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QUERO

Já se ia mais uma segunda-feira ardente terminando.


Balborda Floresval Cerrado estava se empanturrando mais uma vez. Comeu um pão
com manteiga. Comeu um pão com manteiga e goiabada. Comeu um pão com manteiga,
goiaba e queijo. Comeu um pão com manteiga, goiabada, queijo e tomate. Depois desse
último pão ajeitou o elástico da cueca, arrotou e comeu mais um pão; dessa vez com
manteiga, goiabada, queijo, tomate, maionese, mostarda, requeijão, linguiça, melancia e
rollmops.
Soluçou.
Sentiu aquele X-Boing aterrissando na goela e deslizando esôfago abaixo. Apesar das
interferências que o sanduba estava ocasionando pelo corpo todo de Balborda, ele ainda
conseguiu receber uma mensagem vinda do próprio estômago alertando-o para que parasse
imediatamente de comer e nem pensasse em tomar um gole sequer do açaí com paçoca e
banana que ele estava reservando para a sobremesa.
Contrariado, nosso herói achou que seu estômago estava sendo extremamente
inconveniente. Já tinha ouvido pelo menos uns sete amigos seus conterem histórias de alguma
vez em que tinham bebido três copões daquele num mesmo jantar, e isso depois de ter
comido pelo menos três pães a mais do que ele tinha acabado de comer. Seu estômago era
mesmo um estraga-lazeres. Miserável órgão limitado desprovido de espírito empreendedor,
bufou consigo mesmo e ajustou o elástico da cueca mais uma vez.
- Caríssimo Estômago, disse ficando de pé diante da pilha de guardanapos sujos sobre
a mesa, eu, Balborda Floresval Cerrado, estou desfrutando de um momento de lazer. Tudo
bem que hoje eu já joguei bola, já escrevi uma carta, já toquei minhas músicas prediletas no
violão, já recitei poemas em alemão, já abri uma empresa de vendas pela internet, já
publiquei um livro, já plantei uma mangueira, já ensinei sânscrito aos meu filhos, já varri a
casa, já fui eleito o deputado mais jovem da história do país e já assisti ao meu filme favorito
comendo pipoca, mas por favor, Estômago, você tem que me deixar, pelo menos, tomar esse
copão até a última gota. Lazer é só o que eu te peço. Não seja invejoso. Eu quero e posso.
Os ouvidos de Balborda sabiam o que aquilo queria dizer, não era a primeira vez que
Balborda fazia discursos labirintíticos de independência mimada. Mas uma coisa era entender
e outra era traduzir aquilo para uma língua que o estômago pudesse entender. Tontos, os
ouvidos começaram o trabalho. Aos poucos, às quebradelas, a mensagem foi chegando até o
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estômago, que, por sua vez, sabia o que aquela tradução complicada queria dizer, já que não
era a primeira vez que Balborda impunha a sua vontade de engolir um trambolho qualquer,
mas nem por isso o estômago sabia o que fazer. A cada célula de sangue que chegava
carregando um pedaço daquele palavrório todo, a duras penas traduzido pelos ouvidos, o
estômago ia se desesperando.
- Alguém! Por favor! Intestinos! Braços! Garganta! Alguém, por favor! Estão
escutando os meus roncos? Braços, por favor, impeçam o Balborda. Ouvidos, pelo amor da
Glândula Pineal, traduzam isso. Digam para o Balborda que eu.
Não deu tempo de terminar, e mesmo que terminasse, ninguém ia entender nada. A
tradução ia chegar atrasada e enigmática. Os vasos sanguíneos estavam todos engarrafados.
As interferências eram muitas. Os intestinos chiavam fazendo o baço imaginar que o pulmão
estava em apuros. Os olhos só paravam abertos por causa dos palitos que, depois de palitarem
os dentes, foram encravados entre as pálpebras para mantê-las abertas. Cada pedaço do corpo
falava uma língua. Eram umas mil línguas ou mais. Em meio àquela balbúrdia, a única coisa
que se ouvia com alguma clareza era o som que vinha do pâncreas:
- Iugoslááááááááááávia!
E se repetia.
- Iugoslááááááááááávia!
Balborda tremelicava inteiro içando o açaí com paçoca e banana até a boca. As
vísceras tremelicavam junto enviando e recebendo mensagens desconexas, respondendo não
sabiam o que nem para quem. Exauridas desde o começo do dia, quando Balborda deu a sua
aula de sânscrito de cinco horas aos filhos, elas só rogavam por uma dormida, mas nem uma
vontade assim tão simples era possível de realizar porque não havia língua compreensível que
a expressasse e o nosso chefe de gabinete, o Excelentíssimo Balborda Floresval Cerrado,
estava muito ocupado em golear o América, publicar o seu livro sobre artes marciais, vender
tapetes pela internet, plantar uma árvore que daria mangas para colocar na salada de fruta,
executar Liszt no violão, votar, recitar Frau Sorge e assitir a La grande boufre comendo
pipoca para que pudesse ao menos pensar (que ofensa para alguém tão cheio de vontades
como ele) em dormir.
O Elixir do Bom Estímulo tocou-lhe os lábios. As papilas, esbugalhadas, não
acreditavam no que saboreavam.
- Mais. Mó mamá bom. Mais, Boboda. Mais!
O comandante degustou as preces e, num só fôlego, tragou o copão. Aos quilos de pão
vieram aglutinar-se os litros do elixir. Sob o cabresto da necessidade de refinar tudo aquilo,
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algumas vísceras toparam iniciar a digestão enquanto outras atrasaram o serviço tentando
escapar pela boca ou pelo ânus. Percebendo as movimentações revoltosas, contraiu o
esfíncter, encheu o copão com guaraná e promoveu um brinde.
- A todas as realizações do dia. Comemoremos o desenvolvimento pessoal, nacional,
espacial, temporal, monumental, sacramental, enfim, genial que eu, você, todos nós
conquistamos hoje e que, oxalá, continuaremos a conquistar amanhã e depois.
Elevou o copão acima da cabeça, e tragou-o também num só fôlego, contendo assim
as vísceras que já estavam na altura da traquéia. Encheu o copão mais uma vez, dessa vez
com água gelada, derramou-a sobre a própria cabeça, sacudiu-se – agora refrescado – e saiu,
de cueca mesmo, para a sua sagrada corrida noturna. Sem ela, sofria de insônia. Com ela,
arranjava ânimo para emendar a terça-feira escrevendo uma tese de doutorado de abordagem
transdisciplinar a respeito da educação primária, reescreever a obra de Luís Vaz de Camões e
William Shakespeare atualizando-as, desenvolver pesquisas no ramo da reciclagem de
rejeitos orgânicos, assistir TV, elaborar o conceito da nova campanha da Coca-Cola, editar
uma medida provisória para turbinar o crescimento do país, procriar com prazer, aprimorar o
sistema de busca do Google, escovar os dentes e escrever um conto o quanto antes para não
se perder o sentimento vibrante de tudo que viverá; não esquecendo, claro, a aula de sânscrito
dos filhos.
Que viesse, dois dias depois, a quarta-feira e que se seguisse a ela o resto da semana.
Balborda quer e pode.

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