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GANHAR A SAÍDA

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS


Reitora Sandra Regina Goulart Almeida
Vice-reitor Alessandro Fernandes Moreira

EDITORA UFMG
Diretor Flavio de Lemos Carsalade
Vice-diretora Camila Figueiredo

CONSELHO EDITORIAL
Flavio de Lemos Carsalade (presidente)
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Camila Figueiredo
Carla Viana Coscarelli
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Emília Mendes Lopes
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Luiz Alex Silva Saraiva
Marco Antônio Sousa Alves
Raquel Conceição Ferreira
Renato Assis Fernandes
Ricardo Hiroshi Caldeira Takahashi
Rita de Cássia Lucena Velloso
Rodrigo Patto Sá Motta
Weber Soares
Antoine Compagnon

GANHAR A SAÍDA
Laura Taddei Brandini
Tradução
© Antoine Compagnon, Gagner la sortie, Paris, Collège de France, coll.
“Leçons de clôture”, 2021; edição digital: https://books.openedition.org/
cdf/12385
© 2023, Editora UFMG
Este livro, ou parte dele, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem
autorização escrita do Editor.

C736g.Pb Compagnon, Antoine, 1950–.


Ganhar a saída / Antoine Compagnon; tradução: Laura
Taddei Brandini. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2023.
69 p. (Babel)
Tradução de: Gagner la sortie.
Aula de encerramento da cátedra de “Literatura francesa
moderna e contemporânea: história, crítica, teoria”, proferida
no Collège de France em 2021.
ISBN: 978-65-5858-128-4
1. Literatura – História e crítica. 2. Ensaios franceses. I.
Brandini, Laura Taddei. II. Título. III. Série.
CDD: 801
CDU: 82.0
Elaborada por Vilma Carvalho de Souza – Bibliotecária – CRB-6/1390

Coordenação editorial Michel Gannam


Direitos autorais Anne Caroline Silva
Assistência editorial Eliane Sousa
Coordenação de textos Clarissa da Cunha Vieira
Preparação de textos Ana Teresa Campos Souza
Revisão de provas Beatriz Trindade
Coordenação gráfica Fernando Freitas
Projeto gráfico Cássio Ribeiro, a partir do projeto
original de Marcelo Belico
Formatação e capa Joelle de Carvalho
Produção gráfica Warren Marilac

EDITORA UFMG
Av. Antônio Carlos, 6.627 – CAD II / Bloco III
Campus Pampulha – 31270-901 – Belo Horizonte/MG
Tel: + 55 31 3409-4650 | www.editoraufmg.com.br | editora@ufmg.br
NOTA DA TRADUTORA

Trinta de novembro de 2006. Doze de janeiro


de 2021. Quinze anos de ensino de Antoine
Compagnon no Collège de France. Quinze anos
também de minha primeira tradução, sua Aula
Inaugural nessa instituição, com o título de Litera-
tura para quê?, idealizada logo após lhe assistir no
próprio Collège. Relendo minha Nota da tradu-
tora da Aula Inaugural, vejo que a reconstituição
das circunstâncias que envolveram a conferência
ocupa a maior parte do texto. Não é o caso desta
Nota, pois não assisti à sua última aula presen-
cialmente. Mas, se não tenho uma experiência
presencial para relatar, desta vez posso esboçar
um olhar retrospectivo sobre sua obra: com esta
conferência, Compagnon encerra uma trajetória
de 45 anos de ensino na França; destes, os últimos
15 acompanhei traduzindo vários de seus livros.
Seu estilo ao mesmo tempo coloquial e erudito,
que sempre me seduziu na leitura e desafiou na
tradução, continua intacto nesta última aula.
Particular a ela, contudo, é o certo ar de nostalgia
que perpassa suas reflexões, em meio a fragmentos
de memórias de sua longa carreira de professor.
Adotei como padrão citar em português os
textos mencionados quando encontrei traduções,
como forma de render tributo aos tradutores,
mesmo que, em algumas vezes, tenha apontado
outras opções, mais literais, que melhor expressa-
ram os jogos de palavra tão caros a Compagnon,
incluindo o que dá título à conferência.
SUMÁRIO

The Last Lecture [A última conferência] 13

Rabo de peixe 16

A síndrome de Cotard 29

“And after many a summer dies the swan”


[E após muitos verões expira o cisne] 38

Quindecim annos [Quinze anos] 41

O professor sou eu 50

Braços valeditórios 65
Atrasada pela pandemia, esta aula será, por-
tanto, ao mesmo tempo, a última de meu curso
do ano passado, intitulado “Fins da literatura”,
e a última de meu mandato como professor no
Collège de France, uma dessas aulas que hesitamos
em qualificar como final ou conclusiva, de adeus
ou de encerramento.1
Tive dificuldades para lhe dar um título pois
parecia que eu havia esgotado todos os possíveis
em minhas aulas sobre os “Fins da literatura”,

1
Antoine Compagnon ocupou, de 30 de novembro de 2006 até 12
de janeiro de 2021, a Cadeira de Literatura Francesa Moderna e
Contemporânea: História, Crítica e Teoria (Chaire Littérature
Française Moderne et Contemporaine: Histoire, Critique, Théo-
rie) no Collège de France. Esta foi a aula de encerramento de seu
mandato como professor nessa instituição, ministrada no dia 12
de janeiro de 2021.
havia espremido todas as variações sobre o tema
do fim, da cessação de atividade, da aposentadoria:
“A ala do não escrever”, “Se a mão quisesse me obe-
decer...”, “A catástrofe das obras tardias”, “Ultima
aut novissima verba” [Última ou últimas pala-
vras], “Queimem a Eneida?”, “O canto do cisne”,
“A sorte está lançada”, “Senectus et decrepitas”
[Velho e decrépito], “ Um verdadeiro bricabraque”,
“É assim que eu deveria ter escrito…” Esses títulos
são, majoritariamente, citações de artistas que
estavam envelhecendo ou de escritores idosos
ou doentes – Virgílio, o pintor Nicolas Poussin,
Bergotte, o autor imaginário de Em busca do
tempo perdido, Roland Barthes –, ou, às vezes,
comentários sobre as obras tardias dos escritores.
Aqueles que acabam de chegar aqui e agora, não
nel mezzo del cammin di nostra vita2 como no
Inferno, de Dante, mas no término, perceberão
uma certa coloração elegíaca que percorre essa
série de fórmulas com ares de epitáfios enlutados.
Fiquem tranquilos! Outros títulos foram mais

2
“A meio caminhar de nossa vida.” A divina comédia, trad. Italo
Eugenio Mauro, São Paulo, Editora 34, 2014, p. 25. N. da T.

10 Antoine Compagnon
encorajadores, como “O sublime senil”, isto é, a
última e inesperada obra-prima que transcende
o estado da arte, que rompe com as convenções
que o próprio artista contribuiu para instaurar:
por exemplo, o segundo Fausto, de Goethe, os
últimos quartetos, de Beethoven, ou La vie de
Rancé [A vida de Rancé], de Chateaubriand. Além
deles, “Tudo o que produzi antes dos setenta anos
não vale a pena ser considerado”, frase atribuída
ao pintor japonês Hokusai e lembrança da distin-
ção entre o artista conceitual, que atinge o auge
de sua arte quando jovem por meio de proezas
brilhantes, como Picasso, e o artista experimen-
tador, que melhora pouco a pouco, corrige até
o fim, sem nunca se satisfazer com o resultado,
como Cézanne. Também, faz um tempo, e em meu
último curso regular, “Dignitas non moritur” (“A
dignidade não morre”), sobre a lenda do poeta
eterno em Shelley, Emerson, Proust, Valéry e
Borges, fiz de cada poeta a reencarnação do Espí-
rito desde as origens da arte, vendo, portanto, no
fim, não um impasse, mas o começo de um eterno
retorno. Estava terminando minha aula, há um
instante, citando Maurice Blanchot, que cita Ernst

GANHAR A SAÍDA 11
Robert Curtius, que cita Hugo von Hofmannsthal,
que, por sua vez, cita Djalâl ad-Dîn Rûmî, poeta
místico persa do século XIII, com várias distorções
ou desvios na linhagem das citações: “Palavras
admiráveis de Djellaleddin-Roumi, mais pro-
fundas do que tudo: Aquele que conhece o poder
do círculo não teme a morte.”3 Repito para mim
mesmo: “Eu me cito (sou apenas o tempo)”, como
anunciava Chateaubriand na Vie de Rancé em
1844, recopiando uma frase de seu próprio Génie
du christianisme [Gênio do cristianismo], de 1802,
assim resumindo sua magnífica desenvoltura
como própria ao “sublime senil”.
Não sabia, portanto, como intitular esta última
aula, oscilando entre as duas vias que me esforcei
por seguir ao longo deste último ciclo de cursos
e ainda durante a penúltima hora: uma tenta-
ção melancólica, a dos artistas que reivindicam
uma “segunda chance” para, enfim, realizar sua

3
Ernst Robert Curtius, “Zu Hofmannsthals Gedächtnis” [Em
Memória de Hofmannsthal], em Kritische Essays zur europäischen
Literatur [Ensaios críticos sobre a literatura europeia], Berna,
Francke, 1950, p. 166; Essais sur la littérature européenne [Ensaios
sobre a literatura europeia], trad. Claude David, Paris, Grasset,
1954, p. 157, tradução nossa.

12 Antoine Compagnon
obra-prima e uma esperança redentora naqueles
que aceitam ser nada além do que o avatar de uma
linhagem. Polaridade que não concerne somente
aos criadores, mas talvez também aos professores.

The Last Lecture [A última conferência]


Explorando a segunda via, a da salvação, pensei,
por um momento, em dar por título a minha
conferência de hoje The Last Lecture, em alusão
a um programa de conferências ministradas na
Universidade Carnegie Mellon, em Pittsburgh,
que convidava professores a tomar a palavra
como se fosse a última vez em suas vidas. The
Last Lecture rima com The Last Supper (A última
ceia), de que tratei neste curso sobre os “Fins da
literatura”, pois o filósofo Georg Simmel, um dos
primeiros teóricos do estilo tardio em 1905, via
seu modelo no afresco de Leonardo da Vinci em
Milão (aqui na gravura de Raphael Morghen antes
de sua degradação – Figura 1 –, a que a avó dá ao
herói no início de “Combray”, em No caminho
de Swann, de Proust), porque ele rompia com a
representação tradicional dos tipos humanos e
prefigurava o realismo moderno dos indivíduos

GANHAR A SAÍDA 13
singulares.4 Acontece que A última ceia não é
uma obra de velhice de Da Vinci, mas pouco
importa, pois a teoria de Simmel sobreviveu a
esta derrapada.

Figura 1: Leonardo da Vinci, Teodoro Matteini [desenhista], Raphael Morghen [gravador],


A última ceia, 1800. © MAH Museu de Arte e História, Genebra. Fundo Antigo.
Fotógrafo: André Longchamp.

Para aqueles que se prestavam ao jogo das


“hipotéticas últimas palavras” (hypothetical final
talk) de Carnegie Mellon, pedia-se que se exprimisse

4
Leonardo da Vinci, Teodoro Matteini e Raphael Morghen, La
cène, 1800, água-forte e cinzel, 61,3 x 95,4 cm, Museu de Arte e
de História (MAH), Genebra, Fundo Antigo, E 2016-0314.

14 Antoine Compagnon
a sabedoria que gostariam de dividir com o mundo
se soubessem que era sua última chance.
Ora, a experiência de pensamento se tornou
uma realidade quando o professor de informática
Randy Pausch soube, um mês antes de proferir
sua conferência em setembro de 2007, que seu
câncer no pâncreas, diagnosticado fazia um ano,
havia entrado em fase terminal. Morreu alguns
meses mais tarde, mas The Last Lecture, o livro
publicado com sua conferência, tornou-se um
best-seller do desenvolvimento pessoal traduzido
para muitas línguas.5 Essa conferência é uma das
mais visualizadas no Youtube, mas confesso que
não consegui escutar até o fim suas recomenda-
ções para o bem-viver.6
Não sei se o ciclo das last lectures de Carnegie
Mellon teve continuidade. Essa experiência de
reflexão parece um jogo de adolescentes pegos
de surpresa pela realidade. Ela faz lembrar a frase,
sem dúvida apócrifa, atribuída a Bossuet a respeito

5
Randy Pausch e Jeffrey Zaslow, The Last Lecture, Nova York,
Hyperion, 2008.
6
Ver https://www.youtube.com/watch?v=j7zzQpvoYcQ (acesso
em 19 de abril de 2023).

GANHAR A SAÍDA 15
da morte de Molière depois da quarta apresenta-
ção de O doente imaginário: “ele quis brincar com
a morte e a morte brincou com ele”.7

Rabo de peixe
As circunstâncias vieram, então, em meu
socorro. Meu curso sobre os “Fins da literatura”
foi suspenso em março de 2020 pela pandemia,
e eu o retomei somente na semana passada, no
início de janeiro de 2021, depois de um hiato de
10 meses. Nesse intervalo, cheguei ao limite de
idade de minha categoria, como se diz no jargão
dos funcionários públicos, e doravante sou um
professor honorário ou emérito, isto é, fui colo-
cado para escanteio.
Inicialmente, essa algazarra prematura me
desestabilizou. Os cursos do Collège de France são
como drogas. Durante os meses em que duram,
preparando-os semana a semana, não se faz mais
nada: vivemos apagando incêndios, como se dizia
nas Belas-Artes. Em plena adição, ou habituação,

7
Molière faleceu em sua casa durante a temporada de sua peça O
doente imaginário, em que tinha o papel-título. N. da T.

16 Antoine Compagnon

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