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Rita de Cássia Lucena Velloso
Rodrigo Patto Sá Motta
Weber Soares
Antoine Compagnon
GANHAR A SAÍDA
Laura Taddei Brandini
Tradução
© Antoine Compagnon, Gagner la sortie, Paris, Collège de France, coll.
“Leçons de clôture”, 2021; edição digital: https://books.openedition.org/
cdf/12385
© 2023, Editora UFMG
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NOTA DA TRADUTORA
Rabo de peixe 16
A síndrome de Cotard 29
Braços valeditórios 65
Atrasada pela pandemia, esta aula será, por-
tanto, ao mesmo tempo, a última de meu curso
do ano passado, intitulado “Fins da literatura”,
e a última de meu mandato como professor no
Collège de France, uma dessas aulas que hesitamos
em qualificar como final ou conclusiva, de adeus
ou de encerramento.1
Tive dificuldades para lhe dar um título pois
parecia que eu havia esgotado todos os possíveis
em minhas aulas sobre os “Fins da literatura”,
1
Antoine Compagnon ocupou, de 30 de novembro de 2006 até 12
de janeiro de 2021, a Cadeira de Literatura Francesa Moderna e
Contemporânea: História, Crítica e Teoria (Chaire Littérature
Française Moderne et Contemporaine: Histoire, Critique, Théo-
rie) no Collège de France. Esta foi a aula de encerramento de seu
mandato como professor nessa instituição, ministrada no dia 12
de janeiro de 2021.
havia espremido todas as variações sobre o tema
do fim, da cessação de atividade, da aposentadoria:
“A ala do não escrever”, “Se a mão quisesse me obe-
decer...”, “A catástrofe das obras tardias”, “Ultima
aut novissima verba” [Última ou últimas pala-
vras], “Queimem a Eneida?”, “O canto do cisne”,
“A sorte está lançada”, “Senectus et decrepitas”
[Velho e decrépito], “ Um verdadeiro bricabraque”,
“É assim que eu deveria ter escrito…” Esses títulos
são, majoritariamente, citações de artistas que
estavam envelhecendo ou de escritores idosos
ou doentes – Virgílio, o pintor Nicolas Poussin,
Bergotte, o autor imaginário de Em busca do
tempo perdido, Roland Barthes –, ou, às vezes,
comentários sobre as obras tardias dos escritores.
Aqueles que acabam de chegar aqui e agora, não
nel mezzo del cammin di nostra vita2 como no
Inferno, de Dante, mas no término, perceberão
uma certa coloração elegíaca que percorre essa
série de fórmulas com ares de epitáfios enlutados.
Fiquem tranquilos! Outros títulos foram mais
2
“A meio caminhar de nossa vida.” A divina comédia, trad. Italo
Eugenio Mauro, São Paulo, Editora 34, 2014, p. 25. N. da T.
10 Antoine Compagnon
encorajadores, como “O sublime senil”, isto é, a
última e inesperada obra-prima que transcende
o estado da arte, que rompe com as convenções
que o próprio artista contribuiu para instaurar:
por exemplo, o segundo Fausto, de Goethe, os
últimos quartetos, de Beethoven, ou La vie de
Rancé [A vida de Rancé], de Chateaubriand. Além
deles, “Tudo o que produzi antes dos setenta anos
não vale a pena ser considerado”, frase atribuída
ao pintor japonês Hokusai e lembrança da distin-
ção entre o artista conceitual, que atinge o auge
de sua arte quando jovem por meio de proezas
brilhantes, como Picasso, e o artista experimen-
tador, que melhora pouco a pouco, corrige até
o fim, sem nunca se satisfazer com o resultado,
como Cézanne. Também, faz um tempo, e em meu
último curso regular, “Dignitas non moritur” (“A
dignidade não morre”), sobre a lenda do poeta
eterno em Shelley, Emerson, Proust, Valéry e
Borges, fiz de cada poeta a reencarnação do Espí-
rito desde as origens da arte, vendo, portanto, no
fim, não um impasse, mas o começo de um eterno
retorno. Estava terminando minha aula, há um
instante, citando Maurice Blanchot, que cita Ernst
GANHAR A SAÍDA 11
Robert Curtius, que cita Hugo von Hofmannsthal,
que, por sua vez, cita Djalâl ad-Dîn Rûmî, poeta
místico persa do século XIII, com várias distorções
ou desvios na linhagem das citações: “Palavras
admiráveis de Djellaleddin-Roumi, mais pro-
fundas do que tudo: Aquele que conhece o poder
do círculo não teme a morte.”3 Repito para mim
mesmo: “Eu me cito (sou apenas o tempo)”, como
anunciava Chateaubriand na Vie de Rancé em
1844, recopiando uma frase de seu próprio Génie
du christianisme [Gênio do cristianismo], de 1802,
assim resumindo sua magnífica desenvoltura
como própria ao “sublime senil”.
Não sabia, portanto, como intitular esta última
aula, oscilando entre as duas vias que me esforcei
por seguir ao longo deste último ciclo de cursos
e ainda durante a penúltima hora: uma tenta-
ção melancólica, a dos artistas que reivindicam
uma “segunda chance” para, enfim, realizar sua
3
Ernst Robert Curtius, “Zu Hofmannsthals Gedächtnis” [Em
Memória de Hofmannsthal], em Kritische Essays zur europäischen
Literatur [Ensaios críticos sobre a literatura europeia], Berna,
Francke, 1950, p. 166; Essais sur la littérature européenne [Ensaios
sobre a literatura europeia], trad. Claude David, Paris, Grasset,
1954, p. 157, tradução nossa.
12 Antoine Compagnon
obra-prima e uma esperança redentora naqueles
que aceitam ser nada além do que o avatar de uma
linhagem. Polaridade que não concerne somente
aos criadores, mas talvez também aos professores.
GANHAR A SAÍDA 13
singulares.4 Acontece que A última ceia não é
uma obra de velhice de Da Vinci, mas pouco
importa, pois a teoria de Simmel sobreviveu a
esta derrapada.
4
Leonardo da Vinci, Teodoro Matteini e Raphael Morghen, La
cène, 1800, água-forte e cinzel, 61,3 x 95,4 cm, Museu de Arte e
de História (MAH), Genebra, Fundo Antigo, E 2016-0314.
14 Antoine Compagnon
a sabedoria que gostariam de dividir com o mundo
se soubessem que era sua última chance.
Ora, a experiência de pensamento se tornou
uma realidade quando o professor de informática
Randy Pausch soube, um mês antes de proferir
sua conferência em setembro de 2007, que seu
câncer no pâncreas, diagnosticado fazia um ano,
havia entrado em fase terminal. Morreu alguns
meses mais tarde, mas The Last Lecture, o livro
publicado com sua conferência, tornou-se um
best-seller do desenvolvimento pessoal traduzido
para muitas línguas.5 Essa conferência é uma das
mais visualizadas no Youtube, mas confesso que
não consegui escutar até o fim suas recomenda-
ções para o bem-viver.6
Não sei se o ciclo das last lectures de Carnegie
Mellon teve continuidade. Essa experiência de
reflexão parece um jogo de adolescentes pegos
de surpresa pela realidade. Ela faz lembrar a frase,
sem dúvida apócrifa, atribuída a Bossuet a respeito
5
Randy Pausch e Jeffrey Zaslow, The Last Lecture, Nova York,
Hyperion, 2008.
6
Ver https://www.youtube.com/watch?v=j7zzQpvoYcQ (acesso
em 19 de abril de 2023).
GANHAR A SAÍDA 15
da morte de Molière depois da quarta apresenta-
ção de O doente imaginário: “ele quis brincar com
a morte e a morte brincou com ele”.7
Rabo de peixe
As circunstâncias vieram, então, em meu
socorro. Meu curso sobre os “Fins da literatura”
foi suspenso em março de 2020 pela pandemia,
e eu o retomei somente na semana passada, no
início de janeiro de 2021, depois de um hiato de
10 meses. Nesse intervalo, cheguei ao limite de
idade de minha categoria, como se diz no jargão
dos funcionários públicos, e doravante sou um
professor honorário ou emérito, isto é, fui colo-
cado para escanteio.
Inicialmente, essa algazarra prematura me
desestabilizou. Os cursos do Collège de France são
como drogas. Durante os meses em que duram,
preparando-os semana a semana, não se faz mais
nada: vivemos apagando incêndios, como se dizia
nas Belas-Artes. Em plena adição, ou habituação,
7
Molière faleceu em sua casa durante a temporada de sua peça O
doente imaginário, em que tinha o papel-título. N. da T.
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