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XIX.
1
Para Waldemar Thiesen, meu avô (em memória daquelas
manhãs quando andávamos pela cidade do Rio Grande e eu, ainda menina,
podia ouvir as histórias que ele contava sobre as construções antigas, as
lápides do cemitério ou as bancas do mercado. Mais tarde, no seu escritório,
aprendia que os objetos – o barômetro, o tinteiro, o relógio de parede, as
moedas e os selos das coleções – contavam sobre gentes que haviam feito
tantas coisas) e, também, para Fernando Lopes Thiesen, meu pai e Zoah
Valladão Thiesen, minha mãe. Porque me ensinaram o prazer e a
importância de conhecer o que passou. E porque me mostraram, com o
exemplo de suas vidas, que é preciso abrir os próprios caminhos, romper os
próprios limites ...e tantas vezes recomeçar. (“Quando abrir a porta e
assomar à escada, saberei que lá embaixo começa a rua; não a norma já
aceita, não as casas já conhecidas, não o hotel em frente; a rua, a floresta viva
onde cada instante pode jogar-se sobre mim como uma magnólia, onde os
rostos vão nascer quando eu os olhar, quando avançar mais um pouco,
quando me arrebentar todo com os cotovelos e as pestanas e as unhas contra a
pasta de tijolo de cristal, e arriscar minha vida enquanto avanço passo a passo
para ir comprar o jornal na esquina.” Julio Cortázar)
&
(Mário Quintana)
2
AGRADECIMENTOS
A todas as pessoas que foram envolvidas por mim neste trabalho, sou grata. Embora
seja um tanto injusto não mencionar todas, gostaria de expressar meu particular
reconhecimento a algumas.
Minha gratidão é especial para com a arqueóloga Me. Fernanda Tocchetto, com quem
Redenção. Foi ela quem me incentivou a voltar para a Arqueologia, foi ela quem primeiro me
mostrou como poderia ser interessante fazer um estudo de Arqueologia Histórica Urbana. Os
primeiros textos e as primeiras idéias desenvolvidas neste trabalho foram discutidos com ela.
E nossas discussões duraram o tempo que durou esta pesquisa (e há de durar muito mais).
Trabalhamos, percorremos muitas ruas, tomamos muito café (ela chá) juntas. Ela apresentou-
me pessoas, abriu espaços, facilitou todas as coisas. Agradeço por tudo isto, e, acima de tudo,
comigo e, muito mais que colegas, foram grandes amigos: aos arqueólogos José Alberione
Reis, Martial Pouguet, Maria Farias, Cristiane Oliveira da Costa e Sérgio Ozório, agradeço
“bons conselhos”.
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Houve aquelas que supriram minha falta de conhecimento ou agilidade em alguns
ramos: agradeço à fotógrafa Daniela Terra Vasquez pelas fotos das casas e a Pedro Ramos
pelas da Planta Cadastral de 1895, à Mirian Carle pela digitação de grande parte do texto e
montagem final deste trabalho, a Cesar Kieling pela finalização gráfica dos mapas e ao Diogo
Sou muito grata ao Professor Dr. Klaus Hilbert, não só pela bibliografia, pelas dicas e
boas idéias, mas também por ter me encorajado a vencer uma certa fobia em relação aos
computadores, o que favoreceu a obtenção de informações que não teriam sido possível obter
Um reconhecimento especial deve ser dado ao meu orientador, Professor Dr. Arno
um, as primeiras noções do nosso ofício e, em outro, a necessária qualificação para exercê-lo.
Agradeço, ainda, a orientação dada a esta pesquisa e a sua confiança em mim como
Carla Carvalho Pereira e Márcia Lara da Costa, sempre prontas a quebrar algum galho.
Ao Museu Joaquim José Felizardo, agradeço todo apoio institucional e aos seus
pessoas fizeram com que o trabalho de pesquisa se tornasse mais ameno e mais interessante.
4
Sou muito grata, ainda, ao pessoal da EPAHC, pelas informações que me forneceram e
pela paciência que tiverem em explicar “n” vezes o funcionamento e organização das coisas.
Luft: por seu carinho e atenção para com os meus filhos durante as minhas ausências, por
algum café quentinho no meio de uma tarde fria e, até, por ter se prontificado a copiar um
Quero agradecer, finalmente, aos meus pais, pelo esforço que realizaram para segurar
a barra do dia a dia, com apoio material e emocional, pela confiança e pelo incentivo. Sem
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ABREVIATURAS:
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 10
ALEGRE........................................................................................................................ 43
2. OS LUGARES............................................................................................................ 80
3. OS ESPAÇOS............................................................................................................. 266
BIBLIOGRAFIA............................................................................................................ 306
ANEXO........................................................................................................................... 308
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ÍNDICE DE MAPAS
8
Poderia falar de quantos degraus são feitas as
ruas em forma de escada, da circunferência dos
arcos dos pórticos, de quais lâminas de zinco são
recobertos os tetos; mas sei que seria o mesmo
que não dizer nada. A cidade não é feita disso,
mas das relações entre as medidas de seu espaço e
os acontecimentos do passado [...]
9
INTRODUÇÃO
desenvolvidas pelo Museu Joaquim José Felizardo a partir de 1994 com objetivos de
salvamento (áreas que estavam sendo ameaçadas por construções ou reformas) – como é o
caso do Solar Travessa Paraíso120, o Mercado Público, a Praça Rui Barbosa e o Solar Lopo
como é o caso da escavação na Praça Brigadeiro Sampaio. Todas essas pesquisas vinham
sendo realizadas tratando cada uma dessas unidades como um sítio arqueológico autônomo.
dos espaços, modos de vida e relações dos diferentes grupos humanos que ocuparam este
estabelecer inter-relações das diversas unidades presentes na cidade vista como um todo.
120
O Solar da Travessa Paraíso foi escavado por Cláudio B. Carle em projeto junto ao Museu Joaquim José
Felizardo e Equipe do Patrimônio Histórico do Município - EPHAC.
121
. O Solar Lopo Gonçalves foi escavado em outro momento por Luiz Cláudio Pereira Symanski para a
realização de sua dissertação de mestrado (apresentada em 1997).
122
Este Programa tem a coordenação de Fernanda Tocchetto e a colaboração de Luiz Cláudio Symanski e
Shirley M. dos Santos.
10
No entanto, o conceito de cidade-sítio, em si, não dá conta do problema de pensar o sítio-
arqueológico-cidade como objeto a ser compreendido. É preciso, para além disto, situar a
problemática da pesquisa na própria questão urbana. Isto significa ver a cidade para além
que uma cidade pode exercer nesses fenômenos. Isto não quer dizer tomar a cidade como se
ela fosse causa última e única do que ocorre aí: cidade, por si só, não tem poder de criar ou
que o processo de urbanização tem em muitos aspectos da vida social e tomar a cidade
como algo a ser compreendido sob uma perspectiva histórica, vendo-a como parte de uma
determinado tempo e determinado local, podem exercer sobre a sociedade ali estabelecida.
Assim, penso que fazer Arqueologia Urbana, no sentido estrito da expressão, não é
fazer arqueologia na cidade, mas fazer arqueologia da cidade124. Considero que se não
estivermos vendo a cidade como um sítio cujas diversas partes estão inter-relacionadas, se
não considerarmos que ela está inserida em uma totalidade maior, situada em um contexto
123
Segundo Oliven, o enfoque que vê a cidade como uma variável explicativa, ou “como uma potência social
capaz de gerar com sua influência os mais variados efeitos na vida social” (1984:20), está ligado à corrente
da ecologia humana representada por alguns membros da Escola de Chicago, que inaugurou a Sociologia
Urbana. Esta abordagem ecológica é essencialmente a-histórica, postulando uma relação causal entre formas
ecológicas (cidades) e estruturas sociais e culturais. Sobre os diversos enfoques utilizados para estudar a
cidade do ponto de vista sociológico, ver Oliven, 1984.
124
Staski (1982:97) definiu Arqueologia Urbana “como o estudo das relações entre cultura material,
comportamento humano e cognição num assentamento urbano”. Este autor lembrou que muitos arqueólogos
discutiram a questão da arqueologia na cidade versus arqueologia da cidade, e considerou que a “primeira
consiste em dirigir questões de pesquisa num assentamento urbano, enquanto a segunda implica em utilizar
métodos arqueológicos para contribuir com a compreensão do fenômeno urbano”. Juliani (1996), seguindo a
proposta de Cressey e Stephens (1982) aborda a “cidade-sítio” sob esta última perspectiva.
11
sociais e culturais que ocorrem aí, então estamos fazendo arqueologia na cidade e não da
cidade.
realizar uma nova leitura do fenômeno urbano, ou seja, olhar a cidade pelo viés
(Vogel e Mello, 1984:47-8), uma vez que este é o espaço onde se desenrolam as rotinas, o
Arqueologia Urbana permite, assim, a reapropriação pelos indivíduos que vivem na cidade,
do seu patrimônio, da sua história, da sua dimensão temporal, da sua memória. “A grande
identidade”(Idem).
processos culturais pelo estudo sincrônico e diacrônico das organizações espaciais de uma
etc., mas mantendo o olhar que é específico da Arqueologia e buscando responder questões
que lhes são próprias. Esse olhar implicou em considerar a cidade como um sítio, cujos
artefatos possuem formas e técnicas próprias que correspondem a idéias da sociedade que
125
O termo interdisciplinaridade parece ter perdido seu sentido original na própria prática do trabalho
científico, tornando-se uma forma de, segundo Reis (1997:52), tomar “empréstimos a outras disciplinas”,
realizando uma justaposição de abordagens. Em contraposição a isto, o termo transdisciplinaridade tem sido
empregado, segundo este autor, no sentido de ir “a outros campos, abrangendo-os [e voltar] ao território
informacional obtido na própria arqueologia para co-produzir o conhecimento”.
12
os produziu. Talvez o grande desafio deste tipo de arqueologia seja o de não perder de
significantes que compunham o espaço urbano na área central de Porto Alegre no século
XIX. Em áreas onde as escavações não são possíveis (ninguém teria a pretensão de realizar
“open areas” no centro de Porto Alegre) e onde as possibilidades desse tipo de intervenção
caráter de salvamento, é necessário buscar outras formas de chegar ao objeto. Além disto,
como bem colocou Tânia Andrade Lima (1989:96), referindo-se às diferenças entre a
Neste caso, em termos de técnica de campo, a prospecção não é mais uma etapa do
trabalho a ser realizada em função da escavação. Aqui, esta prática é o próprio trabalho de
13
associação ao uso de mapas, plantas, fotografias, com o objetivo de obter, de forma mais
recomenda, em seu capítulo 4º (In: SAB, 1996:43), que se obtenha o maior conhecimento
possível dos sítios, sua extensão e natureza. Kern (1996) realizou uma tradução dos
diversos critérios existentes neste documento, que ressalta a importância dos “inventários
essenciais para que se possam elaborar as diversas estratégias de proteção, nos inúmeros
sítios arqueológicos” (Idem:29). Além disto, a Carta aprovada em Lausanne, em seu artigo
5º (IN: SAB, op. cit.:43), é clara: técnicas não destrutivas devem prevalecer, sempre que
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Essa arqueologia que não envolve necessariamente escavação126, essa arqueologia
cidade. E é no andar e no olhar a cidade que é possível constatar algo simples, porém
(visíveis ou não) e essas fronteiras que separam e dividem espaços são percebidas e
classificadas por oposições (casa - rua, público – privado, nosso – deles, sagrado –
profano,...)127. É assim que a cidade se estrutura em ruas, praças, mercados, casas. Lugares
onde se vive, mora, comercia, reza, brinca. Espaços que são, para além da coisa física,
como bem observou Roberto Da Matta (1987:59), “esferas de sentido” “que contêm visões
de mundo ou éticas que são particulares”. Os grupos sociais, e cada sociedade, precisam,
assim, ainda seguindo este autor, de uma gramática de espaços128 para poder existir. Ou,
dito de outra forma, as sociedades precisam realizar uma ordenação lógica entre essas
esferas de sentido (Da Matta: 1983, 75). E aí se chega ao problema central desta pesquisa.
126
Isto não significa perder de vista a importância da escavação na pesquisa arqueológica. Pelo contrário,
considero-a fundamental no sentido de que permite aprofundar os conhecimentos obtidos num primeiro
momento onde se leva em conta os vestígios de superfície. Estes, no entanto, são fundamentais, até mesmo
para que se realize uma escavação criteriosa.
127
Parto do pressuposto, compartilhado com muitos antropólogos estruturalistas, incluindo Lévi-Strauss
(1975), cujas idéias derivam de argumentos originalmente formulados na lingüística estrutural –
particularmente por Jakobson (Leach, 1977:29) – que o cérebro humano possui mecanismos que o tornam
capaz de “realizar distinções +/-, para tratar os pares binários assim formados como pares afins e para
manipular essas „relações‟ como numa matriz algébrica”(Idem.:51). Assim é possível segmentar e ordenar o
mundo externo e, através da cultura, formular um sistema de contrastes próprio que pode ser ordenado tanto
na forma de uma oposição binária, quanto em gradações.
128
O termo gramática é tomado aqui como aquele conjunto de regras compartilhado por uma cultura que,
presidindo a criação de qualquer forma de expressão (seja na língua falada ou num artefato) permite que ela
possa ser aceita por qualquer membro da cultura que a produziu. Utilizo a expressão “gramática espacial” no
sentido de conjunto de regras que formam a lógica que permite uma determinada ordenação dos elementos
que compõem o sistema espacial de uma sociedade.
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diferentes em qualidade, sensibilidade e forma de organização”. Conforme este
entanto, e mais além, o espaço entendido como esferas de sentido, constitui “a própria
perspectivas próprias” (Idem 51-2). Assim, o que precisamos descobrir são essas esferas de
significação social e a ordenação lógica entre elas, observando que modificações podem ter
estruturava o espaço urbano no centro de Porto Alegre? Onde estão e como se configuram
público (rua), ou seja, onde estão e como são as portas, as janelas e os jardins? Como estão
ordenados e articulados esses espaços? A que grupos sociais eles estão ligados e como?
Para tentar responder algumas destas questões, sugiro que os diferentes grupos
sociais que constroem suas diferentes realidades e diferentes normas espaciais, buscam
“fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de ser no mundo, a
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Surge, daí, o conceito de representações coletivas, conforme proposto por Chartier
(1991), como uma ferramenta capaz de dar conta de uma problemática que inclui a
compreensão dos espaços centrais de Porto Alegre, sua ordenação e articulação e, portanto,
uma sociedade e que orientam as práticas, as ações concretas, onde elas estão imbricadas e
onde elas se nutrem. Elas são, segundo Chartier, “as matrizes de práticas construtoras do
próprio mundo social” (ibidem). Se isto é correto, e eu penso que é, então as representações
coletivas estão na base da construção dos espaços cuja gramática encontra sua expressão
nas práticas sociais. Colocado desta forma, representações e práticas sociais são
inseparáveis: não são nem contraditórias e nem uma é mais verdadeira que a outra. São
como as duas faces de uma mesma moeda, pistas diferentes, mas complementares para se
representações coletivas, inscritas nos discursos, na arquitetura, nos traçados das ruas, nos
espaços vazios. São, também, os diferentes grupos sociais que se ligam a essas
representações, e são, ainda, as práticas vividas por esses grupos que possuem, também, sua
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O termo cosmologia quer significar “uma teoria ou filosofia das origens e estrutura geral do universo,
seus componentes, elementos e leis, especialmente aquelas relacionadas a algumas variáveis como espaço,
tempo e causalidade. A forma como o cosmos é estruturado, afeta a religião e a ideologia” (Flannery e
Marcus, 1993:267).
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A dificuldade de fazer esta reconstituição a partir destes fragmentos situa-se no fato
de que, por um lado, as representações não são obtidas de forma direta, ou seja, as
representações não afloram espontaneamente dos discursos. E, por outro lado, está a
correlacionados aos aspectos materiais desta cultura. A chave para resolver este problema
mas complementares, como se fossem duas faces de uma mesma moeda, levando em conta
objetos, formas, códigos ou normas culturais, buscando o recorte mais apropriado que
considere que as diferenciações sociais não são meramente de classe econômica, mas que
18
Mas para chegar a isto, precisamos, antes de mais nada, delinear o contexto
urbano, que aqui é o objeto principal e que, em última análise, serve de suporte às
peculiaridades que merecem que se teçam algumas considerações, que são importantes
mais acostumados a ambientes assépticos - o arqueólogo costuma deixar sua casa e seu
cotidiano para coletar seus dados em campo. Ele busca, em geral, culturas diferentes da sua,
responsável pela imagem por demais conhecida do arqueólogo envolvido nas mais diversas
aventuras, cujos estereótipos tem sido motivo de riso e prazer, mesmo entre nós.
(a bem da verdade, na maioria das vezes, são apenas alguns banhados). Essa imagem
romântica tem servido, por um lado, de atrativo a muitos que se iniciam nesta ciência e, por
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outro, de elemento que inspira aversão àqueles mais ligados às bibliotecas, aos arquivos,
aos ambientes isentos de barro, água, muito sol e vários tipos de insetos.
outras ciências sociais – que no nosso meio acadêmico ainda insistem em considerá-la
“vende” esta sua imagem romântica e esse seu interesse pelo que poderia ser chamado de o
outro-remoto.
de quem está acostumado a tratar com milênios e com povos exóticos, é causa de, no
imagem, que nos é tão cara (veja-se com que alegria essas peripécias são contadas nas
mesas de bar), do arqueólogo que se defronta com todo tipo de dificuldades, desconfortos e
intempéries a fim de salvar o que, sem ele, estaria para sempre perdido.
Pesquisar o que nos é tão familiar e tão próximo como a cidade onde nascemos e
sempre vivemos, faz com que os problemas a serem enfrentados sejam bem diferentes
130
Kern (1996:35) argumenta: “Para muitas pessoas, inclusive profissionais de nível superior, a arqueologia
é ainda hoje apenas vista como uma técnica de pesquisa praticada por alguns especialistas. Entretanto, ela é
muito mais do que isto, pois atualmente ela adquire um papel importante como meio de cultura essencial,
base do conhecimento das Ciências Humanas e – portanto – elemento fundamental na formação de um
humanismo moderno.”
131
Esta observação refere-se particularmente ao caso brasileiro e não deve ser entendida como uma
generalização que vá além destes limites. É sabido que na Europa, por exemplo, onde a arqueologia surgiu
mais ligada à história, pesquisas como esta são cotidianas e incluem a arqueologia medieval, gallo-romana, ou
mesmo das cidades do século XIX.
20
No entanto, quem pensa que é difícil atravessar zonas alagadiças em campo,
experimente tentar observar um prédio do centro de Porto Alegre (você estará olhando para
cima) às 15 horas de uma tarde de dezembro (lembra o calor e o Natal?). Se for uma rua
risco é o mesmo, acrescentando-se que a pessoa a dizer impropérios não estará se afastando
em um carro. Além disto, há os gerentes das lojas a pedirem que se saia da frente das
informações à quem eles supõem ser uma entrevistadora dos mais insólitos temas. Isto para
não falar dos terrenos repletos de caliça e lixo (atual), que se faz acompanhar de um odor
característico, e onde é preciso andar, sempre em busca de mais algum vestígio; ou, ainda,
de proprietários pouco amistosos que estariam mais felizes se você estivesse bem longe de
suas casas e terrenos. Você terá que tomar suas anotações, de preferência, caminhando (e
olhando por onde anda) e o vento que encana nas esquinas durante a primavera poderá
fazer com que folhas, fotos e mapas se espalhem por uma área que parecerá imensa, tendo
ligados ao fato de estar pesquisando algo tão familiar foram os mais importantes. Realizar o
apenas de ver com outros olhos um espaço tão conhecido, mas para além disto e como
21
questão de enfrentar os meus próprios limites de participante de uma cultura, de um grupo
“conhecido” é o que torna a tarefa mais difícil e complexa: é preciso questionar aquilo que
rapidamente perceber que um povo que bebe em malgas e não em xícaras, que dorme em
Barbearias, joga seu lixo pela porta dos fundos (e muitas vezes pela da frente) de casa, que
compra farinha, brincos de ouro e gente (escravos) no mesmo lugar (armazém) e que coloca
um cágado numa fonte (com a intenção de manter a água limpa) e um guarda para cuidar da
segurança deste cágado que, ao final, acaba morto (o cágado) por um grupo de estudantes,
é, sem dúvida, um povo muito exótico. E, então, é preciso compreender esse povo, a partir
possibilidade de pensá-los, procurando seus próprios termos, mais que impondo nossas
categorias a eles. E foi o que tentei fazer, buscando e analisando, um pouco no sentido
proposto por Geertz (1999), as formas simbólicas em cujos termos aquelas pessoas
representaram seus espaços, bem como a suas experiências em relação a esses espaços.
Por outro lado, é preciso evitar a armadilha de tratar o objeto de pesquisa cidade-
sítio como muitas vezes alguns arqueólogos pré-históricos brasileiros tratam uma “aldeia”,
132
Sobre esta questão ver Velho (1978 e 1980) e, ainda, Da Matta (1984).
22
um sítio pré-histórico: “é preciso levar em consideração a malha de relações que [o
significado mais amplo de uma aldeia guarani vai além dos limites da própria aldeia.
sua situação no tempo” (Kern, 1998:168). Isto implicou em atividades de campo que
tipologias (Idem). Em tempos mais recentes tem-se buscado a “inserção dos elementos da
contextos e outros sítios (Ibidem). Não é de hoje, portanto, que estudos de etnoarqueologia,
arqueologia regional, da paisagem, entre outros, tem enfocado aspectos como hierarquias
sociais, simbologia, crenças, intercâmbios, etc. Porém, a Arqueologia Histórica possui uma
trabalho.
Uma descrição da paisagem de Porto Alegre poderia começar assim: a cidade está
Janeiro (só para complicar), banhada pelas águas do Guaíba. Trata-se de um lago, apesar
sedimentar (na parte próxima ao lago), e em parte composto por rochas graníticas, que
formam um promontório. Seguindo esta linha, poderia dizer que ela está situada na
aspectos climáticos. Mas não creio que estivesse dizendo muita coisa que importasse para
este estudo.
A paisagem, aqui, não tem o sentido da geografia física. O meio físico tem apenas
uma importância secundária, ainda que a paisagem possa possuir uma forma física
influenciada por fatores como o relevo e o clima. Aqui a paisagem é, acima de tudo, uma
paisagem social e ela pode – e deve – ser considerada como uma fonte importantíssima
para compreender a vida dos porto-alegrenses do passado. A paisagem não é cenário, nem
pano de fundo e “mais que um simples reflexo da organização das coisas, ou mediadora de
133
A arqueologia da paisagem vem sendo empregada no Brasil preferentemente pelos arqueólogos históricos
e pode apontar importantes caminhos para a pesquisa pré-histórica, tomando o sentido inverso do que ocorreu
na Europa, depois da pesquisas de Leroi-Gourhan do Magdeleniense em Pincenent, onde a pesquisa pré-
histórica muito ensinou à arqueologia histórica.
24
gostos, a paisagem é uma força ativa na criação, legitimação e mudança social”134
cultura material, implica em pensar a relação entre sujeito que faz e objeto que é feito.
Neste sentido, a paisagem tem sido tratada como artefato por muitos arqueólogos. Mark
Leone (1996), por exemplo, em seu trabalho em William Paca Garden, Annapolis,
Maryland, mostrou como ela pode ser construída para legitimar uma hierarquia social.
Neste caso específico, o arqueólogo não está tratando mais com um artefato tecnômico ou
sociotécnico, como colocou Rubertone (1989:52) muito propriamente, mas com um artefato
ideotécnico135. Muitos outros tem trilhado o mesmo caminho, embora com enfoques
diversos.
como uma ação consciente que reflete comportamentos culturalmente determinados. Como
ação intencional, portanto como artefato, ela promove objetivos políticos, econômicos,
sociais e os expressa. Pode-se pensar, então, que através da paisagem urbana, assim
134
Os trechos que estavam originalmente em língua estrangeira foram traduzidos quando citados neste
trabalho. A responsabilidade desta tradução é minha. Da mesma forma, quando foram citados documentos
antigos, escritos num português da época, eles sofreram uma atualização ortográfica, que também é de minha
responsabilidade.
135
Binford (1962) considerou a divisão da cultura material em 3 sub-classes, tendo em vista as funções que os
artefatos desempenham em diferentes contextos: 1) artefatos tecnômicos, cuja função é fundamentalmente
utilitária, ligando-se diretamente ao meio físico e à tecnologia da cultura; 2) artefatos sóciotécnicos, que tem
seu contexto funcional primário no sistema social ; e 3) artefatos ideotécnicos cujo uso liga-se a contextos
ideológicos do sistema social. Deetz (1977:51) chamou a atenção para o fato que os mesmos artefatos podem
ter funções em todos os três níveis simultaneamente.
136
Rubertone considera que a paisagem é aquela porção do terreno “que tem sido formada e modificada por
ações humanas e desenhada conscientemente para fornecer moradia, acomodando o sistema de produção,
facilitando o transporte, marcando diferenças sociais e expressando estética” (Rubertone, 1989: 50).
25
definida, podemos chegar a saber sobre estruturas sociais, valores culturais e outros
Não há como duvidar que existe uma relação de intencionalidade entre o homem e o
análise da cultura material, aspectos não materiais da cultura. 137 No entanto, Upton (1992)
chamou a atenção para o perigo de reduzir essa paisagem ao resultado de uma relação
puramente intencional. Para ele, e eu concordo, é necessário entendê-la para além disto,
“para o produto incidental de uma ação cultural” (Idem: 52). Não se trata, portanto, de
“examinar simples relações entre intenção mental e criação física, entre a mente e o
artefato (mas) o estudo da cidade como cultura material obriga a investigar as relações
Retomando, então, uma descrição da paisagem portalegrense, eu diria que, para este
fim, importa menos saber se o Guaíba é um rio ou um lago e interessa mais a forma como
ele é percebido e utilizado pelos habitantes da cidade e qual a sua importância para eles. É
preciso considerar os aspectos geográficos, mas apenas na medida de sua relação com as
gentes do local. Por exemplo, descrevendo alguns aspectos de Porto Alegre na década de
1830: no ponto mais alto do promontório ergueu-se a Matriz e o Palácio138, local que é
137
Deetz, ao definir cultura material como aquela parte do meio físico ao qual o homem dá forma segundo um
conjunto de planos culturais, chamou a atenção para o fato de que um dos seus maiores benefícios é”fornecer
acesso ao pensamento daqueles responsáveis por sua criação”(Deetz, 1988 : 220)
138
Ainda que as Ordenações do Reino estabelecessem diretrizes quanto a localização de edifícios públicos e
da Igreja Matriz, bem como algumas regras gerais para o traçado urbano (Rhoden, 1999:177), o que importa
aqui é que este traçado e esta localização correspondem às idéias, aos planos culturais, para utilizar a
expressão de Deetz (op. cit) que estão na base da construção dessa paisagem.
26
considerado como o ponto mais nobre da cidade – o Alto da Praia. Lá embaixo, junto ao
“rio”, está o Largo da Quitanda, onde se pode ver os negros a venderem frutas, charque,
lenha, hortaliças e outros gêneros. O Largo está junto ao prédio da Alfândega e ao trapiche,
onde os comerciantes da cidade se reúnem para conversar e negociar e por onde chegam e
“rio”, está o Largo da Forca, situado próximo ao Arsenal de Guerra, aonde se chega
descendo o “morro” por um dos estreitos e sujos becos que ligam a elegante Rua da Igreja
à comercial e militar Rua da Praia. Assim, colocado o entendimento acerca do que sejam
as paisagens, o problema básico que precisa ser resolvido é de que forma podemos
costumam centrar suas pesquisas: trata-se de onde as coisas estão, ou, dito de outra forma,
pelos seus vestígios no solo. Pode ser uma casa, uma rua, uma praça, uma lixeira coletiva.
O lugar é algo concreto e mensurável. Possui limites nítidos e bem determinados e pode ser
139
Esta divisão já foi proposta muitas vezes. Rubertone (1986) propôs uma análise utilizando essas
categorias e propugnando uma visão que englobasse as ligações entre ambas. Orser (1996) também
considerou esta divisão. Se, por um lado, parece que todos estão de acordo com o que seja lugar ( definido de
forma ampla como onde as coisas estão), o mesmo não acontece com espaço. Rubertone considera como
“zonas intersticiais”, “arredores”, ou “adjacências”, da mesma forma que Dewar (apud Rubertone, 1986:
124), que definiu como “vizinhança”, ou imediações do lugar. Orser, por sua vez, considerou o espaço de
outra forma: compartilhando do mesmo sentido amplo de “onde as coisas não estão”(Orser, 1996 : 135),
observa, que espaço é uma realidade física, ligada ao lugar, espécies de “manchas” onde alguma coisa está
situada. Orser introduz, ainda, o conceito de espacialidade, entendida como uma realidade vivida e não como
uma realidade natural dada. Para Lefebvre (apud Orser, op.cit.:137), espaço pode ser algo abstrato, sem a
materialidade do lugar, mais ligado à elementos de ordem mentais.
27
definido enquanto objeto (espacial) de práticas sociais (Meneses: op. cit., 15). O estudo dos
O espaço, vai além do físico e mensurável. Antes de tudo, ele designa “esferas de
orações, música e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas” (Da Matta, op. cit.:
15).
O espaço tem, assim, características imateriais que fazem com que a tarefa de
reconhecê-los seja bem mais complexa que no caso dos lugares. O espaço inclui um
(Ibidem: 16).
Assim, um dos caminhos para tratar o espaço são os estudos utilizando modelos de
uso da terra, identificando áreas de atividades. Este tipo de pesquisa é bem conhecido em
140
Em arqueologia histórica cito o exemplo de Rubertone (1982 a e b ). De um outro ponto de vista e
tomando uma paisagem histórica rural, cito a proposta de Adams (1990) para o estudo de fazendas norte-
americanas.
28
espaço” (Rubertone, op. cit.: 51), não é o suficiente. Análises deste tipo fornecem
importantes informações sobre o que foi feito, onde foi feito, ou como foi feito, mas não
nos ajudam a saber porque foi feito. E esta última questão, ao final e ao cabo, é a principal,
creio.
Acontece que as atividades que ordenam espaços não são apenas de ordem
tantos outros aspectos que envolvem a complexidade das relações humanas. E aqui é bom
lembrar que a Arqueologia não é nenhuma panacéia capaz de dar conta de tudo isto. No
referência que está na base das práticas sociais (e embebido nelas), trazendo em si a
este tipo de trabalho), é preciso dizer que existe entre os pesquisadores uma certa
flexibilidade quanto às fronteiras da Arqueologia, ainda que esta seja uma questão ainda
muito discutida (Kern, 1998:169). Porém, não são poucos aqueles que não aceitam falar-se
numa arqueologia do não-remoto, numa arqueologia da própria cultura. Não foram poucas
Arquitetura”, ou mesmo de uma “História Social”, isso para não citar expressões pouco
lisonjeiras de setores mais ortodoxos. Como lembra Oliven (1980:25), ainda hoje a
29
academia tende a compartimentalizar artificialmente o conhecimento “em cátedras e
departamentos, cujos titulares são geralmente muito ciosos de seus domínios”. Assim,
aceita-se uma arqueologia urbana do século XIX, como é o caso deste estudo, mas que se
e análises espaciais que contem apenas com vestígios de superfície, mas cuja cultura ligue-
etc.). Mas é difícil aceitar uma Arqueologia sem escavação da própria cidade (leia-se da
própria cultura) em um tempo tão recente. A verdade é que existe um confronto que parece
ser comum a toda ciência, mas que aparece mais fortemente naquelas, como é o caso da
Arqueologia, que, por vários motivos, encontram-se, ainda, no nosso meio, em processo de
legitimação141.
próprio grupo, o arqueólogo trabalha sempre com a cultura material, e é a natureza material
implica em perder de vista o intercâmbio com outras áreas de conhecimento. Pelo contrário,
que possa nos servir de apoio e favorecer uma abordagem mais interpretativa, que
141
Se isto não é verdadeiro em escala mundial (ver, por exemplo, a Carta Internacional para a Gestão do
Patrimônio Arqueológico – ICOMOS) ou nacional (ver, por exemplo, os trabalhos de Lima:1997 ou Souza,
1997), certamente é no nível regional ou, dito de outra forma, provincial.
30
Como em todas as novas áreas de pesquisa que se abrem, correm-se riscos, erra-se e
encontram-se um sem-número de dificuldades. Mas creio que isto deve ser enfrentado, e
vale a pena, porque nos leva a ampliar e a complexificar nosso objeto e, em última
preciso ter em mente que “os documentos históricos são limitados em número e parciais
quanto à sua origem” (Kern, 1985:103) e, portanto, inúmeros aspectos da vida das
sociedades passadas não são contempladas ai, essa documentação pode favorecer a
que, muitas vezes, faz com que - aos olhos tanto do arqueólogo pré-histórico, como do
Beaudry (1993) chamou a atenção para o fato de que muitas pesquisas neste campo acabam
tendo uma natureza tautológica: usa-se sítios históricos para testar modelos desenvolvidos
arqueólogo que irá fazer com que ele resulte em uma vantagem ou em uma desvantagem. O
mesmo pode ser estendido às fontes iconográficas. Desta forma, vou me deter um pouco em
colocar as formas através das quais as fontes foram tratadas nesta pesquisa.
século XIX. Trata-se de ruas, praças, casas, prédios públicos, nem sempre contemporâneos
31
entre si e que hoje, misturados a construções modernas, constituem a paisagem do centro da
cidade. Alguns (poucos) se mantém em sua forma original, outros sofreram modificações
diversos de reciclagem142. Como colocar isto tudo em ordem? Ou, em outras palavras,
O primeiro passo foi o de entender cada rua, cada praça, cada prédio (cada unidade
histórica e socialmente.
142
Segundo Schiffer (1987) existem três tipos de reutilização dos artefatos: ciclagem lateral, onde há apenas
uma mudança de usuário ou de unidade social e onde o artefato mantém sua forma e função original; o uso
secundário, onde o artefato tem seu uso modificado sem ser ele mesmo totalmente modificado e a reciclagem
que implica na mudança da morfologia geral do artefato.
32
O importante é perceber aqui que as formas arquitetônicas e a própria organização e
articulação do espaço são vistos como um discurso através do qual se pode ter acesso às
Porto Alegre desenvolvido pelo Museu Joaquim José Felizardo, dentro do Programa de
Bairro Centro da cidade (divisão política) foi definido como uma Zona de Interesse
Arqueológico. Esta definição leva em consideração critérios históricos (ex: local onde
surgiu a cidade) e arqueológicos (ex: alta densidade de vestígios significantes). Para esta
pesquisa foi tomada uma parte desta zona como amostra. A partir disto, tratou-se de
143
Esta pesquisa é coordenada pela arqueóloga Fernanda Tocchetto e tem a participação de Beatriz Thiesen e
Diogo Menezes da Costa.
144
O Inventário do Patrimônio Cultural de Porto Alegre – Bens Imóveis é um trabalho da EPAHC, feito para
atingir todos os bairros da cidade, e está sob a responsabilidade da arquiteta Elena Graef e tem o apoio do
arquiteto Luiz Merino Xavier.
33
daquele adotado aqui. Se, por um lado, naquele levantamento interessaram critérios que
raridade formal ou funcional, recorrência regional, etc., por outro lado – do ponto de vista
Assim, qualquer testemunho é importante. Desde o mais portentoso prédio público, até a
escritos serviam, entre outras coisas, de guia ou controle para o estabelecimento de uma
diferentes atividades que ocorriam na área de pesquisa no decorrer do século. Isto permitiu
comportamento e uso da terra. Essas áreas não necessitam ser absolutamente homogêneas
(ex: áreas unicamente residenciais). As áreas podem ter segmentos diferenciados, que, em
conjunto, devem demonstrar uma dinâmica própria e peculiar, devem estar agrupados e
articulados por valores, atividades e significados que lhes dêem coesão. Teremos, assim,
34
Em Arqueologia Urbana, como de resto em toda a Arqueologia Histórica, somos,
mesmo tempo, a uma rica e abundante documentação escrita e iconográfica. Este fato
urbana que ocorre junto à expansão de uma sociedade capitalista, que por suas próprias
características produziu imensos arquivos escritos (Cressey e Stephens, op. cit, 1982). Isto
implica na necessidade de se tomar decisões sobre que dados são necessários, quais os
documentos que devem ser analisados, a que nível de detalhe é preciso ir. As opções feitas
Plantas e dos Processos para construção ou reforma de prédios). Este tipo de documento
(testamentos, inventários, escrituras, etc.) constitui um volume imenso, cuja análise seria
fugaz) como considerações recentes sobre o passado e não o que aconteceu no passado,
sendo necessário, portanto, manter sua análise ligada ao seu contexto de produção.
(1893, 1895 e 1928), Livros Receita e Despesa : Comércio pelo Valor Locatício (1894 e
1895 e 1998), Processos para construção e reformas de prédios (vários anos entre 1893 e
(1835 e 1836), Jornal do Comércio (1867), Fígaro (páginas avulsas de 1878 e 1879), A
Gazeta de Porto Alegre ( 1880), A Gazetinha (de novembro de 1891 a março de 1892 e de
setembro de 1895 a dezembro de 1896) e A Federação (1896). Além disto, foram utilizados
1848.
ações dos cidadãos foram tomados mais em seu conteúdo informativo, fornecendo pistas
sobre o uso do solo. Outros foram mais importantes no sentido de apresentar indícios para
se chegar às representações dos diversos grupos sociais e suas ações concretas: Códigos de
distinção entre eles: os jornais do início do século foram mais importantes por seus
anúncios que mostram, até certo ponto, a ocupação do espaço. As matérias são, em geral,
de cunho político e oficial. Como o “Mensageiro”, que tinha por objetivo “dar publicidade
aos Atos da Administração Provincial das Estações Públicas, e bem assim anúncios que se
Grandense” que se propunha ser um jornal político e literário. Também na análise dos
36
Quanto aos periódicos humorísticos, surgidos a partir da segunda metade do século
XIX (portanto junto com uma nova ordem burguesa que se instaura), pode-se dizer que
foram encarados como uma fonte riquíssima, na medida em que se propunham a criticar os
costumes locais: eles forneceram pistas importantes acerca da relação dos habitantes com a
fundamental neste trabalho. Ela foi encarada como uma fonte capaz de testemunhar
à crítica que, na sua essência não difere da crítica histórica tradicional (Cardoso,1990: 17).
Isto significa que é necessário sempre manter ligados a imagem ao seu contexto social.
significam no uso que se possa fazer da imagem fotográfica como fonte de pesquisa deste
período: pense-se no impacto causado pelo seu surgimento numa sociedade ávida por
145
Se a câmara escura era conhecida desde o Renascimento, o Daguerreótipo é anunciado ao mundo em 1839
e é apenas a partir da segunda metade do século XIX que aparece a fotografia em papel.
37
O discurso associado à fotografia era o da possibilidade de retratar o real, e neste
operações ordenadas e simples, onde a criação de imagens não é mais mediada pelo artista,
mas vista como uma série de processos mecânicos e químicos. A fotografia se aproxima,
neste sentido, da lógica industrial. Por outro lado, a burguesia ascendente é ávida por
imagens: retrata a si mesma (veja-se a proliferação dos retratos de família) e ao seu mundo.
É uma forma de disseminar informação numa sociedade ainda composta, em grande parte,
reproduzir o real e no custo muito mais baixo que as obras artísticas tradicionais. A verdade
é que esta imagem real é algo idealizado e, sobretudo, uma construção na medida que traz
estratificador.
imagem e de sua articulação interna, considerando sempre em que rede significativa eles
expressão. Ela contém uma realidade empírica que está na base das imagens e, também,
Neste sentido, a análise das fotografias partiu, conforme proposto por Miriam
Moreira Leite (1992), de uma leitura interna, articulando suas partes e relacionando-as a um
natureza.
Museu Joaquim José Felizardo e abarcam aquelas produzidas durante o século passado e o
estabeleça, para tanto, o marco temporal da pesquisa, bem como a área estabelecida para
este estudo.
O estudo centra-se no século XIX por ser possível ver aí a lenta transformação de
uma sociedade senhorial e escravista para outra burguesa e capitalista 146 . Sabe-se que, a
146
Utilizo as expressões senhorial e escravista e burguesa e capitalista para designar momentos diferentes de
um processo histórico dominados não apenas por características econômicas, materiais e sociais próprias,
mas, sobretudo por valores e visões de mundo diferentes entre si. A título de exemplo pode-se ponderar que
enquanto no primeiro são considerados valores importantes os laços de sangue e as distinções honoríficas
características “de uma sociedade estamental apoiada na tradição da nobiliarquia portuguesa” (Centurião,
1999:245), no segundo valoriza-se o “individualismo, [...] a acumulação de capital tanto real quanto
39
partir da segunda metade do século XIX, as transformações ocorridas pelo desenvolvimento
na organização e estruturação dos espaços urbanos de Porto Alegre. O que se buscou foi a
Sabe-se, no entanto, que não é possível estabelecer uma data que seja um marco de
forma de organizar o espaço. Assim, o que se considerou importante foi a possibilidade que
este vasto período oferece de, por suas próprias características, favorecer o estudo aqui
proposto. E por ser um período tão vasto, não seria possível fazer nenhum tipo de
documentação era mais facilmente acessível e que abarcasse as duas ordens sociais que se
busca enfocar. Assim, a atenção maior recaiu sobre as décadas de 1830, 1870 e 1890, não
significando que outros momentos não tenham sido contemplados aqui. Alguma
documentação do início do século XX, que diz respeito mais de perto às formas
foram utilizadas para verificar em que medida e a que velocidade o processo iniciado na
40
O local estabelecido para realizar a pesquisa situa-se na península, onde teve início a
cidade, abrangendo a área que limita-se ao Norte com o Rio Guaíba (atual rua Sete de
Setembro), a Oeste com a Rua da Passagem ( atual Volta do Gasômetro), ao Sul com a Rua
da Prainha (atual Washington Luiz), e a Leste com a Ladeira do Liceu e Rua de Bragança
(atual Marechal Floriano). Este recorte espacial foi escolhido por quatro razões: 1) situa-se
testemunhos é elevada; 3) trata-se de uma área de potencial arqueológico, ou seja, uma área
atividades ligadas à classe dominante (Duque de Caxias, Riachuelo e Rua da Praia), uma
área bem definida onde distribuem-se os espaços de poder (atualmente Praça da Matriz),
uma série de becos onde estavam os pobres, os bordéis, o “perigoso”, como o Beco do
Mandinga (atual General Canabarro), ou o Beco do Jogo de Bola (trecho da atual Bento
Martins), ruas com habitações populares, como a rua do Arvoredo (atual Fernando
Machado) ou a rua da Varzinha (atual Demétrio Ribeiro), além de uma série de áreas
públicas como a Praça da Harmonia ou Largo do Arsenal (atual praça Brigadeiro Sampaio),
o Alto da Praia ( Praça da Matriz), o Mercado Público, a beira do Rio (local de despejo de
Porto Alegre iniciou o século XIX como um pequeno núcleo urbano, contando com
3 rua principais (as atuais Rua da Praia, Riachuelo e Duque de Caxias) que a cortavam
147
O grifo é meu. O critério para avaliar significância arqueológica é dado por Juliani (1996:103) que
considera que é o “caráter informativo que uma determinada ocupação do solo possa conter em termos de
vestígios culturais e o grau de visibilidade e preservação desses vestígios.”
41
longitudinalmente e quatro ruas transversais (Symanski, 1997:20). Segundo Escosteguy
(1993:29), em 1804 a cidade tinha “apenas 7 ruas com edificações”. Porém, devido a sua
3.927 habitantes em 1803 para 12.000 em 1820, 18.465 em 1858 e 52.000 habitantes em
expansão do núcleo urbano inicial, nem sempre na mesma proporção, o que ocasionou uma
série de problemas. É esse espaço urbano que se constrói, que é apropriado de formas
origens da cidade, a forma como se deu o seu crescimento, e estabelecer as ligações desse
processo com as estruturas econômicas e sociais. Isto é importante não apenas para situar
os dados materiais levantados em campo, mas também porque é necessário referir e manter
estruturas arquitetônicas remanescentes do século XIX, além de praças, ruas, etc. Neste
42
Tomando outro ângulo de análise, tratei, num terceiro momento, dos Espaços em
na análise.
ALEGRE
econômica da região e, por isto, é preciso situá-lo. Assim, tentarei ordenar os aspectos que
De início, quando o território do Rio Grande do Sul era uma fronteira a ser
cidade de Porto Alegre, visou o gado que aqui se reproduzia livremente após a dissolução
das estâncias do Tape. Dito de outra forma, essas sesmarias, antes de terem uma intenção
Tratado de Madri, em 1750, que acarretou importantes conseqüências nas formas tomadas
43
Em 1752 Gomes Freire, então governador da Capitania e comandante do exército
demarcador do Tratado de Madri, determinou que parte dos homens que deveriam iniciar a
demarcação das terras ficassem em Viamão, com o fim de construírem barcos para o
Não se sabe ao certo quantos deles teriam vindo para a região. Martini (1997: 16-
7), fala num número que varia de 181 a 278 famílias que representariam entre 833 e 1.400
1752. De qualquer forma, o fato é que algumas famílias ficaram estabelecidas na área que
Como o destino desses açorianos era o território das Missões ( deveriam povoá-lo
colonos nunca foi efetivado ali (por causa da Guerra Guaranítica), os primeiros habitantes
alguma. Neste período não há ruas, os lotes ainda não foram demarcados e uma “Notícia”
44
datada de 1754, feita pelo engenheiro Miguel Angelo Blasco dá conta que “a povoação é
um „arroio‟ [arraial] de casas de palha habitadas de casais das ilhas e é bastante fértil”148.
assume o Governo da Capitania, em 1769, quando os únicos moradores do lugar ainda eram
os ilhéus lusos que viviam ali, segundo Oliveira (1993: 49), “entregues `a própria sorte”. A
partir de então, percebe-se que o local é estratégico por sua condição de porto e por sua
situação privilegiada entre “dois pontos fortificados do continente, Rio Grande e Rio
Pardo, por vias perfeitamente navegáveis” (Idem). É assim que em 1772, ou seja, dois anos
após José Marcelino assumir o Governo e 20 anos depois da chegada dos açorianos, é
em 1762, para que fossem distribuídas as datas entre os açorianos. Porém, antes de tudo, a
desapropriação visou a demarcação das primeiras ruas, instalando os planos da nova praça,
tomando como centro o Alto da Praia e estabelecendo o local da Igreja Matriz (Ibidem).
A ligeira passada de olhos sobre esses primeiros atos que levaram ao surgimento
da futura cidade de Porto Alegre chama atenção para o fato de que aqui, como em muitas
antes como uma espécie de “monumento à vontade do colonizador” do que como “uma
decorrência direta de trocas comerciais, como foi o caso de muitas cidades da Europa
Ocidental” (Da Matta, op. cit: 48). “A Igreja Matriz da Madre de Deus foi o marco inicial
148
Esta Notícia foi publicada por J. C. Rego Monteiro na Revista do Patrimônio Histórico e Geográfico do
Rio Grande do Sul, número 70, página 173, no ano de 1938, sob o título “Notícia Breve da Marcha de Gomes
Freire de Andrade, por Miguel Angelo Blasco” (Apud Spalding, 1967 : 33).
45
das obras determinadas pelo Governador José Marcelino logo após a fundação da cidade,
em 1772” (Oliveira, op. cit. :56). No ponto mais alto do promontório, portanto, foi
estabelecido o local da Matriz que teve sua construção iniciada em 1774 (Franco:
residência dos governadores e capitães- generais, cuja edificação foi iniciada em 1773 e
terminada em 1789 (Idem : 304), manteve-se até a República, apesar de ter sofrido várias
Largo da Matriz). O traçado de Porto Alegre mostra que ele deve ter se formado a partir da
definição desta praça. Weimer (Porto & vírgula n.38: 28) mostra como a Rua da Igreja149,
correspondente à Rua Direita, toma o traçado ditado pelos contornos naturais do terreno. As
ruas da Praia e da Ponte150, perfeitamente alinhadas, mostram “que foram demarcadas com
Com isto, o pequeno núcleo, que se tornaria capital apenas um ano e meio após
ter-se tornado Freguesia (Oliveira, op. cit.: 57), cresceu com aquela típica configuração
brasileira (e Ibérica) onde a praça (espaço público e teoricamente do povo) abriga, no seu
entorno, o poder de Deus e o poder do Estado (Da Matta, op. cit.: 48) e de onde a
aristocracia busca estar próxima. É neste espaço que serão instalados, além do cemitério
junto à Matriz (1753), o Teatro São Pedro (1833 – 1858), o Edifício da Câmara (1864 –
1871), a Bailante (década de 1850) (Oliveira, op. cit.) e outros prédios que atestam a
149
Atual Duque de Caxias.
150
Atual Riachuelo.
46
A política de colonização da coroa portuguesa, que visava estabelecer “pequenos
aproveitável sob o ponto de vista militar” (Silva, op. cit.:58), acabou resultando na
colonização de uma área onde floresceu o cultivo policultor – mas principalmente de trigo –
Litoral (Ibidem.).
fortemente em razão da desorganização dos saladeiros platinos 151. Nesta época, a Coroa
guerreiros e chefes de parentelas” (Cardoso, 1977:112) que, a partir daí, coexistem “com a
(Idem).
151
As guerras de independência na região do Prata desorganizaram a produção do charque favorecendo o
produto gaúcho no mercado consumidor internacional (SILVA, 1979:59)
152
Cardoso (1977), utilizou o conceito de estrutura patrimonialista e estamental, o qual sigo, conforme
formulado por Weber (apud Cardoso, op.cit.:100): “poder doméstico descentralizado mediante a distribuição
de terras e às vezes de pecúlios aos filhos ou a outras pessoas dependentes do círculo familiar damos o nome
de dominação patrimonial”. Distingue-se do patriarcalismo pela existência de um quadro administrativo e é
estamental porque há uma “apropriação monopolizadora dos cargos por seus titulares” (Idem).
47
Porto Alegre, neste período, desempenhou funções importantes que tiveram um
papel básico nas formas através das quais o espaço urbano se estruturou. De um lado foram
características naturais (ser um porto) e por sua localização privilegiada, Porto Alegre
assumiu, cada vez mais, uma função comercial que, ao lado da portuária, foi determinante
No período que estende-se do final do século XVIII ao início do século XIX, vê-se
não apenas o incremento das exportações de charque, mas também do trigo produzido na
zona de colonização153, que escoavam pelo porto de Porto Alegre. A capital passou a
destas exportações: Singer (1977:152) mostra que foi comercializado, em 1807, 93.298
alqueires de trigo, quantidade que salta para 257.782 alqueires em 1813 e 266.981 alqueires
Porto Alegre no mesmo período, veremos que o seu crescimento aparece associado ao
aumento das exportações de trigo: 3.927 habitantes em 1803, 6.000 em 1808 que dobram
153
O crescimento da produção tritícola correspondeu a um momento de crise na produção de cereais na
Europa (Silva, op. cit.:61).
154
A abertura dos portos ocorreu em 1808, mesmo ano da transferência da Corte para o Brasil.
48
Nos primeiros 25 anos do século XIX, a sociedade e a economia gaúchas passaram
por um período de transformações que definiram a ordem social dominante que se manteve
até ser lentamente substituída, no final do século, por uma ordem burguesa e capitalista.
deficitária. A razão disto é que os interesses políticos coloniais sempre estiveram acima dos
interesses de ordem econômica, pelo menos no que diz respeito às províncias periféricas: a
açoriana (Cardoso, 1981). Por outro lado, o couro e o charque apresentaram-se como
economia nacional, papel análogo ao do açúcar e do café nas áreas onde foram
escravismo no setor mais dinâmico da economia sulina durante um largo período de tempo
e marcou não apenas a estrutura social do Rio Grande do Sul, mas sobretudo o imaginário
grupos rurais gaúchos eram de extrema assimetria, onde o domínio exercido pelos
155
Isto não significa que a Província comercializasse apenas com o centro do país, mas quer dizer que esta
foi a atividade economicamente mais importante no período.
49
“novas condições de existência social provocaram a reintegração da
ordem social. O enriquecimento progressivo das famílias e a posse
de um meio de produção, como o escravo, que impedia o concurso
direto e imediato dos representantes da coroa, ocasionou a
redefinição da estrutura de poder no Rio Grande” (Idem).
que os funcionários reais, através do poder que lhes era concedido, passaram a se tornar
aquelas”(Ibidem:274).
setor mais dinâmico, favoreceu o surgimento nas cidades de uma camada senhorial urbana,
A existência de uma camada local forte que era capaz de agir em função dos seus
156
O termo senhorial é utilizado aqui no sentido exposto por Cardoso (1977:113) que defini “o tipo social de
chefe de família e proprietário de escravos [que] formou-se pelo fortalecimento do poder político e
econômico dos chefes de parentela [...] que conseguiram exercer influência ou dispor de posições na ordem
estatal”.
157
Não estou afirmando a existência de uma sociedade composta apenas de latifundiários, charqueadores e
escravos. Pelo contrário, como tentarei demonstrar, tratava-se de uma sociedade com uma estrutura bastante
complexa que incluía, nas cidades, uma população heterogênea empenhada em funções administrativas,
militares, comerciais, artesanais, religiosas, intelectuais,etc.
50
portuguesa que estava em permanente tensão com os senhores locais. Depois de 1808 essa
imigração açoriana e que resultou no núcleo inicial de Porto Alegre. Na década de 1820,
imigrantes alemães para a Real Feitoria do Linho Cânhamo. Por um lado, a colonização
deveria ser um instrumento de defesa territorial “que a baixa densidade de população local,
criadora de gado e disseminada por vastos latifúndios, não podia assegurar” (Petrone,
possibilidade de ter escravos158, significaria, além disso, uma contraposição ao poder dos
158
A legislação impede que o estrangeiro possua escravos (Piccolo, 1980).
51
Até a década de 1840, os colonos alemães apenas sobreviveram do trabalho familiar
propriedade, mas também às flutuações da economia pastoril que, por sua vez, dependeu,
em muito, dos acontecimentos na região do Prata. Assim, a partir da década de 1820, com a
charqueadas sulinas tomaram maior impulso e Porto Alegre perdeu terreno como centro
comercial da Província para Rio Grande, porto localizado em área mais próxima ao centro
uma estrutura espacial bastante complexa que diferia em número e grau do primeiro
aglomerado de palhoças junto ao Guaíba descrito por Blasco em 1754 (op. cit.). Essa
tanto por Saint-Hilaire quanto por Dreys160 eram a Matriz, o Palácio do Governo e a
Assembléia, todas situadas no ponto mais elevado da colina – o Alto da Praia – tendo em
frente o Largo da Matriz onde “não existem edifícios, mas tão somente um muro de arrimo,
a fim de que não seja prejudicada a linda vista daí descortinável” (Saint-Hilaire, 1974:41)
159
Porto Alegre é elevada à categoria de cidade em 1822 (Macedo,1993:50)
160
Ambos descreveram a cidade do início do século XIX. Dreys residiu em Porto Alegre entre 1817 e 1825
(SYMANKI, 1998:43) e Saint-Hilaire esteve nela nos anos de 1820 e 1821.
52
(e eu acrescento: a fim de que não seja prejudicada a vista destes edifícios pelo resto da
cidade). Dreys (1927:86) referia-se, ainda, à “casa suntuosa do Visconde de São Leopoldo”
pelo Arsenal de Guerra, no final da Rua da Praia, e pela linha de fortificações que
(Idem).
161
O prédio hoje conhecido como Solar dos Câmara foi, segundo Oliveira (1993:231), concluído em 1818,
tendo custado 19.000:000. Seu primeiro dono, José Feliciano Fernandes Pinheiro, o Visconde de São
Leopoldo, foi o primeiro Presidente da Província por ocasião da Independência. Foi ele quem recebeu os
primeiros imigrantes alemães em 1824. Após sua morte, o Solar passou às mãos do então Capitão José
Antônio Corres da Câmara, futuro Segundo Visconde de Pelotas, genro do primeiro, e que teve papel de
destaque na Guerra do Paraguai, tendo sido senador e Ministro da Guerra durante o Império.
162
“Uma belíssima ponte dálfândega, obra prima, como não há outra em toda América, onde podem
descarregar hiates e sumatras, com uma carreira de trezentos e vinte e cinco palmos de comprido e trinta de
largo”(Magalhães, apud Escosteguy, 1993: 50).
“Existe um grande cais dirigido para o lago, e ao qual se vai por uma ponte de madeira de cerca de cem
passos de comprimento, guarnecida de parapeito e mantida sobre pilares de alvenaria”(Saint-Hilaire, op. cit.
:41).
“Ali está o edifício moderno da Alfândega, e o seu extenso trapiche sobre a lagoa: obra sem ornamentos,
esbelta, porém sólida , guarnecida de assentos de ambos os lados, e oferecendo um passeio que não deixa de
ter seu merecimento para respirar-se a frescura das águas, nas belas tardes de verão”(Dreys, op. cit.:87).
53
Porto Alegre havia crescido velozmente num curto período de tempo: Dreys
(op.cit.:84) comentava, então: “há pouco mais de 60 anos que o lugar, em que se levanta
esta suntuosa cidade, era selvagem, coberto de matos, asilo ordinário de feras”. O
lugarejo em uma grande povoação (Idem). Em seu relato, sublinha a importância do porto
freqüente esse número elevar-se a 50. O porto dá calado para sumacas, brigues e galeras
de três mastros”.
Está claro que ocorria uma diversificação na estrutura social desta época:
comerciantes grandes e pequenos, artesãos estavam presentes aí, assim como militares de
54
alta patente, efetivos da tropa, administradores, senhores ligados ao latifúndio e escravos. É
comerciais da cidade. Em outras palavras, a face mais rica da cidade. E é o próprio Saint-
Hilaire quem complementa (idem:42): “a cidade possui várias casas do lado oposto,
163
Já é clássica a descrição de Saint-Hilaire (op. cit.:40): “A cidade de Porto Alegre dispõe-se em anfiteatro
sobre um dos lados da colina de que falei, voltado para noroeste.”
55
acham fácil extração. Em quanto aos comestíveis, nos tempos
ordinários, nos tempos de paz, a cidade recebe das chácaras
circunvizinhas todas as qualidades de frutas, de hortaliças, e de
verdura que produz a vegetação indígena, ou que brotam das
sementes exóticas, que as mãos do sábio cultivador souberam
naturalizar num solo estrangeiro; seus mercados estão por isso
sempre abundantemente providos; de mais, seus açougues ostentam a
carne mais suculenta, e sua banca pode cobrir-se dos peixes de água
doce e de salgada, ambos pescados nas suas imediações...”
Para disciplinar este espaço urbano surgiu, em 1829, o primeiro Código de Posturas
Policiais, aprovado em 1831 (Livro de Registro das Posturas Policiais de 1829 a 1888 –
hospital, uma casa de misericórdia, um arsenal, dois quartéis e uma cadeia, recentemente
construída” (Isabelle, 1946:60). Arsène Isabelle parece não concordar com a visão de
Dreys sobre a “delicadeza” e “critério” do luxo local e não poupa críticas e ironias à capital
da província e sua sociedade: críticas à educação, às opções de lazer, aos hábitos das
mulheres, ao aspecto das igrejas (Idem). No entanto, ao lado dos elogios feitos aos aspectos
naturais do lugar – “vê-de que céu, que paisagem! É o céu da Itália; são as paisagens e a
164
Retire-se destas afirmativas a “superior” visão eurocêntrica e ainda assim teremos um lugar belo ou, ao
menos, pitoresco.
56
O livro caixa da empresa de importação e exportação H. Fraeb 165, do ano de 1830,
demonstra, pela variedade de produtos vendidos, o grande mercado representado por Porto
Alegre neste período: sabão, resmas de papel, farinha, graxa de lustro, esparmacete de 32 ¼
pol. (velas de 82 cm!), velas de sebo, vinagre (40:000 a pipa), banha, manteiga, cerveja
(3:200 a dúzia), Champanhe (18:000 a dúzia), chocolate, vinho, bacalhau, amêndoas, figos,
queijos. E também morins, chitas, riscado, seda, meias de mulher, navalhas, agulhas,
lunetas, sapatos pretos e de cetim, chapéus, xales, pentes de tartaruga, leques, dedais,
vestidos franceses (2:800 cada), calças (2:000 cada), colares. E, ainda, torneiras, serpentina,
mapas, escravos (280:000), folhas de música (200), brincos de brilhante e figas de ouro,
rua da Praia vendia “um bonito sortimento de obras de pedra chegadas proximamente da
cidade do Porto, [...] solitárias com brilhantes, esmaltadas em ouro de lei, [...] anéis de
todo ouro” (15/11/1835 :52 - AHMV). Em outros anúncios deste mesmo jornal, deste ano e
do seguinte, encontram-se anúncios vendendo, entre outras coisas, livros (“para o estudo
165
Arquivo particular da famíliaThiesen.Ao livro caixa em questão atribui-se a data de fundação da firma. Ele
abarca o período que vai de junho de 1829 a maio de 1830. Esta é a casa de importação e exportação mais
antiga do estado, tendo sido fundada em 15 de junho de 1829, em Rio Grande (Mont Domecq‟ & CIA,
1916:343), tendo passado por diversas razões sociais até ser finalmente extinta em 1949 (informação oral do
Sr. Fernando Thiesen). Surgiu como desmembramento de uma empresa exportadora de Hamburgo, onde
continuou a possuir sócios, e teve filiais em Porto Alegre, Pelotas, Santa Maria, além de agentes que
percorriam o interior do Estado, e escritórios em Montevidéu, Buenos Aires e Hamburgo, para onde iam,
neste século, as exportações de couro, cabelos, sebo, lã, chifres, etc., (Idem). No livro caixa não fica claro
onde ocorreram as transações do ano de fundação da empresa. No entanto, sabe-se que aquelas relativas ao
ano de 1830 foram em Porto Alegre. Pelo que se pode depreender do livro, a firma vendia tanto por atacado
quanto a varejo e, além de produtos, eventualmente vendia serviços: emprestava dinheiro, alugava escravos (o
que é curioso, já que não era permitido aos estrangeiros possuírem escravos), fazia fretes. Os artigos
exportados nesta época, eram chifre, couros e crina.
57
(12/2/1836: 112 –AHMV), ou oferecendo serviços, como lavagem de roupas (1/12/1835:
exemplos.
Tudo isto aponta para a existência de segmentos sociais diversos: há quem compre
velas de sebo, chita e água ardente; há quem venda seus serviços; e há uma camada social
com alto poder de consumo, que investe em luxo e refinamento. Usa jóias e sedas, aprende
servida por escravos. Em outras palavras, um segmento social com estilo de vida senhorial.
economia do centro e do norte do país e de outro, uma questão política situada no próprio
eclosão da Revolução Farroupilha em 1835 foi uma conseqüência destes fatos e foi
sustentada pelos estancieiros locais ainda que outros segmentos a tivessem apoiado.
Porto Alegre manteve-se fiel ao Império. Talvez por suas próprias características de
cidade administrativa, militar e comercial, que tinha nesta última atividade o setor mais
dinâmico de sua economia, primeiro como exportadora de trigo e depois dos produtos
coloniais , diferente de cidades como Rio Grande ou Pelotas, mais ligadas ao setor pastoril
58
latifúndio pastoril, relativamente a outras cidades da Província, talvez esteja entre as razões
Porto Alegre foi cercada e a cidade precisou reorganizar-se dentro de seus muros. O
Código de Posturas foi revisto. Inúmeras medidas foram tomadas no sentido de disciplinar
o espaço. Assim, no capítulo 50 das Posturas Policiais estabelecidas pela Câmara Municipal
em 1837 (Livro de Registro das Posturas Municipais de 1829 a 1888 – AHMV), designava-
demarcados pela Câmara e situavam-se, como não poderia ser de outra forma, bem no
centro da cidade. O capítulo 51 destinava um lugar para a lavagem de roupas; o 56, o porto
onde deveriam aportar embarcações que trouxessem carne; o 60, designava o lugar para
(Idem).
A planta de Porto Alegre do ano de 1839, de L. P. Dias mostra a cidade com suas
Na legenda estão nomeadas as ruas, becos, caminhos, praças e chácaras. Estão, também, os
166
O pelourinho era aquele marco que indicava que a cidade era sede de comarca. Era também o lugar
utilizado para aplicar castigos físicos aos escravos. A verdade é que, desde 1831, em artigo adicional, o
Código de Posturas já proibia castigos aos escravos em lugares públicos. (Livro de Registro da Posturas
Municipais de 1829 a 1888 – AHMV).
59
Durante a Revolução Farroupilha, talvez uma das obras mais importantes tenha sido
do primeiro edifício para o Mercado Público em 1842 (Idem). No entanto, importantes para
predomínio dos estancieiros (Cardoso, op. cit. 504). Seu final significou para Porto Alegre
a expansão para além dos limites das fortificações, que foram demolidas por Caxias, num
Em 1844 havia sido iniciada a numeração das casas e o governo de Caxias acelerou
os trabalhos. As primeiras ruas beneficiadas com isto foram as ruas da Praia, da Ponte e da
Pedras, da Ponte de Pedras sobre o Riacho (Idem). Algumas ruas foram calçadas (o final da
167
A primeira iluminação da cidade, instalada em 1834, com combustível de azeite de baleia (aliás o mesmo
da iluminação instalada depois), durou muito pouco e a cidade ficou às escuras, dificultando o patrulhamento
das ruas e a defesa da cidade (Franco, 1998:210)
168
Atual Praça 15 de novembro.
169
O local é onde hoje está a Praça Parobé.
170
Alinha de fortificações não passava de uma trincheira de pau-a-pique, com barro socado entre madeiras.
60
Rua da Praia, Formosa171, Ladeira do Ouvidor172, Rua Clara173, Beco da Ópera174 ,
Varzinha175, etc.) e outras foram abertas (do Imperador176 e da Imperatriz177, etc.) (Ibidem).
engenheiro da Câmara (Ibidem: 109) que assumia, neste momento, papel importante no
As obras do Teatro São Pedro também foram concluídas nesta época: em 1858
(Oliveira, op.cit.:154). Neste mesmo ano foi instalado o Banco da Província, primeiro do
Rio Grande do Sul. Cabe assinalar, ainda, que dois anos antes, ou seja, em 1856, começou a
Todas essas obras e melhorias tem como pano de fundo uma economia próspera,
1850, escrevia, então, elogiando a beleza e a riqueza da cidade: “A causa principal de sua
171
Parte da atual Duque de Caxias.
172
Atual Gal. Câmara.
173
Atual Gal. João Manoel.
174
Atual Uruguai.
175
Atual Demétrio Ribeiro.
176
Atual Venâncio Aires.
177
Atual Rua da República.
61
riqueza deve ser imputada além do comércio ultramarino, e interno, à proximidade da
colônia alemã de São Leopoldo, distante apenas sete léguas e em comunicação com Porto
zona colonial: o acesso a essas áreas se fazia através dos rios que formam o Guaíba. Ao
mesmo tempo, era o ponto de onde partiam os bens necessários àquelas populações. Assim,
mais.
Mas quem vivia na cidade nesta época? Hörmeyer (op.cit.:25) informa que a capital
possuía 24.000 habitantes, sendo que, pelo menos, 2.000 deles eram alemães. Em 1858
62
Porto Alegre teve sua população calculada em 17.226 habitantes178, sendo 12.080 livres e
exemplo, Frederico Bier, Gertum e Schilling, José Raupp e Irmãos, Holtzweissing e Cia.,
intelectuais (Carlos Von Kozeritz, Carlos Jansen) (Idem). Foram, também, operários e
artesãos que tinham “seu serviço sempre preferido ao dos nacionais” (Hörmeyer, op.
cit.:75), porém lhes era vetado qualquer direito político179 (Piccolo, op. cit).
brasileiros (e entre eles estavam Lopo Gonçalves, João Guilherme Ferreira, Inácio José
Ferreira de Moura, Luiz Afonso de Azambuja, Bernardo José Barbosa, apenas para citar
constituiu a Praça do Comércio de Porto Alegre (Franco, op. cit.: 41-46). Aliás, dos nove
forma limitada pela Carta de 1824 que previa um sistema político altamente centralizado180
178
Segundo Roche (apud Symanski, op. cit.: 50) a população era de 18.465 habitantes. De qualquer forma, é
interessante notar que a possível redução da população pode estar relacionada ao surto de cólera-morbus
ocorrido em 1855 (Idem).
179
A Carta de 1824 restringia a participação política aos cidadãos brasileiros. Mesmo estrangeiros
naturalizados ficavam limitados pela necessidade de uma renda mínima ou pela obrigatoriedade de professar a
religião católica. Sobre isto ver Piccolo, 1980.
180
Pela Carta de 24, o presidente da Província era nomeado pelo Imperador. A Assembléia Provincial, criada
pelo ato adicional de 1834, que substituiu o Conselho Geral, era o órgão onde a elite provincial se fazia
representar. No entanto, “as leis e resoluções da Assembléia eram enviadas ao presidente da província a
63
(Piccolo, op. cit.). Porém mantinham sua dominação e seu prestígio baseados na posse de
superioridade social aos seus possuidores e que desqualificava quem não os tivesse é dado
Entre a população livre que compunha o segmento social mais pobre181 em meados
do século XIX, composta por brancos brasileiros e estrangeiros e negros libertos, era
cavalariços e outros, sendo que estes dois últimos, segundo Hörmeyer, eram difíceis de
serem encontrados, “por serem estes afazeres considerados adequados apenas a escravos”
(idem). Além disto, havia “o imenso número de morenas livres que, dotadas de pouca ou
quem competia sancioná-las” (Piccolo, op. cit.:145). Se isso não ocorresse, eram necessários 2/3 da
Assembléia para que o presidente sancionasse a lei ou resolução (Idem). Em 1840, uma nova lei limitou ainda
mais o poder das elites provinciais “dando ao poder legislativo geral direito de revogar as leis provinciais”
(Ibidem:147). Quanto às Câmaras Municipais , criadas em lei de 1828 e que possuíam requisitos menores de
participação em relação às Assembléias Provinciais (e que, por isto, podiam ser integradas por segmentos
economicamente menos favorecidos, em termos relativos, é evidente), tinham como atribuição as Posturas,
que deveriam ser confirmadas pelas Assembléias Legislativas e dependiam do governo provincial pelas
eternas dificuldades financeiras dos municípios.
181
O termo pobre é utilizado aqui no sentido de designar aquele segmento social que possui um limitado
acesso ao consumo. “Desempenham as tarefas menos qualificadas e podem engajar-se ou não no mercado de
trabalho. Ora são empregados de alguém, tendo pois um patrão e dele recebendo seu sustento, pelo
desempenho de uma tarefa regulamentada e controlada, ora são „avulsos‟, free-lancers , que vivem de
„expedientes‟, biscates, pequenas tarefas. Politicamente, são os tais cidadãos de segunda ordem, pouco
ouvidos pelas autoridades em suas reclamações e sendo considerados suspeitos aos olhos da polícia”.
(Pesavento, 1994:110).
182
Em 1857 haviam 120 “vendas” espalhadas pela cidade. (Franco, op.cit.:39)
64
nenhuma formação, fazem de seus encantos um comércio mais ou menos decente”
(Ibidem:72), o que quer dizer, em um sentido mais amplo: há grande quantidade de pessoas
da cidade.
de pessoa no escravo abriu a brecha, ao lado de condições estruturais tanto ao nível regional
senhorial.
A década de 1860 foi marcada por uma expansão econômica que esteve ligada ao
crescimento da produção agrícola colonial que era exportada por Porto Alegre. Isto refletiu-
183
A lei Eusébio de Queiroz extinguiu o tráfico negreiro em 1850.
184
São bem conhecidas as pressões inglesas, surgidas num contexto de desenvolvimento capitalista, pelo fim
dos monopólios e da escravidão. O Bill Aberdeen (1845) é exemplo de instrumento inglês utilizado na
repressão ao tráfico de escravos.
65
se no crescimento urbano da capital (Singer, op. cit.) que, por sua vez, não se deu de forma
Portuguesa (1868) (Oliveira, op. cit.), do surgimento de órgãos que atestam um crescimento
das atividades político-culturais, como o primeiro jornal ilustrado do Rio Grande do Sul, o
Parthenon Literário (1868) (Idem), Porto Alegre apresentava visíveis problemas com
de Posturas (op. cit. - AHMV) atestam o caos instalado pela sujeira que aumentava a par de
passavam a ser obrigados a recolher as águas dos telhados em canos embutidos na parede,
com esgoto passando por baixo do lajeado, sempre que o terreno permitisse (Livro de
Registro das Posturas Municipais de 1829 a 1888 – AHMV). Outras adições ao Código de
23/10/1862, por exemplo, organizou a fiscalização da limpeza das ruas, praças e litoral da
185
Atual Cúria Metropolitana.
186
Até então esta era uma atribuição do “arruador” da Câmara.
66
cidade, assim como o cumprimento do Código no que dizia respeito às construções,
terrenos privados e lugares públicos (Idem). Em 1866, o Código passou a proibir a venda
moradores da capital a conservarem os “quintais, pátios e porões das casas em que residem
O Jornal do Comércio de novembro de 1867 (AHMV), nos relatos que fazia das
e limpeza geral da cidade, ao mesmo tempo em que mostrava a incapacidade desta Câmara
Os anúncios realizados neste jornal, nesta mesma época, apontam para uma
67
floristas, estabelecimento fotográfico, farmácias, armazéns, agência lotérica, agentes de
entanto, muitas coisas ainda estavam misturadas: havia loja de sirgueiro vendendo livros
para a população desde 1830 (Spalding, op. cit.:114). Vale lembrar que esta praça situou-se
188
“O que faz colchões”. (Fonseca e Roquete, 1848:280).
189
“O que faz selas” (Idem:871)
190
Entende-se, pelos artigos anunciados, que corresponde a nossa atual correaria, onde se fazem correias e
outras obras de couro, como chicotes, rédeas, etc.
191
“O que faz obras e fios e cordões de seda ou lã” (Fonseca e Roquete, op. cit.:881). E, entende-se pelos
anúncios, de cabelo ou crina.
192
O chafariz está atualmente no Parque Farroupilha (Spalding, op. cit.:248).
68
Segundo Walter Spalding (Idem:115), o nome Harmonia “foi em homenagem à destruição
Ministério da Justiça, com relação ao pelourinho, que não existiam mais “edificações deste
capaz de
1870 (Idem:65) e o Rio Grande do Sul, com sua economia dependente, contou com a
pelos campos, novas raças de gado foram introduzidas, os navios a vapor e as estradas de
69
da qual a estância criadora não passava de fornecedora de matéria-prima, manteve o
trabalho escravo que, a par das transformações dos saladeiros platinos195, tornava-se cada
do capital privado e que foi coroada, em 1879, com a fundação da primeira companhia de
seguros, a Phenix (Oliveira, op. cit.:141). Porém, ainda não é possível falar-se em
industrialização:
195
A partir da década de 1860, os saladeiros platinos começaram a empregar mão-de-obra assalariada, cada
vez mais especializada, generalizando-se o uso de máquinas à vapor. Ao mesmo tempo, o aproveitamento do
boi e de seus subprodutos foram maximizados. Empregaram-se melhorias sanitárias e no sistema de
transportes, bem como uma intensa propaganda dos produtos uruguaios na Europa (PESAVENTO,1989:43).
Em 1866 foi fundada no Uruguai a primeira fábrica de extrato de carne, de capital inglês e, em 1883, o
primeiro frigorífico inglês na Argentina (Idem).
196
Sobre isto ver Fernando Henrique Cardoso, 1997, onde o autor analisa em profundidade esta questão.
70
e serralheria. Destas todas apenas a fundição e estaleiro Becker
deve ter sido de fato empresa industrial” (Singer, op. cit.:171)
habitantes197. Comparando estes dados com aqueles fornecidos pelo censo de 1846, quando
Porto Alegre possuía uma população de pouco mais de 16.000 pessoas 198 (FEE, 1986:60),
temos um crescimento em torno dos 112% em 26 anos. No entanto, o núcleo urbano central
moderno: a inauguração, pela Cia Carris de Ferro Porto-Alegrense, dos serviços de bondes
iluminação à gás carbonado produzidos no Gasômetro St. Peter Gás Ltda, inaugurado em
1874 e que substituiu os antigos lampiões de azeite na área central; da cidade (Idem:183),
são exemplos disto. Ao mesmo tempo, o ato de 7 de outubro de 1876, agrega ao Código de
Posturas a regularização da coleta de lixo na área central da cidade (Livro das Posturas
197
Esta população parece incluir as paróquias de Nossa Senhora Madre de Deus, do Rosário, das Dores, de
Belém e dos Anjos da Aldeia, excluindo as de Nossa Senhora da Conceição de Viamão e do Livramento das
Pedras Brancas. Sobre isto ver o censo de 1872, FEE, 1986:81.
198
Tentando manter o mesmo critério adotado em Singer para definir a população de Porto Alegre em 1872
como sendo de 34.000 habitantes (op.cit.:154), considerei aqui os 1º e 2º distritos de Porto Alegre; o 1º, 2º e
3º distritos da Freguesia d‟Aldeia e a Freguesia de Belém, excluindo os números relativos aos distritos Norte e
Sul da Freguesia de Viamão, das Pedras Brancas, da Barra, de São João Batista e de Nossa Senhora de
Camaquam. Sobre isto, ver censo de 1848, FEE, op.cit.:60)
199
Se considerarmos apenas o 1º e 2º distritos do município, ou seja, o núcleo urbano principal da cidade de
Porto Alegre temos, pelo censo de 1846 mais de 12.000 habitantes (Idem). No censo de 1872, segundo o
mesmo critério e incluindo apenas as paróquias de Nossa Senhora da Madre de Deus, do Rosário e das Dores
e excluindo as de Nossa Senhora de Belém, da Conceição de Viamão, dos Anjos da Aldeia e do Livramento
da Pedras Brancas, temos quase 28.000 habitantes e um número de casas que ultrapassa as 4.800 (Ibidem:81).
Isto significa um crescimento de mais de 133%, mostrando que o núcleo urbano central cresceu em proporção
bem maior que o resto do município.
71
A cidade embelezou-se e se abriu ao lazer: praças foram ajardinadas e arborizadas.
brigas de galo e tiro ao alvo (Oliveira, Cappelletti e Ozório, 1998: 80). As preocupações
primeiro capítulo que as ruas a serem abertas deveriam ter, a partir de então, no mínimo 80
palmos de largura e que as praças deveriam ser quadrados perfeitos (sempre que o terreno
O Código regulava, ainda, a altura dos pés-direitos das casas e a altura de suas portas, bem
como a proporção que deveriam apresentar os diversos andares, entre si, em prédio de mais
Pública, instalada nos porões da antiga Escola Normal na rua Duque de Caxias esquina rua
locomotivas à vapor passaram a ligar, a partir de 1874, Porto Alegre a São Leopoldo,
quando foi entregue a primeira estrada de ferro da Província. Dois anos depois, a linha
200
O prédio é o que hoje está na esquina da Praça Marechal Deodoro com a Rua Jerônimo Coelho, conhecido
como “Forte Apache”.
201
Atual Marechal Floriano.
72
A cidade cresceu, a população aumentou (inclusive a população pobre, é bom
lembrar), mas na verdade, as coisas não iam tão bem quanto se possa imaginar observando-
Em 1874 uma epidemia de varíola assolou a cidade, fazendo com que a Câmara
policiamento e de luz. Em uma delas, junto a uma ilustração, está escrito algo que diz bem
Porto Alegre (Livro de Registro da Posturas Municipais. op. cit. –AHMV) e o segundo
proibia a morada em porões, dentro dos limites da cidade, que não tivessem altura, ar e
73
de pessoas vivendo em péssimas condições e, mais que isto, incomodando aqueles que
preferiam estar longe da sujeira, das doenças, da feiúra, representadas pela pobreza.
Deus e, depois, a luxuosa Rua da Independência. No entanto, isto não significa que
op.cit.:33).
parte dos negros em 1884 (mediante cláusula de prestação de serviços, é verdade) e alforria
e de crescimento urbano que ocorreu na segunda metade do século XIX, tiveram sua
participação política restrita, conforme já foi mencionado, por uma dominação senhorial
202
Esta consideração é um tópico central deste trabalho e será desenvolvida mais adiante.
74
conseqüência inevitável da falta de correspondência da estrutura jurídico-política ao
op.cit.:94). Joseph Love (op.cit.:22) chama a atenção para o fato de que a província teve sua
população dobrada entre os anos de 1872 e 1890, passando de 446.962 (FEE, op.cit.:79)
para 897.455 habitantes (Idem:94), alertando para o pequeno crescimento relativo de Porto
1890 algumas áreas computadas no censo de 1872 já haviam sido desmembradas de Porto
números de 1872, retirando-se as paróquias que não constam no censo de 1890, com os
203
É o caso das paróquias de Nossa Senhora da Conceição de Viamão e Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia.
Sobre isto, ver FEE, op. cit.
75
números deste último e, assim mesmo, incluindo as populações rurais, teremos um aumento
ao que foi atingido pela província, ainda mais se levarmos em consideração o número de
imigrantes italianos que entraram no Rio Grande do Sul neste período e que se instalaram
nas colônias.
Singer (op.cit.:172), lembra que é na década de 1890 que Porto Alegre começa a
se industrializar, chamando a atenção para o fato de que a burguesia existente então estava
Em 1892 uma lei ampliou os limites urbanos da capital para além dos anteriores a
habitantes por quilômetro quadrado em 1900 (FEE, op.cit.:108), resultou na sua grande
76
população pobre que lotava cortiços, tabernas, prostíbulos e áreas públicas, tornava urgente
Em 1898, com a instalação da energia elétrica da Cia. Fiat Lux 204 (Oliveira,
op.cit.:55), mas nem tão tranqüilamente quanto se possa supor: prostitutas, mendigos,
desempregados, mau cheiro e sujeira também estavam presentes e os jornais da época estão
recheados de denúncias, realizando uma campanha ferrenha pela imposição daquilo que
espaço público uma vigilância sistemática sobre uma parcela da população considerada
Porto Alegre recebia melhorias e a vida era, mais uma vez, reordenada no espaço
204
Em 1898 a Fiat Lux só fornecia iluminação domiciliar (Oliveira, op.cit.:183). As ruas continuavam tendo
iluminação à querosene (317 lampiões ) e a gás (582 combustores) (Franco, 1988:212).
205
O jornal “A Gazetinha” é um exemplo espetacular desta verdadeira cruzada em prol do “saneamento” da
cidade.
77
os prédios destinados à habitação coletiva (hotéis, casas de pensão, etc.) a satisfazerem as
melhorias urbanas da civilização moderna não eram para todos: “Todos pagavam impostos,
(Pesavento, 1996;40).
De qualquer forma, Porto Alegre viu crescer, neste final de século, seu comércio,
instalada, em1891 a Cia. Fiação e Tecidos de Porto Alegre, em 1892 a Fábrica de Calçados
Paris, em 1894 a Cervejaria Ritter e a Cia. De Vidro Sul Brasil (Souza e Müller, op.cit.:85).
passou a acolher as casas de veraneio da elite local e uma estrada de ferro ligando o centro
da capital até lá foi instalada em 1896 (Idem). Também em 1896 o Cynematógrafo foi
apresentado pela primeira vez em Porto Alegre (Ibidem). Neste mesmo ano surgiu a
depois, a Escola de Medicina e a Escola Livre de Direito (Ibidem). O Palácio Piratini foi
iniciado em 1896 e dois anos depois foi lançada a pedra fundamental do Paço Municipal
(Franco, op.cit:302-4). Neste período há, também, uma “febre” de reformas nas fachadas
das residências da cidade, que se estende, ao menos, até a segunda década do século XX207.
206
Na realidade, o serviço de esgotos cloacais só foi inaugurado em 1912 (Franco, 1998:154).
207
Isto é visível na quantidade de processos que dão entrada na Intendência Municipal no período, a fim de
receberem licença para realizarem as obras (Processos microfilmados – APM).
78
Essa expansão urbana de Porto Alegre, aqui situada em termos de
menor grau, na paisagem atual da cidade. Estas marcas, ou seja, as evidências empíricas
materiais de paisagens urbanas do passado, podem nos ajudar a compreender melhor este
escondida do olhar mais descuidado. Vemos tão facilmente o Teatro São Pedro e, para
tomar um exemplo de arquitetura doméstica, o Solar dos Câmara. Mais que isto,
continuamos a utilizar esses lugares, ressignificados, é verdade. Mas quem se importa com
aquelas casas de porta e janela, sem um único morador ilustre que lhe contasse a história,
Guardadas as limitações impostas por uma arqueologia sem escavação 208 (que
seria capaz de revelar bem mais) passarei, a seguir, a analisar estes vestígios materiais que
208
É bem verdade que, com relação às estruturas arquitetônicas, sobreviveram em muito maior número, na
paisagem atual, aquelas ligadas às camadas sociais dominantes ou que tiveram funções público-
administrativas, seja por suas características próprias que lhes conferem maior durabilidade material, seja pelo
seu significado simbólico que resulta num esforço de preservação. Por outro lado, também há a questão de
que o número dessas estruturas ainda hoje existentes é tanto maior quanto mais próximo o período de sua
construção da atualidade, rareando à medida que o tempo passa. Mas isto também é verdade para o
documento escrito.
79
2. OS LUGARES
Imagine-se a cidade dos anos 30 oitocentistas: dia de sol, mês de abril, entre sete e
oito horas da manhã. Em frente à Igreja das Dores, uma pequena multidão reúne-se “diante
negro condenado a duzentas, quinhentas, mil, seis mil fustigadas de relho”209 (Idem).
Saindo dali e caminhando em direção à Alfândega, passando pela esquina do Beco dos
Guaranis210, um mendigo cego, aos gritos, afronta os que passavam sem dar uma esmola
(Coruja, 1983:89). No porto, “a barra coberta de barcos” (Isabelle, op. cit.:55), imensos e
pesados fardos são descarregados dos navios por guindastes situados na extremidade do
trapiche de onde são carregados pelos escravos até o pátio da alfândega (Idem). No Largo
carregando compras dos seus senhores. As casas em frente, na Rua da Praia, mostram uma
arquitetura simples, “com grande número de janelas no primeiro andar e somente portas
ao rés do chão”(Ibidem). Ali moram e tem seus negócios os comerciantes mais importantes
da cidade. Um aguadeiro passa cantando em voz bem alta, anunciando seu produto (Coruja,
op. cit.:89). Pessoas chegam de todo lado: este é o principal ponto de reunião da cidade nos
dias comuns.
Praia, são lugares que podem ser definidos, mais ou menos facilmente, por seus limites
209
Interessante notar que os castigos públicos aos negros já haviam sido proibidos em 1831 pelo Código de
Posturas (AHMV) e que Isabelle esteve em Porto Alegre em 1834. Apesar da narração um tanto romanceada
(alguém resistiria a 6.000 chibatadas?) a descrição é rica enquanto representação.
210
Atual General Vasco Alves, chamada assim porque durante muitos anos esteve aquartelado ali um
regimento formado, em sua maioria, por índios guaranis (Coruja, 1983:109).
80
físicos. Mais do que isto, eles são o lócus privilegiado de práticas sociais: onde se castiga,
onde se mendiga, onde se negocia, onde se mora. Dizendo de outra forma, áreas onde as
ações humanas deixaram suas marcas e afetaram, em maior ou menor grau, o mundo
Uma das mais claras e marcantes formas de estabelecer limites no ambiente físico e
urbana. Constitui-se, portanto, no mais claro meio de observar as formas através das quais
observar os modos através dos quais uma sociedade categorizou o seu meio e como
211
A importância do simbolismo da passagem da natureza à cultura foi demonstrada por Lévi-Strauss,
especialmente no primeiro volume das Mitológicas, O cru e o cozido (1991) através de mitos indígenas sul-
americanos. Lévi-Strauss defendeu a idéia de que a oposição natureza/cultura (que corresponde à distinção
entre animalidade e humanidade) está sempre latente nas atitudes e comportamentos do homem (LEACH,
1977:37).
212
O ponto de ruptura, onde termina a natureza e começa a cultura, é dado pela capacidade de comunicação
simbólica do homem. Lévi-Strauss defendeu o ponto-de-vista, com o qual concordo, que a linguagem (e é
bom lembrar que não é apenas a linguagem falada) é o que permite o homem comunicar, estabelecer relações
sociais e, num outro nível, pensar através de símbolos (LEACH, op. cit.).
81
As estruturas arquitetônicas, como observou Sanders (1990:40), “parecem ser um
arqueólogo elas apresentam, segundo este autor, um outro valioso atributo: “a arquitetura é
mais apta a reter o seu contexto original de uso e, comparada a outros objetos, o meio
Os autores que tem estudado as relações entre arquitetura e uso do espaço possuem
(1990:3), consideram que a arquitetura é um reflexo das formas de uso do espaço (que, por
sua vez, é um reflexo da cultura)214, ou, como prefere Rapoport (1990:10), um reflexo de
“expressões sociais da cultura”, posição também adotada por Symanski (1998), outros,
verdade, como mostrou Lawrence (1990: 75), talvez não seja produtivo tomar essas
relações de forma estática, nem pensar que existam leis que as prescrevam. Aliás, muitos
autores, entre eles o próprio Lawrence, Kent (op. cit.) e Rapoport (op. cit.), concordam que
no máximo, como lembrou Rapoport (Idem.), podem servir como artifício mnemônico,
Kent (op. cit.: 2) lembrou que arquitetura é, geralmente, uma elaboração consciente
daqueles que a promovem e que ela depende de contextos históricos e culturais específicos.
Ela é, ainda segundo esta autora, uma forma de estabelecer fronteiras onde elas não existem
213
O grifo é meu
214
Kent (1990:3) salienta que deste ponto-de-vista a importância do meio físico é muito pequena,
constituindo-se, apenas, num fator geral limitante.
82
naturalmente215. Lawrence (1990: 76) argumentou que o conceito de fronteira, depois dos
coisas ou ações que, de outra forma, se manteriam indiferenciadas. No entanto, é preciso ter
presente que as fronteiras tem uma natureza implicitamente ambígua (Idem.:44). Elas
representam zonas intermediárias que separam, mas que também permitem, favorecem e,
Lawrence (op. cit.:77) alerta para o fato que “uma fronteira simbólica visível e
acessível entre dois domínios é mais dependente de regras e convenções sociais que uma
possuem sentidos e valores que lhes são atribuídos mediante convenções sociais. Assim,
apropriados. Portanto, não apenas a forma, mas também a organização e o uso de estruturas
arquitetônicas estão embebidos das idéias que os geraram e só podem ser compreendidos
215
Particularmente penso que elementos do meio natural (rios, montanhas, etc.) tornam-se fronteiras pela
atribuição (humana) deste sentido a eles.
83
levando-se em conta os processos sócio-históricos nos quais estão inseridos ( Lawrence,
1985).
grupos estão envolvidos na elaboração do desenho arquitetônico dos prédios e nos seus
usos, buscando as idéias e valores que estão sendo mobilizados para definir e delimitar os
sendo utilizados para expressar essas idéias e valores nos desenhos e usos das edificações
(Lawrence, 1990:77). Neste sentido é que se procurou conjugar a análise das estruturas
arquitetônicas com a dos Códigos de Posturas e dos discursos dos agentes sociais nos
portanto, num processo sócio-histórico. Esses prédios preservam nas suas fachadas
216
A arquitetura vernácula é aquela que foi construída pelos próprios usuários do edifício ou por alguém que
faz parte da mesma comunidade. “...são produtos imediatos de seus usuários e formam um indicador sensível
dos sentimentos íntimos dessas pessoas, suas idéias sobre o que é ou não apropriado para elas.
Conseqüentemente, mudança nas atitudes, valores e visões de mundo são muito prováveis de se refletirem em
mudanças nas formas da arquitetura vernácula”.(Deetz, 1977:93).
217
A arquitetura acadêmica, segundo Deetz (Idem.), resulta de projetos previamente criados por profissionais
treinados que refletem estilos ligados à ordens arquitetônicas formais: “Isto é muito menos indicativo de
atitudes e estilos de vida dos ocupantes da edificação criada”.
84
neoclássico ou o ecletismo deliberado, por exemplo. Por outro lado, pela importância que
assumem na paisagem (tanto em termos físicos como simbólicos), costumam ser bem
estudados, possuindo, na maior parte das vezes, documentação escrita que atesta data de
“casas”218, a análise torna-se bem mais difícil, apresentando uma série de problemas que
218
Para os fins deste estudo, considero “casas” aquelas estruturas arquitetônicas utilizadas tanto para fins
residenciais como comerciais, que tenham tido como proprietários um ou vários indivíduos. Em outras
palavras, que tenham sido propriedade privada de fins residenciais e/ou comerciais. Não estão incluídos,
portanto, prédios públicos ou religiosos.
85
2.1.1 – As Casas: a arquitetura vernácula.
cidade. O que deveria ser considerado como uma estrutura remanescente de uma casa do
século XIX? Uma edificação inteira, ou se poderia incluir restos de edificações, como uma
parede ou um muro em ruínas? O critério básico adotado foi que tal estrutura permitisse
casas. Algumas vezes (poucas), obteve-se apenas alguma curta informação do morador
sobre o que poderia existir atrás da parede que limitava a sua casa (leia-se lar)219 do espaço
onde era permitida a estada de estranhos: às vezes uma peça frontal, onde havia um
pequeno negócio, mas na maior parte dos casos, a rua. A segunda questão relaciona-se à
(1994) considerou dois tipos de comunicação que poderiam ser veiculados através da casa:
219
Foi interessante e assustador verificar que aquelas pessoas vivem um estado de pânico frente à
possibilidade de que suas casas sofram algum tipo de fiscalização do poder público. Em geral, quando se
iniciava uma conversa e explicava-se que se tratava de “um trabalho para a faculdade”, sorrisos surgiam nos
rostos e se ouvia exclamações prenhes de orgulho: “Ah, esta casa é muito antiga!”. Mas à primeira pergunta
do tipo “tem pátio nos fundos?”, as expressões se fechavam e as portas também.
86
a indexal e a canônica. Na primeira, seus elementos transmitem mensagens sobre os seus
informações sobre variáveis como gosto ou riqueza de seus ocupantes. O que é comunicado
cosmológicos. Nas casas essa comunicação atua, antes de tudo, sobre seus ocupantes e está
relacionada, especialmente, aos seus aspectos internos (Ibidem). No entanto, não é só isto.
Assim como a comunicação indexal está presente em locais internos às casa (regiões mais
indexal (Ibidem:12).
engloba desde uma edificação completa e ainda hoje habitada, até fachadas de casas que se
87
mantêm atualmente apenas fazendo às vezes de muros para estacionamentos, passando por
características deveriam ser levadas em conta que pudessem fazer reconhecer uma
determinada estrutura como pertencente ao amplo período representado pelo século XIX?
pistas a fim de verificar nos prédios um padrão morfológico externo que os tornasse
reconhecíveis. Foi feita uma listagem do conjunto de atributos que situariam, em princípio,
cada estrutura dentro de um amplo período de tempo (o século XIX) e, dentro dele, em
períodos mais específicos221. Por exemplo, edificações coloniais possuem atributos que as
diferenciam de edificações ecléticas, que, por sua vez, são posteriores àquelas.
alinhamento da rua, que se definia, assim, pelas edificações. Apresentava, em sua versão
térrea, cômodos encarreirados. A peça da frente, com janela no alinhamento da rua, era
220
O conjunto de caracteres básicos próprios às construções do século XIX foram obtidos, especialmente, em
Reis Filho (1976), Lemos (1987 e 1989), Weimer (1992), Mascarello (1992), Bello (1997) e Fabris (1993).
221
É necessário deixar claro que as estruturas vernáculas que considerou-se como aquelas que comporiam o
quadro arquitetônico geral do século XIX são, por um lado, a casa colonial e, por outro, as estruturas
ecléticas.
222
A caracterização das edificações coloniais e ecléticas teve por base a análise bibliográfica e o seu
confronto com a documentação primária existente, em especial as plantas anexas aos processos microfilmados
no APM, bem como as gravuras e fotografias existentes sobre o período e, finalmente, com a realidade
material existente na área de pesquisa. É importante frisar, por isto, que os elementos aqui considerados como
característicos de cada movimento arquitetônico, os são em nível local, não havendo nenhuma intenção de
estender esta caracterização para além dos limites da área pesquisada.
88
seguida pelas alcovas, tendo ao fundo a varanda, tudo ligado por um corredor lateral
(Lemos, 1989:32). Esta peça podia ser sala ou uma oficina ou loja. Tanto nas casas térreas
como nos sobrados, as aberturas eram, em geral, arrematadas com vergas de arco abatido e
uniformes (Reis Filho, op. cit.). As técnicas construtivas apresentavam precário nível
esquema básico, sem grandes variações (Idem.:26). A cozinha estava afastada do corpo da
casa que possuía uma zona íntima vedada a estranhos (Lemos, 1987:93)224. Nas casas mais
223
A tecnologia existente então impunha tal característica. A inexistência do cimento implicava em paredes
espessas para que estas pudessem se sustentar, resistir a cargas e forças (vãos para aberturas, peso do telhado,
etc.). Lemos (1987:97) considerou que o clima foi um fator determinante, e que as paredes grossas tinham a
função de absorver o calor tropical, o que, no caso de Porto Alegre, só poderia ser entendido de outra
perspectiva. De qualquer forma, a arquitetura deste período foi caracterizada por este autor como “arquitetura
do desperdício: exagerada bitola das madeiras, que não custavam nada; grossas paredes de grande altura
levantadas pela mão-de-obra escrava” (Idem)
224
Lemos (Ibidem) também imputa ao clima tropical esta característica, que em Portugal nunca teria existido:
o calor tropical teria afastado o fogão da casa. Da mesma forma a preocupação com a possibilidade de
incêndios em casas que primeiramente utilizavam a palha em sua constituição, ao menos na cobertura também
teria sido um fator a ser considerado. Novamente Porto Alegre foge a esta característica climática e é
surpreendente não apenas o afastamento da cozinha como a inexistência de lareiras nas casas, ao menos nas
mais ricas, tendo em vista o frio e a umidade, ainda que o risco de incêndio fosse um fator importante. Saint
Hilaire, perplexo, queixava-se: “Esse frio repete-se todos os anos. Toda gente se queixa dele, sem contudo
procurar meios eficazes de defesa contra o inverno [...]. Ninguém tem a idéia de aquecer os quartos,
trazendo-os bem fechados e munidos de lareira. Há aqui grande número de casas muito bonitas, bem
construídas e bem mobiliadas, mas não há uma sequer, que possua lareira ou chaminé” (Saint Hilaire, 1974:
35).
89
O Ecletismo é considerado aqui como aquela concepção arquitetônica que engloba
desde o neoclássico até o Art-Déco, este último, é claro, surgido no século XX. Patteta
“ecletismo deliberado” (segundo Schlez, apud Bello, op. cit.:37) que se caracterizam
alimentado pelas idéias de modernidade e progresso presentes “no Iluminismo, nos ideais
que, segundo Segre (apud. Bello, op. cit.:37), acabaria desembocando no Movimento
Moderno.
ecletismo, que teria entrado no Brasil através da Missão Francesa (1816) e se difundido
90
pelas províncias de forma bastante simplificada, tendo sido, em Porto Alegre,
especialmente importante nos edifícios públicos. Por outro lado, importa o ecletismo
deliberado que será uma resposta arquitetônica tipicamente urbana às mudanças de ordem
técnica, econômica e social, ocorridas em nível mundial (Reis Filho, op. cit.:152), conforme
já foi referido acima, e introduzidas em Porto Alegre a partir da segunda metade do século
XIX.
75) a transferência da Corte para o Brasil, que resultou numa “urgente necessidade de criar
em 1808. Segundo Reis Filho (Ibidem: 41), os agentes sociais identificados com os
interesses coloniais viam na corte do Rio de Janeiro um modelo a ser seguido: imitando
neoclássico via-se limitado pelas condições de técnica construtiva, pelos materiais e pela
91
mão-de-obra, ficando restrito às fachadas e mantendo, no interior dos prédios, a mesma
janelas, calhas, papéis decorativos, estes últimos salientando uma preocupação com a
decoração interna das casas e uma intensificação da vida social (Ibidem). Também é aí que
surge a casa de porão alto. As edificações continuam sendo feitas no alinhamento da rua,
77).
92
A burguesia urbana emergente que trás consigo o ideário do progresso (do que está
formas, com qualquer vestígio do colonial (Fabris, 1993). Há uma necessidade de se fazer
impor sobre o restante da sociedade, tanto aos setores mais pobres, quanto à aristocracia.
Como expressão de uma classe ascendente em busca de status, o ecletismo (deliberado) terá
ou ainda “era o apelo à imaginação. Era a recriação” (Idem). Nos termos de Annatereza
decorativos inspirados no barroco francês e italiano (Reis Filho, op. cit.: 178).
relacionados a higiene e habitação (Lemos, 1987: 101) levou à mudança da estrutura das
também maiores e mais próximas, o que veio ao encontro das idéias higienistas de
delas passaram a apresentar recuo em uma das laterais do lote, onde eram instalados
93
jardins. As casa maiores podiam apresentar recuo em ambos os lados e, neste último caso,
um deles era organizado como jardim e ali era colocada a entrada principal, sendo que o
outro configurava apenas uma estreita passagem lateral, geralmente com função de
iluminação e arejamento interno (Reis Filho: 170-1). O atual Museu Júlio de Castilhos é um
exemplo deste tipo de edificação na área pesquisada. Segundo Reis Filho (op. cit.), estas
anexadas aos processos existentes no APM), fachadas que apresentam aberturas num ritmo
constante. As paredes externas, pelo menos nos exemplos mais antigos, mantinham uma
no corpo da casa incluídos, pela primeira vez, nos programas de construção (Reis Filho:
receber (é bom lembrar que a iluminação a gás nos domicílios favoreceu uma forma de
225
Até então, os telhados seguiam a tradição luso-brasileira de uma ou duas águas no sentido frente-fundos.
Este sistema visava lançar parte das águas da chuva no próprio pátio e parte na rua, a fim de que houvesse a
absorção destas águas pelo terreno, devido à impossibilidade de lançar mão de sistemas de captação pluviais.
(Reis Filho, op. cit.:26). Ao mesmo tempo, a construção sobre os limites laterais do lote “procurava garantir
uma relativa estabilidade e proteção das empenas contra a chuva...” (Idem.).
94
sociabilidade, cujo espaço básico era a casa) dando maior importância à sala de visitas que
passou a ser ornada com tapetes, cortinas, quadros, piano, “flores que antes só existiam nos
altares e nos túmulos” (Ibidem: 105). A importância dos recuos laterais aparecia também
com a função de, além do fornecimento de ar e luz, constituir um acesso direto da rua à área
afastarem-se dos olhares da rua buscando a privacidade da vida familiar 226. É importante
salientar que, no caso específico de Porto Alegre, estas novidades que vão sendo
introduzidas aparecem nas residências mais ricas nas últimas décadas do século XIX e, na
Os setores sociais mais pobres, que não tinham acesso aos meios necessários a
139).
226
A privacidade doméstica, marca registrada do modo de vida burguês (Hall, apud Symanski, op.cit:86 nota
28), foi uma característica marcante do século XIX, tanto ao nível mundial, quanto nacional.
227
A permanência do lote urbano colonial estreito e comprido na área central da cidade impedia a
modificação de estruturas arquitetônicas tradicionais. Ou se adquiria dois ou mais lotes a fim de construir com
recuo lateral, por exemplo, o que importava em alto poder aquisitivo, ou morava-se nos novos bairros, onde
os lotes eram maiores, mas também caros, e possibilitavam outras formas construtivas.
95
Nos processos analisados no APM notou-se um grande número de plantas de chalés,
na maior parte das vezes em locais longe do centro. Evidencia-se assim, o gosto pelo
pitoresco que também está presente nos Quiosques observados através das fotografias da
época.
Os problemas para realizar uma tarefa, aparentemente tão simples, são inúmeros.
Inicialmente é preciso lembrar que, pelos mais diversos motivos, muitas dessas
características não permaneceram nos prédios228, sendo preciso buscar aquelas que fossem
228
Por exemplo, os beirais dos telhados, característicos das casas coloniais, desapareceram por completo com
a introdução da obrigatoriedade de instalação de platibandas nas edificações a serem construídas ou
reformadas, pelo Ato Provincial de 31 de maio de 1886. (Código de Posturas – AHMV).
96
visíveis hoje. Além disto, algumas formas básicas de fachada aparecem em construções
presentes em um largo período de tempo. É o caso das casas térreas, geralmente de porta e
janela, com aberturas em vergas retas, telhados de 1 ou 2 águas que estão presentes no
século XIX e cujo padrão formal persistiu até muito recentemente. Por outro lado, alguns
vezes, sobre construções mais antigas que acabaram sofrendo uma espécie de maquiagem
(Reis Filho, 1976:34). Outra questão importante e de ordem operacional é dada pelo fato da
pesquisa estar centrada em uma área que hoje é fundamentalmente comercial: muitos
prédios encontram-se com suas fachadas cobertas por imensos painéis que trazem o nome
da loja e que compõem o próprio “layout” comercial das empresas, o que impede a
com as características prévias necessárias para inclusão na pesquisa ter passado sem ser
vista.
dito anteriormente, houve a preocupação de não estabelecer características ideais, mas levar
em conta a realidade concreta das estruturas existentes hoje. Assim, através de uma
analisada.
229
Neste ponto foram fundamentais as análises da plantas existentes em microfilme no APM.
97
Em primeiro lugar registraram-se todas aquelas estruturas que apresentassem os
seguintes requisitos:
externas com 40 cm ou mais de espessura230. Estes atributos são comuns a todas as “casas”
construído nos limites do lote (atributo da casa colonial, estando presente também nos
recuo aparecesse dos dois lados, um deles deveria ser mínimo, não configurando jardins,
mas pequenas passagens (atributo relativo a casas construídas com uma tecnologia mais
entre elas (poder-se-ia dizer um mesmo ritmo) – atributo comum a todos os movimentos –
230
A espessura das paredes pode ser bem variada e depende basicamente do tamanho do tijolo empregado na
sua construção. Sabe-se que, no século XIX, os processos de fabricação desses tijolos eram artesanais, o que
lhes conferia aspectos bastante heterogêneos. No entanto, supõem-se que os tijolos menores que 25 cm, em
sua maior dimensão, só passaram a ser produzidos neste século. Moreno (1995: 94) forneceu a cronologia das
dimensões do tijolo no caso argentino: 20 X 40 X 7 (metade do século XVIII), 20,5 X 41 X 6 (casa de Q.
Caseros), 18 X 36 X 5,5 (metade de século XVIII), 15 X 30 X 5,5 (metade de 1880). Schavelzon (1991)
mostra que os tijolos eram comuns nas construções de Buenos Aires desde a metade do século XVIII. Este
autor considera que não é possível estabelecer uma cronologia das dimensões dos tijolos, no entanto, afirma
que os antigos eram consideravelmente maiores que os atuais. Apesar dos tamanhos variarem conforme o
fabricante, este autor aponta para o fato que as medidas mais comuns situam-se entre 27 e 40 cm de
comprimento e 2,5 e 6 cm de espessura. Tijolos recuperados nas escavações realizadas no Mercado Público
de Porto Alegre (portanto exumados de uma lixeira coletiva do século passado) possuíam medidas de 28,2 X
13,2 X 6,5 cm e 25,5 X 11,8 X 6,4 cm (informação pessoal de Fernanda Tocchetto). Um tijolo recuperado nas
escavações do Solar Lopo Gonçalves, cuja construção remonta a meados do século XIX (Symanski, 1998),
mediu 31,4 X 14,5 X 6 cm (informação pessoal de Fernanda Tocchetto). Ainda em Porto Alegre, obteve-se as
dimensões de tijolos que estão em uma estrutura situada à Rua Riachuelo nº 645 que variam entre 30 e 30,5
cm de comprimento e 14 e 15 cm de largura. Estes dados parecem sustentar a hipótese acima.
98
ou uma quebra deste ritmo, característica surgida em algumas unidades apenas nas últimas
apresentassem aberturas em arco abatido (ligado ao colonial), arco pleno ou verga reta
apresentando balcões e peitoris, estes deveriam ser de ferro batido (presentes nas casas
qualificada e estão presentes apenas em alguns exemplos do final do século XIX e início do
século XX231.
sobre elas. Como já foi dito, as platibandas foram introduzidas a partir da segunda metade
mostrassem uma fachada não decorada (ligada ao colonial), ou que apresentassem uma
231
Estes elementos são introduzidos, segundo Reis Filho (1976: 161), a partir de 1890 e são considerados por
ele um aperfeiçoamento de detalhes que depende de mão-de-obra capaz de realizá-lo.
99
informações documentais de terem sido construídos no século XIX. Por
século XX inscrita na fachada, já que esta poderia ter sido colocada posteriormente;
fachadas alteradas por reformas, mas que apresentassem vestígios das formas
Não foram registrados aqueles que possam ter sido construídos no século XIX, mas
Com isto, partiu-se para a definição de outros critérios que tiveram por base a
combinação dos dados obtidos em campo com pesquisa em arquivos, especialmente nos
Livros Prediais existentes no Arquivo Público Municipal entre os anos de 1893232 e 1928.
Em primeiro lugar buscou-se chegar, através da numeração atual dos prédios, a sua
numeração original. Ao lado disto, procurou-se saber quem eram os proprietários dos
imóveis e o tipo de construção dos prédios (se térreo, sobrado ou assobradado233). A idéia
foi a de estabelecer uma relação entre o tipo de construção existente hoje e aquela que
ocupava o mesmo lote em 1893. É bom lembrar que não é suficiente estabelecer a
232
O livro mais antigo refere-se ao ano de 1893, portanto este foi um limite imposto pela documentação. O
livro de 1928 foi utilizado porque toda numeração desta área foi modificada neste ano.
233
O assobradado é a classificação utilizada para referir, sempre, as casas de porão alto nos livros prediais da
época. Algumas vezes referem-se também a casas térreas que possuem porões. No entanto é uma classificação
um tanto ambígua, já que os mesmos prédios são classificados diferentemente conforme o ano (APM).
100
existência de um prédio no ano de 1893 com a numeração correspondente a um prédio
existente hoje, no mesmo lugar: ainda que se saiba que toda a área central de Porto Alegre
fosse ocupada no final do século passado, existindo poucos vazios urbanos, isto não
significa que o prédio que existe hoje seja o mesmo do século passado que se manteve.
Com estes dados voltou-se a campo a fim de fotografar todas as unidades registradas. Estas
fotografias foram, então, comparadas com imagens antigas, com as plantas existentes em
construção destas mesmas edificações. Esta investigação forneceu dados mais seguros
construção térrea até 1899 e hoje o que se observa no mesmo lote é um sobrado, não se
considerou a estrutura na amostra, já que, ainda que exista a possibilidade de ter sido
uma demolição.
Não foi observada nenhuma estrutura que hoje fosse térrea e que no século passado
tenha sido sobrado. Algumas construções são classificadas como térreas ou assobradadas,
nos Livros Prediais (APM), dependendo do ano. Nestes casos, observou-se que sempre se
tratavam de estruturas arquitetônicas que possuíam porão e, portanto, isto deve estar ligado
101
Assim, pelo que foi dito acima, fica evidente que se está trabalhando com uma
amostra do que possa existir ainda hoje dos prédios construídos durante o século XIX em
Porto Alegre. No entanto, procurou-se que esta amostra seguisse critérios bem
em conjunto como uma amostra arqueológica. Deetz (op.cit.:93) advertiu que nada garante
que as construções do passado que chegaram até nossos dias sejam verdadeiramente
Parece óbvio que na área central de Porto Alegre não seja possível encontrar hoje
nenhuma casa de madeira que tenha sido ocupada no século passado. No entanto, e a par
dos limites concretos apresentados por um tipo específico de pesquisa (sem escavação) e
panorama daquilo que existiu no século XIX e que se observem as modificações que
234
Os vestígios de casas já destruídas, que poderiam ser observados através de escavação são, muitas vezes,
bastante reduzidos devido à intensa ocupação (e reocupação) do solo nesta área da cidade. Assim, é de se
esperar que as marcas deixadas no solo por construções já desaparecidas tenham sido destruídas durante a
edificação de novas estruturas arquitetônicas que, na maioria das vezes, implicam em grandes movimentos de
terra por se tratarem de grandes áreas verticais.
102
O levantamento resultou numa amostra de 88 “casas” distribuídas nas atuais Rua
Coronel Fernando Machado (11 unidades), Demétrio Ribeiro (12 unidades), General
Salustiano (1 unidade), General Washington Luiz (11 unidades), General Vasco Alves (2
Bento Martins (1 unidade), General João Manoel (3 unidades), General Auto (6 unidades),
Não existiu nenhuma intenção em realizar uma tipologia de casas: como Deetz
(1977:13) salientou, toda tipologia é construída com base em classificações formais que
perceberam como tipos diferentes235. Além disto, este autor lembra que a arqueologia
histórica tem a possibilidade de contar com uma rica documentação escrita na identificação
que ignorem os dados históricos se constitui, utilizando a imagem proposta pelo próprio
Deetz, numa atitude similar à tentativa de reinventar a luz de vela, esquecendo a lâmpada
incandescente e ignorando o interruptor, enquanto se esbarra nele (Idem.). O que foi feito,
foi uma ordenação dessas “casas”. Esta ordenação parte de uma dupla via de informação: o
103
em uma seqüência cronológica, localizando cada estrutura arquitetônica oitocentista em
ordenação: buscar aproximar-se, levando em conta esses valores e esse imaginário, das
pensar em uma seqüência temporal linear. Ou seja, não se trata de dizer que a casa “x” que
236
Este é um código que o arqueólogo não domina e talvez um arquiteto tivesse melhores condições de
analisar esta questão. Isto aponta para a necessidade de trabalhos que envolvam profissionais de diferentes
áreas, o que uma Dissertação de Mestrado não comporta. Ao lado da Arquitetura, a História da Arte (também
ignorada por quase todos os arqueólogos brasileiros) teria um papel importante a desempenhar na elucidação
de muitos problemas.
104
características neoclássicas que, por sua vez, é anterior à casa “z” ligada ao movimento
eclético deliberado. É certo que existe uma seqüência cronológica na introdução de certos
elementos, o que não quer dizer que outros tenham sido necessariamente abandonados. O
que existe é uma tendência das estruturas arquitetônicas sofrerem modificações que são
social dos grupos que as produziram. Assim, a intenção é a de utilizar estes elementos que
caracterizam cada movimento a partir de uma perspectiva que privilegia processos de longa
duração.
períodos mais remotos podem estar presentes no conjunto que foi atribuído ao período mais
recente, em razão das possíveis (e muito prováveis) reformas de fachadas que acabaram
Esta ordenação visou, por outro lado, relacionar as diferentes edificações com os
grupos sociais envolvidos na sua produção e no seu uso. Para tanto, observou-se o tamanho
e forma dos prédios como um indicador importante de grupo social segundo sua base
emprego de tecnologias diferentes (uma casa térrea é mais simples de construir que um
105
assobradado) o que envolve custos também diferentes. Algumas vezes um assobradado
pode possuir área menor que uma casa térrea. No entanto, o fato de constituir-se em uma
de atividade comercial, relaciona esta estrutura a um tipo particular de idéia sobre a forma
(porão alto), térreas de porta e janela e térreas de porta e duas ou mais janelas. Essa relação
da edificação com o grupo social pode ser mais ricamente analisada no final do século XIX
pela existência de documentos que não existem para os prédios do período anterior. O
levantamento dos nomes dos proprietários dos imóveis constantes na amostra foi
importante em alguns casos: naqueles onde o proprietário foi também morador e pessoa de
algum destaque na sociedade da época, cuja atuação possa ter resultado em algum tipo de
registro. Em outros casos foi importante, no sentido de relacionar grupos sociais com
elementos comunicativos capazes de revelar idéias e valores sociais, ao lado de outras áreas
106
Sobr ados
27% 28%
A s s obr adados
mais de duas
8% aber tur as
dominante econômica e politicamente neste período estão colocadas aqui: o Solar237 dos
237
O termo Solar não está relacionado, aqui, a nenhum atributo morfológico da estrutura, mas quer designar
uma “herdade ou morada de família nobre e antiga” (Hollanda, 1967; 1.126). Este é um termo, aliás, que não
consta no dicionário de 1848 (Fonseca e Roquette) consultado, sugerindo uma classificação atual e não
realizada na época. Coruja (op. cit.: 101) refere-se ao Palácio do Visconde.
107
O Solar dos Câmara, situado na rua Duque de Caxias nº 968, foi construído em
1818 (Oliveira, op. cit:231) e esta data encontra-se sobre o portão principal de entrada. É
interessante lembrar que este portão foi reformado, tendo suas medidas originais reduzidas
(Idem), e que a manutenção da data remete à sua importância simbólica e deve ser
sua entrada principal colocada num recuo lateral: a passagem se realiza sob um portentoso
valores básicos deste grupo). Por aí atinge-se o jardim. É de se esperar que ele tenha
recebido um tratamento formal, por se tratar de uma área onde as pessoas externas ao grupo
doméstico eram admitidas e pelos cuidados formais verificados na fachada com fins de
encontrado um calçamento em pedras portuguesas que teria sido um antigo passeio interno
do jardim lateral ao Solar, situado logo à entrada, após o portão (Souza, 1992). Isto também
reforça a suposição de que esta área sofrera cuidados especiais. A porta principal está
colocada num patamar mais alto, alcançado através de uma escada. Os balcões nas janelas
da fachada frontal representam um espaço privado que avança sobre o público: exemplo de
uma fronteira sumamente marcada, que separa, mas também comunica e relaciona
108
domínios. O Solar apresenta, ainda, elementos decorativos em massa sobre a fachada,
platibandas pelo General Câmara que aí foi viver depois de 1851 (Oliveira, op. cit.: 231). A
casa de porão alto foi, segundo Lemos (op. cit.: 40), construída em bairros de caráter
poder (conforme será discutido no capítulo seguinte) atesta, mais uma vez, a importância
política de seus ocupantes. Este prédio está tombado pela União e, atualmente, possui um
uso público.
esquina com a rua General Canabarro. Atualmente o prédio, um sobrado, está em ruínas,
tendo sido tombado pelo município e doado, pelo Estado do Rio Grande do Sul, ao Instituto
incorporadas ao prédio em 1932/33 por ocasião de uma reforma quando a estrutura foi
109
adquirida pelo Estado: as aberturas que nesta ocasião foram modificadas, recebendo vergas
retas com cercaduras de massa e um frontão sobre a entrada principal, são os elementos
mais marcantes (IAB – Pesquisa realizada para fins de tombamento, Processo 34106 98
7)238. Não se conhece com exatidão a data de construção do prédio. O Jornal Zero Hora, em
considera que ele teria sido construído por volta de 1830239. Este mesmo texto refere-se ao
fato do imóvel ter pertencido inicialmente à senhora Bernardina Soares de Paiva, segunda
esposa do Conde de Porto Alegre (Manoel Marques de Souza), com quem este teria se
casado no ano de 1855, o que aponta para uma data anterior a este acontecimento. Oliveira
(op. cit.: 222) refere-se ao ano de 1860. Na Planta de L. P. Dias, de 1839, o mesmo lote
hoje ocupado pelo Solar está tomado por uma edificação que pode ser a mesma, tendo em
1860 (IN: Oliveira, op. cit.:134) e na planta de Breton, de 1881. O fato é que a morfologia
da fachada remete a características coloniais. Uma foto de Virgílio Calegari, (IN: Oliveira,
op. cit.: 225) do final do século passado, mostra o prédio com aberturas em vergas de arco
abatido, janelas de caixilharias tipo guilhotina e possuindo uma camarinha, que já não
existe, com três aberturas em verga reta. Nesta ocasião o prédio já possuía platibandas e as
simétrica: a entrada principal localiza-se no centro, sendo que a porta tem maior altura e
largura que as três janelas que se dispõem de cada lado, padrão que se repete no piso
superior. Ali, balcões de ferro batido projetam-se sobre a calçada. A casa tem um pátio do
lado esquerdo, que é limitado por um muro que também possui uma entrada com arco
238
A pesquisa realizada pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil fornece a cronologia de intervenções
realizadas no prédio, mas não fornece as fontes de onde foram retiradas as informações.
239
Aqui também não são referidas as fontes de onde este dado se originou.
110
abatido de dimensões menores que a entrada principal. Do lado direito, a casa está nos
limites do lote, assim como a fachada frontal. A fachada lateral, que dá para a rua General
Canabarro, também apresenta uma entrada no corpo do prédio com dimensões menores que
a principal e uma outra no muro que limita o pátio dos fundos. Três pequenas aberturas são
observadas do piso inferior e oito janelas no piso superior, além de marcas do que deveria
ter sido anteriormente a nona janela que foi, possivelmente, fechada. Nesta fachada, quando
Império, é claro), nas campanhas contra Oribe e Rosas e na Guerra do Paraguai (Franco,
construção de grande tamanho e de sóbria mas imponente fachada que ocupa um lote bem
maior que todas as demais estruturas que permaneceram nesta área (com exceção ao lote
ocupado pelo Solar dos Câmara). Estas características comunicam o status de seus
ocupantes.
111
Solar Conde de Porto Alegre
Vista da rua Riachuelo com o Solar Conde de Porto Alegre até a General Salustiano
Foto de Virgílio Calegari (FSB – MJJF)
112
O Sobrado da rua Riachuelo 645 é um prédio de dois pisos. O térreo apresenta uma
porta e duas janelas e, no andar superior, três janelas. Todas as aberturas são em arco
abatido e os vãos possuem a mesma largura e a mesma distância entre si. Os dois andares
também são simétricos entre si. A porta possui uma soleira de arenito intensamente gasta e
as madeiras (marcos) das aberturas são maciças e em secção quadrada, parecendo ser as
originais.
A casa está em ruínas, apresentando escoras na fachada que visam impedir que a
parede frontal desabe. Os tijolos da construção estão, em grande parte, à vista o que permite
decorativo na fachada. Observa-se, apenas, uma platibanda simples. O prédio está tombado
data de construção do prédio, mas o lote onde encontra-se hoje já estava ocupado em 1839,
240
Esta análise não consta nos objetivos deste trabalho, mas seria interessante tomar este exemplar para
realizá-la pela facilidade de observação colocada aí. Conforme dito anteriormente, alguns tijolos foram
medidos apresentando dimensões entre 30 e 30,5 cm X 14 e 15 cm X 6 cm.
241
Informação pessoal do arquiteto Luiz Merino Xavier da EPAHC/SMC de Porto Alegre.
242
Todas as casas da amostra foram confrontadas, em sua localização, com a planta de 1839 de L.P. Dias com
a finalidade de estabelecer a existência ou não de ocupação do lote nesta data. No entanto, é preciso que se
diga que se trata, antes de qualquer coisa, de uma tentativa, já que não existe possibilidade de localizar cada
lote com precisão: a planta não é detalhada a este nível e o intento é mais de uma aproximação. Quando
observou-se a não ocupação do lote buscou-se estes dados nas plantas de 1869 (IN: Oliveira: op. cit.), 1881
(Breton) e 1896 (Arhons), respectivamente.
113
Riachuelo nº 645
A casa pertenceu nos anos de 1893 e 1895 a Firmina Ignácio Soeiro e nestes anos
porta e janela, térrea, situada na rua Demétrio Ribeiro nº 283. A fachada não possui
elementos decorativos, apenas uma platibanda simples, instalada no ano de 1925, segundo
Processo 112-3, F 22 (APM) que solicita licença para realizar esta obra. As aberturas são
em arco abatido e os marcos em madeira maciça de secção quadrada. A soleira parece ter
243
O termo quer designar qualquer tipo de atividade relacionada à produção e/ou comércio de bens e/ou
serviços cujo destino esteja fora do grupo doméstico. Os dados relativos a estas atividades foram obtidos nos
livros de impostos pelo valor locatício, anos de 1894, 1895 e 1898 (AHMV).
114
Demétrio Ribeiro nº 283
Antonio Rolim. Nestes anos não houve ali nenhuma atividade econômica. A casa está
244
Os imóveis listados para preservação foram aqueles que a partir do Inventário do Patrimônio Cultural de
Porto Alegre – Bens Imóveis, realizado pela EPAHC, sofreram um processo de análise que inclui o exame e a
aprovação do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural (COMPAHC) e subseqüente
homologação do prefeito. Estes imóveis constam nos computadores da SMOV (Secretaria Municipal de
Obras e Viação) e toda vez que o proprietário de um deles solicitar licença para reformar ou construir no
local de um deles, o projeto é enviado a EPAHC que analisa e aprova ou não, com vistas à preservação.
115
As “Casas” Remanescentes do Final do Século:
As casas levantadas nesta área que compõem a amostra relativa ao final dos
O que se vê neste momento são estruturas arquitetônicas com fortes traços coloniais
número, e que se avolumam nas primeiras décadas do século XX. Assim, a ordenação
destas estruturas para fins de descrição levou em conta não apenas as distinções baseadas
duas aberturas e casas térreas de porta e janela), mas também os elementos constitutivos
das fachadas.
245
O pensamento racional ou, mais que isto, o projeto de realização de uma sociedade racional, são princípios
que caracterizam aquilo se tem chamado de modernidade, enquanto modo e ideário de civilização típico do
mundo ocidental num determinado período, que inclui o pensamento linear e a constante busca de tornar-se,
do vir-a-ser. Sobre este assunto ver Touraine (1994), Baudrillard (1982) e Bermann (1995).
246
Modernização deve ser entendida aqui como um processo que estabelece em um nível concreto, da prática,
os princípios da modernidade (Toraine, 1994).
116
É importante deixar claro que nem sempre a casa térrea foi sinônimo de grupo
social mais pobre e que o seu tamanho (e sua frente) estava diretamente relacionado ao
Assim, por exemplo, um anúncio para venda de uma casa, situada na rua Duque de
Caxias, nº 257, no jornal a Federação de sete de fevereiro de 1896 (AHMV), indica um lote
com “50 palmos de frente” e uma casa com uma porta e quatro janelas. No interior existiam
um gabinete, sala, duas boas alcovas, sala de jantar, terceira alcova, área e corredor. E
ainda: dois quartos, cozinha, uma sala recreativa com janelas “de onde se pode descortinar
adjacências”.
em dois corpos, um para quatro carros e outro com baias para doze cavalos. Além disto a
casa tinha encanamento de gás, lustres e arandelas e “dito hidráulico do interior até as
cocheiras”.
biseautée com suporte de mármore, piano, vasos, biscuit, estátuas de bronze, quadros,
cômoda, jarros de cristal bacarat, um couro de tigre, um de leão, cama docel com cortinado
117
Isto demonstra com clareza que nem sempre uma casa térrea foi sinônimo de
pobreza.
individualmente. Sobrados, casa térreas de duas ou mais janelas e casas térreas de porta e
janela foram agrupadas segundo os elementos decorativos das fachadas e formas que
conjunto.
Os sobrados:
apresenta uma “atualização” ligada ao eclético deliberado247, incluindo motivos florais nas
cercaduras das portas e janelas. Está situado na rua Marechal Floriano Peixoto, nº 188/196.
247
Não estou afirmando que estes prédios foram construídos na época colonial. Friso, mais uma vez, que, de
uma perspectiva de longa duração, existem características que remetem a um imaginário relacionado à época
colonial, expresso no uso (andar térreo destinado a animais, escravos, depósito ou lojas e andares superiores –
assobradados – destinados à habitação dos senhores) e na forma básica (construções sobre o alinhamento da
rua e limites laterais do lote, telhados em duas águas, disposições das aberturas).
118
sacadas de ferro e, além das cercaduras, as janelas possuem aventais com ornamentos
florais. Este prédio ocupa um lote grande e, ao que tudo indica, possuiu apenas funções
comerciais, ao menos no final do século XIX: uma taverna no andar superior – negócio
pertencente a Antônio Gonçalves e Cia. – e uma modista no andar térreo, chamada Antônia
Com certeza este prédio é anterior a 1886. Foi neste ano que passou a ser
reformados. Porém este prédio permaneceu com beiral até o ano de 1916, quando um
processo solicitou licença para substituí-lo por platibanda, bem como para realizar outros
massa.
119
O prédio está listado para preservação e ocupa um lote que estava edificado em
1839.
peitoris de ferro, aberturas com vergas em arco pleno ou reto com o uso de vidros simples
semelhantes: um na rua dos Andradas, nºs 891/895, o seguinte na rua Sete de Setembro nº
piso apresenta sacada corrida em ferro, aberturas em arco pleno e a permanência de alguns
platibanda, sacadas e aberturas do segundo piso. No térreo, ambos apresentam três portas,
também em arco pleno com bandeiras, sendo que a abertura central é mais larga e mais alta
que as laterais.
120
Rua dos Andradas nº 891 – 895 Rua José Montaury nº 121
121
Rua 7 de Setembro nº 708
da Rua da Praia pertenceu, em 1895 a José Pires e possuía, no andar térreo, uma loja de
122
Pelo que se pode depreender da documentação, este prédio durante algum tempo
ficou desocupado e, em 1906, foi construído um trapiche (APM), que deveria estar
José Luiz Pereira “um dos mais importantes proprietários de Porto Alegre” e também
diretor da Cia. de Seguros Porto Alegrense (Monte Domecq‟ e Cia., op. cit.: 118).
Neste ano publicou-se em livro, de óbvios fins publicitários sobre o Rio Grande do
Sul, uma página referente ao proprietário deste sobrado, que cabe ser transcrita aqui em
A casa sofreu uma reforma no ano de 1916 quando foram instalados banheiros.
123
O sobrado da rua Sete de Setembro nº 708, em 1916 e seu proprietário, Sr. José Luiz
Pereira
(Reproduzido de Monte Domecq‟ e Cia., op. cit.: 118)
124
Azulejos presentes na fachada do Azulejos colocados recentemente no
sobrado da Rua Sete de Setembro sobrado da Rua Sete de Setembro
no ano de 1916
azulejos e com aberturas em verga reta, é o que está localizado na Rua dos Andradas, nº
901: três aberturas no térreo, que se repetem no andar superior, sacada corrida em ferro e
platibanda também em ferro, e bandeiras nas janelas. Foi propriedade de Pedro Thoblado
Gaiger em 1895 e no seu andar térreo funcionou uma loja de Fazendas em nome de A.
Lapa.
125
Andradas nº 901
Na rua José Montaury três sobrados de três andares com as mesmas características
Uma fotografia dos irmãos Ferrari do ano de 1897 mostra que o prédio nº 167
mantém, desde então, as mesmas aberturas dos dois andares superiores e os mesmos
peitoris de ferro das sacadas. O andar térreo possuía o mesmo padrão dos andares
superiores o que, se estendido aos demais prédios do conjunto, leva a crer que apenas o de
126
Ao lado da “Casa Negra”, o sobrado que hoje possui o nº 167 da Rua José Montaury.
Foto do Irmãos Ferrari de 1897 (FSB – MJJF)
com bandeiras, sacadas corridas em ferro, platibandas cegas com elementos decorativos
geométricos.
Carneiro da Fontoura. Todas elas possuíam no andar térreo, no ano de 1895, lojas de
loja de Antônio Carneiro da Fontoura. Este último, ao lado de Manoel Py, proprietário de
um prédio na rua dos Andradas, são os únicos que possuíam negócios em seus próprios
(sobrados) consideradas foram de propriedade de indivíduos que não eram os mesmos que
127
José Montaury nº 155 José Montaury nº 159
128
O último deste conjunto de prédios é de número 24/26 da rua Marechal Floriano. O
andar térreo está totalmente modificado e ocupado por uma farmácia. Os dois pisos
superiores possuem, ambos, três aberturas – em um dos andares são em arco abatido e o
outro em verga reta. As janelas são dotadas de bandeiras e as sacadas corridas com peitoris
em ferro. A platibanda é cega. Foi propriedade de Samuel Auveall (?) e tinha, no andar
Com exceção deste último prédio, todos os demais integrantes deste conjunto estão
129
Todos os lotes ocupados pelos prédios descritos neste conjunto estavam também
ocupados em 1839, exceção feita para o sobrado da rua Sete de Setembro que não existia
neste época248, mas que a planta de 1869 mostra o referido lote tomado por uma edificação.
cercaduras nas janelas, sacada corrida em serralheria, platibandas com ornatos em relevo e
frisos ostenta a data de 1884 em sua fachada. Pertencente aos mesmos proprietários do
pelos altos edifícios que a cercam e a malha de tendas de camelôs instalados à sua frente.
Isto para não mencionar a descaracterização do andar térreo ocupado por uma farmácia. O
informou que há um pátio nos fundos do prédio, o que aponta à possibilidade de existência
248
O aterro que deu origem à rua Sete de Setembro está associado a uma série de obras que alteraram a
configuração da margem do Rio Guaíba. Tratadas como obras separadas “atendendo a finalidades específicas
e submetidas a diferentes processos de encaminhamento, todas vieram a constituir, ao final, a Rua da
Alfândega, atual Sete de Setembro” (Escosteguy, op. cit.: 113). Em 1844 já se falava da Rua Nova da Praia,
que foi a primeira denominação desta rua (Franco, 1998: 385). No início da década de 60 a rua ligava o
Mercado à Alfândega e daí estendia-se em um grande cais até a Praça da Harmonia (Escosteguy, op. cit.:
114).
130
Praça XV de Novembro nº 45
(Reproduzido do Inventário Cultural – Bens Imóveis – EPAHC)
sua decoração se comparado ao de nº 1252/56 da Rua dos Andradas. Esta casa ocupa um
lote de tamanho similar ao da casa da Praça XV de Novembro e possui, como ele, três
aberturas no andar superior (curiosamente o térreo também está ocupado por uma
farmácia). Porém, a abertura central é em arco pleno e as cercaduras das janelas não se
comparam em termos de opulência decorativa, incluindo detalhes como uma efígie e linhas
imponente frontão. A sacada corrida de ferro, comum aos dois prédios, é rica em curvas e
outros elementos de adorno. Esta fachada foi construída no ano de 1897 quando a
construção de uma frente nova para a residência que antes, em 1895, havia sido de Dona
Maria das Dores Alves Leite. Não se constatou a existência de nenhuma atividade
131
Andradas n° 1252 / 1256
132
Ainda na Rua da Praia, nos antigos nºs 52 e 52A, hoje 718/724, está o sobrado que,
foram implantados após este ano já que data daí um processo que solicitava à Câmara
licença para realizar um contrafeito (APM). Junto a este processo há uma planta da fachada
onde se observam as mesmas aberturas, tanto inferiores como superiores, que se observam
hoje, porém numa frente lisa, sem decoração. O processo informa, ainda, que ali funcionava
um armazém de propriedade do mesmo Manoel Py, e mostra uma planta baixa onde se
constata uma peça frontal que ocupa toda largura do prédio e se estende até a metade dele
A construção da casa deve estar situada na virada do século, mas não foi possível
precisar a data. Sabe-se, no entanto, que em 1895 havia ali uma casa térrea, existente
133
Andradas nº 718 / 724
Na planta de Dias, de 1839, não foi possível localizar o lote, já que o local era,
praticamente, à beira do Rio Guaíba nesta época. Tampouco na planta de 1863 o lote está
Também na Rua da Praia, nos nºs 1201 e 1205 está um outro sobrado, de dimensões
bem maiores que os três anteriores e pertencente a D. Maria José Vianna. A fachada é
repleta de elementos nouveau. O andar superior possui cinco aberturas e uma sacada em
ferro e alvenaria. O piso térreo está totalmente modificado e ocupado por lojas. O prédio
abrigou no final do século, em 1895, uma livraria e uma tipografia de propriedade de Pinto
e Cia.. Existe um processo que deu entrada na Câmara Municipal neste ano solicitando
134
licença para realizar reparos no prédio, entre eles, alargar uma porta na parte térrea do
sobrado onde estava a tipografia. Em 1873 funcionava ali, no piso inferior da casa, uma loja
de louças e vidros de propriedade de João Antônio da Rosa e Filhos (Franco, 1983: 70). O
prédio está listado para preservação pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre e o lote que
está o sobrado da rua dos Andradas nºs 788, 792 e 798. Na verdade, a fachada que restou da
casa nºs 76, 76A e 78 da antiga Rua da Praia: atrás da altiva parede erguida no alinhamento
da rua vê-se um terreno aplainado e coberto de brita com uma pequena guarita. Guirlandas
de flores adornam as grades nas janelas sobre as aberturas do andar térreo. O mesmo
motivo repete-se na sacada corrida em ferro, que ocupa parte do piso superior e na
decoração aplicada em massa sob as demais janelas deste pavimento. As portas de madeira
135
e as cortinas de ferro são originais (Inventário do Patrimônio Cultural de Porto Alegre –
microfilmado (APM) onde as então proprietárias Mariana e Edelvira Machado, esta última
proprietária do sobrado nº 1252 / 1256 da Rua dos Andradas, solicitavam licença para
realizar uma reforma no prédio para uma “compostura geral”, “com frente nova, telhado
novo, etc.”. Alguns anos antes, em 1895, quando a casa pertenceu a D. Maria José
Fehlauer. É interessante notar que as aberturas do andar térreo não são, como nos sobrados
parece que ele esteve ocupado pelo menos desde o final da década de 1830, tendo fundos
com o rio. Esta estrutura, também está listada para preservação pela Prefeitura Municipal
de Porto Alegre.
136
Decorações mais “modestas” estão presentes nos prédios da rua Duque de Caxias
nºs 619/623 e da Riachuelo nº 1256. O primeiro é uma casa que ocupa um lote grande:
possui cinco aberturas embaixo (portas e janelas) e as mesmas cinco na parte superior. O
segundo possui apenas duas aberturas no térreo (portas) e duas no primeiro piso. São
aberturas em verga reta, com cercaduras em massa, com um número menor de elementos
arrematam a fachada que, no segundo caso associam-se pinhas colocadas nas extremidades
laterais.
O sobrado da Duque mostra as marcas de duas aberturas que foram fechadas. Esta
casa pertenceu, em 1895, a Francisco Isidoro Duarte (térreo) e a José Manoel de Araújo
137
(primeiro piso) tendo funcionado aí uma padaria em nome de João Pellegrini Castelhani e,
Misericórdia. Um processo do ano de 1917 informa que nesta data foi colocada a
também remonte a este momento. Este fato ainda aponta para a possível existência do
Na rua General Andrade Neves nºs 105 e 107 está um sobrado com três aberturas em
verga reta, platibanda cega, cercadura nas janelas e avental com decoração em massa
representando frutas e folhas, além de um balcão central de alvenaria que aponta para um
período mais recente. Não foi possível, também neste caso, saber-se a época de construção
da fachada. Apenas que existia um sobrado no mesmo lote em 1893 e que este pertencia a
138
General Andrade Neves nºs 105 / 107
Na rua João Manoel nºs 294/300 um sobrado mostra vestígios daquilo que deveria
aberturas em verga reta, cercaduras nas janelas, elementos decorativos de massa e balcões
lateral, sugerem o uso como dupla residência. Em 1839 o primeiro piso era de propriedade
João dos Santos Castro. Não se encontrou nenhuma indicação da existência de atividades
comerciais neste local durante o final do século, tampouco da data de construção do prédio
século XIX ou início do novecentos. O prédio está classificado como de interesse sócio
139
cultural pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre e listado para preservação e o lote onde
tamanho, estão localizados na Rua dos Andradas nos nºs 703/697, 673/677 e 679/683.
O primeiro deles possui três pisos e no térreo ainda se observam elementos de ferro
decorado que compunham as esquadrias das quatro aberturas existentes, elementos que são
140
segundo piso colocam-se três aberturas em verga reta e uma sacada corrida em ferro. No
terceiro andar as aberturas são em arco pleno e as janelas possuem peitoris em alvenaria e
são arrematadas por decoração em massa, também presente no segundo piso. A platibanda
Em 1895 o prédio pertenceu a Braz Pereira dos Santos e possuía em seu andar térreo
141
ocupados por um Hotel em nome de R. Miranda e Cia., mas que não consta nos registros da
O prédio está listado para preservação pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre,
tendo sofrido um incêndio e estando em péssimas condições de preservação. Na época da
pesquisa esta casa estava à venda e, apesar de não se ter conseguido entrar nela, foi possível
ver, através das frestas existentes, que há um pátio nos fundos.
Como os demais prédios deste conjunto este também está em lote ocupado desde
O segundo prédio, na verdade uma ruína, possui elementos que o situam, como o
primeiro, em fins do século XIX ou início do século XX: peitoris de alvenaria nas janelas
do terceiro piso, sacada em alvenaria no segundo piso. As aberturas são em verga reta
arrematadas por cimalhas no segundo andar e por cercadura com elementos decorativos em
massa, no terceiro. A platibanda é ricamente decorada. O térreo não foi possível observar,
142
Andradas nº 679 / 683
Esta casa foi propriedade de José Teixeira da Motta nos anos pesquisados de 1893,
1895 e 1905, e de José Lucas da Silva Dias em 1828. No andar térreo havia um entalhador
de nome Boaventura San Vicente que ali realizou seu trabalho pelo menos nos anos de 94,
(que lhe estava cobrando impostos) que o andar térreo (aquele ocupado pelo marceneiro)
havia sido alugado há mais de dezoito anos (ou seja, antes de 1887) a um mesmo inquilino
(o marceneiro) pelo valor de Rs. 45$000 e que o locatário só pagava Rs. 25$000.
Parece evidente que ninguém iria investir na decoração de uma fachada, e ainda
mais numa fachada tão rica, nas condições descritas acima. É possível que o proprietário
tenha realizado as reformas depois que estas condições tivessem sido modificadas.
143
O que se quer dizer com isto é que não apenas os elementos materiais apontam para
uma fachada situada num período mais recente, mas que também os dados documentais
escritos fornecem pistas neste sentido. Porém, o que importa é que as características
constitutivas desta estrutura apontam para um imaginário que é aquele, já descrito, que
imprime nas fachadas o espetacular como um valor importante e, sobretudo, um valor por
platibanda apresenta um frontão e, abaixo dela, uma cimalha completa a fachada. A sacada
é em alvenaria, com a adição de um gradil, que aponta, como as anteriores, para o final do
século XIX e início do XX. O proprietário desta casa foi Mariano José do Canto Filho
desde 1893 até 1928, pelo menos (datas limites pesquisadas). No andar térreo funcionou,
em 1895, uma taverna que estava em nome de Calegario Ossaad, mesma pessoa que, no
ano anterior, possuiu ali um armazém de molhados. Em 1898 houve um outro armazém,
144
Andradas nº 673 / 677
Outro sobrado localizado na rua Riachuelo nºs 933/935, e que possui elementos
onde se vê, no segundo e terceiro pisos uma seqüência de cinco balcões em serralheria.
Entre cada abertura e nos limites laterais, elementos imitam colunas cujo capitel é formado
por folhas de acanto. Um friso decorado separa o terceiro do quarto piso que possui
características bem diversas dos dois anteriores e sugere ter sido instalado posteriormente:
janelas em vergas retas, ainda com bandeiras, e entre elas e nos limites do prédio, no lugar
145
das pseudo-colunas, outros elementos decorativos em massa. A platibanda, em balaustrada,
apresenta um frontão embutido no centro da estrutura. O térreo parece ter sido totalmente
alterado.
Este prédio, que atualmente está desocupado e tombado pelo município, foi
propriedade de Engrácio Ortiz Taborda Ribas no ano de 1895. Nesta data não foi
encontrado registro de nenhuma atividade econômica que se realizasse ali. Apenas no ano
146
Na rua Riachuelo nºs 613/615, onde funciona atualmente uma Delegacia de Polícia
Civil, está o sobrado que pertencia, em 1895, à Maria Caetana R. Souza Lobo. É o único
exemplar de sobrado com recuo lateral que consta na amostra, e por isto, também será
descrito separadamente. A fachada possui linhas simples, com janelas em verga reta e um
púlpito com peitoril em ferro na abertura central do andar superior. A casa apresenta um
recuo do lado direito, onde se localiza a entrada principal que se realiza através de um
portão de ferro. Por isto, o sobrado não possui portas que o ligavam diretamente com a
calçada. Aparentemente havia um recuo do lado esquerdo junto à esquina, local que hoje é
dependências de serviço.
147
A fachada e a lateral direita foram reconstruídas em 1899, segundo processo
Supõe-se, portanto, que o prédio anteriormente deveria estar nos limites do terreno,
o que ocasionou danos à parede leste e à fachada quando foi demolida a casa ao lado. Não
148
É difícil estabelecer o status sócio-econômico dos proprietários deste prédio. Ao
que tudo indica, em épocas anteriores, o sobrado teria sido de Pedro de Sousa Lobo, o
Pedro Mandinga (Coruja, op. cit.:111) que emprestou o nome a este trecho de rua
conhecido, na época, como Beco de Pedro Mandinga (antiga rua Direita e atual General
Canabarro). A casa é qualificada por Coruja como “um pequeno sobrado” (Idem). Por
outro lado, o sobrenome Souza Lobo é muito conhecido em Porto Alegre através de, pelo
menos, dois nomes: José Teodoro de Souza Lobo (1848-1913) que foi engenheiro e
professor da Escola Normal de Porto Alegre e autor de obras didáticas e seu filho José
1919), tipógrafo e jornalista, foi um dos fundadores do Partenon Literário, Diretor do Jornal
no republicano (Idem.: 73). O outro, que viveu mais ou menos no mesmo período, foi José
Teodoro de Souza Lobo, professor da Escola Normal de Porto Alegre, além de ter sido um
dos seus fundadores. Foi, também, médico e ligado ao Partido Conservador, deputado
provincial e geral (Idem.: 75). Talvez haja alguma ligação entre estes nomes e os dos
149
A casa situa-se na esquina com a rua General Canabarro da mesma forma que o
Solar do Conde de Porto Alegre. O lote onde encontra-se hoje já estava ocupado em 1839,
O prédio está listado como sendo de interesse sócio cultural pela Prefeitura
Municipal de Porto Alegre. As pequenas áreas externas à casa estão cobertas por lajotas de
cimento e o interior foi totalmente modificado para servir ao seu uso atual.
Além do Solar dos Câmara, foram levantadas mais seis unidades com características
objetivando ser uma área de serviço, implicando num pavimento acima do nível da rua e
resultando em maior privacidade da vida familiar. Mas apesar das seis terem como ponto
incontestável dada pela altura das aberturas e do pé direito, está o assobradado da rua
Duque de Caxias nº 874/876. Conhecida como a casa dos azulejos da Duque trata-se, na
realidade, apenas de uma fachada com elementos que o ligam ao neoclássico. Atrás dela
dizer, ainda bem que se preservou a fachada, pois na maior parte dos casos não restou
150
nada). Sem profusão de ornamentos, este prédio apresenta linhas bem sóbrias: aberturas em
arco pleno, poucos elementos de massa (em torno das aberturas e nos limites laterais do
ferro seguido pela imensa porta de duas folhas que possui tranca e tranqueta de ferro. Não
foi possível averiguar até onde os elementos ali preservados são os originais, tendo havido
inclusive com a adição de uma luminária atual que imita os velhos lampiões oitocentistas.
É provável que o lote estivesse ocupado no ano de 1839 (é difícil localizá-lo com
precisão). O proprietário em 1895 era Manoel Py que, segundo Franco (1988: 334) foi um
indústria têxtil de Porto Alegre). Foi, ainda, incorporador e principal acionista do Banco
Deputado Federal.
Os livros prediais dos anos de 1893, 1895 e 1928 (APM) atestam a grande
718/724, onde funcionava um armazém de sua propriedade em 1902 (APM) mantém-se até
possuía sua residência, um sobrado, num loteamento realizado por ele mesmo, no Arraial
da Glória, onde realizou-se uma festa por ocasião da inauguração de um trecho da linha
Carris Porto-alegrense cujo terminal era neste arraial. No entanto, o assobradado da Duque
de Caxias, por sua nobre localização (a poucos metros da Praça da Matriz) – o alto custo da
terra e a importância simbólica deste espaço devem ser considerados como fatores
primordiais naquilo que a casa possa representar em termo de status e riqueza (Blanton, op.
cit.: 15) – e por sua característica unicamente residencial (as casas de porão alto não
comportavam negócios como acontecia com o andar térreo dos sobrados e, ao mesmo
tempo, distinguiam-se das casas térreas de custo mais baixo e tecnologia mais simples), é
provável que tenha servido de moradia a alguma figura mais ou menos proeminente.
152
Comparada a outras casas repletas de detalhes decorativos, esta não parece nada
enfática enquanto proposta de ruptura com a cultura aristocrática anterior. Pelo contrário,
monumentalidade e uma expressividade que, ainda assim, evidenciam o status dos seus
ocupantes. Esta casa está listada para preservação pela Prefeitura Municipal de Porto
Na Rua General João Manoel está o único exemplar de casa de porão alto de uma
porta e uma janela levantado nesta área. O prédio está com a fachada bastante alterada
possuindo, inclusive, uma garagem no lugar do dito porão, cuja entrada localiza-se logo
aberturas em metal se conjugam a uma platibanda de linhas curvas que ostenta figuras que
lhe conferem uma certa imponência: no centro, a cabeça de um leão e sobre pilastras dois
153
Esta casa, de propriedade de Ercília e Antônio, filhos de Antônio José da Fonseca
estava classificada, em 1895, neste mesmo ano como um assobradado nos livros de
impostos prediais da Intendência Municipal. Um processo de 1916 informa que nesta época
o prédio sofreu uma “reforma no assoalhamento”, foi mudada uma parede de um quarto
com finalidade de obter uma área maior e modificada uma parede da “casinha”.
Infelizmente não foi possível obter nenhuma planta desta casa. Não consta, também, a
existência de qualquer atividade econômica que tenha sido realizada ali. O lote onde ela se
Um exemplo de casa assobradada de duas janelas e uma porta foi levantada na rua
Demétrio Ribeiro nº 907. Com alterações menos radicais que as descritas para a casa da rua
General João Manoel, este prédio apresenta modificações nas aberturas que mantiveram, no
entanto, as marcas das anteriores, em verga reta, arrematadas, na sua parte superior, por
cimalhas. A fachada apresenta um friso com figuras geométricas logo abaixo da platibanda
de onde emerge um tubo de PVC, responsável por levar (atualmente, claro) as águas do
telhado à rede pluvial. A platibanda tem o aspecto de uma renda, onde figuras que
lembram, pela forma geral, flores de Liz sobrepostas, conferem à casa uma certa
então, lembra o comentário de Aquarone (apud Fabris, 1993: 131) sobre a casa eclética
brasileira: uma mistura de “atentados”. Não resta dúvida, no entanto, que a riqueza de
154
Demétrio Ribeiro nº 907
O lote não estava ocupado em 1839, nem nos anos de 1869, nem na de 1881, mas
apenas na de 1895. Não foi possível encontrar nenhum documento que atestasse a data de
construção desta fachada, e não consta que tivesse havido alguma atividade comercial ali.
anterior, na rua Demétrio Ribeiro, nº 899. Este é um prédio bem maior, que possui em torno
do dobro da área de fachada que o nº 907. As quatro janelas em verga reta possuem
155
janelas outros tipos de guirlandas compõem a decoração. A porta possui uma soleira de
mármore bastante gasto, resultado de uma utilização por largo tempo. Sobre a entrada
principal, está um óculo circular que fornecia iluminação à parte interna da casa, com
reta, tomando uma linha curva e mais elevada sobre a entrada do prédio. Ali estão outros
É possível que esta fachada tenha sido realizada em 1922, quando o proprietário
solicitou através de um processo (APM), licença para armar um andaime com o fim de
escavação. A casa está em um lote onde já havia ocupação em 1839. No entanto, nos mapas
156
Demétrio Ribeiro nº 899
Uma estrutura que encontra-se listada para preservação pela Prefeitura Municipal de
porta de entrada, em arco pleno “coroada” por elementos decorativos em massa e quatro
janelas em verga reta com cercadura também em massa. Elementos imitando colunas cujo
capitel é formado por duas volutas laterais, um frontão em arco na platibanda (em
balaustrada), sacada em serralheria e inúmeros outros detalhes dão conta desta exibição
Henrique Cristino S. Guerra, D. Maria Luiza Guerra Duvo, Augusto S. Guerra, D. Maria
Amaria Guerra Sertosio (?), D. Maria Julia da Silva Guerra, Luiza da Silva Guerra.
157
Não se conhece a data de construção da casa, tão pouco da fachada. Talvez esta
última seja de 1916 quando o então proprietário, Theodoro Saibro, apresentou um processo
de Caxias, 1231. O prédio que foi construído em 1887 (Franco, 1998: 238), possui recuo
linhas curvas dos arcos das aberturas. Este prédio foi construído pelo Coronel de
Engenheiros Catão Augusto dos Santos Roxo, “comandante da Escola Militar do Rio
estrutura e uma casa térrea situada à rua João Manoel nº316 compõem as únicas exceções à
Em 1893 e 1895 seus proprietários eram Aloysio Chulu (?) e outros. Em 1896 foi
1839. Em 1898 passou a ser a residência de Júlio de Castilhos. A casa, adquirida pelo
Partido Republicano Riograndense (PRR) ao seu chefe político (Idem), comunica – com
veemência – a importância de seus ocupantes. Para além disto, comunica poder e riqueza de
todo um segmento da sociedade que tinha em Júlio de Castilhos seu representante máximo
(diríamos hoje, um ícone). Detalhe: a casa foi adquirida mediante doações entre
correligionários do PPR. Com a sua morte em 1903 e de sua esposa em 1905, o Estado
adquiriu o prédio dos herdeiros e instalou ali o Museu (Ibidem), mais um indício de sua
importância simbólica.
159
As casas térreas
Estas estruturas foram divididas em casas de porta e janela e casas com mais de
Casas térreas com mais de duas aberturas (que ocupam um lote maior que de
porta e janela)
por aquelas unidades que possuem as aberturas arrematadas por cimalhas, atributo que liga-
as ao neoclássico.
Este conjunto é integrado por duas unidades e ambas possuem porta e duas janelas
249
Esta casa e outra mais foram demolidas no tempo em que durou o trabalho de levantamento das unidades
no centro da cidade, ou seja, menos de um ano. Esta foi possível documentar fotograficamente. A segunda,
situada originalmente na rua Demétrio Ribeiro foi demolida antes disto e, devido a este fato, não consta nesta
pesquisa.
160
Fernando Machado nº 533
A outra casa deste conjunto, localizada na rua Demétrio Ribeiro, nº 223, é a única
que possui uma fachada absolutamente simétrica, com a porta no centro e as janelas
dispostas uma de cada lado. Outra diferença sensível, com relação à primeira, é a altura do
pé direito, bem mais baixo e que deve estar relacionado ao tipo de inclinação do terreno:
observa-se que quanto maior a inclinação da rua, maior o pé direito das casas.
A porta e as janelas desta última casa parecem ser originais, estas últimas em
caixilhos e guilhotina e aquela de duas folhas. A platibanda tem uma decoração em relevo
Ventura em 1895 e o lote onde situa-se atualmente não estava ocupado em 1839, tampouco
161
aparece na planta de 1869 ou na de 1881 de Breton, aparecendo registrada apenas na planta
cadastral de 1895.
casas deste grupo possui registro de ter abrigado alguma atividade econômica nos anos
lisas em torno das aberturas e / ou frisos elementares entre estas e a platibanda é composto
162
por quatorze unidades, doze delas com uma porta e duas janelas e apenas duas de esquina,
com aberturas também na fachada lateral, além das aberturas na frente. Todas possuem
platibandas cegas.
A primeira casa levantada está na rua Fernando Machado, nº 675, tendo sido de
propriedade de João Braga Veiga em 1895. Ao que parece, o lote estava ocupado no ano de
1839 (Dias).
Outro exemplar é aquele situado à rua Demétrio Ribeiro, nº 79 que, apesar de ter
acima descritas. Esta casa pertenceu, em 1895, a Josué Duarte e Silva Campello que
163
também era proprietário de uma série de outras casas, segundo se pode constatar nos livros
Demétrio Ribeiro nº 79
Rodolpho Lopes Coelho (1895). Um processo existente indica que este prédio foi
reconstruído em 1878 quando seu proprietário era Antônio da Silva Paranhos, apontando
para a ocupação relativamente antiga do, ainda que esta não apareça na planta de 1839.
164
Fernando Machado nº 83
Na Demétrio Ribeiro, nº 616, está outra casa que teve sua porta alterada mas que
manteve suas características básicas mantidas. Foi propriedade de José Coelho de Castro
165
Uma seqüência de cinco prédios na rua General Auto, nºs 224, 232, 238, 244 e 250,
todas listadas para preservação pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre, tem servido de
casas para aluguel, desde pelo menos 1895, quando eram propriedade de Generoza B.
prévias. Uma delas, a de nº 238 sofreu a maior intervenção, tendo o corredor de entrada
(alfaiate, consertos gerais), pequeno comércio (ferragem) e até uma pensão. Os lotes já
250
Segundo informação de uma moradora e inquilina que, mencionou, ainda, o fato das cinco casas estarem,
atualmente, sendo inventariadas para partilha entre descendentes do antigo proprietário.
166
General Auto nº 232
167
General Auto nº 244
Outra unidade com uma fachada simples, ainda que bastante modificada, é a casa da
rua Duque de Caxias, 518. Na época do levantamento ela tinha tido sua platibanda
demolida e as aberturas modificadas. Foi, em 1895, de Francisco José Dias e o lote estava
ocupado em 1839.
168
Duque de Caxias nº 518
Uma casa que segue o mesmo padrão, apenas com a diferença de possuir um óculo
sobre a porta é a de nº 632 da rua Duque de Caxias. Tendo sido propriedade dos herdeiros
de Antônio Victor da Silva, em 1895, foi, em 1912, de Clara Lopes Barbosa que entrou
com processo na Câmara para solicitar licença para tirar a beirada do telhado e construir
uma platibanda. Isto aponta, como em outros casos semelhantes, para a possibilidade da
casa ser anterior a 1886. Este lote também estava ocupado em 1839, segundo Dias.
169
Duque de Caxias nº 632
Fugindo um pouco do padrão até agora descrito está a casa número 316 da rua João
Manoel. Ela possui aberturas em arco pleno diferentes das anteriores que as possuíam em
vergas retas. Além disto as aberturas não se colocam numa mesma distância das outras, o
que a liga diretamente ao final do século XIX. O andar superior foi construído
recentemente. Pertenceu a Amaro Alves de Azambuja, em 1895, e seu lote estava ocupado,
170
João Manoel nº 316
General Bento Martins, nº 688. É uma casa com cinco janelas por um lado, das quais
restam apenas vestígios, e três portas pela fachada principal. Todas as aberturas são em arco
pleno e se pode presumir, pelos sinais que restam ali, que todas possuíam bandeiras.
171
Duque de Caxias nº 688
Com exceção desta casa e daquela que será descrita a seguir, em nenhuma outra
deste grupo foi encontrado registro de que tivesse havido alguma atividade nos anos de
1894, 95 ou 98. Nesta, onde houve, tratou-se de uma taverna em 1894 e de um armazém em
1898, ambos de Joaquim Pereira da Silva que, aliás, era o proprietário do prédio nestas
datas. Talvez ali funcionasse também a residência de Joaquim e sua família. Sabe-se,
proprietário do armazém Pimenta que estava instalado ali, residia com a família no mesmo
local. Atualmente é um armazém e açougue. O lote estava vazio pela planta de 1839.
General Portinho. Foi propriedade de Gonçalo, filho de Manoel Soares Gomes no ano de
1895. Ali funcionava uma loja de fazendas, em nome de Francisco Blois neste mesmo ano.
nesta loja, chamada “A Metralhadora” vendiam-se roupas feitas, fantasias, morins, chitas e
172
Riachuelo nºs 461 / 465
O terceiro conjunto de casas é formado por aquelas que, mantendo uma decoração
decoradas, situando-as entre as casas mais simples e as mais elaboradamente ecléticas. Três
É o caso do prédio da Duque de Caxias, nº 542 que tem pinhas e compoteiras sobre
173
Duque de Caxias nº 542
Outra casa com estas características situa-se na rua General Portinho, nº 233. Na
compoteiras. Foi propriedade de Maria do Nascimento em 1895, mas sua fachada foi
reconstruída em 1910 quando o seu proprietário era Giusepe Antônio de Moreira. A planta
apresentada à Câmara está microfilmada no APM e mostra uma fachada igual a existente
174
General Portinho nº 233
Na Washington Luiz nº 202 está um outro exemplo: linhas claras e apenas adornos
laterais imitando colunas cujo capitel é arrematado por volutas laterais. A platibanda, em
175
Washington Luiz nº 202
documentação pesquisada.
incluindo elementos de massa na forma de flores, efígies, etc., e é composto por oito
unidades.
fachada com acréscimo de uma barra em tijolo à vista, um parapeito de tijolos nas janelas
176
venezianas e, mesmo, um ar condicionado. As aberturas conservam as cercaduras
decoradas e na platibanda cega há um pequeno frontão e, ainda, uma pinha. A casa foi de
José Teixeira da Mota, em 1895 e de Rosa Gonçalves da Silva, em 1893. Este lote também
Outro exemplo está na Duque de Caxias, nº 734, onde atualmente existe uma
pensão. A fachada parece estar inalterada desde a época que foi realizada. Possivelmente
em 1914, data inscrita na platibanda que contém, ainda, elementos decorativos em massa,
pinhas e um frontão. As cercaduras das janelas são ornadas com riqueza de detalhes. Maria
ocupado.
177
Duque de Caxias nº 734
Na General Portinho nº 325 está um prédio que ocupa um lote maior, apresentando
três janelas e uma porta, cercadura decorada nas janelas e platibanda cega. Pertenceu a
Gonçalo, filho de Manoel Soares Gomes em 1895, e havia ali, no ano de 1898 um serviço
1839 e também não aparece ocupado na plante de 1869, mas apenas na de 1881 de Breton.
178
General Portinho nº 325
134 e 138. Hoje são apenas ruínas que compõem o muro de um estacionamento. Ambas
mãos de José de Carvalho Bastos que ali instalou uma padaria em nome de Miguel Antônio
Leite.
platibandas não existem mais. Sobre as aberturas ainda pode-se ver a ornamentação em
massa que inclui efígies como elementos centrais. Ambos os lotes estavam ocupados em
1839.
179
Washington Luiz nº 134
180
Em pior estado que estas, mas ainda conservando algum vestígio daquilo que foi
outrora, está uma unidade localizada à rua Demétrio Ribeiro, nº 203. Parte do revestimento
externo caiu e junto caíram (ou foram retirados251) os elementos decorativos da fachada.
Todavia algo ainda se conserva, podendo-se observar cercaduras nas janelas, com um
florão central. Parece ter havido, também, um frontão na platibanda. Pertenceu à Dona
Guilhermina do Canto nos anos de 93 e 95. O lote não estava ocupado em 1839 e em 1869.
Outra unidade bastante danificada da qual resta apenas a frente está na General
Portinho, nº 333. O elemento mais importante é o frontão sobre a platibanda cega. Nas
251
É muito comum ver-se para vender nos antiquários da cidade, ornatos retirados das fachadas de casas
antigas: frontões, pinhas, efígies, etc..
181
aberturas ainda permanecem as cercaduras. Pertenceu a Manoel Joaquim de Castro Filho
expressas para este conjunto, com elementos de massa sobre a porta, mas ausentes nas
janelas (marcas indicam que caíram ou foram retirados). A platibanda cega, assimétrica,
possui decoração e ornato sobre a pilastra. Pertenceu a Rodolpho Lopes Coelho em 1895 e
o lote não estava ocupado em 1839, e aparentemente também não em 1869, tão pouco em
182
Fernando Machado nº 45
O quinto conjunto de casas, composto apenas por duas, é formado por aquelas que
A primeira delas, localizada na rua Demétrio Ribeiro, nº 103, possui recuo direito,
termos decorativos, é sóbria. Na platibanda cega está a inscrição da data: 1913. Foi
propriedade de José Duarte e Silva Campello e o lote parece ter sido ocupado tardiamente,
183
Demétrio Ribeiro nº 103
entrada é lateral, pela esquerda do prédio e através de um portão de ferro. A frente possui
três janelas, cujas aberturas foram modificadas mantendo, porém, a decoração em massa
das antigas cercaduras, com traços noveau. A platibanda também possui elementos
184
Duque de Caxias nº 180
Existe uma boa possibilidade de que toda esta estrutura, não apenas a fachada, tenha
sido construída após 1901: em primeiro lugar, no ano de 1895 há um processo que dá
entrada na Câmara, em nome de Custódio de Almeida Lemos, solicitando uma licença para
corresponde ao 180, até o ano de 1928) da rua Duque de Caxias. Em segundo, Constantino
(1998: 157) menciona que no local, e abrangendo os números de 6 a 12, havia um cortiço
Talvez esta unidade seja parte daquele cortiço que foi reformado posteriormente.
Talvez seja uma construção nova, independente daquela. No entanto, optou-se por mantê-la
no sentido que ela mostra os traços aqui apresentados como integrante de um imaginário
185
que não se esgota nem se rompe com a virada dos oitocentos aos novecentos, mas que se
insere num processo, como já foi repetido outras vezes, de longa duração.
O último conjunto da casas térreas com porta e duas ou mais janelas caracteriza-se
todos os demais, estes prédios foram submetidos aos critérios de seleção para a amostra
estabelecidos neste trabalho, que inclui a combinação dos dados obtidos em campo com
1895, a Christóvão Pascoal Ratta (aliás, segundo os livros de registro da época, proprietário
de uma série de imóveis na capital); a segunda situa-se na rua Demétrio Ribeiro, nº 99 e foi
de José Duarte e Silva Campello (outro possuidor de grande número de prédios neste
mesmo tempo) e, por fim, a terceira localizada também na rua Demétrio Ribeiro, nº 662,
que foi de Dona Thereza Luiza de Castro Guimarães, em 1895 e possuía ali um cortiço.
Assim, ao que tudo indica, todas estas unidades foram, no final do século XIX,
186
Washington Luiz nº 56
Demétrio Ribeiro nº 99
187
Demétrio Ribeiro nº 662
188
sóbria e as de fachada composta por elementos de adorno mais veementes, onde vários
O primeiro grupo compreende sete casas, entre as quais estão algumas que sofreram
fachada são reforçados pela existência de pinhas sobre a platibanda cega. A porta é de duas
folhas, bem como a janela. A casa pertenceu a Luiz Bardou ( ? ) em 1895 e o lote aparece
Fernando Machado nº 85
189
A casa da Rua Fernando Machado, nº 220, com a frente bastante modificada,
Santos Pinto. Não apresenta nenhuma decoração além de uma cimalha logo abaixo da
Outro exemplar está na Vasco Alves, nº 341, casa que ocupa um lote já ocupado em
1839. Foi de propriedade de Francisco Pinto de Azambuja Filho e mantém o padrão das
anteriores.
190
Vasco Alves nº 341
restando daquilo que deveria ter sido, além de uma platibanda simples onde se vê a data
Pascoal Ratta.
191
Washington Luiz nº 62
Ainda na Washington Luiz, nº 166 está a casa que em 1895 foi propriedade de José
Jacintho Coelho e que em 1912 recebeu uma nova fachada, a atual. A data (1912) consta na
platibanda sem ornatos. A planta da fachada, anexada ao processo que solicitava licença à
Câmara para realizar reformas na fachada, fornece a largura do lote: 3,74m (ocupado em
atual.
192
Projeto da fachada casa nº 166 da
Rua Washington Luiz, em 1912 (APM)
193
A casa ao lado, nº 170, é praticamente igual à nº 166, apesar de suas aberturas terem
sido modificadas. O lote estava ocupado em 1839 e pertenceu a Braz Pereira dos Santos,
em 1895.
mas que ainda mostra os vestígios das existentes anteriormente. A casa pertenceu, em 1895,
a Francisco Ferrary. Em 1921, sofreu uma reforma a fim de incluir, num único corpo, a
cozinha e o banheiro (APM). Ela foi construída sobre um lote de 3,80 m de largura,
segundo consta no plano apresentado. Infelizmente não constam as medidas da frente aos
fundos do lote.
194
General Salustiano: Planta de ampliação da casa, 1921 (APM)
Neste conjunto de casos inclui-se, ainda, o nº 220 da General Auto que é a única de
porta e janela listada para preservação pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre. De linhas
simples, apresenta apenas uma pinha na platibanda. Sua proprietária era, em 1895, Maria
Silvana da Costa Ferreira e funcionava ali, no mesmo ano, uma quitanda e botequim em
nome de Antônio Spino. Este solicitou à municipalidade, ainda nesta data, licença para
realizar reparos no prédio, através de um processo (APM). Em 1898 outro processo, agora
em nome de José Tristão Monteiro, pedia permissão para derrubar a parede da “casinha” e
levantá-la no mesmo lugar e, também, para mudar o telhado. Seu lote estava ocupado em
1839.
195
General Auto nº 220
unidades:
195 está com a abertura da janela modificada, mas ainda apresenta as marcas da anterior.
Decoração em massa sobre ela e uma pequena cimalha sustentada por elementos
ornamentados sobre a porta compõem a parte inferior da fachada. Na platibanda cega existe
um pequeno frontão. Pertenceu, em 1895, a José Mariano do Canto e o lote onde a casa está
196
Fernando Machado nº 195
Duas casas geminadas e situadas ao lado do prédio descrito acima, estão nos nºs 199
e 201 desta rua. As fachadas são iguais, uma refletindo a outra como num espelho. A
platibanda une as duas com um frontão central e ornatos sobre as pilastras. Elementos de
massa compõem as cercaduras das portas e janelas e, ainda, configuram formas que imitam
197
Fernando Machado nº 199 e 201
Gomes e a Dona Flora Joaquina da Costa Campello. O de nº 201, antigo nº 65, foi de
propriedade de Dona Maria Cardina da Conceição neste mesmo ano. Provavelmente o lote
Os de nºs 438 e 433 da rua Fernando Machado também se configuram em duas casas
geminadas com o mesmo padrão da fachada. Uma delas encontra-se ocupada atualmente,
mas a outra (nº 433) é apenas o muro de um terreno, hoje desocupado. Elas apresentam
cercaduras e platibanda decorada com massa. Um pequeno frontão faz a união das duas
casas num único conjunto. As casas foram de propriedade de Manoel Joaquim de Castro
Filho, em 1895, sob os nºs 153 e 151. Estas duas unidades foram construídas,
provavelmente, no entorno da virada do século XIX para o século XX, já que um processo
de 1894 pede licença à Câmara para erguer um depósito de madeira no local onde hoje é a
198
Fernando Machado nº 439 Fernando Machado nº 433
Duas estruturas estão localizadas lado a lado na rua Demétrio Ribeiro nºs 256 e 252.
Atualmente são apenas restos de fachadas que fazem parte de um muro de estacionamento.
O pouco que sobrou delas, ou ao menos de uma delas, já que a de nº 252 parece ter sofrido
outras intervenções anteriores, dá conta do tipo de decoração que traziam, pelo menos nas
A entrada do estacionamento existente hoje e que ocupa os lotes das duas casas
uma água impresso em negativo na estrutura ao lado, e a pouca profundidade do lote, que
199
Demétrio Ribeiro nºs 256 e 252
As casas pertenceram, em 1895, a Dona Ignácia Aviz de Menezes (nº 256) e a Luiz
Barton (nº252).
Na Washington Luiz nº 922 está situada uma casa de porta e janela cuja data
impressa na platibanda atualmente decorada indica sua realização neste século, apesar dos
algarismos das dezenas estarem ilegíveis. No entanto, um processo datado de 1914 solicitou
aponta para a existência da casa anteriormente à 1886. Além disto, pela sua localização,
parece ser uma mesma casa que aparece na Foto 965, de Virgílio Calegari (FSB – MJJF),
do início do século, com platibanda cega e aberturas em arco abatido. Atualmente as vergas
são retas e com cercadura. Em 1895 a proprietária foi Dona Antônia Olintta de Castro e,
dois anos antes, em 1893, havia sido de Dona Gabriela Arminda Correa. Possivelmente este
lote já estava ocupado em 1839. Segundo informação de um vizinho, a casa possui pátio
nos fundos.
200
Washington Luiz nº 922
926. Apesar das aberturas totalmente alteradas, a construção ainda mostra os vestígios das
anteriores, incluindo a forma das cercaduras. A platibanda é cega com elementos simulando
uma balaustrada. No centro está a inscrição 1921. Um processo do ano de 1914 solicita
licença para modificar o prédio retirando a beirada do telhado e instalando uma platibanda,
o que aponta para a sua existência antes de 1886. Foi propriedade de Dona Maria Leonor
Frois de Campos em 1883 e 1885 e seu lote, possivelmente estava ocupado em 1839. A
casa está atualmente dividida em duas e informações de vizinhos dão conta da existência de
201
Washington Luiz nº 926
Outra unidade que integra este conjunto é parte de um prédio que foi subdividido,
em tempos mais recentes, em três partes e que compunha-se de três casas de porta e janela.
Situa-se na rua Washington Luiz nos nºs 1002, 998 e 992. O nº 998 é o que mantém as
características anteriores e é a parte central do prédio. Aquilo que compõe sua platibanda
fachada do prédio. Ali é possível ver-se a data inscrita: 1888. A foto nº 965 existente na
Fototeca Sioma Breitman do Museu Joaquim José Felizardo, feita no início do século XX
com caixilhos e a porta em duas folhas são originais. Atualmente os segmentos laterais
202
O prédio foi de Antônio Fernandes Loures, no ano de 1893, passando a ser
propriedade de Dona Maria das Dores Laranjeiras Paiva, em 1895. Situa-se num lote já
ornatos sobre as pilastras. Mesmo modificada, a fachada mostra cercaduras com detalhes
em massa nas aberturas. Este prédio aparece na foto 965 de Virgílio Calegari (FSB – MJJF)
no início do século XX e indica que fachada é mais recente, pois ali se observa uma casa
com platibanda simples (sem ornamentação). É provável que o lote só tenha sido ocupado
203
Washington Luiz nº 1004
decoração, que pertenceu a Francisco José Dias, em 1895 e cujo lote já estava ocupado em
1839.
Também na Duque, no nº 1364, existe uma unidade que tem uma morfologia muito
particular e, ao que tudo indica, tem servido de local de comércio há muito tempo: foi
padaria em nome de Manoel Pereira de Barbedo nos anos de 1894 e 1895, quando este
também era seu proprietário. Atualmente funciona ali uma confeitaria. Suas duas portas,
uma mais estreita que deve ser a entrada da parte residencial e uma mais larga que
são os mesmos.
204
A platibanda em arco é decorada com elementos zoomorfos: bovinos em massa,
contundente do eclético numa fachada de casa de porta e janela. A casa pertenceu a Lucas
José da Veiga, que também era dono das duas casas existentes uma em cada lado, em 1895,
combina com uma sapataria e pela forma elaborada que exigia qualificação de mão-de-
205
obra) é certamente mais recente. No entanto, o lote onde situa-se já estava sendo ocupado
em 1839.
A casa que pertenceu a Ana Francisca Neves, situada à rua Espírito Santo nº 13, em
1895 e hoje nº 204, é outro exemplo de unidade ligada a um imaginário que utilizou a
decoração eclética das fachadas como expressão. Ainda que com menos veemência que o
exemplo anterior, este também caracteriza-se pela existência de elementos decorativos que
planta de 1869.
206
Espírito Santo nº 204
O último exemplar de casa de porta e janela deste conjunto está situado à rua
Cipriano Ferreira nº 490. Apesar de ter sofrido intervenções recentes em sua fachada, ainda
preserva a cercadura das janelas e um frontão sobre a platibanda cega. Pertenceu à Manoel
1895.
207
Cipriano Ferreira nº 490
208
FORMA GERAL DAS ESTRUTURAS
CASAS TÉRREAS
1SOBRADOS
c/ arcos ASSOBRADAD
FACHADAS abatidos que a OS
- 3 c/ fachadas
OUTRAS ligam ao alteradas
colonial + - 7
decoração em
massa eclética
1 c/ recuo 2 c/ recuo lateral
lateral
25 7 32 24 88
TOTAL
sintetizar algumas idéias e os dados colocados até aqui. O primeiro ponto que gostaria de
frisar é que as casas parecem estar comunicando, na forma proposta por Blanton (1997), um
status econômico: a família que vive em determinadas casas tem riqueza suficiente para
transformada em exibição indexal: exibição pública de símbolos que validam, nas palavras
de Blanton (Idem), proposições mantidas em comum por um grupo cultural, o que afirma
sua ligação a este grupo. Proposições como progresso e ruptura com velhas tradições
coloniais.
político: a burguesia, afastada em grande medida do poder pelo sistema político imperial
(conforme visto na capítulo 1) busca agora impor-se enquanto grupo economicamente forte
252
Kern (1996: 14) lembrou, muito propriamente, que nenhuma explicação do passado elimina a necessidade
de uma descrição. Evocando uma proposição de Leroi-Gourhan, este autor considera que o esforço descritivo
implica também em um esforço de compreensão do objeto a partir do qual se pode iniciar a fazer abstrações
(Idem: 14-15)
209
(e unido), legitimamente detentor do poder político e que, assim, proclama uma nova visão
de mundo diferente da aristocracia. Neste sentido, o eclético significa uma declaração que a
é uma proposta de ruptura com os vestígios coloniais realizada por um grupo “despido de
qualquer laivo daquela cultura aristocrática que caracterizava o século anterior” (Devsner
apud Fabris; 1993: 132). É uma outra concepção de espaço - o espaço urbano
compõem o belo. E este espetáculo de beleza deve, enquanto arte e nos termos através dos
quais este grupo entende o que seja arte, “elevar o gosto e a moral, educar e edificar os
O eclético realiza uma mediação entre o mundo concreto (a cidade) e o sentido que
ostentação pública que exibe força econômica e unidade de um grupo que proclama o poder
No entanto, a decoração eclética circula numa área social ampla, composta não
apenas pela burguesia, mas também por setores mais pobres da população, que pouco a
pouco a vão empregando nas fachadas de suas casas. Como é possível observar nas casas
210
remanescentes, existem óbvias diferenças ligadas a maior ou menor disponibilidade técnica
e econômica. No entanto, as fachadas ecléticas estão disseminadas numa ampla área social.
Vejo este fato como uma apropriação, realizada por setores mais pobres, dos elementos
decorativos ecléticos nas fachadas de suas casas. E aqui é necessário perceber que uma
apropriação pode resultar em leituras, usos e funções diferentes para os mesmos objetos253
É assim que os grupos sociais mais pobres se apropriam dos elementos decorativos
ecléticos nas fachadas das casas de porta e janela dentro dos limites técnicos e econômicos
das camadas mais pobres para compreender o quadro no qual se realiza a apropriação de
1994: 140). O pobre, o “Zé Povinho”, entre os quais muitos são negros, “carregava um
253
Óbvio, mas importante lembrar, que os sentidos e valores de um objeto não são intrínsecos a ele, mas
antes, atribuídos convencionalmente. Portanto, qualquer objeto apresenta a possibilidade de referir valores e
sentidos diferentes dos originais com o passar do tempo e de ser apropriado de diferentes formas por
diferentes grupos sociais.
211
além disto, “a condição de pobreza estava associada à vagabundagem, gatunagem,
vadiagem” (Idem). Neste sentido, eram gente perigosa e suspeitas aos olhos da sociedade
segmento social subalterno inscreva-se numa busca por status social e pela diferenciação da
burguesia e afastar-se do trabalhador mais pobre, daquele que, sem condições econômicas,
(burgueses) oferecem a possibilidade de ascensão social a todos, não mais por laços de
212
sangue, mas pelo trabalho. Os pobres, mas nem-tão-pobres, parecem proclamar através do
visual eclético este valor – mais trabalho é igual a ascensão social – deslocando-se de um
foram feitas, em sua maioria, nas duas primeiras décadas deste século, quando a burguesia
princípio tanto o Solar do Conde de Porto Alegre quanto o Solar dos Câmara (ainda que
exibir nenhuma espetacularidade parecida aos sobrados burgueses. A aristocracia exibia seu
conhecidas por outros canais de comunicação (Blanton, op. cit.: 142): a aristocracia é dona
de escravos, detentora do poder político e, óbvio, de grande riqueza. Não apenas o tamanho
das casas, mas inclusive sua localização nas áreas mais valorizados da cidade, comunicam
seu status. Mas parece que a preocupação é menor em comunicar riqueza que status social
213
e poder, já que ter os últimos implicava em possuir a primeira, como ficou claro no capítulo
acima de tudo, a posição social e o poder dos seus habitantes (dados por laços de sangue).
22.000$00 e o sobrado onde Lopo Gonçalves residia na Rua da Praia em Rs. 33.000$00,
Gonçalves, Rs. 236.536$500 em 1878255. O patrimônio deste último incluía outros imóveis
O Visconde de São Leopoldo, por seu lado, possuía uma mobília requintada e
lustre de cristal avaliado em Rs. 2.000$000, além de vasos e figuras de louça, quadros e o
tradicional piano.
254
As informações obtidas aqui são de Symanski (1998). Infelizmente o sobrado onde Lopo Gonçalves
residiu na Rua da Praia não existe mais, sendo necessário contentar-se com as informações obtidas via
registro escrito.
255
Symanski observa que a inflação neste período “era muito baixa, a ponto de empréstimos serem feitos com
taxas de 12% ao ano”, que deveria representar remuneração de capitel portanto, moeda estável.
256
Ver o arrolamento dos bens em Symanski, op. cit.: 106.
214
Parece não haver dúvida que Lopo Gonçalves empregou uma importante quantia na
casa (no prédio) que morava mostrando seu status e sua filiação a um grupo social através
de seu “caríssimo sobrado da Rua da Praia” (Symanski, 1998: 116) (e onde possivelmente
também trabalhava, pois no andar térreo havia um armazém que poderia estar relacionado a
suas atividades comerciais). Symanski chamou a atenção para o fato de que o comerciante
capitalista Lopo necessitava de capital para girar e investir em seus negócios, o que
cujas rendas, ainda que resultem em patrimônio menor, possam ser aplicadas diretamente
em consumo. Assim, o que ocorre são formas distintas de expressar status social e
econômico e que estão limitadas por fatores diversos mas, sobretudo, vinculadas a valores
Saint Hilaire, D. Pedro I, D. Pedro II, Duque de Caxias e Conde d‟Eu (Oliveira, op. cit.:
235). Seu mobiliário, seus utensílios domésticos ostentavam o status de seus ocupantes, de
um grupo familiar pertencente a uma linha genealógica, mas eram exibidos a quem
rapidamente toda a sociedade tomava ciência. De forma diversa, Lopo Gonçalves procurou
215
manifestar seu status de indivíduo participante de um grupo social, através de
manifestações públicas: a caríssima casa, e através de suas atividades257. Seu status não era
perspectiva da resistência e manutenção de fronteiras sociais: grupo que perde o poder, mas
transformação das casas no centro de Porto Alegre é que um grande número delas teve suas
mudanças na disposição dos elementos básicos dos prédios que pudessem ser determinados
por idéias diferentes sobre a sua adequação. Na maior parte dos casos, as casas térreas
uma rápida e direta ligação com a rua. Mas se sabe que isto não se dá bem assim: atrás da
porta há o corredor, às vezes alguns degraus e uma outra porta (como foi observado em
algumas casas, como por exemplo na de nº 675 da rua Demétrio Ribeiro). O mesmo
acontece com as janelas: as que se abrem diretamente sobre o passeio são as de sala de
entre o público e o privado. E esta idéia, do que é público e do que é privado, e qual é a
importância de cada um, parece não ter mudado muito, pelo menos para uma parte da
sociedade até o final do século XIX. O surgimento das casas assobradadas, de porão alto,
257
Foi o primeiro presidente da Praça de Comércio de Porto Alegre, secretário do Banco da Província,
provedor da Santa Casa de Misericórdia, etc..
216
por outro lado, indicam a preocupação com uma maior privacidade da vida doméstica. Mas
são poucos os que tem acesso a este tipo de edificação e, note-se, todas as estruturas
Nos sobrados, as portas que se abrem diretamente para a rua, sem intermediações,
são as das lojas e depósitos, no térreo. A porta que leva até o domicílio é seguida de uma
escadaria que é como os degraus nas casas térreas: configura um espaço intermediário, mas
no século XX, surgem reformas no sentido de incluir cozinha e banheiro no corpo da casa.
217
Por outro lado, as casas que foram construídas no final deste período apresentam
uma maior diversificação dos espaços internos258. Mas isto se dá, fundamentalmente, nas
casas maiores. Na amostra analisada, onde foi possível ver o interior das estruturas, e
diversificação apenas no prédio do atual Museu Júlio de Castilhos. É bem verdade que não
se teve acesso ao interior de muitas casas. Mas é verdade também que nenhuma casa de
porta e janela que se pode observar o interior, possuía estrutura diferente daquela dada por
um corredor e uma seqüência de peças encarreiradas. Pode-se atribuir este fato à forma dos
básica das casas. Mas a própria forma do lote é também determinada por idéias que os
Se, fora do centro da cidade, os lotes começaram a ser maiores, como no Menino
Deus e na Independência, possibilitando casas com uma estrutura bem diversa, na área
central os lotes permaneceram iguais. No entanto, se pode pensar que sempre há uma certa
margem de atuação e que se poderiam ter feito, por exemplo, casas com recuo na frente.
das fachadas (1886), na obrigatoriedade da edificação não ultrapassar 2/3 da superfície total
258
Esta afirmativa baseia-se na análise dos processos microfilmados existentes no APM e não da observação
das estruturas em campo.
218
do terreno e na de indicar na planta o compartimento reservado à latrina (1893) etc.. Como
estas, inúmeras outras medidas constam nos sucessivos Códigos de Posturas sem que se
observe, de imediato, mudanças nas casas. Basta olhar uma fotografia do início deste século
para ver que a maior parte delas, na área central da cidade, ainda permanecia com beirais
nos telhados apesar da obrigatoriedade da inclusão das platibandas em qualquer casa que
fosse construída ou reformada a partir de 1886. Dois fatores devem ser levados em conta,
para entender o que se passava. O primeiro, e mais óbvio, relaciona-se ao fato de uma casa
ser um artefato que, ainda numa sociedade de consumo, é de uma vida útil relativamente
longa e, pelo seu custo, muitas vezes reciclada e poucas vezes descartada. Isto leva ao
segundo fator: as mudanças, ou a reciclagem que envolve a estrutura da casa, não aparecem
tão imediatamente porque estão ligadas a mudanças no imaginário e, portanto são processos
de longa duração. Além disto, estas mudanças envolvem um segmento do mundo social
marcado por relações familiares, pessoais e privadas que, no Brasil, tem sido
construções na área central da cidade a partir do final da década de 1860: é cada vez maior
o número de prédios que solicitavam alinhamento, altura da soleira e licença para depositar
material no terreno com a finalidade de edificar. Também é neste período que parecem
aumentar o número de pedidos de licença para reformar propriedades já existentes. Mas não
259
Sobre isto ver Da Mata (1987).
219
Outra questão que parece importante mencionar, diz respeito ao uso dos sobrados na
área central da cidade. Por um lado parece ter havido, no final do século, um certo
abandono pelos grupos sociais dominantes dessas estruturas que estavam situadas na parte
mais a oeste da península, tomando a praça da Alfândega como referência. Ali as casas
taverna nesta época. Nota-se que o comércio mais importante está localizado mais a leste,
próximo à rua de Bragança e ao Mercado onde estão, por exemplo, as lojas de Fazenda da
José Montaury260. Posteriormente, como tentei mostrar, os prédios sofreram reformas que
entendido como uma possível ressignificação destes locais nas primeiras décadas do século
XX.
Por outro lado, e ainda com relação aos sobrados, pareceu estranho que apenas em
dois casos o proprietário do imóvel era o mesmo proprietário do negócio que funcionava no
andar térreo.
Por fim, e como curiosidade, creio que um dado que necessita ser investigado é o
grande número de mulheres proprietárias de imóveis que, para uma época onde,
supostamente, elas estariam fora dos negócios e dedicadas aos afazeres domésticos e
260
No capítulo seguinte será possível observar este fato com maior clareza.
220
A arquitetura acadêmica está manifesta em poucas estruturas remanescentes do
século XIX que, no entanto, são fundamentais para que se possa compreender a paisagem
em transformação da cidade.
221
2.1.2 A arquitetura acadêmica:
Nossa Senhora das Dores, nº 629, o atual Depósito do 3º Exército (anteriormente Arsenal
de Guerra) e nº 630, o atual Comando Militar do Sul (Arsenal da Marinha); na rua Duque
de Caxias, nº 1029, a atual Casa Civil (ocupada em diferentes momentos pela Casa da
Praça Marechal Deodoro, sem número, o Teatro São Pedro e, na esquina com a Jerônimo
Coelho, o prédio conhecido atualmente como “Forte Apache” (construído para ser a sede da
O prédio nº 1029 da rua Duque de Caxias é, ao que tudo indica, o prédio mais
antigo existente, hoje, na cidade. Sua construção foi iniciada em 1773 e concluída em 1790
(Oliveira, op. cit.: 158). O primeiro órgão público instalado ali foi a Casa da Junta, depois,
a Real Fazenda e a Câmara e, após 1835, a Assembléia Legislativa Provincial (Idem: 74). É
difícil dizer o que sobra de sua forma primitiva. Sabe-se que o prédio era, originalmente, de
apenas um pavimento (Spalding, 1967: 110), sendo o segundo acrescentado em 1860. Uma
foto de Virgílio Calegari (FSB-MJJF), na virada do século, mostra que as janelas do andar
térreo eram de guilhotina com caixilhos de vidro. Segundo Mascarello (1982: 87-8), os
caixilhos de vidro começaram a fazer parte das construções brasileiras a partir do final do
século XVIII e, por seu alto custo, foram utilizados, inicialmente, apenas nas edificações
222
Ainda pela foto de Calegari, observa-se que as aberturas laterais eram em arco
abatido e a platibanda em ferro, sustentada por pilastras em alvenaria. Esta foto permite
observar, ainda, o grande desnível existente entre a calçada e o meio da rua, por onde se
chega descendo uma escada situada em frente ao Palácio do Governo. Na calçada se podem
A Igreja Nossa Senhora das Dores teve sua construção iniciada em 1807 em estilo
barroco (Franco, 1998:137). A obra foi realizada em inúmeras etapas e só foi concluída
quase um século depois, em 1904, fazendo com que as características do projeto inicial
223
fossem totalmente modificadas e levando o prédio, nas palavras de Franco (Idem.:138), a
1866 e a escadaria até a Rua dos Andradas só ficou concluída em 1873, sendo que o acesso
ao templo fazia-se pela Riachuelo (Ibidem). A área que seria ocupada pelas escadas era
então, segundo Saint Hilaire (op.cit.:42), um terreno desnivelado. Isto é um dado de grande
importância. Por um lado, pode-se pensar que a circulação das pessoas que se dirigiam às
missas não era feita pelo mesmo local onde andavam aquelas que se dirigiam ao
Pelourinho. Este estava situado naquela área onde, posteriormente, seria o pé da escadaria
(num momento em que o Pelourinho já não existia mais). Lugares utilizados para fins
complementares: a Igreja (local onde muitos vão primordialmente pedir perdão) erguendo-
se, na colina, sobre o local do martírio, do castigo, como quem tudo vê e se impõe como o
poder de quem detém a verdade, a justiça e, junto com a Coroa, ordena o mundo social da
época.
A Igreja, nos tempos coloniais foi “um dos mais importantes centros da socialidade
pública” (Centurião, 1999: 290) lugar de limites físicos e sociais imprecisos, onde
261
O projeto original foi abandonado e, em seu lugar, em 1873, um novo foi elaborado e executado pelo
arquiteto Júlio Weise (Franco, op. cit.: 138).
224
“Local privilegiado para encontros amorosos, acertos de
negócios, bulhentas conversas sobre os mais variados assuntos
mundanos, mercado de amuletos, antro de embustes religiosos,
palco de dança e exibição ostentatória, valhacouto de frades
priápicos” (Ibidem: 291).
E além disso:
da época. As barreiras sociais não eram anuladas, pelo contrário, o caráter de ritual da
missa, enquanto momento de encontro desses diferentes grupos, marcava ainda mais as
hierarquias sociais262.
262
Os rituais colocam em destaque certos aspectos do mundo social, através de diferentes mecanismos,
possibilitando que as mensagens sociais se tornem mais claras. Através de um mecanismo de reforço de uma
ordem estabelecida, dada pela oposição Deus/homens, altar/nave, etc., associado a situações de inversão
(neste momento as barreiras sociais se “desfazem” e mesmo Deus, desce até os homens), o ritual de missa
marca, não apenas a existência de uma hierarquia e a sua necessidade para ordenar o mundo, mas também
ressalta que o sagrado é hierarquicamente superior ao profano: supostamente, Deus é capaz de transcender
diferenças, o que prova sua superioridade (Da Matta, 1983). Igualmente, barões e baronesas, viscondes e
viscondessas eram superiores a prostitutas, negros forros e pobres em geral, admitindo a “supressão”
momentânea de barreiras sociais.
225
Ao lado da Igreja das Dores está, e estava desde de 1866 (quando foi concluído,
segundo Oliveira, op. cit.: 137) o Novo Arsenal de Guerra: na esquina da Rua da Praia com
A fachada neoclássica deste edifício militar foi erguida em 1851 (Escosteguy, op.
cit.: 116) e está preservada em sua forma original (Idem). Uma foto do final do século XIX,
de Virgílio Calegari (FSB – MJJF), mostra que de lá para cá, ao menos, o prédio mantém
Nacional.
Uma placa no interior do prédio informa que o local foi ocupado desde 1776 como
Armazém Real, e teve diversas outras funções com o passar do tempo. Assim, segundo
263
Segundo Coruja, a rua do Arroio era mais conhecida no trecho entre a Rua da Praia e a da Ponte (atual
Riachuelo) pelo nome de Sete Pecados ou Pecados Mortais. Daí, até a rua da Igreja (atual Duque de Caxias),
pelo nome de Beco do Jogo da Bola. Finalmente, da rua da Igreja até a do Arvoredo (Fernando Machado),
pelo nome de rua dos Nabos a Doze.
226
estas informações, o local foi Arsenal de Guerra do Rio Grande do Sul em 1829 e Arsenal
Exército.
O prédio está listado para preservação pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre.
Comando Militar do Sul. Foi iniciado durante a administração do Conde da Boa Vista,
Na planta do ano de 1869, o prédio está assinalado como Novo do Mmo da Marinha.
Possui aberturas em arco pleno no piso inferior e em verga reta no superior onde cercaduras
imitando pedras compõem a decoração, junto com um balcão de ferro. A platibanda é cega
227
Este também está listado para preservação.
Andradas nº 630
O Teatro São Pedro, projeto de Felipe Von Normann, que também projetou a Casa
da Câmara e Junta Criminal (Oliveira, 1993: 138) – edifício “gêmeo” do Teatro São Pedro,
localizados lado a lado, situa-se em frente ao Palácio, do outro lado da Praça da Matriz e é
e concluída em 1858 (Franco, 1998: 376). O prédio está tombado pelo Estado.
228
Teatro São Pedro
Reproduzido de Oliveira (1993)
O edifício conhecido hoje como “Forte Apache” foi construído, inicialmente, para
abrigar a Estação Telegráfica e a Repartição das Obras Públicas da Província 264 (Spalding,
1967: 110). Foi, depois, sede do Comando de Armas da Província e Quartel do Comando
da Polícia Provincial e também, de 1890 a 1896, da Brigada Militar do Estado. Em 1896 foi
Estado enquanto era construído o novo Palácio, após ter sido demolido o antigo (Ibidem).
O apelido desta estrutura encontra-se em total sintonia com a sua aparência: parece
ser mesmo um forte, com linhas claras, simples e duras compondo um bloco com duas
torres laterais.
264
A Assembléia Provincial acabou ocupando o prédio apenas no período durante o qual se construiu um
segundo piso no prédio da antiga Tesouraria, onde ela havia se instalado e que, depois, voltou a utilizar
(Spalding: 1967, 110).
229
“Forte Apache”
Uma fotografia de Virgílio Calegari tirada em 1897 (FSB – MJJF) mostra aberturas
em arco pleno nos torrões, hoje transformadas em verga reta. Uma platibanda foi retirada e
mais um andar acrescentado. A entrada principal em arco pleno permanece, neste prédio,
hoje desocupado ( eu diria abandonado ) e tombado pelo Estado.
Espírito Santo com a Fernando Machado é do arquiteto alemão Johann Grünewald (Franco,
1998: 381)265. O monumental edifício foi construído sobre o antigo cemitério da cidade
(Idem). A descrição que Athos Damasceno realizou sobre esta edificação vale a pena ser
265
Segundo Weimer (1992: 72) o projeto inicial era do tenente coronel Luiz Manoel Martins da Silva e que
foi totalmente reformado por Grünewald, o mestre João, que teria estudado arquitetura clássica na Alemanha,
tendo trabalhado na restauração da Catedral de Colônia.
230
reproduzida, principalmente pelo que significa em termos do imaginário social (Damasceno
A construção teve início em 1865 (data que está inscrita na fachada) e terminou em
231
Atual Cúria Metropolitana
O prédio está listado para preservação pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre
(PMPA).
Câmara, mas que teve a planta alterada em tamanho e acrescentados os quatro torreões, nos
cantos. Possuía inicialmente apenas um andar (o segundo piso foi acrescentado no início
dos novecentos) e situava-se entre duas docas (Franco, 1998: 270), no alinhamento com o
Caminho Novo266. As obras iniciaram em 1864 e o edifício ficou pronto em 1870, marcado
266
Atual rua Voluntários da Pátria.
232
O Mercado Público Municipal em foto de Virgílio Calegari 1880 / 1890 (FSB – MJJF)
passa a se impor.
acadêmica colonial (Igreja Matriz, Santa Casa – com a parte central neoclássica -, o
233
Palácio, a Alfândega, a Igreja do Rosário) e na parte inferior os prédios neoclássicos
preocupação em manter vinculados o poder local e o poder central pela adoção dos padrões
Biblioteca Pública do Estado (1912), projetado por Afonso Hebert, os prédios da Receita
234
Federal (atual MARGS) e dos Correios e Telégrafos, projetado por Theo Wiederspehn são
Mas os lugares não são apenas as estruturas arquitetônicas. Praças e ruas também se
235
2.2 AS RUAS, AS PRAÇAS E OUTROS LUGARES
Saint Hilaire (op. cit.: 40) ainda é uma excelente fonte para compreender a Porto
Alegre do início do século XIX. Sua descrição é bem esclarecedora, e vale a pena recordar:
Se pelo lado nordeste a cidade organiza-se em ruas formando uma grade, pelo lado
oposto da península a cidade ergue-se em desalinho: Saint‟ Hilaire não trata de ruas, mas de
casas esparsas (Ibidem: 42). Ele é claro, existem três ruas cortadas por outras que lhe são
236
transversais. Passeios públicos? Só na Rua da Praia. A única comercial, onde “se
volumes diversos. É dotada de lojas muito bem instaladas, de vendas bem sortidas e de
Entre um e outro edifício militar, erguia-se a Igreja das Dores e em frente a ela o
a lado e em frente umas às outras instituíram a linha da rua. Assim, para grande parte das
pessoas, a rua era, nos dias comuns, apenas uma ligação entre um ponto e outro: de casa até
A cidade colonial não era feita apenas de regrados senhores e seus escravos
submetidos à ordem (ainda que esta seja uma imagem puramente ideal). Havia também um
237
“O número de desocupados, vagabundos sem morada certa,
aleijados, enjeitados e outros vomitados e expelidos do corpo social,
chegou a ser significativo e sempre apresentou uma tendência
progressiva para aumento, correspondendo assim à dinâmica da
sociedade escravista” (Centurião, op. cit.: 248-49).
Para esses indivíduos a rua era lugar por excelência: “É nela que transcorriam suas
atividades, junto as bicas, que eram ponto usual de reunião de escravos, soldados e vadios
Para uns a rua é lugar: de sobreviver e de viver, de esmolar, vender sexo ou água, e
Mas a rua é também lugar por excelência nos dias de festa: homens e mulheres,
adultos e crianças, pobres e ricos, todos iam para rua celebrar. Sobretudo nas festas oficiais
marcava hierarquias e separava categorias sociais (Ibidem: 303). A procissão saia da Matriz
e, pela Duque alcançava a Marechal Floriano, voltava pela Riachuelo até a Praça da Matriz
238
e findava no interior da própria Igreja de onde havia saído (Spalding: 237). À frente ia a
Irmandade, seguida pelas autoridades (obrigadas a comparecer sob pena de multa e prisão),
todos em traje de gala e, depois, o povo (Idem), o que implicava em comerciante junto a
as diferenças sociais.
Como afirma Centurião (op. cit.: 293) “havia uma profunda ironia nessas práticas,
à condição humana”.
E ainda:
239
“Ali mesmo na praça os chefes, verdadeiras figuras
patriarcais estendiam esteiras e passavam, com os seus, os três dias
e as três noites de fogos ao ar livre sob doce azul do firmamento,
comendo o seu churrasco de espeto com farinha seca e chupando o
seu adorado chimarrão” (Idem).
Sagrado e profano se confundem, Isabelle (op. cit.: 63) conta que na procissão do
acepção do termo.
Coruja (op. cit.: 24) lembra da Praça ou Largo do Arsenal, depois denominado
Sampaio). Lá, segundo ele, havia “uma bica que apenas gotejava; em outro tempo tinha de
240
um lado o estaleiro de Francisco Batista Araujo [...]; e do outro lado uma carreira de
A prática do enforcamento era realizada, segundo Franco (1993: 182) “com grande
pompa acompanhadas por tropa militar, oficiais de justiça, padres e irmãos da Santa Casa
Saint‟ Hilaire relata, sobre a Praça da Matriz ou, antes, o Largo do Palácio ou da
Matriz: “sobre o declive da colina, existe uma praça, infelizmente muito irregular, cujo
aterro é mantido por pedras soltas sobre o solo, formando tabuleiros dispostos em
cidade onde instalou-se a Alfândega, em 1804 e depois seu novo prédio em 1824, próximo
ao trapiche que existia desde 1806 (Oliveira, op. cit.: 159-60). Era o mercado da cidade e
241
“Nele vendem-se laranjas, amendoins, carne seca, molhos
de lenha e hortaliças, principalmente de couve. Como no Rio de
Janeiro os vendedores são negros. Muitos comerciam acocorados
junto a mercadoria à venda, outros possuem barracas dispostas
desordenadamente no pátio do mercado”.
1844 (Idem).
Spalding (op. cit.: 199 – 200) refere-se ao fato que haviam na Praça da Quitanda,
árvores avulsas, sem simetria, dispostas ali “ao bel prazer da natureza” e que a Praça do
Paraíso267, mesmo quando já estava instalado o Mercado, era apenas um largo sem cuidado
Aliás, a Praça do Paraíso foi instalada na década de 1810 sobre uma área de
5.755,20 m2, possuindo forma irregular e sem qualquer tipo de benfeitorias abrigando,
267
Segundo Coruja, o Largo do Paraíso (Praça XV de Novembro) foi assim chamado porque “havia uma
pequena casa habitada por umas moças cantadeiras, e que dizem que cantavam bem, aonde aos domingos
iam os moços passear, denominando-a Casa do Paraíso, e já se convidavam dizendo – vamos hoje ao
Paraíso?”. E assim se ficou chamando a “Rua do Paraíso”. Pelo visto, a designação estendeu-se ao largo em
frente.
268
O Código de Posturas de 1831 reconhecia como praças do Mercado Público o Paraíso, o Porto do
Ferreiros, do Pelourinho, do Hospital Militar e da Alfândega, lugares onde podiam se reunir a conservar
parados todas e quaisquer pessoas que vendessem comestíveis (CAP. 13) (CPM, CAP. 13, 1881, AHMV).
Uma determinação de retirar os quitandeiros da Praça da Quitanda foi feita por ocasião da construção do
prédio da Alfândega mas, sob pressão, a Câmara reconheceu o lado oeste da praça como local de mercado
(Franco, 1998: 25).
242
Franco (Idem.: 337) lembra que um dos pontos destinados como local de depósito
de lixo, fixado em 1829, foi justamente a Praça do Paraíso. “E certamente o local atraiu
que, como já foi mencionado, era ponto de reunião de elementos socialmente excluídos.
passar do tempo até a instalação, a partir de 1866 (Spalding, op. cit.: 143), da Cia.
Hidráulica Porto-Alegrense.
269
O lugar está ocupado hoje pelo prédio do Arquivo Público (Spalding, op. cit.: 142).
270
Acreditava-se que a existência do cágado contribuía para manter a água limpa.
243
A bica da Praça do Arsenal foi instalada em 1830 e substituída, em 1870, por um
Na Rua do Arvoredo havia uma bica desde 1772, que foi substituída por algo
Arroios e nascentes que tinham origem na colina (como o que passava por baixo da
ponte na Rua da Ponte, pela Rua do Poço) e que serviam de local de abastecimento para
muita gente, foram canalizados com o aterro da Rua Sete de Setembro, levando ao consumo
concluindo que, a 20 m da margem, ela não estaria mais contaminada passando, então, a
Inicialmente, também ninguém se preocupava com o lixo ou com a sujeira das ruas.
As casas, por seu torno, foram sendo construídas sem alinhamento, em qualquer altura: as
Arroio (dos Nabos)273 até o Rio Guaíba. Além disto, ordenava-se o trânsito, função
entulhos, etc.) que “embaracem o trânsito e prejudiquem seu cômodo” (CPM, Cap. 11,
1831), bem como “cães daninhos” que pudessem molestar os transeuntes (Cap. 24) e
qualquer outro tipo de animal solto (Cap. 25). No mesmo sentido, o Capítulo 27 proibia
cavalos amarrados em locais onde o povo transite e o Capítulo 28 vedava ter nas janelas,
telhados ou sótãos vasos ou qualquer objeto que pudesse cair nos passantes. Um ofício
tendo a Câmara designado lugares para a colocação do lixo junto ao rio, e que abarcavam
uma grande parte da praia. Mas a deposição do lixo na orla do Guaíba não era novidade. Na
271
Trecho da atual Duque de Caxias.
272
Atual Marechal Floriano.
273
Atual Bento Martins. Segundo Coruja (1983: 16) o nome da Rua do Arroio era utilizado apenas nos
documentos oficiais e era mais conhecida no segmento entre as atuais Duque de Caxias e Rua dos Andradas
como Pecados Mortais ou Sete Pecados “nome que lhes assentava bem, tanto pelo lado físico dos prédios,
como pelo lado moral das moradoras” (Idem). O segmento entre a Rua da Igreja (Duque) e a Rua do
Arvoredo (atual Fernando Machado) era conhecida como Rua dos Nabos a Doze ou Rua dos Nabos. “No
tempo que se vendiam [...] nabos a doze por um vintém, e quem os vendia, se é que os vendia, era um tal de
José Antônio da Silva, esmoler-mor da pobreza, que[...] tinha um arremedo ou frege de casa de saúde na Rua
do arroio” (Ibidem: 15). Grifos do autor.
274
Atual Rua Uruguai, onde situava-se a Casa da Ópera (1797), por muito tempo o único “teatro” da cidade,
uma construção de pau-a-pique (Oliveira, op. cit.: 103).
245
verdade, esta prática era antiga e muito anterior ao sítio da cidade. No mesmo ano o Código
designou o lugar para lavar as roupas que ia da ponta do Arsenal 275 à desembocadura da
Rua Formosa276.
A bem da verdade, as áreas públicas da cidade deveriam ser, nesta época, uma
paradas que deveriam conferir à capital um aspecto e um cheiro peculiar. Áreas pantanosas,
segundo Coruja (op. cit.: 18), existiam não só para os lados da praia do Arsenal e da
Várzea, mas também para os da atual Riachuelo e Duque de Caxias onde um certo
Fernando Relojoeiro possuía “bonitos gansos que ele criava no terreno alagadiço”
existente ali. Haviam águas que corriam pelas calhas das ruas e mesmo rua à fora, e havia
ainda, águas paradas: “águas que desciam como nativas do antigo poço ou fonte que deu
nome à rua, depois denominada de São Jerônimo277” (Coruja, op. cit.: 17), o poço de água
estagnado na rua da Ópera (FCM, AHMV) e, imagina-se, tantos outros mais278. Saint‟
Hilaire (op. cit.: 30) comentava na década de 20: “Mas, depois do Rio de Janeiro não vi
cidade tão suja, talvez mesmo mais suja que a metrópole” e, mais adiante afirma:
275
O local que estaria hoje, mais ou menos, na esquina da Andradas com a General Salustiano.
276
Trecho da atual Duque de Caxias.
277
Atual Jerônimo Coelho.
278
Em 1842, em artigo adicional, o Código de Posturas passa a obrigar os proprietários a aterrarem terrenos
pantanosos com águas estagnadas, o que indica que eles eram bastante freqüentes. O costume de lançar à rua
águas de despejos que pudesse “enxovalhar a quem passa” foi proibido pelo Código de Posturas de 1873, no
artigo 25 do capítulo 3º (AHMV).
246
lago são entulhadas de lixo. Apesar de ser o lago o único manancial
de água potável, utilizado pela população, consentem que nele se
faça o despejo das residências” (Idem: 43).
Acrescente-se a esta paisagem o elemento humano. Ruas tomadas por todo tipo de
gente, conforme já descrito. Pobres, vadios, bandidos, meretrizes, escravos, negros forros,
mais privilegiados, estas estão em casa. Hormeyer (1986: 65) comenta, já na década dos
1850: “... o marido ou um escravo negro vai à feira para as compras; aliás, todas as
compras, mesmo num armazém, são de sua competência, porque raras vezes se vê que as
ambulantes enchiam o ar com seus sons279. Aguadeiros vendiam água numa pipa entre sete
da manhã e seis da tarde gritando “água, aguadeiro” (Spalding, op. cit.: 145).
279
Este costume esteve até pouco tempo em voga e parece ter persistido na atual entrega domiciliar de gás.
247
Aguadeiro. Reproduzido de Spalding (op. cit.: 152)
Os sinos das igrejas anunciavam os horários das missas e os sinos da praça a hora de
Ruas e praças passam a ser cada vez mais valorizadas havendo, principalmente a
partir da década de 60, uma nítida mudança no sentido conferido a elas. A preocupação
com a limpeza e o aspecto estético indicam que a rua deixou de ser um mero local de
trânsito e lugar de excluídos. Por seu lado, as praças, lugares de festas religiosas,
248
enforcamentos ou do pequeno comércio, começaram a tomar ares de lugar de lazer e
calçamento sistemático das ruas da cidade: parte final da Rua da Praia, Rua Formosa e São
José281, Ladeira do Ouvidor282, Clara, Beco da Ópera, Varzinha, etc. (Spalding, op. cit.: 93).
Um ano antes havia sido iniciado o trabalho de numeração das casas, que foi intensificado
ao lado do calçamento das ruas, entre os anos de 1849 e 1852 (Idem). Em 1833 a cidade
contou com seu primeiro sistema de iluminação pública: um candiero em cada esquina
139).
Em 1838 a capital passou a contar com 250 lampiões de óleo de peixe que, em
280
No final do século a imprensa descreve as espeluncas (botequins, tabernas e/ou bordéis) e os becos “como
locais sujos e insalubres, „focos‟ de doenças e imoralidades” (Mauch, 1994: 11-12). “Este discurso médico,
que visava a erradicação dos chamados “miasmes”, pestilências carregadas pelo ar originadas da matéria
orgânica em decomposição, foi muito comum durante a segunda metade do século XIX em todas as regiões
do país” (Symanski, op.cit.: 128 nota 48).
281
Trecho da atual Duque de Caxias.
282
Atual General Câmara.
283
Atual Coronel Genuíno.
284
Atual João Alfredo.
249
Em 1874 instalou-se a iluminação a gás, com a instalação do gasômetro na Rua do
Spalding (op. cit.: 139) afirma que nas épocas mais antigas, em certos dias da
“despejos” das cubas sanitárias para o Guaíba, onde eram, como convém, despejados. O
lixo ia para os terrenos baldios e mesmo para as praias do Rio, conforme já vimos.
fiscalização da limpeza das ruas, praças e do litoral da cidade. Mas as coisas parecem não
mudar muito. Em 18 de março de 1875 a Câmara decide solicitar287, até que o assunto seja
285
Washington Luiz, onde hoje há a passagem do aeromóvel.
286
Interessante notar que sujeira, segundo a noção desenvolvida por Mary Douglas (1976) é a idéia de que é
sujo o que está fora do seu lugar.
287
O grifo é meu.
250
ser levado pelas carroças empregadas neste serviço todas as manhãs (Atas da Câmara,
Livro 18, 872-87). É apenas pelo ato de 7 de outubro de 1876 que a Câmara obriga todas as
frente as suas portas, todos os dias (inclusive domingos e dias santos), “dentro de algum
caixão ou qualquer outra vasilha, todo o cisco e cascas de frutas, provenientes da limpeza
tirada de suas respectivas moradas para ser lançados nas carroças ocupadas de limpeza
Depois de 1887 o lixo passou a ser depositado em valas abertas na várzea289, depois
290
novamente no litoral, e por fim num incinerador (Franco, 1998: 249), que segundo o
288
Área entre a Rua da Conceição, Voluntários da Pátria, Sete de Setembro, Praia do Arsenal, Varzinha,
Olaria até o Beco da Firma, Praça da Independência, Rua da Misericórdia até a Conceição (CPM, 1831 a
1878. F. 31, AHMV).
289
Eram valas de 2 X 2m abertas paralelamente umas as outras (Franco, 1998: 249).
290
Situado no bairro da Azenha (Idem).
251
Mas ao que tudo indica, as medidas não foram das mais eficientes. Até a última
década do século, reclamações, praticamente diárias, eram feitas nas páginas dos jornais e
falta de limpeza que fazia com que a chuva que lavava a cidade alta levasse imundícies para
a cidade baixa.
ruas e ironizava: “onde tem é claro, pois muita não tem” (Gazetinha, 7 de maio, 1996).
serviu de Quartel aos Guarani, na esquina da Riachuelo com Vasco Alves, o jornal
252
Charge publicada em O Guarani em 1874,
Reproduzido de Pesavento, 1994: 84
É digno de nota, ainda, o fato que a limpeza pública só foi municipalizada sob o
governo do Intendente José Montaury em 1898 (Franco, 1998: 249) e que antes ficava a
cargo da iniciativa privada que, como indicam os jornais do final do século não cumpriam
cidade para no prazo de trinta dias “dar execução a diversas obrigações de seu contrato
253
(2/07/1896), solicita ação policial contra os mendigos que exercem a mendicância “de
maneira libérrima sem a mínima fiscalização policial o que oferece margem a explorações
segundo Coruja (op. cit.: 24) ou pela memória da extinção do Pelourinho que havia “mais
acima”, segundo Spalding (op. cit.:198). Foi idealizada por José Martins de Lima
Cappelletti, Ozório, op. cit.: 80) e, em 1878, foram instalados um ringue de patinação,
“espaço para brigas de galo, tiro ao alvo e quiosques para venda de comidas, bebidas e
sorvetes” (Idem).
254
Chafariz do Alto da Bronze (Portoalegre, A., 1922)
Estes autores fazem referência ao fato de que a praça mudou seus freqüentadores
de encontro noturnos (Ibidem). Mas a Gazetinha continua enfatizando este espaço como um
importante local de socialidades, pelo menos para algumas famílias. As crônicas são fartas
255
dos olhares oblíquos e dos ardis amorosos: “na praça da Harmonia a azeite291 será
Fernanda Toccchetto, do Museu Joaquim José Felizardo, localizou o cais que limitava a
área da antiga praça com o rio (Oliveira, Cappelletti e Ozório, op. cit.).
A Praça da Alfândega, por sua vez, foi arborizada em 1878 (Oliveira, op. cit.: 160).
Antes, em 1865, havia sido inaugurado ali um chafariz (Spalding, op. cit.:130). Na década
de 1880, chamando-se então, Praça Senador Florêncio, passou a receber cuidados de jardim
(Idem). Com utilização menos nobre que a Praça da Harmonia, mas ainda assim tendo
recebido cuidados que a transformaram em área de lazer, a atual Praça da Alfândega perdeu
291
Clara alusão ao flerte. Esta expressão é utilizada com muita freqüência nas crônicas da Gazetinha neste
final de século.
256
de loteria, brigavam, atacavam os transeuntes, atiravam pedras aos velhos e faziam uma
Mais adiante acrescenta que isto é visto quase todas as noites na Praça da Alfândega
292
Note-se o sentido do perigoso impresso neste estado ambíguo.
257
Praça da Alfândega em 1888. Irmãos Ferrari (FSB – MJJF)
completado em 1881 (Oliveira, op. cit.: 155). Também possuiu seu chafariz com quatro
Porto Alegre queixava-se ao lembrar, com saudades as Festas do Divino: “Tudo isso
não admite mais essas ridicularias” (Porto Alegre, op. cit.: 166).
293
Hoje estas figuras encontram-se na atual Praça Dom Sebastião.
258
“população Riograndense, muito ao envez da portuguesa e das que
lhe são oriundas, era extremamente alegre [...]. Nas cidades, a
população reunia-se em freqüentes solenidades de igreja, em saraus
dançantes e nas populares festividades dos dias nacionais, em que o
ardor cívico se patenteava com o maior entusiasmo” (Varela, 1896:
395-6).
E coloca, com pesar: “Hoje, estes belos costumes de tempo antigo passaram quase
que
“as próprias festas da igreja não tem mais o lustro de outras eras. Os
ajuntamentos patrióticos foram perdendo de todo o prestígio, que só o movimento
republicano veio restabelecer, em parte, na alma popular. Os cidadãos vivem em
clubs que nada oferecem que eleve o espírito, ou em teatros, que raramente
funcionam, ou em bailes de uma monotonia realmente mortificadora” (Ibidem).
Na verdade, o que houve foi que a festa na cidade colonial era marcada pela
mistura, pela experiência sensorial e pelo espírito dionisíaco, como bem demonstrou
Centurião (op. cit.) e que subordinava a si, a razão. A sociedade burguesa, sem abdicar
totalmente deste espírito barroco (novamente ver Centurião) pretende subordiná-lo à razão.
A Praça General Osório, no Alto da Bronze, foi, até 1865, uma área privada
(Franco, 1998: 295). O terreno foi desapropriado em 1866 afim de dar lugar a uma praça e
ser colocado ali um chafariz (Idem), possivelmente no local da antiga “Fonte dos Pobres”.
Por fim, a Praça XV de Novembro, ou Praça Conde d‟Eu, ou, antes, Praça do
Paraíso, com a demolição do Mercado antigo, serviu para a instalação de circos e, a partir
259
de 1879, foi arborizada, ajardinada e cercada por um gradil de ferro (Franco, 1998: 338). O
ponto de parada das carretas que se dirigiam ao Mercado, que ali era feito, transferiu-se
para a Praça Rui Barbosa. Depois disto, construiu-se o chalé de madeira (1881), colocaram-
necessidade de uma ação policial “a fim de que sejam abolidos dali certos „escândalos‟
em três pontos que estão sempre subjacentes às ações: ordem (cada coisa em seu lugar),
limpeza e estética.
Estética e ordenação andam juntas: o Código de Posturas de 1873 rezava em seu artigo 5º
do capítulo 1º, conforme já foi dito, que as ruas a serem abertas deveriam ter, no mínimo,
80 palmos de largura e que as praças deveriam ser quadrados perfeitos sempre que fosse
possível. Exigia-se, ainda, que os prédios que fossem reconstruídos deveriam ser alinhados
uns aos outros, para que ao invés de linhas quebradas, as ruas fossem linhas retas (no
294
Está atualmente no Parque Farroupilha (é de bronze).
260
máximo curvas) (Artigo 7º, Capítulo 1, CPM, 1873, AHMV). A paisagem urbana passa a
ser ordenada segundo critérios que apontavam para valores típicos do imaginário burguês.
Projeto de Posturas (AHMV) para a edificação de casas térreas e sobrados, onde lia-se, no
Assim, de tudo que foi dito, constata-se que a paisagem urbana passou, a partir da
segunda metade do século, a ser ordenada segundo critérios que apontam para valores que
se tornaram, então, importantes. Com relação à ordem tornou-se preciso distinguir lugares e
ações: como se diz, é preciso “um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar”295. A
higiene confunde o físico, o moral e o social: pobreza é igual a sujeira, que é igual a
miasma, que é igual a doença, lugar de pobre é igual a lugar de perversão (e, ainda mais, é
lugar feio). A estética também envolve questões como limpeza e ordem, além de simetria e
boas proporções, claro, conforme colocou Norman (Projeto de Posturas para Edificação de
295
A expressão é atual, mas revela bem a idéia subjacente à questão da ordem: deve haver o lugar do lixo, o
lugar do passeio, o lugar do comércio, o lugar do pobre, ...
261
Neste processo, a rua deixou de ser simples local de trânsito ou lugar de excluídos.
Iluminada, calçada, com suas casas numeradas, a rua tornou-se lugar de lazer e
com a presença de mendigos, engraxates, vadios e prostitutas nos locais por onde andavam,
presume-se que a prática do passeio tornara-se muito comum, e que o cidadão (leia-se
cidadão de 1a classe não o “Zé Povinho”) pretendia andar livremente, sem o incômodo de
Mas é bem verdade que todos estes lugares podem (e devem) ter sido ocupados em
Assim, ruas e praças foram, em função de suas formas de ocupação, usuários e horários,
coisas e lugares diversos: devem ter sido (e foram) via de trânsito, lugar de passeio, casa, ...
Porém isto insere-se num quadro mais amplo, exposto aqui, de transformação da paisagem
urbana a partir de novas idéias surgidas num contexto econômico, social e cultural em
capítulo.
vasto potencial de pesquisas existente. Isto sublinha a importância substantiva não apenas
dos prédios públicos, mas de unidades residenciais – tanto as mais suntuosas quanto as
XIX indicam os pátios das casas e terrenos baldios como locais de alto potencial
arqueológico.
Existem alguns fortes indícios que apontam para o descumprimento das normas
jornal A Federação mostra que as multas impostas pelo não cumprimento das leis relativas
a isto eram quase cotidianas (AHMV). Além disto, a instituição de visitas sanitárias que
que possam ser realizadas em residências na área central de Porto Alegre podem ser
esclarecedoras. E isto é apenas um pequeno exemplo do muito que pode ser desvendado
locais potencialmente significantes para estudo do refugo desta sociedade, como atestam as
lixeiras coletivas situadas nos atuais Mercado Público (RS-JA-05) e Praça Rui Barbosa
263
(RS-JA-07) que confirmaram este potencial através das intervenções arqueológicas
296
Sérgio R. Ozório desenvolve, atualmente pesquisa que deverá resultar em sua dissertação de Mestrado pelo
Pós-graduação em História da PUCRS, envolvendo estas duas áreas.
264
3. OS ESPAÇOS:
sociais.
que os arqueólogos tem sido chamados a considerar as redes de relações entre o que se
tem chamado aqui de lugares. E isso tem sido, efetivamente, realizado por muitos desde
espacial envolvendo três níveis de análise que, de uma forma ampla, poderiam ser
Todos estes estudos tiveram sempre o interesse focalizado nos lugares: onde as coisas
estão.
importância das distâncias entre lugares (onde as coisas não estão) na ordenação do
espaço. É interessante notar, como observou Orser (1996: 135-136), que “quando os
arqueólogos conduzem análises espaciais para mostrar onde os sítios estão localizados,
eles também mostram (talvez muitas vezes totalmente inconscientes) onde os sítios não
estão localizados”. No entanto, parece que o desinteresse dos arqueólogos por estas
áreas (onde as coisas não estão) deve-se ao seu caráter fortemente imaterial: apesar de
265
construir-se uma realidade física, (novamente, onde as coisas não estão) o espaço pode
ser também uma abstração amarrada à redes invisíveis (Lefrebvre, apud Orser, 1996:
137).
Como já foi colocado na Introdução deste trabalho, considero que o espaço vai
muito além de áreas situadas entre lugares. Considero os espaços a partir de uma dupla
perspectiva. Ele é físico, mas é também (e sobretudo) mental: uma abstração dotada de
realidade vivida (não uma realidade natural), nas relações entre pessoas e grupos
Para realizar uma análise dos espaços da cidade e verificar de que forma eles se
optou-se por realizar um estudo de uso do solo onde os dados obtidos no registro
arqueológico fossem associados aos dados provenientes de registros escritos. Com isto
representações coletivas. Elas são vistas aqui como um sistema de referências que reúne
em si as formas através das quais uma sociedade percebe e classifica o mundo. São elas
178
Orser (1996: 137) chamou essa ordenação do espaço, criada conscientemente e vivida na relação entre
as pessoas,de espacialidade.
266
que, conforme já disse antes, guiam as práticas, as ações que constróem o mundo social.
Assim colocado, podemos pensar que existe uma articulação entre discurso e
prática e que entre ambas “há uma homogeneidade que abre caminho à compreensão
entre culturas diferentes” (Idem: 30). Desta forma, as representações são distinguíveis
no qual foram apontadas atividades diversas ocorridas do início até meados do século
XIX em razão de termos aí, conforme já foi dito outras vezes neste trabalho, uma
179
Parte-se da noção de “fato social total” introduzida por Mauss (1988). Colocado de forma ampla,
implica pensar que os fatos (os fenômenos) que, por razões analíticas, “recortamos” a fim de estudar uma
sociedade (como o espaço, por exemplo) são fenômenos que comportam todas as outras esferas que a
compõem. Assim, um fato social, seja ele extraído da esfera econômica, moral ou estética, por exemplo,
envolve, comporta e exprime todas as demais esferas sendo, simultaneamente, econômico, moral,
político, religioso, etc..
267
sociedade burguesa e capitalista, utilizou-se a planta de Ahrons de 1896 e consideraram-
lugares (depósito de lixo, lavagem de roupa, igrejas, mercados, etc.), vemos claras
estão, ainda hoje, presentes). Os dados fornecidos por Saint Hilaire (op. cit.: 42)
reforçam este função: “e onde se instalou, para as necessidades das tropas, oficina de
180
Livros de Impostos pelo Valor Locaticio, 1895, AHMV.
181
O marco que estabelecia que o núcleo urbano era sede de comarca e, portanto, simbolizava o poder
que as autoridades locais estabelecidas aí possuíam sobre toda uma região. Ainda que existiam
discordâncias sobre o fato do pelourinho ter servido ou não de local de castigo a escravos e criminosos,
algumas indicações sugerem esta função. Por exemplo, a descrição de Isabelle, já mencionada neste
trabalho, e o significado atribuído à palavra, no dicionário de Fonseca e Roquete (op. cit.: 741): “coluna
em praça pública, a que se ata o criminoso, etc.”.
182
“o que faz ou concerta armas” (Fonseca e Roquete,op. cit.: 150).
183
O termo carreiro, no dicionário de Fonseca e Roquete (op. cit.:245) designa “o que guia o carro”.
Possivelmente Saint Hilaire estava se referindo a uma oficina de carros que, segundo o mesmo dicionário,
é uma “carruagem de carga” (Idem).
268
Ainda a oeste, na ponta da península, estava o local destinado à lavagem de
51 – CPM, 1937). Neste local passavam, também, os animais que vinham do outro lado
do Rio e que desembarcavam a Ponta da Barca de Passagem e que, seguindo pela Praia
do Arsenal e pela Praia do Riacho, iam pela rua da Olaria até a Várzea (Capítulo 31,
CPM, 1831, AHMV). Isto tinha a clara intenção de evitar que o trânsito de animais se
fizesse pelo centro da cidade. O Código de Posturas desta época é rico em menções que
objetivam restringir ao máximo o uso das vias públicas por animais: a rua, como já foi
dito no capítulo anterior, deveria ser via de trânsito das pessoas da cidade. Assim ficou
proibido, no capítulo 25, que animais (vacuns, cavalares, muares, lanígeros, porcos,
bodes, etc.) andassem soltos pela cidade. O capítulo 27 proibia correr a cavalo pelas
ruas e amarrá-los às portas das casas: “Nem apeando-se o poderá conservar pelas
rédeas entrando em casa ou estando junto às frentes das mesmas, muros ou cercas ou
por onde o povo transite” (CPM, Capítulo 27, 1831, AHMV). O capítulo 24 ainda
proibia cães daninhos que pudessem fazer mal a quem andasse pelas praças, ruas ,
grande comércio da Rua da Praia. O Largo dos Ferreiros e a Praça do Paraíso também
de Posturas de 1831 e onde podiam se reunir e conservar paradas todas as pessoas que
269
vendiam comestíveis e mantimentos (Capítulo 13, CPM, 1931, AHMV). Em 1844,
quando foi regulamentado o uso do Mercado recém constituído, ficou estabelecido que
ninguém poderia mais vender fora da Praça do Mercado os itens antes vendidos na
Quitanda sob pena de multa. Gêneros, mantimentos e outros objetos só deveriam ser
comercializados ali ou nas ruas “uma vez que os vendedores não se demorem nas ruas ,
nas praças ou nas praias para este fim” (Idem). Observa-se, portanto, que o comércio
embarcações que trouxessem carnes verdes (Porto do João Inácio em frente à rua do
baldios e outros lugares abertos. No entanto, o CPM de 1831 destinava algumas áreas ao
longo da litoral para este fim. No capítulo 50, a Câmara estabeleceu dez pontos onde se
poderia realizar o “despejo de ciscos e imundícies” (CPM, 1831 :16, AHMV) e que se
estendiam pela beira do Rio desde as ruas da Misericórdia e do Rosário até a rua
Formosa e do Cotovelo. Dali, conforme o Código, seguiriam outros mais que fossem
necessários para realização deste fim, até a Ponte do Riacho. Em 1842 o Código de
Posturas revogou o uso dos locais entre a rua da Bragança e rua Clara para despejos.
Mas o Rio era de onde se obtinha água para consumo, ao lado de outras fontes
270
No Alto da Praia, como já vimos, estava o centro do poder temporal e espiritual,
bem como as moradias das famílias mais ilustres. A parte sul da península, como
observou Saint Hilaire, era ocupada pela população mais pobre. Mas se havia uma
distinção um tanto ampla (as casas mais pobres estavam no sul e as mais ricas no topo
mesmas áreas da cidade: becos sujos e pobres entrecortavam as ruas (mais nobres) que
corriam longitudinalmente à península. Assim, como comenta Coruja (op. cit.: 23), na
rua da Ponte, perto do Beco do Fanha, estava a grande casa de Manoel Antônio de
alcunha e onde viviam mulheres de “vida alegre” (Idem: 112) e, na casa da esquina um
negociante honrado que havia sido vereador: capitão Roberto André Ferreira de Souza
Alvim (Ibidem: 20). Este exemplo, ao lado de tantos outros184, atesta o fato de que as
áreas de moradia eram, até certo ponto, de limites bastante frouxos e confusos.
O que se observa é que nesta primeira metade do século XIX se pode distinguir
Mas a verdade é que estas áreas se confundem: descarte, lavagem de roupa, trânsito de
oficial (o do Código de Posturas) parece apontar para uma distinção que se dá muito
184
Coruja fornece uma grande quantidade desses exemplos e cito, a título de complementação, a rua
Clara, onde morava o pai do General Câmara e era “foco de desordens” entre os marinheiros (op. cit. :
112), o Beco do Bot à Bica, onde morou o Visconde de Castro (Idem: 110) que era “acidentada e
tortuosa” (Franco, 1998: 332) onde, ainda em 1851 se podia retirar “carroçadas de terra” de seu leito
(Idem: 323).
271
um espaço de depositar lixo, um espaço de lavar roupa. Há um espaço onde se compra e
vende e um espaço onde se mora. Se, por um lado, é difícil situar cada uma dessas áreas
num espaço físico, elas eram claramente diferenciadas. Se não fosse assim, não haveria
porque distingui-los no discurso. Eles são, desta forma, espaços que se definem, como
já ficou dito antes, por oposições e complementaridades e são determinados muito mais
É assim que na cidade destes tempos, marcados por uma sociedade senhorial e
espacial do tipo que conhecemos hoje nessa cidade do passado, provavelmente vamos
XIX, o espaço não se constituía em uma dimensão social independente (Da Matta,op.
cit.: 32) que pudesse ser pensada, classificada e vivida conforme fazemos hoje, com
185
Estas formas incluem uma racionalização do espaço que se institui com a sociedade burguesa e
capitalista, conforme veremos a seguir.
186
É preciso lembrar que nesta época Porto Alegre não possuía placas que nomeassem as ruas nem
numeração nas casas que, como já foi dito, foi realizada apenas no final da Revolução Farroupilha.
272
coletivas que os grupos sociais faziam dele. Assim, a rua dos Pecados Mortais referia-se
Largo da Forca, Beco do Jogo de Bola, dos Nabos a Doze. Outras vezes sugeriam
segmentação social, como áreas de prestígio e poder: o Alto da Praia que, ainda que se
a esquina da Inglesa, a esquina do Matias, o Beco do Leite e por aí a fora. Tudo muito
relações e os valores onde o espaço é concebido (Da Matta, op. cit.: 32). Isto é muito
significados aos espaços seguem a lógica das redes de relações entre os grupos sociais.
273
Existia na Porto Alegre oitocentista um costume que, tomado como
classificatório que operava aí: o costume de conferir alcunhas às pessoas. Coruja (op.
cit.) apresentou uma ampla listagem desses apelidos que nos indicam a importância que
eles tinham no contexto da sociedade: “As alcunhas não só subiam à altura dos grandes
personagens, como desciam aos sineiros e aguadeiros” (Coruja, op. cit.: 89).
profissionais, laços de família. Assim, por exemplo, se pode citar: a Brigadeira (Josefa
Ávila, o mais erudito professor da época) (Idem: 18) e, ainda, o Carrapato (M. de
Araujo Porto Alegre, o Barão de Santo Angelo) (Ibidem: 60). Havia também a Luiza
Parteira, o Titica (Boticário), o João dos Afetos (poeta e comerciante), o Antônio Magro
(taberneiro), o Fanha (que deu nome ao Beco), o Domingos da Ladeira (que morava na
Aliás este último, com a finalidade de demonstrar como as alcunhas eram muito
usadas, inventou “um romance feito à pressa, que para muitos será enigma, mas que
para outros fará despertar recordações adormecidas” (Ibidem: 32). Vale a pena
transcrever um parágrafo que não mostra apenas a importância do uso das alcunhas, mas
274
também a forma de localizar, situar, endereçar algum ponto na cidade, que nos indica a
elas unem e mostram um sistema onde um valor importante é relacionar. No caso dos
impregná-los de valores estéticos e sociais (da mesma forma como é feito com as
mesmas coisas.
A cidade destes tempos mostrava, usando uma expressão de Centurião (op. cit.:
288), o princípio básico da harmonia entre opostos, num contexto que, “se por um lado,
275
abria espaço para a contradição e o antagonismo, por outro lado enfatizava a
los é outra, diferente daquela que realizamos hoje. Poderia arriscar uma proposição e ir
um pouco adiante: é possível que o espaço também fosse diferenciado pela variedade de
sons e odores que povoavam os ares da cidade. Ainda que, talvez, não fossem produtos
lembrar, como Hall (op. cit.) bem lembrou, que a percepção do espaço está amarrada
aos sentidos, que são, ao menos, mais três além da visão e do tato sobre os quais as
arqueólogos tem fixado a atenção. Se hoje fazemos o possível para suprimir odores e
sons, considerados indesejáveis no espaço público, isto nem sempre foi assim187.
modificações. Foi assim que odores provenientes de águas paradas, do lixo e dos
moral, numa associação direta entre pobreza, insalubridade, desordem espacial, doença
por modelos de reordenação urbana forjados num amplo processo que situou-se muito
além de limites regionais e nacionais, decretou que eles deveriam ser suprimidos.
187
Sobre esta questão há o interessante estudo feito por Curbin (1987).
276
complexo envolvendo mudanças na estrutura econômica, social e política, conforme
tentei mostrar no primeiro capítulo deste trabalho. A lentidão com que se realizaram tais
alterações, ao contrário do que possa parecer quando se trata de descrever este processo,
que desencadearam ações conscientes que marcaram a paisagem urbana da Porto Alegre
dias de festa na Praça da Matriz, os passeios das famílias incluíram a Praça da Harmonia
Novembro, mais ao leste e a Própria Praça da Matriz, além das ruas da cidade.
277
silêncio, encaminhavam-se para o Riacho, onde iam cumprir
uma prescrição médica, uma necessidade higiênica ou
simplesmente refrescar os ardores da canícula. E como era
deliciosa aquela ablução, numa praia limpa e arenosa” (Porto
Alegre, op. cit.: 145).
Mas a praia do Riacho foi, também, lugar onde se lavava a roupa, conforme é
As Lavadeiras da Praia do Riacho. Irmãos Ferrari, final do século XIX (FSB – MJJF)
Praça da Matriz.
278
As ruas possuíam placas e as casas números. Porém, como é possível observar
números que se repetiam, números ímpares e pares alternando-se no mesmo lado da rua,
ou numeração não-seqüencial.
diversas, foi realizado um amplo levantamento nos livros de impostos no ano de 1895
(AHMV). Nestes livros foi possível saber que tipo de negócio era feito e o endereço
onde ele se realizava188. A idéia era plotar essas diversas atividades no mapa cadastral
prática, evidenciou ser absolutamente inútil pois, uma mesma quitanda, por exemplo,
poderia estar localizada em três pontos distintos da mesma rua, onde a numeração se
repetia em edificações diferentes. Além disso, muitos números que constam nos livros,
referência dois números limites em cuja seção, assim definida, se pudesse localizar, de
forma ampla, uma certa quantidade de atividades. Por exemplo, na Rua da Praia, do seu
início até a esquina da General Câmara a numeração das edificações varia entre os nº s 1
e 359, alguns deles se repetindo em prédios diferentes. Daí até a rua de Bragança a
188
Infelizmente essas informações só foram possíveis de obter para o final do século, já que não
encontrou-se documentação contendo estes dados relacionados a épocas mais antigas.
189
Provavelmente este fato esteja ligado à questão de que a planta deve ter levado um tempo
relativamente longo para ser produzida. A data de finalização é o ano de 1895, o que não quer dizer que o
levantamento das edificações corresponda a esta data.
279
Assim, sabemos que todo número menor que 176 encontra-se no primeiro
segmento da rua e todo maior que 359 está no segundo segmento. Um grande número
359), ficou, de qualquer forma, sem localização podendo estar tanto num quanto no
outro segmento. Em algumas ruas a confusão de números não era tanta, permitindo uma
determinadas das ruas, elaboraram-se tabelas que resultaram em gráficos que tiveram
como finalidade procurar estabelecer possíveis diferenciações na ocupação das ruas por
atividades diversas.
dificuldade em estabelecer uma divisão deste tipo, uma vez que muitas atividades
exemplo, de restaurantes e padarias. Assim, optou-se por levar em conta aquilo que
deveria ter sido atividade principal. Neste sentido, no caso do restaurante, por exemplo,
do entendimento que a sociedade da época tinha delas. Para tanto foi utilizado um
190
Inúmeras vezes essas atividades foram classificadas como “fábricas”, porém o grande número desses
estabelecimentos e o fato de muitas vezes estarem num mesmo prédio onde existe outro tipo de atividade
(quitanda, botequim, etc..) revela que se tratam do que nós chamaríamos hoje de “fábricas de fundo de
quintal”. Por isso foram tomadas como atividades artesanais. No entanto, é interessante notar que o termo
“fábrica” indica que estas atividades eram percebidas diferentemente: a fábrica é, no imaginário da época,
um símbolo do mundo moderno.
280
elaborou-se uma listagem das diversas atividades realizadas, seguida de uma explicação
que busca ser uma aproximação ao discurso que relata cada uma no século XIX:
a) Comércio e serviços:
- Taverna: “casa onde se vende vinho e de comer” (Fonseca e Roquete, op. cit.:
1892 -AHMV).
- Botequim: “casa pública onde se vendem licores, etc.” (Fonseca e Roquete, op.
rua Duque de Caxias nº 64, esquina com a rua Vasco Alves, dizia que o
281
pela França. (Com o quê, percebe-se que a publicidade, já nesta época,
vender.)
- Barbearia: Parece ter sido o mesmo que é hoje, até certo ponto.. Achylles Porto
Roquete, op. cit.: 804). Supõe-se que seja, também, casa que vende
gêneros alimentícios.
191
O próprio Debret (s/d :181) informa que o cirurgião era um “sangrador”.
282
- Loja de Fazendas: entende-se que eram casas que vendiam, preferencialmente,
tecidos, o que não excluía miudezas como meias, gravatas, etc.. Num
- Depósito: Não apenas o lugar onde se guardam coisas ( Fonseca e Roquete, op.
283
estabelecimento situado “nas ilhas fronteiras a esta cidade” (MONTE
284
- Cigarraria: em anúncio da Gazetinha de 3 de dezembro de 1895 (AHMV) lê-se
guardá-los.
(Idem, 6/out/1895).
- Café: do que se pode deduzir da análise das fontes pesquisadas, havia cafés e
menos incorretos estes cafés que, também uma vez pagando o direito de
285
rapaziada de bom gosto”. Ali vendiam-se vinhos, cervejas, cognacs,
op. cit.: 150). Conclui-se que seria o que atualmente corresponde a uma
loja de armas.
192
Atual Andrade Neves
286
- Loja de Calçados: estabelecimento dedicado à venda de calçados. Em anúncio
da Gazetinha de 22 de dezembro de 1895 (AHMV) a Casa Azul, empório de calçados
nas palavras ali expressas, situado na rua dos Andradas nº 525, afirmava possuir uma
sala reservada para as senhoras experimentarem calçados.
artigos. Uma delas, situada à rua dos Andradas nº 209, de nome “Alta
Alegre (op. cit.) refere-se a uma casa construída sobre um trapiche no Guaíba
b) Artesanato:
287
situado à rua General Câmara nºs 71 e 73 de nome A Maisonave, já
mencionado.
- Seleiro: “o que faz selas” (Fonseca e Roquete, op. cit.: 871). Pelos anúncios
- Colchoeiro: “o que faz colchões” (Fonseca e Roquete, op. cit.: 280). E, pelo
que se pode entender dos anúncios publicados, faz (e vende) baús, malas,
288
- Oficina de mármores: não foi encontrada nenhuma referência relativa às
diploma”.
- Alfaiate: pelo que se entende dos anúncios publicados tem o mesmo sentido
que o atual. Distinguia-se, no entanto, a alfaiataria civil da militar,
havendo anúncios que proclamavam realizar ambas.
dizer que os termos foram encontrados nos livros de impostos ou mencionados nos
demais documentos sem que houvesse qualquer elucidação explícita sobre o seu
289
Açougue, roupa feita (presumivelmente uma casa onde se vendiam roupas
prontas e outros artigos tais como acessórios, fato que se constata, por exemplo, nas
modas, loja de móveis, ferragem, loja de couros, florista, loja de cousas, tapeçaria, loja
290
RUA DOS ANDRADAS
Segmento 1 Segmento 2 Indefinido Total
Botequim 6 3 9
Quitanda 2 2
Taverna 12 3 15
Comércio Açougue 5 5
E Barbearia 7 1 4 12
Serviços Farmácia 2 2 5 9
Cigarraria 2 1 3 6
Hotel 4 3 7
Café 1 2 4 7
Armazém 4 2 6
L. de fazendas 4 6 16 26
L. de calçados 1 2 3 6
L. de chapéus 2 6 3 11
Armarinho 1 1 2
L. de modas 2 1 1 4
Padaria 2 2
Depósito 3 3
Especialidades 1 1
Miudezas 1 3 4 8
Restaurante 1 1
Armas 1 1
L. de estofados 1 1
Confeitaria 1 1
Pastelaria 1 1
Drogaria 1 1
Fazendas e miud. 1 1
Agência leilões 1 1 2
L. de Jóias 4 1 5
L. de tintas 1 1
L. de louças 4 4
L. de máquinas 2 2
L. de móveis 1 1
Ferragens 2 2
Pensão 1 1 2
ñ identificados 1 1
Sapataria 5 1 1 7
Funilaria 3 1 4
Artesanato Entalhador 1 1
Fáb. de gasosa 1 1
Fáb. de chitas 1 1
Fáb. de calçados 1 1
Marceneiro 1 1
Fáb. de banha 1 1
Fáb. de café 1 1
Ferraria 1 1
Mármores 3 3
Ourives 1 1 2
Fáb. de coletes 1 1
Alfaiate 4 2 9 15
Fáb. de espartilhos 1 1
Modista 1 1
Cirgueiro 3 3
Tinturaria 1 1
Seleiro 2 2
Ofi. galvanizados 1 1
Ofi. consertos 2 2
291
Quando se olha a quantidade de pequenos negócios estabelecidos nesta rua,
excluindo o outro: no primeiro estão a totalidade dos açougues, das padarias, dos
depósitos, bem como da fábricas de gasosa, chitas, calçados, banha, café, entalhador,
de armas, de estofados e de móveis, tinturaria e ourives, bem como 80% das lojas de
jóias, ainda que ali estejam instalados, também, o total de cirgueiros, seleiros e oficina
galvanizada. O que se vê, portanto, é uma tendência daqueles negócios que visam um
292
Da mesma forma, é na primeira parte da rua que estão localizados 80% das
RUA RIACHUELO
Segmento 1 Segmento 2 Segmento 3 total
Açougue 4 7 11
Taverna 5 3 6 14
L. de couros 1 1
Comércio L. de Fazendas 2 4 6
E Quitanda 4 1 5
Serviços Padaria 1 1
Cigarraria 1 1
Pensão 1 1
Florista 1 1
Botequim 2 1 3
Barbearia 1 1
Armazém 1 1
Café 1 1
Sapataria 1 2 4 7
Funilaria 1 2 3
Marcenaria 1 1 2
Artesanato Armador 1 1
Retratista 1 1
Tamancaria 1 1
Ferraria 1 1
Chapeleiro 1 1
Alfaiate 1 1
Fáb. de selim 1 1
Fáb. de vidros 1 1
293
7
0
A ç ou g ue
L . d e F a ze n da s
C ig a rra ri a
B o te qu im
C a fé
Segmento 3
M a rc en a ria
T am an c ar ia
Segmento 1
A lf ai at e
primeiro, apontam no mesmo sentido. O mesmo se pode dizer com relação às atividades
qualquer forma, o terceiro é também aquele segmento onde aparece o maior número de
294
tavernas que, como já se viu, relacionam-se à idéia de lugares perigosos, de práticas
moralmente condenáveis.
A rua Duque de Caxias é uma das que possui a numeração mais ordenada:
números pares de um lado (no norte) e ímpares de outro (no sul), estão em seqüência e
não se repetem. Mesmo assim, optou-se por distribuir as atividades por segmentos de
rua a fim de manter uma mesma linha de análise. Desta forma a rua foi dividida em três
seções: a primeira que se inicia na General Salustiano nos nos 4 e 5 e vai até a esquina
da General Canabarro, nos nos 107 e 120; a segunda começa nesta mesma esquina, e vai,
por um lado, até a esquina da General Auto, no no 191, e por outro, até a esquina da
Praça da Matriz no no 204. O terceiro segmento inicia-se, por um lado, a partir do prédio
295
6
3
Tav er na
2
A ç ougue 1
Botequim 0
Sapatar ia
S egm ento 3
Funileir o S egm ento 2
S egm ento 1
Pelo que se pode inferir, não há nenhuma distinção espacial significativa entre o
relacione ao fato de que aí seja o espaço preferencial para a moradia de famílias ligadas
metade do século XIX este era o espaço residencial preferido das famílias ligadas ao
arriscar a hipótese de que tenha permanecido no imaginário social da época este sentido
desde o seu início na esquina com a General Vasco Alves, no no 12 e vai até a esquina
com a Bento Martins, onde, por um lado da quadra vai até o n o 62 e, por outro, até o no
296
95. O segundo segmento estende-se desde aí quando a numeração continua do no 97, por
um lado, e 72, do outro, até a esquina da Marechal Floriano, onde a numeração atinge os
FERNANDO MACHADO
Segmento 1 Segmento 2 Total
Quitanda 2 5 7
Comércio Botequim 1 4 5
e Açougue 3 3
Serviços L. de calçados 1 1
Taverna 1 9 10
L. de fazendas 4 4
Artesanato Sapateiro 1 1
81,81 % do total. O fato de que 90 % das tavernas e 100 % das lojas de fazendas
297
estavam localizadas aí, além da presença da única loja de calçados desta rua, também
sugere um espaço mais comercial que o primeiro segmento, onde situam-se apenas duas
com os números pares por um lado (norte) e os ímpares pelo outro (sul). Ela foi dividida
em três segmentos: o primeiro inicia na Major Pantaleão Teles (números 2 e 9) e vai até
a General Canabarro (na última quadra deste segmento as edificações não estão
numeradas pelo lado par e, no lado ímpar, vão até o no 91); o segundo segmento vai
desta esquina (números 104 e 97) e estende-se até a General Auto nos números 180 e
298
5
4,5
4
3,5
3
2,5
2
1,5
1
0,5
0
Açougue
Bar bei ro
L. de f az endas
Padari a
C afé
Segm ento 3
Louç a de barr o
Segm ento 2
F áb. de charutos
Segm ento 1
Vidrac eir o
A rua Pantaleão Teles, atual Washington Luiz, possui uma numeração invertida,
que o seu primeiro segmento é aquele que vai da Rua General Salustiano, no n o 251 até
fato, na esquina da General Bento Martins193 nos números 1, pelo lado ímpar, e 2, pelo
lado par (onde uma série de edificações dão fundos para o rio) e estende-se até a esquina
da General Canabarro nos números 103 e 72; o segundo vai desta esquina (nos números
RUA 7 DE SETEMBRO
Segmento 1 Segmento 2 total
Depósito 10 3 13
Armazém 7 13 20
L. Fazendas 16 16
Comércio Ferragens 3 3
E Drogaria 1 1
Serviços Taverna 1 1
Botequim 1 1
Miudezas 1 1
L. Louças 2 2
Pensão 1 1
Fáb. de 8 8
Fáb.
Banhade 1 1
Carpinteiro
Licores 1 1
Artesanato Latoeiro 2 2
Sapateiro 1 1
Serraria 1 1
Marcenaria 1 1
Fáb. de 1 1
Ferraria
Calçados 1 1
193
A rua tem seu início na Praça Martins de Lima, atual Brigadeiro Sampaio. Porém as duas quadras
iniciais não possuem numeração e incluem, entre outras edificações, o prédio do Arsenal de Guerra e
vários trapiches.
300
16
14
12
10
6
D epós ito
L. F az endas
4
D rogar ia
B otequim
2
L. Louç as
F áb. de B anha
0
C arpinteiro
S apateir o
S egm ento 2
M arc enaria
S egm ento 1
F er rari a
Esta rua apresenta, como pode ser observado no gráfico, uma forte distinção em
a totalidade das atividades artesanais e 76,92 % dos depósitos. O segundo possui apenas
Público Central.
quadras, iniciando na esquina com a Rua dos Andradas e terminando na esquina com a
301
Duque de Caxias e no encontro com o Major Pantaleão Teles, fazendo frente com o
divisão da rua. Na primeira quadra ela possuía uma fábrica de licores, uma quitanda e
uma ferraria. Na segunda, existiam uma cigarraria e duas tavernas. Considerou-se, por
cadeia ali pudesse ter tido alguma implicação no sentido atribuído ao espaço.
que moravam na rua General Salustiano viviam ouvindo serenatas até a madrugada “isto
dois segmentos, o primeiro ao norte e o segundo ao sul, sempre tomando a rua Duque de
prédio.
194
A Rua Duque de Caxias é utilizada como linha divisória na planta de 1895, que foi confeccionada em
folhas. Assim, sempre que foi possível, utilizou-se as divisões da própria planta para estabelecer a
segmentação das ruas , entendendo-se que elas deveriam estar ligadas às formas através das quais o
espaço era entendido na época.
302
Na General Canabarro, que possuía uma numeração totalmente caótica e que
incluía o trecho que hoje é a rua Cipriano Ferreira, possuía apenas uma quintanda e uma
ferraria em seu trecho norte. Ao sul não verificou-se nenhuma atividade econômica.
A Rua General Bento Martins possuía uma numeração bastante confusa. Inicia
na esquina com a Rua 7 de Setembro, pelo lado par (oeste), no no 2. A numeração ímpar
60 (que aliás repete-se, pois há uma edificação com este mesmo número na quadra
anterior). De qualquer forma, foi possível estabelecer que todos os números pares
menores que 37, já que é aí que a numeração chega ao atingir a Duque de Caxias.
3,5
2,5
1,5
1
0,5
0
T av erna
B otequim
A ç ougue
Q uitanda
S egm ento 1
L. de F azendas
S apateiro
S egm ento 2
303
Do que se pode perceber, as atividades econômicas localizavam-se
preferencialmente, no primeiro segmento de rua.
A Rua General João Manoel não foi subdividida já que seu final coincide com a
esquina da Rua Duque de Caxias. Nela existiram um açougue, duas tavernas, quatro
Para o lado sul da península e quase em frente à João Manoel, está a Rua
General Auto, que também não foi subdividida por ter seu limite máximo na Rua Duque
Caldas Júnior, existiam três botequins, dois açougues, uma quitanda, uma ferraria, um
hotel e um marceneiro.
A General Câmara também foi tratada em sua totalidade. Existiam ali três
armazéns, três sapatarias, uma loja de fazendas, uma oficina de mármores, uma taverna,
banho.
estendia-se desde a beira do Rio, em frente à doca das frutas, onde iniciava a numeração
304
par (no 2), passava pela esquina da rua 15de Novembro195 onde, do lado oeste iniciava a
numeração ímpar (no 1) e estendia-se até a rua Coronel Genuído, onde terminava nos
primeiro tomando as duas quadras iniciais que possuem apenas números pares e que se
situam nas adjacências do Mercado e que incluem, portanto, os números que vão de 2 a
terminando na esquina da Rua Duque de Caxias, nos números 242 e 153. O terceiro
segmento estendia-se daí até a esquina da Coronel Genuíno, nos números 284 e 169.
305
Cigarros 1 1
Ferragens 4 1 5
Armeiro 1 1
Alfaiate 10 1 11
Sapataria 8 1 9
Encadernação 2 2
Artesanato Marceneiro 2 2
Modista 4 4
Colchoeiro 2 2
Ferreiro 3 3
Ourives 1 1
Fáb. De 3 3
Armador 1 1
chinelos
B ar b ear ia
M iud ezas
20
L. d e máq uinas
L. d e F azend as 15
C o nf eit ar ia
10
C ig ar r o s
5
Sap at ar ia
0
C o lcho eir o Seg ment o 3
atacado e a varejo. Entre outras menos expressivas, três lojas de fazendas ainda
integram este segmento, além de quatro ferragens. Ou seja, é um espaço marcado pelo
grande comércio.
estabelecimentos, voltados a grupos com alto poder de compra: jóias, florista, tapeçaria,
que seja um espaço exclusivo destes grupos: há, também, tavernas, ferreiro e
306
marceneiros. De qualquer forma, é um espaço que se diferencia dos outros: este
terceiro segmento possui apenas três atividades econômicas (2,68 % do total), o que lhe
confere uma feição mais residencial: uma loja de fazendas, um alfaiate e uma sapataria.
Além disto, aqui a densidade de edificações é menor em relação aos demais segmentos.
A rua Jerônimo Coelho não foi segmentada. Verificou-se que ali só haviam um
Por fim, a rua Andrade Neves, que também não foi segmentada em função de
suas dimensões (apenas duas quadras) mostrou uma grande intensidade de atividades:
Loja de Fazendas 15
Botequim 7
Hotel 3
Taverna 5
Quitanda 1
Açougue 1
Depósito 1
Pensão 1
Funilaria 1
Sapateiro 7
Colchoeiro 1
Torneiro 2
Fábrica de Café 1
Marceneiro 9
Com isto é possível perceber algumas áreas que mostram uma clara tendência à
O comércio que visava os grupos sociais mais abastados localizou-se, por sua
1895, como no nível da prática: dos seus limites para o sul localizaram-se as áreas mais
residenciais (e de residências mais simples, como vimos no capítulo 2); para o norte, as
Floriano.
Ainda que houvesse um grande esforço para varrer cortiços e pobres da área
central, ao mesmo tempo que parte do grupo social mais rico procurava afastar-se dali
indo construir suas residências nos arraiais, a verdade é que o centro da cidade é, neste
fim do século XIX, uma paisagem composta por múltiplas expressões de grupos
308
socialmente distintos que se misturavam ali. Muitos ricos continuavam morando em
suas belas, grandes e elegantes casas, junto a pequenas edificações de porta e janela e,
309
Sobrado e Casa Térrea localizados no início da rua Riachuelo
Foto de Virgílio Calegari – Final do século (FSB - MJJF)
erguidas lado a lado às do “Zé Povinho”. Dividiam ruas e praças com eles e, mesmo,
310
com a “escória” dessa sociedade. Olhavam as mesmas vitrines (uns compravam, outros
não, é certo), viviam num espaço compartilhado (tudo muito incômodo, é verdade). O
discurso burguês, por um lado bradava: ordem, estética, moral e higiene198 (entenda-se,
moral. De outro, gritava: todos os homens são iguais sem distinção de raça,
imaginário social da época. Os modelos urbanísticos surgidos neste período “devem ser
higienista, o modelo
198
Sobre isto ver o jornal A Gazetinha.
194 É bom recordar que até algum tempo não havia homem livre disposto a carregar suas próprias
compras.
200
O modelo Haussmanniano foi uma expressão do racionalismo acadêmico francês adotado no projeto
de configuração de Paris na segunda metade do século XIX (BELLO, op. cit:47).
311
nova estrutura viária que adequassem funcionalmente a cidade, além de enfatizar a
questão estética (Ibidem). Neste sentido, também Porto Alegre inseriu-se num amplo
cenário” (Ibidem).
Ainda que muitos aspectos ligados a este modelo pudessem ser vistos no final
utilização da linguagem eclética nas fachadas dos prédios mais ricos, etc., é preciso
identificação das ruas com nomes de generais, marechais, major, etc., resultante (os
nomes) da vitória da República e dos militares, e na numeração das casas, merece ser
examinado. Ele nos indica que os espaços da cidade ainda não haviam sido, na prática,
proclamavam esta reordenação. Assim, conforme já foi dito antes, a numeração dos
século, tentar encontrar uma casa através do nome da rua e do seu número, sem possuir
nenhuma outra informação, devia ser um exercício muitas vezes destinado ao fracasso.
312
letreiros das esquinas” (Coruja, op. cit.: 16) e os moradores da cidade sempre
ignoravam. É o caso da Rua da Praia, que sempre foi (e é) chamada de Rua da Praia,
ainda que seu nome primitivo tenha sido rua da Graça e depois Andradas (Idem.: 31). É
1883 e, por nunca ter sido chamada assim, tornou-se novamente Praça da Alfândega em
Lei Municipal de 1979 (Franco, 1998: 23). A rua Marechal Floriano foi conhecida como
José Inácio) ainda é chamada assim por alguns. E o que dizer da Praça da Matriz?
de fronteiras mais rígidas a uma lógica relacional que unia e hierarquizava os espaços.
Assim, a lógica do fim do século é esta: algo que poderia ser expresso como
senhorial e escravista.
201
Esta racionalidade encontrou canais de expressão na ciência através de Darwin, Marx, Comte e outros.
313
314
315
Planta Cadastral de Porto Alegre – Breton 1881
316
Planta Cadastral de Porto Alegre de 1895: folha 3
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Planta Cadastral de Porto Alegre, 1895: folha 4
318
Planta Cadastral de Porto Alegre, 1895: folha 5
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CONSIDERAÇÕES FINAIS:
articulação do espaço urbano na área central de Porto Alegre, e as regras que lhe eram
Largos tornaram-se praças, fontes viraram chafarizes, ruas foram iluminadas, fachadas
mais públicos ainda no terceiro quartel do século XIX, atingem as fachadas das casas
mais ricas no final do século e o interior dessas casas e as fachadas daquelas ligadas a
grupos sociais mais pobres, apenas nas primeiras décadas do século XX.
que informaram não apenas status, mas também valores dos grupos sociais ligados a
elas.
A aparência sóbria das casas coloniais foi sendo modificada, com a adição de
320
estruturas da sociedade que resultaram na alteração dos grupos que detinham o poder
quando poder econômico e político e a posição social eram dados pela propriedade de
de casas ligadas a grupos sociais diversos: aparece nos sobrados mais comerciais,
assobradado junto à Praça da Matriz. Ele foi, sem dúvida, mais importante nos prédios
públicos.
afirmação social e política frente aos demais grupos. Além de status econômico, as
fachadas comunicaram valores estéticos deste grupo, bem como uma nova visão de
mundo e de formas de viver, que incluíram uma outra concepção de casa e de cidade,
A análise dos espaços mostrou que a cidade do início do século possuía uma
diferenciação espacial diversa daquela que ocorreu no final dos oitocentos. Nas ruas,
nas praças, nas igrejas, misturavam-se grupos sociais diversos e atividades também
diversas. Casas ricas conviviam com casas pobres e as casas destinavam-se tanto à
moradia quanto a outras atividades, que incluíam o comércio no andar térreo dos
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e quitandeiras, nobres e prostitutas, se contrapunham diferenças sociais altamente
relações pessoais, ao lado de uma hierarquia social rígida configurava uma lógica que,
não se vendia tudo em armazéns, como antes, havendo lojas de fazendas, de roupas, de
jóias, etc. Havia lugares para ricos e para pobres: restaurantes e tavernas, confeitarias e
provavelmente, casas de madeira e outros materiais menos nobres que não sobreviveram
rua Marechal Floriano. É neste espaço que aparece, também, uma maior concentração
comerciais e artesanais são mais raras. Da mesma forma, as casas de porta e janela estão
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localizadas mais à sudoeste de península, onde as atividades econômicas também são
em menor número. No entanto, existem lugares que foram compartilhados por vários
Como se tentou demonstrar, apesar de ter ocorrido, neste final de século, uma
clara tendência a diferenciar espaços numa lógica racional, há, ainda, uma clara mistura
A par disto, não se pode esquecer também que a Porto Alegre do fim do século
XIX era uma cidade onde o capitalismo industrial não havia se instaurado plenamente.
Pelo contrário, com uma indústria incipiente, o capital predominante era o comercial. A
economia da cidade.
Tudo isto vai no sentido de demonstrar que subjacente a esta estrutura espacial e
a esta ordenação dos espaços, estava uma lógica que combinava dois códigos, que não
sociedade moderna e burguesa não era, portanto única. Neste sentido, o estudo do
através de suas ações que acabaram, em última instância, afetando o mundo material. O
323
registro histórico aponta para a existência de um espaço reordenado, enfatizando a
século XIX. Em cada momento ele nos fala da vida das pessoas que o criaram e que o
jornalistas e escritores.
classificavam seu mundo, está na possibilidade de, assim, reconhecer diferenças que
sentimento de quem acaba de ouvir uma piada e com grande sensação de superioridade,
a história da fonte, do cágado e da sentinela. Ela não é uma piada. Na verdade, trata-se
de um pequeno drama cotidiano de uma sociedade que, a sua maneira, construiu sua
procurou afastar esses aspectos, voltando-se para o comum, o habitual, àquelas coisas
324
que compuseram o cotidiano dos habitantes da cidade no passado e com as quais
convivemos, agora ressignificadas, no nosso dia a dia. Procurou-se mostrar como não só
onde outrora existiu uma habitação, podem conter riquíssimas informações, possuindo
um valor documental que precisa ser reconhecido. Esta colocação possui fortes
implicações não apenas do ponto de vista científico, mas principalmente no que tange às
Por outro lado este trabalho pretendeu ser um ponto de partida para a realização
começaram. Com alguma sorte, quando estão iniciando. Isto dificulta qualquer tipo de
Assim, esta pesquisa buscou, de alguma forma, fornecer subsídios a estas futuras
intervenções. Para isto, houve a preocupação em levantar uma série de dados sobre as
realizadas, data mais remota de ocupação do lote, entre outras informações que,
Acredita-se que, com isto, é possível partir de elementos que favoreçam avaliar
de forma criteriosa as áreas que devam merecer uma investigação mais profunda, ou
325
quais devam ser prioritárias, levando em conta os diversos objetivos que podem pautar
uma pesquisa.
vestígios materiais do século XIX sem que, no entanto, possuíssem fachadas. Eles não
fazem parte deste trabalho, mas foram registrados considerando-se sua grande
importância para a realização de estudos futuros, e integram uma pesquisa que vem
sendo feita pelo Museu Joaquim José Felizardo, sob a coordenação da arqueóloga
arqueológico de cada unidade. Pelo seu grande interesse e importância, anexei as fichas
a este trabalho, com a devida autorização dos demais pesquisadores envolvidos nele.
das fachadas das casas, a fisionomia de praças e ruas, as funções dos lugares, as relações
entre eles, a configuração dos espaços, tudo isto foi sendo modificado no transcurso do
século XIX, ao mesmo tempo que os sentidos atribuídos a lugares e espaços também
mudavam.
326
No processo de transformação de uma sociedade senhorial e escravista para
327
BIBLIOGRAFIA:
I – Fontes Primárias:
1) Manuscritas:
Livro Caixa da empresa Fraeb e Cia., 1830 – Arquivo Particular Família Thiesen
2) Impressas:
2.1) Legislação:
2.2) Jornais:
328
2.3) Relatos e Descrições de Viajantes e Cronistas e Outros:
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do Livro, s/d.
ISABELLE, Arsène – Viagem ao Rio Grande do Sul (1833 – 1834). Porto Alegre,
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3) Outras:
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II -Fontes Secundárias:
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