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FGR O Que Oculta o Silncio Epistemolgico Da Psicologia Hoje
FGR O Que Oculta o Silncio Epistemolgico Da Psicologia Hoje
Resumo
No artigo, discute-se a relação entre teoria, epistemologia e método em Psicologia. Revê-se brevemente a história da Psicologia,
considerando-se essa relação, e são apresentadas e discutidas três formas de distorção no uso da teoria por psicólogos – a que
resulta de tendências ateóricas que privilegiam a empiria, a que transforma as teorias em dogmas e a da hegemonia do
instrumentalismo. Argumenta-se que, dessas distorções, resulta tanto um mau uso da teoria, quanto um mau uso da empiria.
Finalmente, faz-se a proposta de uma pesquisa qualitativa em que o tema da subjetividade é desenvolvido numa perspectiva
cultural-histórica.
Palavras-Chave: Teoria, epistemologia, método, subjetividade, perspectiva cultural-histórica.
Abstract
This paper discusses the relationship between theory, epistemology, and method in Psychology. The history of Psychology is briefly
revisited, taking into consideration this relationship, and three forms of distortion in the use of theory by psychologists are
introduced and discussed – the one which results from atheoretical trends which privilege empiricism, the one which turns the
theories into dogmas, and the one of the hegemony of instrumentalism. It is argued that these distortions result in a bad use of the
theory and in a bad use of the empiricism. Finally, a qualitative research is proposed in which the issue of subjectivity is developed
from a cultural-historical perspective.
Key words: Theory, epistemology, method, subjectivity, cultural-historical approach.
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Centro Universitário de Brasília - Faculdade de Educação da Universidade de Brasília.
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têm estimulado a emergência das diferentes possível para o emprego com sucesso desses
teorias que convergem em seu métodos.
desenvolvimento. Assim, a psicanálise, Esses dois caminhos paralelos, a clínica e
também no século XIX, emerge do corpo de pesquisa, longe de interagirem entre si, se
uma psiquiatria que se deparou com uma fecharam um em relação ao outro, o que deu
“doença” que afetava o funcionamento início a outra das fortes tendências do
somático de diversas formas, mas que não se desenvolvimento da Psicologia: a
apoiava em causas orgânicas: a histeria. Com fragmentação por temas e escolas que se
Charcot, no século XIX, a histeria se convertia legitimaram por vias diferentes e que
em objeto do saber positivo, ao ser coexistiram se identificando como saberes que,
considerada doença, o que ajudou a superação incluídos numa mesma disciplina, nada tinham
dos preconceitos e do estigma social que ver uns com os outros. Foi precisamente
dominante em relação ao transtorno. Mas, ao esse estado de coisas da Psicologia no início do
se incluir a histeria na representação de século XX que inspirou a aguda crítica de
doença, novos processos de institucionalização Vygotsky plasmada em sua obra O sentido
e rituais afetaram a condição das pessoas que histórico da crise da Psicologia (1982), onde
padeciam dela. fazia um chamado ao desenvolvimento de uma
Frente a esse desafio e partindo de Psicologia Geral.
importantes antecedentes, tanto na Filosofia Esse quadro da Psicologia e os seus
(Nietzsche), como na própria Psiquiatria desdobramentos não é o objetivo do presente
(Herbart, Janet e Breuer), Freud levantou trabalho. Porém, é muito importante para
hipóteses sobre a natureza psicogênica dos compreender a debilidade da teoria e as
sintomas histéricos, com uma consistência que distorções em seu uso que têm dominado
superou os seus antecessores. Foi assim que nossa ciência, assim como a ausência de
uma representação teórica em trabalhos orientados para a relação entre o
desenvolvimento, que se alimentava dos teórico, o epistemológico e o metodológico em
processos terapêuticos, inaugurou uma nova nossa disciplina, temas que são o foco do
epistemologia na Psicologia e, por sua vez, presente trabalho.
aparecia como uma nova forma no uso da
teoria. Porém, o sentido clínico do trabalho de
Freud e seu próprio positivismo médico não lhe AS DISTORÇÕES NO USO DA TEORIA EM
permitiram avançar na dimensão PSICOLOGIA: AVANÇANDO NUMA
epistemológica e metodológica nesse novo REPRESENTAÇÃO DIFERENTE DO TEÓRICO
caminho, o que explica o fato de que, por
muito tempo, a psicanálise fica confinada A distorção no uso e a compreensão da
essencialmente ao campo da clínica. Sobre teoria se expressam, na Psicologia, de três
essa diferença entre clínica e ciência, a formas principais. A primeira é a das
Psicologia perpetuou, durante anos, a tendências ateóricas que consideraram a
dicotomia entre o método clínico e o empiria como princípio e fim de todo saber e
experimental. Confinada às técnicas, a usam conceitos apenas para rotular os eventos
Psicologia como ciência ficou órfã de um e comportamentos concretos opera-
modelo teórico. Isso acarretou, por algumas cionalizáveis, sobre os quais definem as
décadas, que só fosse considerada ciência a variáveis a estudar, as que irão nortear tanto
Psicologia que apoiava a sua pesquisa em as pesquisas experimentais, como aquelas
métodos experimentais ou em instrumentos centradas na correlação estatística entre
adequadamente validados para medir variáveis variáveis. Esse tipo de pesquisas se apoia na
susceptíveis de correlações estatísticas, o que, neutralidade do pesquisador e, delas, as ideias
de fato, implicou que ambas as formas se resultaram totalmente excluídas, o que levou a
apoiaram no comportamento, única alternativa uma representação do teórico como processo
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de rotulação dos dados obtidos, sendo esses não pretendemos que uma construção
rótulos apenas descrições que sinalizam individual seja algo mais do que uma
evidências empíricas. Essa tendência conjetura que aguarda exame, confirmação
caracterizou o tipo de pesquisa reconhecida ou rejeição (p. 265).
como científica em Psicologia até a década dos
anos setenta do século passado, quando outras Freud defende, nesse momento de sua vida,
alternativas metodológicas ganharam força na que nunca uma construção individual pode ser
investigação psicológica e a discussão interpretada de forma direta, fora do processo
epistemológica ganhou espaço na Psicologia. integral de análise, o que, na realidade, é uma
A segunda forma das distorções no uso das construção do analista que se inspira e se
teorias é a sua transformação em dogma, em alimenta na representação teórica mais geral
saber “verdadeiro e universal” que, a priori, que a psicanálise lhe deu. Toda interpretação é
orienta as significações sobre o material um ato de autoria e, como tal, precisa de novos
empírico. Um exemplo desse tipo de uso da conceitos e ideias que só de forma mediata
teoria na Psicologia tem sido a forma em que encontraram o seu significado em termos da
certa psicanálise tem orientado a pesquisa e a teoria mais abrangente que a apoiou, o que,
prática profissional. Nesse uso da teoria pela também, pode implicar novos caminhos no
psicanálise institucionalizada como dogma, o desenvolvimento dessa teoria ou sua rejeição
teórico se impõe como ato imediato de por parte do pesquisador. É essa uma das
significação frente a uma expressão empírica razões dos múltiplos desdobramentos da
concreta da pessoa ou pessoas estudadas, com psicanálise no curso de sua história.
o que se viola o princípio básico da O eminente psicanalista C. Bollas (2007) nos
interpretação como recurso de construção diz a respeito do uso da teoria na prática
teórica; uma interpretação sempre é um psicanalítica: “todos os psicanalistas têm
processo que avança entre uma diversidade de deixado de conceituar as teorias implicadas na
opções, assumindo aquela em que elementos forma como realizam sua prática. [...] os
empíricos diferentes convergem no clínicos têm formas individuais de ordenar o
fortalecimento de uma das hipóteses que que eles veem e ouvem” (p. 77). Deixando de
acompanham o processo da pesquisa. Nunca a lado a generalização absoluta que o autor nos
interpretação é um ato direto de significado traz em relação aos psicanalistas, é importante
sobre uma expressão isolada da pessoa. Usada destacar sua ideia de que psicanalistas (e eu
dessa forma, a teoria se separa do momento acrescentaria, assim como a maioria dos
empírico e se impõe a ele, de fora. A relação psicólogos) não constroem conceitualmente
teoria/momento empírico é sempre fonte de essas formas individuais de ouvir e ver em suas
conjetura e construção de alternativas práticas, não avançam em suas próprias
diversas. construções teóricas, limitando-se a informar a
O próprio Freud (2011), em um dos seus “trama viva” desenvolvida no seu
últimos trabalhos, o que, no meu juízo, foi atendimento, nos termos mais gerais da teoria
aquele em que mais aprofundou o caráter que adotam com a qual a prática clínica se
epistemológico da interpretação, intitulado desenvolve de forma intuitiva e ateórica,
Construções em Análise, nos diz: perdendo-se a riqueza infinita dos caminhos e
processos da singularidade trabalhados nessa
[...] mas essas relações em parte dos prática. Esse é um excelente exemplo do uso
pacientes [ele se refere aqui às reações dos dogmático da teoria.
pacientes às construções do analista] A última das formas de distorções no uso
raramente se apresentam sem ambiguidade, das teorias em Psicologia se define pelo uso
dando- nos a oportunidade de um dos instrumentos de diagnóstico e pesquisa
julgamento final. Só o curso completo da como técnicas, ao serem associados a um
análise nos capacita a decidir se nossas sistema a priori e universal de categorias pelas
construções são corretas ou inservíveis. Nós quais são significadas as expressões mais
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diversas das pessoas nesses instrumentos. Esse construir hipóteses sobre as informações
uso dos instrumentos de diagnóstico ou obtidas, que resultam inacessíveis nas
pesquisa converte, de fato, os instrumentos expressões verbais diretas das pessoas
em microteorias. Essa forma de uso transforma estudadas. A hegemonia da epistemologia da
as técnicas em recursos isolados para se chegar resposta converte as expressões das pessoas
a conclusões universais sobre as pessoas estudadas em epifenômenos do instrumento,
estudadas, precisamente o que o próprio Freud pois elas sempre vão encontrar uma
questionava na citação anterior. Nesse uso, as significação nas categorias universais que
técnicas chamadas projetivas, cuja orientam a produção de significados da
epistemologia subjacente pouco tem a ver com informação fornecida pelo instrumento. Dessa
a psicanálise, ainda que elas usem e tomem forma, se excluem da pesquisa as construções
emprestado o termo “projetivo” desse mais abrangentes, complexas e espontâneas
arcabouço teórico, se convertem em das pessoas que são, precisamente, aquelas
“tecnologias conclusivas” em si mesmas, o que por meio das quais as complexas configurações
expressa um posicionamento totalmente subjetivas dos processos humanos podem ser
diferente do caráter singular atribuído à estudadas.
interpretação por Freud. As chamadas técnicas, Como escreve Bourdieu (2003):
sejam elas testes psicométricos ou projetivos,
são uma expressão do instrumentalismo Todo o meu empreendimento científico se
hegemônico na Psicologia. inspira, em efeito, na convicção de que não
A forma como as técnicas têm sido usadas se pode acompanhar a lógica mais profunda
no paradigma empírico tradicional da do mundo social senão com a condição de
submergirmos na particularidade de uma
Psicologia é a maior evidência da
realidade empírica, historicamente situada e
epistemologia positivista instrumental fechada, mas para construí-la como ‘caso
subjacente ao uso delas; o instrumento particular do possível’, segundo as palavras
aparece como um recurso garantido pelos de Bachelard, isto é, como uma figura no
procedimentos de validação, padronização e universo finito das configurações possíveis
confiabilidade implicados na sua construção. (p. 24).
Esses procedimentos legitimam as conclusões
do instrumento, omitindo as ideias do O expressado por Bourdieu tem valor não
pesquisador nesse processo. A participação do apenas para o conhecimento social, mas para
pesquisador se reduz a aplicar e relacionar o todas as áreas das ciências humanas cujos
sistema de categorias universal que norteia a fenômenos não se reduzem à objetividade
produção dos significados sobre a informação como um sinônimo de concreto, definição que
brindada no instrumento. Esse processo separa tem dominado a representação do objetivo;
o instrumento do curso contraditório e vivo da pelo contrário, os processos humanos definem
expressão da pessoa, impondo um rótulo sua objetividade através da inclusão de sua
compartindo formas complexas e singulares de dimensão subjetiva, que não aparece como
expressão. O uso dos instrumentos em efeito de uma influência externa, alheia ao
Psicologia se apoia na epistemologia da sistema estudado, mas como uma produção
resposta que tem caracterizado a metodologia simbólico-emocional do próprio sistema em
indutivo-descritiva dominante na Psicologia questão, a qual não pode ser deduzida de
(González Rey, 1997). influências externas concretas que afetam o
As distorções enumeradas acima são sistema. A esse conhecimento só pode-se
responsáveis não só pelo mau uso da teoria, chegar pela compreensão da configuração
mas também pelo mau uso do empírico, cuja subjetiva da experiência vivida. Esse
complexidade é substituída pela imposição de conhecimento é de natureza construtivo-
categorias a priori que impedem o exercício interpretativa, não vem definido de forma
intelectual e criativo do pesquisador para direta nos dados, razão pela qual é de natureza
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definiu que por um longo tempo a produção de humanas, a prudência se impõe uma vez mais;
teoria ficasse relegada a um segundo plano e, o termo foi empregado de muitas maneiras na
muitas vezes, considerada de forma pejorativa ciência, e nem sempre a propósito” (p. 386). A
como Filosofia. Essa omissão do pensamento Psicologia pretendeu avançar na pesquisa
na construção científica separou a Psicologia qualitativa sem avançar numa discussão
da Filosofia e do resto das ciências sociais. teórica e epistemológica mais profunda sobre
Como resultado dessa situação, a pesquisa os referentes sobre os que se apoiava para
qualitativa só entrou com força em Psicologia realizar esse tipo de pesquisa.
no começo dos anos oitenta do século XX, A proposta que temos desenvolvido em
ainda que uma colaboradora de K Lewin, relação à pesquisa qualitativa é o resultado de
Tamara Dembo, tenha publicado o primeiro um esforço para desenvolver o tema da
artigo sobre pesquisa qualitativa em Psicologia subjetividade como definição ontológica dos
já nos anos trinta do século XX (Dembo, 1993). processos mais complexos da psique humana
A emergência tardia da pesquisa qualitativa nas condições da cultura numa perspectiva
em Psicologia não significou a ausência de cultural-histórica.
importantes críticas ao modelo empírico e
instrumentalista dominante nela (Allport
(1978); Maslow (1979); Vygotsky (1965); NECESSIDADES ONTOLÓGICAS E
Rubinstein (1967)). Porém foi apenas no fim da EPISTEMOLÓGICAS NECESSÁRIAS PARA UM
década dos anos oitenta que apareceu com GIRO METODOLÓGICO NA PSICOLOGIA
força o referente da pesquisa qualitativa na
Psicologia, o qual esteve muito influenciado Como foi dito antes, a separação da
pelas novas tendências da Filosofia e de outras Psicologia da Filosofia e das Ciências Sociais foi
ciências sociais. Os trabalhos críticos de um dos elementos que favoreceu o seu
Foucault e as publicações sobre pesquisa instrumentalismo (Rose, 2011; Danzinger,
qualitativa em Sociologia, Antropologia e 1990), assim como a separação entre a ciência
Educação tiveram forte impacto na Psicologia, e outras formas de produção de saber que, de
unidos aos movimentos críticos que fato, estavam associadas a diferentes práticas
começaram a aparecer nos anos setenta na da Psicologia, como a psicoterapia, e que não
própria Psicologia eram consideradas vias legítimas de fazer
Porém a emergência da pesquisa qualitativa ciência. O fato da Psicologia não acompanhar o
em Psicologia não tinha, naqueles anos, raízes seu desenvolvimento com a construção de
próprias e, devido ao forte instrumentalismo alternativas epistemológicas frente a suas
que dominava essa área na época, ela novas construções teóricas, foi um dos
terminou reproduzindo a orientação elementos que mais influenciou a ausência de
instrumentalista que caracterizava a pesquisa debate metodológico na Psicologia, impedindo
positivista. Os psicólogos procuravam o desenvolvimento de modelos alternativos ao
legitimidade em guarda-chuvas filosóficos positivismo.
sobre os quais entendiam pouco e, assim, Particularmente cientes dessa contradição,
generalizaram procedimentos filosóficos no várias décadas depois de Freud, nos anos
campo empírico sem uma adequada teorização sessenta do século passado, os autores
sobre seu uso nesse nível. Por exemplo, humanistas organizaram um simpósio com a
conceitos complexos da fenomenologia, como presença de M. Polanyi (1973), físico e
epoche, foram operacionalizados na pesquisa importante filósofo da ciência, o que lhes
empírica de forma superficial, o que contribuiu permitiu avançar a relação entre o que eles
para banalizar a fenomenologia no campo da faziam na clínica e uma nova forma de
pesquisa psicológica. Como diz A. Giorgi compreender a ciência na Psicologia. Esse
(2008): “Quando se pretende medir a encontro teve particular importância no
influência da fenomenologia nas ciências desenvolvimento de um conjunto de trabalhos
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críticos à metodologia dominante (Allport, ontologia da psique viu-se muito afetada pela
1978; Maslow, 1979). Porém, esses autores força que os temas linguagem e práticas
não conseguiram o desenvolvimento de uma simbólicas ganharam logo após o grande
alternativa epistemológica fundamentando a impacto do pós-estruturalismo sobre a
produção científica a partir do cenário clínico, Psicologia. Na Psicologia, a influência do pós-
em parte por não terem avançado numa opção estruturalismo foi forte e tem levado,
ontológica na compreensão da psique. sobretudo alguns autores do construcionismo
Uma questão central para orientar o debate social (Gergen & Gergen, 2011; Anderson,
sobre as exigências epistemológicas que 1999), a substituir a psique pelas práticas
poderiam orientar uma nova metodologia discursivas e as conversações.
científica, capaz de integrar a clínica e outros São importantes as consequências dos
campos de ação da Psicologia na produção de imaginários ontológicos anteriores nos
conhecimento científico, dependeria muito da desenvolvimentos alternativos da Psicologia. A
representação teórica sobre a psique humana Psicologia mais tradicional antológica, apoiada
que orientaria essa pesquisa. Mais do que uma no seu fetichismo metodológico (Koch, 1995),
discussão entre as áreas da Psicologia, se se apoiou numa representação estática e
impunha um debate teórico sobre a natureza individual da psique como algo que existe a
da psique humana que, de uma forma ou priori à ação e que a define. Essa
outra, deveria estar presente nas diferentes representação ontológica esteve na base da
áreas da prática e da produção do saber em epistemologia dos testes psicológicos. Media-
Psicologia. Era precisamente a essa teoria mais se a inteligência como estrutura dada a priori e
geral e abrangente sobre o psiquismo humano essa medição era usada como critério preditivo
que Vygotsky se referia em seu chamado para da aprendizagem de criança. A inteligência era
o desenvolvimento de uma Psicologia Geral. algo dado, uma capacidade feita que, segundo
A Psicologia se desenvolveu em grande essa compreensão, determinava o
parte mediante ontologias importadas de comportamento inteligente como resultado. A
outras ciências que levaram a entender o representação da psique como formações
fenômeno psíquico como energia, reflexo, psíquicas em processo, em movimento, foi
linguagem, comportamento ou sistema totalmente omitida nessa representação.
cibernético. Mas, nesses intentos, não se Posteriormente, o impacto do conceito de
definia a especificidade ontológica3 da psique; práticas discursivas na compreensão dos
a psique era sempre apresentada por atributos diferentes tipos de práticas sociais levou a
já desenvolvidos em outras áreas do saber. A outro extremo: a processualidade das práticas
psique humana nas condições da cultura perde humanas aboliu qualquer representação sobre
o seu caráter apenas natural e torna-se algum tipo de organização ou processo
também em tema central das ciências psicológico. O fato de romper com uma visão
antropossociais. Porém, a discussão da determinista e mecanicista de estrutura não
significa negar tipos de organização que
emergem no curso da ação humana e se
3
Tenho usado a palavra ontologia para especificar a desenvolvem no próprio processo de sua
qualidade do tipo de fenômeno cuja representação existência. É necessário o desenvolvimento de
orienta os diferentes campos do trabalho científico. Ao se
evitar o termo, devido ao seu emprego pela metafísica, conceitos capazes de gerar inteligibilidade a
abriu-se um vazio na discussão do tipo de representação respeito de sistemas que, em suas diferentes
teórica que fundamenta e organiza a produção do saber. formas de ação, expressam formas diferentes
Ao falar da qualidade do fenômeno estudado por uma de sua própria configuração, superando a
ciência, não identifico essa qualidade com a natureza
dicotomia estrutura-comportamento, ou
universal desse fenômeno e sim com a representação
teórica que permite sua inteligibilidade, a partir da qual o externo-interno, tão distendida na Psicologia.
fenômeno entra no sistema do saber e das práticas Apesar do caráter polissêmico e polêmico do
humanas. conceito de sistema, parece-nos muito
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resolver os problemas que apareciam nas professor. Ele pode se sentir vítima das figuras
minhas pesquisas, na medida em que me de autoridade e injustiçado pela opinião dos
aprofundava em categorias teóricas que outros, como expressão de uma complexa
representavam construções teóricas geradoras configuração subjetiva em que podem entrar
de uma opção possível de inteligibilidade, mas infinitas experiências vividas que, transfor-
que não garantiam a priori essa inteligibilidade, madas em sentidos subjetivos, são capazes de
senão que a facilitavam no curso da pesquisa. gerar uma configuração subjetiva desse
Essas categorias sobre as que se apoiam momento de relação com o professor que
minhas pesquisas atuais sobre a subjetividade pouco tem a ver com os aspectos observáveis
não são passíveis de serem construídas de do que aconteceu no episódio dessa relação
forma direta pelos significados e professor-aluno. A configuração desses
representações da fala intencional dos sentidos produzidos pelo aluno em sala de aula
participantes da pesquisa. pode ter sido a expressão da configuração
Os sentidos subjetivos e as configurações resultante da inveja do irmão, o desconforto
subjetivas não se apoiam numa epistemologia com os seus familiares, o que é parte da
representacional relativa a questões que configuração dessa inveja no tecido relacional
ganham inteligibilidade com esses conceitos. da família, a hostilidade em relação a
Como toda categoria, elas são ferramentas sugestões dos outros, todos eles sentidos
para gerar inteligibilidade sobre questões que subjetivos que podem emergir em qualquer
outros referentes teóricos não permitem atividade pela sensibilidade dessa configuração
significar, o que não quer dizer que o subjetiva familiar que se transforma em
processo estudado seja idêntico à categoria múltiplos sentidos subjetivos no decorrer de
que o representa. Todas as questões outras atividades aparentemente sem
significadas pela ciência estão além da sua nenhuma relação com a origem dessa
organização e dos desdobramentos da configuração subjetiva; as experiências
representação teórica modelada sobre elas. humanas estão estreitamente associadas umas
Os sentidos subjetivos e as configurações com as outras pelas suas configurações
subjetivas têm valor heurístico porque subjetivas. Como resultado dessa configuração
permitem compreender e explicar processos subjetiva no momento atual da vida desse
presentes nas diferentes expressões e ações jovem, sentidos subjetivos geradores de
humanas que integram, em termos subjetivos, competitividade, ciúme, inferioridade podem
aspectos muito diversos da experiência da aparecer de formas diferentes em vários dos
pessoa presentes na configuração subjetiva sistemas de relação desse jovem.
de suas expressões atuais. Isso, nos termos Construir teoricamente essa configuração é
concretos da pesquisa empírica, se traduz, por um processo complexo que vai implicar a
exemplo, na possibilidade de identificar capacidade do pesquisador de gerar
sentidos subjetivos da pessoa que aprende significados capazes de integrar manifestações
que se objetivam em reações dessa pessoa no empíricas diversas que só se tornam inteligíveis
processo de aprender e que não estão frente ao significado organizado pelo
definidas por nenhum dos acontecimentos pesquisador no curso da pesquisa. Esse
identificáveis pelos participantes dessa significado é definido, em nossa proposta
experiência. As confi-gurações subjetivas não metodológica, como indicador. Um indicador
respondem à razão, motivo pelo qual estão não permite uma afirmação teórica imediata e
além das repre-sentações sobre as evidências direta, mas é apenas o primeiro momento de
objetivas do contexto em que uma um caminho hipotético, dentro do qual os
experiência acontece. indicadores se convertem em conceitos que
Quando um jovem responde mal a um alimentam o modelo teórico em curso.
apelo do professor feito em público, isso não Durante a pesquisa, novos indicadores e ideias
significa que ele esteja agredindo seu emergem em congruência com os primeiros
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Recebido: 17/07/2012
Revisado: 04/06/2013
Aprovado: 10/06/2013
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