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CLIFFORD GEERTZ

O trabalho do antropólogo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Reitor
João Carlos Salles Pires da Silva

Vice-Reitor
Paulo Cesar Miguez de Oliveira

Assessor do Reitor
Paulo Costa Lima

Editora da Universidade Instituto de Humanidades, Artes


Federal da Bahia e Ciências Professor Milton Santos
(IHAC)
Diretora
Flávia Goulart Mota Garcia Rosa Diretor
Messias Bandeira
Conselho Editorial
Alberto Brum Novaes
Programa Multidisciplinar de Pós-
Angelo Szaniecki Perret Serpa
Graduação em Cultura e Sociedade
Caiuby Alves da Costa
(Pós-Cultura)
Charbel Ninõ El-Hani
Cleise Furtado Mendes Coordenador
Evelina de Carvalho Sá Hoisel José Roberto Severino
José Teixeira Cavalcante Filho
Maria do Carmo Soares de Freitas Vice-Coordenadora
Maria Vidal de Negreiros Camargo Gisele Nussbaumer

Indicação da publicação
Edilene Matos

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Roberto Malighetti

CLIFFORD GEERTZ
O trabalho do antropólogo

tradução de

Sebastião Moreira Duarte

Salvador
EDUFBA
2019

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©2008 De Agostini Scuola SpA – Novara
1ª edição italiana: abril 2008
Propriedade literária reservada

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte do material protegido por este copyright
poderá ser reproduzida de alguma forma sem a autorização escrita do Editor.

2019, Roberto Malighetti.


Direitos para esta edição cedidos à Edufba.
Feito o Depósito Legal.

Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


em vigor no Brasil desde 2009.

PROJETO GRÁFICO Igor Almeida


REVISÃO E NORMALIZAÇÃO Tikinet
FOTO DA CAPA Cecília Tamplenizza

Sistema Universitário de Bibliotecas - UFBA


Malighetti, Roberto.
Clifford Geertz : o trabalho do antropólogo / Roberto Malighetti, tradução
de Sebastião Moreira Duarte. - Salvador : EDUFBA, 2019.
269 p.

Título original: Clifford Geertz: lavoro dell’antropologo, 2008.


ISBN 978-85-232-1929-1

1. Geertz, Clifford, 1926-2006. 2. Hermenêutica. 3. Antropologia - Filosofia.


4. Etnologia. I. Duarte, Sebastião Moreira. II. Título.

CDD - 301
Elaborada por Evandro Ramos dos Santos CRB-5/1205

Editora afiliada à

Editora da UFBA
Rua Barão de Jeremoabo
s/n – Campus de Ondina
40170-115 – Salvador – Bahia
Tel.: +55 71 3283-6164
www.edufba.ufba.br
edufba@ufba.br

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Em memória de Sérgio Figuereido Ferretti,
ilustre antropólogo, grande homem e bom amigo.

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Nota do tradutor

***

A edição brasileira deste livro de Roberto Malighetti apresen-


ta-se sem o prefácio e o posfácio do original italiano, e nele fo-
ram feitas, pelo próprio Autor, pequenas supressões, alterações
e acréscimos em relação ao texto-base.
O trato das citações merece específica explicação: em respeito
aos tradutores brasileiros/portugueses de Geertz, e para que não
circulem versões diferentes da mesma obra, tivemos o cuidado de
transcrever, das traduções existentes em vernáculo, as passagens
utilizadas por Malighetti neste livro. (Será preciso advertir que,
das obras do Antropólogo estadunidense traduzidas para o por-
tuguês, algumas não trazem a íntegra da edição original).
Assim, quando neste livro for encontrada, por exemplo, a
referência (Geertz, 2000, p. 21 [30]), entender-se-á que remete à
obra que tem entrada com nesse nome e número na Bibliografia,
os números em colchetes assinalando a respectiva página da tra-
dução em português, que também aparece na lista bibliográfica.
Esse esforço, Autor e Tradutor quiseram estendê-lo, em tra-
balho conjunto, aos demais títulos de obras estrangeiras postas
em italiano. Algo feito nesse sentido, mas interminável a tarefa,
ou mesmo irrealizável, teve o Autor, ainda assim, o cuidado de
enviar ao Tradutor, para confronto, a transcrição do original de
alguns trechos citados, o que nos trouxe certa comodidade em
crer que resultará atenuada e, assim esperamos, tolerada, pela
benevolência dos leitores e leitoras, a traição que se verifique
nas páginas que seguem, inerente a empreendimentos da espécie.

S. M. D.

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Sumário

Introdução .11

CAPÍTULO I
A Antropologia Pós-Moderna

A crise dos fundamentos .39


Ciências naturais e ciências humanas .51
Metáforas lúdicas, dramáticas e textuais .60

CAPÍTULO II
A Ciência da Ação Simbólica

Sob o ponto de vista dos nativos .75


O espectro na máquina .90
A ciência empírica das ideias .97

CAPÍTULO III
O Círculo Hermenêutico

Ficções .105
Subjetivismo e objetivismo .114
Do ponto de vista do antropólogo .124

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CAPÍTULO IV
Autoridade, Autorização, Autor

A ironia etnográfica .141


O problema da assinatura .150
O antropólogo como autor .164

CAPÍTULO V
O Papel do Antropólogo

O conceito semiótico de cultura .173


Políticas culturais .184
A subversão antropológica .194

CAPÍTULO VI
Relativismo e Antirrelativismo

Anti-antirrelativismo .207
O saber local .220
O conflito das interpretações .235

Bibliografia .249

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Introdução

Meu interesse pelo trabalho de Clifford Geertz tomou o impulso


inicial nos anos 1970, quando, jovem estudante de antropologia
na McGill University, Canadá, insatisfeito com as abordagens
positivistas e com a esterilidade das representações etnográficas
descritivas e objetivantes, comecei a ocupar-me com os funda-
mentos teóricos e epistemológicos da antropologia.
O encontro com a obra de Geertz contribuiu de maneira de-
cisiva para a minha formação e para orientar-me num contexto
sociocultural e político em grande fermentação. Naquela obra
estavam se assentando as bases teóricas de uma antropologia
que enfrentava a crise dos paradigmas totalizantes, confrontan-
do-se com novas realidades e com as aquisições mais recentes
de vários campos de saber: da filosofia pós-empirista ao estudo
dos símbolos e dos significados, da hermenêutica à sociologia
compreensiva, da filosofia da linguagem à crítica literária.
Combinando o trabalho de campo com sofisticadas refle-
xões a respeito da disciplina, a obra de Geertz possibilitou re-
pensar as premissas epistemológicas da antropologia e das ciên-
cias sociais em geral. Seus refinados argumentos constituíram
uma constante fonte de inspiração que deu suporte às minhas
pesquisas de campo – principalmente sobre as culturas afro-bra-
sileiras (Malighetti, 1998, 2004) e sobre a cooperação interna-
cional (Malighetti, 2001, 2005) e às minhas atividades didáticas:

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desde cursos que ministrei em diferentes instituições, para pro-
fissionais com importantes interesses “aplicativos” (assistentes
sociais, educadores, operadores sociais), até a docência, nos dias
correntes, na Universidade de Milão-Biccocca. A redescoberta
geertziana da tradição hermenêutica permitiu analisar critica-
mente o cientificismo hegemônico, seja nos ambientes “opera-
tivos”, onde o encontramos conjugado principalmente a inter-
pretações rígidas e mecanicistas da Psicanálise e do Marxismo,
seja na área acadêmica. O estudo da abordagem interpretativa
não cessou de produzir estímulos fecundos, acompanhados de
um pouco de conflito, provocado pelo fato de ter posto em dis-
cussão ortodoxias preeminentes que, desde o século XVII, têm
caracterizado a concepção moderna de ciência: o mito de um
método científico unívoco e fixo; a concepção do conhecimento
como representação e, daí, a perspectiva empírica objetivante; a
rígida separação entre teorias e “dados” e entre teoria e observa-
ção; a pesquisa sobre uma linguagem formal perfeita, polida de
toda referência subjetiva; o ideal místico da verdade.
A comunidade antropológica, dominada pelos paradigmas
estrutural-funcionalistas e marxistas, não prestou fácil acolhida
ao trabalho de Geertz, cuja crítica radical teve de início grande
dificuldade para achar interlocutores, conforme pode atestar a
escassa literatura a respeito do autor, só recentemente desenvolvi-
da. Poder-se-ia definir tal hostilidade com as palavras do próprio
Geertz (2000, p. 21 [30]), quando este lembra a aversão dos inte-
lectuais chamados “a prestar contas de sua produção” em face ao
“moralismo revolucionário” de Dewey, socraticamente acusado
“de minar as práticas estabelecidas e de corromper os jovens”.
Inicialmente, foram cientistas sociais não antropólogos os
que apreciaram a riqueza e o refinamento da produção de Geertz
e a extensão da sua enciclopédia de saber, elegendo-o importante

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figura de referência interdisciplinar – até porque sua formação e
sua carreira profissional foram assinaladas pela interdisciplinari-
dade, como ele mesmo reconhece, declarando “haver trabalhado
em um Departamento de Antropologia, de modo exclusivo, so-
mente por dois ou três anos”. (Geertz, 1994, p. 561) Formado
em filosofia e literatura pelo Antioch College (em Ohio, no ano
de 1950), “sem nenhuma formação universitária em antropo-
logia cultural” (Geertz, 1994, p. 560), obteve o doutorado em
antropologia no Department of Social Relations da Harvard
University, em 1956, sob a orientação de Talcott Parsons e Clyde
Kluckhohn. Lá, Geertz recebeu formação positivista, estudan-
do num meio muito estimulante, permeado de grande confian-
ça científica, “no qual a antropologia cultural estava acoplada
não com a arqueologia e a antropologia física, como costumava
acontecer, e infelizmente costuma acontecer, mas com a psicolo-
gia e a sociologia”. (Geertz, 2000, p. 7 [18-19]) Geertz lembra
como aqueles anos “pós-bélicos e heroicos” foram avassalados
por uma abordagem cognitiva e política muito otimista, na qual
a emergência dos Estados Unidos “como […] a potência mun-
dial, que renovava a Europa, controlava a União Soviética, e co-
locava o Terceiro Mundo em seu curso evolucionário, parecia
sugerir que a sede do aprendizado e da pesquisa tinha se mu-
dado para cá também”. (Geertz, 1995, p. 99 [85]) A atividade
científica do departamento dirigido por Talcott Parsons, Clyde
Kluckhohn e pelo psicólogo Henry Murray se identificava com
o projeto parsonsiano de elaborar “um equivalente sociológico
do sistema newtoniano” sob o amparo de uma grandiosa “teo-
ria geral da ação social”, destinada a realizar “uma Linguagem
Comum para a área das Ciências Sociais”. (Geertz, 1995, p. 100
[85]) Sobre tais bases, o departamento promoveu – lembra
Geertz – importantes atividades interdisciplinares: os projetos

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de Henry Murray, designados a avaliar as intuições psicanalí-
ticas de maneira “propriamente científica”; o Russian Research
Center, dirigido por Kluckhohn, que empregava técnicas de pes-
quisa social “para tentar entender e anular os movimentos dos
soviéticos”; o grupo de Jerome Bruner, que estava desenvolvendo
o que mais tarde se tornaria a psicologia cognitiva; o Laboratory
of Social Relations, dirigido pelo metodólogo Samuel Stouffer,
para aperfeiçoar “métodos de elaboração estatística e as técnicas
de survey”; e o Ramah Project, coordenado por Kluckhohn, “en-
volvido em um estudo comparativo, em longo prazo, de valores
em cinco culturas adjacentes no Sudoeste americano”. (Geertz,
1995, p. 101 [85])
Geertz colaborou principalmente com esses dois últimos
centros, tratando de aplicar as leis positivas da pesquisa. No
Laboratory, trabalhou com os antropólogos Benjamin Ramah,
Evon Vogt, Douglas Oliver e David Schneider. No Ramah
Project, trabalhou por pouco tempo como uma espécie de an-
tropólogo armchair, sobre reports e sobre as notas escritas pe-
los componentes do grupo de pesquisa, procurando distinguir
“alegremente” as diferenças do luto entre os Navajo e os Zuni e
entre estes e os mórmons, os texanos e os hispano-americanos,
“mal tendo eu mesmo estado em um funeral”. (Geertz, 1995,
p. 102 [87]) Nessas instituições, e sob a orientação de respeitá-
veis mestres, pôde consolidar a abordagem interdisciplinar que
caracteriza seu pensamento:

Após um ano de acelerada instrução [fui treinado] não apenas


em antropologia, mas também em sociologia, psicologia so-
cial, psicologia clínica e estatística, sob a orientação de figuras
de proa nesses campos (Kluckhohn, Talcott Parsons, Gordon
Allport, Henry Murray, Frederick Mosteller e Samuel Stouffer),

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e mais um ano checando o que tramavam outros insurretos do
lugar (Jerome Bruner, Alex Inkeles, David Schneider, George
Homans, Barrington Moore, Evon Vogt, Pitrim Sorokin).
(Geertz, 2000, p. 8 [20])

As suas atividades de pesquisa de campo foram realizadas


em contextos marcadamente interdisciplinares: em Java (1952-
1954; abril de 1984; março-agosto de 1986; novembro-dezembro
de 1999), em Bali (1957-1958) e no Marrocos (junho-julho
de 1963; junho-dezembro de 1964; junho de 1965-setembro
de 1966; junho de 1968-abril de 1969; junho-julho de 1972;
junho-julho de 1976; novembro de 1985; março de 1986).
A estreia em Java colocou-o como membro de um projeto de
pesquisa em grupo: “dois psicólogos, um historiador, um soció-
logo e cinco antropólogos, todos eles doutorandos de Harvard”.
(Geertz, 2000, p. 9 [20]) Financiado pela Ford Foundation e or-
ganizado sob os auspícios associados do Social Relations, do
Center for International Studies do Massachusetts Institute of
Technology e da Gadjah Mada, “universidade revolucionária
que se instalara no palácio de um sultão na Indonésia recém-in-
dependente” (Geertz, 2000, p. 8 [20]), o Projeto Modjokuto –
assim chamado porque esse termo traduz a palavra Middletown,
a cidadezinha de Indiana, Estados Unidos, objeto dos clássicos
estudos sociológicos do casal Lynd nos anos 1920 – constituía
uma das primeiras e mais conscientes tentativas dos antropólo-
gos para enfrentar “toda uma sociedade antiga e heterogênea,
urbanizada, letrada e politicamente ativa”. (Geertz, 2000, p. 14
[25]) O projeto demandava que a antropologia abandonasse o
interesse quase exclusivo pelos primitivos, “[o] isolamento inte-
lectual, [o] particularismo cultural, [o] empirismo insensível e
[a] abordagem heroica na investigação”, para empenhar-se em

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disciplinas “mais conceituadas” (psicologia, economia, sociolo-
gia, ciência política) na construção de “uma ciência unificada e
generalizante da sociedade”. (Geertz, 1995, p. 103 [88])
De princípio, Geertz se concentrou mais na religião, procu-
rando aplicar a teoria weberiana ao reformismo muçulmano e
indonésio, num difícil trabalho de grupo. Mas o programa se
modificou com o correr do tempo devido a dificuldades de re-
lacionamento com os colegas indonésios e à desconfiança dos
interlocutores: “eram céticos quanto à nossa capacidade, con-
trários aos nossos planos, desconfiados de nossas intenções”.
(Geertz, 1995, p. 128 [88]) Geertz define as primeiras fases da
pesquisa como uma “reencarnação dos ‘procedimentos de ca-
pacete’ da etnologia colonial”, inaugurados na área pelos es-
tudiosos holandeses de Volkenkunde: “Convocaríamos pessoas
dos campos, nos arredores – ou, mais exatamente, as autorida-
des locais […] as convocariam para nós”. (Geertz, 1995, p. 105
[89]) Abandonado o trabalho de grupo em larga escala, ele se
achou em condições de trabalhar segundo modalidades malino-
wskianas, que exigiam “relações livres, íntimas e de longo prazo
com aqueles a quem estávamos estudando […] os Trobriands
em plena Java” (Geertz, 1995, p. 100 [90]):

Dois anos e meio morando com a família de um operário de


estrada de ferro em Java, na planície rizícola do rio Brantas,
cercada de vulcões, enquanto o país disparava, via eleições li-
vres, para as convulsões da Guerra Fria e seus insensíveis mor-
ticínios. (Geertz, 2000, p. 9 [20])

De volta aos Estados Unidos, paralelamente ao trabalho


como research associate (1957-1958) no Laboratory of Social
Relations de Harvard, Geertz é pesquisador no Center for

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International Studies do MIT (1952-1958), onde colabora com
alguns economistas e escreve uma história analítica do desenvol-
vimento “involutivo” da agricultura javanesa. (Geertz, 1963a)
Depois de uma estada em Bali e Sumatra, tempo em que assistiu
a um “melodrama político, culminando em revolta e guerra ci-
vil” (Geertz, 2000, p. 9 [21]), vai para Palo Alto, para o Center
for Advanced Study in the Behavioral Sciences de Stanford
(1958-1959). Aí trabalha com o que definiu como “os mais
dinâmicos” antropólogos: Fred Eggan, Meyer Fortes, George
Peter Murdock, Cora Du Bois, Joseph Greenberg, Melford Spiro
e Lloyd Fallers. (Geertz, 1995, p. 184 [94]) Encontra ocupação
também em companhia de importantes colegas, como Thomas
Khun, Roman Jakobson, W. V. O. Quine, George Miller, Ronald
Coase, David Apter e Edward Shils. (Geertz, 2000, p. 10 [21])
Professor assistente de antropologia em Berkeley (em 1958
na New Nations, instituição fundada por Edwars Shils – a quem
dedicou o livro Mundo global, mundos locais, de 1960), assu-
miu-se em 1960, em Chicago, na mesma qualidade (adjunto em
1964), e como diretor do Commitee for the Comparative Study
of New Nations para realizar pesquisas multidisciplinares nos
estados pós-coloniais da Ásia e da África: desse projeto Geertz
obteve alguns êxitos, de que deu conta em publicação de 1963.
(Geertz, 1963b)
Ao longo dos anos 1960, Geertz alterna a atividade acadê-
mica e a pesquisa em um novo campo, no Marrocos, passando:

parte do tempo ensinando, parte dirigindo a Comissão de


Estudos Comparativos de Novas Nações […], e parte do tempo
no Marrocos, em uma velha cidade murada dos montes Atlas,
estudando bazares, mesquitas, cultivo de oliveiras e poesia oral,
e orientando pesquisas de doutorado. (Geertz, 2000, p. 10 [21])

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Em Chicago, num ambiente acadêmico em que ele afirmou
ter encontrado “uma corporação equânime de raciocinadores
internacionais” (Geertz, 1995, p. 184 [111]), povoado por fi-
guras como Frederick Eggan, Sol Tax, Milton Singer, Melford
Spiro, Manning Nash, David Schneider, Lloyd Fallers, Victor
Turner e Paul Ricouer, tomou forma o programa para redefinir
“por completo a atividade etnográfica”, o qual pôs em discus-
são as “tradições herdadas na antropologia” e elaborou uma
“consideração das tendências intelectuais mais correntes” so-
bre a disciplina enquanto tal. (Geertz, 1995, p. 114 [96]) Aí se
realizou aquele “movimento em direção ao significado” que se
consolidaria nos anos seguintes – diz Geertz (1995, p. 114 [96])
– “sob rubricas como a linguística, a interpretativa, a constru-
cionista social, a nova historicista, a retórica ou a ‘virada’ se-
miótica”. Essa “revolução” simbólica se identificava em “situar
o estudo sistemático do significado, os veículos do significado,
e a compreensão do significado, no próprio centro da pesquisa
e análise: fazer da antropologia […] uma disciplina hermenêuti-
ca”. (Geertz, 1995, p. 114 [96])
Em 1970, Geertz chega, como primeiro professor em ciên-
cias sociais e “único de Antropologia”, ao Instituto de Estudos
Avançados de Princeton, “a resposta norte-americana à All Souls,
de Oxford, e ao Collège de France, de Paris”, e que, em outros
tempos, reunira ilustres cientistas do mundo inteiro: Hermann
Weyl, John Von Neumann, Erwin Panofsky, Kurt Gödel e Albert
Einstein. (Geertz, 1995, p. 120 [101]) Lá se tornou professor
emérito na Escola de Ciências Sociais, com a qual colaborou
até a morte, aos 80 anos, em 30 de abril de 2006, “lutando
para manter em funcionamento uma Escola de Ciências Sociais
pouco convencional” (Geertz, 2000, p. 10 [21]) e culminando

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em “uma maneira excelente, interessante, desnorteante, útil e
agradável de passar uma vida”. (Geertz, 1995, p. 168 [138])
Em Princeton, consolida-se aquela virada que o próprio
Geertz define como “interpretativa”, resistente “em relação a
moldar as ciências sociais à imagem das ciências naturais” e aos
“esquemas ordinários que explicam demasiado” (Geertz, 1995,
p. 127 [106]), iniciada no campo e continuada no contexto do
fermento “revolucionário” dos anos 1960. Conforme Geertz
descreve em suas páginas autobiográficas, foram profundas mu-
danças políticas e sociais que acompanharam e assinalaram as
mudanças de perspectiva, “o kairos americano […] o ponto em
que o futuro mudava” (Geertz, 1995, p. 110 [92]): a Guerra
Fria, a descolonização, a ascensão do nacionalismo, a indigeni-
zação, a passagem da era Eisenhower à era Kennedy-Johnson,
o Vietnã, o movimento dos direitos civis, a contracultura. Esses
acontecimentos acompanharam seu distanciamento de Parsons
para aproximar-se ao historicismo alemão e à filosofia analíti-
ca, a Dilthey e Gadamer, a Kenneth Burke, Ryle, Wittgenstein e
Ricoeur, e produzir aquele interpretive turn que alcançou ma-
turação nos anos 1980 e 1990, objeto específico deste estudo.

As inquietações filosóficas [nas ciências sociais] foram se acu-


mulando dentro dessas ciências nas últimas duas décadas [e]
passaram a ser tão poderosas nos anos de 70 e 80 que desman-
telaram a percepção de qual seria seu propósito […]. O fato
era que os fundamentos sobre os quais a ideia de ciência social
tinha repousado ao menos desde os tempos de Comte haviam
mudado, enfraquecido, oscilado, escapado. A vertigem moral e
epistemológica que sacudiu a cultura geral na era pós-estrutu-
ralista, pós-modernista, pós-humanista, a idade das tendências

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e textos, do objeto volátil e do fato construído, atingiu as
ciências sociais com uma força singular. (Geertz, 1995, p. 128
[106-107])

Este estudo é uma nova edição de um livro que, na versão an-


terior, apareceu em 1991 (Malighetti, 1991) e é agora reproposto
com consistentes modificações, atualizações e novas contribui-
ções, na convicção quanto à persistente relevância do pensamento
de Clifford Geertz. Não é difícil prever – como o próprio Geertz
(2000, p. 166 [48]) chegou a afirmar a propósito do legado de
Thomas Khun – que o seu trabalho “ainda perturbará por muito
tempo as nossas certezas – como perturbou as dele”. O texto é
fruto de reflexões que, no decorrer desses anos, amadureceram
do estudo, dos trabalhos de campo e da atividade didática deste
autor. Mais que apresentar uma síntese do pensamento geertzia-
no, intentamos selecionar alguns problemas e instrumentos con-
ceituais, procurando desenvolvê-los e evidenciar sua relevância
e atualidade, analisando o aparato conceitual e o pano de fun-
do teórico da antropologia de Clifford Geertz, inserindo-os no
contexto das mudanças de concepções, nos pressupostos e nas
metáforas que deram forma ao modo de pensar a natureza do
conhecimento. Dada a posição “antiteórica” de Geertz, derivada
de seu “mestre” Ludwig Wittgenstein (Geertz, 2000, p. xi [9]), e
sua relutância em apresentar uma síntese teórica de seu traba-
lho de bricolage de argumentos e conceitos oriundos de variadas
fontes, este texto constitui uma espécie de arqueologia do pen-
samento e do “não dito” geertziano, elaborando-o e mostrando
os seus possíveis “usos”. O livro realiza um esforço especular ao
de Geertz, concentrando-se sobre os desenvolvimentos teóricos
e metodológicos e sua incidência sobre as práticas do trabalho
antropológico, no “campo” e em “casa”.

20 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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Geertz se recusa a exprimir suas ideias de forma sistemática
(“I don’t do systems”), preferindo, à la Wittgenstein, expor etno-
graficamente a própria perspectiva. De modo explícito, adverte
que as abordagens interpretativas, aprisionadas na imediatez
dos próprios detalhes, tendem a resistir à articulação conceitual
e às avaliações de tipo sistemático. A sua aplicação a questões
especificamente teóricas deriva da – e remete sempre à – prática,
recolhendo das situações de pesquisa novas ideias, motivos his-
tóricos, intuições epistemológicas e estratégias analíticas. Livre
para experimentar, não condicionada por esquemas ou mode-
los de referência rígidos e unitários, a sua antropologia é mui-
to flexível, caracterizada por certo ecletismo e por um jogo de
ideias desvinculadas de autoridades paradigmáticas. Está aberta
a diversas influências e teoriza a incerteza e a incompletude dos
programas de pesquisa e de seus resultados.
Respondendo à crise dos sistemas teóricos unificantes, a ati-
vidade etnográfica é o lugar de vitalidade do pensamento de
Geertz (1988, p. 148 [193]), “um jogo desordenado e inventivo,
aleatório e variado. Mas este já esteve assim antes e encontrou
uma direção”. Afirmando ter-se ocupado de problemas teóricos
e filosóficos “de forma não abstrata, sobre a base de material
concreto: em Java, Bali, no Marrocos ou em qualquer outro
país” (Geertz, 1994, p. 467), ele considera a etnografia como o
fundamento para uma definição da disciplina elaborada “etno-
graficamente” a partir das práticas de seus autores:

[…] se você quer compreender o que é a ciência, você deve


olhar, em primeiro lugar, não para as suas teorias ou as suas
descobertas, e certamente não para o que seus apologistas di-
zem sobre ela; você deve ver o que os praticantes da ciência fa-
zem. Em antropologia ou, de qualquer forma, em antropologia

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social, o que os praticantes fazem é a etnografia. E é justamente
ao compreender o que é a etnografia, ou mais exatamente, o
que é a prática da etnografia, que se pode começar a entender o
que representa a análise antropológica como forma de conheci-
mento. (Geertz, 1973, p. 5-6 [4])

O pensamento de Geertz foi de grande importância para a


reflexão sobre as condições da prática etnográfica e sobre seus re-
sultados. Um de seus principais méritos foi convidar à problema-
tização das modalidades com que os antropólogos produziram
a verdade que advogam seja aceita. Aferrados a uma espécie de
“conspiração do silêncio” (Berreman, 1962) mistificadora e etica-
mente suspeita e protegidos pela ansiedade do trabalho de campo
(Devereux, 1967) que apela a um método etnográfico standard,
não bem especificado, os antropólogos têm tradicionalmente ig-
norado o contexto pragmático da compreensão e o problema
da opacidade do Outro, definido por Geertz com um trecho de
Wittgenstein (como citado em Geertz, 1973, p. 13 [10]):

Falamos… de algumas pessoas que são transparentes para nós.


Todavia, é importante no tocante a essa observação que um
ser humano possa ser um enigma completo para outro ser hu-
mano. Aprendemos isso quando chegamos a um país estranho,
com tradições inteiramente estranhas e, o que é mais, mesmo
que se tenha um domínio total do idioma do país. Nós não
compreendemos o povo (e não por não compreender o que eles
falam entre si).

Como bem afirmou Descola (1993, p. 480), os historiadores


mencionam os arquivos que utilizaram e que outros terão possi-
bilidade de consultar para deles extrair diferentes interpretações;
os sociólogos descrevem os questionários e os procedimentos

22 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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estatísticos que lhes permitem chegar às suas conclusões; os psi-
cólogos descrevem seus protocolos de experiência. Somente os
antropólogos parecem defender suas próprias conclusões com
uma conjuração de silêncio que lhes serve para conservá-las e
recusarem-se a exibir os processos de produção do saber antro-
pológico. Eles excluem dos textos tanto os fundamentos inter-
subjetivos do trabalho, relegados a confissões ou estereótipos
acadêmicos, quanto as estratégias de escrita – consideradas neu-
tras e imediatas representações da realidade, segundo um ideal
pictográfico e denotativo-referencial: “A representação explícita
da presença do autor tende a ser relegada, com outros embara-
ços, aos prefácios, às notas e aos apêndices”. (Geertz, 1988, p. 18
[29]) Um ou outro antropólogo terá publicado suas memórias
do trabalho de campo em textos distintos da monografia corri-
queira e de maneira antes informal, utilizando, às vezes, pseu-
dônimos. (Barley, 1983a, 1983b; Beattie, 1960, 1965; Bowen &
Bohannan, 1954; Dumont, 1976, 1978; Rabinow, 1975, 1977;
Stoller, 1989; Stoller & Olkes, 1987; Turnbull, 1961, 1965) Mas
esses trabalhos constituem reflexões autobiográficas sobre pro-
jetos passados, destinados a mostrar como as condições do tra-
balho de campo haveriam de justificar e emprestar legitimidade
ao trabalho teórico “realista”, publicado à parte.
Sob a hegemonia da Ciência Social positivista, a prática
etnográfica – não problemática e descritiva – foi considerada
secundária e subordinada ao esforço teórico antropológico,
comparativo e classificatório. Nos primórdios da disciplina,
a distinção entre antropologia e etnografia era marcada pela
divisão do trabalho entre teóricos profissionais e coletores de
dados que compilavam questionários para um número restrito
de antropólogos armchair, predominantes em instituições como
a Ethnological Society ou o Royal Anthropological Institute de

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Londres. Os pais fundadores da disciplina, um depois do outro,
forçaram por insistir sobre a radical separação entre a imediata
e não problemática coleta de dados de campo e sua sistematiza-
ção teórica. Teorizaram, assim, a submissão dos dados particu-
lares aos escopos teóricos, subsumindo e anulando os casos em
grandes generalizações universalizantes. Dessa forma, Radcliffe-
Brown (1952, p. 192 [187]) sublinhou a necessidade de que a
ciência não se preocupe com o particular (com “as relações reais
entre Tom, Dick e Harry ou o comportamento de Jack e Jill”),
mas antes com o “levantamento ‘da forma da estrutura’”.
De modo semelhante, Malinowski (1922, p. 47 [35]) inter-
pretou a necessidade de apanhar “o ponto de vista do nativo”
como “modo de pensar e sentir estereotipado” e não como “o
que A ou B possam sentir enquanto indivíduos”. O método mali-
nowskiano da “observação participante” – na realidade, uma es-
tratégia para a coleta dos dados de campo, antes que definição de
um método propriamente dito (Duranti, 1992; Malighetti, 2000;
Paul, 1953) – baseia a própria técnica na coleta imediata e não
problemática dos dados. A experiência pessoal e participativa
do etnógrafo é fortemente limitada pelos standards objetivantes
e impessoais da observação: a sua subjetividade é separada dos
referentes objetivos do texto e o método depende de uma nítida
separação entre a linguagem e o mundo. (Malighetti, 2000)
Sucessivamente, Lévi-Strauss (1958, p. 388-390 [14]) elabo-
rou, em um dos últimos paradigmas totalizantes da disciplina,
os princípios da separação entre teoria e observação, produzin-
do a tripartição, hierarquicamente ordenada, entre etnografia (a
coleta, classificação e descrição dos fenômenos culturais parti-
culares), Etnologia (um primeiro passo para a síntese compara-
tiva) e antropologia (a última etapa de uma generalização que
tem por fim a elaboração teórica e a explicação).

24 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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Na contemporaneidade, as abordagens que separam a teoria
da observação parece se haverem apegado às críticas à “mística
etnográfica” provenientes de solicitações muito em voga, como os
Cultural Studies. Reproduzem, assim, os argumentos elaborados
por Jarvie (1967, p. 244) nos anos 1960, os quais asseveravam
que, assim como os físicos einsteinianos se referem a experimen-
tos sem necessariamente realizá-los e os newtonianos explicam os
dados astronômicos sem passar noites em observatórios, da mes-
ma forma “todo estudo sério da sociedade deve fazer referência
a algum trabalho empírico, não importa se de antropólogos ou
viajantes, ou missionários, ou funcionários do governo”.
A partir de tais perspectivas, as práticas de “escrita dos po-
vos” foram consideradas irrelevantes, parte da tradição oral da
comunidade e objeto de uma considerável elaboração mítica.
Aquilo que constitui a força da disciplina “nos torna diferentes
e justifica nossa existência, num mundo que se tornou meto-
dológico” (Geertz, 2000, p. 94 [90]) e marca a identidade do
antropólogo, a sua atividade experiencial, reflexiva e crítica, foi
eliminado enquanto área de análise. Não obstante quase um
século de vida, o trabalho de campo e sua restituição textual
foram genericamente considerados como uma habilidade que
se aprende com a prática e a imersão total (Epstein, 1967), ou
mediante genéricos apelos ao senso comum. (Beattie, 1965, p. 2;
Beals, 1970, p. 38) Emblemático, a esse propósito, é o relato de
Evans-Prichard sobre os conselhos que lhe deram os principais
trabalhadores de campo seus contemporâneos antes de ele par-
tir para a África Central. Westermarck limitou-se a sugerir-lhe:
“Não converse com um informante por mais de vinte minutos,
pois se a esse momento você já não estiver chateado, ele certa-
mente estará”. Haddon afirmou que “era necessário conduzir-
-se como um cavalheiro”. Seu professor, Seligman, aconselhou

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“tomar dez grãos de quinino à noite e afastar-se das mulheres”.
Sir Flinders Petrie disse “não se preocupar com ter de beber água
suja, pois logo se fica imunizado contra ela”. Malinowski, por
sua parte, advertiu-lhe “não passar por um completo idiota”.
(Evans-Pritchard, 1937, p. 285 [243])
Foi graças à contribuição de Geertz que, nos últimos decê-
nios, se iniciou a refletir sobre a pesquisa etnográfica e a produ-
zir publicações e ensino acadêmico sobre fundamentos episte-
mológicos, metodológicos, psicológicos e éticos dessa pesquisa.
(Clifford, 1988; Clifford & Marcus, 1986; Marcus & Cushman,
1982) As suas refinadas propostas promoveram uma prática et-
nográfica muito mais articulada e complexa do que a realizada
com as técnicas do passado ou com os vagos e fugazes grand
récits do presente:

O estudo das culturas de outros povos (e mesmo do próprio,


mas isto levanta outras questões) implica descrever quem eles
pensam que são, o que pensam que estão fazendo e com que fi-
nalidade pensam que o estão fazendo – algo bem menos direto
do que sugerem os cânones usuais da etnografia feita de notas
e interrogações ou, a rigor, o impressionismo exuberante dos
“estudos culturais”. (Geertz, 2000, p. 16 [26])

A etnografia de Geertz parte do ponto de vista de que a


experiência é mais complexa que a sua representação positiva,
baseada sobre a coleta não problemática e sobre a descrição
objetivante dos dados, conduzida sob um ponto de vista exter-
no e destacado. A sua pesquisa se contrapõe às reificações que
percorreram a história do pensamento antropológico, prestando
escassa atenção às problemáticas da pesquisa de campo: ao evo-
lucionismo, que reduzia os próprios objetos a caixinhas tipológi-
cas para a comparação cross-cultural; à restituição funcionalista

26 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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de uma totalidade sociocultural decomposta e analisada segundo
um formato standard e protocolar; às perspectivas nomotéticas
do neoevolucionismo e da etnociência; à abstrata pesquisa estru-
turalista de uma sintaxe geral para todos os sistemas culturais.
Se compararmos a etnografia de Geertz às etnografias clássi-
cas das gerações precedentes de antropólogos, flagraremos uma
estridente diferença na maneira de pensar e representar os pró-
prios objetos. Em sua criticidade, a etnografia geertziana tende
a problematizar a situação do estudo de campo, perturbando o
equilíbrio neutral e empático da relação sujeito-objeto e explo-
rando os problemas concernentes à tradução de culturas.
A antropologia de Geertz não dicotomiza o teórico e o obser-
vacional, a teoria antropológica e a representação etnográfica. O
comentário descritivo é, já, um momento interpretativo, constru-
tivo e, portanto, carregado de teoria. Tendo em vista que o nível
de constituição do fenômeno cultural é o nível do significado
e do valor e – para dizê-lo como Cassirer – que as formas de
vida cultural do homem são formas simbólicas que constituem
mundos, a atividade cognoscitiva, ela mesma, não é uma simples
reprodução ou representação de “dados”, mas uma atividade
“formadora”, que dá significado e valor ideal aos “fatos”.
Por não estar ligada a uma abordagem paradigmática uni-
versalizante, unívoca e fixa, a antropologia interpretativa é livre
para estruturar a sua pesquisa em favor do particular e da exce-
ção, procurando representar autenticamente as diferenças cultu-
rais, movimentando-se em direção a descrições microssociais e
contextuais e sem renunciar a macroperspectivas.
A emergência da antropologia geertziana pode ser estabele-
cida a partir da grande tradição da antropologia particularista
de Franz Boas, que se desenvolveu em reação ao positivismo,
remontando prevalentemente à tradição filosófica alemã, a

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Dilthey, Heinrich Rickert e Wilhelm Windelband e aos estudio-
sos neokantianos que gravitavam ao redor da escola de Baden.
O relativismo boasiano, com a sua concepção da antropologia
como, em última análise, psicológica e mental, tinha suas raí-
zes intelectuais naquela tradição, especialmente no afirmar a
inseparabilidade entre quem percebe e o que é percebido. De
maneira análoga, a réplica de Sapir ao conceito de “superorgâ-
nico” de Kroeber se baseava largamente em Rickert, enquanto
Ruth Benedict inspirou-se explicitamente em Wilhelm Dilthey e
Oswald Splenger para sublinhar a incomensurabilidade das cul-
turas compreendidas holisticamente. Robert Lowie, por sua vez,
direcionou a própria atenção à tradição alemã ao traçar a dife-
rença entre as ciências humanas e as ciências naturais, nos ter-
mos dos conceitos de estudos “ideográficos” e “nomotéticos”.
Deslocando a ênfase da análise do comportamento e da es-
trutura social para o estudo dos símbolos e dos significados, a
antropologia de Geertz se insere nas correntes de pensamento
que, desde o fim dos anos 1960, haviam rejeitado as abordagens
positivistas e redescoberto o historicismo alemão e as sociolo-
gias interpretativas que influenciaram os primeiros boasianos.
Por cerca de 20 anos após a Segunda Guerra Mundial, mui-
tos antropólogos estadunidenses haviam-se distanciado do re-
lativismo boasiano para se encaminharem a abordagens “mais
científicas” e voltarem a uma concepção da antropologia como
“ciência natural da sociedade”. A linha do debate que se de-
senvolveu naqueles anos pode ser dividida em duas correntes.
De um lado, os “materialistas”, interessados principalmente no
comportamento, na ação e nos fundamentos políticos e econô-
micos da cultura, fizeram foco sobre as inter-relações causais e
regulares entre os fenômenos e sobre a descoberta das “leis cien-
tíficas” que prescindissem de qualquer consideração quanto ao

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“ponto de vista do nativo”. Leslie A. White e Julian H. Steward,
apesar das notáveis diferenças que os distinguiram, são sem dú-
vida as figuras mais representativas da perspectiva “nomotéti-
ca”. Eles foram determinantes para a elaboração do materia-
lismo cultural de Marvin Harris, discípulo de White. Por outro
lado, a assim chamada antropologia “simbólica”, cujo centro
propulsor estava em Chicago, tomava o estudo do significado
e do “ponto de vista do nativo” como objeto central para o es-
tudo antropológico. Geertz e David Schneider – ambos, alunos
de Parsons e Kluckhohn no Department of Social Relations em
Harvard –, junto com Mary Douglas e Stephen Tyler, podem ser
considerados entre os maiores expoentes dessa orientação.
Com a publicação, em 1973, de um conjunto de seus ensaios,
sob o título The interpretation of cultures – especialmente do es-
tudo “Thick description: toward an interpretive theory of cultu-
re”, escrito para aquele volume – Geertz forneceu um texto para
os antropólogos insatisfeitos com as conceituações nomotéticas
que haviam reduzido a cultura, o comportamento e a estrutura
social a objetos suscetíveis de um tratamento tipológico e formal,
visando à formulação de proposições gerais. Naquele artigo, ele
critica os projetos dos cientistas sociais certos de terem encontra-
do um sólido fundamento, empiricamente verificável, sobre que
erigir um constante e progressivo desenvolvimento do conheci-
mento científico da sociedade; ao mesmo tempo, rechaça as for-
mas de positivismo lógico e empirismo, as tentativas de construir
teorias gerais que subsumam as particulares, a primariedade do
modelo de explicação hipotético-dedutivo, colocando-se em for-
te contraste com as perspectivas reducionistas e fiscalistas do
neoevolucionismo, ao universalismo e ao fundacionismo lévi-s-
traussiano, como também à tentativa da etnociência de elaborar
uma linguagem “neutra” para descrever os dados.

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Geertz (1988, p. 131 [72]) responde à inquietação provoca-
da na disciplina antropológica pelas profundas transformações
que se deram tanto no estatuto científico do saber e, em ge-
ral, “[n]o mundo estudado pela maioria dos antropólogos […],
quanto [n]o mundo a partir do qual eles o estudam – o mundo
acadêmico”. Sublinha ele como as mudanças nas culturas e nas
relações interculturais, assinaladas por eventos de cunho epocal,
colocaram em crise os assuntos principais, teóricos, morais e
políticos sobre os quais a escrita antropológica se regia, fazendo
reconhecer sua cumplicidade e suas colusões com o empreen-
dimento colonial e com discutíveis programas governamentais
– o projeto Mares do Sul; o projeto Camelot (Horowitz, 1967);
e o envolvimento de antropólogos no Vietnã e na Tailândia
(Berreman, 1969; Flanagan, 1971; McCoy, 1971; Wolf &
Jorgensen, 1970): “A história da etnografia é […] a história das
apropriação das vozes dos fracos pelas dos fortes, tanto quanto
o seu trabalho ou os seus recursos naturais foram apropriados
pelos imperialistas mais diretos”. (Geertz, 1995, p. 129 [107])
Esses comprometimentos da antropologia produziram contra a
disciplina não apenas acusações de ela ser child of imperialism
(Gough, 1968) ou uma forma de applied colonialism (Onoge,
1979) e a elaboração dos Principles of professional responsabi-
lity pela American Anthropological Association. Levaram, ade-
mais disso, a que lhe fosse profetizado o fim, como efeito do fim
do colonialismo (Willis, como citado por Geertz, 1988, p. 135
[177]), ou por haver-se exaurido, sob o impacto da expansão
ocidental, um objeto de estudo identificado com improváveis
sociedades tribais estáticas e isoladas. (Worsley, 1964)
A antropologia geertziana se movimenta no interior de um
cenário determinado pela crise das representações culturais,
nascida da convergência dos problemas epistemológicos com a

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história “política” da disciplina: “comprometida em suas ori-
gens, ela é comprometida em seus atos – praticando, com outros,
a ventriloquia; fugindo com as suas palavras”. (Geertz, 1995,
p. 145 [107]) Por um lado, Geertz (1995, p. 145 [107]) observa
como a história da etnografia “impede que ela desempenhe seu
autoatribuído (e autocomplacente) papel na tribuna de tais vo-
zes no mundo contemporâneo”, importando ter em mente que
o antropólogo não trabalha mais em situações de isolamento e
de domínio colonial, que lhe autorizavam as pesquisas e lhe le-
gitimavam o monopólio de representação da realidade. (Geertz,
1995, p. 147 [108]) Por outro lado, o autor contesta os fun-
damentos epistemológicos, apenas ocasionalmente postos em
crise, como ele mesmo lembra, por posições análogas à que ex-
pressa Bernard DeVoto a propósito do livro de Margaret Mead
(And keep your powder dry): “Quanto mais os antropólogos
escrevem sobre os Estados Unidos […], menos acredito no que
dizem sobre Samoa”. (Geertz, 1983a, p. 9-10 [19])
Geertz teve o mérito de inaugurar a reflexão que, procuran-
do enfrentar essa problemática, exerceu forte impacto sobre a
disciplina. Embora se possa apontar certa dificuldade em tra-
duzir na prática etnográfica os princípios que ele discutia teo-
ricamente com muita sofisticação (Borutti, 1996; Crapanzano,
1986; Dweyer, 1982; Malighetti, 2000; Rabinow, 1986; Tedlock,
1983), Geertz problematizou as práticas do estudo de campo
e de sua restituição textual, analisando as condições do traba-
lho etnográfico, os microprocessos da vida cotidiana, a tradu-
ção através os confins culturais e linguísticos e a pesquisa para
representar de maneira convincente a diversidade cultural dos
sujeitos investigados.
A principal característica das revisões de Clifford Geertz
no tocante às disciplinas sociais consiste no descobrimento da

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dimensão hermenêutica enquanto teoria do signo e das signifi-
cações equívocas e polissêmicas, com sua ênfase temática sobre
a compreensão e a interpretação e sobre o caráter construtivo
do conhecimento. Em Geertz, o problema hermenêutico assume
o significado de reconhecer que a ciência é “fenômeno-técnica”,
técnica de produção dos fenômenos, segundo a expressão de
Bachelard (1940). De um lado, os objetos não são vistos como
entes dotados de propriedades independentes do ponto de vista
de quem os conhece. De outro, o sujeito não é uma instância
paradigmática, um ente neutro, mas antes um sujeito históri-
co, inserido numa forma de vida, ontologicamente assentado
sobre sua cultura e seu saber. O horizonte é, assim, concebido
além do subjetivismo e do objetivismo, numa circularidade que
reconhece o recíproco pertencimento entre sujeito e objeto, o
saber do antropólogo e o do nativo, a orientação da análise no
que respeita ao ator e o caráter construtivo da interpretação. A
hermenêutica, em Geertz, torna-se mediação entre polaridades:
entre a construção e o espelhamento, entre a teoria e a obser-
vação, entre a antecipação de sentido e a compreensão, entre o
particular e o geral, entre o sujeito e o objeto, entre a empatia e
o destaque, entre a epoché e a subjetividade.
O etnógrafo geertziano deve dar um sentido ao que é estranho.
Como o tradutor, aponta à solução do problema da estranheidade
e à comunicação de tal estranheidade: deve tornar familiar o es-
tranho e, ao mesmo tempo, preservar-lhe a estranheidade. Ocupa-
se do problema das representações de representações de outras
pessoas, trabalhando também sobre representações de representa-
ções de representações de outros etnógrafos. Sublinhando a natu-
reza colaborativa e comunicativa da situação etnográfica, funda
a etnografia sobre a inter-relação entre as construções interpreta-
tivas do antropólogo e as de seus interlocutores. A comparação

32 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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se torna, assim, confronto entre linguagens, formas de vida,
Weltanschauungen diferentes, tradução por meio de linguagens e
códigos diversos.
Considerando que o texto cultural não existe antes de sua
interpretação, ditado por informantes perfeitamente competen-
tes e depois explicado e contextualizado, em um segundo nível,
pelos etnógrafos, Geertz incitou a fazer ressaltar a recíproca ma-
nipulação e os ajustamentos entre as categorias de pensamento
dos interlocutores. Nesse sentido, os significados não são sim-
plesmente descobertos, mas criados mediante complexas nego-
ciações, seja no momento do encontro etnográfico no campo,
em uma “fusão de horizontes” antropológicos e nativos, seja em
casa, no processo de textualização. Os dados antropológicos se
tornam complexos e articulados, “construções de construções”,
“interpretações de interpretações”, consistindo no que o antro-
pólogo registrou daquilo que foi capaz de compreender, do que
lhe foi dito por seus interlocutores a partir do que eles com-
preenderam. Não apenas o “ponto de vista do nativo” é uma de
suas perspectivas possíveis, mas, sobretudo, esse ponto de vista
é sempre mediado. Desde quando os nativos são constituídos
como informantes, a voz deles já é mediada e redigida pela com-
preensão e pela escrita antropológica.
Confinar a antropologia à experiência pessoal do antropólo-
go, em um monólogo solipsista, ou reduzi-la à simples represen-
tação do “ponto de vista do nativo”, numa romântica pretensão
de igualdade, dispersando e repartindo a autoridade etnográfi-
ca entre os informantes, numa difícil orquestração polifônica
ou numa imediata língua pidgin,1 significa negar à disciplina

1
Língua pidgin: uma “língua nova”, de contato, produzida espontaneamente pela hibridação
de linguagens pré-existentes, com o objetivo de possilitar a comunicação entre falantes de
línguas diferentes. (N. T.).

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a especificidade de seu estatuto científico. Geertz deixou claro
que, embora os conceitos e os modelos empregados pelo teórico
devam basear-se sobre os modos como os próprios informantes
interpretam as suas ações e as dos outros, não podem, contudo,
exprimir os mesmos significados do interpretado. As interpre-
tações antropológicas, por sua natureza, divergem dos relatos
dos nativos, assentando a sua força sobre essa heterotopia. São
científicas na medida em que traduzem a linguagem privada dos
nativos na linguagem pública e especializada da antropologia.
Geertz orientou a etnografia contemporânea a levar em con-
ta que a restituição textual de uma experiência de campo não
pode deixar de reproduzir a processualidade da aprendizagem
e da construção do conhecimento antropológico. Considerando
o trabalho de campo como o fundamento e o sinal distintivo da
disciplina, convida a não remover da análise essa atividade, as-
sim como a sua relação com o processo de escrita. A etnografia
deve fazer emergir a natureza negocial da compreensão, a dialo-
gicidade entre os modelos conceituais do antropólogo e do nati-
vo, num jogo sutil de interferência entre componentes pessoais e
autobiográficos e componentes disciplinares da pesquisa.
O etnógrafo geertziano não pode renunciar à própria au-
toridade, a qual, por um lado, autoriza seus discursos junto a
seus interlocutores e fruidores; por outro, manifesta-se inexo-
ravelmente na escrita, fundando o que Geertz chama a “fun-
ção de autor”. A ideia de que a compreensão passa através da
dialética entre antecipação de sentido e compreensão, e se funda
sobre o exame explícito dos pré-conceitos e pré-compreensões,
leva a representar a realidade social dos Outros por meio da
análise da própria experiência no mundo deles, e a considerar
a prática etnográfica, enquanto prática social, como parte inte-
grante da análise e do trabalho de textualização. Nesse sentido,

34 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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a antropologia se constrói necessariamente a partir “do ponto
de vista do antropólogo”. A autorreferencialidade, encerrada na
própria noção hermenêutica de circularidade e de historicidade
da compreensão, sublinha que a construção do conhecimento
antropológico se desenvolve inevitavelmente em chave reflexiva
e autobiográfica: o acesso ao Outro é sempre mediado pela pró-
pria ontologia e pelo próprio pertencimento a uma comunidade
linguística (Heidegger, 1927) e histórica. (Gadamer, 1965)
Dessas perspectivas emerge a importância da experiência
do antropólogo como fundação da disciplina e elemento-cha-
ve do método. Por um lado, a antropologia de Geertz requer
que a subjetividade do antropólogo enquanto tal seja conside-
rada parte integrante da relação com o outro e da experiên-
cia humana que ele procura compreender. Por outro, considera
a experiência do informante à luz da experiência que este tem
do antropólogo, na dinâmica da “observação do observador”.
(Clifford & Marcus, 1986) A negociação e a dialogicidade são,
de resto, extremamente articuladas e complexas, acontecendo
em diferentes níveis: entre o antropólogo e os nativos e entre os
próprios nativos; entre as diferentes fontes de informação (orais,
escritas etc.); entre o antropólogo, seus próprios modelos teóri-
cos e a comunidade científica; entre o antropólogo e sua própria
pessoa, através do tempo; e entre os seus vários aspectos biográ-
ficos, pessoais, disciplinares. Além disso, na temporalidade da
escrita, na transcrição da realidade do dizer e na relação com
os leitores. O método geertziano assinala assim a passagem da
observação participante à observação da participação, segundo
a feliz expressão de Barbara Tedlock (1991).
A reflexividade se refere ao modo como as etnografias e
as situações a que se relacionam se elaboram e se modificam,
num processo dialético. Os relatos etnográficos que descrevem

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um dado espaço social são feitos de expressões que derivam o
próprio sentido específico desse mesmo espaço. (Watson, 1991,
p. 79) Mesmo não renunciando à possibilidade de avaliar as pró-
prias afirmações em termos coerentes, a perspectiva geertziana
exclui a possibilidade de verificações empíricas conclusivas e sem
resíduos. Se a teoria não é a representação de determinada rea-
lidade, mas um modelo de objetivação que organiza os fatos em
uma visão e constrói os próprios referentes, não é a replicação
empírica que pode verificar ou falsear uma teoria. O que é impor-
tante não é o grau de proximidade ao valor de verdade, mas o po-
der da configuração teórica de dar significado e mostrar um mun-
do possível de fenômenos. Os critérios de validação são, assim,
conduzidos a algo não ostensivo. A ciência de Geertz se movi-
menta no interior de uma circularidade hermenêutica. O critério
de validação se refere à coerência e ao acordo entre as partes e o
todo. (Gadamer, 1965, p. 276) Uma dada leitura dos significados
intersubjetivos de uma sociedade, instituições ou práticas é válida
porque consegue construir um sentido. O valor da teoria depende
da sua capacidade de mostrar seu objeto, de captar a particulari-
dade que, por sua vez, convalida a teoria geral.
A etnografia representa um acordo temporário sobre o sig-
nificado entre o antropólogo e os seus interlocutores, numa re-
lação contingente e transitória que inevitavelmente produz uma
compreensão parcial e essencialmente contestável.
O trabalho etnográfico se torna, portanto, inevitavelmente
“irônico”, reduzindo atitudes grandiosas e grandes esperanças
ao ridículo. (Geertz, 2000, p. 30 [37]) As conclusões teóricas
a que chega se fundam inexoravelmente num limite que confi-
gura, em sentido kantiano, o espaço das possibilidades de com-
preensão mostrando como a experiência do outro só se reali-
za a partir do “si-mesmo”. A reflexividade mostra-se, destarte,

36 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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característica intrínseca do discurso antropológico, enraizando
o antropólogo na própria cultura e exibindo o caráter negocial
e processual da construção do conhecimento.
Baseando-se em perspectivas construtivistas e negociais,
Geertz pôde ler as configurações das culturas e das relações
culturais no mundo contemporâneo, não mais em termos de
simples pertencimento a um conjunto compacto e coerente ou
como atributos quase-naturais de realidades sociais fechadas e
indiferenciáveis. As culturas resultam, ao contrário, como o pro-
duto artificial, dinâmico e aberto de representações contingen-
tes, precárias e parciais, produtos caleidoscópicos, conjunturais
e fragmentários de estratégias ativamente articuladas por dife-
rentes indivíduos e grupos, em níveis variados.
Subtraindo a objetividade à cultura e mostrando seu aspec-
to fictício, a perspectiva geertziana demanda que o antropólogo
reflita sobre a imbricação entre sistemas simbólicos e sistemas
de poder e sobre a produção e reprodução das formas culturais;
convida-o, também, a considerar quem cria e quem define, ou
quem manipula, na contingência e com que finalidade, os signi-
ficados culturais, através de quais dinâmicas e de quais elemen-
tos, segundo quais concepções da cultura; sugere, ainda, elaborar
um pensamento social que consiga compreender a complexidade
da diferença, superando fáceis reducionismos, vazios universa-
lismos ou preocupantes naturalizações; define, por fim, o papel
precípuo do antropólogo como o de evidenciar a relatividade das
diversas posições, construídas na articulação de elementos díspa-
res, de maneira ao mesmo tempo expressiva e política.
Pondo em discussão as concepções felizes e reconciliadas da
globalização como algo de inexorável e, sobretudo, já aconte-
cido, que resolve os conflitos e a articulação interna, a aborda-
gem geertziana permite considerar as reelaborações locais da

Roberto Malighetti 37

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modernidade e estimula a analisar os modos como as ideias e
as práticas da modernidade são apropriadas e reinseridas nas
práticas locais, produzindo a fragmentação e a dispersão da mo-
dernidade em mais modernidades construídas “de baixo” e em
constante proliferação. As subjetividades marginais e periféri-
cas, marcadas por múltiplas tradições, podem assim ser com-
preendidas nas suas potencialidades alternativas de construir as
economias, de tratar as necessidades fundamentais, de formar
grupos sociais. A tarefa da antropologia se faz a de ilustrar as
diferenças cada vez mais sutis que constituem as realidades so-
ciais em termos complexos e identificar e propor apropriados
“usos da diversidade”, à parte de preocupantes “desencontros
entre civilizações”.

38 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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Capítulo I

A Antropologia Pós-Moderna

A crise dos fundamentos

Um indicador das grandes transformações que permearam quase


todos os campos científicos são as convenções usadas para desig-
nar a contemporaneidade. O uso do prefixo pós, em complexas
expressões pós-paradigmáticas, como pós-modernismo, pós-es-
truturalismo, pós-marxismo, pós-positivismo, pós-empirismo,
pós-industrialismo ou pós-colonialismo, denota as profundas
mudanças nas concepções, nos pressupostos e nas metáforas que
deram forma ao nosso modo de pensar o estatuto da ciência.
Realizando uma síntese de argumentações e conceitos de va-
riada procedência – da hermenêutica à fenomenologia, da filoso-
fia analítica à filosofia da ciência, da semiótica à crítica literária –,
os trabalhos de Geertz se inserem neste período de pós-condições,
definidas como uma “explosão de prefixos polêmicos (neo, pós,
meta, anti) e de títulos de forma subversiva” (depois da virtude,
contra o método, além da crença). (Geertz, 1988, p. 135 [177])

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Pondo-se em antagonismo ao que Lyotard (1979) chamou
de “metanarrações”, o pensamento geertziano rejeita os mo-
delos totalizantes, os conjuntos fechados de conceitos em cujo
âmbito a realidade possa encerrar-se em definitivo, os padrões
permanentes de racionalidade, as linguagens descritivas neu-
tras, a que apelar pela explicação e verificação. No início de
seu livro A interpretação das culturas, mencionando Susanne
Langer, Geertz sustenta uma tese tipicamente kuhniana: mesmo
os grandes paradigmas, após um período mais ou menos curto
de esplendor, terminam sendo substituídos:

Em seu livro Philosophy in a New Key, Susanne Langer observa


que certas ideias surgem com tremendo ímpeto no panorama
intelectual. Elas solucionam imediatamente tantos problemas
fundamentais que parecem prometer também resolver todos os
problemas fundamentais, esclarecer todos os pontos obscuros.
Todos se agarram a elas como um “abre-te sésamo” de alguma
nova ciência positiva, o ponto central em termos conceituais em
torno do qual pode ser construído um sistema de análise abran-
gente. […] Entretanto, ao nos familiarizarmos com a nova ideia,
após ela se tornar parte do nosso suprimento geral de conceitos
teóricos, nossas expectativas são levadas a um maior equilíbrio
quanto às suas reais utilizações, e termina a sua popularidade
excessiva. […] A segunda lei da termodinâmica ou princípio da
seleção natural, a noção da motivação inconsciente ou a orga-
nização dos meios de produção não explicam tudo, nem mesmo
tudo o que é humano […]. (Geertz, 1973, p. 1 [3])

Preenchendo o vazio epistemológico criado pela relação mi-


mética que as ciências humanas instauraram com o paradigma
moderno das ciências naturais, as reflexões de Geertz constituem
uma discussão crítica sobre os fundamentos da antropologia e

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das ciências sociais. Opõem-se, assim, ao esforço positivista por
aplicar às ciências humanas a noção de método elaborada pe-
las disciplinas biológicas e físicas, e, em geral, ao ideal de uma
ciência natural da sociedade, fundado, em termos imediatos e
relativamente não problemáticos, sobre fontes tipicamente mo-
dernas: o modelo indutivo baconiano; o sistema dedutivo carte-
siano; a observação experimental e a matematização galileana
do mundo físico; a fundação newtoniana da ciência experimen-
tal e descritiva. Esse ideal, sucessivamente reprojetado no sécu-
lo XX pelo neoempirismo do Círculo de Viena e desenvolvido
pelo neopositivismo de Neurath, Carnap e Morris, fundamenta
a unificação antimetafísica, metodológica e conceitual das ciên-
cias sobre a reconstrução racional e metalinguística. A análise
lógica da linguagem científica é concebida como o procedimen-
to unitário que reconstrói a estrutura racional das ciências e
assenta a verdade na traduzibilidade em uma linguagem-base, a
do espelhamento dos fatos.
No século XIX, delineia-se programaticamente o princípio de
um saber que entende os indivíduos como complexos sistemas fí-
sicos, e que difere em grau, mas não em gênero, das ciências natu-
rais. Procurando superar a crise de identidade determinada pelo
fato de serem pensadas “como um ramo subdesenvolvido das
ciências naturais” ou “como usurpador[a]s ignorantes e preten-
sios[a]s da missão das Humanidades, prometendo certezas onde
estas não pode haver existir” (Geertz, 1988, p. 27 [35]), as ciên-
cias sociais cuidaram de transformar-se “numa espécie de física
social, repleta de leis, formalismos e provas apodíticas”. (Geertz,
2000, p. 94 [91]) Por medo de serem marginalizados e “expul-
sos da mesa por não estarem adequadamente vestidos” (Geertz,
2000, p. 94 [91]), os cientistas sociais desenvolveram assim uma
science humaine que assumisse, de forma mecânica e normativa,

Roberto Malighetti 41

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a noção de método tomado da física e da biologia, tentando es-
pelhar a correção formal e o rigor metodológico dessas ciências.
Geertz opõe-se a esse programa positivista de unificação me-
todológica da ciência, recusando a analogia comtiana entre física
e sociologia e o propósito, daí decorrente, de elaborar uma or-
dem necessária de leis sociais, destinadas a possibilitar uma pre-
visão infalível dos fenômenos da sociedade. Substancialmente,
os princípios positivos, inadequados para as ciências sociais, são
considerados especulações abstratas e vagas que não conseguem
compreender as formas singulares e nem atendem aos próprios
requisitos de previsibilidade e embate empírico. (Feyerabend,
1975; Hesse, 1980; Kuhn, 1962; Lakatos e Musgrave, 1970)
Geertz questiona a confiança na adequação dos instrumen-
tos conceituais que guiaram a antropologia desde quando, no
início do século, esta ciência foi constituída como disciplina aca-
dêmica. Critica, daí, o mito de um método científico unívoco
e fixo que permita ao sujeito dispor de um “objeto”, a ele opos-
to, em termos objetivos e demonstráveis:

Uma das respostas a essa pergunta é que, embora ainda imper-


feito, está surgindo um desafio a algumas das premissas mais
importantes da ciência social estabelecida. A separação estrita
entre teoria e dados, a ideia do “fato bruto”; o esforço por
criar um vocabulário formal da análise purgado de qualquer
referência subjetiva; a noção de uma “linguagem ideal”; e a
alegação de neutralidade moral, a visão do Olimpo divina, a
“verdade divina” nenhuma dessas ideias pode prosperar quan-
do a explicação passa a ser vista como uma questão de co-
nectar a ação a seu significado e não o comportamento a seus
determinantes. (Geertz, 1983a, p. 34 [55])

42 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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Retomando as teorias pós-empíricas, Geertz contesta a ideia
interna, representacional e judicante do saber como “espelho da
natureza” (Rorty, 1980), recusando a concepção – inaugurada
pelo dualismo cartesiano da res cogitans e da res extensa – se-
gundo a qual o sujeito forma uma representação mental de dada
objetividade. Descarta, pois, o princípio empirista da experiência
sensível como base autônoma do saber, independente de qualquer
elemento teórico, e bem assim a consequente noção da teoria
como abstração indutiva, baseada na descoberta de relações cau-
sais e necessárias entre repetidas observações da natureza. Opõe-
se, ainda, ao modelo neopositivista da relação entre o nível fac-
tual dos dados e o nível formal da teoria, concebida como cálculo
que organiza formalmente um conjunto de objetos, subsumindo
as particularidades na linguagem naturalística e fiscalista da lei
geral. Rejeita, então, a relação verificacionista entre verdade e ex-
periência, baseada na independência do observativo e na redução
atomística da componente teórica aos dados do mundo.
Alvo principal de Clifford Geertz é a ideia de uma episte-
mologia “fundacionista”, nascida da individuação cartesiana
do cogito, lugar clássico da metáfora do “fundamento” e da
convicção de que a análise se deve resolver na pesquisa de um
ponto de Arquimedes sobre o qual erigirá todo o edifício do
conhecimento. (Rorty, 1980; Ryle, 1949) Nas ciências humanas,
tal concepção produziu um modelo mecanicista de explicação
“regressiva” que assinalou a evolução do pensamento antropo-
lógico: do evolucionismo ao funcionalismo, do marxismo ao
estruturalismo. A ideia de reduzir a riqueza da vida social e cul-
tural a alguma noção fundante de natureza biológica, econômi-
ca, psicológica ou neurológica, evidenciou-se insatisfatória para
explicar a complexidade da realidade social.

Roberto Malighetti 43

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A abordagem reducionista levou ao que Geertz denominou
a “concepção estratigráfica” do homem, fundada sobre rela-
ções hierárquicas entre as diferentes esferas da vida humana e
concebida sobre o modelo causal newtoniano. O homem seria,
pois, “movido” por “causas primeiras”, identificadas em algum
“ponto invariável de referência”: funcionamentos binários do
cérebro, relações de produção, pulsões, necessidades de base,
“glândulas pineais”, “mentes”, “naturezas” ou o que valha:

De acordo com essa concepção, o homem é um composto de


“níveis”, cada um deles superposto aos inferiores e reforçando
os que estão acima dele. À medida que se analisa o homem, re-
tira-se camada após camada, sendo cada uma dessas camadas
completa e irredutível em si mesma, e revelando uma outra
espécie de camada muito diferente embaixo dela. Retiram-se as
variegadas formas de cultura e se encontram as regularidades
estruturais e funcionais da organização social. Descascam-se
estas, por sua vez, e se encontram debaixo os fatores psicoló-
gicos – ‘as necessidades básicas’ ou o-que-tem-você – que as
suportam e as tornam possíveis. Retiram-se os fatores psicoló-
gicos e surgem então os fundamentos biológicos – anatômicos,
fisiológicos, neurológicos – de todo o edifício da vida humana.
(Geertz, 1973 [28])

As formas culturais são, assim, explicadas à base de fatos não


culturais. E, nesse caso, o trabalho do etnógrafo se reduz a referir
as várias expressões “superficiais” a estruturas subjacentes e fun-
dantes: os fenômenos, reagrupados, por meio do método compa-
rativo, em tipologias “universais” e em “uniformidades empíri-
cas”, são considerados como respostas cristalizadas a realidades
inexoráveis. Mencionando uma das interpretações mais famosas
dessa estratégia, o memorando “Toward a Common Language

44 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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for the Area of the Social Sciences”, escrito por seus mestres no
Department of Social Relations da Harvard University, Dunlop,
Gilmore, Kluckhohn, Parsons, e O. H. Taylor no início dos anos
1940, Geertz ilustra seus postulados:

A análise consiste, portanto, em combinar suportes universais


com necessidades subjacentes postuladas, tentando mostrar que
existe alguma combinação entre as duas. No nível social, é feita
referência a tais fatos irrefutáveis como o de que todas as socie-
dades, a fim de persistirem, têm que reproduzir seus membros ou
alocar bens e serviços, daí resultando a universalidade de alguma
forma de família ou alguma forma de troca. No nível psicológico,
recorre-se às necessidades básicas como o crescimento pessoal –
daí a ubiquidade das instituições educacionais – ou a problemas
pan-humanos, como a situação edipiana – daí a ubiquidade de
deuses primitivos e deusas dadivosas. Biologicamente, há o me-
tabolismo e a saúde; culturalmente, os hábitos alimentares e os
processos de cura. E assim por diante. O método é olhar as exi-
gências humanas subjacentes, de uma ou outra espécie, e tentar
mostrar que esses aspectos da cultura, que são universais, são,
para usar novamente a menção de Kluckhohn, ‘modelados’ por
essas exigências. (Geertz, 1973, p. 41 [31])

Geertz argumenta que não se pode manter essa visão estra-


tificada do homem: uma vez que os “níveis” são separados, fica
bastante difícil reuni-los num conjunto. Além disso, a rígida re-
lação causal entre os “estratos” e, sobretudo, a recondutibilida-
de a um princípio fundamental, além de não ser demonstrável,
na maioria dos casos, se resume a simples aproximações que
não chegam a compreender a multiplicidade das eventuais de-
terminações complexas de cada elemento:

Roberto Malighetti 45

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Não é difícil relacionar algumas instituições humanas ao que a
ciência (ou o senso comum) nos diz serem exigências para a exis-
tência humana, mas é muito mais difícil afirmar essa relação de
forma inequívoca. Qualquer instituição serve não apenas uma
multiplicidade de necessidades sociais, psicológicas e orgânicas
[…] mas não há qualquer modo de se afirmar, de forma precisa
e testável, quais as relações interníveis que se supõe manter-se.
A despeito do que possa parecer, não há aqui uma tentativa
séria de aplicar os conceitos e teorias da biologia, da psicologia
ou até mesmo da sociologia à análise da cultura (e, certamente,
nem mesmo uma sugestão do inverso), mas apenas a colocação,
lado a lado, de fatos supostos dos níveis cultural e subcultural,
de forma a induzir um sentimento vago de que existe uma espé-
cie de relação entre eles – uma obscura espécie de ‘modelagem’.
Não há aqui qualquer integração teórica, mas uma simples cor-
relação, assim mesmo intuitiva, de achados separados. Com a
abordagem de níveis não podemos jamais, mesmo invocando
‘pontos invariantes de referência’, construir interligações fun-
cionais genuínas entre os fatores cultural e não-cultural, apenas
analogias, paralelismos, sugestões e afinidades mais ou menos
persuasivas. (Geertz, 1973, p. 42-43 [31])

A reflexão geertziana se empenha por um conhecimento das


relações entre o biológico, o psicológico e o sociocultural, opon-
do-se à sistematização dessas relações numa espécie de “cadeia
hierárquica do ser”, na qual cada nível emerge em dependência
do imediatamente precedente e a ele é redutível. A sua argumen-
tação apoia-se na contemporaneidade da coevolução biológica e
cultural e no caráter funcionalmente incompleto do sistema bio-
lógico e nervoso. Exclui, portanto, a possibilidade de tratar os
“estratos” como realidades descontínuas, autônomas e fechadas,
conexas apenas externamente por meio de causas ou acidentes.
Pelo contrário, incita a considerar os diferentes planos como

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“complementos” e não “níveis”, como “aspectos” e não “enti-
dades”. (Geertz, 2000, p. 206 [181]) O homem é definido como
“um animal incompleto”, que se diferencia dos não-humanos
não tanto pela quantidade e pela variedade de coisas que deve
aprender antes de poder funcionar, mas por sua capacidade de
aprender (Geertz, 1973, p. 46 [34]): “As nossas ideias” – os nos-
sos valores, os nossos atos – “as próprias emoções”, são, como o
nosso próprio sistema nervoso, “artefatos culturais”, acionando
tendências, capacidades, e disposições com as quais nascemos,
mas não menos artefatos. (Geertz, 1973, p. 50-51 [59])
Geertz contesta a teoria do ponto crítico do surgimento
da cultura sustentada por Kluckhohn (1953), segundo a qual
o desenvolvimento da capacidade de adquirir cultura foi uma
espécie de “acontecimento repentino” e integral na filogenia
dos primatas, efeito secundário de causas orgânicas anteriores,
acontecidas sobretudo na estrutura do córtex cerebral. Por esse
postulado, expresso por palavras de Kroeber, uma mudança
quantitativa teria provocado uma diferença qualitativa radical
e produzido um animal “cultural” cujos genitores não estavam
geneticamente predispostos “a comunicar-se, a aprender e a en-
sinar, a generalizar a partir de uma cadeia interminável de senti-
mentos e atitudes discretas”. Mas esse animal “equipou-se a um
ponto a partir do qual ‘[…] começou a ser capaz de agir como
receptor e transmissor, e iniciou a acumulação que é a cultura’”.
(Kroeber, como citado em Geertz, 1973, p. 63 [46]) Em contras-
te com tal posição, Geertz põe em relevo a integração de fatores
biológicos e fatores culturais: “Sem homens certamente não há
cultura: do mesmo modo, e mais importante, sem cultura não
existiriam homens” (Geertz, 1973, p. 49 [35]):

Roberto Malighetti 47

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Os homens sem cultura não seriam os selvagens inteligentes de
Lord of the Flies, de Golding, atirados à sabedoria cruel dos
seus instintos animais; nem seriam eles os bons selvagens do
primitivismo iluminista, ou até mesmo, como a antropologia
insinua, os macacos intrinsecamente talentosos que, por algum
motivo, deixaram de se encontrar. Eles seriam monstruosida-
des incontroláveis, com muito poucos instintos úteis, menos
sentimentos reconhecíveis e nenhum intelecto: verdadeiros ca-
sos psiquiátricos. (Geertz, 1973, p. 49 [35])

Geertz rechaça a concepção sequencial das relações entre


a evolução física e o desenvolvimento cultural do homem, rei-
vindicando, ao contrário, uma concepção interativa daquelas
relações. Desta forma, fatores físico-naturais e culturais sobre-
puseram-se ao longo de um milhão de anos, de tal modo que a
cultura, em vez de “pespegar-se” a um animal já completo, foi
“um ingrediente, e um ingrediente essencial”, na produção desse
mesmo animal. (Geertz, 1973, p. 47 [34]) À ideia de seres anato-
micamente assemelhados ao homem que lentamente descobrem
a cultura, contrapõe-se a de uma estrutura humana que é resul-
tante da cultura. (Geertz, 1973, p. 67 [49]) O sistema nervoso
central humano é definido pelo fato de ser “incapaz de dirigir
o nosso comportamento ou organizar a nossa experiência sem
a orientação fornecida por sistemas de símbolos significantes”
(Geertz, 1973, p. 49 [35]):

Entre o padrão cultural, o corpo e o cérebro foi criado um


sistema de realimentação (feedback) positiva, no qual cada um
modelava o progresso do outro, um sistema no qual a intera-
ção entre o uso crescente das ferramentas, a mudança da ana-
tomia da mão e a representação expandida do polegar no cór-
tex é apenas um dos exemplos mais gráficos. Submetendo-se

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ao governo de programas simbolicamente mediados para a
produção de artefatos, organizando a vida social ou expressan-
do emoções, o homem determinou, embora inconscientemen-
te, os estágios culminantes do seu próprio destino biológico.
Literalmente, embora inadvertidamente, ele próprio se criou.
(Geertz, 1973, p. 48 [35])

Compreender o sistema nervoso como produto cultural


acompanha-se à convicção de que o grosso das mudanças bio-
lógicas que deram origem ao homem moderno a partir de seus
progenitores mais imediatos teve lugar no encéfalo, produzindo
um inchamento que atingiu as atuais proporções (cerca de 1.500
cm3). Geertz afirma que a maior parte da expansão cortical hu-
mana não precedeu o “início” da cultura, visto que o cérebro
do Homo sapiens é cerca de três vezes maior que o dos austra-
lopitecos. A sua teoria não aceita que a capacidade de produzir
cultura seja o resultado unitário de uma mudança ligeiramente
quantitativa, mas qualitativamente “metastática”, da espécie do
congelamento da água (Geertz, 1973, p. 64-65 [48]): a evolução
mental e a acumulação cultural não são, para Geertz, dois pro-
cessos separados, um causa o outro:

E torna-se evidente, de forma ainda mais crucial, que a acu-


mulação cultural não só já estava encaminhada muito antes de
cessar o desenvolvimento orgânico, mas que tal acumulação
certamente desempenhou um papel ativo moldando os estágios
finais desse desenvolvimento. Embora seja aparentemente ver-
dadeiro que a invenção do aeroplano não acarretou mudanças
corporais visíveis ou qualquer alteração (inata) da capacidade
mental, isso não ocorreu, necessariamente, com a ferramenta de
pedra ou o machado rústico, em cujo rastro parece ter surgido
não apenas uma estatura mais ereta, uma dentição reduzida e

Roberto Malighetti 49

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uma mão com domínio do polegar, mas a própria expansão do
cérebro humano até seu tamanho atual. Como a manufatura
de ferramentas é uma apologia à habilidade natural e à previ-
são, sua introdução deve ter influído na mudança das pressões
seletivas de forma a favorecer o rápido crescimento do cérebro
anterior, como parece ser o caso também da organização social,
da comunicação e da regulamentação moral, as quais, há razões
para crer, também ocorreram durante esse período de transição
entre a mudança cultural e biológica. (Geertz, 1973, p. 67 [49])

Geertz assume o desafio lançado por Clark, de “tornar a


reunir […] o cérebro, o corpo e o mundo”, rejeitando a ideia
de que o cérebro do Homo sapiens é capaz de funcionamento
autônomo, ou antes, de que pode operar tout-court como um
sistema impulsionado endogenamente, à parte do contexto: os
cérebros – ele afirma – “não estão num tonel, mas em nosso
corpo. Nossa mente não se encontra em nosso corpo, mas no
mundo […] junto com os deuses, os verbos, as pedras e a políti-
ca” (Geertz, 2000, p. 206 [181]):

Pelo menos desde a descrição pormenorizada dos estágios in-


cipientes e pré-linguísticos da hominização (crânios pequenos,
estatura ereta, utensílios planejados) iniciada há cerca de meio
século com a descoberta de fósseis pré-pitecantropoides e dos
sítios do início do pleistoceno, o fato de o cérebro e a cultura
terem evoluído juntos, numa dependência recíproca para sua
própria realização, tornou insustentável a concepção do fun-
cionamento mental humano como um processo intracerebral
intrinsecamente determinado, que seria ornamentado e am-
pliado, mas dificilmente gerado por recursos culturais. (Geertz,
2000, p. 205 [181])

50 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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O que, segundo Geertz, distingue o homem do proto-homem
é a complexidade da organização nervosa, não a forma geral do
corpo. O sistema nervoso central – “especialmente a sua maior
maldição e glória, o neocórtex” – se não for culturalmente rea-
bastecido, se atrofia. A longa justaposição das mudanças culturais
e biológicas produziu uma intensa concentração no desenvolvi-
mento neural e refinamentos associados dos vários comporta-
mentos, por exemplo, no uso das mãos e na locomoção bípede:

A Era Glacial parece ter sido não apenas a época do alargamento


da fronte e do encolhimento das mandíbulas, mas uma época
em que se forjaram praticamente todas essas características da
existência do homem que são as mais graficamente humanas:
seu sistema nervoso perfeitamente encefalado, sua estrutura so-
cial baseada no tabu do incesto e sua capacidade de criar e usar
símbolos. O fato de esses diversos aspectos de humanidade emer-
girem juntos, numa interação complexa uns com os outros, em
vez de surgirem em série, como se propunha há tempos, é de im-
portância excepcional na interpretação da mentalidade humana,
pois sugere que o sistema nervoso do homem não permite apenas
que ele adquira cultura, mas positivamente exige que o faça para
poder simplesmente funcionar. (Geertz, 1973, p. 67-68 [50])

Ciências naturais e ciências humanas

Municiando-se de um vasto sincretismo que vai além do pen-


samento hermenêutico e inclui a sociologia compreensiva e a
filosofia da linguagem, a fenomenologia e a filosofia da ciência,
a semiótica e a crítica literária, Geertz abandona a ideia de uma
ciência social baseada nas ciências naturais:

Roberto Malighetti 51

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A penetração nas ciências sociais de conceitos de filósofos tais
como Heidegger, Wittgenstein, Gadamer ou Ricoeur, e de críti-
cos como Burke, Frye, Jameson ou Fish, ou ainda de subversi-
vos para qualquer fim como Foucault, Habermas, Barthes ou
Kuhn, torna altamente improvável qualquer tipo de retorno a
uma concepção tecnológica destas ciências. É bem verdade que
a rejeição desta concepção não é um fato inteiramente novo.
O nome de Weber terá sempre que ser invocado neste caso,
bem como o de Freud e de Collingwood. A novidade é a exten-
são desta rejeição. (Geertz, 1983a, p. 3-4 [10])

A reação geertziana à analogia entre ciências humanas e


ciências naturais não reproduz a lógica dicotômica historicista
e neokantiana, inaugurada no século XVIII por Vico e Herder,
e cujas elucubrações sobre as produções intelectuais humanas
enquanto lugares do saber objetivo e universal tornaram-se alter-
nativa tanto ao racionalismo matemático cartesiano e às ciências
experimentais baconianas, quanto ao tratado sobre a natureza
humana de Hume, baseado no empirismo lockiano e na unifica-
ção metodológica das ciências promovida por John Stuart Mill.
Geertz repensa o estatuto científico do saber numa trajetória
que vem de Max Weber e da filosofia da ciência pós-empirista, e
supera a distinção feita pelo historiador Gustav Droysen (1868)
entre, de um lado, as ciências naturais (Naturwissenschaften),
físico-matemáticas, positivistas e pragmáticas, caracterizadas
pelo procedimento da explicação (Erklaren) e, de outro, as ciên-
cias do espírito (Geisteswissenschaften), hermenêuticas, carac-
terizadas pelo procedimento da compreensão (Verstehen). Para
a epistemologia geertziana, diferentemente do que pretendiam
Dilthey e Schleiermacher, a autonomia das ciências humanas
não se fundamenta em um objeto específico (a realidade psí-
quica contraposta à física e analisável segundo o procedimento

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psicológico da intuição imediata) ou na consequente relação en-
tre sujeito e objeto (contraposta à sua separação operada pelas
ciências naturais). Geertz recusa a psicologia descritiva diltheya-
na, baseada na compreensão interna e empática da experiência
(Erlebnis) de uma unidade que reconhece no interlocutor asso-
ciações psíquicas análogas às do sujeito cognoscente.
A perspectiva geertziana coloca-se, também, como antítese
ao deslocamento metodológico feito por Windelband, o qual
contrasta as ciências naturais, nomotéticas e interessadas pe-
los nexos gerais entre fenômenos, às ciências ideográficas, que
buscam conhecer o particular, o individual, o irrepetível. Para
Windelband, o fundamento hipotético-dedutivo das ciências na-
turais destina-se a estabelecer um conjunto de leis gerais sobre
cuja base explica dedutivamente os fenômenos, prosseguindo
para um nível sempre crescente de generalização que classifica
os fenômenos sob a necessidade da lei universal. O modelo das
ciências do espírito, pelo contrário, persegue o conhecimento do
particular, do singular, utilizando regras gerais para compreen-
der o caráter específico dos fenômenos.
A antropologia de Geertz reconhece que a dicotomização
desenvolvida pela tradição alemã teve o mérito de fazer deco-
lar a moderna hermenêutica de Heidegger, Gadamer, Ricoeur e
Habermas e, sobretudo, de defender a integridade e validade das
ciências humanas “ante as enormes pressões exercidas sobre elas
no auge do positivismo, fosse esse lógico ou de outra nature-
za”. (Geertz, 2000, p. 145 [133]) Ele, no entanto, ultrapassa essa
contraposição, concentrando-se na análise dos processos como
ambas as ciências – as da natureza e as do espírito – constroem
os próprios referentes. Sua proposta é substituir “um abismo
completo, fixo e intransponível” entre os dois campos de saber,
por “uma mera diferença” (Geertz, 2000, p. 145 [132]) e realizar

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uma mudança profunda “alterando não tanto a definição do que
é conhecimento, mas principalmente a definição daquilo que
queremos saber” (Geertz, 1983a, p. 34 [55]): “não é só a teoria,
ou a metodologia, ou a problemática que se alteram, mas o pró-
prio objetivo do empreendimento”. (Geertz, 1983a, p. 8 [17])
Conforme será examinado no Capítulo III, Geertz pensa
weberianamente o problema epistemológico como problema
de objetivação e análise dos procedimentos de construção dos
objetos científicos, interrogando-se não sobre os dados, mas so-
bre as formas de visibilidade e cognoscibilidade dos dados. Para
Weber, o conhecimento é objetivo não porque fornece a norma
dos fatos, mas porque produz as condições de pensabilidade dos
fatos entre conexões conceituais, configurando racionalmente
os eventos em nexos significativos. Fazendo ver que “o signifi-
cado não é intrínseco aos objetos, atos, processos e assim por
diante que o possuem, mas – como Durkheim, Weber e muitos
outros já enfatizaram – lhes é imposto” (Geertz, 1973, p. 405
[179]), a perspectiva geertziana fundamenta-se sobre a análise
dos modos como se constituem as condições de possibilidade e
de pensabilidade dos “fatos”:

Tudo é manchado com um significado imposto e os compa-


nheiros, como os grupos sociais, as obrigações morais, as insti-
tuições políticas ou as condições ecológicas, só são apreendidos
através de uma tela de símbolos significantes que constituem os
veículos de sua objetificação, uma tela que está, portanto, mui-
to longe de ser neutra no que se refere à sua natureza ‘real’. Os
consócios, os contemporâneos, os predecessores e os sucessores
tanto nascem como são feitos. (Geertz, 1973, p. 367 [154])

54 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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Articulando a sociologia compreendente e a hermenêutica,
Geertz reafirma que o que conhecemos não são os “dados”,
mas o modo como os temos “fatos”: “os fatos são produzidos
(como a etimologia – factum, factus, facere), por si só, deveria
nos alertar”. (Geertz, 1995, p. 62 [57]) Nós fazemos os objetos
presentes a nós mesmos, tendo-os organizado e tornado visíveis
mediante uma apresentação simbólico-formal: não Ding, dado
substancial achado imediatamente “lá fora” (Gegen-stand), mas
Sache, a questão, aquilo de que se trata. (Gadamer, 1965)
O ob-jectum é o efeito de uma construção “ideal” ou “vir-
tual”, produzida pelos dispositivos técnicos de esquematização
e modelação. Mesmo a apresentação das coisas como in se tor-
na-se uma posição particular em que o homem decide colocá-las
e colocar-se em confronto com elas. (Gadamer, 1965)
Por essa perspectiva, os objetos, das ciências humanas ou
naturais, não se oferecem à neutralidade de um método de ob-
servação e de representação. São, antes, constructos artificiais,
resultado de complexos procedimentos de colocação em for-
ma. Como lembra Borutti, os objetos se tornam, segundo as
expressões de Bachelard (1940), “realizações bem conduzidas”
ou sur-objects, objetos “nomológicos”, isto é, dados por uma
lei, e portanto lugares teóricos e constructos formais, resultados
de procedimentos de objetivação. (Borutti, 1999, p. 16-19) Não
apenas os objetos das ciências sociais, como também os objetos
das ciências “duras”, ou os micro objetos da física subatômi-
ca (prótons, nêutrons, elétrons, quarks), não podem ser pensa-
dos sob um ponto de vista “individualizante” como fatos ne-
wtonianos “simples”, associáveis segundo o paradigma causal
e pensáveis segundo as categorias autoevidentes da mecânica:
massa, força e movimento. As partículas do mundo subatômico
não constituem objetos empíricos presentes na sensação, nem

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imediatamente, nem indiretamente no contexto idealizado do
experimento. As micropartículas são, pelo contrário, somente
observáveis interagindo com uma radiação que modifica as con-
dições do sistema. A realidade da mecânica quântica baseia-se
no princípio de que em cada mensuração há uma interação fi-
nita entre objeto a medir e instrumento, cujo valor permanece
indeterminado: não é possível medir ao mesmo tempo a posição
e a velocidade de uma partícula, nem conduzir experimentos
prescindindo das condições específicas da observabilidade ex-
perimental. O indeterminismo restitui assim um mundo de ob-
jetos não absolutos e não localizáveis, alternativo à realidade
euclidiana dos corpos como figuras circunscritas por um espaço
métrico, indeformáveis em seus movimentos e definíveis na ve-
locidade e na localização. (Borutti, 1999, p. 49-55)
Entender o que sejam os objetivos significa, pois, compreen-
der as condições de sua pensabilidade. Os experimentos em la-
boratório ou o trabalho de campo tornam-se formas de constru-
ção da objetividade em que a presença do sujeito determina as
condições de construção do objeto. Não foi o relativismo ou o
subjetivismo “hermenêutico-psicodélico” que, segundo Geertz,
modificaram a concepção moderna da ciência, mas, antes, os
“fatos estranhos” da pesquisa:

Enquanto não havia nada de mais ligeiro que um maratonista,


a física de Aristóteles funcionou bastante bem, a despeito dos
paradoxos eleáticos. Enquanto os instrumentos técnicos mal
podiam fazer-nos avançar um pouco e sair um pouco do mun-
do dado pelos sentidos, a mecânica de Newton funcionou mui-
to bem, a despeito das perplexidades da ação à distância. Não
foi o relativismo – o Sexo, a Dialética e a Morte de Deus – que
matou o moto perpétuo, o espaço euclidiano e a causalidade

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universal. Foram fenômenos instáveis, feixes de ondas e sal-
tos orbitais, diante dos quais eles ficaram impotentes. (Geertz,
2000, p. 64 [66])

Não obstante sejam difundidas tais concepções, a imagem


da ciência que resiste, garantindo-lhes a hegemonia na lingua-
gem especializada de diversas disciplinas, ademais da linguagem
ordinária, continua a fundar-se, em termos dessuetos, sobre uma
imagem tipicamente moderna, de “ordens naturais”, “verdade” e
“métodos”. Geertz salienta que as referências dominantes no es-
tatuto científico do saber são ainda governadas pelo modelo mo-
derno, e “praticamente todas dizem respeito às etapas iniciais da
revolução científica (Bacon, Galileu, Descartes, Newton, Boyle),
e não a nada que seja remotamente contemporâneo”. (Geertz,
2000, p. 144 [132]) “A concepção ‘verdadeiramente científica’
nas ciências humanas tem sido rígida e anacrônica”, e, além de
“profundamente desinformada das realidades das ‘verdadeiras
ciências’” (Geertz, 2000, p. 145 [132]), ignora as contribuições
– não mais tão recentes – “da física das partículas, da neurofisio-
logia, da mecânica estatística ou da matemática da turbulência”.
(Geertz, 2000. p. 146 [136]) A tendência “à supersimplificação”
(Geertz, 2000, p. 146 [133]) produziu um modelo redutivo e ob-
jetivista de cientificidade em que as ciências humanas procuram
sustentar-se para a construção de explicações do comportamento
humano. A analogia com as ciências naturais assenta-se, portan-
to, sobre imitações “estéreis”, “mal-acabadas” e “implausíveis”,
“concepções fora de moda” induzidas aos cientistas sociais “que
desconhecem no que consistem, de fato, a física, a química, a
fisiologia e similares”. (Geertz, 2000, p. 156 [142]) Geertz dá
alguns exemplos dessas “concepções fora de moda”:

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o florescimento da biologia (não só da genética e da microbio-
logia, mas da embriologia, imunologia e neurofisiologia) a um
ponto em que ela ameaça o status da física como arquétipo da
indagação científica; […] a volta da cosmologia como um inte-
resse cultural geral; o surgimento da matemática experimental;
o crescimento das ‘ciências da complexidade’ mediadas pelos
computadores (entropia negativa, fractais e atratores estra-
nhos). (Geertz, 2000, p. 147 [134-35])

Por um lado, o paradigma de cientificidade mantém-se re-


fém de uma unificação do saber baseada em “antiquadas e fal-
sas concepções do ‘self’” por parte das ciências naturais pen-
sadas ‘em sua imagem continental de bloco indiviso, unido em
seu compromisso com os métodos galileanos’”. (Geertz, 2000,
p. 150 [137]) Em termos mais abrangentes, tal paradigma es-
timularia preocupantes interferências religiosas e místicas que
“supõe-se unifiquem tudo a um nível mais alto, profundo e vas-
to” e que Geertz se limita a exemplificar com os “vários tipos
de irracionalismos da Nova Era (a física zen, a cosmologia dos
maharishis, a parapsicologia)”. (Geertz, 2000, p. 156 [142]) Por
outro lado, e em alternativa, reproduz a divisão dos saberes tal
como pensada por “alguns teólogos do século XIX” (Geertz,
2000, p. 136 [142]), confinando a ciência natural “à sua própria
esfera, estrelas, pedras, rins e ondas […], longe das questões em
que ‘ter importância’ é importante” (Geertz, 2000, p. 156 [142])
e garantindo, além disso, os gêneros disciplinares e a hegemonia
das abordagens modernas.
Geertz propõe superar o modelo bipolar e dicotômico e os
saberes disjuntivos para, em vez disso, buscar a interdependência
das disciplinas, tentando elaborar semelhanças e diferenças de
família entre paleontologia e física das partículas, topologia e

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entomologia (Geertz, 2000, p. 150 [136]): citando Rorty, indaga
se a sociologia está “mais próxima da física que da crítica literá-
ria”, ou se “a ciência política é mais hermenêutica que a micro-
biologia, a química mais explicativa que a psicologia”. (Geertz,
2000, p. 150 [137]) A ciência geertziana identifica-se com a li-
berdade de fazer associações e separações entre campos de in-
dagação, violando linhas metodológicas tidas como invioláveis:

Dir-se-ia que o começo desta reformulação envolveria […] a


imagem (e a realidade) de uma reunião frouxa de comunida-
des de pesquisa com focos diferentes, muito voltadas para elas
mesmas e com graus variáveis de superposição, tanto nas ciên-
cias humanas quanto nas ciências naturais […] e com isso o
abandono da concepção taylorista-diltheyana de duas emprei-
tadas continentais, uma movida pelo ideal de uma consciência
desengajada, olhando com segurança cognitiva para um mun-
do absoluto de fatos verificáveis, outra movida pelo ideal de
um self engajado lutando na incerteza com sinais e expressões
para dar um sentido compreensível à ação intencional. O que
se tem, segundo parece, é bem mais um arquipélago entre cujas
ilhas, grandes, pequenas e médias, as relações são complexas e
ramificadas, e as ordenações possíveis aproximam-se do infin-
dável. (Geertz, 2000, p. 150 [136])

Geertz exemplifica que diferentes orientações de pesquisa,


como os “estudos das ciências”, a pesquisa histórica, social, cul-
tural e psicológica sobre “formas de vida vivida […] no con-
texto de aceleradores lineares, laboratórios de endocrinologia,
salões de demonstração da Royal Society, observações astronô-
micas, estações de biologia marinha, ou as comissões de planeja-
mento da Nasa” (Geertz, 2000, p. 154 [140]) contribuíram para
complicar o quadro dualístico diltheyano. Encarando o desafio

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lançado por Paul Feyerabend (1975), essas orientações de pes-
quisa voltam-se para a ciência sob um ponto de vista hermenêu-
tico, invertendo os termos e apoiando-se “nas coisas sociais […]
para explicar as coisas naturais”. Analisam, assim, as ciências
como “uma ação social dotada de sentido” e examinam a retó-
rica dos discursos científicos, descrevendo os agentes humanos e
não humanos como nós coativos em redes ramificadas de senti-
do e poder, e estudando etnograficamente as práticas de labora-
tório, as “construções do fato”, os instrumentos e os processos
de explicação. (Geertz, 2000, p. 155 [141])

Metáforas lúdicas, dramáticas e textuais

Na grande “mistura de gêneros” acadêmicos que, segundo


Geertz, caracteriza a contemporaneidade, as ciências sociais co-
meçaram a remexer as fronteiras dos mapas intelectuais, des-
frutando, mais livremente, de afinidades e convergências com
outras áreas do saber. Isso as conduziu a aproximarem-se de
modelos das disciplinas humanísticas, mudando substancial-
mente as próprias perspectivas sobre a natureza e os objetivos
do conhecimento:

[…] [E]sta situação fez com que um número cada vez maior de
pessoas que desejam explicar o porquê de insurreições, ou hos-
pitais, ou por que razão algumas piadas tornam-se favoritas,
começassem a buscar respostas na linguística, na estética, na
história cultural, no direito, ou na crítica literária, em vez de ir
buscá-las onde o faziam antes, na mecânica ou na fisiologia. Se
tudo isso está tornando as ciências sociais menos científicas ou
as ciências humanas mais científicas (ou, como creio, mudando

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nossa opinião, que nunca foi mesmo muito estável, sobre o que
é, ou não, ciência), não está muito claro e, talvez nem seja lá
muito importante. O que é evidente, e importante, é que esta
situação está modificando as características de ambas as ciên-
cias – e, sobretudo, está criando inquietações.

Cria inquietações não só porque ninguém sabe exatamente


onde tudo isso vai parar, mas também porque à medida em que
a linguagem de explicação social, com suas inflexões e suas
imagens, se modifica, modificam-se também nosso entendi-
mento do que constitui essa explicação […]. Não é só a teoria,
ou a metodologia, ou a problemática que se alteram, mas todo
o objetivo do empreendimento. (Geertz, 1983a, p. 8 [16-17])

Geertz volta a atenção para as grandes mudanças nas afi-


nidades de estudo – “quem toma emprestado, o quê, de quem”
–, sublinhando como diversas linguagens das ciências sociais
substituíram as metáforas tomadas de empréstimo às ciências
naturais por analogias provenientes do mundo dos jogos, da
dramaturgia, da literatura:

[…] [A] remoldagem da teoria social em termos mais conhe-


cidos por jogadores e esteticistas do que por bombeiros e
engenheiros já está em processo avançado. O fato de que as
ciências sociais estão recorrendo às humanidades na busca de
suas analogias explicativas, é, ao mesmo tempo, evidência da
desestabilização dos gêneros e de que agora chegou a vez da
interpretação. O resultado mais visível deste processo é que os
estudos sociais estão adotando um novo estilo de discurso. Os
instrumentos do raciocínio estão se modificando. Representa-
se a sociedade cada vez menos como uma máquina complicada
ou como um quase-organismo, e, cada vez mais, como um jogo
sério, um drama de rua, ou um texto sobre comportamento.
(Geertz, 1983a, p. 23 [38])

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A abordagem interpretativa ensejou profunda mudança nas
analogias e nas metáforas que deram forma aos empreendi-
mentos científicos e, logo, ao modo de conceber os objetos e
a finalidade da pesquisa. As ciências interpretativas passaram
do uso de metáforas “propulsivas” (“a linguagem dos pistons”)
às metáforas “lúdicas”, (“a linguagem do lazer”), “buscando,
hoje, algo capaz de demonstrar a conexão entre crisântemos e
espadas, mais que um método que identifique a relação entre
planetas e pêndulos” (Geertz, 1983a, p. 26 e p. 19 [43 e 33]):

Nos estágios iniciais das ciências naturais, […] foi o mundo


artesanal e, mais tarde, a indústria que, na maioria dos casos,
forneceram as realidades mais inteligíveis (mais inteligíveis
porque, como disse Vico, certum quod factum, tinham sido
criadas pelo próprio homem) que permitiriam ‘trazer’ as menos
inteligíveis (menos inteligíveis, porque o homem não as criara)
para o âmbito do entendível. A ciência deve mais à máquina
a vapor, que esta à ciência; sem a arte do artesão que tingia,
a química não existiria; a metalurgia é a mineração teorizada.
Nas ciências sociais, ou pelo menos naquelas que abandona-
ram uma concepção reducionista de sua função, as analogias
são obtidas, com frequência cada vez maior, nas atividades cul-
turais e não instrumentos de manipulação física – no teatro, na
pintura, na gramática, na literatura, no direito, e até nos jogos.
O que a alavanca fez um dia pela física, o movimento de uma
peça de xadrez promete fazer hoje para a sociologia. (Geertz,
1983, p. 22 [37-38])

A escolha de determinada figura retórica representa um


modo de impor uma leitura particular e específica. Reportando-
se à tradição pós-empírica e à nova retórica, Geertz cita autores
muito distintos entre si, como Susanne Langer, William Percy,

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Max Black, Nelson Goodman, Ludwig Wittgenstein e John
Locke, acomodando-os no entender a metáfora não como fato
estilístico e, pois, parafraseável, mas como agente de reestru-
turação do sentido e do conhecimento. A metáfora é pensada
como um evento semântico que “constrói” os objetos, permitin-
do-lhes serem vistos sob uma nova luz que se realiza no encontro
de horizontes de pensabilidade heterogêneos. O modelo é o da
Poética de Aristóteles vista através de Paul Ricoeur. A metáfora,
enquanto redescrição poiética, produz imagens inéditas sobre a
realidade e inaugura novos significados: metáfora viva, segundo
a significativa expressão de Ricoeur (1975). Em uma passagem
que lembra a nova retórica e o conceito de “metáfora interativa”
de Max Black, Geertz ilustra a própria concepção sobre o modo
de funcionamento da metáfora:

Qualquer forma expressiva atua (quando atua) desarrumando


os contextos semânticos de tal maneira que as conveniências
impostas convencionalmente a certas coisas são impostas não
convencionalmente a outras as quais são vistas, então, como
as possuindo, realmente. Chamar o vento de aleijado, como
o fez Stevens, fixar a tonalidade e manipular o timbre, como
o faz Schoenberg ou, aproximando-se mais do nosso caso, re-
tratar um crítico de arte como um urso dissoluto, como o faz
Hogarth, é cruzar os limites conceituais. As conjunções esta-
belecidas entre os objetos e suas qualidades são alteradas e os
fenômenos – tempo de outono, forma melódica ou jornalis-
mo cultural – são revestidos de significados que normalmente
apontam para outros referentes. (Geertz, 1973, p. 447 [209])

Ler os fenômenos culturais com metáforas lúdicas, drama-


túrgicas ou textuais, produz implicações decisivamente diferen-
tes de vê-los através das metáforas biológicas que assinalaram a

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história da disciplina (evolução, função, estrutura, homeostase,
superorgânico). Essas analogias, inauguradas pelo evolucionis-
mo de Herbert Spencer, geraram uma imagem organicista da
sociedade como um sistema que se desenvolve à base da dife-
renciação estrutural e funcional. O recurso a analogias literá-
rias assinala a mudança rumo a uma abordagem interpretativa
e semântica, que não pensa a sociedade como um organismo ou
uma máquina a ser explicada, mas como um conjunto de signi-
ficados a ser compreendido:

Colocar o assunto dessa maneira é engajar-se numa espécie de


reenfoque metafórico de caso próprio, pois ele muda a análise
das formas culturais de uma tentativa de traçar um paralelo
geral para dissecar um organismo, diagnosticar um sintoma,
decifrar um código ou ordenar um sistema – as analogias do-
minantes na antropologia contemporânea – para um paralelo
geral da penetração de um texto literário. Se se toma a briga de
galos, ou qualquer outra estrutura simbólica coletivamente, or-
ganizada, como meio de ‘dizer alguma coisa sobre algo’ (para
invocar um famoso rótulo aristoteliano), enfrenta-se, então,
um problema não de mecânica social, mas de semântica social.
(Geertz, 1973, p. 448 [209-10])

Embora Geertz observe que há muitas analogias humanísticas


na cena das ciências sociais – as análises da linguagem falada de
Austin e Searle; os modelos discursivos de Habermas e Foucault;
as abordagens figurativas de Cassirer, Langer, Gombrich e
Goodman; e a “criptologia superior” de Lévy-Strauss (Geertz,
1983a, p. 23 [54]) – ele fundamentalmente utiliza de forma ori-
ginal três importantes metáforas: o jogo, o drama e o texto.
A metáfora do jogo, elaborada por Geertz ao interpretar a con-
tratação nos bazares médio-orientais, é muito difundida na teoria

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social contemporânea e entra no pensamento geertziano a partir
de três fontes que o autor reconhece: a concepção de Wittgenstein
quanto às formas de vida “como jogos verbais”, da qual provém a
noção de ação intencional e de “seguir uma regra” (Wittgenstein,
1953); a visão lúdica da cultura, de Huizinga (1938) e, dela, o
jogo “como forma paradigmática da vida coletiva”; as novas es-
tratégias da Teoria dos jogos e do comportamento econômico, de
von Neumann e Morgenstern (1944), e a visão desses autores so-
bre o comportamento social “como uma manobra recíproca para
obter resultados distributivos”. (Geertz, 1983a, p. 24 [40])
Geertz considera, ainda, o modelo do jogo de Erving Goffman
(1967) em suas múltiplas aplicações (à etiqueta, à diplomacia, ao
crime, às finanças, à publicidade, ao direito, à sedução e ao deco-
ro cotidiano), lendo as dinâmicas que se realizam nos diferentes
lugares como “partidas informativas”, estruturas confusas de jo-
gadores, times, movimentos, posições, sinais, estratégias, estados
informativos, jogadores de azar. O conflito social, o desvio, o
empreendedorismo, os papéis sexuais, os ritos religiosos, a es-
tratificação social e a necessidade de ser aceito são assim trans-
formados em estratégias, fluxos constantes de “gambitos, mano-
bras, artifícios, blefes, dissimulações, conspirações e imposturas
rematadas”. (Geertz, 1983a, p. 24-25 [42]) A utilização da me-
táfora do jogo, de Goffman, vê as sociedades como pluralidades
de jogos competitivos, de convenções aceitas e procedimentos
apropriados para obter proveito pessoal. A metáfora é aplicada,
segundo Geertz, de forma “deliberadamente cáustica e mordaz”,
encarando-se, por ela, “a vida social como uma série de jogos”
nos quais prosperam “só os ‘bons jogadores’ e aqueles que estão
dispostos a dissimular qualquer coisa e são capazes de fazê-lo”.
(Geertz, 1983a, p. 24-25 [41])

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A utilização geertziana da metáfora do jogo entende-se em
sentido interpretativo, atento a sublinhar os níveis de significado
que informam e constituem a ação humana. A associação que
Geertz faz entre a briga de galos e as diferenças de status (Geertz,
1973, p. 412-453 [185-213]) leva a uma transferência de percep-
ções da primeira às segundas, de forma a aparecer a estrutura
significante. A briga de galos faz-se um “comentário metasso-
cial” sobre a questão da estratigrafia social, e é “vista como”
uma metáfora da matriz social, do complicado sistema de grupos
que se interseccionam e se sobrepõem na sociedade balinesa. Sob
o perfil psicológico, trata-se de uma representação da identidade
do macho balinês; sob um ponto de vista sociológico, é conside-
rada uma interpretação das relações interpessoais.
A metáfora do drama, introduzida por Geertz na análise do
sistema político em Bali como “estado-teatro”, não é nova no âm-
bito da teoria sociológica e antropológica. Os conceitos tomados
do teatro – o mais comum dos quais é sem dúvida o de “papel”
– difundiram-se nas ciências sociais a partir dos anos 1930. Esse
tropo é associado por Geertz a duas procedências humanísticas
muito heterogêneas entre si. De um lado, a teoria dramatúrgica –
derivada de Jane Harrison, Francis Ferguson, T. S. Eliot e Antonin
Artaud – que leva a teoria ritual a encontrar afinidades entre tea-
tro e religião: “teatro como comunhão” e “o templo como um
palco”. (Geertz, 1983a, p. 27 [45]) De outro lado, a ação simbó-
lica de Kenneth Burke, que relaciona o teatro à retórica: “o teatro
como uma forma de persuasão” e “a plataforma do discursante
como um palco”. (Geertz, 1983a, p. 27 [45])
O que Geertz considera novo na utilização contemporânea
dessa metáfora é o seu uso extensivo e sistemático, não mais casual
e fragmentado. Sua aplicação é enfatizada, não em função exem-
plificativa, mas, como diz Victor Turner, “em termos estruturais”

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e de modo “realmente dramatúrgico”. (Geertz, 1983a, p. 27 [44])
Levar a sério a analogia dramatúrgica significa não apenas perce-
ber que “todos nós temos momentos determinados para entrar e
sair do palco, ou que todos temos que desempenhar papéis, que às
vezes perdemos nossas deixas e adoramos fingir” (Geertz, 1983a,
p. 27 [45]), mas a apreender “os meios de expressão” e evidenciar
tanto a dimensão temporal e coletiva e a natureza pública das
ações, como o poder de transformar as opiniões e as pessoas me-
diante o envolvimento recíproco. A análise geertziana do sistema
político de Bali como “estado-teatro” mostrou, por um lado, que
todos os fenômenos culturais – dos grupos de parentesco ao co-
mércio, do direito à mitologia, do controle das águas à cremação,
da iconografia à arquitetura – podem se tornar afirmações teatrais
da teoria política balinesa, asserções sobre o fundamento divino
do poder, sobre governo e autoridade. Por outro lado, colocou em
foco o envolvimento das massas nas grandes cerimônias de forte
valência dramatúrgica, dando forma à experiência das pessoas e
funcionando como potente meio de integração social e política.
(Geertz, 1980 [1991])
Na análise de Turner sobre a vida cerimonial na África
Central, Geertz reconhece o principal exemplo de elaboração da
analogia teatral, responsável por uma orientação muito fecun-
da para a pesquisa, de modo a aplicar o conceito regenerativo
de social drama em termos que se estendem a diferentes fenô-
menos: os ritos de passagem tribais, as cerimônias de cura, os
processos judiciais, as revoltas mexicanas, as sagas islandesas, a
literatura, os movimentos milenaristas, os carnavais caribenhos,
a procura do peiote, os movimentos políticos. A dramatização
social, presente, para Turner, em todos os níveis da vida social,
tem como finalidade resolver o conflito por meio de compor-
tamentos atuados publicamente: “formas rituais de autoridade

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– litigação, feudo, sacrifício, orações – são invocadas para con-
ter a crise e transformá-la novamente em ordem” e evitar, es-
creve Geertz, que “a sociedade entr[e] em colapso, com vários
tipos de finais trágicos: migrações, divórcios ou assassinatos na
catedral”. (Geertz, 1983a, p. 28 [46]) Os limites no uso da metá-
fora de Turner dependem de sua força onicompreensiva – “uma
forma para todas as estações” (Geertz, 1983a, p. 28 [46]) –, da
incapacidade de apanhar os aspectos significantes dos particula-
res, e também de suas implicações para a vida social: “interpola-
da nas espirais um tanto atrapalhadas da sua estética”, a capaci-
dade universalizante está em desvantagem das particularidades,
“daquilo que os poemas dizem exatamente, socialmente”, dos
detalhes relevantes que diferenciam os fenômenos, “o tipo de
coisa que faz A Winter’s Tale diferente da Measure for Measure,
e Macbeth de Hamlet”. (Geertz, 1983a, p. 29 [47])
A metáfora textual é decerto a menos desenvolvida em an-
tropologia e a mais importante para Geertz. Mais que outras
analogias, caracteriza a sua abordagem hermenêutica, cons-
tituindo a própria definição do conceito de cultura enquanto
“documento de atuação”. Descrevendo a metáfora pela via wit-
tgensteiniana de “ver como”, ele comenta a sua importância:

Entre as recentes reconfigurações da teoria social, a analogia


com textos que é adotada atualmente pelos cientistas é, de al-
guma forma, a que mais se expandiu: é também a mais ousa-
da e a menos elaborada. Mas que ‘jogo’ ou ‘drama’, a palavra
‘texto’ é perigosamente vaga, e seu uso para explicar a ação
social, ou o comportamento que as pessoas têm em relação
a outras, implica em uma enorme deturpação conceptual, um
jeito de ‘ver como’ bastante remoto. Descrever a conduta hu-
mana em termos de jogadores e contra jogadores, ou de atores
e seu público, sejam quais forem suas armadilhas, parece mais

68 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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natural do que descrevê-los como semelhantes ao que ocorre
entre o escritor e o leitor. À primeira vista, a sugestão que as
atividades de espiões, amantes, feiticeiros, reis, ou pacientes de
uma clínica de doentes mentais sejam lances em um jogo ou de-
sempenhos teatrais é certamente mais plausível do que a ideia
de que sejam frases. (Geertz, 1983a, p. 30 [49-50])

O ponto de partida da teoria geertziana é dado pela etno-


grafia levada a efeito em Bali, com a qual Geertz (2000, p. 17
[27]) mostrou que o parentesco, a forma da aldeia, o Estado
tradicional, os calendários, o direito e, “da forma mais vil”, a
briga de galos, podiam ser lidos como textos, enunciados, “afir-
mações materializadas” para descrever modos específicos de es-
tar no mundo. Sobretudo na análise das brigas de galo, Geertz
desenvolve de modo eficaz a metáfora do texto. A briga de galos,
exatamente como uma forma artística, é considerada um texto
em meio a outros textos, e é comparado à obra de Dostoievsky,
Crime e castigo (Geertz, 1973, p. 443 [206]), por sua pertinên-
cia em tomar os temas fundamentais da existência – a morte,
a masculinidade, a raiva, o orgulho, a perda, a beneficência, a
oportunidade – e ordená-los numa estrutura compreensiva que
os torne significativos, visíveis, tangíveis e “reais”. A briga de
galos assume, assim, o significado de uma leitura balinesa da
experiência balinesa, um texto composto por um vocabulário
de sentimentos – o calafrio, o risco, o desespero ou a felicidade
– que para os balineses constitui uma experiência cognoscitiva
pela qual eles aprendem o ethos da própria cultura. Não apenas
representa um evento humano paradigmático que, por meio de
contínuas repetições, deixa o balinês em condições de ver uma
dimensão da sua subjetividade. Como a subjetividade não existe
realmente enquanto não for organizada, a briga de galos consti-
tui o elemento gerador e regenerador daquela subjetividade.

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Geertz demonstra que os produtos culturais podem ser tra-
tados como textos, considerando “legíveis” as instituições, os
costumes, as mudanças sociais. A própria etnografia é posta a
coincidir com a exegese:

[F]azer a etnografia é como tentar ler (no sentido de ‘construir


uma leitura de’) um manuscrito estranho, desbotado, cheio
de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários ten-
denciosos, escrito não com os sinais convencionais do som,
mas com exemplos transitórios de comportamento modelado.
(Geertz, 1973, p. 46-47 [7])

Essa abordagem é característica da tradição hermenêutica e


da aplicação do conceito de interpretação para além do material
escrito. Como lembra Ricoeur, o problema específico da herme-
nêutica constituiu-se pela interpretação das sagradas escrituras.
As suas origens mergulham no mito platônico e no Peri her-
meneias de Aristóteles, e o seu desenvolvimento imbrica com o
discurso teológico da explicação dos textos sagrados. (Ricoeur,
1969) Foi na Idade Média e no Renascimento que a exegese
se desvinculou da escritura, e a noção de “texto” superou a de
“escritura”. Na tradição alemã, Schleiermacher foi o primeiro
a realizar a autonomização da hermenêutica moderna, desvin-
culando-a do problema técnico do acesso aos significados dos
grandes textos literários e sacros, como Homero e a Bíblia. A
filosofia subsequente deu ampla importância ao problema da
interpretação, entendida como forma de ir além do que é explí-
cito. Geertz menciona a interpretação da natureza de Spinoza,
a concepção de Nietzsche de que o significado das afirmações
que dependem da razão nos chegam mascaradas pelas ideolo-
gias; o inconsciente em Freud, as relações de produção e o seu

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significado determinante para a realidade social. Referindo Paul
Ricoeur (1965) a propósito da “liberação” da “noção de texto
[…] em face à noção de escrita ou de escritura”, ele acena à an-
tiga tradição de estudos orientada nesse sentido:

Tal extensão da noção de um texto como mais do que um ma-


terial escrito e mais do que um material verbal, embora meta-
fórico, certamente não constitui novidade. A tradição interpre-
tatio naturae da Idade Média que, culminando com Spinoza,
tentava ler a natureza como se fosse as Escrituras, o esforço
nietszchiano de tratar os sistemas de valores como se fossem
atenuantes para a vontade do poder (ou o esforço marxista
de tratá-los como atenuantes das relações de propriedade) e a
substituição freudiana do texto enigmático do sonho manifes-
to pelo texto simples do sonho latente, todos oferecem prece-
dentes, embora nem todos igualmente recomendáveis. (Geertz,
1973, p. 448-49 [210])

A analogia textual conduz a interessar-se em como as inter-


pretações do antropólogo são construídas na relação com as in-
terpretações de seus interlocutores. Conforme será discutido no
Capítulo II, tal análise propõe uma perspectiva analítica de tipo
sincrônico, a qual, como afirma Ricoeur (1979, p. 85), “despsi-
cologiza” a compreensão: entender um texto não significa reto-
mar as intenções do autor, por meio de relações empáticas ou
identificações emotivas, entrando na “mente dele” ou “vestindo
suas roupas”. A intenção do autor está colocada no mesmo tex-
to ou na mesma ação: a compreensão da vida psíquica se torna
possível por meio dos sinais, dos traços “exteriores” e “públicos”
que o sujeito deixa no mundo. Esse fato, que Ricoeur denomina
“atomização da ação” (Ricoeur, 1979, p. 83), remete à dimensão
social e pública do pensamento. Veremos como a inteligibilidade

Roberto Malighetti 71

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requer que a ação seja inserida “densamente” (Ryle, 1949) numa
complexa rede de significados composta pelo contexto cultural
da ação, do autor e do intérprete. Entender um texto significa,
hermeneuticamente, elaborar uma chave de leitura (“construir
uma leitura de”) para fazer emergir as significações nele implíci-
tas. É um empreendimento construtivo e aberto enquanto possi-
bilita que a ação possa ser lida de muitos modos: como o jogo, o
drama, ou o texto, ela é também polissêmica.
A metáfora do texto convida a considerar a escritura como
parte essencial da prática etnográfica. O etnógrafo não apenas
interpreta, mas, metáfora à parte, deve produzir textos. A inter-
pretação de uma cultura particular por parte do etnógrafo é ine-
vitavelmente uma construção textual. No Capítulo IV, analisare-
mos como a interação entre o antropólogo e seus interlocutores é
mediada pela passagem dos códigos orais ao código escrito. Em
certo sentido, a textualização é o centro da pesquisa etnográfi-
ca, seja “no campo” ou “em casa”. Geertz introduz na disciplina
uma influente reflexão sobre o que, recorrendo a um conceito de
Ricoeur, ele define como “inscrição” ou “fixação do significado”:

A grande virtude de ampliar a noção de texto para abranger ou-


tras coisas além das que são escritas em papel, ou gravadas na
pedra, é que esse processo orienta nossa atenção justamente para
o fenômeno […]: o processo de elaboração da inscrição da ação,
seus instrumentos e como estes funcionam, e as implicações que
a fixação do sentido que emana de um fluir de eventos – eventos
que, para a história, são o que aconteceu, para o pensamento, o
que foi pensado, para a cultura, o comportamento – tem para a
interpretação sociológica. (Geertz, 1983a, p. 31 [50-51])

Focalizar a atenção sobre a atividade de produção de textos


realça a natureza artificial dos relatos culturais, descartando as

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modalidades miméticas de textualização, em favor de concepções
poiéticas. (Ricoeur, 1983) Colocando a compreensão na proces-
sualidade da escritura, caracterizada pela dupla temporalidade do
estar “lá” e do estar “cá”. Geertz focaliza a atenção sobre a ativi-
dade de produção dos textos e sublinha a sua natureza fictícia e
artificial, mostrando como a construção interpretativa do objeto
é o resultado da articulação de uma variedade de convenções, for-
mas literárias e estratégias retóricas que formam a experiência do
trabalho de campo e procuram legitimá-la em termos persuasivos.
Em geral, as metáforas geertzianas sugerem uma imagem do
homem como submisso a regras plurais, inserido num contexto
denso de significados múltiplos mais que guiado por forças, e in-
duzem a utilizar uma perspectiva interpretativa e hermenêutica.
Geertz reconhece que toda metáfora possui contextos de aplica-
ção privilegiados nos quais funciona melhor que em outros: os
que entendem a “‘vida como jogo’ tendem a gravitar em torno
das interações cara a cara, relacionamentos amorosos e coque-
téis” e os proponentes da “vida como teatro” são atraídos por
intensidades coletivas, carnavais e insurreições; os proponentes
da “vida como texto” inclinam-se para o exame de formas ima-
ginativas: piadas, provérbios, artes populares. (Geertz, 1983,
p. 33 [53]) Ele, no entanto, prenuncia que as metáforas não se
excluem mutuamente e mede a sua eficácia pela capacidade de
ultrapassar limites umas às outras – segundo exemplifica a sua
observação das relações sociais balinesas como um texto, como
um jogo solene ou como uma “teatralidade jocosa”. Geertz con-
vida, pois, o intérprete a movimentar-se livremente entre idio-
mas lúdicos, teatrais e textuais, e ir além das aplicações metafó-
ricas previsíveis, para inaugurar novas visões sobre a realidade
por meio de uma rica etnografia de casos:

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A longo prazo, no entanto, essas teorias só poderão subsistir se
tiverem a capacidade de ir além destes fáceis sucessos iniciais, e
de analisar formas mais complexas e menos previsíveis. Assim,
a concepção de jogo terá que explicar algo como devoção, a do
teatro, o humor, e a do texto, a guerra. Dentre estes triunfos,
se forem um dia obtidos, os mais difíceis serão os da analogia
com textos. Por enquanto, tudo que seus apologistas podem
fazer é o que fiz aqui: oferecer alguns exemplos do uso da teo-
ria, alguns sintomas de suas dificuldades, e alguns pedidos de
ajuda. (Geertz, 1983a, p. 33 [54])

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Capítulo II

A Ciência da Ação Simbólica

Sob o ponto de vista dos nativos

A noção de significado representa o núcleo fundamental e a


ideia-guia do pensamento de Geertz. Transcrevendo palavras de
Susanne Langer, Geertz considera esse conceito “em todas as
suas variedades, […] o conceito filosófico dominante da nos-
sa época”, e convida a antropologia cultural a incluir noções
como “os signos, os símbolos, as denotações, as significações,
as comunicações” como principais “recursos de capital [inte-
lectual]”. (Langer, como citado em Geertz, 1973, p. 139 [66])
Contrapondo-se ao escasso interesse que as ciências sociais têm
manifestado tradicionalmente pelo estudo dos significados,
Geertz coloca no centro do seu esforço analítico a tentativa de
elaborar aquela que, com Kenneth Burke, chamou “ciência […]
de ação simbólica” (Geertz, 1973, p. 208 [117]):

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Nesse sentido, é de singular interesse o fato de que, embora a
corrente geral da teoria científica social tenha sido profunda-
mente influenciada por quase todos os movimentos intelectuais
importantes do último século e meio – marxismo, darwinismo,
utilitarismo, idealismo, freudismo, behaviorismo, positivismo,
operacionismo – e tenha procurado capitalizar sobre virtual-
mente cada campo importante de inovação metodológica – des-
de a ecologia, a etologia e a psicologia comparativa, até a teoria
dos jogos, a cibernética e a estatística – com muito poucas ex-
ceções ela foi praticamente intocada por uma das mais impor-
tantes tendências do pensamento recente: o esforço de construir
uma ciência independente daquilo que Kenneth Burke chamou
de ‘ação simbólica’. Nem as obras de filósofos tais como Peirce,
Wittgenstein, Cassirer, Langer, Ryle ou Morris, nem as de críti-
cos literários como Coleridge, Eliot, Burke, Empson, Blackmur,
Brooks ou Auerbach, parecem ter exercido qualquer impacto
apreciável sobre o padrão geral da análise científica social. Além
de uns poucos linguistas venturosos (e programáticos, em sua
maior parte) – um Whorf ou um Sapir – a questão de como os
símbolos simbolizam, como funcionam para mediar significa-
dos, foi simplesmente contornada. (Geertz, 1973, p. 208 [117])

Geertz situa a própria postura teórica no âmbito do “movi-


mento em direção ao significado”, definido por sua influência
sobre as ciências sociais como “uma revolução propriamente
dita: abrangente, durável, turbulenta e importante”. (Geertz,
1995, p. 115 [96]) Sua contribuição à disciplina ele caracteriza
em termos inovadores por haver deslocado os interesses pelo
comportamento e pela estrutura social para a interpretação
dos significados: a sua “virada interpretativa” orienta a análise
para uma concepção da vida social, organizada “em termos de
símbolos (sinais, representações, signifiants, Darstellungen… a
terminologia varia), cujo sentido (sense, import, signification,

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Bedeutung)” devem ser compreendidos, se quisermos entendê-la
e formular seus princípios. (Geertz, 1983a, p. 21 [36])Unindo as
exigências da hermenêutica à fenomenologia, Geertz propõe-se
elaborar uma “fenomenologia científica da cultura”, fundada
sobre a análise das estruturas de significado, sob cujos termos
vivem indivíduos e grupos de indivíduos, e em particular sobre
a análise dos símbolos e dos sistemas de símbolos, por meio dos
quais essas estruturas são formadas, comunicadas, alteradas, re-
produzidas. Rejeitando as explicações mecanicistas para dar lu-
gar às compreensões interpretativas, Geertz propõe a elaboração
de uma semântica das expressões significantes que compreenda
de que modo “a estrutura de significado da experiência (aqui, a
experiência das pessoas) […] é apreendida por membros repre-
sentativos de uma sociedade particular, num ponto do tempo
particular”. (Geertz, 1973, p. 264 [151]) Geertz considera como
unidade de base desse programa a ação orientada num sentido
subjetivamente compreendido e motivado. A sua “semântica da
ação” toma o comportamento como ação simbólica, “ação que
significa, como a fonação na fala, o pigmento na pintura, a linha
na escrita ou a ressonância na música”. (Geertz, 1973, p. 10
[8]) No fundamento de sua teoria está o conceito weberiano do
comportamento significativo:

Objeto da sociologia compreensiva não é qualquer tipo de ‘es-


tado interior’ ou de comportamento exterior, mas o agir. ‘Agir’
(incluindo, no caso, a omissão ou a resignação passiva, aceitas
pela vontade), para nós quer dizer sempre um comportamento
inteligível em face a determinados ‘objetos’, isto é, um com-
portamento específico com base em algum sentido (subjetivo)
‘possuído’ ou ‘intencionado’, ainda que de modo mais ou me-
nos inobservado. (Weber, 1913, p. 429)

Roberto Malighetti 77

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A abordagem geertziana conjuga as influências advindas
de Max Weber e da fenomenologia com a hermenêutica e com
orientações de investigação muito diferentes entre si, inspiradas
não apenas por autores como os mencionados – Weber, Freud,
Durkheim, Saussure e G. H. Mead –, mas ainda Langer, Ricoeur,
Habermas e Wittgenstein. A obra deste último, Philosophische
Untersuchungen (Investigações filosóficas), de 1953, especial-
mente os parágrafos 611 e 660, estimulou-lhe interessantes refle-
xões sobre a linguagem da ação e sobre sua semântica. Também
Wittgenstein faz distinção entre o universo do discurso em que
se fala da ação e o universo do discurso em que se fala do mo-
vimento: ao primeiro pertence a noção de motivo, e nele a ação
é descrita sob o ponto de vista do agente que a executou; ao
segundo pertence a noção de causa entendida como antecedente
que pode ser identificado separadamente do efeito, descrevendo
um movimento que pode ser observado por um espectador.

A mudança na teoria social que a fez considerar a ação so-


cial como uma forma de representar e transmitir significados,
uma mudança que se iniciou realmente com Weber e Freud
(ou, em algumas interpretações, com Durkheim, Saussure e G.
H. Mead) e que agora tornou-se gigantesca, abre uma série
de possibilidades para explicar por que fazemos as coisas que
fazemos, da maneira que as fazemos, possibilidades essas que
são muito mais amplas do que as oferecidas pelas imagens de
atrações e repulsões das perspectivas mais ortodoxas. (Geertz,
1983a, p. 232 [353])

A teoria de Geertz articula o conceito diltheyano de


Auslegung – que significa interpretação no sentido de exegese
textual – com o de Verstehen, interpretação no sentido de com-
preensão daquilo que um sujeito entende à base dos sinais que

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a vida psíquica se exprime. A exegese de Geertz inverte a rela-
ção diltheyana entre Verstehen (compreensão) e Erleben (expe-
riência vivida), procedendo da objetivação das forças da vida às
conexões psíquicas. O pressuposto de Geertz é que o acesso ao
outro pode se dar por meio de seus significados, objetivados nos
seus discursos: a sua análise etnográfica funda-se sobre premis-
sas de atores que vivem em uma forma particular de vida, e cuja
relação com a ação e os significados Talcott Parsons atribui ao
sistema cultural. Considerando que “as sociedades, como as vi-
das, contêm suas próprias interpretações” (Geertz, 1973, p. 453
[213]), ele utiliza o conceito de ação significativa para alcançar
a interpretação de toda a estrutura cultural: “Deve atentar-se
para o comportamento, e com exatidão, pois é através do fluxo
do comportamento – ou mais precisamente, da ação social – que
as formas culturais encontram articulação”. (Geertz, 1973 [12])
O acesso ao outro acontece pelo acesso a seus sinais – expres-
sões linguísticas, obras, textos literários e artísticos, ações orien-
tadas a fins e valores – entendidos como lugares de objetivação
do sentido. O Verstehen torna-se trabalho sobre o texto do ou-
tro, acesso mediato, não empático, a seus significados.
Retomando o discurso da sociologia compreensiva, Geertz
reconduz o comportamento ao agente. O comportamento signi-
ficativo só pode ser compreendido adequadamente se é referido
aos fins e aos valores sobre os quais o sujeito agente se orienta:
“Nada mais necessário para compreender o que é a interpreta-
ção antropológica, e em que grau ela é uma interpretação, do
que a compreensão exata do que ela se propõe dizer – ou não se
propõe – de que nossas formulações dos sistemas simbólicos de
outros povos devem ser orientadas pelos atos”. (Geertz, 1973,
p. 14 [10-11])Baseando-se na síntese realizada por Schutz entre
as influências de Scheler, Weber e Husserl e, por outro lado, de

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James, G. H. Mead e Dewey, Geertz apropria-se do “postulado
da interpretação subjetiva” para satisfazer a exigência analítica
de compreender a referência ao significado que a ação tem em
relação ao agente. (Geertz, 1973, p. 365 [152]) Segundo Schutz,
o postulado da interpretação subjetiva é entendido no sentido
de que “todas as explicações científicas do mundo social podem
e, sob alguns aspectos, devem referir-se ao significado subjetivo
das ações dos seres humanos, dos quais tem origem a realidade
social”. (Schutz, 1962, p. 62)
Reinterpretando o preceito de Malinowski (1922), de apa-
nhar as coisas “sob o ponto de vista dos nativos”, Geertz põe
como problema central da análise antropológica a compreensão
do modo como os nativos pensam, sentem e percebem. Ele elege
como objetivo da sua etnografia a análise dos significados sub-
jetivos que constituem as ações dos indivíduos no mundo social,
e considera a ação humana a partir das descrições intencionais e
dos modos como os agentes interpretam o significado dos pró-
prios comportamentos. A ação – segundo Geertz – não tem um
significado direto, mas assume um significado simbólico, tor-
nando-se símbolo significativo, graças à atividade do homem.
Condividindo as posições da sociologia compreensiva e da tra-
dição hermenêutica alemã, Geertz considera a interpretação
como a estrutura ontológica originária do homem enquanto ser
no mundo (Dasein): “a imposição do significado na vida é o fim
principal e a condição básica da existência humana”. (Geertz,
1973, p. 434 [200]) A condição humana é uma condição herme-
nêutica enquanto se define numa constante interpretação dos
próprios atos e os dos outros.
O objetivo da pesquisa geertziana consiste na análise dos sig-
nificados subjetivos que são constitutivos das ações dos indiví-
duos no mundo social. A ação humana é identificada, descrita e

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considerada de forma apropriada a partir das descrições intencio-
nais, dos modos como os agentes sociais interpretam o significa-
do de suas ações. Sendo o significado não intrínseco à realidade,
mas atribuído a ela, “[a] explicação de suas propriedades, por-
tanto, deve ser procurada naqueles que fazem essa imposição – os
homens que vivem em sociedade”. (Geertz, 1973, p. 405 [179])
Não pode compreender a ação humana quem assume a posição
de observador externo, ou seja, quem “vê”, “behavioristicamen-
te”, apenas as manifestações físicas dessa ação. Para entendê-la,
é necessário desenvolver categorias voltadas a entender o que o
agente, do seu ponto de vista, quer “significar” com as próprias
ações. O uso que Geertz faz do conceito de Verstehen indica um
complexo procedimento por meio do qual o homem interpreta o
significado das próprias ações e daqueles que interagem com ele.
Esse conceito serve para analisar o ponto de vista do ator, colo-
cando a ação em relação à configuração de ideais, de atitudes e de
valores sobre os quais ela, a ação, se funda. O sentido subjetivo
é simbólico e o Verstehen é compreensão da complexa rede de
significados que dá sentido à existência humana.
Esse aspecto do Verstehen é definido por Geertz com um
termo de Gilbert Ryle (1949): thick description. A “descrição
densa” consiste na reconstrução dos níveis de significado não
explícitos das perspectivas dos atores, da multiplicidade das
complexas estruturas conceituais que as informa. Tal “descri-
ção” representa a pesquisa de “um contexto” dentro do qual
eventos sociais, comportamentos, instituições, processos, po-
dem ser inteligivelmente, isto é, “densamente” descritos. A re-
gra metodológica exige orientar a análise em relação aos atores,
levando em consideração o seu “ponto de vista”, e reconstrói
os níveis de cultura sobre os quais fundam os próprios signifi-
cados. Por um modo que lembra a comparação de Weber entre

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comportamento e ação, Geertz expõe o significado da análise
etnográfica “densa”, comparando tiques involuntários a pisca-
delas: os primeiros são simples comportamento; já os segun-
dos são comportamento significativo, objeto específico da et-
nografia. Para o observador externo, os dois tipos de ação não
apresentam diferenças. Somente reportando-se às perspectivas
do agente e inserindo a ação no seu contexto ou na sua forma
de vida, é que ela assume um significado. (Geertz, 1973, p. 6-7
[5-6]) Como afirma Ricoeur, mencionando o uso geertziano da
“descrição densa”, é somente “em função de” determinada con-
venção simbólica que podemos interpretar determinado gesto
como capaz de significar determinada coisa: “o mesmo gesto de
erguer o braço pode, conforme o contexto, ser entendido como
um modo de saudar, de chamar um táxi, ou exprimir um voto”.
(Ricoeur, 1979, p. 99) Geertz explica pela seguinte forma os as-
pectos metodológicos da thick description:

Tal enfoque […] não dá prioridade nem a regulamen-


tos, nem a eventos, e sim ao que Nelson Goodman chamou
‘versões do mundo’ e outros ‘formas de vida’, ‘epistemes’,
‘Sinnzusammenhange’, ou ‘sistemas abstratos’. Nossa visão
se concentra no significado, ou seja, como os balineses (ou
qualquer outro grupo) fazem sentido daquilo que fazem […]
colocando seus atos em estruturas mais amplas de significa-
ção, e, ao mesmo tempo, como mantêm, ou pelo menos tentam
manter, essas estruturas mais amplas em seu lugar, organizando
suas ações em seus termos. (Geertz, 1983a, p. 180 [270])

Para tornar claro o conceito de “descrição densa”, Geertz


conta um fato, acontecido no Marrocos 50 anos antes, de as-
sassinatos, furtos de ovelhas – sistema de comércio que era tido
como abolido pelo colonialismo – e considera as diferentes

82 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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interpretações do fato por parte dos protagonistas berberes, ju-
deus e franceses. Geertz usa esse episódio para revelar a com-
plexidade do contato intercultural e para explicitar como a
análise etnográfica deve fundar-se sobre perspectivas de atores
que não necessariamente se entendem entre si. (Geertz, 1973,
p. 7-9 [6-7])A “descrição densa” é algo que Geertz aplicou a
diferentes fenômenos, apanhando os episódios mais particulares
e lhes alargando a perspectiva para abranger visões gerais sobre
a cultura. Tal descrição representa o alargamento do discurso de
tipos específicos de comportamento – furtos de ovelhas, briga de
galos, festas, bazares – à sociedade e à cultura. O texto Religion
of Java abre com a afirmação que “no centro do inteiro siste-
ma religioso javanês há a festa comunitária, um pequeno ritual,
variado, formal, não dramático, quase furtivo”. (Geertz, 1960,
p. 11) Em Islam Observed (Geertz, 1968 [2004]), enfrenta o
problema do agir significativo no interior do sistema sociocul-
tural da Indonésia e do Marrocos e das transformações institu-
cionais socioeconômicas provocadas nos dois países pelo pro-
cesso de modernização. Num ensaio recolhido a Interpretações
de culturas, toma as brigas de galos como a chave de leitura
da sociedade balinesa. (Geertz, 1973, p. 412-53 [185-213]) Sua
contribuição a Meaning and order in moroccan society centra-
-se sobre a noção de que cada bazar é “importante para com-
preender, de modo geral, a sociedade marroquino-magrebina, e,
sob alguma medida, a médio-oriental”. (Geertz, C.; Geertz, H.;
Rosen, 1979, p. 235)A perspectiva geertziana é substancialmen-
te linguística e comunicativa. O sentido colhido subjetivamente
só pode ser expresso em símbolos: a linguagem que nós falamos
– ou melhor, que fala, wittgensteinianamente, através de nós –
faz-se o “médium” para a compreensão de horizontes alheios.
Geertz se volta à linguagem como raiz do conhecer conforme é

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concebido pela filosofia analítica e pela hermenêutica. Não ape-
nas o acesso ao outro tem lugar pela mediação da linguagem,
mas a linguagem é, heideggerianamente, o lugar ontológico da
compreensão: o ser que pode ser compreendido é a linguagem.
Como afirma Ricoeur, a linguagem é o instrumento para
examinar “o que se diz quando se enumera de maneira com-
preensiva o que se faz, por que se faz, o que impulsiona a agir-se
assim, como e com quais meios se faz, e em vista de que coisa”.
(Ricoeur, 1977, p. 6) Na análise linguística, segundo Ricoeur,
pode-se recolher “o signo com que o homem diz o seu fazer […]
o signo ou o índice de uma experiência posta em relevo median-
te os enunciados, que são assim utilizados como expressões da
estrutura da experiência”. (Ricoeur, 1983, p. 6) Não apenas a
linguagem tem a propriedade de articular a experiência, mas
conserva, também, “mediante uma espécie de seleção natural”,
as expressões mais adequadas, as distinções mais sutis e mais
bem apropriadas do agir humano. (Ricoeur, 1977, p. 6) O “pon-
to de vista do nativo” pode, então, ser interpretado como “o
equivalente linguístico do que é vivido fenomenologicamente
como intenção voluntária e que se deposita na linguagem sob a
forma de declaração de intenção”. (Ricoeur, 1983, p. 66)Sobre
essas bases, a compreensão elide o risco de uma fenomenolo-
gia baseada “na intuição que um sujeito tem do próprio vivido
particular”. Ricoeur afirma que a interpretação não implica a
pesquisa diacrônica de algo escondido, “além” ou “debaixo”,
princípios primeiros, contatos empáticos, pesquisas diacrônicas
ou ideais denotativo-referenciais. Exige, pelo contrário, o estudo
da forma como a experiência se organiza:

Este ponto de partida tem a vantagem de não envolver, pelo me-


nos imediatamente, a intuição que um sujeito tem do próprio
vivido privado, mas o enunciado público da ação. A passagem

84 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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pela expressão linguística consente que se apoie sobre a ob-
jetivação da experiência no discurso, isto é, sobre formas de
expressões que são disponíveis, tanto pela observação exterior
quanto pela reflexão sobre o sentido. (Ricoeur, 1977, p. 6)

A análise do significado subjetivo não envolve a esfera priva-


da e subjetiva, mas o enunciado público da ação. Implica perma-
necer “do lado de cá”, sincronicamente, procurando a “descrição
densa”, o contexto geral que dá significado ao particular, e exa-
minando os níveis de significado não explícitos das perspectivas
dos atores, a multiplicidade das complexas estruturas conceituais
que as informa. Os fenômenos culturais recebem o seu signifi-
cado do contexto de modo análogo aos elementos linguísticos
da teoria de Saussure: “A língua é um sistema em que todos os
termos são solidários e o valor de um resulta tão somente da
presença simultânea dos outros”. (Saussure, 1916, p. 139 [133])
Dessa forma, a abordagem geertziana contrapõe-se aos dualis-
mos, aos reducionismos e aos fundacionismos que postulam rea-
lidades internas ao sujeito como antecedentes mentais ou causas
finais da ação. A passagem através da expressão linguística exige
que se apoie sobre o enunciado público da ação, sobre a objetiva-
ção da experiência no discurso, isto é, sobre o estudo das formas
disponíveis para a observação exterior e para a reflexão sobre o
sentido. Compreender não significa refazer as intenções do autor,
por meio de relatos empáticos, ou identificações emotivas, ou re-
petições de si próprio. Ao contrário, Geertz coloca a intenção do
autor no mesmo texto ou na mesma ação. A concepção geertzia-
na do trabalho antropológico remete à dimensão social e pública
do pensamento enquanto “tráfico com formas simbólicas dispo-
níveis em uma ou outra comunidade”. (Geertz, 1983a, p. 151
[228]) Subtrai o Verstehen ‘à identificação (Einfuhlen), excluindo
a possibilidade de epoché, bracketing, identificações empáticas ou

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reduções fenomenológicas. (Geertz, 1983a, p. 56 [86]) Não é pos-
sível que o sujeito ponha entre parênteses o próprio ser, a própria
cultura, ou esqueça o próprio saber e a própria subjetividade,
para colher a objetividade, por meio de “magias etnográficas”:
“[…] é possível – comenta Geertz – relatar subjetividades alheias
sem recorrer a pretensas capacidades para obliterar o próprio
ego e para entender os sentimentos de outros seres humanos”.
(Geertz, 1983a, p. 70 [106]) Referindo palavras de Wittgenstein,
“não nos podemos situar entre eles” (Wittgenstein, como cita-
do em Geertz, 1973, p. 13 [10]), Geertz considera irrealizável tal
identificação completa, seja pela necessária diferença que deve
distinguir, fundando-os, os discursos antropológicos em relação
aos dos nativos, seja porque os antropólogos, como todos os se-
res humanos, são ontologicamente fundados sobre a sua própria
cultura e seu saber. (Geertz, 1973, p. 33-54 [185-213])Invocando
o trabalho etnográfico que desenvolveu em Java, Bali ou no
Marrocos, Geertz lembra ter-se ocupado em esclarecer de que
modo os membros daquelas sociedades se definem a si mesmos
como pessoas, sem se imaginar “ser uma outra pessoa – um cam-
ponês no arrozal ou um sheik tribal – para depois descobrir o que
este pensaria”. (Geertz, 1983a, p. 58; [89-90]) O seu modo de ver
as coisas exclui a improvável eventualidade de se tornar nativo.
Não apenas ele considera “impraticável e inevitavelmente falsa” a
ideia “de seguir os costumes dos nativos”, sobre que a observação
participante fundou a própria metodologia, mas, de modo muito
mais relevante, afirma serem “simplesmente impossíveis” os es-
forços de “sentir como os outros, ou pensar como eles”. (Geertz,
2000, p. 16) Em vez disso, analisou etnograficamente as formas
simbólicas e públicas disponíveis numa ou noutra comunidade –
palavras, imagens, instituições, comportamentos – nos termos em
que, em cada lugar, as pessoas se representam, na realidade, a si

86 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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mesmas e aos outros (Geertz, 1983a, p. 58 [89-90]), concebendo
a cognição, a emoção, a motivação, a percepção, a imaginação, a
memória, e outras coisas mais, como sendo, elas próprias, “coisas
sociais”. (Geertz, 1983a, p. 153 [228])Comentando o significado
da publicação póstuma dos diários secretos de Malinowski, da-
dos à estampa por sua esposa, em 1967, 25 anos após a morte
daquele antropólogo, Geertz colocou o problema de “ver as coi-
sas do ponto de vista do nativo” em termos diferentes do modelo
empático, produzindo, do trabalho de campo, uma imagem dis-
tinta em relação ao da comunidade antropológica. Da publicação
dos escritos privados de Malinowski, ele percebe, sempre mais,
como tem sido difícil à reflexão antropológica manter um im-
provável equilíbrio entre envolver-se diretamente nas atividades
dos nativos e, ao mesmo tempo, destacar-se deles no trabalho de
observação, para garantir a cientificidade do empreendimento.
Os diários de Malinowski mostraram o caráter artificial e mí-
tico dos extraordinários dotes de “mimetismo etnográfico”, de
“identificação transcultural” com o nativo, atribuídos ao protó-
tipo malinowskiano do trabalhador de campo. Neles o herói da
antropologia cultural que obtém os próprios “resultados graças a
algum tipo de talento especial geralmente chamado de ‘empatia’”
de “penetração sob a pele dos selvagens” (Geertz, 1983a, p. 9
[19]) revela-se, pelo contrário, um “torto, preocupado e hipocon-
dríaco narcisista” (Geertz, 1967, p. 12), acusado até de racismo
pelo uso frequente do pejorativo nigger ao referir-se aos nativos:

Bronislaw Malinowski, em A Diary in the Strict Sense of the


Term, fez com que os relatos oficiais sobre os métodos de tra-
balho nos parecessem bastante inverossímeis. O mito do pes-
quisador de campo semicamaleão, que se adapta perfeitamente
ao ambiente exótico que o rodeia, um milagre ambulante em

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empatia, tato, paciência e cosmopolitismo, foi, de um golpe,
demolido por aquele que mais tinha sido, talvez, um os maiores
responsáveis pela sua criação. (Geertz, 1983a, p. 55 [85])

Sob diversas perspectivas (Duranti, 1992; Malighetti, 2000;


Paul, 1953), ficou evidenciado que o conceito de observação
participante contrasta com as bases epistemológicas em que esta
pretende fundamentar-se. A participação não apenas viola a se-
paração entre sujeito e objeto, entre observador e observado,
característica da observação nas ciências naturais, mas também
torna problemática a ideia de que o objeto de pesquisa existe
no mundo exterior independentemente das perspectivas teóri-
cas do analista, em um delicado equilíbrio entre subjetividade e
objetividade. A experiência pessoal do etnógrafo é reconhecida
como central para o processo de pesquisa, no entanto é for-
temente limitada pela distância “objetiva”, como também pe-
los standards impessoais da observação e por sua inscrição nas
formas institucionais e tipológicas da monografia. O método
malinowskiano revela-se, na realidade, um oxímoro: exige que
o etnógrafo mergulhe numa forma de vida cultural e aprenda
a comportar-se de modo adequado, possuindo-se de um “sen-
tir” o mais próximo possível ao dos nativos, e que mantenha,
ao mesmo tempo, o necessário destaque do próprio objeto de
estudo, a fim de recolher objetivamente os “dados” etnográfi-
cos. Fica difícil resolver os elementos desse paradoxo: quanto
mais o antropólogo participa, tanto menos lhe será possível
observar; quanto mais se aprofunda na realidade local, tanto
mais os comportamentos e as visões do mundo se lhe torna-
rão naturais e, por conseguinte, difíceis de perceber. Além do
quê, a especificidade do trabalho etnográfico, o contínuo refle-
tir, tomar notas, fazer perguntas, preencher questionários, tirar

88 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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fotografias, registrar e depois transcrever, traduzir e interpretar,
impedem que se esteja completamente “dentro” da cultura que
se quer estudar. (Duranti, 1992, p. 20)A efetiva prática etnográ-
fica malinowskiana, conforme evidencia uma atenta leitura de
seus diários, deixa clara a impossibilidade de realizar os princí-
pios da observação participante. Não obstante os pressupostos
metodológicos ilustrados na introdução dos Argonautas, com o
título de “Objeto, método e fim da pesquisa”, Malinowski não
parece ter recolhido suas informações a partir do papel impro-
vável de participante na vida trobriandesa. Afora a improvável
predisposição física para empenhar-se em árduas e sacrificadas
atividades nativas, a participação implica paridade social e uma
relação simétrica e relativamente livre entre antropólogo e nati-
vo. (Burridge, 1960, p. 1-13; Powdermaker, 1966, p. 263-273)
Essa condição é insustentável em um contexto etnográfico como
o melanésio, dominado por relações coloniais enrijecidas numa
estrutura fortemente estratificada de domínio e feroz explora-
ção do trabalho forçado. (Laurence, 1964, p. 157-159) Além
disso, a sociedade trobriandesa era organizada em linhagens, e
fortemente estratificada e centralizada politicamente. Qualquer
tipo de associação com os nativos à base de paridade teria sido
considerada um ataque à estrutura de casta e uma traição aos
sentimentos de solidariedade entre as classes superiores. (Wax,
1972, p. 6) Somente mediante o casamento com uma mulher
trobriandesa, entrando na rede de parentesco, e empenhando-
-se com os outros homens nas atividades agrícolas, teria sido
possível viver como um trobriandês. Mas isso impediria ser, ao
mesmo tempo, antropólogo. Na realidade, Malinowski estabe-
leceu-se na aldeia em uma posição de autoridade e prestígio,
atendido por um bom número de serviçais. Assim posicionado,
estava em condição de observar e falar com os nativos, mas não

Roberto Malighetti 89

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de participar das suas atividades. (Malighetti, 2000; Wax, 1972)
Segundo também Firth observou (como citado em Geertz, 1988,
p. 80 [107]), o seu trabalho, muito mais que sobre observações,
esteve baseado fortemente em entrevistas, toleradas enquanto
ele se identificava com a elite branca local, economicamente po-
tente, e em suas conversações com os informantes, recompensa-
dos com bonificações de tabaco. (Wax, 1972)

O espectro na máquina

Geertz faz imbricar a fonte principal do equívoco empático por


parte da antropologia contemporânea na concepção cognitivis-
ta, que pensa a cultura como composta de estruturas psicológi-
cas por meio das quais os indivíduos ou os grupos de indivíduos
dirigem o próprio comportamento. Citando as palavras do ex-
poente principal dessa escola, Ward Goodenough, que localiza
a cultura “na mente e no coração dos homens”, Geertz encara
esse modelo como a última versão de uma perspectiva “binária”
que marcou, atravessando-a, a história da disciplina, e que seria
responsável pela identificação do elemento intencional – e, por-
tanto, significativo – do comportamento com uma ideia, alguma
coisa de mental antecedente à ação a que referir em termos cau-
sais (Geertz, 1973, p. 11 [8]):

No que concerne à antropologia, essas duplas questões, mal


formuladas ou evitadas – a natureza mental da cultura, ou a na-
tureza cultural da mente – têm-na atormentado desde seus pri-
mórdios. Das ruminações de Tylor sobre as insuficiências cog-
nitivas da religião primitiva, na década de 1870, passando pelas
de Lévy-Bruhl sobre as participações simpáticas e o pensamento

90 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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pré-lógico, na década de 1920, até às de Lévy-Strauss sobre a
bricolage, os mitemas e la pensée sauvage, na década de 1960, a
questão da “mentalidade primitiva” […] tem dividido e confun-
dido a teoria etnográfica. Boas […], Malinowski […] e Douglas
entraram em luta com o mesmo anjo: colocar numa relação
inteligível […] o interno e o externo, o privado e o público, o
pessoal e o social, o psicológico e o histórico, o vivencial e o
comportamental. (Geertz, 2000, p. 204 [179-80])

Articulando enfoques de diferentes autores, como J. Dewey,


G. H. Mead, R. Rorty, G. Ryle e L. Wittgenstein, Geertz encontra
as origens desse preconceito no dualismo cartesiano, que presu-
me poder dividir a vida humana, nitidamente, em uma parte físi-
ca – e, por isso, observável como qualquer outro processo físico
– e uma parte mental, causa da primeira, privada e inacessível à
observação. Segundo essa doutrina, não se poderia pretender um
conhecimento melhor das obras da própria mente. A mente de
outra pessoa só seria observada por meio de inferências extraí-
das do comportamento observado de seu corpo, cujos movimen-
tos seriam sinais de certos estados mentais, por analogia com
o que sabemos de nós mesmos. A compreensão – identificada
por Geertz, “demasiado distraidamente”, como “ver as coisas do
ponto de vista do ator”; muito “livrescamente”, como “a abor-
dagem Verstehen”; ou “muito tecnicamente”, como análise êmi-
ca – levaria “à noção de que a antropologia é uma variedade de
leitura da mente a grande distância”. (Geertz, 1973, p. 14 [10])
Tomando para si a crítica wittgensteiniana da ideia de linguagem
privada, Geertz insiste que “a localização da mente na cabeça,
e da cultura fora dela” não é “senão um óbvio e incontroverso
senso comum”. (Geertz, 2000, p. 204 [180]) Ele utiliza os instru-
mentos elaborados pela filosofia analítica de Gilbert Ryle para

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garantir a impossibilidade de transitar dos comportamentos aos
antecedentes causais de tipo mental: não só não é possível ins-
pecionar uma mente como se inspeciona o mundo das coisas
extensas, como também são desconhecidas as leis que governam
as obras da mente e suas relações com os movimentos corporais:

Quem sustenta a lenda da vida dupla diria que compreender


os movimentos no tabuleiro de xadrez é inferir, daquilo que vê,
aquilo que pode acontecer na mente do enxadrista, um pouco
como, nos movimentos dos sinais numa troca de rota ferro-
viária, infere o que o sinalizador faz em sua cabine. A resposta
promete algo que nunca poderá ser confirmado, uma vez que,
não sendo possível inspecionar uma mente como se inspecio-
na uma cabine ferroviária, nunca será possível estabelecer as
necessárias correlações. Pior ainda: enquanto conhecemos os
princípios mecânicos que regem as relações entre alavancas e
sinais, segundo o que se lê pelo visor na máquina, sabemos
muito pouco das leis que governam as supostas obras da men-
te, e, além do mais, as relações entre estas e os movimentos
corporais não são, por princípio, sujeitáveis nem às leis já co-
nhecidas da física, nem às leis que a psicologia deveria ainda
descobrir. Seguir-se-ia que até agora ninguém pôde compreen-
der as coisas ditas ou feitas por outros. (Ryle, 1949, p. 51)

Se é fácil ver o que um corpo faz, o mesmo não podemos


dizer de uma mente. Qualquer pretensão é injustificada, quando
se trata de inferir das obras do primeiro as operações da segun-
da. Não só é impossível – sustenta Ryle – confirmar pela ob-
servação a semelhança de relação entre os movimentos de dois
corpos e as obras das duas mentes respectivas, como também é
muito difícil subtrair-se ao solipsismo implícito no dogma do
“espectro na máquina”, dada a impossibilidade de demonstrar
a existência de mentes distintas da própria mente:

92 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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Não há nenhuma possibilidade de confirmar pela observação
a semelhança de relação entre os movimentos de dois corpos
e as obras das duas mentes respectivas. Não é, enfim, inatu-
ral que quem sustenta a doutrina oficial termine por dizer que
nenhuma razão o obriga a crer na existência de mentes além
da própria mente. Mesmo se lhe apraz acreditar que aos ou-
tros corpos estão ligadas mentes não dissímiles da sua, não há
pretender-se capaz de descobrir as características individuais
delas, e o que elas suportam ou fazem. Sob tais bases, a alma
não pode subtrair-se a uma absoluta solidão: apenas os corpos
se encontram. (Ryle, 1949, p. 16)

A argumentação de Ryle pode ser aproximada à reflexão de


Weber, de que o pensamento racional que um homem refere a
seu agir, no sentido de obter as consequências desejadas, não se
faz mais compreensível em virtude de considerações psicológi-
cas: “o erro reside no conceito de realidade ‘psíquica’, segundo o
qual aquilo que não é ‘físico’ é ‘psíquico’”. (Weber, 1913, p. 430)
De modo semelhante, Ryle sustenta que a concepção dualística
se baseia numa espécie de “erro categorial”, que estabelece uma
ligação paramecânica, apresentando fatos da vida mental por
analogia aos ilustrados pelas ciências técnicas e naturais:

Com base no fato de que o pensar, o sentir e o agir intencional


não podem obviamente ser reduzidos ao jargão da física, da
química e da fisiologia, pretende-se construir para eles uma
réplica daquele jargão. A complexa e unitária organização do
corpo humano obriga a postular para a mente uma organiza-
ção parecida, embora diferente em substância e natureza. E as-
sim como o corpo, como cada porção de matéria, é agitado por
causas e efeitos, o mesmo deve passar-se com a mente, ainda
que (graças aos céus), não se trate de causas e efeitos mecâni-
cos. (Ryle, 1949, p. 19-20)

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Fazer ou dizer alguma coisa significante, segundo o que Ryle
chama “a legenda dos dois mundos”, implicaria fazer duas coi-
sas, isto é, considerar proposições apropriadas e em seguida co-
locá-las em prática: significaria fazer “um pouco de teoria e um
pouco de prática”. Ryle refuta a opinião de que um indivíduo pri-
meiro age e depois confere significado a seu agir. Pelo contrário,
argumenta que a ação contém os significados como elementos
indispensáveis, não só para que a ação possa ser entendida, mas
também para que possa ser realizada. A atribuição de significado
é um fato primário e coincide com a organização mesma da ação:

Dizer algo significante com a consciência de seu significado não


é fazer duas coisas, isto é, dizer em voz alta ou mentalmente algo
e, ao mesmo tempo, ou um momento antes, realizar qualquer
outro movimento escondido. É fazer apenas uma coisa de deter-
minada maneira e com uma determinada atitude: não por acaso,
enunciando os vocábulos conforme aparecem, histrionicamente,
sem preocupação ou em delírio, mas de propósito, com um mé-
todo, com cuidado e estando alerta. (Ryle, 1949, p. 279)

O exercício de qualidades mentais indica disposições que se


exercitam observando cânones e critérios. O seu desenvolvimen-
to pode ser indiferentemente aberto ou encoberto, pode consis-
tir de ações realizadas ou imaginadas, de palavras pronunciadas
ou ditas apenas no próprio íntimo. (Ryle, 1949, p. 46) Em qual-
quer dos casos, não se refere a “ações-sombra”, que acontece-
riam “na mente”, vistas como preâmbulo das ações “públicas”.
Consequentemente, Geertz não considera a mente como algo de
obscuro e privado: invocando John Dewey, define a mente como
um conjunto de disposições de um organismo para executar de-
terminado tipo de ações:

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‘Mente’ é um termo que denota uma espécie de habilidade,
propensão, capacidade, tendência, hábitos; ela se refere, na
frase de Dewey, a um ‘ambiente ativo e ansioso, que fica na
expectativa e se engaja no que quer que apareça’. Como tal,
não é nem uma ação nem uma coisa, mas um sistema organi-
zado de disposições que descobre a sua manifestação através
de algumas ações e algumas coisas. (Geertz, 1973, p. 58 [43])

Visto que o “mental” não denota um estado, não faz sen-


tido perguntar-se se uma coisa ou um evento é mental ou físi-
co, “na mente” ou “no mundo externo”. Falar da mente ou de
atributos mentais de uma pessoa não é falar de um armazém
que recebe objetos excluídos do mundo físico, mas, sim, daqui-
lo que a pessoa sabe, observa e está sujeita a fazer no mundo
ordinário. (Ryle, 1949, p. 190) Geertz ilustra a própria posição
citando por extenso um passo de Ryle, na abertura do capítulo
“Crescimento da cultura e evolução da mente”, de A interpre-
tação das culturas:

A expressão ‘a mente em seu próprio lugar’, que os teóricos po-


deriam construir, não é verdadeira, pois a mente não é sequer
um ‘lugar’… Pelo contrário, o tabuleiro de xadrez, a estação de
trem, a carteira do garoto de escola, a poltrona do juiz, o as-
sento do motorista, o estúdio e o campo de futebol estão entre
os seus lugares. É nesses lugares que as pessoas trabalham e se
divertem, estúpida ou inteligentemente. A ‘mente’ não é o nome
de uma outra pessoa, que trabalha ou brinca por trás de um
biombo impenetrável; não é o nome de algum outro lugar onde
se executa um trabalho ou se joga, e também não é o nome de
uma outra ferramenta com a qual se executa um trabalho ou
um outro instrumento com que se joga. (Ryle, como citado em
Geertz, 1973, p. 55 [41])

Roberto Malighetti 95

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Sob este ponto de vista, a mente não é a base arquimediana
sobre que se apoiar causalmente na explicação do comporta-
mento segundo os princípios metodológicos do cogito cartesia-
no, que veem no ego o porto seguro, subtraído ao fluxo expe-
riencial, a que reconduzir as evidências interiores e adquirir uma
base indubitável sobre que fundar a demonstração racional da
existência de Deus e do mundo. Ao contrário, Geertz individua
o mental não em algo “escondido”, mas em algo plenamente
observável que existe no mundo da vida:

O que ocorre […] é que, quando atribuímos uma mente a um


organismo, não estamos falando das ações do organismo nem
de seus produtos per se, mas sobre suas capacidades e pro-
pensões, sua disposição de executar certos tipos de ações e
produzir certas espécies de produtos, uma capacidade e uma
propensão que inferimos, naturalmente, a partir do fato de que
ele às vezes executa tais ações e produz tais produtos. Nada há
de extramundano a esse respeito: ele indica, simplesmente, que
a falta de termos ordenadores num idioma torna extraordina-
riamente difícil a descrição científica e a análise do comporta-
mento humano, frustrando severamente o seu desenvolvimento
conceptual. (Geertz, 1973, p. 59-60 [44])

Abandonar a “legenda dos dois mundos” significa abando-


nar a ideia de que há, como diz Ryle (1949, p. 44), “uma porta
trancada, com a chave ainda por descobrir”. As únicas mani-
festações a analisar – e as únicas que podem ser consideradas
“mentais” – são as ações e reações humanas, o que o homem diz,
com seu tom de voz e seus gestos. Embora, para julgar o sentido
de uma ação, seja necessário olhar para além dela, isso não signi-
fica sair à procura de “lugares secretos”, réplicas escondidas da
ação aberta. A caracterização do comportamento humano por

96 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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meio de predicados mentais implica, é certo, ultrapassar o as-
pecto perceptível de tal comportamento; mas essa ultrapassagem
não implica ir atrás de causas ocultas subtraídas à indagação. Ao
contrário, convida a considerar as capacidades e propensões de
que o agir é atuação. Com uma fórmula de Ryle (1949, p. 49),
podemos dizer que “não descrevemos a mente em grupos de pro-
posições categóricas não sujeitáveis a provas, mas em grupos de
proposições hipotéticas e semi-hipotéticas prováveis”.

A ciência empírica das ideias

O princípio da interpretação subjetiva tem a ver com o acesso


aos fatos sociais e à sua certificação. A análise coincide com
a pesquisa das capacidades e propensões das quais a ação é a
atuação: não causas ocultas, mas habilidades, hábitos, respon-
sabilidades, inclinações:

Iniciar o estudo da atividade cultural – uma atividade na qual


o simbolismo forma o conteúdo positivo – não é abandonar a
análise social em troca de uma caverna de sombras platônicas,
entrar num mundo mentalista de psicologia introspectiva ou, o
que é pior, de filosofia especulativa, e lá vaguear eternamente
numa neblina de ‘Cognições’, ‘Afeições’, ‘Volições’ e outras en-
tidades nebulosas. Os atos culturais, a construção, apreensão
e utilização de formas simbólicas, são acontecimentos sociais.
(Geertz, 1973, p. 91 [68])

Geertz elaborou assim uma metodologia por ele chamada


“epistemologia prática” (Geertz, 1983a, p. 151 [225]), funda-
mentada na passagem analítica do que antes se considerava um
problema de confrontabilidade entre processos psicológicos de

Roberto Malighetti 97

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povos diferentes, para uma questão de comensurabilidade de
estruturas conceituais entre comunidades discursivas. (Geertz,
1983a, p. 151 [225]) Nesse sentido, recupera as observações de
G. H. Mead sobre a mente como emergência social construída
pela linguagem. Ao comportamentalismo tradicional de Watson,
que exclui o estudo do “privado” não expresso explicitamente e,
portanto, constatável empiricamente, G. H. Mead opõe a pos-
sibilidade de estudar o mundo psíquico interior ao indivíduo: o
significado não é um a priori independente do comportamento,
mas também ele vem a formar-se por meio do comportamento,
na interação social:

Em todo caso, a interpretação dos gestos não é fundamental-


mente um processo da mente ou que implique a participação
da mente: ela é um processo externo, patente, físico ou fisio-
lógico, que se realiza amplamente no campo da experiência
social. O significado pode ser descrito, explicado ou definido
em termos de símbolos ou de linguagem na sua fase mais ele-
vada ou complexa de desenvolvimento (a fase que isso alcança
na experiência humana), mas a linguagem em si não faz mais
que nuclear, do processo social, uma situação que nele existe
já logicamente ou de forma implícita. O símbolo da linguagem
é simplesmente um gesto significativo ou consciente. (Mead,
1934, p. 78-79)

Para Geertz, a possibilidade de compreensão do agir consis-


te na determinação da referência ao outro. A noção de sentido
torna-se imediatamente uma noção que abre caminho para a
certificação empírica. Geertz associa o tema ryliano à concepção
de G. H. Mead sobre o pensamento como “tráfico de símbolos
significantes”, para elaborar uma metodologia científica “posi-
tiva” que compreenda os pensamentos:

98 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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A perspectiva de que o pensamento não consiste em processos
misteriosos localizados naquilo que Gilbert Ryle chamou de
na cabeça, mas de um tráfico de símbolos significantes – obje-
tos em experiência (rituais e ferramentas; ídolos esculpidos e
buracos de água; gestos, marcações, imagens e sons) sobre os
quais os homens imprimiram significado – faz do estudo da
cultura uma ciência positiva como qualquer outra. (Geertz,
1973, p. 362 [150])

A análise do fator intencional é fundamentada por Geertz


sobre a compreensão de que o pensamento é uma atividade
pública e intersubjetiva. Influenciado pela obra de Ryle, G. H.
Mead e Dewey, e pela “teoria extrínseca” do pensamento de
Galanter e Gerstenhaber (Geertz, 1973, p. 125-26 [121]), ele de-
fende que o pensamento consiste na construção e manipulação
de sistemas simbólicos, e não em “acontecimentos fantasmagó-
ricos” (Geertz, 1973, p. 362 [121]):

A perspectiva da cultura como ‘mecanismo de controle’ inicia-


-se com o pressuposto de que o pensamento humano é basica-
mente tanto social como público – que seu ambiente natural é
o pátio familiar, o mercado e a praça da cidade. Pensar consiste
não nos ‘acontecimentos na cabeça’ (embora sejam necessários
acontecimentos na cabeça e em outros lugares para que ele
ocorra), mas num tráfego entre aquilo que foi chamado por
G. H. Mead e outros de símbolos significantes – as palavras,
para a maioria, mas também gestos, desenhos, sons musicais,
artifícios mecânicos como relógios, ou objetos naturais como
joias – na verdade, qualquer coisa que esteja afastada da sim-
ples realidade e que seja usada para impor um significado à ex-
periência. Do ponto de vista de qualquer indivíduo particular,
tais símbolos são dados, na sua maioria. Ele os encontra já em
uso corrente na comunidade quando nasce e eles permanecem

Roberto Malighetti 99

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em circulação após a sua morte, com alguns acréscimos, sub-
trações e alterações parciais dos quais pode ou não participar.
Enquanto vive, ele se utiliza deles, ou de alguns deles, às vezes
deliberadamente e com cuidado, na maioria das vezes espon-
taneamente e com facilidade, mas sempre com o mesmo pro-
pósito: para fazer uma construção dos acontecimentos através
dos quais ele vive, para auto-orientar-se no “curso corrente das
coisas experimentadas”, tomando de empréstimo uma brilhan-
te expressão de John Dewey. (Geertz, 1973, p. 45 [33])

O pensamento é assim identificado com a utilização de ele-


mentos enraizados em contextos de comunicação, em práticas e
formas de vida intersubjetivas que se encontram na experiência
e que servem para lhe conferir significado: “linguagem, arte, mi-
tologia, teoria, ritual, tecnologia, direito, e aquele aglomerado de
máximas, receitas, preconceitos e estórias plausíveis que os enten-
didos chamam de senso comum. (Geertz, 1983a, p. 153 [228]) Só
em segundo plano o pensar é uma questão privada. Como afirma
G. H. Mead, o pensamento é antes de tudo um ato manifesto de-
senvolvido com os materiais objetivos da cultura comum:

A existência da mente ou inteligência é possível apenas em ter-


mos de gestos, enquanto símbolos significativos: de fato, ape-
nas em termos de gestos que sejam símbolos significativos pode
realizar-se o pensamento, que é simplesmente uma conversação
internalizada ou implícita do indivíduo consigo mesmo, atuada
por meio de tais gestos […]. Os gestos assim internalizados são
símbolos significativos, porque possuem os mesmos significa-
dos para todos os membros individuais de uma determinada
sociedade ou grupo social, isto é, eles suscitam nos indivíduos
que os executam as mesmas atitudes produzidas nos indivíduos

100 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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que respondem. Se assim não fosse, o indivíduo não poderia
internalizá-los ou estar consciente deles e de seu significado.
(Mead, 1934, p. 47)

Geertz usa várias fontes para entender a intersubjetividade


como centro da subjetividade humana e para sublinhar o enrai-
zamento da ação na linguagem e nas práticas de comunicação
socialmente determinadas: desde as lições de Parsons e Weber,
até às pesquisas de Schutz e de Habermas e da filosofia analíti-
ca. Criticando o que chama, citando Husserl e Wittgenstein, de
“as teorias sobre a reservateza do significado” (Geertz, 1973,
p. 12 [12]), ele considera a simbolização não como uma opera-
ção psicológica, mas, wittgensteinianamente, identifica o signifi-
cado com a utilização: “Abandonar a esperança de encontrar a
‘lógica’ da organização cultural em algum ‘reino de significado’
pitagórico não significa abandonar a esperança de encontrá-lo.
É justamente o voltarmos nossa atenção para isso que dá aos
símbolos sua vida: sua utilização”. (Geertz, 1973, p. 405 [179])
O sentido subjetivamente entendido é dado apenas pelo uso, em
conexões simbólicas e em esquemas sociais: depende de uma
sintaxe pública, incorporada na ação e decifrável a partir da
mesma ação por meio dos atores do jogo social. Tanto o pensa-
mento como o comportamento são expressões dos valores do-
minantes e dos modelos de organização de uma comunidade
particular. Geertz sustenta que o pensar como ato oculto é uma
capacidade derivada, e demonstra isso com o argumento sobre
como aprendemos a fazer contas ou a ler mentalmente:

Com efeito, o pensamento como um ato aberto, público,


que envolve a manipulação propositada de materiais objeti-
vos, é provavelmente fundamental para os seres humanos; o

Roberto Malighetti 101

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pensamento como um ato privado, oculto, sem recorrer a tais
materiais, parece ser uma capacidade derivada, embora não
inútil. Observar como os escolares aprendem a calcular revela
que somar números na cabeça é uma realização mental muito
mais sofisticada do que somá-los com papel e lápis, juntando
pauzinhos ou contando os dedos das mãos e dos pés. Ler em
voz alta é uma realização mais elementar do que ler para si
mesmo, sendo que essa última habilidade só surgiu, de fato, na
Idade Média. (Geertz, 1973, p. 76-77 [56])

A atribuição de significado é para Geertz um fato social e


público não tanto porque a sociedade intervém para atribuir
um significado depois do agir, mas porque o significado da ação
– o que a torna possível mesmo antes de compreensível post
factum – remete à cultura. As classificações, as interpretações
das nossas experiências, são construídas segundo esquemas es-
sencialmente sociais e intersubjetivos. Tomando explicitamente
a Wittgenstein como seu mestre – mestres “são aqueles que nos
parecem estar dizendo afinal o que há muito tínhamos na ponta
da língua mas não conseguíamos expressar” (Geertz, 2000, p. xi
[9]) –, Geertz utiliza especificamente a ideia wittgensteiniana de
“formas de vida” como o “conjunto de condições naturais e cul-
turais pressupostas em […] qualquer compreensão específica do
mundo”. No geral, extrai das Philosophische Untersuchungen
(Investigações filosóficas) a crítica da ideia de uma língua pri-
vada, “que tirou o pensamento de sua gruta mental e levou-o
para a praça pública onde podia ser examinado”, e a noção de
jogo linguístico, “que fornecia uma nova maneira de encará-la –
como um conjunto de práticas”. (Geertz, 2000, p. xi [9]) Geertz
convida, assim, a compreender o pensamento “etnografica-
mente”, descrevendo a forma em que assume o seu significado.
(Geertz, 1983a, p. 194 [227]) Lembrando uma frase de Joseph

102 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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Levenson, ele transforma o estudo do pensamento no “estudo
dos homens que pensam” (Geertz, 1973, p. 405 [179]), não em
algum lugar secreto, especial, mas no mesmo lugar – o mundo
social – onde os homens fazem tudo o mais:

No sentido tanto do raciocínio orientado como da formulação


dos sentimentos, assim como da integração de ambos os moti-
vos, os processos mentais do homem ocorrem, na verdade, no
banco escolar ou no campo de futebol, no estúdio ou no assen-
to do caminhão, na estação de trem, no tabuleiro de xadrez ou
na poltrona do juiz. (Geertz, 1973, p. 83 [61])

Fundindo a análise cultural e social no âmbito da semiótica,


Geertz redimensionou assim o estudo das intenções e das ideias,
considerando-as sociológicas, sem escondê-las num determinis-
mo de formato mentalista ou materialista, e sem misturar tipos
de consciência a tipos de organização social, lançando “flechas
causais que partem de algum dos cantos da segunda categoria
na direção geral da primeira”. (Geertz, 1983a, p. 153 [228]) A
sua abordagem se configura como “ciência empírica das ideias”
enquanto as mesmas ideias são “visíveis, audíveis e […] táteis”,
isto é, podem exprimir-se em formas a que os sentidos têm como
voltar-se de forma reflexiva. Os significados das motivações, das
intenções, expressos simbolicamente, ainda que de forma vaga e
fugidia, podem ser compreendidos mediante “uma investigação
empírica sistemática – sustenta Geertz –, como o peso atômico
do hidrogênio ou a função das glândulas suprarrenais. (Geertz,
1973, p. 152 [150]) Desse modo, o estudo da cultura se trans-
forma em “uma ciência positiva como qualquer outra” (Geertz,
1973, p. 362 [150]), uma “ciência empírica das ideias”:

Roberto Malighetti 103

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As ideias não são, e não o são há algum tempo, material mental
inobservável. São significados veiculados. Os veículos são os
símbolos (ou, em alguns usos, os signos), sendo um símbolo
qualquer coisa que denote, descreva, represente, exemplifique,
etiquete, indique, evoque, desenhe, exprima – qualquer coisa
que de uma forma ou de outra signifique. E qualquer coisa que
de uma forma ou de outra significa é intersubjetiva, portanto
pública, portanto acessível à explicação plein air, aberta e cor-
rigível. Argumentações, melodias, fórmulas, mapas e quadros
não são idealidades para contemplar, mas textos para ler: assim
também, os rituais, os palácios, as tecnologias e as formulações
sociais. (Geertz, 1980, p. 135 [170])

104 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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Capítulo III

O Círculo Hermenêutico

Ficções

A revisão das ciências sociais empreendida por Geertz tem como


principal característica a dimensão hermenêutica, entendida
como teoria do signo e das significações equívocas e polissêmi-
cas, cuja ênfase temática incide sobre a interpretação e o caráter
construtivo do conhecimento. Perseguindo o propósito de “fazer
da antropologia – ou, de qualquer modo, da antropologia cul-
tural – uma disciplina hermenêutica”, Geertz instala “o estudo
sistemático do significado […] no próprio centro da pesquisa e
análise”. (Geertz, 1995, p. 138 [96]) Nesse intuito, ele incorpora
um conceito que Ricoeur retira do segundo livro do Organon,
de Aristóteles, e aplica a interpretação a todo discurso signi-
ficante, a toda realidade, na medida em que esta diz “alguma
coisa sobre algo”. (Geertz, 1973, p. 443 [209]) Na semântica da
alteridade e na problemática do manifesto-latente ou do seme-
lhante-diferente, ele enxerga a vocação de reciprocidade entre a
antropologia e a hermenêutica. A esse elemento comum às duas

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ciências – como também à exegese e à psicanálise – Ricoeur
(1977) chama “nó semântico”: a arquitetura do sentido, o “sen-
tido duplo” ou o “sentido múltiplo”, cujo papel é mostrar es-
condendo. A tarefa do etnógrafo assemelha-se, dessa forma, à
que Crapanzano (1986) atribui a Hermes: um e outro devem
revelar o diferente, o mascarado, o latente, o inconsciente.
O horizonte epistemológico geertziano constitui-se, assim,
pela inserção do discurso no confronto entre interpretação e tra-
dução na dinâmica do círculo hermenêutico. Os instrumentos
utilizados remetem à problemática da circularidade: entre a par-
te e o todo, a familiaridade e a estranheza, a antecipação de sen-
tido e a compreensão, o sujeito e o objeto, o particular e o geral.
Por meio do círculo hermenêutico, Geertz integra a “descri-
ção densa” ao princípio da ação significante como unidade de
base para a análise, de modo a veicular informações que trans-
cendam a particularidade e levem ao contexto geral:

Saltando continuamente de uma visão da totalidade através


das várias partes que a compõem, para uma visão das partes
através da totalidade que é a causa de sua existência, e vice-ver-
sa, com[o] uma forma de moção intelectual perpétua, busca-
mos fazer com que uma seja explicação para a outra. (Geertz,
1983a, p. 69 [105])

Referindo-se explicitamente à concepção clássica do círculo


hermenêutico elaborada por Schleiermacher e Dilthey, define-o
como “um bordejar dialético contínuo, entre o menor detalhe
nos locais menores, e a mais global das estruturas globais, de
tal forma que ambos possam ser observados simultaneamente”.
(Geertz, 1983a, p. 69 [105]) A centralidade do círculo herme-
nêutico ele a reclama não só para a interpretação etnográfica e,

106 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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logo, para a compreensão do modo de pensar de outras pessoas,
mas também para a interpretação tout-court, literária ou históri-
ca, cujo funcionamento é explicado com uma série de exemplos:

Para acompanhar um jogo de beisebol, temos que saber o que


é um bastão, uma bastonada, um turno, um jogador de esquer-
da, um lance de pressão, uma trajetória curva pendente, e um
centro de campo fechado, e também como funciona o jogo que
contém todos estes elementos. Quando, em uma explication
de texte, um crítico como Leo Spitzer tenta interpretar a Ode
sobre uma Urna Grega, de Keats, ele se pergunta repetida e
alternativamente duas questões: ‘Sobre o que é este poema?’ e
‘O que é, exatamente, que Keats viu (ou decidiu mostrar-nos)
na urna que ele descreve?’, e chega ao final de uma espiral as-
cendente de observações gerais e comentários específicos com
uma leitura do poema que interpreta como uma afirmação do
triunfo da percepção estética sobre a histórica. Da mesma for-
ma, quando um etnógrafo de significados e símbolos como eu
tenta descobrir o que é uma pessoa na visão de algum grupo de
nativos, ele vai e vem entre duas perguntas que faz a si mesmo:
‘como é a sua maneira de viver, de um modo geral?’ e ‘quais são
precisamente os veículos através dos quais esta maneira de vi-
ver se manifesta?’, chegando ao fim de uma espiral semelhante
com a noção de que eles consideram o eu como uma compo-
sição, uma persona, ou um ponto em uma estrutura. (Geertz,
1983a, p. 69-70 [105-106])

Na semântica do poder em Bali, Geertz põe em confronto a


descrição das formas simbólicas particulares e sua contextua-
lização na estrutura de significados que as envolve e em cujos
limites recebem a própria definição. Em sua análise, ele não se
detém na simples descrição etnográfica dos objetos e do com-
portamento, no exame iconográfico dos motivos estilísticos ou

Roberto Malighetti 107

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no estudo filológico dos significados textuais. Tais fatores são
levados a convergir, de modo a que a imediatez concreta da tea-
tralidade do Estado balinês revele seu significado. A mesma aná-
lise isola os elementos essenciais do Estado-teatro e determina
o significado deles na perspectiva do que é o Estado enquanto
instituição em sua totalidade. Para compreender a cremação do
corpo de um monarca balinês, o antropólogo segmenta o con-
junto de imagens relativas à cerimônia em seus elementos signi-
ficativos – serpentes de pano, flechas transformadas em flores,
féretros em forma de leão, pagodes conduzidos por portadores
de cadeirinhas etc. – e incorpora esses elementos à análise do
rito em sua complexidade. O local, os atores da cena, as ações
e as coisas mais particulares são apanhadas no fundo geral do
acontecimento em questão. Segundo Geertz, não se pode enten-
der o que é uma torre badé sem entender o que é uma cremação,
assim como não se compreende o que é lek se não se conhece o
dramatismo balinês ou, vice-versa, se não se conhece o chamado
“sistema mosaico de organização social”, se não se sabe o que é
uma nisba. (Geertz, 1983a, p. 70 [102])
A característica principal do círculo hermenêutico, con-
forme manipulado por Geertz, é o seu aspecto construtivo.
Fundamentando-se nas hermenêuticas heideggeriana e gada-
meriana e na interpretação delas por Ricoeur, ele concebe a
circularidade a partir da antecipação de sentido que abraça a
totalidade: esta se torna compreensiva quando as partes, que
são determinadas pelo todo, o determinam por sua vez. Ricoeur
ilustra o processo dialético aplicando a análise kantiana do juízo
à exegese textual e afirmando que um texto deve ser construído
porque não é uma simples sequência de frases, sendo, mais, uma
totalidade constituída circularmente pelo leitor: a pré-suposição
do significado ou a pré-compreensão do texto no seu conjunto

108 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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orienta a interpretação das partes singulares, as quais, por sua
vez, modificam a compreensão do todo, num procedimento em
constante redefinição.

Em termos gerais, um texto deve ser construído porque não é


uma simples sequência de frases, todas emparelhadas e com-
preensíveis separadamente. Um texto é um conjunto, uma to-
talidade. A reação entre o todo e as partes – como numa obra
de arte ou em um animal – exige um tipo especial de juízo do
qual Kant forneceu a teoria na Terceira Crítica. Corretamente,
o todo aparece como uma hierarquia de argumentos, primários
e subordinados. A reconstrução de um texto no seu conjunto
assume necessariamente um caráter circular, no sentido de que
a pressuposição de um determinado tipo de todo está implícita
no reconhecimento das partes. E, reciprocamente, é na constru-
ção dos detalhes que construímos o todo. (Ricoeur, 1979, p. 89)

Geertz consorcia seu pensamento às implicações “constru-


tivistas” das ciências humanas, cujo estatuto as inscreve como
ciências interpretativas. Conforme lembra Borutti, estas con-
sistem em, por um lado, assumir que as expressões e as ações
humanas têm um componente significativo, reconhecido pelo
sujeito que produz e vive de determinado sistema de valores e
significados; por outro lado, em que as ciências interpretativas
são constituídas por modelos que produzem os próprios referen-
tes. (Borutti, 1988, p. 902) O enfoque geertziano recolhe a he-
rança kantiana mediando-a com a tradição hermenêutica e com
a sociologia compreensiva. O significado, segundo Max Weber
(1922, p. 90), não pode “ser determinado através de alguma
investigação do lado empírico, conduzida sem pressupostos”:
pelo contrário, a determinação do significado “é o pressuposto
para estabelecer que algo se faça o objeto da indagação”, não

Roberto Malighetti 109

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coincidindo, assim, com o âmbito da lei, “tanto menos quanto
mais universalmente é válida aquela lei”.
Desvinculada, assim, dos dogmatismos das filosofias especu-
lativas, das metafísicas e das ideologias, a ciência é reconduzida
ao homem e à sua capacidade de “dar sentido” ao mundo: é
fenômeno-técnica, técnica de produção dos fenômenos, segundo
a expressão de Bachelard (1940). De modo análogo ao de um
literato, diz Geertz, o antropólogo inventa os significados do
discurso social. Como o romance Madame Bovary e as obras
literárias, os textos antropológicos são ficções:

[…] ficções no sentido de que são ‘algo construído’, ‘algo mo-


delado’ – o sentido original de fictio – não que sejam falsas,
não-fatuais ou apenas experimentos de pensamento. Construir
descrições orientadas pelo ator dos envolvimentos de um chefe
berbere, um mercador judeu e um soldado francês uns com os
outros no Marrocos de 1912 [é] claramente um ato de imagi-
nação, não muito diferente da construção de descrições seme-
lhantes de, digamos, os envolvimentos uns com os outros de
um médico francês de província, com a mulher frívola e adúl-
tera e seu amante incapaz, na França do século XIX. (Geertz,
1973, p. 15-16 [11])

Excluindo a possibilidade de uma análise objetiva dos fenô-


menos sociais à parte das perspectivas teóricas, Geertz elabora
um horizonte perspectivo e semântico fundamentado sobre con-
ceitos provenientes das diferentes tradições que sincreticamente
compõem o seu pensamento: redescrição poiética, na interpre-
tação de Aristóteles feita por Ricoeur; “relação aos valores”,
de Weber; “função simbólica”, de Cassirer; caráter constitutivo
dos pré-juízos, de Gadamer; worldmaking ou fabrication, de

110 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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Goodman; “ver como”, de Wittgenstein. Geertz reconhece algu-
mas dessas influências quando afirma que:

‘dizer a coisa como ela é’ não vem a ser um lema mais adequa-
do para a etnografia do que para a filosofia desde Wittgenstein
(ou Gadamer), para a história desde Collingwood (ou Ricoeur),
para a literatura desde Auerbach (ou Barthes), para a pintura
desde Gombrich (ou Goodman), para a política desde Foucault
(ou Skinner), ou para a física desde Kuhn (ou Hesse). (Geertz,
1988, p. 137 [179])

À base das concepções construtivistas está a ideia comum


de que o saber é perspectivo. Seu horizonte é de tipo semânti-
co: a linguagem constrói objetos, formando e transformando os
significados. Sob esse ponto de vista, o mundo não é objeto da
linguagem, mas, sim, como salienta Gadamer (1965, p. 450),
é a totalidade de instrumentos e de significados: “a absoluteza
da experiência linguística do mundo consiste no fato de que ela
precede tudo aquilo que é reconhecido e enunciado como au-
sente”. Em várias ocasiões, Geertz repete a conhecida expressão
de Wittgenstein – “Os limites da minha linguagem são os limites
do meu mundo” (Geertz, 2000, p. 9 [75]) – para exprimir um
conceito análogo: assim, por exemplo, analisando o trabalho de
Evans-Pritchard, ele afirma que “os limites do discurso de E-P
[…], como no caso de qualquer um, são os limites wittgenstei-
nianos de seu mundo”. (Geertz, 1988, p. 51 [73])
Em Geertz, atua a perspectiva kantiana de Cassirer, mediada
por Goodman, cujo enfoque Geertz reconhece, sob muitos as-
pectos, como semelhante ao seu. (Geertz, 1983a, p. 184 [276])
“Inúmeros mundos feitos do nada por meio de símbolos”, as-
sim Goodman (1978, p. 1) resume o principal tema da obra de

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Cassirer, associando-o ao esquematismo kantiano e à contribui-
ção de diversos autores:

As esmagadoras argumentações contra a percepção sem con-


ceitos, o dado puro, a imediatez absoluta, o olho inocente, a
substância como substrato, foram ampla e frequentemente de-
senvolvidas – por Berkeley, Kant, Cassirer, Gombrich, Bruner e
muitos outros – para não exigir reafirmação aqui. Falar de um
conteúdo não estruturado, ou de um dado não conceituado,
ou de um substrato sem propriedade, é contraditório, porque
o falar impõe uma estrutura, conceitua, estabelece proprieda-
des. Enquanto o conceito sem percepção é simplesmente va-
zio, a percepção sem conceito é cega […]. Os predicados, os
quadros, as outras etiquetas, os esquemas existem mesmo sem
aplicações, mas o conteúdo se esvaece sem forma. Podemos ter
palavras sem um mundo, mas não um mundo sem palavras ou
outros símbolos. (Goodman, 1978, p. 6)

Cassirer compõe as funções simbólicas numa única função


(das Symbolische) – denominador comum dos modos de objeti-
var, de dar sentido à realidade (Cassirer, 1923, p. 48) – e exclui,
como “problema mal colocado” e “imagem enganosa do pensa-
mento”, a possibilidade de responder à pergunta “o que é o ab-
soluto real” de fora “da totalidade das funções espirituais”. Por
meio dos instrumentos simbólicos, “nós enxergamos e possuí-
mos o que chamamos de realidade: porque a mais alta verdade
objetiva que se abre ao espírito é, afinal, a forma de seu próprio
agir”. (Cassirer, 1923, p. 48 [x]) Geertz associa essas posições
à filosofia de Percy, por ele citada para afirmar que toda per-
cepção consciente é um ato de reconhecimento, uma conjunção
pela qual um objeto é identificado mediante a perspectiva de um
símbolo apropriado:

112 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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Não é suficiente dizer que alguém tem consciência de alguma
coisa; esse alguém tem que ter também a consciência de que al-
guma coisa é alguma coisa. Há uma diferença entre a apreensão
de uma Gestalt (um frango percebeu o efeito Jastrow tão bem
quanto um humano) e sua apreensão através de seu veículo sim-
bólico. Olhando em torno de um aposento, tenho a consciência
de praticar, quase sem esforço, uma série de atos combinatórios:
ver um objeto e saber o que ele é. Se meus olhos recaem sobre
algo não-familiar, tenho imediatamente a consciência de que
uma parte da combinação está faltando, e me pergunto o que é
[o objeto] – uma questão excepcionalmente misteriosa. (Percy,
como citado em Geertz, 1973, p. 215 [122])

Nessa perspectiva, Geertz reconstrói a relação teoria-ob-


servação, subtraindo-a a um empirismo ingênuo e colocando-
-a no âmbito da epistemologia construtivista de Wittgenstein,
que considera as proposições perceptivas não como empíricas,
e sim como contendo um saber: “um pensamento ecoa no ver”.
(Wittgenstein, 1953, p. 278 [192]) “Ver” – afirma Hanson (1958,
p. 19 [127]) – não é um processo físico, a formação da imagem
na retina, mas “é na realidade uma empreitada ‘densa’ de teoria”.

Sir Lawrence Bragg e um esquimó recém-nascido veriam a


mesma coisa observando um tubo de raios X? Sim e não. Sim,
no sentido que estariam visualmente cientes do mesmo objeto;
não, quanto ao modo como são visualmente cientes, [que] é
profundamente diferente. Ver não consiste apenas no ter uma
experiência visual, mas também no modo como se tem a expe-
riência visual. (Hanson, 1958, p. 15 [124])

Semelhantemente, Geertz acena às diferentes modalidades


com que as culturas põem em forma a realidade, organizando-a

Roberto Malighetti 113

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em termos significativos e interpretando-a segundo categorias
relativas e construções específicas dos objetos do mundo:

os hopi acreditam que o mundo natural é composto de eventos


e não de objetos […] os esquimós consideram o tempo cíclico e
não sucessivo […] os azande têm uma concepção mecânica dos
elos causais, mas explicam sua interseção em termos morais.
(Geertz, 1983a, p. 149 [222-223])

Subjetivismo e objetivismo

Característica significativa da hermenêutica geertziana é o mo-


vimento entre a orientação da análise por parte do ator e o ca-
ráter construtivo da interpretação, entre o saber do antropólogo
e o do “nativo”. Essa relação dinâmica ultrapassa os enfoques
objetivantes e subjetivantes, posicionando-se além de hipóteses
empiristas e idealistas; o caráter construtivo do conhecimento
radica-se numa realidade que só se dá em seu ser para:

Em meio a tudo isso, minha própria posição tem sido tentar


resistir ao subjetivismo, de um lado, e ao cabalismo de outro,
tentar manter a análise das formas simbólicas tão estreitamen-
te ligadas quanto possível aos acontecimentos sociais e oca-
siões concretas, o mundo público da vida comum, e organizá-la
de tal forma que as conexões entre as formulações teóricas e
as interpretações descritivas não sejam obscurecidas por ape-
los às ciências negras (mágicas). Nunca me impressionei com
o argumento de que, como é impossível uma objetividade
completa nesses assuntos […], é melhor permitir que os sen-
timentos levem a melhor. […] De outro lado, também não me
impressionaram as alegações de que as linguísticas estruturais,

114 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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a engenharia de computação, ou qualquer outra forma avan-
çada de pensamento possibilitar-nos-á compreender os homens
sem conhecê-los. (Geertz, 1973 p. 29-30 [21])

A abordagem geertziana reage ao idealismo do tipo berkele-


yano esse est percipi. Reconhecer “que alguém tenha construído
algo em vez de tê-lo achado ao acaso, reluzindo numa praia,”
não significa “minar seu direito à verdadeira essência e reali-
dade”. (Geertz, 1995, p. 62 [57]) Pelo contrário, é a própria
característica de “construção” que garante a existência, possibi-
litando identificar os artífices da construção, a dinâmica e até os
interesses e finalidades nela implicados:

[…] uma cadeira é algo culturalmente (historicamente, social-


mente…) construído, um produto confeccionado por pessoas
ativas instruídas por conceitos não totalmente próprios; contu-
do, você pode se sentar nela, que por sua vez pode ser bem ou
mal feita, mas não pode, ao menos no atual estado das artes,
ser feita de água ou – essa é para os obcecados pelo “idealis-
mo” – pensamento ou existência. (Geertz, 1995, p. 62 [57])

A dinâmica do círculo hermenêutico identifica o trabalho do


etnógrafo com o encontrar recursos na própria linguagem, na
própria cultura, de modo que ele – o etnógrafo – entenda fenôme-
nos que lhe são alheios, sem lhes impor os próprios preconceitos e
sem neles estacionar. Conforme demonstraram Heidegger (1927)
e Gadamer (1965), a interpretação não consiste em levar a termo,
sem mais, as antecipações do intérprete, mas assenta-se sobre um
retorno contínuo às “coisas mesmas” (an sich): a interpretação de
um texto implica a contínua revisão do projeto esboçado prelimi-
narmente à base do sentido mais imediato que ele exibe e “à base
do que resulta da ulterior penetração do texto”. (Gadamer, 1965,

Roberto Malighetti 115

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p. 251-252 [402]) Essa constante renovação do projeto constitui
o movimento de compreender e interpretar. Evitando os erros de-
rivados de pressupostos que não se confirmam em face ao obje-
to, a compreensão consiste em elaborar e articular antecipações
que só podem ser validadas em relação às “coisas mesmas”: o
intérprete deve penetrar no escrito, e não simplesmente deter-se
“na moldura dos pressupostos nele presentes”. Seu dever é pôr à
prova a legitimidade, isto é, a origem e a validade dos próprios
pressupostos. (Gadamer, 1965, p. 251-252 [402])
A metáfora textual é usada por Gadamer para definir os aspec-
tos construtivos do conhecimento. Em geral, antes de compreen-
der a frase, procedemos à elaboração de uma estrutura preliminar
que constitui a base para a subsequente compreensão. Tão logo
o intérprete descobre alguns elementos compreensíveis, esboça o
significado de todo o texto. Esse projeto preliminar, que depende
do interesse inicial com que o leitor enfrenta o texto baseando-se
nele, será progressivamente corrigido no curso da interpretação.
Como Heidegger, também Gadamer descreveu a oscilação per-
pétua das sucessivas interpretações, entendendo a compreensão
como o processo formativo de projetos sempre novos e de sempre
novas “acomodações” à realidade do texto: a objetividade con-
siste na antecipação e na confirmação dos resultados. O autor
esclarece a circularidade hermenêutica com um exemplo análogo
à aprendizagem das línguas antigas e à tradução:

Em tal aprendizagem nos é dito que devemos ‘construir’ a frase,


e somente depois poderemos tratar de entender o significado de
cada um de seus elementos. Mas esse trabalho de construção já é
guiado por uma determinada expectativa de sentido, que deriva
do contexto antecedente. Naturalmente essa expectativa deve
estar aberta às correções que o texto imponha. Quando isto su-
cede, a expectativa se reestrutura de novo modo e o texto se

116 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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apresenta como unidade significativa em relação a uma expec-
tativa diferente de sentido. Desta forma, o movimento da com-
preensão vai continuamente do todo à parte e da parte ao todo.
O que se trata de fazer é alargar a unidade do sentido compreen-
dido em círculos concêntricos. (Gadamer, 1965, p. 340-341)

O método interpretativo se fundamenta na oscilação perpé-


tua das interpretações, exigindo que o antropólogo ponha em re-
lação dialética as suas próprias pré-compreensões e as formas de
vida que tenta entender. Trata-se de colocar em jogo e reformular
os modelos teóricos de partida, elementos constitutivos do hori-
zonte do qual o antropólogo interpreta a realidade e a linguagem
com que dar sentido ao mundo. A elaboração teórica é, assim,
entendida como um processo dinâmico e aberto, que produz pro-
jetos sempre novos e sempre novas “acomodações” à realidade.
A tarefa da hermenêutica consiste em entender os fenômenos
estranhos, de modo que “aquilo que é profundamente diferente
po[ssa] ser entendido – como diz Geertz – sem se tornar por isso
menos diferente” e “e o extremamente distante po[ssa] tornar-
-se extremamente próximo, sem estar menos distante”. (Geertz,
1983a, p. 48 [76]) A concepção geertziana da interpretação et-
nográfica como esforço para fazer justiça aos fenômenos estu-
dados – e, ao mesmo tempo, torná-los inteligíveis àqueles que
não tiveram experiências diretas com eles – aproxima-se ao que
Kuhn e Feyerabend chamaram de incommensurability thesis.
Geertz assume o problema de Kuhn, de Feyerabend e de Rorty:
a compreensão de algo que nos atinge como sendo estranho ou
estrangeiro e, não obstante isso, tem afinidade suficiente conos-
co para podermos compreendê-lo. Se nos confrontássemos com
algo de tal maneira estranho a ponto de não possuir nada em
comum com a nossa linguagem e a nossa experiência, não seria

Roberto Malighetti 117

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possível o confronto tout-court. Em antropologia, a situação de
dever encontrar um outro “totalmente outro” é uma condição
ideológica, herança da neutralidade científica e do mito do co-
nhecimento como representação. Em todo trabalho antropoló-
gico de campo há sempre um contexto que põe em relação o
antropólogo e seu terreno de observação. Não apenas as carac-
terísticas contingentes e específicas da relação entre intérprete e
interpretado, o contexto sócio-político mais geral, mas também
o conjunto dos conhecimentos pregressos, o saber do antropó-
logo e o de seus interlocutores.
Gadamer afirma que o círculo não tem um caráter formal,
“não é subjetivo nem objetivo”, mas caracteriza a compreensão
como uma interação do movimento da transmissão histórica e
do movimento do intérprete. A antecipação do sentido que guia
a compreensão não é um ato da subjetividade, mas determina-
-se em base à comunalidade que nos une à tradição. (Gadamer,
1965, p. 27 [439]) Essa comunalidade com a tradição não é um
pressuposto simplesmente já dado, mas está em contínuo ato de
fazer-se: somos nós que a instituímos, enquanto compreendemos
e participamos ativamente de seu subsistir e seu desenvolvimento.
Da mesma forma, o círculo da compreensão não é simplesmente
“metódico”, mas indica a estrutura ontológica da compreensão,
fundada sobre um duplo liame entre conhecimento e ontologia:
o sujeito conhece o próprio objeto a partir de seu ser e se com-
preende como sujeito por meio de sua relação com o objeto. O ato
de compreender é situado, assim, pelas perspectivas filosóficas de
Heidegger e Gadamer, na estrutura ontológica do ser no mundo,
como pré-compreensão que se movimenta no substrato da lingua-
gem, lugar da abertura do sentido do mundo e da história.
Sob esse ponto de vista, não se pode dicotomizar o mun-
do em “objetos” que existem an sich e “sujeitos” que existem

118 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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separadamente. As “coisas mesmas” podem ser entendidas le-
vando-se em conta que seu significado as transcende e aparece
por meio de nossa compreensão. E nós não nos podemos en-
tender a nós mesmos como “sujeitos” se não compreendemos o
fato de que somos sempre formados pela nossa experiência, pela
história e pela tradição: “na presumida ingenuidade da nossa
compreensão em que seguimos o critério da compreensibilida-
de” – diz Gadamer (1965, p. 284 [450]) –, “o outro se mostra
a partir do próprio, e isso de tal modo que ele não se expressa
mais, em absoluto, como próprio e como outro”. O intérprete
tem uma pré-compreensão fundamentada da coisa porque per-
tence essencialmente a uma história constituída e determinada
pela coisa mesma que lhe é dada para interpretar: como confir-
ma Geertz (1983a, p. 150 [178]), repetindo Matisse, “[a] arte e
os instrumentos para entendê-la são feitos na mesma fábrica”.
Segundo os princípios do círculo hermenêutico, sujeito e ob-
jeto não são estranhos, mas implicam-se mutuamente. Os obje-
tos perdem sua substancialidade de entes dotados de proprieda-
des, independentemente do ponto de vista de quem os conhece.
O sujeito, por sua vez, não é uma instância paradigmática, um
ser “neutro” e assexuado: um “eunuco no harém” ou, acrescen-
ta Geertz (2000, p. 39 [44]), “o estereótipo popular do técnico
de laboratório, de guarda-pó branco, tão asséptico nos afetos
quanto nos trajes”. Ao contrário, ele é reconhecido como um ser
histórico, inserido numa forma de vida e ontologicamente as-
sentado sobre sua cultura e seu saber. Supera-se aqui o conceito
da subjetividade e da objetividade, substituído pela solicitação
de um recíproco pertencimento. O sujeito interpreta no contex-
to da sua própria cultura um objeto que encontra significado
no ser apanhado por alguém. Na operação cognoscitiva – con-
siderada sob o ponto de vista metodológico –, o sujeito leva a

Roberto Malighetti 119

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si mesmo consigo e, por sua vez, deixa-se apanhar pelo objeto.
Não há contraposição objetivante nem estranheidade, mas um
vínculo de “afinidade”, de “copertencimento”, que une o intér-
prete ao que ele interpreta, numa complexidade ontológica que
Kant atribui às estruturas a priori do conhecimento e Gadamer
e Ricoeur atribuem à história e à linguagem.
Geertz apropria-se da perspectiva hermenêutica assinalando
que ser e coisa, antes de qualquer contraposição objetivante entre
sujeito e objeto, se ligam pelo evento histórico da pré-compreen-
são. A circularidade define o copertencimento, dentro do qual o
intérprete é mediado com o próprio objeto e se configura como
orientação da análise em relação ao ator e ao caráter construtivo
da interpretação. Desse modo, as interpretações do antropólogo
e do nativo se fundem e se solicitam reciprocamente, não poden-
do ser entendidas independentemente umas das outras.
Abrir-se à alteridade nem significa neutralidade objetiva nem
esquecimento de si mesmo, por força da objetividade do méto-
do, na tentativa de “cortar o galho sobre o qual estou sentado”,
conforme a expressão de Wittgenstein (1953, § 54 [§ 54]), ou
assumindo – como diz Habermas (1967) – a ilusória posição de
observador desencantado que refoge aos próprios horizontes.
Segundo Gadamer (1965, p. 374-375 [578]),

[q]uerer evitar os próprios conceitos na interpretação, não


somente é impossivel, mas é também um absurdo evidente.
Interpretar significa justamente colocar em jogo os próprios
conceitos prévios, com a finalidade de que a intenção do texto
seja realmente trazida à fala para nós.

O sujeito deve, nesse sentido, utilizar o máximo de saber


possível para abrir o mundo ao maior número de pontos de

120 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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vista, tomando as teorias e os modelos como ferramentas da ga-
veta de utensílios wittgensteiniana. Como lembra Geertz (1995,
p. 19 [23]), “[n]ão corremos risco de perder o senso da realida-
de; corremos risco de constante de ficar sem os símbolos” com
que pensar a realidade.
Interpretar significa pôr em jogo os próprios pré-conceitos
para fazer falar o conteúdo do texto: os pré-juízos constituem o
horizonte de onde interpretar a realidade, a linguagem com que
dar sentido ao mundo e o sinal da integração entre sujeito e ob-
jeto dentro de um contexto, de uma tradição ou de um saber que
os une. (Gadamer, 1965, p. 254-255 [406-407]) Somente por
intermédio de nossas pré-compreensões podemos compreender
“as coisas mesmas” e ganhar acesso ao ponto de vista do nativo
sem nos tornarmos nativos. Estar aberto às opiniões do outro
implica que essas opiniões estejam situadas no âmago dos pró-
prios sistemas de opiniões, ou melhor, que o sujeito se situe em
relação a elas. No reconhecimento das próprias posições, o ou-
tro se apresenta e adquire significado:

O que se exige [do sujeito] é simplesmente que esteja aber-


to à opinião do outro ou ao conteúdo do texto. Tal abertura
implica, porém, que a opinião do outro seja posta em relação
com a totalidade das próprias opiniões, ou que nos coloque em
relação com ela. (Gadamer, 1965, p. 253 [405])

A referência às “coisas mesmas” ou “à explicação subjeti-


va” não deve induzir a pensar que existam tais entidades con-
trapostas que se deixem contatar por “purificações” ou ideais
visualistas: “Se nos deslocamos, por exemplo, à situação de um
outro homem, então vamos compreendê-lo, isto é, tornar-nos-e-
mos conscientes de sua alteridade, e até de sua individualidade

Roberto Malighetti 121

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irredutível, precisamente por nos deslocarmos à sua situação”.
(Gadamer, 1965, p. 288 [455-456]) Não se trata de “transpo-
sição de almas”, mas de “colocar-se a si mesmo” na outra si-
tuação, dando significado à relação cognitiva com o outro. Se
quisermos falar de “transposição”, será – para usarmos a metá-
fora de Gadamer – uma “fusão de horizontes”, de que resulta
a “elevação a uma universalidade superior”:

Esse deslocar-se não é uma empatia de uma individualidade


na outra, nem submissão do outro sob os próprios padrões,
mas significa sempre uma ascensão a uma universalidade su-
perior, que rebaixa tanto a particularidade própria como a do
outro. O conceito de horizonte se torna aqui interessante, por-
que expressa essa visão superior mais ampla, que aquele que
compreende deve ter. Ganhar um horizonte quer dizer sempre
aprender a ver mais além do próximo e do muito próximo,
não para apartá-lo da vista, senão que precisamente para vê-lo
melhor, integrando-o em um todo maior e em padrões mais
coretos. (Gadamer, 1965, p. 288 [456])

A natureza social e pública do pensamento e o assentamen-


to ontológico dos antropólogos e de seus interlocutores, cada
qual em sua cultura e em seu saber, excluem a possibilidade de
“mimetizações” empáticas. Geertz descarta à pesquisa achatar
o esforço interpretativo às perspectivas dos próprios interlocu-
tores, entendidos como depositários de uma essência cultural
incontaminada e pura, reduzindo “o ponto de vista do nativo”
a uma perspectiva estandardizada e universalizante. Pelo con-
trário, sua compreensão antropológica assenta sobre a necessá-
ria diferença que deve distinguir os discursos do antropólogo e
dos informantes. Esse hiato assinala a importância e o papel do
antropólogo, subtraindo-o ao ingênuo mecanismo empirista de

122 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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delegar aos próprios informantes a elaboração de perspectivas
que ele, o antropólogo, se limitaria a recolher imediatamente, na
ingênua pretensão de que os membros de uma cultura sejam, eles
mesmos, autores das interpretações antropológicas, em termos
não somente interiores à sua cultura, como também à lingua-
gem tradutora. Em vez disso, a tarefa precípua do antropólogo
define-se por sua competência profissional: em sua enciclopédia
da ciência, ele encontrará os instrumentos para entender os fe-
nômenos que lhe são estranhos, evitando ir atrás de improváveis
representações ou fazendo prevalecer seus preconceitos sobre es-
ses fenômenos. A interpretação é um ato criativo, no sentido em
que Bakhtin (1994, p. 199) entendeu o trabalho do antropólogo:

Existe uma ideia forte, porém unilateral, portanto pouco confiá-


vel, com base na qual, para compreender da melhor forma pos-
sível uma cultura estrangeira, é necessário entrar nela, esquecer
a própria, e olhar o mundo com os olhos daquela cultura […].
Certamente a possibilidade de olhar o mundo com os próprios
olhos é uma parte indispensável do processo de compreensão;
mas se esse fosse o único aspecto, daria vida tão só a uma dupli-
cação, e não levaria a nenhum enriquecimento. A compreensão
criativa não renuncia a si mesma, a seu próprio espaço e tempo,
à própria cultura; e ela não esquece nada. Para compreender,
é de enorme importância que a pessoa que se empenha em tal
processo se coloque fora do objeto da pesquisa – temporalmen-
te, espacialmente, culturalmente. No âmbito da cultura, a “ex-
ternidade” é um potente fator cognitivo. A partir dela podem-se
levantar novas questões em torno de uma cultura estrangeira,
questões que aquela cultura não saberia colocar a si mesma; a
partir dela procuramos respostas às questões que levantamos; e
a cultura estrangeira nos responde mostrando-nos seus aspectos
que antes não conhecíamos, e novas profundidades semânticas.

Roberto Malighetti 123

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Do ponto de vista do antropólogo

Geertz adota o postulado weberiano da interpretação subjeti-


va, tomando por base os conceitos e modelos empregados por
aquele sociólogo para explicar os modos como os indivíduos
interpretam as próprias ações e as dos outros, mas sem reduzir
a compreensão às perspectivas dos atores sociais. Sua posição é
que as interpretações antropológicas são, por sua natureza, di-
ferentes das narrativas dos informantes, e que nessa heterotopia
reside a sua força. Aquilo a que visam a antropologia interpreta-
tiva e as ciências hermenêuticas é alcançar uma clareza superior
à compreensão imediata do ator:

o etnógrafo não percebe – principalmente não é capaz de per-


ceber – aquilo que seus informantes percebem. O que ele per-
cebe, e mesmo assim com bastante insegurança, é ‘com que’,
ou ‘por meio de que’, ou ‘através de que’ (ou seja lá qual for
a expressão) os outros percebem. (Geertz, 1983a, p. 58 [89])

Os dados antropológicos são articuladas e complexas “cons-


truções de construções”, “interpretações de interpretações”: “o
que chamamos de nossos dados são realmente nossa própria
construção das construções de outras pessoas, do que elas e seus
compatriotas se propõem”. (Geertz, 1973, p. 9 [7]) O problema
da ordem é complexo. Geertz (1973, p. 15 [11]) argumenta que
não só “os textos antropológicos são eles mesmos interpreta-
ções e, na verdade, de segunda e terceira mão. (Por definição, so-
mente um ‘nativo’ faz a interpretação em primeira mão: é a sua
cultura)”. Além disso, os informantes também podem produzir
“modelos indígenas” muito sofisticados, exemplificados no caso
de Ibn Khaldun para o Magrebe ou de Margaret Mead para os

124 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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Estados Unidos. (Geertz, 1973, p. 15 [11]) Existe ainda – lembra
Geertz (1995, p. 62 [56]) – a possibilidade de trabalhos antropo-
lógicos de quarta ordem ou mais, baseados em outros trabalhos
antropológicos: “[É] nos relatos que fazemos delas [as coisas] –
os de nossos informantes, nossos colegas, nossos antepassados
e os nossos próprios – que trafegamos: e elas são construções.
Narrativas sobre narrativas, perspectivas sobre perspectivas”.
A interpretação é, por sua natureza, sempre diferente em
face ao relato do interpretado. Os resultados a que o antropólo-
go chega são muito estratificados, consistindo na sistematização
e na textualização daquilo que, em palavras de Sperber (1982,
p. 26), o etnógrafo registrou, do que ele foi capaz de compreen-
der, do que os seus interlocutores quiseram e souberam dizer a
partir do que entenderam. A força e a qualidade da interpreta-
ção estão, gadamerianamente, no coenvolvimento que permite
ao analista construir o sentido:

Sempre, e não apenas ocasionalmente, é verdadeiro que o senti-


do de um texto transcende a seu autor. Portanto, compreender
não é só um ato reprodutivo, mas também um ato produtivo.
Talvez nem seja exato falar-se, quanto a esse momento produ-
tivo do compreender, em um ‘entender melhor’ […]. A com-
preensão não é nunca, na realidade, um entender melhor as
coisas com base em conceitos mais claros, nem mesmo no sen-
tido da superioridade que possui a consciência em relação ao
caráter inconsciente da produção. Basta dizer que, quando em
geral se compreende, se compreende diferentemente. (Gadamer,
1965, p. 279-80 [440-441])

O escopo precípuo da antropologia consiste em colocar em


confronto as interpretações dos nativos e as interpretações cien-
tíficas. Geertz elabora, a esse respeito, a distinção clássica entre

Roberto Malighetti 125

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categorias culturais “êmicas” e “éticas”, que na antropologia
cognitiva designam respectivamente conceitos internos à lingua-
gem ou à cultura-objeto, e os modelos teóricos do antropólo-
go. Sublinhando o caráter arbitrário e relativo desses conceitos,
devido à contingência de sua produção, Geertz (1983a, p. 222
[336]) conjuga-os à dicotomia empregada por Rorty (1980,
p. 320 [326]) quando este define a hermenêutica como “o es-
tudo do discurso anormal” – “qualquer coisa, desde uma toli-
ce sem sentido até uma revolução intelectual” (Geertz, 1983a,
p. 223 [338]) – “sob o ponto de vista de algum discurso normal”
– “qualquer discurso […] que incorpore critérios já estabeleci-
dos e aceitos para chegar a um acordo”. (Geertz, 1983a, p. 223
[336-337]) Como Rorty, Geertz reconhece que a tarefa do an-
tropólogo consiste substancialmente em “expressar coisas anô-
malas em palavras não demasiado anômalas” (Geertz, 1983a,
p. 225 [341]) ou em “falar sobre coisas irregulares em termos
regulares, sem destruir, nesse processo, a qualidade irregular
que elas possuem e que nos atraiu desde o começo”. (Geertz,
1983a, p. 224 [339]) Sobretudo, porém, a relação interpretativa
é articulada por Geertz nos termos formulados pelo psicana-
lista Heinz Kohut, o qual distingue entre conceitos da “expe-
riência-próxima” e conceitos “da experiência-distante”, que ele,
Geertz, prefere à conotação patológica implícita na dicotomia
rortyana – “uma revisão” – e a sua crítica – “dos termos de
Kuhn, que soam demasiado políticos, normal/revolucionário”
(Geertz, 1983a, p. 222-223 [336, nota 82]):

Um conceito de ‘experiência-próxima’ é, mais ou menos, aquele


que alguém – um paciente, um sujeito, em nosso caso um infor-
mante – usaria naturalmente e sem esforço para definir aquilo
que seus semelhantes veem, sentem, pensam, imaginam etc., e
que ele próprio entenderia facilmente, se outros o utilizassem

126 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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da mesma maneira. Um conceito de ‘experiência-distante’ é
aquele que especialistas de qualquer tipo – um analista, um pes-
quisador, um etnógrafo, até um padre ou um ideólogo – utili-
zam para levar a cabo seus objetivos científicos, filosóficos ou
práticos. ‘Amor’ é um conceito de experiência-próxima; ‘catexia
em um objeto’, de experiência-distante. ‘Estratificação social’ e,
talvez para a maioria dos povos do mundo, ‘religião’ (e certa-
mente ‘sistema religioso’) são de experiência-distante; ‘casta’ e
‘nirvana’ são de experiência-próxima, pelo menos para os hin-
dus e budistas. (Geertz, 1983a, p. 57 [87])

A dinâmica do círculo hermenêutico convida a não prescin-


dir do ponto de vista do ator e a não se deter nele. O estudo das
formas simbólicas pelas quais as pessoas se representam a si
mesmas e aos outros não pode ser levado adiante usando apenas
conceitos de “experiência-próxima”. Pelo contrário, deve envol-
ver conceitos de “experiência-distante”, conceitos que não são
necessariamente conhecidos pelas pessoas analisadas. Somente
situando-se “do ponto de vista do antropólogo” pode-se apa-
nhar “antropologicamente” “o ponto de vista dos nativos” e
“descobrir que diabos eles acham que estão fazendo”:

Em um certo sentido, ninguém sabe isto tão bem quanto eles


próprios; daí o desejo de nadar na corrente de suas experiên-
cias, e a ilusão posterior de que, de alguma forma, o fizemos.
Em outro sentido, no entanto, este truísmo simples é simples-
mente falso. As pessoas usam conceitos de ‘experiência-pró-
xima’ espontaneamente, naturalmente, por assim dizer, colo-
quialmente; não reconhecem, a não ser de forma passageira e
ocasional, que o que disseram envolve ‘conceitos’. Isto é exata-
mente o que ‘experiência-próxima’ significa – as ideias e as rea-
lidades que elas representam estão natural e indissoluvelmente
unidas. (Geertz, 1983a, p. 54 [89])

Roberto Malighetti 127

clifford-geertz-miolo.indd 127 21/10/2019 08:53


O antropólogo deve utilizar ambos os conceitos sem se limi-
tar ao ponto de vista do nativo e sem impor o seu próprio. Em
certo sentido, deve conseguir ir além da experiência do outro e
ficar aquém da própria, evitando os extremos do “achatamen-
to” da etnografia na imediatez dos fenômenos que estuda e sem
lhe impor os seus próprios pensamentos. O ponto crítico, aqui,
é a compreensão do papel de cada um desses conceitos e das
modalidades da sua inter-relação. Colocando em jogo os pró-
prios pré-juízos, o intérprete não reproduz o texto em seu estado
original, mas o produz confrontando-se com ele. A dificuldade
– comenta Geertz (1983a, p. 57 [88]), referindo-se aos diários
de Malinowski – consiste em evitar o extremo da mera contem-
plação fenomênica e da total projeção teórica:

Limitar-se a conceitos de experiência-próxima deixaria o etnó-


grafo afogado em miudezas e preso em um emaranhado voca-
bular. Limitar-se a conceitos de experiência-distante, por outro
lado, o deixaria perdido em abstrações e sufocado por jargões.
A verdadeira questão – a que Malinowski levantou ao demons-
trar que, no caso de ‘nativos’, não é necessário ser um deles para
conhecer um – relaciona-se com os papéis que os dois tipos
de conceitos desempenham na análise antropológica. Ou, mais
exatamente, como devem estes ser empregados, em cada caso,
para produzir uma interpretação do modus vivendi de um povo
que não fique limitada pelos horizontes mentais daquele povo
– uma etnografia sobre bruxaria escrita por uma bruxa – nem
que fique sistematicamente surda às tonalidades de sua existên-
cia, uma etnografia sobre bruxaria escrita por um geômetra.

A imersão analítica no mundo privado dos interlocutores é


científica enquanto elaborada pelo antropólogo e aceita por sua
comunidade de referência disciplinar. Isso acontece na medida

128 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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em que se consegue traduzir a linguagem privada dos nativos na
linguagem pública e especializada da antropologia, de acordo
com cânones e critérios reconhecidos como científicos. Todo en-
contro de campo acontece no contexto intelectual formado pela
tradição antropológica, que autoriza os discursos do antropólo-
go e os esforços deste em “fazer com que o texto antropológico
[…] seja lido… publicado, criticado, citado e ensinado” (Geertz,
1988, p. 130 [170]):

Por mais que os antropólogos busquem seus objetos de inves-


tigação além dos muros da academia – numa praia ladeirenta
da Polinésia, num planalto calcinado da Amazônia, em Akobo,
Meknés ou Panther Burn – eles escrevem os seus relatos tendo
a seu redor o mundo dos atris, das bibliotecas, dos quadros-
-negros e dos seminários. É esse o mundo que produz os an-
tropólogos, que os habilita a fazerem o tipo de trabalho que
fazem, e dentro do qual o tipo de trabalho que executam tem
de encontrar seu lugar, para ser considerado digno de atenção.
(Geertz, 1988, p. 129-130 [169-170])

Compreender não consiste em colocar, sem mais, “o pon-


to de vista do nativo” numa romântica pretensão de igualdade,
numa difícil orquestração polifônica ou numa linguagem pidgin
neutra e sem mediação. A força da interpretação reside na rela-
ção recíproca que permita ao analista a construção do sentido.
Desperdiçar a autoridade etnográfica entre os informantes sig-
nificaria, insiste Geertz (1973, p. 15 [11]), negar à disciplina um
específico estatuto científico:

Isso significa que as descrições das culturas berbere, judaica ou


francesa devem ser calculadas em termos das construções que
imaginamos que os berberes, os judeus ou os franceses colocam

Roberto Malighetti 129

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através da vida que levam, a fórmula que eles usam para de-
finir o que lhes acontece. O que isso não significa é que tais
descrições são elas mesmas berbere, judia ou francesa – isto é,
parte da realidade que elas descrevem ostensivamente; elas são
antropológicas – isto é, partem de um sistema em desenvolvi-
mento de análise científica. (Geertz, 1973, p. 15 [11])

O texto cultural não existe antes de sua interpretação, di-


tado por informantes perfeitamente competentes e instruídos
em seu papel “por força de especiais cognições ou habilida-
des, de autoridades e de qualidades de intelecto ou de caráter”
(Casagrande, 1960, p. 9) e depois explicado, num segundo nível,
pelos etnógrafos. O “ponto de vista do nativo” não é apenas
uma perspectiva específica, necessariamente parcial, de indiví-
duos que interpretam em termos originais a sua cultura e en-
tram no espaço liminar do diálogo com suas peculiaridades e
idiossincrasias e um limitado conhecimento relacionado com a
história pessoal, o gênero, a idade e o status. Sobretudo, suas
palavras são sempre mediadas. O que os nativos dizem não são
verdades culturais, simples explicitações de conceitos presentes
em sua mente, mas constituem, antes, respostas condicionadas
à presença e às perguntas do etnógrafo, resultados da intera-
ção entre as perguntas do antropólogo e os modelos culturais
do informante. Desde quando os nativos são construídos como
informantes, sua voz já é “redigida” pela escrita antropológica.
O objetivo geertziano é conjugar, em termos não definitivos,
“o exame detalhado de pontos de vista individuais” com “uma
exposição global da atitude que permeia estes pontos de vista”.
(Geertz, 1983a, p. 11 [21]) Em exemplos extraídos de sua ex-
periência de campo em Java, Bali e Marrocos, o autor usa os
conceitos de “pessoa” e de “experiência-distante” para tornar

130 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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inteligíveis as formas simbólicas das culturas que está estudan-
do comparativamente. Nesse sentido, coloca as representações
do conceito do próprio eu dos balineses – despessoalizadas e
fundamentadas em conjuntos impessoais de papéis nos quais a
emotividade e a individualidade são postas em ostracismo – em
tensão interpretativa com o conceito ocidental de pessoa utiliza-
do como comentário explicativo:

[…] o que o antropólogo necessita fazer para resgatar estas in-


formações é bordejar entre os dois tipos de descrições – entre
observações cada vez mais detalhadas (como, por exemplo, os
javaneses distinguem os sentimentos, ou os balineses dão nomes
às crianças, ou quem os marroquinos consideram como conhe-
cidos) e caracterizações cada vez mais sinópticas (‘quietismo’,
‘dramatismo’, ‘contextualismo’) – de tal forma que, quando es-
ses dois tipos de informação se conectam na mente, formam um
retrato vívido e verossímil de um tipo de vida humana. (Geertz,
1983a, p. 10 [20])

As observações de Geertz sobre relações entre linguagens do


senso comum elaboradas pelos atores sociais e as construções
de segundo grau desenvolvidas pelos antropólogos têm analo-
gia com os “tipos ideais” weberianos. Do mesmo modo que os
conceitos da “experiência-distante”, o conceito de tipo ideal re-
presenta um critério de comparação ao qual se deve referir o
dado. Trata-se de um conceito-limite, diferenciado pela realida-
de empiricamente dada, que funciona como esquema de referên-
cia conceitual. Diante da multiplicidade e da polissemia do dado
empírico, isola alguns elementos significativos e os coordena
numa interpretação. Weber (1922) não se detém na observação
do comportamento de cada um por meio de um simples empi-
rismo, evitando o “gravíssimo mal-entendido de que um método

Roberto Malighetti 131

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‘individualista’ signifique uma avaliação individualista”, e ao
mesmo tempo rejeitando a convicção de que o inevitável caráter
racionalista da elaboração conceitual comporta uma crença na
prevalência dos motivos racionais. Weber utiliza as construções
teóricas ideais para selecionar o material relevante por inter-
médio de um procedimento que pode ser eficazmente ilustrado
pelo seguinte trecho de Schutz (1960, p. 10-11):

Nunca, antes, o princípio da redução do “mundo do espírito


objetivo” ao comportamento dos indivíduos foi usado de for-
ma tão radical como na determinação do objeto da sociolo-
gia compreensiva de Max Weber, que ele entendeu como uma
ciência cujo tema é a interpretação do sentido subjetivo (isto
é, daquele entendido pelo ator ou pelos atores) dos modos de
comportamento social. Agora, porém, com o fim de aceder ao
momento pessoal do mundo social e ao sentido que lhe dão
os indivíduos, não basta observar o comportamento de cada
um ou estabelecer, com os métodos de um empirismo cru, me-
diante técnicas cumulativas ou constatações de regularidades
e frequências, modos uniformes de comportamentos por parte
de grupos de indivíduos. Em vez disso, a sociologia, em virtu-
de de seu objeto específico, exige um procedimento particular
adaptado à seleção do material relevante para as questões es-
pecíficas que ela se põe; um material que se pode selecionar
apenas por meio de determinadas construções teóricas, isto é,
com as formulações de tipos ideais.

Como demonstrou Silvana Borutti (1999, p. 106-114), Weber


sintetiza o elemento ideográfico e o elemento nomológico, ado-
tando um modelo de explicação que não subsume os dados a
leis, mas reconduz os eventos a tipos ideais que os tornem pen-
sáveis em sua individualidade. Os tipos ideais são construções

132 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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artificiais que representam o elemento nomológico sem serem
leis: constroem a possibilidade dos eventos e a sua configuração
racional sem reproduzir a “datidade” empírica. Superpondo o
tipo ideal ao tipo real, Weber ilumina o concreto com o abstra-
to, sem se sobrepor a ele: o saber nomológico reveste um caráter
heurístico em função da explicação da individualidade de um
fenômeno. Os tipos ideais são abstrações formais, não no senti-
do de leis que espelhem formas objetivas reproduzindo os dados
empíricos ou normas que subsumam os particulares, mas como
instrumentos artificiais e heurísticos, esquematismos que confi-
guram racionalmente as condições de pensabilidade do mundo,
selecionando os elementos relevantes e permitindo, assim, com-
preendê-lo. A teoria se torna função kantiana da objetivação,
forma esquemática e modeladora que configura e produz os da-
dos (Vorstellung). Não é representação figurativo-imaginativa
do objeto (Darstellung), simples recurso que projeta as proprie-
dades formais de uma teoria sobre um análogo, como exemplo
e suporte heurístico que reconduz uma entidade dada a uma
classe formal (theorein). A função do modelo teórico é, ao con-
trário, objetivante e poiética, exibindo configurações possíveis.
Segundo os paradigmas pós-positivistas, o modelo funciona me-
taforicamente como mecanismo de modelação que compreende
um fenômeno inexplicado por meio da redescrição metafórica,
numa linguagem conhecida. Considerando a realidade não sob
a forma objetiva do dado, e sim sob a forma da possibilidade de
existência, a linguagem antropológica funciona como possível
esquema de referência conceitual.
A dinâmica da compreensão hermenêutica manifesta-se cla-
ramente no conceito de tradução, que Clifford Geertz identi-
fica como modelo da interpretação no sentido gadameriano:
“toda tradução” – diz Gadamer (1935, p. 362 [560]) – “é uma

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interpretação: pode-se mesmo dizer que ela efetiva a interpreta-
ção dada pelo tradutor à palavra que encontrou diante di si”.
Tal como a tradução, a etnografia representa um modo de vir a
termos com a alteridade. Geertz (1983a, p. 10 [20]) introduz o
conceito a propósito da relação dialética entre conceitos de “ex-
periência-próxima” e conceitos de “experiência-distante”:

‘Tradução’, neste caso, não significa simplesmente remoldar a


forma que outras pessoas têm de se expressar em termos das
nossas formas de expressão (este é o tipo de exercício em que
as coisas se perdem), mas sim mostrar a lógica das formas de
expressão deles, com nossa fraseologia. Uma metodologia que
se aproxima mais daquilo que faz um crítico para tornar claro
um poema, do que o que faz um astrônomo quando justifica a
existência de uma estrela […].

A tradução não é pensada como transferência e confronto


mecânico de palavras ou frases em abstrato, mas de particula-
ridades que hermeneuticamente remetem ao todo e só por meio
dele são compreensíveis. Trata-se de uma transferência simbó-
lica, a passagem de uma língua à outra, de uma forma de vida
à outra, de uma cultura à outra. Nesse sentido, é uma operação
cognitiva e interpretativa. Como escreveu Benjamin (1955, p. 45
[57]), “toda tradução é apenas um modo sempre também pro-
visório de fazer as contas com a estranheza das línguas”. Toda
tradução é uma interpretação que implica irremediável diferen-
ça entre o discurso originário e sua reprodução. A capacidade de
traduzir designa uma competência específica que é diferente de
conhecer ou saber falar uma língua, e se fundamenta, como diz
Gadamer (1965, p. 362 [560-561]), na mediação e na insanável

134 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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diferença entre línguas, que não se suprime pelo simples chama-
do ao imperativo da fidelidade:

Quando a tradução é necessária, não há outro remédio a não


ser dar-se conta da distância entre o espírito da literalidade ori-
ginária do que é dito e o de sua reprodução, distância que nun-
ca chegamos a superar por completo… Quando alguém domina
de verdade uma língua, não somente já não necessita de tra-
duções, mas inclusive qualquer tradução lhe parece impossível.

O antropólogo deve usar os significados de sua cultura para


reconstruir os modos como sujeitos pertencentes a outras cultu-
ras significam a si próprios: com base em seu saber, reconstrói
um sistema simbólico alheio, partindo de tal estranheidade. Tal
como o tradutor, visa determinar os significados implícitos, la-
tentes, escondidos, sem prescindir dos significados que o sujeito
reconhece e entende, e mesmo assim sem se deter neles. Ricoeur
(1966, p. 34) lembra a esse propósito da analogia freudiana entre
o trabalho da análise e a tradução de uma língua para outra: “A
narração de um sonho é um texto inteligível cuja análise substi-
tui um texto mais inteligível. Compreender significa operar essa
substituição”. O analista penetra no mundo privado do seu sujei-
to para ler a gramática de sua linguagem privada, indo além das
palavras do paciente. Sua cientificidade depende da transposição
da linguagem privada para a linguagem pública da disciplina.
Traduzir não é o mesmo que situar-se no interior do pró-
prio saber nem estar dentro do objeto. Significa, ao invés, es-
tabelecer-se na diferença, pondo em confronto a linguagem do
tradutor e a linguagem traduzida. O etnógrafo deve dar sentido
ao que é estranho. Como o tradutor de Benjamin, ele aponta à
solução do problema da estranheidade e, como tal – acrescenta

Roberto Malighetti 135

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Crapanzano (1986, p. 52) –, deve comunicar a estranheidade
que suas interpretações devem negar: tornar familiar o estranho,
ao mesmo tempo que preservar a estranheidade. Para Geertz,
como para Gadamer, o essencial da questão consiste em encon-
trar, no próprio horizonte, nas próprias práticas linguísticas,
na própria experiência, a possibilidade de confrontar-se com o
que é estranho. Isso exige uma relação dialética entre as nossas
pré-compreensões e as formas de vida que estamos procurando
entender, ou apanhar a visão “alheia” com o “nosso” vocabulá-
rio, no sentido de reproduzir a estrutura de um discurso alheio
com a linguagem própria do tradutor. Gadamer (1965, p. 362
[562]) afirma que um dos interlocutores fala por meio do ou-
tro: somente por intermédio do tradutor os sinais do autor se
retransformam em expressões dotadas de sentido:

Por mais que o tradutor tenha conseguido entrar na vida e nos


sentimentos do autor, a tradução de um texto não é uma sim-
ples ressurreição do processo original do escrever, mas uma
reconstituição do texto guiada pela compreensão do que se diz
nele. Não há dúvida de que se trata de uma interpretação e não
de uma simples co-realização. Projeta-se sobre o texto uma ou-
tra e nova luz, procedente da nova língua e destinada ao leitor
da mesma. A exigência de fidelidade que se coloca numa tra-
dução não pode neutralizar a diferença fundamental entre as
línguas. Por mais fiéis que queiramos ser, encontrar-nos-emos
colocados diante de decisões errôneas. Se quisermos destacar,
na nossa tradução, um traço importante do original, somente
podemos fazê-lo deixando em segundo plano outros aspectos
ou inclusive reprimindo-os de todo. Mas este é precisamente o
comportamento que chamamos de interpretação. Como toda
interpretação, a tradução implica uma reiluminação. Quem
traduz tem de assumir a responsabilidade dessa reiluminação.

136 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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Fúlvio Papi, mencionando algumas “suspeitas” em torno de
palavras que a antropologia utilizou para produzir os próprios
textos, ilustra a necessidade de superar a imagem descritiva e não
problemática do ato de tradução antropológica. Observando
que todo esquema interpretativo ilumina e obscurece ao mes-
mo tempo, ele reconhece a problematicidade de traduzir, em
palavras “que pertencem a uma situação pragmática do tipo es-
crever-ler um livro”, termos qualitativamente diferentes, “que
pertencem a outras situações pragmáticas: agir, ritualizar, edu-
car, comandar, evocar”. (Papi, 1988, p. 456) Levar em conta
a valência “construtivista” da tradução tem o mérito, segundo
Papi (1988, p. 459), de recolocar em discussão o critério de ob-
jetividade no seu lugar correto, que é a relação de linguagem:

Uma tese antropológica afirma que o texto antropológico é


uma fiction que deriva do encontro entre os esquemas interpre-
tativos do antropólogo e os elementos fundamentais da cultura
que deve ser conhecida. O que se imagina é que entre o saber
do antropólogo e o objeto de seu saber se estabeleça uma es-
pécie de relação interpretativa em que os conteúdos de uma
cultura sejam construídos segundo os recursos expressivos da
linguagem da outra cultura, e esta, por seu lado, se obrigue a
acionar todos os próprios recursos disponíveis, portanto recur-
sos de tradução e de tecnicidade, em sua ação de compreender-
-interpretar a outra cultura.

Seguindo essa perspectiva, Geertz (1983a, p. 8 [17]) procu-


rou “colocar as representações balinesas sobre a posição das
coisas no mundo numa situação de tensão representativa, lado
a lado com as nossas próprias representações, como uma estra-
tégia para comentar estas últimas”. A interpretação do sentido
do “eu” marroquino, balinês ou javanês foi obtida a partir da

Roberto Malighetti 137

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impossibilidade de medi-la com o “eu” ocidental, e não à base de
um conceito genérico de “eu” que absorvesse as diferentes espé-
cies exóticas ou particulares no âmbito da espécie. De modo aná-
logo, o autor comparou diferentes tradições jurídicas – anglo-a-
mericana, islâmica, indo-europeia e malaio-indonésia – segundo
uma ótica pluralista, que formula os pressupostos característicos
de um tipo de sensibilidade jurídica com os termos de outra, sem
elaborar um esperanto jurídico no qual toda diferença ou origi-
nalidade fosse reprimida ou expressa de forma genérica e vaga.
No ato de tradução implícito em todo ato interpretativo
cross-cultural, o etnógrafo se enxerga como mediador – segundo
a etimologia de ambos os termos – entre um conjunto distinto
de categorias e conceitos culturais que interagem. Do mesmo
modo que a interpretação, a tradução nasce no recíproco envol-
vimento entre dois universos de discurso e é caracterizada por
uma forma de incomensurabilidade (Feyerabend, 1975; Kuhn,
1962; Quine, 1960) e entropia, na qual – afirma Geertz (1983a,
p. 9 [18]) – “embora […] muito se perca, muito também é des-
coberto, mesmo que ambíguo e inquietante”. A incomensura-
bilidade assinala a assimetria da relação ontológica que funda-
menta a produção do conhecimento antropológico, sem impedir
a compreensão ou a comparação de conceitos. Antes, estimula
o etnógrafo a procurar novas formas de comparação e novas
dimensões hermenêuticas, a fim de chegar a compreensões cir-
cunstanciadas. Como ilustrou Silvana Borutti (1999, p. 41), o in-
traduzível constitui, por via do conhecimento, o limite kantiano
que configura o espaço da relação cognitiva com o outro. Sem
esse limite, que Borutti (1999, p. 13) define como “o intraduzível
ontológico”, sem o “fundo” wittgensteiniano (Hintergrund) que
nos confirma em nossa cultura, nós não teríamos pontos de vis-
ta sobre a experiência da alteridade. Radicando o antropólogo

138 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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à própria cultura, o limite dá a ver que a experiência do outro se
realiza somente a partir de nós mesmos, ao mesmo tempo que
exibe a reflexibilidade como característica intrínseca do discur-
so antropológico e sua textualização.

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Capítulo IV

Autoridade, Autorização, Autor

A ironia etnográfica

Laboratório e rito de passagem, pelo caráter iniciático que dis-


tingue a carreira e a identidade do antropólogo, a prática et-
nográfica assinalou o processo evolutivo do pensamento geert-
ziano, acompanhando-lhe a vida acadêmica desde os primeiros
estudos “malinowskianos” em Java, sob a orientação de Talcott
Parsons, até as experiências “simbólicas” no Marrocos e na
Indonésia, amadurecidas depois no ambiente efervescente de
Chicago e Princeton.
Geertz afirma explicitamente que o trabalho etnográfico não
pode prescindir da pesquisa de campo. Em diferentes ocasiões,
ele insistiu que a etnografia constitui a atividade original e a ex-
pressão cultural da antropologia, sua seiva vital, motor das ino-
vações e lugar em que se formularam as contribuições que mais
têm preenchido sua razão de ser. Numa época em que se confun-
dem os espaços limítrofes entre as disciplinas, Geertz reivindica

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para a pesquisa de campo – “a coisa que nos torna diferentes e
justifica nossa existência” (Geertz, 2000, p. 112 [90]) – a origi-
nalidade da antropologia em relação às outras ciências sociais.
Cada antropólogo estabelece uma relação privilegiada com
o próprio “campo”, a exemplo de Malinowski com os trobrian-
deses, Franz Boas com os kwakiutl, Evans-Pritchard com os
núeres e os azandes, Firth com os tikopias, e Geertz, sobretudo
com os balineses. A relação de um etnólogo com um grupo é
a base do trabalho etnográfico.
A dinâmica da circularidade hermenêutica põe em relevo a
função central e ineliminável que assume a autoridade etnográfi-
ca, a qual não se circunscreve à autoridade específica que o pes-
quisador deve construir profissionalmente em campo, a fim de
fazer-se autorizado em seu papel e em seus discursos, e ser reco-
nhecido pela competência de fazer perguntas qualificadas e per-
tinentes. Além dela, Geertz enfatiza, de forma inovadora, a auto-
ridade de escrever textos autorizados pela comunidade científica.
Reconhecendo, porém, a permanência do que Asad desig-
nou “pré-condições estruturais da antropologia” (Asad, 1973,
p. 17), isto é, as relações assimétricas de poder entre dominantes
e dominados, Geertz deixa evidente que nos tempos correntes
a autoridade do antropólogo está mudada, não se legitiman-
do mais por ele ser proveniente de uma potência colonial ou
neocolonial: “pode haver novas assimetrias, decorrentes de tudo
– desde a disparidade econômica ao balanço internacional da
força militar, mas as velhas assimetrias, arbitrárias, fixas e rigi-
damente unilaterais, foram-se”. (Geertz, 1995, p. 132 [109]) As
mudanças do “mundo estudado pela maioria dos antropólogos”
(o fim do colonialismo e as modificações do imperialismo, a
globalização, as migrações e o turismo intercontinental) e do
“mundo a partir do qual a maioria deles escreve – o mundo

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acadêmico” (as modificações no estatuto científico do saber e,
logo, das concepções de cultura e das relações interculturais),
puseram em crise as presunções fundamentais sobre que a es-
critura antropológica se apoiava. (Geertz, 1988, p. 131 [173])
Sobretudo, encolheu aquilo que Geertz chama a separação
“espacial” e “moral” entre o pesquisador e seus interlocutores
(Geertz, 1988, p. 131 [173]): os antropólogos não trabalham
mais em contextos isolados, em que “eram mentores intelectuais
de tudo o que eles pesquisavam” (Geertz, 1995, p. 132 [110])
e detinham o monopólio da escrita:

A entrada de povos antes colonizados ou proscritos […] no


palco da economia global, da política de cúpula internacional
e da cultura mundial tornou cada vez mais difícil sustentar a
afirmação do antropólogo de que ele é uma tribuna para os
não-ouvidos, um representante dos não-vistos, um conhecedor
dos mal-interpretados. (Geertz, 1988, p. 138 [174])

Geertz observa que as pesquisas se realizam cada vez mais


sob “o olhar crítico” de estudiosos e especialistas de variadas dis-
ciplinas, inclusive de colegas antropólogos, cujo número ele re-
conhece crescer constantemente. Em Java, ele teve oportunidade
de verificar que os nativos questionavam “o próprio direito de
escrever – de escrever etnografia”. (Geertz, 1988, p. 133 [174])
Isso obriga o antropólogo a negociar uma identidade própria
em campo, a qual supere abordagens paternalistas e delírios de
onipotência, entendidas como “um desejo ardente de nos tor-
narmos pessoalmente valiosos para os informantes” e que só
serve para “manter o autorrespeito” e afastar, por uma solida-
riedade contingente e fugaz, os problemas determinados por seu
papel: “o antropólogo acredita […] na comunhão intercultural

Roberto Malighetti 143

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(chama[ndo] a isso ‘empatia’) […]. Não admira que tantos an-
tropólogos deixem o campo vendo lágrimas nos olhos dos infor-
mantes, a quais, tenho absoluta certeza, não estão de fato lá”.
(Geertz, 2000, p. 33 [40])
No ensaio “O pensamento como ato moral: dimensões éticas
do trabalho antropológico” (Geertz, 2000, p. 21-41 [30-47]),
Geertz discute, em termos “irônicos”, a “assimetria radical” que
há entre o antropólogo e seus interlocutores, e a qual não se
pode simplesmente resolver mediante românticas pretensões de
validade política, de competência divulgativa, ou por ineficazes
colusões com os diferentes protagonistas, internos e externos à
comunidade objeto de estudo. Os fins colimados pelo antropó-
logo são, por sua natureza, diferentes dos fins que os “nativos”
têm em vista: “O que estou assinalando […] é uma enorme pres-
são tanto sobre o pesquisador quanto sobre seus pesquisados
para encararem essas metas como próximas, quando, na ver-
dade, são distantes; como certas, quando meramente desejadas;
e como alcançadas, quando, no máximo, houve uma aproxima-
ção delas”. (Geertz, 2000, p. 38 [40])
A abordagem negocial não pode prescindir do fato de que é
inevitavelmente conduzida “do ponto de vista do antropólogo”,
e só sob esse aspecto pode produzir suas eventuais práticas éti-
cas ou políticas:

Todas as conhecidas racionalizações que têm a ver com ciên-


cia, progresso, filantropia, esclarecimento e pura dedicação
altruísta soam falsas, e ficamos eticamente desarmados para
lidar com um relacionamento humano que tem de ser repetida-
mente justificado de maneira mais imediata. Moralmente, vol-
tamos ao nível do escambo: a moeda do pesquisador é inego-
ciável, todos os seus créditos se dissolveram. A única coisa que

144 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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realmente temos a oferecer para evitar a mendicância (ou – não
desprezando a abordagem da troca de bugigangas – o suborno)
somos nós mesmos. (Geertz, 2000, p. 38 [39-40])

Partindo da irresolvível diferença entre o antropólogo e o


nativo, Geertz convida a negociar em campo, de modo contin-
gente, a própria autoridade etnográfica, radicada no pertenci-
mento a uma comunidade linguística (Ricoeur, 1977), histórica
(Gadamer, 1965) e científica, filtro de toda experiência de pes-
quisa. A autorreferencialidade, embutida na noção hermenêuti-
ca de circularidade e de historicidade da compreensão, sublinha
que o acesso ao outro é sempre mediado pela própria ontologia,
pela capacidade de conjugar “o [próprio] alcance de sensibilida-
de” com “a [própria] capacidade de análise” e com “[o próprio]
código social”. (Geertz, 1988, p. 78-79 [106])
Geertz reconhece que “a característica mais marcante do tra-
balho de campo antropológico como forma de conduta é que ele
não permite qualquer separação significativa das esferas ocupa-
cionais e extraocupacionais da vida”. (Geertz, 2000, p. 39 [45])
Comentando “a estranheza de construir textos ostensivamente
científicos a partir de experiências em grande parte biográficas”
(Geertz, 1988, p. 10 [22]), ele insiste, porém, na específica com-
petência profissional e ética, na necessidade de ser “toda vez e
ao mesmo tempo um ator envolvido e um observador destaca-
do”, num jogo sutil de interferência entre componentes pessoais
e autobiográficos, e componentes disciplinares da pesquisa:

[N]o trabalho de campo em antropologia, o distanciamento


não é um dom natural nem um talento fabricado; é antes uma
conquista parcial laboriosamente alcançada e precariamente
mantida. O pouco desprendimento que se consegue atingir

Roberto Malighetti 145

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não vem da inexistência de emoções, de seu desconhecimento
nos outros, tampouco do ensimesmamento num vácuo moral.
Provém de uma submissão pessoal a uma ética vocacional.
(Geertz, 2000, p. 39 [44])

A ideia de que o conhecimento passa através da dialética


entre antecipação de sentido e compreensão e se fundamenta
no exame explícito dos próprios pré-juízos teóricos e das pré-
-compreensões, induz a representar a realidade social dos ou-
tros mediante a análise da própria experiência no mundo deles,
e a considerar a prática etnográfica, enquanto prática social,
como parte integrante da análise e do trabalho de textualização.
A circularidade hermenêutica exige um controle que possibilite
ao sujeito transpor a subjetividade e a objetividade: embora os
relatos do nativo “sejam inevitavelmente vistos […] através de
uma lente obscurecida pelo autor, esse obscurecimento pode ser
minimizado pelo autoexame autoral, à procura de ‘parcialismos’
ou da ‘subjetividade’”. (Geertz, 1988, p. 145 [189]) O controle
deve levar não a um improvável aniquilamento da própria com-
petência, mas a uma vigilância hermenêutica sobre os próprios
pré-juízos. O etnógrafo põe-se a si próprio como objeto de aná-
lise, e essa auto-observação se coloca lado a lado com a observa-
ção do objeto, numa experiência que Kilani (1994, p. 70), citan-
do Lévi-Strauss, aproxima à autopsicanálise do psicanalista. (cf.
Kleinman, 1980; Stein, 1985)
O círculo hermenêutico constitui um importante mecanismo
que força o antropólogo a examinar e resolver os problemas
– metodológicos, teóricos e éticos – que surgem no quadro da
interação e do diálogo contínuo com seus interlocutores e com
suas próprias textualizações. Esse diálogo se assenta na expli-
citação das próprias pré-compreensões, assim como dos erros,

146 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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deformações e deficiências que, antes de representar incidentes
enfadonhos, configuram as modalidades heurísticas da pesquisa
e o fundamento da reflexividade. A qualidade do trabalho et-
nográfico impõe superar o sentido de inadequação provocado
pela inevitável intrusão do antropólogo na vida de seus interlo-
cutores. Ela o força a exercitar-se numa inevitável previsão e a
inaugurar complexos e frustrantes rituais de procura de interlo-
cutores, muitas vezes reticentes em assumir a responsabilidade
enunciativa, ou incapazes de responder a perguntas inadequa-
das, das quais alguns pesquisadores tratam de fazer-se perdoar,
aqui e ali, mediante “parcimoniosas” retribuições econômicas.
A negociação em campo é condicionada não só pela orien-
tação teórica ou pelo papel institucional do pesquisador, mas
também por sua história pessoal, sua personalidade, seu gênero,
seu envolvimento emocional, político e ideológico, e pelas di-
versas circunstâncias enfrentadas. Tais fatores, por sua vez, são
determinados pela especificidade do grupo em sua relação com
o ambiente geral circunstante e pelas características dos interlo-
cutores. Geertz dá muita importância à experiência que os infor-
mantes têm do antropólogo, ou seja, à observação do observador
(Clifford & Marcus, 1986); os antropólogos foram “os primei-
ros a insistir em que vemos a vida dos outros através das lentes
feitas por nós próprios, e que os outros nos veem através das
deles”. (Geertz, 2000, p. 83 [66]) A competência do antropólogo
consiste em superar as dificuldades de criar um contexto que, a
ele e a seus interlocutores, facilite acionar as próprias habilidades
específicas para engajar-se no trabalho dialógico e negocial:

Reconhecer a tensão moral e a ambiguidade ética implícitas


no encontro antropólogo/informante, e ainda assim ser capaz
de dissipá-la através das próprias ações e atitudes, é o que o

Roberto Malighetti 147

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encontro exige de ambas as partes, para ser autêntico e efe-
tivamente ocorrer. E descobrir isso é descobrir também algo
muito complicado e não inteiramente claro sobre a natureza da
sinceridade e da insinceridade, da autenticidade e da hipocrisia,
da honestidade e da autoilusão. O trabalho de campo é uma
experiência educativa completa. O difícil é decidir o que foi
aprendido. (Geertz, 2000, p. 38 [43])

A condição do trabalho de campo é fundamentalmente re-


lacional e só superficialmente observativa, conduzida “from the
door of one’s tent”. Em sua valência polissêmica – pois indica
tanto um espaço geográfico como o lugar onde se desenvolve
a atividade do antropólogo, e o objeto da pesquisa – a noção de
campo denota não uma realidade existente à parte das relações
entre antropólogo e nativo, um continente genérico, asséptico e
neutro, mas, antes, o lugar simbólico da construção de sentido,
aquilo que determina as características específicas de uma expe-
riência compartilhada. (Gupta & Ferguson, 1997)
A marginalidade ou estranheza do etnógrafo, em vez de ser
considerada uma perspectiva passiva e segura, situada na fron-
teira entre culturas, assume as características de um espaço limi-
nar em que se processa a formação do conhecimento antropo-
lógico. O que os informantes dizem no diálogo etnográfico não
é dito do ponto central de seu mundo, mas do espaço liminar
desse encontro: os “fatos etnográficos” não podem ser mais que
acordos temporários sobre o significado entre o antropólogo e
os seus interlocutores, numa relação transitória que inevitavel-
mente produz uma compreensão parcial, contingente e dinâmica.

Desde o declínio, na maioria dos países, da crença em um úni-


co e soberano método científico, e da noção associada de que
a verdade deve ser obtida por meio da objetivação radical dos

148 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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procedimentos de investigação, tornou-se cada vez mais difícil
separar o que chega à ciência, por parte do investigador, do que
a ela atinge, por parte do investigado. Na antropologia, em todo
caso, e no meu caso, de qualquer forma, considerar que ambos
os pontos de vista não têm nada a ver com a ciência, a indivisível
experiência de tentar me encaixar em toda sorte de lugares e de
esses próprios lugares se imporem sobre mim, parece ter produ-
zido o que quer que tenha surgido sob minha assinatura profis-
sional. Na verdade, isso produziu a assinatura em si. (Geertz,
1995, p. 135 [112])

Os relatos etnográficos que descrevem determinado espa-


ço social são constituídos de expressões que extraem seu sen-
tido específico daquele mesmo espaço. (Watson, 1991, p. 79)
No campo, o antropólogo e o informante participam de uma
working fiction na qual condividem um mundo de significados
que poderia desfazer-se a qualquer momento e levar os interlo-
cutores a se pensarem como habitantes de realidades separadas
e reciprocamente excludentes. (Geertz, 1968, p. 151-54) Nesse
sentido, a situação do campo perde aquela conotação cientificis-
ta de laboratório de “produção da verdade” (Pulman, 1986) e
se torna inevitavelmente “irônica” (Crick, 1992; Fischer, 1986),
consistindo a ironia, segundo Geertz, “numa percepção de como
a realidade zomba das visões meramente humanas do real, re-
duzindo atitudes grandiosas e grandes esperanças ao ridículo”.
(Geertz, 2000, p. 44 [37]) A “ironia antropológica” reflete e mo-
dela a convicção de que todas as conceituações são limitadas,
que a construção do fato etnográfico é algo dinâmico, parcial e
contingente e, portanto, o que é socialmente reconhecido como
verdade é intrinsecamente contextual, instável e contraditório.
Tal ironia, ainda segundo Geertz, é diferente da ironia dramá-
tica, porque apresenta duas faces: “o ator vê o público com a

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mesma transparência com que este vê o ator”; é diferente tam-
bém da ironia histórica, porque “não tem uma causa”: “não que
o produto das ações do indivíduo, por uma lógica interna dos
acontecimentos, resultem no inverso do que elas pretendiam
[…], mas as expectativas sociais do sujeito e suas previsões […],
são constantemente contrariadas independentemente de seu
comportamento, pelo que fizeram de fato”; e não é literária,
porque “as partes não apenas não estão unidas, mas estão em
universos morais diferentes”; difere, finalmente, da ironia socrá-
tica, porque “o que se parodia não é a pretensão intelectual, mas
a mera comunicação do pensamento – e não pela dissimulação
intelectual, mas por um esforço extremamente sério, quase seve-
ro, de entendimento”. (Geertz, 2000, p. 30 [37])

O problema da assinatura

Alicerçadas em pesquisas etnográficas, as reflexões epistemológi-


cas e metodológicas de Geertz inauguraram profundas mudanças
nas condições da representação cultural. Destacando a natureza
negocial e comunicativa da situação etnográfica, a inter-relação
entre as construções interpretativas do antropólogo e as de seus
interlocutores problematizou as condições da experiência etno-
gráfica e de sua restituição textual. Considerando a prática et-
nográfica no sentido etimológico do termo, Geertz inaugurou
as perspectivas contemporâneas sobre a escrita como parte in-
tegrante do trabalho de compreensão e “formatação” dos obje-
tos antropológicos. (Clifford, 1988; Clifford & Marcus, 1986;
Marcus & Cushman, 1982) Ele entende a etnografia não apenas
como a experiência de campo, conduzida em longos períodos de
permanência em contato direto com o objeto de estudo, ou como

150 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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o método de pesquisa que combina elementos pessoais e códigos
disciplinares, mas também como a textualização de tais práxis.
Lamentando o escasso interesse que a disciplina demonstrou
por essa última atividade – “cento e quinze anos de prosa asseve-
rativa e inocência literária (se datarmos nossa profissão a partir
de Tylor, como se convenciona fazer) são mais que suficientes”
(Geertz, 1988, p. 24 [39]) – Geertz concentra a atenção sobre os
aspectos, que denomina “literários”, da escrita, conjugando-os
com os problemas epistemológicos que nela se contêm, deixados
de lado pelas abordagens positivas que encaram a transcrição
textual como processo transparente e não mediado:

Os antropólogos estão imbuídos da ideia de que as questões


metodológicas centrais envolvidas na descrição etnográfica têm
a ver com a mecânica do conhecimento […]. Em consonância
com isso, atribuíram suas dificuldades para construir tais des-
crições à problemática do trabalho de campo, e não à proble-
mática do discurso. Se for possível administrar a relação entre o
observador e o observado (rapport), a relação entre o autor e o
texto (assinatura) se seguirá por si só – ao que se supõe. (Geertz,
1988, p. 9-10 [21])

Contrapondo-se à ideia de que o interesse pelos modos de


construção dos textos constitui “um ensimesmamento doentio,
conducente à perda de tempo, na melhor das hipóteses, ou hipo-
condríaco, na pior delas” (Geertz, 1988, p. 1 [12]), ele observa
que a própria credibilidade da disciplina é mediada pela escrita:
“Se houvesse um entendimento melhor do caráter literário da
antropologia, alguns mitos profissionais sobre como ela conse-
gue ser persuasiva tornar-se-iam insustentáveis”. (Geertz, 1988,
p. 3 [13]) A respeito disso, Geertz recupera o comentário de
Bernard DeVoto a propósito do trabalho de Margareth Mead:

Roberto Malighetti 151

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“Quanto mais os antropólogos escrevem sobre os Estados
Unidos […] menos acreditamos no que dizem sobre Samoa”.
(Geertz, 1983a, p. 9-10 [19])
Assim, Geertz coloca a “transcrição da ação” e a “fixação
do significado” no centro da reflexão antropológica. Uma de
suas principais contribuições consiste em ter problematizado
essa operação, não apenas tecnicamente complexa, mas também
delicada “em termos morais, políticos e até epistemológicos,”
de “introduzir a vida ‘deles’ [dos outros] em ‘nossos’ livros”.
(Geertz, 1988, p. 130 [171])
Empregando um conceito de Ricoeur (1965), Geertz toma o
trabalho do etnógrafo como sinônimo da atividade de inscrever
os diversos conteúdos dos discursos orais nas notas tomadas em
campo e no texto final: “O etnógrafo ‘inscreve’ o discurso so-
cial, ele o anota. Ao fazê-lo, ele o transforma de acontecimento
passado, que existe apenas em seu próprio momento de ocor-
rência, em um relato, que existe em sua inscrição e que pode ser
consultado novamente”. (Geertz, 1973, p. 19 [14]) A etnografia
é uma versão da realidade social que se torna essencialmente
uma representação textual: por meio da escrita, o antropólogo
decodifica uma cultura, codificando-a para outra: “Assim, há
três características da descrição etnográfica: ela é interpretativa;
o que ela interpreta é o fluxo do discurso social; e a interpreta-
ção envolvida consiste em tentar salvar o ‘dito’ num tal discurso
da sua possibilidade de extinguir-se e fixá-lo em formas pesqui-
sáveis”. (Geertz, 1973, p. 59 [15])
A escrita deixa evidente que a construção interpretativa do
objeto é artificial, produzida mediante a integração dos dife-
rentes níveis e temporalidades que fundamentam o processo de
construção do saber, e começa com o dizer em campo, como uma
construção conjunta que provém do encontro entre os esquemas

152 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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da pré-compreensão do etnógrafo e os modelos dos nativos. A
escrita registra o “dizer” e o transforma em “dito”, terminando
com “escrever” o “dito” e adaptá-lo à comunidade científica do
saber, como ato final dessas negociações das diferenças. É um
lugar de tensão entre o “texto etnográfico” e “a enciclopédia
antropológica”, e de comprometimento entre o objetivo de con-
servar a diferença e, ao mesmo tempo, torná-la compreensível.
A etnografia configura-se como um longo processo de com-
preensão, que começa muito antes de se chegar ao campo e conti-
nua depois que dele se partiu. Tal processo pode ser simbolizado
pela diferença temporal que separa os apontamentos e diários
da textualização final: “A distância entre o interagir com outros
onde eles estão e representá-los onde não estão, sempre imensa,
mas não muito notada, de repente tornou-se extremamente visí-
vel”. (Geertz, 1988, p. 130 [171]) Essa diferença entre o tempo
da experiência e o tempo do relatório final foi sintetizada por
Geertz (1988) como o hiato entre “o estar lá” (para pesquisar e
escrever em campo) e “o estar aqui” (para publicar o relatório
definitivo do trabalho). Fabian define como “esquizogênica” a
discrepância entre o uso do tempo na escrita etnográfica e o da
pesquisa, relacionando-a à diferença entre o horizonte intersub-
jetivo do trabalho de campo e a “remoção” dessa diferença por
meio do processo de textualização. (Fabian, 1983 [2013])
Na realidade, essa dupla temporalidade, colocando-se
numa relação conflitante com a escrita, é inefável por natureza.
Resistindo à simples fixação, une inexoravelmente a etnografia
ao modo como é produzida, tornando-a intrinsecamente con-
tingente, parcial e incompleta. O tempo da escrita, como o da
pesquisa, não é único e imediato, mas se constitui por um pro-
cesso dinâmico e pervasivo, que evidencia as especificidades da
aprendizagem do conhecimento antropológico. O texto final é

Roberto Malighetti 153

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concluído sempre em longos anos de distância das últimas fases
do trabalho a que se refere, lapso de tempo que vê mudar o
mundo e o contexto da pesquisa, os atores sociais, o antropólo-
go e os eventuais fruidores. (Malighetti, 2007a)
As temporalidades etnográficas – múltiplas e complexamen-
te inter-relacionadas – articulam-se pela escrita que atravessa a
pesquisa em todas as fases, desde o assentamento dos confusos
registros em campo até sua transformação em um texto coerente
e legível. A escrita espelha o procedimento e os diferentes níveis
de dialogicidade do trabalho etnográfico: entre o antropólogo e
os nativos, e entre os próprios nativos; entre as diferentes fon-
tes de informação, orais e escritas; entre o antropólogo, os seus
próprios modelos teóricos e a comunidade científica; entre o
antropólogo e o seu próprio ser ao longo do tempo, e entre seus
vários aspectos – biológicos, pessoais, disciplinares. Em síntese,
é uma articulação que se dá na temporalidade da escrita, na
transcrição da realidade do dizer, e na relação com os leitores.
Essa articulação de diferentes temporalidades separa inexo-
ravelmente o informante de seu presente histórico, e o pesqui-
sador de situações de interlocução que o ligaram a seus infor-
mantes em campo. Ela retira os dados do próprio tempo para
reportá-los ao da escrita e da fruição por parte da comunidade
científica a quem o trabalho se endereça, exibindo o poder da
escrita em elaborar um sistema textual contra o tempo e a ora-
lidade ou, como diz Geertz, “um lugar e […] uma época […] em
perpétuo perecimento”. (Geertz, 1988, p. 146 [190]) O saber
antropológico realiza-se nessa distância, transformando a expe-
riência vivida em um conhecimento geral e abstrato, transpor-
tável para um público longínquo. É uma dinâmica que reforça
o caráter fictício da etnografia e mostra como a construção in-
terpretativa do objeto antropológico é artificial, produzida pela

154 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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integração dos diferentes níveis e das diferentes temporalidades
que fundamentam o processo de construção do saber.
Desta forma, a etnografia pode ser pensada como uma “me-
tanarração” ou “uma narração de segunda ordem” (Atkinson,
1992, p. 13), que possui determinado grau de independência
em relação ao trabalho de campo sobre que se baseia. (Marcus,
1980; van Maanen, 1988) Isso não significa autonomizar o tex-
to etnográfico e abstraí-lo do processo de construção e da in-
tertextualidade – teórica, estética, institucional, ideológica – na
qual ele se inscreve: nesse ponto, Geertz declara-se enfaticamen-
te não incluído “entre os que acreditam em textos ‘ontológicos’
inteiramente autônomos”. (Geertz, 1988, p. vi [8]) Ao contrário,
ele propõe pensar sobre as etnografias como documentos que
levantam perguntas e se colocam na fronteira de dois mundos
ou sistemas de significado: o mundo do etnógrafo e seus interlo-
cutores científicos e o mundo dos membros da cultura.
A reflexão geertziana considera os diversos procedimentos
esquemáticos de textualização como elementos indispensáveis
para organizar a experiência de campo do antropólogo e trans-
formá-la num produto intelectual. Por esses procedimentos, os
discursos e enunciados específicos ligados à contingência da in-
terlocução são traduzidos em textos, proposições autônomas e
separadas (notas de campo, rascunhos intermediários, escritos
finais etc.), e a experiência se faz narrativa, os exemplos tornam-
-se casos significantes. Mais que isso, os esquemas de textuali-
zação induzem a superar as concepções do trabalho etnográfico
como simples passagem do oral ao escrito e a encarar a etnogra-
fia como um movimento de contínua reelaboração do escrito, de
transcrição de documento a documento, produzindo um texto
compósito que reúne várias formas de fontes escritas, dos diários

Roberto Malighetti 155

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às notas tomadas em campo, da transcrição das palavras dos
interlocutores às outras etnografias e a outros tipos de textos.
De um lado, os materiais e “dados” sobre os quais trabalha
o antropólogo são inevitavelmente produtos textuais. Os apon-
tamentos de campo são textos construídos para produzir um
relato diário da vida social que se observa e de que se participa.
Tais textos, necessariamente parciais, constituem uma primeira
forma de compreensão e uma das principais fontes de dados na
análise subsequente. (Davis, 1999; Sanjek, 1990) São escritos
liminares (Jackson, 1990), em contínua transformação, meio
caminho entre o trabalho de campo e o trabalho de gabinete.
Apresentam materiais já interpretados, que depois serão lidos e
reinterpretados diversas vezes, no processo da escrita final. De
outro lado, os relatos etnográficos são substancialmente inter-
textuais, mediados por outros relatos e outros textos: diários
dos interlocutores, cartas do e para o campo, autobiografias,
narrações individuais, a literatura científica.
Todo encontro de campo acontece num contexto intelectual
já formado pela tradição antropológica e mediado por outros
pré-textos (Kilani, 1994), outros relatos de outras formas de
vida: o campo configura-se um lugar saturado de documentos
e escritas, que não existe fora das relações entre antropólogo e
nativo, e das práticas textuais e de leitura, mas constitui um ter-
reno comum de negociações sempre pré-orientadas pelo projeto
de escrita. (Atkinson, 1992)
A escrita é colocada no centro da análise, elemento indis-
pensável para sistematizar a experiência de campo do antro-
pólogo, organizar os eventos e os textos, e construir o sentido
num relato final. Ela se torna objeto de uma reflexão que indaga
como a transformação da vida cultural em uma série de capítu-
los mais ou menos uniformes é alcançada mediante a imposição

156 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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de procedimentos de esquematização, convenções “literárias” e
estratégias retóricas que dão forma à experiência de pesquisa e a
legitimam. (Atkinson, 1992; van Maanen, 1988) Sua finalidade
é dar a quem escreve a autoridade para persuadir que está pe-
netrado verdadeiramente de outra forma de vida, por haver de
fato estado “lá” e trazido algo de sensato “para casa”:

A tarefa deles ainda é demonstrar, ou mais precisamente, rede-


monstrar, em épocas diferentes e com meios diferentes, que os
relatos sobre como vivem os outros – apresentados não como
histórias sobre coisas que não aconteceram de fato, nem como
relatórios sobre fenômenos mensuráveis, produzidos por for-
ças calculáveis, podem transmitir convicção. (Geertz, 1988,
p. 141-42 [185])

Retornando à interpretação aristotélica de Ricoeur, Geertz


sublinha a natureza perspectiva e artificial dos relatos culturais.
A escrita não é uma simples mímesis em sentido platônico, mas
denota a capacidade poiética de construir, de “fazer” a realidade.
Conforme afirma Ricoeur (1983), a escrita coloca em trama os
eventos, ordenando as ações e construindo o sentido. Isso des-
monta a ideia de formas transparentes de autoridade e concen-
tra a atenção sobre a natureza histórica da etnografia, sobre a
invenção mais que sobre a representação das culturas. (Wagner,
1980) Não há datum não problemático existente à parte de sua
inscrição nas formas convencionais de escrita, captáveis por
meio da construção de notas detalhadas que espelhem a rea-
lidade. Os dados antropológicos são articulados e complexos:
aquilo que pode ser visto e transcrito é ligado ao que pode ser
lido e reunido num texto etnográfico. A própria construção dos
registros não se estrutura tanto sobre o que é memorizável, mas

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sobre o que o autor pode construir em uma narração coerente.
(Davis, 1999; Sanjek, 1990)
Nesse sentido, o etnógrafo não pode renunciar à própria au-
toridade, a qual lhe autoriza os discursos, selecionando-os, e ma-
nifesta-se inexoravelmente na escrita, emprestando legitimidade à
sua função de autor, “torna[ndo] seu relato fidedigno, tornando
fidedigna a sua própria pessoa […]. Para ser uma ‘testemunha
ocular’, um ‘eu-testemunho’ convincente, ao que parece, primeiro
é preciso tornar-se um ‘eu’ convincente”. (Geertz, 1988, p. 78-79
[106]) Para Geertz, o “legado malinowskiano de maior vulto”
não diz respeito “à técnica de campo nem à teoria social, e nem
tampouco a esse objeto santificado que é a ‘realidade social’, mas
ao ‘problema do discurso’ em antropologia – como ser autor de
uma exposição autorizada”. (Geertz, 1988, p. 85 [111])
Reportando-se ao texto de Michel Foucault (1979), “O que
é um autor”, Geertz toma em questão a importância daquilo
que Foucault chama a função-autor. Contestando sua expulsão
das ciências a partir do século XVII e sua transferência para a
literatura – “na Idade Média a maioria das narrativas ficcionais
[…] não tinha autor, enquanto a maioria dos tratados cientí-
ficos […] o tinha” (Geertz, 1988, p. 7 [19]) –, ele se opõe a
uma dicotomização que reproduza o dualismo diltheyano entre
ciências da natureza e ciências do espírito. O fato de que em
antropologia se dão nomes de pessoas a livros e artigos, a siste-
mas do pensamento (o “funcionalismo radcliffe-browniano”, o
“estruturalismo straussiano”), mas não a descobertas, proprie-
dades ou proposições (“um casamento murdockiano”) não faz
da antropologia um romance, assim como escrever fórmulas
não a transforma em física. (Geertz, 1988, p. 8 [19-20]) Indica,
apenas, algumas semelhanças de família que a disciplina tende a
esconder em favor de outras tidas por mais respeitáveis – “como

158 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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a mula norte-africana que fala sempre do irmão da mãe, o ca-
valo, mas nunca do pai, o [jumento]”. (Geertz, 1988, p. 8 [20])
Geertz conjuga a tal propósito a distinção feita por Foucault
entre autores como produtores de textos e fundadores de discur-
sividade (que autorizam mais de um livro, isto é, “uma teoria,
uma tradição ou uma disciplina”, dando a possibilidade e as re-
gras para a formação de outros textos) com a distinção de Roland
Barthes (1982, p. 187-189 [205-215]) entre “autor” (que “absorve
radicalmente o porquê do mundo num como escrever”), em ter-
mos intransitivos, e “escritor” (que usa a linguagem em termos
transitivos, como simples instrumento, sem constituir uma prá-
xis). Geertz funde as duas funções, como reconhece que também
Barthes o faz quando observa que a figura literária da nossa épo-
ca é o “autor-escritor”: também o antropólogo é um “intelectual
profissional” que deve “transmitir fatos e ideias” por meio de
“uma estrutura verbal fascinante”. (Geertz, 1988, p. 20 [32 e 34])
A autoridade do autor determina a qualidade dos discursos,
selecionando sua pertinência antropológica, sua traduzibilidade
na linguagem especializada da disciplina e nas práticas relacio-
nadas da escrita, definidas por meio de códigos específicos, gê-
neros “academizados”, temporal e politicamente estabelecidos,
cada vez mais distantes de histórias de aventuras ou de viagens,
biografias, jornalismo ou especulações culturais:

[…] os milionários excêntricos basicamente desapareceram da


etnografia desde a década de 1920; e os especialistas, os con-
sultores e os autores de livros de viagens nunca chegaram pro-
priamente a ingressar nela (alguns missionários conseguiram,
mas vestidos de professores, em geral alemães). A existência
desse ou daquele tipo de cátedra por trás de todo antropólogo,

Roberto Malighetti 159

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do Collège de France a All Souls, do University College a
Morningside Heights, parece hoje fazer parte da ordem natural
das coisas. (Geertz, 1988, p. 130 [170])

Produzir uma etnografia exige decisões sobre o que dizer e


como dizê-lo, as quais são influenciadas pela comunidade cien-
tífica, a quem se dirige. (Atkinson, 1992; Okely & Callaway,
1992; van Maanen, 1988) A aparente simetria em nível de diá-
logo é sempre subsumida por uma complexa assimetria: em ní-
vel de escrita, a relação é inevitavelmente hierárquica. O escopo
precípuo da etnografia é falar de algo para alguém: embora o
trabalho de campo seja uma interlocução entre primeiras e se-
gundas pessoas, os antropólogos devem escrever para terceiras
pessoas. (Fernández, 1985)
A etnografia se funda sobre uma hierarquia discursiva e so-
bre o controle epistemológico e escritural do outro. Por isso está
sempre desequilibrada. (Asad, 1973; Bourdieu, 1974; Clifford,
1988; Tyler, 1987; van Maanen, 1988) Independentemente do
fato de que os informantes apenas falem ou escrevam, é o et-
nógrafo que produz o texto etnográfico. Só ele tem o poder,
ainda que contingente, de textualizar os diversos conteúdos dos
discursos por meio das notas de campo ou do texto final. Por
mais que procure substituir o monólogo pelo diálogo, o discurso
continua assimétrico, como se demonstra pela escolha da orga-
nização dialógica ou polifônica do texto, ou pelo uso das vá-
rias convenções textuais. Nesse sentido, o “discurso da ciência
social, antropológico ou de qualquer outro tipo” é concebido
como “um discurso politicamente carregado, invadido da cabe-
ça aos pés por implícitas pretensões de domínio e de controle”
(Geertz, 1995, p. 154 [108]):

160 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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A capacidade da linguagem de construir, se não a realidade
‘como tal’ (o que quer que isso seja), ao menos a realidade
como todo mundo a emprega na prática presente – cadastrada,
fotografada, catalogada e medida – faz da questão sobre quem
descreve quem, e em que termos, um assunto que está longe de
ser neutro. Se não há acesso ao mundo que não seja mediado
pela linguagem (ou, pelo menos, por sistemas de signos), pouco
importa que tipo de linguagem é essa. Descrição é poder. A
representação do outro não é facilmente separável da manipu-
lação do outro. (Geertz, 1995, p. 130 [108])

Geertz propõe uma prática escritural complexa, aberta


quanto ao estilo narrativo e baseada em concepções do eu e do
outro, da cultura e de seus intérpretes, como entidades menos
seguras, revelando o status artificial e contingente de qualquer
descrição. O que Geertz chamou a “questão da assinatura”,
isto é, “o estabelecimento de uma presença autoral num texto”
(Geertz, 1988, p. 9 [20]) conjuga-se com a produção de um tex-
to polifônico, sustentado hermeneuticamente por negociações
entre os modelos teóricos e escriturais do antropólogo e de seus
interlocutores. Isso exige que o autor se coloque em seu escrito
mediante a especificação do discurso, o uso da primeira pessoa
e a inserção de memórias pessoais e autorreflexivas:

[…] não se pode fugir ao ônus da autoria, por mais pesado que
ele se tenha tornado; não há possibilidade de transferi-lo para
o ‘método’, a ‘linguagem’ ou (manobra especialmente popu-
lar no momento) ‘as próprias pessoas’, redescritas (‘apropria-
das’ seria um termo melhor) como co-autoras. (Geertz, 1988,
p. 140 [182])

Roberto Malighetti 161

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Paradigmático, pela construção da autoridade do autor e
pelo uso de memórias biográficas e reflexivas, foi o relato do
episódio de irrupção da polícia, em Java, no ano de 1958, quan-
do Geertz e sua mulher estavam assistindo a uma briga de galos,
após dez dias de trabalho de campo. O caso ilustra as dificulda-
des iniciais para ganharem credenciais em seu papel e superarem
a desconfiança e as suspeitas que os nativos haviam demonstra-
do em relação a eles:

Nós éramos invasores, profissionais é verdade, mas os aldeões


nos trataram como parece que só os balineses tratam as pes-
soas que não fazem parte de sua vida e que, no entanto, os as-
sediam: como se nós não estivéssemos lá. Para eles, e até certo
ponto para nós mesmos, éramos não-pessoas, espectros, cria-
turas invisíveis […]. Enquanto caminhávamos sem destino, in-
certos, ansiosos, dispostos a agradar, as pessoas pareciam olhar
através de nós, focalizando o olhar a alguma distância, sobre
uma pedra ou uma árvore, mais reais do que nós […]. Quando
nos arriscávamos a abordar alguém (e numa atmosfera como
essa a pessoa sente-se terrivelmente inibida para isso), essa pes-
soa se afastava […]. A indiferença, sem dúvida, era estudada;
os aldeões vigiavam cada movimento que fazíamos e dispu-
nham de uma quantidade enorme de informações bastante cor-
retas sobre quem éramos e o que pretendíamos fazer. (Geertz,
1973, p. 412-13 [185])

Geertz serve-se da narração do raid policial, da subsequen-


te fuga dele e da mulher junto com os membros da aldeia, da
apaixonada defesa que um aldeão – “nosso hospedeiro de cinco
minutos” – faz deles perante o agente da “lei”, para construir um
texto autoral e persuasivo. O fato de não se terem apresentado à
autoridade simplesmente puxando os documentos e mostrando

162 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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sua “condição de visitantes distintos” não apenas lhes possibili-
tou obterem “aquela necessidade do trabalho de campo antro-
pológico – o acordo, a harmonia –”, mas também os qualificou
a superar uma identidade genérica e serem reconhecidos como
pesquisadores, como se deduz das palavras de seu “anfitrião” em
sua justificativa perante o policial, argumentando que “tínhamos
perfeitamente direito de estar lá […]. Éramos professores norte-
-americanos, o governo nos havia dado permissão, estávamos ali
para estudar a cultura, íamos escrever um livro para contar aos
norte-americanos sobre Bali”. (Geertz, 1973, p. 415 [187]) Para
Geertz, o episódio ilustra como foi possível fazer “uma aceitação
súbita e total, não-habitual, numa sociedade extremamente aves-
sa à penetração de estrangeiros”. (Geertz, 1973, p. 415 [188])
Instaurara-se, a partir daquele momento, o tipo de relações que
lhes permitiria desenvolver o trabalho etnográfico, e cuja resti-
tuição textual se abre justamente com o relato do episódio.
Embora nem todos os pesquisadores tenham podido se be-
neficiar da mesma sorte que a dos Geertz quando ganharam sua
identidade de pesquisadores – a qual, de todo modo, se explicava
pelo projeto bastante conhecido na área, desenvolvido median-
te a colaboração entre o Massachusetts Institute of Technology
(MIT) e a Universidade Gadjah Mada (Geertz, 1988, 2000)
– qualquer antropólogo pode contar histórias análogas para
sublinhar a importância de construir a própria autoridade em
campo, a sua natureza mutável e a impossibilidade de não ter
uma. Parte da dificuldade de seu trabalho está exatamente em
fazer-se acreditar e controlar a própria identidade, evitando re-
ceber passivamente uma identidade atribuída por outros, a qual,
de ordinário, autoriza discursos e práticas dificilmente coerentes
com as finalidades pelas quais se está em campo.

Roberto Malighetti 163

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O antropólogo como autor

A perspectiva hermenêutica geertziana exclui o modelo textual


clássico, monológico e monofônico. Na etnografia clássica, o
autor se esconde por meio de formas discursivas impessoais e
narrativas descritivas, e se representa como o único porta-voz
institucionalizado dos “nativos”, sujeito absoluto, ausente e fora
de campo, intérprete verdadeiro da cultura que “observa, regis-
tra, analisa”, numa “espécie de concepção de veni, vidi, vinci do
assunto”. (Geertz, 1973, p. 20 [14]) Esse “realismo etnográfico”,
que Geertz descreve com as palavras de seus discípulos Marcus e
Cushman, tem em mira produzir objetividade mediante o registro
de dados puros, independentes de perspectivas teóricas e incon-
taminados de referências às relações concretas em campo e à si-
tuação geral, histórico-política, em que a pesquisa se desenvolve.
Como exemplo de tal modelo, Geertz discute o trabalho de Leiris
com sua informante Emawayish (Leiris, 1934), “uma descrição
de como são as coisas ‘do ponto de vista (de uma poeta) etíope’
como sendo, em si mesma, a descrição (de uma poeta) etíope de
como são as coisas”. (Geertz, 1988, p. 145 [189]) Tal aborda-
gem está evidente no estilo do chamado “presente etnográfico”
oficialmente inaugurado por Malinowski em sua obra de 1922.
Nela prepondera formalmente a suspensão da consciência histó-
rica, para que se reconstrua a imagem estática de uma sociedade
“tradicional” ou “primitiva” e dela se apanhe a essência sob um
ponto de vista transcendental, alheio ao devir e às modalidades
de coleta de informações. (Malighetti, 2000) Geertz debate criti-
camente a “clareza enceguecedora” de Evans-Pritchard, e seu esti-
lo em “slides”, “seguro, direto e arquitetônico”, atento a “tornar
clara a sociedade tribal, visível mesmo, como uma árvore frondo-
sa ou um estábulo”. (Geertz, 1988, p. 20 [36])

164 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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A escrita geertziana pretende superar aquilo que caracteriza
o estilo “olímpico” do físico “não-autor”. Opõe-se também às
experimentações da escrita etnográfica contemporâneas, basea-
das na “dispersão do autor”, na “forma soberana do roman-
cista hiperautor” e nas “confissões” e práticas autobiográficas.
(Geertz, 1988, p. 84 [103]) Sob o ponto de vista hermenêutico,
tais experimentações não conseguem traduzir plenamente o sen-
tido da circularidade e dialogicidade do trabalho etnográfico.
Ainda que abertas ao estilo narrativo e não obstante tratarem de
revelar o eu e o outro, a cultura e seus intérpretes, entidades me-
nos seguras, revelando o status artificioso e contingente de toda
descrição etnográfica, tendem a reproduzir formas de realismo
e objetivismo etnográfico de que não conseguem emancipar-se.
Tratando de dar voz diretamente ao outro, eliminam a lingua-
gem antropológica e restauram uma autenticidade, uma com-
pleteza e uma pureza representativas cada vez mais improváveis.
Por um lado, Geertz (1988, p. 145 [189]) rejeita o que chama
o “positivismo do texto”, que esconde o autor por trás de um re-
lato que se compraz em aparecer como a representação neutra e
não mediada de estados de coisas, num mundo no qual “o papel
do etnógrafo se dissolverá no de um corretor honesto, que passa
adiante a essência, cobrando apenas o mais trivial dos custos da
transação”. (Geertz, 1988, p. 145 [189]) Opõe-se também à “dis-
persed autorship” (Clifford, 1988, p. 145 [189]) e à convicção de
que o discurso etnográfico possa fazer-se heteroglótico (Bakhtin,
1994) e o nativo “possa falar dentro dele, junto com o antropó-
logo, de um modo direto, igual e independente – uma presença
do Lá num texto do Aqui”. (Geertz, 1988, p. 145 [189])
Em particular, Geertz critica o hipercitacionismo do traba-
lho de Dweyer (1982), refém de um realismo renovado: extensas
citações e narrações bastante separadas dos relatos objetivos a

Roberto Malighetti 165

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que se acompanham (em prólogos. ou em prefácios), sem conse-
guir relacionar as dimensões da subjetividade e da objetividade,
da experiência pessoal e da autoridade científica que as con-
sideram imprescindíveis. Restringindo a própria monografia à
transcrição de diálogos, Dweyer “encurta” retoricamente o an-
tropólogo, limitando-lhe o papel ao de entrevistador e redator
de notas de rodapé. Os discursos dos informantes são expostos
como se se pudesse prescindir do trabalho de textualização.
Segundo Geertz, a autoridade de Dweyer “não flutua por
seu texto, nem o devora. Pede desculpas por estar presente”.
O resultado é um instável “tecido feito de carreirismo, engo-
do, manipulação e de microimperialismo” (Geertz, 1988, p. 95
[126]), o qual combina “uma abordagem radicalmente factua-
lista do relato de seus ‘diálogos’ – as palavras, todas as palavras,
nada mais que as palavras – com uma abordagem radicalmente
introvertida do papel que ele exerce nelas”. (Geertz, 1988, p. 96
[127]) Na escrita etnográfica de Dweyer, o pesquisador não é
mais que um sujeito ideal, essencialmente passivo. Seus textos
se concentram exclusivamente no dizer, no agir e no pensar do
objeto, dando a palavra aos nativos em um diálogo monológico
invertido que ocupa a totalidade do campo. (Affergan, 1987;
Tyler, 1987) Eliminando o antropólogo do discurso, ou limitan-
do-lhe o papel ao de um entrevistador, negam a dinamicidade do
encontro e terminam por produzir uma imagem estática do pró-
prio objeto pesquisado. Ao fim da coleta dos dados, o pesquisa-
dor desaparece atrás de uma narração descritiva, justificada por
uma ideologia da prática etnográfica que se compraz em ser um
simples registro das palavras reais do interlocutor.
Por outro lado, embora reconheça que o processo de cons-
trução do conhecimento antropológico se desenvolve em chave
reflexiva, Geertz não intenciona sufocar a etnografia em práticas

166 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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“confessionais”, que lhe parecem destinadas “a ruminações e
autoinspeções, e também a uma curiosa interiorização daquilo
que em efeito é uma atividade intensamente pública”. (Geertz,
1988, p. 145) Mesmo afirmando que “todas as descrições et-
nográficas são de fabricação caseira, são as descrições de quem
escreve e não as daqueles ou daquilo que é descrito” (Geertz,
1988, p. 144-145 [188]), ele rejeita aquela espécie de “ventrílo-
quo etnográfico” que assume “a pretensão de falar não apenas
sobre uma forma de vida, mas de falar de dentro dela”. (Geertz,
1988, p. 145 [188]) Em geral, esses enfoques não conseguem fu-
gir ao tipo de confissão que engole o informante, porque, neles,
é “a tomada da experiência do etnógrafo, e não de seu objeto
de estudo, […] o objeto primário da atenção analítica”. (Geertz,
1988, p. 145 [189]) Possuídos pela aspiração à total autentici-
dade e transparência, colocam no centro da atividade etnográ-
fica a sensibilidade do antropólogo, e não as suas competências
analíticas ou o seu código profissional e disciplinar. No processo
dialético de negociação dos significados em campo, omitem as
modificações dos modelos conceituais do antropólogo e negam,
ao fim, estatuto científico à disciplina.
Diferentes estilos de escrita confessionais reproduzem aquilo
que Roland Barthes chama “doença do diário” (Barthes, 1979),
“patologia endêmica” sobretudo na parte “mais aguda e origi-
nal” da escrita etnográfica. Geertz discute os modos de cons-
trução do texto “‘do diário para a obra’ e das angústias literá-
rias que o assolam” (Geertz, 1988, p. 90 [120]), analisando, em
particular, os trabalhos de Rabinow (1977) e de Crapanzano
(1980), casos, para ele, representativos “do que vem aconte-
cendo com os herdeiros do ideal malinowskiano de etnogra-
fia por imersão”. (Geertz, 1988, p. 92 [122]) As desconfianças
de Geertz quanto aos produtos etnográficos desses autores,

Roberto Malighetti 167

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absorvidos pelo objetivo da “compreensão de si mesmo passan-
do pela compreensão do outro”, expressam-se pela crítica aos
estilos “sumamente ‘saturados de autor’” no qual “o eu criado
pelo texto e o eu que cria o texto são representados como prati-
camente idênticos”. (Geertz, 1988, p. 103 [129])
O discurso de Rabinow estabelece uma irredutível diferença
entre o eu e o outro, mas sem indicar o processo por meio do qual
os significados são produzidos. Sua etnografia é organizada, se-
gundo Geertz, numa sequência de encontros com os informantes,
a qual configura uma “desalentadora” forma clássica de éduca-
tion sentimentale. A autoridade do antropólogo é construída ao
modo de um “homem incompleto, vago para consigo mesmo e
para com os outros”, semelhante a Frédéric Moreau, o prota-
gonista que Gustave Flaubert pensa, autobiograficamente, como

o parceiro, o camarada, o colega – o copain, […] que perambu-


la de um lado para outro, dançando conforme a música, com
toda sorte de homens […], um personagem bastante solícito,
tão embasbacado quanto qualquer outra coisa, que vai sen-
do arrastado num fluxo de sociabilidade predominantemente
acidental, em geral superficial e, não raro, transitória. (Geertz,
1988, p. 93 [123-124])

Crapanzano produz uma análise da vida marroquina de


um ponto de vista neutro e distante. Em sua abordagem – que
Geertz define como “hiperinterpretativa, de estilo psicanalíti-
co” (Geertz, 1988, p. 92 [122-123]) – o informante e o autor
são postos para fora da experiência quotidiana. Em seu caso, à
diferença de Rabinow, a autoridade do antropólogo é construí-
da de modo muito incisivo sobre uma extensa enciclopédia do
saber de um refinado “homme de lettres”. (Geertz, 1988, p. 94

168 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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[124]) Como uma espécie de “etnógrafo-terapeuta preocupado
demais consigo mesmo” – diz Geertz –, Crapanzano articula uma
história “bastante aleatória”, feita de “quimeras e fragmentos”,
aos “mais estonteantes píncaros da moderna cultura europeia:
Lacan e Freud, Nietzsche e Kierkegaard, d’Annunzio e Simmel,
Sartre e Blanchot, Heidegger e Hegel; Genet, Gadamer, Schutz,
Dostoievski, Jung, Frye, Nerval”. (Geertz, 1988, p. 94 [124-125])
Mas os seus textos não registram a influência e as modificações
recíprocas acontecidas entre antropólogo e informante, e não ofe-
recem uma análise objetiva da vida marroquina, negligenciando
o contexto no qual os significados são produzidos, como também
a mediação do intérprete nas relações do antropólogo com o “la-
drilheiro marroquino analfabeto” Tuhami. (Geertz, 1988, [124])
Em sua complexidade, o modelo geertziano da circularidade
hermenêutica solicita que se ponham às claras as negociações
entre os modelos conceituais do antropólogo e do nativo. E vis-
to que o fundamento e sinal distintivo da disciplina é o trabalho
de campo, essa atividade não deve escapar à análise, e nem a sua
relação com o processo da escrita:

O problema […] é representar o processo de pesquisa no produ-


to da pesquisa; escrever etnografia de modo a colocar numa re-
lação inteligível as interpretações que alguém faz de uma socie-
dade, cultura, modo de vida ou lá o que seja, e os contatos que
esse alguém mantém com alguns de seus membros, portadores,
representantes ou seja lá quem for. (Geertz, 1988, p. 84 [112])

Com base nos princípios do círculo hermenêutico, a restitui-


ção textual de uma experiência de campo não pode descuidar de
reproduzir o processo de aprendizagem da consciência antropo-
lógica, segundo uma ótica reflexiva e negocial. Diferentemente

Roberto Malighetti 169

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das etnografias que apresentam como intuitivo e evidente um
ponto de vista que na realidade demandou muito tempo para
ser elaborado de forma sintética e clara, o método geertziano
exige que transpareçam as circunstâncias complexas e imbrica-
das no quotidiano que determinam a pesquisa, e que ressalte a
cooperação, a manipulação recíproca e os ajustes entre as cate-
gorias de pensamento dos interlocutores: “[A]ceitar o fato de
que os fatos são produzidos […] conduz […] a um mergulho em
um tipo de investigação trabalhosa, sinuosa e incansavelmente
autoconsciente sobre como se chega a dizer aquilo que é dito”.
(Geertz, 1995, p. 62 [57]) O resultado é contingente, subtraído
ao domínio da verdade:

As assimetrias morais através das quais trabalha a etnografia,


bem como a complexidade discursiva em que ela funciona, tor-
nam indefensável qualquer tentativa de retratá-la como mais do
que a representação de um tipo de vida nas categorias de ou-
tro. Talvez isso seja o bastante. Pessoalmente, penso que é. Mas
anuncia o fim de certas pretensões. (Geertz, 1988, p. 144 [188])

Não obstante, porém, tais premissas teóricas terem assinala-


do a “virada interpretativa” realizada por Geertz nas condições
da representação cultural, e em que pese haverem influenciado
de modo relevante o debate contemporâneo nas ciências sociais,
também a escrita etnográfica geertziana permanece no dualismo
entre sujeito e objeto, não conseguindo fazer emergir a inter-
-relação entre o antropólogo e seus interlocutores em campo,
nem indicar o processo por meio do qual os significados são
produzidos. Construindo textos que são construções de cons-
truções de outras pessoas, as suas interpretações são aplicadas a
materiais passivos, terminando por gerar o que Dweyer (1982)

170 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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define como “modelo contemplativo”, fundado sobre relações
unívocas entre um observador, detentor do método, e objetos
independentes. Por diferentes perspectivas (Crapanzano, 1986;
Dweyer, 1982; Rabinow, 1986; Tedlock, 1983), ficou patente
que a etnografia de Geertz põe em relevo os significados, mas
não os sujeitos: nela, o antropólogo não é visto como um ator
social que faz parte da cena, e só no momento da escrita ele
exerce um papel ativo. Seus interlocutores, por sua vez, estão
simplesmente ausentes ou, quando muito, são objetivados de
forma genérica: “os balineses”, “os javaneses”. Reificados e ins-
titucionalizados nas estratégias retóricas, assumem o papel de
meros transmissores neutros de uma essência cultural indiferen-
ciada e atemporal. As construções do Outro, bem como suas
explicações, são consideradas independentes e espontâneas,
elaboradas em isolamento e não em resposta às solicitações do
antropólogo. A interdependência entre o antropólogo e o nativo
é substituída pela interdependência entre o antropólogo e o seu
texto: este último é tornado autônomo e independente, abstraí-
do pelo processo de construção e pela intertextualidade (teórica,
estética, institucional, ideológica) em que se inscreve. Conforme
comenta Kilani (1990), se na antropologia tradicional o método
é fetichizado pela técnica da observação participante, na etno-
grafia geertziana é fetichizado pela escrita.

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Capítulo V

O Papel do Antropólogo

O conceito semiótico de cultura

As reflexões de Geertz sobre o estatuto científico do saber abri-


ram novos espaços e novas estratégias de pesquisa, impondo
a modificação de uma série de topoi fundadores do discurso
antropológico: cultura, comunidade, identidade, etnia, raça,
tribo, nação. A novidade da perspectiva construtivista consiste
principalmente em haver eliminado a valência objetiva desses
conceitos, considerando-os pertencentes – para usar a expressão
de Wittgenstein – à “rede” mais que à realidade, configurando-
-os não como espaços externos a quem os utiliza, objetos das
práticas e dos discursos, mas como instrumentos empregados
por diferentes atores com diferentes finalidades e interesses.
(Malighetti, 2007a)
A antropologia geertziana concebe a cultura como uma fic-
ção simbólica por meio da qual se pode atribuir ao grupo uma
definição do eu coletivo, colhida em sua constante reinvenção,

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ao sabor das circunstâncias e dos objetivos. Deslocalizada e des-
territorializada, a cultura aparece como uma forma de repre-
sentação em contínua mudança, no âmbito das relações que um
grupo estabelece com outros e com o seu contexto, baseada no
concurso e na cooperação de diversos agentes, na dialética en-
tre processos de categorização internos e externos ao grupo, em
meio aos quais as raízes da tradição se cortam e se replantam,
com o fim de produzir uma autoidentificação ajustada ao con-
texto. Em vez de engendrar um objeto que se mostra ao obser-
vador como uma essência imutável ou um repertório estável e
facilmente reconhecível de objetos, sentimentos ou ideias, o con-
ceito de cultura compreende o produto caleidoscópico, artificial,
dinâmico e aberto, de representações contingentes, precárias e
parciais, e de estratégias ativamente articuladas por diferentes in-
divíduos e grupos em níveis variados: construções do passado ou
invenções da tradição. (Featherstone, 1990; Hosbawn & Ranger,
1983; Lash & Friedman, 1992; Marcus, 1992; Wagner, 1980)
Analisando a síntese realizada por Kluckhohn em 1949 –
“uma compilação definitiva e autorizada das várias definições
de ‘cultura’ surgidas na literatura desde Arnold e Tylor” (Geertz,
2000, p. 12 [22]) –, Geertz elabora uma abordagem que procura
transpor o “pantanal conceitual” e a “difusão teórica” (Geertz,
1973, p. 4 [4]), criados pela predominância das teorias deriva-
das da concepção tyloriana:

Em cerca de vinte e sete páginas do seu capítulo sobre o concei-


to, Kluckhohn conseguiu definir a cultura como: (1) ‘o modo
de vida global de um povo’; (2) ‘o legado social que o indiví-
duo adquire do seu grupo’; (3) ‘uma forma de pensar, sentir
e acreditar’; (4) ‘uma abstração do comportamento’; (5) ‘uma
teoria, elaborada pelo antropólogo, sobre a forma pela qual

174 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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um grupo de pessoas se comporta realmente’; (6) ‘um celeiro
de aprendizagem em comum’; (7) ‘um conjunto de orientações
padronizadas para os problemas recorrentes’; (8) ‘comporta-
mento aprendido’; (9) ‘um mecanismo para a regulamentação
normativa do comportamento’; (10) ‘um conjunto de técnicas
para se ajustar tanto ao ambiente externo como em relação
aos outros homens’; (11) ‘um precipitado da história’, e vol-
tando-se, talvez em desespero, para as comparações, como um
mapa, como uma peneira e como uma matriz. (Geertz, 1973,
p. 4-5 [4])

Por essas perspectivas ecléticas, a cultura é identificada, em


temos discretos e compactos, com o “comportamento aprendi-
do” e feita coincidir com praticamente tudo o que de não bioló-
gico ou ambiental pertença à vida humana: entidade superorgâ-
nica ou estrutura psicológica ínsita “no coração e na mente dos
homens”. Essas formulações “vagas e imprecisas” não teriam
com que oferecer instrumentos heurísticos aproveitáveis para
a elaboração teórica e para o trabalho de campo, como o pró-
prio Geertz teve ocasião de apurar da própria experiência: “o
que quer fosse a Indonésia, Java, ou Modjokuto ou mais tarde
o Marrocos […] não se tratava de ‘totalidade[s] de padrões de
comportamento … alojada[s] em [um] grupo’, para citar uma
das definições lapidares do livro de Kroeber e Kluckhohn”.
(Geertz, 2000, p. 15 [25]) Geertz procede a enunciar seu concei-
to semiótico de cultura, articulando as concepções weberiana e
parsonsiana – esta, “convenientemente emendada” em sentido
antipositivista – com o fim de compreender as particularidades
dos processos reais:

Enquanto Talcott Parsons, desenvolvendo posteriormente a


dupla rejeição (e a dupla aceitação) de Weber em relação ao

Roberto Malighetti 175

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idealismo alemão e ao materialismo marxista, não forneceu
uma alternativa válida, o conceito dominante de cultura na
ciência social americana identificava a cultura com o compor-
tamento aprendido. Esse conceito não se pode dizer ‘errado’
(os conceitos isolados não são nem ‘errados’ nem ‘certos’) e,
para muitos fins, sobretudo de rotina, era e continua útil. Mas
agora é claro praticamente a todos aqueles cujos objetivos ul-
trapassam um interesse meramente descritivo que é muito di-
fícil produzir análises de grande alento teórico a partir de uma
noção tão vaga e empírica. Já se foi o tempo em que se explica-
vam os fenômenos sociais redescrevendo-os como modelos de
cultura e afirmando que tais modelos se transmitem de geração
a geração. (GEERTZ, 1973, p. 249)

A concepção geertziana da cultura como “tráfico […] de


símbolos significativos” (Geertz, 1973, p. 362 [150]) é menos
vasta e pervasiva que a de Parsons e mais concretamente liga-
da às coisas do mundo (“objeto ao menos um tanto definido
de uma ciência pelo menos um pouco definida”), definindo-se
como um modelo teórico com uma “noção delimitada, com
aplicação precisa, sentido específico claro e uso específico”.
(Geertz, 2000, p. 19 [23]) No capítulo “Por uma teoria interpre-
tativa da cultura”, de sua obra de 1973, ele apresenta a própria
definição, semiótica: “O conceito de cultura que eu defendo […]
é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que
o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele
mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua
análise”. (Geertz, 1973, p. 5])
A definição de Geertz compreende as estruturas de formas
simbólicas e de significados, transmitidas historicamente por
meio das quais os homens “comunicam, perpetuam e desenvol-
vem seu conhecimento e as suas atividades em relação à vida”.

176 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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(Geertz, 1973, p. 89 [66]) A cultura é mais bem compreendida
“não como complexos padrões concretos de comportamento –
costumes, usos, tradições, feixes de hábitos – […] mas como um
conjunto de mecanismos de controle – planos, receitas, regras,
instruções […] – para governar o comportamento”. (Geertz,
1973, p. 44 [32]) O estudo da cultura é o estudo da totalidade
desses significados – “sistemas organizados de símbolos signifi-
cativos” –, que são a dotação simbólica que o homem tem à dis-
posição para orientar-se no mundo. Comparando o trabalho do
antropólogo com a do crítico literário, Geertz elabora a analogia
textual: a cultura é vista como “conjunto de textos, eles mesmos
conjuntos, que o antropólogo tenta ler por sobre os ombros da-
queles a quem eles pertencem”. (Geertz, 1973, p. 452 [212])
O tom e a terminologia geertzianos refletem influências
que ultrapassam as ciências sociais e incluem críticos literários
como Burke, Frye, Percy, e filósofos como Langer, Ricoeur, Ryle
e Wittgenstein. Fundindo a análise cultural e social na semiótica,
Geertz reassenta o estudo da cultura sem rebaixá-lo a opostas
reificações: reducionismos de molde dialético que a identificam
com o “padrão bruto de acontecimentos comportamentais que
de fato observamos em uma ou outra comunidade identificá-
vel”; ou idealismos que a imaginam como “uma realidade ‘supe-
rorgânica’, autocontida com forças e propósitos em si mesma”.
(Geertz, 1973, p. 12 [8])
Uma vez divididas a estrutura social e a cultura, a antropolo-
gia sempre se esforçou por tornar a uni-las, procurando resolver
os consequentes problemas de prioridade causal. Geertz critica
a posição dicotômica, hegemônica na antropologia norte-ameri-
cana, dominada pela abordagem estrutural-funcionalista:

Roberto Malighetti 177

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Uma das razões principais pela qual a teoria funcionalista é
inadequada a enfrentar a mudança está em sua incapacidade
de tratar os processos sociológicos e culturais em termos de
paridade: é quase inevitável que esse ou aquele tipo de processo
seja ignorado ou sacrificado para se fazer um simples refle-
xo, uma ‘imagem especular’ do outro. A cultura é considera-
da como se derivasse inteiramente das formas de organização
social (enfoque característico dos estruturalistas ingleses e de
muitos sociólogos americanos) ou as formas da organização
social são consideradas como encarnações comportamentais
de modelos culturais (abordagem de Malinowski e de muitos
antropólogos americanos). Em ambos os casos, o termo infe-
rior tende a descambar como fator econômico, e ficamos com
um conceito onicompreensível da estrutura social […]. Uma
revisão dos conceitos da teoria funcionalista capaz de colocá-
-los em condição de tratar mais eficazmente os “materiais his-
tóricos” bem poderia começar com uma tentativa de distinguir
analiticamente entre os aspectos culturais e os aspectos sociais
da vida humana, e de tratá-los como fatores independente-
mente variáveis e todavia reciprocamente interdependentes.
Embora separáveis apenas no plano conceitual, a cultura e a
estrutura social serão então consideradas suscetíveis de uma
vasta gama de interações recíprocas, e a integração aparecerá
isofórmica apenas como um caso-limite. (Geertz, 1973, p. 144)

Aceita a distinção, para fins puramente analíticos, entre es-


trutura social e cultura, Geertz considera os dois conceitos de
forma interconexa, não de maneira causal, mas segundo mo-
dalidades que lembram as duas faces da folha saussuriana:
não se pode recortar a frente, sem fazer o mesmo com o verso.
(Saussure, 1916, p. 137 [131]) A cultura não é “um ponto inva-
riável de referência” a que recorrer casualmente na explicação
dos fenômenos, e nem um simples esquema para ver melhor os

178 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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objetos que existem “lá fora”, independentemente das perspec-
tivas teóricas: constitui, pelo contrário, uma forma de alcance
ontológico que faz ver a realidade:

Como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (o que


eu chamaria símbolos, ignorando as utilizações provinciais),
a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos
casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as
instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro
do qual eles podem ser descritos de forma inteligível. (Geertz,
1973, p. 14 [10])

Geertz considera cultura e estrutura social como modelos


conceituais que compreendem aspectos diferentes da realidade.
A primeira mostra o sistema de significados e de símbolos que
abrem lugar à interação social, “o entrelaçamento de significa-
dos em cujos termos os seres humanos interpretam a sua expe-
riência e guiam a sua ação” ou “o complexo de crenças, símbolos
expressivos e valores em cujos termos os indivíduos definem seu
mundo, exprimem seus sentimentos e formulam seus juízos”.
(Geertz, 1973, p. 144-145) A estrutura, ao contrário, põe em
foco “o processo incessante dos comportamentos interativos”, o
modelo da interação social. Como confirma Geertz, “uma con-
sidera a ação social em seu significado para os que a praticam,
a outra a considera em sua contribuição para o funcionamento
de algum sistema social”. (Geertz, 1973, p. 145)
O enfoque geertziano compartilha com Weber a ideia de uti-
lizar ambas as perspectivas, e encara, por exemplo, o fenôme-
no religioso como um elemento interno à unidade do sistema
social. (Geertz, 1968) À tese de um condicionamento unilate-
ral das formas de vida política e das manifestações culturais a

Roberto Malighetti 179

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partir da estrutura econômica, Geertz contrapõe, como Weber,
um esquema explicativo que rejeita qualquer postulado quanto
à orientação desse condicionamento. Assim é que apresenta, ao
mesmo tempo, um relato pormenorizado dos aspectos econô-
micos, políticos e ecológicos, junto com a análise simbólica. De
modo análogo, o seu exame de estado-teatro em Bali do século
XIX compreende uma análise complexa das estruturas políticas
e econômicas, do sistema de irrigação, das formas dos templos,
da divisão das castas, do comércio e dos rituais, sem estabelecer
prioridades de ordem causal.
A análise geertziana não se interessa por determinar a relação
de causalidade, mas leva em consideração as complexas estrutu-
ras de significado que informam as experiências dos indivíduos:

Eventos sociais certamente têm suas causas e as instituições


sociais, seus efeitos; mas é possível que o caminho que nos leve
a descobrir o que é que estamos realmente afirmando quando
fazemos esta afirmação tenha mais que ver com a observação
e a inspeção de expressões do que com postular e medir forças.
[…] a explicação passa a ser vista como uma questão de co-
nectar a ação a seu significado e não o comportamento a seus
determinantes. (Geertz, 1983a, p. 34 [55])

Sob esse aspecto, Geertz supera a estéril problemática re-


lativa à dialética entre estruturas, com uma argumentação que
pode aproximar-se à crítica de Sebag (1964) ao determinismo
marxista. Segundo Sebag, o materialismo histórico desestrutu-
raria os campos da estrutura e da superestrutura, dotados de
homogeneidade interna, para tornar a reconjuntá-los, emba-
ralhando operações opostas e utilizando as especificações do
sistema simbólico, em vez do sistema em sua totalidade. Sebag

180 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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propõe separar a causalidade que une determinado fato a outro
e a comparação entre os dois campos distintos da vida social.
Não há um vínculo necessário entre uma situação social parti-
cular e a presença de uma ideologia, nem correspondência rigo-
rosa entre dado conjunto simbólico e determinada prática so-
cial. Exclui-se, portanto, a automatização absoluta do “fazer”.
A multiplicidade do real, constituída pela justaposição de uma
pluralidade de lógicas que não podem coincidir senão parcial-
mente, inclui tanto a realidade significada pelo discurso quanto
o circuito dentro do qual tal discurso se insere: a heterogenei-
dade do social e do simbólico é insuficiente para fundamentar a
passagem do primeiro ao segundo.
Também Parsons havia entendido cultura e estrutura social
como centros interdependentes da organização dos elementos
do sistema: nenhum deles é teoricamente redutível ao outro, e
cada um é indispensável ao outro:

Assim concebido, o sistema social é apenas um dos três aspec-


tos da estruturação de um sistema de ação social completamen-
te concreto. Os outros dois são os sistemas de personalidade
dos atores individuais e o sistema cultural que é construído
dentro de sua ação. Deve-se considerar cada um dos três como
um centro independente da organização dos elementos do sis-
tema da ação, no sentido de que nenhum deles é teoricamente
redutível aos termos de um ou à combinação dos outros dois.
Cada um é indispensável aos outros dois, no sentido de que,
sem personalidade e cultura, não existiria nenhum sistema so-
cial, e assim por diante, seguindo o elenco de possibilidades
lógicas. Mas esta interdependência e interpenetração é uma
operação muito diferente da redutibilidade, a qual significa-
ria que as propriedades importantes e os procedimentos de
uma classe de sistema poderiam ser derivados teoricamente

Roberto Malighetti 181

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do nosso conhecimento teórico de um ou dos outros dois. A
estrutura ativa de referência é comum a todos os três, e esse
fato possibilita certas ‘transformações’ entre eles. Mas no nível
teórico tentado aqui, eles não constituem um único sistema,
embora este pudesse revelar-se sob qualquer outro nível teóri-
co. (Parsons, 1951, p. 6)

Geertz contrapõe-se à ontologia realista parsonsiana, a qual,


conforme ele lembra a propósito de seus estudos iniciais sob
orientação de Talcott Parsons, “falava das culturas como de su-
jeitos agentes” (Geertz, 1995, p. 102 [101]), promovendo uma
concepção da empresa antropológica como algo do tipo: “eles
têm lá uma cultura e teu trabalho é voltar e nos dizer o que ela
é”. (Geertz, 1995, p. 47 [43]) A metáfora textual leva a con-
siderar a cultura como um conjunto de significados e, assim,
a colocar-se numa perspectiva hermenêutica, interessada não
apenas em como são construídas as interpretações dos próprios
interlocutores, mas também as do antropólogo, de um ponto de
vista sincrônico e público, à parte das leis de causalidade e da
pesquisa de lógicas do profundo:

A cultura, esse documento de atuação, é portanto pública, como


uma piscadela burlesca ou uma incursão fracassada aos carnei-
ros. Embora uma ideação, não existe na cabeça de [ninguém];
embora não-física, não é uma identidade oculta. O debate inter-
minável, porque não-terminável, dentro da antropologia, sobre
se a cultura é ‘subjetiva’ ou ‘objetiva’, ao lado da troca mútua
de insultos intelectuais (‘idealista!’ – ‘materialista!’; ‘mentalis-
ta!’ – ‘behav[i]orista!’; ‘impressionista!’ – ‘positivista!’) que o
acompanha, é concebido de forma totalmente errônea. Uma
vez que o comportamento humano é visto como ação simbólica
[…], o problema se a cultura é uma conduta padronizada ou

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um estado da mente, ou mesmo as duas coisas juntas, de algu-
ma forma perde o sentido. O que se deve perguntar a respeito
de uma piscadela burlesca ou de uma incursão fracassada aos
carneiros não é qual o seu status ontológico. […] O que deve-
mos indagar é qual é a sua importância: o que está sendo trans-
mitido com a sua ocorrência através da sua [ação], seja ela um
ridículo ou um desafio, uma ironia ou uma zanga, um deboche
ou um orgulho. (Geertz, 1973, p. 10 [8])

Deixando de lado as modalidades do pensamento e as epis-


temologias essencializantes, as culturas emergem não como rea-
lidades naturais que se mostram ao observador sob a forma de
uma essência imutável ou de um repertório estável e facilmente
reconhecível de sentimentos ou ideias, regras ou traços cultu-
rais. Contra as tentativas de naturalização e de reificação, cons-
tituem um modelo de referência que opera seletivamente: reor-
ganizando semanticamente o mundo, faz-nos vê-lo. Enquanto
tal, o conceito de cultura constitui o galho wittgensteiniano em
que estamos sentados e que não podemos cortar. (Wittgenstein,
1953, § 54 [§54]) Embora possa ser considerado um conceito
profundamente comprometido e lembre a ideia derridaiana de
alguma coisa em progressiva erosão, não pode ser eliminado.
Como uma espécie de tipo ideal weberiano, permite colher os
elementos e coordená-los em uma interpretação. Ainda que ar-
tificial e relativo, o conceito constitui o limite kantiano indis-
pensável para a construção da realidade. Parafraseando o verso
do monge beneditino do século XII, Bernardo Morliacense, no
livro De conceptu mundi, poder-se-ia dizer: Stat cultura pristina
nomina nuda tenemus.

Roberto Malighetti 183

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Políticas culturais

Considerar a cultura, não substancialmente, mas como modelo


teórico que permite compreender a realidade, significa pensá-la
enquanto uma categoria da prática, considerando “quem cria e
quem define”, ou “quem manipula, na contingência e em vista
de que fim”, os significados culturais, por meio de quais dinâ-
micas e quais “traços”, conforme quais perspectivas hegemô-
nicas nas diferentes contingências. A abordagem construtivista
reflete sobre a produção e reprodução das formas culturais, no
cruzamento entre sistemas simbólicos e dimensões do poder,
analisando a articulação dos elementos constitutivos de com-
plexas arenas em contínua efervescência, no interior das quais
diferentes visões do mundo, interesses e poderes coligam-se,
contrapõem-se e conspiram. (Amselle, 2001; Appadurai, 1996;
Clifford, 1988, 1997; Hannerz, 1992)
O trabalho do antropólogo é, assim, identificado com a des-
construção das construções dos atores sociais nas suas múltiplas
determinações e efeitos pervasivos e no exame dos espaços de
troca negociais e, portanto, políticos, nos quais se define e utili-
za a cultura. Usos e mudanças são colhidos, etnograficamente,
no interior das práticas, pela análise das diferentes posições e
dos interesses acionados pelos protagonistas dos diversos cená-
rios, inscritos pelo antropólogo nas suas histórias e nas tempo-
ralidades que constituem o processo de pesquisa e textualização.
Demonstrar o caráter fictício da cultura não implica em negar
a sua realidade ou aquela dos grupos que operam nas diferentes
condições, nem significa que a identidade cultural seja uma inven-
ção da imaginação, falsa ou irreal. As dinâmicas ativadas assu-
mem uma consistência muito concreta para aqueles que com elas,
ou nelas, se identificam, constituindo um modelo atrás do qual há

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uma realidade que efetiva o sentimento comum de pertencimento
a uma tradição e favorece a projeção de ações comuns.
Diferentes perspectivas têm considerado a coerência e a con-
tinuidade no tempo como um fator constitutivo das culturas,
salientando que ao processo de construção da identidade cultu-
ral é inerente certa obtusidade, a qual serve para ocultar proce-
dimentos e negar a sua intrínseca contingência. (Kilani, 1994;
Remotti, 1992) Keesing (1974) chama “magia dos símbolos”
e Remotti (1922) “truque da cultura” à transposição dos sím-
bolos em entidades que escamoteiam a própria precariedade:
traços e sinais são transformados em estruturas que adquirem
autenticidade cristalizando-se em realidades aceitas em comum,
e em modelos identitários assentados sobre tecidos simbólicos
primordiais. Nos diferentes contextos etnográficos, o processo
de etnogênese articula-se, em termos substancialistas, no modelo
clássico bed, blood and cult, e a partir de conceitos essencialis-
tas como territorialidade, antiguidade de ocupação, genealogia,
sangue e raça e, ainda, de mecanismos de eliminação catárti-
ca de impurezas, contaminações e contradições. Tal entificação
confere às culturas uma condição de realidade autônoma e in-
dependente, abstraída do fluxo experiencial e das mudanças da
vida social. Geertz analisa os modos como os termos “nação”,
“estado”, “país”, “sociedade”, “povo” assumiram um papel
central nos discursos políticos e sociais, e ilustra os seus substra-
tos essencializantes:

recorrem ao sangue, à raça e à filiação, aos mistérios e às mis-


tificações da igualdade biológica; evocam lealdades políticas
e cívicas e o nexo indissolúvel entre direito, poder e política;
apoiam-se sobre agregações geográficas e limites territoriais;
supõem uma consciência de origem, domicílio e pátria; refe-
rem a interação, a socialidade e a associação entre cidadãos,

Roberto Malighetti 185

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o encontro entre os homens e o cambiante jogo de interesses;
sugerem afinidades culturais, históricas, linguísticas, religiosas
ou psicológicas, algo, portanto, que se assemelhe a substratos
espirituais. (Geertz, 1999, p. 33)

Dotando-se de coerência sistemática interna, condivisibilida-


de pervasiva, persistência e homogeneidade, as políticas de cons-
trução das nações foram fundadas sobre processos homogenei-
zantes e homologantes. As “comunidades imaginadas”, como as
denomina Anderson (1983), são artefatos políticos, produtos da
cristalização de novas unidades que utilizam, de forma seletiva
e manipuladora, as heranças históricas, culturais, pré-existentes
ou construídas para a ocasião, respondendo ao propósito políti-
co de produzir realidades socioculturais e econômicas “naciona-
lizadas” ou “tribalizadas” (Amselle & Mbokolo, 1985; Gutkind,
1970; Southall, 1970), homologadas como unidades de base fun-
damentalmente semelhantes, reduzidas a pedaços discretos de
um mosaico construído sobre o modelo dos estados europeus.
Nas palavras de Geertz, “a ilusão segundo a qual, de um extre-
mo ao outro, o mundo se compõe de entidades do mesmo tipo,
como peças de um mesmo quebra-cabeças, nasce das convenções
iconográficas dos nossos atlas políticos”. (Geertz, 1999, p. 28)
Superando as derivações durkheimianas de uma consciên-
cia coletiva que dominaria e articularia tais dinâmicas, Geertz
(1999, p. 24) contrapõe a tal visão uma realidade conflitante e
plural, “a imagem de um mundo que se diria um amontoado de
diferenças em constante movimento, e não de um mundo de es-
tados nacionais, tirados todos do mesmo pedaço, que, do alto de
um balão, pudessem ser comodamente conhecidos e ordenados
em blocos e superblocos”. Complexa e variada, essa realida-
de não afluiria somente nos conflitos internos dos estados ex e

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pós-coloniais (Geertz, 1962, 1971), mas mesmo na fragmentada
situação norte-americana e na contemporaneidade europeia, fe-
rida por trágicos epígonos da ex-Iugoslávia – “o pátio em cha-
mas da Europa” (Geertz, 1999, p. 70):

Só para fazer um exemplo, a ‘Europa’, ou a ‘Rússia’, ou ‘Viena’,


não podem mais ser entendidas, política e culturalmente, como
unidades espirituais e de valores destinados a acentuar a pró-
pria diversidade em relação a outras unidades do mesmo tipo,
como o Oriente Próximo, a África, a Ásia, a América Latina, os
Estados Unidos ou Londres. Devemos, ao invés, enxergar nelas
conglomerados de diferenças profundas e fundamentais, que se
opõem a qualquer reunião. (Geertz, 1999, p. 20-21)

Sob a hegemonia da ciência positivista, a antropologia de-


sempenhou um papel de primeiro plano na produção de coe-
rentes sistemas integrados de estruturas correlatas e funcionais,
compreensíveis e monografáveis por meio da observação partici-
pante, oximórica metodologia de salvamento da autoridade e da
pureza. As concepções orgânicas e mecanicistas travaram uma
relação particularmente estreita com os processos de construção
dos estados nacionais e com o pragmatismo das administrações
coloniais. Sobretudo na Grã-Bretanha, conjugaram-se os mode-
los de referência do dual mandate e da indirect rule com a análise
funcionalista, apoiada na interdependência das partes do sistema
social, entendido como um todo integrado, e sobre o caráter no-
motético e generalizante do saber assim produzido. Refletindo
sobre o uso das categorias culturais para a construção da reali-
dade indonésia, Geertz (1999, p. 67) destaca o papel sustentado
pelo antropólogo na construção de entidades incontaminadas:

Roberto Malighetti 187

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Geralmente isto acontece por meio do que poderíamos chamar
discurso “dos povos e das culturas”. É esse o termo usado pela
minha disciplina, a qual tende ainda a uma classificação no es-
tilo âge classique. Procede-se à definição e à caracterização por
uma combinação de caracteres de cada grupo étnico ou quase
étnico – javaneses, batak (Sumatra), bugineses (Celebes), aceh
(Sumatra), balineses e assim por diante – ou de grupos menores
e localizados em áreas mais afastadas do centro, biman (Bima),
dayak (Bornéus), amboneses (Molucas), etc.

O caso talvez mais evidente do envolvimento da disciplina nas


dinâmicas essencialistas é representado pelo papel de antropólo-
gos e estudiosos da tradição volkekunde, ao terem fornecido as
bases ideológicas do regime do apartheid e da divisão da África
do Sul em comunidades étnicas, concebidas como “ontical hu-
man unit”. (Coertze, 1978, p. 1) Utilizando os instrumentos da
antropologia como elaborados em época colonial (Malighetti,
2001), os ideólogos do National Party vislumbraram no sistema
de segregação racial o respeito de cada uma das tradições cultu-
rais locais, conservadas em sua autenticidade e pureza e imunes
à possibilidade de contaminação. Vários ministros e membros
do Ministério da Cooperação e Desenvolvimento, o qual dirigiu
as políticas do apartheid a partir de 1978, receberam o título de
doutor em antropologia na Universidade de Oxford. (Grillo &
Rew, 1985, p. 135)
Recusando-se a considerar a realidade como formada por
“unidades emolduradas, espaços sociais com limites definidos”,
Geertz propõe uma concepção complexa das culturas e das rela-
ções interculturais, na qual “as abordagens seriamente distintas
da vida” aparecem como “misturados em espaços mal definidos,
espaços sociais cujos limites não têm fixidez, são irregulares e difí-
ceis de localizar”. (Geertz, 2000, p. 103 [83]) As suas observações

188 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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ensejam pensar que toda cultura é o produto de uma longa his-
tória de apropriações, resistências, compromissos, em contínuo
movimento, fundada sobre negociações, antagonismos, incoerên-
cias, contradições. Sob tal perspectiva, as culturas não “ficaram
loucas” (Clifford, 1988) apenas na contemporaneidade por efeito
da globalização, a qual, de todo modo, não é uma dinâmica re-
cente, mas, ao contrário, constituiu, atravessando-a, a história da
humanidade – “nem a Roma dos Césares era lá tão homogênea”.
(Geertz, 2000, p. 79 [77]) Sustentando que “as pessoas que fura-
vam o nariz ou usavam tatuagens no corpo, ou que enterravam
seus mortos em árvores, talvez nunca tenham sido os solitários
que presumimos que fossem”, Geertz (2000, p. 92 [98]) opõe-se
à ideia de um mundo feito um mosaico de monoculturas homo-
gêneas e fronteiras bem definidas. Ao reificar e essencializar as
culturas, o “conceito configuracional de cultura” (Geertz, 1999,
p. 60) propugnou a homogeneidade interna, construída em torno
de variáveis genealógicas, territoriais, religiosas ou linguísticas.
No interior dos estados, essa ideologia promoveu políticas
“multiculturais” baseadas na exclusão das minorias em função
da defesa da identidade nacional. Aumentando a fragmentação e
o risco de apartheidização da distância entre as componentes da
sociedade – em vez de promover sua participação na sociedade
e na cultura – o multiculturalismo revelou-se o lado obscuro da
monocultura. A homogeneização nacional é alcançada mediante
a anulação integrativa ou excludente da diferença. (Malighetti,
2002) Refletindo sobre esse viés “divisionista”, Geertz (1999,
p. 67-68) mostra os seus efeitos políticos:

Agindo dessa maneira, chega-se a uma imagem divisionista


da estrutura cultural de um país, pelo contrário, tomando em
consideração a ordem subjacente de catálogos, uma imagem

Roberto Malighetti 189

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que é como um quebra-cabeças de cartas. Visto sob esses ter-
mos, que é um país? É uma quantidade de ‘povos’ com iden-
tidade, importância e caracteres diversos, reunidos numa es-
trutura comum econômica e política através de um invólucro
narrativo superior, de tipo histórico, ideológico, religioso, ou
outro qualquer. Dissolvem-se, assim, ou se bloqueiam, todos
os níveis de diferenciação, todas as dimensões de integração
que se encontram entre a menor comunidade universalmente
aceita (‘determinada cultura’ ou ‘determinado grupo étnico’)
e a maior (‘nação’ ou ‘estado’). E com eles, infelizmente, tam-
bém tudo aquilo que, na vida da comunidade, serve à inclusão
dos indivíduos em empreitadas cooperativas ou à sua divisão
devido a conflitos, todas as práticas, as instituições, os eventos
sociais em que se elabora a diferença. As peças foram reunidas
e ordenadas, as relativas anotações completadas, faltando, po-
rém, seus entrecruzamentos.

As lógicas multiculturais se caracterizam pelo reconhecimen-


to e pela institucionalização das diversidades em função da sua
homologação ou da sua marginalização. A tendência é conside-
rar autoexcludentes as identidades múltiplas: pode-se ter apenas
uma, que, do contrário, não se torna visível nos nichos criados
pelas políticas públicas. Esse uso do conceito de cultura, enfati-
zando as fronteiras e a mútua distinção, selecionando a divisão e
não a intrínseca compenetração entre culturas, corresponde aos
precisos entendimentos políticos dos diferentes estados nacionais,
reproduzindo o que Geertz (1999, p. 84) chama a “visão mono-
córdia” do nacionalismo liberal do Oitocentos tardio e do início
do Novecentos, identificada pelos protagonistas dos diferen-
tes contextos histórico-políticos: “Cavour, Pilsudski, Masaryk,
Parnell, Bismarck, Herzen e Woodrow Wilson”. (Geertz, 1999, p.
82) Dessa forma, promove uma ideologia nacionalista, fundada

190 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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sobre uma unidade territorial e sobre uma autenticidade históri-
ca e cultural “em que se harmonizam ‘limpeza étnica’ e ‘nacion-
-ismo’”. (Geertz, 1999, p. 60)
Sob esse ângulo de percepção, o multiculturalismo pode
considerar-se o modo como o Estado nacional se descreve e
pensa a si mesmo, uma manifestação da reação contemporânea
à deslegitimação e às ameaças de erosão da hegemonia das cul-
turas dominantes. Reificando e enfatizando as diferenças e as
divisões, esse multiculturalismo não leva em conta as compósi-
tas realidades nacionais no seu conjunto, nem as diferenças cul-
turais no âmbito de cada Estado. Com isso, rechaça a dimensão
da mudança e da articulação interna, a não ser enquanto efeito
de intervenções e “entes patogênicos” externos, como a imigra-
ção, por exemplo, mas, curiosamente, não como a globalização,
considerada fenômeno “interno”. A diferença é atribuída exclu-
sivamente a uma inverossímil cultura “extracomunitária” ho-
mologada como única “diversidade” no conjunto da sociedade
nacional, e usada como bode expiatório de todos os problemas.
Assim, as minorias são definidas de fora dos conceitos de nação
e comunidade, a cujo pertencimento dificilmente podem aspirar,
e só às custas de um processo de anulação e negação de sua
própria identidade. Muitas vezes, o multiculturalismo promo-
ve – em um quadro que, no melhor dos casos, se articula pela
contraposição assimilativa “cultura hegemônica-cultura subal-
terna” – uma superação do conceito de direito baseada na ideia
de que as políticas para tais grupos são específicas, alternativas
e separadas pelos problemas de cidadania.
As leis excepcionais e os serviços emergenciais promovem
ações que governam as contraposições entre os grupos que insti-
tucionalizam. O poder de proclamar formas jurídicas excepcio-
nais ou transitórias, como também a suspensão legal da validade

Roberto Malighetti 191

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das leis ordinárias, exercitam um domínio totalitário, sem qual-
quer mediação. (Agamben, 1995; Benjamin, 1955; Schmitt, 1921)
Conforme mostrou Giorgio Agamben, a estrutura topológica
do estado de exceção é uma técnica de governo paradigmática en-
quanto geradora da ordem jurídica. É uma figura relacional que
não se funda simplesmente na alteridade com respeito às normas
jurídicas, mas no “ser tomado de fora”, no “estar fora e mesmo
assim pertencer” e, portanto, ser incluído por meio da sua própria
exclusão. (Agamben, 2003) Consiste num mecanismo que exclui
mantendo a relação com a norma na forma da sua suspensão:
não é a exceção que se subtrai à regra, mas a regra que, interrom-
pendo-se, gera a exceção e somente assim se constitui enquanto
regra. (Agamben, 1995) Esta, deixando de se aplicar, compreende
o que a excede e, ao mesmo tempo, cria e define o espaço no qual
a ordem jurídico-política assume valor discriminatório e conser-
vador das ideologias e das práticas de marginalização integrativa.
O aparato da exceção modela as políticas de integração so-
cial parcial e assimétrica e promove perfis de cidadania limita-
da. Os seus dispositivos geram uma forma de exclusão que se
materializa nos espaços especiais: não só nos campos analisa-
dos por Hannah Arendt (1951), mas também nas comunidades
discriminadas de refugiados, imigrantes, clandestinos, vítimas e
prisioneiros de guerra, homens e mulheres traficados, reservas
indígenas e favelas. (Malighetti, 2011) Esses lugares materiali-
zam as possibilidades de normalização da exceção. Em tais re-
cintos, delimitados por cercas territoriais e simbólicas, o sistema
legal, por meio de sua suspensão excepcional, inclui e controla
o que exclui. Determina a desistoricização e a despolitização
da realidade dramática em que uma grande parte da população
vive, e garante uma ordem eficaz ao conter as possibilidades de
reação à condição de pobreza e privação.

192 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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A dimensão biopolítica do estado de exceção destaca os
quadros jurídicos e políticos das relações entre o Estado e os in-
divíduos em termos paradoxais. Embora a lei clássica pense em
termos de indivíduos e de sociedade, de cidadãos e de Estado,
o aparato especial raciocina em termos de entidades abstratas,
destinadas a serem identificadas, pesquisadas, recenseadas, re-
gistradas, contadas, quantificadas, catalogadas, etnicizadas. As
estratégias e as categorias diagnósticas das administrações, ex-
portáveis em todos os contextos, reduzem a identificação dos
cidadãos à biologia, à “abstrata nudez do ser unicamente huma-
no e nada mais” (Arendt, 2000 [1951] p. 327) ou à “vida nua”.
(Agamben, 2003)
Geertz propõe uma superação das conceituações do mundo
baseadas em categorias anacrônicas que reproduzem os modelos
assimétricos simples com os quais tanto a ciência como a política
têm pensado a diferença cultural, provocando perigosos clashes
of civilizations (Huntington, 1996): “o contraste ‘alterizante’
nós/eles parece externo e fora de moda, um terreno baldio das
desaparecidas oposições binárias Gemeinschaft e Gesellschaft,
selvagem e civilizado, mecânico e orgânico, subdesenvolvido e
desenvolvido, tradicional e moderno” (Geertz, 2004, p. 223),
não apenas no sentido de que “eles” estão “aqui” com “nós”, e
não tanto porque Geertz (2000, p. 93 [74]) rejeita a ideia de que
“os xiitas, digamos, por serem outros, constituem um problema,
mas os torcedores de futebol, por exemplo, sendo parte de nós,
não o constituem”. Sobretudo, convida a refletir sobre a articu-
lação que está no âmago de toda cultura e sociedade:

O mundo social não se divide, em suas articulações, entre um


nós perspícuo, com o qual podemos ter empatia, por mais que
sejamos diferentes entre nós, e um eles enigmático, com o qual

Roberto Malighetti 193

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não podemos ser empáticos, por mais que defendamos até a
morte o direito de serem diferentes de nós. A gentalha começa
muito antes do Canal da Mancha. (Geertz, 2000, p. 76 [74-75])

A subversão antropológica

A perspectiva geertziana instiga à reformulação das dicotomias


do discurso modernista (modernidade-tradição, centro-perife-
ria, globalidade-localismo etc.), substituindo-as por múltiplas
e complexas articulações, “patchworks onipresentes” (Geertz,
1999, p. 16), “panoramas e colagens”, em lugar de “paisagens e
naturezas-mortas”. (Geertz, 2000, p. 85 [83]) A realidade passa
a ser vista – para usarmos a metáfora usada em seguida por
Rabinow (2003, p. 56) – como uma “imensa montagem das di-
versidades justapostas” (Geertz, 2000, p. 86 [84]):

Hoje tende-se a usar o termo ‘aldeia global’ […] para definir


este fenômeno de interconexões em vasta escala e de comple-
xas dependências. Aldeia pobre, pois que não conhece solida-
riedade nem tradição, não tem centro nem fronteiras, e carece
completamente de integridade. (Geertz, 1999, p. 58)

Podemos até pensar que “a complexidade cultural torna-se


um todo”, mas é um todo “extremamente irregular, lábil e inde-
terminado (Geertz, 1999, p. 68):

O mundo hoje está marcado por um paradoxo […] a globaliza-


ção crescente comporta um aumento das novas diferenciações,
e interconexões cada vez mais globais fazem contrapartida a

194 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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divisões cada vez mais intrincadas. Cosmopolitismo e provincia-
nismo não estão mais em contraste, mas, pelo contrário, se entre-
cruzam e reforçam mutuamente. (Geertz, 1999, p. 57)

Pondo em destaque a relação exoticizante entre distância e


diferença (Affergan, 1987; Clifford, 1988) e a imediata coinci-
dência de lugar, cultura e identidade (Canclini, 1990; Guidieri,
1990; Hannerz, 1992), o enfoque geertziano propõe-se anali-
sar as reelaborações locais da modernidade, mostrando que as
ideias e as práticas desse tempo são apropriadas e reescritas nas
práticas locais, produzindo a fragmentação e a dispersão da mo-
dernidade em mais modernidades, construídas “de baixo para
cima” e em constante proliferação. Tais “modernidades múl-
tiplas” (Commaroff & Commaroff, 1993, p. 1), geram fortes
contratendências em face às estratégias globalizantes, mostran-
do um dinamismo fundamentado na fusão, na mesclagem e na
oposição. À ideia de processos que devessem fazer o moderno
tomar o lugar do tradicional sobrepõe-se a ideia de realidades
negociais produzidas essencialmente pelo “co-pertencimento”
da modernidade e da tradição, do global e do local:

a coexistência de tradições culturais, grandes, ricas, únicas e his-


toricamente desenvolvidas, na maior parte, se não em todas as
regiões do globo […], é fonte de diferenças que tendem a apro-
fundar-se ao infinito em outras diferenças, divisões que levam a
outras divisões e mesclagens sempre novas. (Geertz, 1999, p. 22)

Essas articulações exigem repensar as “culturas tradicio-


nais” no contexto de seu envolvimento transformador com a
modernidade, não em termos homologantes, mas como socie-
dades vernaculares (Latouche, 1989) nascidas da inter-relação
entre o antigo e o novo:

Roberto Malighetti 195

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A variedade tem origem no modo como são situadas e combi-
nadas as práticas constitutivas desses estilos de vida. Para reto-
mar uma imagem célebre de Wittgenstein, não há um fio único
capaz de atravessá-los todos, de defini-los e torná-los uma to-
talidade. O que há são apenas sobreposições de diversos fios
que se cruzam e se entrelaçam, que partem de onde outros fios
se rompem, que estão em recíproca tensão e formam um corpo
compósito, localmente variado e globalmente integrado. […] é
preciso isolar os fios, localizar os nós, os laços, os ligamentos e
as tensões, ter em mente que trabalhamos com um corpo com-
pósito e sondar a sua profunda variedade. (Geertz, 1999, p. 26)

A perspectiva wittgensteiniana tem em mira as redes de in-


terconexões que penetram os contextos locais mais periféricos,
e produz a visão de um mundo plurívoco e heteroglosso, cujas
fronteiras culturais são cada vez mais confusas e mutáveis, siste-
maticamente hibridadas, pela agregação sincrética de traços he-
terogêneos em novas e instáveis configurações. As “impurezas”
passariam a ser fertilizantes para novas sínteses e “emersões”
culturais e sociais (Agier, 2001; Clifford, 1988):

É difícil encontrar-se qualquer comunalidade de ideias, de for-


mas de vida, de comportamentos ou de expressões que, por
sua vez, não se decomponha em entidades menores e imbrica-
das uma na outra, ou não fermente e não forme identidades
maiores e mais amplas que se sobrepõem a outras identidades.
(Geertz, 1999, p. 65-66)

Para Geertz (1999, p. 69), então, a identidade cultural é “en-


tendida como um campo de diferenças […] que se cruzam em
todos os níveis, desde o familiar, o do vilarejo, da vizinhança, até
o do país e indo mais além, passando pelo regional”:

196 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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A pesquisa de uma totalidade já não constitui um fio condutor
confiável, e o isolamento dos outros termina por ser um ideal
inalcançável […]. Não enxergamos mais unidades bem definidas
que nada mais esperam senão serem ordenadas segundo uma
espécie de tabela mendeliana dos gêneros naturais, mas, sim,
um nó, desatado apenas em parte, de diferenças e semelhanças.
(Geertz, 1999, p. 61)

Em tais contextos híbridos podem-se ler as potencialidades


alternativas de construir as sociedades e de pensar as econo-
mias e as políticas. (Escobar, 1995) Assim, o chamado Terceiro
Mundo pode ser visto a partir de seus contributos às confi-
gurações culturais e aos esforços intelectuais e políticos. Suas
subjetividades marginais e periféricas, marcadas por múltiplas
tradições, podem ser compreendidas em sua capacidade de rea-
tar o fio de uma história interrompida pelo tráfico de escravos,
pelo colonialismo, pela modernização, pela industrialização e
pela urbanização selvagem, e se manifestam na procura por
reapropriar-se de uma identidade cultural própria, recuperando
técnicas e conhecimentos tradicionais. Geertz mostra que tais
realidades locais contradizem os poderes dominantes e fundam
suas estratégias inovativas sobre a defesa da diversidade cul-
tural e sobre a importância do local como pré-requisito para
empenhar-se pelo global. (Escobar, 1995) Nesse sentido, ele ob-
serva a irrupção na cena contemporânea de grande número de
novos países, de pequenas e médias dimensões, originadas do
“naufrágio do projeto colonial”, que já não cuidam de recupe-
rar ou imitar o modelo homogeneizante do “estado nacional”
oitocentesco europeu:

Roberto Malighetti 197

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O aporte que a revolução do Terceiro Mundo deu à autocom-
preensão do Novecentos não reside tanto na imitação do na-
cionalismo europeu […], mas no fato de que essa revolução
evidenciou a natureza compósita da cultura, por isso mesmo
negada pelo nacionalismo europeu. (Geertz, 1999, p. 64)

O Terceiro Mundo “subdesenvolvido” e “atrasado” não


apenas não confirma tal modelo, mas o põe em xeque, de forma
tal a “expor a concepção europeia a uma crescente necessidade
de justificação” (Geertz, 1999, p. 30), ficando evidenciado que
o estado nacional é “uma estrutura cultural imensamente hete-
rogênea, muitas vezes quase aglomerados arbitrários de povos,
delimitados por fronteiras traçadas no passado por jogos da po-
lítica europeia”. (Geertz, 1999, p. 65)
Geertz se posiciona como alternativa à ideologia dominante,
“repacificante”, da globalização entendida como algo inevitável
e, sobretudo, já alcançado, que resolve os conflitos e a articula-
ção interna. Essa alternativa abre um horizonte capaz de organi-
zar, em termos não dicotômicos, as relações entre local e global,
particular e geral, centralização e descentramento, homogenei-
dade e individualidade. Por um lado, recusa encarar o global ou
o híbrido como união ou como mesclagem de segmentos sepa-
rados e distintos. Por outro, enseja compreender o local como
algo que se cria continuamente no dia a dia da experiência e da
relação com os mais vastos contextos englobantes:

O de que precisamos são novos modos de pensar, capazes de


frequentar particularidades, individualidades, estranhezas, des-
continuidades, contrastes e singularidades […]. O que nos falta
são os acessos que saibam extrair, destes modos de ser, desta
pluralidade, o sentido de união que nem é global, nem unifor-
me, nem originário, nem constante, e nem por isso é menos real.
(Geertz, 1999, p. 21)

198 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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A dinâmica do círculo hermenêutico exclui a dicotomiza-
ção entre o local e o global, tanto quanto a sua identificação
como duas faces discretas e contrapostas do mesmo fenômeno.
Igualmente, descarta a ideologia da pureza e da autenticidade
que, apesar dos resultados negativos, força impor-se com força
alarmante. Prefere considerar como o local e o global represen-
tam uma fusão de horizontes e uma forma de copertencimento.
O local e o global são compreensíveis em suas estratificações
contingentes, nas práticas, nos saberes, nas relações, em suas
recíprocas influências (Appadurai, 1996; Gupta & Ferguson,
1997). Como não é possível encontrar “a humanidade face a
face” a não ser que esse encontro se realize nas particularidades
de um indivíduo singular ou de um grupo, da mesma forma não
é possível pensar práticas globais não inseridas “densamente”
em contextos particulares que dão vida a essas práticas e delas
recebem o sentido.
Preocupado com a entropia moral de parte do recente pensa-
mento social, atraído pela “surdez ao apelo de outros valores”,
Geertz opõe-se às abordagens “frouxas e complacentes com o
aprisionamento na própria tradição cultural”, as quais podem
resumir-se no dito de Flannery O’Connors: “Quando em Roma,
façam como fizeram em Milledgeville”. (Geertz, 2000, p. 89 [71])
Ao contrário, incita a elaborar um pensamento social que consiga
compreender a complexidade da diferença, superando reducionis-
mos fáceis, universalismos vazios ou naturalizações preocupantes:

Em poucas palavras, parece que o nosso modo de pensar deve


mudar, se, como filósofos, historiadores, etnólogos ou o que
mais seja, pretendemos dizer algo de útil sobre um mundo em
fragmentos, ou tendente a dissolver-se das identidades está-
veis e das relações alargadas. Em primeiro lugar, em vez de
esconder a diferença com lugares comuns […] com duvidosas

Roberto Malighetti 199

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exortações morais sobre valores universais ou com opacas ba-
nalidades sobre a existência de uma unicidade mais profunda,
devemos reconhecer aberta e explicitamente a diferença. Em
segundo lugar, não se entenda a diferença como negação da
semelhança, o seu oposto, a sua contraposição antitética ou
contraditória, mas como algo que contém em si tudo isso, que
o situa, o concretiza e lhe dá forma. Após o desaparecimento
dos blocos e das hegemonias, encontramo-nos de novo numa
era de ramificações e entrelaçamentos disseminados e diferen-
ciados em si mesmos. As unidades e as entidades que se for-
mam, quaisquer que sejam, verão a luz e serão negociadas a
partir das diferenças. (Geertz, 1999, p. 24-25)

Se admitíssemos que a diversidade está se atenuando, trans-


formando-se num espectro mais desbotado e restrito sob os es-
tímulos globalizantes, então, segundo Geertz (2000, p. 68 [68]),
os antropólogos deverão aprender a sustentar-se em diferenças
mais sutis e a produzir textos menos espetaculares, porém mais
sagazes, em condições de “abrir o vocabulário da descrição e
da análise cultural, a fim de que aí encontrem conceitos como
divergência, variedade e discordância”. (Geertz, 1999, p. 53) A
contribuição do antropólogo cumpre sua finalidade pelo reco-
nhecimento da natureza compósita da realidade social e cultu-
ral, e na consideração da complexidade dos diversos componen-
tes da sociedade:

O despedaçamento de contextos maiores, ou daquilo que pare-


cia um contexto, em contextos menores e mantidos juntos por
liames desembaraçados dificultou muito a interconexão entre
realidades locais e suprarregionais […]. Para compreender a or-
dem geral e descobrir novas entidades, é impossível proceder de
forma direta e colher o conjunto num lance só. O conjunto é des-
coberto e explorado através dos exemplos, diferenças, variações

200 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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e particularidades, um pedaço por vez e um caso depois de outro.
Num mundo em fragmentos como o nosso, é a estes fragmentos
que devemos prestar atenção. (Geertz, 1999, p. 15-16)

Não se trata de um simples apelo ao cosmopolitismo, ou de


uma superficial e romântica “celebração das diferenças”, mas de
uma tomada de consciência da natureza “intercultural” e híbrida
de toda cultura e de toda sociedade. A partir daí, Geertz convida
a antropologia a configurar o próprio contributo na promoção
de políticas que visem à identificação dialógica e negocial de
valores comuns entre os vários componentes sociais: “a antro-
pologia, com o seu sentido do particular, sua atenção para o
detalhe e sua suspeita contra as linguagens homogeneizantes da
descrição social pode, não obstante a sua carência de remédios
demonstrados e de resultados acumuláveis, desenvolver um pa-
pel significativo”. (Geertz, 1999, p. 100) Evitando escolher entre
um “cosmopolitismo sem conteúdo” e um “provincianismo sem
lágrimas”, estimula “aprender a apreender o que não podemos
abraçar” e a “viver numa colagem”, sem abandonar a própria
localização, que é também uma colagem:

Para viver numa colagem, é preciso, em primeiro lugar, que


a pessoa se torne capaz de discernir seus elementos, determi-
nando o que são (o que implica, em geral, determinar de onde
vieram e o que eram quando estavam lá) e como se relacionam
uns com os outros na prática, ao mesmo tempo sem embotar a
ideia que ela tem de sua própria localização e de sua identidade
dentro desta. (Geertz, 2000, p. 87 [84])

Na perspectiva geertziana, a antropologia assume a função


de “abrir (um pouquinho) a consciência de um grupo de pessoas
para a forma de vida do outro e, desse modo, para a vida delas

Roberto Malighetti 201

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mesmas”. (Geertz, 1988, p. 148 [186]) A transversalidade e a
obliquidade da sua visão particularizante introduzem elementos
eminentemente subversivos em relação às variedades codifica-
das e institucionalizadas: “Se quiséssemos verdades caseiras, de-
veríamos ter ficado em casa”. (Geertz, 1984, p. 83 [67]) A fun-
ção crítica da disciplina, que criou muitos problemas para a sua
aceitação da parte daquelas demasiado seguras de si, possibilita
desenvolver um papel social de importância cada vez maior:

Temos procurado, com sucesso nada desprezível, manter o


mundo em desequilíbrio, puxando tapetes, virando mesas e sol-
tando rojões. Tranquilizar é tarefa de outros; a nossa é inquie-
tar. Austrolopitecos, Malandros, Cliques Fonéticos, Megalito:
apregoamos o anômalo, mascateamos o estranho, mercadores
que somos de espanto. (Geertz, 2000, p. 64 [65])

Geertz chama atenção para o fato de que os antropólogos


colocaram-se entre os primeiros a insistir que o mundo não se
divide entre “devotos e supersticiosos”, que a ordem política é
possível sem um poder centralizado, que há pinturas no deserto
e esculturas na floresta, que os princípios da justiça podem estar
estruturados sem ser codificados, que as normas da racionalida-
de não foram estabelecidas na Grécia e a evolução da morali-
dade não parou na Inglaterra. (Geertz, 2000, p. 65 [66]) Neste
sentido, indica uma tarefa importante para a disciplina.

[P]arece provável que, seja qual for o uso dado aos textos etno-
gráficos no futuro, se de fato eles tiverem algum, ele implicará
facultar a conversa através de linhas societárias – de etnia, re-
ligião, classe, sexo, língua, raça – que se tornaram progressi-
vamente mais matizadas, mais imediatas e mais irregulares. A
próxima coisa necessária (ao que me parece, pelo menos) não

202 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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é nem a construção de uma cultura universal semelhante ao
esperanto, a cultura dos aeroportos e dos hotéis de beira de es-
trada, nem a invenção de alguma vasta tecnologia da adminis-
tração humana. Ela consiste em ampliar a possibilidade de um
discurso inteligível entre pessoas de interesses, visões, riqueza
e poder muito diferentes, porém contidas num mundo em que,
amontoadas como estão numa ligação interminável, têm cada
vez mais dificuldade de ficar fora do caminho umas das outras.
(Geertz, 1988, p. 147 [191-92])

O modelo teórico geertziano introduziu interessantes impli-


cações “aplicativas”, elaborando um sofisticado tratamento a
respeito da mudança e das relações sociais, e uma profunda re-
flexão sobre os conceitos analíticos e metodológicos apropria-
dos. (Malighetti, 2001, 2005) Enfatizando a ação recíproca e a
determinação mútua entre diferentes interlocutores, esse modelo
conduz a analisar os relatos das variadas visões do mundo, e as di-
versas estratégias e formas de racionalidade dos diferentes atores
presentes em múltiplos contextos. Ao mesmo tempo, sugere discu-
tir os modelos conceituais e organizativos, as hipóteses de partida,
os preconceitos teóricos ou as pré-compreensões. Sua concepção
aberta da etnografia procura clarificar as complexidades de sig-
nificado das ações sociais, analisando a ideologia e a prática das
relações culturais no seu desdobrar-se concreto e quotidiano.
Geertz contesta as pretensões civilizadoras realizadas em
nome de valores proclamados universais por parte de impro-
váveis etnocentrismos, seja de quem vê o outro como “ovo de
piolho”, ou de quem se distingue “graças à cultura”, uma vez
que aqueles etnocentrismos são cada vez mais dificilmente colo-
cáveis “na imensa colagem de diferenças justapostas”. (Geertz,
2000, p. 86 [83-84]) Nesse sentido, refere um texto de Rorty
sobre o liberalismo burguês pós-moderno, por meio do qual

Roberto Malighetti 203

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mostra a necessidade de convencer a nossa sociedade “de que
a fidelidade a ela mesmo é suficiente… de que ela só precisa
ser responsável por suas próprias tradições”, convencido, tanto
quanto Rorty, que “não há ‘base’ para lealdades e convenções,
exceto pelo fato de que as crenças, desejos e emoções que as sus-
tentam sobrepõem-se às de inúmeros outros membros do gru-
po com que nos identificamos para fins de deliberação moral
e política”. (Rorty, como citado em Geertz, 2000, p. 90 [72])
Entendendo que, mesmo em seus pontos mais “periféricos”, o
mundo “está começando a se parecer mais com um bazar do
Kuwait do que com um clube de cavalheiros ingleses” e consta-
tando que “os milieux estão todos mixtes”, já não constituindo
uma Umwelt (Geertz, 2000, p. 86 [83-84]), sugere à antropolo-
gia assumir o difícil papel, que lhe é próprio, de identificar os
“usos da diversidade”:

Nossa resposta a essa realidade que me parece imperiosa é,


ao que também me parece, um dos maiores desafios morais
que enfrentamos atualmente, como um ingrediente de pratica-
mente todos os outros que enfrentamos, desde o desarmamen-
to nuclear até a distribuição equitativa dos recursos mundiais.
(Geertz, 2000, p. 86 [84])

Nesse quadro, Geertz estrutura aquele olhar transversal e


comparativo que caracteriza, em termos bifocais, a disciplina:
a “caminhada mais longa” que também é “o caminho mais
curto para tornar a casa”, segundo as palavras de seu mestre
Kluckhohn. (Kluckhohn, 1949; Remotti, 1990) Tomando o
mote wittgensteiniano, ele convida a levar a efeito as implica-
ções de tal pensamento:

204 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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O que ele [Wittgenstein] disse […] foi que os limites da minha
linguagem são os limites do meu mundo, o que implica […]
que o alcance de nossa mente, a gama de sinais que, de algum
modo conseguimos interpretar, é aquilo que define o espaço
intelectual, afetivo e moral em que vivemos. Quanto maior ele
é, maior podemos torná-lo, tentando compreender o que vêm
a ser os adeptos da Terra plana, ou o reverendo Jim Jones (ou
os Ik ou os vândalos), o que significa ser como eles, e mais cla-
ros nos tornamos também para nós mesmos, tanto em termos
do que vemos de aparentemente remoto [quanto] de aparente-
mente familiar nos outros[…]. (Geertz, 2000, p. 77 [76])

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Capítulo VI

Relativismo e Antirrelativismo

Anti-antirrelativismo

Geertz entende que suas posições teóricas são tentativas de ul-


trapassar duas abordagens que, alternadamente, dividiram a his-
tória do pensamento ocidental, desde os tempos de Protágoras e
dos ataques de Platão aos sofistas: o objetivismo e o relativismo.
Para ele, tais orientações são formas opostas de responder ao
que Kroeber chama de “impulso centrífugo da antropologia”.
(Geertz, 1984, p. 49 [50])
O relativismo representa uma reação à procura objetiva de
universais transculturais, expressa, não poucas vezes, pela re-
núncia à teoria e por uma antropologia formada à base de mi-
niaturas etnográficas. O antirrelativismo é a rejeição do “relaxa-
mento moral” do tout comprendre c’est tout pardoner e de um
relativismo que põe demasiada “ênfase na diferença, na diversi-
dade, na estranheza, na descontinuidade, na incomensurabilida-
de, na singularidade e assim por diante”. (Geertz, 2000 [53]) Tal

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perspectiva favorece conceber a diferença cultural como expres-
são rasteira de uma realidade fundamental “além”, “embaixo”.
Num artigo de 1984, eloquentemente intitulado Anti-
Antirrelativismo, Geertz elabora um metadiscurso com o fim
não de defender, mas de exorcizar o temor generalizado do re-
lativismo: “[N]ão quero defender o relativismo, grito de guerra
do passado e afinal uma palavra desgastada, mas quero atacar
o antirrelativismo, que me parece estar em ampla ascensão e re-
presentar uma versão aerodinâmica de um erro antigo”. (Geertz,
2000, p. 42 [47]) Quanto à dupla negação, ele a emprega no
intuito de “rejeitar algo sem que com isso nos comprometamos
com aquilo que este algo rejeita”. (Geertz, 2000, p. 48 [48])
Recusando a “entropia espiritual” (Geertz, 2000, p. 61 [50]) do
antirrelativismo, “invocada, muitas vezes, exatamente por mui-
tos dos que tratam de imunizar as próprias convicções contra
o poder da diferença” (Geertz, 1999, p. 74-75), ele reforça o
caráter inquietante desse viés: “O que me preocupa e deve preo-
cupar-nos a todos nós são os machados que, com uma deter-
minação crescente, quase evangélica, estão ativamente afiados
com a ajuda delas”. (Geertz, 2000, p. 57 [55]) Considerando
mais preocupante a abordagem antirrelativista que “fornece
boa parte do ímpeto do neorracionalismo e do neonaturalismo”
(Geertz, 2000, p. 61 [63]), o autor julga muito menos segura
“a imagem de um mundo repleto de pessoas tão apaixonada-
mente encantadas com a cultura uma das outras, que aspirem
unicamente a celebrar umas às outras”, do que “a imagem de
um mundo repleto de pessoas que glorifiquem seus heróis e dia-
bolizem seus inimigos”. (Geertz, 2000 p. 84 [84]) Mesmo entre
os antropólogos, é muito mais difícil achar indivíduos que não
têm critérios de avaliação do que encontrar pessoas fechadas
em seus microcosmos pensados em termos naturais e universais:

208 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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Como já sugeri, eu mesmo acho o provincianismo a mais real
de todas as preocupações no que concerne ao que acontece
no mundo […]. A imagem de um vasto número de leitores de
antropologia vagando por aí com uma mentalidade tão cos-
mopolita a ponto de não terem opinião sobre o que é ou não é
verdadeiro, bom, ou belo, parece-me sobretudo uma fantasia.
Pode haver alguns niilistas autênticos por aí […], mas duvido
que muitos se tenham tornado niilistas por excessiva sensibili-
dade aos apelos de outras culturas; e pelo menos a maioria das
pessoas que eu encontro, leio ou sobre quem leio, assim como
eu mesmo, está totalmente comprometida com uma coisa ou
noutra, em geral provinciana. (Geertz, 2000, p. 46 [50-51])

O “gesto realmente crucial” (Geertz, 2000, p. 57 [60]) do


antirrelativismo se realiza em termos essencialistas e sobre pres-
supostas naturalidades, manipulando uma ciência-obsoleta, que
enxerga a diversidade de toda sociedade como “desvio”, e o des-
vio social “como afastamento de uma norma inerente […] e não
como uma esquisitice estatística”. (Geertz, 2000, p. 57 [60]) A
verdade e a necessidade do antirrelativismo são, naturalmente,
garantidas pela acusação aos seus opositores de impedirem a
possibilidade da ciência, da moral ou da política:

Sugerir que talvez não existam fundamentos ‘sólidos’ para os


juízos cognitivos, estéticos ou morais, ou, pelo menos, que são
duvidosos aqueles que nos são oferecidos, é ver-se logo acusado
de descrer na existência do mundo físico, de achar que as trivia-
lidades são tão boas quanto a poesia, de ver Hitler apenas como
um sujeito de gostos pouco convencionais, ou até, como me
aconteceu […], de ser acusado – com o perdão da palavra – de
não ter ‘nenhuma posição política’. (Geertz, 2000, p. 59 [48])

Roberto Malighetti 209

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Citando John Ladd (1982), Geertz (2000, p. 43 [48]) se opõe
às “definições absolutistas”, “formuladas pelos adversários do
relativismo” e construídas sobre a ideia de que o relativismo é
“a causa de todo mal”: “Tolerância inconsequente, intolerância
inconsequente, promiscuidade ideológica, monomania ideológi-
ca, hipocrisia igualitária, simplismo igualitário”. (Geertz, 1984,
p. 65 [53]) Rejeitam-se, pois, as posições fundacionistas que
anulam a diferença e a identificação da análise com a descoberta
do quod semper et bonus est:

O medo do relativismo espreitando em cada esquina como


obsessão hipnótica levou a uma situação em que a diversida-
de cultural no tempo e no espaço corresponde a uma série de
expressões, algumas sadias, outras não, de uma realidade sub-
jacente estável – a natureza essencial do homem –, e a antropo-
logia equivale a uma tentativa de discernir, através da bruma
de tais expressões, a substância dessa realidade. Um conceito
abrangente, esquemático e faminto de conteúdo, possível de se
amoldar a praticamente qualquer forma que apareça, wilso-
niana, lorenziana, freudiana, marxista, benthamiana ou aristo-
télica (‘um das características centrais da Natureza Humana’,
teria dito algum gênio anônimo, ‘é um judiciário autônomo’),
torna-se a base sobre a qual vem repousar definitivamente a
compreensão da conduta humana, do homicídio, do suicídio,
do estupro… [em suma,] da depreciação da cultura ocidental.
Alguns deuses [ex machina] parecem custar bem mais do que
valem. (Geertz, 2000, p. 58-59 [61])

Analisando as posições antirrelativistas da antropologia,


Geertz refuta-lhes as convenções, exemplificadas pelas palavras
de Jarvie (como citado em Geertz, 2000, p. 48 [52]), segundo
quem no relativismo proliferaria um niilismo paralisante que

210 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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inexoravelmente “nos desarma, desumaniza e incapacita para
entrarmos numa interação comunicativa, ou seja, deixa-nos in-
capazes de criticar interculturalmente e intersubculturalmente”.
Na mesma linha, rejeita as incômodas considerações “políti-
cas” reacionárias de Melford Spiro e as progressistas de George
Stocking. Para o primeiro, o relativismo “pode ser percebido
como uma espécie de neorracialismo”, utilizável “como pode-
roso instrumento de crítica cultural, com a consequente depre-
ciação da cultura ocidental […] e do homem ocidental, único
em matéria de competição, belicismo, intolerância para com os
desviantes, sexismo e assim por diante”. (Spiro, como citado em
Geertz, 2000, p. 57 [59]) Além disso, perseguiria a finalidade
altamente subversiva de “abolir a propriedade privada, a de-
sigualdade ou a agressão nas sociedades ocidentais e, claro, de
legitimar, ao mesmo tempo, a paranoia, a homossexualidade e
a poligamia”. (Spiro, como citado em Geertz, 2000, p. 57 [59-
60]) Geertz opõe-se, igualmente, às opiniões de Stocking (como
citado em Geertz, 2000, p. 49 [55]), que vê no relativismo uma
preocupante “espécie de neorracismo que justifica o estado tec-
noeconômico dos povos outrora colonizados”.
Geertz (2000, p. 61 [63]) traz também a exame “a excelente
coletânea de exortações antirrelativistas” organizada por Hollis
e Lukes (1982), cuja autorrepresentação discute o apelo contra
“a área da Razão em Perigo”. (Geertz, 2000, p. 61 [63]) Por um
lado, ele rechaça as posições de Horton sobre a existência de
um “núcleo cognitivo comum” e as de Ernest Gellner, fundado
na convicção de que a não universalidade das crenças dos “fi-
lhos de Galileu” não implica “o fato de que aquilo em que acre-
ditamos não é a ‘Única Visão Verdadeira’ e correta”. (Geertz,
2000, p. 61 [63]) Por outro, critica o trabalho de Dan Sperber,
“mais seguro de sua base racionalista que qualquer [daqueles]

Roberto Malighetti 211

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dois e com uma ‘Visão Verdadeira’ toda dele”, oposta às “meias
ideias”, às “semicrenças” e às “semiproposições” relativistas.
(Geertz, 2000, p. 62 [63-64])
Contrariando tais posições, Geertz recusa a necessidade da
relação entre relativismo e ceticismo. Ao contrário, exatamente
porque encara os fenômenos em sua especificidade, o relativis-
mo está em condições de emitir juízos morais, políticos ou cien-
tíficos de forma mais eficaz:

Visto por este prisma, o famoso relativismo de valor da antropo-


logia não é o pirronismo moral de que tantas vezes foi acusado,
mas uma expressão da confiança em que tentar ver o compor-
tamento humano em termos das forças que o animam é um ele-
mento essencial para compreendê-lo, e em que julgar sem com-
preender é uma ofensa à moral. (Geertz, 2000, p. 40 [46])

A objeção principal ao antirrelativismo consiste em seu em-


penho por apanhar o mundo sub specie aeternitatis, pondo “a
moral acima da cultura e o conhecimento acima de ambas”.
(Geertz, 2000, p. 55 [67]) Geertz descarta os grands récits dos
teóricos que “fantasiam flutuar” acima da realidade, “como se
estivessem num balão de Mongolfier – com medo de que descer
venha a expô-los ao tipo de detalhes intermináveis e conflitan-
tes que amiúde acabrunham os antropólogos”. (Geertz, 1999,
p. 23-24) São concepções que tendem a reduzir a diversidade
cultural em nome de valores absolutos e de linguagens objetivas
e neutras, monopolizadoras da verdade:

A estranha ideia de que a realidade tem uma linguagem em que


prefere ser descrita, de que sua própria natureza exige que fale-
mos dela sem espalhafato – pau é pau, pedra é pedra, rosa é rosa

212 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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–, sob pena de ilusão, invencionice e autoenfeitiçamento desvian-
tes, leva à ideia ainda mais estranha de que, perdido o literalismo,
também a realidade se perderá. (Geertz, 1988, p. 140 [183])

A refutação geertziana ao relativismo é bem articulada. De


um lado, declara-se em antítese com o que ele denomina “relati-
vismo ateórico” (Geertz, 1999, p. 8), baseado na impossibilidade
de elaborar teorias gerais, aprender a imaginação de outro povo
ou de outro período histórico e assumir posições morais e políti-
cas. De outro lado, se por relativismo entende-se a atração pelo
particular, a imagem investigativa da consciência e a negação de
métodos e padrões universais, então a antropologia de Geertz
pode ser entendida como uma forma sofisticada do relativismo
boasiano. Ele mesmo se situa, de forma “complexa”, no conjun-
to do relativismo, ao lado de Heródoto e Montaigne e em com-
panhia de Thomas Khun, Michel Foucault e Nelson Goodman.
(Geertz, 2000, p. 44 [49]) Em outras ocasiões, considera o rela-
tivismo como uma espécie de “neurose acadêmica” originada de
um impulso conatural à disciplina e à natureza dos seus objetos,
mais que das opções teóricas de Boas ou Herskovits:

Não foi a teoria antropológica como tal que fez nosso cam-
po de investigação parecer um argumento poderoso contra
o absolutismo no pensamento, na moral e no juízo estético,
mas sim os dados antropológicos: costumes, crânios, vestígios
arqueológicos e léxicos. A ideia de que foram Boas, Benedict
e Melville Herskovits, com a ajuda europeia de Westermark,
que infectaram o nosso campo com o vírus relativista, e de
que Kroeber, Kluckhohn e Redfield, com ajuda similar de Lévi-
Strauss, lutaram para nos livrar dele, não passa de um mito a
confundir toda essa discussão. Afinal, Montaigne pôde tirar

Roberto Malighetti 213

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conclusões relativistas, ou de aparência relativista, de ter ou-
vido falar que os caraíbas não usavam calças; não precisou ler
Patterns of Culture. (Geertz, 2000, p. 44 [49])

A essa vocação particularizante, a antropologia procurou


reagir, distanciando a pesquisa do interesse pelas peculiaridades,
em favor das abordagens generalizantes que pudessem creden-
ciar e legitimar a sua posição entre as outras ciências:

A principal razão pela qual os antropólogos fogem das par-


ticularidades culturais quando chegam à questão de definir o
homem, procurando refúgio em universais sem sangue, é que,
confrontados como o são pela enorme diversidade do compor-
tamento humano, eles são perseguidos pelo medo do histori-
cismo, de se perderem num torvelinho de relativismo cultural
tão convulsivo que poderá privá-los de qualquer apoio fixo.
Não que tenha havido oportunidade para tal receio: Patterns
of Culture, de Ruth Benedict […], com sua estranha conclusão
de que qualquer coisa que um grupo de pessoas se incline a
fazer é digno do respeito de qualquer outro grupo, é talvez o
exemplo mais relevante das posições canhestras que se pode
assumir quando alguém se entrega por completo àquilo que
Marc Bloch chamou “a excitação de aprender coisas singula-
res”. (Geertz, 1973, p. 44 [32])

A concepção moderna da ciência guiou a antropologia para


uma abordagem nomotética e classificatória. O instrumento hipo-
tético-dedutivo fornece um modelo de explicação que, apelando
a uma essência supra-histórica em cujas fronteiras reintroduz os
fenômenos humanos, subsume a particularidade e anula a diver-
sidade: “como no caso da ‘Natureza Humana’, a desconstrução
da alteridade é o preço da verdade”. (Geertz, 2000, p. 64 [65])

214 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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As tentativas fundadas sobre concepções da natureza humana
independente da cultura assumiram numerosas formas, segundo
Geertz: do ponto de vista racionalista, o estruturalismo e certas
interpretações do marxismo; do ponto de vista naturalista, a so-
ciobiologia e as perspectivas derivadas da psicanálise, da ecolo-
gia, da neurologia, da etologia. Não se trata de um único esforço,
massivo e coordenado, mas de uma multidão de provas diferentes:

Algumas invocam constâncias formais, geralmente chamadas


de universais cognitivos; algumas, constâncias de desenvolvi-
mento, geralmente chamadas de estágios cognitivos; outras,
constâncias operacionais, em geral chamadas de processos
cognitivos. Algumas são estruturalistas, algumas junguianas,
outras piagetianas, e outras buscam as últimas novidades do
MIT, dos Bell Laboratories, ou da Carnegie-Mellon. Todas
estão atrás de alguma coisa sólida: a Realidade alcançada, a
Razão salva do naufrágio. (Geertz, 2000, p. 60-61 [52])

O mesmo método comparativo – quer use o vocabulário do


evolucionismo, quer use o da ecologia cultural, o do materialis-
mo ou o do estruturalismo – representou um esforço científico
para explicar as diferenças cruciais entre os grupos humanos em
termos de uma linguagem objetiva que as pudesse transcender e
interpretar como variantes de um esquema universal. Essa estra-
tégia coloca-se num alto nível de generalidade e superficialida-
de. A comparabilidade entre fenômenos é diretamente propor-
cional ao nível de abstração e de generalização: o máximo grau
se acompanha de generalizações tão vastas que são quase vazias.
A história do pensamento antropológico mostra que a pesquisa
de “universais empíricos” ou de “pontos invariáveis de referên-
cia” não somente prejudicou a especificidade dos fenômenos,

Roberto Malighetti 215

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homologados no bojo de grandes classes, como foi também fon-
te de confusões e contradições:

O problema desse tipo de abordagem […] em que se extrai o


geral do particular e então se põe de lado o particular como
um mero detalhe, uma ilustração, uma imagem de fundo ou
uma qualificação, é que ela nos deixa impotentes diante da
real diferença que precisamos explorar. Ou a assimilamos em
um sistema de subtipos abstratos, que ameaça não ter fim […]
ou podemos considerá-la como leve cor local de uma forma
genérica mais profunda […], ou, ainda, simplesmente ignorá-
-la como um ruído ambiente […]. Isso, de fato, simplifica as
coisas. Mas é menos certo que ajude a esclarecê-las. (Geertz,
1995, p. 40 [40])

Para Geertz, a linha que separa o que se supõe natural, uni-


versal e constante no homem, do que, ao contrário, é conven-
cional, local e variável é tão difícil de identificar, que estabelecer
tal limite significa falsificar gravemente a situação humana ou,
pelo menos, interpretá-la mal. (Geertz, 1973, p. 36 [27]) Há um
conflito lógico entre afirmar que dois ou mais fenômenos são
universais e depois dar-lhes um conteúdo determinado. Se defi-
nirmos um fenômeno de forma genérica e indeterminada – se,
por exemplo, consideramos a religião como a mais importante
orientação do homem quanto à realidade – não podemos, ao
mesmo tempo, atribuir-lhe um conteúdo muito específico. Se
queremos que a generalização faça igual sentido para católicos e
anglicanos, ou para budistas e taoístas, precisamos defini-la em
termos tão genéricos que ela perderá qualquer valor e de nada
servirá para compreender o que deveria analisar:

216 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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Afinal de contas, em que nos ajuda dizer, como Herskovits, que
‘a moralidade é um universal, assim como apreciar a beleza e
alguns padrões de verdade’, se somos obrigados a acrescentar
na própria frase seguinte, como ele o faz, que ‘as muitas formas
que esses conceitos assumem não são mais que produtos da
experiência histórica particular das sociedades que os manifes-
taram’? (Geertz, 1973, p. 41 [30])

Geertz não nega a possibilidade de elaborar características


universais. O que ele pretende analisar é a força heurística des-
ses universais, de modo a permitirem a interpretação dos fenô-
menos específicos, e a sua capacidade de propor definições con-
cretas para questões gerais que não sejam “vagas tautologias”
ou “frágeis banalidades”:

O fato de que em todos os lugares as pessoas se juntam e pro-


criam filhos, têm algum sentido do que é meu e do que é teu,
e se protegem, de alguma forma, contra a chuva e o sol, não
é nem falso nem sem importância, sob alguns pontos de vista.
Todavia, isso pouco ajuda no traçar um retrato do homem que
seja uma parecença verdadeira e honesta semelhança, e não
uma espécie de caricatura de um ‘João Universal’ sem crenças e
credos. (Geertz, 1973, p. 40 [30])

Não se discute a possibilidade de efetuar comparações, em


termos de qualidade. Geertz supera as concepções que obrigam a
dicotomizar, por um lado, um relativismo que impossibilita com-
parar teorias, paradigmas, jogos linguísticos e, por outro, um ob-
jetivismo, fundado na transcrição em linguagem neutra a que
reconduzir e no qual inserir fenômenos e culturas diferentes. Ele
articula a possibilidade de compreender paradigmas incomensu-
ráveis, formas de vida e tradições, sem abdicar de compreender

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o que lhes seja específico e sem impor categorias e classes. O que
importa não é tanto comparar instituições ou comportamentos
“alheios” com os nossos, como se fosse “um fato natural”, mas
encontrar analogias e metáforas que permitam elaborar con-
frontos e comparações. A tarefa de compreender uma cultura
“estranha” consiste na elaboração fantástica de possibilidades
de comparação: “comparando coisas incomparáveis”. (Geertz,
1995, p. 49 [47]) Não comparações de padrões, mas de metáfo-
ras inesperadas: o estado como teatro ou a luta de galos como
um texto. O que é importante é utilizar a diversidade, “comparar
coisas não comparáveis”. (Geertz, 1983a, p. 233 [354])
Geertz trabalha ad hoc e ad interim, confrontando “histórias
de mil anos e massacres de três semanas”, conflitos internacio-
nais e ecologias municipais, a economia do arroz e das oliveiras,
a política da etnia e da religião, os mecanismos de funcionamen-
to da linguagem e da guerra, a geografia, o comércio, a arte e a
tecnologia. Ele pôde afirmar, num ensaio de 1995, que apren-
deu mais sobre a Indonésia indo trabalhar em Marrocos e sobre
o Marrocos indo para a Indonésia, e assegurar que elaborou
as próprias ideias nessa espécie de vai e vem de “contracasos”
opostos entre sociedades, histórias, culturas e estados. (Geertz,
1995, p. 28 [30]) A sua teoria sobre o poder e sobre o carisma
é o resultado da justaposição excêntrica entre fenômenos tão
diferentes como os cortejos reais dos tempos de Elizabeth Tudor,
os desfiles de Hayam Wuruk, rei-deus javanês, e as expedições
de Mulay Hasan, um comandante da fé marroquina. (Geertz,
1983a, p. 153-185 [182-219])
Esse enfoque transversal leva a considerar diferentes casos
comparativamente, interpretando uns em face a outros, como
comentários recíprocos, “interrogando-se sobre a presença
do termo ausente” em uma espécie de redescrição metafórica

218 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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e modeladora de “evidências e contraevidências” que permite
inaugurar novas vistas sobre a realidade, “como um físico de
novas partículas ou um filólogo de uma nova etimologia”:

Se os javaneses não são […] indiferentes a respeito da diferen-


ciação sexual […] e se os marroquinos […] não se mostram, de
forma ainda mais facilmente visível, tranquilamente desatentos
a respeito da posição e da reputação […] então a reflexão que
se origina, quase que de si mesma, é a que em um lugar a di-
ferença sexual se expressa e é entendida como uma variedade
doméstica do status e, no outro, as desigualdades em termos
de prestígio são assimiladas à imagem preconceituosa do sexo.
(Geertz, 1995, p. 48 [65])

Sob essa perspectiva semântica, as posições de Geertz se


associam às pesquisas da epistemologia contemporânea sobre
os procedimentos que agem na modelização. Interrogando-se
como modelos e metáforas, produzem significados e constroem
objetos das ciências. Várias concepções individuam procedimen-
tos analógicos e metafóricos à base das funções exibitivas dos
modelos: tanto os modelos como as metáforas são organizações
de sentido que levam a encontrar referentes inesperados, formas
de construção da referência que agem nas linguagens científicas,
sobretudo no momento da descoberta de novos objetos e de
mudança de teoria. Sob a ótica da relação com a referência, o
modelo aparece como a transferência da virtude construtiva da
metáfora em textos em que prevalece o problema da cognoscivi-
dade: é uma espécie de metáfora alargada (Black, 1962) que tem
função construtiva da referência. (Borutti, 1999, p. 113-147)

Roberto Malighetti 219

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O saber local

Em sua tentativa por tomar a diversidade como objeto de des-


crição analítica e de reflexão interpretativa, a etnografia geert-
ziana não constitui ameaça à integridade moral e nem a tudo
o que os cientistas poderiam descobrir sobre as constantes dos
processos da vida humana. Qualificando a própria perspectiva
científica, Geertz sustenta que a essência do que significa ser
humano revela-se com maior clareza nos traços culturais especí-
ficos do que nos universais:

[P]ode ser que nas particularidades culturais dos povos – nas


suas esquisitices – sejam encontradas algumas das revelações
mais instrutivas sobre o que é ser genericamente humano. E a
principal contribuição da ciência da antropologia à construção
– ou reconstrução – de um conceito do homem pode então
repousar no fato de nos mostrar como encontrá-las. (Geertz,
1973, p. 43 [32])

Criticando a opinião segundo a qual “se algo não está ali-


cerçado em toda parte, nada pode estar alicerçado em lugar al-
gum” (Geertz, 1984, p. 61 [50]), o autor elaborou suas próprias
generalizações à base de análises microssociais e contextuais,
utilizando os contrastes e a “terrificante complexidade” do par-
ticular, do circunstanciado e do concreto. Assim como nas ciên-
cias “duras” as geometrias não euclidianas ensinam muito mais
sobre o espaço que as concepções objetivantes, e a física das
partículas mostra maiores condições de revelar a estrutura do
universo do que pode fazê-lo a física mecânica, da mesma forma
Geertz destaca a importância “de aprender coisas singulares”:

220 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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A noção de que, a menos que um fenômeno cultural seja em-
piricamente universal, ele não pode refletir o que quer que seja
sobre a natureza do homem é tão lógica como a noção de que,
porque uma anemia celular não é, felizmente, universal, ela
nada nos pode dizer sobre os processos genéticos humanos. O
ponto crítico em ciência não é se os fenômenos são empirica-
mente comuns – do contrário, por que Becquerel estaria tão in-
teressado no comportamento peculiar do urânio? – mas se eles
podem ser levados a revelar os processos naturais duradouros
subjacentes neles. (Geertz, 1973, p. 44 [32])

Não é na comparação das semelhanças que podemos apreen-


der a especificidade dos fenômenos, mas no confronto das dife-
renças e das particularidades, procurando as relações sistemáticas
entre fenômenos diferentes, mais que as identidades substanciais
entre fenômenos assemelhados:

Examinar dragões, não domesticá-los ou abominá-los, nem


afogá-los em barris de teoria, é tudo em que consiste a antro-
pologia. Pelo menos, é no que consiste como a entendo eu, que
não sou niilista nem um subjetivista, e que, como vocês podem
ver, tenho opiniões bastante firmes sobre o que é real e o que
não o é. (Geertz, 1984, p. 63-64 [65])

Relacionando dinâmicas de diferentes contextos, Java, Bali,


Celebes, Sumatra, Indonésia e Marrocos, Geertz enfrenta pro-
blemas de cunho científico geral, analisando comparativamente
fenômenos como a religião e as transformações socioculturais
e políticas. A sua orientação ideográfica supera o objetivismo
e certa maneira de entender o relativismo, concebendo a natu-
reza humana em termos interdependentes em relação à cultura:
“Se queremos descobrir em que consiste o homem, podemos

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achá-lo apenas no que são os homens: e estes são, sobretudo,
diferentes”. Compreendendo essa verdade, “sua amplitude, sua
natureza, suas bases e suas implicações”, ele procura construir
uma concepção da natureza humana “que tenha substância e
verdade, mais que uma sombra estatística e menos de um sonho
primitivista” (Geertz, 1983a, p. 94):

Resumindo, temos que descer aos detalhes, além das etiquetas


enganadoras, além dos tipos metafísicos, além das similarida-
des vazias, para apreender corretamente o caráter essencial não
apenas das várias culturas, mas também dos vários tipos de in-
divíduos dentro de cada cultura, se é que desejamos encontrar
a humanidade face a face. Nessa área, o caminho para o ge-
ral, para as simplicidades reveladoras da ciência, segue através
uma preocupação com o particular, o circunstancial, o concre-
to, mas uma preocupação organizada e dirigida em termos da
espécie de análises teóricas sobre as quais toquei – as análises
da evolução física, do funcionamento do sistema nervoso, da
organização social, do processo psicológico, da padronização
cultural e assim por diante – e, muito especialmente, em termos
da influência mútua entre eles. Isso quer dizer que o caminho
segue através de uma complexidade terrificante, como qual-
quer expedição genuína. (Geertz, 1973, p. 53-54 [38])

O pensamento hermenêutico é definido como um modo de


dar sentido “a coisas particulares contra o pano de fundo de
outras coisas particulares, com isso aprofundando a particula-
ridade de ambas” (Geertz, 1983a, p. 232 [128]) e a ciência se
identifica “por sua capacidade de encontrar as peculiaridades
e delas extrair proposições gerais”. (Geertz, 1973, p. 51-52)
Observando que Cromwell era “o inglês mais típico do seu tem-
po precisamente porque era o mais esquisito” (Geertz, 1973, p.

222 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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43 [32]), Geertz defende que não há contradição entre a com-
preensão teórica geral e a compreensão circunstanciada, entre a
visão sinóptica e a refinada pesquisa dos particulares. Antes, é a
extensão das análises a contextos mais amplos que recomenda o
estudo das particularidades à atenção geral:

A dificuldade disso é imensa […]. Compreender aquilo que, de


uma dada maneira ou forma, nos é estranho e tende a continuar
a sê-lo, sem aparar suas arestas com vagos murmúrios sobre a
humanidade comum, sem desarmá-lo com o indiferentismo do
‘a cada cabeça uma sentença’, e sem descartá-lo como encanta-
dor, adorável até, mas sem importância, é uma habilidade que
temos de aprender duramente e, depois de havê-la aprendido,
sempre de maneira muito imperfeita, temos de trabalhar conti-
nuamente para manter viva. (Geertz, 2000, p. 87 [84-85])

Por esse motivo, a parte preponderante da produção teó-


rica de Geertz não é dedicada ao debate teórico abstrato, mas
diz respeito ao seu trabalho de campo, endossando a aversão
boasina à sistematização. Mesmo quando se empenha numa
aprofundada discussão teórica, a argumentação desce sempre às
particularidades etnográficas. À vista de seu desinteresse por sis-
temas teóricos unificantes e de sua aversão a macroteorias que
orientem a pesquisa, o lugar de vitalidade da análise geertziana
é a prática etnográfica. Referindo-se à própria experiência, em
várias ocasiões ele reconhece que “apenas as pressões do traba-
lho de campo” foram capazes de “pôr em ordem” o seu “atro-
pelo de ideias”: “Ao viajar para algum lugar diferente e distante,
e ali permanecer por algum tempo, a pessoa poderia tomar as
decisões. Ou, talvez, deixar que as decisões fossem tomadas por
ela”. (Geertz, 1995, p. 115 [96]) Os seus relatos vêm da – e vol-
tam à – prática e da análise particularizante:

Roberto Malighetti 223

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As principais contribuições teóricas não estão apenas nos es-
tudos específicos – o que é verdade em praticamente qualquer
área –, mas é muito difícil abstraí-las desses estudos e integrá-
-las em qualquer coisa que se poderia chamar ‘teoria cultural’
como tal. As formulações teóricas pairam tão baixo sobre as
interpretações que governam, que não fazem muito sentido ou
têm muito interesse fora delas. Isso acontece não porque não
são gerais (se não são gerais, não são teóricas), mas porque,
afirmadas independentemente de suas aplicações, elas parecem
comuns ou vazias. (Geertz, 1973, p. 25 [18])

O antropólogo geertziano aproxima-se de modo característico


às interpretações e às análises mais abstratas originadas de conhe-
cimentos muito extensos sobre pautas extremamente pequenas.
No “concreto”, no “particular”, no “microscópico”, ele depara
verdades gerais que podem escapar ao “grandioso”: a sabedoria –
como reza um provérbio africano citado por Geertz (1988, p. 167
[249]) – nasce de dentro de um formigueiro. O resultado é uma
antropologia interpretativa nook-and-cranny, construída sobre
casos particulares (Geertz, Geertz, & Rosen, 1979, p. 1-2):

Se a interpretação antropológica está construindo uma leitura


do que acontece, então divorciá-la do que acontece – do que,
nessa ocasião ou naquele lugar, pessoas específicas dizem, o
que elas fazem, o que é feito a elas, a partir de todo o vasto
negócio do mundo – é divorciá-la das suas aplicações e torná-la
vazia. (Geertz, 1973, p. 18 [13])

Geertz enfrentou as mesmas grandes realidades de que eco-


nomistas, sociólogos e estudiosos de ciências políticas se ocupa-
ram em termos “totalizantes” e investigou o que chama “palavras
altissonantes que assustam a todos”, como “Poder, Mudança,

224 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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Fé, Opressão, Trabalho, Paixão, Autoridade, Beleza, Violência,
Amor, Prestígio”, retirando-lhes a maiúscula e examinando-as
em contextos obscuros e remotos. (Geertz, 1973, p. 20 [15])
A antropologia geertziana reconhece que a grande variação
natural das formas culturais não só constitui o grande recurso
da disciplina, mas é também o terreno de seu dilema teórico
mais profundo. (Geertz, 1973, p. 20-23 [15-17]) A sua aborda-
gem procura atingir generalizações fundadas sobre análises par-
ticularizantes, sem subsumir e anular o particular no conjunto
de grandes classes homogêneas:

O motivo por que essas descrições alongadas sobre distantes


incursões aos carneiros têm uma relevância geral […] está no
fato de fornecerem à mente sociológica material suficiente para
alimentar. O que é importante nos achados do antropólogo é
sua especificidade complexa, sua circunstancialidade. É justa-
mente com essa espécie de material produzido por um traba-
lho de campo quase obsessivo de peneiramento, a longo prazo,
principalmente (embora não exclusivamente) qualitativo, alta-
mente participante e realizado em contextos confinados, que os
megaconceitos com os quais se aflige a ciência social contempo-
rânea – legitim[idade], modernização, integração, conflito, ca-
risma, estrutura… significado – podem adquirir toda a espécie
de atualidade sensível que possibilita pensar não apenas realista
e concretamente sobre eles, mas, o que é mais importante, cria-
tiva e imaginativamente com eles. (Geertz, 1973, p. 23 [16-17])

Em antropologia, o problema da relação entre teoria geral e


casos particulares foi enfrentado, segundo Geertz (1973, p. 20-23
[15-17]), por dois pontos de vista que ele nega: o “modelo ‘micro-
cósmico’”, do tipo “o paraíso num grão de areia”, e o “modelo
‘experimento natural’”, pelo qual um lugar distante se torna um

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“caso-de-teste”. (Geertz, 1973, p. 20-23 [15-17]) Por um lado, a
ideia de que se pode achar a essência das sociedades nacionais,
das civilizações, das grandes religiões, resumida e simplificada
nas povoações e lugarejos tidos por “típicos”, é considerada por
ele uma “evidente tolice” que poderá afagar “apenas a quem es-
teve no campo por demasiado tempo”. “Jonesville-é-a-América”,
escrito em ponto pequeno (ou “A-América-é-Jonesville” escrito
em ponto grande), é um erro tão óbvio, segundo Geertz (1976, p.
23 [15]), que a única coisa a exigir explicação é como as pessoas
acreditavam nisso e ainda esperavam que os outros fizessem o
mesmo. Nas aldeias e lugarejozinhos, nada mais se encontra que
a vida das aldeias e dos lugarejozinhos: “o lugar do estudo não é
o objeto do estudo. Os antropólogos não estudam as aldeias […]
eles estudam nas aldeias”. (Geertz, 1973, p. 16 [21-22], grifos do
autor) Por outro, a noção de “laboratório natural” é inadequada
não só porque a analogia é falsa por se tratar de um laborató-
rio em que nenhum dos parâmetros é manipulável, mas também
porque levaria à ideia primitivista de que os dados derivados dos
estudos etnográficos são mais elementares, puros ou fundamen-
tais (estruturas elementares da religião ou do parentesco) do que
os dados obtidos com outros tipos de pesquisa social. (Geertz,
1973, p. 29 [16]) Ao contrário, Geertz (1973, p. 23 [16], grifos
do autor) sustenta que:

os achados etnográficos não são privilegiados, apenas particu-


lares: um outro país do qual se ouve falar. Vê-los como qual-
quer coisa mais (ou qualquer coisa menos) do que isso distorce
a ambos e às suas implicações para a teoria social, muito mais
profundas que o simples primitivismo.

226 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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Ambos esses modelos elaborados pela antropologia para justi-
ficar o deslocamento de miniaturas etnográficas em visões gerais,
segundo Geertz (1973, p. 23 [17]), contribuíram para minar a cre-
dibilidade na disciplina muito mais do que o fizeram as críticas:

O problema metodológico que a natureza microscópica da et-


nografia apresenta é tanto real como crítico. Mas ele não será
resolvido observando uma localidade remota como o mundo
numa chávena ou como o equivalente sociólogo de uma câma-
ra de nuvens. Deverá ser solucionado – ou tentar sê-lo de qual-
quer maneira – através da compreensão de que as ações sociais
são comentários a respeito de mais do que elas mesmas; de que,
de onde vem uma interpretação não determina para onde ela
poderá ser impelida a ir. Fatos pequenos podem relacionar-se a
grandes temas, as piscadelas à epistemologia, ou incursões aos
carneiros à revolução, por que eles são levados a isso. (Geertz,
1973, p. 23 [17])

Tanto a generalização como a comparação são importantes


no projeto teórico de Geertz. A característica que as contradistin-
gue não é tanto a codificação de regularidades abstratas “através
dos casos”, como são as “generalizações no seu interior”. A sua
abordagem “densa” é explicada em uma metáfora clínica:

Generalizar dentro dos casos é chamado habitualmente, pelo


menos em medicina e em psicologia profunda, uma inferência
clínica. Em vez de começar com um conjunto de observações
e tentar subordiná-las a uma lei ordenadora, essa inferência
começa com um conjunto de significantes (presumíveis) e tenta
enquadrá-los de forma inteligível. As medidas são calculadas
para as previsões teóricas, mas os sintomas (mesmo quando
mensurados) são escrutinados em busca de peculiaridades teó-
ricas – isto é, eles são diagnosticados. No estudo da cultura,

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os significantes não são sintomas ou conjuntos de sintomas,
mas atos simbólicos ou conjuntos de atos simbólicos e o ob-
jetivo não é a terapia, mas a análise do discurso social. Mas a
maneira pela qual a teoria é usada – investigar a importância
não aparente das coisas – é a mesma. (Geertz, 1973, p. 26 [18])

A regra metodológica não parte da observação para depois


submetê-la a leis. Em vez disso, procura inserir um conjunto de
sintomas e hipóteses num contexto interpretativo que lhes possa
dar significado. O objetivo consiste na elaboração de um “novo
diagnóstico”, uma ciência que determine o significado das coi-
sas pela vida que as rodeia. Sem elaborar uma “nova criptogra-
fia” classificadora (Geertz, 1983a, p. 93 [181]), reitera que essa
ciência deveria ir além do estudo dos sinais como meio de comu-
nicação e tornar-se uma semiótica que os considere “modos de
pensar” ou “idiomas a interpretar” em seu contexto:

Somente pequenos voos de raciocínio tendem a ser efetivos em


antropologia; voos mais longos tendem a se perder em sonhos
lógicos, em embrutecimentos acadêmicos com simetria formal.
O ponto global da abordagem semiótica da cultura é, como
já disse, auxiliar-nos a ganhar acesso ao mundo conceptual
no qual vivem os nossos sujeitos, de forma a podermos, num
sentido um tanto mais amplo, conversar com eles. A tensão
entre o obstáculo dessa necessidade de penetrar num univer-
so não-familiar de ação simbólica e as exigências do avanço
técnico na teoria da cultura, entre a necessidade de apreender
e a necessidade de analisar, é, em consequência, tanto necessa-
riamente grande como basicamente irremovível. Com efeito,
quanto mais longe vai o desenvolvimento teórico, mais pro-
funda se torna a tensão. Essa é a primeira condição para a
teoria cultural: não é seu próprio dono. Como não se pode
desligar das imediações que a descrição minuciosa apresenta,

228 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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sua liberdade de modelar-se em termos de uma lógica interna é
muito limitada. Qualquer generalidade que consegue alcançar
surge da delicadeza de suas distinções, não da amplidão das
suas abstrações. (Geertz, 1973, p. 24-25 [17])

Geertz não utiliza abordagens indutivas ou dedutivas. A


indução oferece uma extensão apenas repetitiva e quantitati-
va do saber, sendo uma simples forma de catalogar exemplos
e “uma investigação de signos em abstrato”. (Geertz, 1988, p.
142 [186]) Com a dedução não há acréscimo, mas apenas expli-
citação de dados colhidos. A perspectiva geertziana parece, ao
invés, aproximar-se ao princípio interpretativo da abdução de
Pierce, que elabora o aumento de saber por meio de uma relação
icônica e simbolizada entre as premissas e as conclusões; como
as modelizações metafóricas, a hipótese oferece um modelo que
organiza os fenômenos:

Compreender uma forma de vida […] e convencer a opinião


alheia de que realmente isso foi feito, envolve mais do que a re-
união de pormenores reveladores ou a imposição de narrativas
genéricas. Trata-se de juntar as imagens e os fundamentos, a
ocasião passageira e a história alongada, em panoramas coin-
cidentes. (Geertz, 1988, p. 119 [48])

A teoria geertziana não é o resultado de generalizações abs-


tratas em classes formais de objetos, mas se faz pelo contraste
de semelhanças e diferenças. A abordagem é wittgensteiniana,
exemplificada pela crítica às definições do conceito de jogo à
base de uma única definição que englobe todos os jogos, ex-
pressando-lhes a essência. Ao contrário, partindo do conceito
de “semelhanças e diferenças de família”, Wittgenstein (1953)
observa e descreve diversos jogos, elaborando um conceito

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geral de jogo, aberto e relativo, fundado sobre complicadas re-
des sobrepostas de correspondências e diversidades. De forma
análoga, Geertz nega a possibilidade de elaborar uma definição
“essencial” dos fenômenos culturais, opondo-se ao preconcei-
to segundo o qual as características (“as forças prístinas”, nas
palavras de Theodore Schwartz) que os homens têm em co-
mum são mais reveladoras de nossa forma de pensar que suas
“versões” e “visões”, como diz Nelson Goodman, construídas
socialmente em determinado lugar e tempo. (Geertz, 1983a, p.
154 [231]) O método geertziano procura não permanecer fe-
chado em seus próprios horizontes, incorporando as diferenças
culturais numa concepção classificatória do homem, sem preju-
dicar a possibilidade de comparações à base de um relativismo
extremado: “As diferenças certamente são muito mais profun-
das do que um humanismo do tipo ‘homens são homens’ se
permite, e as semelhanças são demasiado substanciais para se-
rem resolvidas por um relativismo fácil do tipo ‘outros-animais,
outros-costumes’”. (Geertz, 1983a, p. 54 [65])
O esforço interpretativo utiliza ideias gerais “como um meio
mais ou menos fácil de entender as instituições sociais e as for-
mulações culturais que as cercam e lhes dão sentido” (Geertz,
1983a, p. 187 [280]): as generalizações geertzianas “podem
ser probabilísticas, ter exceções ou contradições sem nenhuma
fatalidade, ou ser apenas aproximações ceteris paribus, ‘via de
regra’, que têm uma utilidade instrumental”. (Geertz, 2000, p.
134 [125]) A abordagem se fundamenta na dinâmica do círculo
hermenêutico: as teorias são guias para irmos ao encontro dos
fatos, os quais, por sua vez, modificam a teoria num processo
generalizante, constantemente aberto:

230 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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O antropólogo, ou no mínimo alguém que deseja tornar com-
plexas as suas geringonças, jamais dando por encerrado o seu
trabalho, é um consertador maníaco que não consegue direcio-
nar seus talentos: um Tom Swift de Richard Wilbur, criando
dirigíveis, sob um tempo estável, no fundo do quintal. (Geertz,
1995, p. 20 [24])

Chega-se à descrição densa quando se consegue coordenar


as partes com o todo. Geertz afirma que é necessário escolher
aquilo que chama atenção em uma cultura e depois recheá-lo,
“densamente”, com detalhes e elaborações teóricas, até chegar
a compreender a natureza da sociedade: “Em etnografia o dever
da teoria é fornecer um vocabulário no qual possa ser expresso
o que o ato simbólico tem a dizer sobre ele mesmo – isto é so-
bre o papel da cultura na vida humana”. (Geertz, 1973, p. 27
[19]) Trata-se de elaborar categorias voltadas a entender o que
o agente, do próprio ponto de vista, deseja significar com as
próprias ações:

Tal visão de como a teoria funciona numa ciência interpretati-


va sugere que a diferença, relativa em qualquer caso, que surge
nas ciências experimentais ou observacionais entre “descrição”
e ‘explicação’, aqui aparece como sendo, de forma ainda mais
relativa, entre ‘inscrição’ (‘descrição densa’) e ‘especificação’
(‘diagnose’) – entre anotar o significado que as ações sociais
particulares têm para os atores cujas ações elas são, e afirmar,
tão explicitamente quanto nos for possível, o que o conheci-
mento assim atingido demonstra sobre a sociedade na qual é
encontrado e, além disso, sobre a vida social como tal. Nossa
dupla tarefa é descobrir as estruturas conceptuais que infor-
mam os atos dos nossos sujeitos, o ‘dito’ no discurso social,
e construir um sistema de análise em cujos termos o que é

Roberto Malighetti 231

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genérico a essas estruturas, o que pertence a elas porque são o
que são, se destacam contra outros determinantes do compor-
tamento humano. (Geertz, 1973, p. 27 [19])

O autor propõe uma modalidade de generalização que cor-


responde ao ideal típico. Suas observações quanto aos cons-
trutos implicados na experiência dos atores e aquilo que é de
segunda ordem, desenvolvido pelos analistas, revelam o uso e
o significado que atribui ao conceito weberiano. Como Weber,
Geertz rejeita a pesquisa de leis e regularidades positivas e pro-
põe que a antropologia cultural se interesse por elucidar os
princípios gerais por meio de uma sólida condensação de fatos
particulares e minuciosas descrições que incorporem o universal
mediante o particular:

O uso de categorias críticas no caso de eventos sociais e de


categorias sociológicas para estruturas simbólicas não é uma
forma primitiva de erro filosófico, nem mais uma simples con-
fusão entre a arte e a vida. É o método mais adequado para um
estudo cujo objetivo é averiguar como o fato maciço da parti-
cularidade cultural e histórica se harmoniza com o fato igual-
mente maciço da acessibilidade através de culturas ou através
de períodos históricos distintos – ou seja, como aquilo que é
profundamente diferente pode ser profundamente entendido,
sem se tornar menos diferente; ou ainda, de que maneira o
extremamente distante pode tornar-se extremamente próximo,
sem estar menos distante. (Geertz, 1983a, p. 48 [75-76])

Weber concebe a generalização em termos diferentes do


cálculo estatístico das regularidades ou da subsunção dos fa-
tos a leis determinísticas, segundo uma espécie de física social.
Abstrai, pelo contrário, as premissas que fundamentam a ação,

232 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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elaborando um modelo idealizado que se qualifica pela sua ne-
cessária diferença da realidade empírica. Ele elabora o tipo ideal
para apreender o tipo real, o geral para compreender o particu-
lar, sem fazer um reduzir-se ao outro.
Da mesma forma que as formulações de caráter típico-ideal,
as generalizações geertzianas são resultado de um procedimento
de abstração que, isolando alguns elementos na complexidade
do dado empírico, os coordena num quadro coerente que de-
pois volta a ser aplicado aos pequenos fatos. O resultado de
tal procedimento se diferencia da realidade, por um lado, e não
pode ser permutado com a realidade. Por outro lado, serve ins-
trumentalmente para explicar os fenômenos em sua individua-
lidade, tornando-se um critério de comparação ao qual deve ser
referido o dado empírico, um conceito-limite ideal que fornece
o esquema conceitual orientador para a pesquisa:

À parte alguns detalhes de orientação, ligados a assuntos mais


de apoio, é dessa maneira que a teoria funciona nos ensaios
aqui colecionados. Um repertório de conceitos muito gerais,
feitos-na-academia, e sistemas de conceitos – ‘integração’,
‘racionalização’, ‘símbolo’, ‘ideologia’, ‘ethos’, ‘revolução’,
‘identidade’, ‘metáfora’, ‘estrutura’, ‘ritual’, ‘visão do mundo’,
‘ator’, ‘função’, ‘sagrado’ e, naturalmente, a própria ‘cultura’ –
se entrelaçam no corpo da etnografia de descrição minuciosa
na esperança de tornar cientificamente eloquentes as simples
ocorrências. O objetivo é tirar grandes conclusões a partir de
fatos pequenos, mas densamente entrelaçados; apoiar amplas
afirmativas sobre o papel da cultura na construção da vida cole-
tiva empenhando-as exatamente em especificações complexas.
Assim, não é apenas a interpretação que refaz todo o cami-
nho até o nível observacional imediato: o mesmo acontece com
a teoria da qual depende conceptualmente tal interpretação.
(Geertz, 1973, p. 27-28 [19-20])

Roberto Malighetti 233

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Geertz reconhece que o número de modelos geralmente acei-
tos por uma sociedade, se bem que muito vasto, é, todavia, li-
mitado, pelo fato de que determinados tipos são recorrentes de
uma sociedade a outra. Esses modelos, que ele chama de “neces-
sidades orientadoras difusas”, são usados para a comparação
especificada dos fenômenos. Nesse sentido, ele escreveu histó-
rias culturais e econômicas usando termos muito compreensí-
veis e gerais, movimentando-se do detalhe etnográfico a teorias
sobre a sociedade inteira e a cultura. No estudo Pessoa, tempo e
conduta em Bali (Geertz, 1966),1 trabalha sobre estruturas sim-
bólicas em cujos limites as pessoas são percebidas, utilizando a
caracterização dos seres humanos individuais, difusa entre qua-
se todas as culturas, para recompor a forma particular balinesa
de interdependência pessoal, tempo e conduta na forma como
se organiza a experiência humana. De modo análogo, no estudo
“O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa”
(Geertz, 1983a, p. 167-234 [249-356]), aproxima três tipos de
sensibilidade jurídica – islâmica, indiana e malesa – ao sistema
ocidental, não para anatomizar códigos, mas para “evocar con-
cepções” e clarificar o problema da relação entre fato e direito.
No texto Negara (Geertz, 1980),2 analisa o Estado-teatro balinês
como uma crítica à forma ocidental de fazer política e, ao traçar
a específica forma simbólico-teatral da política balinesa, clarifi-
ca-lhe as dimensões gerais. Para sustentar que o senso comum é
um sistema cultural, Geertz (1983a, p. 73-93 [111-141]) catalo-
ga o conteúdo heterogêneo – seja entre sociedades diversas, seja
no interior da mesma sociedade – sem esboçar estruturas lógicas

1
Em português, ver “Pessoa, tempo e conduta em Bali”, parte V de A interpretação das culturas.
(N. T.)
2
Em português, ver Negara: o Estado-teatro no século XIX. (N. T.)

234 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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que o subsumam. Em vez disso, procede wittgensteinianamen-
te por “desvios particulares” e “estradas vicinais”, construindo
predicados metafóricos que iluminem o sentido. Não havendo
generalizações ao longo dos casos, mas apenas em seu interior,
a elaboração teórica procede “aos arrancos”, percorrendo um
caminho tortuoso, cheio de desvios e encruzilhadas:

A partir daí, segue-se uma peculiaridade no caminho: como


simples tema de fato empírico, nosso conhecimento da cultu-
ra… culturas… uma cultura… cresce aos arrancos. Em vez de
seguir uma curva ascendente de achados cumulativos, a análi-
se cultural separa-se numa sequência desconexa e, no entanto,
coerente de incursões cada vez mais audaciosas. […] Cada aná-
lise cultural séria começa com um desvio inicial e termina onde
consegue chegar antes de exaurir seu impulso intelectual. […]
o movimento não parte de teoremas já comprovados para ou-
tros recém-provados, ele parte do tateio desajeitado pela com-
preensão mais elementar para uma alegação comprovada de
que alguém a alcançou e a superou. (Geertz, 1973, p. 25 [18])

O conflito das interpretações

Desenvolvendo-se no espaço criativo que se abre a partir da na-


tureza projetiva do conhecimento e da polissemia do signo e do
significado, a interpretação apresenta um problema de verifi-
cação e escolha entre a multiplicidade de teorias, paradigmas e
programas de pesquisa, exigindo enfrentar o que Paul Ricoeur
(1969) denominou “o conflito das interpretações”.
Em face às correntes contemporâneas da filosofia pós-empi-
rista, Geertz (1973, p. 54-55 [12]) prefere falar de avaliação em

Roberto Malighetti 235

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vez de verificação, aderindo a uma lógica argumentativa proba-
bilística e de incerteza. A propósito do título de seu trabalho de
1995, ele ilustra o problema epistemológico inaugurado pelas
abordagens pós-positivistas:

‘Atrás dos fatos’ é um duplo trocadilho, dois giros tropológicos


de um significado literal. No sentido literal, significa procurar
os fatos, o que eu, naturalmente, ‘de fato’ tenho feito. No pri-
meiro giro, quer dizer depois, interpretação posterior, a princi-
pal forma (talvez a única maneira) de se chegar a um acordo
sobre os tipos de fenômenos vividos-para-frente e compreendi-
dos-para-trás, com os quais os antropólogos estão condenados
a lidar. No segundo (e ainda mais problemático) giro, refere-se
à crítica pós-positivista ao realismo empírico, o abandono das
simples teorias correspondentistas da verdade e do conheci-
mento, que fazem do próprio termo ‘fato’ uma questão delica-
da. (Geertz, 1995, p. 167-168 [138], grifo do autor)

A dinâmica do círculo hermenêutico exclui a possibilidade


de verificações conclusivas, substituindo a verdade como rela-
ção, representativa e nomológica, com o dado, pela verdade do
ser histórico e linguístico. A teoria geertziana adere ao conceito
que Rorty (1980, p. 377) recupera de Lessing e Kierkegaard, de
tender à verdade mais que procurar a totalidade da verdade.
Partindo de autores como Quine, Sellar, Wittggenstein e James,
Rorty (1980, p. 10) define tal concepção da verdade como
“aquilo que para nós tem melhor crédito”, em vez de “uma re-
presentação acurada da realidade”.
Se a teoria é uma hipótese que organiza os fatos numa visão,
não é correto falar de verificação ou de falseabilidade, nem é
possível separar a explicação dos dados, considerando a etnogra-
fia como prova da teoria e a descrição como prova da abstração.

236 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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Referir o maior número possível de traços culturais específicos
em nome da verossimilhança não pode solucionar as dúvidas re-
lativas às necessidades de optar entre diferentes modalidades de
compreensão da realidade. (Geertz, 1988, p. 41 [4]) Configurar
a relação entre a teoria e os seus referentes exclui, também, a
hipótese de uma teoria observativa pura que possa controlar ex-
perimentalmente as outras teorias: uma não pode falsear outra,
porque se trata de duas organizações heterogêneas e incomen-
suráveis de dados de observação. Como afirma Vattino (1983,
grifo do autor) na introdução a Verdade e método:

Apenas se se concebe a interpretação como a apropriação, por


parte do sujeito, de um objeto originariamente estranho, pode-
-se pensar a experiência hermenêutica como algo que se conclui
numa transparência final, sem resíduos, que equivale a uma to-
tal “disponibilização” do objeto. Porém, se a coisa a interpretar
não é originariamente estranha, mas pertence ao intérprete na
medida em que este lhe pertence (à história que esta passa a
construir), não será mais possível objetivá-la plenamente, e o
conhecimento que se alcançar deverá entender-se como um ato
de vida ainda e sempre aberto a ulteriores desenvolvimentos.

O que é importante na reflexão geertziana não é tanto o


grau de proximidade ao valor de verdade quanto o poder on-
tológico da configuração para mostrar, dando-lhe uma forma,
um mundo possível de fenômenos. Como diz Ricoeur (1983), a
perspectiva construtivista considera o ser não tanto sob a forma
positiva do dado quanto sob a forma do poder-ser. O problema
epistemológico é reformulado fora do modelo cientificista da
objetividade – “as visões divinas” (Geertz, 2000, p. 152 [138]) –
a favor de experiências gadamerianas “extrametódicas” e, por-
tanto, laicas, da verdade.

Roberto Malighetti 237

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A etnografia representa um acordo temporário sobre o sig-
nificado entre o antropólogo e seus interlocutores, numa relação
contingente e transitória que inevitavelmente produz uma com-
preensão parcial e essencialmente contestável. Configura-se como
produto de uma negociação com as perspectivas que o analista
atribuiu aos seus interlocutores. É elaborada no interior de espaços
negociais em contínua efervescência, inscritos pelo antropólogo na
história dos atores sociais e na temporalidade que o ligou a eles:

Escapar às urgências situacionais do conhecimento etnográfico,


das reflexões e ocasiões em que se está tentando imiscuir, não é
mais viável que escapar aos seus limites temporais, e talvez seja
ainda mais pernicioso fingir que se o faz. (Geertz, 1995, p. 17 [22])

Sob essa perspectiva, a finalidade da antropologia, diz Geertz,


valendo-se de um conceito de Rorty (1980, p. 217 [275]), é “o
alargamento do universo do discurso humano” (Geertz, 1973,
p. 14 [10]) em vez de seu encapsulamento em algum conceito de
verdade objetiva:

A antropologia, ou pelo menos a antropologia interpretativa,


é uma ciência cujo progresso é marcado menos por uma per-
feição de consenso do que por um refinamento de debate. O
que leva a melhor é a precisão com que nos irritamos uns aos
outros. (Geertz, 1973, p. 29 [21])

Uma das características da análise cultural é a imperfeição e


controversibilidade:

A análise cultural é intrinsecamente incompleta e, o que é pior,


quanto mais profunda, menos completa. É uma ciência estranha,
cujas afirmativas mais marcantes são as que têm a base mais

238 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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trêmula, na qual chegar a qualquer lugar com um assunto en-
focado é intensificar a suspeita, a sua própria e a dos outros, de
que você não o está encarando de maneira correta. […] O fato
é que comprometer-se com um conceito semiótico de cultura e
uma abordagem interpretativa do seu estudo é comprometer-se
com uma visão da afirmativa etnográfica como ‘essencialmente
contestável’, tomando emprestada a hoje famosa expressão de
W. B. Gallie. (Geertz, 1973, p. 29 [19])

Afirmar que todo apelo à racionalidade é contestável não


significa pôr em xeque a possibilidade ou a racionalidade do
processo de compreensão. Geertz utiliza a epistemologia de Paul
Feyerabend (1975) para qualificar a racionalidade da pesqui-
sa científica, excluindo, como o faz Goodman (1978, p. 4), as
concepções fiscalistas construídas sobre a preeminência e a oni-
compreensividade de um único sistema, em detrimento de outra
versão que se reduza a esse sistema ou deva ser rejeitada como
falsa ou insensata. Além de não haver evidência de tal reduti-
bilidade, é uma confusa pretensão, dado que a mesma física é
fragmentária e instável: refaz a “desordem irritante do mundo
encantador e colorido das partículas quarks”, da qual, escreve
Geertz (1983a, p. 163 [244]), “a organização – seja essa cósmica
ou não – parece ter desaparecido totalmente” e nas quais uma
teoria parece “ser mais inalcançável à medida que mais se aper-
feiçoa, e mais perfeita à medida que se torna mais inalcançável”
(Geertz, 1983a, p. 163 [244]):

O cientifismo […] é quase sempre um blefe. Uma coisa é invo-


car os espíritos das profundezas, outra, bem diferente, é fazê-
-los atender quando são chamados. Mas o que está implicado
não é apenas uma impostura: o utopismo induzido por uma
visão equivocada da física anterior ao século XX (o mundo

Roberto Malighetti 239

clifford-geertz-miolo.indd 239 21/10/2019 08:53


antes de Maxwell), que foi importado pelas ciências humanas,
não levou aos portões da terra dos paradigmas, porém a uma
grande quantidade de gestos inúteis e proclamações pretensio-
sas. (Geertz, 2000, p. 136-137 [127])

Geertz (1984, p. 160 [127]) reitera:

Uma das coisas mais irritantes em meu campo são as pessoas


que dizem que não se está fazendo “ciência de verdade” quando
não se formula nenhuma lei, com isso sugerindo que eles as
formularam, mas sem nos dizer, na verdade, quais são essas leis.

Para ele, a apresentação nua e crua de dados confiáveis


como moeda sonante, embora possa parecer “um conhecimento
mais simples e mais honesto, mais reconfortante do que deveria
aparentar”, também ela, na realidade, “é um pouco como um
romance que, de modo geral, não é dos mais simples”. (Geertz,
1995, p. 62 [57]) Acenando ao “leito de Procusto” da mitologia
grega, ele rejeita a tentativa de manipular a complexidade do
real para reduzi-la a um modelo apenas:

A verdade é uma condição tão necessária quanto suficiente


para escolher uma afirmação. Ocorre, porém, com frequência,
escolhermos uma afirmação que cabe mais para outras consi-
derações do que a que está mais próxima da verdade; mas onde
a verdade é difícil demais, anômala demais, e não se amalgama
confortavelmente com outros princípios, nós podemos escolher
a falsidade mais provável e iluminante. A maioria das leis cien-
tíficas é deste tipo: não são relações detalhadas de dados parti-
culares, mas vastas simplificações de Procusta. (Geertz, 1983a,
p. 184, p. 22 [276, nota 22])

240 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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A crítica às leis universais não implica necessariamente a re-
núncia à empreitada científica. Pelo contrário, para Geertz, o
reconhecimento do fato que somos o que Renato Rosaldo cha-
mou “observadores posicionados (ou situados)” é uma caracte-
rística fascinante e eficaz: “a renúncia à autoridade proveniente
das ‘visões que partem de nenhum lugar’ (‘Vi a realidade e ela
é real’) não constitui uma perda, mas um ganho, e não é um re-
cuo, mas um avanço”. (Geertz, 2000, p. 137 [127]) Da aceitação
de critérios diferentes dos fixados pela concepção moderna da
ciência não se infere um relaxamento no rigor, mas um reco-
nhecimento de que pode haver modalidades diferentes e plurais
para a evolução científica:

Fato bruto, lei natural, verdade necessária, beleza transcenden-


tal, autoridade imanente, revelação única, até o self-aqui-den-
tro defrontando-se com o mundo-lá-fora, tudo isso submetido
a um ataque tão pesado que hoje em dia essas coisas parecem
apenas simplicidades perdidas de um passado menos árduo.
Mas a ciência, o direito, a filosofia, a arte, a teoria política, a
religião e a teimosa insistência do senso comum conseguiram
continuar, apesar de tudo. Não foi necessário reviver as simpli-
cidades. (Geertz, 1984, p. 64 [65])

Visto que versões contrastantes não podem ser reduzidas a


algo de neutro, “lá em baixo”, “lá longe”, os critérios de ava-
liação devem ser conduzidos a algo não ostensivo: “Não preci-
samos medir a irrefutabilidade de nossas explicações contra um
corpo de documentação não-interpretada, descrições radical-
mente superficiais, mas contra o poder da imaginação científica
que nos leva ao contato com as vidas dos estranhos”. (Geertz,
1973, p. 16 [12]) A ciência de Geertz se movimenta no interior
de uma circularidade hermenêutica. Determinada leitura dos

Roberto Malighetti 241

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significados intersubjetivos de uma sociedade, instituições ou
práticas é válida porque consegue dar sentido ao seu objeto:
“Uma boa interpretação de qualquer coisa – um poema, uma
pessoa, uma estória, um ritual, uma instituição, uma sociedade
– leva-nos ao cerne do que nos propomos interpretar”. (Geertz,
1973, p. 18 [13]) O valor da teoria depende de sua capacidade
de mostrar o seu objeto, de captar a particularidade pela qual é
convalidada: “A teoria […] brota de circunstâncias particulares
e, por mais abstrata que seja, é validada por sua capacidade de
ordená-las em sua plena particularidade, e não por descartar
essa particularidade”. (Geertz, 2000, p. 138 [128]) Se um re-
lato é relativo ao modo de ler a situação ou a ação por parte
do intérprete, essa leitura pode ser explicada ou justificada em
referência a outras leituras e a sua capacidade de dar sentido ao
todo. O critério de avaliação refere-se à coerência e ao acordo
entre o sentido que o autor consegue instaurar entre as partes
do texto. Como diz Gadamer (1965, p. 341 [436-437]), a ade-
quação das interpretações é validada com base no mesmo texto,
mediante “a concordância dos particulares com o todo”.
Quando a explicação resulta implausível, ou não é com-
preendida, ou não nos convence, não há um procedimento de
verificação a que possamos recorrer. Podemos apenas conti-
nuar oferecendo interpretações num círculo interpretativo, pe-
dindo, eventualmente, ao interlocutor que elabore mais as suas
intuições ou mude as suas orientações. (Taylor, 1979, p. 66)
Encarcerada no imediatismo do próprio detalhe, a etnografia,
diz Geertz (1973, p. 24 [17]), não oferece provas:

O vício de fundo das abordagens interpretativas para qualquer


coisa – a literatura, os sonhos, os sintomas, a cultura – é que
elas tendem a resistir, ou a elas é permitido que o façam, à

242 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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articulação conceitual e a fugir assim às repartições e às avalia-
ções do tipo sistemático. Entende-se uma interpretação ou não,
vê-se a sua importância ou não, aceita-se-a ou não.

O horizonte, aqui, é de tipo kuhniano: “A competição entre


paradigmas não é o tipo de batalha que possa ser resolvido por
meio de provas”. (Kuhn, 1962, p. 148 [188]) Nas controvérsias
que nascem quando paradigmas rivais são propostos, segundo
Kuhn (1977, p. 148-151), não há critérios baseados em obser-
vações, verificações, confirmações ou falseações que possam re-
solver a disputa:

Embora cada um possa esperar converter o outro a este modo


de ver a ciência e seus problemas, ninguém pode esperar que
forneça provas […] a transferência da fidelidade de paradigma
a paradigma é uma conversão da experiência que não pode
ser forçada.

A incomensurabilidade dos paradigmas requer uma “per-


suasão”, uma “‘conversão’ intelectual” ou uma “mudança da
Gestalt”, mais que “um confronto gradativo, ponto a ponto,
entre a visão abandonada e a aceita” ou “uma aproximação ir-
resoluta de uma verdade que está à espera de ser descoberta”
(Geertz, 2000, p. 162-163 [145]):

A natureza altamente situacional da descrição etnográfica –


um dado etnógrafo, em tal época e tal lugar, com tais infor-
mantes, tais compromissos e tais experiências, representante
de uma dada cultura e membro de uma certa classe – confere
ao grosso do que é dito um caráter do tipo ‘é pegar ou largar’.
(Geertz, 1988, p. 5 [16])

Roberto Malighetti 243

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O ponto de vista geertziano convida a ter em mente que a
capacidade persuasiva coincide com a “função do autor”, com
a autoridade com que o antropólogo consegue autorizar o que
é enunciado: “em nossa ingênua disciplina, talvez uma episteme
atrasada, como de praxe, ainda é muito importante saber quem
está falando” (Geertz, 1988, p. 7 [18]); a escrita, dando forma aos
eventos, configura a relação entre autor e os fruidores do texto:

Essa capacidade de convencer os leitores […] de que o que eles


estão lendo é um relato autêntico, escrito por alguém pessoal-
mente familiarizado com o modo como se processa a vida em
algum lugar, em alguma época, em meio a algum tempo, é a
base em que finalmente se assenta qualquer outra coisa que
a etnografia deseje fazer – analisar, explicar, divertir, descon-
certar, celebrar, edificar, desculpar, estarrecer ou subverter. O
vínculo textual entre as facetas do Estar Lá e do Estar Aqui da
antropologia, a construção imaginativa de um terreno comum
entre o Escrito A e o Escrito Sobre (que, hoje em dia, como foi
mencionado, não raro são as mesmas pessoas, em estado de
espírito diferentes) é a fons et origo de qualquer capacidade
que tenha a antropologia de convencer alguém de alguma coisa
– não uma teoria nem um método, nem tampouco a aura pro-
fessoral, por mais importantes que sejam estes últimos. (Geertz,
1988, p. 143-144 [187-188])

Geertz resolve a dissimulação epistemológica do “problema


da assinatura” recusando considerar a relação autor-texto como
resultado imediato e não problemático da relação mecanicista
observador-observado. Ao invés, entende que a afirmação da pre-
sença do autor no texto se dá em termos da construção de uma
autoridade que funciona como legitimadora dos discursos. Como
afirma Taylor (1979, p. 68), isso põe fim às aspirações de uma

244 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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ciência do homem “livre dos valores” e “livre das ideologias”,
e demonstra, também, que o estudo das ciências do homem é
inseparável do exame por que posições os homens devem optar:

A capacidade dos antropólogos de nos fazer levar a sério o que


dizem tem menos a ver com uma aparência factual, ou com um
ar de elegância conceitual, do que com sua capacidade de nos
convencer de que o que eles dizem resulta de haverem realmen-
te penetrado numa outra forma de vida (ou, se você preferir,
de terem sido penetrados por ela) – de realmente haverem, de
um modo ou de outro, ‘estado lá’. E é aí, ao nos convencer de
que esse milagre dos bastidores ocorreu, que entra a escrita.
(Geertz, 1988, p. 4 [15])

A escolha entre paradigmas opostos não implica assumir de-


cisões “por capricho, por hábito […] ou por preconceito ou de-
sejo político”. A própria organização do discurso oferece a pos-
sibilidade de sua avaliação: o modo como “alguns etnógrafos
são mais eficientes do que outros em criar a impressão, em sua
prosa, de que tiveram um contato estreito com vidas distantes”
cria a possibilidade de controle: “Ao descobrirmos de que modo,
numa determinada monografia ou artigo, essa impressão é criada,
descobriremos, ao mesmo tempo, por quais critérios julgá-los”.
(Geertz, 1988, p. 6 [17]) Obviamente, o procedimento não é fácil.
Muitas vezes o autor empresta tamanha força aos próprios textos,
que o leitor, encarcerado em eficazes modelos conceituais, acha
extremamente difícil refutar o que ele diz. Em casos particular-
mente respeitáveis, lembra Geertz, pode acontecer que, estudando
os azande ou os trobriandeses, se atribua a incapacidade de re-
traçar as teorias de Evans-Pritchard sobre o sistema segmentário,
ou as de Malinowski sobre a troca kula, às próprias capacidades
analíticas, à ideia que “tipos diferentes de mentes apanham partes

Roberto Malighetti 245

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diferentes do elefante” ou a conclusões de que os azande, ou o
kula, não são mais os mesmos. (Geertz, 1988, p. 5 [16]) Porém,
invertendo os termos da metáfora textual (ler os textos “como se”
fossem culturas), a perspectiva geertziana convida a desenvolver
as próprias competências, de modo a elaborar, hermeneuticamen-
te, uma chave de leitura para a análise e a avaliação.
Geertz desvincula a ciência do domínio da verdade e da cer-
teza, conferindo-lhe, conforme faz verificar a propósito da teo-
ria da relatividade, uma “posição sociológica que vai se modifi-
cando à medida que dados mais recentes são obtidos”. (Geertz,
1983, p. 163 [244]) Nesse sentido, esposa as teses kuhnianas
sobre a descontinuidade da mudança científica, que se realiza na
alternância entre períodos paradigmáticos “normais” e períodos
de “convulsão revolucionária”. Sob esse enfoque, a ciência é re-
conduzida ao mundo da vida “onde se desenvolvem programas
de trabalho e se fazem carreiras, em que se formam alianças e
se desenvolvem teorias”, numa arena dominada por “choques
entre grupos e dos compromissos de grupo”. (Geertz, 2000, p.
183 [146]) Parafraseando os princípios do materialismo histó-
rico marxiano, poderemos dizer que Geertz compartilha a ideia
de que a ciência hegemônica, em dado momento histórico, é
produto das relações de poder: “As ciências da classe dominante
são em toda época as ciências dominantes”. Mas ele prefere usar
as palavras de Thomas Kuhn para sustentar que a história da
ciência é determinada pela competição e pelo revezamento das
comunidades científicas normativamente definidas, caracteriza-
das por seus próprios mecanismos de recrutamento:

A ciência normal e as revoluções são […] atividades baseadas


na comunidade. Para descobri-las e analisá-las, primeiro é pre-
ciso desenredar a estrutura comunitária mutável das ciências

246 Clifford Geertz: o trabalho do antropólogo

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ao longo do tempo. Um paradigma não rege […] um assunto,
mas um grupo de praticantes. Qualquer estudo das pesquisas
norteadas por paradigmas ou destruidoras de paradigmas deve
começar pela localização do grupo ou grupos responsáveis.
(Kuhn, como citado por Geertz, 2000, p. 163-164 [146])

Subtraindo a ciência ao domínio da verdade e a verdade ao


domínio do método, Geertz colocou a questão epistemológica
no campo ético e político. A natureza prospectiva do conhe-
cimento e a exclusão de verificações exaustivas contemplam o
ato interpretativo como um ato moral que se fundamenta na
assunção da responsabilidade de escolher entre uma pluralida-
de de paradigmas e teorias opostas. A dinâmica do círculo her-
menêutico não é necessária e não permite delegar as próprias
decisões negociais a um método, a uma lei ou a uma técnica,
ou “transferi-las (manobra especialmente popular no momento)
‘às próprias pessoas’, redescritas (apropriadas seria um termo
melhor, provavelmente) como co-autoras”. (Geertz, 1988, p. 14
[182]) A ideia de que “[a] descrição cultural é um conhecimento
adaptado”, diz ainda Geertz (1995, p. 62 [56-57]), implica:

a necessidade, se alguém a adota, de assumir uma responsabili-


dade pessoal pelo poder de convicção daquilo que diz ou escre-
ve, porque afinal foi dito ou escrito, em vez de colocar a respon-
sabilidade na ‘realidade’, na ‘natureza’, no ‘mundo’ ou em algum
outro vago e espaçoso reservatório de verdade imaculada.

A perspectiva geertziana não apenas abre a possibilidade de


se assumirem posições radicais na própria cultura e na própria
ontologia. Opondo-se ao monopólio estéril e obscurantista da
verdade, permite a promoção do desenvolvimento científico e
da negociação de normas e valores arbitrária e, portanto, livre,

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entre os vários componentes da pólis. Tal concepção, longe de
ser paralisante, estimula a antropologia a realizar a sua impor-
tante vocação de conjugar, “descentrando-as”, as relações entre
o Santo Ofício, Copérnico, Bruno e Galileu com as possíveis
formas de vida, as variadas modalidades de organizar os grupos
sociais, tratar as necessidades, exercer o poder:

Não é de surpreender que isso tenha levado alguns a pensar


que o céu estava desabando, que o solipsismo se apoderava de
nós e que o intelecto, o juízo e até a simples possibilidade de
comunicação haviam desaparecido. A redefinição de horizon-
tes e a descentralização de perspectivas já tiveram esse efeito
antes. O cardeal Bellarmin[o] sempre esteve entre nós; e como
alguém observou acerca dos polinésios, é necessário um certo
tipo de cabeça para sair em alto-mar numa casquinha de ca-
noa. (Geertz, 2000 p. 65 [66])

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