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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

AS PAISAGENS DA CIDADE: arqueologia da área central da Porto Alegre do século

XIX.

Beatriz Valladão Thiesen

Trabalho apresentado como requisito parcial para a obtenção do título


de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História, área de
concentração em Arqueologia da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, sob a orientação do Pro. Dr. Arno Alvarez Kern.

Porto Alegre, setembro de 1999.

1
Para Waldemar Thiesen, meu avô (em memória daquelas
manhãs quando andávamos pela cidade do Rio Grande e eu, ainda menina,
podia ouvir as histórias que ele contava sobre as construções antigas, as
lápides do cemitério ou as bancas do mercado. Mais tarde, no seu escritório,
aprendia que os objetos – o barômetro, o tinteiro, o relógio de parede, as
moedas e os selos das coleções – contavam sobre gentes que haviam feito
tantas coisas) e, também, para Fernando Lopes Thiesen, meu pai e Zoah
Valladão Thiesen, minha mãe. Porque me ensinaram o prazer e a
importância de conhecer o que passou. E porque me mostraram, com o
exemplo de suas vidas, que é preciso abrir os próprios caminhos, romper os
próprios limites ...e tantas vezes recomeçar. (“Quando abrir a porta e
assomar à escada, saberei que lá embaixo começa a rua; não a norma já
aceita, não as casas já conhecidas, não o hotel em frente; a rua, a floresta viva
onde cada instante pode jogar-se sobre mim como uma magnólia, onde os
rostos vão nascer quando eu os olhar, quando avançar mais um pouco,
quando me arrebentar todo com os cotovelos e as pestanas e as unhas contra a
pasta de tijolo de cristal, e arriscar minha vida enquanto avanço passo a passo
para ir comprar o jornal na esquina.” Julio Cortázar)

Aos meus filhos

Guilherme (“A mim ele ensinou-me tudo.


Ele me ensinou a olhar para as coisas.
Ele me aponta todas as cousas que há nas flores
E me mostra como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.”
Fernando Pessoa)

&

Vitória (“Obrigada, meninazinha, por esse olhar confiante


Belo teu beijo como uma estrelinha...
Há muito que eu não me sentia assim, tão bem
comigo...”

(Mário Quintana)

...que me ensinaram a ser feliz.

2
AGRADECIMENTOS

A todas as pessoas que foram envolvidas por mim neste trabalho, sou grata. Embora

seja um tanto injusto não mencionar todas, gostaria de expressar meu particular

reconhecimento a algumas.

Minha gratidão é especial para com a arqueóloga Me. Fernanda Tocchetto, com quem

me encontrei, depois de muitos anos, num domingo de primavera de 1996 no Brique da

Redenção. Foi ela quem me incentivou a voltar para a Arqueologia, foi ela quem primeiro me

mostrou como poderia ser interessante fazer um estudo de Arqueologia Histórica Urbana. Os

primeiros textos e as primeiras idéias desenvolvidas neste trabalho foram discutidos com ela.

E nossas discussões duraram o tempo que durou esta pesquisa (e há de durar muito mais).

Trabalhamos, percorremos muitas ruas, tomamos muito café (ela chá) juntas. Ela apresentou-

me pessoas, abriu espaços, facilitou todas as coisas. Agradeço por tudo isto, e, acima de tudo,

pela sua grande generosidade e amizade: aquela, para todas as horas.

Muitas pessoas deram-me boas idéias e me forneceram excelente bibliografia, em

especial o arqueólogo Luiz Cláudio Symanski, a quem sou muito grata.

Algumas outras, além de me conseguirem textos excelentes, discutiram os capítulos

comigo e, muito mais que colegas, foram grandes amigos: aos arqueólogos José Alberione

Reis, Martial Pouguet, Maria Farias, Cristiane Oliveira da Costa e Sérgio Ozório, agradeço

críticas e sugestões mas, sobretudo, a amizade traduzida no interesse, disponibilidade e nos

“bons conselhos”.

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Houve aquelas que supriram minha falta de conhecimento ou agilidade em alguns

ramos: agradeço à fotógrafa Daniela Terra Vasquez pelas fotos das casas e a Pedro Ramos

pelas da Planta Cadastral de 1895, à Mirian Carle pela digitação de grande parte do texto e

montagem final deste trabalho, a Cesar Kieling pela finalização gráfica dos mapas e ao Diogo

Menezes da Costa pelas tabelas e gráficos.

Sou muito grata ao Professor Dr. Klaus Hilbert, não só pela bibliografia, pelas dicas e

boas idéias, mas também por ter me encorajado a vencer uma certa fobia em relação aos

computadores, o que favoreceu a obtenção de informações que não teriam sido possível obter

de outra forma, de maneira tão rápida.

Um reconhecimento especial deve ser dado ao meu orientador, Professor Dr. Arno

Alvarez Kern, responsável pela organização dos primeiros cursos de extensão em

Arqueologia na PUCRS, na década de 1980 e, subseqüentemente, pela organização desta área

de concentração dentro do curso de Pós-Graduação nesta Universidade, que forneceram, em

um, as primeiras noções do nosso ofício e, em outro, a necessária qualificação para exercê-lo.

Agradeço, ainda, a orientação dada a esta pesquisa e a sua confiança em mim como

pesquisadora, depois de tantas idas e vindas.

Meu reconhecimento estende-se às secretárias do curso e do CEPA, Rosana Sanches,

Carla Carvalho Pereira e Márcia Lara da Costa, sempre prontas a quebrar algum galho.

Ao Museu Joaquim José Felizardo, agradeço todo apoio institucional e aos seus

funcionários, as informações, a disponibilidade e toda ajuda que me concederam. Essas

pessoas fizeram com que o trabalho de pesquisa se tornasse mais ameno e mais interessante.

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Sou muito grata, ainda, ao pessoal da EPAHC, pelas informações que me forneceram e

aos funcionários do Arquivo Público Municipal e do Arquivo Histórico Moisés Velhinho,

pela paciência que tiverem em explicar “n” vezes o funcionamento e organização das coisas.

Agradeço a CAPES, pela bolsa que me concedeu, viabilizando, o curso e a pesquisa.

Seria extremamente injusto deixar de reconhecer o trabalho e a dedicação de Eliane

Luft: por seu carinho e atenção para com os meus filhos durante as minhas ausências, por

algum café quentinho no meio de uma tarde fria e, até, por ter se prontificado a copiar um

documento, quando eu não podia faze-lo, minha gratidão.

Quero agradecer, finalmente, aos meus pais, pelo esforço que realizaram para segurar

a barra do dia a dia, com apoio material e emocional, pela confiança e pelo incentivo. Sem

eles, certamente, este trabalho teria sido impossível.

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ABREVIATURAS:

AHMV – Arquivo Histórico Moisés Velhinho


APM – Arquivo Público Municipal
CPM – Código de Posturas Municipais
FSB – Fototeca Sioma Breitman
MCSHJC – Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa
MJJF- Museu Joaquim José Felizardo
SMOV – Secretaria Municipal de Obras e Viação

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 10

1. A CONSTITUIÇÃO E EXPANSÃO DA PAISAGEM URBANA DE PORTO

ALEGRE........................................................................................................................ 43

2. OS LUGARES............................................................................................................ 80

2.1 As Estruturas Arquitetônicas.......................................................................... 81

2.1.1 As Casas: A Arquitetura Vernácula........................................................ 86

2.1.2 A Arquitetura Acadêmica....................................................................... 222

2.2 As Ruas, as Praças e Outros Lugares............................................................. 236

3. OS ESPAÇOS............................................................................................................. 266

3.1 Os Espaços da Porto Alegre do Início a Meados do Século XIX.............. 269

3.2 Os Espaços da Porto Alegre do Final do Século XIX.................................... 278

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................ 323

BIBLIOGRAFIA............................................................................................................ 306

ANEXO........................................................................................................................... 308

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ÍNDICE DE MAPAS

- Unidades Arqueológicas Levantadas na Área central de Porto Alegre,

Remanescentes do Século XIX...................................................................................... 265

- Distribuição de Atividades Sobre a Planta de 1839.................................................... 318

- Distribuição de Atividades Sobre a Planta de 1896.................................................... 319

- Planta Parcial de Porto Alegre de 1881 - Breton......................................................... 320

- Levantamento Cadastral de 1895 – Folha 3................................................................ 321

- Levantamento Cadastral de 1895 – Folha 4................................................................ 322

- Levantamento Cadastral de 1895 – Folha 5................................................................ 323

8
Poderia falar de quantos degraus são feitas as
ruas em forma de escada, da circunferência dos
arcos dos pórticos, de quais lâminas de zinco são
recobertos os tetos; mas sei que seria o mesmo
que não dizer nada. A cidade não é feita disso,
mas das relações entre as medidas de seu espaço e
os acontecimentos do passado [...]

Mas a cidade não conta seu passado, ela


o contém como as linhas da mão, escrito nos
ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos
corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-
raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento
riscado por arranhões, serradelas, entalhes,
esfoladuras. [...]

As cidades também acreditam ser obra da


mente ou do acaso, mas nem um nem o outro
bastam para sustentar as suas muralhas. De uma
cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e
sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas
perguntas.
Italo Calvino

9
INTRODUÇÃO

As pesquisas de Arqueologia Histórica na cidade de Porto Alegre começaram a ser

desenvolvidas pelo Museu Joaquim José Felizardo a partir de 1994 com objetivos de

salvamento (áreas que estavam sendo ameaçadas por construções ou reformas) – como é o

caso do Solar Travessa Paraíso120, o Mercado Público, a Praça Rui Barbosa e o Solar Lopo

Gonçalves121 – ou direcionadas para a efetivação do Corredor Cultural da Rua da Praia,

como é o caso da escavação na Praça Brigadeiro Sampaio. Todas essas pesquisas vinham

sendo realizadas tratando cada uma dessas unidades como um sítio arqueológico autônomo.

Em 1997, o Museu Joaquim José Felizardo elaborou o Programa de Arqueologia Urbana do

Município de Porto Alegre122 que pretende “integrar as diversas pesquisas sobre

patrimônio arqueológico e histórico visando a compreensão dos processos de apropriação

dos espaços, modos de vida e relações dos diferentes grupos humanos que ocuparam este

território assim como a valorização e divulgação destes testemunhos” (Tocchetto, 1997: 3)

Este programa, em fase de implementação, toma a cidade como um sítio

arqueológico, e é através desta perspectiva que a proposta que apresento se coloca. O

conceito de “cidade-sítio” (Cressey e Stephens,1982:50) é fundamental por permitir

estabelecer inter-relações das diversas unidades presentes na cidade vista como um todo.

120
O Solar da Travessa Paraíso foi escavado por Cláudio B. Carle em projeto junto ao Museu Joaquim José
Felizardo e Equipe do Patrimônio Histórico do Município - EPHAC.
121
. O Solar Lopo Gonçalves foi escavado em outro momento por Luiz Cláudio Pereira Symanski para a
realização de sua dissertação de mestrado (apresentada em 1997).
122
Este Programa tem a coordenação de Fernanda Tocchetto e a colaboração de Luiz Cláudio Symanski e
Shirley M. dos Santos.

10
No entanto, o conceito de cidade-sítio, em si, não dá conta do problema de pensar o sítio-

arqueológico-cidade como objeto a ser compreendido. É preciso, para além disto, situar a

problemática da pesquisa na própria questão urbana. Isto significa ver a cidade para além

de um cenário onde diferentes fenômenos se desenrolam, e tentar compreender a influência

que uma cidade pode exercer nesses fenômenos. Isto não quer dizer tomar a cidade como se

ela fosse causa última e única do que ocorre aí: cidade, por si só, não tem poder de criar ou

gerar mudanças sociais e culturais123. Significa, de forma diversa, considerar a importância

que o processo de urbanização tem em muitos aspectos da vida social e tomar a cidade

como algo a ser compreendido sob uma perspectiva histórica, vendo-a como parte de uma

sociedade mais ampla, observando as influências que diferentes cidades, situadas em

determinado tempo e determinado local, podem exercer sobre a sociedade ali estabelecida.

Assim, penso que fazer Arqueologia Urbana, no sentido estrito da expressão, não é

fazer arqueologia na cidade, mas fazer arqueologia da cidade124. Considero que se não

estivermos vendo a cidade como um sítio cujas diversas partes estão inter-relacionadas, se

não considerarmos que ela está inserida em uma totalidade maior, situada em um contexto

histórico e espacial específico, e que pode influenciar de diferentes maneiras os fenômenos

123
Segundo Oliven, o enfoque que vê a cidade como uma variável explicativa, ou “como uma potência social
capaz de gerar com sua influência os mais variados efeitos na vida social” (1984:20), está ligado à corrente
da ecologia humana representada por alguns membros da Escola de Chicago, que inaugurou a Sociologia
Urbana. Esta abordagem ecológica é essencialmente a-histórica, postulando uma relação causal entre formas
ecológicas (cidades) e estruturas sociais e culturais. Sobre os diversos enfoques utilizados para estudar a
cidade do ponto de vista sociológico, ver Oliven, 1984.
124
Staski (1982:97) definiu Arqueologia Urbana “como o estudo das relações entre cultura material,
comportamento humano e cognição num assentamento urbano”. Este autor lembrou que muitos arqueólogos
discutiram a questão da arqueologia na cidade versus arqueologia da cidade, e considerou que a “primeira
consiste em dirigir questões de pesquisa num assentamento urbano, enquanto a segunda implica em utilizar
métodos arqueológicos para contribuir com a compreensão do fenômeno urbano”. Juliani (1996), seguindo a
proposta de Cressey e Stephens (1982) aborda a “cidade-sítio” sob esta última perspectiva.

11
sociais e culturais que ocorrem aí, então estamos fazendo arqueologia na cidade e não da

cidade.

A opção por este tipo de abordagem relaciona-se diretamente à possibilidade de

realizar uma nova leitura do fenômeno urbano, ou seja, olhar a cidade pelo viés

arqueológico. Aqui surgem condições de reconstituir o sentido deste importante aspecto da

cultura material – o espaço urbano – “solidariamente com a vida cotidiana da cultura”

(Vogel e Mello, 1984:47-8), uma vez que este é o espaço onde se desenrolam as rotinas, o

habitual da cidade, onde se expressam diferentes grupos e diferentes valores. Esta

Arqueologia Urbana permite, assim, a reapropriação pelos indivíduos que vivem na cidade,

do seu patrimônio, da sua história, da sua dimensão temporal, da sua memória. “A grande

virtude da Arqueologia Urbana seria, pois, a de reconstituir para os membros da

sociedade em questão, o sentido de sua existência sócio-histórica, portanto, de sua

identidade”(Idem).

O trabalho que apresento de uma Arqueologia Urbana procura compreender

processos culturais pelo estudo sincrônico e diacrônico das organizações espaciais de uma

sociedade em um período histórico. Tratou-se de buscar uma perspectiva transdisciplinar125

onde são utilizados conhecimentos gerados no campo da história, antropologia, arquitetura,

etc., mas mantendo o olhar que é específico da Arqueologia e buscando responder questões

que lhes são próprias. Esse olhar implicou em considerar a cidade como um sítio, cujos

artefatos possuem formas e técnicas próprias que correspondem a idéias da sociedade que

125
O termo interdisciplinaridade parece ter perdido seu sentido original na própria prática do trabalho
científico, tornando-se uma forma de, segundo Reis (1997:52), tomar “empréstimos a outras disciplinas”,
realizando uma justaposição de abordagens. Em contraposição a isto, o termo transdisciplinaridade tem sido
empregado, segundo este autor, no sentido de ir “a outros campos, abrangendo-os [e voltar] ao território
informacional obtido na própria arqueologia para co-produzir o conhecimento”.

12
os produziu. Talvez o grande desafio deste tipo de arqueologia seja o de não perder de

vista, no emaranhado de informações fornecidas pelas diversas disciplinas e por uma

imensa gama de documentos escritos (primários e secundários) e iconográficos, a

especificidade do trabalho arqueológico: o estudo do comportamento humano através dos

seus vestígios materiais.

A pesquisa partiu do levantamento sistemático dos elementos arqueologicamente

significantes que compunham o espaço urbano na área central de Porto Alegre no século

XIX. Em áreas onde as escavações não são possíveis (ninguém teria a pretensão de realizar

“open areas” no centro de Porto Alegre) e onde as possibilidades desse tipo de intervenção

reduzem-se a escavações pontuais, muitas vezes dependentes de obras públicas e com

caráter de salvamento, é necessário buscar outras formas de chegar ao objeto. Além disto,

como bem colocou Tânia Andrade Lima (1989:96), referindo-se às diferenças entre a

pesquisa arqueológica histórica e a pré-histórica :

“a maior complexidade cultural, as tecnologias avançadas e um


menor espaço de tempo decorrido faz com que o arqueólogo
histórico atue mais sobre o terreno, já que os vestígios são
eminentemente estruturas verticais, construções e outros tipos de
depósitos não encobertos, podendo em muitos casos dispensar a
escavação. Daí a necessidade do desenvolvimento de abordagens
específicas para sítios históricos, já que, em muitos casos, as
meticulosas técnicas utilizadas por pré-historiadores podem ser
totalmente ineficientes”.

Neste caso, em termos de técnica de campo, a prospecção não é mais uma etapa do

trabalho a ser realizada em função da escavação. Aqui, esta prática é o próprio trabalho de

campo e utiliza a observação dos vestígios de superfície, através de caminhadas, em

13
associação ao uso de mapas, plantas, fotografias, com o objetivo de obter, de forma mais

ampla possível, as informações sobre o objeto, o sítio, prescindindo das escavações. A

própria Carta Internacional para a Gestão do Patrimônio Arqueológico – ICOMOS,

recomenda, em seu capítulo 4º (In: SAB, 1996:43), que se obtenha o maior conhecimento

possível dos sítios, sua extensão e natureza. Kern (1996) realizou uma tradução dos

diversos critérios existentes neste documento, que ressalta a importância dos “inventários

do patrimônio arqueológico, existente ou em potencial,[que] são instrumentos de trabalho

essenciais para que se possam elaborar as diversas estratégias de proteção, nos inúmeros

sítios arqueológicos” (Idem:29). Além disto, a Carta aprovada em Lausanne, em seu artigo

5º (IN: SAB, op. cit.:43), é clara: técnicas não destrutivas devem prevalecer, sempre que

possível, sobre as destrutivas.

“As intervenções arqueológicas em um sítio, implicam em


diversos tipos de abordagens, tais como a coleta superficial de
amostras, as sondagens em áreas limitadas, a observação aérea e a
observação sobre o próprio terreno” (Kern, op. cit.:29)

Vogel e Mello (1984: 47 –8) também enfatizaram que:

“embora não se deva confundir arqueologia com escavação, o


propósito de investigar o urbano partindo de uma perspectiva
arqueológica vem a ser o de exumar, no sentido metafórico,
trazendo-os à luz e evitando destruí-los ou entregá-los ao
esquecimento [...] sistemas de relações que fundam a lógica
operativa e simbólica de espaços, elementos, conjuntos e
equipamentos urbanos”.

14
Essa arqueologia que não envolve necessariamente escavação126, essa arqueologia

do andar, do observar, é a arqueologia que tenho empregado para reconhecer os espaços da

cidade. E é no andar e no olhar a cidade que é possível constatar algo simples, porém

básico: os grupos sociais demarcam seus espaços através da construção de fronteiras

(visíveis ou não) e essas fronteiras que separam e dividem espaços são percebidas e

classificadas por oposições (casa - rua, público – privado, nosso – deles, sagrado –

profano,...)127. É assim que a cidade se estrutura em ruas, praças, mercados, casas. Lugares

onde se vive, mora, comercia, reza, brinca. Espaços que são, para além da coisa física,

como bem observou Roberto Da Matta (1987:59), “esferas de sentido” “que contêm visões

de mundo ou éticas que são particulares”. Os grupos sociais, e cada sociedade, precisam,

assim, ainda seguindo este autor, de uma gramática de espaços128 para poder existir. Ou,

dito de outra forma, as sociedades precisam realizar uma ordenação lógica entre essas

esferas de sentido (Da Matta: 1983, 75). E aí se chega ao problema central desta pesquisa.

As sociedades articulam seus espaços através de atividades que, segundo Da Matta

(1987: 39) se ordenam por “oposições diferenciadas, permitindo lembranças ou memórias

126
Isto não significa perder de vista a importância da escavação na pesquisa arqueológica. Pelo contrário,
considero-a fundamental no sentido de que permite aprofundar os conhecimentos obtidos num primeiro
momento onde se leva em conta os vestígios de superfície. Estes, no entanto, são fundamentais, até mesmo
para que se realize uma escavação criteriosa.
127
Parto do pressuposto, compartilhado com muitos antropólogos estruturalistas, incluindo Lévi-Strauss
(1975), cujas idéias derivam de argumentos originalmente formulados na lingüística estrutural –
particularmente por Jakobson (Leach, 1977:29) – que o cérebro humano possui mecanismos que o tornam
capaz de “realizar distinções +/-, para tratar os pares binários assim formados como pares afins e para
manipular essas „relações‟ como numa matriz algébrica”(Idem.:51). Assim é possível segmentar e ordenar o
mundo externo e, através da cultura, formular um sistema de contrastes próprio que pode ser ordenado tanto
na forma de uma oposição binária, quanto em gradações.
128
O termo gramática é tomado aqui como aquele conjunto de regras compartilhado por uma cultura que,
presidindo a criação de qualquer forma de expressão (seja na língua falada ou num artefato) permite que ela
possa ser aceita por qualquer membro da cultura que a produziu. Utilizo a expressão “gramática espacial” no
sentido de conjunto de regras que formam a lógica que permite uma determinada ordenação dos elementos
que compõem o sistema espacial de uma sociedade.

15
diferentes em qualidade, sensibilidade e forma de organização”. Conforme este

antropólogo, isto permite ordenar espaços, separar contextos, estabelecer atitudes. No

entanto, e mais além, o espaço entendido como esferas de sentido, constitui “a própria

realidade [...] [que] permite normalizar e moralizar o comportamento por meio de

perspectivas próprias” (Idem 51-2). Assim, o que precisamos descobrir são essas esferas de

significação social e a ordenação lógica entre elas, observando que modificações podem ter

ocorrido no transcurso do século XIX.

As perguntas que decorrem deste amplo problema são inúmeras: como se

estruturava o espaço urbano no centro de Porto Alegre? Onde estão e como se configuram

as praças, as ruas, os mercados, os espaços institucionais de poder? E como se

configuravam as casas? Como se dá a passagem do espaço privado (casa) para o espaço

público (rua), ou seja, onde estão e como são as portas, as janelas e os jardins? Como estão

ordenados e articulados esses espaços? A que grupos sociais eles estão ligados e como?

Que modificações ocorreram quanto à configuração, ordenação e articulação desses

espaços no transcurso de um processo histórico?

Para tentar responder algumas destas questões, sugiro que os diferentes grupos

sociais que constroem suas diferentes realidades e diferentes normas espaciais, buscam

“fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de ser no mundo, a

significar simbolicamente um estatuto e uma posição” (Chartier, 1991 :183) e é através de

“formas institucionalizadas e objetivadas” que é possível marcar “de modo visível e

perpétuo a existência do grupo, da comunidade ou da classe” (idem).

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Surge, daí, o conceito de representações coletivas, conforme proposto por Chartier

(1991), como uma ferramenta capaz de dar conta de uma problemática que inclui a

compreensão dos espaços centrais de Porto Alegre, sua ordenação e articulação e, portanto,

das próprias divisões e hierarquizações da organização social. As representações coletivas

são sistemas de referência que incorporam a cosmologia129 e o sistema classificatório de

uma sociedade e que orientam as práticas, as ações concretas, onde elas estão imbricadas e

onde elas se nutrem. Elas são, segundo Chartier, “as matrizes de práticas construtoras do

próprio mundo social” (ibidem). Se isto é correto, e eu penso que é, então as representações

coletivas estão na base da construção dos espaços cuja gramática encontra sua expressão

nas práticas sociais. Colocado desta forma, representações e práticas sociais são

inseparáveis: não são nem contraditórias e nem uma é mais verdadeira que a outra. São

como as duas faces de uma mesma moeda, pistas diferentes, mas complementares para se

chegar a compreender os espaços sociais.

Assim, recuperar e compreender os espaços do centro da Porto Alegre oitocentista é

um processo de reconstituição a partir de fragmentos. E que fragmentos são estes? São as

representações coletivas, inscritas nos discursos, na arquitetura, nos traçados das ruas, nos

espaços vazios. São, também, os diferentes grupos sociais que se ligam a essas

representações, e são, ainda, as práticas vividas por esses grupos que possuem, também, sua

matriz nas representações coletivas.

129
O termo cosmologia quer significar “uma teoria ou filosofia das origens e estrutura geral do universo,
seus componentes, elementos e leis, especialmente aquelas relacionadas a algumas variáveis como espaço,
tempo e causalidade. A forma como o cosmos é estruturado, afeta a religião e a ideologia” (Flannery e
Marcus, 1993:267).

17
A dificuldade de fazer esta reconstituição a partir destes fragmentos situa-se no fato

de que, por um lado, as representações não são obtidas de forma direta, ou seja, as

representações não afloram espontaneamente dos discursos. E, por outro lado, está a

questão de que os aspectos não-materiais da cultura não são necessariamente

correlacionados aos aspectos materiais desta cultura. A chave para resolver este problema

está em buscar no discurso e na prática, em instituições e em condutas, vestígios diferentes,

mas complementares, como se fossem duas faces de uma mesma moeda, levando em conta

um recorte social onde elas estão inseridas.

O problema seguinte diz respeito ao estabelecimento deste recorte social. Serão

grupos econômicos, classes sociais, grupos étnicos? É Chartier (1991:180), novamente,

quem fornece o caminho:

“É preciso, creio, recusar esta dependência que refere as


diferenças de hábitos culturais a oposições sociais dadas a priori,
tanto à escala de contrastes macroscópicos (entre as elites e o povo,
entre os dominantes e os dominados), quanto à escala das
diferenciações menores (por exemplo entre grupos sociais
hierarquizados pelos níveis de fortuna ou atividades profissionais).
De fato, as clivagens sociais não estão forçosamente organizadas
segundo uma grade única do recorte social, que supostamente
comandaria tanto a presença desigual dos objetos, como as
diferenças nas condutas”.

A proposta de Chartier é de inverter a questão e traçar a área de circulação de

objetos, formas, códigos ou normas culturais, buscando o recorte mais apropriado que

considere que as diferenciações sociais não são meramente de classe econômica, mas que

podem ser também de gênero, religiosas, profissionais, territoriais, etc. (Idem:180-1).

18
Mas para chegar a isto, precisamos, antes de mais nada, delinear o contexto

histórico onde as coisas acontecem. O contexto histórico permite identificar, avaliar e

interpretar mais facilmente os vestígios arqueológicos, ainda que os mesmos vestígios

possam levar, em contrapartida, a reavaliar e redesenhar o contexto histórico. O passo

seguinte é o de realizar um amplo levantamento das estruturas físicas, do universo material

urbano, que aqui é o objeto principal e que, em última análise, serve de suporte às

representações e local onde se dão as práticas sociais urbanas

A pesquisa arqueológica da cidade e, sobretudo, da própria cidade, reveste-se de

peculiaridades que merecem que se teçam algumas considerações, que são importantes

para esclarecer questões relativas à especificidade deste tipo de pesquisa, situando-a no

âmbito da ciência Arqueológica como um todo.

Uma das características mais marcantes do fazer arqueológico é o trabalho de

campo. Munidos de um instrumental aparentemente bizarro - pelo menos para cientistas

mais acostumados a ambientes assépticos - o arqueólogo costuma deixar sua casa e seu

cotidiano para coletar seus dados em campo. Ele busca, em geral, culturas diferentes da sua,

distantes principalmente em tempo e, na maioria dos casos, em espaço. Esse deslocamento

geográfico, associado à busca de elementos distantes temporalmente, parece ser

responsável pela imagem por demais conhecida do arqueólogo envolvido nas mais diversas

aventuras, cujos estereótipos tem sido motivo de riso e prazer, mesmo entre nós.

Percorrem-se lugares exóticos, enfrentam-se intempéries, atravessam-se oceanos e desertos

(a bem da verdade, na maioria das vezes, são apenas alguns banhados). Essa imagem

romântica tem servido, por um lado, de atrativo a muitos que se iniciam nesta ciência e, por
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outro, de elemento que inspira aversão àqueles mais ligados às bibliotecas, aos arquivos,

aos ambientes isentos de barro, água, muito sol e vários tipos de insetos.

Talvez por necessidade de demarcar fronteiras e estabelecer uma identidade frente a

outras ciências sociais – que no nosso meio acadêmico ainda insistem em considerá-la

como uma espécie de apêndice130 (desnecessário, é claro) – a Arqueologia assume e

“vende” esta sua imagem romântica e esse seu interesse pelo que poderia ser chamado de o

outro-remoto.

O estudo da própria cultura em um tempo extremamente recente, do ponto-de-vista

de quem está acostumado a tratar com milênios e com povos exóticos, é causa de, no

mínimo, um certo desdém e, às vezes, de um grande espanto131. E mais, aqui se perde a

imagem, que nos é tão cara (veja-se com que alegria essas peripécias são contadas nas

mesas de bar), do arqueólogo que se defronta com todo tipo de dificuldades, desconfortos e

intempéries a fim de salvar o que, sem ele, estaria para sempre perdido.

Pesquisar o que nos é tão familiar e tão próximo como a cidade onde nascemos e

sempre vivemos, faz com que os problemas a serem enfrentados sejam bem diferentes

daqueles que são pelo “típico” arqueólogo.

130
Kern (1996:35) argumenta: “Para muitas pessoas, inclusive profissionais de nível superior, a arqueologia
é ainda hoje apenas vista como uma técnica de pesquisa praticada por alguns especialistas. Entretanto, ela é
muito mais do que isto, pois atualmente ela adquire um papel importante como meio de cultura essencial,
base do conhecimento das Ciências Humanas e – portanto – elemento fundamental na formação de um
humanismo moderno.”
131
Esta observação refere-se particularmente ao caso brasileiro e não deve ser entendida como uma
generalização que vá além destes limites. É sabido que na Europa, por exemplo, onde a arqueologia surgiu
mais ligada à história, pesquisas como esta são cotidianas e incluem a arqueologia medieval, gallo-romana, ou
mesmo das cidades do século XIX.

20
No entanto, quem pensa que é difícil atravessar zonas alagadiças em campo,

experimente tentar observar um prédio do centro de Porto Alegre (você estará olhando para

cima) às 15 horas de uma tarde de dezembro (lembra o calor e o Natal?). Se for uma rua

onde há tráfego de carros, há o risco de atropelamento, se for onde só passam pedestres, o

risco é o mesmo, acrescentando-se que a pessoa a dizer impropérios não estará se afastando

em um carro. Além disto, há os gerentes das lojas a pedirem que se saia da frente das

vitrines e solícitos transeuntes sempre dispostos a fornecerem as mais descabidas

informações à quem eles supõem ser uma entrevistadora dos mais insólitos temas. Isto para

não falar dos terrenos repletos de caliça e lixo (atual), que se faz acompanhar de um odor

característico, e onde é preciso andar, sempre em busca de mais algum vestígio; ou, ainda,

de proprietários pouco amistosos que estariam mais felizes se você estivesse bem longe de

suas casas e terrenos. Você terá que tomar suas anotações, de preferência, caminhando (e

olhando por onde anda) e o vento que encana nas esquinas durante a primavera poderá

fazer com que folhas, fotos e mapas se espalhem por uma área que parecerá imensa, tendo

em vista os milhares de pés que ameaçam pisotear os dados recolhidos.

No entanto, os problemas não se resumem a este lado mais prosaico. Aqueles

ligados ao fato de estar pesquisando algo tão familiar foram os mais importantes. Realizar o

que os antropólogos chamam de “estranhamento” foi um exercício difícil. Não se tratava

apenas de ver com outros olhos um espaço tão conhecido, mas para além disto e como

alertou Gilberto Velho (1980:17), perceber sistemas de classificação e representações de

uma sociedade que, em muitos aspectos, é a minha própria sociedade. Colocava-se a

21
questão de enfrentar os meus próprios limites de participante de uma cultura, de um grupo

social e, portanto, com uma visão de mundo de alguma forma comprometida .

Não cabe analisar aqui esse processo de transformação do familiar em exótico132,

apenas sublinhar o fato de que a aparente facilidade de estudar um objeto já tão

“conhecido” é o que torna a tarefa mais difícil e complexa: é preciso questionar aquilo que

pela própria familiaridade parece ser o natural, na verdade, o senso-comum. É duvidar de

conhecimentos consagrados, criticar, problematizar e questionar o objeto e a si mesmo. ...e

rapidamente perceber que um povo que bebe em malgas e não em xícaras, que dorme em

minúsculas peças sem ventilação (alcovas), que compra sanguessugas importadas em

Barbearias, joga seu lixo pela porta dos fundos (e muitas vezes pela da frente) de casa, que

compra farinha, brincos de ouro e gente (escravos) no mesmo lugar (armazém) e que coloca

um cágado numa fonte (com a intenção de manter a água limpa) e um guarda para cuidar da

segurança deste cágado que, ao final, acaba morto (o cágado) por um grupo de estudantes,

é, sem dúvida, um povo muito exótico. E, então, é preciso compreender esse povo, a partir

do reconhecimento da diferença. Porque é só a partir deste reconhecimento que surge a

possibilidade de pensá-los, procurando seus próprios termos, mais que impondo nossas

categorias a eles. E foi o que tentei fazer, buscando e analisando, um pouco no sentido

proposto por Geertz (1999), as formas simbólicas em cujos termos aquelas pessoas

representaram seus espaços, bem como a suas experiências em relação a esses espaços.

Por outro lado, é preciso evitar a armadilha de tratar o objeto de pesquisa cidade-

sítio como muitas vezes alguns arqueólogos pré-históricos brasileiros tratam uma “aldeia”,

132
Sobre esta questão ver Velho (1978 e 1980) e, ainda, Da Matta (1984).

22
um sítio pré-histórico: “é preciso levar em consideração a malha de relações que [o

objeto] mantém com a sociedade envolvente: a dinâmica de um espaço não se esgota em

seu perímetro” (Magnani, 1993:48) da mesma maneira (e parafraseando Magnani), que o

significado mais amplo de uma aldeia guarani vai além dos limites da própria aldeia.

Alguns dos grandes problemas enfrentados na realização de um trabalho como o

que apresento aqui, situam-se no âmbito da própria Arqueologia. Historicamente, um dos

primeiros objetivos perseguidos pelos arqueólogos “foi a reconstituição das culturas e de

sua situação no tempo” (Kern, 1998:168). Isto implicou em atividades de campo que

privilegiaram a verticalidade nas escavações e a ênfase dos trabalhos de laboratório nas

tipologias (Idem). Em tempos mais recentes tem-se buscado a “inserção dos elementos da

cultura material em um determinado contexto estratigráfico” e suas relações com outros

contextos e outros sítios (Ibidem). Não é de hoje, portanto, que estudos de etnoarqueologia,

arqueologia regional, da paisagem, entre outros, tem enfocado aspectos como hierarquias

sociais, simbologia, crenças, intercâmbios, etc. Porém, a Arqueologia Histórica possui uma

característica especialmente marcante: “a ampliação de seus territórios, de seus campos de

atuação” (Ibidem:169). Este fato – voltar-se a um campo de estudos muito recente, a

cidade, (friso: recente no Brasil) – implica, por um lado, no surgimento de problemas

teóricos e metodológicos e, de outro, na resistência de alguns setores em aceitar este tipo de

trabalho.

Com relação aos primeiros problemas (de ordem teórico-metodológicos), as

propostas apresentadas pela arqueologia da paisagem tem se mostrado como um caminho

de grande potencial para a compreensão de sociedades do passado: as paisagens estão entre


23
as mais profícuas fontes de evidências sobre elas133. Portanto, é importante colocar alguns

pontos que estão na base da construção desta pesquisa.

Uma descrição da paisagem de Porto Alegre poderia começar assim: a cidade está

edificada a 30º01‟57” de latitude sul e 8º07‟20” de longitude oeste do meridiano do Rio de

Janeiro (só para complicar), banhada pelas águas do Guaíba. Trata-se de um lago, apesar

de seus habitantes chamarem-no de rio. O terreno onde se erguem as casas é, em parte,

sedimentar (na parte próxima ao lago), e em parte composto por rochas graníticas, que

formam um promontório. Seguindo esta linha, poderia dizer que ela está situada na

extremidade do Escudo Riograndense, descrever a geologia da área, sua vegetação e seus

aspectos climáticos. Mas não creio que estivesse dizendo muita coisa que importasse para

este estudo.

A paisagem, aqui, não tem o sentido da geografia física. O meio físico tem apenas

uma importância secundária, ainda que a paisagem possa possuir uma forma física

influenciada por fatores como o relevo e o clima. Aqui a paisagem é, acima de tudo, uma

paisagem social e ela pode – e deve – ser considerada como uma fonte importantíssima

para compreender a vida dos porto-alegrenses do passado. A paisagem não é cenário, nem

pano de fundo e “mais que um simples reflexo da organização das coisas, ou mediadora de

133
A arqueologia da paisagem vem sendo empregada no Brasil preferentemente pelos arqueólogos históricos
e pode apontar importantes caminhos para a pesquisa pré-histórica, tomando o sentido inverso do que ocorreu
na Europa, depois da pesquisas de Leroi-Gourhan do Magdeleniense em Pincenent, onde a pesquisa pré-
histórica muito ensinou à arqueologia histórica.

24
gostos, a paisagem é uma força ativa na criação, legitimação e mudança social”134

(Rubertone, 1989: 50).

Considerar a paisagem nos termos da Arqueologia, aplicando-lhe os métodos da

cultura material, implica em pensar a relação entre sujeito que faz e objeto que é feito.

Neste sentido, a paisagem tem sido tratada como artefato por muitos arqueólogos. Mark

Leone (1996), por exemplo, em seu trabalho em William Paca Garden, Annapolis,

Maryland, mostrou como ela pode ser construída para legitimar uma hierarquia social.

Neste caso específico, o arqueólogo não está tratando mais com um artefato tecnômico ou

sociotécnico, como colocou Rubertone (1989:52) muito propriamente, mas com um artefato

ideotécnico135. Muitos outros tem trilhado o mesmo caminho, embora com enfoques

diversos.

Patrícia Rubertone, como Leone e muitos outros, enfatiza as relações de

intencionalidade entre pessoas e artefatos136. Isto implica em considerar a paisagem urbana

como uma ação consciente que reflete comportamentos culturalmente determinados. Como

ação intencional, portanto como artefato, ela promove objetivos políticos, econômicos,

sociais e os expressa. Pode-se pensar, então, que através da paisagem urbana, assim

134
Os trechos que estavam originalmente em língua estrangeira foram traduzidos quando citados neste
trabalho. A responsabilidade desta tradução é minha. Da mesma forma, quando foram citados documentos
antigos, escritos num português da época, eles sofreram uma atualização ortográfica, que também é de minha
responsabilidade.
135
Binford (1962) considerou a divisão da cultura material em 3 sub-classes, tendo em vista as funções que os
artefatos desempenham em diferentes contextos: 1) artefatos tecnômicos, cuja função é fundamentalmente
utilitária, ligando-se diretamente ao meio físico e à tecnologia da cultura; 2) artefatos sóciotécnicos, que tem
seu contexto funcional primário no sistema social ; e 3) artefatos ideotécnicos cujo uso liga-se a contextos
ideológicos do sistema social. Deetz (1977:51) chamou a atenção para o fato que os mesmos artefatos podem
ter funções em todos os três níveis simultaneamente.
136
Rubertone considera que a paisagem é aquela porção do terreno “que tem sido formada e modificada por
ações humanas e desenhada conscientemente para fornecer moradia, acomodando o sistema de produção,
facilitando o transporte, marcando diferenças sociais e expressando estética” (Rubertone, 1989: 50).

25
definida, podemos chegar a saber sobre estruturas sociais, valores culturais e outros

aspectos não materiais da cultura.

Não há como duvidar que existe uma relação de intencionalidade entre o homem e o

artefato-paisagem-urbana. E se não fosse assim não poderíamos pensar em conhecer, pela

análise da cultura material, aspectos não materiais da cultura. 137 No entanto, Upton (1992)

chamou a atenção para o perigo de reduzir essa paisagem ao resultado de uma relação

puramente intencional. Para ele, e eu concordo, é necessário entendê-la para além disto,

“para o produto incidental de uma ação cultural” (Idem: 52). Não se trata, portanto, de

“examinar simples relações entre intenção mental e criação física, entre a mente e o

artefato (mas) o estudo da cidade como cultura material obriga a investigar as relações

recíprocas entre os homens e as alterações humanas do ambiente, levando em conta

intenção e reação, ação e interpretação” (Ibidem).

Retomando, então, uma descrição da paisagem portalegrense, eu diria que, para este

fim, importa menos saber se o Guaíba é um rio ou um lago e interessa mais a forma como

ele é percebido e utilizado pelos habitantes da cidade e qual a sua importância para eles. É

preciso considerar os aspectos geográficos, mas apenas na medida de sua relação com as

gentes do local. Por exemplo, descrevendo alguns aspectos de Porto Alegre na década de

1830: no ponto mais alto do promontório ergueu-se a Matriz e o Palácio138, local que é

137
Deetz, ao definir cultura material como aquela parte do meio físico ao qual o homem dá forma segundo um
conjunto de planos culturais, chamou a atenção para o fato de que um dos seus maiores benefícios é”fornecer
acesso ao pensamento daqueles responsáveis por sua criação”(Deetz, 1988 : 220)
138
Ainda que as Ordenações do Reino estabelecessem diretrizes quanto a localização de edifícios públicos e
da Igreja Matriz, bem como algumas regras gerais para o traçado urbano (Rhoden, 1999:177), o que importa
aqui é que este traçado e esta localização correspondem às idéias, aos planos culturais, para utilizar a
expressão de Deetz (op. cit) que estão na base da construção dessa paisagem.

26
considerado como o ponto mais nobre da cidade – o Alto da Praia. Lá embaixo, junto ao

“rio”, está o Largo da Quitanda, onde se pode ver os negros a venderem frutas, charque,

lenha, hortaliças e outros gêneros. O Largo está junto ao prédio da Alfândega e ao trapiche,

onde os comerciantes da cidade se reúnem para conversar e negociar e por onde chegam e

saem os produtos de importação e exportação. Um pouco mais a oeste, e também junto ao

“rio”, está o Largo da Forca, situado próximo ao Arsenal de Guerra, aonde se chega

descendo o “morro” por um dos estreitos e sujos becos que ligam a elegante Rua da Igreja

à comercial e militar Rua da Praia. Assim, colocado o entendimento acerca do que sejam

as paisagens, o problema básico que precisa ser resolvido é de que forma podemos

reconhecer essa paisagem do passado.

Com óbvios fins analíticos proponho examinar a paisagem decompondo-a em dois

elementos: lugares e espaços139.

Os lugares são aqueles elementos onde mais freqüentemente os arqueólogos

costumam centrar suas pesquisas: trata-se de onde as coisas estão, ou, dito de outra forma,

daqueles locais cuja materialidade torna-os unidades arqueologicamente identificáveis

pelos seus vestígios no solo. Pode ser uma casa, uma rua, uma praça, uma lixeira coletiva.

O lugar é algo concreto e mensurável. Possui limites nítidos e bem determinados e pode ser

139
Esta divisão já foi proposta muitas vezes. Rubertone (1986) propôs uma análise utilizando essas
categorias e propugnando uma visão que englobasse as ligações entre ambas. Orser (1996) também
considerou esta divisão. Se, por um lado, parece que todos estão de acordo com o que seja lugar ( definido de
forma ampla como onde as coisas estão), o mesmo não acontece com espaço. Rubertone considera como
“zonas intersticiais”, “arredores”, ou “adjacências”, da mesma forma que Dewar (apud Rubertone, 1986:
124), que definiu como “vizinhança”, ou imediações do lugar. Orser, por sua vez, considerou o espaço de
outra forma: compartilhando do mesmo sentido amplo de “onde as coisas não estão”(Orser, 1996 : 135),
observa, que espaço é uma realidade física, ligada ao lugar, espécies de “manchas” onde alguma coisa está
situada. Orser introduz, ainda, o conceito de espacialidade, entendida como uma realidade vivida e não como
uma realidade natural dada. Para Lefebvre (apud Orser, op.cit.:137), espaço pode ser algo abstrato, sem a
materialidade do lugar, mais ligado à elementos de ordem mentais.

27
definido enquanto objeto (espacial) de práticas sociais (Meneses: op. cit., 15). O estudo dos

lugares enfatiza as propriedades formais, os arranjos e as relações dentro de cada unidade e

entre elas. Os estudos de padrão de assentamento encontram-se dentro desta perspectiva

(Rubertone, op. cit. :124).

O espaço, vai além do físico e mensurável. Antes de tudo, ele designa “esferas de

ação social, províncias éticas dotadas de positividade, domínios culturais

institucionalizados e, por causa disto, [é capaz] de despertar emoções, reações, leis,

orações, música e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas” (Da Matta, op. cit.:

15).

O espaço tem, assim, características imateriais que fazem com que a tarefa de

reconhecê-los seja bem mais complexa que no caso dos lugares. O espaço inclui um

componente imaginário fundamental e, como nota Roberto Da Matta, só se define através

de contrastes, oposições e complementaridades e não “por meio de uma fita métrica”

(Ibidem: 16).

Assim, um dos caminhos para tratar o espaço são os estudos utilizando modelos de

uso da terra, identificando áreas de atividades. Este tipo de pesquisa é bem conhecido em

arqueologia e tem sido largamente empregado tanto em arqueologia pré-histórica, como em

arqueologia histórica140. No entanto, os estudos de uso da terra, entendido como os “meios

através dos quais as pessoas organizam e arranjam suas atividades econômicas no

140
Em arqueologia histórica cito o exemplo de Rubertone (1982 a e b ). De um outro ponto de vista e
tomando uma paisagem histórica rural, cito a proposta de Adams (1990) para o estudo de fazendas norte-
americanas.

28
espaço” (Rubertone, op. cit.: 51), não é o suficiente. Análises deste tipo fornecem

importantes informações sobre o que foi feito, onde foi feito, ou como foi feito, mas não

nos ajudam a saber porque foi feito. E esta última questão, ao final e ao cabo, é a principal,

creio.

Acontece que as atividades que ordenam espaços não são apenas de ordem

econômicas. Elas compreendem relações sociais, relações de poder, valores, sentimentos e

tantos outros aspectos que envolvem a complexidade das relações humanas. E aqui é bom

lembrar que a Arqueologia não é nenhuma panacéia capaz de dar conta de tudo isto. No

entanto, é possível tentar aproximar-se um pouco mais da compreensão dos espaços

utilizando o conceito de representações coletivas, na medida em que elas são o sistema de

referência que está na base das práticas sociais (e embebido nelas), trazendo em si a

cosmologia e o sistema classificatório da sociedade, estando, portanto, na base da

construção e ordenação dos espaços.

Com relação ao outro nível de problemas (a resistência de alguns setores em aceitar

este tipo de trabalho), é preciso dizer que existe entre os pesquisadores uma certa

flexibilidade quanto às fronteiras da Arqueologia, ainda que esta seja uma questão ainda

muito discutida (Kern, 1998:169). Porém, não são poucos aqueles que não aceitam falar-se

numa arqueologia do não-remoto, numa arqueologia da própria cultura. Não foram poucas

as vezes que, no decorrer deste trabalho, precisei explicar (para pesquisadores de

arqueologia) porque se tratava de uma pesquisa arqueológica e não de uma “História da

Arquitetura”, ou mesmo de uma “História Social”, isso para não citar expressões pouco

lisonjeiras de setores mais ortodoxos. Como lembra Oliven (1980:25), ainda hoje a
29
academia tende a compartimentalizar artificialmente o conhecimento “em cátedras e

departamentos, cujos titulares são geralmente muito ciosos de seus domínios”. Assim,

aceita-se uma arqueologia urbana do século XIX, como é o caso deste estudo, mas que se

utilize de técnicas clássicas envolvendo escavações, análises de fragmentos de louça,

vidros, restos de alimentação. Aceitam-se trabalhos cuja pesquisa centre-se em prospecções

e análises espaciais que contem apenas com vestígios de superfície, mas cuja cultura ligue-

se ao que chamei de “outro-remoto” (podem ser cidades romanas, Reduções Jesuíticas,

etc.). Mas é difícil aceitar uma Arqueologia sem escavação da própria cidade (leia-se da

própria cultura) em um tempo tão recente. A verdade é que existe um confronto que parece

ser comum a toda ciência, mas que aparece mais fortemente naquelas, como é o caso da

Arqueologia, que, por vários motivos, encontram-se, ainda, no nosso meio, em processo de

legitimação141.

Independentemente de estudar horticultores, grupos caçadores-coletores, ou seu

próprio grupo, o arqueólogo trabalha sempre com a cultura material, e é a natureza material

da evidência arqueológica que guia a perspectiva que tomamos em nossas pesquisas. Se

diferimos em nossas estratégias, se nos colocamos problemas de pesquisa também

diferentes, possuímos em comum um olhar que é específico da Arqueologia. E isso não

implica em perder de vista o intercâmbio com outras áreas de conhecimento. Pelo contrário,

é indispensável buscar na Antropologia, na História, na Filosofia, entre outras, tudo aquilo

que possa nos servir de apoio e favorecer uma abordagem mais interpretativa, que

ultrapasse as descrições, que seja mais que uma coleção de tipos.

141
Se isto não é verdadeiro em escala mundial (ver, por exemplo, a Carta Internacional para a Gestão do
Patrimônio Arqueológico – ICOMOS) ou nacional (ver, por exemplo, os trabalhos de Lima:1997 ou Souza,
1997), certamente é no nível regional ou, dito de outra forma, provincial.

30
Como em todas as novas áreas de pesquisa que se abrem, correm-se riscos, erra-se e

encontram-se um sem-número de dificuldades. Mas creio que isto deve ser enfrentado, e

vale a pena, porque nos leva a ampliar e a complexificar nosso objeto e, em última

instância, nossa ciência.

A Arqueologia Histórica, muitas vezes, tem a imensa vantagem, sobre a

Arqueologia pré-histórica, de dispor de evidências documentais escritas. Ainda que seja

preciso ter em mente que “os documentos históricos são limitados em número e parciais

quanto à sua origem” (Kern, 1985:103) e, portanto, inúmeros aspectos da vida das

sociedades passadas não são contempladas ai, essa documentação pode favorecer a

interpretação e reconstituição do passado pela Arqueologia.. No entanto é essa vantagem

que, muitas vezes, faz com que - aos olhos tanto do arqueólogo pré-histórico, como do

historiador - a pesquisa em Arqueologia histórica pareça absolutamente desinteressante.

Beaudry (1993) chamou a atenção para o fato de que muitas pesquisas neste campo acabam

tendo uma natureza tautológica: usa-se sítios históricos para testar modelos desenvolvidos

na pré-história ou, de outra forma, procura-se descobrir se a evidência arqueológica reflete

o documento escrito ou vice-versa. É a forma do tratamento dado ao registro histórico pelo

arqueólogo que irá fazer com que ele resulte em uma vantagem ou em uma desvantagem. O

mesmo pode ser estendido às fontes iconográficas. Desta forma, vou me deter um pouco em

colocar as formas através das quais as fontes foram tratadas nesta pesquisa.

A primeira e mais evidente fonte foi a de natureza material: os vestígios existentes

na superfície e que testemunham a organização espacial da área central de Porto Alegre no

século XIX. Trata-se de ruas, praças, casas, prédios públicos, nem sempre contemporâneos
31
entre si e que hoje, misturados a construções modernas, constituem a paisagem do centro da

cidade. Alguns (poucos) se mantém em sua forma original, outros sofreram modificações

em sua morfologia ou em sua função, ou em ambos. É como se olhássemos um imenso

depósito arqueológico totalmente perturbado, onde inúmeros artefatos sofreram processos

diversos de reciclagem142. Como colocar isto tudo em ordem? Ou, em outras palavras,

como reconhecer aí uma cronologia, padrões morfológicos e funcionais? Falta-nos,

sobretudo, a estratigrafia, tão merecidamente estimada pelos arqueólogos.

O primeiro passo foi o de entender cada rua, cada praça, cada prédio (cada unidade

arqueológica, conforme explicitado a seguir), como um artefato. Esta consideração é

fundamental porque pressupõe o entendimento de uma “coisa física, produto e vetor

material da apropriação social do espaço: segmento da natureza ao qual o homem (a

sociedade) impôs forma, função e sentido” (Meneses, 1997: 19).

O passo seguinte, perceber que estes artefatos são, também, suportes de

representações sociais. Que eles possuem propriedades intrínsecas (morfológicas, por

exemplo), que “são mobilizadas diferentemente pelas sociedades, nos processos de

operação de sentido”(Idem: 12). Portanto, o sentido atribuído aos artefatos é localizado

histórica e socialmente.

142
Segundo Schiffer (1987) existem três tipos de reutilização dos artefatos: ciclagem lateral, onde há apenas
uma mudança de usuário ou de unidade social e onde o artefato mantém sua forma e função original; o uso
secundário, onde o artefato tem seu uso modificado sem ser ele mesmo totalmente modificado e a reciclagem
que implica na mudança da morfologia geral do artefato.

32
O importante é perceber aqui que as formas arquitetônicas e a própria organização e

articulação do espaço são vistos como um discurso através do qual se pode ter acesso às

representações sociais dos grupos que viveram e construíram esse espaço.

Finalmente, foi preciso desenvolver um método de levantamento e organização

desses dados de natureza material.

A proposta foi elaborada tendo em vista esta pesquisa e o Projeto de definição de

zonas de interesse arqueológico e levantamento do potencial arqueológico do município de

Porto Alegre desenvolvido pelo Museu Joaquim José Felizardo, dentro do Programa de

Arqueologia Urbana do Município de Porto Alegre, referido anteriormente143. Assim, o

Bairro Centro da cidade (divisão política) foi definido como uma Zona de Interesse

Arqueológico. Esta definição leva em consideração critérios históricos (ex: local onde

surgiu a cidade) e arqueológicos (ex: alta densidade de vestígios significantes). Para esta

pesquisa foi tomada uma parte desta zona como amostra. A partir disto, tratou-se de

levantar cada unidade presente na amostra, registrando-as em um mapa. O trabalho foi

iniciado tomando-se como ponto de partida o levantamento realizado pela Equipe do

Patrimônio Histórico e Cultural da Prefeitura Municipal de Porto Alegre no centro da

cidade através do Inventário do Patrimônio Cultural de Porto Alegre – Bens Imóveis.144

Com este levantamento em mãos, percorreu-se a área registrando as Unidades

Arqueológicas significantes, já que o inventário da EPHAC utilizou critérios diferentes

143
Esta pesquisa é coordenada pela arqueóloga Fernanda Tocchetto e tem a participação de Beatriz Thiesen e
Diogo Menezes da Costa.
144
O Inventário do Patrimônio Cultural de Porto Alegre – Bens Imóveis é um trabalho da EPAHC, feito para
atingir todos os bairros da cidade, e está sob a responsabilidade da arquiteta Elena Graef e tem o apoio do
arquiteto Luiz Merino Xavier.

33
daquele adotado aqui. Se, por um lado, naquele levantamento interessaram critérios que

representassem um valor para preservação, tais como valor arquitetônico, ambiental, de

raridade formal ou funcional, recorrência regional, etc., por outro lado – do ponto de vista

desta pesquisa – o critério básico é que represente um testemunho de ocupação do espaço.

Assim, qualquer testemunho é importante. Desde o mais portentoso prédio público, até a

mais simples casa de porta e janela, resguardando os critérios de significância. As

Unidades Arqueológicas registradas são as manifestações pontuais (ex: residências,

prédios públicos, praças).

Os problemas para identificar quais unidades arqueológicas pertenciam de fato ao

século XIX foram muitos, e discutirei os critérios de seleção no capítulo 2. Os documentos

escritos serviam, entre outras coisas, de guia ou controle para o estabelecimento de uma

cronologia e isto também será discutido no mesmo capítulo.

Ao registro das unidades arqueológicas em um mapa, associou-se o registro das

diferentes atividades que ocorriam na área de pesquisa no decorrer do século. Isto permitiu

que se estabelecesse diferentes Áreas, definidas em termos de padrões de atividades,

comportamento e uso da terra. Essas áreas não necessitam ser absolutamente homogêneas

(ex: áreas unicamente residenciais). As áreas podem ter segmentos diferenciados, que, em

conjunto, devem demonstrar uma dinâmica própria e peculiar, devem estar agrupados e

articulados por valores, atividades e significados que lhes dêem coesão. Teremos, assim,

áreas comerciais, residenciais, de descarte, de poder, etc.

34
Em Arqueologia Urbana, como de resto em toda a Arqueologia Histórica, somos,

muitas vezes, colocados frente a um número massivo de vestígios arqueológicos e, ao

mesmo tempo, a uma rica e abundante documentação escrita e iconográfica. Este fato

acentua-se quando se trata de pesquisar um momento de rápido crescimento da população

urbana que ocorre junto à expansão de uma sociedade capitalista, que por suas próprias

características produziu imensos arquivos escritos (Cressey e Stephens, op. cit, 1982). Isto

implica na necessidade de se tomar decisões sobre que dados são necessários, quais os

documentos que devem ser analisados, a que nível de detalhe é preciso ir. As opções feitas

levaram em conta a possibilidade de obter dados sobre o conjunto da área pesquisada,

abandonando-se documentos que referiam-se a lugares específicos (com exceção das

Plantas e dos Processos para construção ou reforma de prédios). Este tipo de documento

(testamentos, inventários, escrituras, etc.) constitui um volume imenso, cuja análise seria

contraproducente, correndo-se o risco de “obscurecer a floresta pelas árvores” (Idem).

Os registros escritos analisados foram tanto documentos primários, como

secundários. A documentação secundária foi tomada (lembrando uma obviedade um tanto

fugaz) como considerações recentes sobre o passado e não o que aconteceu no passado,

sendo necessário, portanto, manter sua análise ligada ao seu contexto de produção.

Os documentos primários analisados foram Livros Prediais – imóveis urbanos

(1893, 1895 e 1928), Livros Receita e Despesa : Comércio pelo Valor Locatício (1894 e

1895 e 1998), Processos para construção e reformas de prédios (vários anos entre 1893 e

1929), Códigos de Posturas de 1829 a 1888, Projeto de Posturas de 1850, Código de

Construções de 1893, Documentos avulsos relacionados à Construção e Melhoramentos do


35
fundo “Câmara Municipal” (1830 a 1900), Livro Caixa da empresa Fraeb e Cia. (1830) e

Jornais. Estes últimos foram: O Constitucional Rio-Grandense (1830), O Mensageiro

(1835 e 1836), Jornal do Comércio (1867), Fígaro (páginas avulsas de 1878 e 1879), A

Gazeta de Porto Alegre ( 1880), A Gazetinha (de novembro de 1891 a março de 1892 e de

setembro de 1895 a dezembro de 1896) e A Federação (1896). Além disto, foram utilizados

os relatos de diversos viajantes e de cronistas, bem como um dicionário impresso no ano de

1848.

Essa massa documental foi tratada diferentemente, conforme sua origem e

objetivos. Assim, os documentos oficiais produzidos com o intuito de controlar impostos e

ações dos cidadãos foram tomados mais em seu conteúdo informativo, fornecendo pistas

sobre o uso do solo. Outros foram mais importantes no sentido de apresentar indícios para

se chegar às representações dos diversos grupos sociais e suas ações concretas: Códigos de

Posturas e jornais, principalmente. Quanto a estes últimos é importante fazer alguma

distinção entre eles: os jornais do início do século foram mais importantes por seus

anúncios que mostram, até certo ponto, a ocupação do espaço. As matérias são, em geral,

de cunho político e oficial. Como o “Mensageiro”, que tinha por objetivo “dar publicidade

aos Atos da Administração Provincial das Estações Públicas, e bem assim anúncios que se

limitarem a benefício público” ( O Mensageiro, 3.11.1835: 1), ou “O Constitucional Rio-

Grandense” que se propunha ser um jornal político e literário. Também na análise dos

anúncios, buscou-se o sistema classificatório da sociedade para esses espaços. O dicionário

também foi importante neste sentido.

36
Quanto aos periódicos humorísticos, surgidos a partir da segunda metade do século

XIX (portanto junto com uma nova ordem burguesa que se instaura), pode-se dizer que

foram encarados como uma fonte riquíssima, na medida em que se propunham a criticar os

costumes locais: eles forneceram pistas importantes acerca da relação dos habitantes com a

cidade e dos esquemas de organização do comportamento urbano.

A informação iconográfica (gravuras, mapas, fotografias) é de importância

fundamental neste trabalho. Ela foi encarada como uma fonte capaz de testemunhar

aspectos da estrutura espacial da cidade, bem como do imaginário social.

Assim como os documentos escritos, o documento iconográfico deve ser submetido

à crítica que, na sua essência não difere da crítica histórica tradicional (Cardoso,1990: 17).

Isto significa que é necessário sempre manter ligados a imagem ao seu contexto social.

A fotografia constituiu-se numa fonte de grande interesse e que mereceu maior

atenção e onde eu gostaria de me deter, tecendo algumas considerações importantes.

O fato é que o século XIX foi o século do surgimento da fotografia145. Este

acontecimento é de extrema importância pelas suas conseqüências e pelo que elas

significam no uso que se possa fazer da imagem fotográfica como fonte de pesquisa deste

período: pense-se no impacto causado pelo seu surgimento numa sociedade ávida por

racionalidade, objetividade e informação.

145
Se a câmara escura era conhecida desde o Renascimento, o Daguerreótipo é anunciado ao mundo em 1839
e é apenas a partir da segunda metade do século XIX que aparece a fotografia em papel.

37
O discurso associado à fotografia era o da possibilidade de retratar o real, e neste

sentido representava a mentalidade objetivista e cientificista do século XIX. Essa nova

técnica permitia a decomposição e a racionalização da produção de imagens numa série de

operações ordenadas e simples, onde a criação de imagens não é mais mediada pelo artista,

mas vista como uma série de processos mecânicos e químicos. A fotografia se aproxima,

neste sentido, da lógica industrial. Por outro lado, a burguesia ascendente é ávida por

imagens: retrata a si mesma (veja-se a proliferação dos retratos de família) e ao seu mundo.

É uma forma de disseminar informação numa sociedade ainda composta, em grande parte,

por analfabetos. Seu poder de sedução encontra-se justamente na possibilidade de

reproduzir o real e no custo muito mais baixo que as obras artísticas tradicionais. A verdade

é que esta imagem real é algo idealizado e, sobretudo, uma construção na medida que traz

consigo o código visual da perspectiva que é, antes de tudo, um código estético e

estratificador.

Estas considerações são fundamentais para a utilização da fotografia como fonte,

principalmente no período em questão: ela permite a interpretação de um espaço

culturalmente constituído, através da análise da organização dos elementos que compõem a

imagem e de sua articulação interna, considerando sempre em que rede significativa eles

estão inseridos. A fotografia possui, portanto, um duplo código: de informação e de

expressão. Ela contém uma realidade empírica que está na base das imagens e, também,

aspectos ligados ao imaginário da sociedade que a produziu.

“O ponto de partida é compreender a natureza técnica do


ato fotográfico, a sua característica de marca luminosa; daí a idéia
de indício, de resíduo da realidade sensível impressa na imagem
38
fotográfica. Em virtude desse princípio, a fotografia é considerada
como testemunho: atesta a existência de uma realidade. Como
corolário desse momento de inscrição do mundo na superfície
sensível, seguem-se as convenções e opções culturais
historicamente realizadas” (Mauad, 1996:79).

Neste sentido, a análise das fotografias partiu, conforme proposto por Miriam

Moreira Leite (1992), de uma leitura interna, articulando suas partes e relacionando-as a um

contexto histórico e social particular.

Assim como as fotografias, a análise dos mapas e das ilustrações considerou a

observação dos seus contextos e a confrontação com outros documentos da mesma

natureza.

As fotografias analisadas fazem parte do acervo da Fototeca Sioma Breitman do

Museu Joaquim José Felizardo e abarcam aquelas produzidas durante o século passado e o

início deste século. As gravuras analisadas incluem apenas as produzidas no século

passado. É importante que se explique a abrangência temporal dessas análises e se

estabeleça, para tanto, o marco temporal da pesquisa, bem como a área estabelecida para

este estudo.

O estudo centra-se no século XIX por ser possível ver aí a lenta transformação de

uma sociedade senhorial e escravista para outra burguesa e capitalista 146 . Sabe-se que, a

146
Utilizo as expressões senhorial e escravista e burguesa e capitalista para designar momentos diferentes de
um processo histórico dominados não apenas por características econômicas, materiais e sociais próprias,
mas, sobretudo por valores e visões de mundo diferentes entre si. A título de exemplo pode-se ponderar que
enquanto no primeiro são considerados valores importantes os laços de sangue e as distinções honoríficas
características “de uma sociedade estamental apoiada na tradição da nobiliarquia portuguesa” (Centurião,
1999:245), no segundo valoriza-se o “individualismo, [...] a acumulação de capital tanto real quanto

39
partir da segunda metade do século XIX, as transformações ocorridas pelo desenvolvimento

do Capitalismo em nível mundial são introduzidas no Brasil e, em menor escala, no Rio

Grande do Sul (Pesavento,1996). Às transformações econômicas e sociais, corresponderam

mudanças culturais que se expressaram também na cultura material e, conseqüentemente,

na organização e estruturação dos espaços urbanos de Porto Alegre. O que se buscou foi a

possibilidade de realizar um estudo comparativo, procurando as diferenças na organização,

estruturação e articulação do espaço em seus aspectos físicos, sociais e imaginários, neste

período, pela existência de duas ordens sociais distintas (Idem).

Sabe-se, no entanto, que não é possível estabelecer uma data que seja um marco de

instauração ou encerramento de uma determinada ordem social, ou de uma determinada

forma de organizar o espaço. Assim, o que se considerou importante foi a possibilidade que

este vasto período oferece de, por suas próprias características, favorecer o estudo aqui

proposto. E por ser um período tão vasto, não seria possível fazer nenhum tipo de

levantamento exaustivo de documentação. Por isto, procurei me deter onde esta

documentação era mais facilmente acessível e que abarcasse as duas ordens sociais que se

busca enfocar. Assim, a atenção maior recaiu sobre as décadas de 1830, 1870 e 1890, não

significando que outros momentos não tenham sido contemplados aqui. Alguma

documentação do início do século XX, que diz respeito mais de perto às formas

arquitetônicas (Plantas e Processos para reformas e construções e, mesmo, fotografias)

foram utilizadas para verificar em que medida e a que velocidade o processo iniciado na

segunda metade do século XIX se desenrolava.

simbólico), os critérios de „respeitabilidade‟, a fetichização do consumo e a ascensão social” (Lima: 1997:


nota 2).

40
O local estabelecido para realizar a pesquisa situa-se na península, onde teve início a

cidade, abrangendo a área que limita-se ao Norte com o Rio Guaíba (atual rua Sete de

Setembro), a Oeste com a Rua da Passagem ( atual Volta do Gasômetro), ao Sul com a Rua

da Prainha (atual Washington Luiz), e a Leste com a Ladeira do Liceu e Rua de Bragança

(atual Marechal Floriano). Este recorte espacial foi escolhido por quatro razões: 1) situa-se

no centro, onde a cidade começou; 2)insere-se em uma área na qual a densidade de

testemunhos é elevada; 3) trata-se de uma área de potencial arqueológico, ou seja, uma área

de “probabilidades de ocorrência de vestígios arqueológicos significantes147 para a

compreensão da ocupação do território” (Juliani, 1996: 2); 4) abrange ruas de moradia e

atividades ligadas à classe dominante (Duque de Caxias, Riachuelo e Rua da Praia), uma

área bem definida onde distribuem-se os espaços de poder (atualmente Praça da Matriz),

uma série de becos onde estavam os pobres, os bordéis, o “perigoso”, como o Beco do

Mandinga (atual General Canabarro), ou o Beco do Jogo de Bola (trecho da atual Bento

Martins), ruas com habitações populares, como a rua do Arvoredo (atual Fernando

Machado) ou a rua da Varzinha (atual Demétrio Ribeiro), além de uma série de áreas

públicas como a Praça da Harmonia ou Largo do Arsenal (atual praça Brigadeiro Sampaio),

o Alto da Praia ( Praça da Matriz), o Mercado Público, a beira do Rio (local de despejo de

lixo por excelência), etc.

Porto Alegre iniciou o século XIX como um pequeno núcleo urbano, contando com

3 rua principais (as atuais Rua da Praia, Riachuelo e Duque de Caxias) que a cortavam

147
O grifo é meu. O critério para avaliar significância arqueológica é dado por Juliani (1996:103) que
considera que é o “caráter informativo que uma determinada ocupação do solo possa conter em termos de
vestígios culturais e o grau de visibilidade e preservação desses vestígios.”

41
longitudinalmente e quatro ruas transversais (Symanski, 1997:20). Segundo Escosteguy

(1993:29), em 1804 a cidade tinha “apenas 7 ruas com edificações”. Porém, devido a sua

localização privilegiada que a tornou centro escoadouro da produção da Província e de seu

acelerado desenvolvimento econômico, Porto Alegre cresceu rapidamente, pulando de

3.927 habitantes em 1803 para 12.000 em 1820, 18.465 em 1858 e 52.000 habitantes em

1890 (Symanski, 1997:20). A este aumento populacional acelerado correspondeu uma

expansão do núcleo urbano inicial, nem sempre na mesma proporção, o que ocasionou uma

série de problemas. É esse espaço urbano que se constrói, que é apropriado de formas

diferentes, dotado de significados e é, também, ressignificado durante o desenrolar do

século XIX, que é alvo desta pesquisa.

A primeira etapa deste trabalho consistiu em delinear o contexto histórico: as

origens da cidade, a forma como se deu o seu crescimento, e estabelecer as ligações desse

processo com as estruturas econômicas e sociais. Isto é importante não apenas para situar

os dados materiais levantados em campo, mas também porque é necessário referir e manter

ligadas as interpretações e reconstruções aos contextos históricos concretos.

A par disto passei a examinar os Lugares da cidade em diferentes momentos,

procurando suas modificação surgidas no transcurso de um processo histórico. Foram

descritas e analisadas as diferentes unidades arqueológicas levantadas que incluem as

estruturas arquitetônicas remanescentes do século XIX, além de praças, ruas, etc. Neste

momento foram, também, apresentados os critérios adotados e as propostas teórico-

metodológicas utilizadas no levantamento e análise dessas unidades.

42
Tomando outro ângulo de análise, tratei, num terceiro momento, dos Espaços em

seus aspectos de ordenação e articulação, onde as representações sociais assumem papel

fundamental. Também foram discutidos aí os aspectos teóricos e metodológicos utilizados

na análise.

1. A CONSTITUIÇÃO E EXPANSÃO DO ESPAÇO URBANO DE PORTO

ALEGRE

O processo de constituição e expansão do espaço urbano de Porto Alegre está

vinculado ao próprio processo de constituição e desenvolvimento da ordem social e

econômica da região e, por isto, é preciso situá-lo. Assim, tentarei ordenar os aspectos que

considerei importantes para delinear o contexto e o processo histórico.

De início, quando o território do Rio Grande do Sul era uma fronteira a ser

defendida e conquistada, toda atividade subordinava-se aos interesses da coroa portuguesa.

A instalação das primeiras sesmarias, em 1740, no espaço hoje ocupado pela

cidade de Porto Alegre, visou o gado que aqui se reproduzia livremente após a dissolução

das estâncias do Tape. Dito de outra forma, essas sesmarias, antes de terem uma intenção

de povoamento da região, faziam parte da política portuguesa que buscava participação no

comércio do Rio da Prata (Monteiro, 1995).

A disputa entre espanhóis e portugueses pelo território levou à assinatura do

Tratado de Madri, em 1750, que acarretou importantes conseqüências nas formas tomadas

pela ocupação do espaço.

43
Em 1752 Gomes Freire, então governador da Capitania e comandante do exército

demarcador do Tratado de Madri, determinou que parte dos homens que deveriam iniciar a

demarcação das terras ficassem em Viamão, com o fim de construírem barcos para o

transporte até as Missões (Martini, 1997:14).

A necessidade de ocupação do território, neste contexto, levou a coroa portuguesa

a implementar, ao lado da ocupação rarefeita representada pela sociedade pastoril, uma

colonização “constituída de pequenos agricultores dedicados à lavoura e capazes de

propiciar a urbanização de pontos fortificados” (Silva,1979:58). Daí a vinda dos açorianos.

Não se sabe ao certo quantos deles teriam vindo para a região. Martini (1997: 16-

7), fala num número que varia de 181 a 278 famílias que representariam entre 833 e 1.400

pessoas, e que teriam chegado ao Porto do Dorneles um mínimo de 433 indivíduos, em

1752. De qualquer forma, o fato é que algumas famílias ficaram estabelecidas na área que

deu origem à cidade de Porto Alegre.

Como o destino desses açorianos era o território das Missões ( deveriam povoá-lo

em decorrência dos acertos firmados no Tratado de Madri) e como o assentamento desses

colonos nunca foi efetivado ali (por causa da Guerra Guaranítica), os primeiros habitantes

do pequeno núcleo populacional situado à beira do Guaíba, abandonados pela Coroa,

iniciaram o povoamento do lugar sem que houvesse intenção ou planejamento de espécie

alguma. Neste período não há ruas, os lotes ainda não foram demarcados e uma “Notícia”

44
datada de 1754, feita pelo engenheiro Miguel Angelo Blasco dá conta que “a povoação é

um „arroio‟ [arraial] de casas de palha habitadas de casais das ilhas e é bastante fértil”148.

A intenção povoadora aparece no momento que José Marcelino de Figueiredo

assume o Governo da Capitania, em 1769, quando os únicos moradores do lugar ainda eram

os ilhéus lusos que viviam ali, segundo Oliveira (1993: 49), “entregues `a própria sorte”. A

partir de então, percebe-se que o local é estratégico por sua condição de porto e por sua

situação privilegiada entre “dois pontos fortificados do continente, Rio Grande e Rio

Pardo, por vias perfeitamente navegáveis” (Idem). É assim que em 1772, ou seja, dois anos

após José Marcelino assumir o Governo e 20 anos depois da chegada dos açorianos, é

desapropriada a sesmaria de Inácio Francisco de Melo, comprada de Jerônimo de Ornelas

em 1762, para que fossem distribuídas as datas entre os açorianos. Porém, antes de tudo, a

desapropriação visou a demarcação das primeiras ruas, instalando os planos da nova praça,

tomando como centro o Alto da Praia e estabelecendo o local da Igreja Matriz (Ibidem).

Porto Alegre é tornada, então, Freguesia.

A ligeira passada de olhos sobre esses primeiros atos que levaram ao surgimento

da futura cidade de Porto Alegre chama atenção para o fato de que aqui, como em muitas

outras cidades brasileiras, se tem um exemplo típico de um povoamento que se desenvolveu

antes como uma espécie de “monumento à vontade do colonizador” do que como “uma

decorrência direta de trocas comerciais, como foi o caso de muitas cidades da Europa

Ocidental” (Da Matta, op. cit: 48). “A Igreja Matriz da Madre de Deus foi o marco inicial

148
Esta Notícia foi publicada por J. C. Rego Monteiro na Revista do Patrimônio Histórico e Geográfico do
Rio Grande do Sul, número 70, página 173, no ano de 1938, sob o título “Notícia Breve da Marcha de Gomes
Freire de Andrade, por Miguel Angelo Blasco” (Apud Spalding, 1967 : 33).

45
das obras determinadas pelo Governador José Marcelino logo após a fundação da cidade,

em 1772” (Oliveira, op. cit. :56). No ponto mais alto do promontório, portanto, foi

estabelecido o local da Matriz que teve sua construção iniciada em 1774 (Franco:

1998,105), ao lado da sede de Governo da Capitania. O Palácio, inicialmente casa de

residência dos governadores e capitães- generais, cuja edificação foi iniciada em 1773 e

terminada em 1789 (Idem : 304), manteve-se até a República, apesar de ter sofrido várias

reformas. Em frente a ambos estava a Praça da Matriz (inicialmente Largo do Palácio ou

Largo da Matriz). O traçado de Porto Alegre mostra que ele deve ter se formado a partir da

definição desta praça. Weimer (Porto & vírgula n.38: 28) mostra como a Rua da Igreja149,

situada no divisor de águas no alto da colina, segue as antigas tradições portuguesas:

correspondente à Rua Direita, toma o traçado ditado pelos contornos naturais do terreno. As

ruas da Praia e da Ponte150, perfeitamente alinhadas, mostram “que foram demarcadas com

cordel e esquadro , como rezavam as ordenações reais” (Idem).

Com isto, o pequeno núcleo, que se tornaria capital apenas um ano e meio após

ter-se tornado Freguesia (Oliveira, op. cit.: 57), cresceu com aquela típica configuração

brasileira (e Ibérica) onde a praça (espaço público e teoricamente do povo) abriga, no seu

entorno, o poder de Deus e o poder do Estado (Da Matta, op. cit.: 48) e de onde a

aristocracia busca estar próxima. É neste espaço que serão instalados, além do cemitério

junto à Matriz (1753), o Teatro São Pedro (1833 – 1858), o Edifício da Câmara (1864 –

1871), a Bailante (década de 1850) (Oliveira, op. cit.) e outros prédios que atestam a

importância simbólica deste espaço.

149
Atual Duque de Caxias.
150
Atual Riachuelo.

46
A política de colonização da coroa portuguesa, que visava estabelecer “pequenos

agricultores dedicados à lavoura [formando] uma população mais concentrada e mais

aproveitável sob o ponto de vista militar” (Silva, op. cit.:58), acabou resultando na

colonização de uma área onde floresceu o cultivo policultor – mas principalmente de trigo –

que seria comercializado pelo porto de Porto Alegre (idem).

A sociedade riograndense apresenta-se, então, por um lado fundada na grande

propriedade criadora que se estende e domina a Serra do Sudeste e a Campanha e, por

outro, baseada na pequena propriedade agricultora, localizada na Depressão Central e no

Litoral (Ibidem.).

No final do século XVIII a economia do gado toma impulso, estabelecendo-se as

primeiras charqueadas. A partir da década de 1810, a economia do charque desenvolve-se

fortemente em razão da desorganização dos saladeiros platinos 151. Nesta época, a Coroa

portuguesa, pelas próprias exigências do processo de ocupação do território, já havia

passado a “reconhecer e fortalecer a autoridade exercida pelos chefes de bandos

guerreiros e chefes de parentelas” (Cardoso, 1977:112) que, a partir daí, coexistem “com a

ordem estamental-patrimonial152 representada pelos funcionários e militares portugueses”

(Idem).

151
As guerras de independência na região do Prata desorganizaram a produção do charque favorecendo o
produto gaúcho no mercado consumidor internacional (SILVA, 1979:59)
152
Cardoso (1977), utilizou o conceito de estrutura patrimonialista e estamental, o qual sigo, conforme
formulado por Weber (apud Cardoso, op.cit.:100): “poder doméstico descentralizado mediante a distribuição
de terras e às vezes de pecúlios aos filhos ou a outras pessoas dependentes do círculo familiar damos o nome
de dominação patrimonial”. Distingue-se do patriarcalismo pela existência de um quadro administrativo e é
estamental porque há uma “apropriação monopolizadora dos cargos por seus titulares” (Idem).

47
Porto Alegre, neste período, desempenhou funções importantes que tiveram um

papel básico nas formas através das quais o espaço urbano se estruturou. De um lado foram

funções administrativas e militares que cresceram em importância pela valorização da

capitania frente às disputas coloniais ibéricas. De outro, em razão de suas próprias

características naturais (ser um porto) e por sua localização privilegiada, Porto Alegre

assumiu, cada vez mais, uma função comercial que, ao lado da portuária, foi determinante

no seu crescimento e na forma que este tomou.

No período que estende-se do final do século XVIII ao início do século XIX, vê-se

não apenas o incremento das exportações de charque, mas também do trigo produzido na

zona de colonização153, que escoavam pelo porto de Porto Alegre. A capital passou a

apresentar, então, um rápido crescimento populacional que esteve associado ao aumento

destas exportações: Singer (1977:152) mostra que foi comercializado, em 1807, 93.298

alqueires de trigo, quantidade que salta para 257.782 alqueires em 1813 e 266.981 alqueires

em 1816 (época de maior exportação). Se compararmos estes dados com a população de

Porto Alegre no mesmo período, veremos que o seu crescimento aparece associado ao

aumento das exportações de trigo: 3.927 habitantes em 1803, 6.000 em 1808 que dobram

para 12.000 em 1820 (Idem.).

Ao mesmo tempo em que a capital tornava-se um importante centro exportador

naquele início de século, fortalecia-se como importante núcleo importador154, a partir de

onde as mercadorias eram distribuídas para o interior.

153
O crescimento da produção tritícola correspondeu a um momento de crise na produção de cereais na
Europa (Silva, op. cit.:61).
154
A abertura dos portos ocorreu em 1808, mesmo ano da transferência da Corte para o Brasil.

48
Nos primeiros 25 anos do século XIX, a sociedade e a economia gaúchas passaram

por um período de transformações que definiram a ordem social dominante que se manteve

até ser lentamente substituída, no final do século, por uma ordem burguesa e capitalista.

A produção agrícola gerada na pequena propriedade açoriana começou a se mostrar

deficitária. A razão disto é que os interesses políticos coloniais sempre estiveram acima dos

interesses de ordem econômica, pelo menos no que diz respeito às províncias periféricas: a

política de recrutamento e a venda compulsória da produção para abastecer os contingentes

militares, aliada à irregularidade de pagamentos, desorganizou a economia colonial

açoriana (Cardoso, 1981). Por outro lado, o couro e o charque apresentaram-se como

produtos altamente lucrativos exercendo, na forma de uma economia subsidiária à

economia nacional, papel análogo ao do açúcar e do café nas áreas onde foram

dominantes155 (Idem). A produção sistemática do charque estabeleceu a importância do

escravismo no setor mais dinâmico da economia sulina durante um largo período de tempo

e marcou não apenas a estrutura social do Rio Grande do Sul, mas sobretudo o imaginário

social da época, como veremos adiante.

Se, até o início do século XIX, as relações entre os representantes da Coroa e os

grupos rurais gaúchos eram de extrema assimetria, onde o domínio exercido pelos

funcionários da burocracia colonial superpunha-se à dominação dos chefes de família

(Cardoso, op.cit.:273), a partir de então as coisas começam a mudar:

155
Isto não significa que a Província comercializasse apenas com o centro do país, mas quer dizer que esta
foi a atividade economicamente mais importante no período.

49
“novas condições de existência social provocaram a reintegração da
ordem social. O enriquecimento progressivo das famílias e a posse
de um meio de produção, como o escravo, que impedia o concurso
direto e imediato dos representantes da coroa, ocasionou a
redefinição da estrutura de poder no Rio Grande” (Idem).

Os chefes locais transformaram-se em senhores de escravos, ao mesmo tempo em

que os funcionários reais, através do poder que lhes era concedido, passaram a se tornar

empresários econômicos (Ibidem). Estavam aí as raízes de um grupo social senhorial156.

Nesta sociedade, assim constituída, com bases no latifúndio pastoril e na escravidão157, os

senhores locais apropriaram-se de posições burocráticas, utilizando o poder estatal na

consolidação da riqueza familiar e do prestígio pessoal (Ibidem). “A posse de escravos

tornou-se condição essencial para a produção de mercadorias e para o exercício do poder,

dependendo este diretamente da capacidade que cada senhor tinha de produzir

aquelas”(Ibidem:274).

A complexificação da economia gaúcha, agora tendo na charqueada escravista seu

setor mais dinâmico, favoreceu o surgimento nas cidades de uma camada senhorial urbana,

prolongamento daquela de origem rural (Cardoso, op. cit.:491).

A existência de uma camada local forte que era capaz de agir em função dos seus

próprios interesses não excluía, no entanto, um segmento de representantes da Coroa

156
O termo senhorial é utilizado aqui no sentido exposto por Cardoso (1977:113) que defini “o tipo social de
chefe de família e proprietário de escravos [que] formou-se pelo fortalecimento do poder político e
econômico dos chefes de parentela [...] que conseguiram exercer influência ou dispor de posições na ordem
estatal”.
157
Não estou afirmando a existência de uma sociedade composta apenas de latifundiários, charqueadores e
escravos. Pelo contrário, como tentarei demonstrar, tratava-se de uma sociedade com uma estrutura bastante
complexa que incluía, nas cidades, uma população heterogênea empenhada em funções administrativas,
militares, comerciais, artesanais, religiosas, intelectuais,etc.

50
portuguesa que estava em permanente tensão com os senhores locais. Depois de 1808 essa

tensão passou a crescer com a transferência do aparato burocrático-administrativo para o

Brasil, estendendo-se até a Independência (Idem: 498).

Com este quadro montado, a Coroa impôs um modelo de colonização fundado na

pequena propriedade policultora, tendo em vista as mesmas razões que presidiram a

imigração açoriana e que resultou no núcleo inicial de Porto Alegre. Na década de 1820,

objetivos estratégicos, militares e econômicos, resultaram na vinda dos primeiros

imigrantes alemães para a Real Feitoria do Linho Cânhamo. Por um lado, a colonização

deveria ser um instrumento de defesa territorial “que a baixa densidade de população local,

criadora de gado e disseminada por vastos latifúndios, não podia assegurar” (Petrone,

1982:28). Por outro, este tipo de povoamento possibilitaria um aproveitamento econômico

através da agricultura diversificada ligada ao abastecimento do mercado interno. A

existência de um segmento de pequenos proprietários estrangeiros, a que se impedisse a

possibilidade de ter escravos158, significaria, além disso, uma contraposição ao poder dos

senhores ligados ao latifúndio escravocrata (Piccolo, 1980).

Os colonos alemães, obrigados a esperar em Porto Alegre o transporte que os

levaria às colônias, iniciaram a ocupação do arraial dos Navegantes, onde se desenvolveu

um pequeno artesanato (Macedo, 1968:81-82). No entanto, sua maior importância está na

própria produção colonial que passou a ser extremamente significativa no crescimento

econômico da Província: abastecendo o mercado regional, conectando o Rio Grande do Sul

ao mercado nacional e incrementando o comércio e a indústria (Piccolo, op. cit:151).

158
A legislação impede que o estrangeiro possua escravos (Piccolo, 1980).

51
Até a década de 1840, os colonos alemães apenas sobreviveram do trabalho familiar

em uma agricultura de subsistência (Pesavento, 1982:47). Mas, a partir daí, apareceram as

possibilidades de produzir e comercializar um excedente (Idem) que impulsionaria o

crescimento econômico dessas colônias e, também, de Porto Alegre.

A capital, enquanto um importante centro portuário e comercial, teve seu

crescimento ligado não apenas ao desenvolvimento da economia colonial de pequena

propriedade, mas também às flutuações da economia pastoril que, por sua vez, dependeu,

em muito, dos acontecimentos na região do Prata. Assim, a partir da década de 1820, com a

anexação da Província Cisplatina e a desorganização da produção dos saladeiros, as

charqueadas sulinas tomaram maior impulso e Porto Alegre perdeu terreno como centro

comercial da Província para Rio Grande, porto localizado em área mais próxima ao centro

de produção do charque (Bakos, 1996:18). Porém, a cidade159 já mostrava, neste período,

uma estrutura espacial bastante complexa que diferia em número e grau do primeiro

aglomerado de palhoças junto ao Guaíba descrito por Blasco em 1754 (op. cit.). Essa

estrutura denunciava a importância militar e administrativa da capital, bem como sua

fundamental importância portuária e comercial. As mais importantes edificações, citadas

tanto por Saint-Hilaire quanto por Dreys160 eram a Matriz, o Palácio do Governo e a

Assembléia, todas situadas no ponto mais elevado da colina – o Alto da Praia – tendo em

frente o Largo da Matriz onde “não existem edifícios, mas tão somente um muro de arrimo,

a fim de que não seja prejudicada a linda vista daí descortinável” (Saint-Hilaire, 1974:41)

159
Porto Alegre é elevada à categoria de cidade em 1822 (Macedo,1993:50)
160
Ambos descreveram a cidade do início do século XIX. Dreys residiu em Porto Alegre entre 1817 e 1825
(SYMANKI, 1998:43) e Saint-Hilaire esteve nela nos anos de 1820 e 1821.

52
(e eu acrescento: a fim de que não seja prejudicada a vista destes edifícios pelo resto da

cidade). Dreys (1927:86) referia-se, ainda, à “casa suntuosa do Visconde de São Leopoldo”

legítimo representante da camada social senhorial de Porto Alegre161.

A função militar da cidade ficava evidente nas expressivas edificações representadas

pelo Arsenal de Guerra, no final da Rua da Praia, e pela linha de fortificações que

delimitavam a capital, construída entre 1773 e 1778 (Oliveira, op. cit.:68).

A importância comercial e portuária estava expressa no prédio da Alfândega (1824)

e, sobretudo, no Trapiche da Alfândega (1806) (Idem), onde se efetuavam “as atividades de

carga e descarga do grande comércio”(Escosteguy, 1993:80) e que foi relatado e elogiado

inúmeras vezes.162 A Rua da Praia e o Largo da Quitanda eram locais privilegiados de

comércio, cada um a seu modo: no primeiro estavam as lojas, os armazéns, os

estabelecimentos de maior vulto. No segundo, realizava-se o pequeno comércio de gêneros

alimentícios e lenha, caracterizado pelas vendas a varejo em barracas ou por ambulantes

(Idem).

161
O prédio hoje conhecido como Solar dos Câmara foi, segundo Oliveira (1993:231), concluído em 1818,
tendo custado 19.000:000. Seu primeiro dono, José Feliciano Fernandes Pinheiro, o Visconde de São
Leopoldo, foi o primeiro Presidente da Província por ocasião da Independência. Foi ele quem recebeu os
primeiros imigrantes alemães em 1824. Após sua morte, o Solar passou às mãos do então Capitão José
Antônio Corres da Câmara, futuro Segundo Visconde de Pelotas, genro do primeiro, e que teve papel de
destaque na Guerra do Paraguai, tendo sido senador e Ministro da Guerra durante o Império.
162
“Uma belíssima ponte dálfândega, obra prima, como não há outra em toda América, onde podem
descarregar hiates e sumatras, com uma carreira de trezentos e vinte e cinco palmos de comprido e trinta de
largo”(Magalhães, apud Escosteguy, 1993: 50).
“Existe um grande cais dirigido para o lago, e ao qual se vai por uma ponte de madeira de cerca de cem
passos de comprimento, guarnecida de parapeito e mantida sobre pilares de alvenaria”(Saint-Hilaire, op. cit.
:41).
“Ali está o edifício moderno da Alfândega, e o seu extenso trapiche sobre a lagoa: obra sem ornamentos,
esbelta, porém sólida , guarnecida de assentos de ambos os lados, e oferecendo um passeio que não deixa de
ter seu merecimento para respirar-se a frescura das águas, nas belas tardes de verão”(Dreys, op. cit.:87).

53
Porto Alegre havia crescido velozmente num curto período de tempo: Dreys

(op.cit.:84) comentava, então: “há pouco mais de 60 anos que o lugar, em que se levanta

esta suntuosa cidade, era selvagem, coberto de matos, asilo ordinário de feras”. O

comerciante inglês faz referência à existência de um pequeno número de choupanas que

ocupavam apenas as áreas de praia. A paisagem, segundo ele, havia se transformado de um

lugarejo em uma grande povoação (Idem). Em seu relato, sublinha a importância do porto

“com suas diversas e numerosas embarcações” (Ibidem). Saint-Hilaire (op.cit.:42), ao

descrever a cidade, também colocou em relevo a importância do porto: “Após minha

chegada já contei cerca de 20 a 30 embarcações no porto e, segundo me informaram é

freqüente esse número elevar-se a 50. O porto dá calado para sumacas, brigues e galeras

de três mastros”.

E mais adiante acrescenta:

“Os negociantes adquirem quase todas as mercadorias no


Rio de Janeiro e as distribuem aos arredores da cidade. Em troca
exportam principalmente couro, trigo e carne seca; é também de
Porto Alegre que saem todas as conservas expedidas da
província”.(Idem)

O viajante francês referiu-se, ainda, à Rua da Praia, a qual considerou

“extremamente movimentada” e “dotada de lojas muito bem instaladas, de vendas bem

sortidas e de oficinas de diversas profissões”(Ibidem).

Está claro que ocorria uma diversificação na estrutura social desta época:

comerciantes grandes e pequenos, artesãos estavam presentes aí, assim como militares de
54
alta patente, efetivos da tropa, administradores, senhores ligados ao latifúndio e escravos. É

de se esperar que esta diversificação se expressasse na estrutura espacial da cidade. Saint-

Hilaire (op. cit.:41) comenta:

“As casas de Porto Alegre são cobertas de telhas, caiadas


na frente, construídas de tijolos sobre alicerces de pedra; são bem
conservadas. A maior parte possui sacadas. São em geral maiores
que as das outras cidades do Brasil e um grande número delas
possui um andar além do térreo, e algumas têm mesmo dois”.

Estas considerações referem-se às construções do lado noroeste da colina, ali onde o

francês viu um anfiteatro163 e estão ligadas aos setores religiosos, político-administrativos e

comerciais da cidade. Em outras palavras, a face mais rica da cidade. E é o próprio Saint-

Hilaire quem complementa (idem:42): “a cidade possui várias casas do lado oposto,

esparsas e desalinhadas, entremeadas de terrenos baldios, pequenas e mal construídas,

quase todas habitadas pela população pobre”.

A complexificação da cidade e de sua estrutura social em tão pouco tempo são

confirmadas por Dreys (Op.cit.:89-90), que informa:

“A cidade de Porto Alegre é abastecida de todos os


misteres da vida, e mesmo das superfluidades desejadas pelo luxo
que segue a riqueza, e que distingue as classes avantajadas da cidade.
O comércio tem introduzido ali as fazendas do melhor gosto, e,
como o luxo local não é de profusão e desperdício, mas antes de
delicadeza e critério essas fazendas, sendo escolhidas e modernas,

163
Já é clássica a descrição de Saint-Hilaire (op. cit.:40): “A cidade de Porto Alegre dispõe-se em anfiteatro
sobre um dos lados da colina de que falei, voltado para noroeste.”

55
acham fácil extração. Em quanto aos comestíveis, nos tempos
ordinários, nos tempos de paz, a cidade recebe das chácaras
circunvizinhas todas as qualidades de frutas, de hortaliças, e de
verdura que produz a vegetação indígena, ou que brotam das
sementes exóticas, que as mãos do sábio cultivador souberam
naturalizar num solo estrangeiro; seus mercados estão por isso
sempre abundantemente providos; de mais, seus açougues ostentam a
carne mais suculenta, e sua banca pode cobrir-se dos peixes de água
doce e de salgada, ambos pescados nas suas imediações...”

Para disciplinar este espaço urbano surgiu, em 1829, o primeiro Código de Posturas

Policiais, aprovado em 1831 (Livro de Registro das Posturas Policiais de 1829 a 1888 –

AHMV). Nele ficaram estabelecidos os limites da cidade e as regras a serem observadas

pelos habitantes dentro destes limites.

No início da década de 1830 haviam em Porto Alegre “cinco igrejas [...], um

hospital, uma casa de misericórdia, um arsenal, dois quartéis e uma cadeia, recentemente

construída” (Isabelle, 1946:60). Arsène Isabelle parece não concordar com a visão de

Dreys sobre a “delicadeza” e “critério” do luxo local e não poupa críticas e ironias à capital

da província e sua sociedade: críticas à educação, às opções de lazer, aos hábitos das

mulheres, ao aspecto das igrejas (Idem). No entanto, ao lado dos elogios feitos aos aspectos

naturais do lugar – “vê-de que céu, que paisagem! É o céu da Itália; são as paisagens e a

vegetação de Provence; estamos em Porto Alegre!”164 (idem,53) - Isabelle considerou o

comércio de Porto Alegre da época muito ativo (ibidem,64).

164
Retire-se destas afirmativas a “superior” visão eurocêntrica e ainda assim teremos um lugar belo ou, ao
menos, pitoresco.

56
O livro caixa da empresa de importação e exportação H. Fraeb 165, do ano de 1830,

demonstra, pela variedade de produtos vendidos, o grande mercado representado por Porto

Alegre neste período: sabão, resmas de papel, farinha, graxa de lustro, esparmacete de 32 ¼

pol. (velas de 82 cm!), velas de sebo, vinagre (40:000 a pipa), banha, manteiga, cerveja

(3:200 a dúzia), Champanhe (18:000 a dúzia), chocolate, vinho, bacalhau, amêndoas, figos,

queijos. E também morins, chitas, riscado, seda, meias de mulher, navalhas, agulhas,

lunetas, sapatos pretos e de cetim, chapéus, xales, pentes de tartaruga, leques, dedais,

vestidos franceses (2:800 cada), calças (2:000 cada), colares. E, ainda, torneiras, serpentina,

mapas, escravos (280:000), folhas de música (200), brincos de brilhante e figas de ouro,

entre outros artigos.

Em um anúncio do jornal “O Mensageiro”, do ano de 1835, uma loja instalada na

rua da Praia vendia “um bonito sortimento de obras de pedra chegadas proximamente da

cidade do Porto, [...] solitárias com brilhantes, esmaltadas em ouro de lei, [...] anéis de

todo ouro” (15/11/1835 :52 - AHMV). Em outros anúncios deste mesmo jornal, deste ano e

do seguinte, encontram-se anúncios vendendo, entre outras coisas, livros (“para o estudo

da latinidade, ditos de Francês, ditos para geometria”) (17/11/1835: 20 –AHMV),

instrumentos musicais (19/1/1836: 88 – AHMV), vinho do Porto e água ardente da terra

165
Arquivo particular da famíliaThiesen.Ao livro caixa em questão atribui-se a data de fundação da firma. Ele
abarca o período que vai de junho de 1829 a maio de 1830. Esta é a casa de importação e exportação mais
antiga do estado, tendo sido fundada em 15 de junho de 1829, em Rio Grande (Mont Domecq‟ & CIA,
1916:343), tendo passado por diversas razões sociais até ser finalmente extinta em 1949 (informação oral do
Sr. Fernando Thiesen). Surgiu como desmembramento de uma empresa exportadora de Hamburgo, onde
continuou a possuir sócios, e teve filiais em Porto Alegre, Pelotas, Santa Maria, além de agentes que
percorriam o interior do Estado, e escritórios em Montevidéu, Buenos Aires e Hamburgo, para onde iam,
neste século, as exportações de couro, cabelos, sebo, lã, chifres, etc., (Idem). No livro caixa não fica claro
onde ocorreram as transações do ano de fundação da empresa. No entanto, sabe-se que aquelas relativas ao
ano de 1830 foram em Porto Alegre. Pelo que se pode depreender do livro, a firma vendia tanto por atacado
quanto a varejo e, além de produtos, eventualmente vendia serviços: emprestava dinheiro, alugava escravos (o
que é curioso, já que não era permitido aos estrangeiros possuírem escravos), fazia fretes. Os artigos
exportados nesta época, eram chifre, couros e crina.

57
(12/2/1836: 112 –AHMV), ou oferecendo serviços, como lavagem de roupas (1/12/1835:

36 –AHMV), aulas de língua francesa (22/1/1836: 92 –AHMV), oculista e conserto de

óculos, telescópios e microscópios (5/1/1836: 72 – AHMV), apenas para mencionar alguns

exemplos.

Tudo isto aponta para a existência de segmentos sociais diversos: há quem compre

velas de sebo, chita e água ardente; há quem venda seus serviços; e há uma camada social

com alto poder de consumo, que investe em luxo e refinamento. Usa jóias e sedas, aprende

a falar francês e a tocar um instrumento musical, bebe champanhe e vinho do Porto e é

servida por escravos. Em outras palavras, um segmento social com estilo de vida senhorial.

Mas este segmento economicamente dominante ao nível regional estava em

permanente conflito com os representantes do poder imperial: de um lado havia uma

questão econômica caracterizada pela submissão da economia gaúcha aos interesses da

economia do centro e do norte do país e de outro, uma questão política situada no próprio

sistema político imperial que restringia a participação da camada dominante gaúcha. A

eclosão da Revolução Farroupilha em 1835 foi uma conseqüência destes fatos e foi

sustentada pelos estancieiros locais ainda que outros segmentos a tivessem apoiado.

Porto Alegre manteve-se fiel ao Império. Talvez por suas próprias características de

cidade administrativa, militar e comercial, que tinha nesta última atividade o setor mais

dinâmico de sua economia, primeiro como exportadora de trigo e depois dos produtos

coloniais , diferente de cidades como Rio Grande ou Pelotas, mais ligadas ao setor pastoril

da economia. A presença, em menor número, de elementos da camada senhorial ligada ao

58
latifúndio pastoril, relativamente a outras cidades da Província, talvez esteja entre as razões

da posição de Porto Alegre na Revolução Farroupilha.

Porto Alegre foi cercada e a cidade precisou reorganizar-se dentro de seus muros. O

Código de Posturas foi revisto. Inúmeras medidas foram tomadas no sentido de disciplinar

o espaço. Assim, no capítulo 50 das Posturas Policiais estabelecidas pela Câmara Municipal

em 1837 (Livro de Registro das Posturas Municipais de 1829 a 1888 – AHMV), designava-

se o local para despejo de “ciscos e imundícies” à beira do Rio. Os espaços foram

demarcados pela Câmara e situavam-se, como não poderia ser de outra forma, bem no

centro da cidade. O capítulo 51 destinava um lugar para a lavagem de roupas; o 56, o porto

onde deveriam aportar embarcações que trouxessem carne; o 60, designava o lugar para

aportarem as embarcações que conduzam materiais de construção, e assim por diante

(Idem).

A planta de Porto Alegre do ano de 1839, de L. P. Dias mostra a cidade com suas

fortificações e chama a atenção pela grande densidade de construções na área da península.

Na legenda estão nomeadas as ruas, becos, caminhos, praças e chácaras. Estão, também, os

edifícios e construções mais importantes existentes então: Trapiche da Alfândega, Igrejas

Matriz, dos Passos, do Rosário e das Dores, Pelourinho166 , as Casas e o Hospital de

Caridade. O Palácio do Governo, a Casa da Assembléia, o Arsenal de Guerra, a Tesouraria,

O Quartel do 8º e os alicerces para a Casa da Ópera.

166
O pelourinho era aquele marco que indicava que a cidade era sede de comarca. Era também o lugar
utilizado para aplicar castigos físicos aos escravos. A verdade é que, desde 1831, em artigo adicional, o
Código de Posturas já proibia castigos aos escravos em lugares públicos. (Livro de Registro da Posturas
Municipais de 1829 a 1888 – AHMV).

59
Durante a Revolução Farroupilha, talvez uma das obras mais importantes tenha sido

a instalação da iluminação a partir de 1840167 (Spalding,1967:97), seguida pela construção

do primeiro edifício para o Mercado Público em 1842 (Idem). No entanto, importantes para

o funcionamento da cidade foram, também, o matadouro instalado no Largo do Paraíso168 e

a construção de uma doca para o desembarque de gêneros que abasteceriam o primeiro

Mercado e a população de Porto Alegre169 (Oliveira, op. cit.:83).

A Revolução Farroupilha consolidou, ao nível regional, a dominação e o

predomínio dos estancieiros (Cardoso, op. cit. 504). Seu final significou para Porto Alegre

a expansão para além dos limites das fortificações, que foram demolidas por Caxias, num

gesto impregnado de simbolismo170.

Com a Província apaziguada, Porto Alegre apresentou melhoramentos em profusão

e diversos atos que envolveram a reorganização do espaço urbano foram implementados.

Em 1844 havia sido iniciada a numeração das casas e o governo de Caxias acelerou

os trabalhos. As primeiras ruas beneficiadas com isto foram as ruas da Praia, da Ponte e da

Igreja (Spalding, op. cit.:104), ou seja , as ruas principais.

Foram terminadas as obras da catedral, iniciadas as obras da Cadeia da Ponta de

Pedras, da Ponte de Pedras sobre o Riacho (Idem). Algumas ruas foram calçadas (o final da

167
A primeira iluminação da cidade, instalada em 1834, com combustível de azeite de baleia (aliás o mesmo
da iluminação instalada depois), durou muito pouco e a cidade ficou às escuras, dificultando o patrulhamento
das ruas e a defesa da cidade (Franco, 1998:210)
168
Atual Praça 15 de novembro.
169
O local é onde hoje está a Praça Parobé.
170
Alinha de fortificações não passava de uma trincheira de pau-a-pique, com barro socado entre madeiras.

60
Rua da Praia, Formosa171, Ladeira do Ouvidor172, Rua Clara173, Beco da Ópera174 ,

Varzinha175, etc.) e outras foram abertas (do Imperador176 e da Imperatriz177, etc.) (Ibidem).

Em 1850 foi instalada a Comissão de Higiene, composta por médicos e vereadores

(Ibidem:146), o Código de Posturas foi renovado e contratou-se, em 1853, o primeiro

engenheiro da Câmara (Ibidem: 109) que assumia, neste momento, papel importante no

planejamento e execução de prédios e obras públicas.

As obras do Teatro São Pedro também foram concluídas nesta época: em 1858

(Oliveira, op.cit.:154). Neste mesmo ano foi instalado o Banco da Província, primeiro do

Rio Grande do Sul. Cabe assinalar, ainda, que dois anos antes, ou seja, em 1856, começou a

funcionar o primeiro estaleiro da cidade, propriedade de um alemão (Singer, op. cit.:162) e,

em 1857 foi fundada a Praça de Comércio de Porto Alegre (Franco, 1983:42).

Todas essas obras e melhorias tem como pano de fundo uma economia próspera,

impulsionada, sobretudo, pelo desenvolvimento das colônias alemãs e do comércio com

elas (Singer, op. cit.:161).

Joseph Hörmeyer (1986:21), que esteve em Porto Alegre no início da década de

1850, escrevia, então, elogiando a beleza e a riqueza da cidade: “A causa principal de sua

171
Parte da atual Duque de Caxias.
172
Atual Gal. Câmara.
173
Atual Gal. João Manoel.
174
Atual Uruguai.
175
Atual Demétrio Ribeiro.
176
Atual Venâncio Aires.
177
Atual Rua da República.

61
riqueza deve ser imputada além do comércio ultramarino, e interno, à proximidade da

colônia alemã de São Leopoldo, distante apenas sete léguas e em comunicação com Porto

Alegre através dos rios Caí e Sinos, que desembocam no Jacui”.

Porto Alegre mostrou-se, naturalmente, o ponto de convergência da produção da

zona colonial: o acesso a essas áreas se fazia através dos rios que formam o Guaíba. Ao

mesmo tempo, era o ponto de onde partiam os bens necessários àquelas populações. Assim,

inúmeras casas que intermediavam a comercialização da produção colonial instalaram-se na

cidade e um expressivo contingente de imigrantes de tradição artesanal e mercantil

estabeleceu-se ali (Piccolo:1980).

“Além dos imigrantes encontrados como colonos no Rio


Grande do Sul, levas de imigrantes fixaram-se nas cidades
dedicando-se ao comércio e à indústria. Ao terminar o século XIX,
só um ramo industrial não estava na mão dos alemães no Rio
Grande do Sul – a “indústria da carne”. (Idem: 151)

Percebe-se que um segmento social economicamente forte, de características bem

diferentes do segmento senhorial crescia na cidade. A sociedade complexificava-se ainda

mais.

Mas quem vivia na cidade nesta época? Hörmeyer (op.cit.:25) informa que a capital

possuía 24.000 habitantes, sendo que, pelo menos, 2.000 deles eram alemães. Em 1858

62
Porto Alegre teve sua população calculada em 17.226 habitantes178, sendo 12.080 livres e

5.146 escravos, distribuídos em 2.194 domicílios (Franco, op. cit.:39).

Os alemães sobressaíram-se como comerciantes, alguns com negócios de porte (por

exemplo, Frederico Bier, Gertum e Schilling, José Raupp e Irmãos, Holtzweissing e Cia.,

antecessora da casa Bromberg ),com pequenos estabelecimentos onde fabricavam cerveja

(Leser, Gebert, Ambauer), velas (Hoenes e Becker) ou tábuas (Dreher), ou como

intelectuais (Carlos Von Kozeritz, Carlos Jansen) (Idem). Foram, também, operários e

artesãos que tinham “seu serviço sempre preferido ao dos nacionais” (Hörmeyer, op.

cit.:75), porém lhes era vetado qualquer direito político179 (Piccolo, op. cit).

No entanto, nesta época, os principais comerciantes ainda eram portugueses ou luso-

brasileiros (e entre eles estavam Lopo Gonçalves, João Guilherme Ferreira, Inácio José

Ferreira de Moura, Luiz Afonso de Azambuja, Bernardo José Barbosa, apenas para citar

alguns nomes importantes do comércio da época e que assinaram o regulamento que

constituiu a Praça do Comércio de Porto Alegre (Franco, op. cit.: 41-46). Aliás, dos nove

nomes que assinaram este regulamento, dois eram de origem alemã.

Quanto ao segmento senhorial, este continuava participando do poder, porém da

forma limitada pela Carta de 1824 que previa um sistema político altamente centralizado180

178
Segundo Roche (apud Symanski, op. cit.: 50) a população era de 18.465 habitantes. De qualquer forma, é
interessante notar que a possível redução da população pode estar relacionada ao surto de cólera-morbus
ocorrido em 1855 (Idem).
179
A Carta de 1824 restringia a participação política aos cidadãos brasileiros. Mesmo estrangeiros
naturalizados ficavam limitados pela necessidade de uma renda mínima ou pela obrigatoriedade de professar a
religião católica. Sobre isto ver Piccolo, 1980.
180
Pela Carta de 24, o presidente da Província era nomeado pelo Imperador. A Assembléia Provincial, criada
pelo ato adicional de 1834, que substituiu o Conselho Geral, era o órgão onde a elite provincial se fazia
representar. No entanto, “as leis e resoluções da Assembléia eram enviadas ao presidente da província a

63
(Piccolo, op. cit.). Porém mantinham sua dominação e seu prestígio baseados na posse de

escravos. Um exemplo da importância desses escravos enquanto elemento que conferia

superioridade social aos seus possuidores e que desqualificava quem não os tivesse é dado

por Hörmeyer (op. cit.:65):

“O costume do pais proíbe [...] aos homens a carregar


qualquer pacote, mesmo um livro, na rua; para isso existem os
negros. Esse costume é tão enraizado que, por exemplo, ninguém
entre os ordenanças dos oficiais das tropas alemãs quis conduzir um
cavalo pelas ruas, ou carregar água ou bagagem, vendo-se os
oficiais obrigados a pagar escravos para esses serviços”.

Entre a população livre que compunha o segmento social mais pobre181 em meados

do século XIX, composta por brancos brasileiros e estrangeiros e negros libertos, era

possível encontrar, além de artesãos, pequenos comerciantes182, empregados domésticos,

cavalariços e outros, sendo que estes dois últimos, segundo Hörmeyer, eram difíceis de

serem encontrados, “por serem estes afazeres considerados adequados apenas a escravos”

(idem). Além disto, havia “o imenso número de morenas livres que, dotadas de pouca ou

quem competia sancioná-las” (Piccolo, op. cit.:145). Se isso não ocorresse, eram necessários 2/3 da
Assembléia para que o presidente sancionasse a lei ou resolução (Idem). Em 1840, uma nova lei limitou ainda
mais o poder das elites provinciais “dando ao poder legislativo geral direito de revogar as leis provinciais”
(Ibidem:147). Quanto às Câmaras Municipais , criadas em lei de 1828 e que possuíam requisitos menores de
participação em relação às Assembléias Provinciais (e que, por isto, podiam ser integradas por segmentos
economicamente menos favorecidos, em termos relativos, é evidente), tinham como atribuição as Posturas,
que deveriam ser confirmadas pelas Assembléias Legislativas e dependiam do governo provincial pelas
eternas dificuldades financeiras dos municípios.
181
O termo pobre é utilizado aqui no sentido de designar aquele segmento social que possui um limitado
acesso ao consumo. “Desempenham as tarefas menos qualificadas e podem engajar-se ou não no mercado de
trabalho. Ora são empregados de alguém, tendo pois um patrão e dele recebendo seu sustento, pelo
desempenho de uma tarefa regulamentada e controlada, ora são „avulsos‟, free-lancers , que vivem de
„expedientes‟, biscates, pequenas tarefas. Politicamente, são os tais cidadãos de segunda ordem, pouco
ouvidos pelas autoridades em suas reclamações e sendo considerados suspeitos aos olhos da polícia”.
(Pesavento, 1994:110).
182
Em 1857 haviam 120 “vendas” espalhadas pela cidade. (Franco, op.cit.:39)

64
nenhuma formação, fazem de seus encantos um comércio mais ou menos decente”

(Ibidem:72), o que quer dizer, em um sentido mais amplo: há grande quantidade de pessoas

realizando trabalhos fora do mercado formal.

Esta população, ao lado de um grupo social intermediário composto por médicos,

advogados, professores, jornalistas, etc., aumenta simultaneamente ao próprio crescimento

da cidade.

Quanto aos escravos, nesta época já proibido o tráfico183, desempenhavam em Porto

Alegre, como já ficou entendido acima, funções de domésticos, artesãos, carregadores,

quitandeiras ou similares (Hörmeyer, op.cit.:78).

O escravo artesão, dono de uma técnica de trabalho mais refinada, e o escravo

doméstico foram elementos importantes na ruptura do sistema de valores da ordem

escravocrata ao evidenciarem a contradição existente entre a representação senhorial do

escravo-coisa e o homem escravo (Cardoso, op. cit.: 241). O reconhecimento da condição

de pessoa no escravo abriu a brecha, ao lado de condições estruturais tanto ao nível regional

e nacional, quanto internacional184 para a ruptura do sistema escravista e da sociedade

senhorial.

A década de 1860 foi marcada por uma expansão econômica que esteve ligada ao

crescimento da produção agrícola colonial que era exportada por Porto Alegre. Isto refletiu-

183
A lei Eusébio de Queiroz extinguiu o tráfico negreiro em 1850.
184
São bem conhecidas as pressões inglesas, surgidas num contexto de desenvolvimento capitalista, pelo fim
dos monopólios e da escravidão. O Bill Aberdeen (1845) é exemplo de instrumento inglês utilizado na
repressão ao tráfico de escravos.

65
se no crescimento urbano da capital (Singer, op. cit.) que, por sua vez, não se deu de forma

harmônica, mas que, antes, criou uma série de problemas.

Ao lado de importantes obras como a conclusão da Cadeia, o início da construção

do segundo Mercado, da Casa da Câmara e da Junta comercial (todas em 1864), o aterro da

rua Sete de setembro, o início da construção do Seminário185 (1865), a inauguração da

Hidráulica (1866), do telégrafo (1867), a conclusão do Hospital de Beneficiência

Portuguesa (1868) (Oliveira, op. cit.), do surgimento de órgãos que atestam um crescimento

das atividades político-culturais, como o primeiro jornal ilustrado do Rio Grande do Sul, o

“Sentinela do Sul”(1867), ou o jornal “A Reforma”, ligado ao PL (1868) e a fundação do

Parthenon Literário (1868) (Idem), Porto Alegre apresentava visíveis problemas com

relação à salubridade e organização do espaço. As inclusões feitas nesta década ao Código

de Posturas (op. cit. - AHMV) atestam o caos instalado pela sujeira que aumentava a par de

um crescimento desordenado do espaço urbano.

Assim, em 1861, o engenheiro da Câmara passou a ter novas atribuições no

planejamento e ordenação do espaço: agora, todos que desejassem edificar ou reedificar,

deveriam obter dele a altura das soleiras186. Os prédios construídos ou reformados

passavam a ser obrigados a recolher as águas dos telhados em canos embutidos na parede,

com esgoto passando por baixo do lajeado, sempre que o terreno permitisse (Livro de

Registro das Posturas Municipais de 1829 a 1888 – AHMV). Outras adições ao Código de

Posturas de 1829 também mostram a preocupação em disciplinar o espaço: o ato de

23/10/1862, por exemplo, organizou a fiscalização da limpeza das ruas, praças e litoral da

185
Atual Cúria Metropolitana.
186
Até então esta era uma atribuição do “arruador” da Câmara.

66
cidade, assim como o cumprimento do Código no que dizia respeito às construções,

terrenos privados e lugares públicos (Idem). Em 1866, o Código passou a proibir a venda

de água proveniente do Rio Guaíba ou do Riacho, bem como a instalação de chiqueiros e

matadouros de porcos nos limites da cidade. Em 1868, o ato de 5 de fevereiro obrigou os

moradores da capital a conservarem os “quintais, pátios e porões das casas em que residem

no maior estado de asseio”187 (Ibidem:25).

O Jornal do Comércio de novembro de 1867 (AHMV), nos relatos que fazia das

sessões da Câmara Municipal, denunciava o estado precário de calçamentos, calhas de ruas

e limpeza geral da cidade, ao mesmo tempo em que mostrava a incapacidade desta Câmara

de resolver tais problemas. A edição de 1º de novembro de 1867, por exemplo, noticiava o

envio de um requerimento à Assembléia Legislativa Provincial, solicitando urgência para

que esta autorizasse, em lei especial

“a Câmara a contratar (por concorrência) com pessoa ou companhia


que se encarregue de fazer os serviços de remoção de lixo, águas
servidas e matérias fecais das moradias particulares desta cidade,
[...]
Outrossim, a subvencionar a mesma pessoa ou
companhia com a quantia anual de 2 contos toda vez que ela se
encarregue da limpeza das praças e litoral desta cidade, que
atualmente está a cargo da municipalidade”.

Os anúncios realizados neste jornal, nesta mesma época, apontam para uma

especialização dos estabelecimentos comerciais: havia lojas de ferragem, de fazendas,


187
Esta postura liga-se, por um lado, às medidas sanitárias implementadas na luta contra uma nova epidemia
de cólera-morbus na cidade (Spalding, op. cit,:117) e, por outro, ao crescimento populacional “que ocasionou
a ocupação de porões e mesmo de prédios sem condições pare moradia” (Symanski, op.cit.:53).

67
floristas, estabelecimento fotográfico, farmácias, armazéns, agência lotérica, agentes de

fabricantes de cadeiras, colchoeiro188, seleiro189, corrieiro190, loja de sirgueiro191, etc. No

entanto, muitas coisas ainda estavam misturadas: havia loja de sirgueiro vendendo livros

(Jornal do Comércio, 7/11/1967 – AHMV), e Barbearia vendendo, alugando e aplicando

“superiores sanguessugas da europa” (Jornal do Comércio, 8/11/67 – AHMV).

A capital estava se expandindo, e cresciam os arraiais:

“A cidade começou então a sentir a necessidade de


implantar linhas de transporte coletivo, que facilitassem a
comunicação entre esses pontos e o centro. A primeira iniciativa
nesse sentido havia ocorrido [...] em 1864, com a „maxambomba‟,
um pesado carro movido a vapor com capacidade para 20
passageiros que ligava a cidade ao cemitério e ao arraial do Menino
Deus”. (Symanski, op. cit.:53-4)

As praças passaram a ter seu espaço regularizado, recebendo planejamento e

arborização, esta última, a partir da década seguinte. Na Harmonia, primeira a receber os

melhoramentos, o projeto incluiu um aterro, concluído em 1859 (Oliveira, op. cit.:161), um


192
muro e um chafariz encomendado em Paris , no local da antiga bica que fornecia água

para a população desde 1830 (Spalding, op. cit.:114). Vale lembrar que esta praça situou-se

sobre o terreno da Praia do Arsenal, onde estavam o Largo da Forca e o Pelourinho,

símbolos da violência da sociedade senhorial escravocrata e, nesta época, já desaparecidos.

188
“O que faz colchões”. (Fonseca e Roquete, 1848:280).
189
“O que faz selas” (Idem:871)
190
Entende-se, pelos artigos anunciados, que corresponde a nossa atual correaria, onde se fazem correias e
outras obras de couro, como chicotes, rédeas, etc.
191
“O que faz obras e fios e cordões de seda ou lã” (Fonseca e Roquete, op. cit.:881). E, entende-se pelos
anúncios, de cabelo ou crina.
192
O chafariz está atualmente no Parque Farroupilha (Spalding, op. cit.:248).

68
Segundo Walter Spalding (Idem:115), o nome Harmonia “foi em homenagem à destruição

da forca”. Segundo este autor, a Câmara, em ata de 12 de setembro de 1865, respondia ao

Ministério da Justiça, com relação ao pelourinho, que não existiam mais “edificações deste

gênero no município” (Ibidem).

As mudanças na cidade fizeram parte de um quadro sócio-econômico em

transformação. A economia do café, ao nível nacional, dominando o mercado mundial, foi

capaz de

“fazer o Brasil acumular divisas, que se distribuíram internamente


em efeitos multiplicadores e dinamizadores da estrutura econômica.
Tais transformações econômico-sociais acabaram por promover a
internalização do capitalismo no Brasil” (Pesavento, 1982:63).

O processo de internalização do capitalismo desenvolveu-se no pais a partir de

1870 (Idem:65) e o Rio Grande do Sul, com sua economia dependente, contou com a

agricultura colonial (alemã e italiana193) como pólo de maior capacidade de acumulação194

“proporcionando o surgimento do grande comércio e de indústrias” (Idem).

A economia pastoril também se transformou: as cercas de arame se estenderam

pelos campos, novas raças de gado foram introduzidas, os navios a vapor e as estradas de

ferro diminuíram o tempo e o custo do transporte do charque (Love, 1975:17). No entanto,

e apesar destas inovações, a charqueada – atividade econômica mais importante do sistema,


193
O início da colonização italiana no Rio Grande do Sul foi no ano de 1875, com as colônias Conde D‟Eu e
Princesa Isabel (Pesavento, 1982:61). Entre 1875 e 1889 entraram 60.000 imigrantes italianos no Estado
(Ferreira Filho, apud Souza e Müller, op. cit.:61).
194
É deste período a fase de maior desenvolvimento da lavoura colonial que abastece não só o Rio Grande do
Sul, mas também o mercado do centro do pais. (Pesavento, op. cit.:61).

69
da qual a estância criadora não passava de fornecedora de matéria-prima, manteve o

trabalho escravo que, a par das transformações dos saladeiros platinos195, tornava-se cada

vez mais anti-econômica.

A concorrência do charque platino e a crescente descapitalização da charqueada

gaúcha, bem como a carência (e o encarecimento) de braços escravos, levaram os

charqueadores a antecipar a abolição da escravidão, mantendo o trabalhador à sua

disposição sob um contrato (que desobrigava o senhor da manutenção do trabalhador)

(Pesavento, op.cit.:45). Este fato, na verdade, representou uma limitação ao

desenvolvimento capitalista deste setor, produzindo resultados negativos sobre o

desenvolvimento econômico, uma vez que as causas da desvantagem da charqueada sulina

em relação aos saladeiros do Prata situavam-se na forma de constituição e organização do

trabalho na sociedade escravocrata196 (Cardoso, op. cit.).

Na capital da Província, a década de 1870 foi uma fase de grande desenvolvimento

do capital privado e que foi coroada, em 1879, com a fundação da primeira companhia de

seguros, a Phenix (Oliveira, op. cit.:141). Porém, ainda não é possível falar-se em

industrialização:

“Em 1877 registram-se na capital atividades de fundição,


construção de navios, fabricação de cigarros, de vinagre, de cerveja

195
A partir da década de 1860, os saladeiros platinos começaram a empregar mão-de-obra assalariada, cada
vez mais especializada, generalizando-se o uso de máquinas à vapor. Ao mesmo tempo, o aproveitamento do
boi e de seus subprodutos foram maximizados. Empregaram-se melhorias sanitárias e no sistema de
transportes, bem como uma intensa propaganda dos produtos uruguaios na Europa (PESAVENTO,1989:43).
Em 1866 foi fundada no Uruguai a primeira fábrica de extrato de carne, de capital inglês e, em 1883, o
primeiro frigorífico inglês na Argentina (Idem).
196
Sobre isto ver Fernando Henrique Cardoso, 1997, onde o autor analisa em profundidade esta questão.

70
e serralheria. Destas todas apenas a fundição e estaleiro Becker
deve ter sido de fato empresa industrial” (Singer, op. cit.:171)

Segundo Singer (Idem:154), Porto Alegre tinha, em 1872, mais de 34.000

habitantes197. Comparando estes dados com aqueles fornecidos pelo censo de 1846, quando

Porto Alegre possuía uma população de pouco mais de 16.000 pessoas 198 (FEE, 1986:60),

temos um crescimento em torno dos 112% em 26 anos. No entanto, o núcleo urbano central

cresceu em velocidade ainda mais rápida199.

E em velocidade rápida cresceram os equipamentos que lhe conferiram um ar mais

moderno: a inauguração, pela Cia Carris de Ferro Porto-Alegrense, dos serviços de bondes

movidos a tração animal, em 1873, substituindo os “maxambombas” que funcionavam

sobre trilhos de madeira (Oliveira, op. cit.:144), ao lado da implantação do processo de

iluminação à gás carbonado produzidos no Gasômetro St. Peter Gás Ltda, inaugurado em

1874 e que substituiu os antigos lampiões de azeite na área central; da cidade (Idem:183),

são exemplos disto. Ao mesmo tempo, o ato de 7 de outubro de 1876, agrega ao Código de

Posturas a regularização da coleta de lixo na área central da cidade (Livro das Posturas

Municipais, op. cit. –AHMV).

197
Esta população parece incluir as paróquias de Nossa Senhora Madre de Deus, do Rosário, das Dores, de
Belém e dos Anjos da Aldeia, excluindo as de Nossa Senhora da Conceição de Viamão e do Livramento das
Pedras Brancas. Sobre isto ver o censo de 1872, FEE, 1986:81.
198
Tentando manter o mesmo critério adotado em Singer para definir a população de Porto Alegre em 1872
como sendo de 34.000 habitantes (op.cit.:154), considerei aqui os 1º e 2º distritos de Porto Alegre; o 1º, 2º e
3º distritos da Freguesia d‟Aldeia e a Freguesia de Belém, excluindo os números relativos aos distritos Norte e
Sul da Freguesia de Viamão, das Pedras Brancas, da Barra, de São João Batista e de Nossa Senhora de
Camaquam. Sobre isto, ver censo de 1848, FEE, op.cit.:60)
199
Se considerarmos apenas o 1º e 2º distritos do município, ou seja, o núcleo urbano principal da cidade de
Porto Alegre temos, pelo censo de 1846 mais de 12.000 habitantes (Idem). No censo de 1872, segundo o
mesmo critério e incluindo apenas as paróquias de Nossa Senhora da Madre de Deus, do Rosário e das Dores
e excluindo as de Nossa Senhora de Belém, da Conceição de Viamão, dos Anjos da Aldeia e do Livramento
da Pedras Brancas, temos quase 28.000 habitantes e um número de casas que ultrapassa as 4.800 (Ibidem:81).
Isto significa um crescimento de mais de 133%, mostrando que o núcleo urbano central cresceu em proporção
bem maior que o resto do município.

71
A cidade embelezou-se e se abriu ao lazer: praças foram ajardinadas e arborizadas.

Na praça da Harmonia foram instalados quiosques, um rinque de patinação, espaço para

brigas de galo e tiro ao alvo (Oliveira, Cappelletti e Ozório, 1998: 80). As preocupações

estéticas estavam na ordem do dia. O Código de Posturas de 1873 colocava em seu

primeiro capítulo que as ruas a serem abertas deveriam ter, a partir de então, no mínimo 80

palmos de largura e que as praças deveriam ser quadrados perfeitos (sempre que o terreno

permitisse), dentro do perímetro urbano. (Código de Posturas Policiais de 1873 – AHMV).

O Código regulava, ainda, a altura dos pés-direitos das casas e a altura de suas portas, bem

como a proporção que deveriam apresentar os diversos andares, entre si, em prédio de mais

de um andar, entre outras regras (Idem).

Concluíram-se os prédios da Estação Telegráfica/Repartição de Obras Públicas200,

da Casa da Câmara e da Junta Criminal (Oliveira, op. cit.:155), criou-se a Biblioteca

Pública, instalada nos porões da antiga Escola Normal na rua Duque de Caxias esquina rua

de Bragança201 (Spalding, op. cit.:129).

E também, podendo ser considerada como um símbolo do progresso e do mundo

moderno, mostrando o crescimento e a importância atingida pela zona colonial,

locomotivas à vapor passaram a ligar, a partir de 1874, Porto Alegre a São Leopoldo,

quando foi entregue a primeira estrada de ferro da Província. Dois anos depois, a linha

atingia Novo Hamburgo (Oliveira, op.cit.:147).

200
O prédio é o que hoje está na esquina da Praça Marechal Deodoro com a Rua Jerônimo Coelho, conhecido
como “Forte Apache”.
201
Atual Marechal Floriano.

72
A cidade cresceu, a população aumentou (inclusive a população pobre, é bom

lembrar), mas na verdade, as coisas não iam tão bem quanto se possa imaginar observando-

se tantas novidades: os problemas se multiplicaram.

Em 1874 uma epidemia de varíola assolou a cidade, fazendo com que a Câmara

dividisse a capital em “distritos sanitários” com o fim de implementar ações no sentido de

controlar a doença (Spalding, op.cit.:129).

O Jornal “O Fígaro” é rico em charges que criticam a sujeira, a falta de

policiamento e de luz. Em uma delas, junto a uma ilustração, está escrito algo que diz bem

a quantas andava a cidade:

O sol, a chuva e o vento


Utilíssima trindade,
Vem oferecer seus serviços
À municipalidade
Sem salário perceber
Promete com seriedade
Secar, lavar e varrer
As ruas desta cidade. (páginas avulsas 1878/79 – MCSHJC)

Pelo ato de 4 de novembro de 1877, agregavam-se dois importantes artigos ao

Código de Posturas de 1873: o primeiro proibia a construção de cortiços na área central de

Porto Alegre (Livro de Registro da Posturas Municipais. op. cit. –AHMV) e o segundo

proibia a morada em porões, dentro dos limites da cidade, que não tivessem altura, ar e

iluminação convenientes (Idem). Ora, isto mostra a existência de um número considerável

73
de pessoas vivendo em péssimas condições e, mais que isto, incomodando aqueles que

preferiam estar longe da sujeira, das doenças, da feiúra, representadas pela pobreza.

É neste contexto que se desenvolvem, primeiro o aristocrático bairro do Menino

Deus e, depois, a luxuosa Rua da Independência. No entanto, isto não significa que

importantes parcelas dos grupos economicamente dominantes não continuassem a viver na

área central. Pelo contrário, inúmeros exemplos demonstram a continuidade de ocupação

desta área pelos vários segmentos da sociedade202.

Por outro lado, o sistema de comunicações tornou-se mais eficiente, com a

instalação da Cia União Telefônica, em 1886, com capitais gaúchos e contando,

inicialmente, com 72 aparelhos (Oliveira, op.cit,:143). As linhas de bondes também se

estenderam, com a inclusão da ligação do centro com o Partenon, em 1880 (Monteiro,

op.cit.:33).

A década de 1880 foi marcada pelo coroamento do processo de transformação de

uma sociedade senhorial em uma sociedade burguesa: a concessão de alforria à grande

parte dos negros em 1884 (mediante cláusula de prestação de serviços, é verdade) e alforria

aos restantes em 1888 (Oliveira, op. cit.:141-143).

Os novos grupos sociais que surgiram no processo de transformações econômicas

e de crescimento urbano que ocorreu na segunda metade do século XIX, tiveram sua

participação política restrita, conforme já foi mencionado, por uma dominação senhorial

expressa no sistema político imperial (Piccolo, op. cit.:151). “A República foi a

202
Esta consideração é um tópico central deste trabalho e será desenvolvida mais adiante.

74
conseqüência inevitável da falta de correspondência da estrutura jurídico-política ao

processo de desenvolvimento das forças produtivas”.

A influência da colonização e imigração alemã no crescimento urbano da capital

não ficou restrita ao intercâmbio ou aos empreendimentos comerciais e industriais. A

cultura alemã mudou hábitos e transformou a paisagem de Porto Alegre:

“com a prática de esportes como o ciclismo, o remo e o tiro,


valorizava-se o rio e os arraiais para passeios e piqueniques.
Fundam-se uma série de sociedades e clubes congregando a
comunidade imigrante. [...] Esta influência estava presente no estilo
arquitetônico dos prédios, estabelecimentos comerciais, novas
empresas e sociedades fundadas” (Monteiro, op. cit.:33).

Porto Alegre, em 1890, atingiu uma população de 52.421 habitantes (FEE,

op.cit.:94). Joseph Love (op.cit.:22) chama a atenção para o fato de que a província teve sua

população dobrada entre os anos de 1872 e 1890, passando de 446.962 (FEE, op.cit.:79)

para 897.455 habitantes (Idem:94), alertando para o pequeno crescimento relativo de Porto

Alegre no mesmo período. O cálculo de Love, incluindo as áreas rurais, apontou um

aumento populacional de 19% (Love, op.cit.:22). No entanto, é preciso lembrar que em

1890 algumas áreas computadas no censo de 1872 já haviam sido desmembradas de Porto

Alegre e se tornado municípios independentes203 e, portanto, o censo de 1890 não incluiu

estas populações nos números apresentados para a capital. Assim, se compararmos os

números de 1872, retirando-se as paróquias que não constam no censo de 1890, com os

203
É o caso das paróquias de Nossa Senhora da Conceição de Viamão e Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia.
Sobre isto, ver FEE, op. cit.

75
números deste último e, assim mesmo, incluindo as populações rurais, teremos um aumento

de 66% na população da cidade. Um crescimento bastante significativo, ainda que menor

ao que foi atingido pela província, ainda mais se levarmos em consideração o número de

imigrantes italianos que entraram no Rio Grande do Sul neste período e que se instalaram

nas colônias.

Singer (op.cit.:172), lembra que é na década de 1890 que Porto Alegre começa a

se industrializar, chamando a atenção para o fato de que a burguesia existente então estava

ligada ao capital comercial.

“Em 1890 contava Porto Alegre com 9 fábricas de


cerveja, 7 de sabão e velas, 18 de charutos e cigarros, 6 de chapéus,
6 de banha, 51 de calçados, 62 olarias, 6 armadores, 6 refinarias de
açúcar, 5 curtumes, etc. O grande número de estabelecimentos em
cada ramo indica que se tratam de oficinas. É notável a ausência da
indústria têxtil, o mais importante ramo da indústria do Estado nesta
época” (Idem:171).

Em 1892 uma lei ampliou os limites urbanos da capital para além dos anteriores a

fim de estender os serviços de saneamento, administração e policiamento a cargo da

municipalidade (Pesavento, 1994:137). A cidade crescia ainda mais.

A intensiva ocupação do solo urbano, que atingirá a concentração de 33,2

habitantes por quilômetro quadrado em 1900 (FEE, op.cit.:108), resultou na sua grande

valorização (Idem:138). Ao mesmo tempo, a sujeira e a promiscuidade representadas pela

76
população pobre que lotava cortiços, tabernas, prostíbulos e áreas públicas, tornava urgente

um “saneamento” (leia-se varrer a pobreza) do centro da cidade.

“Como diz Margarth Rago, em finais do século 19 e


início do século 20, a representação do pobre estrutura-se em
função de ser este o „outro‟ da burguesia limpa e civilizada. O pobre
é feio, sujo, animalesco, selvagem, supersticioso, tem maus
instintos; é, em suma, um „detrito‟ da sociedade” (Mauch, 1994:11,
nota 1).

Em 1898, com a instalação da energia elétrica da Cia. Fiat Lux 204 (Oliveira,

op.cit.:183), “a elite local podia contemplar o espetáculo das vitrines” (Monteiro,

op.cit.:55), mas nem tão tranqüilamente quanto se possa supor: prostitutas, mendigos,

desempregados, mau cheiro e sujeira também estavam presentes e os jornais da época estão

recheados de denúncias, realizando uma campanha ferrenha pela imposição daquilo que

eles consideram como sendo as normas da civilização205.

Em 1896 foi criada a Polícia Administrativa, que tinha a finalidade de “exercer no

espaço público uma vigilância sistemática sobre uma parcela da população considerada

„suspeita‟ ” (Mauch, op.cit.:3).

Porto Alegre recebia melhorias e a vida era, mais uma vez, reordenada no espaço

urbano. O Código de Posturas Municipais sobre construções de 1893 (AHMV) proibia as

edificações de madeira no alinhamento das ruas e contíguas a outras construções; obrigava

204
Em 1898 a Fiat Lux só fornecia iluminação domiciliar (Oliveira, op.cit.:183). As ruas continuavam tendo
iluminação à querosene (317 lampiões ) e a gás (582 combustores) (Franco, 1988:212).
205
O jornal “A Gazetinha” é um exemplo espetacular desta verdadeira cruzada em prol do “saneamento” da
cidade.

77
os prédios destinados à habitação coletiva (hotéis, casas de pensão, etc.) a satisfazerem as

condições de higiene, segurança e estética, a juízo da Intendência.. A verdade é que as

melhorias urbanas da civilização moderna não eram para todos: “Todos pagavam impostos,

mas os serviços da iluminação, coleta de lixo, esgotos206, arruamentos eram desiguais”

(Pesavento, 1996;40).

De qualquer forma, Porto Alegre viu crescer, neste final de século, seu comércio,

sua indústria, seus equipamentos de lazer, de educação e de administração. Assim, foi

instalada, em1891 a Cia. Fiação e Tecidos de Porto Alegre, em 1892 a Fábrica de Calçados

Companhia Progresso, em1893 a Cia. Fabril Porto-alegrense e a Fábrica de Pregos Ponta de

Paris, em 1894 a Cervejaria Ritter e a Cia. De Vidro Sul Brasil (Souza e Müller, op.cit.:85).

Em 1895 foi fundado o jornal Correio do Povo (Oliveira,op.cit.:143). O bairro Tristeza

passou a acolher as casas de veraneio da elite local e uma estrada de ferro ligando o centro

da capital até lá foi instalada em 1896 (Idem). Também em 1896 o Cynematógrafo foi

apresentado pela primeira vez em Porto Alegre (Ibidem). Neste mesmo ano surgiu a

Faculdade de Farmácia, a Escola de Engenharia e o Ginásio Júlio de Castilhos e três anos

depois, a Escola de Medicina e a Escola Livre de Direito (Ibidem). O Palácio Piratini foi

iniciado em 1896 e dois anos depois foi lançada a pedra fundamental do Paço Municipal

(Franco, op.cit:302-4). Neste período há, também, uma “febre” de reformas nas fachadas

das residências da cidade, que se estende, ao menos, até a segunda década do século XX207.

206
Na realidade, o serviço de esgotos cloacais só foi inaugurado em 1912 (Franco, 1998:154).

207
Isto é visível na quantidade de processos que dão entrada na Intendência Municipal no período, a fim de
receberem licença para realizarem as obras (Processos microfilmados – APM).

78
Essa expansão urbana de Porto Alegre, aqui situada em termos de

desenvolvimento de processos econômicos e sociais, deixou suas marcas, em maior ou

menor grau, na paisagem atual da cidade. Estas marcas, ou seja, as evidências empíricas

materiais de paisagens urbanas do passado, podem nos ajudar a compreender melhor este

passado, pela reconstituição das paisagens: o registro arqueológico é mais “democrático”

que o registro escrito. Assim como os administradores, senhores de escravos e comerciantes

letrados, também o homem comum, o analfabeto, o pobre, o escravo, a prostituta, deixaram

seus vestígios, de alguma forma, na paisagem contemporânea, muitas vezes, é verdade,

escondida do olhar mais descuidado. Vemos tão facilmente o Teatro São Pedro e, para

tomar um exemplo de arquitetura doméstica, o Solar dos Câmara. Mais que isto,

continuamos a utilizar esses lugares, ressignificados, é verdade. Mas quem se importa com

aquelas casas de porta e janela, sem um único morador ilustre que lhe contasse a história,

ou sem a suntuosidade dos solares e prédios públicos?

Guardadas as limitações impostas por uma arqueologia sem escavação 208 (que

seria capaz de revelar bem mais) passarei, a seguir, a analisar estes vestígios materiais que

compunham as paisagens passadas de Porto Alegre.

208
É bem verdade que, com relação às estruturas arquitetônicas, sobreviveram em muito maior número, na
paisagem atual, aquelas ligadas às camadas sociais dominantes ou que tiveram funções público-
administrativas, seja por suas características próprias que lhes conferem maior durabilidade material, seja pelo
seu significado simbólico que resulta num esforço de preservação. Por outro lado, também há a questão de
que o número dessas estruturas ainda hoje existentes é tanto maior quanto mais próximo o período de sua
construção da atualidade, rareando à medida que o tempo passa. Mas isto também é verdade para o
documento escrito.

79
2. OS LUGARES

Imagine-se a cidade dos anos 30 oitocentistas: dia de sol, mês de abril, entre sete e

oito horas da manhã. Em frente à Igreja das Dores, uma pequena multidão reúne-se “diante

do instrumento de suplício de um divino legislador” (Isabelle, op.cit.:67) para ver “um

negro condenado a duzentas, quinhentas, mil, seis mil fustigadas de relho”209 (Idem).

Saindo dali e caminhando em direção à Alfândega, passando pela esquina do Beco dos

Guaranis210, um mendigo cego, aos gritos, afronta os que passavam sem dar uma esmola

(Coruja, 1983:89). No porto, “a barra coberta de barcos” (Isabelle, op. cit.:55), imensos e

pesados fardos são descarregados dos navios por guindastes situados na extremidade do

trapiche de onde são carregados pelos escravos até o pátio da alfândega (Idem). No Largo

da Quitanda, a agitação das compras e vendas de alimentos. Negros vendendo, negros

carregando compras dos seus senhores. As casas em frente, na Rua da Praia, mostram uma

arquitetura simples, “com grande número de janelas no primeiro andar e somente portas

ao rés do chão”(Ibidem). Ali moram e tem seus negócios os comerciantes mais importantes

da cidade. Um aguadeiro passa cantando em voz bem alta, anunciando seu produto (Coruja,

op. cit.:89). Pessoas chegam de todo lado: este é o principal ponto de reunião da cidade nos

dias comuns.

O Pelourinho, a rua com suas esquinas, o largo da Quitanda, as casas da Rua da

Praia, são lugares que podem ser definidos, mais ou menos facilmente, por seus limites

209
Interessante notar que os castigos públicos aos negros já haviam sido proibidos em 1831 pelo Código de
Posturas (AHMV) e que Isabelle esteve em Porto Alegre em 1834. Apesar da narração um tanto romanceada
(alguém resistiria a 6.000 chibatadas?) a descrição é rica enquanto representação.
210
Atual General Vasco Alves, chamada assim porque durante muitos anos esteve aquartelado ali um
regimento formado, em sua maioria, por índios guaranis (Coruja, 1983:109).

80
físicos. Mais do que isto, eles são o lócus privilegiado de práticas sociais: onde se castiga,

onde se mendiga, onde se negocia, onde se mora. Dizendo de outra forma, áreas onde as

ações humanas deixaram suas marcas e afetaram, em maior ou menor grau, o mundo

material. Os lugares, repetindo, são onde as coisas estão.

Uma das mais claras e marcantes formas de estabelecer limites no ambiente físico e

definir lugares é através da instauração de estruturas arquitetônicas: casas, igrejas, palácios.

É nelas que a análise dos lugares será centrada primeiramente.

2.1 As Estruturas Arquitetônicas

A arquitetura é a mais evidente forma de organização espacial numa paisagem

urbana. Constitui-se, portanto, no mais claro meio de observar as formas através das quais

os homens realizam a transformação do caos da natureza na ordem da cultura211. Dito de

outra maneira, as estruturas arquitetônicas apresentam-se como elementos preciosos para

observar os modos através dos quais uma sociedade categorizou o seu meio e como

representou essas categorias212.

211
A importância do simbolismo da passagem da natureza à cultura foi demonstrada por Lévi-Strauss,
especialmente no primeiro volume das Mitológicas, O cru e o cozido (1991) através de mitos indígenas sul-
americanos. Lévi-Strauss defendeu a idéia de que a oposição natureza/cultura (que corresponde à distinção
entre animalidade e humanidade) está sempre latente nas atitudes e comportamentos do homem (LEACH,
1977:37).
212
O ponto de ruptura, onde termina a natureza e começa a cultura, é dado pela capacidade de comunicação
simbólica do homem. Lévi-Strauss defendeu o ponto-de-vista, com o qual concordo, que a linguagem (e é
bom lembrar que não é apenas a linguagem falada) é o que permite o homem comunicar, estabelecer relações
sociais e, num outro nível, pensar através de símbolos (LEACH, op. cit.).

81
As estruturas arquitetônicas, como observou Sanders (1990:40), “parecem ser um

dos mais valiosos artefatos213 disponíveis para os historiadores culturais” e para o

arqueólogo elas apresentam, segundo este autor, um outro valioso atributo: “a arquitetura é

mais apta a reter o seu contexto original de uso e, comparada a outros objetos, o meio

construído é o último afetado pelos distúrbios do processo de formação do sítio”(Idem).

Os autores que tem estudado as relações entre arquitetura e uso do espaço possuem

diferentes pontos-de-vista e propõem diversas interpretações: enquanto uns, como Kent

(1990:3), consideram que a arquitetura é um reflexo das formas de uso do espaço (que, por

sua vez, é um reflexo da cultura)214, ou, como prefere Rapoport (1990:10), um reflexo de

“expressões sociais da cultura”, posição também adotada por Symanski (1998), outros,

como Donley-Reid (1990:116), vêem-na como estruturadora de aspectos da cultura. Na

verdade, como mostrou Lawrence (1990: 75), talvez não seja produtivo tomar essas

relações de forma estática, nem pensar que existam leis que as prescrevam. Aliás, muitos

autores, entre eles o próprio Lawrence, Kent (op. cit.) e Rapoport (op. cit.), concordam que

o desenho ou a forma arquitetônica, não são capazes de determinar comportamentos, mas,

no máximo, como lembrou Rapoport (Idem.), podem servir como artifício mnemônico,

onde arquitetura sugere tipos particulares de comportamentos.

Kent (op. cit.: 2) lembrou que arquitetura é, geralmente, uma elaboração consciente

daqueles que a promovem e que ela depende de contextos históricos e culturais específicos.

Ela é, ainda segundo esta autora, uma forma de estabelecer fronteiras onde elas não existem

213
O grifo é meu
214
Kent (1990:3) salienta que deste ponto-de-vista a importância do meio físico é muito pequena,
constituindo-se, apenas, num fator geral limitante.

82
naturalmente215. Lawrence (1990: 76) argumentou que o conceito de fronteira, depois dos

estudos de Durkheim e Mauss, tem sido considerado fundamental em todas as

classificações humanas. Leach (1978) mostrou como a introdução de fronteiras artificiais,

através da utilização de símbolos (verbais e não verbais), é capaz de distinguir classes de

coisas ou ações que, de outra forma, se manteriam indiferenciadas. No entanto, é preciso ter

presente que as fronteiras tem uma natureza implicitamente ambígua (Idem.:44). Elas

representam zonas intermediárias que separam, mas que também permitem, favorecem e,

mesmo, obrigam, a comunicar e relacionar domínios.

Lawrence (op. cit.:77) alerta para o fato que “uma fronteira simbólica visível e

acessível entre dois domínios é mais dependente de regras e convenções sociais que uma

barreira física”. Assim, ainda seguindo as propostas deste autor, se quisermos

compreender “significados atribuídos ao meio construído, então é necessário examinar

como o comportamento é regulado por códigos e convenções implícitos [...] e normas e

regras explícitas” (Ibidem).

Considero que as formas arquitetônicas e os arranjos que possam apresentar

possuem sentidos e valores que lhes são atribuídos mediante convenções sociais. Assim,

estas formas apresentam, sempre, a possibilidade de adquirir, com o passar do tempo,

valores diferentes dos originais e os espaços podem ser, também, diferentemente

apropriados. Portanto, não apenas a forma, mas também a organização e o uso de estruturas

arquitetônicas estão embebidos das idéias que os geraram e só podem ser compreendidos

215
Particularmente penso que elementos do meio natural (rios, montanhas, etc.) tornam-se fronteiras pela
atribuição (humana) deste sentido a eles.

83
levando-se em conta os processos sócio-históricos nos quais estão inseridos ( Lawrence,

1985).

A proposta metodológica de análise das estruturas arquitetônicas é a de avaliar que

grupos estão envolvidos na elaboração do desenho arquitetônico dos prédios e nos seus

usos, buscando as idéias e valores que estão sendo mobilizados para definir e delimitar os

espaços, bem como, identificar os mecanismos sócio-políticos e econômicos que estão

sendo utilizados para expressar essas idéias e valores nos desenhos e usos das edificações

(Lawrence, 1990:77). Neste sentido é que se procurou conjugar a análise das estruturas

arquitetônicas com a dos Códigos de Posturas e dos discursos dos agentes sociais nos

jornais, relatos e crônicas, no decorrer de um processo sócio-histórico.

O tratamento dado às estruturas arquitetônicas levou em conta a distinção entre

arquitetura vernácula216 e arquitetura acadêmica217 já que ambas refletem aspectos

diferentes da cultura que lhes são subjacentes (Deetz, 1977: 92-95).

A arquitetura acadêmica, muito mais relacionada aos prédios públicos do que às

moradias particulares, possui características que a tornam facilmente situável no tempo, e,

portanto, num processo sócio-histórico. Esses prédios preservam nas suas fachadas

elementos arquitetônicos bem definidos que os ligam a determinados movimentos, como o

216
A arquitetura vernácula é aquela que foi construída pelos próprios usuários do edifício ou por alguém que
faz parte da mesma comunidade. “...são produtos imediatos de seus usuários e formam um indicador sensível
dos sentimentos íntimos dessas pessoas, suas idéias sobre o que é ou não apropriado para elas.
Conseqüentemente, mudança nas atitudes, valores e visões de mundo são muito prováveis de se refletirem em
mudanças nas formas da arquitetura vernácula”.(Deetz, 1977:93).
217
A arquitetura acadêmica, segundo Deetz (Idem.), resulta de projetos previamente criados por profissionais
treinados que refletem estilos ligados à ordens arquitetônicas formais: “Isto é muito menos indicativo de
atitudes e estilos de vida dos ocupantes da edificação criada”.

84
neoclássico ou o ecletismo deliberado, por exemplo. Por outro lado, pela importância que

assumem na paisagem (tanto em termos físicos como simbólicos), costumam ser bem

estudados, possuindo, na maior parte das vezes, documentação escrita que atesta data de

construção e autoria. Estas estruturas serão discutidas e descritas mais adiante.

Com a arquitetura vernácula, que integra o conjunto de estruturas que chamarei de

“casas”218, a análise torna-se bem mais difícil, apresentando uma série de problemas que

precisam ser colocados e discutidos.

218
Para os fins deste estudo, considero “casas” aquelas estruturas arquitetônicas utilizadas tanto para fins
residenciais como comerciais, que tenham tido como proprietários um ou vários indivíduos. Em outras
palavras, que tenham sido propriedade privada de fins residenciais e/ou comerciais. Não estão incluídos,
portanto, prédios públicos ou religiosos.

85
2.1.1 – As Casas: a arquitetura vernácula.

“Porque a casa é o nosso canto no mundo. Ela é, como se


diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos.
Um cosmos em toda acepção do termo.”
Gaston Bachelard

A primeira e mais fundamental questão a ser resolvida foi a própria identificação

das estruturas arquitetônicas vernáculas remanescentes do século XIX na área central da

cidade. O que deveria ser considerado como uma estrutura remanescente de uma casa do

século XIX? Uma edificação inteira, ou se poderia incluir restos de edificações, como uma

parede ou um muro em ruínas? O critério básico adotado foi que tal estrutura permitisse

observar atributos físicos capazes de revelar aspectos não materiais da cultura.

A utilização dos elementos constitutivos das fachadas atendeu a duas questões: a

primeira, de ordem prática, relacionou-se à impossibilidade de observar o interior dessas

casas. Algumas vezes (poucas), obteve-se apenas alguma curta informação do morador

sobre o que poderia existir atrás da parede que limitava a sua casa (leia-se lar)219 do espaço

onde era permitida a estada de estranhos: às vezes uma peça frontal, onde havia um

pequeno negócio, mas na maior parte dos casos, a rua. A segunda questão relaciona-se à

possibilidade de entender a casa como um canal de comunicação não-verbal. Blanton

(1994) considerou dois tipos de comunicação que poderiam ser veiculados através da casa:

219
Foi interessante e assustador verificar que aquelas pessoas vivem um estado de pânico frente à
possibilidade de que suas casas sofram algum tipo de fiscalização do poder público. Em geral, quando se
iniciava uma conversa e explicava-se que se tratava de “um trabalho para a faculdade”, sorrisos surgiam nos
rostos e se ouvia exclamações prenhes de orgulho: “Ah, esta casa é muito antiga!”. Mas à primeira pergunta
do tipo “tem pátio nos fundos?”, as expressões se fechavam e as portas também.

86
a indexal e a canônica. Na primeira, seus elementos transmitem mensagens sobre os seus

ocupantes para indivíduos ou grupos externos à casa. No modo indexal, a comunicação se

realiza primariamente através de “áreas e elementos mais públicos, incluindo

especialmente a fachada ou outras características exteriores” (Idem:11), fornecendo

informações sobre variáveis como gosto ou riqueza de seus ocupantes. O que é comunicado

é uma identidade social. Na comunicação canônica, o que é transmitido relaciona-se a

“conceitos mantidos em comum pelas pessoas que participam em um mesmo sistema

cultural” (Idem.:10). As mensagens dizem respeito à divisões sociais ligadas à esquemas

cosmológicos. Nas casas essa comunicação atua, antes de tudo, sobre seus ocupantes e está

relacionada, especialmente, aos seus aspectos internos (Ibidem). No entanto, não é só isto.

Assim como a comunicação indexal está presente em locais internos às casa (regiões mais

“públicas” como corredores de entrada ou salas de visitas), também as mensagens

canônicas podem tomar uma forma pública, transformando-se em um tipo de exibição

indexal (Ibidem:12).

“Através da exibição pública de símbolos potentes e


normas culturais [...] eu sugiro que a unidade doméstica está
engajada em atos que servem para validar publicamente sua
aceitação das proposições mantidas em comum por todos os
membros de seu grupo cultural, assim afirmando sua ligação social
a uma comunidade [...] e não apenas seu status atual de riqueza”
(Ibidem.:13).

A par disto, considerou-se como estrutura arquitetônica vernácula um universo que

engloba desde uma edificação completa e ainda hoje habitada, até fachadas de casas que se

87
mantêm atualmente apenas fazendo às vezes de muros para estacionamentos, passando por

edificações em ruínas ou semi-destruídas.

Mas a questão inicial, da identificação dessas estruturas, ainda se mantém: que

características deveriam ser levadas em conta que pudessem fazer reconhecer uma

determinada estrutura como pertencente ao amplo período representado pelo século XIX?

A bibliografia sobre a história da arquitetura brasileira consultada220 forneceu as primeiras

pistas a fim de verificar nos prédios um padrão morfológico externo que os tornasse

reconhecíveis. Foi feita uma listagem do conjunto de atributos que situariam, em princípio,

cada estrutura dentro de um amplo período de tempo (o século XIX) e, dentro dele, em

períodos mais específicos221. Por exemplo, edificações coloniais possuem atributos que as

diferenciam de edificações ecléticas, que, por sua vez, são posteriores àquelas.

Aqui é necessário fazer um parênteses e explicar o que se entende por edificação


colonial e edificação eclética222.
A casa colonial, construída em lotes estreitos e profundos característicos deste

período, estava implantada ocupando os limites laterais do terreno e diretamente no

alinhamento da rua, que se definia, assim, pelas edificações. Apresentava, em sua versão

térrea, cômodos encarreirados. A peça da frente, com janela no alinhamento da rua, era

220
O conjunto de caracteres básicos próprios às construções do século XIX foram obtidos, especialmente, em
Reis Filho (1976), Lemos (1987 e 1989), Weimer (1992), Mascarello (1992), Bello (1997) e Fabris (1993).
221
É necessário deixar claro que as estruturas vernáculas que considerou-se como aquelas que comporiam o
quadro arquitetônico geral do século XIX são, por um lado, a casa colonial e, por outro, as estruturas
ecléticas.
222
A caracterização das edificações coloniais e ecléticas teve por base a análise bibliográfica e o seu
confronto com a documentação primária existente, em especial as plantas anexas aos processos microfilmados
no APM, bem como as gravuras e fotografias existentes sobre o período e, finalmente, com a realidade
material existente na área de pesquisa. É importante frisar, por isto, que os elementos aqui considerados como
característicos de cada movimento arquitetônico, os são em nível local, não havendo nenhuma intenção de
estender esta caracterização para além dos limites da área pesquisada.

88
seguida pelas alcovas, tendo ao fundo a varanda, tudo ligado por um corredor lateral

(Lemos, 1989:32). Esta peça podia ser sala ou uma oficina ou loja. Tanto nas casas térreas

como nos sobrados, as aberturas eram, em geral, arrematadas com vergas de arco abatido e

mantinham um espaçamento uniforme entre elas. As paredes eram grossas223 e os telhados

elementares, utilizando-se esquemas simples e mostrando aspectos arquitetônicos

uniformes (Reis Filho, op. cit.). As técnicas construtivas apresentavam precário nível

tecnológico (baseado no trabalho escravo, sem qualificação) e os prédios mantinham um

esquema básico, sem grandes variações (Idem.:26). A cozinha estava afastada do corpo da

casa que possuía uma zona íntima vedada a estranhos (Lemos, 1987:93)224. Nas casas mais

ricas as diferenças situavam-se no tamanho e número de peças, mantendo as demais

características. O sobrado tinha seu pavimento térreo destinado à utilização de lojas,

depósitos ou acomodações de escravos, ou animais e não eram utilizados pelas famílias,

que habitavam o piso superior assoalhado (Ibidem:28).

223
A tecnologia existente então impunha tal característica. A inexistência do cimento implicava em paredes
espessas para que estas pudessem se sustentar, resistir a cargas e forças (vãos para aberturas, peso do telhado,
etc.). Lemos (1987:97) considerou que o clima foi um fator determinante, e que as paredes grossas tinham a
função de absorver o calor tropical, o que, no caso de Porto Alegre, só poderia ser entendido de outra
perspectiva. De qualquer forma, a arquitetura deste período foi caracterizada por este autor como “arquitetura
do desperdício: exagerada bitola das madeiras, que não custavam nada; grossas paredes de grande altura
levantadas pela mão-de-obra escrava” (Idem)
224
Lemos (Ibidem) também imputa ao clima tropical esta característica, que em Portugal nunca teria existido:
o calor tropical teria afastado o fogão da casa. Da mesma forma a preocupação com a possibilidade de
incêndios em casas que primeiramente utilizavam a palha em sua constituição, ao menos na cobertura também
teria sido um fator a ser considerado. Novamente Porto Alegre foge a esta característica climática e é
surpreendente não apenas o afastamento da cozinha como a inexistência de lareiras nas casas, ao menos nas
mais ricas, tendo em vista o frio e a umidade, ainda que o risco de incêndio fosse um fator importante. Saint
Hilaire, perplexo, queixava-se: “Esse frio repete-se todos os anos. Toda gente se queixa dele, sem contudo
procurar meios eficazes de defesa contra o inverno [...]. Ninguém tem a idéia de aquecer os quartos,
trazendo-os bem fechados e munidos de lareira. Há aqui grande número de casas muito bonitas, bem
construídas e bem mobiliadas, mas não há uma sequer, que possua lareira ou chaminé” (Saint Hilaire, 1974:
35).

89
O Ecletismo é considerado aqui como aquela concepção arquitetônica que engloba

desde o neoclássico até o Art-Déco, este último, é claro, surgido no século XX. Patteta

(apud Bello, 1997:37) dividiu a arquitetura eclética em três correntes principais: 1)

“composição estilística” que se baseia na imitação de um tema específico do passado e

associa-se a um estilo definido (neoclássico, neogótico, neocolonial, etc.), “historicismo

tipológico” que relaciona um estilo ao uso do prédio (o neogótico associado às igrejas, o

neoclássico aos museus ou sedes de governo, etc.) e 3) “pastiches compositivos” (ou

“ecletismo deliberado” (segundo Schlez, apud Bello, op. cit.:37) que se caracterizam

“por soluções inéditas e historicamente „inadmissíveis‟, resultantes


da utilização simultânea de vários repertórios estilísticos, ou mesmo
da utilização de matrizes formais não relacionadas com a história e
a tradição clássica, como é o caso da temática da natureza e dos
exotismos” (Bello, op. cit.:37).

O ecletismo tem sido considerado como um movimento que, em sua origem e

evolução, está associado à trajetória de ascensão da burguesia (Idem:36) e que foi

alimentado pelas idéias de modernidade e progresso presentes “no Iluminismo, nos ideais

da Revolução Francesa, na industrialização, na transformação do estilo de vida, na

emergência do nacionalismo, no positivismo, nas imagens do cinema”(Ibidem.), processo

que, segundo Segre (apud. Bello, op. cit.:37), acabaria desembocando no Movimento

Moderno.

Para este estudo interessa sobretudo, por um lado, a vertente neoclássica do

ecletismo, que teria entrado no Brasil através da Missão Francesa (1816) e se difundido

90
pelas províncias de forma bastante simplificada, tendo sido, em Porto Alegre,

especialmente importante nos edifícios públicos. Por outro lado, importa o ecletismo

deliberado que será uma resposta arquitetônica tipicamente urbana às mudanças de ordem

técnica, econômica e social, ocorridas em nível mundial (Reis Filho, op. cit.:152), conforme

já foi referido acima, e introduzidas em Porto Alegre a partir da segunda metade do século

XIX.

O contexto de introdução do neoclássico no Brasil incluiu, segundo Bello (op. cit.:

75) a transferência da Corte para o Brasil, que resultou numa “urgente necessidade de criar

um cenário urbano mais adequado à situação”(Idem) e a abertura dos portos à Inglaterra,

em 1808. Segundo Reis Filho (Ibidem: 41), os agentes sociais identificados com os

interesses coloniais viam na corte do Rio de Janeiro um modelo a ser seguido: imitando

costumes, adotando padrões artísticos oficiais. A arquitetura permitia, neste sentido,

exteriorizar os vínculos supostamente existentes entre camadas locais (e seu poder) e o

poder central (Idem).

“[os sobrados] construídos pelos mestres de obra portugueses com


suas fachadas revestidas de azulejos e os portais de pedra,
obedeciam à mesma divisão interna dos sobrados setecentista e
utilizavam as mesma técnicas construtivas cuja existência dependia
fundamentalmente do trabalho escravo” (Ibidem: 114).

Nas construções vernáculas de Porto Alegre, e ainda segundo Reis Filho, o

neoclássico via-se limitado pelas condições de técnica construtiva, pelos materiais e pela

91
mão-de-obra, ficando restrito às fachadas e mantendo, no interior dos prédios, a mesma

distribuição das casas coloniais ( Idem:126).

“As construções, aproveitando mão-de-obra escrava, eram


rudimentares. Os elementos estruturais, sempre grosseiros,[...] não
permitiam o uso de colunatas, escadarias, frontões ou quaisquer tipo
de soluções mais complexas. Nessas condições, as características
neoclássicas ficavam restritas apenas a elementos de acabamento
das fachadas, com importância secundária, como as platibandas,
com seus vasos e suas figuras de louça ou as portas e janelas
arrematadas com vergas de arco pleno, que vinham substituir os
arcos de centro abatido, de estilo barroco. Em muitos casos, as
vergas eram retilíneas. Arrematadas por uma cimalha saliente, ou
por um pequeno frontão.” (Ibidem: 125-6).

As maiores inovações introduzidas com o neoclássico ficaram por conta dos

equipamentos importados, como vidros, utilizados sobretudo nas bandeiras de portas e

janelas, calhas, papéis decorativos, estes últimos salientando uma preocupação com a

decoração interna das casas e uma intensificação da vida social (Ibidem). Também é aí que

surge a casa de porão alto. As edificações continuam sendo feitas no alinhamento da rua,

ocupam os limites laterais do lote e apresentam, na fachada, aberturas estabelecidas

obedecendo um ritmo constante. O sistema construtivo permaneceu o mesmo, como já foi

dito, e as alterações na ornamentação externa não chegaram a representar uma ruptura

compositiva em relação às edificações remanescentes da cidade colonial (Bello, op. cit.:

77).

92
A burguesia urbana emergente que trás consigo o ideário do progresso (do que está

no futuro e se contrapõe ao tradicional) passa a empenhar-se em romper, de todas as

formas, com qualquer vestígio do colonial (Fabris, 1993). Há uma necessidade de se fazer

impor sobre o restante da sociedade, tanto aos setores mais pobres, quanto à aristocracia.

Como expressão de uma classe ascendente em busca de status, o ecletismo (deliberado) terá

sua mais importante manifestação na fachada dos prédios (Idem).

O novo ideário associa-se à introdução de novas técnicas. Nas palavras de Lemos

(1987: 70), o “ecletismo é a linguagem eufórica da liberdade calcada na nova tecnologia”

ou ainda “era o apelo à imaginação. Era a recriação” (Idem). Nos termos de Annatereza

Fabris (1993: 137), o ecletismo expressava a vontade de ser moderno na “especularização

do espaço urbano e ao concentrar toda atenção nos elementos constitutivos do cenário”.

As paredes externas passam a ser revestidas de massa, empregando-se elementos

decorativos inspirados no barroco francês e italiano (Reis Filho, op. cit.: 178).

A importação em massa de materiais e o surgimento de novos conceitos

relacionados a higiene e habitação (Lemos, 1987: 101) levou à mudança da estrutura das

casas. A possibilidade técnica de realizar vãos maiores permitiu a instalação de janelas

também maiores e mais próximas, o que veio ao encontro das idéias higienistas de

necessidade de ventilação e iluminação dos ambientes domésticos (Idem: 102).

As casas continuaram sendo construídas no alinhamento das ruas, mas algumas

delas passaram a apresentar recuo em uma das laterais do lote, onde eram instalados
93
jardins. As casa maiores podiam apresentar recuo em ambos os lados e, neste último caso,

um deles era organizado como jardim e ali era colocada a entrada principal, sendo que o

outro configurava apenas uma estreita passagem lateral, geralmente com função de

iluminação e arejamento interno (Reis Filho: 170-1). O atual Museu Júlio de Castilhos é um

exemplo deste tipo de edificação na área pesquisada. Segundo Reis Filho (op. cit.), estas

características apontam para importantes inovações de ordem técnica: introdução de novos

sistemas de cobertura, de equipamentos (como calhas e condutores de ferro 225) e,

ingrediente fundamental, mão-de-obra capaz de executar esta arquitetura.

O ecletismo deliberado manteve com poucas exceções (como atestam as plantas

anexadas aos processos existentes no APM), fachadas que apresentam aberturas num ritmo

constante. As paredes externas, pelo menos nos exemplos mais antigos, mantinham uma

largura de “cerca de 60 cm , que se reduziam a menos da metade nas paredes internas e

sob o peitoril das janelas” (Reis Filho, op. cit:159).

Os pisos ladrilhados (importados) permitiram a instalação de cozinhas e banheiros

no corpo da casa incluídos, pela primeira vez, nos programas de construção (Reis Filho:

1976). Os setores médios conheceram, nos termos de Lemos (Ibidem) “o binômio

hidráulico: banheiro-cozinha” sempre construídos um ao lado do outro, por óbvios motivos

de economia. As moradias mais ricas distinguem as zonas de repousar, de serviço e de

receber (é bom lembrar que a iluminação a gás nos domicílios favoreceu uma forma de

225
Até então, os telhados seguiam a tradição luso-brasileira de uma ou duas águas no sentido frente-fundos.
Este sistema visava lançar parte das águas da chuva no próprio pátio e parte na rua, a fim de que houvesse a
absorção destas águas pelo terreno, devido à impossibilidade de lançar mão de sistemas de captação pluviais.
(Reis Filho, op. cit.:26). Ao mesmo tempo, a construção sobre os limites laterais do lote “procurava garantir
uma relativa estabilidade e proteção das empenas contra a chuva...” (Idem.).

94
sociabilidade, cujo espaço básico era a casa) dando maior importância à sala de visitas que

passou a ser ornada com tapetes, cortinas, quadros, piano, “flores que antes só existiam nos

altares e nos túmulos” (Ibidem: 105). A importância dos recuos laterais aparecia também

com a função de, além do fornecimento de ar e luz, constituir um acesso direto da rua à área

de serviço (Ibidem: 104).

Os espaços internos se diferenciam e as casas procuram, pela altura dos porões,

afastarem-se dos olhares da rua buscando a privacidade da vida familiar 226. É importante

salientar que, no caso específico de Porto Alegre, estas novidades que vão sendo

introduzidas aparecem nas residências mais ricas nas últimas décadas do século XIX e, na

mais simples, apenas nas primeiras décadas deste século.

Os setores sociais mais pobres, que não tinham acesso aos meios necessários a

realização de tantas mudanças227 passaram a ornamentar a fachada de suas casas com

“detalhes decorativos” que sintetizavam as aspirações de prestígio e ascensão social de seus

habitantes e a vontade de contribuir, na medida do possível, à qualificação e

embelezamento da cidade, patrimônio comum imaginário de toda sociedade (Fabris, 1993:

139).

226
A privacidade doméstica, marca registrada do modo de vida burguês (Hall, apud Symanski, op.cit:86 nota
28), foi uma característica marcante do século XIX, tanto ao nível mundial, quanto nacional.
227
A permanência do lote urbano colonial estreito e comprido na área central da cidade impedia a
modificação de estruturas arquitetônicas tradicionais. Ou se adquiria dois ou mais lotes a fim de construir com
recuo lateral, por exemplo, o que importava em alto poder aquisitivo, ou morava-se nos novos bairros, onde
os lotes eram maiores, mas também caros, e possibilitavam outras formas construtivas.

95
Nos processos analisados no APM notou-se um grande número de plantas de chalés,

na maior parte das vezes em locais longe do centro. Evidencia-se assim, o gosto pelo

pitoresco que também está presente nos Quiosques observados através das fotografias da

época.

Rua dos Andradas em frente a Praça da Alfândega onde aparece um Quiosque.


Foto Irmãos Ferrari, 1888 (FSB – MJJF)

Colocados quais os atributos que caracterizam os movimentos arquitetônicos

implicados na pesquisa, volto a discutir a questão da identificação das estruturas

arquitetônicas remanescentes do século XIX na área central da cidade.

Os problemas para realizar uma tarefa, aparentemente tão simples, são inúmeros.

Inicialmente é preciso lembrar que, pelos mais diversos motivos, muitas dessas

características não permaneceram nos prédios228, sendo preciso buscar aquelas que fossem

228
Por exemplo, os beirais dos telhados, característicos das casas coloniais, desapareceram por completo com
a introdução da obrigatoriedade de instalação de platibandas nas edificações a serem construídas ou
reformadas, pelo Ato Provincial de 31 de maio de 1886. (Código de Posturas – AHMV).

96
visíveis hoje. Além disto, algumas formas básicas de fachada aparecem em construções

presentes em um largo período de tempo. É o caso das casas térreas, geralmente de porta e

janela, com aberturas em vergas retas, telhados de 1 ou 2 águas que estão presentes no

século XIX e cujo padrão formal persistiu até muito recentemente. Por outro lado, alguns

elementos arquitetônicos introduzidos no transcurso do tempo foram implantados, muitas

vezes, sobre construções mais antigas que acabaram sofrendo uma espécie de maquiagem

(Reis Filho, 1976:34). Outra questão importante e de ordem operacional é dada pelo fato da

pesquisa estar centrada em uma área que hoje é fundamentalmente comercial: muitos

prédios encontram-se com suas fachadas cobertas por imensos painéis que trazem o nome

da loja e que compõem o próprio “layout” comercial das empresas, o que impede a

visibilidade das construções. Isto implica na possibilidade de alguma estrutura arquitetônica

com as características prévias necessárias para inclusão na pesquisa ter passado sem ser

vista.

A estratégia empregada consistiu, então, em registrar-se, inicialmente todas as

estruturas que apresentassem um padrão morfológico externo cujos atributos, obtidos na

bibliografia especializada, pudessem ligá-las ao período em questão. Porém, como já foi

dito anteriormente, houve a preocupação de não estabelecer características ideais, mas levar

em conta a realidade concreta das estruturas existentes hoje. Assim, através de uma

pesquisa combinada de bibliografia, campo e arquivo229, estabeleceram-se os critérios para

selecionar as estruturas que, em conjunto, constituiriam-se na amostra arqueológica a ser

analisada.

229
Neste ponto foram fundamentais as análises da plantas existentes em microfilme no APM.

97
Em primeiro lugar registraram-se todas aquelas estruturas que apresentassem os

seguintes requisitos:

a) Prédios construídos no alinhamento das ruas, apresentando paredes

externas com 40 cm ou mais de espessura230. Estes atributos são comuns a todas as “casas”

edificadas neste período.

b) Que possuindo as características mencionadas na letra “a”, estivesse

construído nos limites do lote (atributo da casa colonial, estando presente também nos

demais movimentos), ou recuado em um dos lados ( atributo presente em casas de porão

alto ligadas ao movimento neoclássico e em casas ligadas ao ecletismo deliberado). Se o

recuo aparecesse dos dois lados, um deles deveria ser mínimo, não configurando jardins,

mas pequenas passagens (atributo relativo a casas construídas com uma tecnologia mais

avançada, surgida apenas no final do século XIX).

c) Que possuindo as características mencionadas nas letras “a” e “b”,

possuíssem fachadas apresentando aberturas que mantivessem um espaçamento constante

entre elas (poder-se-ia dizer um mesmo ritmo) – atributo comum a todos os movimentos –

230
A espessura das paredes pode ser bem variada e depende basicamente do tamanho do tijolo empregado na
sua construção. Sabe-se que, no século XIX, os processos de fabricação desses tijolos eram artesanais, o que
lhes conferia aspectos bastante heterogêneos. No entanto, supõem-se que os tijolos menores que 25 cm, em
sua maior dimensão, só passaram a ser produzidos neste século. Moreno (1995: 94) forneceu a cronologia das
dimensões do tijolo no caso argentino: 20 X 40 X 7 (metade do século XVIII), 20,5 X 41 X 6 (casa de Q.
Caseros), 18 X 36 X 5,5 (metade de século XVIII), 15 X 30 X 5,5 (metade de 1880). Schavelzon (1991)
mostra que os tijolos eram comuns nas construções de Buenos Aires desde a metade do século XVIII. Este
autor considera que não é possível estabelecer uma cronologia das dimensões dos tijolos, no entanto, afirma
que os antigos eram consideravelmente maiores que os atuais. Apesar dos tamanhos variarem conforme o
fabricante, este autor aponta para o fato que as medidas mais comuns situam-se entre 27 e 40 cm de
comprimento e 2,5 e 6 cm de espessura. Tijolos recuperados nas escavações realizadas no Mercado Público
de Porto Alegre (portanto exumados de uma lixeira coletiva do século passado) possuíam medidas de 28,2 X
13,2 X 6,5 cm e 25,5 X 11,8 X 6,4 cm (informação pessoal de Fernanda Tocchetto). Um tijolo recuperado nas
escavações do Solar Lopo Gonçalves, cuja construção remonta a meados do século XIX (Symanski, 1998),
mediu 31,4 X 14,5 X 6 cm (informação pessoal de Fernanda Tocchetto). Ainda em Porto Alegre, obteve-se as
dimensões de tijolos que estão em uma estrutura situada à Rua Riachuelo nº 645 que variam entre 30 e 30,5
cm de comprimento e 14 e 15 cm de largura. Estes dados parecem sustentar a hipótese acima.

98
ou uma quebra deste ritmo, característica surgida em algumas unidades apenas nas últimas

décadas do século XIX e ligada ao eclético.

d) Que possuindo as características mencionadas nas letras “a” e “b”,

apresentassem aberturas em arco abatido (ligado ao colonial), arco pleno ou verga reta

(ligado tanto ao neoclássico, quanto ao ecletismo deliberado).

e) Que, possuindo as características mencionadas nas letras “a” e “b”, e

apresentando balcões e peitoris, estes deveriam ser de ferro batido (presentes nas casas

ligadas a todos os períodos). Balcões e peitoris de alvenaria ligam as estruturas a um

período mais tardio relativo à introdução de novas tecnologias de construção e mão-de-obra

qualificada e estão presentes apenas em alguns exemplos do final do século XIX e início do

século XX231.

f) Que, possuindo as características mencionadas nas letras “a” e “b”

apresentassem platibandas simples ou em balaustrada, com ou sem elementos decorativos

sobre elas. Como já foi dito, as platibandas foram introduzidas a partir da segunda metade

do século, com caráter de obrigatoriedade, estando presente em todas as estruturas.

g) Que possuindo as características mencionadas nas letras “a” e “b”,

mostrassem uma fachada não decorada (ligada ao colonial), ou que apresentassem uma

decoração sóbria, com elementos decorativos ligados aos movimentos neoclássico, ou

decoração em massa sobre elas, com motivos ligados ao ecletismo deliberado.

Depois de registradas todas as estruturas com essas características, submeteram-se

os prédios a outros critérios de seleção, permanecendo aqueles que possuíssem:

231
Estes elementos são introduzidos, segundo Reis Filho (1976: 161), a partir de 1890 e são considerados por
ele um aperfeiçoamento de detalhes que depende de mão-de-obra capaz de realizá-lo.

99
informações documentais de terem sido construídos no século XIX. Por

exemplo, o Solar dos Câmara, o atual Museu Júlio de Castilhos;

data do século XIX inscrita na fachada;

as características arquitetônicas relacionadas acima, ainda que exibissem data do

século XX inscrita na fachada, já que esta poderia ter sido colocada posteriormente;

fachadas alteradas por reformas, mas que apresentassem vestígios das formas

arquitetônicas relacionadas ao século XIX, descritas acima, e que permitissem sua

identificação como tal.

Não foram registrados aqueles que possam ter sido construídos no século XIX, mas

que apresentaram fachadas alteradas a ponto de impossibilitar sua identificação.

Com isto, partiu-se para a definição de outros critérios que tiveram por base a

combinação dos dados obtidos em campo com pesquisa em arquivos, especialmente nos

Livros Prediais existentes no Arquivo Público Municipal entre os anos de 1893232 e 1928.

Em primeiro lugar buscou-se chegar, através da numeração atual dos prédios, a sua

numeração original. Ao lado disto, procurou-se saber quem eram os proprietários dos

imóveis e o tipo de construção dos prédios (se térreo, sobrado ou assobradado233). A idéia

foi a de estabelecer uma relação entre o tipo de construção existente hoje e aquela que

ocupava o mesmo lote em 1893. É bom lembrar que não é suficiente estabelecer a

232
O livro mais antigo refere-se ao ano de 1893, portanto este foi um limite imposto pela documentação. O
livro de 1928 foi utilizado porque toda numeração desta área foi modificada neste ano.
233
O assobradado é a classificação utilizada para referir, sempre, as casas de porão alto nos livros prediais da
época. Algumas vezes referem-se também a casas térreas que possuem porões. No entanto é uma classificação
um tanto ambígua, já que os mesmos prédios são classificados diferentemente conforme o ano (APM).

100
existência de um prédio no ano de 1893 com a numeração correspondente a um prédio

existente hoje, no mesmo lugar: ainda que se saiba que toda a área central de Porto Alegre

fosse ocupada no final do século passado, existindo poucos vazios urbanos, isto não

significa que o prédio que existe hoje seja o mesmo do século passado que se manteve.

Com estes dados voltou-se a campo a fim de fotografar todas as unidades registradas. Estas

fotografias foram, então, comparadas com imagens antigas, com as plantas existentes em

processos microfilmados e com os próprios processos que se referiam a reformas ou

construção destas mesmas edificações. Esta investigação forneceu dados mais seguros

sobre a inserção temporal dos prédios. Assim, considerou-se o seguinte:

Se o prédio, em 1893, era térreo, permanecendo sua caracterização como

construção térrea até 1899 e hoje o que se observa no mesmo lote é um sobrado, não se

considerou a estrutura na amostra, já que, ainda que exista a possibilidade de ter sido

construído um segundo piso, provavelmente trata-se de outra estrutura construída sobre

uma demolição.

Se o prédio mantém a sua característica de térreo, sobrado ou assobradado

durante todo o período, considerou-se como a mesma construção.

Não foi observada nenhuma estrutura que hoje fosse térrea e que no século passado

tenha sido sobrado. Algumas construções são classificadas como térreas ou assobradadas,

nos Livros Prediais (APM), dependendo do ano. Nestes casos, observou-se que sempre se

tratavam de estruturas arquitetônicas que possuíam porão e, portanto, isto deve estar ligado

a algum tipo de ambigüidade relativa a critérios de classificação pouco claros.

101
Assim, pelo que foi dito acima, fica evidente que se está trabalhando com uma

amostra do que possa existir ainda hoje dos prédios construídos durante o século XIX em

Porto Alegre. No entanto, procurou-se que esta amostra seguisse critérios bem

estabelecidos e que não fosse uma amostra aleatória.

O problema seguinte diz respeito à validade desses dados materiais considerados

em conjunto como uma amostra arqueológica. Deetz (op.cit.:93) advertiu que nada garante

que as construções do passado que chegaram até nossos dias sejam verdadeiramente

representativas do seu tempo:

“Os fatores que permitem a sobrevivência de uma casa e a


destruição de outra são provavelmente numerosos e complexos, mas
parece razoável afirmar que as casas mais simples e toscas da
América antiga tenham, há muito, desaparecido”.

Parece óbvio que na área central de Porto Alegre não seja possível encontrar hoje

nenhuma casa de madeira que tenha sido ocupada no século passado. No entanto, e a par

dos limites concretos apresentados por um tipo específico de pesquisa (sem escavação) e

pelas características de uma área intensamente ocupada234, a análise das estruturas

sobreviventes aliada às evidências documentais escritas, permite que se obtenha um

panorama daquilo que existiu no século XIX e que se observem as modificações que

ocorreram nas construções neste período.

234
Os vestígios de casas já destruídas, que poderiam ser observados através de escavação são, muitas vezes,
bastante reduzidos devido à intensa ocupação (e reocupação) do solo nesta área da cidade. Assim, é de se
esperar que as marcas deixadas no solo por construções já desaparecidas tenham sido destruídas durante a
edificação de novas estruturas arquitetônicas que, na maioria das vezes, implicam em grandes movimentos de
terra por se tratarem de grandes áreas verticais.

102
O levantamento resultou numa amostra de 88 “casas” distribuídas nas atuais Rua

dos Andradas (9 unidades), Riachuelo (6 unidades), Duque de Caxias (13 unidades),

Coronel Fernando Machado (11 unidades), Demétrio Ribeiro (12 unidades), General

Salustiano (1 unidade), General Washington Luiz (11 unidades), General Vasco Alves (2

unidades), General Portinho (3 unidades), General Cipriano Ferreira (1 unidade). General

Bento Martins (1 unidade), General João Manoel (3 unidades), General Auto (6 unidades),

Andrade Neves (1 unidade), Sete de Setembro (1 unidade), José Montaury (4 unidades),

Praça 15 de novembro (1 unidade) e Marechal Floriano (2 unidades) .

Não existiu nenhuma intenção em realizar uma tipologia de casas: como Deetz

(1977:13) salientou, toda tipologia é construída com base em classificações formais que

não correspondem, necessariamente, àquilo que as pessoas que produziram as coisas

perceberam como tipos diferentes235. Além disto, este autor lembra que a arqueologia

histórica tem a possibilidade de contar com uma rica documentação escrita na identificação

dos artefatos. Assim, qualquer pretensão de emprego de métodos formais de classificação

que ignorem os dados históricos se constitui, utilizando a imagem proposta pelo próprio

Deetz, numa atitude similar à tentativa de reinventar a luz de vela, esquecendo a lâmpada

incandescente e ignorando o interruptor, enquanto se esbarra nele (Idem.). O que foi feito,

foi uma ordenação dessas “casas”. Esta ordenação parte de uma dupla via de informação: o

registro arqueológico e o registro histórico. Um dos objetivos foi o de inserir os artefatos


235
Tipologia está sendo entendida aqui como aquela forma de classificação baseada primordialmente em
similaridades entre objetos. Podem partir de critérios diferentes, como forma ou função ou, ainda, de atributos
que sejam resultado de uma ação. Ainda que não se trate de uma consideração unânime, penso que as
tipologias são classificações arbitrárias e concordo com Deetz (1977) quando ele afirma que nem sempre elas
correspondem à percepção que a cultura que produziu os objetos tinha sobre eles. Sobre tipologia ver, por
exemplo, Krieger (1944), Ford (1954) e Rouse (1960).

103
em uma seqüência cronológica, localizando cada estrutura arquitetônica oitocentista em

largos períodos de tempo com características estruturais próprias correspondentes a valores

e imaginários também próprios. E isto remete imediatamente ao segundo objetivo da

ordenação: buscar aproximar-se, levando em conta esses valores e esse imaginário, das

percepções que aqueles que fizeram e utilizaram os objetos possuíam deles.

Pela impossibilidade apresentada de realizar uma leitura destas edificações que


pudesse esclarecer a forma e a seqüência em que foram colocados ou retirados
determinados elementos236, optou-se por trabalhar com o conjunto total da amostra de casas
considerando-o como representante das estruturas arquitetônicas vernáculas da virada do
século XIX para o XX. As unidades consideradas como remanescentes do início até
meados do século XIX foram apenas aquelas sobre as quais se possui informação
documental que ateste sua data de construção e que se preservam até hoje com muitos
elementos originais ou, tendo sido modificados, apresentam documentação que relata sua
forma original. Consideraram-se, ainda, como edificações existentes neste período mais
antigo, aquelas que são consideradas pelos arquitetos atuais como representantes da
arquitetura colonial. Assim, as edificações incluídas aqui são basicamente prédios
tombados ou listados para preservação.

É importante deixar claro que quando se fala em seqüência cronológica, que é

estabelecida a partir de indicadores expressos na morfologia das fachadas, não se pode

pensar em uma seqüência temporal linear. Ou seja, não se trata de dizer que a casa “x” que

apresenta características coloniais foi necessariamente construída antes da casa “y”, de

236
Este é um código que o arqueólogo não domina e talvez um arquiteto tivesse melhores condições de
analisar esta questão. Isto aponta para a necessidade de trabalhos que envolvam profissionais de diferentes
áreas, o que uma Dissertação de Mestrado não comporta. Ao lado da Arquitetura, a História da Arte (também
ignorada por quase todos os arqueólogos brasileiros) teria um papel importante a desempenhar na elucidação
de muitos problemas.

104
características neoclássicas que, por sua vez, é anterior à casa “z” ligada ao movimento

eclético deliberado. É certo que existe uma seqüência cronológica na introdução de certos

elementos, o que não quer dizer que outros tenham sido necessariamente abandonados. O

que existe é uma tendência das estruturas arquitetônicas sofrerem modificações que são

visíveis em elementos da fachada e que estão relacionadas, por um lado, à introdução de

inovações tecnológicas e, por outro, a mudanças nos valores culturais e no imaginário

social dos grupos que as produziram. Assim, a intenção é a de utilizar estes elementos que

caracterizam cada movimento a partir de uma perspectiva que privilegia processos de longa

duração.

A amostra, ordenada segundo os critérios estabelecidos acima, resultou num

pequeno número de unidades ligadas ao período mais antigo ao lado da maioria de

estruturas relacionadas ao período mais recente (com características do movimento

eclético). Porém, deve-se considerar que um importante número de estruturas edificadas em

períodos mais remotos podem estar presentes no conjunto que foi atribuído ao período mais

recente, em razão das possíveis (e muito prováveis) reformas de fachadas que acabaram

“maquiando” e ressignificando essas “casas”.

Esta ordenação visou, por outro lado, relacionar as diferentes edificações com os

grupos sociais envolvidos na sua produção e no seu uso. Para tanto, observou-se o tamanho

e forma dos prédios como um indicador importante de grupo social segundo sua base

econômica: o tamanho da edificação está diretamente relacionado ao tamanho do lote

urbano, ao custo deste lote e da própria construção. A forma da casa relaciona-se ao

emprego de tecnologias diferentes (uma casa térrea é mais simples de construir que um
105
assobradado) o que envolve custos também diferentes. Algumas vezes um assobradado

pode possuir área menor que uma casa térrea. No entanto, o fato de constituir-se em uma

forma arquitetônica destinada unicamente à moradia excluindo, a princípio, qualquer tipo

de atividade comercial, relaciona esta estrutura a um tipo particular de idéia sobre a forma

mais adequada de habitação. Assim, as “casas” foram divididas em sobrados, assobradados

(porão alto), térreas de porta e janela e térreas de porta e duas ou mais janelas. Essa relação

da edificação com o grupo social pode ser mais ricamente analisada no final do século XIX

pela existência de documentos que não existem para os prédios do período anterior. O

levantamento dos nomes dos proprietários dos imóveis constantes na amostra foi

importante em alguns casos: naqueles onde o proprietário foi também morador e pessoa de

algum destaque na sociedade da época, cuja atuação possa ter resultado em algum tipo de

registro. Em outros casos foi importante, no sentido de relacionar grupos sociais com

edificações, o levantamento das atividades comerciais realizadas em cada uma delas. As

características decorativas das fachadas também foram consideradas e tomadas como

elementos comunicativos capazes de revelar idéias e valores sociais, ao lado de outras áreas

mais “públicas” do prédio (como sacadas e jardins) e do tamanho da edificação.

106
Sobr ados

27% 28%
A s s obr adados

mais de duas
8% aber tur as

37% por ta e janela

Estruturas Arquitetônicas Vernáculas Levantadas

As “Casas” remanescentes do início até meados do século XIX:

Duas estruturas arquitetônicas relacionadas diretamente ao segmento social

dominante econômica e politicamente neste período estão colocadas aqui: o Solar237 dos

Câmara e o Solar do Conde de Porto Alegre.

237
O termo Solar não está relacionado, aqui, a nenhum atributo morfológico da estrutura, mas quer designar
uma “herdade ou morada de família nobre e antiga” (Hollanda, 1967; 1.126). Este é um termo, aliás, que não
consta no dicionário de 1848 (Fonseca e Roquette) consultado, sugerindo uma classificação atual e não
realizada na época. Coruja (op. cit.: 101) refere-se ao Palácio do Visconde.

107
O Solar dos Câmara, situado na rua Duque de Caxias nº 968, foi construído em

1818 (Oliveira, op. cit:231) e esta data encontra-se sobre o portão principal de entrada. É

interessante lembrar que este portão foi reformado, tendo suas medidas originais reduzidas

(Idem), e que a manutenção da data remete à sua importância simbólica e deve ser

considerada como um elemento de comunicação indexal. A casa é uma construção de porão

alto, ou um assobradado na linguagem do final do século. Suas 7 janelas frontais, em arco

abatido e no alinhamento da rua, encontram-se em um plano elevado que aproxima a casa

da rua, sem os inconvenientes da casa térrea: protegia-se a intimidade e, ao mesmo tempo,

aproveitavam-se os porões para alojamento de serviçais (Lemos, op.cit.:40). O Solar tem

sua entrada principal colocada num recuo lateral: a passagem se realiza sob um portentoso

portão onde se vê o brasão do Visconde de São Leopoldo, primeiro morador da casa

(comunicando a importância da família numa sociedade onde a ligação títulos de

nobreza/riqueza/poder político é básica, conforme já foi explanado no capítulo 1) e a data

de construção da casa (expressando a importância da tradição e da continuidade como

valores básicos deste grupo). Por aí atinge-se o jardim. É de se esperar que ele tenha

recebido um tratamento formal, por se tratar de uma área onde as pessoas externas ao grupo

doméstico eram admitidas e pelos cuidados formais verificados na fachada com fins de

comunicar valores. Na escavação realizada na área externa do Solar, em 1992, foi

encontrado um calçamento em pedras portuguesas que teria sido um antigo passeio interno

do jardim lateral ao Solar, situado logo à entrada, após o portão (Souza, 1992). Isto também

reforça a suposição de que esta área sofrera cuidados especiais. A porta principal está

colocada num patamar mais alto, alcançado através de uma escada. Os balcões nas janelas

da fachada frontal representam um espaço privado que avança sobre o público: exemplo de

uma fronteira sumamente marcada, que separa, mas também comunica e relaciona
108
domínios. O Solar apresenta, ainda, elementos decorativos em massa sobre a fachada,

possivelmente colocados no mesmo momento em que os beirais foram substituídos por

platibandas pelo General Câmara que aí foi viver depois de 1851 (Oliveira, op. cit.: 231). A

casa de porão alto foi, segundo Lemos (op. cit.: 40), construída em bairros de caráter

residencial, longe do comércio. No caso do Solar dos Câmara, a localização no centro do

poder (conforme será discutido no capítulo seguinte) atesta, mais uma vez, a importância

política de seus ocupantes. Este prédio está tombado pela União e, atualmente, possui um

uso público.

Solar dos Câmara

O Solar do Conde de Porto Alegre está localizado na rua Riachuelo nº 563, na

esquina com a rua General Canabarro. Atualmente o prédio, um sobrado, está em ruínas,

tendo sido tombado pelo município e doado, pelo Estado do Rio Grande do Sul, ao Instituto

dos Arquitetos do Brasil (Matrícula 15.319, Ofício de Registro de Imóveis, 5ª Zona

anexada ao Processo de Tombamento). Suas características externas são ecléticas e foram

incorporadas ao prédio em 1932/33 por ocasião de uma reforma quando a estrutura foi

109
adquirida pelo Estado: as aberturas que nesta ocasião foram modificadas, recebendo vergas

retas com cercaduras de massa e um frontão sobre a entrada principal, são os elementos

mais marcantes (IAB – Pesquisa realizada para fins de tombamento, Processo 34106 98

7)238. Não se conhece com exatidão a data de construção do prédio. O Jornal Zero Hora, em

reportagem de 14 de dezembro de 1994, anexada ao processo de tombamento (Idem),

considera que ele teria sido construído por volta de 1830239. Este mesmo texto refere-se ao

fato do imóvel ter pertencido inicialmente à senhora Bernardina Soares de Paiva, segunda

esposa do Conde de Porto Alegre (Manoel Marques de Souza), com quem este teria se

casado no ano de 1855, o que aponta para uma data anterior a este acontecimento. Oliveira

(op. cit.: 222) refere-se ao ano de 1860. Na Planta de L. P. Dias, de 1839, o mesmo lote

hoje ocupado pelo Solar está tomado por uma edificação que pode ser a mesma, tendo em

vista as dimensões ali representadas. O mesmo se repete na planta do final da década de

1860 (IN: Oliveira, op. cit.:134) e na planta de Breton, de 1881. O fato é que a morfologia

da fachada remete a características coloniais. Uma foto de Virgílio Calegari, (IN: Oliveira,

op. cit.: 225) do final do século passado, mostra o prédio com aberturas em vergas de arco

abatido, janelas de caixilharias tipo guilhotina e possuindo uma camarinha, que já não

existe, com três aberturas em verga reta. Nesta ocasião o prédio já possuía platibandas e as

aberturas mostram cercaduras de massa sem ornamentos. A fachada frontal é perfeitamente

simétrica: a entrada principal localiza-se no centro, sendo que a porta tem maior altura e

largura que as três janelas que se dispõem de cada lado, padrão que se repete no piso

superior. Ali, balcões de ferro batido projetam-se sobre a calçada. A casa tem um pátio do

lado esquerdo, que é limitado por um muro que também possui uma entrada com arco

238
A pesquisa realizada pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil fornece a cronologia de intervenções
realizadas no prédio, mas não fornece as fontes de onde foram retiradas as informações.
239
Aqui também não são referidas as fontes de onde este dado se originou.

110
abatido de dimensões menores que a entrada principal. Do lado direito, a casa está nos

limites do lote, assim como a fachada frontal. A fachada lateral, que dá para a rua General

Canabarro, também apresenta uma entrada no corpo do prédio com dimensões menores que

a principal e uma outra no muro que limita o pátio dos fundos. Três pequenas aberturas são

observadas do piso inferior e oito janelas no piso superior, além de marcas do que deveria

ter sido anteriormente a nona janela que foi, possivelmente, fechada. Nesta fachada, quando

o fotógrafo fez o registro, a casa ainda não possuía platibanda.

O Conde de Porto Alegre (1805-1875) foi um militar com importantes atuações na

campanha contra Artigas, na Guerra da Cisplatina, na Revolução Farroupilha (ao lado do

Império, é claro), nas campanhas contra Oribe e Rosas e na Guerra do Paraguai (Franco,

1998:393). Foi deputado provincial e geral, além de fundador e primeiro presidente do

Instituto Histórico e Geográfico da Província de São Pedro (Idem). O Solar é uma

construção de grande tamanho e de sóbria mas imponente fachada que ocupa um lote bem

maior que todas as demais estruturas que permaneceram nesta área (com exceção ao lote

ocupado pelo Solar dos Câmara). Estas características comunicam o status de seus

ocupantes.

111
Solar Conde de Porto Alegre

Vista da rua Riachuelo com o Solar Conde de Porto Alegre até a General Salustiano
Foto de Virgílio Calegari (FSB – MJJF)

112
O Sobrado da rua Riachuelo 645 é um prédio de dois pisos. O térreo apresenta uma

porta e duas janelas e, no andar superior, três janelas. Todas as aberturas são em arco

abatido e os vãos possuem a mesma largura e a mesma distância entre si. Os dois andares

também são simétricos entre si. A porta possui uma soleira de arenito intensamente gasta e

as madeiras (marcos) das aberturas são maciças e em secção quadrada, parecendo ser as

originais.

A casa está em ruínas, apresentando escoras na fachada que visam impedir que a

parede frontal desabe. Os tijolos da construção estão, em grande parte, à vista o que permite

a observação da técnica e materiais empregados na construção.240

A inexistência de acabamento externo impede saber se havia algum elemento

decorativo na fachada. Observa-se, apenas, uma platibanda simples. O prédio está tombado

pelo município, e é considerado um exemplo de arquitetura colonial 241. Não se conhece a

data de construção do prédio, mas o lote onde encontra-se hoje já estava ocupado em 1839,

conforme o plano de L.P. Diaz242.

240
Esta análise não consta nos objetivos deste trabalho, mas seria interessante tomar este exemplar para
realizá-la pela facilidade de observação colocada aí. Conforme dito anteriormente, alguns tijolos foram
medidos apresentando dimensões entre 30 e 30,5 cm X 14 e 15 cm X 6 cm.
241
Informação pessoal do arquiteto Luiz Merino Xavier da EPAHC/SMC de Porto Alegre.
242
Todas as casas da amostra foram confrontadas, em sua localização, com a planta de 1839 de L.P. Dias com
a finalidade de estabelecer a existência ou não de ocupação do lote nesta data. No entanto, é preciso que se
diga que se trata, antes de qualquer coisa, de uma tentativa, já que não existe possibilidade de localizar cada
lote com precisão: a planta não é detalhada a este nível e o intento é mais de uma aproximação. Quando
observou-se a não ocupação do lote buscou-se estes dados nas plantas de 1869 (IN: Oliveira: op. cit.), 1881
(Breton) e 1896 (Arhons), respectivamente.

113
Riachuelo nº 645

A casa pertenceu nos anos de 1893 e 1895 a Firmina Ignácio Soeiro e nestes anos

não houve ali nenhuma atividade econômica243.

O último exemplo de arquitetura vernácula deste período constitui-se numa casa de

porta e janela, térrea, situada na rua Demétrio Ribeiro nº 283. A fachada não possui

elementos decorativos, apenas uma platibanda simples, instalada no ano de 1925, segundo

Processo 112-3, F 22 (APM) que solicita licença para realizar esta obra. As aberturas são

em arco abatido e os marcos em madeira maciça de secção quadrada. A soleira parece ter

sido reconstruída e há um corpo saliente que ocupa cerca de ¼ inferior da fachada.

243
O termo quer designar qualquer tipo de atividade relacionada à produção e/ou comércio de bens e/ou
serviços cujo destino esteja fora do grupo doméstico. Os dados relativos a estas atividades foram obtidos nos
livros de impostos pelo valor locatício, anos de 1894, 1895 e 1898 (AHMV).

114
Demétrio Ribeiro nº 283

Em 1893 a casa pertencia a Dona Carla Joaquina da Costa e em 1895 a Luiz

Antonio Rolim. Nestes anos não houve ali nenhuma atividade econômica. A casa está

listada para preservação pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre244.

244
Os imóveis listados para preservação foram aqueles que a partir do Inventário do Patrimônio Cultural de
Porto Alegre – Bens Imóveis, realizado pela EPAHC, sofreram um processo de análise que inclui o exame e a
aprovação do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural (COMPAHC) e subseqüente
homologação do prefeito. Estes imóveis constam nos computadores da SMOV (Secretaria Municipal de
Obras e Viação) e toda vez que o proprietário de um deles solicitar licença para reformar ou construir no
local de um deles, o projeto é enviado a EPAHC que analisa e aprova ou não, com vistas à preservação.

115
As “Casas” Remanescentes do Final do Século:

As casas levantadas nesta área que compõem a amostra relativa ao final dos

oitocentos referem-se a uma sociedade já capitalista, cujas características envolviam traços

como a recente extinção do trabalho escravo, o predomínio do capital comercial sobre o

capital industrial e uma burguesia há pouco tempo assenhorada do poder político,

conforme exposto no Capítulo I. Mas, também, uma sociedade seduzida pela

racionalidade245, pelo desenvolvimento tecnológico onde uma recém emersa burguesia

empenha-se em organizar um mundo moderno246.

O que se vê neste momento são estruturas arquitetônicas com fortes traços coloniais

associados a elementos do neoclássico e do eclético deliberado, ao lado de estruturas

marcadamente, efusivamente e deliberadamente ecléticas, inicialmente em pequeno

número, e que se avolumam nas primeiras décadas do século XX. Assim, a ordenação

destas estruturas para fins de descrição levou em conta não apenas as distinções baseadas

em tamanho e diferenças tecnológicas (sobrados / assobradados / casas térreas com mais de

duas aberturas e casas térreas de porta e janela), mas também os elementos constitutivos

das fachadas.

245
O pensamento racional ou, mais que isto, o projeto de realização de uma sociedade racional, são princípios
que caracterizam aquilo se tem chamado de modernidade, enquanto modo e ideário de civilização típico do
mundo ocidental num determinado período, que inclui o pensamento linear e a constante busca de tornar-se,
do vir-a-ser. Sobre este assunto ver Touraine (1994), Baudrillard (1982) e Bermann (1995).
246
Modernização deve ser entendida aqui como um processo que estabelece em um nível concreto, da prática,
os princípios da modernidade (Toraine, 1994).

116
É importante deixar claro que nem sempre a casa térrea foi sinônimo de grupo

social mais pobre e que o seu tamanho (e sua frente) estava diretamente relacionado ao

tamanho do lote e ao conseqüente custo.

Assim, por exemplo, um anúncio para venda de uma casa, situada na rua Duque de

Caxias, nº 257, no jornal a Federação de sete de fevereiro de 1896 (AHMV), indica um lote

com “50 palmos de frente” e uma casa com uma porta e quatro janelas. No interior existiam

um gabinete, sala, duas boas alcovas, sala de jantar, terceira alcova, área e corredor. E

ainda: dois quartos, cozinha, uma sala recreativa com janelas “de onde se pode descortinar

uma lindíssima vista de entrada da cidade e o vasto campo da Redenção e suas

adjacências”.

O terreno fazia frente com o prolongamento da Coronel Genuíno. Possuía cocheira

em dois corpos, um para quatro carros e outro com baias para doze cavalos. Além disto a

casa tinha encanamento de gás, lustres e arandelas e “dito hidráulico do interior até as

cocheiras”.

A mobília descrita no anúncio era em louro Luiz XV e, entre as outras coisas, a

venda incluía espelho, tapetes, cuspideiras, estetoscópio, barômetro, espelho de cristal

biseautée com suporte de mármore, piano, vasos, biscuit, estátuas de bronze, quadros,

cômoda, jarros de cristal bacarat, um couro de tigre, um de leão, cama docel com cortinado

bordado, bidê, toalete, serviço de porcelana para lavatório, chaise-longe, roupeiros.

117
Isto demonstra com clareza que nem sempre uma casa térrea foi sinônimo de

pobreza.

Por se tratarem de um conjunto com pequeno número de unidades, com

características bem diferentes entre si, as casas assobradadas foram descritas

individualmente. Sobrados, casa térreas de duas ou mais janelas e casas térreas de porta e

janela foram agrupadas segundo os elementos decorativos das fachadas e formas que

implicam o emprego de tecnologias diferentes (no caso de recuos laterais) e descritas em

conjunto.

Os sobrados:

Um total de 23 sobrados foi levantado na área pesquisada.

Uma primeira estrutura deve ser descrita separadamente em função da exclusividade

dos elementos constitutivos de sua fachada.

Trata-se de um sobrado com características que remetem ao colonial, mas que

apresenta uma “atualização” ligada ao eclético deliberado247, incluindo motivos florais nas

cercaduras das portas e janelas. Está situado na rua Marechal Floriano Peixoto, nº 188/196.

As aberturas são em arco abatido, a platibanda apresenta-se com balaustrada, existem

247
Não estou afirmando que estes prédios foram construídos na época colonial. Friso, mais uma vez, que, de
uma perspectiva de longa duração, existem características que remetem a um imaginário relacionado à época
colonial, expresso no uso (andar térreo destinado a animais, escravos, depósito ou lojas e andares superiores –
assobradados – destinados à habitação dos senhores) e na forma básica (construções sobre o alinhamento da
rua e limites laterais do lote, telhados em duas águas, disposições das aberturas).

118
sacadas de ferro e, além das cercaduras, as janelas possuem aventais com ornamentos

florais. Este prédio ocupa um lote grande e, ao que tudo indica, possuiu apenas funções

comerciais, ao menos no final do século XIX: uma taverna no andar superior – negócio

pertencente a Antônio Gonçalves e Cia. – e uma modista no andar térreo, chamada Antônia

Pereira da Silva. Os proprietários do imóvel eram Manoel F. P. de Carvalho, Miguel T. de

C. Filho e Luiz Lara da Fontoura Carneiro.

Marechal Floriano nº 188 - 196

Com certeza este prédio é anterior a 1886. Foi neste ano que passou a ser

obrigatória a instalação de platibandas em todos os prédios que fossem construídos ou

reformados. Porém este prédio permaneceu com beiral até o ano de 1916, quando um

processo solicitou licença para substituí-lo por platibanda, bem como para realizar outros

reparos (não mencionados). Provavelmente data daí a inclusão de elementos decorativos em

massa.

119
O prédio está listado para preservação e ocupa um lote que estava edificado em

1839.

O grupo de prédios que passo a descrever e comentar é aquele cujas características

remetem imediatamente ao neoclássico. São prédios de linhas simples, onde alguns

elementos de acabamento (dependentes da importação de materiais) tornam-se importantes:

peitoris de ferro, aberturas com vergas em arco pleno ou reto com o uso de vidros simples

ou coloridos nas bandeiras das portas e janelas, platibandas e calhas, revestimento de

azulejos. Este primeiro conjunto compõe-se de oito estruturas.

Três sobrados com fachada azulejada constam na amostra e são extremamente

semelhantes: um na rua dos Andradas, nºs 891/895, o seguinte na rua Sete de Setembro nº

708 e o terceiro na rua José Montaury, nº 121.

O primeiro teve, aparentemente, a frente do seu andar térreo modificada. O segundo

piso apresenta sacada corrida em ferro, aberturas em arco pleno e a permanência de alguns

azulejos. A platibanda é de ferro com pilastras em alvenaria.

Os sobrados da Sete de Setembro e da José Montaury repetem o mesmo padrão de

platibanda, sacadas e aberturas do segundo piso. No térreo, ambos apresentam três portas,

também em arco pleno com bandeiras, sendo que a abertura central é mais larga e mais alta

que as laterais.

120
Rua dos Andradas nº 891 – 895 Rua José Montaury nº 121

121
Rua 7 de Setembro nº 708

Os prédios tiveram uma dupla função: locais de atividades econômica e moradia. O

da Rua da Praia pertenceu, em 1895 a José Pires e possuía, no andar térreo, uma loja de

chapéus de propriedade de Guilhermina Weber.

A edificação da José Montaury pertenceu, no mesmo ano, a Maria Emília Barcelos e

possuía em seu andar térreo uma fábrica de Banha, de Schimitt e Cia..

Os proprietários do sobrado da Sete de Setembro foram, nesta época, Antônio e

Clemência da Silva Paranhos e ali funcionou um Depósito e uma Taverna – negócios

pertencentes a Antônio Costa Leite e Cia. e Silva Oliveira e Cia., respectivamente.

122
Pelo que se pode depreender da documentação, este prédio durante algum tempo

ficou desocupado e, em 1906, foi construído um trapiche (APM), que deveria estar

relacionado às atividades econômicas que ali se desenvolviam.

Em 1916, o sobrado estava sendo habitado por um ilustre comerciante português:

José Luiz Pereira “um dos mais importantes proprietários de Porto Alegre” e também

diretor da Cia. de Seguros Porto Alegrense (Monte Domecq‟ e Cia., op. cit.: 118).

Neste ano publicou-se em livro, de óbvios fins publicitários sobre o Rio Grande do

Sul, uma página referente ao proprietário deste sobrado, que cabe ser transcrita aqui em

parte, já que demonstra a sua filiação social:

“É nos grato publicar o retrato deste conspícuo membro da alta sociedade


porto-alegrense, assim como uma vista de sua residência particular, uma das mais
notáveis da bela capital Riograndense, onde o Sr. José Luiz Pereira tão nobremente
pratica a lendária hospitalidade lusa” (Idem.).

A fotografia da casa mostra que, naquela época, os azulejos da fachada restringiam-


se ao revestimento dos elementos em relevo. Assim, percebe-se que os demais foram
aplicados recentemente.

A casa sofreu uma reforma no ano de 1916 quando foram instalados banheiros.

123
O sobrado da rua Sete de Setembro nº 708, em 1916 e seu proprietário, Sr. José Luiz
Pereira
(Reproduzido de Monte Domecq‟ e Cia., op. cit.: 118)

124
Azulejos presentes na fachada do Azulejos colocados recentemente no
sobrado da Rua Sete de Setembro sobrado da Rua Sete de Setembro
no ano de 1916

Prédio de características muito semelhantes a estas, porém sem revestimento de

azulejos e com aberturas em verga reta, é o que está localizado na Rua dos Andradas, nº

901: três aberturas no térreo, que se repetem no andar superior, sacada corrida em ferro e

platibanda também em ferro, e bandeiras nas janelas. Foi propriedade de Pedro Thoblado

Gaiger em 1895 e no seu andar térreo funcionou uma loja de Fazendas em nome de A.

Lapa.

125
Andradas nº 901

Na rua José Montaury três sobrados de três andares com as mesmas características

básicas se sucedem: os nºs 155, 159 e 167.

Uma fotografia dos irmãos Ferrari do ano de 1897 mostra que o prédio nº 167

mantém, desde então, as mesmas aberturas dos dois andares superiores e os mesmos

peitoris de ferro das sacadas. O andar térreo possuía o mesmo padrão dos andares

superiores o que, se estendido aos demais prédios do conjunto, leva a crer que apenas o de

nº 159 manteve a fachada do andar térreo com suas características originais.

126
Ao lado da “Casa Negra”, o sobrado que hoje possui o nº 167 da Rua José Montaury.
Foto do Irmãos Ferrari de 1897 (FSB – MJJF)

Porém, os andares superiores parecem ter se conservado: aberturas em arco pleno

com bandeiras, sacadas corridas em ferro, platibandas cegas com elementos decorativos

geométricos.

Os proprietários foram Domingos Alves de Carvalho (nºs 155 e 159) e Antônio

Carneiro da Fontoura. Todas elas possuíam no andar térreo, no ano de 1895, lojas de

fazendas: no nº 155 e 159 de J. G. Magnus (nesta última fazenda em peças) e no nº 167 a

loja de Antônio Carneiro da Fontoura. Este último, ao lado de Manoel Py, proprietário de

um prédio na rua dos Andradas, são os únicos que possuíam negócios em seus próprios

sobrados, nesta época, considerando as unidades levantadas na pesquisa. As demais casas

(sobrados) consideradas foram de propriedade de indivíduos que não eram os mesmos que

possuíam seus negócios instalados nelas.

127
José Montaury nº 155 José Montaury nº 159

José Montaury nº 167

128
O último deste conjunto de prédios é de número 24/26 da rua Marechal Floriano. O

andar térreo está totalmente modificado e ocupado por uma farmácia. Os dois pisos

superiores possuem, ambos, três aberturas – em um dos andares são em arco abatido e o

outro em verga reta. As janelas são dotadas de bandeiras e as sacadas corridas com peitoris

em ferro. A platibanda é cega. Foi propriedade de Samuel Auveall (?) e tinha, no andar

térreo, uma loja de miudezas de João Mayer e Cia., em 1895.

Marechal Floriano nºs 24 / 26

Com exceção deste último prédio, todos os demais integrantes deste conjunto estão

listados para preservação pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre.

129
Todos os lotes ocupados pelos prédios descritos neste conjunto estavam também

ocupados em 1839, exceção feita para o sobrado da rua Sete de Setembro que não existia

neste época248, mas que a planta de 1869 mostra o referido lote tomado por uma edificação.

O segundo conjunto de sobrados é aquele que envolve características decorativas

marcadamente ecléticas nas fachadas.

Na Praça XV de Novembro nº 48, um sobrado com aberturas em verga reta,

cercaduras nas janelas, sacada corrida em serralheria, platibandas com ornatos em relevo e

frisos ostenta a data de 1884 em sua fachada. Pertencente aos mesmos proprietários do

sobrado da Marechal Floriano, possuiu em seu andar térreo um armazém em nome de

Hicher e Cia. em 1895. A fachada é um exemplo da loquacidade do eclético, hoje abafada

pelos altos edifícios que a cercam e a malha de tendas de camelôs instalados à sua frente.

Isto para não mencionar a descaracterização do andar térreo ocupado por uma farmácia. O

piso superior está desocupado e um funcionário do estabelecimento localizado no térreo

informou que há um pátio nos fundos do prédio, o que aponta à possibilidade de existência

de um grande potencial arqueológico. Além disto, o lote estava ocupado em 1839.

248
O aterro que deu origem à rua Sete de Setembro está associado a uma série de obras que alteraram a
configuração da margem do Rio Guaíba. Tratadas como obras separadas “atendendo a finalidades específicas
e submetidas a diferentes processos de encaminhamento, todas vieram a constituir, ao final, a Rua da
Alfândega, atual Sete de Setembro” (Escosteguy, op. cit.: 113). Em 1844 já se falava da Rua Nova da Praia,
que foi a primeira denominação desta rua (Franco, 1998: 385). No início da década de 60 a rua ligava o
Mercado à Alfândega e daí estendia-se em um grande cais até a Praça da Harmonia (Escosteguy, op. cit.:
114).

130
Praça XV de Novembro nº 45
(Reproduzido do Inventário Cultural – Bens Imóveis – EPAHC)

Mas o sobrado, da antiga Rua de Bragança, mencionado acima torna-se modesto em

sua decoração se comparado ao de nº 1252/56 da Rua dos Andradas. Esta casa ocupa um

lote de tamanho similar ao da casa da Praça XV de Novembro e possui, como ele, três

aberturas no andar superior (curiosamente o térreo também está ocupado por uma

farmácia). Porém, a abertura central é em arco pleno e as cercaduras das janelas não se

comparam em termos de opulência decorativa, incluindo detalhes como uma efígie e linhas

curvas que insinuam o art-noveau. Na platibanda vazada aparecem compoteiras e um

imponente frontão. A sacada corrida de ferro, comum aos dois prédios, é rica em curvas e

outros elementos de adorno. Esta fachada foi construída no ano de 1897 quando a

proprietária Edelvira Machado apresentou na Câmara a planta solicitando licença para

construção de uma frente nova para a residência que antes, em 1895, havia sido de Dona

Maria das Dores Alves Leite. Não se constatou a existência de nenhuma atividade

econômica aí. O lote estava ocupado no final da década de 1830.

131
Andradas n° 1252 / 1256

Andradas nº 1252 / 1256 – Projeto da fachada do ano de 1897

(Reproduzido de microfilme – APM)

132
Ainda na Rua da Praia, nos antigos nºs 52 e 52A, hoje 718/724, está o sobrado que,

em 1902, pertenceu a Manoel Py, o mesmo proprietário de um assobradado de azulejos da

rua Duque de Caxias e figura de destaque na época. Os elementos decorativos da fachada

foram implantados após este ano já que data daí um processo que solicitava à Câmara

licença para realizar um contrafeito (APM). Junto a este processo há uma planta da fachada

onde se observam as mesmas aberturas, tanto inferiores como superiores, que se observam

hoje, porém numa frente lisa, sem decoração. O processo informa, ainda, que ali funcionava

um armazém de propriedade do mesmo Manoel Py, e mostra uma planta baixa onde se

constata uma peça frontal que ocupa toda largura do prédio e se estende até a metade dele

no sentido frente-fundos. A outra metade comporta duas peças menores e iguais em

tamanho. A mesma divisão repete-se no andar superior.

A construção da casa deve estar situada na virada do século, mas não foi possível

precisar a data. Sabe-se, no entanto, que em 1895 havia ali uma casa térrea, existente

também no ano de 1893, de propriedade de Lopes Machado Duarte e onde, em 1894,

funcionou uma ferraria de Besca ( ? ) Vicente e Cia..

133
Andradas nº 718 / 724

Na planta de Dias, de 1839, não foi possível localizar o lote, já que o local era,

praticamente, à beira do Rio Guaíba nesta época. Tampouco na planta de 1863 o lote está

ocupado, aparecendo, no entanto, na planta de Breton de 1881.

Também na Rua da Praia, nos nºs 1201 e 1205 está um outro sobrado, de dimensões

bem maiores que os três anteriores e pertencente a D. Maria José Vianna. A fachada é

repleta de elementos nouveau. O andar superior possui cinco aberturas e uma sacada em

ferro e alvenaria. O piso térreo está totalmente modificado e ocupado por lojas. O prédio

abrigou no final do século, em 1895, uma livraria e uma tipografia de propriedade de Pinto

e Cia.. Existe um processo que deu entrada na Câmara Municipal neste ano solicitando
134
licença para realizar reparos no prédio, entre eles, alargar uma porta na parte térrea do

sobrado onde estava a tipografia. Em 1873 funcionava ali, no piso inferior da casa, uma loja

de louças e vidros de propriedade de João Antônio da Rosa e Filhos (Franco, 1983: 70). O

prédio está listado para preservação pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre e o lote que

ocupa hoje também estava ocupado em 1839.

Andradas nº 1201 / 1205

Também ocupando um lote grande e possuindo cinco aberturas no piso superior,

está o sobrado da rua dos Andradas nºs 788, 792 e 798. Na verdade, a fachada que restou da

casa nºs 76, 76A e 78 da antiga Rua da Praia: atrás da altiva parede erguida no alinhamento

da rua vê-se um terreno aplainado e coberto de brita com uma pequena guarita. Guirlandas

de flores adornam as grades nas janelas sobre as aberturas do andar térreo. O mesmo

motivo repete-se na sacada corrida em ferro, que ocupa parte do piso superior e na

decoração aplicada em massa sob as demais janelas deste pavimento. As portas de madeira

135
e as cortinas de ferro são originais (Inventário do Patrimônio Cultural de Porto Alegre –

Bens Imóveis). A platibanda é ricamente ornada e possui um frontão onde se vê a inscrição:

1910. De fato, a fachada remonta a esta data, conforme observou-se em processo

microfilmado (APM) onde as então proprietárias Mariana e Edelvira Machado, esta última

proprietária do sobrado nº 1252 / 1256 da Rua dos Andradas, solicitavam licença para

realizar uma reforma no prédio para uma “compostura geral”, “com frente nova, telhado

novo, etc.”. Alguns anos antes, em 1895, quando a casa pertenceu a D. Maria José

d´Oliveira Magalhães e outros, funcionou, no andar térreo, a loja de música de Rodolpho

Fehlauer. É interessante notar que as aberturas do andar térreo não são, como nos sobrados

descritos anteriormente, apenas portas, mas também janelas (vitrines?).

Andradas nºs 788 / 792 / 798

Apesar da dificuldade em situar com precisão este lote na planta de L. P. Dias,

parece que ele esteve ocupado pelo menos desde o final da década de 1830, tendo fundos

com o rio. Esta estrutura, também está listada para preservação pela Prefeitura Municipal

de Porto Alegre.

136
Decorações mais “modestas” estão presentes nos prédios da rua Duque de Caxias

nºs 619/623 e da Riachuelo nº 1256. O primeiro é uma casa que ocupa um lote grande:

possui cinco aberturas embaixo (portas e janelas) e as mesmas cinco na parte superior. O

segundo possui apenas duas aberturas no térreo (portas) e duas no primeiro piso. São

aberturas em verga reta, com cercaduras em massa, com um número menor de elementos

decorativos, se comparadas ao interior. Nas platibandas cegas, pequenos frontões

arrematam a fachada que, no segundo caso associam-se pinhas colocadas nas extremidades

laterais.

Duque de Caxias nº 619 / 623 Riachuelo nº 1256

O sobrado da Duque mostra as marcas de duas aberturas que foram fechadas. Esta

casa pertenceu, em 1895, a Francisco Isidoro Duarte (térreo) e a José Manoel de Araújo

137
(primeiro piso) tendo funcionado aí uma padaria em nome de João Pellegrini Castelhani e,

no andar inferior, uma quitanda em nome de Salvador La Porta.

O sobrado da Riachuelo pertencia, no mesmo período, à Santa Casa de

Misericórdia. Um processo do ano de 1917 informa que nesta data foi colocada a

platibanda no lugar da antiga beirada do telhado e é possível que o restante da decoração

também remonte a este momento. Este fato ainda aponta para a possível existência do

prédio anteriormente ao ano de 1886, quando ficam proibidos os beirais.

Elementos e tecnologias surgidas no final do século estão presentes nos sobrados

que serão descritos a seguir.

Na rua General Andrade Neves nºs 105 e 107 está um sobrado com três aberturas em

verga reta, platibanda cega, cercadura nas janelas e avental com decoração em massa

representando frutas e folhas, além de um balcão central de alvenaria que aponta para um

período mais recente. Não foi possível, também neste caso, saber-se a época de construção

da fachada. Apenas que existia um sobrado no mesmo lote em 1893 e que este pertencia a

Maria Amélia de Campos e Souza. Não encontraram-se evidências de nenhuma atividade

comercial. Este prédio também está listado para preservação.

138
General Andrade Neves nºs 105 / 107

Na rua João Manoel nºs 294/300 um sobrado mostra vestígios daquilo que deveria

ter sido antes de se realizarem as modificações presentes em sua fachada. Apresenta

aberturas em verga reta, cercaduras nas janelas, elementos decorativos de massa e balcões

em ferro e, na platibanda, um pequeno frontão. Duas portas, uma em cada extremidade

lateral, sugerem o uso como dupla residência. Em 1839 o primeiro piso era de propriedade

de Joaquina, Corina e Eponina (filhas de Francisca Maria de Castro Freitas) e o segundo de

João dos Santos Castro. Não se encontrou nenhuma indicação da existência de atividades

comerciais neste local durante o final do século, tampouco da data de construção do prédio

ou da fachada. No entanto, seus elementos constitutivos nos levam a situá-la no final do

século XIX ou início do novecentos. O prédio está classificado como de interesse sócio

139
cultural pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre e listado para preservação e o lote onde

situa-se hoje já estava ocupado em 1839, segundo a planta de L. P. Dias.

João Manoel nº 294 / 300

Três sobrados de características muito semelhantes, que ocupam lotes do mesmo

tamanho, estão localizados na Rua dos Andradas nos nºs 703/697, 673/677 e 679/683.

O primeiro deles possui três pisos e no térreo ainda se observam elementos de ferro

decorado que compunham as esquadrias das quatro aberturas existentes, elementos que são

apontados pela bibliografia especializada, como característicos do final do século XIX. No

140
segundo piso colocam-se três aberturas em verga reta e uma sacada corrida em ferro. No

terceiro andar as aberturas são em arco pleno e as janelas possuem peitoris em alvenaria e

são arrematadas por decoração em massa, também presente no segundo piso. A platibanda

cega possui um pequeno frontão embutido.

Andradas nºs 703 / 697

Em 1895 o prédio pertenceu a Braz Pereira dos Santos e possuía em seu andar térreo

uma marcenaria de Juvêncio Placido de Lemos. Em 1894, os andares superiores eram

141
ocupados por um Hotel em nome de R. Miranda e Cia., mas que não consta nos registros da

municipalidade pesquisados no ano seguinte. No ano de 1910, o então proprietário João de

Oliveira Bandeira comunicou à Câmara que a parte térrea estava desocupada.

O prédio está listado para preservação pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre,
tendo sofrido um incêndio e estando em péssimas condições de preservação. Na época da
pesquisa esta casa estava à venda e, apesar de não se ter conseguido entrar nela, foi possível
ver, através das frestas existentes, que há um pátio nos fundos.

Como os demais prédios deste conjunto este também está em lote ocupado desde

pelo menos 1839.

O segundo prédio, na verdade uma ruína, possui elementos que o situam, como o

primeiro, em fins do século XIX ou início do século XX: peitoris de alvenaria nas janelas

do terceiro piso, sacada em alvenaria no segundo piso. As aberturas são em verga reta

arrematadas por cimalhas no segundo andar e por cercadura com elementos decorativos em

massa, no terceiro. A platibanda é ricamente decorada. O térreo não foi possível observar,

já que estava encoberto.

142
Andradas nº 679 / 683

Esta casa foi propriedade de José Teixeira da Motta nos anos pesquisados de 1893,

1895 e 1905, e de José Lucas da Silva Dias em 1828. No andar térreo havia um entalhador

de nome Boaventura San Vicente que ali realizou seu trabalho pelo menos nos anos de 94,

95 e 98 (anos que foram pesquisados). Em 1905, o proprietário da casa reclamou à Câmara

(que lhe estava cobrando impostos) que o andar térreo (aquele ocupado pelo marceneiro)

havia sido alugado há mais de dezoito anos (ou seja, antes de 1887) a um mesmo inquilino

(o marceneiro) pelo valor de Rs. 45$000 e que o locatário só pagava Rs. 25$000.

Parece evidente que ninguém iria investir na decoração de uma fachada, e ainda

mais numa fachada tão rica, nas condições descritas acima. É possível que o proprietário

tenha realizado as reformas depois que estas condições tivessem sido modificadas.

143
O que se quer dizer com isto é que não apenas os elementos materiais apontam para

uma fachada situada num período mais recente, mas que também os dados documentais

escritos fornecem pistas neste sentido. Porém, o que importa é que as características

constitutivas desta estrutura apontam para um imaginário que é aquele, já descrito, que

imprime nas fachadas o espetacular como um valor importante e, sobretudo, um valor por

excelência da burguesia da época.

O último prédio possui dois andares. No segundo (o primeiro é impossível observar)

as aberturas são em arco pleno arrematados por elementos decorativos em massa. A

platibanda apresenta um frontão e, abaixo dela, uma cimalha completa a fachada. A sacada

é em alvenaria, com a adição de um gradil, que aponta, como as anteriores, para o final do

século XIX e início do XX. O proprietário desta casa foi Mariano José do Canto Filho

desde 1893 até 1928, pelo menos (datas limites pesquisadas). No andar térreo funcionou,

em 1895, uma taverna que estava em nome de Calegario Ossaad, mesma pessoa que, no

ano anterior, possuiu ali um armazém de molhados. Em 1898 houve um outro armazém,

este de propriedade de Matheus Mantone.

144
Andradas nº 673 / 677

Outro sobrado localizado na rua Riachuelo nºs 933/935, e que possui elementos

marcadamente ecléticos levantado na amostra, possui algumas características bem diversas

dos anteriores e será, portanto, tratado separadamente.

Trata-se de um prédio de quatro andares com uma fachada ricamente ornamentada

onde se vê, no segundo e terceiro pisos uma seqüência de cinco balcões em serralheria.

Entre cada abertura e nos limites laterais, elementos imitam colunas cujo capitel é formado

por folhas de acanto. Um friso decorado separa o terceiro do quarto piso que possui

características bem diversas dos dois anteriores e sugere ter sido instalado posteriormente:

janelas em vergas retas, ainda com bandeiras, e entre elas e nos limites do prédio, no lugar
145
das pseudo-colunas, outros elementos decorativos em massa. A platibanda, em balaustrada,

apresenta um frontão embutido no centro da estrutura. O térreo parece ter sido totalmente

alterado.

Este prédio, que atualmente está desocupado e tombado pelo município, foi

propriedade de Engrácio Ortiz Taborda Ribas no ano de 1895. Nesta data não foi

encontrado registro de nenhuma atividade econômica que se realizasse ali. Apenas no ano

de 1898 encontrou-se a existência de um estabelecimento ligado à fabricação ou

comercialização (não foi possível estabelecer se um deles ou ambos) de chapéus de palha.

A fachada é, sem dúvida, de extrema suntuosidade.

Riachuelo nºs 933 / 935

O lote estava ocupado, segundo a planta de L. P. Dias, em 1839 e localiza-se aos

fundos do Solar dos Câmara.

146
Na rua Riachuelo nºs 613/615, onde funciona atualmente uma Delegacia de Polícia

Civil, está o sobrado que pertencia, em 1895, à Maria Caetana R. Souza Lobo. É o único

exemplar de sobrado com recuo lateral que consta na amostra, e por isto, também será

descrito separadamente. A fachada possui linhas simples, com janelas em verga reta e um

púlpito com peitoril em ferro na abertura central do andar superior. A casa apresenta um

recuo do lado direito, onde se localiza a entrada principal que se realiza através de um

portão de ferro. Por isto, o sobrado não possui portas que o ligavam diretamente com a

calçada. Aparentemente havia um recuo do lado esquerdo junto à esquina, local que hoje é

utilizado como estacionamento, que levava, possivelmente, a um pátio interno e às

dependências de serviço.

Riachuelo nº 613 / 615 Vista lateral a partir da esquina da


Rua Gal Canabarro

147
A fachada e a lateral direita foram reconstruídas em 1899, segundo processo

microfilmado existente no APM, que reproduzo, em parte, a seguir:

“Dr. Carlos Augusto de Souza Lobo, que é co-


proprietário do prédio nº 115 da rua do Riachuelo e sucede que,
tendo esta Intendência mandado demolir o prédio contíguo nº
117, torna-se preciso reconstruir a parede da frente e a parte do
lado do nascente do dito prédio nº 115. Assim, [solicita] a
aprovação de V.S. a respectiva planta do frontispício a
reconstruir e pede a V.S. também seja dada a altura da soleira do
portão de entrada e competente alinhamento”.

Supõe-se, portanto, que o prédio anteriormente deveria estar nos limites do terreno,

o que ocasionou danos à parede leste e à fachada quando foi demolida a casa ao lado. Não

consta que ali tivesse havido qualquer atividade comercial.

Planta da Fachada do prédio da Riachuelo nº 613 / 615, 1899.


(Reproduzida de processo microfilmado – APM)

148
É difícil estabelecer o status sócio-econômico dos proprietários deste prédio. Ao

que tudo indica, em épocas anteriores, o sobrado teria sido de Pedro de Sousa Lobo, o

Pedro Mandinga (Coruja, op. cit.:111) que emprestou o nome a este trecho de rua

conhecido, na época, como Beco de Pedro Mandinga (antiga rua Direita e atual General

Canabarro). A casa é qualificada por Coruja como “um pequeno sobrado” (Idem). Por

outro lado, o sobrenome Souza Lobo é muito conhecido em Porto Alegre através de, pelo

menos, dois nomes: José Teodoro de Souza Lobo (1848-1913) que foi engenheiro e

professor da Escola Normal de Porto Alegre e autor de obras didáticas e seu filho José

Carlos de Souza Lobo (1875-1935), jornalista, advogado, poeta, cronista e romancista

(Franco, 1998: 250).

O sobrenome Bittencourt também está ligado a personagens ilustres da cidade que

desempenharam atividades intelectuais. Um deles, Aurélio Veríssimo de Bittencourt (1849-

1919), tipógrafo e jornalista, foi um dos fundadores do Partenon Literário, Diretor do Jornal

do Comércio e secretário da Presidência da Província tanto no período monárquico quanto

no republicano (Idem.: 73). O outro, que viveu mais ou menos no mesmo período, foi José

Teodoro de Souza Lobo, professor da Escola Normal de Porto Alegre, além de ter sido um

dos seus fundadores. Foi, também, médico e ligado ao Partido Conservador, deputado

provincial e geral (Idem.: 75). Talvez haja alguma ligação entre estes nomes e os dos

proprietários dos prédios: uma pista que necessita ser investigada.

149
A casa situa-se na esquina com a rua General Canabarro da mesma forma que o

Solar do Conde de Porto Alegre. O lote onde encontra-se hoje já estava ocupado em 1839,

segundo a planta de L. P. Dias.

O prédio está listado como sendo de interesse sócio cultural pela Prefeitura

Municipal de Porto Alegre. As pequenas áreas externas à casa estão cobertas por lajotas de

cimento e o interior foi totalmente modificado para servir ao seu uso atual.

Assobradados: casas de porão alto

Além do Solar dos Câmara, foram levantadas mais seis unidades com características

de prédio assobradado: casas com um porão alto, supostamente habitável e, em princípio,

objetivando ser uma área de serviço, implicando num pavimento acima do nível da rua e

resultando em maior privacidade da vida familiar. Mas apesar das seis terem como ponto

comum o fato de serem assobradadas, possuem características radicalmente diferentes tanto

em termos de tamanho, quanto de fachada.

Ocupando um lote pequeno, mas apresentando uma fachada de imponência

incontestável dada pela altura das aberturas e do pé direito, está o assobradado da rua

Duque de Caxias nº 874/876. Conhecida como a casa dos azulejos da Duque trata-se, na

realidade, apenas de uma fachada com elementos que o ligam ao neoclássico. Atrás dela

ergue-se um grande edifício, demonstrando as linhas de ação tomadas quando existe

alguma preocupação em resguardar o patrimônio cultural dos porto-alegrenses (e devo

dizer, ainda bem que se preservou a fachada, pois na maior parte dos casos não restou
150
nada). Sem profusão de ornamentos, este prédio apresenta linhas bem sóbrias: aberturas em

arco pleno, poucos elementos de massa (em torno das aberturas e nos limites laterais do

prédio). A decoração da fachada está centrada na aplicação de azulejos. Na platibanda, de

serralheria sustentadas por pilastras de alvenaria, inscreve-se uma data – 1863 –

provavelmente a de sua construção. A entrada realiza-se através de um pequeno portão de

ferro seguido pela imensa porta de duas folhas que possui tranca e tranqueta de ferro. Não

foi possível averiguar até onde os elementos ali preservados são os originais, tendo havido

uma evidente preocupação em construir ou reeditar uma imagem de casa do passado,

inclusive com a adição de uma luminária atual que imita os velhos lampiões oitocentistas.

É provável que o lote estivesse ocupado no ano de 1839 (é difícil localizá-lo com

precisão). O proprietário em 1895 era Manoel Py que, segundo Franco (1988: 334) foi um

empresário ligado à negócios imobiliários e serviços públicos. Diretor da Cia. Hidráulica

Porto-alegrense, da Cia. Carris Porto-alegrense, da Cia. Predial e Agrícola, da Cia. Gráfica

Porto-alegrense (editora do Jornal “O Diário”) e fundador da FIAFECI (importante

indústria têxtil de Porto Alegre). Foi, ainda, incorporador e principal acionista do Banco

Comercial Franco-Brasileiro. Politicamente ligado ao PRR, foi tenente-coronel da Guarda

Nacional, Deputado na Assembléia de Representantes por quatro legislaturas (1893-1909) e

Deputado Federal.

Os livros prediais dos anos de 1893, 1895 e 1928 (APM) atestam a grande

quantidade de imóveis que Manoel Py possuía. Um deles, um sobrado na Rua da Praia nº

718/724, onde funcionava um armazém de sua propriedade em 1902 (APM) mantém-se até

hoje e foi descrito nas páginas anteriores.


151
Segundo se pode concluir pela leitura de Franco (1998: 195), o coronel Manoel Py

possuía sua residência, um sobrado, num loteamento realizado por ele mesmo, no Arraial

da Glória, onde realizou-se uma festa por ocasião da inauguração de um trecho da linha

Carris Porto-alegrense cujo terminal era neste arraial. No entanto, o assobradado da Duque

de Caxias, por sua nobre localização (a poucos metros da Praça da Matriz) – o alto custo da

terra e a importância simbólica deste espaço devem ser considerados como fatores

primordiais naquilo que a casa possa representar em termo de status e riqueza (Blanton, op.

cit.: 15) – e por sua característica unicamente residencial (as casas de porão alto não

comportavam negócios como acontecia com o andar térreo dos sobrados e, ao mesmo

tempo, distinguiam-se das casas térreas de custo mais baixo e tecnologia mais simples), é

provável que tenha servido de moradia a alguma figura mais ou menos proeminente.

Duque de Caxias nº 874 / 876

152
Comparada a outras casas repletas de detalhes decorativos, esta não parece nada

enfática enquanto proposta de ruptura com a cultura aristocrática anterior. Pelo contrário,

há uma simplicidade de formas na fachada que apresenta, no entanto, uma

monumentalidade e uma expressividade que, ainda assim, evidenciam o status dos seus

ocupantes. Esta casa está listada para preservação pela Prefeitura Municipal de Porto

Alegre em função de seu interesse sociocultural.

Na Rua General João Manoel está o único exemplar de casa de porão alto de uma

porta e uma janela levantado nesta área. O prédio está com a fachada bastante alterada

possuindo, inclusive, uma garagem no lugar do dito porão, cuja entrada localiza-se logo

abaixo da janela, também radicalmente modificada. Elementos como grades, toldos,

aberturas em metal se conjugam a uma platibanda de linhas curvas que ostenta figuras que

lhe conferem uma certa imponência: no centro, a cabeça de um leão e sobre pilastras dois

elementos decorativos com volutas arrematam a platibanda.

João Manoel nº 323

153
Esta casa, de propriedade de Ercília e Antônio, filhos de Antônio José da Fonseca

estava classificada, em 1895, neste mesmo ano como um assobradado nos livros de

impostos prediais da Intendência Municipal. Um processo de 1916 informa que nesta época

o prédio sofreu uma “reforma no assoalhamento”, foi mudada uma parede de um quarto

com finalidade de obter uma área maior e modificada uma parede da “casinha”.

Infelizmente não foi possível obter nenhuma planta desta casa. Não consta, também, a

existência de qualquer atividade econômica que tenha sido realizada ali. O lote onde ela se

localiza hoje estava ocupado em 1839.

Um exemplo de casa assobradada de duas janelas e uma porta foi levantada na rua

Demétrio Ribeiro nº 907. Com alterações menos radicais que as descritas para a casa da rua

General João Manoel, este prédio apresenta modificações nas aberturas que mantiveram, no

entanto, as marcas das anteriores, em verga reta, arrematadas, na sua parte superior, por

cimalhas. A fachada apresenta um friso com figuras geométricas logo abaixo da platibanda

de onde emerge um tubo de PVC, responsável por levar (atualmente, claro) as águas do

telhado à rede pluvial. A platibanda tem o aspecto de uma renda, onde figuras que

lembram, pela forma geral, flores de Liz sobrepostas, conferem à casa uma certa

portentosidade que, do ponto de vista de padrões estéticos diferentes daqueles vigentes

então, lembra o comentário de Aquarone (apud Fabris, 1993: 131) sobre a casa eclética

brasileira: uma mistura de “atentados”. Não resta dúvida, no entanto, que a riqueza de

detalhes decorativos contribui para a espetacularização do espaço e sintetiza, as aspirações

de prestígio dos ocupantes da casa e seu status econômico.

154
Demétrio Ribeiro nº 907

O lote não estava ocupado em 1839, nem nos anos de 1869, nem na de 1881, mas

apenas na de 1895. Não foi possível encontrar nenhum documento que atestasse a data de

construção desta fachada, e não consta que tivesse havido alguma atividade comercial ali.

Atualmente a casa abriga um restaurante.

Ela foi, em 1895, propriedade de Ventura Pinto d‟Oliveira e, em 1928 de Victor

Conssirat de Araújo, mesmos proprietários do assobradado situado no lote imediatamente

anterior, na rua Demétrio Ribeiro, nº 899. Este é um prédio bem maior, que possui em torno

do dobro da área de fachada que o nº 907. As quatro janelas em verga reta possuem

aventais com elementos decorativos em massa na forma de guirlandas de flores. Sobre as

155
janelas outros tipos de guirlandas compõem a decoração. A porta possui uma soleira de

mármore bastante gasto, resultado de uma utilização por largo tempo. Sobre a entrada

principal, está um óculo circular que fornecia iluminação à parte interna da casa, com

vidros coloridos e cercaduras com elementos decorativos de massa. A platibanda é cega e

reta, tomando uma linha curva e mais elevada sobre a entrada do prédio. Ali estão outros

elementos decorativos em massa.

É possível que esta fachada tenha sido realizada em 1922, quando o proprietário

solicitou através de um processo (APM), licença para armar um andaime com o fim de

realizar reparos no prédio.

Internamente, a casa está bastante modificada e é utilizada, hoje, como uma

academia de ginástica. A existência de um pátio nos fundos associado à função atual do

prédio são características que favorecem a realização de pesquisas que envolvam

escavação. A casa está em um lote onde já havia ocupação em 1839. No entanto, nos mapas

de 69 e 81 não consta a ocupação desta área, reaparecendo na planta de 95.

156
Demétrio Ribeiro nº 899

Uma estrutura que encontra-se listada para preservação pela Prefeitura Municipal de

Porto Alegre é o assobradado da Duque de Caxias nº 973, constituindo-se num forte

exemplo da espetacularização do espaço urbano. A fachada é composta por uma imensa

porta de entrada, em arco pleno “coroada” por elementos decorativos em massa e quatro

janelas em verga reta com cercadura também em massa. Elementos imitando colunas cujo

capitel é formado por duas volutas laterais, um frontão em arco na platibanda (em

balaustrada), sacada em serralheria e inúmeros outros detalhes dão conta desta exibição

eufórica, para utilizar uma expressão de Reis Filho (op. cit.).

Em 1893 e 1895 a casa esteve no nome de D. Luiza Amália da Silva Guerra,

Henrique Cristino S. Guerra, D. Maria Luiza Guerra Duvo, Augusto S. Guerra, D. Maria

Amaria Guerra Sertosio (?), D. Maria Julia da Silva Guerra, Luiza da Silva Guerra.

157
Não se conhece a data de construção da casa, tão pouco da fachada. Talvez esta

última seja de 1916 quando o então proprietário, Theodoro Saibro, apresentou um processo

na Câmara solicitando licença para reformar o prédio.

Duque de Caxias nº 973

Finalmente há o atual prédio do Museu Júlio de Castilhos, localizado na rua Duque

de Caxias, 1231. O prédio que foi construído em 1887 (Franco, 1998: 238), possui recuo

em ambos os lados: à esquerda onde se localiza a entrada principal e à direita uma

passagem estreita apontando para funções de arejamento, iluminação e acesso de serviço.

Em termos decorativos, a fachada é tão eloqüente quanto o assobradado do nº 973. Alguns

elementos lembram muralhas ou castelos medievais e se conjugam a colunas, frontões e às

linhas curvas dos arcos das aberturas. Este prédio foi construído pelo Coronel de

Engenheiros Catão Augusto dos Santos Roxo, “comandante da Escola Militar do Rio

Grande do Sul, para sua residência particular”(Idem).


158
As aberturas em sua fachada não mantém um espaçamento constante entre elas. Esta

estrutura e uma casa térrea situada à rua João Manoel nº316 compõem as únicas exceções à

manutenção de um ritmo constante entre as aberturas de toda a amostra levantada.

Em 1893 e 1895 seus proprietários eram Aloysio Chulu (?) e outros. Em 1896 foi

realizada uma ampliação no fundo do prédio e, no ano seguinte, um aumento no 2o piso. As

plantas correspondentes encontram-se microfilmadas no APM. O lote estava ocupado em

1839. Em 1898 passou a ser a residência de Júlio de Castilhos. A casa, adquirida pelo

Partido Republicano Riograndense (PRR) ao seu chefe político (Idem), comunica – com

veemência – a importância de seus ocupantes. Para além disto, comunica poder e riqueza de

todo um segmento da sociedade que tinha em Júlio de Castilhos seu representante máximo

(diríamos hoje, um ícone). Detalhe: a casa foi adquirida mediante doações entre

correligionários do PPR. Com a sua morte em 1903 e de sua esposa em 1905, o Estado

adquiriu o prédio dos herdeiros e instalou ali o Museu (Ibidem), mais um indício de sua

importância simbólica.

O prédio está tombado pelo Estado.

Atual Museu Júlio de Castilhos

159
As casas térreas

Estas estruturas foram divididas em casas de porta e janela e casas com mais de

duas aberturas frontais. O número está ligado ao tamanho do lote e, portanto, à

disponibilidade de recursos para a construção de casas.

Casas térreas com mais de duas aberturas (que ocupam um lote maior que de

porta e janela)

Estas casas, num total de 32 unidades, foram divididas em seis conjuntos.

O primeiro caracteriza-se pela simplicidade de formas e ornamentos e é composto

por aquelas unidades que possuem as aberturas arrematadas por cimalhas, atributo que liga-

as ao neoclássico.

Este conjunto é integrado por duas unidades e ambas possuem porta e duas janelas

A primeira estava localizada na rua Fernando Machado, nº 533249 e apresentava as

aberturas já bastante alteradas. Havia sido propriedade de Carlos R. Netto, em 1895.

249
Esta casa e outra mais foram demolidas no tempo em que durou o trabalho de levantamento das unidades
no centro da cidade, ou seja, menos de um ano. Esta foi possível documentar fotograficamente. A segunda,
situada originalmente na rua Demétrio Ribeiro foi demolida antes disto e, devido a este fato, não consta nesta
pesquisa.

160
Fernando Machado nº 533

A outra casa deste conjunto, localizada na rua Demétrio Ribeiro, nº 223, é a única

que possui uma fachada absolutamente simétrica, com a porta no centro e as janelas

dispostas uma de cada lado. Outra diferença sensível, com relação à primeira, é a altura do

pé direito, bem mais baixo e que deve estar relacionado ao tipo de inclinação do terreno:

observa-se que quanto maior a inclinação da rua, maior o pé direito das casas.

A porta e as janelas desta última casa parecem ser originais, estas últimas em

caixilhos e guilhotina e aquela de duas folhas. A platibanda tem uma decoração em relevo

com motivos geométricos e compoteira sobre ela. A soleira é de arenito e apresenta-se

bastante gasta sendo, possivelmente, também original. Pertenceu a Raphael Gonçalves

Ventura em 1895 e o lote onde situa-se atualmente não estava ocupado em 1839, tampouco

161
aparece na planta de 1869 ou na de 1881 de Breton, aparecendo registrada apenas na planta

cadastral de 1895.

Demétrio Ribeiro nº 223 Demétrio Ribeiro nº 223


Detalhe das aberturas

Atualmente é uma residência e local de trabalho de uma costureira. Nenhuma das

casas deste grupo possui registro de ter abrigado alguma atividade econômica nos anos

pesquisados do final do século XIX.

Um outro conjunto cuja decoração bastante simples está centrada em cercaduras

lisas em torno das aberturas e / ou frisos elementares entre estas e a platibanda é composto

162
por quatorze unidades, doze delas com uma porta e duas janelas e apenas duas de esquina,

com aberturas também na fachada lateral, além das aberturas na frente. Todas possuem

platibandas cegas.

A primeira casa levantada está na rua Fernando Machado, nº 675, tendo sido de

propriedade de João Braga Veiga em 1895. Ao que parece, o lote estava ocupado no ano de

1839 (Dias).

Fernando Machado nº 675

Outro exemplar é aquele situado à rua Demétrio Ribeiro, nº 79 que, apesar de ter

sofrido uma alteração na porta, mantém os exemplos da fachada com as características

acima descritas. Esta casa pertenceu, em 1895, a Josué Duarte e Silva Campello que

163
também era proprietário de uma série de outras casas, segundo se pode constatar nos livros

prediais. O lote não estava ocupado em 1839.

Demétrio Ribeiro nº 79

Também na Fernando Machado, nº 83 está uma casa que foi de propriedade de

Rodolpho Lopes Coelho (1895). Um processo existente indica que este prédio foi

reconstruído em 1878 quando seu proprietário era Antônio da Silva Paranhos, apontando

para a ocupação relativamente antiga do, ainda que esta não apareça na planta de 1839.

164
Fernando Machado nº 83

Na Demétrio Ribeiro, nº 616, está outra casa que teve sua porta alterada mas que

manteve suas características básicas mantidas. Foi propriedade de José Coelho de Castro

em 1893. O lote também não estava ocupado em 1839.

Demétrio Ribeiro nº 616

165
Uma seqüência de cinco prédios na rua General Auto, nºs 224, 232, 238, 244 e 250,

todas listadas para preservação pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre, tem servido de

casas para aluguel, desde pelo menos 1895, quando eram propriedade de Generoza B.

Ferreira de Azevedo. Atualmente todas as cinco casas continuam em propriedade da família

Azevedo250. Algumas já sofreram modificações, mas ainda mantém suas características

prévias. Uma delas, a de nº 238 sofreu a maior intervenção, tendo o corredor de entrada

dado lugar a um recuo lateral e a porta, a um portão.

Hoje comportam residências associadas a estabelecimentos prestadores de serviço

(alfaiate, consertos gerais), pequeno comércio (ferragem) e até uma pensão. Os lotes já

estavam ocupados em 1839.

General Auto nº 238

250
Segundo informação de uma moradora e inquilina que, mencionou, ainda, o fato das cinco casas estarem,
atualmente, sendo inventariadas para partilha entre descendentes do antigo proprietário.

166
General Auto nº 232

General Auto nº 224

167
General Auto nº 244

General Auto nº 250

Outra unidade com uma fachada simples, ainda que bastante modificada, é a casa da

rua Duque de Caxias, 518. Na época do levantamento ela tinha tido sua platibanda

demolida e as aberturas modificadas. Foi, em 1895, de Francisco José Dias e o lote estava

ocupado em 1839.

168
Duque de Caxias nº 518

Uma casa que segue o mesmo padrão, apenas com a diferença de possuir um óculo

sobre a porta é a de nº 632 da rua Duque de Caxias. Tendo sido propriedade dos herdeiros

de Antônio Victor da Silva, em 1895, foi, em 1912, de Clara Lopes Barbosa que entrou

com processo na Câmara para solicitar licença para tirar a beirada do telhado e construir

uma platibanda. Isto aponta, como em outros casos semelhantes, para a possibilidade da

casa ser anterior a 1886. Este lote também estava ocupado em 1839, segundo Dias.

169
Duque de Caxias nº 632

Fugindo um pouco do padrão até agora descrito está a casa número 316 da rua João

Manoel. Ela possui aberturas em arco pleno diferentes das anteriores que as possuíam em

vergas retas. Além disto as aberturas não se colocam numa mesma distância das outras, o

que a liga diretamente ao final do século XIX. O andar superior foi construído

recentemente. Pertenceu a Amaro Alves de Azambuja, em 1895, e seu lote estava ocupado,

segundo Dias, na planta de 1839.

170
João Manoel nº 316

Duas unidades mostram características diversas, devido à sua implantação,

ocupando lotes de esquina.

A primeira é um prédio localizado na rua Duque de Caxias esquina com a rua

General Bento Martins, nº 688. É uma casa com cinco janelas por um lado, das quais

restam apenas vestígios, e três portas pela fachada principal. Todas as aberturas são em arco

pleno e se pode presumir, pelos sinais que restam ali, que todas possuíam bandeiras.

171
Duque de Caxias nº 688

Com exceção desta casa e daquela que será descrita a seguir, em nenhuma outra

deste grupo foi encontrado registro de que tivesse havido alguma atividade nos anos de

1894, 95 ou 98. Nesta, onde houve, tratou-se de uma taverna em 1894 e de um armazém em

1898, ambos de Joaquim Pereira da Silva que, aliás, era o proprietário do prédio nestas

datas. Talvez ali funcionasse também a residência de Joaquim e sua família. Sabe-se,

através de um processo pedindo redução de impostos comerciais à Câmara em 1927, que o

proprietário do armazém Pimenta que estava instalado ali, residia com a família no mesmo

local. Atualmente é um armazém e açougue. O lote estava vazio pela planta de 1839.

A última unidade, que apresenta as aberturas em verga reta e não mostra

praticamente nenhum elemento decorativo, localiza-se na Rua Riachuelo, na esquina com

General Portinho. Foi propriedade de Gonçalo, filho de Manoel Soares Gomes no ano de

1895. Ali funcionava uma loja de fazendas, em nome de Francisco Blois neste mesmo ano.

Um anúncio no jornal “A Gazetinha” de 8 de setembro(AHMV) refere-se ao fato de que

nesta loja, chamada “A Metralhadora” vendiam-se roupas feitas, fantasias, morins, chitas e

casemiras. O lote que ela ocupa atualmente estava ocupado em 1839.

172
Riachuelo nºs 461 / 465

O terceiro conjunto de casas é formado por aquelas que, mantendo uma decoração

relativamente simples na parte inferior das fachadas, apresenta as platibandas bastante

decoradas, situando-as entre as casas mais simples e as mais elaboradamente ecléticas. Três

unidades compõem esta conjunto.

É o caso do prédio da Duque de Caxias, nº 542 que tem pinhas e compoteiras sobre

a platibanda e elementos decorativos em massa. Pertenceu em 1895 a Fermino Rodrigues

de Freitas e o lote estava ocupado em 1839.

173
Duque de Caxias nº 542

Outra casa com estas características situa-se na rua General Portinho, nº 233. Na

platibanda decorada com motivos geométricos estão, sobre as pilastras pinhas e

compoteiras. Foi propriedade de Maria do Nascimento em 1895, mas sua fachada foi

reconstruída em 1910 quando o seu proprietário era Giusepe Antônio de Moreira. A planta

apresentada à Câmara está microfilmada no APM e mostra uma fachada igual a existente

hoje, porém, curiosamente invertida. Os adornos na platibanda correspondem aos atuais.

174
General Portinho nº 233

Na Washington Luiz nº 202 está um outro exemplo: linhas claras e apenas adornos

laterais imitando colunas cujo capitel é arrematado por volutas laterais. A platibanda, em

balaustrada, ostenta quatro compoteiras sobre as pilastras. Pertenceu a Frederico Bier

Sobrinho, em 1895. Está, atualmente, em um lote que já estava ocupado em 1839.

175
Washington Luiz nº 202

Em nenhuma destas casas observou-se qualquer tipo de atividade econômica na

documentação pesquisada.

O quarto conjunto de casas se caracteriza por uma decoração mais efusiva,

incluindo elementos de massa na forma de flores, efígies, etc., e é composto por oito

unidades.

A casa da Vasco Alves, nº 347 é um exemplo, apesar de ter sofrido modificações na

fachada com acréscimo de uma barra em tijolo à vista, um parapeito de tijolos nas janelas

176
venezianas e, mesmo, um ar condicionado. As aberturas conservam as cercaduras

decoradas e na platibanda cega há um pequeno frontão e, ainda, uma pinha. A casa foi de

José Teixeira da Mota, em 1895 e de Rosa Gonçalves da Silva, em 1893. Este lote também

estava ocupado em 1839.

Vasco Alves nº 347

Outro exemplo está na Duque de Caxias, nº 734, onde atualmente existe uma

pensão. A fachada parece estar inalterada desde a época que foi realizada. Possivelmente

em 1914, data inscrita na platibanda que contém, ainda, elementos decorativos em massa,

pinhas e um frontão. As cercaduras das janelas são ornadas com riqueza de detalhes. Maria

Francisca D‟Abreu foi a proprietária do prédio em 1895 e, em 1839 o lote já estava

ocupado.

177
Duque de Caxias nº 734

Na General Portinho nº 325 está um prédio que ocupa um lote maior, apresentando

três janelas e uma porta, cercadura decorada nas janelas e platibanda cega. Pertenceu a

Gonçalo, filho de Manoel Soares Gomes em 1895, e havia ali, no ano de 1898 um serviço

de lavagem de roupa em nome de Augusto Rompelot ( ? ). Não havia ocupação do lote em

1839 e também não aparece ocupado na plante de 1869, mas apenas na de 1881 de Breton.

178
General Portinho nº 325

Duas frentes restaram de duas casas contíguas localizadas na Washington Luiz, nº s

134 e 138. Hoje são apenas ruínas que compõem o muro de um estacionamento. Ambas

foram de propriedade de Christóvão Pascoal Ratta em 1893. Em 1895 a de nº 138 passou às

mãos de José de Carvalho Bastos que ali instalou uma padaria em nome de Miguel Antônio

Leite.

Estas unidades, como já foi dito, mantém-se de modo muito precário. As

platibandas não existem mais. Sobre as aberturas ainda pode-se ver a ornamentação em

massa que inclui efígies como elementos centrais. Ambos os lotes estavam ocupados em

1839.

179
Washington Luiz nº 134

Washington Luiz nº 138

180
Em pior estado que estas, mas ainda conservando algum vestígio daquilo que foi

outrora, está uma unidade localizada à rua Demétrio Ribeiro, nº 203. Parte do revestimento

externo caiu e junto caíram (ou foram retirados251) os elementos decorativos da fachada.

Todavia algo ainda se conserva, podendo-se observar cercaduras nas janelas, com um

florão central. Parece ter havido, também, um frontão na platibanda. Pertenceu à Dona

Guilhermina do Canto nos anos de 93 e 95. O lote não estava ocupado em 1839 e em 1869.

Demétrio Ribeiro nº 203

Outra unidade bastante danificada da qual resta apenas a frente está na General

Portinho, nº 333. O elemento mais importante é o frontão sobre a platibanda cega. Nas

251
É muito comum ver-se para vender nos antiquários da cidade, ornatos retirados das fachadas de casas
antigas: frontões, pinhas, efígies, etc..

181
aberturas ainda permanecem as cercaduras. Pertenceu a Manoel Joaquim de Castro Filho

nos anos de 1893 e 1895, e o lote já estava ocupado em 1839.

General Portinho nº 333

Por fim, a casa da Fernando Machado, nº 45, que apresenta as características

expressas para este conjunto, com elementos de massa sobre a porta, mas ausentes nas

janelas (marcas indicam que caíram ou foram retirados). A platibanda cega, assimétrica,

possui decoração e ornato sobre a pilastra. Pertenceu a Rodolpho Lopes Coelho em 1895 e

o lote não estava ocupado em 1839, e aparentemente também não em 1869, tão pouco em

1881, aparecendo na planta cadastral de 1895.

182
Fernando Machado nº 45

O quinto conjunto de casas, composto apenas por duas, é formado por aquelas que

apresentam recuo lateral e que remetem a um período mais recente.

A primeira delas, localizada na rua Demétrio Ribeiro, nº 103, possui recuo direito,

quatro janelas na frente e a entrada se faz através de um portão de ferro. A fachada, em

termos decorativos, é sóbria. Na platibanda cega está a inscrição da data: 1913. Foi

propriedade de José Duarte e Silva Campello e o lote parece ter sido ocupado tardiamente,

aparecendo apenas na planta cadastral de 1895.

183
Demétrio Ribeiro nº 103

A segunda, é a casa situada no número 180 da rua Duque de Caxias e que

atualmente é uma pensão (uma “pousada” segundo informações de um funcionário). A

entrada é lateral, pela esquerda do prédio e através de um portão de ferro. A frente possui

três janelas, cujas aberturas foram modificadas mantendo, porém, a decoração em massa

das antigas cercaduras, com traços noveau. A platibanda também possui elementos

decorados. Aparentemente o lote estava ocupado em 1839 e pertenceu a Custódio de

Almeida Lemos, um pedreiro, nos anos de 1893 e 1895.

184
Duque de Caxias nº 180

Existe uma boa possibilidade de que toda esta estrutura, não apenas a fachada, tenha

sido construída após 1901: em primeiro lugar, no ano de 1895 há um processo que dá

entrada na Câmara, em nome de Custódio de Almeida Lemos, solicitando uma licença para

construir um telheiro para servir de cocheira na sua propriedade de nº 12 (é o número que

corresponde ao 180, até o ano de 1928) da rua Duque de Caxias. Em segundo, Constantino

(1998: 157) menciona que no local, e abrangendo os números de 6 a 12, havia um cortiço

pertencente a Cristiano de Almeida Lemos, no ano de 1901.

Talvez esta unidade seja parte daquele cortiço que foi reformado posteriormente.

Talvez seja uma construção nova, independente daquela. No entanto, optou-se por mantê-la

no sentido que ela mostra os traços aqui apresentados como integrante de um imaginário

185
que não se esgota nem se rompe com a virada dos oitocentos aos novecentos, mas que se

insere num processo, como já foi repetido outras vezes, de longa duração.

O último conjunto da casas térreas com porta e duas ou mais janelas caracteriza-se

por fachadas substancialmente alteradas, o que impede qualquer visualização imediata de

atributos decorativos, mas que mantém o padrão de implantação no lote, o ritmo de

aberturas constante e a largura das paredes, conforme especificado anteriormente. Como

todos os demais, estes prédios foram submetidos aos critérios de seleção para a amostra

estabelecidos neste trabalho, que inclui a combinação dos dados obtidos em campo com

aqueles relativos à documentação escrita. Compõem-se de três unidades.

A primeira está na rua Washington Luiz, nº 56 e pertenceu, nos anos de 1893 e

1895, a Christóvão Pascoal Ratta (aliás, segundo os livros de registro da época, proprietário

de uma série de imóveis na capital); a segunda situa-se na rua Demétrio Ribeiro, nº 99 e foi

de José Duarte e Silva Campello (outro possuidor de grande número de prédios neste

mesmo tempo) e, por fim, a terceira localizada também na rua Demétrio Ribeiro, nº 662,

que foi de Dona Thereza Luiza de Castro Guimarães, em 1895 e possuía ali um cortiço.

Assim, ao que tudo indica, todas estas unidades foram, no final do século XIX,

casas de aluguel, cujos proprietários não viviam nelas.

186
Washington Luiz nº 56

Demétrio Ribeiro nº 99

187
Demétrio Ribeiro nº 662

A única cujo lote estava ocupado no ano de 1839, segundo L. P. Dias, é a da

Washington Luiz, nº 56. As demais aparecem apenas na planta cadastral de 1895.

Casas de Porta e Janela : térreas de duas aberturas

Além da casa considerada colonial situada na rua Demétrio Ribeiro, já descrita,

dividiram-se estas casas, 23 no total, em dois conjuntos: as de decoração mais simples e

188
sóbria e as de fachada composta por elementos de adorno mais veementes, onde vários

detalhes se somam na composição do eclético.

O primeiro grupo compreende sete casas, entre as quais estão algumas que sofreram

muitas modificações que, no entanto, não comprometeram seu reconhecimento.

A primeira está na Fernando Machado, nº 85. Os poucos elementos decorativos de

fachada são reforçados pela existência de pinhas sobre a platibanda cega. A porta é de duas

folhas, bem como a janela. A casa pertenceu a Luiz Bardou ( ? ) em 1895 e o lote aparece

ocupado apenas na planta cadastral de 1895.

Fernando Machado nº 85

189
A casa da Rua Fernando Machado, nº 220, com a frente bastante modificada,

encontra-se registrada no livro predial de 1895 sob a propriedade de Francisco P. dos

Santos Pinto. Não apresenta nenhuma decoração além de uma cimalha logo abaixo da

platibanda. O lote só aparece ocupado na planta de 1881.

Fernando Machado nº 220

Outro exemplar está na Vasco Alves, nº 341, casa que ocupa um lote já ocupado em

1839. Foi de propriedade de Francisco Pinto de Azambuja Filho e mantém o padrão das

anteriores.

190
Vasco Alves nº 341

Na Washington Luiz, nº 62 uma unidade apresenta-se bastante modificada, pouco

restando daquilo que deveria ter sido, além de uma platibanda simples onde se vê a data

inscrita de 1899. O lote esteve ocupado em 1839 e, em 1895, pertenceu a Christóvão

Pascoal Ratta.

191
Washington Luiz nº 62

Ainda na Washington Luiz, nº 166 está a casa que em 1895 foi propriedade de José

Jacintho Coelho e que em 1912 recebeu uma nova fachada, a atual. A data (1912) consta na

platibanda sem ornatos. A planta da fachada, anexada ao processo que solicitava licença à

Câmara para realizar reformas na fachada, fornece a largura do lote: 3,74m (ocupado em

1839). Curiosamente, o projeto apresenta as aberturas invertidas em relação à sua situação

atual.

192
Projeto da fachada casa nº 166 da
Rua Washington Luiz, em 1912 (APM)

Washington Luiz nº 166 e 170

193
A casa ao lado, nº 170, é praticamente igual à nº 166, apesar de suas aberturas terem

sido modificadas. O lote estava ocupado em 1839 e pertenceu a Braz Pereira dos Santos,

em 1895.

Na General Salustiano, nº 224 é possível encontrar uma unidade bastante alterada,

mas que ainda mostra os vestígios das existentes anteriormente. A casa pertenceu, em 1895,

a Francisco Ferrary. Em 1921, sofreu uma reforma a fim de incluir, num único corpo, a

cozinha e o banheiro (APM). Ela foi construída sobre um lote de 3,80 m de largura,

segundo consta no plano apresentado. Infelizmente não constam as medidas da frente aos

fundos do lote.

General Salustiano nº 224

194
General Salustiano: Planta de ampliação da casa, 1921 (APM)

Neste conjunto de casos inclui-se, ainda, o nº 220 da General Auto que é a única de

porta e janela listada para preservação pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre. De linhas

simples, apresenta apenas uma pinha na platibanda. Sua proprietária era, em 1895, Maria

Silvana da Costa Ferreira e funcionava ali, no mesmo ano, uma quitanda e botequim em

nome de Antônio Spino. Este solicitou à municipalidade, ainda nesta data, licença para

realizar reparos no prédio, através de um processo (APM). Em 1898 outro processo, agora

em nome de José Tristão Monteiro, pedia permissão para derrubar a parede da “casinha” e

levantá-la no mesmo lugar e, também, para mudar o telhado. Seu lote estava ocupado em

1839.

195
General Auto nº 220

O segundo conjunto de casas de porta e janela é aquele que, pela decoração

estampada nas fachadas, está relacionado ao movimento eclético. Compõem-se de 16

unidades:

Na rua Fernando Machado foram localizadas cinco casas nestas condições. A de nº

195 está com a abertura da janela modificada, mas ainda apresenta as marcas da anterior.

Decoração em massa sobre ela e uma pequena cimalha sustentada por elementos

ornamentados sobre a porta compõem a parte inferior da fachada. Na platibanda cega existe

um pequeno frontão. Pertenceu, em 1895, a José Mariano do Canto e o lote onde a casa está

erguida já estava ocupado, aparentemente, em 1839.

196
Fernando Machado nº 195

Duas casas geminadas e situadas ao lado do prédio descrito acima, estão nos nºs 199

e 201 desta rua. As fachadas são iguais, uma refletindo a outra como num espelho. A

platibanda une as duas com um frontão central e ornatos sobre as pilastras. Elementos de

massa compõem as cercaduras das portas e janelas e, ainda, configuram formas que imitam

colunas com capitel em volutas.

197
Fernando Machado nº 199 e 201

A de nº 199, antigo nº 67, pertenceu em 1895, a Dona Delfina Joaquina da Costa

Gomes e a Dona Flora Joaquina da Costa Campello. O de nº 201, antigo nº 65, foi de

propriedade de Dona Maria Cardina da Conceição neste mesmo ano. Provavelmente o lote

ocupado por elas estava sendo utilizado no ano de 1839.

Os de nºs 438 e 433 da rua Fernando Machado também se configuram em duas casas

geminadas com o mesmo padrão da fachada. Uma delas encontra-se ocupada atualmente,

mas a outra (nº 433) é apenas o muro de um terreno, hoje desocupado. Elas apresentam

cercaduras e platibanda decorada com massa. Um pequeno frontão faz a união das duas

casas num único conjunto. As casas foram de propriedade de Manoel Joaquim de Castro

Filho, em 1895, sob os nºs 153 e 151. Estas duas unidades foram construídas,

provavelmente, no entorno da virada do século XIX para o século XX, já que um processo

de 1894 pede licença à Câmara para erguer um depósito de madeira no local onde hoje é a

casa nº 439. O lote estava, possivelmente, ocupado em 1839.

198
Fernando Machado nº 439 Fernando Machado nº 433

Duas estruturas estão localizadas lado a lado na rua Demétrio Ribeiro nºs 256 e 252.

Atualmente são apenas restos de fachadas que fazem parte de um muro de estacionamento.

O pouco que sobrou delas, ou ao menos de uma delas, já que a de nº 252 parece ter sofrido

outras intervenções anteriores, dá conta do tipo de decoração que traziam, pelo menos nas

cercaduras nas janelas: a forma indica elementos ornamentais.

A entrada do estacionamento existente hoje e que ocupa os lotes das duas casas

(aparentemente já utilizados em 1839) possibilitou observar alguns aspectos: o telhado de

uma água impresso em negativo na estrutura ao lado, e a pouca profundidade do lote, que

implica num pátio extremamente reduzido.

199
Demétrio Ribeiro nºs 256 e 252

As casas pertenceram, em 1895, a Dona Ignácia Aviz de Menezes (nº 256) e a Luiz

Barton (nº252).

Na Washington Luiz nº 922 está situada uma casa de porta e janela cuja data

impressa na platibanda atualmente decorada indica sua realização neste século, apesar dos

algarismos das dezenas estarem ilegíveis. No entanto, um processo datado de 1914 solicitou

à Câmara licença para retirar a beirada do telhado, transformando-o em platibanda, o que

aponta para a existência da casa anteriormente à 1886. Além disto, pela sua localização,

parece ser uma mesma casa que aparece na Foto 965, de Virgílio Calegari (FSB – MJJF),

do início do século, com platibanda cega e aberturas em arco abatido. Atualmente as vergas

são retas e com cercadura. Em 1895 a proprietária foi Dona Antônia Olintta de Castro e,

dois anos antes, em 1893, havia sido de Dona Gabriela Arminda Correa. Possivelmente este

lote já estava ocupado em 1839. Segundo informação de um vizinho, a casa possui pátio

nos fundos.

200
Washington Luiz nº 922

Também na Washington Luiz, e ao lado da casa mencionada acima, está a de nº

926. Apesar das aberturas totalmente alteradas, a construção ainda mostra os vestígios das

anteriores, incluindo a forma das cercaduras. A platibanda é cega com elementos simulando

uma balaustrada. No centro está a inscrição 1921. Um processo do ano de 1914 solicita

licença para modificar o prédio retirando a beirada do telhado e instalando uma platibanda,

o que aponta para a sua existência antes de 1886. Foi propriedade de Dona Maria Leonor

Frois de Campos em 1883 e 1885 e seu lote, possivelmente estava ocupado em 1839. A

casa está atualmente dividida em duas e informações de vizinhos dão conta da existência de

um pátio nos fundos.

201
Washington Luiz nº 926

Outra unidade que integra este conjunto é parte de um prédio que foi subdividido,

em tempos mais recentes, em três partes e que compunha-se de três casas de porta e janela.

Situa-se na rua Washington Luiz nos nºs 1002, 998 e 992. O nº 998 é o que mantém as

características anteriores e é a parte central do prédio. Aquilo que compõe sua platibanda

hoje é o primitivo frontão embutido na platibanda em balaustrada que ocupava toda a

fachada do prédio. Ali é possível ver-se a data inscrita: 1888. A foto nº 965 existente na

Fototeca Sioma Breitman do Museu Joaquim José Felizardo, feita no início do século XX

por Virgílio Calegari, mostra o prédio completo. Aparentemente, as janelas em guilhotina

com caixilhos e a porta em duas folhas são originais. Atualmente os segmentos laterais

mantém apenas a platibanda em balaustrada e, no da esquerda, nº 992, sobram vestígios de

uma cimalha; o restante está totalmente alterado.

202
O prédio foi de Antônio Fernandes Loures, no ano de 1893, passando a ser

propriedade de Dona Maria das Dores Laranjeiras Paiva, em 1895. Situa-se num lote já

ocupado em 1839, segundo a planta de Dias.

Washington Luiz nº 998

Ainda na Washington Luiz no nº 1004 está a casa que, em 1895, pertenceu a

Antônio Caetano de Oliveira Santos. Na platibanda ainda se vê um pequeno frontão e

ornatos sobre as pilastras. Mesmo modificada, a fachada mostra cercaduras com detalhes

em massa nas aberturas. Este prédio aparece na foto 965 de Virgílio Calegari (FSB – MJJF)

no início do século XX e indica que fachada é mais recente, pois ali se observa uma casa

com platibanda simples (sem ornamentação). É provável que o lote só tenha sido ocupado

tardiamente na medida em que só aparece na planta de Breton de 1881.

203
Washington Luiz nº 1004

Na Duque de Caxias e no nº 520 existe outra casa com as mesmas características de

decoração, que pertenceu a Francisco José Dias, em 1895 e cujo lote já estava ocupado em

1839.

Também na Duque, no nº 1364, existe uma unidade que tem uma morfologia muito

particular e, ao que tudo indica, tem servido de local de comércio há muito tempo: foi

padaria em nome de Manoel Pereira de Barbedo nos anos de 1894 e 1895, quando este

também era seu proprietário. Atualmente funciona ali uma confeitaria. Suas duas portas,

uma mais estreita que deve ser a entrada da parte residencial e uma mais larga que

corresponde à entrada do estabelecimento comercial, já estavam presentes numa planta

apresentada à Intendência em 1915 (APM). Seus elementos decorativos, no entanto, não

são os mesmos.

204
A platibanda em arco é decorada com elementos zoomorfos: bovinos em massa,

sugerem, talvez, a existência em tempos anteriores, de um açougue. O lote estava ocupado,

segundo Dias, em 1839.

Duque de Caxias nº 1364

Na rua General Bento Martins nº417 está, provavelmente, o exemplo mais

contundente do eclético numa fachada de casa de porta e janela. A casa pertenceu a Lucas

José da Veiga, que também era dono das duas casas existentes uma em cada lado, em 1895,

quando havia ali uma sapataria de Francisco Orlando.

A decoração da fachada (pela riqueza de detalhes, pela imponência que não

combina com uma sapataria e pela forma elaborada que exigia qualificação de mão-de-
205
obra) é certamente mais recente. No entanto, o lote onde situa-se já estava sendo ocupado

em 1839.

General Bento Martins nº 417

A casa que pertenceu a Ana Francisca Neves, situada à rua Espírito Santo nº 13, em

1895 e hoje nº 204, é outro exemplo de unidade ligada a um imaginário que utilizou a

decoração eclética das fachadas como expressão. Ainda que com menos veemência que o

exemplo anterior, este também caracteriza-se pela existência de elementos decorativos que

constroem um espaço urbano espetacularizado. Ocupa um lote que só aparece utilizado na

planta de 1869.

206
Espírito Santo nº 204

O último exemplar de casa de porta e janela deste conjunto está situado à rua

Cipriano Ferreira nº 490. Apesar de ter sofrido intervenções recentes em sua fachada, ainda

preserva a cercadura das janelas e um frontão sobre a platibanda cega. Pertenceu à Manoel

Joaquim de Castro Filho, em 1895. A ocupação do lote aparece na planta Cadastral de

1895.

207
Cipriano Ferreira nº 490

QUADRO RESUMO DAS ESTRUTURAS ARQUTETÔNICAS VERNÁCULAS:

FORMA GERAL DAS ESTRUTURAS


CASAS TÉRREAS
SOBRADOS ASSOBRADAD COM MAIS PORTA
FACHADAS OS DE 2 E TOTA
ABERTURAS JANEL L
A
2 1 - 1 4
COLONIAIS
COM
ELEMENTOS 8 1 2 - 11
NEOCLÁSSICO
S
12 1 porta/janela 8
COM
ELEMENTOS 3 c/ mais de 2 3 c/ elementos 16 44
ECLÉTICOS 1 c/ 4 andares aberturas decorativos só
na platibanda
1 c/ mais de 2
SIMPLES - aberturas e recuo 14 7 22
lateral

208
FORMA GERAL DAS ESTRUTURAS
CASAS TÉRREAS
1SOBRADOS
c/ arcos ASSOBRADAD
FACHADAS abatidos que a OS
- 3 c/ fachadas
OUTRAS ligam ao alteradas
colonial + - 7
decoração em
massa eclética
1 c/ recuo 2 c/ recuo lateral
lateral
25 7 32 24 88
TOTAL

Depois de tão longa e cansativa (e no entanto necessária252) descrição, tentarei

sintetizar algumas idéias e os dados colocados até aqui. O primeiro ponto que gostaria de

frisar é que as casas parecem estar comunicando, na forma proposta por Blanton (1997), um

status econômico: a família que vive em determinadas casas tem riqueza suficiente para

morar em residências amplas, em locais privilegiados ou para realizar alguns tipos de

decoração nas fachadas. É a comunicação indexal. Mas é também comunicação canônica

transformada em exibição indexal: exibição pública de símbolos que validam, nas palavras

de Blanton (Idem), proposições mantidas em comum por um grupo cultural, o que afirma

sua ligação a este grupo. Proposições como progresso e ruptura com velhas tradições

coloniais.

A declaração de um status de riqueza parece ser também uma declaração de poder

político: a burguesia, afastada em grande medida do poder pelo sistema político imperial

(conforme visto na capítulo 1) busca agora impor-se enquanto grupo economicamente forte

252
Kern (1996: 14) lembrou, muito propriamente, que nenhuma explicação do passado elimina a necessidade
de uma descrição. Evocando uma proposição de Leroi-Gourhan, este autor considera que o esforço descritivo
implica também em um esforço de compreensão do objeto a partir do qual se pode iniciar a fazer abstrações
(Idem: 14-15)

209
(e unido), legitimamente detentor do poder político e que, assim, proclama uma nova visão

de mundo diferente da aristocracia. Neste sentido, o eclético significa uma declaração que a

burguesia fazia ao restante da sociedade, da sua existência enquanto grupo social,

demonstrando sua unidade num processo de construção de identidade. A decoração eclética

é uma proposta de ruptura com os vestígios coloniais realizada por um grupo “despido de

qualquer laivo daquela cultura aristocrática que caracterizava o século anterior” (Devsner

apud Fabris; 1993: 132). É uma outra concepção de espaço - o espaço urbano

espetacularizado – baseado nos ideais de progresso, de prosperidade, onde magnificência,

monumentalidade e expressividade (Fabris, 1993: 135) são considerados elementos que

compõem o belo. E este espetáculo de beleza deve, enquanto arte e nos termos através dos

quais este grupo entende o que seja arte, “elevar o gosto e a moral, educar e edificar os

habitantes de uma cidade”(Idem: 138).

O eclético realiza uma mediação entre o mundo concreto (a cidade) e o sentido que

a burguesia lhe confere.

Assim, as fachadas ecléticas possuem, por um lado, um significado político pela

ostentação pública que exibe força econômica e unidade de um grupo que proclama o poder

e reafirma-se nele. Por outro, possuem um significado social: demarcam fronteiras e

estabelecem distinções frente a outros grupos sociais.

No entanto, a decoração eclética circula numa área social ampla, composta não

apenas pela burguesia, mas também por setores mais pobres da população, que pouco a

pouco a vão empregando nas fachadas de suas casas. Como é possível observar nas casas
210
remanescentes, existem óbvias diferenças ligadas a maior ou menor disponibilidade técnica

e econômica. No entanto, as fachadas ecléticas estão disseminadas numa ampla área social.

Vejo este fato como uma apropriação, realizada por setores mais pobres, dos elementos

decorativos ecléticos nas fachadas de suas casas. E aqui é necessário perceber que uma

apropriação pode resultar em leituras, usos e funções diferentes para os mesmos objetos253

(Chartier, op. cit.: 15)

É assim que os grupos sociais mais pobres se apropriam dos elementos decorativos

ecléticos nas fachadas das casas de porta e janela dentro dos limites técnicos e econômicos

impostos por sua condição social.

É interessante observar o discurso de outros grupos e suas representações a cerca

das camadas mais pobres para compreender o quadro no qual se realiza a apropriação de

elementos decorativos ecléticos por estas camadas.

Enquanto objeto de discurso na impressa caricata, os setores economicamente

menos favorecidos de sociedade eram representados de duas formas diferentes: “o „pobre‟

(escuro, magro, desdentado, malvestido, feio e enfezado) [era diferenciado] do

„trabalhador‟ (branco, de barba, musculoso, ar altivo, aspecto europeu)” (Pesavento,

1994: 140). O pobre, o “Zé Povinho”, entre os quais muitos são negros, “carregava um

duplo estigma: a miséria e a falácia da condição de liberto” (Ranincheski, 1994: 51) e,

253
Óbvio, mas importante lembrar, que os sentidos e valores de um objeto não são intrínsecos a ele, mas
antes, atribuídos convencionalmente. Portanto, qualquer objeto apresenta a possibilidade de referir valores e
sentidos diferentes dos originais com o passar do tempo e de ser apropriado de diferentes formas por
diferentes grupos sociais.

211
além disto, “a condição de pobreza estava associada à vagabundagem, gatunagem,

vadiagem” (Idem). Neste sentido, eram gente perigosa e suspeitas aos olhos da sociedade

em geral e também da polícia.

“Zé Povinho” – conforme apresentado no Jornal O Fígaro, 1879


Reproduzido de DAMASCENO, 1962: 62

“A periculosidade dessas pessoas foi construída a partir da identificação da sua

aparência física, do seu comportamento desregrado, do seu tipo de trabalho e local de

moradia” (Mauch, 1994: 9).

Pode ser que a apropriação de elementos constitutivos da decoração eclética por um

segmento social subalterno inscreva-se numa busca por status social e pela diferenciação da

considerada escória da sociedade. Pode ser, ainda, uma tentativa de se aproximar da

burguesia e afastar-se do trabalhador mais pobre, daquele que, sem condições econômicas,

está impossibilitado de realizar qualquer decoração na fachada que implicaria em sobra de

recursos empregados na sobrevivência. Lembremos, ainda, que os novos ideais vigentes

(burgueses) oferecem a possibilidade de ascensão social a todos, não mais por laços de

212
sangue, mas pelo trabalho. Os pobres, mas nem-tão-pobres, parecem proclamar através do

visual eclético este valor – mais trabalho é igual a ascensão social – deslocando-se de um

grupo mais pobre (e supostamente menos trabalhador), tentando aproximar-se da burguesia.

Num momento onde o espaço urbano se mantém, em muito, compartilhado por

vários grupos sociais (conforme veremos no capítulo seguinte), a estratégia de diferenciar-

se através das fachadas pode ser eficiente.

É importante relembrar que as modificações realizadas nas casas mais simples

foram feitas, em sua maioria, nas duas primeiras décadas deste século, quando a burguesia

já estava plenamente instalada e dona do poder político.

E quanto as casas da velha aristocracia que permaneceram neste período? A

princípio tanto o Solar do Conde de Porto Alegre quanto o Solar dos Câmara (ainda que

realizadas as inclusões de platibandas e alguns elementos decorativos), não chegaram a

exibir nenhuma espetacularidade parecida aos sobrados burgueses. A aristocracia exibia seu

poder político e econômico no tamanho de suas residências, o que as diferenciava, de

longe, das demais casas do período.

A ostentação decorativa seria redundante, na medida que as informações podiam ser

conhecidas por outros canais de comunicação (Blanton, op. cit.: 142): a aristocracia é dona

de escravos, detentora do poder político e, óbvio, de grande riqueza. Não apenas o tamanho

das casas, mas inclusive sua localização nas áreas mais valorizados da cidade, comunicam

seu status. Mas parece que a preocupação é menor em comunicar riqueza que status social
213
e poder, já que ter os últimos implicava em possuir a primeira, como ficou claro no capítulo

1. O brasão do Visconde de São Leopoldo no portão do Solar dos Câmara, comunicava,

acima de tudo, a posição social e o poder dos seus habitantes (dados por laços de sangue).

Uma comparação entre as formas de consumo de um representante da aristocracia e

de outro representante da burguesia, pode ser interessante: o Visconde de São Leopoldo e

Lopo Gonçalves da Costa254.

Em primeiro lugar, o Solar do Visconde de São Leopoldo foi avaliado em

22.000$00 e o sobrado onde Lopo Gonçalves residia na Rua da Praia em Rs. 33.000$00,

ambos por ocasião dos inventários dos seus respectivos proprietários.

O patrimônio avaliado do Visconde, em 1848 era de Rs. 67.586$730 e o de Lopo

Gonçalves, Rs. 236.536$500 em 1878255. O patrimônio deste último incluía outros imóveis

num valor de Rs. 9.000$00 e itens de uso doméstico de grande simplicidade256.

O Visconde de São Leopoldo, por seu lado, possuía uma mobília requintada e

objetos de decoração que incluíam 24 cadeiras de jacarandá no valor de Rs. 228$000 e um

lustre de cristal avaliado em Rs. 2.000$000, além de vasos e figuras de louça, quadros e o

tradicional piano.

254
As informações obtidas aqui são de Symanski (1998). Infelizmente o sobrado onde Lopo Gonçalves
residiu na Rua da Praia não existe mais, sendo necessário contentar-se com as informações obtidas via
registro escrito.
255
Symanski observa que a inflação neste período “era muito baixa, a ponto de empréstimos serem feitos com
taxas de 12% ao ano”, que deveria representar remuneração de capitel portanto, moeda estável.
256
Ver o arrolamento dos bens em Symanski, op. cit.: 106.

214
Parece não haver dúvida que Lopo Gonçalves empregou uma importante quantia na

casa (no prédio) que morava mostrando seu status e sua filiação a um grupo social através

de seu “caríssimo sobrado da Rua da Praia” (Symanski, 1998: 116) (e onde possivelmente

também trabalhava, pois no andar térreo havia um armazém que poderia estar relacionado a

suas atividades comerciais). Symanski chamou a atenção para o fato de que o comerciante

investia na ornamentação interna da residência e no conforto doméstico quantias bem

inferiores a indivíduos cujo patrimônio era menor que o seu.

Mas novamente devo lembrar outra obviedade às vezes esquecida: enquanto

capitalista Lopo necessitava de capital para girar e investir em seus negócios, o que

implicava em capital imobilizado e não disponível para consumo. Diferente de alguém

cujas rendas, ainda que resultem em patrimônio menor, possam ser aplicadas diretamente

em consumo. Assim, o que ocorre são formas distintas de expressar status social e

econômico e que estão limitadas por fatores diversos mas, sobretudo, vinculadas a valores

sociais: o que é mais importante, investir ou consumir. E consumir o quê?

O casa do Visconde de São Leopoldo sóbria, mas imponente, recebeu as visitas de

Saint Hilaire, D. Pedro I, D. Pedro II, Duque de Caxias e Conde d‟Eu (Oliveira, op. cit.:

235). Seu mobiliário, seus utensílios domésticos ostentavam o status de seus ocupantes, de

um grupo familiar pertencente a uma linha genealógica, mas eram exibidos a quem

importasse. Centurião (1999: 243-4) lembra que no Brasil colonial a “sociedade

estamental, apoiada na tradição da nobiliarquia portuguesa, marcava o jogo ostentatório

que classificava, distinguia e separava grupos e pessoas”. O resto era conseqüência:

rapidamente toda a sociedade tomava ciência. De forma diversa, Lopo Gonçalves procurou
215
manifestar seu status de indivíduo participante de um grupo social, através de

manifestações públicas: a caríssima casa, e através de suas atividades257. Seu status não era

óbvio, era preciso declará-lo.

A manutenção de estratégias comunicativas da aristocracia pode ser vista da

perspectiva da resistência e manutenção de fronteiras sociais: grupo que perde o poder, mas

mantém o “lustro” e contrapõe-se ao “mau gosto” do novo rico burguês.

Um outro fato que chama a atenção quando observamos o processo de

transformação das casas no centro de Porto Alegre é que um grande número delas teve suas

fachadas reconstruídas aproveitando, e mantendo, a estrutura anterior. Não ocorreram

mudanças na disposição dos elementos básicos dos prédios que pudessem ser determinados

por idéias diferentes sobre a sua adequação. Na maior parte dos casos, as casas térreas

continuaram tendo a porta de entrada estabelecida diretamente na calçada, o que sugere

uma rápida e direta ligação com a rua. Mas se sabe que isto não se dá bem assim: atrás da

porta há o corredor, às vezes alguns degraus e uma outra porta (como foi observado em

algumas casas, como por exemplo na de nº 675 da rua Demétrio Ribeiro). O mesmo

acontece com as janelas: as que se abrem diretamente sobre o passeio são as de sala de

visitas ou do pequeno negócio que se instalou ali. Na verdade, há um espaço intermediário

entre o público e o privado. E esta idéia, do que é público e do que é privado, e qual é a

importância de cada um, parece não ter mudado muito, pelo menos para uma parte da

sociedade até o final do século XIX. O surgimento das casas assobradadas, de porão alto,

257
Foi o primeiro presidente da Praça de Comércio de Porto Alegre, secretário do Banco da Província,
provedor da Santa Casa de Misericórdia, etc..

216
por outro lado, indicam a preocupação com uma maior privacidade da vida doméstica. Mas

são poucos os que tem acesso a este tipo de edificação e, note-se, todas as estruturas

assobradadas encontram-se concentradas nas proximidades da Praça da Matriz.

Nos sobrados, as portas que se abrem diretamente para a rua, sem intermediações,

são as das lojas e depósitos, no térreo. A porta que leva até o domicílio é seguida de uma

escadaria que é como os degraus nas casas térreas: configura um espaço intermediário, mas

em escala bem maior.

As fronteiras do público e do privado sempre foram demarcadas com rigidez.

Hörmeyer (op. cit.: 66) já avisava na década de 50:

“Quem quiser entrar numa casa brasileira cuide-se de


bater à porta do corredor; mas se bate palmas e diz: “com licença”.
Somente após essa ter sido dada, pode-se entrar. Na casa do
brasileiro pode, durante o dia, entrar somente o policial fardado; de
noite nem mesmo esse e nenhum poder do mundo”.

As mudanças nas casas, no decorrer do século XIX, observadas através dos

processos analisados situam-se, principalmente, na substituição das beiradas dos telhados

por platibandas, na inclusão de elementos decorativos nas fachadas. Em número menor, e já

no século XX, surgem reformas no sentido de incluir cozinha e banheiro no corpo da casa.

217
Por outro lado, as casas que foram construídas no final deste período apresentam

uma maior diversificação dos espaços internos258. Mas isto se dá, fundamentalmente, nas

casas maiores. Na amostra analisada, onde foi possível ver o interior das estruturas, e

retirando-se os Solares dos Câmara e do Conde de Porto Alegre, observa-se uma

diversificação apenas no prédio do atual Museu Júlio de Castilhos. É bem verdade que não

se teve acesso ao interior de muitas casas. Mas é verdade também que nenhuma casa de

porta e janela que se pode observar o interior, possuía estrutura diferente daquela dada por

um corredor e uma seqüência de peças encarreiradas. Pode-se atribuir este fato à forma dos

lotes (estreitos e compridos) que teriam condicionado, de alguma maneira, a estrutura

básica das casas. Mas a própria forma do lote é também determinada por idéias que os

sujeitos possuem sobre o que é ou não adequado em cada caso.

Se, fora do centro da cidade, os lotes começaram a ser maiores, como no Menino

Deus e na Independência, possibilitando casas com uma estrutura bem diversa, na área

central os lotes permaneceram iguais. No entanto, se pode pensar que sempre há uma certa

margem de atuação e que se poderiam ter feito, por exemplo, casas com recuo na frente.

As mudanças aparecem, de fato, nos Códigos de Postura (AHMV): na proibição de

morar em porões e de construir cortiços na área central da cidade (1877), na

obrigatoriedade de um pé-direito mínimo de 4,40 m no primeiro pavimento das casas

(1882), na obrigatoriedade das platibandas e de submeter à aprovação da Câmara o desenho

das fachadas (1886), na obrigatoriedade da edificação não ultrapassar 2/3 da superfície total

258
Esta afirmativa baseia-se na análise dos processos microfilmados existentes no APM e não da observação
das estruturas em campo.

218
do terreno e na de indicar na planta o compartimento reservado à latrina (1893) etc.. Como

estas, inúmeras outras medidas constam nos sucessivos Códigos de Posturas sem que se

observe, de imediato, mudanças nas casas. Basta olhar uma fotografia do início deste século

para ver que a maior parte delas, na área central da cidade, ainda permanecia com beirais

nos telhados apesar da obrigatoriedade da inclusão das platibandas em qualquer casa que

fosse construída ou reformada a partir de 1886. Dois fatores devem ser levados em conta,

para entender o que se passava. O primeiro, e mais óbvio, relaciona-se ao fato de uma casa

ser um artefato que, ainda numa sociedade de consumo, é de uma vida útil relativamente

longa e, pelo seu custo, muitas vezes reciclada e poucas vezes descartada. Isto leva ao

segundo fator: as mudanças, ou a reciclagem que envolve a estrutura da casa, não aparecem

tão imediatamente porque estão ligadas a mudanças no imaginário e, portanto são processos

de longa duração. Além disto, estas mudanças envolvem um segmento do mundo social

marcado por relações familiares, pessoais e privadas que, no Brasil, tem sido

historicamente caracterizadas pelo conservadorismo, diferentes (e opostas) às relações

estabelecidas na rua, mais impessoais e que favorecem a mudança, a novidade259.

A observação dos documentos constantes no Fundo de Construção e

Melhoramentos 1853-1900 (AHMV) sugerem a existência de uma espécie de “surto” de

construções na área central da cidade a partir do final da década de 1860: é cada vez maior

o número de prédios que solicitavam alinhamento, altura da soleira e licença para depositar

material no terreno com a finalidade de edificar. Também é neste período que parecem

aumentar o número de pedidos de licença para reformar propriedades já existentes. Mas não

há nenhuma evidência que indique alterações na morfologia das casas.

259
Sobre isto ver Da Mata (1987).

219
Outra questão que parece importante mencionar, diz respeito ao uso dos sobrados na

área central da cidade. Por um lado parece ter havido, no final do século, um certo

abandono pelos grupos sociais dominantes dessas estruturas que estavam situadas na parte

mais a oeste da península, tomando a praça da Alfândega como referência. Ali as casas

foram utilizadas para a realização de atividades econômicas simples como marcenaria ou

taverna nesta época. Nota-se que o comércio mais importante está localizado mais a leste,

próximo à rua de Bragança e ao Mercado onde estão, por exemplo, as lojas de Fazenda da

José Montaury260. Posteriormente, como tentei mostrar, os prédios sofreram reformas que

os revalorizaram pelas transformações impingidas às suas fachadas, o que pode ser

entendido como uma possível ressignificação destes locais nas primeiras décadas do século

XX.

Por outro lado, e ainda com relação aos sobrados, pareceu estranho que apenas em

dois casos o proprietário do imóvel era o mesmo proprietário do negócio que funcionava no

andar térreo.

Por fim, e como curiosidade, creio que um dado que necessita ser investigado é o

grande número de mulheres proprietárias de imóveis que, para uma época onde,

supostamente, elas estariam fora dos negócios e dedicadas aos afazeres domésticos e

familiares, constitui-se em algo interessante.

260
No capítulo seguinte será possível observar este fato com maior clareza.

220
A arquitetura acadêmica está manifesta em poucas estruturas remanescentes do

século XIX que, no entanto, são fundamentais para que se possa compreender a paisagem

em transformação da cidade.

221
2.1.2 A arquitetura acadêmica:

O levantamento revelou 8 dessas estruturas: na rua dos Andradas, nº 597, a Igreja

Nossa Senhora das Dores, nº 629, o atual Depósito do 3º Exército (anteriormente Arsenal

de Guerra) e nº 630, o atual Comando Militar do Sul (Arsenal da Marinha); na rua Duque

de Caxias, nº 1029, a atual Casa Civil (ocupada em diferentes momentos pela Casa da

Junta, da Real Fazenda, da Câmara Municipal e da Assembléia Legislativa Provincial); na

Praça Marechal Deodoro, sem número, o Teatro São Pedro e, na esquina com a Jerônimo

Coelho, o prédio conhecido atualmente como “Forte Apache” (construído para ser a sede da

Assembléia Legislativa Provincial); na Espírito Santo, nº 95, a Cúria Metropolitana, antigo

Seminário Diocesano; finalmente, no Largo Glênio Perez, o Mercado Público Municipal.

O prédio nº 1029 da rua Duque de Caxias é, ao que tudo indica, o prédio mais

antigo existente, hoje, na cidade. Sua construção foi iniciada em 1773 e concluída em 1790

(Oliveira, op. cit.: 158). O primeiro órgão público instalado ali foi a Casa da Junta, depois,

a Real Fazenda e a Câmara e, após 1835, a Assembléia Legislativa Provincial (Idem: 74). É

difícil dizer o que sobra de sua forma primitiva. Sabe-se que o prédio era, originalmente, de

apenas um pavimento (Spalding, 1967: 110), sendo o segundo acrescentado em 1860. Uma

foto de Virgílio Calegari (FSB-MJJF), na virada do século, mostra que as janelas do andar

térreo eram de guilhotina com caixilhos de vidro. Segundo Mascarello (1982: 87-8), os

caixilhos de vidro começaram a fazer parte das construções brasileiras a partir do final do

século XVIII e, por seu alto custo, foram utilizados, inicialmente, apenas nas edificações

mais importantes como igrejas e prédios oficiais.

222
Ainda pela foto de Calegari, observa-se que as aberturas laterais eram em arco

abatido e a platibanda em ferro, sustentada por pilastras em alvenaria. Esta foto permite

observar, ainda, o grande desnível existente entre a calçada e o meio da rua, por onde se

chega descendo uma escada situada em frente ao Palácio do Governo. Na calçada se podem

ver os antigos lampiões e, junto à ela, os frades de pedra.

Duque de Caxias nº 1029. Antiga Assembléia Provincial

Este prédio está tombado pelo Estado.

A Igreja Nossa Senhora das Dores teve sua construção iniciada em 1807 em estilo

barroco (Franco, 1998:137). A obra foi realizada em inúmeras etapas e só foi concluída

quase um século depois, em 1904, fazendo com que as características do projeto inicial

223
fossem totalmente modificadas e levando o prédio, nas palavras de Franco (Idem.:138), a

assumir “no seu frontispício, um certo sabor germânico”261.

Em 1813, com a conclusão das obras da capela-mor, foi possível iniciar-se a

realização de cerimônias (Ibidem.). O corpo principal do prédio ficou pronto apenas em

1866 e a escadaria até a Rua dos Andradas só ficou concluída em 1873, sendo que o acesso

ao templo fazia-se pela Riachuelo (Ibidem). A área que seria ocupada pelas escadas era

então, segundo Saint Hilaire (op.cit.:42), um terreno desnivelado. Isto é um dado de grande

importância. Por um lado, pode-se pensar que a circulação das pessoas que se dirigiam às

missas não era feita pelo mesmo local onde andavam aquelas que se dirigiam ao

Pelourinho. Este estava situado naquela área onde, posteriormente, seria o pé da escadaria

(num momento em que o Pelourinho já não existia mais). Lugares utilizados para fins

supostamente diferentes, ainda que os freqüentadores de ambos pudessem ser os mesmos

em ocasiões diversas. Ao mesmo tempo, lugares contraditórios e, assim mesmo,

complementares: a Igreja (local onde muitos vão primordialmente pedir perdão) erguendo-

se, na colina, sobre o local do martírio, do castigo, como quem tudo vê e se impõe como o

poder de quem detém a verdade, a justiça e, junto com a Coroa, ordena o mundo social da

época.

A Igreja, nos tempos coloniais foi “um dos mais importantes centros da socialidade

pública” (Centurião, 1999: 290) lugar de limites físicos e sociais imprecisos, onde

atividades sagradas e profanas se interrelacionavam (Idem).

261
O projeto original foi abandonado e, em seu lugar, em 1873, um novo foi elaborado e executado pelo
arquiteto Júlio Weise (Franco, op. cit.: 138).

224
“Local privilegiado para encontros amorosos, acertos de
negócios, bulhentas conversas sobre os mais variados assuntos
mundanos, mercado de amuletos, antro de embustes religiosos,
palco de dança e exibição ostentatória, valhacouto de frades
priápicos” (Ibidem: 291).

E além disso:

“O encontro de diferentes grupos, marcados idealmente


pelo distanciamento e pela separação, promovia e explorava,
pondo-os em espetáculos, as contradições da vida social e da
própria condição humana” (Ibidem: 293).

Na verdade, a Igreja era lugar de atividades opostas, mas complementares, de

fronteiras pouco claras e permeáveis e um importante centro de reprodução da ordem social

da época. As barreiras sociais não eram anuladas, pelo contrário, o caráter de ritual da

missa, enquanto momento de encontro desses diferentes grupos, marcava ainda mais as

hierarquias sociais262.

262
Os rituais colocam em destaque certos aspectos do mundo social, através de diferentes mecanismos,
possibilitando que as mensagens sociais se tornem mais claras. Através de um mecanismo de reforço de uma
ordem estabelecida, dada pela oposição Deus/homens, altar/nave, etc., associado a situações de inversão
(neste momento as barreiras sociais se “desfazem” e mesmo Deus, desce até os homens), o ritual de missa
marca, não apenas a existência de uma hierarquia e a sua necessidade para ordenar o mundo, mas também
ressalta que o sagrado é hierarquicamente superior ao profano: supostamente, Deus é capaz de transcender
diferenças, o que prova sua superioridade (Da Matta, 1983). Igualmente, barões e baronesas, viscondes e
viscondessas eram superiores a prostitutas, negros forros e pobres em geral, admitindo a “supressão”
momentânea de barreiras sociais.

225
Ao lado da Igreja das Dores está, e estava desde de 1866 (quando foi concluído,

segundo Oliveira, op. cit.: 137) o Novo Arsenal de Guerra: na esquina da Rua da Praia com

a rua General Bento Martins, antiga rua do Arroio263 (atualmente no nº 629).

A fachada neoclássica deste edifício militar foi erguida em 1851 (Escosteguy, op.

cit.: 116) e está preservada em sua forma original (Idem). Uma foto do final do século XIX,

de Virgílio Calegari (FSB – MJJF), mostra que de lá para cá, ao menos, o prédio mantém

suas características, entre as quais ressaltam as sacadas e o portão em serralheria, a

platibanda em balaustrada e um frontão triangular onde, hoje, está impresso o Escudo

Nacional.

Andradas nº 629. O Arsenal de Guerra,


atual Depósito do Terceiro Exército

Uma placa no interior do prédio informa que o local foi ocupado desde 1776 como

Armazém Real, e teve diversas outras funções com o passar do tempo. Assim, segundo

263
Segundo Coruja, a rua do Arroio era mais conhecida no trecho entre a Rua da Praia e a da Ponte (atual
Riachuelo) pelo nome de Sete Pecados ou Pecados Mortais. Daí, até a rua da Igreja (atual Duque de Caxias),
pelo nome de Beco do Jogo da Bola. Finalmente, da rua da Igreja até a do Arvoredo (Fernando Machado),
pelo nome de rua dos Nabos a Doze.

226
estas informações, o local foi Arsenal de Guerra do Rio Grande do Sul em 1829 e Arsenal

de Guerra de Porto Alegre em 1851.

Na planta de 1839 está indicado o local do Arsenal de Guerra, exatamente onde o

prédio em questão está implantado. Atualmente funciona ali o depósito do Terceiro

Exército.

O prédio está listado para preservação pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre.

Em frente a este, o edifício nº 630, abriga atualmente a Companhia CMD do

Comando Militar do Sul. Foi iniciado durante a administração do Conde da Boa Vista,

segundo consta na placa instalada em sua fachada e concluído em 1867.

Escosteguy (1993: 115) refere-se que

“em 1853, um relatório do Inspetor de Obras Públicas Provinciais,


sobre o edifício do Exército na Província, indicava a necessidade de
mais um prédio para o Arsenal, para onde se transferissem os
oficiais, e que fosse construído com o fundo para o rio, aonde por
meio do cais e rampas embarcassem e desembarcassem objetos”

Na planta do ano de 1869, o prédio está assinalado como Novo do Mmo da Marinha.

Possui aberturas em arco pleno no piso inferior e em verga reta no superior onde cercaduras

imitando pedras compõem a decoração, junto com um balcão de ferro. A platibanda é cega

e possui um frontão central e ornatos sobre as pilastras.

227
Este também está listado para preservação.

Andradas nº 630

Os dois prédios são projetos de arquitetos militares (Weimer, 1992).

O Teatro São Pedro, projeto de Felipe Von Normann, que também projetou a Casa

da Câmara e Junta Criminal (Oliveira, 1993: 138) – edifício “gêmeo” do Teatro São Pedro,

localizados lado a lado, situa-se em frente ao Palácio, do outro lado da Praça da Matriz e é

um belíssimo exemplar de arquitetura neoclássica oficial da época. Teve sua construção

iniciada em 1833, interrompida durante a Revolução Farroupilha, retomada ao seu término

e concluída em 1858 (Franco, 1998: 376). O prédio está tombado pelo Estado.

228
Teatro São Pedro
Reproduzido de Oliveira (1993)

O edifício conhecido hoje como “Forte Apache” foi construído, inicialmente, para

instalar a Assembléia Legislativa Provincial e só foi concluído em 1871, quando passou a

abrigar a Estação Telegráfica e a Repartição das Obras Públicas da Província 264 (Spalding,

1967: 110). Foi, depois, sede do Comando de Armas da Província e Quartel do Comando

da Polícia Provincial e também, de 1890 a 1896, da Brigada Militar do Estado. Em 1896 foi

acrescentado mais um andar e o prédio passou a ser a sede provisória do Governo do

Estado enquanto era construído o novo Palácio, após ter sido demolido o antigo (Ibidem).

O apelido desta estrutura encontra-se em total sintonia com a sua aparência: parece

ser mesmo um forte, com linhas claras, simples e duras compondo um bloco com duas

torres laterais.

264
A Assembléia Provincial acabou ocupando o prédio apenas no período durante o qual se construiu um
segundo piso no prédio da antiga Tesouraria, onde ela havia se instalado e que, depois, voltou a utilizar
(Spalding: 1967, 110).

229
“Forte Apache”

Uma fotografia de Virgílio Calegari tirada em 1897 (FSB – MJJF) mostra aberturas
em arco pleno nos torrões, hoje transformadas em verga reta. Uma platibanda foi retirada e
mais um andar acrescentado. A entrada principal em arco pleno permanece, neste prédio,
hoje desocupado ( eu diria abandonado ) e tombado pelo Estado.

O projeto do prédio que hoje abriga a Cúria Metropolitana na esquina da rua

Espírito Santo com a Fernando Machado é do arquiteto alemão Johann Grünewald (Franco,

1998: 381)265. O monumental edifício foi construído sobre o antigo cemitério da cidade

(Idem). A descrição que Athos Damasceno realizou sobre esta edificação vale a pena ser

265
Segundo Weimer (1992: 72) o projeto inicial era do tenente coronel Luiz Manoel Martins da Silva e que
foi totalmente reformado por Grünewald, o mestre João, que teria estudado arquitetura clássica na Alemanha,
tendo trabalhado na restauração da Catedral de Colônia.

230
reproduzida, principalmente pelo que significa em termos do imaginário social (Damasceno

apud. Franco, 1981: 381-2)

“ Deste sim, talvez se possa dizer que é o único monumento


da cidade. Vasto, com o seu muralhão de fortaleza arrematado no alto
pela cintura rendada dos balaústres, impressionaria só pelas
proporções se, ao cabo da escadaria extensa, não se erguesse,
imponente, o frontão clássico triangular sobre a ordem severa das
colunas lisas. [...] tomando quase uma quadra urbana, três pesados
portões de ferro dão acesso aos pátios vestibulares, de onde se
levantam, em dois andares, as fachadas laterais com a fila regular das
janelas. No canto – a área quadrada dos claustros, com as arcadas
simples sobre pilares maciços, os corredores longos batidos de sol e o
silêncio conventual que leva a gente às meditações. Diferente de tudo
quanto já se construiu na cidade, o Seminário se destaca na sua
majestade, realça mais ainda pelo contraste que faz com o panorama
medíocre dos telhados adjacentes e a inteira ausência de gosto e
expressão de monumentalidade nos empreendimentos arquitetônicos
do nosso passado”.

A construção teve início em 1865 (data que está inscrita na fachada) e terminou em

1875 (Spalding, 1967: 118).

231
Atual Cúria Metropolitana

O prédio está listado para preservação pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre

(PMPA).

O Mercado Público foi um projeto de Frederico Heidtman, segundo engenheiro da

Câmara, mas que teve a planta alterada em tamanho e acrescentados os quatro torreões, nos

cantos. Possuía inicialmente apenas um andar (o segundo piso foi acrescentado no início

dos novecentos) e situava-se entre duas docas (Franco, 1998: 270), no alinhamento com o

Caminho Novo266. As obras iniciaram em 1864 e o edifício ficou pronto em 1870, marcado

por características neoclássicas.

266
Atual rua Voluntários da Pátria.

232
O Mercado Público Municipal em foto de Virgílio Calegari 1880 / 1890 (FSB – MJJF)

Tombado pelo município.

As modificações impingidas à arquitetura oficial no decorrer do século XIX

configuram, ao lado da arquitetura vernácula, um espaço urbano de características

fundamentalmente neoclássicas que perdurou até as últimas décadas quando o eclético

passa a se impor.

Uma Litografia, de meados de 1860, mostra na parte superior a arquitetura

acadêmica colonial (Igreja Matriz, Santa Casa – com a parte central neoclássica -, o

233
Palácio, a Alfândega, a Igreja do Rosário) e na parte inferior os prédios neoclássicos

(Assembléia, Seminário, projeto inicial do segundo mercado, cadeia, teatro).

Foto de Balduino Rotwig de litogravura de F. Wendermann, sobre os melhoramentos de


Porto Alegre no ano de 1864

O neoclássico, expresso na arquitetura acadêmica dos edifícios oficiais, sugere a

preocupação em manter vinculados o poder local e o poder central pela adoção dos padrões

arquitetônicos oficiais, durante o Império. O advento da República viria transformar este

quadro com a inclusão do eclético nas estruturas ligadas ao Estado.

Na arquitetura acadêmica, o eclético se instaura com força nas duas primeiras

décadas do século XX: o Palácio Piratini (projeto de Mauricio Grass), o prédio da

Biblioteca Pública do Estado (1912), projetado por Afonso Hebert, os prédios da Receita

234
Federal (atual MARGS) e dos Correios e Telégrafos, projetado por Theo Wiederspehn são

exemplos (Weimer, 1992: 90 e seguintes).

Mas os lugares não são apenas as estruturas arquitetônicas. Praças e ruas também se

constituem em áreas de visíveis limites físicos e em locais privilegiados de práticas sociais.

235
2.2 AS RUAS, AS PRAÇAS E OUTROS LUGARES

“Sinto uma dor infinita


Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...

Há tanta esquina esquisita


Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonho sonhei)...”
Mário Quintana.

Saint Hilaire (op. cit.: 40) ainda é uma excelente fonte para compreender a Porto

Alegre do início do século XIX. Sua descrição é bem esclarecedora, e vale a pena recordar:

“[A cidade possuía] 3 longas ruas principais que


começam um pouco aquém da península, no continente, por assim
dizer, estendendo-se em todo o comprimento paralelamente ao lago,
sendo atravessada por outras ruas muito mais curtas, traçadas sobre
a encosta da colina. Várias dessas ruas transversais são calçadas,
outras somente em parte, porém todas muito mal pavimentadas. Na
chamada Rua da Praia, que é mais próxima do lago, existe diante de
cada grupo de casas um passeio constituído por largas pedras chatas
em frente do qual são colocados, de distância em distância marcos
estreitos e altos”.

Se pelo lado nordeste a cidade organiza-se em ruas formando uma grade, pelo lado

oposto da península a cidade ergue-se em desalinho: Saint‟ Hilaire não trata de ruas, mas de

casas esparsas (Ibidem: 42). Ele é claro, existem três ruas cortadas por outras que lhe são

236
transversais. Passeios públicos? Só na Rua da Praia. A única comercial, onde “se

encontram numerosas pessoas a pé e a cavalo, marinheiros, e muitos negros carregando

volumes diversos. É dotada de lojas muito bem instaladas, de vendas bem sortidas e de

oficinas de diversas profissões” (Ibidem: 41).

Saint‟ Hilaire descreveu ainda o trapiche, o prédio da alfândega e o mercado. É o

espaço comercial da Rua da Praia, em cuja extremidade, seguindo a narração do viajante

francês, encontram-se os depósitos de armas da marinha e onde existiam, também, oficiais

de armeiro, seleiro e carreiro “para a necessidade das tropas” (Ibidem, 42).

Entre um e outro edifício militar, erguia-se a Igreja das Dores e em frente a ela o

marco que indica que a cidade é sede de comarca (Ibidem), o Pelourinho.

No início foram as casas que fizeram as ruas: o estabelecimento de edificações lado

a lado e em frente umas às outras instituíram a linha da rua. Assim, para grande parte das

pessoas, a rua era, nos dias comuns, apenas uma ligação entre um ponto e outro: de casa até

a igreja, da igreja à alfândega...

A cidade colonial não era feita apenas de regrados senhores e seus escravos

submetidos à ordem (ainda que esta seja uma imagem puramente ideal). Havia também um

grande número de indivíduos que escapavam à supostamente rígida ordenação e ao controle

do mundo escravista colonial.

237
“O número de desocupados, vagabundos sem morada certa,
aleijados, enjeitados e outros vomitados e expelidos do corpo social,
chegou a ser significativo e sempre apresentou uma tendência
progressiva para aumento, correspondendo assim à dinâmica da
sociedade escravista” (Centurião, op. cit.: 248-49).

Para esses indivíduos a rua era lugar por excelência: “É nela que transcorriam suas

atividades, junto as bicas, que eram ponto usual de reunião de escravos, soldados e vadios

em geral, ou junto às áreas freqüentadas por meretrizes” (Ibidem: 249).

Para uns a rua é lugar: de sobreviver e de viver, de esmolar, vender sexo ou água, e

mesmo de dormir, comer, cantar e dançar.

“Dominadas dia e noite pela grande multidão de negros,


negras e mulatos forros, pelos vagabundos já mencionados e por
escravos fugidios, calejados na prática de assaltos, homicídios e
crimes de toda espécie, que perambulavam desafiando os vasallos,
fossem moradores ou viajantes, tornavam-se as ruas no espaço onde
se manifestava a contra ordem colonial” (Ibidem).

Mas a rua é também lugar por excelência nos dias de festa: homens e mulheres,

adultos e crianças, pobres e ricos, todos iam para rua celebrar. Sobretudo nas festas oficiais

religiosas. Como na procissão de Corpus Christi, onde vários grupos sociais se

“misturavam” na execução de um espetáculo que simultaneamente unia diferentes grupos,

marcava hierarquias e separava categorias sociais (Ibidem: 303). A procissão saia da Matriz

e, pela Duque alcançava a Marechal Floriano, voltava pela Riachuelo até a Praça da Matriz

238
e findava no interior da própria Igreja de onde havia saído (Spalding: 237). À frente ia a

Irmandade, seguida pelas autoridades (obrigadas a comparecer sob pena de multa e prisão),

todos em traje de gala e, depois, o povo (Idem), o que implicava em comerciante junto a

cirgueiro, senhoras mães-de-família junto a prostitutas, senhores junto a escravos. Mas

como na missa, o ritual marca e reforça a ordem social estabelecida.

Também durante as festas religiosas, as praças , especialmente a Praça da Matriz

durante as festas do Divino Espirito Santo, tornam-se lugar de anulação de hierarquias

sociais onde todas as categorias estavam misturadas e onde, simultaneamente, marcavam-se

as diferenças sociais.

Como afirma Centurião (op. cit.: 293) “havia uma profunda ironia nessas práticas,

as ambivalências da vida social eram celebradas, desvelando-se a ambigüidade intrínseca

à condição humana”.

“Era um festejo puramente popular, se bem que a praça, nas


noites de fogos, fosse concorrida pelas famílias da mesma escala
social [...] [A praça enchia-se] de tabuleiros de frutas, de caixas
envidraçadas de doces, de balaios e cestos de pinhas, amendoim
torrado, de travessas de peixe frito, com rodelas de cebolas, de
beringelas, de balas e de uma infinidade de outros quitutes”(Porto
Alegre, op. cit.: 166).

E ainda:

239
“Ali mesmo na praça os chefes, verdadeiras figuras
patriarcais estendiam esteiras e passavam, com os seus, os três dias
e as três noites de fogos ao ar livre sob doce azul do firmamento,
comendo o seu churrasco de espeto com farinha seca e chupando o
seu adorado chimarrão” (Idem).

Damaceno Ferreira (op. cit.: 68) complementa:

“E o povo apinhado no meio da rua


ouvia as charangas
comprava santinhos
pinhões e cocadas
queijadas e massas com cara de gente”.

Sagrado e profano se confundem, Isabelle (op. cit.: 63) conta que na procissão do

Espírito Santo, cada irmandade levava “relicários de santos, suntuosamente ornado; e

depois, durante três dias, vendem-se publicamente, ao lado da Igreja, rosários,

escapulários, galinhas assadas, pastéis, etc...- Viva Rome!”.

As praças do início do século XX não eram, a bem da verdade, praças na atual

acepção do termo.

Coruja (op. cit.: 24) lembra da Praça ou Largo do Arsenal, depois denominado

Largo da Forca e, depois ainda, Praça da Harmonia (atualmente a Praça Brigadeiro

Sampaio). Lá, segundo ele, havia “uma bica que apenas gotejava; em outro tempo tinha de

240
um lado o estaleiro de Francisco Batista Araujo [...]; e do outro lado uma carreira de

casinhas de capim e de telha com fundos para o rio”.

Mais adiante comenta:

“Na ponta das pedras, perto da passagem havia um grosso


e comprido madeiro de quatro faces, onde nas tardes de verão e
noites de luar se iam assentar os desocupados a enterrar vivos e
desenterrar mortos, pelo que chamavam “Pau da Paciência”. Tomou
o nome de Largo da Forca, porque ali eram executados oficialmente
os condenados a forca” (Idem).

A prática do enforcamento era realizada, segundo Franco (1993: 182) “com grande

pompa acompanhadas por tropa militar, oficiais de justiça, padres e irmãos da Santa Casa

de Misericórdia, que recolhiam o cadáver do executado”.

Saint‟ Hilaire relata, sobre a Praça da Matriz ou, antes, o Largo do Palácio ou da

Matriz: “sobre o declive da colina, existe uma praça, infelizmente muito irregular, cujo

aterro é mantido por pedras soltas sobre o solo, formando tabuleiros dispostos em

losango” (Op. cit.: 41).

A Praça da Alfândega, ou melhor, o Largo de Quitanda, começou como porto da

cidade onde instalou-se a Alfândega, em 1804 e depois seu novo prédio em 1824, próximo

ao trapiche que existia desde 1806 (Oliveira, op. cit.: 159-60). Era o mercado da cidade e

Saint‟ Hilaire (op. cit.: 41) comenta:

241
“Nele vendem-se laranjas, amendoins, carne seca, molhos
de lenha e hortaliças, principalmente de couve. Como no Rio de
Janeiro os vendedores são negros. Muitos comerciam acocorados
junto a mercadoria à venda, outros possuem barracas dispostas
desordenadamente no pátio do mercado”.

As barracas de quitandeiras se estendiam, segundo Franco (1998: 269), entre as

praças da Quitanda e do Paraíso. E com exceção de Banca de Peixe construída na Rua da

Praia em 1781, Porto Alegre só conheceu o prédio para o funcionamento do Mercado em

1844 (Idem).

Spalding (op. cit.: 199 – 200) refere-se ao fato que haviam na Praça da Quitanda,

árvores avulsas, sem simetria, dispostas ali “ao bel prazer da natureza” e que a Praça do

Paraíso267, mesmo quando já estava instalado o Mercado, era apenas um largo sem cuidado

e com algumas árvores, lugar dos quitandeiros saídos da Praça da Alfândega268.

Aliás, a Praça do Paraíso foi instalada na década de 1810 sobre uma área de

5.755,20 m2, possuindo forma irregular e sem qualquer tipo de benfeitorias abrigando,

então, quitandeiros, negociantes e moradores (Franco, 1998: 336).

267
Segundo Coruja, o Largo do Paraíso (Praça XV de Novembro) foi assim chamado porque “havia uma
pequena casa habitada por umas moças cantadeiras, e que dizem que cantavam bem, aonde aos domingos
iam os moços passear, denominando-a Casa do Paraíso, e já se convidavam dizendo – vamos hoje ao
Paraíso?”. E assim se ficou chamando a “Rua do Paraíso”. Pelo visto, a designação estendeu-se ao largo em
frente.
268
O Código de Posturas de 1831 reconhecia como praças do Mercado Público o Paraíso, o Porto do
Ferreiros, do Pelourinho, do Hospital Militar e da Alfândega, lugares onde podiam se reunir a conservar
parados todas e quaisquer pessoas que vendessem comestíveis (CAP. 13) (CPM, CAP. 13, 1881, AHMV).
Uma determinação de retirar os quitandeiros da Praça da Quitanda foi feita por ocasião da construção do
prédio da Alfândega mas, sob pressão, a Câmara reconheceu o lado oeste da praça como local de mercado
(Franco, 1998: 25).

242
Franco (Idem.: 337) lembra que um dos pontos destinados como local de depósito

de lixo, fixado em 1829, foi justamente a Praça do Paraíso. “E certamente o local atraiu

tanto lixo, que, no mesmo ano, a 23 de outubro, o fiscal da Câmara já expunha a

necessidade de serem soterradas as imundícies que se achavam ali amontoadas” (Ibidem).

Haviam também as bicas, poços ou fontes onde a população se abastecia de água e

que, como já foi mencionado, era ponto de reunião de elementos socialmente excluídos.

A importância destes locais fica evidente na história , também já mencionada, do

cágado e da sentinela narrada por Coruja:

“[Na Rua do Poço], tinha uma fonte preparada e coberta


de madeira, em frente à casa da família França269[...].
Para esta fonte ia todos os dias uma sentinela da guarda
do palácio para impedir que os rapazes da “escol”a do Amansa
matassem o solitário cágado que ali vivia; e que afinal, retirada a
sentinela, morreu a pedradas270” (Coruja, op. cit.: 18).

Estes lugares foram perdendo a importância (muitas vezes forçosamente) com o

passar do tempo até a instalação, a partir de 1866 (Spalding, op. cit.: 143), da Cia.

Hidráulica Porto-Alegrense.

269
O lugar está ocupado hoje pelo prédio do Arquivo Público (Spalding, op. cit.: 142).
270
Acreditava-se que a existência do cágado contribuía para manter a água limpa.

243
A bica da Praça do Arsenal foi instalada em 1830 e substituída, em 1870, por um

chafariz de bronze (Idem) fazendo parte de um processo de espetacularização do espaço

urbano e ressignificação de lugares.

Na Rua do Arvoredo havia uma bica desde 1772, que foi substituída por algo

denominado “Fonte dos Pobres” em 1857 (Ibidem).

Arroios e nascentes que tinham origem na colina (como o que passava por baixo da

ponte na Rua da Ponte, pela Rua do Poço) e que serviam de local de abastecimento para

muita gente, foram canalizados com o aterro da Rua Sete de Setembro, levando ao consumo

da água do rio (Ibidem).

Com isto, a Câmara empenhou-se em reconhecer pontos de água potável no Guaíba,

concluindo que, a 20 m da margem, ela não estaria mais contaminada passando, então, a

construir trapiches para a coleta desta água (Ibidem).

Inicialmente, também ninguém se preocupava com o lixo ou com a sujeira das ruas.

As casas, por seu torno, foram sendo construídas sem alinhamento, em qualquer altura: as

ruas tinham degraus e não apresentavam largura uniforme.

O Código de Posturas editado em fevereiro de 1831(AHMV) passou a exigir que a

partir de então, “toda construção urbana deveria conformar-se ao alinhamento e altura

das soleiras já estabelecidas ou a estabelecer”, e justificava a exigência: “para melhor

ordem e aformoseamento das mesmas povoações” (CPM, 1831). Era o início da


244
racionalização do espaço urbano de Porto Alegre. O mesmo código tornou obrigatória a

construção de calçadas no trecho situado entre as ruas Formosa271, de Bragança272 e do

Arroio (dos Nabos)273 até o Rio Guaíba. Além disto, ordenava-se o trânsito, função

primordial da rua, proibindo-se qualquer tipo de material (andaimes, pipas, caixões,

entulhos, etc.) que “embaracem o trânsito e prejudiquem seu cômodo” (CPM, Cap. 11,

1831), bem como “cães daninhos” que pudessem molestar os transeuntes (Cap. 24) e

qualquer outro tipo de animal solto (Cap. 25). No mesmo sentido, o Capítulo 27 proibia

cavalos amarrados em locais onde o povo transite e o Capítulo 28 vedava ter nas janelas,

telhados ou sótãos vasos ou qualquer objeto que pudesse cair nos passantes. Um ofício

remetido à Câmara neste mesmo ano, em 31 de outubro, solicitou providências a fim de

aterrar um poço de água estagnado no Beco da Ópera274 (Fundo Construção e

Melhoramentos do Município, 1783-1850, AHMV).

A sujeira e o mau cheiro também começavam a incomodar. Assim, em 1837 o

capítulo 50 do Código de Posturas designou um local para o despejo de “ciscos e

imundícies”. Lembremos que a cidade estava sitiada pelos revolucionários Farroupilhas,

tendo a Câmara designado lugares para a colocação do lixo junto ao rio, e que abarcavam

uma grande parte da praia. Mas a deposição do lixo na orla do Guaíba não era novidade. Na

271
Trecho da atual Duque de Caxias.
272
Atual Marechal Floriano.
273
Atual Bento Martins. Segundo Coruja (1983: 16) o nome da Rua do Arroio era utilizado apenas nos
documentos oficiais e era mais conhecida no segmento entre as atuais Duque de Caxias e Rua dos Andradas
como Pecados Mortais ou Sete Pecados “nome que lhes assentava bem, tanto pelo lado físico dos prédios,
como pelo lado moral das moradoras” (Idem). O segmento entre a Rua da Igreja (Duque) e a Rua do
Arvoredo (atual Fernando Machado) era conhecida como Rua dos Nabos a Doze ou Rua dos Nabos. “No
tempo que se vendiam [...] nabos a doze por um vintém, e quem os vendia, se é que os vendia, era um tal de
José Antônio da Silva, esmoler-mor da pobreza, que[...] tinha um arremedo ou frege de casa de saúde na Rua
do arroio” (Ibidem: 15). Grifos do autor.
274
Atual Rua Uruguai, onde situava-se a Casa da Ópera (1797), por muito tempo o único “teatro” da cidade,
uma construção de pau-a-pique (Oliveira, op. cit.: 103).

245
verdade, esta prática era antiga e muito anterior ao sítio da cidade. No mesmo ano o Código

designou o lugar para lavar as roupas que ia da ponta do Arsenal 275 à desembocadura da

Rua Formosa276.

A bem da verdade, as áreas públicas da cidade deveriam ser, nesta época, uma

composição de áreas pantanosas, lixo espalhado e, em alguns pontos, concentrados, águas

paradas que deveriam conferir à capital um aspecto e um cheiro peculiar. Áreas pantanosas,

segundo Coruja (op. cit.: 18), existiam não só para os lados da praia do Arsenal e da

Várzea, mas também para os da atual Riachuelo e Duque de Caxias onde um certo

Fernando Relojoeiro possuía “bonitos gansos que ele criava no terreno alagadiço”

existente ali. Haviam águas que corriam pelas calhas das ruas e mesmo rua à fora, e havia

ainda, águas paradas: “águas que desciam como nativas do antigo poço ou fonte que deu

nome à rua, depois denominada de São Jerônimo277” (Coruja, op. cit.: 17), o poço de água

estagnado na rua da Ópera (FCM, AHMV) e, imagina-se, tantos outros mais278. Saint‟

Hilaire (op. cit.: 30) comentava na década de 20: “Mas, depois do Rio de Janeiro não vi

cidade tão suja, talvez mesmo mais suja que a metrópole” e, mais adiante afirma:

“Poucas casas possuem jardim e muitas não tem mesmo


pátio, redundando isso no grave inconveniente de serem atiradas à
rua todas as imundícies, tornando-as de uma extrema sujeira. As
encruzilhadas, os terrenos baldios e principalmente as margens do

275
O local que estaria hoje, mais ou menos, na esquina da Andradas com a General Salustiano.
276
Trecho da atual Duque de Caxias.
277
Atual Jerônimo Coelho.
278
Em 1842, em artigo adicional, o Código de Posturas passa a obrigar os proprietários a aterrarem terrenos
pantanosos com águas estagnadas, o que indica que eles eram bastante freqüentes. O costume de lançar à rua
águas de despejos que pudesse “enxovalhar a quem passa” foi proibido pelo Código de Posturas de 1873, no
artigo 25 do capítulo 3º (AHMV).

246
lago são entulhadas de lixo. Apesar de ser o lago o único manancial
de água potável, utilizado pela população, consentem que nele se
faça o despejo das residências” (Idem: 43).

Acrescente-se a esta paisagem o elemento humano. Ruas tomadas por todo tipo de

gente, conforme já descrito. Pobres, vadios, bandidos, meretrizes, escravos, negros forros,

senhores de escravos, nobres e comerciantes (grandes e pequenos), algum médico,

boticário, jornalista, advogado, pequenos artesãos. Quanto às mulheres, as de grupos sociais

mais privilegiados, estas estão em casa. Hormeyer (1986: 65) comenta, já na década dos

1850: “... o marido ou um escravo negro vai à feira para as compras; aliás, todas as

compras, mesmo num armazém, são de sua competência, porque raras vezes se vê que as

brasileiras saiam de casa”.

Os sons completavam o quadro e, como uma forma necessária da comunicação

neste tempo, chamavam a negociar e, mesmo, marcavam as divisões do dia. Vendedores

ambulantes enchiam o ar com seus sons279. Aguadeiros vendiam água numa pipa entre sete

da manhã e seis da tarde gritando “água, aguadeiro” (Spalding, op. cit.: 145).

“O Pau achio era um preto alto, de voz grossa, que vivia


de vender água; acudiam os fregueses a chamá-lo, quando nas
esquinas das ruas ou no meio delas, com a sua sonora voz de porte
baixo, cantava as seguintes coptas:
Dindim, dindim, dindim
Dindim, dindim, dindim
No dia do mar feio
Ardeu o Pau-Achio” (Coruja, op. cit.: 42)

279
Este costume esteve até pouco tempo em voga e parece ter persistido na atual entrega domiciliar de gás.

247
Aguadeiro. Reproduzido de Spalding (op. cit.: 152)

Os sinos das igrejas anunciavam os horários das missas e os sinos da praça a hora de

fechar o Mercado (CPM, 1878. AHMV, artigo 80, CAP. 9).

Tudo isto começou, pouco a pouco a incomodar, a ponto de, no capítulo 4º do

Código de Posturas de 1873 (AHMV), tratarem-se dos “Vozerios, injúrias e obscenidades”.

Os sons da cidade também deveriam ser disciplinados.

No transcurso do século XIX as ruas (e as praças) vão pouco a pouco sendo

ordenadas numa racionalidade que se instaura a par de uma ordem burguesa.

Ruas e praças passam a ser cada vez mais valorizadas havendo, principalmente a

partir da década de 60, uma nítida mudança no sentido conferido a elas. A preocupação

com a limpeza e o aspecto estético indicam que a rua deixou de ser um mero local de

trânsito e lugar de excluídos. Por seu lado, as praças, lugares de festas religiosas,

248
enforcamentos ou do pequeno comércio, começaram a tomar ares de lugar de lazer e

passeio das famílias.

A suposta desordem da cidade colonial foi identificada com insalubridade, pobreza,

doença física e moral. O discurso sanitarista presente neste período é extremamente

significativo neste sentido280.

Em Porto Alegre, com o fim da Revolução Farroupilha em 1845, iniciou-se o

calçamento sistemático das ruas da cidade: parte final da Rua da Praia, Rua Formosa e São

José281, Ladeira do Ouvidor282, Clara, Beco da Ópera, Varzinha, etc. (Spalding, op. cit.: 93).

Um ano antes havia sido iniciado o trabalho de numeração das casas, que foi intensificado

ao lado do calçamento das ruas, entre os anos de 1849 e 1852 (Idem). Em 1833 a cidade

contou com seu primeiro sistema de iluminação pública: um candiero em cada esquina

englobando a Rua da Praia, da Igreja do Arvoredo, da Figueira283 e da Margem284 (Idem:

139).

Em 1838 a capital passou a contar com 250 lampiões de óleo de peixe que, em

1867, foram trocados por querosene (Ibidem: 140-1).

280
No final do século a imprensa descreve as espeluncas (botequins, tabernas e/ou bordéis) e os becos “como
locais sujos e insalubres, „focos‟ de doenças e imoralidades” (Mauch, 1994: 11-12). “Este discurso médico,
que visava a erradicação dos chamados “miasmes”, pestilências carregadas pelo ar originadas da matéria
orgânica em decomposição, foi muito comum durante a segunda metade do século XIX em todas as regiões
do país” (Symanski, op.cit.: 128 nota 48).
281
Trecho da atual Duque de Caxias.
282
Atual General Câmara.
283
Atual Coronel Genuíno.
284
Atual João Alfredo.

249
Em 1874 instalou-se a iluminação a gás, com a instalação do gasômetro na Rua do

Riacho285 (Franco, 1998: 211).

Em 15 de dezembro de 1878 o jornal “O Fígaro” alfinetava:

“Apesar do dinheiro despendido pelo governo com a


companhia de gaz a dita de dito em noite de luz não nos ilumina
carbonicamente. Os senhores de governo deveriam contratar com a lua
a iluminação da cidade, que seria tão boa como o gaz e custaria muito
mais barato” (Figaro – 1878-1879- páginas avulsas, MCSHJC).

O processo que envolveu a ordenação e racionalização da cidade teve na questão da

limpeza pública um aspecto de suma importância286.

Spalding (op. cit.: 139) afirma que nas épocas mais antigas, em certos dias da

semana e após o toque de recolher, os escravos, guardados pela polícia, levavam os

“despejos” das cubas sanitárias para o Guaíba, onde eram, como convém, despejados. O

lixo ia para os terrenos baldios e mesmo para as praias do Rio, conforme já vimos.

Em 1862, o ato de 23 de outubro agrega ao Código de Posturas as formas de

fiscalização da limpeza das ruas, praças e do litoral da cidade. Mas as coisas parecem não

mudar muito. Em 18 de março de 1875 a Câmara decide solicitar287, até que o assunto seja

definitivamente resolvido, que os habitantes da cidade depositem o lixo em vasilhas para

285
Washington Luiz, onde hoje há a passagem do aeromóvel.
286
Interessante notar que sujeira, segundo a noção desenvolvida por Mary Douglas (1976) é a idéia de que é
sujo o que está fora do seu lugar.
287
O grifo é meu.

250
ser levado pelas carroças empregadas neste serviço todas as manhãs (Atas da Câmara,

Livro 18, 872-87). É apenas pelo ato de 7 de outubro de 1876 que a Câmara obriga todas as

moradias da cidade, estabelecidas na área designada de limpeza pública288, a depositar em

frente as suas portas, todos os dias (inclusive domingos e dias santos), “dentro de algum

caixão ou qualquer outra vasilha, todo o cisco e cascas de frutas, provenientes da limpeza

tirada de suas respectivas moradas para ser lançados nas carroças ocupadas de limpeza

pública” (CPM, 1831 a 1878: 31, AHMV).

A limpeza da cidade conforme apresentada no Jornal O Fígaro, 1879


Reproduzido de Damasceno, 1962: 70

Depois de 1887 o lixo passou a ser depositado em valas abertas na várzea289, depois
290
novamente no litoral, e por fim num incinerador (Franco, 1998: 249), que segundo o

jornal “A Gazetinha” (6/8/96) não era utilizado, ao menos, devidamente.

288
Área entre a Rua da Conceição, Voluntários da Pátria, Sete de Setembro, Praia do Arsenal, Varzinha,
Olaria até o Beco da Firma, Praça da Independência, Rua da Misericórdia até a Conceição (CPM, 1831 a
1878. F. 31, AHMV).
289
Eram valas de 2 X 2m abertas paralelamente umas as outras (Franco, 1998: 249).
290
Situado no bairro da Azenha (Idem).

251
Mas ao que tudo indica, as medidas não foram das mais eficientes. Até a última

década do século, reclamações, praticamente diárias, eram feitas nas páginas dos jornais e

em ofícios remetidos à Câmara.

Assim, podia-se ler na Gazetinha de 6 de agosto de 1896 queixas sobre a sujeira, a

falta de limpeza que fazia com que a chuva que lavava a cidade alta levasse imundícies para

a cidade baixa.

Em 7 de maio o mesmo jornal pedia à municipalidade que limpasse as calhas das

ruas e ironizava: “onde tem é claro, pois muita não tem” (Gazetinha, 7 de maio, 1996).

As reclamações eram intensas e atingiam os fiscais da Intendência acusados de não

coibir infrações às Posturas Municipais (Gazetinha, 22/12/95). Referindo-se o prédio que

serviu de Quartel aos Guarani, na esquina da Riachuelo com Vasco Alves, o jornal

alfinetava: “A casa está em ruínas, a cair e a fedentina de tal forma se manifesta

desagradável, que envenena o olfato mais embotado” (Idem).

252
Charge publicada em O Guarani em 1874,
Reproduzido de Pesavento, 1994: 84

É digno de nota, ainda, o fato que a limpeza pública só foi municipalizada sob o

governo do Intendente José Montaury em 1898 (Franco, 1998: 249) e que antes ficava a

cargo da iniciativa privada que, como indicam os jornais do final do século não cumpriam

os contratos feitos com a Intendência. Por exemplo, vê-se em “A Federação” de 10 de

janeiro de 1896 (AHMV), que a Intendência Municipal intima o arrematante da limpeza da

cidade para no prazo de trinta dias “dar execução a diversas obrigações de seu contrato

nesta Intendência em 30 de janeiro de 1893”.

Uma verdadeira cruzada que aliava saneamento à moralidade é empreendida, então,

pela Imprensa Portoalegrense. A Gazetinha reclama da disseminação de lupanares

(28/06/1896 e 11/01/1892 por exemplo), da existência de “estação de mulheres fáceis”

253
(2/07/1896), solicita ação policial contra os mendigos que exercem a mendicância “de

maneira libérrima sem a mínima fiscalização policial o que oferece margem a explorações

merecedoras de proibição” (9/07/1896), protesta contra certas reuniões de garotos na Praça

da Alfândega “que proferem obscenidades às famílias” (15/07/1896) e assim por diante.

Aliás, quanto às praças, mudanças importantes ocorreram. A Praça do Arsenal foi,

em 1891, chamada praça da Harmonia, por alguma “desarmonia do ex-presidente Ferraz”,

segundo Coruja (op. cit.: 24) ou pela memória da extinção do Pelourinho que havia “mais

acima”, segundo Spalding (op. cit.:198). Foi idealizada por José Martins de Lima

“metade em terra, metade dentro d‟água, com a murada e forte


corrente de ferro como resguardo. Ao centro, no local da fonte,
mandou erguer um chafariz, o primeiro de Porto Alegre, feito de
bronze, encomendado em Paris” (Idem: 114).

A partir de 1865, a praça começou a sofrer um processo de arborização (Oliveira,

Cappelletti, Ozório, op. cit.: 80) e, em 1878, foram instalados um ringue de patinação,

“espaço para brigas de galo, tiro ao alvo e quiosques para venda de comidas, bebidas e

sorvetes” (Idem).

254
Chafariz do Alto da Bronze (Portoalegre, A., 1922)

“É ai que a praça encontra um momento de especial


relevância para os moradores da cidade, ponto obrigatório de lazer
urbano e local onde também se realizavam eventos como bailes de
máscara, teatro, ópera, repletos de bandas de música, atrações
circenses e patinação artística” (Ibidem).

Estes autores fazem referência ao fato de que a praça mudou seus freqüentadores

tornando-se, a partir de 1890, um local de reunião de escritores, poetas e jornalistas e ponto

de encontro noturnos (Ibidem). Mas a Gazetinha continua enfatizando este espaço como um

importante local de socialidades, pelo menos para algumas famílias. As crônicas são fartas

ao referirem-se à praça da Harmonia como local de passeio e, sobretudo, de exercitar o jogo

255
dos olhares oblíquos e dos ardis amorosos: “na praça da Harmonia a azeite291 será

fabricado das 7 às 9 da noite em vista do horário das retretas” (24/01/1892 – AHMV).

Mais no final do século, uma notícia aponta para um novo uso:

“Na Praça da Harmonia um dos mais aprazíveis sítios de


nossa capital, está se dando um abuso [...]. É caso que, não se sabe
por ordem de quem, foi há tempos construído nos fundos do Chalet
daquela praça uma espécie de galpão com tábuas, dividindo os
compartimentos, que estão sendo devidamente alugados à gente de
ínfima classe social. É nada mais nada menos do que um cortiço o
que temos ali, com grave prejuízo da salubridade e asseio que
deviam existir numa praça pública e freqüentada” (A Gazetinha,
15/12/1896 – AHMV).

Uma escavação realizada por uma equipe sob a coordenação da arqueóloga

Fernanda Toccchetto, do Museu Joaquim José Felizardo, localizou o cais que limitava a

área da antiga praça com o rio (Oliveira, Cappelletti e Ozório, op. cit.).

A Praça da Alfândega, por sua vez, foi arborizada em 1878 (Oliveira, op. cit.: 160).

Antes, em 1865, havia sido inaugurado ali um chafariz (Spalding, op. cit.:130). Na década

de 1880, chamando-se então, Praça Senador Florêncio, passou a receber cuidados de jardim

(Idem). Com utilização menos nobre que a Praça da Harmonia, mas ainda assim tendo

recebido cuidados que a transformaram em área de lazer, a atual Praça da Alfândega perdeu

os quitandeiros e tornou-se, segundo o jornal A Gazetinha no final do século, “um covil de

vagabundos” (6/12/1891). O jornal denunciava que engraxates vendiam jornais e bilhetes

291
Clara alusão ao flerte. Esta expressão é utilizada com muita freqüência nas crônicas da Gazetinha neste
final de século.

256
de loteria, brigavam, atacavam os transeuntes, atiravam pedras aos velhos e faziam uma

“algazarra infernal” perturbando as famílias que passavam por ali (Idem).

Em 1896 o mesmo jornal denunciava:

“Note-se quantas dessas desgraçadas mulheres que


chegaram ao ponto de não ser solteiras, nem casadas, nem viúvas292
transitam de contínuo pela praças e ruas, dirigindo gracejos aos
costumazes „dandys‟ esquineiro e certas vezes acintes a famílias
que passeiam sem a companhia de um homem” (A Gazetinha,
23/03/1896 – AHMV).

Mais adiante acrescenta que isto é visto quase todas as noites na Praça da Alfândega

junto à Rua dos Andradas (Idem).

A cidade não é, absolutamente, aquilo que se considera como o ideal de limpeza, de


ordem, de estética. No entanto, as fotos da época mostram uma cidade asseada, ordenada,
bonita.

292
Note-se o sentido do perigoso impresso neste estado ambíguo.

257
Praça da Alfândega em 1888. Irmãos Ferrari (FSB – MJJF)

A Praça da Matriz também foi arborizada em 1878 e o ajardinamento foi

completado em 1881 (Oliveira, op. cit.: 155). Também possuiu seu chafariz com quatro

esculturas de mármore representando os rios que formavam o Guaíba293 (Idem).

A utilização da praça como lugar de festa, também foi desaparecendo. Achylles

Porto Alegre queixava-se ao lembrar, com saudades as Festas do Divino: “Tudo isso

desapareceu, porque a civilização, o espírito moderno, saturador de filosofia e pedantismo,

não admite mais essas ridicularias” (Porto Alegre, op. cit.: 166).

Dizia Alfredo Varela em 1896 que a

293
Hoje estas figuras encontram-se na atual Praça Dom Sebastião.

258
“população Riograndense, muito ao envez da portuguesa e das que
lhe são oriundas, era extremamente alegre [...]. Nas cidades, a
população reunia-se em freqüentes solenidades de igreja, em saraus
dançantes e nas populares festividades dos dias nacionais, em que o
ardor cívico se patenteava com o maior entusiasmo” (Varela, 1896:
395-6).

E coloca, com pesar: “Hoje, estes belos costumes de tempo antigo passaram quase

de todo; a população é em geral melancólica” (Idem). E lamentando o presente acrescenta

que

“as próprias festas da igreja não tem mais o lustro de outras eras. Os
ajuntamentos patrióticos foram perdendo de todo o prestígio, que só o movimento
republicano veio restabelecer, em parte, na alma popular. Os cidadãos vivem em
clubs que nada oferecem que eleve o espírito, ou em teatros, que raramente
funcionam, ou em bailes de uma monotonia realmente mortificadora” (Ibidem).

Na verdade, o que houve foi que a festa na cidade colonial era marcada pela

mistura, pela experiência sensorial e pelo espírito dionisíaco, como bem demonstrou

Centurião (op. cit.) e que subordinava a si, a razão. A sociedade burguesa, sem abdicar

totalmente deste espírito barroco (novamente ver Centurião) pretende subordiná-lo à razão.

A Praça General Osório, no Alto da Bronze, foi, até 1865, uma área privada

(Franco, 1998: 295). O terreno foi desapropriado em 1866 afim de dar lugar a uma praça e

ser colocado ali um chafariz (Idem), possivelmente no local da antiga “Fonte dos Pobres”.

Por fim, a Praça XV de Novembro, ou Praça Conde d‟Eu, ou, antes, Praça do

Paraíso, com a demolição do Mercado antigo, serviu para a instalação de circos e, a partir
259
de 1879, foi arborizada, ajardinada e cercada por um gradil de ferro (Franco, 1998: 338). O

ponto de parada das carretas que se dirigiam ao Mercado, que ali era feito, transferiu-se

para a Praça Rui Barbosa. Depois disto, construiu-se o chalé de madeira (1881), colocaram-

se lampiões de gás (1882) e um chafariz294 (1884) (Idem).

Também, aí, no final do século, a imprensa denunciou a existência de “contínuos

escândalos [que ferem] a moralidade pública” (A Gazetinha, 2/07/1896) e afirmava a

necessidade de uma ação policial “a fim de que sejam abolidos dali certos „escândalos‟

noturnos, em tudo atentatórios à moralidade pública” (Idem 2/05/96).

O atual chalé foi colocado na Praça em 1911 atestando, ainda, a importância do

lugar como área de lazer.

Em todas estas modificações impressas em ruas e praças da cidade nota-se a ênfase

em três pontos que estão sempre subjacentes às ações: ordem (cada coisa em seu lugar),

limpeza e estética.

A questão estética aparece, por exemplo, na implantação de chafarizes e jardins.

Estética e ordenação andam juntas: o Código de Posturas de 1873 rezava em seu artigo 5º

do capítulo 1º, conforme já foi dito, que as ruas a serem abertas deveriam ter, no mínimo,

80 palmos de largura e que as praças deveriam ser quadrados perfeitos sempre que fosse

possível. Exigia-se, ainda, que os prédios que fossem reconstruídos deveriam ser alinhados

uns aos outros, para que ao invés de linhas quebradas, as ruas fossem linhas retas (no

294
Está atualmente no Parque Farroupilha (é de bronze).

260
máximo curvas) (Artigo 7º, Capítulo 1, CPM, 1873, AHMV). A paisagem urbana passa a

ser ordenada segundo critérios que apontavam para valores típicos do imaginário burguês.

Ainda em 1850, o então fiscal da Câmara, Felipe Norman, enviou à Câmara um

Projeto de Posturas (AHMV) para a edificação de casas térreas e sobrados, onde lia-se, no

artigo 1º, a recomendação de seguir as regras da arquitetura as quais, na fachada, deveriam

manifestar simetria e boas proporções e no interior, estabilidade ou segurança e disposição

higiênica dos seus repartimentos.

Assim, de tudo que foi dito, constata-se que a paisagem urbana passou, a partir da

segunda metade do século, a ser ordenada segundo critérios que apontam para valores que

se tornaram, então, importantes. Com relação à ordem tornou-se preciso distinguir lugares e

ações: como se diz, é preciso “um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar”295. A

higiene confunde o físico, o moral e o social: pobreza é igual a sujeira, que é igual a

miasma, que é igual a doença, lugar de pobre é igual a lugar de perversão (e, ainda mais, é

lugar feio). A estética também envolve questões como limpeza e ordem, além de simetria e

boas proporções, claro, conforme colocou Norman (Projeto de Posturas para Edificação de

Casas Térreas e Sobrados, 1850, AHMV).

A paisagem foi racionalizada, num processo típico da sociedade burguesa

impregnada dos valores da modernidade.

295
A expressão é atual, mas revela bem a idéia subjacente à questão da ordem: deve haver o lugar do lixo, o
lugar do passeio, o lugar do comércio, o lugar do pobre, ...

261
Neste processo, a rua deixou de ser simples local de trânsito ou lugar de excluídos.

Iluminada, calçada, com suas casas numeradas, a rua tornou-se lugar de lazer e

sociabilidade dos grupos dominantes:

“Todas as tardes, certos moços vão passear nas portas das


lojas da Rua dos Andradas, próximas ao Beco da Ópera, para ver as
morenas coleteiras e luveiras que são mesmo apetitosas como figos
maduros” (A Gazetinha, 17/01/92 – AHMV).

E, julgando-se pelo número de reclamações existentes sobre famílias desgostosas

com a presença de mendigos, engraxates, vadios e prostitutas nos locais por onde andavam,

presume-se que a prática do passeio tornara-se muito comum, e que o cidadão (leia-se

cidadão de 1a classe não o “Zé Povinho”) pretendia andar livremente, sem o incômodo de

dividi-la com outrens.

As praças também adquiriram o sentido de lugar de lazer e recreação, não mais de

festa popular ou enforcamentos.

Mas é bem verdade que todos estes lugares podem (e devem) ter sido ocupados em

diferentes atividades, por diferentes tipos de pessoas, em diferentes momentos do dia.

Assim, ruas e praças foram, em função de suas formas de ocupação, usuários e horários,

coisas e lugares diversos: devem ter sido (e foram) via de trânsito, lugar de passeio, casa, ...

Porém isto insere-se num quadro mais amplo, exposto aqui, de transformação da paisagem

urbana a partir de novas idéias surgidas num contexto econômico, social e cultural em

mutação: o advento de uma sociedade capitalista e burguesa materializou na paisagem a sua


262
realidade. Mais nos lugares públicos que nos privados, como se procurou demonstrar neste

capítulo.

O levantamento de unidades arqueológicas nesta área da cidade aponta para um

vasto potencial de pesquisas existente. Isto sublinha a importância substantiva não apenas

dos prédios públicos, mas de unidades residenciais – tanto as mais suntuosas quanto as

mais singelas – e de áreas públicas como elementos a serem agregados ao patrimônio

cultural histórico dos porto-alegrenses.

As principais práticas de descarte adotadas pelos habitantes da cidade no século

XIX indicam os pátios das casas e terrenos baldios como locais de alto potencial

arqueológico.

Existem alguns fortes indícios que apontam para o descumprimento das normas

estabelecidas no decorrer do século quanto ao destino a ser dado ao lixo doméstico. O

jornal A Federação mostra que as multas impostas pelo não cumprimento das leis relativas

a isto eram quase cotidianas (AHMV). Além disto, a instituição de visitas sanitárias que

fiscalizavam a limpeza de pátios e porões também aponta para a tendência ao não

cumprimento da lei e ao descarte de lixo junto às residências. Neste sentido, as escavações

que possam ser realizadas em residências na área central de Porto Alegre podem ser

esclarecedoras. E isto é apenas um pequeno exemplo do muito que pode ser desvendado

através do estudo da cultura material. Os lugares à beira-rio também se constituem em

locais potencialmente significantes para estudo do refugo desta sociedade, como atestam as

lixeiras coletivas situadas nos atuais Mercado Público (RS-JA-05) e Praça Rui Barbosa
263
(RS-JA-07) que confirmaram este potencial através das intervenções arqueológicas

realizadas. Pesquisas em andamento, realizadas com o material exumado nestes locais

possibilitarão a obtenção de informações importantes sobre a sociedade oitocentista, através

de sua cultura material296.

296
Sérgio R. Ozório desenvolve, atualmente pesquisa que deverá resultar em sua dissertação de Mestrado pelo
Pós-graduação em História da PUCRS, envolvendo estas duas áreas.

264
3. OS ESPAÇOS:

A análise dos lugares, desenvolvida no capítulo anterior, demonstrou que eles

possuíam uma materialidade que foi expressão de diferentes práticas e diversas

atribuições de sentidos, bem como de relações estabelecidas entre distintos grupos

sociais.

Desde a pesquisa de Willey no Viru Valley, Peru, publicada na década de 50,

que os arqueólogos tem sido chamados a considerar as redes de relações entre o que se

tem chamado aqui de lugares. E isso tem sido, efetivamente, realizado por muitos desde

então. As chamadas análises espaciais envolveram estudos regionais, articulações

hierárquicas de sítios, estudos de densidade inter e intra sítios, etc.. Na década de 70

Clarke (1977) propôs uma metodologia para a realização de pesquisas de arqueologia

espacial envolvendo três níveis de análise que, de uma forma ampla, poderiam ser

resumidos em micro (intra-estruturas), semi-micro (intra-sítio) e macro (entre-sítios).

Todos estes estudos tiveram sempre o interesse focalizado nos lugares: onde as coisas

estão.

Ainda na década de 60, o antropólogo Edward Hall (1982) mostrou a

importância das distâncias entre lugares (onde as coisas não estão) na ordenação do

espaço. É interessante notar, como observou Orser (1996: 135-136), que “quando os

arqueólogos conduzem análises espaciais para mostrar onde os sítios estão localizados,

eles também mostram (talvez muitas vezes totalmente inconscientes) onde os sítios não

estão localizados”. No entanto, parece que o desinteresse dos arqueólogos por estas

áreas (onde as coisas não estão) deve-se ao seu caráter fortemente imaterial: apesar de

265
construir-se uma realidade física, (novamente, onde as coisas não estão) o espaço pode

ser também uma abstração amarrada à redes invisíveis (Lefrebvre, apud Orser, 1996:

137).

Como já foi colocado na Introdução deste trabalho, considero que o espaço vai

muito além de áreas situadas entre lugares. Considero os espaços a partir de uma dupla

perspectiva. Ele é físico, mas é também (e sobretudo) mental: uma abstração dotada de

elementos imaginários fundamentais. As relações entre lugares e espaços da cidade

expressam-se na ordenação consciente da paisagem urbana. E esta ordenação é uma

realidade vivida (não uma realidade natural), nas relações entre pessoas e grupos

sociais178 (Orser, 1996: 137).

Para realizar uma análise dos espaços da cidade e verificar de que forma eles se

modificaram no transcurso do século XIX, integrando um complexo processo histórico,

optou-se por realizar um estudo de uso do solo onde os dados obtidos no registro

arqueológico fossem associados aos dados provenientes de registros escritos. Com isto

buscou-se ultrapassar o nível basicamente econômico geralmente alcançado neste tipo

de análise. À definição de áreas de atividades associou-se, também, a análise de

representações coletivas com o fim de alcançar-se uma aproximação à instância

imaginária que compõe e configura os espaços da sociedade que as viveu.

Este é o momento, pois, de esclarecer melhor o que se entende por

representações coletivas. Elas são vistas aqui como um sistema de referências que reúne

em si as formas através das quais uma sociedade percebe e classifica o mundo. São elas

178
Orser (1996: 137) chamou essa ordenação do espaço, criada conscientemente e vivida na relação entre
as pessoas,de espacialidade.

266
que, conforme já disse antes, guiam as práticas, as ações que constróem o mundo social.

Ao mesmo tempo, as representações estão amarradas, imbricadas às práticas sociais.

É importante perceber e frisar que representações não são fenômenos

descolados, autônomos ou externos à sociedade. Pelo contrário, elas são:

“uma instância simbólica, expressiva, que desenha a


peculiaridade das relações dos homens que encerra. Assim, é
como se todo fenômeno social tivesse um valor semântico
possível de ser homogeneizado em um discurso unitário de e
sobre a sociedade da qual o fenômeno em questão emerge”
(Brumana, 1983: 29).

Assim colocado, podemos pensar que existe uma articulação entre discurso e

prática e que entre ambas “há uma homogeneidade que abre caminho à compreensão

entre culturas diferentes” (Idem: 30). Desta forma, as representações são distinguíveis

apenas em termos metodológicos, sendo uma parcela constituinte de uma totalidade179.

Optou-se, na análise de áreas de atividades, por plotar as diferentes práticas

considerando dois períodos distintos: o primeiro sobre o mapa de L. P. Dias, de 1839,

no qual foram apontadas atividades diversas ocorridas do início até meados do século

XIX em razão de termos aí, conforme já foi dito outras vezes neste trabalho, uma

sociedade ainda marcadamente senhorial e escravista. Para conhecer as modificações

ocorridas no bojo de um processo histórico que resultou na emergência de uma

179
Parte-se da noção de “fato social total” introduzida por Mauss (1988). Colocado de forma ampla,
implica pensar que os fatos (os fenômenos) que, por razões analíticas, “recortamos” a fim de estudar uma
sociedade (como o espaço, por exemplo) são fenômenos que comportam todas as outras esferas que a
compõem. Assim, um fato social, seja ele extraído da esfera econômica, moral ou estética, por exemplo,
envolve, comporta e exprime todas as demais esferas sendo, simultaneamente, econômico, moral,
político, religioso, etc..

267
sociedade burguesa e capitalista, utilizou-se a planta de Ahrons de 1896 e consideraram-

se diferentes formas de uso e ocupação do solo na última década do século com a

finalidade de observar as áreas de atividades na cidade de então. Ao mesmo tempo,

analisou-se a planta cadastral de 1895, onde constam as edificações com a respectiva

numeração, a fim de verificar a distribuição de diferentes atividades econômicas que

foram levantadas nos livros de impostos deste mesmo ano180.

3.1 Os Espaços na Porto Alegre do Início até Meados do Século XIX:

Observando o mapa do início do século, onde foram plotadas uma série de

lugares (depósito de lixo, lavagem de roupa, igrejas, mercados, etc.), vemos claras

distinções entre diferentes áreas de atividades.

O poder militar, as estruturas que comportavam o aparato defensivo e coercitivo/

repressor oficial do Estado localizava-se na parte noroeste da península: o arsenal de

guerra, arsenal da marinha, a forca, o pelourinho181, depois a cadeia (cujos vestígios

estão, ainda hoje, presentes). Os dados fornecidos por Saint Hilaire (op. cit.: 42)

reforçam este função: “e onde se instalou, para as necessidades das tropas, oficina de

armeiro182, seleiro e carreiro183”.

180
Livros de Impostos pelo Valor Locaticio, 1895, AHMV.
181
O marco que estabelecia que o núcleo urbano era sede de comarca e, portanto, simbolizava o poder
que as autoridades locais estabelecidas aí possuíam sobre toda uma região. Ainda que existiam
discordâncias sobre o fato do pelourinho ter servido ou não de local de castigo a escravos e criminosos,
algumas indicações sugerem esta função. Por exemplo, a descrição de Isabelle, já mencionada neste
trabalho, e o significado atribuído à palavra, no dicionário de Fonseca e Roquete (op. cit.: 741): “coluna
em praça pública, a que se ata o criminoso, etc.”.
182
“o que faz ou concerta armas” (Fonseca e Roquete,op. cit.: 150).
183
O termo carreiro, no dicionário de Fonseca e Roquete (op. cit.:245) designa “o que guia o carro”.
Possivelmente Saint Hilaire estava se referindo a uma oficina de carros que, segundo o mesmo dicionário,
é uma “carruagem de carga” (Idem).

268
Ainda a oeste, na ponta da península, estava o local destinado à lavagem de

roupas que se estendia da Ponta do Arsenal à desembocadura da rua Formosa (capítulo

51 – CPM, 1937). Neste local passavam, também, os animais que vinham do outro lado

do Rio e que desembarcavam a Ponta da Barca de Passagem e que, seguindo pela Praia

do Arsenal e pela Praia do Riacho, iam pela rua da Olaria até a Várzea (Capítulo 31,

CPM, 1831, AHMV). Isto tinha a clara intenção de evitar que o trânsito de animais se

fizesse pelo centro da cidade. O Código de Posturas desta época é rico em menções que

objetivam restringir ao máximo o uso das vias públicas por animais: a rua, como já foi

dito no capítulo anterior, deveria ser via de trânsito das pessoas da cidade. Assim ficou

proibido, no capítulo 25, que animais (vacuns, cavalares, muares, lanígeros, porcos,

bodes, etc.) andassem soltos pela cidade. O capítulo 27 proibia correr a cavalo pelas

ruas e amarrá-los às portas das casas: “Nem apeando-se o poderá conservar pelas

rédeas entrando em casa ou estando junto às frentes das mesmas, muros ou cercas ou

por onde o povo transite” (CPM, Capítulo 27, 1831, AHMV). O capítulo 24 ainda

proibia cães daninhos que pudessem fazer mal a quem andasse pelas praças, ruas ,

estradas e outros lugares públicos (Idem).

Seguindo a linha do litoral Norte, em direção à leste, observa-se uma área

comercial. A associação dos dados provenientes tanto do registro arqueológico quanto

do histórico aponta neste sentido. Aí estão a Quitanda, a Alfândega e o Trapiche, e o

grande comércio da Rua da Praia. O Largo dos Ferreiros e a Praça do Paraíso também

se constituíam em locais comerciais designados como Praças do Mercado pelo Código

de Posturas de 1831 e onde podiam se reunir e conservar paradas todas as pessoas que

269
vendiam comestíveis e mantimentos (Capítulo 13, CPM, 1931, AHMV). Em 1844,

quando foi regulamentado o uso do Mercado recém constituído, ficou estabelecido que

ninguém poderia mais vender fora da Praça do Mercado os itens antes vendidos na

Quitanda sob pena de multa. Gêneros, mantimentos e outros objetos só deveriam ser

comercializados ali ou nas ruas “uma vez que os vendedores não se demorem nas ruas ,

nas praças ou nas praias para este fim” (Idem). Observa-se, portanto, que o comércio

ambulante, no sentido mais estrito do termo, era muito comum.

O Código de Posturas ainda indicava locais específicos para aportarem

embarcações que trouxessem carnes verdes (Porto do João Inácio em frente à rua do

Ouvidor) e que conduzissem madeira de construção (Praça do Pelourinho, Paraíso e

Estaleiro do Caminho Novo).

As atividades de descarte, conforme já foi visto, deveriam incluir pátios, terrenos

baldios e outros lugares abertos. No entanto, o CPM de 1831 destinava algumas áreas ao

longo da litoral para este fim. No capítulo 50, a Câmara estabeleceu dez pontos onde se

poderia realizar o “despejo de ciscos e imundícies” (CPM, 1831 :16, AHMV) e que se

estendiam pela beira do Rio desde as ruas da Misericórdia e do Rosário até a rua

Formosa e do Cotovelo. Dali, conforme o Código, seguiriam outros mais que fossem

necessários para realização deste fim, até a Ponte do Riacho. Em 1842 o Código de

Posturas revogou o uso dos locais entre a rua da Bragança e rua Clara para despejos.

Mas o Rio era de onde se obtinha água para consumo, ao lado de outras fontes

situadas, como se pode observar no mapa, nas áreas mais periféricas.

270
No Alto da Praia, como já vimos, estava o centro do poder temporal e espiritual,

bem como as moradias das famílias mais ilustres. A parte sul da península, como

observou Saint Hilaire, era ocupada pela população mais pobre. Mas se havia uma

distinção um tanto ampla (as casas mais pobres estavam no sul e as mais ricas no topo

do promontório), havia também uma grande mistura de gentes compartilhando as

mesmas áreas da cidade: becos sujos e pobres entrecortavam as ruas (mais nobres) que

corriam longitudinalmente à península. Assim, como comenta Coruja (op. cit.: 23), na

rua da Ponte, perto do Beco do Fanha, estava a grande casa de Manoel Antônio de

Magalhães, a primeira casa envidraçada da cidade (o que significa status econômico e,

em decorrência, social). No Beco Fanha, morava o taberneiro que lhe emprestou a

alcunha e onde viviam mulheres de “vida alegre” (Idem: 112) e, na casa da esquina um

negociante honrado que havia sido vereador: capitão Roberto André Ferreira de Souza

Alvim (Ibidem: 20). Este exemplo, ao lado de tantos outros184, atesta o fato de que as

áreas de moradia eram, até certo ponto, de limites bastante frouxos e confusos.

O que se observa é que nesta primeira metade do século XIX se pode distinguir

espacialmente algumas áreas muito genéricas: comerciais ou militares por exemplo.

Mas a verdade é que estas áreas se confundem: descarte, lavagem de roupa, trânsito de

animais, desembarque de gêneros se fazem em lugares que se sobrepõem. O espaço

parece muitas vezes indistinto se procuramos vê-lo em sua materialidade. O discurso

oficial (o do Código de Posturas) parece apontar para uma distinção que se dá muito

mais no nível imaginário que no nível material: há um espaço de desembarcar gêneros,

184
Coruja fornece uma grande quantidade desses exemplos e cito, a título de complementação, a rua
Clara, onde morava o pai do General Câmara e era “foco de desordens” entre os marinheiros (op. cit. :
112), o Beco do Bot à Bica, onde morou o Visconde de Castro (Idem: 110) que era “acidentada e
tortuosa” (Franco, 1998: 332) onde, ainda em 1851 se podia retirar “carroçadas de terra” de seu leito
(Idem: 323).

271
um espaço de depositar lixo, um espaço de lavar roupa. Há um espaço onde se compra e

vende e um espaço onde se mora. Se, por um lado, é difícil situar cada uma dessas áreas

num espaço físico, elas eram claramente diferenciadas. Se não fosse assim, não haveria

porque distingui-los no discurso. Eles são, desta forma, espaços que se definem, como

já ficou dito antes, por oposições e complementaridades e são determinados muito mais

por componentes imaginários que materiais.

É assim que na cidade destes tempos, marcados por uma sociedade senhorial e

escravista, poucos são os espaços concretamente diferenciados. Muitas coisas parecem

ocorrer em todos os lados, ou nas mesmas áreas. E se procurarmos uma diferenciação

espacial do tipo que conhecemos hoje nessa cidade do passado, provavelmente vamos

considerá-la como uma expressão da indiferenciação de espaços. No entanto, e tomando

um caminho diferente, eu proponho que na Porto Alegre da primeira metade do século

XIX, o espaço não se constituía em uma dimensão social independente (Da Matta,op.

cit.: 32) que pudesse ser pensada, classificada e vivida conforme fazemos hoje, com

fronteiras bem estabelecidas segundo nossas próprias formas de estabelece-las185. Pelo

contrário, o espaço estava “misturado, interligado ou „embebido‟ [...] em outros

valores” (Idem) que orientavam a vida e as relações entre as pessoas e confundiam-se

com a própria ordem social (Ibidem).

Um exemplo contundente deste tipo de ordenação e classificação do espaço está

na forma como ruas e praças eram denominadas186. Estas denominações exprimiam,

como veremos, as hierarquias do espaço, correspondendo, portanto, às representações

185
Estas formas incluem uma racionalização do espaço que se institui com a sociedade burguesa e
capitalista, conforme veremos a seguir.
186
É preciso lembrar que nesta época Porto Alegre não possuía placas que nomeassem as ruas nem
numeração nas casas que, como já foi dito, foi realizada apenas no final da Revolução Farroupilha.

272
coletivas que os grupos sociais faziam dele. Assim, a rua dos Pecados Mortais referia-se

a valores estéticos e morais:

“Alguém que possuía este terreno ladeirento, fez


edificar sobre ele sete casinhas, que os gaiatos daquele
tempo chamaram os sete pecados, nome que lhe assentava
bem, tanto pelo lado físico dos prédios, como pelo lado
moral das moradoras” (Coruja, op. cit.: 16).

Algumas vezes as denominações denunciavam atividades: Praça da Quitanda,

Largo da Forca, Beco do Jogo de Bola, dos Nabos a Doze. Outras vezes sugeriam

segmentação social, como áreas de prestígio e poder: o Alto da Praia que, ainda que se

relacione a um aspecto topográfico, designa antes um espaço dominante da cidade e

que, de alguma forma, se contrapõe à Rua da Praia. Em um se aglomeram a Matriz, o

Palácio do Governo, a residência de famílias politicamente poderosas e onde, na praça,

se realizam as festas oficiais. No outro está o comércio (o pequeno e o grande) e a

residência dos comerciantes.

Outras vezes, as denominações buscam personalização: a chácara da Brigadeira,

a esquina da Inglesa, a esquina do Matias, o Beco do Leite e por aí a fora. Tudo muito

íntimo. A classificação do espaço não é impessoal, pelo contrário, sublinha as redes de

relações e os valores onde o espaço é concebido (Da Matta, op. cit.: 32). Isto é muito

importante porque revela um sistema classificatório que coloca em relevos justamente

essa rede de relações. Enquanto representação coletiva, as denominações mostram um

aspecto fundamental na compreensão desta sociedade: a ordenação e a atribuição de

significados aos espaços seguem a lógica das redes de relações entre os grupos sociais.

273
Existia na Porto Alegre oitocentista um costume que, tomado como

representação, também nos fornece pistas para o conhecimento do sistema

classificatório que operava aí: o costume de conferir alcunhas às pessoas. Coruja (op.

cit.) apresentou uma ampla listagem desses apelidos que nos indicam a importância que

eles tinham no contexto da sociedade: “As alcunhas não só subiam à altura dos grandes

personagens, como desciam aos sineiros e aguadeiros” (Coruja, op. cit.: 89).

Essas designações referiam traços físicos, manias, formas de vestir, atividades

profissionais, laços de família. Assim, por exemplo, se pode citar: a Brigadeira (Josefa

Eulália de Azevedo, viúva do Brigadeiro Rafael Pinto Bandeira), D. Prosódia (“pessoa

de palavras escolhidas”) (Coruja, op. cit.: 79), o Amansa-burro ou Amansa (Antônio

Ávila, o mais erudito professor da época) (Idem: 18) e, ainda, o Carrapato (M. de

Araujo Porto Alegre, o Barão de Santo Angelo) (Ibidem: 60). Havia também a Luiza

Parteira, o Titica (Boticário), o João dos Afetos (poeta e comerciante), o Antônio Magro

(dono do armazém), o Mãozinha (sapateiro), o Narigão (alfaiate), o Zé das Negras

(taberneiro), o Fanha (que deu nome ao Beco), o Domingos da Ladeira (que morava na

rua da Ladeira) (Ibidem: 82 e seguintes) e o próprio Coruja (Antônio Alvares Pereira

“Coruja”) (Ibidem: 63-4).

Aliás este último, com a finalidade de demonstrar como as alcunhas eram muito

usadas, inventou “um romance feito à pressa, que para muitos será enigma, mas que

para outros fará despertar recordações adormecidas” (Ibidem: 32). Vale a pena

transcrever um parágrafo que não mostra apenas a importância do uso das alcunhas, mas

274
também a forma de localizar, situar, endereçar algum ponto na cidade, que nos indica a

direção da concepção de espaço existente na sociedade de então:

“Montando pois a cavalo foi passar de largo e trote


chasqueiro pelas casas da Panajóia, da Talavera, do
Felicio Botão, das Potreiras e continuou o passeio pela
praia; ao avistar de longe o Mil-onças à janela, para se
livrar de amolações pôs o animal a todo o galope; e sem
ter reparado no Chico do Riacho que saudava, nem no
Rangel Boi que o esperava de chapéu na mão, só foi parar
à venda do Beribéri, onde comprando tremoços e
atravessando pela frente da Jacaroa, os foi afogar (os
tremoços) com vinho no Manoel das Mulatas” (Ibidem:
33-4).

Tudo isto põe em relevo um sistema de relações, sublinhando valores

importantes, hierarquizando pessoas e coisas.

As alcunhas servem a todos, incluem todas as gradações sociais. Neste sentido

elas unem e mostram um sistema onde um valor importante é relacionar. No caso dos

espaços, ao excluir qualquer possibilidade de impessoalidade na sua classificação e ao

impregná-los de valores estéticos e sociais (da mesma forma como é feito com as

alcunhas), hierarquizavam-se coisas, ao mesmo tempo que se trata de juntar essas

mesmas coisas.

A cidade destes tempos mostrava, usando uma expressão de Centurião (op. cit.:

288), o princípio básico da harmonia entre opostos, num contexto que, “se por um lado,

275
abria espaço para a contradição e o antagonismo, por outro lado enfatizava a

harmonia, a amálgama e a convergência” (Idem: 287).

Assim, não é que os espaços sejam indiferenciados. É que a forma de classificá-

los é outra, diferente daquela que realizamos hoje. Poderia arriscar uma proposição e ir

um pouco adiante: é possível que o espaço também fosse diferenciado pela variedade de

sons e odores que povoavam os ares da cidade. Ainda que, talvez, não fossem produtos

intencionais da ação humana e, quem sabe, meros subprodutos não-intencionais, é bom

lembrar, como Hall (op. cit.) bem lembrou, que a percepção do espaço está amarrada

aos sentidos, que são, ao menos, mais três além da visão e do tato sobre os quais as

arqueólogos tem fixado a atenção. Se hoje fazemos o possível para suprimir odores e

sons, considerados indesejáveis no espaço público, isto nem sempre foi assim187.

Como produto incidental de ações culturais, a paisagem também sofreu

modificações. Foi assim que odores provenientes de águas paradas, do lixo e dos

despejos, característicos da cidade do século XIX, passaram a ser, pouco a pouco,

considerados indesejáveis e vistos como emanações que promoviam doença física e

moral, numa associação direta entre pobreza, insalubridade, desordem espacial, doença

e corrupção moral. O imaginário moderno, instrumentalizado pelo discurso higienista e

por modelos de reordenação urbana forjados num amplo processo que situou-se muito

além de limites regionais e nacionais, decretou que eles deveriam ser suprimidos.

As transformações ocorridas na estruturação ordenação e articulação dos

espaços de Porto Alegre foram vagarosas e inserem-se em um processo extremamente

187
Sobre esta questão há o interessante estudo feito por Curbin (1987).

276
complexo envolvendo mudanças na estrutura econômica, social e política, conforme

tentei mostrar no primeiro capítulo deste trabalho. A lentidão com que se realizaram tais

alterações, ao contrário do que possa parecer quando se trata de descrever este processo,

é ainda mais evidente quando se considera que elas envolveram componentes

imaginários. A emergência de valores burgueses e de uma visão de mundo burguesa,

que desencadearam ações conscientes que marcaram a paisagem urbana da Porto Alegre

do final do século XIX, realizou-se neste processo.

3.2 Os Espaços da Porto Alegre do Final do Século XIX:

Olhando a distribuição das atividades na planta de 1896 verificamos que houve

uma multiplicação de práticas que se realizam em espaços distintos.

As áreas públicas de lazer se multiplicaram. Antes, praticamente restritas aos

dias de festa na Praça da Matriz, os passeios das famílias incluíram a Praça da Harmonia

no noroeste da península, a Praça da Alfândega bem ao centro, a Praça XV de

Novembro, mais ao leste e a Própria Praça da Matriz, além das ruas da cidade.

A Praia do Riacho ganhou status de balneário, onde as famílias iam banhar-se

nos dias de calor.

“Muitas famílias de trato alugavam casas em


todo aquele trecho fronteiro à praia do Riacho para terem
banho à mão.
Outros, que não dispunham de meios para isso,
formavam ranchos, e quase sempre depois do toque de

277
silêncio, encaminhavam-se para o Riacho, onde iam cumprir
uma prescrição médica, uma necessidade higiênica ou
simplesmente refrescar os ardores da canícula. E como era
deliciosa aquela ablução, numa praia limpa e arenosa” (Porto
Alegre, op. cit.: 145).

Mas a praia do Riacho foi, também, lugar onde se lavava a roupa, conforme é

possível observar em fotografia da virada do século.

As Lavadeiras da Praia do Riacho. Irmãos Ferrari, final do século XIX (FSB – MJJF)

As fontes de captação da água viraram elementos estéticos: ainda que os

chafarizes continuassem fornecendo água a uma parte considerável da população, sua

principal função era decorativa. A hidráulica instalou-se junto ao centro do Poder, na

Praça da Matriz.

278
As ruas possuíam placas e as casas números. Porém, como é possível observar

na planta cadastral de 1895, tratava-se de uma numeração absolutamente caótica:

números que se repetiam, números ímpares e pares alternando-se no mesmo lado da rua,

ou numeração não-seqüencial.

A fim de procurar uma diferenciação na localização de atividades econômicas

diversas, foi realizado um amplo levantamento nos livros de impostos no ano de 1895

(AHMV). Nestes livros foi possível saber que tipo de negócio era feito e o endereço

onde ele se realizava188. A idéia era plotar essas diversas atividades no mapa cadastral

de 1895, utilizando-se a numeração da edificações que constavam ali. Este esforço, na

prática, evidenciou ser absolutamente inútil pois, uma mesma quitanda, por exemplo,

poderia estar localizada em três pontos distintos da mesma rua, onde a numeração se

repetia em edificações diferentes. Além disso, muitos números que constam nos livros,

não existem no mapa189.

A solução encontrada foi dividir as ruas em segmentos, tomando como

referência dois números limites em cuja seção, assim definida, se pudesse localizar, de

forma ampla, uma certa quantidade de atividades. Por exemplo, na Rua da Praia, do seu

início até a esquina da General Câmara a numeração das edificações varia entre os nº s 1

e 359, alguns deles se repetindo em prédios diferentes. Daí até a rua de Bragança a

numeração varia entre os nºs 176 e o 479.

188
Infelizmente essas informações só foram possíveis de obter para o final do século, já que não
encontrou-se documentação contendo estes dados relacionados a épocas mais antigas.
189
Provavelmente este fato esteja ligado à questão de que a planta deve ter levado um tempo
relativamente longo para ser produzida. A data de finalização é o ano de 1895, o que não quer dizer que o
levantamento das edificações corresponda a esta data.

279
Assim, sabemos que todo número menor que 176 encontra-se no primeiro

segmento da rua e todo maior que 359 está no segundo segmento. Um grande número

de atividades (aquelas que se localizam em edificações numeradas entre os nºs 176 e

359), ficou, de qualquer forma, sem localização podendo estar tanto num quanto no

outro segmento. Em algumas ruas a confusão de números não era tanta, permitindo uma

localização mais precisa. A partir desta delimitação de atividades em seções

determinadas das ruas, elaboraram-se tabelas que resultaram em gráficos que tiveram

como finalidade procurar estabelecer possíveis diferenciações na ocupação das ruas por

atividades diversas.

Para atingir este objetivo, as atividades econômicas foram divididas em duas

amplas categorias: a) atividades ligadas ao comércio e à prestação de serviços e b)

atividades que envolvam um pequeno e médio artesanato190. Existe uma óbvia

dificuldade em estabelecer uma divisão deste tipo, uma vez que muitas atividades

envolvem tanto a produção quanto a comercialização de produtos. É o caso, por

exemplo, de restaurantes e padarias. Assim, optou-se por levar em conta aquilo que

deveria ter sido atividade principal. Neste sentido, no caso do restaurante, por exemplo,

a atividade comercial sobrepõe-se à atividade de produção.

Ainda com relação a estas atividades, houve a preocupação em tentar acercar-se

do entendimento que a sociedade da época tinha delas. Para tanto foi utilizado um

dicionário e foram analisados anúncios e textos de jornais e de cronistas. Desta forma,

190
Inúmeras vezes essas atividades foram classificadas como “fábricas”, porém o grande número desses
estabelecimentos e o fato de muitas vezes estarem num mesmo prédio onde existe outro tipo de atividade
(quitanda, botequim, etc..) revela que se tratam do que nós chamaríamos hoje de “fábricas de fundo de
quintal”. Por isso foram tomadas como atividades artesanais. No entanto, é interessante notar que o termo
“fábrica” indica que estas atividades eram percebidas diferentemente: a fábrica é, no imaginário da época,
um símbolo do mundo moderno.

280
elaborou-se uma listagem das diversas atividades realizadas, seguida de uma explicação

que busca ser uma aproximação ao discurso que relata cada uma no século XIX:

a) Comércio e serviços:

- Taverna: “casa onde se vende vinho e de comer” (Fonseca e Roquete, op. cit.:

907). As tavernas são tidas, no final do século, como lugares perniciosos

onde, “a título de restaurante [se] reúnem todas as noites o que há de

mais „aproveitável‟ na escória social” (A Gazetinha, 17 de janeiro de

1892 -AHMV).

- Botequim: “casa pública onde se vendem licores, etc.” (Fonseca e Roquete, op.

cit.: 211). O discurso moralizador da Gazetinha do final do século sempre

refere os botequins como lugares onde se junta “toda espécie de gente”

(Idem, 31 de dezembro de 1936 - AHMV).

- Armazém: “lugar espaçoso, casa grande em que se guardam mercadorias”

(FONSECA E ROQUETE, op. cit.: 115). Pelos anúncios dos jornais,

percebe-se que ali se vendia a varejo e atacado. Na Gazetinha de 8 de

setembro de 1895 (AHMV) um anúncio do armazém Pery, localizado na

rua Duque de Caxias nº 64, esquina com a rua Vasco Alves, dizia que o

estabelecimento estava liquidando cerveja inglesa, manteiga, conhaque,

champanhe e vinho francês, num “patriótico protesto [contra a] insólita

pretensão do Governo Britânico às Ilhas brasileiras Martin Vaz e

Trindades” e à tentativa de usurpação de território brasileiro (Amapá)

281
pela França. (Com o quê, percebe-se que a publicidade, já nesta época,

conhecia a eficácia da manipulação de valores sociais com o intuito de

vender.)

- Barbearia: Parece ter sido o mesmo que é hoje, até certo ponto.. Achylles Porto

Alegre (op. cit.) refere-se a um salão de barbeiro de um certo Victor

Blaudin, localizado onde hoje é a Casa Massom, e que era freqüentado

pela alta sociedade do final do século, sendo “ponto de encontro dos

políticos, homens de letras, boêmios que viviam ainda às custas dos

velhos”. Além disto, as barbearias eram locais de aplicação de

sanguessugas e de realizar sangrias. Um anúncio do Jornal do Comércio

de 8 de novembro de 1867 (MCSHJC) informava que na rua dos

Andradas nº 150 havia uma barbearia que vendia, alugava e aplicava

“superiores sanguessugas da Europa” Debret (s/d : 188) afirmava que

no Rio de Janeiro no início do século XIX nas “lojas de barbeiros” era

possível “encontrar numa mesma pessoa um barbeiro hábil, um

cabelereiro exímio, um cirurgião familiarizado com o bisturi 191 e um

destro aplicador de sanguessugas”. Para o caso específico de Porto

Alegre, não se encontrou referências a estas atividades no final do século.

- Quitanda: “praça de comprar e vender, lugar do mercado” (Fonseca e

Roquete, op. cit.: 804). Supõe-se que seja, também, casa que vende

gêneros alimentícios.

191
O próprio Debret (s/d :181) informa que o cirurgião era um “sangrador”.

282
- Loja de Fazendas: entende-se que eram casas que vendiam, preferencialmente,

tecidos, o que não excluía miudezas como meias, gravatas, etc.. Num

anúncio de uma delas, situada na rua Riachuelo, antigo nº 87, esquina

General Portinho e de nome “A METRALHADORA” (ver no capítulo 2 o

prédio remanescente) ofertavam-se roupas feitas, fantasias, morins,

chitas, casemiras, etc. (A Gazetinha, 8/09/1895 -AHMV). Algumas

destas casas vendiam apenas peças de tecidos, ou seja, vendiam a

atacado. É o caso da que se localizava na atual José Montaury nº 167 (ver

no capítulo 2 o prédio remanescente). Na Gazeta de Porto Alegre de 15

de maio de 1880 (MCSHJC) há um anúncio de uma loja de fazendas

situada na rua de Bragança esquina Praça Conde d‟Eu, chamada “Au

Bom Merchè” que vendia cortes de lã e seda, capas de feitio moderno

para senhoras, artigos de malha de lã, xales, camisas para homens,

gravatas, espartilhos, etc..

- Depósito: Não apenas o lugar onde se guardam coisas ( Fonseca e Roquete, op.

cit.: 340), como também onde se vendem e compram as coisas ali

guardadas, como aponta o anúncio publicado na Gazetinha de 23 de abril

de 1896 (AHMV) onde um depósito de móveis propõe-se a comprar e

vender móveis novos e usados.

- Loja de Louças: É provável que estas casas vendessem a varejo e atacado. É o

caso da casa F. J. Brutschke, fundada em 1888. Esta empresa importava e

vendia louças, vidros, porcelanas, cristais, lampiões, ferragens e

miudezas. Neste século passou também a fabricar vidros em um

283
estabelecimento situado “nas ilhas fronteiras a esta cidade” (MONTE

DOMECQ‟ e Cia., op. cit.: 171).

- Hotel: parece englobar todo tipo de casa de hospedagem. Em artigo

denominado “Pela Moralidade”, a Gazetinha de 23 de março de 1896

(AHMV) refere-se à “essas espeluncas, essas casas de perdição

rotuladas com o título de „hotéis‟ e que são encontradas em todos os

lados da capital”. No final, pede a ação das autoridades no sentido de

proibir a residência de mulheres de “mau proceder” nos hotéis e

espeluncas e o aluguel de quartos por hora.

- Farmácia: Parece tratar-se do mesmo tipo de estabelecimento que é hoje. A

farmácia central, localizada na esquina da rua dos Andradas com

Marechal Floriano, anunciava na Gazetinha de 17 de novembro de 1895

(AHMV), termômetro de Londres, gotas de cocaína (cura infalível de

qualquer dor de dentes ou nevralgia), Pó Brasileiro anti-asmático,

mamadeiras, bicos, tira-leite, anti-sépticos em pó para clarear os dentes,

perfumar a boca e fortalecer as gengivas.

- Bazar: anúncio de 19 de abril de 1896 da Gazetinha (AHMV) informava uma

liquidação de fazendas e calçados no Bazar Silva. Assim, bazar quer

designar, provavelmente, um estabelecimento que vende um pouco de

tudo. Em Fonseca e Roquete (op. cit.: 196) lê-se “mercado coberto”.

284
- Cigarraria: em anúncio da Gazetinha de 3 de dezembro de 1895 (AHMV) lê-se

que o estabelecimento situado à rua dos Andradas nº 256, denominado “A

La Fin de Siécle” era especializado em fumos, cigarros, charutos e outros

artigos para fumantes. O anúncio é ilustrado.

- Depósito de Pianos: como no caso dos depósitos designados de forma geral,

presume-se que aqui também se compravam e vendiam pianos, além de

guardá-los.

- Armazém de Especialidades: conforme observou-se em anúncios publicados na

Gazetinha, vendia por atacado e a varejo. Havia um, situado na rua

General Câmara nºs 71 e 72, esquina com a rua da Ponte, chamado A

Maisonave (Gazetinha, 8/set/1895 – AHMV). No mesmo prédio e com a

mesma razão social existia uma “refinação de açúcar e torração de café”

(Idem, 6/out/1895).

- Café: do que se pode deduzir da análise das fontes pesquisadas, havia cafés e

cafés. Uma categoria era a freqüentada pelos segmentos mais pobres da

população e que aparece nos textos da Gazetinha como antros: “e não

menos incorretos estes cafés que, também uma vez pagando o direito de

porta aberta, o seu primeiro comércio é a desenfreada jogatina” (A

Gazetinha, 17 de janeiro de 1892 – AHMV). A outra, freqüentada pelos

grupos mais privilegiados socialmente, conforme é possível deduzir de

um anúncio publicado na Gazetinha em 3 de dezembro de 1895: o café

central, situado à rua dos Andradas nº 289 seria “o ponto predileto da

285
rapaziada de bom gosto”. Ali vendiam-se vinhos, cervejas, cognacs,

licores, doces, leites, chocolates e ... café.

- Restaurantes: entende-se que seja o mesmo que as tavernas, lugares onde se

comia e bebia, porém destinados a um segmento social mais privilegiado.

No Restaurante Recreativo, situado na rua dos Andradas nº 353, em

frente à Praça da Alfândega, encontrava-se o que de melhor havia em

“iguarias e finos líquidos”, sendo que, em noites de espetáculos, o

estabelecimento mantinha-se aberto após o “final dos mesmos” (A

Gazetinha, 31/12/1896 – AHMV).

- Loja de Armeiro: armeiro: “o que faz ou conserta armas” (Fonseca e Roquete,

op. cit.: 150). Conclui-se que seria o que atualmente corresponde a uma

loja de armas.

- Confeitaria: local onde haviam doces secos, em calda e cristalizados, bem

como empadas, pastéis, licores, vinhos finos, almoços, jantares,

merendas e ceias, conforme se pode ver em anúncio da Gazeta de Porto

Alegre de 15 de maio de 1880 (MCSHJC). Este estabelecimento a que o

anúncio se refere chamado “Gruta Recreativa”, localizava-se na Rua de

Bragança, em frente à rua Nova192 e convidava “famílias e mais pessoas

que desejarem passar horas aprazíveis” a irem até lá e avisava que

durante as noites de fogos nas festas do Espírito Santo e nas que

houvesse espetáculos, o lugar permaneceria aberto até a meia-noite.

192
Atual Andrade Neves

286
- Loja de Calçados: estabelecimento dedicado à venda de calçados. Em anúncio
da Gazetinha de 22 de dezembro de 1895 (AHMV) a Casa Azul, empório de calçados
nas palavras ali expressas, situado na rua dos Andradas nº 525, afirmava possuir uma
sala reservada para as senhoras experimentarem calçados.

- Loja de Chapéus: loja de chapéus mesmo, ainda que comercializasse outros

artigos. Uma delas, situada à rua dos Andradas nº 209, de nome “Alta

Gitta‟ Di Genova” vendia chapéus de sol ingleses, franceses e italianos,

além de anunciar a venda de renda branca de linho, enxovais e fazendas

bordadas (Gazetinha, 5 de abril de 1896 – AHMV).

- Loja de Jóias: comercializava jóias, relógios e artigos de ótica, conforme se

observa em diversos anúncios da Gazetinha.

- Livraria: Os anúncios referem-se à venda de livros e coleções de livros.

- Banho: estabelecimento onde a população podia banhar-se. Achylles Porto

Alegre (op. cit.) refere-se a uma casa construída sobre um trapiche no Guaíba

onde as pessoas podiam banhar-se nas águas do rio, em pequenas peças

construídas para preservar a intimidade dos banhistas.

b) Artesanato:

- Fabrica de Café: refere-se, do que se pode concluir dos anúncios publicados, a

estabelecimentos dedicados a torrarem os grãos de café. Por exemplo, o

287
situado à rua General Câmara nºs 71 e 73 de nome A Maisonave, já

mencionado.

- Seleiro: “o que faz selas” (Fonseca e Roquete, op. cit.: 871). Pelos anúncios

analisados constata-se que é o que vende e / ou fabrica artigos de

montarias. Na rua dos Andradas nº 379 havia um que fabricava “toda

qualidade” de freios, selins, cinchas, chicotes, rédeas, etc. (Jornal do

Comércio, 7/11/1891). Na rua XV de Novembro nº 27 havia, em 1892,

outra que se denominava “Ao Camponês”, loja de seleiro e corrieiro,

propriedade de Bernardo Rudolf e Cia. e que anunciava possuir sempre

“um bonito e variado sortimento de selins para montaria de senhoras,

ditos para homens, arreios para montaria, ditos de carroça” (Gazetinha,

24/01/1892 – AHMV). O termo corrieiro, ligado ao seleiro, está

provavelmente associado aos demais artigos oferecidos pela loja, que a

fazem similar às nossas atuais correarias: malas, baús, colchões, camas

de vento, calçados, tamancos, cabelo preparado, etc..

- Colchoeiro: “o que faz colchões” (Fonseca e Roquete, op. cit.: 280). E, pelo

que se pode entender dos anúncios publicados, faz (e vende) baús, malas,

colchões, camas, tamancos, chinelos, etc..

- Sirgueiro: “O que faz obras de fio e cordões de seda ou lã” (Fonseca e

Roquete, op. cit.: 880). E, entende-se pelos anúncios, de cabelo ou crina.

288
- Oficina de mármores: não foi encontrada nenhuma referência relativa às

atividades desenvolvidas no final do século XIX. No entanto, sabe-se que

na primeira década do século XX, pelo menos algumas dessas oficinas

produziam mausoléus, estátuas, cruzes em mármore e pó de mármore,

bem como ornamentos de cimento ou gesso para interior ou exterior de

casas (Monte Domecq‟ e Cia., op. cit.: 178).

- Modista: possivelmente o mesmo que as atuais costureiras. Anúncio de

5/04/1896 da Gazetinha informava que na rua dos Andradas nº 209 (1º

andar) estava a oficina da Madame Carmem Marim “possuidora de Real

diploma”.

- Alfaiate: pelo que se entende dos anúncios publicados tem o mesmo sentido
que o atual. Distinguia-se, no entanto, a alfaiataria civil da militar,
havendo anúncios que proclamavam realizar ambas.

Sobre as demais atividades, listadas a seguir, não encontraram-se, nas fontes

pesquisadas, referências que esclarecessem suas finalidades específicas. Significa

dizer que os termos foram encontrados nos livros de impostos ou mencionados nos

demais documentos sem que houvesse qualquer elucidação explícita sobre o seu

sentido para a época.

Assim, encontra-se os termos sapataria, sapateiro e oficina de sapatos, não sendo

possível reconhecer as diferenças entre as três categorias classificatórias. As outras

atividades encontradas foram:

289
Açougue, roupa feita (presumivelmente uma casa onde se vendiam roupas

prontas e outros artigos tais como acessórios, fato que se constata, por exemplo, nas

lojas de fazendas), agência de leilões, pensão, drogaria, loja de máquinas, loja de

modas, loja de móveis, ferragem, loja de couros, florista, loja de cousas, tapeçaria, loja

de estofados, pastelaria, padaria, armarinho, loja de tintas e miudezas, entre as

atividades ligadas ao comércio e serviços. Entre as atividades artesanais estavam

fábricas (o termo usado é este) de cerveja, de banha, de vinhos, de vidros, de gasosa, de

chitas, de calçados, de coletes, de espartilhos, de camisas, de charutos, de vassouras, de

licores, de chinelos, torneiro, funilaria, tinturaria, ferraria, oficina de galvanizados,

armador, retratista, tamanqueria, chapeleiro, encadernação, entalhador, oficina de

conserto, ourives, louças de barro, vidraceiro, latoeiro, serraria, carpintaria.

Retomando a distribuição espacial destas atividades, volto ao caso da Rua da

Praia que, conforme já foi explicitado, foi dividida em três seções.

290
RUA DOS ANDRADAS
Segmento 1 Segmento 2 Indefinido Total
Botequim 6 3 9
Quitanda 2 2
Taverna 12 3 15
Comércio Açougue 5 5
E Barbearia 7 1 4 12
Serviços Farmácia 2 2 5 9
Cigarraria 2 1 3 6
Hotel 4 3 7
Café 1 2 4 7
Armazém 4 2 6
L. de fazendas 4 6 16 26
L. de calçados 1 2 3 6
L. de chapéus 2 6 3 11
Armarinho 1 1 2
L. de modas 2 1 1 4
Padaria 2 2
Depósito 3 3
Especialidades 1 1
Miudezas 1 3 4 8
Restaurante 1 1
Armas 1 1
L. de estofados 1 1
Confeitaria 1 1
Pastelaria 1 1
Drogaria 1 1
Fazendas e miud. 1 1
Agência leilões 1 1 2
L. de Jóias 4 1 5
L. de tintas 1 1
L. de louças 4 4
L. de máquinas 2 2
L. de móveis 1 1
Ferragens 2 2
Pensão 1 1 2
ñ identificados 1 1
Sapataria 5 1 1 7
Funilaria 3 1 4
Artesanato Entalhador 1 1
Fáb. de gasosa 1 1
Fáb. de chitas 1 1
Fáb. de calçados 1 1
Marceneiro 1 1
Fáb. de banha 1 1
Fáb. de café 1 1
Ferraria 1 1
Mármores 3 3
Ourives 1 1 2
Fáb. de coletes 1 1
Alfaiate 4 2 9 15
Fáb. de espartilhos 1 1
Modista 1 1
Cirgueiro 3 3
Tinturaria 1 1
Seleiro 2 2
Ofi. galvanizados 1 1
Ofi. consertos 2 2

291
Quando se olha a quantidade de pequenos negócios estabelecidos nesta rua,

percebe-se a existência de uma ampla dispersão de atividades de todos os tipos. Mas

também é possível notar que algumas delas localizam-se apenas em um segmento,

excluindo o outro: no primeiro estão a totalidade dos açougues, das padarias, dos

depósitos, bem como da fábricas de gasosa, chitas, calçados, banha, café, entalhador,

ferraria e marceneiro. No segundo estão a totalidade de restaurantes, confeitarias, lojas

de armas, de estofados e de móveis, tinturaria e ourives, bem como 80% das lojas de

jóias, ainda que ali estejam instalados, também, o total de cirgueiros, seleiros e oficina

galvanizada. O que se vê, portanto, é uma tendência daqueles negócios que visam um

consumidor com maior poder de compra se instalarem no espaço localizado mais

próximo à rua Marechal Floriano.

292
Da mesma forma, é na primeira parte da rua que estão localizados 80% das

tavernas e 66% dos botequins, lugares considerados de socialidades inadequadas,

conforme o discurso da imprensa.

Na rua Riachuelo foi possível separar três segmentos bem distintos: o


primeiro, composto por três quadras, vai do seu início, no nº 4, até a esquina da
Rua General Canabarro, no nº 116; o segundo, também formado por três
quadras, vai da esquina General Canabarro até a General Câmara, no nº 260;
finalmente, o terceiro que inclui duas quadras, inicia-se na esquina da General
Câmara indo até a Marechal Floriano. Neste caso, não houve nenhuma
sobreposição de números em segmentos diferentes, apenas números que se
repetiam em cada um deles, separadamente.

RUA RIACHUELO
Segmento 1 Segmento 2 Segmento 3 total
Açougue 4 7 11
Taverna 5 3 6 14
L. de couros 1 1
Comércio L. de Fazendas 2 4 6
E Quitanda 4 1 5
Serviços Padaria 1 1
Cigarraria 1 1
Pensão 1 1
Florista 1 1
Botequim 2 1 3
Barbearia 1 1
Armazém 1 1
Café 1 1
Sapataria 1 2 4 7
Funilaria 1 2 3
Marcenaria 1 1 2
Artesanato Armador 1 1
Retratista 1 1
Tamancaria 1 1
Ferraria 1 1
Chapeleiro 1 1
Alfaiate 1 1
Fáb. de selim 1 1
Fáb. de vidros 1 1

293
7

0
A ç ou g ue

L . d e F a ze n da s

C ig a rra ri a

B o te qu im

C a fé

Segmento 3
M a rc en a ria

T am an c ar ia

Segmento 1
A lf ai at e

O primeiro fato que chama a atenção é a concentração maior de atividades

artesanais no segundo segmento da rua: funilaria, armador, marcenaria, tamancaria,

ferraria, alfaiate e fábricas de vidros e selins.

O segundo ponto importante é que no terceiro segmento aparecem negócios bem

especializados que sugerem a venda de artigos destinados a um consumidor que pode

adquirir supérfluos: floristas, cigarrarias. Ao mesmo tempo, a existência de quatro lojas

de fazendas, o dobro das existentes no segundo segmento e o quádruplo das do

primeiro, apontam no mesmo sentido. O mesmo se pode dizer com relação às atividades

artesanais que, numa direção inversa decrescem em número em relação ao segundo. De

qualquer forma, o terceiro é também aquele segmento onde aparece o maior número de

294
tavernas que, como já se viu, relacionam-se à idéia de lugares perigosos, de práticas

moralmente condenáveis.

A rua Duque de Caxias é uma das que possui a numeração mais ordenada:

números pares de um lado (no norte) e ímpares de outro (no sul), estão em seqüência e

não se repetem. Mesmo assim, optou-se por distribuir as atividades por segmentos de

rua a fim de manter uma mesma linha de análise. Desta forma a rua foi dividida em três

seções: a primeira que se inicia na General Salustiano nos nos 4 e 5 e vai até a esquina

da General Canabarro, nos nos 107 e 120; a segunda começa nesta mesma esquina, e vai,

por um lado, até a esquina da General Auto, no no 191, e por outro, até a esquina da

Praça da Matriz no no 204. O terceiro segmento inicia-se, por um lado, a partir do prédio

da Assembléia Provincial e, por outro, a partir da própria Praça da Matriz e estende-se

até a esquina da Marechal Floriano nos nos 247 e 248.

RUA DUQUE DE CAXIAS


Segmento 1 Segmento 2 Segmento 3 total
Taverna 5 2 6 13
Quitanda 2 1 2 5
Comércio Açougue 2 1 3
e Padaria 1 1 2
Serviços Botequim 1 1
Café 1 1
Sapataria 3 1 4
Artesanato Armador 2 2
Funileiro 1 1

295
6

3
Tav er na
2
A ç ougue 1

Botequim 0

Sapatar ia

S egm ento 3
Funileir o S egm ento 2
S egm ento 1

Pelo que se pode inferir, não há nenhuma distinção espacial significativa entre o

primeiro e o terceiro segmento. Apenas no segundo é que se observa um pequeno

número de atividades econômicas acontecendo: 9,67 % do total. É provável que isto se

relacione ao fato de que aí seja o espaço preferencial para a moradia de famílias ligadas

a um grupo social e economicamente privilegiados. Lembremos que pelo menos, até a

metade do século XIX este era o espaço residencial preferido das famílias ligadas ao

poder Imperial. A lentidão característica das transformações ao nível imaginário permite

arriscar a hipótese de que tenha permanecido no imaginário social da época este sentido

que, de certo modo, parece manter-se até hoje.

A rua Fernando Machado foi dividida em dois segmentos. O primeiro estende-se

desde o seu início na esquina com a General Vasco Alves, no no 12 e vai até a esquina

com a Bento Martins, onde, por um lado da quadra vai até o n o 62 e, por outro, até o no

296
95. O segundo segmento estende-se desde aí quando a numeração continua do no 97, por

um lado, e 72, do outro, até a esquina da Marechal Floriano, onde a numeração atinge os

nos 166 e 297.

Ainda que a numeração não apresente uma correspondência numérica de


ambos os lados, os números estão em seqüência e, quando se repetem, estão
próximos, na mesma quadra, o que facilita sua localização. Além disto, há uma
separação em pares e ímpares a partir da segunda quadra da rua. Assim, foi
possível localizar todas as atividades econômicas nestes dois segmentos de rua.

FERNANDO MACHADO
Segmento 1 Segmento 2 Total
Quitanda 2 5 7
Comércio Botequim 1 4 5
e Açougue 3 3
Serviços L. de calçados 1 1
Taverna 1 9 10
L. de fazendas 4 4
Artesanato Sapateiro 1 1

O que se observou, foi uma concentração de atividades no segundo segmento:

81,81 % do total. O fato de que 90 % das tavernas e 100 % das lojas de fazendas

297
estavam localizadas aí, além da presença da única loja de calçados desta rua, também

sugere um espaço mais comercial que o primeiro segmento, onde situam-se apenas duas

quitandas, dois botequins, um açougue e uma taverna.

A rua Demétrio Ribeiro também apresenta um padrão de numeração seqüencial,

com os números pares por um lado (norte) e os ímpares pelo outro (sul). Ela foi dividida

em três segmentos: o primeiro inicia na Major Pantaleão Teles (números 2 e 9) e vai até

a General Canabarro (na última quadra deste segmento as edificações não estão

numeradas pelo lado par e, no lado ímpar, vão até o no 91); o segundo segmento vai

desta esquina (números 104 e 97) e estende-se até a General Auto nos números 180 e

165; o terceiro vai daí, até o final da rua na Coronel Genuíno.

RUA DEMÉTRIO RIBEIRO


Segmento 1 Segmento 2 Segmento 3 Total
Açougue 2 2 1 5
Taverna 4 5 5 14
Barbeiro 3 3
Comércio Botequim 2 4 6
E L. de fazendas 2 2
Serviços Depósito 1 1
Padaria 1 1
Quitanda 1 2 3
Café 1 2 3
Sapataria 1 2 3
Louça de barro 1 1
Funilaria 3 3
Artesanato Fáb. de charutos 1 1
Fáb. de 1 1
Vidraceiro
vassouras 1 1

298
5
4,5
4
3,5
3
2,5
2
1,5
1
0,5
0
Açougue

Bar bei ro

L. de f az endas

Padari a

C afé

Segm ento 3
Louç a de barr o

Segm ento 2
F áb. de charutos

Segm ento 1
Vidrac eir o

A diferença mais significativa encontrada aqui é a maior concentração no último

segmento, comportando 57,77 % das atividades comerciais.

A rua Pantaleão Teles, atual Washington Luiz, possui uma numeração invertida,

quando comparada às demais que correm longitudinalmente à península. Ela também

foi dividida em dois segmentos, que buscaram levar em conta as características da

própria rua e um padrão semelhante às demais ruas segmentadas. Assim, considerou-se

que o seu primeiro segmento é aquele que vai da Rua General Salustiano, no n o 251 até

a esquina da General Canabarro, no no 130. O segundo vai daí, até o no 1, na esquina

com a Coronel Genuíno.

No primeiro trecho da rua foram encontradas três tavernas e uma padaria


e no segundo três tavernas.

Do que se pode observar, a rua não possui nenhuma diferenciação significativa.

Parece estar configurado aqui uma área fundamentalmente residencial.


299
A rua 7 de Setembro foi dividida em dois segmentos, o primeiro que se inicia, de

fato, na esquina da General Bento Martins193 nos números 1, pelo lado ímpar, e 2, pelo

lado par (onde uma série de edificações dão fundos para o rio) e estende-se até a esquina

da General Canabarro nos números 103 e 72; o segundo vai desta esquina (nos números

76 e 109) e termina na Praça XV de Novembro, números 122 e 173.

RUA 7 DE SETEMBRO
Segmento 1 Segmento 2 total
Depósito 10 3 13
Armazém 7 13 20
L. Fazendas 16 16
Comércio Ferragens 3 3
E Drogaria 1 1
Serviços Taverna 1 1
Botequim 1 1
Miudezas 1 1
L. Louças 2 2
Pensão 1 1
Fáb. de 8 8
Fáb.
Banhade 1 1
Carpinteiro
Licores 1 1
Artesanato Latoeiro 2 2
Sapateiro 1 1
Serraria 1 1
Marcenaria 1 1
Fáb. de 1 1
Ferraria
Calçados 1 1

193
A rua tem seu início na Praça Martins de Lima, atual Brigadeiro Sampaio. Porém as duas quadras
iniciais não possuem numeração e incluem, entre outras edificações, o prédio do Arsenal de Guerra e
vários trapiches.

300
16

14

12

10

6
D epós ito

L. F az endas

4
D rogar ia

B otequim

2
L. Louç as

F áb. de B anha

0
C arpinteiro

S apateir o

S egm ento 2
M arc enaria

S egm ento 1
F er rari a

Esta rua apresenta, como pode ser observado no gráfico, uma forte distinção em

termos de atividades, quando comparamos os dois segmentos. O primeiro deles contém

a totalidade das atividades artesanais e 76,92 % dos depósitos. O segundo possui apenas

atividades comerciais, incluindo a totalidade das lojas de fazendas, as ferragens,

drogarias, miudezas e lojas de louça.

Tem-se aqui, portanto, o comércio tendendo às áreas mais próximas ao Mercado

Público Central.

A rua General Salustiano, na ponta da península, compunha-se de apenas duas

quadras, iniciando na esquina com a Rua dos Andradas e terminando na esquina com a
301
Duque de Caxias e no encontro com o Major Pantaleão Teles, fazendo frente com o

prédio da cadeia em sua segunda quadra. Assim, considerou-se desnecessária qualquer

divisão da rua. Na primeira quadra ela possuía uma fábrica de licores, uma quitanda e

uma ferraria. Na segunda, existiam uma cigarraria e duas tavernas. Considerou-se, por

isto, uma área de características residenciais dominantes, ainda que a existência da

cadeia ali pudesse ter tido alguma implicação no sentido atribuído ao espaço.

Possivelmente a cadeia tivesse uma influência depreciativa na visão que as pessoas

tinham dele. Na Gazetinha de 8 de novembro de 1891 (AHMV) lia-se que as meninas

que moravam na rua General Salustiano viviam ouvindo serenatas até a madrugada “isto

feito pelos presos...que das grades alegram a vizinhança”.

As ruas que cortam a península perpendicularmente foram todas divididas em

dois segmentos, o primeiro ao norte e o segundo ao sul, sempre tomando a rua Duque de

Caxias como marco divisor194.

Na rua Vasco Alves uma barbearia, um açougue e uma fábrica de cerveja

situavam-se no segundo segmento, ao sul, entre a Duque de Caxias e a Pantaleão Teles.

O primeiro segmento parece ter sido composto apenas por residências.

Na General Portinho, uma fábrica de café localizavam-se no primeiro segmento,

enquanto que no segundo situavam-se uma taverna e um botequim, aliás, no mesmo

prédio.

194
A Rua Duque de Caxias é utilizada como linha divisória na planta de 1895, que foi confeccionada em
folhas. Assim, sempre que foi possível, utilizou-se as divisões da própria planta para estabelecer a
segmentação das ruas , entendendo-se que elas deveriam estar ligadas às formas através das quais o
espaço era entendido na época.

302
Na General Canabarro, que possuía uma numeração totalmente caótica e que

incluía o trecho que hoje é a rua Cipriano Ferreira, possuía apenas uma quintanda e uma

ferraria em seu trecho norte. Ao sul não verificou-se nenhuma atividade econômica.

A Rua General Bento Martins possuía uma numeração bastante confusa. Inicia

na esquina com a Rua 7 de Setembro, pelo lado par (oeste), no no 2. A numeração ímpar

começa a partir da esquina com a Riachuelo, no no 1, quando o lado par já alcança o no

60 (que aliás repete-se, pois há uma edificação com este mesmo número na quadra

anterior). De qualquer forma, foi possível estabelecer que todos os números pares

menores que 92 encontram-se no primeiro segmento da rua, bem como os ímpares

menores que 37, já que é aí que a numeração chega ao atingir a Duque de Caxias.

RUA GENERAL BENTO MARTINS:


Segmento 1 Segmento 2 total
Taverna 3 1 4
Botequim 4 4
Açougue 1 1 2
Quitanda 1 1
L. de Fazendas 1 1
Sapateiro 3 1 4

3,5

2,5

1,5
1

0,5
0
T av erna

B otequim

A ç ougue

Q uitanda

S egm ento 1
L. de F azendas

S apateiro

S egm ento 2

303
Do que se pode perceber, as atividades econômicas localizavam-se
preferencialmente, no primeiro segmento de rua.

A Rua General João Manoel não foi subdividida já que seu final coincide com a

esquina da Rua Duque de Caxias. Nela existiram um açougue, duas tavernas, quatro

botequins, uma fábrica de cerveja, duas sapatarias e um funileiro.

Para o lado sul da península e quase em frente à João Manoel, está a Rua

General Auto, que também não foi subdividida por ter seu limite máximo na Rua Duque

de Caxias. As atividades encontradas ali foram um açougue e uma quitanda.

Na rua seguinte, seguindo a direção leste-oeste, na travessa Paissandu, atual

Caldas Júnior, existiam três botequins, dois açougues, uma quitanda, uma ferraria, um

hotel e um marceneiro.

A General Câmara também foi tratada em sua totalidade. Existiam ali três

armazéns, três sapatarias, uma loja de fazendas, uma oficina de mármores, uma taverna,

um hotel, um alfaiate, um torneiro , um marceneiro, um funileiro, um ourives e um

banho.

Na rua Espírito Santo, do lado sul da península, encontraram-se apenas um

açougue e uma quitanda.

A rua Marechal Floriano também apresenta, como a Duque de Caxias, uma

numeração em seqüência, com os pares do lado leste e os ímpares no oeste. A rua

estendia-se desde a beira do Rio, em frente à doca das frutas, onde iniciava a numeração

304
par (no 2), passava pela esquina da rua 15de Novembro195 onde, do lado oeste iniciava a

numeração ímpar (no 1) e estendia-se até a rua Coronel Genuído, onde terminava nos

números 284 e 169, respectivamente.

Diferentemente das demais ruas transversais à península, optou-se por dividi-la

em três segmentos distintos, em função do grande número de atividades presentes aí; o

primeiro tomando as duas quadras iniciais que possuem apenas números pares e que se

situam nas adjacências do Mercado e que incluem, portanto, os números que vão de 2 a

86196. O segundo segmento ficou estabelecido entre o no 88, na esquina da Rua 24 de

Maio197, por um lado, e o no 1, na esquina da Rua 15 de Novembro por outro,

terminando na esquina da Rua Duque de Caxias, nos números 242 e 153. O terceiro

segmento estendia-se daí até a esquina da Coronel Genuíno, nos números 284 e 169.

RUA MARECHAL FLORIANO


Segmento 1 Segmento 2 Segmento 3 total
Barbearia 1 1
Armazém 16 2 18
Jóias 2 2
Comércio L. de cousas 1 1
E Miudezas 6 6
Serviços Chapelaria 2 2
Florista 2 2
Tapeçaria 1 1
L. de máquinas 1 1
L. de calçados 1 1
Farmácia 3 3
Taverna 6 6
L. de Fazendas 3 8 1 12
Dep. Piano 1 1
Restaurante 2 2
Quitanda 2 2
Confeitaria 1 1
L. de couros 1 1
Bazar 1 1
Hotel 1 1 2
195
Atual José Montaury
196
Este segmento corresponde à atual rua denominada Praça 15 de Novembro
197
Atual Otávio Rocha

305
Cigarros 1 1
Ferragens 4 1 5
Armeiro 1 1
Alfaiate 10 1 11
Sapataria 8 1 9
Encadernação 2 2
Artesanato Marceneiro 2 2
Modista 4 4
Colchoeiro 2 2
Ferreiro 3 3
Ourives 1 1
Fáb. De 3 3
Armador 1 1
chinelos

B ar b ear ia

M iud ezas
20
L. d e máq uinas

L. d e F azend as 15

C o nf eit ar ia
10
C ig ar r o s
5
Sap at ar ia
0
C o lcho eir o Seg ment o 3

A r mad o r Seg ment o 1

A diferenciação espacial, aqui, é obvia: o primeiro segmento, no entorno do

Mercado, possui atividades ligadas diretamente ao comércio de gêneros, vendendo por

atacado e a varejo. Entre outras menos expressivas, três lojas de fazendas ainda

integram este segmento, além de quatro ferragens. Ou seja, é um espaço marcado pelo

grande comércio.

O segundo segmento é o do comércio a varejo e, conforme indicam alguns

estabelecimentos, voltados a grupos com alto poder de compra: jóias, florista, tapeçaria,

depósito de pianos, confeitaria, restaurante e, ainda, encardenações. Mas não significa

que seja um espaço exclusivo destes grupos: há, também, tavernas, ferreiro e

306
marceneiros. De qualquer forma, é um espaço que se diferencia dos outros: este

segmento é o que possui mais atividades econômicas, computando 74,10 % delas. O

terceiro segmento possui apenas três atividades econômicas (2,68 % do total), o que lhe

confere uma feição mais residencial: uma loja de fazendas, um alfaiate e uma sapataria.

Além disto, aqui a densidade de edificações é menor em relação aos demais segmentos.

A rua Jerônimo Coelho não foi segmentada. Verificou-se que ali só haviam um

botequim, uma taverna e um açougue.

Por fim, a rua Andrade Neves, que também não foi segmentada em função de

suas dimensões (apenas duas quadras) mostrou uma grande intensidade de atividades:

35 estabelecimentos voltados para atividades comerciais ou de serviço (62,5% do total)

e 21 voltados para atividades artesanais (37,5%)

Rua Andrade Neves: atividades econômicas

Loja de Fazendas 15
Botequim 7
Hotel 3
Taverna 5
Quitanda 1
Açougue 1
Depósito 1
Pensão 1
Funilaria 1
Sapateiro 7
Colchoeiro 1
Torneiro 2
Fábrica de Café 1
Marceneiro 9

Com isto é possível perceber algumas áreas que mostram uma clara tendência à

diversificação. O comércio de gêneros ficou concentrado no Mercado Público, apesar


307
do grande número de quitandas e açougues que se espalhavam por toda área central da

cidade. Os armazéns, as lojas de fazendas, o grande comércio, antes centrado nas

imediações da Praça da Alfândega, também se transferiram para o entorno do Mercado.

O comércio que visava os grupos sociais mais abastados localizou-se, por sua

vez, naquela área mais próxima à rua Marechal Floriano.

A rua Duque de Caxias funcionou, efetivamente, como um divisor de áreas,

tanto no nível do imaginário social, expresso na própria divisão da planta cadastral de

1895, como no nível da prática: dos seus limites para o sul localizaram-se as áreas mais

residenciais (e de residências mais simples, como vimos no capítulo 2); para o norte, as

ruas passam a comportar inúmeras atividades econômicas.

Os becos, as ruas transversais às principais, também aumentam o número de

atividades econômicas na altura da rua Bento Martins em direção à rua Marechal

Floriano.

Assim, não restam dúvidas que há uma importante diferenciação espacial


ocorrendo na cidade. Mas é importante juntar a esta constatação uma outra, não menos
importante: tavernas, botequins e hotéis, lugares tidos como de sociabilidades
condenáveis, estão espalhados por todas as áreas do centro.

Ainda que houvesse um grande esforço para varrer cortiços e pobres da área

central, ao mesmo tempo que parte do grupo social mais rico procurava afastar-se dali

indo construir suas residências nos arraiais, a verdade é que o centro da cidade é, neste

fim do século XIX, uma paisagem composta por múltiplas expressões de grupos

308
socialmente distintos que se misturavam ali. Muitos ricos continuavam morando em

suas belas, grandes e elegantes casas, junto a pequenas edificações de porta e janela e,

mesmo, junto aos cortiços que por ali proliferavam.

Casa localizada no início da rua Riachuelo


Foto de Virgílio Calegari – Final do século (FSB - MJJF)

309
Sobrado e Casa Térrea localizados no início da rua Riachuelo
Foto de Virgílio Calegari – Final do século (FSB - MJJF)

À primeira vista, trata-se de uma situação paradoxal: comerciantes, artesãos,

intelectuais e mesmo o “escol” da sociedade portoalegrense viviam em suas casas

erguidas lado a lado às do “Zé Povinho”. Dividiam ruas e praças com eles e, mesmo,

310
com a “escória” dessa sociedade. Olhavam as mesmas vitrines (uns compravam, outros

não, é certo), viviam num espaço compartilhado (tudo muito incômodo, é verdade). O

discurso burguês, por um lado bradava: ordem, estética, moral e higiene198 (entenda-se,

sobretudo, separar o que estava misturado), discriminava grupos sociais, estigmatizando

o negro em sua condição de ex-escravo, identificando a pobreza com doença física e

moral. De outro, gritava: todos os homens são iguais sem distinção de raça,

nacionalidade, religião, etc., o trabalho enobrece (mudança de perspectiva199 que vinha

junto à formação de um mercado de mão-de-obra livre) e outros valores caros e

exaltados pela ordem burguesa.

Na verdade, este discurso que, a princípio, parece ser tão incongruente e

contraditório, não o é. E algumas pistas levam a que se pense assim.

A reformulação da estrutura urbana foi um fenômeno comum ao mundo

ocidental do século XIX e esteve associada às idéias de modernidade presentes no

imaginário social da época. Os modelos urbanísticos surgidos neste período “devem ser

entendidos, principalmente, como concepções de cidade idealizadas no imaginário

social, segundo matrizes que representavam as aspirações da vida urbana moderna

vigentes em cada contexto” (BELLO, op.cit:47) O modelo Haussmanniano200 foi uma

referência para inúmeras cidades da Europa e da América. Através de um discurso

higienista, o modelo

propunha “ampliação do espaço aberto e incorporação de áreas verdes” (Idem:48),

bem como enfatizava a importância da adoção de novos equipamentos urbanos e uma

198
Sobre isto ver o jornal A Gazetinha.
194 É bom recordar que até algum tempo não havia homem livre disposto a carregar suas próprias
compras.
200
O modelo Haussmanniano foi uma expressão do racionalismo acadêmico francês adotado no projeto
de configuração de Paris na segunda metade do século XIX (BELLO, op. cit:47).

311
nova estrutura viária que adequassem funcionalmente a cidade, além de enfatizar a

questão estética (Ibidem). Neste sentido, também Porto Alegre inseriu-se num amplo

processo ligado à emergência de uma ordem social burguesa que demandava um

reordenamento da cidade segundo os novos valores surgidos no bojo deste processo e

que, pouco a pouco, consolidavam-se no imaginário social. E como em outras cidades,

em Porto Alegre, “o Ecletismo foi a linguagem adotada para a articulação de um novo

cenário” (Ibidem).

Ainda que muitos aspectos ligados a este modelo pudessem ser vistos no final

do século XIX, como ajardinamento de praças, introdução de uma série de

equipamentos urbanos (iluminação, abastecimento de água, linhas de bondes, etc.),

utilização da linguagem eclética nas fachadas dos prédios mais ricos, etc., é preciso

observar um outro lado da questão. O caso da ordenação do espaço expresso na

identificação das ruas com nomes de generais, marechais, major, etc., resultante (os

nomes) da vitória da República e dos militares, e na numeração das casas, merece ser

examinado. Ele nos indica que os espaços da cidade ainda não haviam sido, na prática,

no final dos oitocentos, reordenados na mesma medida em que os discursos

proclamavam esta reordenação. Assim, conforme já foi dito antes, a numeração dos

prédios do centro da cidade era absolutamente caótica em muitas ruas. No final do

século, tentar encontrar uma casa através do nome da rua e do seu número, sem possuir

nenhuma outra informação, devia ser um exercício muitas vezes destinado ao fracasso.

A própria denominação das ruas continuou sendo, na prática, realizada como

no período anterior, ou seja, dada em função da lógica de relações e de valores sociais.

Coruja faz inúmeras menções ao empenho da “edilidade” em nomear as ruas . Estes

nomes costumavam permanecer “somente nos arquivos da Câmara, e depois nos

312
letreiros das esquinas” (Coruja, op. cit.: 16) e os moradores da cidade sempre

ignoravam. É o caso da Rua da Praia, que sempre foi (e é) chamada de Rua da Praia,

ainda que seu nome primitivo tenha sido rua da Graça e depois Andradas (Idem.: 31). É

também o caso da Praça da Alfândega que denominou-se Praça Senador Florêncio em

1883 e, por nunca ter sido chamada assim, tornou-se novamente Praça da Alfândega em

Lei Municipal de 1979 (Franco, 1998: 23). A rua Marechal Floriano foi conhecida como

rua de Bragança ou do Bragança até meados do século XX e a rua do Rosário (Vigário

José Inácio) ainda é chamada assim por alguns. E o que dizer da Praça da Matriz?

Alguém lembra que seu nome é Marechal Deodoro?

Isto tudo aponta para um momento em que a ordenação e a classificação dos

espaços misturavam uma tendência à racionalização, à separação e ao estabelecimento

de fronteiras mais rígidas a uma lógica relacional que unia e hierarquizava os espaços.

“Nunca é demais lembrar que os anos iniciais da República constituem um período

particularmente conflituoso, onde as mudanças sociais e culturais não permitem ainda

que se fale em interesses de classe homogeneamente definidos”(Mauch, op. cit: 20).

Assim, a lógica do fim do século é esta: algo que poderia ser expresso como

uma combinação de códigos múltiplos que incluem a racionalidade própria do mundo

moderno e burguês201 e uma forma de classificar o espaço que coloca em relevo

relações e valores sociais característicos de um período dominado por uma sociedade

senhorial e escravista.

201
Esta racionalidade encontrou canais de expressão na ciência através de Darwin, Marx, Comte e outros.

313
314
315
Planta Cadastral de Porto Alegre – Breton 1881

316
Planta Cadastral de Porto Alegre de 1895: folha 3

317
Planta Cadastral de Porto Alegre, 1895: folha 4

318
Planta Cadastral de Porto Alegre, 1895: folha 5

319
CONSIDERAÇÕES FINAIS:

A problemática proposta no início deste trabalho relacionou-se à possibilidade

de descobrir as diferentes formas através das quais se deram a estruturação, ordenação e

articulação do espaço urbano na área central de Porto Alegre, e as regras que lhe eram

subjacentes, no transcorrer do século XIX, tendo em vista as transformações na ordem

econômica e social aí ocorridas.

A análise daquilo que se convencionou chamar aqui de lugares – unidades

arqueológicas levantadas e outros locais reconhecidos através do registro histórico –

evidenciou que importantes modificações na cultura material ocorreram nesta área e

neste período. A espetacularização da cidade foi a grande nova da ordem burguesa.

Largos tornaram-se praças, fontes viraram chafarizes, ruas foram iluminadas, fachadas

de casas foram adornadas. Mas a velocidade dessas transformações foi substancialmente

diferente, dependendo de onde se processava: elas começaram a ocorrer nos lugares

mais públicos ainda no terceiro quartel do século XIX, atingem as fachadas das casas

mais ricas no final do século e o interior dessas casas e as fachadas daquelas ligadas a

grupos sociais mais pobres, apenas nas primeiras décadas do século XX.

As fachadas foram tratadas em termos de um canal de comunicação não-verbal

que informaram não apenas status, mas também valores dos grupos sociais ligados a

elas.

A aparência sóbria das casas coloniais foi sendo modificada, com a adição de

elementos decorativos às fachadas, junto com um processo de transformações nas

320
estruturas da sociedade que resultaram na alteração dos grupos que detinham o poder

econômico e político. Durante o período colonial e até o final do Segundo Império,

quando poder econômico e político e a posição social eram dados pela propriedade de

escravos e por laços de sangue, a comunicação não-verbal, realizada através das

fachadas das casas, expressava-se, fundamentalmente, através do seu tamanho.

O neoclássico, introduzido no Brasil com status de estilo arquitetônico oficial

da Coroa, restringiu-se, em Porto Alegre, à utilização de alguns elementos nas fachadas

de casas ligadas a grupos sociais diversos: aparece nos sobrados mais comerciais,

próximos ao Mercado, em casa térreas localizadas mais na periferia do centro e em

assobradado junto à Praça da Matriz. Ele foi, sem dúvida, mais importante nos prédios

públicos.

O eclético deliberado parece ter sido a expressão da burguesia em busca de

afirmação social e política frente aos demais grupos. Além de status econômico, as

fachadas comunicaram valores estéticos deste grupo, bem como uma nova visão de

mundo e de formas de viver, que incluíram uma outra concepção de casa e de cidade,

diferente da que existia até então.

A análise dos espaços mostrou que a cidade do início do século possuía uma

diferenciação espacial diversa daquela que ocorreu no final dos oitocentos. Nas ruas,

nas praças, nas igrejas, misturavam-se grupos sociais diversos e atividades também

diversas. Casas ricas conviviam com casas pobres e as casas destinavam-se tanto à

moradia quanto a outras atividades, que incluíam o comércio no andar térreo dos

sobrados. Nas ruas e igrejas à presença constante de senhores e escravos, comerciantes

321
e quitandeiras, nobres e prostitutas, se contrapunham diferenças sociais altamente

marcadas que estabeleciam limites e fronteiras. A proximidade física favorecida desta

maneira desencadeava relações sociais que, num processo aparentemente contraditório,

marcavam um sistema fortemente hierarquizado. A ênfase colocada na importância das

relações pessoais, ao lado de uma hierarquia social rígida configurava uma lógica que,

ao mesmo tempo que unia, diferenciava, e que igualava, excluía.

As atividades, dificilmente separáveis em áreas físicas, marcam espaços

diferenciados no imaginário da cidade. Elas são discriminadas nas representações

coletivas, não no espaço concreto. A lógica subjacente é, conforme procurei demonstrar,

uma lógica relacional.

A cidade do final do século se transformou: houve uma forte tendência à

separação de atividades em áreas físicas e uma marcante especialização de lugares. Aí

não se vendia tudo em armazéns, como antes, havendo lojas de fazendas, de roupas, de

jóias, etc. Havia lugares para ricos e para pobres: restaurantes e tavernas, confeitarias e

botequins. Havia sobrados, assobradados e casas de porta e janela (e, muito

provavelmente, casas de madeira e outros materiais menos nobres que não sobreviveram

ao passar do tempo). Havia, também, uma tendência a estes lugares apresentarem

concentrações, conformando áreas diversificadas. Assim, o comércio destinado a

consumidores com maior poder de compra concentrou-se entre a Praça da Alfândega e a

rua Marechal Floriano. É neste espaço que aparece, também, uma maior concentração

de edificações remanescentes do século XIX, na forma de sobrados. Os assobradados,

residências mais ricas, concentram-se no entorno da Praça da Matriz, onde as atividades

comerciais e artesanais são mais raras. Da mesma forma, as casas de porta e janela estão

322
localizadas mais à sudoeste de península, onde as atividades econômicas também são

em menor número. No entanto, existem lugares que foram compartilhados por vários

segmentos sociais, especialmente as ruas e praças.

Como se tentou demonstrar, apesar de ter ocorrido, neste final de século, uma

clara tendência a diferenciar espaços numa lógica racional, há, ainda, uma clara mistura

de coisas: sobrados de famílias importantes ao lado de simples casas térreas,

restaurantes freqüentados pelo “escol” da sociedade em frente a um lugar onde a

prostituição se realizava ( na Praça da Alfândega), sirgueiro junto à loja de jóias, apenas

para citar alguns exemplos.

A par disto, não se pode esquecer também que a Porto Alegre do fim do século

XIX era uma cidade onde o capitalismo industrial não havia se instaurado plenamente.

Pelo contrário, com uma indústria incipiente, o capital predominante era o comercial. A

grande quantidade de oficinas existentes, classificadas na época como fábricas, mostra

que um número significativo de pessoas detinha seus próprios meios de produção e, a

julgar pelos livros de impostos, essas atividades possuíam um peso considerável na

economia da cidade.

Tudo isto vai no sentido de demonstrar que subjacente a esta estrutura espacial e

a esta ordenação dos espaços, estava uma lógica que combinava dois códigos, que não

se excluíam mas, antes, se complementavam. A lógica e a racionalidade típicas de uma

sociedade moderna e burguesa não era, portanto única. Neste sentido, o estudo do

espaço, tomado da perspectiva da cultura material, possibilitou observar a sociedade

através de suas ações que acabaram, em última instância, afetando o mundo material. O

323
registro histórico aponta para a existência de um espaço reordenado, enfatizando a

ordem, a racionalidade e a separação. Este é o discurso registrado nos jornais e no

Código de Posturas. A materialidade do espaço e muitas representações coletivas

apontam em outra direção.

O espaço da área central de Porto Alegre sofreu muitas mudanças durante o

século XIX. Em cada momento ele nos fala da vida das pessoas que o criaram e que o

viveram e praticaram. Pense-se, por exemplo, no Largo da Forca, transformado em

lugar de alegres passeios de famílias, com rapazes e moças enamorados a brincarem

num rinque de patinação e, depois, transformado em ponto de encontro de poetas,

jornalistas e escritores.

A importância de reconhecer as categorias através das quais as pessoas

classificavam seu mundo, está na possibilidade de, assim, reconhecer diferenças que

não seriam visíveis se impuséssemos as nossas próprias categorias fundadas em uma

experiência cultural particular. Só assim podemos deixar de ver com um certo

sentimento de quem acaba de ouvir uma piada e com grande sensação de superioridade,

a história da fonte, do cágado e da sentinela. Ela não é uma piada. Na verdade, trata-se

de um pequeno drama cotidiano de uma sociedade que, a sua maneira, construiu sua

forma de viver entre várias possíveis.

De outra perspectiva, a pesquisa arqueológica urbana possui uma importância

fundamental, principalmente em cidades como Porto Alegre marcadas, ainda, por

percepções que identificam patrimônio à grandiosidade. O trabalho que se desenvolveu

procurou afastar esses aspectos, voltando-se para o comum, o habitual, àquelas coisas

324
que compuseram o cotidiano dos habitantes da cidade no passado e com as quais

convivemos, agora ressignificadas, no nosso dia a dia. Procurou-se mostrar como não só

os grandes prédios públicos ou os belos solares tem importância enquanto testemunhos

do passado e que uma pequena casa de porta e janela, ou mesmo um estacionamento

onde outrora existiu uma habitação, podem conter riquíssimas informações, possuindo

um valor documental que precisa ser reconhecido. Esta colocação possui fortes

implicações não apenas do ponto de vista científico, mas principalmente no que tange às

tomadas de decisões que envolvem o planejamento urbano e as políticas culturais.

Por outro lado este trabalho pretendeu ser um ponto de partida para a realização

de futuras pesquisas arqueológicas nesta área da cidade. É de conhecimento geral que as

instituições de pesquisa são chamadas a atuar na realização de alguma intervenção

arqueológica, quando as unidades necessitam restauração ou serão alvo de alguma obra

que poderá resultar em sua total ou parcial destruição e quando as obras já se

começaram. Com alguma sorte, quando estão iniciando. Isto dificulta qualquer tipo de

pesquisa preliminar, obrigando o arqueólogo ao imediato trabalho de salvamento.

Assim, esta pesquisa buscou, de alguma forma, fornecer subsídios a estas futuras

intervenções. Para isto, houve a preocupação em levantar uma série de dados sobre as

unidades arqueológicas, que incluíram proprietários, reformas, atividades econômicas

realizadas, data mais remota de ocupação do lote, entre outras informações que,

eventualmente, foi possível encontrar.

Acredita-se que, com isto, é possível partir de elementos que favoreçam avaliar

de forma criteriosa as áreas que devam merecer uma investigação mais profunda, ou

325
quais devam ser prioritárias, levando em conta os diversos objetivos que podem pautar

uma pesquisa.

Durante o trabalho de levantamento de unidades arqueológicas, em campo,

registrou-se um grande número de terrenos e estacionamentos que evidenciavam

vestígios materiais do século XIX sem que, no entanto, possuíssem fachadas. Eles não

fazem parte deste trabalho, mas foram registrados considerando-se sua grande

importância para a realização de estudos futuros, e integram uma pesquisa que vem

sendo feita pelo Museu Joaquim José Felizardo, sob a coordenação da arqueóloga

Fernanda Tocchetto. Os critérios de seleção destas unidades foram, portanto, diferentes

daqueles empregados aqui e o levantamento visou, sobretudo, avaliar o potencial

arqueológico de cada unidade. Pelo seu grande interesse e importância, anexei as fichas

a este trabalho, com a devida autorização dos demais pesquisadores envolvidos nele.

A paisagem urbana de Porto Alegre assumiu feições diferentes que foram

próprias a momentos específicos de um processo histórico. Essas diferenças são visíveis

tanto nas unidades arqueológicas levantadas, que evidenciaram mudanças morfológicas

e funcionais, quanto na ordenação dos espaços da área central da cidade. A decoração

das fachadas das casas, a fisionomia de praças e ruas, as funções dos lugares, as relações

entre eles, a configuração dos espaços, tudo isto foi sendo modificado no transcurso do

século XIX, ao mesmo tempo que os sentidos atribuídos a lugares e espaços também

mudavam.

A paisagem modificou-se pelas relações recíprocas entre ela, indivíduos e a

sociedade, conjugando ações e reações intencionais e incidentais.

326
No processo de transformação de uma sociedade senhorial e escravista para

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