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Por Si Só

Eu quando escrevo me atrevo a dizer o que jamais diria.


Por vezes sendo direto, curto e grosso,
Por vezes fazendo do obvio secreto e deixando por debaixo da poesia alguns bons alfinetes.

Eu quando escrevo vou do frevo ao erudito.


Somos feitos de um tudo, certo?
Do estranho ao normal, do feio ao bonito, passeio entre aquilo em que somente eu acredito e o que a
todos parece concreto.

Eu quando escrevo posso ser até um tanto quanto esquisito, indiscreto.


Não me limito, as palavras têm força demais.
Sem compromisso nenhum, sequer com a paz, com elas construo, destruo e refaço cada verso e
cada passo de minha vontade.

Escrever não cabe dentro da nossa vaidade,


Não é sobre beleza, grandeza ou qualquer um desses frágeis mitos.
Independe de meios, métodos, normas, ritos. É buscar a si mesmo e dar de cara com o mundo.

Escrevendo ponho meus planos num plano segundo.


Mergulhando profundo em mim, em você (sim, você) e em tudo que há entre nós.
Bebendo da água do rio na fonte, discorro pelos montes até dar foz.
Voz, seja sob os muros do país ou na cuca feroz dos bêbados no centro da cidade

Eu quando escrevo
Não tenho nome, jeito, cor, ou idade.
Não sou nada, um pedaço de gente, um quase ninguém.
Quando escrevo me anulo, contente, feliz e satisfeito.
Me entrego de todo aberto o peito, sou sujeito refém.
Não do mal, não do bem,
Nem de mim…
Da verdade.

CONTIGO

Se eu pudesse ter um momento puro de felicidade,


Um genuíno, por mais que ligeiro, instante de vida
Suspiro fino e último de paz plena,
Um sincero lapso de verdade absoluta, inconteste,
Eu te reservaria.
Contigo é que gostaria de estar.
Lá, quando e onde o véu que nos impede se rasga
E é possível que vejamos a realidade propriamente dita
E que façamos na realidade propriamente dita
Algo de novo.
Eminente

Sua boca intrometida


Me beija.
Mesmo caso não queira,
Me beija.
Eu sinto.
Sinto seus lábios,
Bonitos,
A cada vez que reparo no que são:
Bonitos.
Inevitavelmente bonitos e intrometidos.
Sobre minha pele,
Nunca me tocando de fato,
Nunca contra os meus,
Mas de algum modo sobre minha pele,
Os seus beijos,
Muitos e macios.
Os seus beijos.
Maldita boca intrometida.
E bonita.
Fixo os meus olhos,
Despretensiosamente,
Fixo, admiro, odeio e sinto,
Do seu gosto à sua textura;
Do cheiro de seu rosto à respiração que sopra o meu.
Confortáveis lábios,
Os sinto de um jeito que me incomoda.
Nunca me tocando de fato.
Saio de perto de você.

Mármore, Bronze, Ouro, Pedra.

Bonito...
Bonito!
Firme,
Forte,
Fino,
Rico,
Farto.
Aí parado,
Me olhando de cima para baixo!
Imponente e invejável.
Ereto,
Duro,
Rígido,
Engessado.
Diante de meus olhos sensíveis:
Engessado.
Uma bela obra.
Insuperáveis curvas;
Divinos traços do seu rosto;
Inegável corpo teu.
Corpo, corpo, corpo.
Engessado.
Instigante a primeira vista,
Mas sem gesto algum,
Incólume.
Coisa estática!
É como se estivesse preso dentro de si mesmo,
De modo que não brilham mais os seus olhos.
Nem se arregalam ou enxergam em volta,
Os seus olhos.
Secos,
Ocos,
Sem sinal de vida, o semblante.
Belo,
Belo semblante
Sem sinal de vida.
Sem afeto,
Sem carinho,
Sem carinho?
Fria pele sem arrepios,
Deliciosos músculos sem descanso,
Os desejáveis músculos teus,
Sempre erguidos,
Montados, armados,
De prontidão e disfarce.
Ao seu dispor.
A minha submissão.
Sem movimento,
Sem o o suor necessário,
Coração sem ritmo.
Lindo,
Bem feito.
Bonito,
Muito bonito!
Inquestionavelmente!
Ponho na estante, exibo às visitas e saio à rua, a procura do que realmente me apetece.

Demiurgo

Tudo me transforma.
Da comida que como a roupa que visto.
Das coisas que falo as que escuto em silêncio.
O que faço, o que disfarço o que calo, o que penso:
Tudo me transforma.
Até mesmo aquilo a que resisto.
Quando em permanecer o que sou insisto
Sou transformado também.
E sequer o meu pedante desdém
Me mantém das forças do mundo a salvo.
Das mudanças do tempo sou inevitável alvo,
Das andanças da vida um refém.
Tudo se transforma.
E a minha rígida forma
Forjada em leitura conversas festas e ócio
É frágil como uma taça
Que cedo ou tarde estilhaça
E no chão se termina em cacos de vidro.
Derramado vinho, vermelho líquido
se assemelha e se mistura ao sangue que agora brota corrente.
O mantive em meu cerne, vistoso e retinto,
Contente, o levei as mais sábias e proféticas bocas.
Hoje corto as mãos de quem saudoso me colhe.

Antes Mesmo A Burrice

Não devo me dar ao luxo de estar a sós comigo mesmo.


Não devo.
Pois não me aguento, não arredio,
Não escondo de me mim mesmo um piu e de repente me digo tudo aquilo que eu não poderia saber.
Não devo me dar luxo de estar a sós comigo:
Comigo, sou eu e, sendo eu, sou eu feliz de verdade!
Não me privo de sentir o já quase perdido e delicioso sabor da liberdade e negligente me esqueço
que tenho mais a fazer.
Não devo me dar ao luxo de estar as sós comigo.
Não devo!
Pois me dando, me entrego e me entregando não aceito voltar atrás.
Não reanimo, não repenso, não me convenço de nada mais e quando forçosamente à vida retomo, já
não mais vale viver.
Não quero, nem devo querer
Me dar ao luxo de estar a sós, comigo,
Pra depois me mandar embora outra vez
Me gritar, me renegar, me esconder,
Me pôr de castigo?
Se sou obrigado a estar sempre com estas desconfortáveis roupas
Prefiro não experimentar a nudez.
Se sou coagido a manter calada a boca
Prefiro nunca sequer ouvir minha própria voz.
Não quero, não devo querer!
Me dar ao luxo de estar comigo a sós
E assim me sentir vivo como com nenhum outro alguém
Pra depois me matar,
Ser de eu mesmo, um frio assassino
E arrastar pelos dias, torpe, mais um cadáver podre, decompondo-se dentro de mim.
Junto a mim.
Ficando então, eu, outra vez mal.
E assim, finalmente, parecendo estar bem.
Não posso me dar ao luxo de estar a sós comigo.
Pra Fora Os Fatos, Tripas-Coração.

Saiu da minha boca


Antes que eu pudesse tapá-la.
Saiu fatídico e proeminente.
Quente e rasgante.
Saiu de dentro.
Do esôfago,
Do estômago,
Da alma.
Saiu!
Fluido e pecaminoso.
Sujo.
Manchou sua blusa?
Não peço perdão.
Encharcou seu cabelo?
Não peço perdão.
Impregnou tua pele?
Não peço.
Tinha que sair!
Me envergonhou,
Mas tinha que sair!
Me arrependeu,
Me deprimiu,
Mas, contraposto e direto
Tinha que sair.
Saiu.
Nojento!
Repugnante!
Realista.
Botei tudo pra fora.
Com os remédios que me deram.
Botei tudo pra fora!
Os sapos que engoli...
Regurgitei.
Os dedos apontados de vocês enfiei goela a dentro
E com todo desconforto,
Com toda dor que senti,
Com todo sangue,
Regurgitei.
Fluidos, restos e caroços,
Pedaços podres.
De mim.
E de vocês que, dentro de mim, me adoeciam
Devolvi!
Com todas as forças de minhas entranhas
Finalmente devolvi!
Com todo o amargor que senti na língua,
Com toda mágoa que mastiguei,
Jorrei!
De toda a boca!
Vomitei!
Em cima de mim,
Em cima do mundo!
Vomitei!
Minhas tripas,
Meus nervos,
Meus miolos,
Sujando o chão limpo das perfeitas casas de vocês...
De mim saiu tanta coisa,
Tive medo, confesso.
Teria eu atingido o ápice do problema?
Teria eu chegado ao temido estado irreversível?
Quem me ajudaria depois de tamanha exposição?
Quem se aproximaria de mim?
De mim saiu tanta coisa.
Absorto, pensei.
“Não me resta senão o estranho vazio que agora sinto”
Nada disso.
Logo pude me preencher de novo.
Dessa vez, somente daquilo que me faz bem.

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