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o P A ST O R C O N T E M P L A T IV O

Voltando à A rte do Aconselhamento Espiritual

Eugene H. Peterson

Rio de Janeiro
2002
THE CONTEMPLATIVE PASTOR by Eugene Peterson
(c/o Alive Communications, Inc., 7680 Goddarci Street, Suite 200,
Colorado Springs, CO 80920,USA)
Published in association with the literary agencies William Neill-Hall Ltd, of Cornwall,
England, and Alive Communications Inc., Colorado Springs, CO, USA

© 2002 Editora Textus

Coordenação Editorial
Judith Ramos e Billy Viveiros

Tradução
Neyd Siqueira

Revisão
Billy Viveiros

Diagramação
Rafael Alt

Capa
Susana Callegari

Primeira edição em português - Outubro de 2002

Publicado no Brasil com a devida autorização


e com todos os direitos reservados na língua portuguesa por
Editora Textus
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As citações bíblicas desta obra são da 2^ edição da Versão Revista e Atualizada da SBB.

Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida sem o consentimento prévio,
por escrito, dos editores, exceto breves citações em livros e resenhas.

DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


(CIP) DO DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO
P485 Peterson, Eugene H.
O pastor contemplativo: voltando à arte do aconselhamento espiritual;
tradução de Neyd Siqueira. —Rio de Janeiro: Textus, 2002
192p.; 16 X 23 cm

ISBN: 85-87334-48-4

1. Aconselhamento pastoral. I. Título.

CD D: 253.5
Para
H. James Riddell
Sumário

Prefácio 9

REDEFINIÇÕES

O Substantivo Indefeso 25
O Pastor Ocioso 27
O Pastor Subversivo 37
O Pastor Apocalíptico 49

ENTRE DOMINGOS

M inistério em M eio ao M ovim ento 65


Cura de Almas: A Arte Esquecida 67
Orando de Olhos Abertos 79
Primeira Linguagem 101
O Crescimento É Uma Decisão? 111
o M inistério das Banalidades 129
Enfermo de Uma Nova M aneira 135
Preso ao Mastro 149
Deserto e Colheita: Uma História Sabática 161

A PALAVRA RENOVADA

Poetas e Pastores 175


Poemas 177
Prefácio

e Eugene H. Peterson não fosse presbiteriano, ele poderia ser


um monge. Alguns de seus livros mais conhecidos: A Long
O bedience in the Same D irection e Traveling Light to Earth a n d
Altar (Um^ Longa Obediência na Mesma Direção e Viajando
Sem Bagagem para a Terra e o Altar) [republicado sob o título
Where Your Treasure Is (Onde Está o Seu Tesouro)] tratam da
prática da espiritualidade cristã.
Eugene tem um comportamento monástico. Ele é magro,
usa barba e está ficando calvo. Possui uma voz baixa e rouca, de
alguém que enfrentou muitas noites sombrias da alma. Tem o
ar firme e sereno, próprio dos que superam nosso medo inato do
silêncio e da solidão. E, mesmo quando tem algo duro a dizer,
palavras bondosas parecem brotar de uma profundeza genuína.
Deixando, porém, de lado o aspecto monástico, Peterson é
um verdadeiro cristão, pastor da igreja presbiteriana Christ Our
King, em Bel Air, Maryland. Ele decidiu desde o início nunca
pastorear uma igreja com mais membros do que pudesse citar
pelo nome. Eugene e sua esposa, Jan, fazem parte da Christ Our
9
0 Pastor Contemplativo

King, uma congregação de cerca de 300 membros, há vinte e


seis anos.
A partir da publicação da obra, A Long Obedience, em 1980,
Eugene ganhou uma reputação bastante difundida (embora apro­
priadamente discreta) como pastor zeloso e franco, que compre­
ende as disciplinas espirituais e sabe comunicar a sua prática.
Seu ministério pastoral e seus escritos são produto de um
ambiente erudito, tendo dominado as línguas bíblicas e feito
doutorado com o magistral William F. AIbright. Mas, ele não
exibe seus conhecimentos. Peterson fica, na verdade, constrangido
com perguntas insistentes sobre seus livros, afirmando que sua
identidade e objetivo na vida são apenas ser um pastor confiável.
Num mundo de falatórios e exibicionismo cada vez maiores,
Petersen se dedicou à promoção não celebrada da honestidade,
simplicidade e significado.
Em setembro de 1987, passei três dias com Eugene e Jan,
mas não em Bel Air. Eu os visitei na casa de seus falecidos pais
no noroeste de Montana, durante a licença sabática de um ano
de Eugene (as reflexões dele sobre esse período estão no capítií-
lo 13). A casa fica situada numa baía do Lago Flatchead, um
espelho azul do imenso céu que se estende por trás da mesma.
As montanhas Rochosas, com seus picos nevados, rodeiam o
lago. A apreciação de Eugene é evidente. Uma noite ele ficou
na cozinha, com a luz tremulante do lago refletida no teto pelo
sol no ocaso. Com as mãos enfiadas nos bolsos dos jeans, ele
olhou pela janela e murmurou para ninguém em particular:
“Amo a sensualidade deste lugar.”
Os Peterson ficaram em Montana até outubro, passando
horas em oração, caminhando nas montanhas próximas, lendo
juntos em voz alta, esquiando pelo país, Eugene escrevendo

10
Prefácio

e Jan datilografando os rascunhos de dois livros seguidos. O


tempo a sós do casal —momentos preciosos para qualquer
dupla no ministério —foi pontuado pelas visitas dos filhos,
Karen, Eric e Leif.
Setembro era o tempo ideal para uma entrevista. Eugene
sentia-se revigorado pelo período sabático, pronto para voltar ao
seu trabalho pastoral. Passamos horas junto a um gravador, mas
passeamos também pelas montanhas perto da casa, enquanto
Eugene discutia as formações geológicas, contava lendas índias
sobre os frutos das coníferas, e mostrando uma sucessão infinita
de vida selvagem. Quaisquer fossem, no entanto, os assuntos da
conversa, ela voltava sempre para os temas da espiritualidade: a
importância do lugar, o papel da criatividade, a centralização da
comunidade e a necessidade da subversão cristã. Quando per­
guntado sobre o que unia tudo, Eugene apreciando uma águia-
pescadora que voava sobre a baía, citou a última linha do Diary o f
a Country Priest (Diário de um Sacerdote Camponês) de Bernanos:
“A graça está em toda parte”.

Espiritualidade e Lugar

A pessoa...que busca resultados rápidos ao plantar as sementes


das boas obras fica rá decepcionada. Se eu quiser batatas para
0ja n ta r de amanhã, não adianta plantar sementes de batatas
esta noite. Há longos períodos de escuridão, invisibilidade e
silêncio que separam o plantio da colheita. Durante os períodos
de espera estão a sachadura e o cultivo, assim com o a form ação
eplantação de outras sementes.
- Where Your Treasure Is

11
o Pastor Contemplativo

Seus livros são terrenos, no sentido literal da palavra. Incluem


metáforas agrícolas, títulos como Earth and Altar. Embora
vivamos numa sociedade eminentemente móvel, você parece
ter um forte sentimento de lugar, da importância do local em
que a pessoa se encontra.
Eu gosto de ler o poeta-agricultor Wendell Berry. Ele toma
um pequeno pedaço de terra em Kentucky, cuida dele, respeita-o,
submete-se a ele como um artista se submete aos seus materiais.
Leio Berry e cada vez que ele fala de “fazenda” e “terra”, substituo
por “congregação”. Enquanto fala da sua fazenda, ele se refere
ao que eu tentei praticar em minha congregação, porque um dos
principais aspectos da obra pastoral é a localização.
A pergunta pastoral é: “Quem são essas pessoas e como estar
no meio delas de modo que venham a ser aquilo que Deus as está
tornando?”. Meu trabalho é simplesmente ficar ali, ensinando,
pregando as Escrituras da melhor forma possível, e sendo sincero
com elas, sem fazer nada para interferir com o que o Espírito estiver
moldando nelas. Deus poderia estar fazendo algo que nem sequer
cheguei a pensar? Estou disposto a ficar em silêncio por um dia,
uma semana, um ano? Como Wendell Berry, estou disposto a passar
cinqüenta anos recuperando esta terra? Com essas pessoas?
Espiritualidade cristã significa viver na inteireza amadurecida do
Evangelho. Significa tomar todos os elementos da sua vida - filhos,
cônjuge, trabalho, tempo, bens, relacionamentos —e experimentá-los
como um ato de fé. Deus quer todo o material de nossas vidas.

O que significa experimentar todo o material de nossas vidas,


como um ato de fé?
Significa que sou responsável por dar atenção à Palavra de
Deus aqui neste local. O conceito de espiritualidade é que Deus

12
Prefácio

está sempre fazendo algo antes que eu perceba. A tarefa não é


então conseguir que Deus faça algo que eu acho que deve ser feito,
mas, discernir o que Deus está realizando, de modo a responder
à sua atuação, participando e me alegrando nela.
Quando me absorvo em minha congregação, chego às ve­
zes admirado em casa quando tomo conhecimento do que está
ocorrendo na vida das pessoas. Não porque não sejam pecadores.
Eles vivem e pecam, se rebelam e fazem coisas insensatas, mas a
coragem e a graça se acham ali quase todos os dias. Quando es­
tou trabalhando - isto é, quando não fico isolado, mas mergulho
em meu ambiente - penso que meu sentimento característico no
final do dia é uma sensação de reverência diante da influência de
Deus sobre essas pessoas.

Quais são alg;uns dos incidentes que o fizeram entender isso?


Penso em Leigh e Joe Phipps. Leigh era a professora da
primeira série de meu filho mais moço, e Jan era assistente dela.
Em certa ocasião, Jan convidou-a para ir à igreja. Leigh disse que
talvez fosse, mas não gostava de vestir-se formalmente. Domingo
era o dia dos blue jeans e Jan disse a Leigh que, se quisesse, ela
podia ir vestida assim.
A partir desse ponto, surgiu uma espécie de brincadeira
entre elas. Sempre que encontrava Leigh na mercearia, Jan
brincava; “É melhor lavar stu s jeans\”. Mas, Leigh nunca apa­
receu. Os anos se passaram. Nossa filha Karen foi então fazer
um curso de cerâmica e Leigh era uma das alunas. Ela ficou
conhecendo Karen, mas nada aconteceu. Bem, ao menos fazía­
mos parte da mesma comunidade. E finalmente, há dois anos,
algo aconteceu: depois de vinte anos de oração e espera, Leigh
tornou-se cristã!

13
o Pastor Contemplativo

Esse não é o fim da história. Joe Phipps fora um colega de


escola de Leigh de quem ela gostava muito. Eles namoraram
e desmancharam algumas vezes, mas a vida dele se desviara.
Ele se envolveu com drogas e acabou preso por contrabando.
Até que, certo dia, ele clamou por ajuda e teve uma espécie de
conversão. Em seguida, procurou por Leigh e lhe disse: “Não
sei o que isso significa”. Ela disse que conhecia um pastor e
o trouxe a mim.
Leigh e Joe acabaram se casando. Eles me pediram para
tocar banjo e cantar FartherAlong (Bem Mais Adiante), com Jan,
em seu casamento. Leigh e Joe e o seu casamento ainda têm. um
longo caminho a percorrer. Ele está cumprindo uma sentença na
prisão. Mas passou a assinar seu nome desta maneira: “Joe ‘Bem
Mais Adiante’ Phipps”.

Como pastor, você vê então graça em algumas situações


improváveis?
Vejo sim, e o meu trabalho não é resolver os problemas
das pessoas ou torná-las felizes, mas ajudá-las a ver a graça ope­
rando em suas vidas. Isso é difícil, porque toda a nossa cultura
segue em outra direção, dizendo que se você for suficiente­
mente esperto e obtiver a ajuda certa, poderá resolver todos os
seus problemas. A verdade, porém, é esta: não encontramos
muitas pessoas felizes na Bíblia. Mas, há pessoas que estão
experimentando alegria, paz, e o significado do sofrimento de
Cristo em suas vidas.
A obra da espiritualidade é reconhecer onde nos encontramos
- as circunstâncias particulares da nossa vida - reconhecer a graça
e indagar: “Você acha que Deus quer estar comigo de um modo
que não envolva mudar meu cônjuge ou afastar-me dele ou de

14
Prefácio

meus filhos, mas que signifique mudar a mim e fazer algo em


minha vida que eu talvez nunca poderia experimentar sem esta
dor e este sofrimento?”
Algumas vezes, penso que tudo que faço como pastor é falar
a palavra “Deus” em uma situação na qual ela nunca foi dita an­
tes, onde as pessoas não reconheceram a Sua presença. Alegria é
a capacidade de ouvir o nome e reconhecer que Deus está aqui.
Há uma espécie de regozijo porque Deus está agindo, e, mesmo
que seja algo pequeno, isso basta no momento.

Espiritualidade e Criatividade

Obras originais de graça são possíveis na tarefa diária de perdo­


ar 0 pecador, ajudar os que sofrem, e aceitar responsabilidades
pessoais...A Criação continua. As ruas e os campos, as casas e
os mercados do mundo são uma galeria de arte que não exibem
a cultura, mas as novas criações em Cristo.
—Where Your Treasure Is

Você escreveu que todos nascem para viver criativamente, mas


muitos de nós falhamos nisso. Qual a razão?
Em grande parte porque somos preguiçosos. A criativi­
dade é difícil. Quando você está sendo criativo, está vivendo
pela fé. Não sabe o que virá em seguida, porque o que foi
criado, por definição, é o que nunca existiu antes. Você, en­
tão, acha-se vivendo no limite de algo em que confia muito.
Talvez você falhe; de fato, irá falhar quase sempre. Todas as
pessoas criativas que conheço jogam fora a maior parte das
coisas que fazem.

15
o Pastor Contemplativo

Outra razão pela qual talvez não nos inclinemos a viver criati­
vamente seja nossa noção limitada da criatividade. Tendemos a
pensar que só os artistas e os escritores de ficção são criativos.
O fato é que a maior parte da criatividade não é visível. Isto
é, quase ninguém nasce com corpo de atleta ou com a coordenação
artística para pintar. Todavia, penso que todos possuem criatividade.
Com materiais diferentes, ela é a base de nossas vidas.
Não existe vida que não contenha graça. Acabei de ler uma
carta enviada por uns amigos de Jan que moram em Seattle. Eles
têm uma filha de um ano. Duas ou três semanas após o nasci­
mento, o casal descobriu que a criança era quase cega.
Conheço Ruthie, a mãe, desde que ela era adolescente e,
portanto, participei da sua dor. Sofri também com seu marido,
Dave. Ele é um tipo vigoroso, que gosta da vida ao ar livre. Já
escalou montanhas em todos os continentes do mundo. Dave
possui uma espiritualidade profunda e silenciosa. Um casal ma­
ravilhoso, mas a filhinha deles é cega. Minha primeira reação foi
uma sensação enorme de tristeza e tragédia —do tipo: “Como isto
foi acontecer com Dave e Ruthie?”
Conversei, porém, com Ruthie ontem pelo telefone. Ela
disse: “Tive uma porção de experiências em minha vida, mas
nenhuma maior do que a de ser mãe”. Disse também que deve­
riamos ver Dave com a filha. A pequena Cairn, de pouco mais de
um ano, já esteve em picos de montanhas na Península Olímpica,
nas Cascades, nas Rochosas e nas Smoky. Dave a leva sempre em
suas excursões.
Essa criança está extraindo o que há de melhor neles. Cairn,
qualquer seja a sua condição, é um presente de Deus. Esse é um
casal que está vivendo criativamente: eles tomaram o que lhes foi
dado e o introduziram na vida de graça e redenção.

16
Prefácio

Espiritualidade e Comunidade

Nossa membresia na igreja é um corolário da nossa f é em Cristo.


Não podem os ser cristãos e não ter nada em com um com a igre­
ja , assim com o não podem os ser pessoas e não p erten cer a uma
família...Essa é uma parte integrante da redenção.
—A Long Obedience in the Same Direction

Os cristãos americanos tendem a se concentrar na oração


particular em vez da oração comunitária, ou oração na adora­
ção. Em seus escritos você indica que não se sente confortável
com essa tendência.
E verdade. A oração-modelo não é solitária, mas feita em
comunidade. O contexto bíblico fundamental é a adoração. E por
isso que o culto me parece ser o lugar certo. E o único contexto
no qual podemos recuperar a profundidade do Evangelho.

Isso significa que aprendemos a orar na comunidade, que


aquilo que fazemos a sós é algo que extraímos da adoração
da comunidade?
Tem razão. Se alguém me diz: “Ensine-me a orar”, respondo:
“Venha a esta igreja às nove horas da manhã de domingo”. Você
aprende a orar ali. A oração não cessa e tem formas alternativas
quando você está sozinho. Mas, a experiência dos cristãos inverteu
a ordem. Na longa história da espiritualidade cristã, a oração
comunitária é mais importante e depois a individual.

O que aprendemos na oração em comum?


Uma coisa que aprendemos é ser guiados em oração.
Posso pensar na oração como sendo uma iniciativa minha.

17
0 Pastor Contemplativo

Compreendo que tenho uma necessidade ou sinto-me feliz


e então oro. A ênfase está em mim e sinto quando oro que
comecei algo.
Mas, o que acontece quando vou à reunião da igreja? Fico ali
sentado e alguém se levanta à minha frente e diz: “Vamos orar”.
Não fui eu que comecei; estou respondendo. O que significa que
fui humilhado. Meu ego não está mais em proeminência. Esse
é um elemento muito básico na oração, porque orar é responder
em palavras.
A oração deve ser uma resposta ao que Deus disse. A
congregação que adora - ouvindo a Palavra lida e pregada, e
celebrando-a nos sacramentos —é o lugar onde aprendo como
orar e onde pratico a oração. Ela é um centro do qual eu oro.
Ao deixá-la vou para o meu quarto ou para as montanhas e
continuo orando.
Uma segunda coisa sobre orar em comunidade é que,
quando oro numa congregação, meus sentimentos não são le­
vados em conta. Quando entro na congregação, ninguém me
pergunta: “Como você está se sentindo hoje? Sobre o que tem
vontade de orar?”
A congregação é então um lugar onde aprendo gradualmente
que a oração não é condicionada ou autenticada pelos meus sen­
timentos. Nada é mais devastador para a oração do que quando
começo a avaliá-la de acordo com os meus sentimentos e penso
que para orar tenho de ter uma certa sensação, uma certa atenção
espiritual ou paz; ou, de outro lado, angústia.
Isso é virtualmente impossível aprender por si mesmo. Mas,
se estiver numa congregação, aprendo repetidamente que a oração
continuará quer eu queira ou não, ou até mesmo que eu durma
durante todo o tempo.

18
Prefácio

Espiritualidade e Subversão

A oração é uma atividade subversiva. Ela envolve um ato


praticam ente fran co de desafio contra qualquer reivindicação
do regim e em vigor. [A medida que oramos,] lenta mas segura­
mente, nem cultura, nem fam ília, governo, emprego, ou mesmo
0 ego tirânico p od e resistir ao p od er silencioso e à influência
criativa da soberania de Deus. Cada laço natural de fam ília
e raça, cada compromisso deliberado com pessoas e a nação é
fin a lm en te sujeito ao governo de Deus.
- Where Your Treasure Is

Os cristãos americanos assumem com excessiva facilidade


que a cultura que os cerca é cristã?
Sim. E útil ouvir pessoas de outras culturas inseridas na nossa,
para saber o que ouvem e o que vêem. Em minha experiência,
elas não vêem uma terra cristã. Se você escutar um Solzhenitsyn
ou o Bispo Tutu, ou estudantes universitários da África ou da
América Latina, eles não enxergam um país cristão. Na verdade,
vêem algo que é quase o reverso disso.
Percebem muita cobiça e arrogância. Enxergam uma comu­
nidade cristã despojada de quase todas as virtudes da comunidade
cristã bíblica, que está ligada à vida sacrificial e ao amor visível.
Em vez disso, vêem indulgência nos sentimentos e emoções, e
uma busca ávida da gratificação.
De m aneira importante, eles percebem para além da
fachada da nossa linguagem, o jargão cristão que colocamos
diante de tudo. O que atrai os estrangeiros na América é o
materialismo e não a espiritualidade. É interessante ouvir os
refugiados que acabaram de entrar no país: o que eles querem

19
o Pastor Contemplativo

são carros e televisão. Não estão à procura do nosso Evangelho,


a não ser que estejam traduzindo o Evangelho numa promessa
de riquezas e conforto.

Você prega sobre isso para a sua congregação?


Sim.

Como faz isso? Tenho certeza de que não é fácil.


Como sabe, sou um deles. Vivo no mesmo tipo de casa que
eles. Dirijo o mesmo tipo de carro. Compro nas mesmas lojas.
Sou, então, como eles. Estamos todos no mesmo barco.
E possível para alguns afastar-se da sociedade e formar
uma espécie de colônia, a fim de desafiar a sociedade como um
modelo de tropa de choque. Esse não é, porém, o meu chama­
do, e não acho recomendável usar a linguagem do separatismo
numa congregação em que todos temos empregos, onde estamos
tentando encontrar nosso nicho como discípulos na sociedade
e fazer o que nos for possível nela. Se agir assim, perco credi­
bilidade. Estarei usando um tipo de linguagem no domingo e
outro na segunda-feira.
O que tentei desenvolver então em primeiro lugar, em mim
mesmo, é a mentalidade de um subversivo. O subversivo é
alguém que toma a coloração da cultura, na medida em que isso
seja visível para outros. Se perder a coloração, perde a sua eficácia.
O subversivo trabalha em silêncio e às ocultas, pacientemente.
Ele se dedicou à vitória de Cristo sobre a cultura e está disposto
a fazer pequenas coisas. Nenhum subversivo faz nada grande,
em tempo algum. Ele está sempre levando mensagens secretas,
semeando a suspeita de que há alguma coisa além daquilo que a
cultura diz que é final.

20
Prefácio

Quais são alguns atos específicos da subversão cristã?


São atos cristãos comuns. Os atos de amor sacrificial, justi­
ça e esperança. Não há qualquer novidade nisso. Nossa tarefa é
desenvolver uma auto-identidade como cristãos e não fazer essas
coisas de maneira incidental em nossas vidas, mas de modo cen­
tralizado. Ao nos encorajarmos uns aos outros, orarmos juntos,
estudarmos juntos as Escrituras, passamos a sentir que essas coisas
são de fato o cerne de nossa vida. E reconhecemos que não são o
centro da vida do mundo, por mais que se converse culturalmente
sobre o Cristianismo.
Se pudermos desenvolver o sentimento de que o amor
sacrificial, a justiça e a esperança são a essência da nossa identidade
—eles vão para o trabalho conosco todos os dias, e para nossas
famílias todas as noites - somos então realmente subversivos. E
preciso compreender que a subversão cristã não é nada vistosa. Os
subversivos não ganham batalhas. Tudo o que fazem é preparar o
terreno e mudar um pouco o ambiente em direção à fé e a espe­
rança, para que quando Cristo vier haja indivíduos à Sua espera.

Devemos levar a sério o prefixo na palavra subversivo, a idéia


de sair de baixo de algo?
Acho que sim. Estamos trabalhando em profundidade,
no âmago das coisas. As imagens do Evangelho são imagens de
crescimento que surgem da parte de baixo. Uma semente, por
exemplo, é subsolo e subversiva.
Tenho um amigo com cerca de 33 anos, que é pastor. Ele
é alto, tem boa aparência e uma forte personalidade —o tipo de
pessoa adequada para trabalhar na televisão ou com uma igreja
de renome. Mas, ele fala de descer a escada e está estabelecido
na pequena Victor, em Montana. Talvez necessitemos de mais

21
0 Pastor Contemplativo

pastores como ele, que queiram ser locais, que levem a sério um
lugar e a igreja que deseja ser uma comunidade, usando o material
simples do povo da localidade.
E assim que entendo a vida pastoral. Tenho servido à igreja
Christ Our K ing há vinte e seis anos. Tudo que William Faulkner
conhecia eram 200 ou 300 hectares do Mississipi, e penso que é
isso que quero fazer. Minha vontade é conhecer 200 a 300 hectares
de Cristo, conhecer e continuar conhecendo.

RODNEY CLAPP
Editor Associado
Christianity Today

(Entrevista concedida em 1989)

22
REDEFINIÇÕES
Capítulo 1

O Substantivo Indefeso

Se, mesmo p or um momento, eu aceitar a definição que a minha


cultura fa z d e mim, isso me tornará indefeso.

u m substantivo sólido não precisa de adjetivos. Os adjetivos


atravancam o substantivo sadio. Se o substantivo tiver, porém,
sido prejudicado pela cultura, os adjetivos são necessários.
“Pastor” costumava ser esse tipo de substantivo —cheio de
energia e virilidade. Sempre gostei do som dessa palavra. Desde
criança, essa palavra me fazia pensar em alguém que amava a
Deus e tinha compaixão das pessoas. Embora os pastores que
conheci não personificassem essas características, a palavra con­
tinuava mantendo sua força apesar dos modelos. Ainda hoje,
quando me perguntam como quero ser chamado, respondo
sempre: “Pastor”.
Ao observar, entretanto, a maneira como a vocação de pastor
é vivida na América e ouço o tom e o contexto em que o termo
pastor é dito, compreendo que aquilo que ouço na palavra e o que
os outros ouvem é muito diferente. No uso geral o substantivo é

25
o Pastor Contemplativo

fraco, definido pelo arremedo burlesco e diluído pelo oportunis­


mo. A necessidade de adjetivos que o fortaleçam é essencial.
Vejo que tenho de exercer esta reabilitação adjetiva constante­
mente redefinindo, ao recusar as definições de pastor a cultura
me oferece, e reformulando a minha vida com os discernimentos
e imagens da Escrituras. A cultura me trata com tamanha ama-
bilidade! Ela me encoraja a manter meu credo ortodoxo; elogia a
minha prática evangélica e louva minha devoção singular. Tudo
o que a cultura me pede é que eu aceite a sua definição do meu
trabalho como um encorajador de boa vontade; como o sacerdote
que irá aspergir água santa sobre as boas intenções da mesma.
Muitas dessas pessoas são minhas amigas. Nenhuma delas, ao
que me parece, é conscientemente maligna.
Mas se eu, por um só momento, aceitar essa definição da
cultura sobre mim, torno-me indefeso. Posso denunciar o mal e
a estupidez o quanto quiser e serei tolerado em minhas denúncias
como um bobo da corte é tolerado. Posso organizar sua esplêndida
benevolência e permitirão que o faça, desde que seja só para os
fins de semana.
A essência do termo “pastor” pede redefinição. Com essa
finalidade, ofereço três adjetivos para explicar o substantivo: ocioso,
subversivo, apocalíptico.

26
Capítulo 2

O Pastor Ocioso

Como posso persuadir alguém a viver pela f é e não p o r obras, se


tenho de ajeitar constantem ente meus horários para fa z er tudo
dar certo?

carta que vai para o cesto sem ser lida é com certeza a dirigida
para o “pastor ocupado”. Não que a frase não me descreva
às vezes, mas me recuso a dar atenção a alguém que encoraja o
que é o pior para mim.
Não estou discutindo a exatidão do adjetivo; contesto, porém,
a maneira como é usado para adular e expressar simpatia.
“Coitado...”, dizemos, “...é tão dedicado ao rebanho; seu
trabalho não termina e ele se sacrifica tão generosamente!”. Só
que a palavra ocupado aqui não é um sintoma de compromisso,
mas de traição. Não é devoção, mas deserção. O adjetivo “ocu­
pado” que se emprega como modificador de pastor deve soar aos
nossos ouvidos como “adúltera” para caracterizar uma esposa ou
“estelionatário” para descrever um banqueiro. E um escândalo
ultrajante, uma afronta blasfema.

27
o Pastor Contemplativo

Hilary de Tours diagnosticou nossa ocupação pastoral como


irreligiosa sollicitudo pro Deo, uma ansiedade blasfema de fazer o
trabalho de Deus por Ele. Eu (e a maioria dos pastores) se torna
ocupada por duas razões; ambas ignóbeis.
Sou ocupado p orq u e sou vaidoso. Quero parecer importan­
te. Significativo. Que maneira melhor do que ser ocupado?
As horas incríveis, os horários cheios, e as pesadas demandas
no meu tempo provam para mim mesmo - e para todos que
observarem —que sou importante. Se vou ao consultório mé­
dico e vejo que não há nenhum cliente à espera, e vejo pela
porta entreaberta o médico lendo um livro, fico imaginando
se ele é realmente bom. As pessoas fazem fila para consultar
um bom médico; o bom médico não tem tempo para ler um
livro. Embora resmungue por ter de esperar a minha vez no
consultório de um médico ocupado, fico também impressio­
nado com a sua importância.
Essas experiências me afetam. Vivo numa sociedade em que
agendas repletas e estresse são evidências de importância, portanto,
procuro ter um horário lotado e viver em condições estressantes.
Quando outros notam, eles reconhecem minha importância e
minha vaidade é alimentada.
Sou ocupado porque sou preguiçoso. Deixo indolentemente que
outros decidam o que farei, em vez de decidir resolutamente eu
mesmo. Permito que pessoas que não compreendem o trabalho
de pastor preparem o programa para o meu dia de trabalho, por­
que sou muito relaxado para escrevê-la pessoalmente. O pastor
é apenas uma sombra na mente dessas pessoas, um marginal
vagamente ligado às coisas de Deus e à benevolência. Qualquer
coisa remotamente religiosa ou de alguma forma bem-intencio­
nada pode ser corretamente destinada ao pastor.

28
0 Pastor Ocioso

Em vista dessas designações para o serviço pastoral serem


feitas sinceramente, eu as aceito. É custoso recusar e, além disso,
há sempre o perigo de que a recusa seja interpretada como uma
repulsa, uma traição da confiança e uma desconsideração insensível
das pessoas necessitadas.
C.S. Lewis tinha como tema favorito a idéia de que os
preguiçosos trabalham duro. Ao abdicar preguiçosamente o
trabalho essencial de decidir, dirigir, estabelecer valores e al­
vos, outros fazem isso por nós; e nos encontramos então, no
último minuto, tentando desesperadamente satisfazer meia
dúzia de exigências diferentes sobre o nosso tempo, nenhu­
ma delas essencial à nossa profissão, para adiar o desastre de
decepcionar alguém.
Mas, se eu inutilmente atravanco o meu dia com atividades
conspícuas ou permito que outros o encham de exigências im­
periosas, não terei tempo para fazer o trabalho para o qual fui
chamado. Como posso guiar pessoas ao lugar tranqüilo, ao lado
das águas quietas, se eu me encontro em movimento perpétuo?
Como persuadir alguém a viver pela fé e não por obras, se tenho
de ajeitar constantemente meu programa para fazer com que
tudo se acerte?

Muito Barulho Pelo Que É Importante

Se eu não estiver ocupado fazendo diferença no mundo, ou re­


alizando o que todos esperam de mim, o que devo então fazer?
Qual o meu trabalho verdadeiro? O que significa ser um pastor?
Se ninguém me pedisse para fazer nada, o que eu faria?
Provavelmente três coisas:
29
o Pastor Contemplativo

Posso ser um pastor que ora. Quero cultivar meu relaciona­


mento com Deus. Quero que tudo na vida seja íntimo —algumas
vezes consciente e outras inconscientemente - com o Deus que
me fez, me guia e me ama. Igualmente, quero despertar outros
para a natureza e centralidade da oração. Quero ser, nessa comu­
nidade, alguém que outros possam procurar sem hesitação, sem
indagar se é ou não apropriado, a fim de aprenderem como orar.
Quero fazer a obra original de entrar em conversas cada vez mais
profundas com o Deus que Se revela a mim e me chama pelo
meu nome. Não quero distribuir volantes mimeografados que
descrevam o negócio de Deus.
Meu desejo é testemunhar mediante a minha própria expe­
riência. Não quero ser um parasita na vida espiritual de primeira-
mão de outros, mas, envolver-me pessoalmente com todos os meus
sentidos, provando e vendo que o Senhor é bom.
Sei que leva tempo para desenvolver uma vida de oração:
tempo separado, disciplinado, deliberado. Isso não se conse­
gue às pressas, nem oferecendo orações do púlpito ou ao lado
de um leito de hospital. Sei que não posso estar ocupado e
orar ao mesmo tempo. Posso ser ativo e orar, posso trabalhar
e orar; mas não posso estar ocupado e orar. Não posso estar
intimamente agitado, aflito, ou desconcentrado. A fim de
orar, tenho de dar mais atenção a Deus do que ao que outros
estejam me dizendo, a Deus do que ao meu ego clamoroso.
No geral, para que isso aconteça, deve haver um afastamento
deliberado do ruído do dia, uma separação disciplinada do
CC 55 • • / 1
eu msaciavel.

Posso ser um pastor que prega. Quero falar a Palavra de Deus


que é a Escrituras na linguagem e cadência das pessoas com quem

30
o Pastor Ocioso

vivo. Recebo um espaço de tempo honrado e protegido a cada


semana para isso. O púlpito é um grande dom e quero utilizar-
me bem dele.
Não estou interessado em “pregar sermões”, desafiar as pes­
soas a enfrentarem as necessidades do dia ou a oferecer mensagens
brilhantes, inspiradoras. Com a ajuda provida pelos eruditos e edi­
tores, posso preparar um sermão bastante respeitável de qualquer
tipo em poucas horas cada semana, um sermão que será aprovado
pela maioria das congregações. Elas não o considerariam o melhor
sermão, mas iriam aceitá-lo.
O que desejo fazer não pode ser feito desse modo. Preciso
encharcar-me da Escrituras; preciso de uma imersão nos estudos
bíblicos. Tenho necessidade de horas de reflexão nas páginas
das Escrituras, assim como de lutas pessoais com o significado
das mesmas. Isso exige muito mais tempo do que para preparar
um sermão.
Quero que os participantes do culto de adoração em minha
congregação, a cada domingo, ouçam a Palavra de Deus pre­
gada de forma a distinguirem sua nota distinta de autoridade
e saibam que suas vidas estão sendo atingidas em seu próprio
território. Um esboço sólido e ilustrações elegantes não pro­
duzem isso.
Este tipo de pregação é um ato criativo que exige silêncio e
solidão, concentração e intensidade. “Toda palavra que move os
homens”, afirma R.E.C. Browne, “foi cunhada quando a mente
de alguém se encontrava equilibrada e tranqüila”. Não posso fazer
isso quando estou ocupado.

Posso ser um pastor que ouve. Muitas pessoas me procuram


durante a semana para contar-me o que se passa em suas vidas.

31
o Pastor Contemplativo

Quero ter a energia e o tempo para realmente ouvi-las, para que,


quando terminem, saibam que pelo menos uma pessoa tem uma
idéia do que estão sentindo e pensando.
Ouvir é algo raro nos dias de hoje. As pessoas não estão
acostumadas a ter quem as ouça. Sei como é fácil evitar o trabalho
árduo e intenso de ouvir, mostrando-se ocupado —como quando
contei a um doente no hospital que havia mais dez pessoas me
esperando. (Tenho realmente de vê-las? Não sou indispensável
para qualquer delas e estou aqui com esta). Grande parte das
visitas pastorais é bater o ponto, garantir às pessoas que estamos
trabalhando, mostrar-nos ocupados, ganhando nosso salário.
O ato pastoral de ouvir exige tempo sem pressa, mesmo
que seja por cinco minutos. A falta de pressa é uma qualidade
do espírito e não uma quantidade de tempo. Só num ambiente
sem pressa é que as pessoas sabem que estão sendo ouvidas com
absoluta seriedade, tratadas com dignidade e importância. Falar
com as pessoas não tem a mesma intensidade pessoal que ouvi-las.
A pergunta que faço a mim mesmo não é: “Com quantas pessoas
você falou sobre Cristo esta semana?”, mas, “A quantas pessoas
você ouviu em Cristo esta semana?”. O número de pessoas a quem
ouvimos deve ser necessariamente menor do que o daquelas com
quem falamos. Ouvir uma história sempre toma mais tempo
do que pregar uma mensagem. Devo, então, por de lado minha
compulsão de contar, de compilar as estatísticas que irão justificar
minha existência.
Não posso ouvir se estiver ocupado. Quando meu horário
está transbordando, não fico livre para ouvir. Tenho de manter
meu próximo compromisso; tenho de comparecer à próxima
reunião. Mas, se providenciar margens para o meu dia, haverá
muito tempo para ouvir.

32
o Pastor Ocioso

Os Significados das Margens

Como fazer isso? O calendário de compromissos é a ferramenta


para nos deixar desocupados. Ela é um dom do Espírito Santo
(não listado pelo apóstolo Paulo, mas mesmo assim um dom)
que dá ao pastor o meio de obter tempo e lazer para orar, pregar
e ouvir. Ele é mais eficiente do que uma secretária protetora;
menos dispendioso do que um lugar de refúgio. É a única coisa
que todos em nossa sociedade aceitam sem objeção como autori­
dade. A autoridade antes dada às Escrituras é agora atribuída ao
calendário de compromissos. O dogma da infalibilidade verbal
não foi descartado, apenas re-designado.
Quando apelo para a minha agenda, fico acima das críticas.
Se alguém me procura, pedindo uma mensagem para determinado
evento e respondo; “Acho que não posso fazer isso; estava planejan­
do usar esse período de tempo para orar”, a resposta será: “Olhe,
tenho certeza de que vai encontrar outra hora para isso”. Mas,
se eu disser: “Já tenho outro compromisso agendado”, o assunto
acaba ali. Se alguém me pedir para comparecer a uma reunião do
comitê e eu disser; “Estava pensando em levar minha mulher para
jantar nessa noite; não tenho tido tempo para ouvi-la há dias”,
a resposta será: “Você é indispensável nessa reunião, não poderia
marcar uma outra noite para sair com sua esposa?”. Mas, se eu
disser; “Minha agenda não permite isso”, acaba a discussão.
O estratagema, naturalmente, é chegar ao calendário antes
de qualquer um. Eu marco os horários de oração, leitura, lazer,
silêncio e solidão, mediante os quais o trabalho criativo —oração,
pregação e períodos para ouvir —pode vir a acontecer.
Descobri que quando essas necessidades centrais são satis­
feitas, há muito tempo para tudo o mais E há muito mais, pois o

33
o Pastor Contemplativo

pastor não é, e não deve ser, isentado das centenas de tarefas hu­
mildes ou da confusão administrativa. Estas são também parte do
ministério pastoral. A única maneira que encontrei para realizá-las
sem ressentimento e ansiedade é cuidar primeiro das prioridades.
Se não houver tempo para cultivar esses pontos essenciais, torno-
me um pastor ocupado, estressado e ansioso; uma Marta queixosa
e compulsiva em vez de uma Maria contemplativa.
Há alguns anos eu era um pastor ocupado e tive alguns
problemas de coluna que exigiram terapia. Precisei de sessões de
uma hora, três vezes por semana, e ninguém se importou porque
eu não estava disponível nessas três horas. Em vista das três horas
terem a autoridade de uma agenda de compromissos por trás delas,
passaram a ser sacrossantas.
Com base na analogia dessa experiência, me aventuro a pre­
parar receitas para mim mesmo, a fim de cuidar das necessidades
não só do meu corpo, como também de minha mente, emoções,
espírito e imaginação. Certa semana, além das conferências diárias
de meia-hora com o apóstolo Paulo, meu calendário reservou um
bloco de duas horas com Fyodor Dostoevsky. Meu espírito pre­
cisava disso tanto quanto o meu corpo há dez anos necessitou do
fisioterapeuta. Se ninguém me der essa receita, vou prescrevê-la
para mim mesmo.

A Firmeza do Arpoador

No livro M oby Dick, de Herman Melville, há uma cena turbu­


lenta em que um baleeiro enfrenta um vento forte num oceano
revolto, em perseguição à grande baleia branca, Moby Dick. Os
marinheiros trabalham arduamente, com cada músculo tenso e
34
o Pastor Ocioso

toda a sua atenção e energia concentradas na tarefa. O conflito


cósmico entre o bem e o mal se faz presente; o mar caótico e o
monstro marinho demoníaco contra o homem moralmente ul­
trajado, o Capitão Acabe. Nessa embarcação, porém, há alguém
que não participa da ação. Ele não tem um remo nas mãos, não
transpira, não grita. Mostra-se impassível em meio ao ruído e às
imprecações. Este homem é o arpoador, calado e firme, à espera.
E vem então esta sentença: “A fim de assegurar a maior eficiência
no arremesso, os arpoadores deste mundo devem pôr-se de pé
saindo da inércia e não do labor”.
A sentença de Melville é um texto a ser colocado junto ao
do salmista: “Aquietai-vos e sabei que eu sou D eus” (SI 46.10) e
da mensagem de Isaías: “Em vos converterdes e em sossegardes, está
a vossa salvação, na tranquilidade e na confiança, a vossa fo r ç a ”
(Is 30.15).
Os pastores sabem que há algo radicalmente errado com o
mundo. Estamos igualmente engajados em fazer alguma coisa
a respeito. O estímulo da consciência, a lembrança de antigas
ofensas e o desafio do mandamento bíblico nos envolvem no mar
anárquico do mundo. A baleia branca, símbolo do mal e o capitão
aleijado, personificação da justiça violada, se unem na batalha. A
história fictícia representa um conflito espiritual. Em um mundo
assim, o ruído é inevitável e uma energia imensa é despendida.
Mas, se não houver arpoador no barco, a caça não terá um fim
adequado. Ou, se o arpoador estiver exausto, tendo abandonado
sua tarefa e se tornado um remador, não estará pronto e não fará
boa mira quando tiver de arremessar seu arpão.
De alguma forma sempre parece haver mais incentivo para
assumirmos o trabalho do remador, trabalhando energicamente
numa causa moral, lançando a nossa energia numa luta que, sa-

35
o Pastor Contemplativo

bemos, terá conseqüência imortal. Sempre parece também mais


dramático assumir o ultraje de um Capitão Acabe, obcecado com
uma visão de vingança e retaliação, remoendo sorumbaticamente
o dano antigo infligido pelo Inimigo. Há, no entanto, outros
trabalhos importantes a serem feitos. Alguém deve atirar o dardo.
Outros devem ser os arpoadores.
As metáforas usadas por Jesus para a vida do ministério são
freqüentemente imagens do que é simples, pequeno e tranqüilo,
mas que produzem efeitos bem maiores do que a sua aparência;
sal, fermento, semente. Nossa cultura divulga a ênfase contrária:
o que é grande, numeroso, ruidoso. Torna-se então uma estratégia
necessária que os pastores se aliem deliberadamente aos arpoadores
silenciosos, preparados, e não se atirem frenéticos aos remos. E
muito mais urgente adquirirmos as habilidades do arpoador do
que os músculos do remador. É muito mais bíblico aprendermos
a quietude e a atenção diante de Deus do que sermos vencidos
pelo que John Oman citou como os perigos gêmeos do ministé­
rio; “afobação e preocupação”. A afobação dissipa a energia e a
preocupação a emperra.
Notei há algum tempo, como todos os pastores devem notar,
que quando um pastor deixou uma congregação vizinha, a vida
congregacional continuou normalmente. Um pregador foi con­
vidado para conduzir a adoração dominical e pastores próximos
cuidaram dos funerais, casamentos e aconselhamentos críticos.
A congregação passava meses, algumas vezes um ou dois anos,
sem um pastor regular. E pensei: “Todas essas coisas com que m e
ocupo tanto —não estão sendo feitas nessa congregação sem pastor e
ninguém parece incomodar-se". Perguntei a mim mesmo: “E se eu,
sem ir embora, deixar de fazê-las de agora em diante? Alguém se
importaria?" Fiz isso, e eles não se importaram.

36
Capítulo 3

O Pastor Subversivo

Estou destruindo o reino do ego e estabelecendo o reino de Deus.


Estou sendo subversivo.

omo pastor, não gosto de ser considerado simpático, mas,


insignificante. Fico agitado quando um executivo enérgico
deixa o lugar de adoração com o comentário; “Foi maravilhoso,
pastor, mas agora voltamos ao mundo real, não é mesmo?”. Eu
pensava que estávamos no mundo verdadeiro, no mundo revelado
como sendo de Deus, invadido pela graça de Deus e girando sobre
o eixo da crucificação e ressurreição de Cristo. O comentário do
executivo me detém; ele não está levando isto a sério. Adorar a
Deus é secundário em relação a fazer dinheiro. A oração é se­
cundária em comparação com o que é fundamental. A Salvação
cristã é uma preferência de marca.
Fico ofendido e quero afirmar minha importância. Forçar
o reconhecimento da posição-chave que mantenho na economia
de Deus e na economia dele, se é que esse indivíduo tem conhe­
cimento disso.
37
o Pastor Contemplativo

Lembro-me então de que sou um subversivo. Minha eficácia


a longo prazo depende de não ser reconhecido por quem realmente
sou. Se ele soubesse que eu na verdade creio que o estilo de vida
americano está condenado à destruição e que outro reino está
sendo formado em segredo neste momento para substituí-lo, ele
não ficaria nada satisfeito. Se ele soubesse qual era realmente o
meu trabalho e a diferença que estava fazendo, ele me demitiria.
Creio mesmo nisso. Creio que os reinos deste mundo, ame­
ricano, venezuelano e chinês, vão tornar-se o Reino do nosso Deus
e de Cristo e creio que este novo Reino já está entre nós. É por
isso que sou pastor, para apresentar o Reino verdadeiro às pessoas
e ensiná-las a viver nele. Aprendi bem cedo que os métodos de
meu trabalho devem corresponder às realidades do Reino. Os
métodos para tornar o reino da América forte —econômica, militar,
tecnológica e culturalmente - não são adequados para fortalecer o
Reino de Deus. Tive de aprender uma nova metodologia: falar a
verdade, mostrar amor, oração e parábola. Esses não são métodos
muito apropriados para se levantar o padrão de vida nos subúrbios
ou para dar ao ego um aspecto moderno.
Mas os Estados Unidos, os subúrbios e o ego compõem a
minha congregação. A maioria dos indivíduos neste amálgama
supõe que seus alvos pessoais e os que Deus têm para eles são
os mesmos. Esse é o erro religioso mais antigo: recusar-se a
apoiar qualquer diferença entre Deus e nós, imaginando que
Deus seja uma extrapolação vaga de nossos próprios desejos, e
depois contratar um sacerdote para cuidar dos assuntos entre o
“eu” e a extrapolação. E eu, um dos sacerdotes contratados, não
aceito nada disso.
Mas, se não estiver disposto a ajudá-los a tornarem-se o que
querem ser, como posso aceitar o que me pagam? Estou sendo

38
o Pastor Subversivo

subversivo. Estou destruindo o reino do ego e estabelecendo o


Reino de Deus. Estou auxiliando a se tornarem o que Deus quer
que sejam, usando os métodos da subversão.
Isso não é desonesto? Não exatamente, pois não estou dan­
do uma impressão falsa de mim mesmo. Estou simplesmente
tomando minhas palavras e atos em um nível de seriedade que
os faria entrar num estado de incredulidade catatônica se che­
gassem a saber.

O Estranho Nicho do Pastor

Os pastores ocupam um nicho estranho na cultura evagélica.


As comunidades cristãs nos empregam para liderar a adoração,
ensinar e pregar as Escrituras, e prover orientação e encoraja­
mento no caminho do peregrino. Em nossa congregação, rece­
bemos uma pequena honra na posição que ocupamos. Um de
nós, ocasionalmente, obtém proeminência nacional chamando
a atenção de grande número de pessoas com o carisma radiante
de líderes de torcida ou (menos freqüentemente) com as previ­
sões amedrontadoras do Armagedom. Mas, a maioria de nós
é conhecida apenas pelo nome na congregação e, exceto pela
presença cerimonial em casamentos, funerais e churrascos; não
fica exposta aos olhos do público.
As pessoas, em geral, nos tratam com respeito, mas não somos
considerados importantes em qualquer aspecto social, cultural ou
econômico. Em termos de paródia, somos geralmente tratados
como inocentes indefesos e de sátira, como parasitas ineptos.
Isto não é o que a maioria de nós tinha em mente, quando
começamos. Não havíamos contado com nada tão benigno ou tão

39
o Pastor Contemplativo

marginal. As imagens que formavam nossas expectativas pastorais


eram bem mais impetuosas: Moisés predominando sobre Faraó;
Jeremias soltando fogo pela boca; Pedro indômito e fanfarrão como
o apóstolo-líder; Paulo, movendo-se rapidamente entre a prisão e
o êxtase, o naufrágio e a pregação do Evangelho. O Reino de Deus
no qual fizemos o nosso aprendizado, foi-nos exposto como um
intruso revolucionário, perigoso, indesejável, no Clube Tradicional
dos tronos, domínios, principados e potestades.
O vocabulário aprendido na preparação para o nosso trabalho
foi uma linguagem de batalha {“Nossa luta não é contra o sangue
e a ca rn e’"), perigo ( “O diabo, vosso adversário, anda em derredor,
como leão que ruge procurando alguém para devorar’), e austeridade
( “Tome a sua cruz e siga-m e’). Depois de iniciado o trabalho, são
poucas as oportunidades para usar nossa linguagem de liderança.
Desse modo, como os dois anos de espanhol que fizemos na escola
secundária, ela em breve se torna disfuncional e negligenciada.
Aprendemos a linguagem errada? Adquirimos as imagens
erradas? Fomos alunos do professor errado?
Todos nos tratam com a máxima amabilidade. Ninguém
parece pensar que queremos reaJmente dizer o que dizemos. Quan­
do falamos “Reino de Deus”, ninguém fica apreensivo, como se
tivéssemos acabado de anunciar (o que achamos que havíamos
feito) que um exétcito poderoso se encontra na fronteira pronto
para a invasão. Quando dizemos coisas radicais como “Cristo”,
“amor”, “fé”, “paz” e “pecado” - palavras que em outros tempos
e culturas instigavam o martírio —os sons entram na corrente da
conversa sem fazer mais alvoroço do que os pontos nos jogos de
beisebol ou os preços dos alimentos.
E difícil julgar-se um revolucionário quando todos nos tratam
com a mesma afabilidade oferecida ao merceeiro.

40
0 Pastor Subversivo

Essas pessoas têm razão? Não representamos um perigo para


o seu estilo de vida? O que dizemos sobre Deus e os Seus caminhos
entre nós não são tão reais quanto os carros, as equipes de basquete
e as verduras frescas na horta? Muitos pastores, compreendendo
que as pesquisas de opinião repudiam inteiramente seu autocon-
ceito, se submetem ao veredito cultural e se dedicam ao papel de
capelães para a cultura. Isso é fácil. Mas, outros não aceitam tal
situação; eles se tornam subversivos na cultura.
Virgínia Stem Owens escreveu a mais poderosa evocação
desde o Rei Lear so h tt o caráter subversivo da pessoa (e isto inclui
certamente o pastor) que pretende converter o mundo pela verdade
e não com armas. Seu livro And the Trees Clap Their Hands (E
as Arvores Batem Palmas) é uma performance fascinante sobre as
barras paralelas da polêmica antignóstica e da intriga do “espião
de Deus”. Nas páginas de abertura, Owens, acompanhada por
seu marido-pastor, prepara a cena:

“Nós nos sentamos em cafés e estudamos os rostos dos que


passam pela calçada, sem saber que estão sendo observa­
dos. Coletamos, examinamos e registramos os detalhes.
Mas não nos consideramos cientistas; não podemos fazer
experimentos controlados. A vida não admite um grupo
de controle. Só há o que se apresenta a qualquer momento
para nossa análise. Com nossas limitações, só podemos
estar em um único lugar, uma só vez, a qualquer dado
momento. Por esta razão nos consideramos espiões, pois
devemos andar por uma trilha e nos manter nela. Nossa
vida é um salve-se quem puder e não um laboratório que
amplia nossos sentidos e os reduz novamente para estudar
o que conseguimos extrair do vento.

41
o Pastor Contemplativo

Temos várias proteções, meu companheiro e eu; coisas que


aparentemente estamos fazendo enquanto, na verdade, es­
tamos observando os sinais da presa invisível, que é a nossa
principal ocupação. Ele, por exemplo, equilibra os orça­
mentos da igreja, aconselha os divorciados e os delinqüentes,
escreve sermões. Mas, por baixo de tudo, predomina uma
vigilância constante, uma atenção permanente. Mesmo
quando se encontra no púlpito, ele peneira as faces da con­
gregação para descobrir aquela textura delicada, não mais
espessa do que o pó de pólen, que segue o rastro da trilha
em que se acha.
Fico sentado entre eles, tricotando-os internamente como
M adame Defarge, ouvindo, registrando, observando,
lembrando. Suavemente. Suavemente. As pistas a serem
seguidas são, no geral, pequenas e transitórias. Um abrir
milimétrico do olho, uma leve contração das narinas, um
respirar silencioso, a modulação levemente mais alta da voz.
Espiar a realidade oculta nas aparências exige vigilância e
perseverança. Exige tudo que tenho.”

O reino do ego é um território muito bem defendido. Os


Adãos e Evas, pós-Eden, estão dispostos a pagar seus respeitos a
Deus, mas não querem que Ele invada seu terreno. Quase todo
pecado, longe de ser um simples lapso moral ou vontade fraca, é
uma defesa enérgica e dispendiosa contra Deus. O ataque direto
numa guerra abertamente declarada contra o deus-ego é extra­
ordinariamente ineficaz. Enfrentar o pecado de frente é como
bater um prego com o martelo, ele só o aprofunda mais. Existem
exceções ocasionais, confrontos estrategicamente ditados, mas o
método bíblico preferido é por vias indiretas.

42
o Pastor Subversivo

Jesus, o Subversivo

Jesus era o mestre da subversão. Até o fim, todos, inclusive os


discípulos, o chamavam de Rabi. Os rabis eram importantes, mas
não faziam nada acontecer. Nas ocasiões em que houve suspeitas
de que talvez Ele fosse mais do que o título acusava, Jesus tentou
manter as coisas em segredo: “Não diga a ninguém”.
A forma de discurso favorita de Jesus, a parábola, era subversi­
va. As parábolas parecem histórias absolutamente comuns, casuais,
sobre solo e semente, refeições e moedas e ovelhas, bandidos e
vítimas, fazendeiros e comerciantes. Elas são também inteira­
mente seculares: dentre as cerca de quarenta parábolas registradas
nos Evangelhos, só uma tem como ambiente a Igreja, e só duas
mencionam o nome de Deus. Quando as pessoas escutavam Jesus
contar essas histórias, viam imediatamente que não eram sobre
Deus e não continham então nada que ameaçasse a sua soberania.
Baixavam as defesas. Embora perplexas, iam imaginando qual o
seu significado, e as histórias ficavam gravadas em sua imaginação.
Mais tarde, como uma bomba-relógio, elas explodiam em seus
corações desprotegidos. Um abismo se abria aos seus pés. Ele
estivera falando sobre Deus; eles tinham sido invadidos.
Jesus continuamente lançava histórias estranhas ao longo das
vidas normais {para —“ao longo de”; bola - “atirar’) e se retirava
sem explicação ou convite para o altar. Os ouvintes começavam,
então, a ver as ligações, conexões de vida, de eternidade. A própria
falta de clareza, a diferença, era o estímulo para perceber a seme­
lhança: semelhança de Deus, semelhança da vida, semelhança da
eternidade. Mas a parábola não fazia o serviço —ela fazia trabalhar
a imaginação do ouvinte. As parábolas não são ilustrações que
facilitam as coisas; pelo contrário, dificultam as coisas exigindo o

43
o Pastor Contemplativo

exercício da nossa imaginação; a qual, se não tivermos cuidado,


se torna o exercício da nossa fé.
As parábolas ultrapassam subversivamente as nossas defe­
sas. Uma vez dentro da cidadela do “eu”, podemos esperar uma
mudança de método, um brandir súbito de baionetas resultando
num golpe palaciano. Mas, isso não acontece. Nossa integridade
é honrada e preservada. Deus não impõe a sua realidade de fora
para dentro; ele faz crescer flores e frutos de dentro para fora. A
verdade de Deus não é uma invasão alienígena, mas, um namoro
amoroso em que detalhes de nossas vidas comuns são tratados
como sementes em nossa concepção, crescimento e maturidade
no Reino. As parábolas confiam em nossa imaginação, ou seja,
em nossa fé. Elas não nos arrebanham paternalmente para uma
sala de aula onde as coisas são explicadas e diagramadas. Não
nos colocam em regimentos onde nos encontramos marchando
a passo de ganso moral.
É difícil descobrir um detalhe na história do Evangelho que não
fosse na época (e ainda hoje) esquecido por ser improvável, posto de
lado, por ser comum e rejeitado por ser ilegal. Sob a superfície da
formalidade, porém, e por trás das cenas prováveis, cada um estava
efetivamente inaugurando o Reino: concepção ilegítima (como foi
suposto), nascimento na manjedoura, silêncio em Nazaré, secula-
ridade galiléia, curas no sábado, orações no Getsêmani, morte de
criminoso, água batismal, pão eucarístico e vinho. Subversão.

As Suposições dos Subversivos

Três coisas estão implícitas na subversão. Primeira, a estagnação


é errada e deve ser posta de lado, caso o mundo deva continuar

44
o Pastor Subversivo

habitável. Ela é tão profundamente errada que se torna inútil


consertá-la. O mundo, no termo que os agentes de seguros usam
para designar nossos carros depois de um acidente grave, é con­
siderado “perda total”.
Segunda, um outro mundo habitável está nascendo. Sua
realidade não é uma quimera. Ele existe, embora não seja visível.
Seu caráter é conhecido. O subversivo não age de conformidade
com um mundo utópico, mas com uma convicção da natureza
do mundo real.
Terceira, os meios usuais para derrubar um reino e fazer com
que outro ocupe seu lugar —força militar ou eleições democráticas
—não estão disponíveis. Se não tivermos poder preponderante
ou a maioria dos votos, começamos a procurar outros meios para
efetuar a mudança. Descobrimos os métodos da subversão. Des­
cobrimos e aceitamos aliados.
Durante uma conversa em seu sexagésimo aniversário, em
1986, foi perguntado ao poeta A.R. Ammons: “A poesia é sub­
versiva?”. Ele respondeu: “É. E você não imagina o quão-pro-
fundamente subversiva”. A consciência quase sempre alcança
um nível muito intenso no limite das coisas, questionando e
corroendo métodos aceitos para a sua realização. A audiência
resiste à mudança até o último momento e depois fica agra­
decida por ela.
Essas são as convicções implícitas no Evangelho. Elas não
são, porém, as geralmente implícitas na vida eclesiástica. Com
mais freqüência, existe uma suposição não provada de que a con­
gregação já é praticamente o Reino e que se todos trabalharmos
juntos e nos esforçarmos um pouco mais, ela será. Em especial,
os pastores parecem supor que todos, ou pelo menos uma grande
maioria na congregação pode ser persuadida ou empurrada para

45
o Pastor Contemplativo

a justiça e talvez até para a santidade, apesar dos séculos de evi­


dência contrária.
E universalmente reconhecido que os pastores precisam de
um conhecimento exato da doutrina cristã; mas que eles precisam
de habilidades práticas nas técnicas da subversão cristã, é uma
convicção da minoria. Mas, Jesus é o Caminho, assim como a
Verdade. A maneira como o Evangelho é transmitido faz parte do
Reino tanto quanto a verdade apresentada. Por que os pastores
são peritos na verdade, mas deixam de lado o caminho?
Para adquirir familiaridade e prática na subversão pastoral,
podemos fazer pior do que ler romances de espionagem e observar
as estratégias da infiltração comunista, mas as passagens bíblicas
são mais adequadas se apenas dermos atenção a elas:

"Um grande .e fo rte vento fen d ia os montes e despedaçava as


penhas diante do SENHOR, porém o SENHOR não estava
no vento; depois do vento, um terremoto, mas o SENHOR não
estava no terremoto; depois do terremoto, um fogo, mas o SE­
NHOR não estava no fogo; e, depois do fogo, um cicio tranqüilo
esu a v e” {\Ks \^. \\-\2).

"Prosseguiu ele e me disse: Esta é a palavra do SENHOR a


Zorobabel: Não p orforça nem p or poder, mas pelo meu Espírito,
diz 0 SENHOR dos Exércitos” (Zc 4.6).

Vós sois 0 sal da terra” (Mt 5.13).

"O reino dos céus é sem elhante a um grão d e mostarda, que


um hom em tomou e plantou no seu campo; o qual é, na ver­
dade, a m enor de todas as sementes, e, crescida, é m aior do que

46
0 Pastor Subversivo

as hortaliças, e se fa z árvore, de modo que as aves do céu vêm


aninhar-se nos seus ramos” (Mt 13.31-32).

“Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este
crucificado. Efo i em fraqueza, tem or e grande trem or que eu
estive entre vós” {\Co 2.2-3).

Infelizmente, toda esta metodologia bíblica da subversão


é fácil e freqüentemente descartada pelos pastores em favor do
ataque ou da promoção. As duas razões prováveis são: vaidade
e ingenuidade.
Vaidade. Não gostamos de tomar chá de cadeira na festa do
mundo. Um estudo recente sobre o declínio de homens brancos se
preparando para a obra pastoral, concluiu que uma das principais
razões é a falta de prestígio do trabalho na atualidade. De maneira
interessante, a lacuna está sendo preenchida por outros (negros,
asiáticos, mulheres) que aparentemente não buscam prestígio e têm
um histórico de trabalhar subversivamente. Não havia também
prestígio na fabricação de tendas itinerante de Paulo.
Ingenuidade. Pensamos que a Igreja já é o Reino de Deus e
que se ela for melhor organizada e motivada, poderá conquistar
o mundo. No entanto, em ponto algum da Escrituras ou da
história vemos uma igreja como sinônimo do Reino de Deus.
A Igreja, em muitos aspectos, é mais mundana do que o mun­
do. Quando equipáramos a Igreja e o mundo, e a identidade se
revela falsa, nos sentimos “enganados”. Não é de admirar que a
ira e o cinismo sejam epidêmicos por trás do verniz sorridente
dos pastores americanos. Necessitamos de cursos de atualização
nas críticas barthianas de religião e análises danteanas do pecado,
especialmente do pecado espiritual.

47
o Pastor Contemplativo

As Ferramentas da Subversão

A oração e a parábola são as ferramentas essenciais do pastor sub­


versivo. A vida de oração tranqüila (ou ruidosa) entra em parceria
com o Espírito que ainda Se empenha no interior de todo coração
humano, travando um combate pela santidade. As parábolas são
palavras que alteram a consciência, que se infiltram para além dos
chavões e invadem o espírito humano com a verdade de Cristo.
Esta é a nossa obra primária no mundo real. Mas, precisamos
ser continuamente convincentes. As pessoas pelas quais oramos
e entre as quais contamos parábolas são seduzidas a supor que o
seu dinheiro e ambição estão fazendo o mundo girar em seu eixo.
Há tantas delas e tão poucos de nós, tornando difícil manter as
nossas convicções. E fácil deixar-se seduzir por elas.
As palavras são a verdadeira obra do mundo —palavras de
oração com Deus, palavras de parábola com os homens e mu­
lheres. O trabalho da criatividade, por trás do cenário, por meio
da Palavra e sacramento, parábola e oração, subverte o mundo
seduzido. O verdadeiro trabalho do pastor é o que Ivan Illich
chama de “operação na sombra” —um trabalho que não é pago e
poucos notam, mas que constrói um mundo de salvação, signifi­
cado, valor e propósito, um mundo de amor, esperança e fé —em
resumo, o Reino de Deus.

48
Capítulo 4

O Pastor Apocalíptico

Com a amplitude da invasão celestial e a urgência da decisão de


fépenetrando em nossa consciência como trovões e relâmpagos, não
podem os fica r parados na manhã de domingo enchendo o tempo
com conversas triviais pretensiosas sobre como o mundo estáperdido
e quão maravilhosa vai ser a nova campanha de mordomia.

adjetivo “apocalíptico” não é geralmente encontrado na com­


O panhia do substantivo “pastor”. Não me lembro de tê-los
ouvido na mesma sentença. Eles cresceram de lados diferentes
dos trilhos. Gostaria de bancar o Cupido entre as duas palavras
e ver se posso incentivar um namoro.
“Apocalíptico” tem um som selvagem: uma loucura de fim
do mundo; uma urgência catastrófica. O termo é usado quan­
do a história parece fora de controle e a vida de todos os dias se
mostra despida de esperança. Quando você não tem certeza se
são bombas ou estrelas que estão caindo do céu, e as pessoas estão
correndo para as montanhas como uma manada de porcos, a cena
é “apocalíptica”. A palavra amedronta e perturba.

49
o Pastor Contemplativo

“Pastor” é uma palavra que conforta: alguém que cita com


confiança o Salmo 23 quando você está tremendo na escuridão
das sombras. Os pastores nos reúnem em adoração silenciosa
diante de Deus. Eles representam a fidelidade e o amor do Deus
eterno e comparecem todos os domingos para repetir isso —que
Deus ama tanto o mundo. Os pastores constroem pontes sobre
as águas agitadas e guiam os pés desviados de volta à estrada
principal. A palavra acumula associações de segurança e bênção,
solidez e paz.
Tenho, porém, uma razão bíblica para unir os dois termos.
O último livro da Bíblia foi escrito por um pastor e ele escreveu
um Apocalipse. O João que nos transmitiu as últimas palavras
da Bíblia era um pastor apocalíptico.
Sou mal compreendido pela maioria das pessoas que me
chamam de pastor. Os erros desses indivíduos são contagiosos e
também acabo compreendendo mal: Quem sou eu? Qual o meu
verdadeiro trabalho? Olho em volta, faço perguntas. Observo
a paisagem americana para obter imagens da obra pastoral. O
que um pastor faz? Com que se parece um pastor? Que lugar
o pastor ocupa na Igreja e na cultura? Recebo uma descrição
de trabalho que parece ter sido preparada com base nas últimas
pesquisas de marketing sobre as necessidades do consumidor
religioso. Mas não há imagens nem histórias. O apóstolo João
deu-me uma imagem e uma história - e uma descrição de tra­
balho em branco, graças a Deus.
João é o tipo de pastor que eu gostaria de ser. Minha admi­
ração se expande: ele é também o tipo de pastor que eu queria que
meus colegas fossem. Quando olho para ele, buscando a fonte de
energia, isso o torna um mestre e não apenas mais um charlatão
religioso. Descubro que o elemento apocalíptico é decisivo.

50
o Pastor Apocalíptico

Ernst Kâsemann captou o que muitos julgam ser “o” único


ponto de vista bíblico nesta sentença: “A profecia apocalíptica
foi a avó de toda a Teologia cristã”. Talvez, então, a avó de
todo o trabalho pastoral cristão. Os cristãos da primeira igreja
criam que a ressurreição de Jesus inaugurou uma nova era. Eles
estavam de fato - mas não pela aparência —vivendo no Reino
de Deus, um reino de verdade, de cura e de graça. Tudo isto
se achava presente, mas oculto aos olhos incrédulos e inaudível
aos ouvidos céticos.
Os pastores são as pessoas nas comunidades cristãs que repe­
tem e insistem nessas realidades do Reino em confronto com as
aparências do mundo, e que devem ser, portanto, apocalípticos.
No dicionário, “Apocalipse” significa simplesmente “revelação”,
o desvendar do que estava encoberto, a fim de que possamos ver
o seu conteúdo. Mas, o contexto em que a palavra se encontra
acrescenta colorido ao significado em preto-e-branco do dicioná­
rio, as cores podem ser brilhantes e escuras —urgência vermelha
e crise violeta. Sob a crise da perseguição e sob a urgência de um
fim iminente, a realidade é subitamente revelada pelo que é. Ha­
víamos suposto que nossas vidas eram tão absolutamente comuns.
Os hábitos pecaminosos transformam nossa fé em moralismo enfa­
donho e tédio respeitável; a crise remove então o verniz das rotinas
diárias e revela os esplendores e terrores do Céu e do Inferno,
lado a lado. O Apocalipse é incendiário —ele, secretamente, põe
fogo na imaginação que derrete a gordura de uma cultura-religião
obesa e propõe um amor evangélico transparente, uma esperança
evangélica pura, uma fé evangélica purificada.
Durante trinta anos fui pastor de cristãos americanos que
se esforçam ao máximo para tornar-se impermeáveis à crise e à
urgência. Existe um meio de viver com essas pessoas e amá-las

51
0 Pastor Contemplativo

sem ser moldado pela cultura do bezerro de ouro? Como posso


deixar de acomodar-me com o salário e os benefícios de um caixa
de loja para consumidores religiosos? Como posso evitar uma
metamorfose da vocação santa do pastor em uma carreira pro­
missora em vendas religiosas?
Eis um modo: submeter minha imaginação ao Apocalipse
do apóstolo João —a crise do Fim combinada com as urgências
de Deus —e deixar que as energias do Apocalipse me definam e
moldem como pastor. Quando faço isso, minha vida pastoral
passa a ser simples: oração, poesia e paciência.

Oração Apocalíptica

O pastor apocalíptico ora. A vocação pastoral de João foi exer­


citada de joelhos. Ele adotou o ato de orar como essencial em
seu trabalho e depois mostrou que era essencial no trabalho de
todos. Nada que o pastor faz é diferente em espécie do que todos
os cristãos fazem, mas é algo às vezes mais enfocado, mais visível.
A oração é o ato central na comunidade cristã.
Depois de algumas sentenças introdutórias em Apocalipse,
encontramos João no lugar e na prática da oração (1.9-20). O
lugar: “Na ilha de Patmos”. A prática: “em espírito, no Dia do
Senhor”. Na complexa tarefa de pastorear suas sete congregações,
que no estudo de caso à nossa frente envolve compor este poema
teológico, O Apocalipse, ele nunca deixa o lugar de oração, nunca
abandona a prática da oração. No final do livro ele continua
orando: “Amém. Vem, Senhor Jesus!” (Ap 22.20).
João ouve a Deus, fica em silêncio diante de Deus, canta
para Deus, faz perguntas a Deus. O ouvir e o silêncio, os

52
o Pastor Apocalíptico

cânticos e as perguntas estão maravilhosamente em contato


com a realidade, misturando as visões e os sons dos afazeres
romanos com as visões e os sons da Salvação - anjos e merca­
dos, césares e Jesus. João não perde quase nada de vista. Ele é
um pastor alerta e vivo. Lê e assimila as Escrituras; lê e sente
o impacto das notícias diárias. Mas, nem a Escritura antiga
nem a notícia corrente é deixada como chega à sua porta; tudo
é transformado em oração.
João vive na fronteira do mundo invisível do Espírito Santo
e do mundo visível dos dias romanos. Nessa fronteira ele ora. A
oração reúne as realidades, fazendo uma ligação viva entre o lugar
em que nos encontramos e o Deus que nos busca.
A oração não é, porém, um trabalho solicitado freqüente-
mente do pastor, exceto nos cerimoniais. A maior parte das tarefas
pastorais, na verdade, corrói a oração. A razão é óbvia, as pessoas
não se sentem confortáveis com Deus em suas vidas. Elas pre­
ferem algo menos temível e mais informal. Algo como o pastor,
por exemplo. Acessível, pronto a oferecer um ombro amigo. As
pessoas preferem falar com o pastor em vez de com Deus. Acontece
então que, sem más intenções por parte de ninguém, a oração é
empurrada para as laterais.
Os pastores, em vez de praticar a oração que leva as pessoas
à presença de Deus, passam à “prática do messias”: tentamos fazer
o trabalho de Deus para Deus, vamos consertar as pessoas, dizer
a elas o que fazer, encontrar atalhos pelos quais a longa jornada
para a cruz possa ser abandonada desde que todos temos agendas
tão lotadas no momento. As pessoas nos amam quando fazemos
isto. É lisonjeiro ser colocado no lugar de Deus. E uma sensação
maravilhosa ser tratado de modo quase divino e é também uma
tarefa que geralmente executamos muito bem.

53
o Pastor Contemplativo

Um senso de Apocalipse assobia contra esse pastorado messi­


ânico. A amplitude da invasão celestial, a urgência da decisão de
fé, o perigo de impingir a cultura —com essas coisas penetrando
em nosso consciente, acompanhadas de raios e trovões, não pode­
mos ficar parados nas esquinas no domingo de manhã, enchendo
o tempo com conversa trivial sobre quão maligno é o mundo e
como a nova campanha de mordomia vai ser maravilhosa.
Se tivermos apenas um vislumbre do Apocalipse, será impossí­
vel agir como o animado capataz de uma equipe de trabalho que vai
refazer o ajardinamento paisagístico de jardins morais (ou imorais)
para melhorar o aspecto das residências. A oração é uma necessidade.
O mundo foi invadido por Deus e é com Ele que temos de tratar.
A oração é o nosso ato mais presente co m o seres humanos e o
mais enérgico; ela liga o passado imediato com o futuro imediato e
faz com eles uma junção flexível, viva. O “Amém” une o que aca­
bou de ocorrer com o “Maranata” do que está prestes a acontecer
e produz uma bênção. Damos atenção a Deus e levamos outros
a buscá-Lo. Pouco importa que tantos prefiram fixar-se no seu
padrão de vida, sua auto-imagem, ou sua ambição de deixar uma
marca no mundo. O Apocalipse abre o abismo da realidade. A
realidade é Deus: Adore ou fuja.

O Poeta Apocalíptico

O pastor apocalíptico é um poeta. O apóstolo João foi o primei­


ro grande poeta da Igreja cristã. Ele usou as palavras de novas
maneiras, criando' a verdade bem diante de nossos olhos, fresca

poétés em grego é “criador”.

54
o Pastor Apocalíptico

em nossos ouvidos. A maneira como o pastor usa o idioma é um


elemento crítico no trabalho. O Evangelho cristão está arraigado
na linguagem; Deus fa lou e fez surgir a Criação; nosso Salvador
foi a Palavra encarnada. O poeta é a pessoa que não usa as pala­
vras simplesmente para transmitir informação, mas parafa z er wm
relacionamento, moldar a beleza, a verdade. Esta é a obra
de João e a de todo pastor.
Não estou querendo dizer que todos os pastores escrevem
poemas ou falam em rima, mas que eles tratam as palavras
com reverência, sentem a majestade não só da Palavra, mas,
das palavras, e compreendem que a linguagem em si participa
do sagrado.
Se o Apocalipse de João não for lido como um poema, será
praticamente incompreensível; o que o torna, de fato, tantas
vezes incompreendido. João, com seus jogos de imagens e me­
táforas exuberantes, trabalha suas palavras em vastas e rítmicas
repetições. O Evangelho já foi adequadamente proclamado para
essas pessoas que pastoreia, elas se tornaram cristãs mediante
a pregação e o ensino de Pedro e Paulo, e a Palavra foi então
transmitida por escritores canônicos juntamente com inumerá­
veis diáconos, presbíteros e mártires. No trabalho de João há
mais, entretanto, do que manter uma ligação cognitiva com as
fontes. Como pastor ele fala outra vez, passando novas visões
do Evangelho, para que as suas congregações experimentem a
Palavra e não simples palavras. Para isso é preciso que ele seja
um poeta.
A tarefa do pastor é moldar a imaginação de quem ora
em relação ao Evangelho. Esta revelação de Deus para nós, em
Jesus, é um fato tão amplo e poderoso, e nossa capacidade para
crer, amar e esperar é tão atrofiada, que precisamos de ajuda

55
o Pastor Contemplativo

para ouvir as palavras em todo o seu poder, ver as imagens em


toda a sua força.
Não é estranho que os pastores, que são os responsáveis por
interpretar as Escrituras, grande parte das quais se apresenta na
forma de poesia, tenham tão pouco interesse por esta? Este defeito
incapacita e deve ser remediado. As comunidades cristãs como um
todo devem redescobrir a poesia e cabe aos pastores guiá-las. A
poesia é essencial à vocação pastoral por ser a linguagem-matriz. A
palavra é criativa: ela faz surgir o que não existia antes —percepção,
relacionamento, crença. Um som brota do abismo silencioso: as
pessoas ouvem o que não ouviam antes e são transformadas, da
solidão para o amor, por meio do som. No abismo vazio se forma
um quadro, por meio de uma metáfora as pessoas vêem o que não
viram antes e são transformadas pela imagem do anonimato em
amor. As palavras criam. A palavra de Deus cria; nossas palavras
podem participar dessa criação.
A poesia, entretanto, não é o tipo de linguagem que se espera
que os pastores usem, exceto em citações, nos funerais. A maior
parte do trabalho pastoral corrói a poesia. A razão é óbvia: as
pessoas não se sentem bem com as incertezas, riscos e esforços
da criatividade. Ela toma muito tempo. Há muita obscuridade.
As pessoas se sentem mais à vontade com a prosa. Elas preferem
explicações da história bíblica e informação sobre Deus. Isto atrai
o pastor, pois temos muita informação para transmitir e gostamos
de explicações. Depois de alguns anos falando em prosa, acaba­
mos prosaicos.
Uma dose do Apocalipse nos detém, então, em meio a uma
frase: o poder da palavra para criar fé, a força da imaginação para
resistir ao racionalismo do mal, a necessidade de moldar um povo
para falar e ouvir pessoalmente na adoração e no testemunho.

5A
o Pastor Apocalíptico

As urgências apocalípticas nos levam às raízes da linguagem e


nos tornamos poetas: damos atenção ao núcleo da linguagem, à
linguagem pessoal, à linguagem bíblica.
Nem todas as palavras criam. Algumas simplesmente comu­
nicam. Elas explicam, registram, descrevem, controlam, infor­
mam, regulam. Vivemos numa era obcecada pela comunicação.
A comunicação é boa, mas, um bem menor. Ter conhecimento
das coisas nunca pareceu melhorar muito a nossa vida. A tarefa
pastoral com as palavras não é comunicação, mas comunhão - a
cura, restauração e criação de relacionamentos de amor com Deus
e seus filhos guerreiros e a nossa criação pela qual combatemos.
A poesia usa palavras na comunhão e para a comunhão.
Este é um trabalho árduo e requer atenção. E terrível a
condição da linguagem em nossos dias. Ela é usada descuidada e
cinicamente. Em sua maior parte é um instrumento de propagan­
da, quer secular ou religiosa. Cada vez que a linguagem usada de
modo errado ou abusada é introduzida pelos pastores na oração,
pregação e direção, a palavra de Deus é depreciada. Não podemos
usar um meio negativo para alcançar um fim positivo.
Palavras que form am a verdade e não apenas a transportam: li­
turgia, história, cânticos e oração são a obra dos pastores-poetas.

Paciência Apocalíptica

O pastor apocalíptico é paciente. O apóstolo João se identificou


junto aos paroquianos como: "Irmão vosso e companheiro na tributa­
ção, no reino e na perseverança, em Jesus” {hp 1.9). A “perseverança”,
que os gregos chamavam hipom one —firmeza, resistência —é uma
das mais inesperadas e notáveis realizações do Apocalipse.

57
o Pastor Contemplativo

A ligação não é evidente. Afinal de contas, se tudo está


desmoronando e o mundo prestes a terminar, isso não signifi­
ca o fim da paciência? Por que não comer, beber e alegrar-se
porque amanhã morreremos? O Apocalipse bastardo, que não
tem ascendência nas fontes bíblicas ou compromissos com o
Evangelho, produz uma descendência irresponsável (e a molecada
está ruidosa e penosamente em evidência em cada rua), mas o
Apocalipse real, concebido no casamento santo, resulta em co­
munidades que são verdadeiramente pacientes, corajosamente
comprometidas com o testemunho e trabalham no Reino de
Deus sem se importar com o tempo usado, ou com o custo a
ser pago. De maneira típica, os grupos marginais, oprimidos e
explorados são cultivados no Apocalipse.
João é terrivelmente urgente, mas não tem pressa. Note sua
urgência tranqüila no livro que escreveu. Ler Apocalipse leva
muito tempo. O livro não pode ser lido às pressas e requer várias
releituras para penetrar no glorioso e sutil poema-visão. João
trabalha com vastas e vagarosas repetições, empurrando-nos para
ritmos antigos. Um indivíduo impaciente nunca irá terminar o
livro. Aprendemos paciência no próprio ato de ler/ouvir o Apo­
calipse de João. Se ele tivesse sido impaciente, nos teria dado uma
frase de efeito escrita num adesivo.
A razão de João insistir na paciência é por estar tratando
com os vastos mistérios de Deus e as complexidades da con­
fusa condição humana. Isto vai levar algum tempo. Nem os
mistérios nem a confusão são simples. Se quisermos aprender
a viver santamente na confusão da história, devemos nos pre­
parar para algo entre as gerações e pensar em termos de sécu­
los. A imaginação apocalíptica nos dá uma facilidade no que
os geólogos chamam de “tempo profundo” —um sentimento

55
o Pastor Apocalíptico

de "eras” que transcende as compulsões dos especialistas em


gerenciamento de tempo e igualmente dignifica a existência
do fóssil mais inferior.
O ambiente de trabalho dos pastores esgota a paciência e
recompensa a impaciência. As pessoas sentem-se desconfortáveis
com o mistério (Deus) e a confusão (elas mesmas). Evitam en­
tão tanto o mistério quanto a confusão, inventando programas
e contratando pastores para controlá-los. Um programa fornece
uma estrutura definida com um alvo atingível. O mistério e a
confusão são eliminados de um só golpe. Isto é interessante. Em
meio aos mistérios da graça e as complexidades do pecado humano,
é agradável ter algo que você possa avaliar a cada mês ou mais e
descobrir a sua situação. Não temos de tratar conosco mesmos ou
com Deus, mas podemos usar o vocabulário da religião e trabalhar
num ambiente que reconheça Deus, tendo então a segurança de
que estamos fazendo algo importante.
Com os programas determinando a agenda —não a graça
admirável, não o pecado refratário - o pastor não tem de ser
paciente. Estabelecemos um alvo, preparamos uma estratégia,
recrutamos alguns soldados cristãos e avançamos. Se em dois ou
três anos os soldados não tiverem produzido, sacudimos a poei­
ra dos pés e aceitamos a oferta de outro grupo de mercenários.
Quando uma congregação não corresponde mais à nossa ambição,
ela é abandonada por outra sob o eufemismo de “um ministério
maior”. Na maioria dos casos, nossa impaciência é recompensada
com um salário mais alto.
O Apocalipse chama isto de exploração indesculpável. O
Ap ocalipse nos convence de que estamos todos numa situação
desesperada. A relva não é mais verde no próximo comitê, con­
gregação, ou Estado. Tudo o que importa é adorar a Deus, en-

55>
o Pastor Contemplativo

frentar o mal e aumentar a fidelidade. O Apocalipse desencadeia


um senso de urgência, mas suprime os atalhos e a pressa porque
os tempos estão nas mãos de Deus. A Providência e não o jornal
responde pelos tempos em que vivemos.
A impaciência - recusa em suportar—,é para o caráter pastoral
o que a mineração que faz uso de explosivos é para a terra - uma
violação gananciosa do que pode ser obtido ao menor custo e
depois abandonado em busca de outro posto para saquear. Algo
como a fidelidade surge do Apocalipse; fidelidade a Deus, é certo,
mas também às pessoas, à congregação —ao lugar.
João era paciente, ensinando aos cristãos em suas sete
menos que promissoras congregações a serem também pa­
cientes. Mas trata-se de uma paciência apocalíptica - não
acomodação ao tédio, não uma submissão de capacho. E uma
paciência de sequóia-gigante que despreza a redução de um
Evangelho glorioso a uma religião fa st-food . A paciência do
monte Rainier que escarnece do frenesi da pista expressa em
troca de um fim de semana com o Espírito. Quanto tempo
levou para a sequóia crescer? Quanto tempo foi necessário
para levantar o Rainier? O Apocalipse nos introduz na esfe­
ra do que é grande e amplo. Com João e suas congregações
adquirimos fidelidade às pessoas e ao lugar, a perseverança
fiel que respeita as complexidades de viver uma vida moral,
espiritual e litúrgica diante dos mistérios de Deus na confusão
da história.
A religião americana é conspícua pela sua energia messia-
nicamente pretensiosa, sua prosa desconcertantemente banal
e sua ambição impaciente e ativa. Nenhuma dessas marcas é
remotamente bíblica. Nenhuma está sequer evidente na história
do Evangelho. Todas são enfermidades perfeitamente documen-

60
o Pastor Apocalíptico

tadas do espírito. Os pastores correm o grande risco de serem os


portadores não-detectados do próprio mal que temos a respon­
sabilidade de diagnosticar e curar. Precisamos do mais poderoso
dos preventivos —algo como a oração e poesia apocalípticas e a
paciência do apóstolo João.

61
ENTRE OS
DOMINGOS
Capítulo 5

Ministério em Meio ao Movimento

De segunda a sábado, a visão de mim mesmo com o pastor, tão


clara na adoração do Dia do Senhor, está agora indistinta e
deturpada ao ser refletida pelos olhos das pessoas que se acham
confusas e estão sofrendo.

s domingos são fáceis. O santuário está limpo e em ordem,


O o simbolismo claro, as pessoas amáveis. Sei o que estou
fazendo: Vou dirigir este povo em oração, proclamar a palavra
de Deus para ele (povo), celebrar os sacramentos. Tive tempo
para preparar minhas palavras e meu espírito. As pessoas estão
prontas, chegam bem vestidas e esperançosas. Séculos de tradição
convergem nestes hinos cantados no domingo, juntamente com a
exposição das Escrituras, compromissos de fé, oferta de orações,
batismos, comer e beber a vida do Senhor. Isto me causa enorme
prazer. Acordo bem cedo no domingo, com a adrenalina bom­
beando em minhas veias.
Mas, depois que o sol se põe no domingo, a luminosidade
se esvai. De segunda até sábado, pessoas indisciplinadas deixam

65
0 Pastor Contemplativo

marcas de barro nos lugares sagrados, enlameando tudo. A ordem


da adoração dá lugar à desordem das discussões e dúvidas, corpos
doentes e emoções confusas, crianças mal comportadas e pais
desorientados. Não sei o que estou fazendo metade do tempo.
Sou interrompido, coberto de perguntas para as quais não tenho
respostas. Sou colocado em situações que não sei resolver. Des-
cubro-me tentando realizar tarefas para as quais não tenho aptidão
ou inclinação. A visão de mim mesmo como pastor, tão clara na
adoração do Dia do Senhor, está agora indistinta e deturpada,
ao ser refletida pelos olhos das pessoas que me vêem como um
fantoche para os seus egos. As afirmações que sinto nos cumpri­
mentos do domingo são agora precárias na lama escorregadia da
depreciação e das críticas.
Os domingos são importantes - comemorativos e essenciais.
O primeiro dia define e energiza nossas vidas por meio da res­
surreição do Senhor e dá à semana uma forma de ressurreição.
Mas, os seis dias entre os domingos têm a mesma importância,
embora não sejam tão comemorativos, pois são os dias aos quais
a forma da ressurreição é dada. Desde que grande parte do traba­
lho pastoral tem lugar nesses seis dias, uma atenção equivalente
deve ser conferida a eles, praticando a arte da oração em meio
ao movimento.

66
Capítulo 6

Cura de Almas: A Arte Esquecida

Bem-aventurados os humildes de espírito

Uma fa ia branca no Inverno,


Pondo a descoberto suas complexidades
Em contraste com o céu azul, ondeado
Nuvens, levando em seu vazio
maturescência: seiva pronta para elevar-se
A um sinal, brotos prestes a eclodir
Em folhas. Depois de um período de
Verão um círculo fin o para lembrar
As exuberantes promessas cumpridas.
N ovamente vazio em pobreza sábia
Que perm ite aos ramos se estenderem
Um m ilím etro a mais na direção do céu.
O tronco se expande levem ente
E lança raízes no fir m e
Eundamento, feliz p o r não ter folhas:
Lembrete decíduo para deixar que se vão.

67
o Pastor Contemplativo

u ma reforma pode estar em processo pela maneira como os


pastores fazem suas tarefas. Ela pode vir a ser tão importante
quanto a reforma teológica do século dezesseis. Espero que sim.
Os sinais estão se acumulando.
Os Reformadores recuperaram a doutrina bíblica da justi­
ficação pela fé. A proclamação do Evangelho, fresca, pessoal e
direta, se tornara através dos séculos um imenso e pesado meca­
nismo: engrenagens eclesiásticas laboriosamente planejadas, polias
e manivelas que roncavam e rangiam presunçosamente, acabaram
produzindo algo completamente trivial. Os Reformadores recupe­
raram a paixão pessoal e a clareza tão evidentes nas Escrituras. Esta
redescoberta de envolvimento resultou em vivacidade e força.
A reforma vocacional de nossos dias (caso venha a ser isso)
é uma redescoberta do serviço pastoral da cura de almas. A frase
parece antiga. E antiga, mas não obsoleta. Ela capta e coordena
melhor do que qualquer outra expressão que conheço, a guerra
incessante contra o pecado e o sofrimento, e o cultivo diligente
da graça e da fé; às quais os melhores pastores se consagraram em
cada geração. O som estranho da frase pode ser até vantajoso,
chamando atenção para quão remotas se tornaram as rotinas
pastorais de hoje.
Não sou o único pastor que descobriu esta velha identidade.
Mais e mais pastores estão adotando este modelo de trabalho pastoral
e se identificando com ele. Não há muitos de nós. Não somos, de
forma alguma, uma maioria, nem sequer uma minoria destacada.
Mas, um a um, os pastores estão rejeitando a descrição de trabalho
que lhes foi entregue e aceitando esta outra, ou seja, a antiga, que
tem estado em uso na maior parte dos séculos cristãos.
Não se trata de pura fantasia pensar que pode chegar uma
época em que esse número aumente de tal maneira que efetue uma

68
Cura de Almas: A Arte Esquecida

reforma vocacional genuína entre os pastores. Mesmo que isso


não aconteça, parece-me ser a coisa mais significativa e criativa
que está ocorrendo no ministério pastoral hoje.
Há uma distinção entre o que os pastores fazem aos domin­
gos e o que nós fazemos no intervalo entre os domingos. O que
fazemos aos domingos não mudou realmente através dos séculos:
proclamar o Evangelho, ensinar a Escrituras, celebrar os sacramen­
tos, oferecer orações. Mas, o trabalho entre os domingos mudou
radicalmente e não constituiu um progresso, mas uma deserção.
Até há cerca de um século, os pastores faziam durante a
semana praticamente a mesma coisa que aos domingos. O con­
texto mudou; em vez de uma congregação reunida, o pastor ficava
com uma pessoa ou com pequenos grupos de pessoas, ou sozinho
estudando e orando. A maneira mudou: em vez de proclamação,
havia conversação. Mas o trabalho era o mesmo: descobrir o
significado da Escrituras, desenvolver uma vida de oração, guiar
o crescimento em direção à maturidade.
Esta é a tarefa pastoral historicamente chamada de cura de
almas. O principal sentido de “cura” em latim é “cuidado”, com
nuanças de “recuperação”. A alma é a essência da personalidade
humana. A cura de almas é então o cuidado dirigido para as Es­
crituras, cuidado em forma de oração por uma única pessoa ou por
grupos, num cenário sagrado ou profano. E uma determinação
de trabalhar no centro das coisas, de concentrar-se no essencial.
A tarefa dos pastores entre os domingos neste século, entre­
tanto, é dirigir uma Igreja. Ouvi pela primeira vez a frase alguns
dias antes da minha ordenação. Depois de trinta anos, posso ainda
lembrar da impressão desagradável que me causou.
Eu estava viajando com um pastor por quem tinha grande
respeito. Sentia-me cheio de zelo e visão, na expectativa da vida
o Pastor Contemplativo

pastoral. Minha convicção íntima de chamado para o pastorado


estava prestes a ser confirmada por outros. Havería agora uma
convergência do que Deus queria que eu fizesse, do que eu queria
fazer, e do que outros queriam que eu fizesse.
Com base em muitas leituras sobre os predecessores do pastor
e do sacerdote, minha impressão era que a existência diária do
pastor se concentrava no desenvolvimento de uma vida de oração
entre as pessoas. Liderar a adoração, pregar o Evangelho e ensinar
a Escrituras aos domingos iria transformar-se nos seis dias seguintes
numa representação da vida de Cristo no cotidiano do povo.
Com a mente cheia desses pensamentos, meu amigo pastor
e eu paramos num posto de gasolina. Meu amigo, uma pessoa
extrovertida, brincou com o frentista. Algo na troca de palavras
provocou uma pergunta:
“O que o senhor faz?”
“Dirijo uma igreja”.
Nenhuma resposta teria me deixado mais surpreso. É claro
que eu sabia que a vida pastoral incluía responsabilidades ins­
titucionais, mas jamais me ocorreu que eu viria a ser definido
por essas responsabilidades. No momento em que fui ordenado,
porém, verifiquei que era definido dessa forma pelos pastores
e executivos meus superiores e pelos irmãos que me rodeavam.
A primeira descrição de trabalho que me foi entregue omitia
completamente a oração.
Pelas minhas costas, enquanto minha identidade pastoral
estava sendo formada por Gregory e Bernard, Lutero e Calvino,
Richard Baxter de Kidderminster e Nicholas Ferrar de Little
Gidding, George Herbert e Jonathan Edwards, John Henry New^-
man e Alexander Whyte, Phillips Brooks e George MacDonald, o
trabalho do pastor havia sido quase completamente secularizado

70
Cura de Almas: A Arte Esquecida

(exceto para os domingos). Não gostei disso e decidi, depois de


um intervalo de desorientação confusa, que ser um médico de
almas tinha prioridade sobre dirigir uma igreja e que eu seria
guiado em minha vocação pastoral por predecessores sábios e não
por contemporâneos. Graças a Deus, encontrei aliados ao longo
do caminho e disposição entre meus paroquianos para trabalhar
comigo na mudança da minha descrição de trabalho.
Deve ficar claro que a cura de almas não é uma forma especiali­
zada de ministério (análogo, por exemplo, ao do capelão de hospital
ou do conselheiro pastoral), mas é o trabalho pastoral básico. Não
se trata de limitar o trabalho pastoral aos seus aspectos devocionais,
mas é um estilo de vida que usa as tarefas dos dias de semana, os
encontros e as situações, como matéria-prima para ensinar a orar,
desenvolver a fé e preparar o indivíduo para uma boa morte. Curar
almas é um termo que remove o que foi introduzido por uma cul­
tura secularizada. E igualmente um termo que nos identifica com
nossos ancestrais e colegas no ministério leigo e clerical, que estão
convencidos de que a vida de oração é o tecido que liga a proclama­
ção feita no dia santo e o discipulado nos dias de semana.
Uma advertência: Contrasto a cura de almas com a tarefa de
dirigir uma igreja, mas não quero ser mal compreendido. Não
menosprezo a idéia de dirigir uma igreja, nem descarto a sua
importância. Na verdade, dirijo também uma igreja; faço isso há
mais de vinte anos e tento fazer bem o meu serviço.
Mas, eu o faço com o mesmo espírito que, juntamente com
minha esposa, dirijo minha casa. Há muitas coisas essenciais
que fazemos rotineiramente, muitas vezes (mas nem sempre)
com alegria. Dirigir uma casa não é, no entanto, o que fazemos.
Nós construímos um lar, aprimoramos nosso casamento, criamos
nossos filhos, praticamos a hospitalidade, temos uma vida de tra-

71
o Pastor Contemplativo

balho e distração. Meu protesto é contra a redução do trabalho


pastoral aos deveres institucionais e não contra os deveres em si,
que compartilho alegremente com outros na igreja.
Não adianta desafiar obstinadamente as expectativas das
pessoas e realizar as tarefas pastorais excentricamente como um
cura do século dezessete, mesmo que o cura excêntrico seja muito
mais sensato do que o clero atual. A recuperação deste trabalho
primordial executado pelo pastor entre os domingos deve ser exer­
cida em tensão com as expectativas seculares desta era: é preciso
haver negociação, discussão, experimentação, confronto, adapta­
ção. Os pastores que se dedicam a guiar almas devem fazê-lo entre
pessoas que esperam que eles dirijam uma igreja. Numa tensão
determinada e amável com aqueles que decidem irrefletidamente
preparar descrições de trabalho para nós, estou convencido de que
podemos recuperar a tarefa que nos cabe.
Os pastores que decidem reivindicar o vasto território da alma
como sua principal responsabilidade, não farão isso afastando-se
para obter um novo treinamento. Devemos trabalhar in loco, pois
não estamos restaurando (removendo a secularização) apenas a nós
mesmos, mas também ao nosso povo. A tarefa da recuperação vo­
cacional é tão infindável quanto a reforma teológica. Os detalhes
variam de acordo com o pastor e a congregação, mas há três áreas
de contraste entre dirigir uma igreja e a cura de almas que todos
compartilhamos: iniciativa, linguagem, e problemas.

Iniciativa

Ao dirigir uma igreja, a iniciativa é minha. Eu sou o encarregado.


Eu me responsabilizo pela motivação e recrutamento, por indicar

72
Cura de Almas: A Arte Esquecida

o caminho, por dar início ao trabalho. Se não fizer isso, as coisas


não funcionam. Tenho conhecimento da tendência à apatia, da
susceptibilidade humana à indolência e uso minha posição de
liderança para impedir isso.
Em contraste, a cura de almas é uma percepção cultivada
de que Deus já tomou a iniciativa. A doutrina tradicional que
define esta verdade é o precedente; Deus em toda parte e sempre
tomando a iniciativa. Ele faz as coisas funcionarem. Ele tinha e
continua tendo a primeira palavra. É a convicção de que Deus
tem estado trabalhando diligente, redentora e estrategicamente
antes que eu aparecesse em cena, antes que percebesse que havia
ali alguma coisa para eu fazer.
A cura de almas não é indiferente às realidades da letargia hu­
mana, ingênua sobre a recalcitrância congregacional, ou desatenta
à obstinação neurótica. Existe, porém, uma convicção discipli­
nada, decidida, de que tudo (e quero dizer exatamente tudo) que
fazemos é uma resposta à primeira obra de Deus, Seu ato inicial.
Aprendemos a ficar atentos à ação divina já em processo, a fim
de que a palavra ainda não conhecida de Deus seja ouvida, o ato
antes negligenciado de Deus seja notado.
Perguntas sobre dirigir a Igreja: O que devemos fazer? Como
fazer as coisas funcionarem outra vez?
Perguntas sobre a cura de almas: O que Deus tem feito aqui?
Que traços da graça posso discernir nesta vida? Que história de
amor posso ler neste grupo? O que Deus pôs em movimento,
que posso participar?
Não compreendemos e deturpamos a realidade quando faze­
mos de nós mesmos o ponto de partida e nossa situação presente
como o dado básico. Em vez de confrontar a condição humana
deteriorada e determinar mudá-la sem perda de tempo, olhamos

73
o Pastor Contemplativo

para o precedente divino e discernimos como podemos inserir-nos


nele na hora exata, da maneira certa.
A cura de almas toma tempo para ler os minutos do encontro
anterior, uma reunião à qual eu provavelmente não estive presente.
Quando converso, me reuno com um comitê, ou visito um lar,
estou participando de algo que já estava em processo há muito
tempo. Deus foi e é a realidade central nesse processo. A convic­
ção bíblica é que Deus está “há muito com a minha alma”. Deus
já tomou a iniciativa. Como alguém que entra atrasado numa
reunião, estou entrando numa situação complexa na qual Deus já
pronunciou palavras decisivas e agiu de maneira decisiva. Minha
tarefa não é necessariamente anunciar isso, mas descobrir o que
Ele está fazendo e viver adequadamente nessa conformidade.
Ao dirigir a igreja, uso linguagem descritiva e motivacional.
Quero que as pessoas sejam informadas para que não haja mal­
entendidos. Pretendo também que as pessoas sejam motivadas
para que os objetivos venham a ser alcançados. Mas, na cura de
almas tenho interesse muito maior em saber quem são as pessoas
e quem elas estão se tornando em Cristo, do que naquilo que
sabem ou fazem. Neste aspecto, percebo que nem a linguagem
descritiva nem a motivacional é de grande ajuda.
A linguagem descritiva é uma linguagem sobre —th. menciona
o que existe. Orienta-nos na realidade. Torna possível descobrir
um caminho para entrar e sair de labirintos complicados. Nossas
escolas se especializam em ensinar-nos esta linguagem. A lingua­
gem motivacional é uma linguagem para —ela usa palavras para
que as coisas sejam feitas. Ordens são dadas, promessas e pedidos
feitos. Tais palavras levam as pessoas a fazer coisas que não fariam
por iniciativa própria. A indústria publicitária é a que melhor
prática esta arte da linguagem.

74
Cura de Almas: A Arte Esquecida

Por mais indispensáveis que sejam esses usos da linguagem,


há uma outra linguagem mais essencial à nossa humanidade e
muito mais básica para a vida de fé. E a linguagem pessoal. Ela
usa palavras para se expressar, conversar, relacionar-se. Esta é a
linguagem para e com. Amor é oferecido e recebido, idéias são
desenvolvidas, sentimentos são articulados, silêncios são honrados.
Esta é a linguagem que falamos espontaneamente como crianças,
amantes e poetas - e quando oramos. Fica também visivelmente
ausente quando dirigimos uma igreja —há tanto a dizer e fazer
que não sobra tempo para ser e, portanto, não há oportunidade
para a linguagem do estar presente.
A cura de almas é uma decisão de trabalhar no âmago das coi­
sas, onde somos mais nós mesmos e onde nossos relacionamentos
em fé e intimidade são desenvolvidos. A linguagem principal deve
ser, p o r t a n t o , e com, a linguagem pessoal do amor e da oração.
A vocação pessoal não tem lugar numa escola onde matérias são
ensinadas, nem em barracas onde forças de ataque são instruídas
sobre o mal, mas, numa família - o lugar onde o amor é aprendido,
quando nascimentos acontecem, onde a intimidade é aprofundada.
A tarefa pastoral é usar a linguagem apropriada neste aspecto mais
básico da nossa humanidade - não uma linguagem que descreve
nem motiva, mas linguagem espontânea: gritos e exclamações,
confissões e apreciações, palavras faladas pelo coração.
Como é natural, temos muito a ensinar e muito a fazer, mas
nossa tarefa principal é ser. A linguagem primária da cura de
almas é, portanto, a conversação e a oração. Ser pastor significa
aprender a usar linguagem em que a individualidade é acentuada e
a santidade individual reconhecida e respeitada. É uma linguagem
calma, espontânea, não exacerbada - a linguagem tranqüila dos
amigos e amantes, que é também a linguagem da oração.

75
o Pastor Contemplativo

Problemas

Ao dirigir uma igreja resolvo conflitos. Onde quer que dois ou


três estejam reunidos, surgem problemas. Egos são magoados,
procedimentos reprovados, programas se confundem, planos fa­
lham. Existem problemas políticos, conjugais, de trabalho, com os
filhos, com as comissões e problemas emocionais. Alguém precisa
interpretar, explicar, fazer novos planos, preparar procedimentos
melhores, organizar e administrar. A maioria dos pastores gosta
disto. Sei que gosto. É agradável aparar as arestas.
A dificuldade está em que os problemas surgem num fluxo
constante de modo a tornar sua solução uma tarefa de tempo
integral. Em vista de ser algo útil e do pastor no geral ter um
bom desempenho, deixamos de notar que a vocação pastoral foi
subvertida. Gabriel Marcei escreveu que a vida não é tanto um
problema a ser resolvido como um mistério a ser explorado. Esta
é certamente a posição bíblica: a vida não é algo que consegui­
mos manter unido usando um martelo e continuamos a consertar
mediante a nossa habilidade; é um dom imperscrutável. Estamos
imersos em mistérios: amor incrível, mal desconcertante, a Cria­
ção, a cruz, graça. Deus.
A mente secular fica aterrorizada pelos mistérios. Faz en­
tão listas, rotula pessoas, determina papéis, e resolve problemas.
Mas uma vida resolvida é uma vida reduzida. As pessoas desse
tipo nunca aceitam grandes riscos de fé nem falam de amor com
convicção. Elas negam ou ignoram os mistérios e diminuem a
existência humana, reduzindo-a ao que pode ser dirigido, con­
trolado e consertado. Vivemos numa seita de especialistas que
explicam e resolvem. Os enormes equipamentos tecnológicos
que nos rodeiam dão a impressão de que há uma ferramenta para
76
Cura de Almas: A Arte Esquecida

tudo, basta que possamos adquiri-la. Os pastores arremessados ao


papel de tecnólogos espirituais têm dificuldade em impedir que
esse papel absorva tudo o mais, desde que há tantas coisas que
precisam ser e podem, de fato, ser consertadas.
“Existem, porém, coisas...”, escreveu Marianne Moore,
“...mais importantes do que todas essas insignificâncias.” O
guia antigo de almas afirma a prioridade do “além” sobre “esta
vida”. Quem está disponível para o trabalho a não ser os pastores?
Alguns poetas, talvez; e as crianças, sempre. Mas, as crianças
não são bons guias e a maioria dos nossos poetas perdeu o in­
teresse em Deus. Isso deixa os pastores como guias através dos
mistérios. Século após século vivemos com a nossa consciência,
nossas paixões, nossos vizinhos, e nosso Deus. Qualquer visão
mais estreita de nossos relacionamentos não corresponde à nossa
verdadeira humanidade.
Se os pastores se tornarem cúmplices ao tratar cada crian­
ça como um problema a ser calculado, cada cônjuge como um
problema a ser tratado, cada conflito de vontades no coral ou
comitê como um problema a ser julgado, abdicamos de nosso
trabalho mais importante, que é dirigir a adoração em meio ao
movimento, descobrir a presença da cruz nos paradoxos e no caos
entre os domingos, chamando atenção para o “esplendor no que
é comum”, e, mais que tudo, ensinar uma vida de oração a nossos
amigos e companheiros de peregrinação.

77
Capítulo 7

Orando de Olhos Abertos

Bem-Aventurados os que Choram

Inundações de lágrimas, torrentes delas,


Erodem desfiladeiros cruéis, expondo
Estratos de vida há muito esquecidos
Acumulados ao correr das décadas tranqüilas:
A beleza dos terrenos erodidos. O mesmo sol
Que dá colorido a cada dia
Nos arroios e mesas, mostra também
Cada velha cicatriz e ferim ento dolorido.
O choro limpa as feridas
E as deixa para serem curadas, o que sempre
Demora uma ou duas eras. Nenhum sofrim ento
Efe io no tempo passado. Sob
A M isericórdia cada ferid a é um elo
Fossilizado na grande cadeia da transformação.
Orações como picaretas e pás muitas vezes
Os revelam com o vales de morte.
79
0 Pastor Contemplativo

escritora Annie Dillard é uma exegeta da Criação, da mesma


A " orma que João Calvino foi um exegeta das Escrituras Sagra­
das. A paixão e inteligência que Calvino mostra em Moisés, Isaías
e Paulo, Dillard revela nos ratos almiscarados e nos tordos. Ela lê
o livro da Criação com o cuidado e a intensidade de um crítico
textual especializado, sondando e questionando com todos os ins­
trumentos da mente e do espírito o significado do autor. Calvino
não era indiferente à Criação. Ele se referia com freqüência ao
mundo à nossa volta como um “teatro da glória de Deus”. Des­
creveu a assombrosa performance do Criador ao arranjar os com­
ponentes do cosmos. Estava convencido da importância teológica
da doutrina da Criação e sabia que compreender essa doutrina era
essencial para proteger-se contra o gnosticismo e o maniqueísmo:
ameaças onipresentes à integridade da encarnação.
A matéria é real. A carne é boa. Sem raízes firmes na Cria­
ção, a religião está sempre se desviando para algum tipo de senti-
mentalismo piedoso ou intelectualismo sofisticado. A tarefa da
Salvação não é transformar-nos em espíritos puros, para que não
sejamos sobrecarregados por esta carne demasiado sólida. Não
somos anjos, nem iremos tornar-nos anjos. A Palavra não se tor­
nou uma boa idéia ou um sentimento divino, ou uma aspiração
moral; a Palavra se fez carne. Ela também se faz carne. O Senhor
deixou-nos ordem para nos lembrarmos d’Ele e recebê-Lo no pão
e no vinho, nos atos de comer e beber. A matéria é importante.
O físico é santo. É extremamente significativo que nas primeiras
sentenças da Bíblia, Deus fala e faz surgir um mundo de energia e
matéria: luz, lua, estrelas, terra, vegetação, animais, homem, mu­
lher (não amor e virtude, fé e Salvação, esperança e juízo, embora
isso venha logo em seguida). Em separado da Criação a aliança
não tem estrutura, contexto ou raiz na realidade.

80
Orando de Olhos Abertos

Calvino sabia de tudo isso, apreciava e ensinava essas coisas.


Mas, curiosamente, ele nunca pareceu ter comprado um bilhete
para o teatro. Nunca entrou e assistiu ao espetáculo. Ele viveu na
maior parte do seu ministério adulto em Genebra, Suíça, um dos
lugares mais espetacularmente belos da Terra. Nunca fez qualquer
comentário sobre as montanhas que arremessavam seus cumes para
os céus. Nunca se mostrou reverente ante o rugir de uma avalanche.
Não há evidência de que ele jamais tenha parado para admirar as
flores preciosas nos prados alpinos. Ele não tinha o hábito de levan­
tar os olhos dos livros e meditar diante do lago que refletia o céu,
enfeitando a cidade. Não queria ser distraído desta exegese bíblica
indo ao teatro, mesmo ao teatro legítimo da glória de Deus.

Assento nas Coxias na Glória de Deus

Annie Dillard tem um bilhete para a temporada desse teatro. Dia


após dia ela ocupa seu assento nas coxias e assiste ao espetáculo,
deixando-se envolver pelo drama da criação. Pilgrim at Tinker
Creek (O Peregrino no Riacho do Funileiro) é um diário contem­
plativo de seu comparecimento ao teatro durante o curso de um
ano. Ela fica sem fôlego de tão reverente. Chora e ri e, por sua
vez, fica intrigada e consternada. Annie Dillard não é uma espec­
tadora complacente. Durante os intervalos, ela não tem escrúpulos
em encontrar defeitos no escritor ou na peça. Nem tudo é como
gosta e algumas cenas a levam quase à repugnância. Volta, porém,
sempre à ação e acaba aplaudindo de pé: “Bis! Bis!”

Penso que os agonizantes não oram no final “por favor”,


mas “obrigado”, como um hóspede agradece ao anfitrião

81
o Pastor Contemplativo

ao sair. Quando um avião cai, as pessoas gritam “obrigado,


obrigado”, enquanto despencam no ar; e as carruagens frias as
esperam nas rochas. O universo não foi feito por brincadeira,
mas com seriedade solene e incompreensível. Por meio de um
poder insondável e secreto, assim como santo e rápido. Não
há nada que possa ser feito quanto a ele, além de ignorá-lo ou
apreciá-lo. Como Billy Bray, sigo o meu caminho e meu pé
esquerdo diz “Glória” enquanto o direito responde, “Amém”;
dentro e fora de Shadow Creek (Riacho das Sombras), rio
acima e abaixo, exultante, deslumbrada, dançando ao som
das trombetas gêmeas, de prata, do louvor.

Pilgrim at Tinker Creek foi publicado em 1974 quando Dillard


tinha 28 anos e ganhou o prêmio Pulitzer e recebeu aplausos em
toda parte, embora de curta duração. Nada do que ela escreveu
posteriormente teve a mesma receptividade. E uma pena, porque
a espiritualidade contemporânea precisa dela.
Sua simplicidade (o telefonema que informou sobre o rece­
bimento do prêmio Pulitzer, tirou-a de um jogo de sofiball em
que atuava na segunda base) e sua beleza jovem (ela tem cabelos
louros e longos e um sorriso atraente) justificam talvez a falha em
levá-la a sério como teóloga mística, o que ela certamente é.
Livros subseqüentes fizeram progredir a articulação de sua
espiritualidade. Holy the Firm (1977) enfrenta o sofrimento
numa agonia selvagem, inesquecível. Teaching a Stone to Talk
(Ensinando uma Pedra a Falar), leva pilares e torres de vigia das
costas do Atlântico ao Pacífico e a ambos os hemisférios america­
nos, contemplativamente alertas para a voz e a presença sagradas.
Living by Fiction (Vivendo pela Ficção), 1982, muda levemente
de terreno, buscando significado no que as pessoas criam com as

52
Orando de Olhos Abertos

palavras (ficções), usando as mesmas disciplinas críticas e contem­


plativas com que ela examina o que Deus cria com a palavra. Seu
primeiro volume de poesias, Tickets fo r a Prayer Wheel (Bilhetes
para uma Roda de Oração), fornece muitos dos textos e imagens
desenvolvidos nas obras em prosa.

O M undo de Deus em Tinker Creek

Riacho das Sombras. Ele começou como Tinker Creek (Riacho


do Funileiro), exuberante de vida: “O criador muda de rumo de
maneira violenta e específica a toda hora, ou faz milhares de mu­
danças simultaneamente, com um vigor que parece injustificado
e com uma energia nascida de uma fonte incomensurável. O
que está acontecendo aqui...que tudo corre tão livremente como
o riacho, que tudo avança num entrelaçamento franjado e livre?
A liberdade é a água e o tempo do mundo, a alimentação do
mundo oferecida gratuitamente, seu solo e sua seiva; e o criador
5)
ama pizzas .
Certa noite, porém, quando estava caminhando, Tinker
Creek desapareceu e Shadow Creek tomou conta de suas mar­
gens. O significado veio do riacho. A imbecilidade substituiu a
beleza. Mas, mesmo assim ela louva. Formas escuras invadiram:
o inseto gigante da água, o lábio terrível da libélula, a mandíbula
do louva-a-deus, os parasitas que constituem dez por cento das
criaturas vivas (ela os chama de “dízimo do diabo”). Brutalidade,
dor, insensatez, desperdício. “A sombra é o cantinho azul onde
a luz não chega”.
E fácil “apreciar a natureza” quando o sol está brilhando e os
pássaros cantam. E bem mais difícil quando temos de enfrentar e

83
o Pastor Contemplativo

lidar com a crueldade e o terror que a Criação também dispensa


em grandes porções. A maneira como lidamos com o “cantinho
azul onde a luz não chega” é o teste para a exegese da Criação. É
este teste que empurra Dillard para uma vocação religiosa, para
as ordens santas.
Annie Dillard não se inclina à apreciação da natureza; ela
não tagarela sobre o divino. Não é também uma explicadora,
adequando a existência a um diagrama organizado. “Essas coisas”,
diz ela, “não são questões; são mistérios”. Annie quer perseguir
caças maiores; buscar significado, glória. Deus. Como se fora um
atalho em sua busca, ela não irá deixar de lado um único detalhe da
assombrosa imbecilidade que encontra nas sombras, nas trevas.
E neste ponto que se separa da maioria de seus contemporâ­
neos e se torna uma aliada valiosa na peregrinação cristã. Evitando
os territórios dos humanistas neopagãos que vão para o deserto a
fim de renovar seus espíritos, e os cientistas neodarwinianos que
arrastam espécimes para as salas de aula a fim de explicá-los, ela
explora o texto do mundo com as ferramentas antigas, mas fora
de moda, como o sacrifício e a oração. Abraça as disciplinas espi­
rituais, a fim de lidar com um Criador e uma Criação. “Podemos
então pelo menos gritar a pergunta certa para o grupo das trevas,
ou, se for o caso, cantar em coro o louvor apropriado.”
As pessoas da Idade Média que se retiraram da agitação di­
ária para contemplar os caminhos de Deus e os mistérios do ser,
entregando-se a uma vida de sacrifício e oração, foram chamadas
de anacoretas (eremitas, ermitãos; do grego anachoreo, retirar-se
para um lugar isolado). Eles viviam geralmente em cabanas pre­
sas às paredes de uma igreja. Essas choças sobressalentes tinham
quase sempre uma janela para o mundo, através da qual a freira
ou o monge recebiam os sinais e os sons da Criação como detalhes

84
Orando de Olhos Abertos

para a contemplação. Esses cubículos eram chamados de refúgio.


Dillard, dá esse nome à sua cabana em Tinker Creek e brinca com
a palavra: “Penso nesta casa presa às margens do riacho Tinker
como um refúgio. Ela me ancora ao fundo rochoso da corrente
propriamente dita e me mantém firme na correnteza, como faz a
âncora no mar, de frente para o caudal de luz que se derrama. E um
bom lugar para viver; há muitas coisas sobre as quais pensar”.
Ela anuncia seu programa exegético. Primeiro, o mistério ativo
dos riachos: “O deles é o mistério da Criação contínua e tudo o que
a providência implica; a incerteza da visão, o horror do que é fixo,
a dissolução da presença, a complexidade da beleza, a natureza da
perfeição”. E depois o mistério passivo das montanhas: “O delas é
o mistério simples da Criação extraída do nada, da matéria em si,
qualquer coisa, o que foi determinado. As montanhas são formidá­
veis, repousantes, absorventes. Você pode erguer seu espírito para a
montanha e ela o manterá dobrado e não vai atirá-lo de volta como
acontece com alguns riachos. Os riachos são o mundo com todo o
seu estímulo e beleza; eu vivo ali. Mas as montanhas são o lar”.
Fica claro agora que esta não é uma exegese acadêmica,
pesando e medindo, selecionando e analisando. É uma exegese
contemplativa, recebendo e oferecendo, imaginando e orando.
Ela descreve a sua vocação como uma mistura de freira, pensadora
e artista: “A freira vive no fogo do espírito, o pensador vive no
pavio brilhante da mente, o artista vive espremido no depósito de
materiais. (Ou, a freira vive, pensativa e forte, na mente, e com
essa pungência peculiar aos religiosos, na ausência de materiais;
o pensador, que pensa em algo, vive em meio ao estrépito dos
materiais e no mundo do espírito, onde os pensamentos devem
ter a primazia; enquanto o artista vive na mente, esse reservatório
de formas; e, como é natural, vive no espírito)”.

55
o Pastor Contemplativo

Sua autocompreensão vocacional é mais clara em Holy the


Firm (Santo, o Resoluto), escrito em três partes, como resultado
contemplativo de três dias consecutivos em sua vida, quando
morava numa ilha no Estreito de Puget.
Ela desperta em 18 de novembro. O mundo entra pela sua
janela panorâmica (“Moro em um quarto, onde uma das paredes
é de vidro”) e fica atordoada com a divindade; “Todo dia é um
deus, cada dia é um deus, e a santidade se manifesta no tempo”.
Ela “lê” o mundo como um escrito sagrado; “O mundo a meus
pés, o mundo através da janela, é um manuscrito iluminado
cujas folhas o vento leva, uma a uma, cujas iluminuras pintadas
e palavras hesitantes me atraem, uma a uma, e fico deslumbrada
e perdida nos dias”.
Ela busca orientação. Desenha um mapa das ilhas visíveis no
horizonte, estabelecendo a sua localização, dando a elas nomes. Ela
está olhando em volta, vendo, cheirando, ouvindo; “O dia inteiro
me sinto criada...gaivotas criadas bicam o ar, rasgam grandes fendas
no ar parado; recebo surpresa minha refeição criada”.
Mesmo assim, nem tudo está bem. Ela se lembra de uma noi­
te nas montanhas da Virgínia enquanto lia à luz de velas, quando
mariposas começaram a ser atraídas pelas chamas. Uma mariposa
incinerada serviu de pavio à vela e a chama subiu por ela, “uma
chama amarelo-laranja que a vestiu até o chão como um monge
imolado”. H ádorali. E morte. Há também um imenso mistério,
algo que tem a ver com sacrifício; a morte produz luz. O livro que
está lendo fala do poeta Rimbaud que se deixou queimar na vida
da arte, palavras chamejantes que iluminam o mundo.
O dia, mesmo assim, é incrivelmente fresco e cheio de
promessas. Ela nota que armênios, judeus e católicos salgam,
todos eles, os seus recém-nascidos. E todas as primícias que

86
Orando de Olhos Abertos

Israel levou ao Senhor eram “uma aliança de sal” preservada e


aromática. E o “deus de hoje é uma criança, um bebê recém-
nascido que enche a casa, notavelmente aqui na carne. Ele é
o dia”. Ela salga o dia, como salga os ovos do café da manhã,
esperando delícias, exultante.
A 19 de novembro, um avião se espatifa num campo pró­
ximo. Ela ouve o som da queda. O piloto tira a filha de 7 anos
dos destroços, e enquanto a remove, um jato de combustível em
chamas espirra no rosto dela e a queima horrivelmente. Em 18
de novembro ela escreveu; “Vim aqui para estudar coisas difíceis,
montanha rochosa e mar salgado, e para temperar meu espírito em
suas arestas. ‘Ensina-me os teus caminhos. Senhor’, como todas as
orações, é um pedido ousado e que não posso senão recomendar”.
Ela não imaginara ter de lidar com uma garotinha de sete anos
com o rosto queimado.
Em 18 de novembro. Deus “articulou tudo que existe, e tudo
com santidade”. Agora, 19 de novembro, uma criança está no
hospital com os pais sofrendo ao seu lado e “Eu sento à janela,
mastigando os ossos de meu pulso e orando por eles...Quem nos
ensinará a orar? O deus de hoje é uma geleira. Vivemos em suas
brechas em movimento, sem ser ouvidos. O deus de hoje é um
delinqüente, um incendiário, um rebelde com uma pitada de
poder numa competição”.
O que Deus pensa em fazer? O que é real? O que é ilusão?
Ela faz todas as perguntas difíceis; “Deus tem parte nisto? Existe
alguma coisa fixa, ou o tempo está liberado? Cristo desceu uma
só vez e para todos sem um propósito definido, numa espécie
de suicídio divino e kenótico ou ascende de uma vez por todas,
puxando a sua cruz como uma escada de cordas que levasse para
casa após Ele?” E ela enfrenta o pior; “Estamos rolando em um

S7
o Pastor Contemplativo

mundo em declínio, de tempo sem significado, e rolando livre­


mente, como uma das maçãs de ouro de Atalanta, uma ninharia
atirada e esquecida, caduca, e os deuses em fuga”.
Ela olha para o mundo pela sua janela e vê no horizonte
uma ilha que não havia notado antes. Ela a chama de Dente
de Deus.
No dia 20 de novembro, a autora caminha até a praia para
comprar o vinho da comunhão, a fim de preparar-se para a ado­
ração de domingo na igreja Congregacional, toda branca em meio
aos pinheiros. Há alguma justificativa para esta justaposição do
melhor e do pior, esta grandeza e esta obscenidade dos dois últi­
mos dias? Ela lembra e medita sobre a idéia medieval de que há
uma substância criada na base absoluta de tudo, bem no fundo,
“na profundidade maleável dos planetas, mas nunca em sua su­
perfície onde os homens possam discerni-la; e ela está em contato
com o Absoluto, na base...o nome desta substância é: Santo, o
Resoluto. Tudo acaba tocando nela. Algo que toca em Santo o
Resoluto está em contato com o Absoluto, com Deus. As ilhas
estão arraigadas n’Ele, assim como as árvores e a menininha com
o rosto desfigurado.
Duas semanas antes, os pais da menina haviam convidado
dezesseis vizinhos para a sua fazenda, a fim de fabricarem cidra.
Dillard levou sua gata e a menina brincou com ele a tarde toda.
“Passou o dia vestindo e despindo a gata amarela, colocando nela
uma roupa negra e longa, feita com muito pano como a das frei­
ras”. Ela e a menina tinham a mesma aparência.
Ela chama sua amiguinha-sósia de Julie Norwich. Juliana
de Norwich era uma freira do século XIV, uma anacoreta, que
enfrentou corajosamente, durante uma vida de sofrimentos, a dor
do mundo face a face, e resumiu sua contemplação na notável

88
Orando de Olhos Abertos

sentença: “E tudo acabará bem, acabará bem, e todas as coisas aca­


barão bem”. Vinda de qualquer outra pessoa essa sentença pareceria
ridícula, mas desta freira, “refletida e forte...afastada de tudo que
é material”, é uma verdade temperada, flexível e sólida.
Dillard dá o nome da freira cuja vida de oração transformou
a dor em bem-estar para a menina que duas semanas antes tinha
um rosto como o seu. Mas, agora atribui todo conceito de beleza,
significado e Deus ao acaso, e em oração intercessória se dirige a
ela: “Presa pelo amor no mundo, como a mariposa na cera, sua
vida um pavio, sua cabeça em fogo de oração, completamente
presa, por fora e por dentro, você dorme sozinha, se chama a isso
estar só, clamando a Deus”. Ela a convida para a plenitude e
bondade da vida nos anos após a sua cura. “Manhãs em que vai
assobiar, cheia do prazer dos dias e tardes disto ou daquilo, e as
noites gritam amor. Viva então.”
Depois, há uma reviravolta abrupta em sua vocação. Ela
observara anteriormente que “uma vida sem sacrifícios é abomina-
ção”. Agora abraça este sacrifício, queimando numa vida de arte,
pensamento e oração, durante as horas canônicas. Embora “em
outros lugares as pessoas comprem sapatos”, ela se ajoelha junto ao
altar, agarrando-se a ele no torvelinho da glória e da brutalidade,
e chama Julie Norwich. As últimas palavras do livro: “Vou ser a
freira para você. Já sou agora”.

Um Mundo de Escrituras

Embora o seu campo seja a Criação e não a exegese bíblica, penso


que Calvino não se desagradaria da competência de Dillard no
exame das Escrituras. Ela assimilou de tal forma as Escrituras, está

89
o Pastor Contemplativo

tão saturada com as suas cadências e imagens, que a mesma fica


simplesmente à mão, sem ser solicitada, como contexto e metáfora
para o que quer que esteja escrevendo. Ela não emprega, porém,
as Escrituras para provar ou documentar; não é uma verdade que
“usa”, mas uma verdade que vive. Seu conhecimento bíblico está
depositado em seu hemisfério direito e não no esquerdo; é alimento
para a imaginação que ora em vez de combustível para uma dis­
cussão apologética. Dillard raramente cita as Escrituras, embora
aluda constantemente a ela. E difícil encontrar uma página que
não contenha uma ou várias alusões, mas usadas com tal displicên­
cia, não permitindo que a mão esquerda saiba o que a direita está
fazendo, que alguém não familiarizado com as Escrituras talvez
nunca viesse a notar o preceito e a história bíblica.
O mundo verbal da Escrituras é o amplo mundo em que
ela dá sua atenção à palavra não-verbal da Criação. A palavra
revelada da Torá e do Evangelho é o ambiente espaçoso em que
ela busca os significados locais de sicômoros, doninhas, eclipses,
e carpas douradas. Um senso de proporção brota da sua leitura
bíblica, na qual a chamada revelação “geral” está subordinada e
incluída na revelação “especial” da Escrituras. Ela provavelmente
concordaria, penso eu, com P.T. Forsyth: “Foi uma vasta Criação,
mas uma Salvação ainda mais vasta”.
Um exemplo: O título do ensaio em Teachinga Stone to Talk,
onde conto dezessete alusões à Escritura Sagrada (sem incluir as
repetições) e três citações. Ela conta a história de Larry, seu vizinho
numa ilha do Estreito Puget, que está tentando ensinar uma pedra
a falar. Ele guarda a pedra no manto, “protegida por um pedaço de
couro não curtido, como um canário dormindo sob a sua roupa.
Larry remove a cobertura para dar lições à pedra”. A história pecu­
liar do excêntrico da ilha é representativa: “O silêncio da natureza

90
Orando de Olhos Abertos

é o seu único comentário”. Ficamos inquietos com o silêncio e


tentamos extrair um murmúrio da muda mãe-natureza.
Dillard encontra o pano de fundo orientador da história de
Larry na saga do povo de Israel, aterrorizado no Sinai por causa
dos trovões e relâmpagos, pedindo a Moisés para suplicar a Deus:
“Por favor, nunca mais fale diretamente com eles”.
O mundo não-humano está agora inteiramente silencioso.
Dissemos a Deus, como dizemos a uma criança que está nos abor­
recendo, para calar-Se e ir para o Seu quarto. Ele ouviu a nossa
oração. Depois de tantos séculos, estamos entediados e cansados
da tagarelice humana. Até os cientistas, que antes pareciam ser os
mais decididos a confinar a fala aos seres humanos, estão tentando
ensinar chimpanzés a falar, decifrar a linguagem das baleias, e ouvir
mensagens de alguma estrela distante.
A ilha do estreito Puget na qual Larry está tentando ensinar
uma pedra a falar é um resultado da oração de Israel; as ilhas Ga-
lápagos são outro. Desde os dias de Darwin, os cientistas trataram
as ilhas como um laboratório no qual encontrar significado num
mundo dissociado da voz viva de Deus, para estudar o processo
da evolução, desvendar a história biológica da raça. Dillard vai
para lá lendo um texto diferente, um texto da Criação circundado
por um texto bíblico. Ela chama as Galápagos de “um tipo de
laboratório metafísico”; poderia tê-los perfeitamente chamado de
laboratório de oração.
O leão marinho é o residente mais popular das Galápagos,
gregário e gracioso, alegre e esportivo: “envolvido em brincadeiras
o tempo todo”. Os visitantes brincam que ao reencarnarem, gosta­
riam de voltar como um leão marinho. “O jogo do leão-marinho
parecia imbatível.” Depois de longa reflexão e nova visita à ilha, ela
fez uma escolha diferente: a árvore paio santo. Mal as notara em sua

91
o Pastor Contemplativo

primeira visita. As árvores eram finas, pálidas, quilômetros delas,


meio mortas, os agrupamentos parecendo pomares arruinados. Ela
escolheu o paio santo porque embora “só houvesse silêncio”, não
era um silêncio de ausência, mas de presença. Não se trata de um
silêncio estéril, mas prenhe. O silêncio inumano não é devido ao
fato de não haver nada a ser dito, mas, porque, na desobediência ou
incredulidade, ou absoluto terror, pedimos a Deus para não falar
e Deus ouviu nossa oração. Entretanto, mesmo sem falar. Deus
continua lá. O que é necessário da nossa parte é o testemunho.
O paio santo é uma metáfora para testemunho.
A primeira testemunha bíblica, João Batista, disse: “que ele
cresça e que eu diminua”. A testemunha não chama atenção para
si mesma, o que ela aponta é mais importante. O ser tem prece­
dência sobre o usar, explicar, possuir. A testemunha aponta, calada,
a fim de não interferir com o som do silêncio: os paio santos “me
interessam como emblemas do mutismo da posição humana em
relação a tudo que não é humano. Vejo a todos nós como árvores
paio santo, varas santas, observando juntas tudo que observamos,
crescendo em silêncio”.
Testemunha é a palavra-chave em tudo isto. E um termo
bíblico importante, usado com freqüência em nossos dias. E uma
palavra modesta, dizendo o que existe, afirmando honestamente
aquilo que vemos, que ouvimos. Mas, quando nos alistamos
numa causa, é quase impossível fazer isso da maneira certa: enfei­
tamos, preenchemos os espaços em branco, polimos as passagens
tediosas, douramos um pouco o lírio para ganhar a atenção de
nossos ouvintes. Coisa de leão marinho. Temas importantes es­
tão em jogo - Deus, Salvação —e queremos tanto envolver os de
fora nessas sublimes realidades que deixamos a posição humilde
de testemunha e usamos as nossas palavras para influenciar e

5^2
Orando de Olhos Abertos

motivar, anunciar e fazer propaganda. Agora não somos então


mais testemunhas, mas, advogados, defendendo nossa causa, nem
sempre com escrupulosa atenção aos detalhes. Afinal de contas,
as questões de vida e morte estão diante do júri.
Dillard nos faz voltar ao papel sobressalente, simples e mo­
desto da testemunha. Vivemos numa época em que a voz de Deus
se extinguiu na Criação. Queremos que as pedras falem, que os
Céus declarem a glória de Deus, mas “as próprias montanhas santas
estão caladas. Apagamos a sarça ardente e não conseguimos mais
acendê-la; estamos riscando fósforos inutilmente sob cada árvore
verde. O vento costumava proclamar e as montanhas gritar lou­
vores? A fala pereceu agora entre as coisas sem vida da Terra, e as
coisas vivas não dizem quase nada para muito poucos”.
Nossa tarefa necessária e santa, neste mundo, é dar testemu­
nho como as árvores paio santo.

O Mundo na Igreja

Os autores americanos com quem Dillard é geralmente agrupada


—Henry Thoreau, Waldo Emerson, John Muir - não iam à igreja.
Eles se distanciaram do que consideravam a miséria e a hipocrisia
da religião institucional e optaram pela pureza cristalina das cate­
drais da floresta. Emily Dickinson deu a eles o seu texto: “Alguns
adoram a Deus indo à igreja/eu o adoro ficando em casa/com
um triste-pia como um corista e um pomar como trono”. Sua
numerosa descendência passa as manhãs de domingo em viagens
pelo campo para observar os pássaros e em caminhadas com o
Sierra Club. Annie Dillard vai à igreja: “Sei apenas o suficiente
de Deus para querer adorá-Lo de qualquer modo... Há uma igreja

.93
o Pastor Contemplativo

aqui e, portanto, vou até ela”. Não importa que esteja fora de
moda, ela vai assim mesmo: “Num domingo especial pode haver
vinte de nós ali, geralmente sou a única pessoa abaixo de sessenta
anos, e sinto-me como se estivesse numa excursão arqueológica
pela Rússia Soviética”.
Não está na moda porque isso é ridículo. Como podem,
os que buscam a Deus e à beleza, suportar “a dança do urso” re­
presentada nas igrejas cristãs, tanto protestantes como católicas,
semana após semana? Dillard, alegre e trivialmente, de qualquer
modo prossegue. Seu exercício na adoração “Uma Expedição ao
Pólo”, fornece a imagem e a razão. Onde quer que vamos, ao pólo
ou à igreja: “parece haver um único assunto a tratar: descobrir
compromissos exeqüíveis entre a sublimidade de nossas idéias e
o absurdo do nosso fato”.
Em Peregrino, ela escreveu: “Esses norteamentos me atraíam,
norteamentos presentes e passados, a idéia de ir para o Norte. Na
literatura da exploração polar, o assunto é a direção Norte. Um
explorador poderia rabiscar em seu esfarrapado diário: ‘Latitude
82° + 15’ N. Fizemos 20 milhas para o Norte hoje, apesar da
carga que levamos’. Devo ir para o Norte? Minhas pernas são
compridas”. Ela descreve os alvos paralelos. O pólo da Inacessi­
bilidade Relativa é “aquele ponto imaginário no Oceano Ártico
mais afastado da terra em qualquer direção”. Ao ler os relatos
dos exploradores polares, ficamos impressionados porque, em
última análise, eles buscavam o sublime. “A simplicidade e a
pureza os atraía; eles foram realizar tarefas claras em terras não-
contaminadas...Louvavam a beleza simples da Terra como se
fosse uma qualidade moral ou espiritual: ‘salões gelados de fria
sublimidade’, ‘picos altaneiros coroados de neves eternas’.” Isso é
geografia. Existe um pólo equivalente na adoração: “o Absoluto é

94
Orando de Olhos Abertos

o pólo da Inacessibilidade Relativa situado na metafísica. Afinal


de contas, uma das poucas coisas que sabemos sobre o Absoluto
é que ele é relativamente inacessível. E o ponto mais afastado de
qualquer ponto acessível do espírito em todas as direções. Como
os demais, é o pólo do Maior Transtorno. Eu aceito também isto
como foi transmitido, o pólo de grande preço”.
Ela cita Fridtjof Nansen sobre a exploração polar, referindo-se
à “grande aventura do gelo, profundo e puro como o infinito...a
rotação eterna do universo e sua morte eterna” e nota que em toda
parte “a conversa sobre o pólo evoca esses absolutos, essas idéias
de ‘eternidade’ e ‘perfeição’ como se fossem uma parte perfeita-
mente visível da paisagem”. Cita igualmente o papa Gregório,
que nos chama para a adoração cristã “a fim de obter algo da luz
não circundada, em segredo e escassamente”.
Ela conta as histórias tragicômicas dos exploradores polares
que “apesar da pureza de seus conceitos...arrastaram sua humani­
dade para os pólos”. A Expedição Franklin em 1845, com 138
oficiais e homens, levou uma “biblioteca de 1200 volumes, um
órgão manual que tocava 50 músicas, aparelhos de porcelana para
os oficiais e homens, cálices de vinho ornamentados, talheres de
prata e nenhuma roupa especial para o Ártico, só os uniformes
da Marinha de Sua Majestade”. Foi um empreendimento nobre
e estavam nobremente vestidos para isso. Todos morreram. Seus
cadáveres foram encontrados com peças do tabuleiro de gamão
e muitos talheres de prata gravados com as iniciais dos oficiais e
brasões de família. A dignidade era tudo.
Sir Robert Falcon Scott tinha um tipo diferente de dignida­
de: ele achava que a pureza da busca polar exigia uma pureza de
esforço, sem a ajuda de cães ou companheiros. Também morreu.
“Não é possível ser um explorador polar solitário, por melhor que

E5
o Pastor Contemplativo

seja esse conceito”. AJguns dos mais comoventes escritos polares,


expressando seus sentimentos elevados, sua pureza, dignidade e
autocontrole, foram encontrados sob o seu cadáver congelado.
Os exploradores que conseguiram não eram tão melindrosos.
Abandonaram sua posição, seus privilégios, suas noções precon­
cebidas e se adaptaram às condições das banquisas e das geleiras
na terra encharcada de luz.
Annie Dillard a caminho da adoração —“uma espécie de
norteamento é o que desejo fazer, uma caminhada direta para esse
lugar” —enfrenta dificuldades equivalentes. Suas experiências
na adoração da Igreja são entremeadas com comentários sobre
as expedições polares. O amadorismo é angustioso. “Uma peça
da escola secundária é mais organizada do que este serviço que
temos ensaiado desde o ano um. Em dois mil anos não remo-
• •

vemos as esquisitices.
As tentativas de ser relevante são risíveis. “Tentei vencer uma
educação ferozmente anticatólica para assistir à missa, simples e
unicamente com o objetivo de fugir das guitarras protestantes”.
A alegre ignorância é amedrontadora: “Por que nós, mem­
bros da Igreja, parecemos turistas entusiastas, insensatos, numa
excursão coletiva ao Absoluto?...De forma geral, não encontro,
fora das catacumbas, cristãos suficientemente sensíveis às con­
dições. Alguém tem a mínima idéia do tipo de poder que tão
jovialmente invocamos? Ou, como suspeito, ninguém acredita
numa palavra disso? As igrejas são como crianças brincando
no chão com seus laboratórios de química, misturando um lote
de dinamite para matar uma manhã de domingo. E loucura as
mulheres usarem chapéus de palha e de veludo na igreja; todas
deveriamos estar com capacetes à prova de acidentes. Caberia
aos recepcionistas distribuir salva-vidas e pistolas sinalizadoras
Orando de Olhos Abertos

e amarrar-nos aos bancos”. Os exploradores que não se preo­


cuparam com as “condições” morreram. Por que os adoradores
também despreparados não morrem imediatamente?
Isso não importa. Ela deixa de lado a sua dignidade, livra-se
da instrução e dos escrúpulos, abandona a propriedade. “Penso
que preferiria passar pala famosa noite sombria da alma do que
encontrar na igreja os temidos tocadores de instrumentos! Mas
essas preferências puramente pessoais não têm importância, sendo
também inadequadas”. Ela leva, então, sua humanidade até o
banco, desiste da sua dignidade pessoal e compartilha com pessoas
ao acaso. Compreende que ninguém pode ir sozinho até Deus,
como não pode ir sozinho ao Pólo. Compreende ainda que em­
bora o objetivo seja puro, as pessoas não são puras e se quisermos
ir para a Terra temos de ir com pessoas, mesmo quando estejam
dedilhando banjos, cantando canções tolas e fazendo sermões
vazios. “Quantas vezes preparei esta mesma expedição, minha
embarcação absurda partiu sem ser calafetada para o Pólo?”
Ela, portanto, adora. Todas as semanas parte para o pólo da
Inacessibilidade Relativa, “onde os oceanos gêmeos da beleza e do
horror se encontram”. Dignidade e cultura abandonadas, silêncio
e solitude postos de lado, ela se junta à mistura variada de pessoas
sublimes/ridículas que se apresentam nas expedições polares e nas
congregações da igreja. “Semana após semana assistimos ao mesmo
milagre: que Deus, por razões insondáveis, se abstém de reduzir
nossa apresentação da dança do urso a pedacinhos. Semana após
semana. Cristo lava os pés sujos dos discípulos, toca os dedos deles
e repete: “Acreditem ou não, é certo ser uma pessoa”.
As espiritualidades envolvidas em ir ao Pólo e para a igreja
são essencialmente as mesmas. Dillard abraça ambas e lida com
as coisas difíceis nos dois empreendimentos: As vaidades absurdas

97
o Pastor Contemplativo

dos exploradores e a sovinice dos adoradores, com imensa miseri­


córdia. Ela sente-se abençoadamente livre do sentimentalismo e
preconceito (os dois pecados dos turistas estetas), seja no deserto
ou na adoração. Aceita da mesma forma tanto os absurdos na
adoração cristã como na exploração polar. Está dizendo na ver­
dade: “Penso que aceitamos tempo suficiente o sentimentalismo
inato e o esnobismo litúrgico. Se há dificuldades em ir à igreja,
elas não são maiores do que as encontradas na ida ao Pólo. Em
suas palavras: “Ninguém disse que as coisas seriam fáceis”.

Oração: Olhos Abertos ou Fechados?

Existem duas grandes tradições místicas na vida de oração, algumas


vezes chamadas de catafática e apofática. A oração catafática usa
ícones, símbolos, rituais, incenso; a Criação é o caminho para o
Criador. A oração apofática tenta o esvaziamento; a criatura des­
via o espírito do Criador e, portanto, a mente é sistematicamente
esvaziada de idéias, imagens, sensações, até que sobra apenas a
simplicidade de ser. Oração catafática é “orar com os olhos aber­
tos”; oração apofática é “orar com os olhos fechados”.
Quando estamos em equilíbrio, as duas tradições se mis­
turam. Mas, nossa disposição nem sempre é a melhor. A igreja
ocidental se inclina pesadamente para o lado da oração apofática.
A atitude de oração durante minha infância era: “Cruze os dedos,
incline a cabeça, feche os olhos, e vamos orar”. Meu primeiro
aprendizado passou a fazer parte da minha prática adulta. Oro
quase sempre com os olhos fechados. Preciso de equilíbrio.
Annie Dillard ora de outro modo. Estenda as mãos, levante
a cabeça, abra os olhos, e vamos orar: “Ainda estamos na primeira

9S
Orando de Olhos Abertos

semana de janeiro e tenho grandes planos. Estive pensando so­


bre ver. Há uma imensidade de coisas a serem vistas, presentes
não desembrulhados e surpresas gratuitas.” Caminhamos com
ela no que supomos ser apenas um passeio pela floresta. Mas,
em breve nos encontramos na companhia de santos e monges,
envolvidos no tipo de visão contemplativa “que exige uma vida
de esforços dedicados”.
Ela nos leva ao teatro mencionado por Calvino e nos desco­
brimos na sólida companhia bíblica de salmistas e profetas que
observaram “as montanhas saltarem como cordeiros” e ouviram
as “árvores baterem palmas”, alertas para a presença de Deus em
toda parte, em tudo, louvando, orando com os olhos abertos:
“Salto sobre os pés; aplaudo e aplaudo”.

99
Capítulo 8

Primeira Linguagem

Bem-aventurados os mansos

Moisés, às vezes raivoso, outras com medo,


Mostrou mansidão diante do fu ror da tempestade,
A gloriosa e densa sombra da coluna de nuvens.
Cada nuvem mansa, batida pelos ventos
Muda de form a, mas nunca perde o
Ser: não é totalmente líquida, nem sólida.
Permanece no meio-termo. Como eu.
Submissos à rajada do espirito
Todas se tornam o que os anjos ministradores
Ordenam: sinal, promessa, portento.
Sua imagem e cor vigorosas, oh, cores
De pigm entos terrenos misturados com sol
Formam nuanças que provocam aplausos no fim da tarde,
Na madrugada, coletam tempestades, liberam
Chuva, filtra m o sol em sombras
Arranjadas e medidas pelo tempo.
Retalhos de sol.
101
o Pastor Contemplativo

niciei meu chamado de pastor com uma grande carga de zelo


educacional. Tinha a mente povoada de histórias e fatos, in-
tuições e perspectivas, que dão à vida de fé riqueza e textura. Eu
estivera numa expedição exuberante ao país das Escrituras e da
Teologia em meus anos de estudo e me encontrava ansioso para
levar outros a um safári comigo. Eu sabia que tinha condições
de resgatar a controvérsia ariana do texto didático e decifrar o
ugarítico de modo a acentuar o reconhecimento da elegância
sutil da linguagem e história bíblicas. Ansiava para dar começo
à minha tarefa.
Nenhum lugar parecia corresponder melhor a tais em­
preendimentos do que a congregação cristã. Ela é muito
superior a qualquer escola. As pessoas não vão à Igreja por
obrigação, mas, voluntariamente. Apresentavam um nível
de motivação para o aprendizado muito superior ao existente
em qualquer assembléia acadêmica. Ninguém estava ali só
para obter um certificado ou diploma. Os indivíduos se reu­
niam numa comunidade de fé, desejando o amor do Senhor
com a mente e o coração. E fui chamado para ajudá-los a
fazer isso.
Então ensinei. Ensinei do púlpito. Ensinei nas casas e em
salas de aula. Ensinei adultos, jovens e crianças. Formei grupos
especiais, preparei cursos-relâmpago, conduzi seminários. Os que
perdiam tempo e resistiam, incentivei e persuadi. Havia pessoas
estudando Isaías e Marcos, a Reforma e Teologia, e Arqueologia
do Antigo Testamento, que nunca haviam usado a mente de
maneira disciplinada desde que receberam seu diploma da escola
secundária ou da faculdade. E claro que não consegui convencer
a todos, mas, de forma geral não fiquei desapontado. Foi uma
época maravilhosa.

102
Primeira Linguagem

Qual a M inha Tarefa Educacional?

Passados alguns anos, notei como o meu ensino era diferente


daquele das primeiras gerações de pastores. Minha formação se­
cular havia moldado minha perspectiva educacional, não havendo
quase qualquer continuidade reconhecível com a maior parte da
história da Igreja. Eu chegara à congregação considerando seu
grande potencial como um centro de aprendizado, uma espécie
de mini-universidade em que eu era o professor residente.
Certo dia então, numa espécie de choque de reconhecimento,
vi que ela era de fato um centro de adoração. Não me achava
preparado para isso. Quase todo o meu preparo como pastor tivera
lugar numa sala de aula, com capelas e santuários subordinados
a ela. Mas, aquelas pessoas com as quais convivia agora estavam
chegando, com séculos de precedência legítima, não para obter
fatos sobre os filisteus e fariseus, mas para orar. Tinham desejo de
crescer em Cristo e não de fazer um exame sobre dogmas. Comecei
a compreender o óbvio: que a linguagem central e formadora da
vida da Igreja sempre foi a sua linguagem de oração.
Uma convicção cresceu com esse reconhecimento: minha
primeira tarefa educacional como pastor era fazer com que as
pessoas aprendessem a orar. Não abandonei nem abandonarei
a tarefa de ensinar sobre a fé, o conteúdo do Evangelho, os
ambientes históricos dos escritos bíblicos, a história do povo de
Deus. Não tenho paciência e não irei conscientemente aceitar
as tendências obscurantistas ou anti-intelectuais na Igreja. Mas,
há um dever educacional confiado aos pastores muito diferen­
te do designado aos professores. As abordagens educacionais
em todas as escolas que freqüentei conspiravam para ignorar
a sabedoria dos líderes espirituais do passado que treinaram as

103
o Pastor Contemplativo

pessoas nas disciplinas de obedecerem a Deus, moldando a vida


interior de modo a adequá-la a recepção da verdade e não apenas
à aquisição de fatos. Quanto mais eu trabalhava com as pessoas
perto, ou no centro de suas vidas, onde Deus e os humanos, a
fé e o absurdo, o amor e a indiferença estavam entrelaçados em
congestionamentos diários, tanto menos parecia que a maneira
como eu havia ensinado fazia muita diferença e quanto mais o
ensino da oração pesava na balança.

Auxílio Disponível

Não é fácil manter em foco esta convicção, pois a sociedade em


que vivo considera a educação, principalmente, como recuperação
de informação. Mas há auxílio disponível.
A maior parte da minha ajuda foi recebida por meio da
amizade com alguns ancestrais mortos há muito. Gregório de
Nissa e Teresa de Ávila foram os primeiros. Adotei esses mestres
como mentores. Eles expandiram o meu conceito de oração e
me apresentaram à ampla, imaginativa e vigorosa linguagem da
oração. Me convenceram de que ensinar as pessoas a orar era o
meu melhor trabalho.
Mais ajuda veio de uma área inesperada entre meus con­
temporâneos, os filósofos do idioma (especialmente Ludwig
Wittgenstein e Eugen Rosenstock-Huessy). Sob a sua influência
passei a reverenciar a maneira como a linguagem opera e a com­
preender os imensos mistérios que cercam as palavras. Comecei
a dar atenção ao meu uso da linguagem, tanto na qualidade de
pessoa como de pastor. Esses filósofos me deram uma bússola
que mostrou o caminho para recuperar o tipo de linguagem que

104
Primeira Linguagem

parecia praticamente nativa para as primeiras gerações da fé, aquela


exigida se eu quisesse manter a fé com minha vocação pastoral e
ensinar as pessoas a orar.
Reduzi, sim plifiquei e resumi o que aprendi nesses as­
pectos a uma espécie de esboço de um mapa de linguagem,
mostrando três seções: Linguagem I, Linguagem II e Lin­
guagem III.

Três Tipos de Linguagem

A Linguagem I é a da intimidade e relacionamento. É a primeira


que aprendemos. No princípio, não se trata de fala articulada.
A linguagem que trocada entre pai e filho é incrivelmente rica
de significado, mas menos do que impressionante no conteú­
do. Os ruídos feitos pela criancinha não podem ser analisados
gramaticalmente. As sílabas sem sentido dos pais não possuem
definição no dicionário. Mas, o intercâmbio desses barulhi-
nhos fora de tom desenvolve a confiança. Os sussurros dos pais
transformam os gritos infantis em resmungos de esperança. As
palavras-chave nesta linguagem são nomes, ou apelidos: mamãe e
papai. Apesar de seu vocabulário limitado e sintaxe massacrada,
esta linguagem parece mais do que adequada para expressar as
realidades de um amor complexo e profundo. A Linguagem I
é uma linguagem primária, básica para expressar e desenvolver
a condição humana.
A Linguagem II é a linguagem da informação. A medida
que crescemos, descobrimos este maravilhoso mundo de coisas
que nos cercam e tudo tem um nome: pedra, água, boneca,
garrafa. Aos poucos, mediante a aquisição da linguagem, so-

105
o Pastor Contemplativo

mos orientados num mundo de objetos. Além da intimidade


relacionai com as pessoas com as quais começamos, descobri­
mos o caminho num ambiente objetivo de árvores, carros de
bombeiro e tempo. Dia após dia palavras são acrescentadas.
As coisas nomeadas não são mais estranhas, mas familiares.
Ficamos amigos do mundo. Aprendemos a falar em sentenças,
fazendo ligações. O mundo é esplendidamente variado e nossa
linguagem nos capacita a dar contas dele, reconhecendo o que
existe e como é feito. A linguagem II é a principal linguagem
usada nas escolas.
A linguagem III é a da motivação. Descobrimos bem cedo
que as palavras têm o poder de fazer as coisas acontecerem, extrair
algo do nada, mover figuras inertes e levá-las à ação intencional.
O choro da criança resulta em alimento e uma fralda seca. A
ordem dos pais detém o acesso de raiva infantil. Nenhuma força
física está envolvida. Nenhuma causa material é visível. Apenas
uma palavra: pare, vá, cale-se, fale, coma tudo que está no prato.
Somos movidos pela linguagem e fazemos uso dela para mover
outros. As crianças adquirem uma eficiência surpreendente nesta
linguagem, movendo pessoas muito maiores e mais inteligentes
do que elas a uma tenaz atividade (e no geral contra a inclinação
e o bom senso dessas pessoas). A linguagem III é a linguagem
predominante na propaganda e política.
As Linguagens II e a III são claramente as linguagens as­
cendentes da nossa cultura. A linguagem informativa (II) e a
motivacional (III) domina a nossa sociedade. Somos bem en­
sinados na linguagem que descreve o mundo em que vivemos.
Somos bem treinados na linguagem que move as pessoas a com­
prarem, a se reunirem e votarem. Enquanto isso, a Linguagem
I, a linguagem da intimidade, que desenvolve relacionamentos

106
Primeira Linguagem

de confiança, esperança e compreensão se esvai. Logo que dei­


xamos o berço, descobrimos cada vez menos ocasiões de fazer
uso dela. Há recuperações de pouca duração da Linguagem I
na adolescência, quando nos apaixonamos e passamos horas sem
fim falando ao telefone e usando palavras que os bisbilhoteiros
chamariam de inutilidades. No amor romântico, achamos que
é a única linguagem adequada à realidade das nossas paixões.
Quando nossos filhos nascem, reaprendemos a linguagem básica
e a empregamos por algum tempo. Alguns nunca deixam de
usá-la —uns poucos apaixonados, alguns poetas, os santos —mas
a maioria se esquece dela.

Convertendo a Linguagem

Quando comecei a ouvir a linguagem com essas discriminações,


compreendi como eu era totalmente condicionado à cultura.
Quão conformado a este mundo! Meu uso da linguagem na
comunidade de fé era uma imagem refletida da cultura: muita in­
formação, muita publicidade, pouca intimidade. Meu ministério
era realizado quase inteiramente na linguagem da descrição e da
persuasão - falando o que havia, insistindo sobre o que poderia
haver. Eu era um grande explicador. Um exortador bastante
bom. Estava repetindo na igreja o que havia aprendido em minhas
escolas completamente secularizadas e na sociedade saturada pelo
marketing, mas não estava ajudando muito as pessoas a desenvol­
verem e usarem a linguagem básica tanto para a sua humanidade
como para a sua fé, a linguagem do amor e da oração.
Este é, porém, meu trabalho básico; de um lado proclamar
a Palavra de Deus que é pessoal - Deus se dirigindo a nós em

107
o Pastor Contemplativo

amor, convidando-nos para uma vida de confiança n’Ele; de


outro lado, guiar e encorajar uma resposta que seja também
pessoal —falar na primeira pessoa à segunda pessoa, eu-para-
você, e evitar ao máximo comentários na terceira pessoa. Esta
é a minha tarefa educacional essencial: criar e tornar articulada
esta palavra pessoal, ensinar as pessoas a orar. A oração é a
Linguagem I. Não é uma linguagem sobre Deus ou a fé; não é
uma linguagem a serviço de Deus e da fé; é a linguagem para
e com Deus em fé.
Lembro-me de uma sentença há muito esquecida de George
Arthur Buttrick, um pregador com quem aprendi durante um
ano de sermões dominicais matutinos enquanto fazia o semi­
nário: “Os pastores pensam que as pessoas vão à igreja ouvir
sermões. Mas, não é assim. Elas vão para orar e aprender a
orar.” Lembrei-me da transição crítica de Anselmo, deixando
de falar sobre Deus para falar com Deus. Ele havia escrito o seu
M onologion, estabelecendo as provas da existência de Deus com
grande brilho e poder. Esta obra é uma das principais realiza­
ções teológicas do Ocidente. Ele compreendeu mais tarde que
apesar das muitas coisas certas que dissera a respeito de Deus,
todas haviam sido ditas na linguagem errada. Reescreveu então
tudo em um Proslogion, convertendo a sua Linguagem II em
Linguagem I: dirigida à primeira pessoa, uma resposta a Deus,
uma conversa pessoal com o Deus pessoal. O Proslogion é Teo­
logia na forma de oração.
Se a primordial tarefa da pregação do pastor é a conversão
de vidas, a principal tarefa do ensino é a conversão da linguagem.
Não deixei de usar as linguagens da informação e da motivação,
nem farei isso. A eficiência em todas as linguagens é necessária
nesta vida de fé que atrai todos os níveis da existência para o

108
Primeira Linguagem

serviço e glória de Deus. Determinei, no entanto, que a lingua­


gem que devo praticar mais e com a qual tenho a grande respon­
sabilidade de ensinar proficiência a outros é a Linguagem I, a
linguagem do relacionamento, da oração - a fim de introduzir o
máximo de linguagem na fala de amor, resposta e intimidade.
“Aba! Pai!”

109
Capítulo 9

O Crescimento E Uma Decisão?

Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça

A descrença implum e cairia como uma pedra


Através da plenitude de ventos ascendentes, em camadas; o falcão
De cauda vermelha voa e paira, sem pressa
Embora fam into, despreza preguiçoso
As refeições fá ceis de refugo putrefato.
Esperando astutamente a presa esquiva: um vazio visível
Sobre uma invisível plenitude.
O sol pinta de cobre a cauda japonesa em leque, estampando
Penas contra o imenso céu
Para minha delícia, e abençoa
Com um feix e de luz o pássaro de m elhor visão
Que se atira veloz sobre uma serpente
Em uma m orte determinada pelo Gênesis.

111
o Pastor Contemplativo

s pessoas com quem cresci conversavam muito sobre “que­


A brar a vontade”. A tarefa de cada pai dedicado era “quebrar
a vontade” do filho. Náo me lembro de ter ouvido alguma vez a
frase usada em relação a adultos, mas esse pode ser um lapso mais
ou menos voluntário da minha memória.
A suposição que sublinhava este ponto no programa de
desenvolvimento cristão em nossa igreja era, aparentemente,
que a vontade, especialmente da criança, é contrária à vontade
de Deus. Uma vontade quebrada irá supostamente deixar o
indivíduo aberto para o livre desenvolvimento da vontade
de Deus.
Cinqüenta anos mais tarde, lembro-me de meus amigos,
agora adultos, que estavam matriculados nesta escola de espi­
ritualidade infantil e que, junto comigo, tiveram suas vontades
quebradas com regularidade. Pelas minhas observações, todos
parecemos ter passado pelas décadas tão obstinados e teimosos
quanto qualquer de nossos companheiros filisteus incircunci-
sos que nunca iam à igreja, ou pelo menos não às igrejas que
se especializavam em quebrar a vontade das crianças. Ao que
tudo indica, as vontades quebradas se curam da mesma forma
que os braços e pernas quebrados, ficando mais fortes no ponto
da fratura.
Ao mesmo tempo, lembro-me também da grande ênfase
em nossa igreja em “tomar uma decisão pelo Senhor” e exer­
cer minha força de vontade em dizer “não” às tentações que
me rodeavam na escola e no bairro. Tive muitas ocasiões de
fazer isto, tomando repetidas decisões por Cristo enquanto
os evangelistas e pastores se empenhavam em plantar dúvidas
sobre a validade da minha última decisão e insistiam em que
tomasse outra. Meus colegas de escola supriam a prática

112
o Crescimento É Uma Decisão?

diária para que eu exercesse a minha força de vontade em


dizer nSo enquanto me ofereciam as atrações do mundo, da
carne e do diabo.
Pendurado na parede de meu quarto havia um quadro emol­
durado de um navio com três mastros e velas enfunadas sobre um
fundo azul. Debaixo da pintura havia um verso:

“Os navios vão para o Oriente e para o Ocidente,


enquanto as mesmas brisas sopram.
E a colocação das velas e não o temporal
que determina a sua direção”

Eu podia ver o quadro e o verso, quando deitado na cama.


Aprendi a usar o leme e como mudar de rumo, diante do vento,
ao refletir sobre aquele retângulo de azul. Os versos mal feitos
ficaram gravados em mim. O quadro se tornou uma espécie
de mandala que reunia as energias da vontade - meus “sim” na
infância aos chamados do altar e meus “não” nos recreios - de
forma visual. O verso tomou a força de uma mantra. Juntos,
o quadro e o verso confirmavam, com o poder da Escrituras,
a capacidade da minha vontade em determinar a direção da
minha vida, que eu nunca duvidei que fosse uma vida de se­
guidor de Cristo.
Essas duas abordagens à vontade, quebrá-la e exercitá-la,
coexistiram, lado a lado, durante a minha infância e juventude.
Jamais me ocorreu vê-las em contradição, excluindo uma à outra.
Nem isso acontece agora. Mas, na idade adulta fiquei realmente
perplexo com sua aparente dissonância.
Procurei o conselho de alguém que tivesse mais sabedoria
do que o refrão simplista (Quebre a vontade) e o verso ruim (E

113
o Pastor Contemplativo

a colocação da vela) que pareceram servir muito bem enquanto


eu crescia.

A Vontade Humana e a Vontade de Deus

Descobri logo no início de minha busca que eu não era o pri­


meiro a ficar perplexo. Encontrei um bom número de homens e
mulheres coçando a cabeça diante desses assuntos. Na verdade,
achei-me em meio a uma discussão travada há séculos e que está
ainda em progresso. A pergunta de Hamlet; ou não serC’nào
é a nossa. Ser não está em questão. Mas, sim, a vontade; ""Querer
ou não querer?”.
Num Evangelho da graça divina, que lugar o ser humano
ocupará? Num mundo em que a vontade de Deus inicia tudo,
nossa vontade só irá atrapalhar? Numa Criação surgida mediante
a vontade de Deus e numa Salvação executada pela vontade de
Cristo, o que resta para a vontade humana?
Do lado positivo, querer é a essência do meu ser. Se minha
vontade for quebrada, eu sou eu mesmo? Sou completo? Não
sou um aleijado, manquitolando numa muleta? A capacidade de
tomar uma decisão, de dirigir a vida, de exercer liberdade é exa­
tamente o que precisa ser desenvolvida se quisermos tomar uma
decisão por Cristo - o que cresci acreditando ser o ato da vontade
mais importante que existe. Continuo crendo nisso.
Sem o exercício da vontade, sou um pano de pratos, atirado
numa pia suja. Se minha vontade for anêmica, os imperativos
em toda a mensagem do Evangelho (venha, siga, levante, ame)
afundam num mar de piedade sem extrair uma gota de sangue
vermelho.

114
o Crescimento E Uma Decisão?

No momento, em que começo, porém, a exercer a minha


vontade, descubro que coloquei uma raposa guardando o gali­
nheiro. Esse é o lado negativo. As pobres galinhas vermelhas que
estavam botando tão bem os seus ovos —humildade, confiança,
misericórdia, paciência, bondade, esperança —estão condenadas.
E uma experiência inebriante descobrir que estou no domínio
de minha vida e, embora não tivesse qualquer intenção de deixar
Deus de lado, não tenho mais necessidade de depender chorosa­
mente d’Ele.
Minha vontade é a minha glória, é também o que me dá
mais trabalho. Há algo profundamente errado em mim, que me
separa do Deus que deseja a minha Salvação, esse “algo” parece
estar localizado em minha vontade e em volta dela. Reflito sobre
as palavras do apóstolo Paulo: “Porque nem mesmo com preendo o
meu próprio modo de agir, pois não fa ço o que prefiro e sim o que
detesto ”(Rm 7.15) e oro com meu Senhor: “Não seja como eu quero,
e sim com o tu queres” (Mt 26.39).
Querer ou não querer, essa é a questão.

Investigando o Cruzamento

Orei e refleti. Fiz perguntas e li livros. Olhei em volta. Não


demorou muito para compreender que eu havia armado minha
tenda num cruzamento movimentado.
Não só Deus e a minha espiritualidade estavam em jogo,
como quase tudo que era distintamente humano em mim - a
maneira como trabalhava, como falava, como amava. Diante
desses mistérios - trabalho, linguagem, amor —descobri critérios
se desenvolvendo e experiências ocorrendo convergentes com o

115
o Pastor Contemplativo

presente mistério: Deus e meu relacionamento com Ele em oração,


fé e obediência.
A pergunta no âmago da interseção da vontade de Deus e
das vontades humanas está aparentemente no centro de tudo. A
relação entre a vontade de Deus e a minha não é uma pergunta
religiosa especial, é a questão em si. A maneira como respondemos
molda a nossa humanidade em todas as direções.
Sempre que dei atenção ao que acontecia em minha vida
e que ultrapassava a Biologia - quero dizer, além de ser ali­
mentado e vestido - essa estranha questão da vontade estava
envolvida e de um modo nada óbvio ou simples. Outras von­
tades se achavam sempre envolvidas, de maneira a desafiarem
alternativas simples confirmando a minha vontade ou aquies-
cendo à vontade de outrem.
As três áreas de experiência às quais dei particular atenção
são comuns a todos: todos trabalhamos, todos usamos lin ­
guagem, todos amamos e somos amados (mesmo que apenas
intermitentemente).

Trabalho: Capacidade Negativa

Comecei a trabalhar com pouca idade no açougue de meu pai.


Este era um mundo privilegiado, este mundo adulto do trabalho
e quando estava nele, pelo menos em minha opinião, eu era um
adulto. Quando fiz cinco anos, minha mãe me deu um avental
branco de açougueiro. Todos os anos, à medida que crescia, ela
fazia outro de acordo com o meu tamanho. Lembro-me da túnica
de linho que Ana fazia para o menino Samuel, cortada do mesmo
modo e de material similar ao do meu avental.

116
o Crescimento É Uma Decisão?

Meus primeiros trabalhos foram fáceis; varrer e limpar as


vitrines. Eu me diplomei, depois, em moer carne para ham­
búrguer. Um dos homens me levantava e colocava numa caixa
laranja suspensa diante do grande moedor vermelho de carne;
e em meu avental de linho branco eu empurrava os grandes
nacos de carne para dentro da sua boca enorme. No dia em
que me confiaram uma faca e me ensinaram a respeitá-la,
mantendo-a afiada, eu soube que a idade adulta estava cada
vez mais perto.
“Essa faca tem vontade própria”, o velho Eddie Nordham,
um dos açougueiros de meu pai, costumava me dizer. “Aprenda
a conhecer a sua faca!”. Se eu me cortava, ele não me repreendia
por ser descuidado, mas por ignorância. Eu não “conhecia” a
minha faca.
Aprendi também que uma carcaça tem igualmente vontade
própria. Ela não é apenas uma massa inerte de carne, cartilagem
e osso, mas tem caráter e juntas, textura e grão. Cortar uma
quantidade de carne em bifes e fatias não era uma questão de
impor minha vontade fortalecida pela faca sobre um pedaço
de matéria inerte, mas, entrar respeitosa e reverentemente na
realidade do material.
“Picaretas” era o nome depreciativo que meu pai dava
aos açougueiros que impunham ignorantemente sua vontade
sobre a carne. Eles não levavam em conta as diferenças sutis
entre carne de porco e de vaca. Não usavam facas e cutelos de
maneira adequada e não os mantinham afiados. Eram valen­
tões, forçando a sua vontade sobre pedaços de bacon e quartos
traseiros de carne. Os resultados eram bem pouco atraentes e
nada econômicos. Deixavam geralmente uma bagunça que o
resto de nós tinha de limpar.

117
o Pastor Contemplativo

O trabalho verdadeiro sempre inclui respeito pelo material


à mão. Este pode ser um quadril de porco ou uma prancha de
mogno, ou um pedaço de argila, ou a vontade de Deus; mas
quando o trabalho é bem feito há uma espécie de submissão da
vontade às condições presentes, um cultivo da humildade. Este
é um traço notável em todos os trabalhadores especializados
—marceneiros, oleiros, poetas e pessoas que oram. Aprendi isso
no açougue.
“Capacidade negativa” é a frase que o poeta John Keats
cunhou para referir-se a esta experiência no trabalho. Ele ficou
impressionado com a habilidade de W illiam Shakespeare
em criar uma grande variedade de personagens em suas pe­
ças, nenhuma das quais parecia ser uma projeção do ego de
Shakeaspere. Cada uma delas tinha uma vida independente da
dele. Keats escreveu: “O poeta não tem identidade...ele está
continuamente...ocupando um outro corpo”. No seu modo
de pensar, a única maneira da vontade criativa amadurecer era
quando o indivíduo não se mostrava obstinado em impor a
sua vontade sobre outra pessoa ou coisa, mas “tinha domínio
próprio nas incertezas, mistérios e dúvidas, buscando o fato e a
razão”. De modo interessante, Shakespeare, o poeta de quem
aprendemos o máximo sobre as pessoas, é também o poeta de
quem não sabemos praticamente nada.
Os adolescentes são trabalhadores obcecados pela auto-ex-
pressão. Os resultados surpreendem. Canções afetadas. Poemas
extensos. Cartas banais. Reformas bombásticas. Explosões de
energia que se desvanecem (o tanque do “eu” não suporta tanto
combustível) e enchem a casa e a vizinhança com modelos ina­
cabados, amizades e projetos. O adolescente, animado com a
descoberta do Ego maravilhoso, supõe que a vida agora consiste

118
o Crescimento É Uma Decisão?

em expressá-lo para a edificação de todos os outros. A maioria


de nós fica entediada.
Trabalhar de verdade, quer envolva fazer bebês ou poemas,
hambúrguer ou santidade, não é auto-expressão mas justamente o
oposto. Os verdadeiros trabalhadores, os especializados, praticam
a capacidade negativa —a supressão do “eu” para que o trabalho
aconteça por si mesmo. As palavras de João Batista: “Que ele cresça
e que eu dim inua” (Jo 3.30) fazem parte de todo bom trabalho.
Quando trabalhamos bem, nossos gostos, experiências e valores
são reprimidos, de modo que a natureza do material, da pessoa,
do processo ou do nosso Deus é levemente adulterada ou com­
prometida pelo nosso ego na medida do possível.
O trabalhador que faz a obra é um servo que permanece
em segundo plano. Se ele quiser exibir-se em seu trabalho, este
fica arruinado e se torna ruim —uma projeção do ego, uma
indulgencia d o “eu
A descrição de Jesus feita por Paulo, “se esvaziou” (Fp 2.7) é
muitas vezes citada como o ponto central na obra da encarnação,
que nos deu a Salvação. Kenosis. “Esvaziar” é o prelúdio de “en­
cher”. O Filho de Deus se esvazia da prerrogativa, dos direitos
divinos, do status e da reputação, a fim de ser Aquele que Deus
usa para encher a Criação e as criaturas com a glória da Salvação.
Uma vasilha, por mais coisas maravilhosas que contenha, não tem
utilidade para a próxima tarefa até que seja esvaziada. Capacidade
negativa.
Sei agora que todos os trabalhos que me foram dados não
passaram de aprendizado no trabalho de Deus. O que experimento
na cozinha, quarto, oficina, academia, escritório e santuário, serve
para treinar-me nas sutilezas da capacidade negativa. Decido não
querer aquilo em que já sou bom, a fim de que aquilo que é mais

119
0 Pastor Contemplativo

do que eu e além de mim, a vontade de Deus, possa passar a existir


em meu trabalho voluntário.

Linguagem: A Voz do Meio

Oito mil quilômetros para o Oeste e dez anos mais tarde, tive
outra experiência em minha vida que ficou ao lado da faca de
açougueiro por alguns anos e depois convergiu com ela para prover
discernimento sobre a natureza da oração voluntária.
Durante quatro anos, menos o período de férias, desci dia­
riamente ao porão do MacMillan Hall, aos pés do Monte Queen
Anne, em Seattle. A luz entrava fracamente pelas persianas das
janelas colocadas bem alto nas paredes. Eu estava aprendendo
grego. Fiquei perplexo com muitas coisas estranhas naqueles anos
em que estudei debaixo da paciência suave de meu professor, Dr.
Winifred Weter.
O que mais me confundiu foi a voz intermediária. Nossa
classe era pequena, apenas cinco alunos penso eu e fui o último
a entrar. Numa classe desse tamanho a lentidão se evidencia e
fiquei infeliz com minha crescente reputação como a tartaruga
da classe. Então, certo dia, numa tarde de Inverno e de garoa
em Seattle, a sala encheu-se de luz, ou pelo menos meu canto
se iluminou. Estávamos a dois terços do caminho na leitura da
Anabase, de Xenofonte, quando consegui penetrar no mistério da
voz intermediária.
No momento pensei que conseguira entender apenas um
ponto esquivo da gramática grega. Anos mais tarde compreendi
que havia dominado uma ampla dimensão do ser e um modo
de oração. Eu era o mais lento em minha classe, mas de forma

120
o Crescimento E Uma Decisão?

alguma o único a ter dificuldade em entender a voz intermedi­


ária. Entendia a voz passiva e a ativa, mas a do meio era outra
coisa. Quando falo na voz ativa, inicio uma ação que vai em outra
direção: “Aconselho meu amigo”. Quando falo na voz passiva,
recebo a ação iniciada por outrem. Quando falo na intermediária,
participo ativamente dos resultados de uma ação que outra pessoa
inicia: “Procuro conselho”. A maior parte do que falamos está
dividida entre ativo e passivo; eu ajo ou agem sobre mim. Mas,
há momentos, e são aqueles em que somos mais distintamente
humanos, em que tal contraste não é satisfatório: duas vontades
operam, nenhuma excluindo a outra, nenhuma cancelando a
outra, cada uma respeitando a outra.
Minha gramática dizia: “Voz intermediária é o uso do verbo
que descreve os sujeitos como participando nos resultados da ação”.
Leio isso agora e me parece uma descrição da oração cristã - “o
sujeito como participando dos resultados da ação”. Não controlo
a ação; esse é um conceito pagão da oração, colocando os deuses
para trabalhar com meus encantamentos ou rituais. Não sou
controlado pela ação; esse é um conceito hindu da oração no qual
escorrego passivamente para a vontade impessoal e predestinada
dos deuses e deusas. Entro na ação iniciada por outra pessoa,
meu Senhor, Criador e Salvador, e me descubro participando dos
resultados da ação. Ela não é executada por mim, nem é imposta
a mim; quero participar do que está planejado.
A oração e a espiritualidade caracterizam a participação, a
participação complexa de Deus e do ser humano, a Sua vontade
e a nossa vontade. Não nos abandonamos ao rio da graça e nos
afogamos no oceano de amor, perdendo a identidade. Não pu­
xamos as cordas que ativam as operações de Deus em nossa vida,
sujeitando Deus à nossa identidade assertiva. Não manipulamos

121
o Pastor Contemplativo

também a Deus (voz ativa) nem somos manipulados por Deus


(voz passiva). Somos envolvidos na ação e participamos de seus
resultados, mas não controlamos ou definimos a mesma (voz
intermediária). A oração tem lugar nesta voz.
Surge agora uma sentença fascinante em minha gramática:
“Nada é mais certo do que o fato da linguagem dos pais em nossa
família não possuir passivo, mas só voz ativa e intermediária, esta
última originalmente comparável à primeira em proeminência,
embora não representada agora em qualquer linguagem, a não ser
por formas que perderam toda distinção de significado”. Nada de
passivo! Pense nisso: Nas origens da nossa linguagem não havia
meios de expressar uma ação em que eu não estivesse de alguma
forma envolvido como participante.
Mas, quanto mais nos afastamos do Éden, tanto menos uso
temos para a voz intermediária, até que ela finalmente se atrofia
por falta de uso. Ou tomamos conta de nossos destinos (voz ati­
va) ou deixamos que outros tomem conta e nos abandonamos à
passividade animal diante de forças grandes demais para nós (voz
passiva). O Evangelho restaura a voz intermediária. Aprendemos
a viver num envolvimento deliberado de oração, numa ação que
não originamos.
Tornamo-nos sujeitos de uma ação na qual estamos pes­
soalmente envolvidos. Na voz intermediária os objetos tomam
um lugar secundário em relação aos sujeitos - todos, e tudo, se
• •

torna sujeito.
O orgulho e a desobediência do Éden apagam a voz inter­
mediária e nos reduzem a duas vozes, ativa e passiva. Acabamos
tomando lados. Não temos experiência verbal suficiente nesta
terceira voz, a qual está em sintonia com a primorosa e exclusiva­
mente humana aventura de entrar e responder a Deus. Não pode

122
o Crescimento É Uma Decisão?

haver, porém, qualquer amizade, caso de amor, casamento, só


com as vozes ativa e passiva. Algo mais é exigido, uma disposição
que se manifesta em mil sutilezas de participação e intimidade,
confiança, perdão e graça.
Em nossa melhor atitude humana e cristã não somos fascis­
tas ladrando ordens a Deus e suas criaturas. Em nossa melhor
disposição humana e cristã não somos quietistas‘, silenciosamente
submissos diante do destino. Nessa mesma disposição oramos
na voz intermediária, no meio, entre a ativa e a passiva, empre-
gando-a conforme a necessidade e ocasião, mas sempre singular
e artisticamente nós mesmos, criaturas que adoram a Deus e que
são agraciadas por Ele, “participando dos resultados da ação”.
E pensar que iniciei meu aprendizado neste assunto durante
aquele longo Inverno chuvoso em Seattle enquanto lia Xenofonte!

Amor: Passividade Voluntária

Depois de outra década e alguns anos de casamento, fiquei surpreso


ao encontrar-me no centro do que veio a ser a mais rica experiência
da minha vontade e da vontade de Deus. Quando me casei, tinha
a idéia de que o casamento era em grande parte sexualidade, do­
mesticidade, companheirismo e filhos. A surpresa é que eu entrara
numa escola graduada de espiritualidade —oração e Deus —com
tarefas diárias e exames freqüentes em matérias da vontade.
(O que aprendi no casamento pode ser também aprendido
no terreno da amizade, ou até melhor. Os solteiros têm tanta
experiência para ser trabalhada quanto os casados. Mas, desde

Membros do Quietismo (seita mística).

123
o Pastor Contemplativo

que minha experiência principal tem sido no casamento, vou


escrever sobre ela.)
Não é preciso dizer que no casamento duas vontades estão
agindo ao mesmo tempo. Algumas vezes e especialmente nos pri­
meiros meses, as duas vontades são espontaneamente congruentes
e experimentadas como uma única. Com o passar do tempo e
depois dos primeiros êxtases serem substituídos pelas rotinas e
exigências, o que foi experimentado como um dom deve ser de­
senvolvido como uma arte.
A arte é a passividade voluntária. A frase parece contra­
ditória, mas não é, e concorda com o que aprendi no início no
açougue de meu pai e continuei a aprender nas aulas de grego
do Professor Weter.
O aprendizado da arte da passividade voluntária começa
com a apreciação da função ampla e criativa que a passividade
desempenha em nossas vidas. A maior parte da nossa vida é ex­
perimentada no modo passivo. Suportamos a vida. Recebemos.
Entramos no que já existe. Nosso sistema genético, a atmosfera,
a cadeia alimentar, nossos pais, nosso cão - eles estão ali, no lugar,
antes de exercermos a nossa vontade.
“Oitenta por cento da vida”, diz Woody Allen, “não passa de
exibicionismo.” Nada do que fazemos ao exercer nossa vontade
jamais se aproximará do que é feito a nós por outras vontades.
Nossas vidas entram no que já foi feito para nós. Se negarmos
ou evitarmos essas passividades, vivemos num mundo muito
pequeno. O mundo das nossas atividades é um empreendimen­
to insignificante; o mundo das nossas passividades é um vasto
cosmos. O tempo, nossos corpos, nossos pais, grande parte do
governo, a paisagem, muito da nossa educação são coisas que
acontecem conosco.

124
o Crescimento E Uma Decisão?

Mas, há maneiras diferentes de ser passivo, há uma passivi­


dade indolente, desatenta que se aproxima da existência de um
preguiçoso, e existe uma passividade voluntária e atenta que se
assemelha mais à adoração.
A mensagem famosa de Paulo: “As mulheres sejam submissas
ao seu próprio marido. Maridos, amai vossa mulher, com o também
Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou p o r ela” (Ef 5.22-25),
estabelece as operações paralelas da passividade voluntária.
Uma sentença anterior estabelece o contexto necessário,
em separado do qual as instruções duplicadas só podem ser mal
compreendidas. A sentença é: “Sujeitando-vos uns aos outros no
tem or de Cristo ” (Ef 5.21).
Temor (reverência) é a palavra operativa - en phobo Christou
—atenção reverente, em atitude de adoração, pronta para responder
em amor e adoração. Não aprendemos nosso relacionamento com
Deus por meio de um conhecimento convencido, arrogante, do
que Deus quer exatamente (o que nos lança então numa campa­
nha de limpeza vigorosa do mundo a Seu favor, no curso da qual
gritamos ordens para Ele, queremos dominá-Lo, a fim de que nos
ajude a executar a Sua vontade). Não nos acovardamos também
diante d’Ele numa ansiedade escrupulosa que teme ofendê-Lo, só
ousando uma palavra ou um ato quando explicitamente ordenado
e no resto do tempo nos preocupando aflitos com o que poderi­
amos ter feito para ofendê-Lo.
Nada disso, reverência do Evangelho, reverência de Cristo, de
cônjuge, é uma liberdade vigorosa (mas de modo algum presun­
çosa), cheia de energia espontânea. Esta é a atmosfera contextual
em que nos vemos amados e amando diante de Deus.
Estamos mais do que dispostos a curvar-nos diante de Cris­
to, sem medo de sermos tiranizados, pois Cristo já entregou

125
o Pastor Contemplativo

Sua vida por nós na cruz, esvaziando-Se e não retendo nada.


Passividade voluntária.
O apóstolo Paulo ensina aos maridos e esposas como a
vontade deles pode tornar-se um meio para o amor e não armas
de guerra. Ele aconselha a passividade voluntária para ambos
os parceiros de casamento como uma analogia da disposição de
Cristo para ser sacrificado. O amor é definido pela disposição de
desistir da minha vontade (“não a minha, mas a tua vontade seja
feita”) uma crucificação voluntária.
O casamento oferece bastante experiência no campo das
possibilidades da passividade voluntária. Nos encontramos no
relacionamento diário com uma realidade complexa que não foi
feita por nós —esta pessoa com coração e rins em funcionamento,
com emoções gloriosas (e também não gloriosas), capaz de nos
interessar profundamente num minuto e depois aborrecer-nos
insuportavelmente no seguinte; e, mais misterioso que tudo, com
uma vontade, com liberdade para escolher, dirigir e pretender uma
intimidade compartilhada na vida.
O tempo todo eu sou também todas essas coisas, e possuo
igualmente uma vontade. Quando estamos agindo certo, e nem
sempre sabemos como estamos fazendo isso, as duas vontades
acentuam e glorificam uma à outra. Aprendemos logo que o
amor não aumenta quando impomos nossa vontade ao outro,
mas só quando respondemos com sensibilidade à vontade do
outro, o que estou chamando de passividade voluntária. Se a
operação for mútua, como algumas vezes ocorre, um grande
amor é a conseqüência. O elevado índice de fracasso no casa­
mento é uma dolorosa testemunha estatística das dificuldades
envolvidas. Preferimos operar como ativistas em nosso amor,
comandando o ser amado em atos que nos agradam, o que

126
o Crescimento É Uma Decisão?

reduz as opções de nosso parceiro à passividade indolente ou


à rebelião.
Não existem ambigüidades em nenhum dos casos. Mas,
também não existe amor —e não existe fé.
“Jã não vos cham o servos...mas tenho-vos cham ado am igos”
disse Jesus (Jo 15.15). Não é evidente que este é o modelo pelo
qual compreendemos nossa crescente intimidade com Deus?
Não como a submissão abjeta de um cãozinho de estimação, e
certamente não como a astúcia sacerdotal manipuladora, mas
como passividade voluntária, uma imitação da passividade vo­
luntária daquele que “não ju lgou com o usurpação o ser igual a
Deus; antes a si mesmo se esvaziou...tornando-se em sem elhança
d e hom en s” (Fp 2.6-7).

Obstinação ou Disposição?

Gerald May, em seu livro W illandSpirit (Vontade e Espírito), faz


distinção entre a obstinação e a disposição. Todo ato de intimida­
de, quer no trabalho, linguagem, casamento ou oração, suprime
a obstinação e cultiva a boa vontade.
Todos nós, no ato da Criação, suprimimos a obstinação e cul­
tivamos a disposição. Há uma sensação profunda de estar envol­
vido em algo mais do que o ego, melhor do que o “eu”. O “mais”
e o “melhor” entre os cristãos tem um nome pessoal. Deus.
Uma das qualidades da vontade quando livre é conhecer a
natureza e a extensão das necessidades em que trabalha. Sem dar
atenção às necessidades, a vontade se torna arrogante e passível
de insolência (que os gregos viam como inevitavelmente castigada
com a tragédia) ou declina timidamente até a letargia do especta-

127
0 Pastor Contemplativo

dor de TV que apenas vegeta. A ousadia humilde (ou humildade


ousada) entra numa disposição sadia, robusta —disposição volun­
tária —e encontra sua experiência mais expressiva e satisfatória na
oração a Jesus Cristo, que deseja a nossa Salvação.

128
Capitulo 10

O Ministério das Banalidades

Bem-aventurados os misericordiosos

Um bilhão de anos de arrebentação violenta.


M udanças no mar, que provocaram naufrágios e tempestades
Como a de fonas
Transformaram o granito impassível, implacável.
Nesta praia analgésica:
Lavada pelo ritmo das ondas de misericórdia.
Alívio misericordioso da cidade
Concreto. Não-condenado, descalço.
Tenho os tornozelos imersos nesta areia.
Desperto para os ricos desenhos de compaixão
Gravados nos travesseiros de dunas.
M açaricos e gaivotas em
Formação precisa, devotadam ente freqüentam
M inha salgada e santa solitude.
Depois se alim entam e voam ao longo
Da m aré imprecisa que vem e que vai
M arcando a fronteira entre o cuidado e a morte.

129
o Pastor Contemplativo

eu pastor, durante os anos de minha adolescência, cos­


M tumava freqüentar a nossa casa. Depois de um breve e
embaraçoso intervalo, ele sempre dizia: “E como vão as coisas em
sua ALMA hoje?” - (Ele sempre pronunciava “alma” com letras
maiusculas.)
Eu nunca dizia muita coisa. Era tímido demais. Os pensa­
mentos e experiências que enchiam a minha vida naqueles anos
pareciam pequenas batatas depois dessa pergunta. Eu sabia, no
entanto, que se quisesse discutir um dia as coisas da ALML\, podia
falar com ele. Mas, nas outras questões, seria melhor conversar
com alguém que não descartaria como vaidade mundana o que
representava ser cortado do time de basquete, alguém que não
pularia sobre mim com ameaças de fogo do Inferno por causa dos
pensamentos que eu estava tendo sobre Marnie Schmidt, a garota
recém-chegada da Califórnia.
Trabalho pastoral, aprendi mais tarde, é esse aspecto do mi­
nistério cristão que se especializa nas coisas comuns. Faz parte da
vida pastoral ser atencioso, interessado e apreciador do contexto
diário da vida das pessoas - as compras e vendas, as visitas e reu­
niões, as idas e vindas. Há também eventos cruciais a serem en­
frentados: nascimento e morte, conversão e compromisso, batismo
e celebração, desespero e comemoração. Estes também ocorrem
na vida das pessoas e, portanto, no trabalho pastoral. Mas não
como itens diários.
A maioria dos indivíduos, na maior parte do tempo, não está
em crise. Se o trabalho pastoral deve representar o Evangelho e
promover uma vida de fé nas circunstâncias atuais, de aprender a
sentir-se à vontade no que o romancista William Golding chamou
de ‘‘universo comum” - as coisas de todo dia em nossa vida —man­
dar os filhos para a escola, decidir o que fazer para o jantar, lidar

130
o M inistério das Banalidades

com as queixas diárias dos colegas de trabalho, assistir as notícias


noturnas na TV, conversar banalidades na hora do cafezinho.
Banalidades: a nossa conversa quando não estamos falando
de nada em particular, quando não temos de pensar logicamente,
decidir com ponderação, ou compreender com exatidão. Os ru­
ídos da conversa que não faz exigências, não provoca estresse, dão
segurança. Os sons que aliviam a pressão. A conversa desconexa
que simplesmente exprime o que está acontecendo na ocasião. A
recusa (ou incapacidade) do meu velho pastor para envolver-se nesse
tipo de conversa implicava, com efeito, que a maior parte da minha
vida estava sendo vivida num nível sub-espiritual. Grande parte
de minha experiência era “mundana”, com momentos ocasionais
qualificados como “espirituais”. Eu nunca questionei a prática até
que também me tornei pastor e descobri que essa abordagem me
deixava afastado da maioria das coisas que estavam acontecendo na
vida das pessoas e sem chance de diálogo para o trabalho real e nada
dramático de viver pela fé em meio à neblina e à garoa.

Impaciente com o Com um

Eu não hesitava diante da escolha entre uma discussão acalorada


das teorias da Expiação e as provocações casuais sobre as expectati­
vas da próxima estação da Little League. A Expiação venceu todas
as vezes. Se alguém na sala fizesse perguntas sobre escatologia, não
demorava muito para que eu me atirasse de cabeça na conversa;
mas, se o assunto passasse para as vendas de pneus radiais nas
concessionárias, minha atenção se desviava. Eu fazia acenos sem
significado e resmungava qualquer coisa enquanto procurava me
desembaraçar e dirigir-me a uma reunião mais necessária e exi-

131
o Pastor Contemplativo

gente na questão de almas. Que tempo eu tinha para conversas


banais quando estava comprometido com a mensagem maior da
Salvação e eternidade? O que tinha a fazer com a tagarelice sem
propósito a respeito do tempo e da política quando tinha “fogo
em minha boca”?
Sei que não sou o único pastor que fica constrangido e impa­
ciente com as conversas banais. Sei também que não sou o único
que racionalizou a impaciência alegando prioridades de assuntos
importantes como Sermões, Apologética e Aconselhamento.
A racionalização parece plausível. Depois de passar tanto
tempo aprendendo as sutilezas do supralapsarianismo, é certa­
mente um desperdício falar de futebol. “Remir o tempo!”. Com
uma grande bagagem de conhecimentos armazenados em nossas
células cerebrais, é certo conversar sobre bonecas de pano? Se
tivermos a oportunidade de preparar a agenda para a conversão,
não somos obrigados a fazer disso algo espiritualmente importante?
E se não pudermos estabelecer a agenda, não é nossa tarefa dar
rumo à conversa para o qual o nosso chamado e treinamento nos
equiparam para levar ao coração dos homens?
A prática de manipular a conversa era largamente usada en­
tre pessoas que eu respeitava nos anos de faculdade e seminário e
fui muito influenciado por elas. Sua convicção era de que toda
conversa podia ser desviada para o testemunho, se fôssemos su­
ficientemente argutos. Uma conversa casual num avião poderia
ser transformada em conversa significativa sobre a eternidade da
alma. Um breve intercâmbio com um frentista de um posto po­
deria abrir uma brecha para uma “palavra sobre Cristo”.
Tais abordagens à conversa não deixavam espaço para a ta­
garelice —todas as banalidades eram manipuladas para assuntos
mais elevados: Jesus, Salvação, condição da alma.

132
o M inistério das Banalidades

Banalidades: Uma A rte Pastoral

Por mais apropriadas que sejam tais estratégias verbais para certas
ocasiões de testemunho (e penso que essas ocasiões existem), elas
são erradas como prática pastoral costumeira. Se obrigarmos as
pessoas a falarem em nossos termos, se as manipularmos para
responderem à nossa agenda, não as levamos a sério no lugar onde
se encontram em suas circunstâncias diárias.
Nem é provável que nos apercebamos dos pequenos brotos
verdes que o Senhor está permitindo que cresçam no quintal de
suas vidas. Se evitarmos a conversa banal, abandonamos o pró­
prio campo que nos foi designado para trabalhar. A maior parte
da vida das pessoas não é passada em crises, nem vivida à beira
de questões cruciais. A maioria de nós, na maior parte das vezes,
está envolvida em tarefas simples, rotineiras e as banalidades são
a linguagem natural. Se os pastores a depreciarem, estaremos
depreciando o que quase todos fazem na maior parte do tempo e
o Evangelho dá uma falsa impressão.
“Senhor, como odeio as grandes questões!” foi uma senten­
ça que copiei de uma das cartas de C.S. Lewis e guardei como
lembrança. Ele está reagindo contra a presunção que só vê sig­
nificado nas manchetes —no que faz ruído e é grande. Lewis
advertiu sobre a arrogância de nariz empinado que ignora o que
é simples e raro e, portanto, deixa de participar de grande parte
da rica realidade da existência.
Os pastores, em especial, desde que estamos freqüentemente
envolvidos com grandes verdades e somos despenseiros de grandes
mistérios, precisam cultivar a humildade na maneira de dialogar.
Humildade significa ficar perto do solo (húmus), das pessoas, da
vida diária, do que está acontecendo em toda a sua realidade.

133
o Pastor Contemplativo

Não quero que me compreendam mal: a conversa pastoral


não deve ficar presa a clichês triviais como água de esgoto. O
que pretendo é que estejamos presentes e atentos às conversas,
respeitando tanto o que é comum como o que é crucial. Alguns
discernimentos só são acessíveis quando rimos. Outros chegam
apenas indiretamente.
Arte está envolvida aqui. Arte significa que nos damos ao
encontro, à ocasião, não com condescendência ou por constran­
gimento, mas criativamente. Não estamos tentando fazer algo
acontecer para tomar parte no que está ocorrendo - sem estar no
controle do assunto e sem que este corresponda à dignidade de
nosso ofício.
Tal arte se desenvolve melhor quando estamos convenci­
dos de que o Espírito Santo está “de antemão” em todos os
nossos encontros e conversas. Não penso que seja exagerar as
coisas ver Jesus —que abraçou criancinhas, que surpreendeu e
escandalizou tanto seus seguidores - abraçando também nossas
pequenas conversas.
Subimos em nossos púlpitos do Sinai semana a semana e
proclamamos o Evangelho no que esperamos seja a autoridade
persuasiva de um “trovão engenhoso” (frase de Emerson). Quan­
do descemos até o povo na planície, uma habilidade diferente é
requerida, a arte da conversa banal.

134
Capítulo 11

Enfermo de Uma Nova Maneira

Bem-aventurados os limpos de coração

Pais austero este, lavado


Pela avalanche violenta da Primavera.
A rocha de xisto cria um prado onde
As agáveas nos altos montes recebem luz
Do líquen, rocha, e lago gelado.
Transformando os raios letais do sol
Em alim ento para os ursos pardos e água para as abelhas —
Criaturas de coração puro, vivendo abençoadas
Sob 0 esplendor da fa ce de Deus
Todavia, com o nós, os decaídos.
N enhuma p od e olhar para a fa ce
E viver. Cada botão um seio
Guardando visão eventual para todo cego e
Recém-nascido hesitante: apalpamos nosso cam inho
Através desses esplendores para a glória.

135
0 Pastor Contemplativo

u m combate é travado todas as semanas entre o pastor e o povo.


A competição se deve às visões conflitantes da pessoa que vai
à igreja. O resultado do conflito é refletido no serviço de adoração,
moldando sermões e orações, influenciando os gestos e o tom.
As pessoas (e especialmente as que freqüentam a igreja e
entram em contato com o ministério pastoral) vêem a si mesmos
em termos humanos e morais: elas têm necessidades humanas
que precisam ser satisfeitas e deficiências morais que precisam ser
corrigidas. Os pastores vêem as pessoas de modo muito diferente.
Nós as vemos em termos teológicos: são pecadoras —indivíduos
separados de Deus que necessitam ser restaurados a Cristo.
Esses dois pontos de vista —a compreensão teológica que o
pastor tem das pessoas e a autocompreensão delas —estão quase
sempre em tensão.

Vendo as Pessoas como Pecadoras

A palavra pecador é uma designação teológica. É essencial insistir


nisto. Não se trata de um juízo moralista. Não é uma palavra
que coloca os seres humanos em algum ponto de um contínuo
que vai de anjo a macaco, avaliando-os como “bons” ou “maus”.
Ela considera os humanos em relação a Deus e os vê separados de
Deus. Pecador significa que algo está errado entre os homens e
Deus. Nessa condição eles podem ser perversos, infelizes, ansiosos
e pobres. Ou, podem ser virtuosos, felizes e ricos. Esses itens não
fazem parte do juízo. O fato teológico é que os humanos não
estão próximos de Deus e não estão servindo a Ele.
Ver uma pessoa como pecadora, então, não é vê-la como
hipócrita, repulsiva, ou má. A maioria dos pecadores é muito

136
Enfermo de Uma Nova M aneira

simpática. Chamar alguém de pecador não é condenar suas ma­


neiras ou sua moral. E uma crença teológica de que o que mais
importa para ele é perdão e graça.
Quando um pastor sente que está ressentindo o seu povo,
ficando petulante e fazendo discursos fastidiosos para eles, isto é
um sinal de que deixou de pensar nessas pessoas como pecadoras
que “nada têm de valor” e começou a atribuir secretamente a elas
qualidades divinas de amor, força, compaixão e alegria. Como é
natural, elas não possuem esses atributos no que se refere ao seu
amadurecimento e irão, então, desapontá-lo muitas vezes. Por
outro lado, se o pastor definir rigorosamente as pessoas como
companheiras de pecado, ele ficará pronto para compartilhar so­
frimento, falhas, dor, fracasso, e terá tempo de sobra para observar
os sinais da graça de Deus operando neste deserto e depois encher
o ar de louvores pelo que descobriu.
A compreensão das pessoas como pecadoras capacita o mi­
nistério pastoral a funcionar sem ira. O ressentimento acumulado
(uma ameaça constante aos pastores) se dissolve quando pressu­
posições irreais —isto é, não teológicas —são abandonadas. Se os
homens são pecadores os pastores podem concentrar-se então em
falar sobre a ação de Deus em Jesus Cristo em vez de ficar se la­
mentando da maldade das pessoas. Já sabemos que elas não podem
fazer nada por si mesmas. Já aceitamos a sua depravação. Não nos
dispusemos a ser pastores para descansar em seus cuidados ou nos
confiar aos seus caminhos santos. “Maldito aquele que confia no
homem, mesmo que seja piedoso, ou, talvez, especialmente, se for
piedoso” (Reinhold Niebuhr). Nos aproximamos do povo para
falar sobre Jesus Cristo. A graça é o principal assunto da conversa
pastoral e da pregação. “Onde abundou o pecado, superabundou a
graça” i f s n 5.20).

137
o Pastor Contemplativo

O pastor, porém, dificilmente terá esta visão do povo apoiada


pelo próprio povo. Eles geralmente supõem que todos têm um
núcleo interior divino que precisa ser despertado. São emerso-
nianos em suas pressuposições e não paulinos. Esperam ajuda
pessoal do pastor na forma de empreendimentos moralistas, mís­
ticos ou intelectuais. As pessoas não reconhecem o pecado como
o fato total que as caracteriza; nem anseiam pelo perdão como o
remédio eficaz. Desejam o cultivo de sua vida psíquica, aprender
um meio de ignorar a graça e andar por seus próprios meios. São
frequentemente nobres e sinceras quando pedem ao pastor que
creia nelas e em seus recursos e possibilidades interiores. O pastor
pode ser facilmente levado a aceitar tal autocompreensão. Mas, é
um caminho despojado da graça. O pastor não deve ceder. Esta
estrada precisa ser bloqueada. A Palavra de Deus, com a qual o
ministério pastoral está comprometido, perde a autoridade no
momento em que a pessoa não é vista como pecadora.
O resultado feliz da compreensão teológica das pessoas como
pecadoras é que o pastor fica livre da surpresa constante de que elas
são de fato pecadoras. Isto nos capacita a atender à admoestação
de Bonhoeffer: “Um pastor não deve queixar-se da sua congre­
gação, certamente nunca a outras pessoas, mas, também, não a
Deus. A congregação não lhe foi confiada para que ele se torne
seu acusador diante de Deus e dos homens”. Pecador cnx.zo não se
torna uma arma num arsenal de condenação, mas a expectativa da
graça. Ser simplesmente contra o pecado é uma base pobre para
o ministério pastoral. Ver, no entanto, as pessoas como pecado­
ras —como rebeldes contra Deus, que não atingem o alvo, que
se afastam do caminho —estabelece uma base para o ministério
pastoral que pode prosseguir alegremente por estar anunciando o
grande ato de Deus em Jesus Cristo “para os pecadores”.

138
Enfermo de Uma Nova M aneira

D iscernindo as Formas Particulares do Pecado

Há mais coisas, porém, do que estabelecer um ponto de vista


teológico. Se o pastor tiver de ser em primeiro lugar um te­
ólogo, a fim de observar cuidadosamente as pessoas, ele deve
adquirir logo critérios pastorais quanto à maneira peculiar em
que o pecado se expressa. O pecado, para os pastores, náo
permanece uma rubrica teológica; ele toma formas humanas
específicas que exigem reações pastorais específicas. Há grande
perigo em transmitir uma idéia demasiado abstrata de pecado.
O pecado não é simplesmente uma falha em relação a Deus
que pode ser estudada lexicamente; é um desvio pessoal da
vontade de Deus. Os pastores lidam com histórias e não com
definições de pecado. O pastor entra no mundo do local e do
pessoal. Ele busca estabelecer na linguagem e imagens da vida
diária o fato de que a vida cristã é possível, dentro dos limites
cronológicos da vida do indivíduo e na vizinhança geográfica
de sua residência.
Por mais que seja, então, necessária, uma compreensão teo­
lógica dos homens como pecadores, o pastor não está pronto para
ministrar até que descubra as formas particulares que o pecado
toma nas histórias individuais. O pastor insiste nos detalhes. Ele
está interessado em exatamente com o os homens são pecadores.
Aceita como pressuposição que eles são pecadores - não estaria
pregando a “loucura da cruz” se não pensasse desta maneira. Mas,
existem maneiras diferentes de ser pecador. O ministério pastoral
se torna mais eficaz quando discerne e discrimina entre as formas
de pecado, e depois ama, ora, dá testemunho, conversa e prega os
detalhes da graça apropriados para cada rosto humano que toma
forma no banco.
139
o Pastor Contemplativo

Episódios da Adolescência

Cada geração, nas palavras do poeta John Barryman, está


“enferma de uma nova maneira”. A maneira em que a pre­
sente geração está enferma —isto é, as formas pelas quais ela
experimenta o pecado —é mediante episódios da adolescência.
Houve uma época em que as idéias e o estilo de vida eram
iniciados no mundo adulto e eram filtrados para os jovens.
O movimento agora é inverso: os estilos de vida são gerados
ao nível da juventude e empurrados para cima. O modo de
vestir, estilos de cabelo, música e moral adotados pelos jovens
são evangelicamente empurrados para o mundo adulto que, por
sua vez, parece ansioso para ser convertido. A cultura jovem
começou como uma espécie de modismo e depois transformou-
se em movimento. Ela é hoje quase fascista em sua influência,
forçando suas percepções e estilos sobre qualquer um, quer ele
goste ou não.
Esta observação ajuda a construir uma compreensão pastoral
das pessoas. Existe uma propagação efervescente da experiência
adolescente com tendência ascendente através das gerações. Em
vez de terminar aos 21 anos, ela infecta igualmente as gerações
superiores. E comum ver adultos com 30, 40 e 50 anos que não
só adotaram as roupas exteriores da cultura juvenil, como estão
experimentando verdadeiramente as emoções, traumas e dificul­
dades típicas dos jovens. Eles estão experimentando a vida em
suas formas adolescentes. Os pecados dos filhos, ao que parece,
estão sendo visitados nos pais.
Referências a duas características adolescentes irão ilus­
trar esta maneira de compreender as pessoas no ministério
pastoral.

140
Enfermo de Uma Nova M aneira

Sentimento de Desajuste

A primeira, é um sentimento de desajuste. As pessoas não acham


que sua vida cristã é muito boa. Pedem desculpas e ficam na
defensiva com relação à sua fé.
O senso de desajuste é característico da vida adolescente.
Quando o indivíduo está crescendo rapidamente em todas as
frentes —física, emocional e mentalmente —ele acha-se incompe­
tente em tudo. A vida não fica mais lenta o suficiente para que
ele possa adquirir um sentimento de domínio. O adolescente
possui uma variedade de dispositivos para disfarçar este sentimen­
to; pode fazer isso com arrogância, submergir numa multidão de
amigos, ou desenvolver um subculto à linguagem e roupas em
que mantém a superioridade excluindo o mundo maior de sua
especial competência. As variações são infindáveis, a situação é a
mesma: o adolescente é imaturo e, portanto, desajustado. E ele
sente agudamente este desajuste.
E exatamente isto que o pastor encontra nas pessoas de todas
as idades na igreja. Elas sentem que não estão alcançando seu alvo
como cristãos. Isto é um tanto surpreendente porque no passado
a Igreja cristã teve de lidar mais freqüentemente com o fariseu - a
pessoa que pensa que se ajustou há muito tempo. As pessoas hoje
são muito mais aptas a ficarem embaraçadas e temerosas sobre a
sua identidade cristã.
A razão ostensiva é que o novo mundo está mudando tão de­
pressa que ninguém tem oportunidade de sentir-se à vontade nele.
O adulto, como o adolescente, é confrontado com um mundo
novo toda semana e acha que não tem condições de lidar com ele.
Quando este adulto entra na igreja, ele olha para o pastor e supõe
que o ministro, pelo menos, tem os pés no chão e sabe onde estão

141
o Pastor Contemplativo

as coisas. As pessoas olham para o pastor como alguém competen­


te nos assuntos relacionados com Deus e o colocam no papel de
especialista. Este processo parece natural e inocente —tão natural
e inocente quanto os sentimentos de desajuste no adolescente e
sua conseqüente admiração da competência. E mais provável,
porém, que esse seja um novo disfarce para um velho pecado
—o modo antigo de fazer ídolos. Deus chama as pessoas para Si,
mas elas se voltam para algo menor do que Ele, elaborando uma
experiência religiosa mas evitando a Deus. A desculpa é que não
são “adequadas” para enfrentar a coisa real. Elas prosseguem com
a percepção de que, longe de estar pecando, adquiriram a virtude
da humildade. Mas, o olfato teológico sente cheiro de idolatria.
Alguns pastores tomam providências deliberada para neutra­
lizar sua imagem como Deus substituto, aspergindo profanidades
em sua sintaxe e citando a revista Playboy. Estão dizendo com
efeito ao povo: “Não sou mais adequado do que vocês. Não me
olhem como se eu fosse um santo; não moldem a sua vida pelo
que estou fazendo”. O ministério pastoral, entretanto, deve ser
composto de mais do que negativas.
Existe uma técnica paulina para lidar com esta sensação de
desajuste. Ao escrever aos Efésios, Paulo disse: “Por isso, também
eu, tendo ouvido a f é que há entre vós no Senhor Jesus e o am or para
com todos os santos, não cesso de dar graças p or vós, fazendo menção
de vós nas minhas orações” (Ef 1.15-16). Supondo que a igreja de
Efeso tivesse a mesma porcentagem de pecadores que as modernas
(a saber, 100%), seria um erro invejar a congregação de Paulo,
uma congregação à qual ele pôde dirigir-se com tamanha gratidão.
E melhor admirar a habilidade de Paulo para ver os atos de Deus
naquelas pessoas. Paulo tinha um olho meticuloso para ver os
sinais da graça. Ele era o espião de Deus, buscando no terreno

142
Enfermo de Uma Nova M aneira

congregacional evidência de que o Espírito Santo estivera ali. Paulo


sabia que aquelas pessoas eram pecadoras. Mas, sua paixão era
descrever a graça e abrir os olhos delas para o que seus olhos já
estavam abertos —a atividade de Deus em suas vidas: “seu poder
para com os que crem os” (Ef 1.19).
Se o pastor vê o desajuste como um sentimento impróprio,
ele irá usar meios psicológicos e morais para removê-lo. Se o
considerar um sinal de pecado —evitar a responsabilidade pessoal
na aterradora tarefa de enfrentar Deus em Cristo - ele irá reagir
apresentando bondosa e gentilmente o Deus vivo, indicando as
maneiras em que Deus está vivo na comunidade. Os episódios
de coragem e graça que ocorrem todas as semanas em qualquer
congregação são incríveis. O discernimento pastoral que vê a
graça operando numa pessoa mantém essa pessoa em contato
com o Deus vivo.

Amnésia Histórica

Outra característica do adolescente que se difundiu na população


como um todo é a ausência de senso histórico. O adolescente,
como é claro, não tem história. Ele ou ela tem uma infância,
mas nenhum acúmulo de experiência que transcenda os detalhes
pessoais e produza um senso de história. Seu mundo é altamente
pessoal e extremamente empírico.
Como conseqüência, o adolescente é incrivelmente ingênuo.
Supomos que uma pessoa educada em boas escolas, por professores
bem treinados, não corre qualquer risco de superstição. Supomos
também que a educação orientada cientificamente, que exige fatos,
a qual prevalece em nossas escolas deveria ter aguçado a mente dos

143
o Pastor Contemplativo

jovens para serem perceptivos em questões de evidência e lógica.


Isso nâo acontece. A razão é que eles não têm sentimentos quanto
ao passado, quanto a precedentes e tradições, não possuindo, por­
tanto, a perspectiva necessária para fazer julgamentos ou discernir
valores. Podem conhecer fatos da história e ler muitos romances
históricos, mas não sentem a história em seus ossos. Não é a sua
história. O resultado é que começam cada problema da estaca
zero. Não há um sentimento de pertencer a uma tradição viva
que já possui algumas respostas elaboradas e alguns procedimentos
que vale a pena repetir.
Esta mentalidade, típica da adolescência, é aceita dentro de
certos parâmetros. O estranho hoje é que a pessoa não muda ao
chegar à idade adulta. A maneira como esta anemia anti-histórica
se tornou um traço adulto ficou evidente da primeira vez que o
homem pisou na Lua. Todos foram apanhados numa onda de
especulação histórica, inclusive o próprio Presidente Nixon, que
bastante precipitadamente declarou que aquele era o dia mais
importante na história da humanidade, escandalizando assim seu
líder espiritual Billy Graham, ao esquecer tão facilmente o nas­
cimento de Cristo. Quando essas mesmas pessoas vão à igreja, o
pastor descobre que elas têm pouca consciência de fazerem parte
de uma comunidade que transporta consigo, nas suas Escrituras e
formas de obediência, uma vida que vem sendo formada há vinte
e tantos séculos.
Essas pessoas ficam sujeitas a uma constante banalização.
Acham impossível dizer o que é importante. Compram coisas,
tanto materiais como espirituais, que jamais irão usar. Ouvem as
mesmas mentiras repetidamente sem nunca se zangar. São levadas
a entreter e praticar por algum tempo todo tipo de compromisso
religioso, desde moralismos encontrados em revistas até sessões

144
Enfermo de Uma Nova M aneira

de ocultismo. Não mostram perseverança em coisa alguma. Não


demonstram também qualquer sinal de percepção - de desenvol­
ver um senso histórico, de conscientizar-se de que fazem parte da
continuação do povo de Deus e que estão crescendo para além das
suscetibilidades adolescentes à novidade e à fantasia.
Se o pastor interpretar isto como uma forma de perda cul­
tural, ele ou ela irá tornar-se um pedagogo, tentando ensinar às
pessoas quem elas são como cristãs, fazendo sua memória retroce­
der ao passado. Mas, isso seria um erro, pois não é basicamente
uma condição cultural. O que se inicia como uma característica
normal da adolescência, mas se estende até a idade adulta cristã, se
torna um artifício astuto (geralmente inconsciente) para disfarçar
o pecado: o pecado é uma negação da dependência de Deus e in­
terdependência entre os iguais; uma recusa de ser um povo de Deus
e uma contra-insistência de que o ego do indivíduo seja tratado
como algo divino. No Jardim do Éden, a decisão de substituir
a obediência à ordem de Deus pela experiência de primeira mão
produziu numa única geração um assassinato que revelou a sua
perda da história e comunidade na insolente, porém, excessiva­
mente solitária pergunta: “Acaso sou eu tutor de meu irmão?”
Ezequiel era pastor de um povo similarmente constituído,
que, ao recusar-se a prestar contas a Deus e uns aos outros havia
perdido seu senso da história. Seu ministério nos ensina a respeito
de um estilo de resposta pastoral. Israel foi cortado de suas raízes,
os velhos rituais e tradições não pareciam ter relevância na terra
do exílio e as pessoas se tornaram presa fácil do ambiente pagão.
Todos se viram sob a tentação de procurar viver por conta própria,
moldando uma religião de acordo com as necessidades básicas de
sobrevivência. Nesta época de necessidade, o que Ezequiel não
fez foi abrir uma escola e ensinar lições de história. Em vez disso,

145
o Pastor Contemplativo

ele pregou uma nova vida, expôs a natureza do pecado do povo


e apelou para a sua consciência, a fim de se tornarem um novo
povo pela graça de Deus. Um fundamento foi estabelecido na vida
de aliança do povo de Deus que, em contraste com os conceitos
culturais e econômicos do Oriente da antigüidade (e no moderno
Ocidente!), protegeu o valor divino de cada indivíduo, mostran­
do um caminho de Salvação e um futuro promissor. As pessoas
foram aconselhadas a manter relacionamentos pessoais de serviço
e lealdade ao Deus que as libertaria da cadeia de pecado iniciada
nas gerações anteriores e lhes daria um novo começo ao perdoá-las
e depois garantir-lhes uma vida e um futuro. Elas foram então
novamente inseridas numa comunidade com uma história.
Este desenvolvimento começou, indubitavelmente, na casa
do profeta Ezequiel onde os anciãos (Ez 8.1; 12.9; 14.1;20.1;
24.19) e outros membros da colônia na Babilônia (33.30-13) se
reuniam a fim de ouvir alguma palavra de Deus ou obter conselho
sobre vários problemas. Muitos eram superficiais e só compare­
ciam por curiosidade, mas isso não impediu o profeta de encontrar
alguns que responderam ao seu apelo de tomar a decisão de se
arrependerem e serem transformados por Deus. Em conseqüên-
cia, nas reuniões, antes realizadas, para manter e preservar os bens
espirituais herdados, numa tentativa desesperada de defender-se
contra a perda da história produzida pelo exílio, o Espírito Santo
promoveu novas expectativas e soluções para a vida. Uma nova
comunidade foi estabelecida, com um senso vivo do passado re­
formulado em visões brilhantes do futuro (caps. 40-48). Ezequiel
viu que o problema do povo não era ignorância histórica, embora
fossem ignorantes nesse sentido. Com grande percepção, ele diag­
nosticou o pecado que estava usando a “perda da história” como
disfarce e pregou com convicção uma palavra da graça.

146
Enfermo de Uma Nova M aneira

O Rápido Olho Teológico

As pessoas que se encontram no ministério pastoral hoje são


pecadoras. Mas, não parecem, e muitas nem sequer agem nessa
conformidade. Elas parecem, agem e sentem como os jovens
que tanto admiram, lutando por “identidade” e buscando “in­
tegridade”. Um olho teológico rápido, que consegue apanhar
os movimentos do pecado oculto por trás dessas características
aparentemente inocentes irá manter o pastor no caminho certo,
fazendo o que foi chamado para fazer: compartilhar o ministério
da graça e do perdão centrado em Cristo.

147
Capítulo 12

Preso ao Mastro

Bem-aventurados os pacificadores

Dedos enormes de nuvens atacam


A barriga nua do céu:
O firm am en to se dobra de dor.
Relâmpagos coriscam e trovões bradam;
Os filh o s da mãe-natureza estão em conflito.
De repente, tão subitamente como começou,
Tudo acaba. Os herdeiros de Noé, com a percepção
Purificada, olham para um mundo aplacado
C onfortável e cheirando a ozônio. Aguas paradas.
Que mudança barométrica
Reorganizou essas violências
Em um sinal d e arco-íris
Pulsando de paz? M eu inim igo oferece a
Outra fa ce; eu baixo minha guarda. Um lago
Como um espelho reflete as cores filtradas.
Pinheiros soprados pela brisa cantam baixinho.

149
o Pastor Contemplativo

nne Tyler, em seu romance M organs Passing (A Passagem


A de Morgan), contou a história de um homem de meia-
idade que passava pela vida das pessoas com extraordinária
autoconfiança e habilidade para assumir papéis e satisfazer as
expectativas.
O romance começa com Morgan observando um espetáculo
de marionetes no gramado de uma igreja na tarde de domingo.
Alguns minutos depois de iniciado o espetáculo, um jovem surge
detrás do palco e pergunta: “Há um médico aqui?”. Após trinta
segundos sem que houvesse uma resposta da audiência, Morgan
se levanta devagar e, deliberadamente, aproxima-se do jovem e
pergunta; “Qual o problema?”. A esposa grávida do encarregado
está em trabalho de parto; o nascimento parece iminente. Morgan
coloca o jovem casal na parte de trás de sua caminhonete e vai
para o hospital. Na metade do caminho, o marido exclama: O
nenê está chegando!
Morgan, calmo e confiante, pára junto à calçada, manda
o futuro pai comprar um jornal de domingo na banca, como
substituto das toalhas e lençóis, e faz o parto. Depois vai até o
pronto-socorro do hospital, vê a mãe e a criança colocadas com
segurança numa maca e desaparece. Quando o alvoroço diminui,
o casal pergunta pelo Dr. Morgan para agradecer, mas ninguém
ouviu falar dele. Os dois ficam perplexos e frustrados por não
poderem expressar a sua gratidão.
Vários meses mais tarde, enquanto empurravam o carrinho
da criança, viram o Dr. Morgan do outro lado da rua. Os dois
correm para cumprimentá-lo, mostrando-lhe a criança sadia que
ele trouxe ao mundo. Contam como tinham feito tudo para
encontrá-lo e falam da incompetência burocrática do hospital
em descobri-lo. Num surto pouco costumeiro de sinceridade,

150
Preso ao Mastro

ele admite que não é verdadeiramente um médico. Na verdade,


é dono de uma mercearia. Mas, eles precisavam de um médico
e fazer esse papel naquelas circunstâncias não foi nada difícil.
E uma imagem, diz ele: você discerne o que as pessoas esperam
e se ajusta ao papel. Pode fazer isso com todas as profissões.
Morgan tem feito isso toda a sua vida, personificando médicos,
advogados, pastores ou conselheiros, conforme a necessidade
da ocasião.
A seguir, confidencia: “Vocês sabem, eu nunca me prestaria
a me fingir de encanador ou açougueiro, seria apanhado em vinte
minutos
Esse homem sabia algo que a maioria dos pastores aprendem
cedo em seu trabalho: os aspectos de imagem do pastoreio, as
partes que requerem satisfazer as expectativas das pessoas, podem
ser fingidas. Podemos personificar um pastor sem ser pastor. O
problema, entretanto, é que embora possamos ser aceitos como tal
em nossas comunidades, no geral com aplausos, não conseguimos
aceitar a nós mesmos.
Pelo menos, nem todos podem. Alguns ficam inquietos.
Sentimo-nos terríveis. Nenhum nível de sucesso parece dar
segurança contra uma erupção de angústia em meio ao nosso
aplaudido desempenho.
A inquietação não resulta de um sentimento puritano de
culpa; estamos fazendo o que somos pagos para fazer. As pessoas
que pagam o nosso salário estão obtendo o que esperam pelo seu
dinheiro. Estamos dando “boa medida” —os sermões são inspi­
radores, os comitês eficientes, a moral é boa. A inquietação vem
de outra dimensão - de uma memória vocacional, uma fome
espiritual, um compromisso profissional.

151
o Pastor Contemplativo

O Risco de Realizar a Tarefa

Ser um pastor que satisfaz uma congregação é um dos trabalhos


mais fáceis na face da Terra —se ficarmos satisfeitos com congrega­
ções satisfeitas. O número de horas é bom, o salário é adequado,
o prestígio considerável. Por que não achamos fácil? Por não nos
sentimos contentes com isso?
Pelo fato de termos nos proposto a fazer algo completamente
diferente. Nossa intenção era arriscar nossas vidas numa aventura
de fé. Comprometemo-nos a uma vida de santidade. Em algum
ponto, passamos a ter uma noção da grandiosidade de Deus e
dos grandes invisíveis que penetram em nossos braços e pernas,
no pão e no vinho, em nossos cérebros e nossas ferramentas, nas
montanhas e rios, dando-lhes significado, destino, valor, alegria,
beleza. Salvação. Respondemos a um chamado para transmitir
essas realidades em Palavra e sacramento. Oferecemo-nos para
dar liderança - que conecta e coordena o que as pessoas nesta co­
munidade de fé estão fazendo em seu trabalho e recreação —com
o que Deus está fazendo em misericórdia e graça.
Durante o processo, aprendemos a diferença entre uma pro­
fissão, uma arte, e um trabalho.
Um trabalho é o que fazemos para completar uma tarefa.
Sua primeira exigência é darmos satisfação ao dono da tarefa que
paga o nosso salário. Aprendemos o que é esperado e realizamos
o trabalho. Não há nada de errado com a realização de trabalhos.
Em um grau menor ou maior, todos fazemos isso. vVlguém tem
de lavar a louça e levar o lixo para fora.
Mas, as profissões e artes são diferentes. Nelas temos uma
obrigação além da de agradar uma pessoa; estamos buscando ou
moldando a própria natureza da realidade, convencidos de que

152
Preso ao Mastro

quando cumprirmos os nossos compromissos, beneficiamos as


pessoas num nível muito mais profundo do que se simplesmente
fizéssemos o que elas nos pediram.
Nas artes, estamos lidando com realidades visíveis; nas pro­
fissões elas são invisíveis. A arte de trabalhar em madeira, por
exemplo, tem uma obrigação para com a madeira em si, seu grão e
textura. Um bom marceneiro conhece suas madeiras e as trata com
respeito. Muito mais está envolvido do que agradar os fregueses.
Algo como a integridade do material está envolvido.
No âmbito das profissões, integridade tem a ver com coisas
invisíveis: para os médicos é a saúde (não apenas fazer com que
as pessoas se sintam bem); para os advogados, a justiça (não só
ajudar as pessoas a conseguirem o que querem); para os professores,
aprender (não encher as cavidades cranianas com informação para
as provas). E para os pastores, é Deus (não aliviar a ansiedade,
consolar, ou dirigir um estabelecimento religioso).
Todos começamos sabendo isto, ou pelo menos tendo uma
boa idéia a respeito. Mas, quando entramos em nossa primeira
igreja nos dão um emprego.
A maioria das pessoas com que lidamos é dominada por
um senso do “eu” e não de Deus. Desde que lidemos com sua
principal preocupação - aconselhamento, instrução, encoraja­
mento —elas nos dão boas notas em nossos cargos como pastores.
Quer tratemos ou não de Deus, elas não se importam. Flannery
0 ’Connor descreve um pastor em tais circunstâncias como uma
• •

parte ministro e tres partes massagista.


É muito difícil fazer uma coisa quando quase todos que nos
rodeiam estão pedindo que façamos algo muito diferente, especial­
mente quando essas pessoas são amáveis, inteligentes, respeitosas
e pagam nosso salário. Levantamos cada manhã e o telefone toca,

153
0 Pastor Contemplativo

as pessoas nos procuram e mandam cartas - geralmente numa


ocasião de desconcertante urgência. Todos esses chamados e cartas
são de indivíduos que nos pedem para fazer algo por eles, inde­
pendente de qualquer crença em Deus. Isto é, eles não vêm até
nós por estarem buscando a Deus, mas por estarem procurando
uma recomendação, conselhos, ou uma oportunidade, e supõem
vagamente que poderiamos estar qualificados para dar-lhes isso.
Há alguns anos machuquei o joelho. Segundo o meu diagnós­
tico, tudo que precisava era fazer alguns tratamentos com água em
turbilhão. Nos anos de faculdade havia um dispositivo desse tipo no
salão de ginástica e eu tive bastante experiência com a sua eficácia
para tratar das minhas lesões, assim como, para fazer com que me
sentisse bem. Em minha atual comunidade, o único aparelho se
achava no consultório do fisioterapeuta. Telefonei para marcar uma
consulta. Ele se recusou, exigindo uma receita médica.
Telefonei para um médico ortopedista e fiz um exame (a
coisa estava ficando mais complicada e cara do que eu esperava)
e ele não quis dar-me a receita para o tratamento com água.
Disse que não era o acertado para o meu caso. Recomendou
cirurgia. Protestei, o turbilhão com certeza não me faria mal,
podendo até fazer algum bem. O homem não arredou pé. Ele
era um profissional. Seu principal compromisso era com uma
abstração invisível chamada saúde, cura. Não estava compro­
metido em satisfazer meus pedidos. Sua integridade de fato o
proibia de ceder às minhas solicitações se elas prejudicassem
seu primeiro compromisso.
Aprendi, desde então, pesquisando aqui e ali, que poderia ter
encontrado um médico que me daria a receita desejada.
Reflito ocasionalmente sobre esse incidente. Estou man­
tendo clara a separação entre meu compromisso e aquilo que

154
Preso ao Mastro

as pessoas me pedem para fazer? Minha principal orientação


é a graça de Deus, Sua misericórdia, sua ação na Criação e
na aliança? Estou suficientemente comprometido com isso a
ponto de me recusar quando as pessoas me pedem para fazer
algo que não as leve a uma participação mais madura nessas
realidades? Não gosto de pensar em todas as visitas feitas, con­
selhos dados, casamentos realizados, comitês assistidos, orações
oferecidas —um amigo chama isso de aspergir água benta sobre
bonecos de palha —apenas porque me pediram isso e não me
pareceu na ocasião que resultaria em qualquer mal e, quem
sabe, poderia até fazer algum bem. Além disso, eu sabia que
havia um pastor na mesma rua que atenderia qualquer pedido
que lhe fizessem. Mas, a sua Teologia era tão precária que ele
provavelmente causaria prejuízo no processo. M inha Teologia,
pelo menos, era ortodoxa.
Como manter essa linha? Como manter um senso de voca­
ção pastoral numa comunidade que me paga para realizar serviços
religiosos? Como manter a integridade profissional em meio a um
povo acostumado a fazer pesquisas comparativas, que não pratica
muito os pontos mais elevados da integridade pastoral?

Entrando nos Destroços

Uma orientação que esmaga a ilusão é útil. Observe atentamente


a enorme quantidade de escombros ao nosso redor —corpos, ca­
samentos, carreiras, planos, famílias, alianças, amizades, prosperi­
dade, tudo destruído. Desviamos os olhos. Tentamos não pensar
nisso. Assobiamos no escuro. Acordamos de manhã esperando
por saúde, amor, justiça e sucesso; construímos rapidamente de-

155
o Pastor Contemplativo

fesas contra a avalanche de más notícias e tentamos manter nossa


esperança viva.
Então, outro tipo de desgraça nos coloca, ou a alguém que
amamos, numa pilha de destroços. Os jornais documentam as ru­
ínas com fotos e manchetes. Nossos corações e diários preenchem
os detalhes. Será que existem quaisquer promessas, quaisquer
esperanças isentas da carnificina geral? Não parece.
Os pastores entram nessas ruínas todos os dias. Por que
fazemos isso? O que esperamos conseguir? Depois de todos
esses séculos, as coisas não parecem ter melhorado muito; será
que pensamos que o esforço de mais um dia irá deter a torrente
até o Dia do Juízo Universal? Por que não nos tornamos todos
cínicos? É a pura ingenuidade que mantém alguns pastores
investindo em atos de compaixão, convidando pessoas para
uma vida de sacrifício, sofrendo abuso a fim de dar testemu­
nho da verdade, repetindo obstinadamente uma velha, difícil
de entender e muito negada história de boas novas em meio
às más notícias?
Nossa conversa sobre cidadania num Reino de Deus é
algo que pode ser considerado como o “mundo real”? Ou es­
tamos passando adiante uma ficção espiritual análoga às ficções
científicas que fantasiam um mundo melhor do que aquele em
que vivemos ou iremos viver? O trabalho pastoral é mais uma
questão de colocar flores de plástico na vida insípida das pessoas
—tentativas bem-intencionadas de iluminar uma cena negativa,
não totalmente inúteis, mas que não são verdadeiras em qualquer
sentido substancial ou vivo?
Muitos pensam desse modo e grande parte dos pastores
também faz isso em certos momentos. Se pensarmos assim com
frequência, iremos começar lenta, mas, inexoravelmente, a adotar

156
Preso ao Mastro

a opinião da maioria e moldar nosso trabalho de acordo com as


expectativas daqueles para quem Deus não é tanto uma pessoa
mas uma lenda, que supõem que o Reino será maravilhoso uma
vez passado o Armagedom, mas que seria melhor, para nós, tra­
balharmos, desde já, nos termos que este mundo nos dá, e que
pensam que as Boas Novas são interessantes - como os cartões
de cumprimentos são interessantes —mas de maneira nenhuma
necessárias para a vida diária, como o seriam um manual de com­
putador ou uma descrição de trabalho.
Dois fatos: o ambiente geral de ruínas é um estímulo
poderoso para desejarmos consertar o que está errado; a men­
talidade secular, em que Deus/Reino/Evangelho não são con­
tados como realidades primárias e vivas, está constantemente
se infiltrando em nossa imaginação. A combinação —mundo
arruinado, mente secular - se transforma numa pressão firme
e incessante para reajustarmos nossa convicção do que é o
trabalho pastoral. Somos tentados a reagir às condições assus­
tadoras que nos rodeiam em termos que fazem sentido para os
que estão apavorados.

M inistrando como Pessoas Separadas

A definição aprendida pelos pastores, que nos foi dada em nossa


ordenação, é que a tarefa pastoral é um ministério da Palavra e do
sacramento (ordenanças).
Palavra. Nas ruínas, todas as palavras soam como “sim­
ples palavras”.
Sacramento (oredenanças). Nos destroços, que diferença faz
molhar um pedaço de pão, tomar um gole de vinho?

157
o Pastor Contemplativo

Todavia, século após século, os cristãos continuam a separar


certas pessoas em suas comunidades, dizendo; “Você é nosso pastor,
ajude-nos a nos assemelhar a Cristo”.
É verdade que as suas ações irão muitas vezes manifestar
expectativas diferentes, mas nas regiões mais profundas da alma,
o desejo silencioso delas é por algo mais do que alguém desem­
penhando um trabalho religioso. Se as palavras não-ditas fossem
pronunciadas, soariam assim:
“Queremos que você seja responsável por dizer e representar
entre nós aquilo que cremos sobre Deus, o Reino e o Evangelho.
Cremos que o Espírito Santo está entre nós e em nós. Cremos
que o Espírito de Deus continua a pairar sobre o caos do mal
deste mundo e do nosso pecado, moldando uma nova Criação e
novas criaturas. Cremos que Deus não é um espectador, às vezes
divertido e às vezes alarmado com os destroços da história mundial,
mas, um participante.
Cremos que o invisível é mais importante do que o visível em
qualquer momento e em qualquer evento que decidamos exami­
nar. Cremos que tudo, especialmente tudo que parece destroço é
material que Deus está usando para criar uma vida de louvor.
Cremos tudo isto, mas não vemos. Vemos, como Ezequiel,
esqueletos desmembrados, brancos sob o sol impiedoso da Babi­
lônia. Vemos uma porção de ossos que antes haviam sido crianças
rindo e dançando, adultos que expunham suas dúvidas e canta­
vam louvores na igreja —e pecavam. Não vemos os dançarinos,
os enamorados ou os cantores —só vislumbres fugidios deles. O
que vemos são ossos. Ossos secos.. Vemos pecado e julgamento
sobre o pecado. E isso o que parece. Parecia assim a Ezequiel;
parece assim para quem quer que tenha olhos para ver e cérebro
para pensar; e parece assim para nós.

158
Preso ao Mastro

Mas cremos em algo mais. Cremos que esses ossos vão reunir-
se, transformando-se em seres humanos com nervos e músculos,
que falam, cantam, riem, trabalham, creem e bendizem o seu Deus.
Cremos que aconteceu da maneira como Ezequiel pregou e cremos
que ainda acontece. Cremos que aconteceu em Israel e que acorre
na Igreja. Cremos que somos parte do acontecimento enquanto
cantamos louvores, ouvimos a Palavra de Deus, recebemos a nova
vida de Cristo nos sacramentos. Cremos que a coisa mais signi­
ficativa que acontece ou pode acontecer é que não estamos mais
desmembrados, mas unidos ao corpo ressurreto de Cristo.
Precisamos de ajuda para manter nossa fé viva, precisa e
intacta. Não confiamos em nós mesmos. Nossas emoções nos
atraem para a infidelidade. Sabemos que nos aventuramos num
ato perigoso e difícil de fé e que existem influências fortes, desejosas
de dissolver ou destruir essa fé. Queremos que nos ajude. Seja
nosso pastor, um ministro da Palavra e dos sacramentos em todas
as diferentes partes e estágios de nossas vidas —em nosso trabalho
e recreação, com nossos filhos e nossos pais, no nascimento e na
morte, em nossas celebrações e tristezas, naqueles dias em que a
manhã se inicia com um sol radiante, e naqueles dias em que o
tempo está sombrio. Esta não é a única tarefa na vida de fé, mas
é a sua tarefa. Encontraremos outra pessoa para fazer as outras
tarefas importantes e essenciais. Esta é a sua: Palavra e sacramento
(ordenanças).
Mais uma coisa: Vamos ordená-lo para este ministério e
queremos sua palavra de que vai manter-se nele. Este não é um
trabalho temporário, mas um estilo de vida que precisamos que
seja vivido em nossa comunidade. Sabemos que você faz parte da
mesma aventura difícil de fé, no mesmo mundo perigoso em que
vivemos. Sabemos que as suas emoções são tão instáveis quanto

159
Capítulo 13

Deserto e Colheita:
Uma História Sabática

Bem-aventurados os perseguidos

As águas hostis realizam algo am igável:


Maldições, pedras lançadas pela catarata,
Suavizam as aspereza; um rio impetuoso de água alvacenta
De blasfímias atiradas pelo ódio
E depois apanhadas pelo sol, borrifa os arcos do
Arco-íris. Salva pelo ataque impessoal do rio
A terra se aprofunda até o leito rochoso.
Paciência sábia se fa z sentir
Em depósitos ocasionais, silenciosos, escarpados
Que disciplinam as águas violentas até acalmá-las,
E as prendem sob a folhagem verde
Para os pássaros e as corças se banharem e beberem
Em paz —0 dom da perseguição:
A paz abençoada, mas dificilm ente recebida.

161
o Pastor Contemplativo

stávamos ambos apreensivos, minha esposa e eu. Ficamos


doze meses longe da nossa congregação, um ano sabático, e
empreendíamos a volta para ela. Fora um ano magnífico, embe­
bidos no silêncio, engolindo grandes haustos de ar das terras altas.
Poderiamos lidar com a transição da solitude das Montanhas de
Montana para o trânsito de Maryland?
Ser pastor é um trabalho difícil; talvez não mais do que qual­
quer outro —todo trabalho bem feito exige tudo que temos —mas,
mesmo assim difícil. Durante um ano não havíamos trabalhado:
nada de telefonemas para interromper, nem criatividade exultante/
exaustiva no púlpito, ou deveres cumpridos com pertinácia. Nós
nos divertimos e oramos. Cortamos madeira e escavamos a neve.
Lemos e conversamos sobre as nossas leituras. Esquiamos pelo
país no Inverno e caminhamos no Verão.
Todos os domingos fizemos o que não havíamos feito
durante trinta anos: nos sentamos juntos e adoramos a Deus.
Fomos à igreja luterana em Somers com 70 ou 80 outros cristãos,
quase todos noruegueses, e cantamos hinos que não conhecía­
mos muito bem. O Pastor Pris nos guiou em oração e pregou
excelentes sermões.
Confortável no banco em um domingo de abril, tive um
vislumbre do que o pastor estivera fazendo naquela semana —as
reuniões às quais comparecera e as crises que suportara. En­
quanto o Espírito fazia uso do sermão do Pastor Pris para falar
pessoalmente comigo, na periferia da minha mente eu percebia,
admirado, a perícia, exegética e homilética por trás dele. A seguir,
como as pessoas sentadas nos bancos da igreja geralmente fazem,
divaguei mentalmente: "‘Como ele fa z isso semana após semana?
Como se m antém tão ágil, tão alerta, tão no alvo, tão vivo paras as
pessoas e para Cristo? Bem no m eio de todo este estresse, emoção,
162
Deserto e Colheita: Uma História Sabática

estudo, e com ércio eclesiástico? Esse deve ser o em prego mais d ifícil
da Terra —eu nunca poderia fa z er isso. Fico contente p o r não ter
um trabalho assim.
Lembrei-me, então: ‘Mas, eu tenho um emprego assim, esse é o
»
meu emprego —ou voltará a ser, em poucos meses!’.
Esses “poucos meses” haviam sido reduzidos agora à “próxi­
ma semana”. Não tínhamos certeza de que estaríamos à altura.
E possível que o ano sabático, em vez de nos recuperar tivesse
apenas nos estragado. Em vez de nos energizar, quem sabe, teria
nos enervado. Durante trinta anos havíamos vivido a uns cem pés
de profundidade no oceano da vida eclesiástica (quanta pressão
por cm^?) e durante um ano sabático subimos à superfície, nos
queimamos ao sol, brincamos na neve. Os escafandristas entram
em câmaras de descompressão depois de descerem ao fundo do
mar, para não ficarem curvados. Sentimos uma necessidade
equivalente de uma “câmara de descompressão”, ao voltarmos
das profundezas.
De Montana para a Costa Leste, a estrada Interstate 90 se
estende numa linha reta convidativa, com duas curvas radicais.
Mas nos afastamos dela num desvio para o Sul, para o deserto
de Colorado, com o propósito de fazer um retiro de quatro
dias num monastério. Segundo esperávamos, o monastério
seria a nossa câmara de descompressão. Não era como se não
tivéssemos tempo para orar. Nunca tivemos tanto tempo para
isso. Sentíamos, porém, a necessidade de outra coisa no mo­
mento —uma comunidade de oração, alguns amigos dedicados
à oração dentre os quais poderiamos imergir nossa vocação
como pastor.
Oramos então durante quatro dias numa comunidade
desse tipo. Os dias tinham um ritmo agradável: orações ma-

163
o Pastor Contemplativo

tutinas na capela com os monges e outros interessados às seis


horas. Orações vespertinas às 17 horas, antes, depois e nos
intervalos, silêncio —caminhando, lendo, orando, se esvazian­
do. O ritmo se quebrava no domingo. Depois das orações
da manhã e da Eucaristia, todos se reuniam para um desjejum
barulhento e festivo. O silêncio havia cavado poços de alegria
que se derramavam agora para a comunidade em conversa
artesiana e risos.
Quando deixamos o monastério, o ano sabático em Montana
tinha ficado, como pedimos em oração, para trás, tanto emocional
como geograficamente. Três dias mais tarde chegamos a Maryland,
concentrados e explodindo de energia.

Estímulo para o Ano Sabático

A idéia de um período sabático teve origem num estímulo duplo:


fadiga e frustração. Eu estava cansado. Isso não é incomum em
si, mas tratava-se de um cansaço que as férias não resolviam - um
cansaço do espírito, um tédio interior. Senti um núcleo espiritual
em minha fadiga e quis buscar um remédio espiritual.
Durante minha vida de pastor, eu passara também a escrever.
Ansiava por um tempo para expressar alguns pensamentos sobre
a minha vocação pastoral, tempo que nunca estava disponível
enquanto atuava como pastor.
Um ano sabático parecia servir perfeitamente a ambas as
necessidades. Mas, como consegui-lo? Sirvo numa igreja de um
único pastor e não havia dinheiro para custear um período sabá­
tico. Quem me substituiría enquanto estivesse ausente? Como
pagaria a aventura? As duas dificuldades pareciam insuperáveis.

164
Deserto e Colheita: Uma História Sabática

Mas, senti que se o sabático fosse de fato o remédio para uma


necessidade espiritual, a igreja poderia apresentar uma solução.
Comecei telefonando a vários líderes da congregação, con­
vidando-os para irem à minha casa uma noite. Disse a eles como
me sentia e o que desejava. Não pedi que resolvessem o proble­
ma, mas sim que procurassem comigo uma solução. Fizeram
uma porção de perguntas e me levaram a sério; consideraram o
assunto como uma tarefa congregacional: começaram a se sentir
como pastores em relação a mim. Quando a noite terminou, não
havíamos resolvido as dificuldades, mas eu sabia que tinha aliados
orando, trabalhando e pensando comigo. O conceito “sabático”
se expandiu e ganhou forma. Num período de vários meses, as
“montanhas” se moveram.
Substituição: Isto acabou não sendo tão difícil. Minha
denominação se ofereceu para ajudar na localização de um
pastor interino - há muitos homens e mulheres disponíveis
justamente para esse trabalho. Decidimos, finalmente, chamar
um jovem que havia servido recentemente como seminarista
durante um ano para nós.
Fundos: Preparamos um plano em que a igreja pagaria um
terço do meu salário e eu providenciei os outros dois terços. Fiz
isto alugando minha casa por um ano e pedindo ajuda a um amigo
generoso. Minha família tinha uma casa de fazenda junto a um
lago em Montana, onde meus pais, agora falecidos, haviam morado
e onde sempre passávamos as férias. Era adequada para a nossa
necessidade de solidão, e podíamos viver ali sem muitas despesas.
Detalhe após detalhe se encaixou, nem sempre fácil ou
rapidamente, mas, depois de dez meses, o ano sabático foi
aceito e planejado. Interpretei o que estávamos fazendo numa
carta a congregação:

165
o Pastor Contemplativo

“Os anos sabáticos são a provisão baseada na Bíblia para a res­


tauração. Quando o campo do lavrador fica esgotado, passa
por um período sabático —depois de seis anos de plantação e
colheita, é deixado descansar por um ano para que nutrientes
voltem a crescer nele. Quando as pessoas no ministério ficam
exauridas, elas recebem também um sabático —tempo livre
para a recuperação das energias espirituais e criativas durante
cerca de dois anos. A sensação de que minhas reservas estão
baixas, que minhas margens de criatividade estão lotadas,
se torna mais aguda a cada semana. Sinto a necessidade de
algum tempo de ‘deserto’ —de silêncio, solitude, oração.
“Uma das coisas que mais temo como seu pastor é que por
fadiga ou preguiça eu acabe só fazendo os movimentos,
substituindo o trato pessoal com a vida do Espírito pela
afabilidade profissional em nossa vida juntos. As exigências
da vida pastoral são grandes, e não há pausas para descanso
das mesmas. Bem poucas vezes no dia deixo de enfrentar a
luta de fé em alguém, as energias profundas, centrais, eternas
que fazem a diferença entre uma vida vivida na glória de
Deus e a desperdiçada na autocomplacência ou banalizada
nas diversões. Quero estar pronto para esses encontros. Isso
é o que significa para mim ser pastor: ficar em contato com a
Palavra e a presença de Deus e estar pronto para agir de acordo
com essa Palavra e presença no que quer que esteja fazendo
—enquanto guio vocês na adoração, ensino as Escrituras,
converso e oro com vocês individualmente, reunindo-me em
grupos enquanto organizamos nossa vida comum, escrevendo
poemas, artigos e livros.
E nesta área de intensidade e intimidade, mantendo-me no
centro onde a Palavra de Deus torna as coisas vivas, que sinto

166
Deserto e Colheita: Uma História Sabática

a necessidade de renovação. As exigências são muito maiores


hoje do que em anos anteriores. Uma das coisas que 23 anos
de vida pastoral entre vocês significa é que existe uma rede
complexa de indivíduos, tanto dentro como fora da congre­
gação, com os quais tenho relacionamentos significativos.
Não gostaria que fosse de outro modo. Mas deve fazer
também algo para manter as molas centrais da compaixão e
da criatividade para que tudo não passe a ser apenas rotina.
Paralela a esta necessidade de um tempo de ‘deserto’, sinto a
necessidade de um tempo de ‘colheita’. Estes 23 anos com
vocês têm sido plenos e ricos. Vim para cá inexperiente e sem
mentores. Juntos, ensinados pelo Espírito e uns pelos outros,
aprendemos muito. Vocês se tornaram uma congregação, eu
me tornei um pastor. Durante este tempo, compreendi que
escrever é um elemento-chave em minha vocação pastoral
com vocês. Tudo que escrevo tem origem no solo desta
comunidade de fé, enquanto adoramos juntos, obedecemos
às Escrituras, procuramos discernir a presença do Espírito
em nossas vidas. Quando escrevo, um número crescente de
leitores expressa apreciação e me afirma no trabalho. No
momento, tanta coisa que já está madura e pronta para ser
colhida, permanece sem ser escrita. Quero escrever o que
vivemos juntos. Não quero fazer isso às pressas, ou descui­
dadamente; mas escrever bem, para a glória de Deus.
Jan e eu conversamos sobre isso, oramos juntos e consul­
tamos pessoas que julgamos sábias. A solução óbvia era
aceitar um chamado para outra congregação. Isso proveria
a simplicidade de novos relacionamentos, descomplicados
pela história e o estímulo de novos começos. Não quisemos,
porém, partir daqui, no caso de haver outro caminho; a vida

167
o Pastor Contemplativo

de adoração e amor que criamos juntos é um imenso tesouro


que só deixaremos se nos pedirem. Chegamos à idéia do
sabático, um ano de afastamento para orar e escrever, para
que pudéssemos voltar a este lugar e este povo e fazer o nosso
melhor em nosso ministério para vocês.
Um período de deserto então e um tempo de colheita, tempo
para orar e escrever, os dois tempos lado a lado, contrastando,
convergindo, numa espécie de fertilização-cruzada. Muitos
de vocês já deram a sua bênção e encorajamento nesta aventu­
ra, confirmando nossa decisão de dar este passo de fé, sendo
obedientes a Deus em nossas vidas”.

Estrutura para o Sabático

Foi isso que aconteceu. Doze meses longe da minha congregação.


Doze meses para orar e escrever, adorar e caminhar, conversar e
ler, lembrar e refletir.
Desde o início havíamos considerado o sabático como um
empreendimento conjunto, satisfazendo uma necessidade espi­
ritual tanto no pastor como na congregação. Não queríamos
que o ano fosse interpretado como uma fuga, visto como “indo
embora para fazer o que querem”. Tínhamos um compromisso
com aquela congregação. O sabático foi providenciado para apro­
fundar e continuar nosso ministério comum. Como transmitir
isso? Como cultivar nossa intimidade na fé e não permitir que a
separação geográfica nos afastasse espiritualmente?
Decidimos escrever uma “Carta Sabática” mensal em duas
partes “O lado de Jan” e “O lado de Eugene”. Enviamos um rolo
de filme junto com a carta; um amigo revelou as fotos de nossa

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Deserto e Colheita: Uma História Sabática

vida naquele mês e as expôs num mural. As cartas e fotografias


tiveram exatamente o efeito desejado. Mas, só um lado das cartas
parece que foi lido cuidadosamente - o de Jan. Eu não podia
deixar de pregar. Ela transmitia a experiência sabática.
Brita Stendahl escreveu certa vez que o ano sabático que ela
e o marido, Krister, passaram na Suécia: “nos restaurou a vida”.
O lado de Jan das cartas sabáticas revelou essa dimensão do nosso
ano para nossos amigos adoradores e cheios de fé em casa. Ela
estabeleceu o tom na primeira carta:

“Separada de nós por 4.000 km, minha sogra sempre se alegrava


ao receber uma carta nossa. Em vista de Eugene ser o mais velho
e estar procurando aventura’ tanto física quanto ideologicamen­
te, ela gostava de receber suas cartas cósmicas e teológicas. Ele
lhe contava todas as ‘Grandes Idéias’. Mas, por ser mãe e dona
de casa, gostava especialmente de ouvir de mim, porque eu ex­
plicava o que tínhamos para o jantar, os últimos problemas ou
triunfos de seus netos, os rasgões nas roupas deles e os oráculos
precoces que pronunciavam. Você pode ler as ‘Grandes Idéias’
do outro lado da página, mas aqui está a carta de minha sogra
para vocês, nossa querida família e igreja:
‘A viagem através do país foi boa. Acampamos duas noites no
trajeto. Não esquecemos da maioria dos conselhos que nos de­
ram quando partimos, mas as advertências quanto a usar roupas
quentes não deram certo. Em nossa primeira noite em Montana
acampamos na cabeceira do rio Missouri e conseguimos con­
gelar a extremidade específica que não é adequado mencionar
numa carta circular para a igreja. Pusemos o cachorro dentro da
tenda para aquecer-nos melhor, embora ela não fosse de tanta
ajuda quanto precisávamos. O céu estava maravilhoso com suas

169
o Pastor Contemplativo

estrelas brilhantes até o fim do horizonte. (Nunca pensei que


as estrelas fossem até o horizonte!). A tenda ficara coberta de
gelo como vimos na manha seguinte.
A primeira semana aqui foi gasta em limpeza, arrumação, e
tentativas de aquecer a casa. Acho que finalmente aprendi
a fazer fogo com pedaços de madeira. Entremeamos nossos
arranjos domésticos com passeios na floresta e lendo em voz
alta um para o outro (Garrison Keillor no momento).
Um dia resolvemos ir até o Glacier Park para ver dezenas de
águias calvas pescando filhotes de salmão em MacDonald
Creek. No ano passado, mais de 500 foram vistas num só
dia. Depois disso esquiamos até o lago Avalanche, 40 km até
um circo glacial. O tempo se mostrara esplêndido — flocos
de neve, sol, vento, nuvens.
Temos cerca de 30 patos nadando em nossa baía aqui no lago.
No domingo passado voltamos do culto de adoração e vimos
uma criatura peluda em nosso embarcadouro, lambendo-se
para secar, e percebemos que era uma marta.
Eric e Lynn vieram de Spokane para o fim de semana.
Convidamos o irmão e a irmã de Eugene para uma refeição
improvisada na noite de sexta-feira. Foi uma reunião alegre e
agradável. Uma de nossas orações para este ano é que nossas
reuniões de família sejam ricas e plenas de bênçãos.
Uma das últimas coisas que pedimos a Mabel Scarborouh
fazer para nós antes de sair de Bel Air foi atualizar a lista dos
membros da igreja para que pudéssemos orar por vocês todos
os dias, nossa família da fé. Fiquem certos do nosso amor
e nossas orações. Nos sentimos muito próximos de vocês.
Nosso jantar desta noite foi peixe com molho branco sobre
pãezinhos salgados”.

170
Deserto e Colheita: Uma História Sabática

Nosso tempo era assim. Ao chegarmos a Montana, esta­


belecemos uma rotina para apoiar nosso duplo alvo de deserto e
colheita, para não desperdiçarmos o ano. Concordamos em uma
semana de trabalho de cinco dias, com o sábado e o domingo
dedicados ao descanso e oração. Eu trabalhava duro cinco horas
por dia, escrevendo em minha mesa e depois relaxava. Fazíamos
nossas orações vespertinas ao cair da tarde e depois líamos um
para o outro enquanto preparavamos o jantar. Depois de nove
meses desta vida, eu havia escrito os dois livros que desejava
completar (a “colheita”). A partir de então tudo foi “deserto”
—ler, orar, esquiar.

Recuperado para o M inistério

Tudo o que eu esperava aconteceu: Voltei com mais energia do


que posso lembrar-me de ter tido desde os 15 anos. Eu sempre
gostei de ser pastor (com lapsos ocasionais, mas breves). Mas,
nunca tanto assim. À experiência da minha maturidade junta­
va-se agora à energia de minha juventude, uma combinação que
não julguei possível. As partes do trabalho pastoral que eu antes
fizera por obrigação, só porque alguém tinha de executá-las, agora
desempenhava alegremente. Sentia reservas profundas dentro de
mim, espaçosas e fluindo livremente. Sentia grandes blocos de
tempo ao redor de tudo que fazia - conversas, reuniões, escrever
cartas, telefonemas. Senti que nunca mais teria pressa. O sabático
fizera sua obra.
Um benefício com o qual eu não contara foi uma mudança
na congregação. Estavam refrescados e confiantes de um modo
que eu não observara antes. Um dos perigos de um pastorado

171
o Pastor Contemplativo

muito longo é o desenvolvimento de dependências neuróticas en­


tre o pastor e seu povo. Eu me preocupara com isso de tempos a
tempos: “ Teria sido saudávelficar tanto tempo naquela congregação?
Será que eu tomara o lugar de Deus para eles?”
Esses temores ficaram mais agudos quando propus o ano sa-
bático, pois muitos expressaram ansiedade excessiva — medo que
eu não voltasse, que a igreja não pudesse sustentar-se sem mim,
que a vida de fé, adoração e confiança que havíamos trabalhado
tanto para alcançar se desintegraria na minha ausência. Nenhum
desses temores veio a concretizar-se. A congregação prosperou.
Eles descobriram que não precisavam absolutamente de mim.
Descobriram que podiam ser uma igreja de Jesus Cristo, tão bem,
com outro pastor quanto comigo. Voltei para uma congregação
confiante na sua maturidade como povo de Deus.
Um incidente recente, aparentemente trivial, ilustra a pro­
funda diferença que continua se manifestando numa variedade de
situações. Cerca de 25 de pessoas de nossa igreja estavam indo para
um retiro de liderança de dois dias. Havíamos combinado de nos
encontrar no estacionamento da igreja às 17h45 para distribuir as
pessoas nos carros. Naquele dia fiz uma visita ao hospital, que levou
mais tempo do que eu planejara e cheguei cinco minutos atrasado,
encontrando o estacionamento vazio. Eles me deixaram para trás.
Antes do sabático isso nunca teria acontecido, agora esse tipo de
coisa acontece repetidamente. Eles tomam conta de si mesmos,
como sabem que eu tomo conta de mim mesmo. Maturidade.
A congregação e eu estamos experimentando grande li­
berdade nisto: não precisam os neuroticamente um do outro.
Não dependo deles; eles não dependem de mim. Isso nos
deixa livres para apreciar-nos mutuamente e receber dons de
ministério uns dos outros.

172
A PALAVRA
RENOVADA
Capítulo 14

Poetas e Pastores

Não é significativo que todos os profetas e salmistas bíblicos


tenham sido poetas?

O s pastores e os poetas fazem muitas coisas em comum: usam


palavras com reverência, se envolvem nos particulares de cada
dia, espiam as glórias das banalidades, advertem sobre as ilusões,
cuidam das ligações sutis entre ritmo, significado e espírito. Penso
que deveriamos buscar uns aos outros como amigos e aliados.
Os poetas são os zeladores da linguagem, os pastores das pa­
lavras, impedindo que estas sejam prejudicadas, exploradas, mal
interpretadas. As palavras não só significam algo; elas são algo,
cada uma com um som e um ritmo próprio.
Os poetas não estão tentando principalmente dizer-nos, ou
obrigar-nos a fazer algo. Ao cuidar das palavras com disciplina
brincalhona (ou brincadeira disciplinada), eles nos levam a um res­
peito maior pelas palavras e pela realidade que nos apresentam.
Os pastores estão também no negócio das palavras. Prega­
mos, ensinamos e aconselhamos usando palavras. As pessoas, no

175
o Pastor Contemplativo

geral, dão especial atenção à possibilidade de Deus estar usando


nossas palavras para falar com elas. Temos a responsabilidade de
usar bem e com exatidão as palavras. Mas, isso não é fácil. Vive­
mos num mundo onde as palavras são usadas descuidadamente
por alguns, astuciosamente por outros.
É fácil para nós dizer o que nos vem à mente, nosso papel
de pastor compensando nossas palavras vazias. E fácil dizer o que
lisonjeia ou manipula, adquirindo assim poder sobre outros. De
maneira capciosa, ser pastor sujeita nossas palavras à corrupção.
Essa a razão de ser importante freqüentar a companhia de um
amigo poeta — Gerard Manley Hopkins, George Herbert, Emily
Dickinson e Luci Shaw são alguns dos meus — alguém que se
preocupa com as palavras e usa de sinceridade com elas, que res­
peita e honra seu poder avassalador. Saio desses encontros menos
descuidado, vendo restaurada a minha reverência pelas palavras
e pela Palavra.
Não é significativo que os profetas e salmistas bíblicos fossem
todos poetas? E curioso que tantos pastores, cujo ofício inclui a
área profética e sálmica (pregação e oração), sejam indiferentes aos
poetas. Ao ler os poetas, descubro aliados congeniais no mundo
das palavras. Ao escrever poesias, descubro-me praticando minha
arte pastoral de maneira bíblica.
Os seguintes poemas são baseados no fator principal da en­
carnação, a doutrina mais próxima do ministério pastoral. Caro
salutis est cardo, escreveu Tertuliano: “A carne é o ponto central
da Salvação”.

176
Capítulo 15

Poemas

SAUDAÇÃO

“A legra-te, m uito favorecida:


O Senhor é contigo
(Lucas 1.28)

Meu carteiro, dirigindo seu


Caminhão, enfeitado de azul e vermelho, sem asas
Mas com rodas, comissionado pelo serviço civil
Entrega diariamente o Evangelho em cada Advento.
Este Gabriel, em uniforme de gabardine.
Descendente carrancudo de seu deslumbrante original.
Sob o peso das saudações é estóico
Mas pontual: anunciações às dez de cada manhã.
Uma ou duas ou três por dia a princípio;
Na segunda semana o momento termina,
Minha caixa de correspondência está lotada, cada cartão selado.
Com a glória custando apenas vinte e cinco centavos,
(Trazendo as novas de que Deus está aqui conosco)
Primeira classe, endereçada pessoalmente à mão.
177
o Pastor Contemplativo

AARVORE

“Do tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas raízes, um


>y
renovo .
(Isaías 11.1)

As raízes de Jessé, adubadas com carcaças


De pombas e cordeiros, pergaminhos de bois e cabras,
Séculos de orações ressecadas e sacrifícios
Sangrentos, agora produzem para mim o fruto do Evangelho.
O ramo de Davi, alimentado em solo judeu
Se abre em flor messiânica, e então
Amadurece em uma colheita do reino, conservando
A fragrância e o calor da Primavera para uso no Inverno.
Espírito Santo, sacode a nossa árvore familiar;
Lança tua fruta amadurecida em nossos braços estendidos.
Eu gostaria de ver meus filhos fincarem os dentes
Nas romãs da terra prometida.
E nas uvas de Canaã, dons de Deus,
Enquanto salto uma corda de graça seguindo uma cadência
Cristã.

178
Poemas

A ESTRELA

“Vê-lo-ei, mas não agora; contemplã-lo-ei, mas não de perto;


uma estrela procederá de Jacó
(Números 24.17)

Estreia alguma é visível exceto à noite,


Até que o sol se ponha.
O brilho do dia oculta o que a escuridão nos revela,
Na hora em que adormeço o urso avança.
Abro os olhos para as trevas amaldiçoadas mas necessárias,
O fosso escuro que seca a minha cisterna.
E vejo, não de perto, não agora, a marca celestial
Explodindo no céu sua mensagem-quasar.
Em meio à escuridão, por trás de mim, um sol
Lançado há anos-luz, completa o seu curso;
Os céus não-decifrados de mito e história
Narram agora a magia cadenciada da glória.
Pilotos perdidos esperam a noite para planejar seu vôo.
Os peregrinos diurnos, por sua vez, louvam a meia-noite.

179
0 Pastor Contemplativo

AVELA

“O povo que andava em trevas viu grande luz, e aos que viviam
na região da sombra da morte, resplandeceu-lhes a luz”.
(Isaías 9.2)

Candelabros sem velas e lâmpadas sem óleo abandonados


Por virgens insensatas apressadas demais para esperar
E cuidar da luz são pistas para a vigília fracassada,
A chegada perdida, o-que-poderia-ser da meia-noite.
O pavio e a cera protestam.
Chama frágil, desafiadora contra terrores
Demoníacos que sopram em rajadas, invisíveis e anônimos,
Do vazio das galáxias sem Deus.
Bem fundo na escuridão incêndios alimentados por
Crentes sábios surpreendem, iluminando tudo que foi
Abandonado.
Feridos e tropeçando num mundo ignorante
O súbito clarão envolve cada cabeça com uma auréola.
Feixes de sol filtrados pela tempestade buscam e destroem
A sombria desolação. Eu vejo. Eu vejo.

180
Poemas

O TEMPO

“Vindo, porém , a plenitude do tempo. Deus enviou seu Filho,


nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam
sob a lei, a fim de que recebéssemos a adoção... ”
(Gálatas 4.4-5)

Passei metade, ou mais da metade, da minha vida


Esperando, esperando a chegada do dia
Quando a aurora lança o sol animado de riso
Através do firmamento de Deus até minha tenda.
Em meu outro relógio, o pecado vou adiando
Até que esteja pronto, o que nunca pareço
Estar, o dia apreendido, o sonho do reino
Realizado. Minha cabeça ficou tempo demais no cocho.
Mantendo um ritmo messiânico firme.
Marés oceânicas e sangue de mulher penetram
O abismo que chama outro abismo e traz à luz
Os anos de semeadura, e agraciam esta terra invernosa.
Medido pela lua metronômica.
Nada conta melhor o tempo do que um útero.

181
0 Pastor Contemplativo

O SONHO

“...lhe apareceu, em sonho, um anjo do Senhor”.


(Mateus 1.20)

Amigavelmente familiarizado com a virtude e o mal,


A justiça de José e a perversidade
De Herodes, sou sempre e sempre um estranho à graça
E preciso desta visitação anual do anjo.
Mergulho súbito do sonho para a realidade—
Para saber que a virgem concebe e que Deus está conosco.
O sonho segue seu caminho através da estação do Inverno
E me permite contemplar em visão o dom de Jesus.
A luz do sonho dura um ano impenetrável
De equinócio e solstício são doze meses
De luz do dia em que vejo o presépio onde meu
Redentor vive. Arquétipos de louvor tomam forma
Profundos em meu espírito. Quando o Outono se vai
Conto os dias até que sonhe novamente.

182
Poemas

O BERÇO

“E ela deu à luz o seu filh o prim ogênito, enfaixou-o e o deitou


numa manjedoura".
(Lucas 2.7)

Para nós que só conhecemos pais imperfeitos


E mães malsucedidas, esta criança é uma surpresa:
Uma realização súbita de tudo que esperamos
Pudesse acontecer. Esperanças acumuladas supridas pelas
Profecias,
Fragmentos de velhos sermões e cânticos, agora chora
Balbucia e murmura no berço, uma protolinguagem
Confusa que no momento em que conseguir
Uma língua (e nós, é claro, abrimos os ouvidos)
Pronunciará os grandes substantivos: alegria, glória, paz;
E viverá os melhores verbos: amar, perdoar, salvar.
Juntamente com as faixas as palavras são lavadas
De todo sentimento vulgar, limpas de
Todas as promessas não-cumpridas e depois penduradas no
Quintal do mundo, alvas e brilhantes, o Evangelho desfraldado.

183
o Pastor Contemplativo

A DOR

“...um a espada traspassará a tua própria alma, para que se


manifestem os pensam entos de muitos corações”.
(Lucas 2.35)

O choro das criancinhas, de certo modo sempre


Inadequado —por que os amados e inocentes devem
Cumprimentar a existência com choro? —é uma prova de que
Nem tudo está bem. Sonhos e partos quase não combinam.
Anseios profundos permanecem insatisfeitos, feridas
Continuam abertas. O que é natural e alegre se transforma
Em esgares e maldições medonhos. Um ferimento surge
No lugar do êxtase. O nascimento é envolto em sangue.
Todo sofrimento é um prelúdio da sinfonia, da doçura.
A pérola começa como uma dor no estômago da ostra.
O corniso, reciclado do berço à cruz, entra
De novo no mercado como uma canga para aliviar os fardos.
Cada lado aberto pela espada é a matriz para Deus
Vir novamente a mim mediante o labor, causando alegria.

184
Poemas

AGUERRA

“...e 0 dragão se deteve em fren te da m ulher que estava para


dar à luz, a fim de lhe devorar o filh o quando nascesse... Houve
peleja no céu ”.
(Apocalipse 12.4,7)

Este nascimento é um sinal para a guerra. Os apaixonados


Brigam,
Os amigos se separam. Brindes alegres de taças
De ponche desaparecem no estômago dos dragões.
A mãe e a criança sobreviverão a esta noite infernal?
Tive a minha parte de luta no trânsito:
Brigas na cozinha, socos no recreio;
Todo coro de querubins tem seu lado agressivo,
Aprendi então um dia que a luta era cósmica.
Trégua: Abaixo as armas; meus braços se enchem
De presentes: selvagens e domésticos, reais e empalhados
Leões. Cordeiros brincando, o gado em repouso,
A força festiva dos pais da criança. Um corvo
Grasna desafiador na brancura que vai embora.
Satânica e vazia ameaça confrontando a claridade.

185
o Pastor Contemplativo

O CÂNTICO

“Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra entre os


homens, a quem ele quer bem ”.
(Lucas 2.14)

Fora de sintonia, com os pés plantados no chio, minha língua


Aguçada,
Uma discórdia marchante, falante, aborrecida.
Os murmúrios do meu coração registrados em fichas
De laboratório.
O ruído entre minhas orelhas náo pode ser cantado.
Insatisfeito, me uno a uma fila de pessoas difíceis de
Agradar
Que querem trocar suas almas ásperas e burguesas
Por uma mente grega perspicaz e um nariz romano aquilino,
E então nos encontramos surpresos na entrada de um estábulo.
Anjos cantando e um Deus jubiloso
Se unem ao coro de vacas, ovelhas e cães.
Na beirada da manjedoura, entre desejos e presentes
Vislumbro a carne recém-formada, agora minha. Eles levantam
Vozes de louvor e cantam doze tons
De prazer em meus músculos, em meus ossos.

186
Poemas

A FESTA

“Porque o Poderoso m e fez grandes cousas...Encheu de bens os


fam intos e despediu vazios os ricos”.
(Lucas 1.49,53)

Os seios pejados de leite transbordam de bênçãos e acalmam


A criança, fazendo-a aquietar-se, deixando o sofrimento:
El Shaddai
Fez grandes coisas por mim. A terra amamenta o céu nas
Encostas do Grand Teton (O mais alto pico da Cordilheira
Teton, que faz parte das Montanhas Rochosas).
Adulto, ele oferece desjejuns, parte o pão,
Hóspede itinerante de um milhão de festas.
Seus ossos alimentados de leite são sepultados intatos
No túmulo de Arimatéia.
O mundo sente fome:
E corre para a mesa que Ele preparou:
Carne forte, vinho encorpado.
Brindando com meus amigos nas Montanhas
De Inverno, estou de volta durante segundos
Com a freqüência de toda semana:
Beba longamente! Beba!

187
o Pastor Contemplativo

A DANÇA

‘L ogo que m e chegou aos ouvidos a voz da tua saudação, a


criança estremeceu de alegria dentro em mim".
(Lucas 1.44)

Um outro coração estabelece a batida que me põe


Em movimento, em perichoresis, passos
Aprendidos no útero antes da fundação do mundo.
Nunca perdendo uma batida; disposição de louvar.
Saltando em direção à luz, Estou dançando
No escuro, tocando agora a barriga da bênção,
Agora o lado dolorido, pronto para o nascimento,
Para dar nome e viver o mistério do amor abertamente.
Os quase-mortos e os quase-vivos captam
Os ritmos átonos em seus músculos ociosos.
E alegremente dão cambalhotas e gritam três aleluias
Mas nem todos: “Os surdos sempre mostram desprezo.
Pelos que dançam”. Isso não interrompe os dançarinos:
Todos que esperam a luz saltam ao ouvir a voz de saudação.

188
Poemas

O PRESENTE

“Porque um m enino nos nasceu, um filh o se nos deu; o governo


está sobre os seus ombros; e o seu nom e será: M aravilhoso Con­
selheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz”.
(Isaías 9.6)

Quase doente de excitação e sob luzes brilhantes


Repito sempre, ano após ano após ano.
Não posso esperar para abrir as caixas e
Mostrar a meus amigos: Vejam o que ganhei!
Rasgo o papel de cada presente, mas descubro
Que todas as etiquetas mentiram. Pedras.
E meu coração uma pedra também. “Morto em transgressões
E pecados”. As luzes vão embora. Mais tarde meus olhos.
Acostumados ao escuro, vêem envolto
Em papel Cristo-laminado e com fitas Espírito-coloridas
O messias de muitos nomes, rótulos de amor
Na forma de fé, cada nome uma promessa
E cada promessa um presente, feito e nomeado
Tudo ao mesmo tempo. Eu aceito.

189
o Pastor Contemplativo

A OFERTA

“Paguem -lhe tributos os reis de Társis e das ilhas;


os reis de Sabá e de Sebá lhe ofereçam presentes...
Viverá, e se lhe dará do ouro de Sabá!”
(Salmo 72.10,15)

Nascido num mundo onde não existe alimento gratuito


E educado para usar presentes como objetos de troca, passo
O resto de minha vida recebendo este presente sem
Condições, mas não me saio muito bem.
Três sábios de roupão com quinze ou dezessete
Centímetros à cjea n s e tênis aparecendo, se ajoelham
E oferecem dádivas que simbolizam os presentes
Que nenhum de nós está ainda pronto para dar.
Alguns ficam para trás, apagam as velas,
Varrem a palha e guardam o presépio.
Abrimos a porta para a noite do mundo
E descobrimos que tivemos um melhor
Desempenho. Vamos embora com o que nos resta substituído
No ofertório por ouro do reino.

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