvolvimento dessa teoria ou sua rejeição
teórico se impõe como ato imediato de por parte do pesquisador. É essa uma das
significação frente a uma expressão empírica razões dos múltiplos desdobramentos da
concreta da pessoa ou pessoas estudadas, com psicanálise no curso de sua história.
o que se viola o princípio básico da O eminente psicanalista C. Bollas (2007) nos
interpretação como recurso de construção diz a respeito do uso da teoria na prática
teórica; uma interpretação sempre é um psicanalítica: “todos os psicanalistas têm
processo que avança entre uma diversidade de deixado de conceituar as teorias implicadas na
opções, assumindo aquela em que elementos forma como realizam sua prática. [...] os
empíricos diferentes convergem no clínicos têm formas individuais de ordenar o
fortalecimento de uma das hipóteses que que eles veem e ouvem” (p. 77). Deixando de
acompanham o processo da pesquisa. Nunca a lado a generalização absoluta que o autor nos
interpretação é um ato direto de significado traz em relação aos psicanalistas, é importante
sobre uma expressão isolada da pessoa. Usada destacar sua ideia de que psicanalistas (e eu
dessa forma, a teoria se separa do momento acrescentaria, assim como a maioria dos
empírico e se impõe a ele, de fora. A relação psicólogos) não constroem conceitualmente
teoria/momento empírico é sempre fonte de essas formas individuais de ouvir e ver em suas
conjetura e construção de alternativas práticas, não avançam em suas próprias
diversas. construções teóricas, limitando-se a informar a
O próprio Freud (2011), em um dos seus “trama viva” desenvolvida no seu
últimos trabalhos, o que, no meu juízo, foi atendimento, nos termos mais gerais da teoria
aquele em que mais aprofundou o caráter que adotam com a qual a prática clínica se
epistemológico da interpretação, intitulado desenvolve de forma intuitiva e ateórica,
Construções em Análise, nos diz: perdendo-se a riqueza infinita dos caminhos e
processos da singularidade trabalhados nessa
[...] mas essas relações em parte dos prática. Esse é um excelente exemplo do uso
pacientes [ele se refere aqui às reações dos dogmático da teoria.
pacientes às construções do analista] A última das formas de distorções no uso
raramente se apresentam sem ambiguidade, das teorias em Psicologia se define pelo uso
dando- nos a oportunidade de um dos instrumentos de diagnóstico e pesquisa
julgamento final. Só o curso completo da como técnicas, ao serem associados a um
análise nos capacita a decidir se nossas sistema a priori e universal de categorias pelas
construções são corretas ou inservíveis. Nós quais são significadas as expressões mais
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diversas das pessoas nesses instrumentos. Esse construir hipóteses sobre as informações
uso dos instrumentos de diagnóstico ou obtidas, que resultam inacessíveis nas
pesquisa converte, de fato, os instrumentos expressões verbais diretas das pessoas
em microteorias. Essa forma de uso transforma estudadas. A hegemonia da epistemologia da
as técnicas em recursos isolados para se chegar resposta converte as expressões das pessoas
a conclusões universais sobre as pessoas estudadas em epifenômenos do instrumento,
estudadas, precisamente o que o próprio Freud pois elas sempre vão encontrar uma
questionava na citação anterior. Nesse uso, as significação nas categorias universais que
técnicas chamadas projetivas, cuja orientam a produção de significados da
epistemologia subjacente pouco tem a ver com informação fornecida pelo instrumento. Dessa
a psicanálise, ainda que elas usem e tomem forma, se excluem da pesquisa as construções
emprestado o termo “projetivo” desse mais abrangentes, complexas e espontâneas
arcabouço teórico, se convertem em das pessoas que são, precisamente, aquelas
“tecnologias conclusivas” em si mesmas, o que por meio das quais as complexas configurações
expressa um posicionamento totalmente subjetivas dos processos humanos podem ser
diferente do caráter singular atribuído à estudadas.
interpretação por Freud. As chamadas técnicas, Como escreve Bourdieu (2003):
sejam elas testes psicométricos ou projetivos,
são uma expressão do instrumentalismo Todo o meu empreendimento científico se
hegemônico na Psicologia. inspira, em efeito, na convicção de que não
A forma como as técnicas têm sido usadas se pode acompanhar a lógica mais profunda
no paradigma empírico tradicional da do mundo social senão com a condição de
submergirmos na particularidade de uma
Psicologia é a maior evidência da
realidade empírica, historicamente situada e
epistemologia positivista instrumental fechada, mas para construí-la como ‘caso
subjacente ao uso delas; o instrumento particular do possível’, segundo as palavras
aparece como um recurso garantido pelos de Bachelard, isto é, como uma figura no
procedimentos de validação, padronização e universo finito das configurações possíveis
confiabilidade implicados na sua construção. (p. 24).
Esses procedimentos legitimam as conclusões
do instrumento, omitindo as ideias do O expressado por Bourdieu tem valor não
pesquisador nesse processo. A participação do apenas para o conhecimento social, mas para
pesquisador se reduz a aplicar e relacionar o todas as áreas das ciências humanas cujos
sistema de categorias universal que norteia a fenômenos não se reduzem à objetividade
produção dos significados sobre a informação como um sinônimo de concreto, definição que
brindada no instrumento. Esse processo separa tem dominado a representação do objetivo;
o instrumento do curso contraditório e vivo da pelo contrário, os processos humanos definem
expressão da pessoa, impondo um rótulo sua objetividade através da inclusão de sua
compartindo formas complexas e singulares de dimensão subjetiva, que não aparece como
expressão. O uso dos instrumentos em efeito de uma influência externa, alheia ao
Psicologia se apoia na epistemologia da sistema estudado, mas como uma produção
resposta que tem caracterizado a metodologia simbólico-emocional do próprio sistema em
indutivo-descritiva dominante na Psicologia questão, a qual não pode ser deduzida de
(González Rey, 1997). influências externas concretas que afetam o
As distorções enumeradas acima são sistema. A esse conhecimento só pode-se
responsáveis não só pelo mau uso da teoria, chegar pela compreensão da configuração
mas também pelo mau uso do empírico, cuja subjetiva da experiência vivida. Esse
complexidade é substituída pela imposição de conhecimento é de natureza construtivo-
categorias a priori que impedem o exercício interpretativa, não vem definido de forma
intelectual e criativo do pesquisador para direta nos dados, razão pela qual é de natureza

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teórica e nunca representa um reflexo direto individual do analista na situação terapêutica.


do estudado, o que, como coloca Bourdieu, Esse é um processo vivo no qual se geram
define que sempre represente uma alternativa múltiplas construções que podem ou não, num
entre outras possíveis. primeiro momento, se associar de forma clara
As teorias são sistemas de significação à teoria que inspirou a pesquisa.
geradores de inteligibilidade sobre A relevância da teoria está em seu
representações em processo, cujo significado movimento, em sua capacidade geradora
se organiza no curso do momento empírico da frente aos desafios a que o momento empírico
produção do conhecimento. Isso significa que, a as novas ideias do pesquisador,
nos sistemas teóricos de natureza construtivo- constantemente, as expõem. O momento
interpretativa, o empírico nunca representa empírico é aquela parcela da realidade que
uma dimensão externa ao processo teórico; ganha vida nos marcos de uma teoria; por isso
pelo contrario, é um momento essencial do o momento empírico é parte orgânica de uma
próprio processo teórico. As teorias são teoria. Isso representa uma inversão em
sistemas vivos que têm no empírico uma fonte relação à compreensão do empírico na ciência
constante de confrontação, a que obriga o positivista, na qual o momento empírico se
pesquisador a gerar novos conceitos e a dar distanciava do teórico como cenário concreto
significados singulares a categorias já em que a teoria devia se validar
existentes na teoria, o que representa um objetivamente.
processo intrínseco de desenvolvimento das Esse distanciamento entre o empírico e o
teorias. Quando uma teoria perde a teórico foi pedra angular da representação
capacidade de significar situações novas, ela mais tradicional de ciência que sobreviveu na
vai perdendo seu valor heurístico e se Psicologia até os dias de hoje. Sobre a
transformando em dogma. estagnação do teórico e sua naturalização na
Toda teoria existe em dois momentos inter- ciência newtoniana, Wallerstein (2004)
relacionados: como macroteoria, nível em que escreve:
o trabalho intelectual gera novas relações e
novas categorias, estabelecendo novas “zonas A ciência newtoniana tem percorrido uma
de sentido”2 da teoria, que devem ganhar vida trajetória constante, pelo menos desde o
no momento empírico, num processo em que século XVII, em termos de constructo
novas dimensões empíricas que não eram intelectual e de ideologia para a organização
da atividade científica. No começo do século
enxergadas antes ganham visibilidade e, num
XIX, essa ciência adquiriu status de verdade
segundo momento, as teorias se expressam no devido a Laplace. Muitos cientistas
curso do trabalho de campo como processo, acreditaram que a teorização na ciência
em cujo curso se organiza a produção de tinha chegado a seu fim e que tudo o que
significados sobre o estudado, de forma lhes restava a fazer era esclarecer alguns
semelhante à forma como Bollas (2007) detalhes menores e continuar usando o
descreve a necessidade de construção saber teórico com objetivos práticos (p. 70).

A ideia do fim da teoria levou a pensar num


2
Defini o conceito de zona de sentido como aquele modelo de ciência universalmente legítimo e
espaço de significação que uma teoria abre em relação ao
problema e que está além das próprias categorias usadas
que devia subordinar qualquer fantasia teórica
por ela para explicá-lo. Por exemplo, Freud estabeleceu às evidências empíricas, as que eram
uma “nova zona de sentido” sobre a motivação humana consideradas como sinônimo de “realidade”.
como processo inconsciente; porém, o significado dessa Essa representação se impôs nas ciências no
construção teórica não se esgota nos conceitos e século XIX e foi o “berço” no qual nasceu a
explicações dadas por ele ao problema no contexto da
psicanálise. A ideia de “zona de sentido” destaca Psicologia como ciência. A noção de ciência
precisamente o caráter histórico e relativo das categorias empírica se estendeu com tal força que foi
científicas. considerada como sinônimo de ciência, o que

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definiu que por um longo tempo a produção de humanas, a prudência se impõe uma vez mais;
teoria ficasse relegada a um segundo plano e, o termo foi empregado de muitas maneiras na
muitas vezes, considerada de forma pejorativa ciência, e nem sempre a propósito” (p. 386). A
como Filosofia. Essa omissão do pensamento Psicologia pretendeu avançar na pesquisa
na construção científica separou a Psicologia qualitativa sem avançar numa discussão
da Filosofia e do resto das ciências sociais. teórica e epistemológica mais profunda sobre
Como resultado dessa situação, a pesquisa os referentes sobre os que se apoiava para
qualitativa só entrou com força em Psicologia realizar esse tipo de pesquisa.
no começo dos anos oitenta do século XX, A proposta que temos desenvolvido em
ainda que uma colaboradora de K Lewin, relação à pesquisa qualitativa é o resultado de
Tamara Dembo, tenha publicado o primeiro um esforço para desenvolver o tema da
artigo sobre pesquisa qualitativa em Psicologia subjetividade como definição ontológica dos
já nos anos trinta do século XX (Dembo, 1993). processos mais complexos da psique humana
A emergência tardia da pesquisa qualitativa nas condições da cultura numa perspectiva
em Psicologia não significou a ausência de cultural-histórica.
importantes críticas ao modelo empírico e
instrumentalista dominante nela (Allport
(1978); Maslow (1979); Vygotsky (1965); NECESSIDADES ONTOLÓGICAS E
Rubinstein (1967)). Porém foi apenas no fim da EPISTEMOLÓGICAS NECESSÁRIAS PARA UM
década dos anos oitenta que apareceu com GIRO METODOLÓGICO NA PSICOLOGIA
força o referente da pesquisa qualitativa na
Psicologia, o qual esteve muito influenciado Como foi dito antes, a separação da
pelas novas tendências da Filosofia e de outras Psicologia da Filosofia e das Ciências Sociais foi
ciências sociais. Os trabalhos críticos de um dos elementos que favoreceu o seu
Foucault e as publicações sobre pesquisa instrumentalismo (Rose, 2011; Danzinger,
qualitativa em Sociologia, Antropologia e 1990), assim como a separação entre a ciência
Educação tiveram forte impacto na Psicologia, e outras formas de produção de saber que, de
unidos aos movimentos críticos que fato, estavam associadas a diferentes práticas
começaram a aparecer nos anos setenta na da Psicologia, como a psicoterapia, e que não
própria Psicologia eram consideradas vias legítimas de fazer
Porém a emergência da pesquisa qualitativa ciência. O fato da Psicologia não acompanhar o
em Psicologia não tinha, naqueles anos, raízes seu desenvolvimento com a construção de
próprias e, devido ao forte instrumentalismo alternativas epistemológicas frente a suas
que dominava essa área na época, ela novas construções teóricas, foi um dos
terminou reproduzindo a orientação elementos que mais influenciou a ausência de
instrumentalista que caracterizava a pesquisa debate metodológico na Psicologia, impedindo
positivista. Os psicólogos procuravam o desenvolvimento de modelos alternativos ao
legitimidade em guarda-chuvas filosóficos positivismo.
sobre os quais entendiam pouco e, assim, Particularmente cientes dessa contradição,
generalizaram procedimentos filosóficos no várias décadas depois de Freud, nos anos
campo empírico sem uma adequada teorização sessenta do século passado, os autores
sobre seu uso nesse nível. Por exemplo, humanistas organizaram um simpósio com a
conceitos complexos da fenomenologia, como presença de M. Polanyi (1973), físico e
epoche, foram operacionalizados na pesquisa importante filósofo da ciência, o que lhes
empírica de forma superficial, o que contribuiu permitiu avançar a relação entre o que eles
para banalizar a fenomenologia no campo da faziam na clínica e uma nova forma de
pesquisa psicológica. Como diz A. Giorgi compreender a ciência na Psicologia. Esse
(2008): “Quando se pretende medir a encontro teve particular importância no
influência da fenomenologia nas ciências desenvolvimento de um conjunto de trabalhos

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críticos à metodologia dominante (Allport, ontologia da psique viu-se muito afetada pela
1978; Maslow, 1979). Porém, esses autores força que os temas linguagem e práticas
não conseguiram o desenvolvimento de uma simbólicas ganharam logo após o grande
alternativa epistemológica fundamentando a impacto do pós-estruturalismo sobre a
produção científica a partir do cenário clínico, Psicologia. Na Psicologia, a influência do pós-
em parte por não terem avançado numa opção estruturalismo foi forte e tem levado,
ontológica na compreensão da psique. sobretudo alguns autores do construcionismo
Uma questão central para orientar o debate social (Gergen & Gergen, 2011; Anderson,
sobre as exigências epistemológicas que 1999), a substituir a psique pelas práticas
poderiam orientar uma nova metodologia discursivas e as conversações.
científica, capaz de integrar a clínica e outros São importantes as consequências dos
campos de ação da Psicologia na produção de imaginários ontológicos anteriores nos
conhecimento científico, dependeria muito da desenvolvimentos alternativos da Psicologia. A
representação teórica sobre a psique humana Psicologia mais tradicional antológica, apoiada
que orientaria essa pesquisa. Mais do que uma no seu fetichismo metodológico (Koch, 1995),
discussão entre as áreas da Psicologia, se se apoiou numa representação estática e
impunha um debate teórico sobre a natureza individual da psique como algo que existe a
da psique humana que, de uma forma ou priori à ação e que a define. Essa
outra, deveria estar presente nas diferentes representação ontológica esteve na base da
áreas da prática e da produção do saber em epistemologia dos testes psicológicos. Media-
Psicologia. Era precisamente a essa teoria mais se a inteligência como estrutura dada a priori e
geral e abrangente sobre o psiquismo humano essa medição era usada como critério preditivo
que Vygotsky se referia em seu chamado para da aprendizagem de criança. A inteligência era
o desenvolvimento de uma Psicologia Geral. algo dado, uma capacidade feita que, segundo
A Psicologia se desenvolveu em grande essa compreensão, determinava o
parte mediante ontologias importadas de comportamento inteligente como resultado. A
outras ciências que levaram a entender o representação da psique como formações
fenômeno psíquico como energia, reflexo, psíquicas em processo, em movimento, foi
linguagem, comportamento ou sistema totalmente omitida nessa representação.
cibernético. Mas, nesses intentos, não se Posteriormente, o impacto do conceito de
definia a especificidade ontológica3 da psique; práticas discursivas na compreensão dos
a psique era sempre apresentada por atributos diferentes tipos de práticas sociais levou a
já desenvolvidos em outras áreas do saber. A outro extremo: a processualidade das práticas
psique humana nas condições da cultura perde humanas aboliu qualquer representação sobre
o seu caráter apenas natural e torna-se algum tipo de organização ou processo
também em tema central das ciências psicológico. O fato de romper com uma visão
antropossociais. Porém, a discussão da determinista e mecanicista de estrutura não
significa negar tipos de organização que
emergem no curso da ação humana e se
3
Tenho usado a palavra ontologia para especificar a desenvolvem no próprio processo de sua
qualidade do tipo de fenômeno cuja representação existência. É necessário o desenvolvimento de
orienta os diferentes campos do trabalho científico. Ao se
evitar o termo, devido ao seu emprego pela metafísica, conceitos capazes de gerar inteligibilidade a
abriu-se um vazio na discussão do tipo de representação respeito de sistemas que, em suas diferentes
teórica que fundamenta e organiza a produção do saber. formas de ação, expressam formas diferentes
Ao falar da qualidade do fenômeno estudado por uma de sua própria configuração, superando a
ciência, não identifico essa qualidade com a natureza
dicotomia estrutura-comportamento, ou
universal desse fenômeno e sim com a representação
teórica que permite sua inteligibilidade, a partir da qual o externo-interno, tão distendida na Psicologia.
fenômeno entra no sistema do saber e das práticas Apesar do caráter polissêmico e polêmico do
humanas. conceito de sistema, parece-nos muito

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interessante a acepção que H. Jonas (2004) Vygotsky, e o de formação psicológica,


defende sobre o termo. Ele escreveu: “Sistema, desenvolvido mais tarde por sua discípula
portanto, é necessariamente algo múltiplo, Bozhovich. Os conceitos que sustentam a
mas, além disso, o sentido de conjunto está em minha proposta de subjetividade numa
que o múltiplo possui um principio eficaz de perspectiva cultural-histórica são: sentido
sua unidade” (p. 76). subjetivo, configuração subjetiva, subjetividade
Em nossos trabalhos, partimos de uma individual, subjetividade social e sujeito. A
definição ontológica que define o caráter partir desse marco teórico tenho desenvolvido
histórico, social e cultural da psique humana na uma modificação de temas tradicionalmente
produção simbólico-emocional que caracteriza tratados pela Psicologia como motivação,
toda experiência humana. O ser humano não identidade e personalidade, entre outros.
recebe o social como algo externo, ele vive o O desenvolvimento teórico das categorias
social e vive no social. O social humano é em que apoio o desenvolvimento de minha
histórico porque é cultural, porque se perpetua definição de subjetividade aparece em
em símbolos e práticas que se fazem presentes publicações anteriores (González Rey, 1997,
de múltiplas formas em temporalidades 2002, 2004, 2005, 2011a, 2011b), motivo pelo
distantes de sua produção original. O caráter qual não entrarei nos detalhes dessas
simbólico das diferentes práticas sociais está definições, nem nas diferenças dos conceitos
presente nas diversas formas de configuração que apoiaram minha inspiração para avançar
subjetiva das práticas e nos processos por essa via. Vou me centrar nas
humanos em geral. Escolhi o termo consequências epistemológicas e nos
subjetividade para designar os processos e desdobramentos metodológicos que, no curso
formações simbólico-emocionais específicos da das pesquisas com esse marco teórico, precisei
psique humana, que se organizam e desenvolver.
desenvolvem de forma constante no curso da
experiência em condições de cultura. Esses
processos não são um reflexo do que acontece A EPISTEMOLOGIA QUALITATIVA: ABRINDO
ao redor da pessoa; é uma produção que se UMA OPÇÃO PARA O CONHECIMENTO DA
define nas ações e relações da pessoa com o SUBJETIVIDADE
que a rodeia; configuram-se subjetivamente
nas configurações subjetivas da personalidade P. Ricoeur (2009) fez o resgate do esforço
e integram sentidos subjetivos múltiplos que de Husserl para instituir a experiência total da
marcam a identidade subjetiva da pessoa. Por subjetividade, o qual traz profundas
sua vez, as configurações subjetivas da implicações epistemológicas e metodológicas.
personalidade não existem num plano Ricoeur (2009) escreve sintetizando as ideias
intrapsíquico fechado que atua como originais de Husserl:
determinante da ação; elas aparecem na
própria produção subjetiva que se organiza nas E nenhum progresso no conhecimento das
configurações subjetivas da ação; a causalidades postas em jogo nos faz avançar
personalidade tem uma presença na ação não na compreensão dos motivos de um
porque a determine, mas porque é inseparável comportamento. Não que a causalidade
fique suspensa ou rompida pela irrupção da
dos sentidos subjetivos que se geram em toda
subjetividade, mas a compreensão do curso
ação. de uma motivação não se faz na atitude em
Para explicar esses processos complexos, que se apreende uma série causal da
são necessárias novas categorias que, na minha natureza. [...] Compreender [...] aplica-se
proposta, se inspiraram em conceitos muito precisamente à apreensão de uma
especialmente importantes desenvolvidos pela unidade de sentido espiritual numa
Psicologia soviética, entre os quais o conceito diversidade natural (p. 138-139).
de sentido, na forma como foi tratado por

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Husserl criticava a explicação causal própria experiência, no amplo sentido da palavra, de


dos modelos deterministas, o que abriu a um sentimento” (p. 219).
possibilidade de produzir um tipo de As filosofias são sistemas teóricos com
conhecimento diferente daquele desenvolvido múltiplos desdobramentos possíveis, muitos
pela ciência mecanicista: não se trata de dos quais passam despercebidos pelo próprio
compreender causas, como o tema da mainstream que orienta as interpretações de
motivação sempre foi tratado pela Psicologia; uma filosofia após a morte dos seus
trata se de compreender sentidos que não fundadores. As filosofias não devem ser vistas
aparecem na condição objetiva frente a qual o como sistemas irreconciliáveis, como
comportamento se faz explícito. Seguindo esse frequentemente elas nos são apresentadas
raciocínio Ricoeur (2009) continua: “A pelo dogmatismo. Vygotsky expressa contatos
compreensão vai para a unidade de um objeto com o pensamento de Husserl através de
cultural; ela significa que não sou dirigido pelas Schpet, que gerou em Vygotsky inquietações
linhas que vejo ao ler: “vivo, por compreensão, por temas que outros autores soviéticos não
no sentido” (p. 132). enxergaram como foram o sentido e a vivência.
É precisamente esse viver no sentido o As minhas definições de sentido subjetivo e
processo distintivo, a pedra angular da configurações subjetivas, estas últimas
compreensão da subjetividade. O sentido, compreendidas como momentos de integração
termo extremamente polissêmico, aparece no de sentidos subjetivos diversos que convergem
Husserl da fenomenologia da cultura e da num núcleo simbólico-emocional que vira
vontade como conceito importante para hegemônico ao “viver” uma experiência
compreender a dimensão do vivido, não como concreta e que pode transcender essa
expressão da ação com o objeto concreto, experiência configurando-se na própria
exemplificado na citação anterior de Ricoeur, organização subjetiva mais geral da pessoa,
mas pelo que sou capaz de sentir, de imaginar, perdem sua relação preferencial com a palavra
de recriar na minha própria relação com o e ganham abrangência ao se definirem pela
objeto cultural ou com o outro. Esse momento integração inseparável das emoções com os
da obra de Husserl é um antecedente processos simbólicos em geral (González Rey,
importante a ser resgatado para o 2002).
desenvolvimento do tema da subjetividade Os sentidos subjetivos não são unidades
numa perspectiva cultural-histórica. De fato, fixas que caracterizam a pessoa; eles são uma
essa forma de expressar teoricamente o expressão das configurações subjetivas que se
sentido não esta longe da forma em que organizam no percurso das atividades e
Vygotsky o entendeu, destacando como o relações humanas. Essas configurações devem
sentido se define pelo conjunto de elementos ser compreendidas pela interpretação das
psíquicos que emergem na consciência ante a formas diversas de expressão da pessoa que
emergência da palavra. configuram o tecido subjetivo das experiências
Esse elo possível entre o pensamento de vividas.
Vygotsky e de Husserl, a sensibilidade de A minha definição da Epistemologia
ambos para o desenvolvimento de uma Qualitativa aparece como resultado das
dimensão subjetiva integradora do psiquismo demandas que as pesquisas com o foco na
humano, teve como antecedente importante a subjetividade me impõem. A Epistemologia
influência de Schpet, mestre de Vygotsky Qualitativa destaca três atributos centrais do
fortemente orientado pela fenomenologia. saber que abrem passo a uma metodologia
Sobre essa posição de Schpet, Zinchenko construtivo-interpretativa que transforma a
(2007) escreveu: “Schpet glorificou a palavra visão do saber centrada na indução, na
na medida em que lhe permitisse estar descrição e na coleta de fatos. O
preparado para refazer o princípio de ouro da desenvolvimento da Epistemologia Qualitativa
cognição: o nosso conhecimento vem de nossa foi o resultado de minha incapacidade de

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resolver os problemas que apareciam nas professor. Ele pode se sentir vítima das figuras
minhas pesquisas, na medida em que me de autoridade e injustiçado pela opinião dos
aprofundava em categorias teóricas que outros, como expressão de uma complexa
representavam construções teóricas geradoras configuração subjetiva em que podem entrar
de uma opção possível de inteligibilidade, mas infinitas experiências vividas que, transfor-
que não garantiam a priori essa inteligibilidade, madas em sentidos subjetivos, são capazes de
senão que a facilitavam no curso da pesquisa. gerar uma configuração subjetiva desse
Essas categorias sobre as que se apoiam momento de relação com o professor que
minhas pesquisas atuais sobre a subjetividade pouco tem a ver com os aspectos observáveis
não são passíveis de serem construídas de do que aconteceu no episódio dessa relação
forma direta pelos significados e professor-aluno. A configuração desses
representações da fala intencional dos sentidos produzidos pelo aluno em sala de aula
participantes da pesquisa. pode ter sido a expressão da configuração
Os sentidos subjetivos e as configurações resultante da inveja do irmão, o desconforto
subjetivas não se apoiam numa epistemologia com os seus familiares, o que é parte da
representacional relativa a questões que configuração dessa inveja no tecido relacional
ganham inteligibilidade com esses conceitos. da família, a hostilidade em relação a
Como toda categoria, elas são ferramentas sugestões dos outros, todos eles sentidos
para gerar inteligibilidade sobre questões que subjetivos que podem emergir em qualquer
outros referentes teóricos não permitem atividade pela sensibilidade dessa configuração
significar, o que não quer dizer que o subjetiva familiar que se transforma em
processo estudado seja idêntico à categoria múltiplos sentidos subjetivos no decorrer de
que o representa. Todas as questões outras atividades aparentemente sem
significadas pela ciência estão além da sua nenhuma relação com a origem dessa
organização e dos desdobramentos da configuração subjetiva; as experiências
representação teórica modelada sobre elas. humanas estão estreitamente associadas umas
Os sentidos subjetivos e as configurações com as outras pelas suas configurações
subjetivas têm valor heurístico porque subjetivas. Como resultado dessa configuração
permitem compreender e explicar processos subjetiva no momento atual da vida desse
presentes nas diferentes expressões e ações jovem, sentidos subjetivos geradores de
humanas que integram, em termos subjetivos, competitividade, ciúme, inferioridade podem
aspectos muito diversos da experiência da aparecer de formas diferentes em vários dos
pessoa presentes na configuração subjetiva sistemas de relação desse jovem.
de suas expressões atuais. Isso, nos termos Construir teoricamente essa configuração é
concretos da pesquisa empírica, se traduz, por um processo complexo que vai implicar a
exemplo, na possibilidade de identificar capacidade do pesquisador de gerar
sentidos subjetivos da pessoa que aprende significados capazes de integrar manifestações
que se objetivam em reações dessa pessoa no empíricas diversas que só se tornam inteligíveis
processo de aprender e que não estão frente ao significado organizado pelo
definidas por nenhum dos acontecimentos pesquisador no curso da pesquisa. Esse
identificáveis pelos participantes dessa significado é definido, em nossa proposta
experiência. As confi-gurações subjetivas não metodológica, como indicador. Um indicador
respondem à razão, motivo pelo qual estão não permite uma afirmação teórica imediata e
além das repre-sentações sobre as evidências direta, mas é apenas o primeiro momento de
objetivas do contexto em que uma um caminho hipotético, dentro do qual os
experiência acontece. indicadores se convertem em conceitos que
Quando um jovem responde mal a um alimentam o modelo teórico em curso.
apelo do professor feito em público, isso não Durante a pesquisa, novos indicadores e ideias
significa que ele esteja agredindo seu emergem em congruência com os primeiros

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indicadores construídos durante o momento outras reflexões epistemológicas com


construtivo interpretativo da pesquisa. importantes desdobramentos metodológicos.
O processo de construção da informação A primeira dessas reflexões é a ênfase na
leva à construção teórica de uma configuração consideração do singular como fonte legítima
subjetiva; a configuração subjetiva é uma de generalização teórica. O que isso significa?
categoria que se organiza no curso da Na pesquisa positivista, a generalização se
pesquisa, sendo a priori a pesquisa apenas o define através de cadeias indutivas capazes de
modelo teórico que a define. E é esse modelo gerar conclusões, seja na demonstração
de conhecimento que se organiza em experimental ou via correlação estatística. Essa
decorrência de modelo hipotético que avança proposta está centrada na significação
no curso dos indicadores produzidos sobre a estatística do resultado, ou na base indutiva de
informação e as ideias do pesquisador, o que estudos singulares. Em ambos os casos o
definimos como modelo teórico. A singular se exclui, pois quando um tipo de
configuração subjetiva é apenas um exemplo comportamento, ainda que estudado em
de modelo teórico. D. Jodelet (2005), sem indivíduos, resulta o mesmo para diversos
empregar o termo, trabalha a construção das indivíduos frente a determinadas condições, de
representações sociais da loucura de forma fato, ainda que a pesquisa se apoie em estudos
semelhante, na sua pesquisa clássica sobre o de casos, termina usando os mesmos critérios
tema. de indução que a amostra estatística.
Essa proposta metodológica se apoia na Porém, no estudo da subjetividade, como
compreensão do conhecimento como processo no de todos os processos complexos, o singular
construtivo-interpretativo que avança como é uma fonte excepcional para o conhecimento
resultado da produção de um espaço dialógico explicativo4 sobre a questão estudada e essa
com o outro, os instrumentos sendo importância não vem dada pelo caráter único a
considerados como indutores da expressão que o termo singular está referido, mas ao
aberta do participante como via para o diálogo valor que uma informação singular vai adquirir
com o pesquisador. O participante fala a partir para o momento atual de uma construção
de sua experiência e interesses, não sendo teórica em desenvolvimento. O singular é
obrigado a seguir a rota crítica imposta pela relevante pelo que aporta ao desenvolvimento
representação a priori do pesquisador. O de um modelo teórico no curso da pesquisa,
instrumento é um provocador para a pessoa se permitindo opções explicativas novas a esse
envolver reflexivamente em questões modelo. A generalização aqui aparece pela
significativas para ela, o que representa a única capacidade teórica que um modelo vai adquirir
via eficiente de produção de sentidos para explicar questões em estudo que não
subjetivos no curso de uma pesquisa. Como existiam antes das construções geradas por
nos diz Bourdieu (2003): “O ato científico esse encontro com uma informação singular.
fundamental é a construção do objeto; não As categorias teóricas definem a sua
chegamos à realidade sem hipóteses, sem generalidade pelo seu valor heurístico em
instrumentos, sem construção” (p. 41). Porém,
a construção a que Bourdieu se refere não é 4
Uso o termo explicação não em seu significado
uma construção que se esgota no espaço determinista e mecanicista, o que lhe valeu ser rejeitado
dialógico discursivo dos participantes da nas ciências sociais em prol do termo compreensão como
pesquisa; é uma construção que abre acesso a usado pela fenomenologia. Sinto que o termo explicação
sistemas e questões, como a subjetividade, que é legitimo na definição de elementos importantes na
não se esgotam na dimensão das práticas gênese de uma questão, elementos esses que nunca
determinam a questão, mas que a configuram. A
discursivas. relevância da explicação numa outra perspectiva
Esse caminho dialógico-construtivo que epistemológica já foi defendida por P. Ricoeur, em
representa o processo de pesquisa na Hermenêutica e Ideologias.
perspectiva construtivo-interpretativa implica

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produzir novos significados. Os resultados frequência, em trabalhos que assumem a nossa


indutivos são desejáveis, pois geram proposta, ora se define a Epistemologia
significados sobre questões que às vezes só são Qualitativa como a metodologia do projeto,
possíveis por essa via. Porém, as estatísticas e ora se fala da Epistemologia Qualitativa como a
outros modelos de quantificação têm valor na teoria de González Rey e se esquece da teoria
pesquisa construtivo-interpretativa como fonte da subjetividade que a inspirou.
de significados, não como via de legitimação O modelo construtivo-interpretativo de
científica sobre eles. pesquisa atribui um lugar privilegiado ao
Como nos diz Feyerabend (2011): processo de construção teórica no curso da
pesquisa. Nesse sentido, a definição de modelo
O observador pode usar a Matemática e teórico implica não só uma nova forma de
outros artifícios conceituais e físicos, mas legitimar o saber e de compreender a
estes não têm quaisquer implicações generalização, senão que implica também
ontológicas. O cosmos da Ciência moderna é transcender os instrumentos como fonte de
um mundo infinito, matematicamente
informação válida em si mesma, fora do
estruturado, compreendido pela mente,
embora nem sempre pelos sentidos, e visto
percurso geral do processo de construção
por um observador cujas aptidões mudam teórica.
de uma descoberta para outra (p. 79). O instrumentalismo, tão criticado pela sua
hegemonia na epistemologia da Psicologia,
A pesquisa construtivo-interpretativa não cede seu lugar à construção de modelos
desconsidera os resultados obtidos pela teóricos no processo de pesquisa que
indução, mas acrescenta outras dimensões da representam a presença viva das teorias no
questão estudada que a indução não permite. campo empírico, o que de fato leva ao uso
Como Feyerabend coloca na citação anterior, a propriamente teórico e não dogmático das
compreensão é sempre um processo da mente, teorias. Uma vez que os instrumentos e seus
nunca algo gerado de forma direta por nenhum processos de construção deixam de ser
recurso indutivo, por complexo que ele seja. legitimadores do caráter científico da pesquisa,
Essa integração da singularidade é importante eles passam a ser um momento facilitador do
não apenas na Psicologia, mas no conjunto das caráter dialógico da pesquisa. A informação
ciências, como se evidencia nos estudos das que os instrumentos aportam é relevante para
estruturas dissipativas realizados por Prigogine a pesquisa pela sua significação para o modelo
nas ciências naturais, ou nos estudos sobre a teórico em desenvolvimento e, pela mesma
singularidade do câncer que avançam a toda razão, as informações informais de qualquer
velocidade na medicina. natureza também se tornam legítimas pela sua
Outro aspecto destacado por Feyerabend relevância para o desenvolvimento desse
na citação anterior é a incapacidade ontológica modelo. O valor da informação vem dado pela
das ferramentas que, como a Matemática, são sua relevância para o modelo teórico em curso
recursos de estruturação do saber. Toda e pela sua integração adequada aos
definição ontológica é uma construção teórica significados que caracterizam o avanço desse
e são essas construções que estão por detrás modelo.
dos significados gerados pelos recursos usados O desenvolvimento dessa forma de
na pesquisa. Algo do que tenho cuidado de pesquisa está ganhando espaço em todas as
maneira especial no desenvolvimento da linha Ciências Sociais e na Psicologia em particular,
de pesquisa sobre a subjetividade numa ainda que nem sempre os autores explicitem
perspectiva cultural-histórica é a integração as contradições epistemológicas de seus
simultânea do ontológico, o epistemológico e o caminhos na pesquisa, o que frequentemente
metodológico nesse percurso. Tão pouco os conduz a omitir posições necessárias para o
acostumados os psicólogos estamos a essas respaldo do que defendem como resultados
dimensões da produção do saber que, com dessas pesquisas. A discussão teórica é

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inseparável do debate epistemológico e Giorgi, A. (2008). Sobre o método


metodológico, em particular em momentos fenomenológico utilizado como modo de
como este em que a Psicologia se orienta pela pesquisa qualitativa nas ciências humanas:
abertura de novos caminhos. teoria, prática e avaliação. In J. Poupart, J.
Mais do que considerações finais gostaria Deslauriers, L-H. Groulx, A. Laperriere, R.
de deixar abertas essas reflexões ao leitor e Mayer, & A. Pires. A pesquisa qualitativa:
muito apreciaria que elas incitem novos Enfoques epistemológicos e metodológicos
debates sobre a natureza da produção do (pp. 386-409). Petrópolis: Vozes.
saber em muitos dos temas emergentes que a
Psicologia está desenvolvendo hoje. González Rey, F. (1997). Epistemología
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Recebido: 17/07/2012
Revisado: 04/06/2013
Aprovado: 10/06/2013

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