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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

O luto em Proust
Marana Silva Borges

Orientador: Prof. Doutor Miguel Bénard da Costa Tamen

Tese especialmente elaborada para a obtenção do grau de Doutor em


Teoria da Literatura

2023
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS

O luto em Proust
Marana Silva Borges

Orientador: Prof. Doutor Miguel Bénard da Costa Tamen

Tese especialmente elaborada para a obtenção do grau de Doutor em Teoria da Literatura

JÚRI
Presidente: Prof. Doutor João Miguel Quaresma Mendes Dionísio, professor catedrático da Área de
Literaturas, Artes e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Vogais:
- Doutora Teresa Sousa de Almeida, professora associada da Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa (1ª arguente)
- Doutor João Ricardo Raposo Figueiredo, professor auxiliar da Faculdade de Letas da Universidade
de Lisboa (2º arguente)
- Licenciada Maria do Carmo Sousa Lima, psicanalista e membro da Sociedade Portuguesa de
Psicanálise, Federação Europeia de Psicanálise e Associação Internacional de Psicanálise -
especialista (vogal)
- Doutora Chiaria Nifosi, professora auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (vogal)
- Doutor Miguel Bénard da Costa Tamen, professor catedrático da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa (orientador)

2023

2
Para a Luna, que nasceu e cresceu junto
com esta tese. E que, no último ano, me
apresentava orgulhosamente a
desconhecidos na rua: “– Ma maman est
poète et va bientôt finir sa thèse.”

Voilà, c’est fini !

3
ÍNDICE

Agradecimentos, 05
Resumo, 08
Abreviaturas, 11
Introdução, 13

PARTE I: O caso da avó, 26


I. Desaparecer, 27
II. O silêncio opaco, 61
III. Intermitências, 74

PARTE II: Albertine, 112


IV. O lamento, 113
V. Substituições, 166
VI. Mudanças, 220

Obras citadas, 278

4
Agradecimentos

Como acontece com todos os projetos intensos que levam muitos anos para a sua
conclusão, esta tese se confunde com minha vida. Durante a elaboração do projeto,
a frequência às disciplinas e a escrita, mudei de endereço e de país várias vezes,
publiquei um romance, vivo um luto incomunicável, me tornei mãe.

Não é por acaso que, do mesmo modo que a vida muda, nós também mudamos de
ideias. Do projeto inicial, abstrato (mudanças e conversões da cidade) ao atual (o luto
no romance de Marcel Proust), o leitor poderá ver vestígios nas discussões sobre
John Ruskin, restaurações, Viollet-le-Duc.

Nesse percurso, agradeço especialmente ao professor Miguel Tamen:


por me encorajar a ingressar no doutorado e a prossegui-lo;
por ter se adaptado sem demora aos fusos horários e por estar sempre ao alcance;
por ter sido incansável ao me apoiar, ler e discutir o meu projeto, respeitando o
(longo) tempo que levei para encontrar a forma desta tese;
e, algo pelo qual apenas posso lhe agradecer retrospectivamente, por nunca ter
diminuído seu elevado nível de exigência intelectual.

Os enormes desafios da maternidade durante um doutorado, e especialmente no


exterior, me fizeram suspender as atividades por longos períodos. Encontrei em
algumas jovens mães doutorandas uma fonte de inspiração. Elas, porém, são raras.
Ainda mais raras aquelas que logram concluir o doutorado, seja por falta de suporte
institucional, psicológico ou financeiro, pela escassa rede de apoio social e pela
distribuição desigual das tarefas de cuidado.

Por isso, sou grata às fontes de financiamento público que usufruí para desenvolver
esta tese, com quatro meses de licença-maternidade; mas sou também consciente da

5
insuficiência delas perante as exigências reais da maternidade e da primeira infância,
e daí a necessidade de criação e ampliação de medidas robustas e integradas dentro
e fora das universidades para garantir que pesquisadoras mães não abandonem seus
estudos nem abdiquem de suas carreiras incipientes.

Agradeço o financiamento indispensável dos primeiros anos do doutorado concedido


pela CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, do
Ministério da Educação do Brasil.

Agradeço o programa Erasmus Plus da Universidade de Lisboa, financiado pela


Comissão Europeia, que tornou possível o estágio doutoral no Centre National pour
la Recherche Scientifique (CNRS-Paris), e à Mildred Galland-Szymkowiak, por me
receber em seu grupo de pesquisa.

O Programa em Teoria da Literatura, que desde o mestrado me acolheu, foi o terreno


mais fértil em meu percurso acadêmico para o fomento e o debate de ideias. Já tenho
saudades da antiga sala 5.2, das aulas do professor João Figueiredo, do Seminário de
Orientação.

Os workshops da Rede de Filosofia e Literatura foram um precioso estímulo


intelectual. Sou especialmente grata aos participantes da sessão que proferi no
outono de 2021, “Substituir pessoas”. A discussão com eles me ajudou a melhor
descrever alguns argumentos aqui apresentados.

Agradeço aos funcionários dos Serviços Acadêmicos da Faculdade de Letras, alguns


agora já aposentados, pela disposição em encontrar soluções para problemas
burocráticos os mais variados. Especial menção, no último ano, ao Ricardo Reis e à
Fátima Lopes, sempre pacientes. Também agradeço aos funcionários do Institut
National d’Histoire de l’Art (Richelieu), da Bibliothèque Nationale de France e da
Bibliothèque d’Information Publique, cujos acervos foram essenciais para minha
pesquisa.

6
Ainda que a pesquisa e a escrita deste trabalho tenham sido tarefas solitárias,
agradeço aos queridos amigos e amigas que ao longo dos anos perguntaram,
interessados, “como vai a tese?”, como se ela fosse um membro da família. Agora
poderão conhecê-la de perto.

Terminar esta tese não teria sido possível sem compreender que, muito além do
tema, sua realização tinha a ver com quem sou e com aquilo que me move. Algumas
pessoas me ajudaram a não me esquecer disso.
Eu agradeço à Fátima, desde Lisboa.
À Magdalena e nossa amizade que não titubeia.
Ao Antonio, por escutar, encorajar, participar.
À minha família. Ao meu pai, que em silêncio é pilar.
Às mulheres que me criaram, as que me inspiraram, as que batalham.

Quando escrever o livro com o meu nome,


e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,
a uma lápide, a um descampado,
para chorar, chorar e chorar [...]
Adélia Prado (“Grande desejo”, 1976)

7
RESUMO

Esta tese analisa, no romance À la recherche du temps perdu (Marcel Proust, 1913-
1927), o luto do protagonista pela avó e por Albertine, as duas maiores perdas de sua
vida. A tese busca se diferenciar de duas posições da crítica: a que descreve Marcel
como um enlutado incurável a lamentar o passo do tempo e a perda das pessoas que
amou; e a que o descreve como um cínico que rapidamente supera e esquece as
perdas pessoais. Em contrapartida, a tese oferece uma interpretação do protagonista
como alguém que quer, sem sucesso, controlar e resolver o luto pela razão e pelo
discurso – daí, por exemplo, anunciar tantas vezes já ter se tornado indiferente à
Albertine e à avó. À revelia dos desejos de Marcel, o luto faz seu caminho de modo
intermitente, emocional, persistente e não deliberado, sem concluir no apagamento
do morto ou no lamento permanente. Busca-se, por fim, discutir, por meio de
critérios não comportamentais, o alcance e a natureza das mudanças que o luto
favorece em Marcel, nomeadamente a sua vocação para a escrita.

Palavras-chave: Marcel Proust – Em busca do tempo perdido – luto – morte –


Albertine – avó Bathilde Amédée

8
ABSTRACT

This thesis addresses Marcel’s mourning for his grandmother and Albertine in the
novel In Search of Lost Time (Marcel Proust, 1913-1927). They are the main losses in the
protagonist’s life. The thesis rejects two major types of description in Proust criticism:
the one which describes Marcel as a never-ending mourner; and the one according to
which he is a cynical character who quickly gets over and forgets his personal losses.
Against such claims, the thesis puts forth arguments to depict Marcel as someone
eager for controlling and solving mourning through reason and speech. This explains
why he repeatedly claims to have already become indifferent to Albertine and to his
grandmother. He fails, though. In spite of Marcel’s wishes, mourning makes its way
as an intermittent, emotional, ongoing, and unintentional process. It does not
succeed in obliterating the dead nor in engaging in an eternal moaning. The thesis
finally concludes that considering non-behavioral criteria is crucial to fully assess the
extent and the nature of some changes prompted by mourning in Marcel, such as his
vocation for writing.

Keywords: Marcel Proust – In Search of Lost Time – mourning – death – Albertine –


grandmother Bathilde Amédée

9
RÉSUMÉ

Cette thèse a pour but d’analyser le deuil du héros pour sa grand-mère et pour
Albertine dans le roman À la recherche du temps perdu (Marcel Proust, 1913-1927). La
perte de ces deux femmes constituent l’épreuve la plus significative de sa vie. La
critique proustienne se partage entre deux positions majeurs, à savoir : celle qui
décrit Marcel comme un perpétuel endeuillé pleurant le passage du temps et la perte
des ceux qu’il aimait; et celle qui le décrit comme un cynique, capable de dépasser et
oublier rapidement ses pertes personnelles. En revanche, la présente thèse propose
un autre regard sur Marcel, comme un personage souhaitant rapidement contrôler
et résoudre son chagrin par la raison et le discours, sans success. Ainsi, par exemple,
le narrateur détaille souvent être déjà devenu indifférent à Albertine et à la grand-
mère. En dépit de ce qui pourrait souhaiter le héros, le deuil fait son chemin de
mannière intermittente, émotionnelle, persistante et non délibérée, sans toutefois
aboutir ni à l’éffacement des morts ni à la plainte éternelle. La thèse conclut à
l’importance de prendre en compte des critères non comportamentaux pour bien
saisir la portée et la nature des changements qui le deuil favorise chez Marcel,
notamment sa vocation à l’écriture.

Mots-clés: Marcel Proust – À la recherche du temps perdu – luto – morte – Albertine


– grand-mère Mme Bathilde Amedée

10
ABREVIATURAS

As seguintes abreviaturas serão utilizadas, ao longo da tese, para referir,


entre parênteses, o número de página das seguintes obras:

Obras de Marcel Proust

À la Recherche du temps perdu, ed. Jean-Yves Tadié, 4 vols., Paris: Gallimard, coll.
Bibliothèque de la Pléiade, 1987-9:
CS – Du côté de chez Swann (vol. I)
JF – À l’ombre des jeunes filles en fleurs (vol. I e II)
CG – Le côté de Guermantes (vol. II)
SG – Sodome et Gomorrhe (vol. III)
P – La Prisonnière (vol. III)
AD – Albertine disparue (vol. IV)
TR – Le Temps retrouvé (vol. IV)

PM – Pastiches et Mélanges (1919), Paris: Gallimard, coll. Imaginaire, 1947.


Corr. – Correspondance, org. Philip Kolb, Paris: Plon, 1970-1993.

Em busca do tempo perdido, trad. Fernando Py, 3 vols, São Paulo: editora Nova
Fronteira, 2016.
CS – No caminho de Swann (vol. I)
MF – À sombra das moças em flor (vol. I)
CG – O caminho de Guermantes (vol. II)
SG – Sodoma e Gomorra (vol. II)
P – A Prisioneira (vol. III)
F – A Fugitiva (vol. III)
TR – O tempo recuperado (vol. III)

11
Outras abreviaturas

T – Tratado da natureza humana (1739-40), de David Hume, trad. Serafim da Silva


Fontes, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 4ªed., 2012.
SE – The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, de
Sigmund Freud, ed. James Strachey, Londres: Hogarth Press, 24 vols., 1953-74.
LM – “Luto e melancolia” (1917 [1915]), de Sigmund Freud, trad. Marilene Carone,
Novos Estudos CEBRAP, nº 35, março 1992, pp. 130-142.

No que se refere às citações extraídas da Recherche, o número da página


aparecerá entre parênteses; primeiramente, o da edição em português, precedida
pelo volume, depois, o da edição francesa. Desta forma, o leitor poderá consultar
também o texto original na edição de referência da crítica proustiana, haja vista que
se trata, em larga medida, de um romance inacabado e póstumo, com diversas
edições.
Teremos, por exemplo, (III, F 546 | IV, AD 270) para designar a 546ª página do
tomo denominado em português A Fugitiva, e que se encontra no terceiro volume da
edição brasileira. Esta página corresponde, na edição francesa, à página 270 de
Albertine disparue, livro incluído no quarto volume da coleção da Pléiade.

12
INTRODUÇÃO

Esta tese tem por objetivo analisar o luto no romance À la recherche du temps
perdu – doravante referido simplesmente como Recherche – de Marcel Proust.
Especificamente, será nosso objeto de estudo o luto do protagonista (e narrador) por
dois personagens maiores: sua avó e Albertine.
A escolha do luto como tópico de pesquisa prende-se à sua relevância na
trajetória do narrador-protagonista: é ao se deparar com o desaparecimento das
pessoas que lhe foram mais caras que o protagonista vai adquirindo, com um grande
custo emocional, a consciência do passo do tempo, da morte dos outros e de si.
Muitos de seus aprendizados, bem como a sua autodescoberta como escritor,
também são tributários do sofrimento imposto por tais perdas.
Com isso não queremos sugerir que o luto seja o tema central do romance, no
sentido em que não nos parece haver um tópico exclusivo que resuma, explique ou
dê conta das 3.500 páginas do romance. Qualquer tentativa de oferecer uma leitura
unificadora de uma obra tão vasta (que trata de temas diversos como o ciúme, a
etimologia, a história, a música, a homossexualidade, a aristocracia, o tempo, as
viagens, a medicina, a guerra, a arquitetura etc.) seria, no mínimo, insuficiente. Com
essa reserva em mente, consideramos que o luto é de grande importância para um
entendimento mais amplo da Recherche.
O luto, na biografia de Marcel Proust, está intimamente ligado à escrita.
Sabemos que a reação à morte da mãe Jeanne, em 1905, contribuirá fortemente para
a dedicação de Proust à literatura. Porém, que ela tenha sido importante não quer
dizer que o seja de maneira determinista ou causal1. É bastante disseminada uma

1
Uma maneira determinista de descrever o impacto da morte da mãe pode ser exemplificada na
seguinte afirmação: “A Recherche, que sem a morte da mãe não poderia ter sido escrita, é colocada
inteiramente sob seu olhar.” (BAUDRY, 1984: 35-6). Ou, ainda, Roland Barthes, em La préparation
du roman: “Enfim, um acontecimento vindo do Destino pode sobrevir para marcar, cortar, incisar,
articular [...], determinar a revirada da paisagem por demais familiar, que chamei ‘meio do caminho
da vida’ [alusão a Dante]: é, infelizmente, o ativo da dor. Por exemplo: Rancé, cavalheiro dândi,

13
descrição da vida de Marcel Proust (em parte encorajada pelo narrador da Recherche)
segundo a qual o escritor teria passado mais de três décadas perdendo tempo em
reuniões mundanas e postergando sua obra literária para, somente após a morte da
mãe, operar-se uma mudança radical nele, em seus propósitos de vida e em seu
comportamento, a ponto de afetar até a sua caligrafia: Proust, enfim, põe-se a
escrever de verdade e obstinadamente até a morte2.
Transpor para o romance uma descrição desse tipo – exclusivista,
reducionista e causal – poderia ter como resultado encarar o luto (com mais
probabilidade o luto por Albertine do que pela avó) como a causa ou o impulso
infalível do protagonista em direção à escrita. Isso, contudo, não é o que lemos na
obra: se é certo que o luto adquire um papel fundamental, embora não exclusivo,
para os aprendizados do narrador-protagonista, fato é que o caminho de formação
do escritor, de descoberta de seu talento e da prática da escrita é tortuoso e pouco
retilíneo – como, aliás, o luto.

Por que avó e Albertine?

A Recherche é um romance de muitas mortes: ao longo dos sete volumes da


obra, morrem Léonie, Swann, Bergotte, Elstir, Saint-Loup, Berma, o senhor Verdurin,
a sobrinha de Jupien, entre outros. Morrem milhares de jovens anônimos durante a
guerra e outros com nome, como “o pequeno Vaugoubert”. A maior parte dessas
mortes é contada pelo narrador de modo lacônico e/ou muitas vezes bastante tempo
depois de terem ocorrido. É assim que ele diz, por exemplo, sobre Swann: “a morte
de Swann me deixara transtornado na ocasião”3 (III, P 156 | III, P 703).

provocador, mundano, volta de viagem e encontra sua amada decapitada por um acidente: ele se
retira e funda a Trapa – Para Proust: a morte de sua mãe, mesmo se a ação traumática, que produz
uma mutação ativa, ocorre mais tarde (1909)” (2003: 07).
2
Segundo a sua secretária Céleste Albaret (1973), ele teria terminado a escrita alguns meses antes
de morrer, o que “satisfaz a mitologia romântica de uma vida inteiramente dedicada à obra”
(COMPAGNON, FAU & DYER, 2022: 125), a partir do divisor de águas que foi a morte da mãe.
3
Apesar das reflexões que se seguem por alguns parágrafos, chama atenção que o narrador não
tenha mencionado o caso antes, sobretudo em se tratando de um personagem que havia sido tão
importante em sua vida. O leitor sabe, desde o final de Le côté de Guermantes, que Swann tem uma
doença grave e está à beira da morte. Outros exemplos semelhantes de menção à morte são o
falecimento do sr. Verdurin e do dr. Cottard: “Assim, os Verdurin davam jantares (e, em breve,

14
No entanto, as duas grandes perdas do romance, para o narrador-
protagonista, receberam uma atenção especial na obra e justificam uma análise em
profundidade nesta tese: são a da avó e a de Albertine. A primeira, doente, morre a
seguir de uma crise de uremia, rodeada pela família e médicos, em uma cena de forte
caráter teatral assistida pelo narrador. A segunda, após um acidente a cavalo, sobre
o qual o protagonista é informado sucintamente por carta.
Por serem as perdas mais importantes de sua vida, é em relação a elas que
Marcel vivencia o luto. Como mostrou Sigmund Freud em “Luto e melancolia” (1992
[1917]), ensaio seminal que norteará nossa discussão, nem toda morte desencadeia o
luto: “Se o objeto não tiver para o ego um significado tão grande, reforçado por
milhares de laços, sua perda não se prestará a provocar um luto ou uma melancolia.”
(139)
Em comum, o luto por Albertine e pela avó se baseia no embate entre a
presença e a ausência da pessoa amada: ausência porque a pessoa morreu (ou foi
embora); presença simbólica, pois o enlutado convoca sistematicamente a memória
do morto. Como dirá o narrador em Albertine disparue: quando alguém morre, “é
como se estivesse viajando.” (III, F 402 | IV, AD 92). Isto é, continuamos a pensar nele
e a nos comportar como se ele fosse voltar.
O protagonista, deste modo, vive tal um anfíbio, entre o presente e o
passado4. É somente aos poucos, de modo intermitente e com muito custo
emocional, que, segundo Freud, podemos aceitar a realidade da ausência. Contudo,
contra Freud em 1917, a Recherche nos mostra que a aceitação total da morte,
entendida como abdicação do morto e sua substituição por outra coisa ou pessoa,
nunca é definitiva ou completamente exitosa.
Perante a perda da pessoa amada, vemos na Recherche dois caminhos
extremos serem comumente evocados. Grosso modo, eles correspondem, por um
lado, a um tipo de fidelidade ao morto de tal sorte que toda nossa vida passa a ser
uma homenagem à sua memória, não nos desligamos dele nem é desejável esquecê-

apenas a sra. Verdurin, pois o marido faleceu pouco depois)” (III, TR 616 | IV, AD 351) ; “Cottard
morreria em breve” (III, TR 614 | IV, AD 349).
4
“[...] uma dessas criaturas anfíbias que, ao mesmo tempo, estão mergulhadas no passado e na
realidade atual, existia sempre uma contradição entre a lembrança viva de Albertine e o
conhecimento que eu tinha de sua morte.” (III, F 419 | IV, AD 114)

15
lo; por outro lado, ao que nós chamaremos nesta tese de luto sumário, isto é, a
tentativa de uma rápida superação da dor, e a qual pode se traduzir pela busca ávida
por um substituto amoroso. Marcel, embora flerte com a primeira opção,
notoriamente se engaja na segunda. Ao longo desta tese, analisaremos cada uma
delas.

Marco teórico: Freud e Hume

O tipo de análise que propusemos da Recherche nos levou, sem prejuízo do


diálogo com a tradição crítica dos estudos proustianos – de Gérard Genette a Julia
Kristeva, de Gilles Deleuze a Leo Bersani – a dar atenção especial a autores que
habitualmente não figuram na bibliografia secundária sobre Proust ou que figuram
com um recorte muito específico, nomeadamente Sigmund Freud e David Hume. Ao
convocar esses autores, nossa intenção foi tornar inteligíveis certas preocupações
inerentes a Proust, e não verificar influências ou propor equivalências.
Tais pensadores, por terem descrito com um vocabulário próprio problemas
aos quais Proust dá uma forma muito reconhecível, ajudam a entender melhor a
Recherche, mas não explicam o romance. Ao transitar fora da bibliografia
especializada habitual, resistimos à tentação de aplicar Freud ou Hume no romance
ou de transpor as ideias deles, tais como se apresentam em seus escritos filosóficos
ou psicanalíticos, para a Recherche5. Em outras palavras, o que fizemos foi assinalar
onde ambos podem ser úteis para ler Proust, e como Proust, em grande medida, os
extrapola.

5
Um exemplo de aplicação filosófica é “Proust du côté de Schopenhauer”, de Anne Henry (1989).
Nele, a autora afirma que a Recherche é “a tradução mais fiel, mais equilibrada e mais literal” do
pensamento do filósofo alemão (149). Proust, levando a cabo um “schopenhauerismo à la
francesa” (158), seria “o discípulo mais inteligente com quem um filósofo pode sonhar” (150). Em
Marcel Proust – Théories pour une esthétique (1981), Henry opera uma transposição semelhante
com o pensamento de Schelling pelo intermédio da leitura que Proust, durante seus estudos de
filosofia e letras na Sorbonne, fizera de Gabriel Séailles. Nesse ponto, concordamos com Antoine
Compagnon quando afirma que a Recherche não pode ser considerada “uma filosofia aplicada” a
um romance (1989: 19).
No caso da psicanálise, as leituras freudianas da biografia de Marcel Proust, de personagens da
Recherche ou de outros textos de Proust são numerosas, e costumam atentar para o complexo de
Édipo e a estreita relação do autor com a mãe. Ver, por exemplo, Proust, Freud et l’Autre, de Jean-
Louis Baudry (1984) ou “Proust and his mother”, de Ronald Hayman (1989).

16
No caso de Freud, se ele não foi o único nem o primeiro a falar sobre o luto, a
descrição que ofereceu teve uma influência incontornável no século XX6. Além disso,
Proust e Freud, contemporâneos, compartilhavam preocupações7, ainda que com
objetivos bem diferentes – Proust, por mais relação que tivesse com a medicina, não
estava primordialmente interessado em diagnosticar doenças, apontar sintomas e
oferecer uma terapia, mas escrever uma obra literária.
Nos dois ensaios em que Freud aborda mais explicitamente o luto, “Sobre a
transitoriedade” (1915 [1916]) e “Luto e Melancolia”, o luto aparece como um
processo psíquico que se segue à perda dolorosa de um objeto amado, e durante o
qual o sujeito que sofre consegue gradualmente se desconectar desse objeto e ligar-
se a outro8. Apesar de Freud assumir a dificuldade em definir com precisão tal
processo, podemos reter as seguintes conclusões:
a) O luto é a demanda da realidade de que a libido se desvincule do objeto
amado e agora perdido;
b) Entre os sintomas do luto, estão o desinteresse pelo mundo exterior e por
tudo aquilo que não tenha a ver com o objeto amado perdido;
c) A duração do luto é indeterminada e ele se desenvolve gradualmente;
d) Não se sabe por que a retirada da libido do objeto perdido é tão dolorosa;
e) O luto não é patológico porque pode ser explicado;
f) O luto é um processo que termina por si só; não há tratamento nem se
pode interferir em seu processo;
g) Ele termina quando o enlutado aceita a realidade e renuncia ao objeto;
h) O resultado esperado e normal do luto é que, uma vez terminado, a libido
esteja livre para religar-se a um novo objeto.

6
Sobre a influência de Freud nas discussões posteriores a respeito do luto e da depressão, bem
como um breve resumo dos debates sobre o tema anteriores aos ensaios de Freud, ver DOZOIS
(2000).
7
Para uma introdução a algumas dessas preocupações, entre elas o sonho, a memória ou a
arqueologia, ver Jean-Yves Tadié (2012) e seu “inventário de temas” (13) em comum entre Freud e
Proust. A abordagem que Tadié faz da Recherche como exemplar de conceitos psicanalíticos,
contudo, difere bastante desta tese. Sobre o luto de Albertine, por exemplo, o autor vê um
“exemplo maravilhosamente detalhado para a teoria do psicanalista” (164). A capitulação de
alguns dos temas em comum também é feita por Malcolm Bowie em Freud, Proust and Lacan (1987:
68-9). O autor se concentra em algumas delas, como a bissexualidade, erros e lapsos.
8
Quando a libido, em vez de se ligar a outro objeto, volta a se vincular ao ego, em um movimento
narcisista, tem-se para Freud a melancolia. Essa posição será revista em O Eu e o Id (1923).

17
Para Freud, portanto, o luto é um processo teleológico que aponta para a
resolução de um problema. Resolvê-lo é finalmente sermos capazes de enxergar as
pessoas que morreram como parte do mundo dos mortos. A Recherche não diz isso,
pelo contrário: as pessoas que morreram continuam a poder assombrar Marcel a
cada esquina.
Ter Freud em mente serve-nos, justamente, para perceber como o luto de
Marcel, no romance, pode ser melhor compreendido pelas intuições de “Luto e
Melancolia”, mas o ultrapassa, até negá-lo profundamente: na Recherche, o luto não
é uma atitude teleológica e terapêutica de lidar com o desaparecimento. Podemos
nunca nos curar.
Qualquer análise aprofundada do luto nos obriga também a fazer justiça ao
pensamento freudiano. Apesar de grande parte da discussão mais conhecida do
austríaco sobre o luto concentrar-se em textos escritos no início da Primeira Guerra
Mundial, é preciso chamar atenção para outros mais tardios, como o faremos. Entre
eles, destacam-se cartas cuja importância está na revisão de alguns preceitos. Freud
passa a cogitar a ideia de que pode não haver solução para o luto nem um substituto
para o que foi perdido. Nesse sentido, a Recherche se aproxima muito mais do Freud
tardio.
No que concerne a Hume, os escassos trabalhos que mobilizam o filósofo na
leitura de Proust centram-se na noção de hábito ou de identidade pessoal9. Não foi o
caminho que escolhemos. Encontramos em Hume, de diversas formas e em diversos
textos, sugestões sobre o que poderia ser a substituição de pessoas. Sendo este um
dos movimentos mais característicos e complexos do luto de Marcel, isto é, conseguir
substituir Albertine, pareceu-nos pertinente e necessário aprofundá-lo.
O Tratado sobre a natureza humana é a obra basilar que consegue oferecer as
ferramentas mais produtivas para pensar a substituição. Não se deve concluir,
porém, que ela autorize sem resistência formular uma ‘teoria da substituição’.
Apontaremos, portanto, algumas reservas que devem ser tomadas para explicar a

9
Ver Roy Groen (2012).

18
substituição amorosa com base no princípio de associação de ideias e impressões;
entre essas reservas está a definição de amor segundo Hume.
Recorreremos também ao ensaio “Do amor e do casamento” (1741-2),
publicado nos Essays, Moral and Political. Nele, Hume é explícito e jocoso ao
recomendar buscar rapidamente outra pessoa como terapia para a dor do amor
malogrado, a partir de uma paráfrase de Platão acerca da origem do amor
(Symposium). O vocabulário da substituição será mais uma vez investigado, desta vez
em ocorrências literais, em algumas anedotas contadas na sua História da Inglaterra
(1754-62, 1778).
Veremos que a substituição amorosa propõe uma lógica a coisas que pouco
têm de racionalidade, como esquecer uma pessoa ou se apaixonar. Ainda assim, o
narrador proustiano empenha-se sistematicamente em considerá-la uma via de
escape controlável por ele. Mostraremos como, no fundo, o impulso da substituição
de Albertine responde ao desejo de superação, pela razão, do sofrimento.

Estrutura

Por questões de metodologia e clareza, a tese está dividida em duas partes.


Na primeira, trataremos da avó; na última, de Albertine. Apesar da divisão proposta,
não se tratam de lutos isolados. Como o leitor se dará conta, o luto por Albertine
evoca um luto anterior, aquele em relação à avó, e por isso retomaremos a figura da
sra. Bathilde nos capítulos sobre Albertine, tal como o fez o narrador no romance.
O caso de Albertine requereu discussões específicas e de maior fôlego, por
isso a parte que lhe é dedicada nesta tese é maior. Nomeadamente, propusemos uma
análise minuciosa a respeito das substituições amorosas, o que nos abriu a discussão,
retomada adiante, sobre a possibilidade ou não de Marcel encontrar consolo. O
motivo para os capítulos sobre Albertine serem mais extensos também pode ser
explicado pela diegese da obra: Albertine ocupa muito mais a atenção de Marcel e o
romance do que a avó. A amiga aparece desde o segundo volume (À l’ombre des
jeunes filles en fleurs) e é o assunto principal do quinto (La Prisonnière) e sexto
(Albertine disparue) volumes.

19
Ainda assim, os pontos em comum entre o luto de Marcel por ambos
personagens fazem com que a segunda parte da tese nos permita olhar de novo para
a primeira. É o caso quando discutirmos as formas possíveis de superação, consolo
ou esquecimento em relação aos mortos, bem como a articulação da memória acerca
dos mortos para a escrita literária.
Na estrutura da tese, optamos por dividir as partes em grandes capítulos, e
estes em pequenas seções. O que importa, no final das contas, não é o nome que
damos (seção, capítulo), mas o fato de preferirmos dividir tópicos diferentes para dar
mais clareza aos argumentos e tratá-los de modo mais aprofundado, sem com isso
perder a relação com o todo.

Avó

O luto acerca da avó está dividido em três capítulos. Por entendermos que a
forma como Marcel reage à morte dela está ligada a episódios que a precederam,
examinamos a relação entre neto e avó e alguns momentos de inflexão nessa relação.
O primeiro capítulo tratará de descrever a visão médica e teatralizada a
respeito de sua morte. Proporemos uma explicação para o que alguns críticos
chamaram de agonia clínica (ROGERS & LAGET, 1987), isto é, a narração da morte da
avó usando descrições fisiológicas e vocabulário médico.
Defenderemos que tal escolha não pode ser exclusivamente imputada à
biografia do autor. Afinal, se é certo que Proust viveu em uma família de médicos, e
se é certo que assistiu à morte da própria mãe, o que justifica, no romance, o discurso
médico? Nossa interpretação vai no sentido de mostrar que a descrição médica
funciona para afastar afetivamente Marcel em relação aos fatos. Ao assumir-se um
observador e tomar para si o olhar médico, ele desloca sua posição daquela do
familiar. Isso lhe permite sofrer menos diante da decadência física e moral da avó. A
teatralização concorre para o mesmo efeito, pois torna a história do
desaparecimento da avó um espetáculo ao qual Marcel simplesmente assiste. Como
de praxe, após um espetáculo, fecham-se as cortinas e o público pode voltar para sua
vida de sempre.

20
Analisaremos como, a partir do telefonema em Doncières, Marcel busca
escapar sistematicamente dos dados que a percepção lhe fornece sobre a
precariedade e velhice da avó, os quais se opõem à visão habitual que o neto
mantinha dela. Deste modo, ele constrói um distanciamento em relação à sra.
Bathilde que culminará no ‘espetáculo’ da agonia fisiológica.
O segundo capítulo tratará de entender aquilo que Gérard Genette (1972)
apontou como sendo o silêncio mais obscuro da Recherche: a elipse que se segue à
morte da avó. O momento logo a seguir à morte poderia nos fornecer elementos
importantes sobre o luto e os efeitos mais imediatos em Marcel da perda da sra.
Bathilde. Ao contrário, o narrador nada diz sobre isso, a história é cortada e retorna
vários meses após o ocorrido.
O terceiro capítulo se concentrará na passagem “Les Intermittences du
cœur”, que aparece em Sodome et Gomorrhe. Nela, Marcel, durante sua segunda
estância em Balbec, é invadido pela memória involuntária a respeito da avó e ali
vivencia o luto. Mostraremos como as pequenas transformações na leitura que ele
faz de uma antiga fotografia tirada com a avó e de um sonho que tem com ela
permitem acompanhar os movimentos do luto: são intermitentes, mas possuem uma
tendência à amenização da dor, embora não à resolução.
Exploraremos com mais detalhe a discussão a respeito da fotografia, por
entendermos que ela é um objeto de cena que concentra uma história importante da
relação entre neto e avó. A imagem foi realizada por Robert Saint-Loup na primeira
viagem de Marcel a Balbec, acompanhado da avó, em À l’ombre des jeunes filles en
fleurs. Na ocasião, o neto criticara duramente a sra. Bathilde pela vaidade em querer
aparecer na foto com um chapéu de abas largas que fazia sombra no rosto dela. Será
apenas na segunda viagem, com a avó morta, que Françoise lhe contará o motivo do
acessório: a avó queria esconder do neto seu estado deplorável de saúde (tivera um
ataque alguns dias antes).
Durante esse momento agudo de luto, Marcel olhará para a foto e dirá: “[...]
tratava-se de uma estranha.” (II, SG 607 | III, SG 172). Contrapondo, na teoria da
fotografia, a ideia de que a fotografia produz estranhos (Kracauer, Benjamin,
Barthes, Sontag), demonstraremos que a estranha de que fala Marcel não é uma
propriedade intrínseca do meio, mas uma interpretação do leitor/espectador,

21
portanto passível de mudança. Proporemos a leitura de outros episódios anteriores
da Recherche para mostrar como, por meio de outras analogias com a fotografia, a
avó foi sendo construída como uma estranha, em tudo alheia à figura habitualmente
terna e atemporal que o neto mantinha dela.
A análise de “Les Intermittences du cœur” nos permitirá avaliar como a
narrativa procurou construir um luto represado e formalmente alocado em uma
passagem com início e fim. Mais uma vez, uma forma de autoproteção da dor, como
o foi o fato de Marcel não pensar na avó após a morte dela. Depois dessa passagem,
serão quase inexistentes as referências à sra. Bathilde, como se o luto estivesse
confinado aos dias da segunda estância em Balbec. Não está, contudo. Seu caráter
insistente e intermitente fará com que Marcel reveja a dor da perda pela avó quando
vier a perder Albertine.

Albertine

Se a morte da avó foi testemunhada por Marcel e seguida de um silêncio


constrangedor por parte do narrador, o contrário se passa com Albertine: Marcel não
assiste à sua morte ou funeral e o narrador desenvolve um discurso bastante prolixo
em relação à perda da amada.
Chamaremos a atenção para a profunda ambiguidade que marca o luto por
Albertine (e, em alguma medida, também pela avó, como teremos ocasião de
retomar). Tal ambiguidade é a chave para entender a narração contraditória que
oscila entre lamento, ciúme, autorrecriminação, revanchismo, culpa, declarações de
superação etc.
Precisamos tê-la em mente se quisermos oferecer uma leitura não
maniqueísta do luto e do próprio protagonista. Daí que procuraremos nos
diferenciar, por um lado, de uma posição da crítica que descreve Marcel como um
cínico que esquece rapidamente quem amou e passa por cima das perdas pessoais;
por outro, da posição oposta, que vê em Marcel um enlutado incurável a lamentar
indefinidamente o passo do tempo e a perda das pessoas e lugares que amou.
No primeiro capítulo dedicado a Albertine descreveremos em que consiste o
lamento de Marcel. Também trataremos, entre outros pontos, de qualificar o ciúme

22
póstumo por Albertine, chamado por Hillis Miller de um “clímax paradoxal” (1995:
124). Consideramos que o ciúme revela o desejo de controle de Marcel, pois desloca
a atenção sobre uma situação incontrolável (a morte) para outra que ele
equivocadamente crê poder controlar e conhecer, a saber, o passado e a identidade
de Albertine, agora morta. Trata-se, como veremos, de uma atitude típica de
autoengano, como o define Joshua Landy (2004): o protagonista se ilude ao dar a
impressão a si próprio que busca uma verdade quando, de fato, não o faz, pois ela é
incômoda e não lhe interessa. Ao mesmo tempo, mostraremos que o ciúme traz
como ganho emocional a proteção do objeto perdido contra o esquecimento, na
medida em que torna Albertine presente.
Esse capítulo também será a ocasião para descrever em pormenor a
ambiguidade do luto por Albertine. Proporemos uma análise de Albertine disparue e
de parte de Le Temps retrouvé sob a ótica do gênero das elegias. Foram vários os
críticos que aproximaram a Recherche à elegia (Benjamin, Bowie, Chessex); sob
alguns aspectos, a nossa avaliação vai em sentido contrário. Especificamente,
chamaremos atenção para a ausência, na Recherche, de dois movimentos
extensamente descritos na teoria do gênero elegíaco, a saber: a passagem do
lamento ao louvor e deste ao consolo.
O consolo será objeto de discussões do último capítulo, pois seu
entendimento requer um debate prévio sobre outros pontos, como a substituição
amorosa e a superação. No que concerne ao louvor, veremos que em Albertine
disparue o elogio a Albertine é sempre contraditório; se o narrador lamenta a perda
de Albertine, sua “pequena estatueta”, “anjo da música” (III, F 385 | IV, AD 70),
sistematicamente a desqualifica e objetifica: “meu querido travesseirinho” (III, F 391
| IV, AD 78).
Longe de significar que o protagonista já não ama ou nunca amou Albertine,
como alguns exegetas propuseram, parece que este é o modo como Marcel
consegue viver o amor por ela, indissociável do ciúme e de outros sentimentos como
revanchismo e culpa. Não há algo que se possa denominar ‘amor em estado puro’ na
Recherche, e todas as relações pessoais intensas no romance são também elas
marcadas pela ambiguidade.

23
O segundo capítulo falará de outra atitude típica de Marcel e que se contrapõe
ao lamento: encontrar substitutas amorosas de Albertine. Para tal, faremos uma
discussão aprofundada sobre como em “Luto e Melancolia” de Freud e na teoria da
associação de David Hume encontramos balizas para descrever a substituição de
pessoas por outras. Mostraremos que a ideia de substituir uma pessoa implica uma
visão, em menor ou maior grau, funcionalista de pessoa; também implica um caráter
volitivo e teleológico daquilo que é esquecer alguém ou se apaixonar por alguém.
Usada por Marcel (e aconselhada por Hume) como ferramenta terapêutica
para a cura da dor da perda e da rejeição, a substituição amorosa nunca consegue se
consumar, pois faz sempre referência à pessoa substituída, em vez de apagá-la.
Mobilizaremos, sempre que necessário, outras referências ficcionais para melhor
descrever nosso argumento.
O último capítulo, finalmente, recuperará de modo mais sistemático a morte
da avó, a fim de questionar o alcance para Marcel do luto vivido acerca das duas
mortes mais significativas para ele, de Albertine e da sra. Bathilde. Apontaremos que
as mudanças que se operam em Marcel não podem ser exclusivamente avaliadas por
critérios comportamentais – ainda mais em uma narrativa na qual comportamentos
confundem-se com o que o narrador em primeira pessoa diz sobre comportamentos
– e falaremos da mudança assistemática de ideias a respeito da vida e da escrita. Uma
tal transformação pode ser lida na última cena de Le Temps retrouvé, o baile de
máscaras nos Guermantes: é a consciência da morte que permite a Marcel perceber
que o tempo passou, as pessoas envelheceram, como ele próprio, e seus rostos se
tornaram irreconhecíveis.
Contra a posição de alguns exegetas (sobretudo Wassenaar e Ricciardi),
defenderemos que Marcel não supera a perda de Albertine e da sra. Bathilde, se por
superação entendermos uma posição estável, indolor e consumada em relação ao
morto. Também colocaremos ressalvas às tão propagadas declarações do narrador
segundo as quais ele teria se tornado apático a ambas figuras e já as teria esquecido,
seguindo a “lei geral do esquecimento” (III, F 508 | IV, AD 223).
Contudo, desconfiar da narração, se é necessário, não nos deve levar a um
ceticismo generalizado. No limite, este seria um ponto sem saída que colocaria
Marcel como um louco que faz declarações divergentes e irreconciliáveis. Nesse

24
ponto nos valeremos das valiosas contribuições de Martha Nussbaum em Love’s
Knowledge (1990). Nussbaum mostra como o protagonista tenta controlar os
sentimentos pela inteligência, por meio de “racionalizações autoenganosas” (264).
Nesse sentido, defenderemos que as inúmeras declarações de superação,
esquecimento e apatia acerca de Albertine (e da avó) são afirmações intelectuais que
visam controlar sentimentos dolorosos e construir uma situação mais vantajosa para
o narrador. Afinal, dizer que já esqueceu Albertine é o mesmo que resolver o luto: o
luto depende da memória afetiva acerca do morto, de não lhe sermos apáticos, de
ele continuar sendo importante para nós. Comparativamente, que o narrador afirme
já não amar Albertine é muito parecido com declarar-se curado do luto. Como
haveremos de sofrer por quem já não amamos? O motivo, assim, seria esvaziado e o
problema prontamente resolvido.
O narrador quer logo deixar de sofrer, solucionar o luto, encontrar um consolo
e colocar um ponto final nas intermitências afetivas. Por outro lado,
contraditoriamente, a dor mostra-se um frutífero motor da escrita, e por isso é
também alimentada. Transformar essa dor (e os mortos com os quais ele se sente em
dívida) em matéria para um livro é uma atitude tomada com culpa e sensação de
inevitabilidade – a única atitude possível, segundo o narrador, para um escritor.
Finalmente, veremos que a obra literária consegue oferecer apenas um
consolo precário e provisório ao escritor. Por outra parte, se os mortos são
imortalizados na obra, não é com a atitude do escritor enlutado benevolente que erije
uma lápide10: imortalizar Albertine e a sra. Bathilde em livro somente ocorre à custa
de transformá-las em personagens de ficção, sacrificando-as, profanando-as,
ultrajando-as, e nesse mesmo ato amando-as.

10
Recordemos do verso de Rainer Maria Rilke, “Não erijáis lápide alguma.” (Sonetos a Orfeu, I.V, p.
21)

25
PARTE I
O CASO DA AVÓ

Esta parte se dedicará à análise do ‘caso da avó’: o desenvolvimento de sua


doença, a narração sobre a sua morte e os impactos dela em Marcel. Interessa-nos
chamar atenção para os seguintes aspectos:
a) A caracterização da relação entre a avó e Marcel;
b) A visão médica e fisiológica sobre a morte da avó: a narração da agonia da
avó está impregnada pelo vocabulário médico e pelas visitas e diagnósticos
de doutores; apesar de a morte ser a consequência de uma doença
incontrolável pela medicina, não se deixa de apostar na ciência;
c) A teatralização da morte;
d) Como e por que, à descrição da morte da avó, a mais detalhada do
romance, segue-se uma elipse e a narrativa salta para meses depois do
ocorrido, omitindo-se os efeitos da morte em Marcel?
e) Em “Les Intermittences du cœur”, que aparece no volume seguinte,
Sodome et Gomorrhe, se pode vislumbrar um luto incompleto e
intermitente, que aparecerá novamente em Albertine disparue.

26
CAPÍTULO I

DESAPARECER

O desaparecimento da avó é, juntamente com o de Albertine, o mais


importante da Recherche: aquele de maior envergadura e que concentra a maior
carga afetiva. Não por acaso, ambos personagens são cruciais para Marcel. Embora
o luto que se segue seja bastante diferente em um e outro caso, em ambos ele é o
momento, por excelência, da autoculpabilização do protagonista.
O caso da avó é a primeira morte sentida pelo narrador. A da tia Léonie, por
exemplo, não causou efeito algum, a não ser em Françoise. Depois, a morte do tio
Adolphe é referida de passagem. Mas nem Léonie nem Adolphe possuem a
importância da sra. Bathilde Amédée.
O episódio é narrado em Le Côté de Guermantes. A primeira versão conhecida
do episódio data da primavera de 1910 e se encontra nos Cadernos 39 à 43, mas já há
evidências de que se tratava de uma reescritura. Ao longo dos anos seguintes, o
episódio será trabalhado por Proust cuidadosamente, até a sua publicação, em 1921.
No estudo dos rascunhos, nota-se que a doença e a morte de Bathilde
formavam um conjunto narrativo autônomo, dissociado posteriormente na versão
publicada (cf ROGERS & LAGET, 1987; GOUJON, 2014 [2004] e HERSCHBERG-
PIERROT, 2006). A sequência é repartida entre o final do primeiro volume de Le Côté
de Guermantes e o início do segundo, publicados pela NRF com um ano de intervalo
(em 1920 e 1921, respectivamente).
Essa divisão, que em seu momento teria visado sobretudo questões
comerciais, permitindo a impressão de tomos menos volumosos, acentuaria o efeito
de espera e suspense sobre o destino da avó. Mas não só: criou-se um conjunto no
qual a morte tem um lugar preponderante, abrindo e encerrando o que era
Guermantes II. Primeiro, a da avó; por último, a patética cena do anúncio da
enfermidade de Swann e seu fim próximo.

27
Depois da morte da avó, as referências a ela desaparecerão quase por
completo até o final desse volume. Será apenas no tomo seguinte, Sodome et
Gomorrhe, que Marcel se lembrará dela, de modo significativo, por meio da memória
involuntária. O episódio é narrado na passagem “Les Intermittences du cœur” (II, SG
588-612 | III, SG 148- 178). Marcel chora copiosamente sua ausência, ocasião
emblemática durante a qual emerge, e de forma aguda, o luto.
É sobre a narração da morte e seus prelúdios que primeiramente falaremos.
Ela permite aprofundar aspectos importantes do luto. Por exemplo, por que Marcel
“esquece” a avó durante tanto tempo logo após ela falecer, e por que a sua
emergência tardia é tão dolorosa.

Uma questão médica

1. Primeiras considerações

O ataque causado pela uremia11 durante o último passeio que a avó faz com
Marcel pela avenida Gabriel é o estopim para a sua morte. Mas já então a avó estava
doente. Sua doença se confunde com a velhice, a tal ponto de os sinais da primeira,
como o cansaço, parecerem o curso normal da segunda.
Ademais, a velhice da avó é até então vista por Marcel como estagnada no
tempo e desconectada de maiores consequências. Em outras palavras, ao falar dos
cabelos da avó, ele não vê um sintoma de uma velhice que se desenvolve e projeta
um futuro desolador. Um dos indícios da velhice aparece de modo inofensivo em À
l’ombre des jeunes filles en fleur, o segundo volume do romance. No quarto de hotel
de Balbec, durante a primeira viagem à estação balneária, Marcel, desolado,
reencontra conforto na avó de cabelos grisalhos e se atira nos seus braços para beijá-
la. Até aqui, nada de inquietante para ele. Os sinais da morte, contudo, se farão mais
presentes.

11
Caracterizada por altas taxas de ureia no sangue, a uremia compromete as funções renais.

28
A narração do adoecimento e da morte da avó (II, CG 249-274 | VII, CG II 167-
207) é fortemente marcada pela reunião de dois elementos: a fisiologia e, em menor
grau, a teatralização cômica. Tentaremos dar conta primeiramente do primeiro
aspecto.
Na descrição da avó a partir do ataque, abundam termos como “a alteração
do rosto e o desvio da boca” (II, CG 253 | II, CG 615), “a pequena ruptura ou obstrução
de uma artéria, causada pela uremia” (II, CG 254 | II, CG 616), a perna esquerda “que
ela não conseguia erguer” (II, CG 254 | II, CG 616), “um movimento convulsivo” (II, CG
254 | II, CG 616), “congestão cerebral” (II, CG 265 | II, CG 630), “aumentar a taxa de
albumina” (II, CG 255-6 | II, CG 618), “era necessário não cansar os rins” (II, CG 255-6 |
II, CG 618), “que tomasse morfina” (II, CG 255-6 | II, CG 618), para citar alguns.
Brian Rogers e Thierry Laget falam de uma “agonia” descrita de “forma
clínica” e a interpretam como uma consequência de circunstâncias específicas da vida
de Marcel Proust transpostas à obra. Anne Herschberg-Pierrot assinala a
“experiência fisiológica da morte”, mas não oferece uma explicação para o uso desse
tipo de discurso12.
Grosso modo, a explicação biográfica defende que, à força do convívio, no
seio familiar, com médicos, esse universo teria influenciado a escrita de Proust de
modo geral. O pai, Adrien, foi um famoso higienista e professor de medicina. O
mesmo caminho seguiu o irmão, urólogo e ginecologista, e quem seria mais tarde
responsável pela edição e publicação póstuma da obra de Proust13.
Para além desse elemento da formação do escritor, os exegetas apontam
outras prováveis fontes. Especificamente no que diz respeito à elaboração do texto
sobre a morte da personagem da avó na Recherche, Brian Rogers & Thierry Laget
avançam a carta que Proust enviara para a amiga Mme de Noailles em 1912. Nela, o
escritor relata ter descoberto um caderno onde sua mãe, Jeanne, anotara, com
muitos detalhes, o momento da morte de sua própria mãe, de seu pai e de seu marido

12
Conforme ROGERS & LAGET, “Notice” de Le Côté de Guermantes II (1987: 1672); HERSCHBERG-
PIERROT (2006: 87).
13
Para além da nota de ROGERS & LAGET, com maior ou menor ênfase, podemos encontrar
explicações semelhantes em: ROGERS & BOUILLAGUET (2014 [2004]); WATT (2011) e CHARDIN
(2015). A obra de BÉHAR (1970) destoa do conjunto ao assinalar os limites do biográfico, embora
vez ou outra se acomode a essa linha.

29
(Adrien, pai de Marcel): “[os textos] são de um tal desespero que quase não
conseguimos seguir vivendo depois de tê-los lido” (Corr., XI: 138).
Ainda mais do que se inspirar no modo como a mãe descreveu a morte dos
seus, é com a morte dela, presenciada por Proust, que, consensualmente, a crítica
imputa as maiores semelhanças com o texto da Recherche. Primeiramente, há as
parecenças médicas: a avó do romance e Jeanne (bem como a avó biológica, aliás)
morreram vítimas de uremia. Mais importante ainda, Proust assistiu à morte da mãe
e a descreveu em pormenores em uma carta que endereçou à mesma Mme de
Noailles no dia seguinte ao falecimento. A amiga comentaria a leitura do episódio da
Recherche, quando a avó morre, em comparação à carta que o escritor lhe teria
enviado, hoje perdida: “a agonia da avó [é descrita] nos mesmos termos dos quais
ele se havia servido para me fazer assistir com ele aos combates contra as trevas do
ser que lhe foi o mais caro” (Correspondance générale, II: 26-27).
Na escrita do romance, ele teria feito uso dessa mesma narração. Mesmo
estando indisponível a carta endereçada à amiga, há poucos motivos para supor que
essas conclusões não sejam verdadeiras. O apoio em epístolas para a escritura do
romance já foi apontado em outras ocasiões. Pensemos, por exemplo, na carta que
o personagem Marcel envia à Albertine, antes de ela morrer, e que foi parcialmente
copiada da carta que Proust enviara a Alfred Agostinelli, seu ex-motorista, secretário
e amante, no dia em que este sofre um acidente aéreo fatal14.
Essas hipóteses finalmente resumem-se ao mesmo movimento de
interpretação – a transferência para o livro de elementos biográficos. A leitura do
romance enquanto transposição direta da biografia do autor é particularmente
apelativa e tentadora para uma obra como a Recherche, em que Marcel Proust
empurra intencionalmente as fronteiras entre autor, protagonista e narrador em
primeira pessoa (chamados pelo mesmo nome, Marcel). Para o caso em questão,
nenhuma das explicações exclusivamente empenhadas em paralelos vida-obra
parecem dar conta, na economia do romance, do uso de um discurso médico ao tratar
da morte da sra. Bathilde.

14
Cf. Corr., XIII: 217-221. Citado por COMPAGNON (1989: 144).

30
Em L’univers médical de Proust (1970), Serge Béhar defende que, pela
frequência e densidade das alusões médicas presentes na Recherche, “a componente
clínica é parte integrante da própria trama do romance” (227) e do estilo proustiano.
Tanto a terminologia quanto os propósitos do discurso médico (descrição de causas
e sintomas, prescrição de tratamentos) são apropriados e criticados por Proust.
Apesar disso, permanece obscuro o sentido profundo dessa apropriação no
romance. Béhar assinala exaustivamente e de modo convincente as passagens nais
quais esse discurso é evidente. Contudo, as explicações que oferece, lacônicas e por
vezes dispersas, são mais indicações do que propriamente argumentos15. Talvez
porque lhe interesse mais recontar os episódios do romance sob a égide da medicina,
e não justificá-los. Situaremos algumas de suas intuições adiante em nosso
argumento, e nessa ocasião voltaremos a Béhar.
Duas perguntas precisam de justificações: por que Proust faz uso de tantos
detalhes para narrar a agonia da avó, e quais efeitos advêm dessa escolha? Sobre a
primeira delas, podemos responder que o testemunho da morte da avó, a única
morte que Marcel presencia, encoraja e facilita a profusão de detalhes na narração.
A assistência à morte da avó contribui para a narração detalhada, certamente.
Contudo, não parece suficiente para explicar o modo específico como ela é narrada
(o que nos ajudaria a compreender a segunda pergunta). Quão diferente é o olhar da
mãe sobre a situação e a convalescente. Seria muito pouco provável que a mãe
narrasse a morte do mesmo modo que Marcel, ela que também testemunhou a
agonia, mas o fez com uma profunda implicação emocional, piedade e desespero.
Vamos mostrar que a descrição clínica da morte da avó é, ao mesmo tempo,
justificada e encorajada por dois elementos: a) a doença de que o a avó padece, e
que, aliás, reforça o envelhecimento; e b) o distanciamento, naquela altura, entre
Marcel e a convalescente. Depois de desenvolver ambos aspectos, em um segundo
momento, tentaremos inserir o discurso médico e a doença em uma visão mais geral
do romance, que trará consequências também para um entendimento do luto.

15
No final de sua monografia, ele acaba subtraindo a importância estrutural, para o romance, que
havia conferido à medicina, definindo a sua presença como uma “dimensão suplementar” (Op.cit:
245).

31
Por um lado, a doença favorece uma perspectiva médica acerca do
personagem, que culmina na morte. A velhice, no que possui de precariedade física,
tende a acentuar os efeitos da doença; daí que a avó, que conjuga doença e velhice,
seja um caso privilegiado para o olho clínico. Afinal, são os médicos que se dedicam a
descrever e tratar doenças, com um vocabulário próprio – científico, biológico,
fisiológico. É nos médicos que a família de Marcel deposita a confiança na salvação
da avó. E o neto, embora descrente da medicina, não deixa de apostar nela como
último recurso.
Por outro lado, testemunhar e descrever a convalescência e a morte da avó
com olho clínico são tanto um resultado do distanciamento de Marcel em relação à
avó quanto, justamente, uma forma de criar e salvaguardar essa mesma distância.
Marcel abandona temporariamente a posição de membro da família, com
laços afetivos, para aderir a outra, similar a de um médico; um médico, aliás, que não
participasse ativamente da luta contra a morte, mas apenas a descrevesse; ou, ainda,
um estudante de medicina, com interesses estritamente intelectuais. A Aula de
anatomia do dr. Tulp (1632), de Rembrandt, oferece um bom exemplo: a curiosidade
e o interesse do grupo de alunos ao redor de um cadáver, com suas expressões faciais
tensas e gestos inclinados para ouvir o professor, se restringem à anatomia, ao
conhecimento técnico, sem afetação emocional pelo morto. Parece ser esta a
postura de Marcel.
Ao reservar um vão entre si e a avó, criado pelo olho clínico, o neto assegura
que não topará com a perda da avó real, como tentaremos explicar.
Consequentemente, tampouco terá de se haver com o nada – “o néant” – no qual ela
se estava transformando.

1.2 Antecedentes: a avó cuidadora

É útil caracterizar o tipo de relação entre avó e neto. Não falaremos


exatamente quem era a avó, mas quem ela era segundo Marcel. Isso se justifica
porque o luto também tem a ver com o tipo de relação que uma pessoa tinha com
outra que desapareceu. Essa intuição já estava presente em “Luto e Melancolia” de

32
Freud, quando escreveu que a melancolia decorre de uma relação ambígua com o
objeto perdido: “A perda do objeto de amor é uma oportunidade extraordinária para
que entre em vigor e venha à luz a ambivalência das relações amorosas” (FREUD, LM:
136).
A reação de autodepreciação e autorreprovação, característica de um
melancólico (e que o diferenciaria de um enluntado) seria, na verdade, o retorno
contra o ego de uma agressividade inconscientemente endereçada à pessoa amada
que ele perdeu. Ou seja, uma relação de certo tipo (no caso, ambivalente) teria suas
bases evidenciadas aquando da perda do objeto. Isso ficará ainda mais claro na
reação de Marcel à morte de Albertine.
Seguindo o texto de Freud, não se pode afirmar que o tipo de relação com
uma pessoa previamente à ruptura determina o tipo de luto que se seguirá – se luto
normal ou patológico ou, para todos os efeitos, se luto ou melancolia. O quadro típico
do melancólico que se autorrecrimina dependeria eventualmente também de uma
predisposição do paciente (no caso, uma predisposição à neurose obsessiva).
Entre os motivos para a depressão após a morte de alguém querido, Freud
escreve, estão todos os elementos por meio dos quais “pode penetrar na relação
uma oposição de amor e ódio ou pode ser reforçada uma ambivalência já existente”
(136). Fica claro que a relação entre duas pessoas contribui para o modo como se
articulará a resposta à perda de uma delas. Com isso queremos dizer que vale a pena,
em vez de saltarmos diretamente para a resposta de Marcel face à morte da avó, falar
um pouco sobre quem ela era para ele, da relação que ele manteve com ela. Essa
caracterização, longe de justificar a tentativa de classificar Marcel como enlutado ou
melancólico, nos ajudará a entender o silêncio de Marcel a seguir da morte e a
autoculpabilização quando ele começa a sofrer intensamente pela perda da avó.
A avó, até então, fora uma espécie de enfermeira de Marcel. Foi com ele para
as águas termais na Alemanha; autorizou o neto, mesmo a contragosto e com um ar
desolado, a consumir álcool no trem para Balbec, depois de Marcel invocar a
recomendação médica contra eventuais crises de sufocação (I, MF 523 | II, JF 12). É
ela quem lhe cuida e acompanha. Ao longo de À l’ombre des jeunes filles en fleur,
ganha uma importância e um espaço cada vez maiores na vida de Marcel, ao mesmo
tempo em que se opera um deslocamento da figura da mãe do protagonista.

33
Balbec será o ponto de inflexão na narrativa. A viagem para a estação
balneária marcará a aproximação mais íntima entre avó e neto, bem como uma
separação entre filho e mãe. É importante sublinhar a curva que essa viagem cria,
porque será com outra viagem, mais tarde, que se projetará a distância irremediável
entre avó e neto, a qual se fará sentir no momento da morte.
Não é à toa que as viagens são momentos de inflexão: elas deslocam o
personagem de seu habitat, mas seus efeitos não são necessários ou controlados.
Balbec, Veneza, Doncières não exercem a mudança que Marcel estava à espera: não
há mudança (de sentimentos, de comportamento, de ideias a respeito do mundo)
que possa ser encomendada, antecipada ou controlada. Contudo, as viagens, ao
deslocarem um personagem de seu lugar habitual (a mobília, a casa, as ruas e as
pessoas às quais está acostumado), podem facilitar ou suscitar uma nova relação com
esse novo estado de coisas; geram-se – ou às vezes mesmo exigem-se – ideias,
comportamentos e experiências não habituais16.
A nova disposição do personagem frente ao novo, na Recherche, dura o breve
período em que o personagem ainda não se habituou. Marcel, que de início se assusta
com o pé direito alto do quarto do hotel, torna-se tão dono do espaço quanto alguém
que tivesse sempre estado ali. O que era estranho de modo negativo torna-se
conhecido; isso ocorre a tal ponto que é como se Marcel se tornasse dependente da
nova realidade.
As viagens também são a ocasião para uma infeliz ruptura entre as
expectativas por muito tempo idealizadas e o lugar real. O que inicialmente era
sobrevalorizado e desconhecido, torna-se mais prosaico (pensemos na frustração do
protagonista ao ver a igreja de Balbec). A viagem o afasta de casa e o aproxima do
desconhecido. A proximidade com um novo objeto não garante um julgamento mais
exato, e é preciso continuamente corrigir as percepções. Em contato com os objetos,
é como se Marcel fosse ajustando os graus de seus óculos.

16
Embora as viagens possam facilitar novas experiências e olhares sobre o mundo e nós próprios, e
Marcel as tenha buscado também com essa função, o narrador chama atenção para a fantasia da
viagem como reveladora privilegiada da realidade. No último tomo do romance, Le Temps rétrouvé,
ao falar das recordações sobre Balbec e Veneza, o narrador afirma: “Já verificara bastante a
impossibilidade de atingir, na realidade, aquilo que estava no fundo de mim mesmo.” (III, TR 697 |
IV, TR 455)

34
A distância em relação a um objeto conhecido, por outra parte, tem como
efeito primeiro (mas não necessário) a percepção de um aspecto dele até então
desconhecido. Em um ou outro caso, à força da repetição, o estranhamento
esmorece e cede passo ao hábito.
No que concerne às relações entre pessoas, viagens parecem ser um
momento de viragem. A primeira viagem para Balbec aproxima avó e neto e serve
como antídoto para a relação fracassada de Marcel e Gilberte. Uma outra viagem para
Balbec, agora já sem a avó, reabilitará a finada, devolvendo-lhe a importância até
então camuflada no silêncio que se seguiu à morte, como também modificará a
relação de Marcel com a mãe enlutada. Uma última viagem, desta vez para Veneza,
será um momento de viragem a respeito do luto de Marcel por Albertine.
Sobre a primeira viagem, fica decidido que ele partirá para Balbec. Não era lá
que estava a igreja persa de que Swann falara? Fica decidido que Marcel irá, mas não
em uma viagem em família: apenas a avó e Françoise lhe acompanharão. A
impossibilidade de férias com toda a família, conclui Marcel, era a consequência
provável das sucessivas decepções que ele, com pouca saúde e um frágil sistema
nervoso, causara aos pais.
No mesmo dia da partida, a mãe decide instalar-se com o pai em Saint-Cloud.
Ela levaria o filho e a sra. Bathilde à estação de trem e, dali, partiria de fiacre
diretamente para seu destino. Marcel vê em tal decisão uma artimanha da mãe para
evitar qualquer mudança indesejável de última hora, pois o filho poderia desistir da
viagem apenas para voltar com a mãe para casa.
Daí advém uma ruptura entre ambos. A mãe, mesmo o sabendo triste, é
inflexível quanto a sua decisão. Já não mais vemos a mãe que cedia às chantagens do
filho para lhe dar o beijo de boa noite, na famosa cena do início do livro, em Du côté
de chez Swann. Na estação de trem, “pela primeira vez sentia ser possível que minha
mãe vivesse sem mim, dedicada a outra coisa, com outra vida diferente” (I, MF 520 |
II, JF 09). A dedicação a outra coisa, no original francês, não é mais do que uma vida
outra que não para Marcel17.
Será a avó quem ocupará esse espaço maternal.

17
“Pour la première fois, je sentais qu’il était possible que ma mère vécût sans moi, autrement que
pour moi, d’une autre vie.”

35
No início da estadia em Balbec, Marcel, arrancado de seus hábitos, se angustia
e se sente desamparado e sozinho. Ameaça voltar para Paris, em mais uma cena de
chantagem típica do protagonista. É a avó quem lhe confortará: “Então minha avó
entrou: e, para a expansão de meu coração reprimido, abriram-se logo espaços
infinitos” (I, MF 535 | II, JF 28).
Em Marcel, há uma sensação de relação fusional com a avó, ela sendo uma
extensão dele; seus pensamentos se prolongavam nela, “passavam de meu espírito
ao seu sem mudar de lugar, de pessoa” (idem).
Ela, enfim, lhe ajuda a descalçar os sapatos. Esta cena será relembrada anos
depois por Marcel. À falta da mãe, é a avó que a substitui. Lá está a sra. Bathilde a
cuidar dele: detém o neto com um olhar suplicante, abaixa-se para descalçá-lo. Em
seu roupão de percal, traje “que punha em casa sempre que um de nós estava
doente” (I, MF 535 | II, JF 28), ela é a mãe, a criada e a enfermeira. É a devota de
Marcel. O vocabulário sintetiza a descrição maternal da avó: do beijo que Marcel lhe
dá, ele retira algo “nutritivo”. Em francês, nourricier remete a nourrice (babá ou ama-
de-leite). Os termos em comparação são claros. Ao seu lado, Marcel é “uma criança
que mama” (I, MF 536 | II, JF 28).
Nesse quarto de hotel ameaçador para Marcel, pois desconhecido, a avó
simbolicamente romperá o tabique que separa o seu quarto do dele, e inventará um
código entre os dois: que durante a noite, se precisasse, o neto tocasse três vezes à
parede para se comunicar com ela. É nessa mesma cena, no meio do idílio, que
desponta um indício da velhice da avó. Marcel, ignorante da doença que já seguia seu
curso, tem uma percepção bastante inocente: ao lançar-se para a avó, cheio de
mimos, Marcel acaricia “seus lindos cabelos, que recém se faziam grisalhos” (I, MF
536 | II, JF 29).
A imagem de uma idade cujo avanço começa a se fazer notar é um detalhe
sem qualquer inquietação. É uma imagem bela, totalmente dócil e benigna, em nada
parecida àquela que virá, uma “velha cabeleira que não tinha forças para suportar o
contato do pente” – e a qual, à força, cruelmente, Françoise penteia (II, CG 264 | II,
CG 629).

1.3 A avó doente

36
A doença abre um tempo diferenciado no romance, uma linha temporal
inesperada e errante, espécie de desvio do tempo (DAUNAIS, 2004). Desvio porque,
paralelamente ao tempo cronológico que, idêntico para todos os personagens e
exterior a eles, uniformiza o calendário dos fatos, o tempo da doença (e do coração,
como diz Marcel) impõe um outro. A questão é iluminada por Philippe Chardin (1982)
quando afirma que a doença não apenas acelera a morte, mas também a história
narrada, criando uma nova velocidade dentro do texto.
O ataque nos Campos Elísios é o estopim para a degradação da saúde da avó
de Marcel, e torna a morte mais provável. Com a doença já instalada, a evolução do
quadro de saúde obedece a um ritmo ditado pela enfermidade: acelera a narração
quando se agrava e parece retardá-la quando os sintomas cedem (para logo
voltarem).
A doença (mas também o envelhecimento) alimenta uma oscilação irresoluta
entre a incerteza e a instabilidade, traduzidas na sucessão de estados de melhora e
piora da enferma. Há, portanto, uma intermitência no tempo narrativo (para já iniciar
um vocabulário intrinsecamente ligado ao luto da avó e, como tentaremos mostrar
na segunda parte desta tese, também ao luto por Albertine). Tal intermitência se
traduz pelo vai e vem dos sintomas no corpo. A essa descontinuidade se soma uma
outra, afetiva.
Os primeiros sintomas daquilo que viria a ser chamado, tardiamente, de uma
crise de uremia, apareceram de modo disperso, porque Marcel não os percebera ou
os percebera de modo descontínuo. É de supetão que Marcel se dá conta da
deterioração da saúde da avó, embora já houvesse indícios de que ela se operava
subrepticamente. Quando a família se muda para o novo apartamento no hotel de
Guermantes, por exemplo, é para que a avó, cuja saúde estava fragilizada, tivesse ar
mais puro (II, CG 13 | II, CG 310).
Nesse tipo de morte por doença, pode-se conjecturar que ninguém é pego
totalmente de surpresa, por mais altas que sejam as esperanças de que a medicina
ofereça a cura para o mal. Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, isso não significa
que nos sintamos mais preparados para a morte – nem quem morre, nem quem fica.

37
Preparar-se, neste caso, não é um exercício apenas da inteligência, mas também
afetivo.
O conhecimento prévio de que alguém vai morrer, mais presente em relação
às pessoas que sabemos gravemente enfermas, não nos impede de sofrer quando a
morte por fim se concretiza e de agirmos como se tivéssemos sido pegos de surpresa
(ou seja, de ficarmos chocados). Pensemos na reação da mãe de Marcel. Às primeiras
palavras do filho sobre o estado da avó, a seguir do passeio nos Campos Elísios, ela
teria mostrado um desespero “já resignado”, como alguém que estivesse desde
sempre à espera dessa notícia: “há muitos anos ela o [desespero] trazia preparado
dentro de si para um dia incerto e final” (II, CG 253 | II, CG 614). A fatalidade de um
destino que ela sabia terminar na morte não a isentou da lástima. Esse tópico será
tratado com mais pormenor quando investigarmos a perda de Albertine.
É justamente com surpresa que Marcel repara que a avó está morrendo. Ao
longo da doença dela, apenas por solavancos ou chacoalhões Marcel é acometido
pela ideia – acompanhada e provocada pela percepção exata – de que a avó
desaparecerá. Ele evita essa ideia que o corpo, os cabelos, a voz da avó testificam, ao
mesmo tempo em que se depara literalmente com a gradual degradação da avó.
Algumas formas de Marcel evitar a proximidade da morte que a doença e a
velhice anunciam passam por esquecer temporariamente a avó e, mais adiante,
apostar na medicina e explorar o grau de incerteza subjacente a toda enfermidade. A
previsibilidade do desenlace, ao ser negada por Marcel, torna a doença
confusamente imprevista. Como consequência, a percepção da catástrofe – o ataque
da avó nos Campos Elísios – é aguda: racionalmente, Marcel não poderia suspeitar
que a avó teria um ataque, pois confiava no diagnóstico e nas recomendações de Du
Boulbon. Ao mesmo tempo, a pronta reação de Marcel, buscando imediatamente
ajuda médica, como se já soubesse da gravidade, confere ao episódio um tom de
tragédia anunciada.
A doença impõe um regime intermitente de afetos em Marcel, paralelamente
à intermitência do estado de saúde da avó. Nesse regime, o sofrimento perante a
possibilidade de perder o outro é sentido de modo descontínuo: ora atual e agudo,
ora distante ou marginalizado pela esperança na recuperação da enferma.

38
Ao longo das vezes em que Marcel se depara com o enfraquecimento da avó,
a morte, de incerta ou fantasmagórica, vai se tornando cada vez mais presente.
Quase no fim da vida da sra. Bathilde, Marcel especula sobre os efeitos do convívio
prolongado da avó com a doença: “é raro que essas grandes enfermidades [...] não
se alojem por muito tempo no doente antes de matá-lo, e durante esse período não
se façam logo conhecer, como um vizinho ou locatário sociável” (II, CG 251 | II, CG
612).
Se a morte se alojara por tanto tempo na avó, como foi que Marcel não
percebeu antes? Ou melhor, por que não percebeu de modo constante? Até então,
ele parece não entender a gravidade da doença: em parte, saberemos, pelas
tentativas da avó de protegê-lo do sofrimento que suporia conhecer a verdadeira
situação dela; em parte, porque um dos médicos lhe diagnostica apenas uma doença
nervosa passível de recuperação, chegando mesmo a aconselhar aquele que será o
último passeio pelos Campos Elísios.
Esta última razão, o diagnóstico equivocado, seria significativa, não fosse o
fato de que antes disso Marcel já desconfiava da medicina, “um compêndio de erros
sucessivos” (II, CG 237 | II, CG 594). Mas a medida da repulsa ou descrédito pela
medicina é a mesma do fascínio que exerce sobre Marcel e o narrador. Assim, Marcel
se deixa guiar por ela e busca nela a solução. Uma busca, aliás, descontínua, mas
insistente.
Isso pode ser explicado como uma forma de autoengano e de descargo de
consciência: ao apostar na medicina, Marcel coloca-se ao lado de quem quer esgotar
todas as possibilidades disponibilizadas pela ciência para salvar a vida de quem ama.
Adia-se, assim, o veredito da morte e o sofrimento dela advindo. Também é uma
forma de conforto. O escapismo encontrado em tratamentos supostamente eficazes
ou em diagnósticos otimistas a respeito da avó concede a Marcel o salvo-conduto
para seguir sua vida mundana como se nada estivesse acontecendo. A postergação
em encarar a situação da avó lhe dá fôlego para desviar a atenção para outras coisas.
Deste modo, Marcel evita confrontar-se com a condição humana de extrema
solidão que a morte impõe. Uma solidão deste tipo, abismal, ele experimentará ainda
com a avó viva, como veremos, quando ele ouve a voz fantasmagórica dela ao
telefone e, a seguir, diante de um aparelho mudo, já sem ninguém do outro lado. Tal

39
solidão antecipa a consciência da morte e, assim, aproxima Marcel do sofrimento
face a perda, isto é, do luto. Porém, ela é bloqueada imediatamente.
É assim, equipado para não sofrer, que, tão logo a sabe bem de saúde, após o
diagnóstico do médico Du Boulbon, Marcel se exorciza da dor e já imagina os
prazeres mundanos aos quais ele não teria qualquer razão para renunciar, como um
jantar com os amigos em Ville-d’Avray. Finalmente, ele termina por cultivar uma
indiferença pela avó: “essa estranha indiferença que temos para com os parentes
quando estão vivos, que faz com que os negligenciemos em favor de todo o mundo”
(II, CG 245 | II, CG 604).
O pêndulo entre preocupação e indiferença, que também pode ser
representado pelo movimento entre proximidade e afastamento, é um modo
semelhante àquele com que Marcel trata suas amantes, preocupando-se com elas
quando teme perdê-las. O temor da perda, na forma de uma ideia-fantasma, porque
dolorosa e sempre às voltas, sempre em potência, prestes a se realizar e, contudo,
continuamente adiada, é fartamente mobilizado por Marcel nas relações amorosas.
A paixão, para Marcel, precisa ser fomentada incessantemente pela ameaça de
separação do ser amado. Estar apaixonado depende de imaginarmos (e temermos)
que a pessoa amada pode ir embora a qualquer momento.
A oscilação entre preocupação e indiferença aparece na relação com a avó. A
possibilidade de que a avó possa desaparecer, quando vislumbrada, o impulsiona a
se aproximar e cuidar dela. Mas, diferentemente da reação para com as amantes,
Marcel não mobiliza o temor da perda como instrumento para se sentir apaixonado
ou afetivamente vinculado18. Ao contrário, ele prefere ignorar a ideia da velhice e
deterioração física da avó, elementos que levariam à conclusão de que ela caminhava
para a morte. Quando os percebe, não é porque os tivesse ido buscar.
Com a gravidade da doença agora convenientemente dissipada pelo
diagnóstico de Du Boulbon, Marcel perde-se em outros interesses: a pressa por
encontrar as amigas nos Campos Elísios; a impaciência com a avó que demora para
se arrumar; a etiqueta e a preocupação excessiva com a autoimagem e com aquilo

18
Vemos, especialmente em La Prisonnière, como Marcel precisa sentir o temor de ser abandonado
para sentir-se apaixonado por Albertine.

40
que os outros poderiam pensar dele (por exemplo, quando pergunta à avó, no fiacre,
se ela cumprimentara o suscetível Legrandin, que passara ao lado).
São todas questões que colocam Marcel no centro das preocupações. O
solipsismo do protagonista também ajuda a explicar a miopia dele diante de uma avó
que há tempos morria sem que ele se desse conta.
Como se vê, não são apenas médicos que erram. A Marcel se lhe escapou
repetidas vezes a correta interpretação do outro e da proximidade da morte. Por
exemplo, errou ao julgar a avó supérflua quando posavam para Saint-Loup fotografá-
los. Saberá mais tarde, após sua morte, e pela boca de Françoise, que a senhora,
sabendo-se já perdida, arranjara a sessão fotográfica porque queria deixar ao neto
uma última lembrança sua.
Em que consiste exatamente o erro de Marcel? O solipsismo de Marcel,
embora colabore para a sua cegueira, não a explica completamente. A falta de visão
– que Marcel tentará remendar, inutilmente – não é somente um defeito inerente e
involuntário, consequência infeliz de alguém autocentrado, mas uma habilidade
cultivada, intencional, e funciona enquanto um constructo de autoproteção.
Para usar os termos com que Gilles Deleuze (1964) definiu a Recherche, uma
obra fundada na aprendizagem de signos, Marcel não parece ser um mau intérprete
no que se refere aos signos da decadência da avó; ao contrário, o que ocorre é que
ele não aceita seu significado. Não é que ele seja incapaz de reconhecer e interpretar
os signos da morte; é, antes, ou sobretudo, que Marcel é incapaz de suportar o seu
significado último – a projeção de si próprio, junto com o morto, no nada.

1.4 A longa distância

Dissemos que a morte da avó, descrita de modo fisiológico, se devia à doença


de que ela padecia, favorecendo um tipo de vocabulário médico. Mas a doença,
isoladamente, tampouco justifica a narração de tal agonia clínica como a que lemos.
A narração de uma morte fisiológica encontra uma justificação mais profunda
na tentativa do personagem de ver a catástrofe de um certo jeito. Se o olho clínico é
aquele que enxerga bem de perto, que interpreta os sinais físicos na presença do
paciente, é também, paradoxalmente, aquele que vê o doente com uma distância

41
emocional intransponível, própria do ofício convocado, o de médico, diferente da
proximidade afetiva de um familiar.
Ver de um certo jeito é uma maneira de sentir de um certo jeito; neste caso,
sentir pouco ou nada. Embora seja incorreto afirmar que médicos não sentem pesar
pelos seus pacientes, uma consequência comum da profissão é a habituação ao
sofrimento alheio a tal ponto de ele lhes parecer indiferente. É desses médicos que
trata Proust; são eles que visitam a avó.
À exceção de Du Boulbon, os demais estão preocupados com um diagnóstico
estritamente fisiológico. Se Du Boulbon engata uma conversa de proximidade com a
avó, levando em conta eventuais aspectos psicológicos e nervosos, nem por isso se
poderia dizer que ele sofria por ela; o que buscava era um diagnóstico, o qual
dependia de informações que lhe eram fornecidas pela conversa. No universo
proustiano os médicos possuem um vocabulário técnico e um modo específico de ver
os pacientes – próximo o suficiente para o diagnóstico clínico, e distante o suficiente
para não extrapolar o exame clínico. Portanto, nessa concepção, não fazem parte do
olhar médico sentimentos ou empatia.
Resguardar-se detrás do olhar dos médicos é o modo de Marcel não
reconhecer a avó, ou seja, de tratá-la como paciente, e não familiar. São muitos os
médicos que cuidarão da sra. Bathilde. Marcel os olha, os acompanha, os mimetiza,
ao mesmo tempo em que flagra seus excessos e arbitrariedades. Enquanto o foco
narrativo se associa aos médicos, Marcel garante seu distanciamento emocional.
A narração de uma agonia clínica é tanto consequência de um distanciamento
entre a doente e Marcel como instrumento dessa distância. Narrar a morte pelo
prisma fisiológico é ver a pessoa como corpo ou cadáver, mas não como avó; é
abordá-la parcialmente pela perspectiva biológica, e não afetiva. Daí a diferença entre
o olhar médico e o familiar ser importante para entender o episódio. Sob o olhar
familiar da mãe de Marcel, a morte da sra. Bathilde é “um paroxismo”, “um tal
desespero” (II, CG, 253 | II, CG 614), e suas consequências para ela são devastadoras
e imediatas.
O olhar médico, aqui, é uma forma de cegueira. Marcel precisa não ver, precisa
cegar-se, ou ver pouco, ou ver de um certo jeito. Tomado nesse sentido, ele está nas
antípodas de Édipo, ávido de resposta: Marcel, mesmo ciente da presença de um

42
signo, vira de costas para ele. Não quer saber do futuro. A ignorância é a aporia de
quem não quer sofrer: ignora o signo, sabendo-o. Em outras palavras, a ignorância
aqui tem um componente deliberativo: Marcel prefere enganar-se como modo de se
proteger; prefere fechar os olhos para os indícios de uma realidade que ele sabe ser
dolorosa19.

1.4.1 Longe de casa

A distância entre Marcel e sua avó, que possibilita ao neto suportar a cena da
morte e descrevê-la enquanto participa tão pouco dela, alcança seu ápice na morte.
Mas ela se constrói antes e é reforçada por uma separação física. Se a aproximação
definitiva de ambos ocorre durante a viagem a Balbec, vamos situar o surgimento (ou
melhor, a consciência) da distância no momento em que Marcel parte para Doncières.
Estamos no início de Le Côté de Guermantes. Marcel, apaixonado pela sra. de
Guermantes, tenta vê-la todas as manhãs a passear na vizinhança, mas não se satisfaz
com o ínfimo lugar que tem na vida dela. Ele sabe que ela é tia de Saint-Loup. Por isso,
viaja até o quartel onde serve o amigo, em Doncières, na esperança de convencê-lo a
falar bem dele perante a tia. Os dias são passados entre passeios por ruas
desconhecidas e jantares no restaurante em companhia de Saint-Loup e seus colegas
de quartel. Em dada altura, o amigo sugere a Marcel a ideia de conversar com a avó,
para quem o próprio Saint-Loup teria escrito, dando conta de que um novo serviço
telefônico havia sido instalado na localidade.
O telefonema, pensa-se, permitiria reparar a separação, ligando ambos
personagens por intermédio do engenho físico. Não é o que acontece: em vez de a
separação ser diminuída, ela é acentuada. Para Marcel, o jogo entre perto e longe,
aproximação e distância nunca é totalmente resolvido: “Presença real a dessa voz
tão próxima – na separação efetiva!” (II, CG 108-9 | II, CG 432).
Se a diferença de tempo e de espaço parecem desaparecer durante a
chamada, aproximando os ouvintes, “a mesma fórmula proporciona como efeito

19
Esse tipo de autoengano, como veremos a propósito do ciúme por Albertine, é descrito em detalhes
por Joshua Landy (2004).

43
segundo uma sensação de separação ainda mais aguda”, observa Jesse D. McCarthy
(2016, § 24).
Quando Marcel escuta a voz da avó é como se o som viesse de um outro
mundo. O telefone funciona como um oráculo. Qual é, enfim, a revelação que ele lhe
faz, qual a mensagem que lhe tem a confidenciar? A voz da avó é a própria mensagem.
E ela é uma voz fantasmagórica. Deste modo, a chamada permite a Marcel, de forma
repentina, perceber – escutar – a velhice da avó. É dada a largada: tal qual um gatilho,
o telefonema dispara em todo seu horror a consciência de um movimento
incontrolável da avó em direção à morte.
O telefonema desmembra a avó, até então vista em seu conjunto e em um
contexto habitual, e isola a sua voz. Assim, seccionada, diríamos mesmo dissecada, a
avó passa a ser unicamente a voz que Marcel escuta. Sem quaisquer outras partes,
imagens ou informações que lhe pudessem fazer concorrência ou compor um
conjunto em que o todo maquiasse ou diminuísse a impressão da passagem do
tempo. Uma voz, por isso, diferente daqueles cabelos um pouco grisalhos, mas
inofensivos, que o neto mencionara em Balbec; aqueles cabelos, porque inseridos no
conjunto (um rosto terno, um momento de encontro efusivo quando Marcel se
atirara em seus braços no Grand Hôtel), foram belos para Marcel.
O telefonema de Doncières aproxima-se, em alguns aspectos, daquilo que
Peter Szendy chamou de “sobre-escuta” (surécoute). Ela pode ser definida como a
“intensificação da escuta, como sua forma hiperbólica, levada até a incandescência”
(2007: 26)20. A escuta no estado superlativo é uma sensibilidade excessiva da audição.
Szendy a compara com a “hiperestesia auditiva” de Freud, mas o único ponto em
comum, na verdade, parece ser a sensibilidade. Em Freud, trata-se de um sintoma
clínico da neurose ansiosa, parte de um quadro de irritabilidade nervosa geral e

20
McCARTHY (2016) foi quem primeiro analisou alguns episódios da Recherche, como o telefonema
em Doncières, como um caso da “sobre-escuta” de SZENDY (2007). Apesar de o conceito poder
ser operativo em outros episódios da Recherche e ajudar a caracterizar Marcel, no telefonema para
a avó ele não funciona integralmente, como veremos, pois lhe falta o aspecto da espionagem.
Ainda assim, reteremos dele alguns aspectos que nos interessam.

44
associado ao medo21. Em Szendy, não tem nada de patológico nem desconfortável;
não é uma questão médica, mas uma posição de atenção para certas coisas.
O conceito de sobre-escuta é inseparável da noção de espionagem. Ela diz
respeito a uma atenção extrema e ativa que visa ouvir sem ser percebido. Os antigos
usos do substantivo “escuta” mostram essa ligação: o lugar onde se esconder para
captar o que estava sendo dito, por exemplo em um convento ou em uma escola. O
Grande Larousse do século XIX indicava também, na atividade militar, os sentinelas
instalados em pequenas galerias para acompanhar o trabalho dos inimigos ou “as
pequenas galerias de minas nas quais se pode ouvir se o inimigo está trabalhando e
se movendo”. (Larousse, 1870, IV: 157)
A sobre-escuta é aquela que quer ouvir mais e melhor, e por isso o sujeito que
a exerce se instala em uma posição vantajosa que lhe permite estar na vanguarda dos
acontecimentos e, assim, sabê-los antecipadamente. Logo nos vêm à mente os
inúmeros episódios em que Marcel se posiciona como um espião, tornando a sobre-
escuta bastante operativa na Recherche. Marcel é aquele que escuta sem ser
percebido, escondido, um voyeur com os ouvidos (um écouteur?), na posição
favorável à espionagem. Às vezes captando uma informação inicialmente por
coincidência, às vezes por cálculo, ele acaba sempre explorando à exaustão o melhor
arranjo para não perder nada da cena auscultada clandestinamente22.
O caso do telefonema é diferente. Da sobre-escuta, gostaríamos de reter, em
primeiro lugar, o mecanismo de uma audição hipersensível ao conteúdo que está
sendo ouvido; é ela que o torna tão dramático. Em segundo lugar, articula-se a
revelação de um segredo, mas de modo inadvertido, sem que para tal houvesse uma
atitude espiã.
A interpretação do significado sonoro é também hiperbólica. Ao isolar a voz
da avó, Marcel amplia a impressão recebida no telefonema. Nesse movimento, a

21
“[A hiperestesia auditiva] é um excesso de sensibilidade aos ruídos, cujo sintoma deve ser
explicado pela relação íntima congênita entre as impressões auditivas e o medo.” (FREUD, 1895,
SE III: 92).
22
São inúmeras as ocasiões que se prestam a isso. As mais emblemáticas são a cena de Montjouvain
(I, CS 143-148 | I, CS 157-163) e quando Marcel escuta as práticas masoquistas de Charlus em uma
casa de prostituição, que inicialmente Marcel acreditava ser um ponto de encontro para espiões
(III, TR 646-66 | IV, TR 389-415).

45
escuta é inaugural: “mas sua própria voz, escutava-a hoje pela primeira vez” (II, CG
109 | II, CG 433).
Não é somente que, até ali, Marcel nunca tivesse prestado atenção detida ao
caráter acústico da voz da avó; a surpresa diante da voz mostra, no fundo, a
fragilidade da comunicação entre avó e neto: Marcel parece pouco ou nunca ter de
fato ouvido a avó, no sentido de acolhê-la e compreendê-la. Ele habituara-se a uma
certa voz, e isso é o mesmo que dizer que se habituara a uma certa avó, uma avó
bondosa exclusivamente voltada para ele. Para apreender a outra avó, seria preciso
corrigir essa percepção, a partir de uma voz “que eu julgava erroneamente conhecer
tão bem” (II, CG 109 | II, CG 433).
A escuta de Marcel é hipertrofiada. Ao mesmo tempo, é por meio da
hipertrofia que Marcel logra escutar aquilo que está à distância de um segredo, e
entendê-lo: a avó envelhece. Agora, o som da avó, a voz per se, testifica debilidade,
tristeza, velhice: “nela reparava, pela primeira vez, os desgostos que a haviam
marcado ao longo da vida” (II, CG, 109 | II, CG 433). Mesmo sem agir como espião,
como faz em tantos episódios, Marcel descobre o segredo. Ignora, contudo, o pior
deles – o da doença que a avó dissimula –, mas tanto faz, pois ele já pressente a
morte.
Não deixa de chamar atenção que esse mecanismo de ampliação e exagero
também está presente no olhar médico, e vive a um passo da hipocondria ou do
sobrediagnóstico. É ao escutar demais que Marcel descobre uma condenada. Mas,
por enquanto, não há nada do olhar clínico, distanciado, que se seguirá.
Até o segundo da ligação, a imagem que Marcel conservava da avó ainda
beneficiava do passado, cuja memória vinha deitar-se no presente, fazendo de
ambas, a sra. Bathilde de outrora e a de agora, uma imagem estática e benigna: uma
avó terna. Eis o hábito a imprimir no rosto da avó a estampa benevolente, os traços
doces, a feição bondosa que não conhece ruína nem final, um desenho que Marcel
sabe de cor. É neste momento, porém, que ele percebe a avó dentro do tempo: isto
é, com as marcas que a idade lhe deixou na voz – uma voz doce ainda, mas triste. A
velhice recentemente descoberta é anunciadora de desastre.
O deslocamento no espaço também pode ser uma viagem no tempo, como
pontua Luc Fraisse (2017). Longe de casa, Marcel realiza igualmente um

46
deslocamento temporal: ele antecipa a morte, projetando o futuro da avó, seu fim, e
com pavor percebe que, pior do que o futuro, a morte está recuando até o presente.
Ele sente que pode perder a avó a qualquer momento.
A estranha voz, dissociada do rosto, torna-se também símbolo de um
isolamento de outra ordem, “o de minha avó, pela primeira vez separada de mim” (II,
CG, 109 | II, CG 433). Marcel dissociado da avó é Marcel sozinho em um mundo onde
já não há a pessoa que lhe dedicava a própria vida. A separação, presente na própria
ideia de telefonema, é radicalizada nesse episódio. A avó separa-se de Marcel para
tornar-se uma estranha para ele, como outrora a mãe, na estação de um trem que
não pegaria junto com o filho, é o prelúdio de “uma pessoa já um pouco estranha
para mim” (I, MF 520 | II, JF 09).
Se agora é Marcel que não reconhece a voz dela, e com custo lhe associa novas
descrições, será a avó quem, já perto da morte e fora de si, deixará de reconhecer o
neto (II, CG 265 | II, CG 630) . O estranhamento iniciado na cena do telefone se
prolongará até depois da morte dela. A avó será “uma estranha” na fotografia de
“Les Intermittences du cœur”, em Sodome et Gomorrhe.

Há algo similar entre o telefonema em Doncières e o encontro da última


matinée em Le Temps rétrouvé. Qual não é o choque de Marcel frente aos rostos
desfigurados dos convidados da sra. Verdurin, agora princesa de Guermantes, antes
de ele se retirar da vida social para escrever seu grande livro? Trata-se de pessoas
irreconhecíveis que outrora ele visitou regularmente. Naquele momento, o choque
foi tanto maior quanto mais longa foi a distância física e temporal que o separou dos
cadavéricos convidados, durante os anos em que Marcel teria ficado internado em
uma casa de saúde, longe da vida dos salões.
As pessoas em geral mudam, senão pouco, pelo menos aos poucos. Isso
explica por que nós não nos chocamos a cada vez que encontramos a mesma pessoa
ou lugar. Em certo sentido, nunca deixamos de vê-los. Habituamo-nos a eles. Ao
longo da vida, vamos nos adaptando às mínimas mudanças que se operam nas
pessoas que nos são próximas, e às nossas próprias. As impressões são
continuamente ajustadas e corrigidas por novas impressões, resguardando uma
continuidade que nos permite dizer, sem espanto, que se trata da mesma pessoa.

47
Mesmo as mudanças no corpo, inevitáveis, normalmente não são radicais o suficiente
a ponto de continuamente nos chocar, isto é, de se afastar completamente da ideia
habitual que construímos acerca de uma pessoa.
A distância física tende a acentuar a consciência do envelhecimento daqueles
que não vemos por muito tempo, pois o reencontro nos devolve instantaneamente
uma imagem em muito diferente daquela que conservávamos na memória. Os
termos de comparação da pessoa que agora vemos são extremos: um antes
longínquo e um agora. O episódio do telefonema de Marcel acumula duas formas de
distância provocadas pela a viagem e pela tecnologia.
À distância física pode-se somar uma distância temporal prolongada. No
reencontro, o aspecto diacrônico perde terreno para a sincronicidade. Com isso
queremos dizer que, se é pouco a pouco, no decorrer do tempo, que atualizamos
nosso conhecimento a respeito de outra pessoa e damos continuidade às múltiplas
impressões que dela temos, uma visão de supetão nos mostra, no instante do
reencontro, a enorme ruptura com as impressões e o conhecimento passados. A
percepção capta de modo imediato o resultado da acumulação, ao longo do tempo,
de pequenas mudanças23.
Para melhor compreender o alcance do estranhamento de Marcel, no
telefonema, perante a nova avó que emerge (e, ao fazê-lo, se afunda) para ele,
tomemos brevemente emprestado uma outra escala, a do conceito de
distanciamento histórico.
Por distanciamento histórico, grosso modo, se entende a passagem do tempo
requerida para o historiador poder falar sobre o passado de modo objetivo e
desprendido afetivamente. Em outras palavras, para alcançar, em relação ao
passado, um panorama, possível apenas para quem se projeta longe do objeto
observado. Sobre essa distância, escreve Mark S. Phillips: “Muitas vezes chamada de
objetividade, a distância é considerada uma função da temporalidade, uma clareza
de visão que surge com a passagem do tempo” (2003: 438) e uma posição adquirida

23
Pedro Páramo (Juan Rulfo, 1955) ou Cinema Paradiso (Giuseppe Tornatore, 1988) são apenas alguns
exemplos de quão profundamente disruptivo pode ser o reencontro com alguém ou um lugar há
muito tempo longe do convívio, mesmo quando se trata da própria família ou da própria casa.

48
de modo quase normativo de “observação desapegada” (2011: 11) que o tempo
propicia24.
O historiador mostra, no entanto, que essa ideia, herdeira do historicismo do
século XIX e ainda presente nos meios historiográficos, é falaciosa, na medida em que
é histórica e não imanente. Não é possível alcançar a pretensa objetividade, nem a
distância é uma consequência necessária e inevitável da passagem linear do tempo.
A distância não depende apenas do tempo, mas também daquilo que, em um
determinado momento, “julgamos ser mais capaz de ser explicado e compreendido”
(2003: 439)25.
Com isso queremos dizer que há sempre um ponto cego nosso em relação ao
mundo (e a nós próprios). Para Marcel, esse ponto cego tem a ver com o hábito:
custa-lhe desafiar o modo habitual como olha (e julga) uma pessoa amada. Às vezes,
o ponto cego pode durar uma vida inteira.
As viagens, ao instaurarem um distanciamento físico, podem eventualmente
desafiar o ponto cego. Nós podemos, ao assumir uma posição diferente em relação
a objetos e lugares habituais, perceber coisas que até então não percebíamos. No
caso de Marcel, tão próximo à avó, considerada uma extensão dele, a mínima
distância adquire um efeito agudo. São apenas alguns dias e quilômetros que
separam Marcel e a sra. Bathilde, mas para ele essa distância torna-se um “longo
isolamento de minha avó” (II, CG 111 | II, CG 435).
Isso pode nos levar a uma defesa do privilégio epistemológico para certas
pessoas: aquelas que, apenas por se destacarem emocionalmente de um contexto
ou se posicionarem longe do calor dos fatos, estariam aptas a conhecê-los melhor26.

24
A aquisição dessa distância, na forma de uma visão retrospectiva mais clara e objetiva, é pleiteada
pelo narrador da Recherche em diversos momentos. Por exemplo, em Albertine disparue, ele dirá:
“Não é lá de baixo, no tumulto da rua e na balbúrdia das casas circundantes, é quando nos
afastamos, e das encostas de um morro próximo a uma distância em que toda a cidade
desapareceu ou forma apenas ao nível da terra um montão confuso, que podemos, no
recolhimento da solidão e da noite, avaliar, única, persistente e pura, a altura de uma catedral.” (III,
F 389 | IV, AD 75-6).
25
Em “Rethinking historical distance: from doctrine to heuristic” (2011), PHILLIPS defende e detalha
como as noções de proximidade e distância devem levar em conta aspectos formais, ideológicos,
afetivos e conceituais.
26
Para uma discussão sobre os supostos lugares de vantagem no acesso ao conhecimento
concedidos a pessoas de acordo com a proximidade ou distância em relação a um objeto/contexto
(“outsiders” ou “insiders”), ver MERTON (1972).

49
O que a discussão de Phillips sobre o distanciamento histórico nos mostra é que,
sendo a distância uma construção, ela não é estável ou contínua. Na escala da
psicologia individual, a posição de alguém distante o suficiente de uma pessoa para
descrevê-la melhor não existe. Não se pode estabelecer uma espécie de distância
segura para observar um fato, como fazemos ao colocar uma corda vermelha na praia
para isolar áreas perigosas.
A pretensa distância ‘de historiador’ nos é vedada tanto quanto a proximidade
absoluta. A situação de alguém afetivamente desprendido em relação a uma pessoa
não é um atestado, nem muito menos vitalício: estamos intermitentemente longe e
perto dos outros. Isso diz muito sobre a reação de Marcel quando afirma se tornar
indiferente às pessoas que um dia amou. No caso da avó, a recordação em “Les
Intermittences du cœur” mostra o contrário.
No choque com a voz ao telefone, é como se Marcel não tivesse visto (e
ouvido) a avó durante muitos anos, muito mais tempo do que a breve viagem para
Doncières poderia supor. Mas também é como se esta fosse a primeira vez que
Marcel de fato a escutasse, e atentamente. Até essa altura, era sempre ela quem o
escutava. Ela, a quem ninguém ouvia, e que falava tão pouco. A quem, em Combray,
a tia Léonie chamava aos berros: “Bathilde! Vem ver se impedes que o teu marido
beba conhaque!” (I, CS 29 | I, CS 11), apenas para zombar dela, sabendo que ao marido
era proibida a bebida que a própria Léonie oferecia.
A avó é um dos poucos personagens silenciosos da Recherche. Avessa ao ruído
dos salões, ela apenas escuta: escuta o neto tocar no tabique, o escuta queixar-se. O
desinteresse por si própria e o modo como diminui ou esconde seus próprios pesares
contrasta com o cuidado com Marcel e o exagero deste em relação ao próprio estado
de saúde, vitimizando-se e exacerbando suas penas para chamar atenção.

1.4.2 Orfeu

Ao telefone, Marcel deixa de ouvi-la. Entre ambos há uma barreira que não se
pode atravessar, nem bater três vezes como no quarto do hotel. Nada parecido à
parede que “sabia transportar inteira a alma de minha avó, e a promessa de sua

50
vinda” (I, MF 537 | II, JF 30). A avó está do outro lado, isto é, de um outro lado. Marcel
evoca o dia em que, criança, a perdera em uma multidão. Ele a sente perdida para ele.
A ligação, por fim, cai. O efeito é de escuro, da cortina que se fecha no fim de
um ato, no fim da vida. Marcel está do lado de quem ainda não se desligara da vida
(II, CG 250 | II, CG 611), como dirá mais tarde; e a avó é já “uma sombra querida que
eu acabava de deixar perder-se por entre as sombras” (II, CG 110 | II, CG 434). Tal
como Eurídice, que, nas Metamorfoses de Ovídio recai, infeliz, “na sombra eterna”
(Met. IV, 92). Esta é a primeira morte da avó. É como se ali, de fato, Marcel a tivesse
perdido. Ele não se recomporá dessa percepção.
A comparação com o mito de Orfeu27, que Marcel fará explicitamente um
pouco mais adiante, é significativa: o telefonema inaugura e encerra uma espécie de
descida aos infernos, sem qualquer solução. Ovídio, no Livro X das Metamorfoses,
assim descreve o momento em que Orfeu tenta impedir que Eurídice volte ao reino
dos mortos:

De repente lha roubam. Corre, estende


As mãos, quer abraçar, ser abraçado,
E o mísero somente o vento abraça. (Met. X, 85-7, trad. Bocage)

O esforço de Marcel também é inútil: ele grita “Grand-mère, grand-mère”,


gostaria de abraçá-la, mas, ainda mais só, subitamente deixa de escutar sua voz-
fantasma (II, CG 110 | II, CG 434).
A descida aos infernos se encerra com a ruptura da chamada telefônica, pois
o fio do aparelho já não é mais capaz de ligar duas pessoas, esse fio “tão cedo roto”
(Met. X, 46), na tradução de Bocage, fio da vida de Eurídice, que Orfeu apelara aos
deuses para renovar.
Por fim, resta a Marcel apenas o Eco a repetir uma palavra, “Vovó, vovó”,
como Orfeu, “sozinho, repete o nome da morta” (II, CG 110 | II, CG 434). Ciente do
desparecimento iminente da avó, Marcel corre ao seu encontro, deixando para trás

27
As fontes prováveis de Marcel Proust sobre o mito de Orfeu são as Metamorfoses de Ovídio (Livros
X e XI) e as Geórgicas de Virgílio (Livro IV).

51
Saint-Loup, o quarto do hotel em Doncières, as noites nos restaurantes com os
amigos do quartel.
A partir de então, o movimento em relação à avó será pendular, de fuga e
busca. Quanto mais a percebe velha, enferma, perdida, mais foge a tal constatação.
Daí edificar uma distância que o possibilite, senão uma barreira física, ao menos uma
proteção psicológica contra a realidade. Isso não o livrará da culpa, e no tomo
seguinte, na passagem “Les Intermittences du cœur”, será acometido pelo remorso
de não haver acompanhado a avó tanto quanto poderia, por não compreender a
gravidade da sua doença, por haver sido egoísta e cruel com ela em tantas alturas.
No regresso a Paris, para a sua aflição, ele encontra “uma velha acabada” no
sofá, mera extensão corporal daquilo que ele já constatara na voz. Marcel nada lhe
diz, pois justamente não quer que ela o veja. É a sur-écoute, já citada anteriormente,
ou, mais precisamente, um sur-regard. A avó está de costas, e esta postura, em si, já
é significativa. Fica entregue a si própria, desprevenida, sem qualquer possibilidade
de amenizar ou dissimular a sua precariedade. Com a barreira das costas, a cena
anuncia a separação e o silêncio que se fará cada vez mais presente entre neto e avó,
prelúdio do dia em que, totalmente tomada pela crise de uremia, ela deixará de
reconhecê-lo.
O que surpreende o leitor é que, mesmo lendo com os olhos os signos da
velhice e da morte, essa visão horrorosa será breve, de relance: “desapareceu logo”
(II, CG 114 | II, CG 440). Falaremos com maior profundidade sobre essa visão, que
consiste no prolongamento do processo de estranhamento iniciado no telefonema,
no segmento “Uma estranha” (ver capítulo III). Por ora, interessa-nos mostrar o
movimento de distanciamento inicial que permite a Marcel, inadvertidamente,
perceber algo que não percebia, para, em seguida, fugir dessa percepção.
Não é apenas Marcel que foge ao encontro da avó: também é a mãe dele. Bem
mais à frente no romance, após o ataque nos Campos Elísios, a mãe vai acolher a avó
que espera sentada no canapé do vestíbulo. Beija a mão da sra. Bathilde, a ergue até
o elevador do apartamento, com mil precauções, “mas nem uma só vez ergueu os
olhos e fitou o rosto da enferma” (II, CG 253 | II, CG 615). Depois que ela morre, será

52
incapaz de olhar para a fotografia da avó tirada em Balbec, projetando sobre a
imagem, retrospectivamente, a morte anunciada28.
O ataque funciona, já dissemos, como um estopim. Os disfarces da avó a
respeito de sua condição caem por terra (embora ela continue fazendo uso deles,
sempre que pode). Marcel já não consegue negar que ela está enferma, e
gravemente. Ele radicalizará a resposta face a esse dado irrefutável. É de se chamar
atenção o termo que, a partir de então, Marcel emprega com frequência para se
referir à avó – a enferma, la malade: “Fiz a enferma sentar-se ao pé da escadaria” (II,
CG 253 | II, CG 614), “a cabeceira da enferma” (II, CG 258 | II, CG 621), “uma
homenagem à sua doente” (II, CG 261 | II, CG 625).
O ataque é a linha vermelha a partir da qual o olhar sobre a avó a situará
abertamente como uma questão médica. A avó torna-se la malade, como certamente
poderia ser para um médico, sem que isso fosse motivo de estranhamento. A
medicalização da avó acompanha um processo de objetificação: ela é, no limite, um
conjunto de membros com funções biológicas, enfim, um corpo.

Teatralização

Para além da visão e vocabulário médico-fisiológico que caracterizam a


narração da morte da avó, ela também está carregada de teatralização, quer pelo viés
cômico quer pelo patético. A teatralização reforça o efeito de distanciamento entre
Marcel e a avó, provocado intencionalmente pelo olho clínico. Marcel mais tarde
admitiria que exagerava as próprias moléstias diante da avó e, assim, lhe causava uma
dor maior (II, SG 594 | III, SG 155). Não é o que ocorre aqui, contudo. O exagero torna
a morte teatralizada; como consequência, diminui-se o efeito de real e aumenta-se o
de espetáculo.
A assistência é o primeiro elemento da teatralização do episódio. A posição de
Marcel enquanto observador, já presente no retorno de Doncières, é reiterada

28
Na fotografia, a mãe observa as bochechas. EISSEN (1987) defende que houve um deslocamento
da atenção, que comumente as pessoas dirigem aos olhos, para a bochecha da senhora, como se
a mãe não pudesse cruzar seu olhar com o da avó.

53
durante a agonia. A morte da avó é, afinal de contas, a única morte à qual Marcel
assiste.
A posição de espectador não é constante ou exclusiva. Lembremos que é
Marcel quem busca ajuda médica para a avó, agoniado, após o ataque nos Campos
Elísios. Adiante, quando o quadro de saúde da avó piora, vemos Marcel ajudar a mãe
com a avó no meio da noite e, no instante em que a avó abre os olhos antes de
morrer, tenta esconder as lágrimas de Françoise para não causar impressão à avó,
que poderia estar acordando. Porém, nessas ocasiões, participa das cenas de modo
auxiliar. Sobretudo, ele as assiste.
Cabe a Marcel, como bom espectador – e, nessa altura, também um bom
encenador –, conhecer não somente a distribuição dos papéis como também a
correta apresentação do espetáculo. Saber quando a morte “entra em cena” (II, CG
250 | II, CG 611) é saber conduzir um espetáculo de modo a parecer que o mesmo se
desenrola por si só, ainda que seja difícil determinar quando a morte começa a atuar
(pois seu início, na doença, é subreptício).
A avó, apesar de bem intencionada, visando proteger seus parentes da
dolorosa verdade, também atua, no sentido mais corriqueiro do termo: finge. É assim
que vamos encontrá-la nas escadarias: “Minha avó esperava embaixo, no canapé do
vestíbulo, mas, logo que nos ouviu, ergueu-se, ficou em pé, fez a mamãe alegres
acenos com a mão.” (II, CG 253 | II, CG 614-5).
Os médicos também são espécies de atores que desempenham seu papel. O
professor E*** (a quem Marcel recorre ainda na rua assim que percebe o ataque da
avó) atua. Primeiramente, o médico fica bastante incomodado com o pedido de
Marcel para que examinasse a avó; diz que está atrasado para compromissos sociais,
precisa vestir-se etc. Por fim, concede-lhe um quarto de hora marcados no relógio.
Quando a recebe em casa e inicia a consulta, muda de repente: seu mau humor se
esvai, apresenta uma boa disposição, um tom engraçado, conta piadas e chega
inclusive a dar “uma sonora gargalhada” (II, CG 252 | II, CG 613). Assim que a consulta
acaba, chama Marcel em privado para dar o diagnóstico terrível: “A sua avó está
perdida” (idem). Imediatamente a seguir, se despede e volta a se comportar como
antes: franze as sobrancelhas, esbraveja, emite grandes gritos de cólera à empregada
por ela ter se esquecido de abrir a botoeira.

54
Um pouco mais adiante aparece o doutor Dieulafoy, cujo nome torna tão
cômica quanto caricata sua função: constatar a morte. Não é Deus, pois não lhe cabe
decidir ou controlar quando alguém vai morrer; ele é melhor caracterizado na figura
de um notário que atesta, sem fé ou piedade, a chegada da morte. Aos “papéis” ou
rôles (II, CG 271 | II, CG 638) que Dieulafoy exerceu (médico e professor), constatar a
irreversibilidade da morte em um paciente teria sido aquele desempenhado com
maior qualidade. Os Guermantes o consideram um “fornecedor” sem rivais.
As comparações com o teatro prosseguem. O narrador é explícito: “Meu pai
foi recebê-lo no salão contíguo como um ator que deve vir representar.” (II, CG 271 |
II, CG 637). A cada vez que se anunciava o nome desse médico em uma casa, “a gente
julgava estar assistindo a peça de Molière” (idem).
Há um problema de base no papel do médico e da medicina. O médico não é
um mau ator, mas é um ator de um papel ruim. Visa controlar os sintomas e a vida,
mas o que vemos na Recherche é uma profusão de erros. A apreciação do médico
sobre os doentes é pouco exata, embora reivindique exatidão: “A medicina não é
uma ciência exata” (II, SG 505 | III, SG 42). Mesmo quando os médicos atestam a
irreversibilidade do estado da avó, não se sabe, ao fim e ao cabo, se eles acertaram o
prognóstico ou se foi uma coincidência.
No romance, ao entrar em cena, o médico desempenha um papel patético e
risível, e Proust não economiza a abordagem satírica. A visão depreciativa da classe
médica (classe, pois formam uma categoria, uma família de semelhantes) é evocada
em outras alturas. O exemplo mais notório do romance é quando o renomado doutor
Cottard se equivoca ao explicar longamente o inchaço nos olhos de um paciente
como os sintomas de uma intoxicação e não, como era o caso, da simples ação de um
grãozinho de sujeira. (II, SG 624 | III, SG 192). É a imputação de exatidão à medicina
que o narrador assinala e critica.

A morte é uma atriz que entra em cena, mas também é o próprio espetáculo.
A esse espetáculo quer assistir Françoise. Ela disputa um lugar na plateia:
“Françoise não era insensível a tanta encenação: a que rodeava a doença de minha
avó lhe parecia meio pobre, boa para uma enferma num teatrinho provinciano.” (II,
CG 263 | II, CG 627). Aliás, ela se ausentará da casa em um momento crítico, com a sra.

55
Bathilde ainda viva, “porque havia encomendado um vestido de luto e não queria
fazer esperar a costureira.” (II CG 266 | II, CG 631) Uma vaga semelhante para o
espetáculo quis o primo29, sempre disposto a emitir as frases mais vazias com tom
afetado, o semblante falsamente abatido por uma dor nada mais que protocolar.

Ao narrar teatralmente o momento da morte e as reações dos personagens,


perde-se o caráter pessoal da morte, tornada um evento social ao qual se deve acudir
com a roupa certa. Comportamo-nos diante da morte como atores, cumprindo
papéis, fingindo: seja a rezar para o enfermo ou a chorar diante do cadáver, seja a
oferecer mensagens de condolências, como fará o duque de Guermantes antes
mesmo que a avó tenha morrido.
Marcel, perante a morte da avó, é alguém que atua como espectador. À
semelhança dos outros, Marcel é um fingidor. Os seus fingimentos são conhecidos.
Finge a tal ponto de acreditar na mentira e torná-la verdade. Anos antes, havia escrito
uma carta para Gilberte, dando conta de que não gostava dela, e acabou acreditando
– criando – a falta de amor: “uma indiferença que, fingida a princípio, acaba por
tornar-se verdadeira” (III, F 343 | IV, AD 19).
Em relação à avó, o distanciamento entre Marcel e ela fica acentuado e os
efeitos íntimos que a morte poderia causar se perdem em meio à mise-en-scène. A
desumanização absoluta do personagem está a um passo. A avó, a quem o olho
clínico já a havia reduzido às funções biológicas alteradas, é igualada a um animal,
totalmente alheia a Marcel:

Curvada em semicírculo sobre a cama, um ser diverso que não a


minha avó, uma espécie de animal que se tivesse disfarçado com
seus cabelos e deitado em seus lençóis, arquejava e se lamuriava,
sacudindo as cobertas com suas convulsões. (II, CG 266 | II, CG
631-2)

Já não era a avó, mas um bicho. Em breve, seria um cadáver.

29
Primeiro, é chamado de cunhado da avó; depois, de “um de nossos primos” e, depois, de sobrinho
da tia-avó.

56
O momento exato da morte é narrado sucintamente. Primeiro, de modo
indireto, depois a frase fatídica: “O barulho do oxigênio emudeceu, o médico se
afastou da cama. Minha avó estava morta” (II, CG 273 | II, CG 640). Se é certo que a
avó é uma personagem que se coloca do lado do aéreo e do vento30, e em Combray
dizia, sob a tempestade e a ventania, “Enfim, respira-se!” (I, CS 29 | I, CS 11), então o
esgotamento do balão de oxigênio se torna ainda mais simbólico.
No que concerne à cena final, a análise das versões manuscritas evidencia uma
cuidadosa mudança de tom: aos poucos, como mostra Herschberg-Pierrot (2006),
Proust elimina as discussões mais filosóficas sobre o nada. Os comentários foram
trabalhados por Proust antes da terceira datilografia dos rascunhos, mas cada vez
mais atenuados, até desaparecem.
No caderno 14, por exemplo, logo após a cena da morte, se segue um
comentário de mais de dez linhas: “[...] ela havia disposto todas suas forças contra...
o seu próprio nada, ela se havia insurgido no vazio, no mundo onde ela já não estava
mais”. No caderno 48, lê-se no lugar: “Uma vez que a morte é nada, como pode este
nada ter um efeito sobre o que acontece diante dele, e suscitar essa reunião de forças
como na presença de um grande perigo no que já é quase nada?”31
Com a ausência de qualquer discussão sobre o nada, restará na cama apenas
um corpo. O apagamento da metafísica é relevante: a consciência do nada, junto com
a presença do morto na memória, funda a contradição característica do luto para
Marcel (cf. capítulo III). Uma consciência desse tipo só advirá muito tempo depois.
Mas há ainda um último movimento. Diferentemente da conclusão de
Herschberg-Pierrot, segundo a qual a morte da avó é sempre vista sob uma
perspectiva material, a imagem final oferece outra leitura. No último parágrafo, a

30
Como lembra RICHARD (1974), a avó é aquela que se lança na tempestade (em Combray) e gosta
do vento. Em Balbec, ela escancara as janelas do salão de refeições do hotel, causando um alvoroço
nos convivais. Mas nós podemos, de um modo ainda mais amplo, associar a avó às janelas e à
abertura para o mundo (não o mundo trancafiado dos salões, claro está). Em Balbec, “ela
entreabria as persianas” para anunciar o dia lá fora (I, MF 537 | II, JF 30). Ao mesmo tempo, esse
gesto resguarda uma proteção para Marcel, uma vez que ele dependia dela para saber do tempo e
evitar sair no frio. Mas atenção: janelas também podem ser um escape do mundo: nos últimos dias
de sua agonia, a avó tenta saltar da janela, sendo impedida por Marcel e sua mãe (II, CG 264 | II, CG
628). É significativo que esse gesto tenha sido efetuado quando a avó, tomada pela doença, já
estava quase fora de si.
31
Respectivamente, Caderno 14, fº 96v-97v e Caderno 48, fº 8. Citado por HERSCHBERG-PIERROT
(2006).

57
narração não reproduz o fisiologismo; tampouco o nega: sabemos que a calma final
da avó é efeito da morfina. No entanto, e isso nos parece um movimento relevante
do narrador, ele enfeita o fisiológico para construir uma imagem restaurada.
Convém citar o último parágrafo em sua integralidade. Nele, vê-se que o
destino final da avó a devolve à beleza do passado mais longínquo e imaginário para
o protagonista-narrador:

Mas agora, pelo contrário, [os cabelos] eram os únicos a impor a


coroa da velhice sobre o rosto tornado jovem e de onde haviam
desaparecido as rugas, as contrações, os empastamentos, as
tensões e as dobras que há tanto tempo lhe vinham aumentando o
sofrimento. Como antigamente, quando seus pais lhe haviam
escolhido um esposo, ela apresentava feições finamente traçadas
pela pureza e pela submissão, as faces brilhantes de uma casta
esperança, de um sonho de ventura, e até de uma alegria inocente
que os anos lhe tinham destruído aos poucos. A vida, ao se retirar,
acabava de carregar as desilusões da existência. Um sorriso parecia
pousado sobre os lábios de minha avó. Sobre aquele leito fúnebre,
a morte, como o escultor da Idade Média, deitara-a sob a aparência
de uma mocinha. (II, CG 273-4 | II, CG 640-1)

A partir de um dado físico da aparência, isto é, a eliminação das contrações


musculares do morto, o narrador constrói uma ideia de reparação e retorno. A morte,
aqui, é o restauro de um tempo benéfico e perdido.
Muitas descrições cabem nessa morte: purificadora, restituidora do passado
bom, libertadora do sofrimento. Todas elas coincidem com uma visão senão otimista,
ao menos redentora do fim da vida, e que ofusca a perda real da pessoa amada. No
lugar dela, oferece uma espécie de final feliz, ou ao menos feliz segundo o que Marcel
imagina para a avó. Isso contribui para explicar a razão de Marcel não parecer abalado
a seguir.
Ao telefone, Marcel se desesperara com a possibilidade que se avizinhava de
perder a avó. Vimos que, ao transformar a avó na malade como recurso de
autoproteção, o neto tenta garantir que não é a avó quem morre, mas um corpo
doente. A avó é uma “mulher moribunda que ele havia se recusado a reconhecer”,

58
como pontua Angela Moorjani (1990: 876). Finalmente, face a face com a avó morta,
ele simbolicamente a enfeita32.
A reparação que a morte realiza é criação e limpeza: esculpe uma nova
aparência, da qual exclui as penas acumuladas, e devolve o ser à noção de
originalidade – uma originalidade que é ao mesmo tempo início e apogeu. É uma
“existência intacta” (II, CG 275 | II, CG 641), como veremos o narrador definir mais
tarde, mas a propósito de si mesmo.
É a avó mocinha que renasce, mas também aquela avó atemporal do primeiro
dia de Balbec, antes que Marcel se desse conta da decrepitude iminente, e de cujo
rosto irradiava ternura. Quanta diferença entre a avó de agora e a avó de Balbec: “seu
grande rosto desenhado como uma bela nuvem ardente e calma, por trás do qual
sentia-se irradiar a ternura” (I MF 536 | II, JF 29). A visão beatificada, que será
recuperada na cena final, estava presente então, pois tudo o que rodeava a avó ficava
“tão espiritualizado, tão santificado” (I, MF 536 | II, JF 28).

A visão da morte, em vez de desesperada, pois finalmente selaria uma ruptura


irrevogável entre neto e avó, torna-se uma libertação das dores, um retorno a um
passado imemorial, bom e indolor. Afinal de contas, Marcel não queria que ela
sofresse33. Ao erguer uma avó pura e livre dos constrangimentos da vida, Marcel
distancia-se de qualquer inflexão de dor (para ele e para ela).
O ‘nada’ que Proust suprime na versão final da narração da morte é
assustador, pois aparta de nós quem amamos e faz de nós seres infinitamente
solitários. Marcel, que tanto evita o ‘nada’, vive no próprio corpo a doença e as
adjacências da morte. Lembremos que, se a avó adoece, é a doença do neto que a

32
Esse adornamento simbólico que enaltece a bondade e a beleza da avó e elimina a dor poderia, à
primeira vista, evocar a prática religiosa expandida no Brasil do século XIX de se enfeitar crianças
mortas com roupas brancas de anjos e fotografá-las. Se por trás dessa prática está uma visão
particular da morte infantil (à criança é imputado um destino diferente dos demais seres humanos),
não deixa de ser revelador que, ao vesti-las com a mortalha branca, procurava-se salientar o lado
da pureza virginal e da inocência, e guardar esse registro no álbum de família. A atitude Marcel,
contudo, é um pouco diferente: ele não cristianiza a avó, mas a torna uma imagem de arte,
restaurada, imobilizada em um passado longínquo e bom. Sobre a prática das vestimentas
fúnebres que mencionamos, ver: VAILATI (2006 e 2010).
33
COMPAGNON (1989), em contrapartida, insiste unilateralmente no sadismo de Marcel. No nosso
entendimento, face à avó, apesar de o protagonista poder exercer manipulações e ser cruel, a
crueldade nunca é unívoca, mas convive com a ternura.

59
preocupa e que atravessará todo o romance. É ele que está sempre doente, e que faz
mudar os planos da família, as viagens, as férias. Por isso, enxergar a morte da avó
requer projetar a sua própria morte.
Reconhecer a morte de outrem é saber-se completamente sozinho: “Ainda
não estava morta. Eu já me sentia só” (II, CG 249 | II, CG 609), ele dirá após o ataque
nos Campos Elísios. É saber-se também algum dia morto. Tal consciência, vislumbrada
no telefonema e no retorno de Doncières, lhe virá da forma mais forte no último tomo
do romance, Le Temps retrouvé. Quanto à avó, o néant sobrevirá apenas quando
emergir involuntariamente a memória a respeito da avó, um ano mais tarde, trazendo
consigo uma resposta afetiva desesperada de Marcel e o luto em sua forma mais
pungente.
A distância da avó, de costas, irreconhecível, fala da distância intransponível
que nos faz indivíduos separados. A primeira vez que Marcel vive essa solidão é em
Combray, durante a infância, a cada vez que a mãe não subia para lhe dar o beijo de
boa noite. Uma solidão que Marcel teme e contra a qual lutará, procurando o tempo
todo a companhia dos outros nos salões.
Com a avó morta, Marcel em um certo sentido também terá de abandonar a
infância. Dentro do conjunto da obra, a morte da avó funciona como um gatilho que
conduzirá Marcel à maior das solidões: aquela necessária para escrever. Não o
conduzirá de modo direto, mas intermitente. A morte de Albertine acentuará essa
solidão. A escrita, para Marcel, é um ato absolutamente solitário de quem já se
desligou da vida, de quem lida com mortos.

A morte da avó tem um tom teatral até ao acabar. Depois do último ato, ela
sai de cena. Fim do capítulo. No momento seguinte, temos um Marcel renovado.

60
CAPÍTULO II

O SILÊNCIO OPACO

A seguir à morte da avó ocorre um salto de um importante segmento


diacrônico da história. Neste capítulo, procuraremos caracterizar o corte da narração
com base no seguinte conjunto de observações:
a) O silêncio que se produz sugere um distanciamento emocional de Marcel
com relação a avó;
b) O silêncio deve ser compreendido juntamente com a omissão sistemática
da avó após sua morte até Sodome et Gomorrhe;
c) Ele é consequência do modo anterior com que a morte foi narrada,
tornando a perda real inacessível para Marcel;
d) Ele atua como um instrumento para manter Marcel, a todo custo, distante
da consciência da morte da avó; é, assim, a repressão de um conteúdo
perturbador;
e) Ele não é o único corte: anteriormente, das poucas vezes em que Marcel
se deparou com a situação precária da avó, houve um corte na narração,
que a seguir desviou de tema;
f) A estratégia de silenciamento será apenas temporariamente exitosa;
g) Se a morte da avó não gerou um sofrimento agudo nem uma mudança
radical em Marcel a seguir, isso não quer dizer que o impacto dela sobre
o protagonista seja negligenciável.
Retomaremos também uma comparação com Orfeu, a fim de mostrar o
contraste com Marcel no que se refere à atitude perante a morte.

61
Uma avó com aparência de mocinha, rejuvenescida, fora do tempo – encerra-
se deste modo a cena da morte da avó. No momento seguinte, temos um Marcel
renovado:

Conquanto fosse apenas um domingo de outono, eu acabava de


renascer, a existência estava intacta à minha frente, pois de
manhã, após uma série de dias temperados, houve um nevoeiro
frio que só se dissipara por volta do meio-dia. (II, CG 275 | II, CG
641, grifos nossos).

Ao retomar a narrativa, é assim, declarando-se renascido, que Marcel


reaparece meses depois da impactante morte da avó. Nada sabemos sobre o que lhe
teria acontecido durante esse tempo. A omissão de Marcel, bem como a exclusão das
menções à avó nos capítulos seguintes, sugerem que a morte dela não gerou nele um
sofrimento de grandes proporções, como seria esperado ao se tratar de uma pessoa
tão importante. Marcel chorou, mas a morte da avó não desencadeou nele o luto.
Um modo de explicar a mudez do narrador seria diminuir a amplitude da avó
na vida de Marcel: se a avó não fosse de grande importância para ele, a mudez não
chamaria atenção; a morte da parente, como a de Léonie, não teria por que ter em
Marcel um grande impacto. Lembremos que o sofrimento pela perda de alguém,
segundo Freud, pressupõe que tenha havido um vínculo afetivo de envergadura, ou
seja, que a pessoa agora ausente tenha sido muito querida: “Se o objeto não tiver
para o ego um significado tão grande, reforçado por milhares de laços, sua perda não
se prestará a provocar um luto ou uma melancolia” (LM: 139).
Mas sabemos que a avó lhe era uma pessoa cara. Mais tarde, em Sodome et
Gomorrhe, a eclosão da dor em Marcel, que evocará remorso e culpa por tê-la
esquecido durante tanto tempo, assinala a importância da avó, a única capaz de
salvar a “secura da alma” de Marcel (II, SG 592 | III, SG 153). Portanto, teremos de
buscar algures as razões para o silêncio do protagonista.
Se considerarmos que a narração de Le Côté de Guermantes ocorre
retrospectivamente depois de muitos anos, e que o narrador tenha preferido, mesmo
com uma distância relevante no tempo, silenciar-se nesse ponto, o gesto torna-se
ainda mais perturbador. É isso que choca o leitor da Recherche: o silêncio de um

62
narrador tão prolixo, e que tão detalhadamente acabara de contar a morte da avó,
alguém de enorme importância para ele.
“Nós jamais saberemos, mesmo retrospectivamente, do que foi a vida do
protagonista durante esses meses”, escreveu Gérard Genette (1972: 141). Para ele,
esse talvez seja “o silêncio mais opaco de toda Recherche”. Apesar de apontá-lo,
Genette não o interpreta propriamente. Qualifica a elipse vagamente de “relutância”,
ainda mais significativa se considerarmos que “a morte da avó transpõe em grande
parte aquela da mãe do autor” (idem).
Aqui, entretanto, a biografia mostra-se inoperante para ler a obra. Em maior
ou menor grau, de modo circunscrito ao narrador ou alargado a um ou vários
personagens, a abordagem biográfica atingiu considerável amplitude nos estudos
proustianos, como atestam alguns comentários de Julia Kristeva34 (1994) e a tese da
mãe profanada de Antoine Compagnon (Op.cit.). Em comum, há a premissa de que o
livro, de um modo bem localizável, espelharia a vida de Proust.
Um dos casos mais citados é o espelhamento entre a avó diegética e a mãe
biográfica. Na crítica proustiana em geral, os termos para qualificar a posição de uma
em relação a outra variam: equivalente, protótipo, correspondente, modelo,
inspiração, original, clef. As semelhanças são muitas e conhecidas entre Bathilde e
Jeanne, bem como entre a relação da avó diegética com o protagonista e da mãe
heterodiegética com o autor. Não é o caso de negá-las, mas de retirar a exclusividade
delas na interpretação literária.
No caso específico da avó, uma leitura eminentemente biográfica teria
dificuldades em responder algumas perguntas: se é verdade que a avó do romance é
a mãe de Proust e a relação biográfica entre ambos é transposta ao romance, por que
Marcel não sofre severamente com sua morte, nem se transforma profundamente a
seguir, como nos mostram seus biógrafos (PAINTER, 1959; TADIÉ, 1996 e WATT,
2013)? Como explicar que a morte da avó, a ser ela Jeanne travestida, não tenha

34
Por exemplo, a ideia de que, mesmo sem provas, a doação, por Proust, de parte da mobília herdada
dos pais para uma casa de prostituição seria verossímil o suficiente para fazer da tia Léonie a mãe
disfarçada. A profanação dos móveis da tia Léonie, episódio contado em Du côté de chez Swann,
serviriam na verdade para o narrador se vingar da mãe biológica/heterodiegética.

63
levado Marcel a se internar em um sanatório? Nem tenha disparado, de modo forte,
a grande viragem do protagonista em relação à sua vocação de escritor?
A posição de Roland Barthes, por exemplo, como em geral a da crítica de
pendor estruturalista, é mais reticente a esse respeito35. Barthes inverte a relação de
forças entre diegese e biografia, e submete a última à primeira: “não é a vida de
Proust que encontramos na obra; é a sua obra que nós encontramos na vida de
Proust” (2020 [1966]: 14). A inversão de forças, no entanto, acaba tendo efeitos
práticos semelhantes. No fim das contas, para a prática da leitura, torna o romance
necessariamente dependente da biografia, mesmo sendo uma dependência
retrospectiva. Isso fica claro com a enorme fascinação que exercem sobre Barthes as
fotografias das pessoas nas quais Proust se teria inspirado para conceber seus
personagens, e sugere uma certa extensão ou sobreposição entre pessoas e
personagens: “nós não podemos mais encontrar Swann na obra sem lhe dar a cara
real (a foto o prova) de Charles Hass em vida” (2020 [1978]: 138).36
Genette sabe dos limites da leitura biográfica, e por isso assinala que a
interpretação de elipses como a da avó requer um entendimento da duração, da
intensidade e de seu lugar no romance (GENETTE, Op.cit.: 141, nota 2). Genette, não
tendo desenvolvido uma resposta, nos dá conselhos inteligentes. Tomemos para nós
a questão do silêncio para, enfim, oferecer ao problema uma interpretação literária.

Prognóstico

Até a segunda visita a Balbec, quando a memória involuntária fará Marcel


chorar pela avó morta, há uma sistemática omissão da avó. Vamos chamá-la de
blackout. As menções a ela são raras, geralmente realizadas pela mãe e desprovidas
de emoção por parte de Marcel. Assinalemos, por exemplo, em Sodome et Gomorrhe,

35
Embora encontremos afirmações mais categóricas sobre o impacto da morte da mãe (ver
Introdução desta tese)
36
A declaração de Barthes é tanto mais complexa porque levanta uma discussão importante acerca
da fotografia. Ele a desenvolverá em La chambre claire (1980).

64
durante uma visita ao salão da duquesa de Guermantes, a conversa com o médico
que havia visto de urgência a avó:

A senhora sua avó já está morta, não?37 – perguntou-me num tom


de voz em que uma quase certeza acalmava uma ligeira
apreensão. – Ah, com efeito! Aliás, desde o primeiro minuto em
que a vi, meu prognóstico fora totalmente sombrio, lembro-me
bem. (II, SG 504 | III, SG 41)

A morte, resumida à execução de um prognóstico, é vazia de afeto. Em termos


nada emotivos, Marcel apenas confirma que a avó morreu e, assim, responde ao
único desejo do médico, o de saber se havia realizado corretamente o prognóstico.
Médicos “em geral ficam mais descontentes, mais irritados, com a invalidação de seu
diagnóstico do que satisfeitos com a sua execução” (II, SG 504 | III, SG 42). Daí que
houvesse “certa satisfação intelectual ao ver que não se enganara”.
A cena lembra o lado mais cômico e perverso do espetáculo da morte da avó,
com a postura médica que ignora os efeitos afetivos, muitas vezes devastadores, nas
pessoas próximas ao morto. Mas aquilo que julgamos absurdo na boca do médico
E*** é, de modo mais ameno, também o modo como Marcel lidou com a morte. O
narrador, apesar de ridicularizar os médicos e usar o humor como crítica, acaba sendo
indiretamente cúmplice dessa visão da morte. Como observador privilegiado, apenas
relata, mas pouco intervém. Não oferece nada em troca. A não ser, uma ou outra vez,
ao marcar a diferença de postura da mãe em relação à sra. Bathilde, a morte é uma
questão médica, e a dor é uma questão de aparência para a bom exercício de papéis
sociais.
O nosso argumento é que o blackout se explica pelo modo como a morte foi
percebida e narrada anteriormente, tornando a perda real inacessível para Marcel: no
decorrer da agonia da avó, Marcel não viu a avó, mas, sim, um corpo tornando-se
cadáver.
Marcel esteve todo o tempo a fugir à notícia da doença e da iminência da
morte, tomando emprestado o olhar dos médicos para afastar-se da posição de

37
No original, a pergunta é ainda mais incisiva: “Madame votre grand-mère est bien morte, n'est-ce
pas?”

65
familiar. Depois, à medida em que o desenlace se aproximava, fez da morte um
espetáculo e o narrou tal o espectador que assiste a uma peça – alheia, ficcional –,
com desprendimento suficiente para a comicidade.
Quando a morte é já uma evidência no corpo imóvel que sequer respira sobre
a cama, emerge enfim uma figura fora do tempo. Esta é a última imagem do
espetáculo: uma avó embelezada, restaurada à la Viollet-le-duc, que substitui o que
poderia ser o grotesco cadáver de uma “velha acabada”. No último parágrafo, Marcel
deixa de lado o olhar médico para fazer da morta uma pintura (ou uma escultura,
como diz), em todo caso, restaurada, indolor e atemporal, que não provoca
sofrimento em quem fica.
Ao fim do espetáculo segue-se o fechar das cortinas. O espectador pode,
enfim, voltar à sua vida, uma vida sem relação com o que assistiu. Ao encerrar o
capítulo e mudar de assunto, o narrador deseja que, com a morte trancafiada, a vida
prossiga incólume. É uma estratégia retórica e emocional.
Em Recordar, repetir e elaborar (1914a), Freud associa o esquecimento à
repressão: “O esquecimento de impressões, cenas, vivências quase sempre se reduz
a bloqueá-las” (SE XII: 148). Freud aproveitará a discussão acerca do esquecimento
para falar sobre uma amnésia mais profunda da primeira infância e associá-la à
repressão de conteúdos universais. Esse passo se distancia de nossa análise. O que
nos interessa na discussão é tão somente a ideia de que, na escala individual e mais
cotidiana, conteúdos esquecidos podem ser conteúdos reprimidos. O blackout da avó
funciona nesse sentido. O conteúdo perturbador precisa ser acantonado e reprimido.
Deste modo isolam-se recordações e se dissolvem nexos e sequências lógicas de
fatos passados.

Elipse é silêncio, e silenciar-se é a profilaxia para eventuais dores advindas de


uma reflexão acerca do significado profundo da morte, como a que acometerá
Marcel na segunda visita à estação balneária em Balbec.
O silêncio opaco de que fala Genette, entre a morte da avó e o domingo de
outono não é o único silêncio em relação à sra. Bathilde. Ele deve ser entendido junto
com silêncios anteriores e com a persistente ausência (ou presença lateral) da avó
depois da morte até “Les Intermittences du cœur”.

66
Lembremos que, imediatamente depois de Marcel flagrar a avó no sofá como
um fantasma, no retorno de Doncières, há um corte na narrativa, que passa a tratar
da conversa com Saint-Loup sobre a duquesa de Guermantes. Marcel não suporta a
reflexão que essa imagem provoca e desvia sua atenção. Durante centenas de
páginas, a avó desaparece.
O silêncio o resguarda de mergulhar nos labirintos internos, como o faz em
Albertine disparue. Uma das maiores diferenças nas respostas de Marcel perante a
morte da avó e de Albertine é a eloquência acerca da última. Quando a amada morre,
de supetão, sem dar tempo a Marcel de se preparar (ou de acreditar que se prepara),
ele sofre tanto quanto mais se empenha em descrever cada movimento interno de
sua dor, ao mesmo tempo derrapando e se afundando neles. O sofrimento
abundante torna-se, por vezes, discursivo, se baseia na palavra e é alimentado por
ela. A dor vira um nome (Albertine) e uma frase (“Albertine est partie”) já ocas,
repetidas à exaustão, em eco.
Em contraste, a mudez em relação a avó atua duplamente: é consequência do
modo como a morte foi vivida e descrita, e também um recurso que visa bloquear
qualquer eventual proliferação de dores, obstruindo o próprio discurso. Intenta
impedir que a morte espalhe seus estilhaços, isto é, que ocupe a narração38.
A elipse da avó age como uma barreira que quer represar a morte. Esta,
desconectada da vida posterior de Marcel, deve se confinar à primeira parte de Le
Côté de Guermantes. Mas ela não aguentará o espaço pequeno que lhe é conferido, e
haverá de eclodir adiante, bem no meio de Sodome et Gomorrhe, na passagem “Les
Intermittences du cœur”, também ela uma espécie de represa dentro do romance.

A dinâmica familiar que se cria é complexa. O que por vezes pode ter escapado
à crítica de base mais biográfica e psicanalítica é que o livro não trata de um dueto
(mãe - filho), mas de um triângulo (filho - mãe - avó). Isso confere uma complexidade
maior à morte e permite problematizar melhor a posição de Marcel. À ausência da
avó, é a mãe que assume o ônus da perda e do luto. Quem percebe a perda real é ela,
a chorar no leito de morte. Quanto à Marcel, ele se distancia da morte.

38
É curiosa a caracterização desta elipse por Genette: “perfeitamente muda” (Op. cit.: 140-1).

67
Barthes, ao afastar-se de uma leitura de estrita transposição biográfica,
interpreta com mais liberdade a relação entre Marcel, mãe e avó na análise literária:
“a morte de sua mãe provocou uma cisão decisiva na vida de Proust: a da avó não
muda em nada a existência do narrador, cujo luto é relegado à mãe” (2020 [1966]:
14). O comentário de Barthes parece-nos parcialmente correto. Embora o lote maior
de sofrimento seja transferido ao personagem da mãe, disso não decorre, contudo,
que Marcel não tenha se enlutado (veremos adiante) nem que a existência do
narrador tenha ficado incólume. Só poderemos perceber isso por meio de uma
análise integral do romance, como ficará mais claro na Parte II desta tese, quando
analisarmos a morte de Albertine e as implicações na vida de Marcel.
Até aqui procuramos mostrar que não houve uma absoluta indiferença de
Marcel imediatamente a seguir à morte, mas ele logrou, até “Les Intermittences du
cœur”, manter o pior lado da morte, ou seja, a consciência sobre o nada, alheio a si.

Uma nova vida

Discutiremos um aspecto sobre Orfeu para melhor poder qualificar o “silêncio


opaco” e a posição de Marcel. Como vimos, o narrador cita o mito, de passagem,
quando cai a chamada telefônica em Doncières. O diálogo com a figura mítica, em
nossa leitura, vai além dessa menção. Nossa proposta é mostrar que, se ambos
podem ser comparados no fracasso da descida ao inferno, há um contraste profundo
na atitude de cada um perante a morte.
A agonia da avó pode ser lida como um prolongamento no inferno, e a ruptura
narrativa a seguir da morte física, a de alguém que voltasse do mundo dos mortos.
Para isso, vamos buscar os sentidos da katabasis, o termo que designa, na tradição
greco-romana, a descida de um ser humano aos infernos e o seu retorno.
Na tradição clássica, a descida ao Hades tem a ver com conhecer-se a si
mesmo, recuperar algo/alguém perdido ou adquirir poderes ou conhecimento fora

68
do alcance dos humanos (CLARK, 1979; FALCONER, 2007). O resultado da série de
desafios e testes implicados na viagem é sempre transformador39.
A versão primitiva de Orfeu coloca a história como uma renovação ritual da
vida e uma experiência iniciática (HERNÁNDEZ, 2008; SANTAMARÍA, 2008). Inclusive,
a forma como Orfeu morre, pelo desmembramento violento do corpo40, nas versões
de Ovídio e Virgílio, seria um símbolo de morte total da vida anterior de Orfeu para
ser dotado de novos poderes.
A cabeça de Orfeu, já dissociada do corpo, continua a falar no percurso que o
leva de rio até o submundo, onde reencontra Eurídice (Ovid., Met. XI, 1-66). É assim
que ele teria adquirido o dom da visão profética, que alcança as pessoas por meio de
sua cabeça falante. Sua cabeça se torna um oráculo, e essa imagem é fartamente
representada também na iconografia greco-romana. (HERNÁNDEZ, Op. cit.;
GAREZOU, 1994).
Nossa interpretação, certamente moderna, dos poemas, vai no sentido de
enfatizar aspectos contrários. Nos poemas de Ovídio e Virgílio, os dois maiores
poetas que marcaram a tradição do mito para a posteridade, não há renascimento
literal nem metafórico; há, sim, um luto bastante penoso. Orfeu deixa o mundo dos
mortos para, simbolicamente, morrer vivo no luto. Petrificado, “transformado em
rochedo imoto e frio” (Met. X, 99) sem nunca mais amar outra mulher, recolhe-se às
cordilheiras de Ródope e Hemo.
O destino final não é menos triste. Em Ovídio, após a morte violenta, ele volta
ao Hades e reencontra sua amada. O poeta romano inventa um final feliz; resta saber
se ele é mesmo totalmente feliz. O luto acaba, sim, mas também a própria vida de
Orfeu. Lembremos que a intenção do herói nunca foi morrer para ficar com Eurídice,
mas trazê-la de volta à vida, com ele. Por isso, mesmo em luto, ele não abdica da vida:
é assassinado. Virgílio é ainda mais radical: o luto de Orfeu é interminável e, depois
de esquartejado, sua cabeça não anuncia outra verdade que o nome da amada.

39
Outras culturas também veem na descida ao inferno um significado transformador e iniciático.
Mircea Eliade (1958), por exemplo, comenta esse motivo na mitologia polinésia: “[...] descer vivo
ao inferno, enfrentar monstros e demônios, é passar por uma provação iniciática. Posso
acrescentar que descidas semelhantes, em carne e osso, são características de iniciações heróicas.”
40
Entre os primeiros a dizerem que as mulheres de Trácia despedaçam Orfeu, estão justamente
Virgílio e Ovídio. Esta versão será repetida por quase todos os autores posteriores (cf.
SANTAMARÍA, 2008: 108).

69
A descida aos infernos é, portanto, fracassada. Orfeu não atinge uma
clarividência nem consegue recuperar a amada. Volta de mãos vazias. A cabeça
profética não é uma consequência imputável à viagem ao submundo, mas ao crime
cujas autoras Baco tratará de punir.
O ponto que nos interessa é que, na descida ao Hades, Orfeu não se inicia, no
sentido em que não se torna outro. O que muda o herói é a morte de Eurídice. Ao
perdê-la uma segunda vez, ele retoma sua primeira dor e a leva ao último grau, o da
irresolutibilidade.
Como Orfeu, Marcel fracassa: não consegue trazer a avó à vida no telefonema,
nem durante sua agonia. Daí ser pertinente a analogia assinalada pelo narrador.
Contudo, Marcel, apesar de comparado ao herói de Trácia, não é Orfeu nem muito
menos quer sê-lo. Para esclarecer esse aspecto, tomemos outra morte, o trágico
desaparecimento de Albertine. Marcel não chorará toda a vida por sua amada,
mesmo que, em Albertine Disparue, queira fazer crer o contrário (ao leitor e a si
próprio). Tampouco pela avó. Ao mesmo tempo, e é importante enfatizar esse ponto,
isso não significa que Marcel não tenha sido profundamente tocado pela morte delas
– no caso da avó, com um efeito retardado.
Se a agonia da avó é uma extensão da estadia no inferno já referida na
chamada telefônica, cabe perguntar como Marcel voltará a um mundo já sem a sra.
Bathilde. Orfeu, inconsolável, exilado nas montanhas, prende-se ao passado: não
aceita encontros com mulheres, por fidelidade à esposa morta. Marcel, ao contrário,
declara-se renascido. O excerto citado no início deste capítulo marca posição: “eu
acabava de renascer, a existência estava intacta à minha frente”. Marcel não apenas
se diz renascido, mas a vida nos salões é mais intensa do que nunca. Parece ser isso o
que leva Barthes a afirmar que nada muda em Marcel depois da morte.
Não é a primeira vez que vemos o protagonista celebrar uma nova vida. Um
tipo de autodeclaração semelhante é evocada por Marcel quando ele viaja pela
primeira vez para Balbec. Não por acaso, também se vale de uma elipse para marcar
o fim da primeira parte de À l’ombre des jeunes filles en fleurs. A mudança de capítulo
acompanha uma mudança de lugar e o fiasco da relação com Gilberte: “Quando, dois
anos mais tarde, chegara a uma quase total indiferença por Gilberte, parti com minha
avó para Babec” (I, MF 516 | II, JF 03).

70
O advérbio “quase” desmente um salto de trapezista que viesse revirar a
situação repentinamente. Pese a elisão de um segmento diacrônico, nos é sugerido,
de forma sucinta, que os últimos dois anos do protagonista foram um período em
que Marcel pensou e sofreu por Gilberte. Se atentarmos à sequência do texto,
também colheremos sugestões que contrariam a ideia de uma cura súbita. Marcel
afirmará que a indiferença era apenas “intermitente” (I, MF 516 | II, JF 03) e que era
acometido algumas vezes por um sofrimento “súbito” e “muito doloroso” pela
separação com a garota. Mesmo assim, ao cabo de alguns dias em Balbec, o furor de
Marcel vai ganhando impulso e é como alguém renascido que ele se declarará, por
fim, “curado” (I, MF 517 | II, JF 05).
Em um momento anterior à viagem, também referindo-se à Gilberte, a ideia
de renascimento, desta vez mais crítica, surge por ocasião do Ano Novo em Paris,
quando a garota se ausenta e Marcel fica só:

[...] tive a sensação e o pressentimento de que o dia de Ano Novo


não era diferente dos outros, que não era o primeiro de um
mundo novo em que teria podido, com uma oportunidade ainda
intacta, refazer minhas relações com Gilberte como no tempo da
Criação, como se ainda não existisse passado, como se tivessem
sido aniquiladas, juntamente com os indícios que delas se
pudessem tirar para o futuro, as decepções que ela me causara
às vezes; um novo mundo onde não subsistisse nada do antigo...
a não ser uma coisa: meu desejo de que Gilberte me amasse.
Compreendi que eu coração desejava tal renovação, a seu redor,
de um universo que não o satisfizera, porque ele, coração, não
havia mudado [...] (I, MF 397 | I, JF 478, grifos nossos)

Na passagem supracitada, Marcel mostra-se ciente da ilusão de ruptura com


o passado. Paradoxalmente, também está fascinado por renová-lo, e é com muita
energia que pensa abastecer a sua relação com Gilberte com uma nova amizade.
Contudo, a relação de fato frustrará qualquer ideia de um coração renovado.
Há um vocabulário comum às passagens referentes ao Ano Novo em Paris, à
viagem para Balbec e ao tempo imediatamente depois da morte da avó. Todas
apostam em um renascimento (mesmo que, no Ano Novo, ele venha com mais
reservas).

71
A “existência intacta” e o “renascer” em Le Côté de Guermantes aludem a um
renascimento de Marcel da morte da avó. A referência à mudança do tempo,
brindando a chegada do frio, opõe-se ao verão associado à morte de Bathilde41. A
nova existência, desprovida de qualquer ferimento, estaria pronta para ser
aproveitada.
Por um lado, isso mostra que Marcel não foi completamente indiferente à
morte da avó. Por outro, dá a entender que a superou de modo definitivo. Há que se
tomar esse discurso sem euforia. Qualquer leitura unilateral e exagerada de
“renascer” deixaria escapar o caminho profundamente contraditório, descontínuo e
subterrâneo dos sentimentos na Recherche. Na boca de Marcel, renascer é um verbo
de curto alcance. Não vemos nada parecido a um processo radicalmente
transformador, isto é, “um novo nascimento [...], o acesso a um novo modelo de
existência”, como define Eliade (1963: 81), que venha romper com o anterior.
Apesar de suas declarações, Marcel nunca de fato renasce, embora por
diversas vezes anuncie uma nova vida. Rapidamente, ao novo se aclimata o hábito e
o que se desenrola é a repetição do fiasco. Ou se rompem hábitos para retomá-los
adiante ou se criam novos hábitos. A “existência intacta” é, ao nosso ver, uma
fantasia de conversão após a descida aos infernos. Marcel quer-se mudado, quer-se
outro. É também uma autodeclaração de saúde, tal um paciente que atestasse a si
próprio ter se livrado de todos seus males, a despeito do diagnóstico médico. Em Le
Côté de Guermantes, Marcel cala-se para sair ileso da descida aos infernos que a morte
da avó implica.
Nos casos analisados, incluindo o da avó, temos a impressão de que Marcel
volta a viver a vida do mesmo jeito que antes. Isso o descreveria como alguém que
não muda, e em quem o luto tem efeitos totalmente passageiros e superficiais. A
contar pelo luto da avó e de Albertine, não parece ser o caso. Marcel nunca renasce,
mas sofre algumas profundas mudanças, como tentaremos mostrar ao longo desta
tese.

41
Brindar a chegada do frio é uma forma de depreciar a estação durante a qual a avó morrera. No
volume seguinte, o narrador dirá: “Deplorava eu aqueles dias de canícula em que a minha avó
morrera e não estava longe de incriminá-los.” (II, SG 505 | III, SG 42)

72
No decorrer do romance, Proust mostra o exagero de se esperar um
sofrimento radical ao qual a morte de pessoas queridas nos obrigasse eternamente,
como também uma apatia completa, como se nada tivesse acontecido. Se Marcel não
se enluta como Orfeu, tampouco esquece completamente a avó. O mesmo se passa
em relação a Albertine.
Há qualquer coisa que lenta e internamente se mexe em Marcel, regredindo,
avançando, parando e voltando a se mexer – como mostrarão as “Les Intermittences
du cœur” e, tão importante como essa passagem, a descontínua aparição da avó até
o final do livro e a importância que ela terá para a grande obra que Marcel decide,
enfim, escrever.

73
CAPÍTULO III

INTERMITÊNCIAS

Neste capítulo, nos concentraremos na passagem “Les Intermittences du


cœur” (II, SG 588-612 | III, SG 148- 178), na qual eclode em Marcel, de forma abrupta,
o luto e a consciência da morte da avó.
Analisaremos a fotografia da avó que Marcel leva consigo, bem como alguns
elementos do sonho e da ‘aparição’ da avó na praia. Nosso objetivo será mostrar que
as mudanças de leitura da fotografia acompanham a dor intermitente de Marcel, e
por isso nos servem para descrever o luto. Alguns elementos dessa mudança na
interpretação da fotografia também aparecem em descrições de conteúdo onírico.
Subsidiaremos a discussão com algumas questões importantes da teoria da
fotografia, e não é coincidência se nomes maiores desse debate (Kracauer, Benjamin,
Barthes e Sontag) tenham sido também eles leitores de Proust – alguns deles, aliás,
pensaram especificamente a fotografia da avó de Marcel em suas próprias vidas.

Entre a sobrevivência e o nada

“Les Intermittences du cœur” ocupa um lugar importante na Recherche. Em


1912, Proust pensou titular todo o romance com esse nome, como mostra carta
endereçada ao editor Eugène Fasquelle em 1912. O título faria alusão, “no mundo
moral, a uma doença do corpo” (Corr., XI: 257).
Proust mudaria de ideia após tomar conhecimento da publicação, no mesmo
ano, de Le Cœur en désordre, do franco-suíço Binet-Valmer: “[o título de Binet-Valmer]
deve ser uma alusão ao mesmo estado mórbido que caracteriza os corações
intermitentes”, escreve a Bernard Grasset em 1913 (Corr., XII: 176).

74
Por fim, nomeando somente um capítulo, “Les Intermittences du cœur” viria
a público pela primeira vez, dissociado do resto do livro, em outubro de 1921, na NRF42.
Na edição em livro, ela consta como uma passagem no final do primeiro capítulo de
Sodome et Gomorrhe.
O excerto é emblemático do luto: mostra os efeitos desoladores da morte da
avó sobre Marcel, e evidencia a reação oposta de Marcel e da mãe diante da morte.
A passagem trata da segunda viagem de Marcel para Balbec, desta vez com a mãe.
Os objetivos dele são muito mais práticos, como diz, do que por ocasião de sua
primeira visita à cidade: encontrar a camareira da sra. Pitbus, mulher que seu amigo
Robert Saint-Loup lhe havia ‘recomendado’ voluptuosamente. Mas o protagonista
nem irá encontrá-la, nem perseguirá seu desejo. Ela ficará em sua história sem muitas
consequências, um pouco como a sra. de Stermaria.
A cena que se desenrola no início dessa segunda estância é famosa: na
primeira noite da viagem, enquanto Marcel senta-se para desamarrar os sapatos,
cansado, nem bem toca o botão de sua botina e começa a chorar. Lembra-se da avó,
revivendo o instante quando ali, naquele mesmo quarto do Grand Hôtel, ela lhe havia
ajudado a se descalçar:

Forte perturbação de todo o meu ser. [...] Porém, mal tocara o


primeiro botão de minha botina, meu peito inchou-se, repleto de
uma presença desconhecida, divina; soluços me sacudiram,
lágrimas me rolaram dos olhos. [...] Eu acabava de perceber, em
minha memória, debruçado sobre minha fadiga, o rosto
preocupado, terno e desapontado de minha avó, assim como
estivera na primeira noite da chegada; o rosto de minha avó, não
daquela que eu me espantara e censurara de lamentar tão pouco
e que dela só possuía o nome, mas de minha avó verdadeira, de
quem pela primeira vez desde os Champs-Élysées onde ela tivera
o seu ataque, eu encontrava a realidade viva numa lembrança
involuntária e completa. (II, SG 592 | III, SG 152-153; grifos nossos)

A cena primeira em Balbec desenrolara-se assim:

42
Para mais detalhes sobre a gênese e edição desta passagem, ver YOSHIDA (1992) e COMPAGNON,
na “Notice” da edição crítica de Sodome et Gomorrhe (1988: 1225-33).

75
[...] tendo visto que ela queria ajudar-me a deitar e a tirar os
sapatos, quando fiz menção de impedi-la e de começar a me
despir sozinho, ela reteve com olhar súplice as minhas mãos que
tocavam os primeiros botões de minha roupa e das botinas.
– Oh, peço-te – disse ela. – É uma alegria tão grande para tua avó.
E, principalmente, não deixes de bater na parede se tiveres
necessidade de alguma coisa esta noite; minha cama está pegada
à tua e a divisória é bem fina.” (I, MF 536 | II, JF 29)

O blackout iniciado em Le Côté de Guermantes, quando a avó sai totalmente de


cena, termina com a manifestação da memória involuntária. Paradoxalmente, é no
momento em que a avó ressurge em toda sua força, “mais de um ano depois de seu
enterro”, que o contrário, isto é, a sua ausência, se torna evidente: “eu acabava de
saber que ela estava morta” (II, SG 592 | III, SG 153).
O luto aparece na forma mais aguda. Seguindo o que nos diz o narrador, ele
tem a ver com um tipo de consciência sobre a morte, na qual se sublinha a antinomia
entre o que restou da pessoa morta e o nada em que ela se tornou. É uma contradição
afetiva e não intelectual: “a dolorosa síntese da sobrevivência e do nada” (II, SG 595
| III, SG 157). Podemos tomar esta citação como a definição (e a contradição) do que
é o luto.
Freud dizia que o trabalho do luto consiste, em um primeiro momento, na
evocação intensa do objeto amado e perdido. A memória substitui a ausência do
outro pela sua presença imaginária. Mas a realidade não corrobora tal presença; em
vez disso, evidencia a perda do objeto. É isso o que vemos na ressuscitação da avó de
Marcel.
O doloroso do luto, também para Freud, vem da insólita discrepância entre a
presença interna e afetiva do objeto perdido e o desaparecimento efetivo desse
objeto, junto com tudo o que com ele perdemos. No desenlace normal de tal embate,
a realidade dos fatos deve sair vitoriosa. É preciso que o enlutado gradualmente
aceite a ausência, e essa aceitação é o que fará com que se desligue do objeto que
não mais existe senão como fantasia. Em outras palavras, o enlutado deve matar o
objeto dentro de si, sob pena de tornar-se um melancólico.
A consciência da morte da avó, naquilo que possui de mais dolorosa, chega
para Marcel com atraso, muito depois de a avó ter desaparecido. O narrador chama

76
atenção para o descompasso entre acontecimento e afeto, “esse anacronismo que
muitas vezes impede o calendário dos fatos de coincidir com o dos sentimentos” (II,
SG 592 | III, SG 153). A falta de sincronia faz com que não se possa prever uma resposta
intensa imediatamente a seguir à perda de uma pessoa. O luto parece ter uma
estranha temporalidade, como suspeitava Freud: “Não é fácil discernir se ele [o luto]
começa ao mesmo tempo em vários lugares ou se implica alguma sequência
determinada” (LM: 139).
Considerando a temporalidade pouco óbvia do luto, bem como o que foi
exposto nos capítulos anteriores, quando aqui julgamos o luto de Marcel
cronologicamente tardio não pressupomos um modelo temporal único em relação
ao qual todas as pessoas deveriam se alinhar. O atraso do qual falamos não tem a ver
exatamente com o contraste no que toca às respostas de outras pessoas,
nomeadamente a da mãe. Na história de vida do protagonista, viu-se que ele se serviu
de certos recursos para desviar da morte quando ela se avizinhava ou daquilo que
nela poderia apontar para o nada.
A consciência dolorosa da morte já havia despontado em Marcel antes da
segunda viagem para Balbec, e antes mesmo de a avó morrer. Como, por exemplo,
logo após o ataque nos Campos Elísios: “Ainda não estava morta. Eu já me sentia só”
(II, CG 249 | II, CG 609). Contudo, sem força o bastante, essa consciência fora
sistematicamente interditada a seguir.
Não é que Marcel não se tivesse lembrado da avó durante esse tempo; mas é
da doente que ele se lembrava: “Muitas vezes eu falara nela desde esse momento
[em que ela morreu], e até pensara nela” (II, SG 592 | III, SG 153). Já se nota a
diminuição da avó: ‘eu até pensei’ não é o mesmo que ‘eu pensei bastante e todo o
tempo’. É inevitável que ele pensasse nela, mas, segundo ele, nesses termos: pouco,
e de um certo jeito. A memória voluntária da avó é limitada em sua intensidade,
frequência, e sobretudo em seu conteúdo, demasiadamente atado à imagem da
doença e a uma avó degradada:

[...] sob as minhas palavras e pensamentos de rapaz ingrato,


egoísta e cruel, nunca houvera nada que se assemelhasse à
minha avó, pois que, na minha levianidade, no meu amor pelo
prazer, no meu hábito de vê-la enferma, eu continha em mim

77
apenas em estado virtual a lembrança do que ela havia sido. (II,
SG 592 | III, SG 153)

Agora, Marcel relata ter sentido a avó “pela primeira vez, viva, verdadeira”,
desde o ataque nos Campos Elísios.
As lembranças que ele alguma vez teve da sra. Bathilde após sua morte
erigiam um tipo de figura muito aquém da imensidão da avó, de todo o bem que ela
lhe fizera em vida, de tudo o que representava para Marcel. Eram lembranças, para
além de redutoras, desconectadas da vida atual de Marcel, sem quaisquer
consequências afetivas. Possivelmente, lembranças de quem estava ocupado com
outras coisas.
A memória involuntária devolve a Marcel outra avó, a pessoa que por tantos
anos lhe cuidava e que viajou com ele para Balbec. A avó, enfim, esteve
cotidianamente presente ao seu lado. A história da morte dela, até aqui um relato
médico e teatral, quase podendo ter sido escrito em terceira pessoa, passa a ser um
relato íntimo, pessoal e profundamente afetivo.
A percepção da perda real da avó é dolorosa; o real é um vazio: aquela pessoa
que já não poderá mais se abaixar para descalçar o neto. Esta dor, que aponta para o
fim de uma relação e para a solidão de Marcel, indica também outra dor, associada à
culpa. A perda da avó implica Marcel reconhecer a dose de culpa por, em diversas
ocasiões, ter feito sofrer quem ele amava, e já não ser possível uma reparação
eficiente (como seria consolá-la “com mil beijos” se ela estivesse viva).
A seguir à sensação de ‘ressuscitação’, pela memória, da avó, ela então morre
uma segunda vez, no sentido em que Marcel agora sabe que ela está morta:
“reencontrando-a enfim, acabava de saber que a perdera para sempre.” (II, SG 593 |
III, SG 155). O modo como ele lida com essa incômoda descoberta pode ser analisado
por meio do uso que é feito da fotografia e por meio do sonho.

Uma fotografia

78
Atravessando toda a passagem de “Les Intermittences du cœur” está a
fotografia que a avó tirou ao lado do neto quando os dois visitaram pela primeira vez
Balbec. Por que Marcel levou a fotografia nessa segunda viagem? Sempre a levava
consigo? Ou a levou porque retornaria pela primeira vez ao lugar onde esteve com a
avó, onde a fotografia foi tirada? Se a presença do objeto material indica que Marcel
não esquecera a avó por completo, já vimos como ele se lembrava dela.
Há muitas fotografias referidas na Recherche, como as há nos rascunhos do
romance e na correspondência do autor. Proust, ele próprio, era um fotômano. Jean
Cocteau conta que, das duas mesas do quarto de Proust no boulevard Haussmann,
uma estava atolada de ampolas e cadernos; a outra, de fotos de aristocratas43.
Na Recherche, a fotografia está presente de diversas formas: objeto da cena;
objeto ou prática referida por personagens e/ou narrador; e, indiretamente, discurso
metafórico, com expressões do mundo da fotografia (chambre noir ou négatif, para
citar as mais conhecidas). Elas geralmente tratam da memória e da percepção (cf.
ALBERS, 2007; HAUSTEIN, 2012). Interessa-nos, aqui, falar do primeiro caso.
A fotografia que Saint-Loup realiza da avó e Marcel em Balbec44 é, ao lado da
fotografia profanada do pai Vinteuil45, a mais importante do romance. Ambas são
carregadas de simbolismo. No segundo tomo do livro, À l’ombre des jeunes filles en
fleurs, Marcel assiste escondido à namorada de Mlle Vinteuil cuspir no retrato do
sogro falecido recentemente. Esse gesto resume todos os infortúnios que a relação
homossexual de Mlle Vinteuil causara ao pai. No final do romance, a namorada
tentará repará-lo.
A fotografia da avó, veremos no decorrer deste capítulo, não é menos
desprovida de significado e contradição, incluindo um intenso conteúdo de culpa. A
importância dela, como objeto mnemônico, é imensa. Marcel enfatiza, em À l’ombre
des jeunes filles en fleurs, que se trata da única fotografia de um membro de sua
família. Mas não só. Ela se tornaria o único registro de uma pessoa morta. Essa

43
Cf. BRASSAï (1997: 35). HAUSTEIN (2012) realiza uma sistematização dos trabalhos sobre a
importância e os usos da fotografia na vida pessoal de Proust, na sua correspondência e nos
racunhos da Recherche. Ver especialmente as notas 9, 10 e 11 do primeiro capítulo, pp. 33-4.
44
A cena em que se tira a fotografia é narrada em I, MF 626-7 | II, JF 144-5.
45
MOORJANI (1990) traça os paralelismos entre “Les Intermittences du cœur” e a cena de
Montjouvain no que concerne à profanação do genitor; na análise, a autora equipara ambas
fotografias pelo viés psicanalítico.

79
associação entre objeto e morte trará mais pathos à fotografia e acentuará a remissão
do narrador à culpa.
A primeira vez que ela surge nas “Intermitências” é de forma indireta, e não
como objeto da cena. É interessante notar que, mesmo nesse primeiro momento,
quando há apenas uma menção, sem presença física, a fotografia já aparece em um
contexto de culpa. Ao recapitular as vezes em que o neto fora egoísta e cruel com a
avó, lá está a fotografia como metonímia de um evento: o dia em que o neto
resmungou contra a vaidade dela que, com um chapéu de abas largas fazendo
sombra em seu rosto, posou para a foto. Marcel gostaria, se pudesse, “retocando o
passado, diminuir as dores que a minha avó sentira antigamente” (I, SG 594 | III, SG
155).
Não é, portanto, uma fotografia anódina. É o traço de um corpo que
desapareceu e o registro de uma crueldade. Marcel observa a contração do rosto da
avó, em resposta às queixas maliciosas que ele lhe endereçara naquele dia. Isso
porque Marcel sequer sabe que então a avó já havia tido um ataque e que quis
escondê-lo do neto, como Françoise fará questão de contar.
Marcel se recorda da fotografia como um evento do qual ele se envergonha,
culpado que se sente por “tentar extirpar-lhe até os menores prazeres”, que é como
ele ainda interpretava a avó em sua pose.
A mesma fotografia será várias vezes mencionada posteriormente como
objeto de cena. Entendermos exatamente onde ressurge o objeto nos ajuda a
compreender o papel que ele desempenha. Como vimos, no momento
imediatamente anterior, Marcel havia sido acometido pela realidade da morte da avó.
A morte passou a ser sentida na sua dimensão de negação e abolição do ser querido:
o néant do qual Marcel tanto queria fugir.
Ainda no rescaldo da recente descoberta a respeito da perda da avó, Marcel
se volta literalmente à fotografia e a segura.

I.
Não buscava tornar mais suave o sofrimento, embelezá-lo, fingir que
minha avó estava apenas ausente e momentaneamente invisível, ao
dirigir à sua fotografia (a que fora tirada por Saint-Loup e que eu
trazia comigo) palavras e rogativas [...]. Jamais o fiz, pois não só

80
estava empenhado em sofrer, mas também em respeitar a
originalidade do meu sofrimento tal como o havia sentido de súbito,
sem querer [...] (II, SG 595 | III, SG 156)

Ao sabê-la morta, Marcel se agarra à fotografia da avó como consolo, como


se precisasse de algo que lhe fizesse referência, que apontasse para a sua presença.
Não é a presença de qualquer avó que Marcel busca, nem da última; ele quer a
“verdadeira” avó, a avó essencial, e distinta daquela que ele viu sucumbir nos Campos
Elísios, e depois sobre a cama.
Mas, afinal, a pessoa que Marcel enxerga na fotografia é a avó desvalida que
morreu. Nesse momento, já há uma primeira sugestão de que a fotografia testifica o
contrário – em vez da presença, confirma a morte da avó, o nada. Essa sugestão ficará
clara na próxima menção à fotografia. Ele não pode fingir que “ela estava apenas
ausente”; a foto trata de uma ausência absoluta e irrevogável. Por isso, o efeito
colateral de tê-la tão perto, a avó representada em uma fotografia, é intensificar a
dor de uma distância que não se pode ultrapassar.
Para além de mostrar a avó que morreu, a leitura da fotografia tem um outro
efeito sobre Marcel: ele lê-se a si próprio no objeto; a foto aponta para um erro do
passado que Marcel não pode reparar. A avó da foto é a mesma contra a qual ele
dirigira injúrias.
Se Marcel está “empenhado em sofrer”, e de algum modo venera a dor, é
porque ela é prova (atrasada) de amor e devoção à falecida; a dor é também a
autopunição e a expiação pelo egoísmo de ter esquecido a avó durante tanto tempo
e pela crueldade das vezes em que não a tratou bem.
A dor o pune, igualmente, por ele ter reduzido a memória à última avó, à
malade, obliterando aquela que seria a “verdadeira”. A fotografia é o registro dessa
condição, e Marcel ainda não consegue ler a imagem fora do contexto da fragilidade
da avó e da culpa que ele tem. Como consequência, a fotografia, incapaz de devolver
a avó verdadeira tal como lhe aparece pela memória involuntária, em lugar de
consolar Marcel, o violenta.
Marcel não busca a fotografia voluntariamente para sofrer (embora isso
também fosse coerente com o personagem), mas sobretudo porque sabe que o

81
preço a pagar ao buscar a presença da avó é o sofrimento. E o sofrimento, afinal, lhe
convém.
Na fotografia da avó a presença nunca está dissociada da ausência. A
recuperação da fotografia pleiteia a avó “viva” que lhe foi revelada momentos antes;
entretanto, ratifica sua ausência. Marcel a vê perto dele, nas suas mãos, mas a sabe
perdida.

Barthes

Já observamos a dolorosa consciência da morte que, de supetão, acomete


Marcel, e que se resume no seguinte paradoxo: “contradição tão estranha da
sobrevivência e do nada entrecruzados em mim” (III, SG 156).
Para Roland Barthes, a fotografia concentraria, em sua condição ontológica,
essa mesma contradição. A tal ponto que a fotografia, como meio, se torna
indissociável da morte. Segundo ele, toda fotografia atesta a presença e o
desaparecimento da pessoa retratada. Mas, se para Barthes a fotografia é uma
epifania, para Marcel é apenas um meio sobre o qual, debilmente, tentamos projetar
uma pessoa, mas que pende para o vazio.
Barthes, depois de tanto procurar por uma fotografia que lhe dissesse sobre
aquilo que ele acreditava ser a essência de sua mãe, falecida cerca de dois anos antes,
encontra uma fotografia de quando ela era criança, com o irmão dela, em um jardim
de inverno. Ali, reconhece as qualidades que tanto lhe agradavam nela e que, ele diz,
a acompanharão ao longo de toda a vida.
A partir dessa leitura e ainda elaborando intelectualmente o processo afetivo
do luto, Barthes toma a foto como modelo para uma teoria geral da fotografia. O
resultado é La Chambre claire (1980), em larga medida uma extensão de Journal de
Deuil (2009 [1977-9])46, no sentido em que se coloca, sem reivindicar essa intenção de
forma totalmente clara, como uma reflexão sobre a relação entre luto e fotografia47.

46
Journal de deuil, escrito entre 1977 (ano da morte de sua mãe) e 1979, sem a intenção de ser
publicado por Roland Barthes, foi editado postumamente em 2009.
47
Sobre esse tópico, ver GUNTHERT (1997: 115-128).

82
A presença que a foto atesta tem a ver com o despotismo do referente, do
qual ela não consegue se livrar; ele lhe é conatural, eternamente aderido a ela. Com
poder de notário da realidade (o referente é equiparado ao real), toda fotografia
seria, portanto, “um certificado de presença” (1980: 135). Daí que ela também seja
sempre tautológica, isto é, esteja a todo momento a apontar para a “coisa
necessariamente real que foi colocada diante da objetiva” (120).
O poder do referente, não obstante, é sempre frustrado pela sua própria
ausência. Na contramão da imanência do referente, a fotografia oferece também um
vazio. Afinal de contas, diz Barthes, a fotografia, apesar de apontar para alguém, trata
é da morte. A presença que ela declara é a de um morto.
A imagem nos engana ao simular que o real é vivo, para no mesmo ato
projetá-lo sobre o passado e sugerir sua morte. Daí que a fotografia seja spectrum,
remetendo à ideia de espetáculo e de fantasma. Espetáculo porque se apresenta ao
olhar, exibe-se; fantasma porque anuncia o “retorno do morto” (23).
Na análise essencialista que Barthes propõe, toda a fotografia assinala um
sujeito que foi e, no instante seguinte, já estava separado daquilo que foi, de onde
foi, tal como foi. É incontestável que ali esteve presente, e que já não está. A natureza
da fotografia, portanto, é colocar em evidência o “Aquilo-que-foi” (Ça-a-été)48.
Barthes, não por acaso leitor de Proust, mostra-se aqui particularmente
proustiano ao pensar em um certo tipo de fotografia, amadora e documental; mais
especificamente, a fotografia de sua mãe então falecida. Ele, porém, tenta se afastar
de Proust: “nada de proustiano em uma foto” (129). Nega a possibilidade de restituir,
pelo olhar do espectador sobre uma foto, a pessoa e o tempo passado: “O efeito [...]
não é de restituir o que foi abolido [...], mas de atestar que aquilo que eu vejo
realmente aconteceu” (129). No entanto, ele avança “sob a máscara de Proust”49: o
que é a fotografia do Jardim de Inverno senão a ressureição efêmera de sua mãe? A

48
Embora afirme que, de certeza, as fotografias mostram aquilo que estava ali, e não
necessariamente aquilo que já não está, a sua ênfase é inteiramente sobre o encontro entre o que
foi e o que desapareceu.
49
“Moi derrière Proust, m’avançant sous le masque de Proust”, lê-se no manuscrito para uma
conferência de Roland Barthes sobre Proust, proferida em 1978 e, posteriormente, na abertura do
curso La préparation du roman, no Collège de France: R. Barthes, NAF 28630, “Longtemps je me
suis couché de bonne heure”, primeira versão manuscrita, f˚1. Citado por BELLON (2013: 167).

83
fotografia é uma epifania do referente; age como os diversos tipos de estímulos
sensoriais que, em Proust, despertam a memória involuntária.
Em “Les Intermittences du cœur”, a abordagem de Marcel em relação à
fotografia da avó é muito diferente. Marcel nunca chega a venerar a imagem, embora
se socorra dela. O poder da fotografia não é hipertrofiado, não provoca uma epifania;
no romance, ela chega depois da epifania. A revelação sobre a morte da avó não
surge pela apreciação de uma imagem, mas motivada por um gesto que repete outro
do passado, o de abaixar-se para se descalçar. É ali que a avó é momentaneamente
restituída pela memória involuntária, em toda sua vivacidade.
Mas, então, qual o papel da fotografia? Quando Marcel recorre à fotografia,
ele parece querer prolongar o que sabe ser fugaz. A fotografia é uma auxiliar na
empreitada de manter a ressurreição da avó. É uma tarefa que falha: a “presença
desconhecida, divina” da avó pela memória involuntária não consegue ser suportada
pela fotografia.
Marcel também quer prolongar a dor, esse efeito da revelação, porque
também é uma forma de prolongar a pessoa que morreu. Enquanto sofre, ele garante
que a memória da avó estará viva. Este é ainda o primeiro momento do luto, e o mais
intenso. Marcel está no centro do sofrimento, do embate entre o nada e a presença
do morto dentro de si. Marcel, aqui, é apologético da dor, a empunha como um dever
e como uma forma de expiar sua culpa.
Mas já então têm início pequenas variações. Marcel começa a lembrar da avó
com ternura, já sem o assombro do nada. Começa a fazer uso do que lhe parece ser
um autoengano (a doçura), mas um autoengano necessário para preservar a própria
vida, e que será reforçado no encerramento do capítulo.
Sem poder suportar uma dor tamanha e a mensagem que ele lê no rosto
fotografado da avó – culpa, morte, sofrimento – Marcel busca refúgio no sonho. Por
fim, adormece. Mas o sonho, fora de seu controle, trará à tona novamente a
contradição do luto, ou seja, da presença e da ausência do morto.

Uma estranha

84
Vejamos o segundo momento em que Marcel se volta para a fotografia:

II.
Essa estranha, eu a contemplava na fotografia tirada por Saint-
Loup. (II, SG 607 | III, SG 172)

Na segunda aparição material da fotografia, a avó é descrita claramente como


uma estranha. Ao contrário do que Irene Albers (2007) sugere, não é a fotografia que
torna a avó estranha para Marcel: o que a fotografia faz, na verdade, é reforçar e
intensificar essa condição.
Para explicar nosso argumento, vamos mostrar que a associação da avó a uma
pessoa estranha antecede a leitura da fotografia. Encontramos na fotografia
(enquanto meio e prática) uma analogia.
Em um primeiro momento, situaremos a menção sobre a fotografia em
relação ao sonho que Marcel tem logo antes. De certa forma, a estranha da fotografia
é o desenvolvimento e a elaboração de conteúdos que apareceram no sonho, mas
que remontam a antes dele. Em um segundo momento, acompanharemos a
construção do estranhamento de Marcel em relação à avó por meio de uma analogia
fotográfica na cena do retorno de Doncières. Nela, curiosamente, Proust remete ao
mundo fotográfico – à postura do fotógrafo, ao processo de captação da figura
fotografada e à fotografia enquanto objeto – para construir a “estranha” que será
reforçada no objeto em cena de “Les Intermittences du cœur”.

Uma criada expulsa

No sonho, temos novamente a katabasis do telefonema e, de forma similar, a


impossibilidade de encontro. Marcel desce ao mundo dos mortos à procura da avó.
O mundo dos mortos é também o do esquecimento, afinal, morrer não é apenas
falecer, mas ser esquecido. A comparação com o rio Lete, o rio do esquecimento50,

50
Segundo a mitologia, antes de voltar ao mundo dos vivos, as pessoas que haviam expiado seus
erros no Hades deviam beber a água do rio Lete para esquecer a vida anterior. (Cf. COMMELIN,
1994).

85
reforça essa ideia. Marcel sabe que a avó ainda existia, mas “de uma vida diminuída,
tão pálida como a da recordação” (II, SG 595-6 | III, SG 157).
O sonho sublinha muitos elementos de distância e apagamento, próprios do
esquecimento. A avó, que por toda a vida morara com eles, no sonho mora em um
quarto pequeno e desconhecido, cujo endereço Marcel pede em vão ao pai. A busca
é malsucedida. O pai não se lembra do endereço, convence o filho a não ir: refere que
uma visita não faria bem ao filho, que não faltava nada para a avó, que Marcel não se
preocupasse porque uma pessoa cuidava dela e que lhe enviavam de tempos em
tempos uma quantia de dinheiro mínima para o estritamente necessário.
A avó, agora, é uma pessoa inacessível e minorada. O sonho fala do
enfraquecimento da sua presença, que só pode residir na memória, e uma memória
que vai necessariamente se apagando com o tempo. Nada da força de presença
daquele primeiro momento da ressureição involuntária no quarto do hotel.

Então julguei lembrar-me de que, um pouco antes de sua morte,


minha avó me dissera, soluçando, com ar humilde, como uma
velha criada expulsa, como uma estranha: “Hás de permitir que,
mesmo assim, te veja algumas vezes, não passes muitos anos
sem me visitar”. (II, SG 596 | III, SG 158, grifo nosso)

A avó é uma estranha, distante, separada, sem intimidade com Marcel. Mas
não só. Ela é subjugada, servente humilhada e expulsa. A qualificação é significativa.
Ela nos remete a um conteúdo perturbador da visão de Marcel sobre a avó, tantas
vezes revelado e em seguida escondido. Essa criada expulsa é também a bête à beira
da morte a se contorcer na cama, isto é, um bicho, um animal, uma fera; é a velha
descabelada no sofá de Le Côté de Guermantes; é a velha que estava variando no
quarto (II, CG 264 | II, CG 629).
No estudo genético de Antoine Compagnon (Op. cit.), o crítico resgata um dos
primeiros rascunhos da ressureição da avó em “Les Intermittences du cœur”. O
episódio não se passa em Balbec, mas no trem de volta de Veneza, com a mãe. Marcel
adormece e sonha com a avó. A imagem que sobrevém é de horror: uma velhota
ranzinza que corre para pegar o trem. Seu aspecto é péssimo: quase perdendo uma
bota, o vestido estragado, o chapéu todo torto, manchas de lama até o véu e as

86
olheiras chegando quase até a boca51. Ela sobe no degrau do vagão e tropeça para
trás. É finalmente expulsa como se fosse um “pacote” pelo empregado do trem, que
lhe fecha a porta.
Não é de se estranhar que uma imagem tão pavorosa tivesse aparecido
apenas no sonho, “nessa hora, mais verídica”, que paralisa temporariamente a
inteligência e a vontade, como o narrador dirá na versão final (II, SG 595 | III, SG 157).
A imagem do rascunho, que Compagnon compara àquela do poema “Les
Petites Vieilles” de Charles Baudelaire52, seria tardiamente suprimida da versão de
Sodome et Gomorrhe que chegou ao público. No entanto, como se lê na versão
definitiva, alguns termos ainda sugerem, de maneira muito mais atenuada, uma avó
minorada e humilhada (“ar humilde”, “uma velha criada expulsa”, “uma
estranha”...).
Compagnon usará a gênese da passagem como mais um elemento de sua tese
sobre a profanação da mãe. A avó seria a mãe de Marcel Proust, simbolicamente
profanada, humilhada e assassinada no livro. Essa interpretação encontraria eco nas
palavras finais do sonho: “cervo, cervo, Francis Jammes, garfo” (II, SG 597 | III, SG
159), interpretada por ele e outros exegetas como a mensagem cifrada sobre o tema
do sadismo entre filho e genitor53.
Na ânsia de introduzir complexidade ao personagem da avó, Compagnon
acaba por reduzir a sra. Bathilde às velhinhas baudelairianas. Mas a sra. Bathilde não
se resume ao seu vestido crotté54. O que é profundamente constrangedor para

51
“Elle avait crotté sa robe, presque perdu une bottine, son chapeau était tout de travers et elle avait
une éclaboussure de boue jusque sur son voile [...] le cerne de ses yeux descendait presque jusqu’à
a a bouche.” (Caderno 50, f° 19 r ; RTP, t. III, Rascunho XIII, p. 1033. Citado por COMPAGNON, 1989:
155).
52
“Les Petites Vieilles” (“As velhinhas”) é o sétimo poema de “Quadros parisienses”, parte
integrante de As flores do mal (1861). Nos dois primeiros versos da estrofe 4, parte I, lê-se:
“Troteiam, semelhando todos marionetes; / Arrastam-se, tal como animais machucados”. E, ainda,
lê-se na estrofe 3, parte IV: “Existir envergonha-vos, sombras crispadas; / Com medo, costas curvas,
ladeais os muros; / Ninguém vos cumprimenta, sinas malfadadas! / Restos de humano já para o
eterno maduros!”
53
Cf. FEARN (1967), COMPAGNON (1989) e MOORJANI (1990). É assim que “cerf, cerf” se referiria a
uma lenda medieval de saint Julien resgatada em um conto de Flaubert, no qual um cervo abatido
pelo protagonista lhe prediz que ele mataria seu pai e sua mãe; Francis Jammes, além de se referir
ao poeta que teria pedido a Proust excluir do livro a cena de sadismo em Montjouvain, também
poderia ser decomposto em “je Marce[l], maman, and cerfs; e o garfo (“fourchette”) seria uma
intrincada alusão a um contraponto idealizado do parricídio.
54
“Crotte” não quer dizer apenas lama, mas também excremento animal. O uso do adjetivo é
significativo, pois qualifica tanto algo enlamado como, em um segundo plano, sujo de fezes.

87
Marcel não é exatamente que ele possa pensar tão mal da avó, mas que essa imagem
exista com uma outra. Há um contraste imenso entre a senhora que sai à chuva em
Combray, que toca no tabique para assegurar ao neto sua presença ou o ajuda a se
descalçar em Balbec, e a velha descabelada que convulsiona na cama e que, no sonho,
esquecida, mendiga um pedaço de atenção.
A impiedade do narrador pelos outros é muitas vezes uma forma de lucidez.
Por exemplo, ao debochar dos médicos, ridicularizando-os, o narrador se coloca
acima deles. Não obstante, exercida contra a avó, a impiedade é uma forma de
crueldade e cegueira. Em Combray, ao testemunhar a humilhação da avó, quando a
tia Léonie oferecia conhaque ao marido de Bathilde, só para vê-la sofrer, sabendo que
o marido não podia beber, Marcel subia ao quarto para chorar. Ele não se colocava
ao lado dos cruéis e voyeurs. Portanto, não devemos acomodar os sentimentos mais
sombrios de Marcel em relação à avó às custas da ambiguidade e, por isso, da ternura
que ele também sentia por ela.

A despeito do afastamento, no sonho, entre o neto e uma avó inacessível e


confinada, não é a primeira vez que o vemos. A análise do desenvolvimento de sua
doença nos capítulos anteriores nos havia mostrado que distância era algo desejado
e construído por Marcel em face da percepção de que a avó estava morrendo. O
distanciamento que o faria um observador com olhar clínico sobre uma avó
transformada em paciente seria uma forma de autoproteção.
No sonho, contudo, há dois elementos distintos: a distância aparece como um
limite incontornável, o da morte. Não há nada que Marcel possa fazer em relação ao
estranhamento e à expulsão da avó. Além disso, o sonho definha a avó sob uma
perturbadora descrição não só de morta, mas de humilhada.
Depois do sonho, Marcel se socorre de novo da fotografia. Ela lhe servirá, por
paradoxal que seja, para ele reconhecer a estranha (com a consequente quota de
culpa) e tentar mitigar seus fantasmas.

Olhos de fotógrafo

88
Vamos situar a genealogia da “estranha” de “Les Intermittences du cœur”,
que aparece tanto no sonho quanto na fotografia, em Le Côté de Guermantes. No
capítulo I, vimos como Marcel estava aflito por voltar de Doncières e reencontrar a
avó, cuja voz, ao telefone, lhe havia parecido fantasmagórica.

Agora, precisava livrar-me, o mais depressa possível, em seus


braços, do fantasma, até então insuspeitado e de súbito evocado
por sua voz, de uma avó realmente separada de mim, resignada,
tendo, o que ainda não lhe conhecera, uma idade [...]. (II, CG 113
| II, CG 438)

Em vez de o encontro propiciar o contato com quem ele acreditava ser sua
verdadeira avó (tanto uma figura terna quanto uma coextensão dele próprio, pois a
ele a avó era completamente devota), Marcel não faz mais do que reviver a mesma
dissociação do telefonema: “Infelizmente, esse fantasma, foi ele mesmo que avistei”
(idem).
Ele a encontra no sofá, lendo. Já não há a voz que lhe falou ao telefone,
incentivando que prolongasse sua estadia em Doncières. Há um corpo sem voz.
Marcel, definindo-se como “o observador”, olha:

Eu estava ali, ou melhor, ainda não estava, pois ela não o sabia
[...] De mim – por esse privilégio que não dura e em que temos,
durante o breve instante do regresso, a faculdade de assistir
bruscamente à nossa própria ausência – não havia ali senão o
testemunho, o observador, de chapéu e capa de viagem, o estranho
que vem tirar uma foto dos lugares que nunca mais há de ver. O
que se fez em meus olhos, mecanicamente, quando avistei minha
avó, foi mesmo uma fotografia. (II, CG 113 | II, CG 438, grifos
nossos).

A percepção do horror lhe vem sob a forma de um choque, o mesmo que


sentira ao telefone. A imagem terna que lhe era familiar, cujos traços do rosto e os
gestos faziam um conjunto com a voz, desaparecera. A pessoa que ele observa tem
a mesma característica da voz que se lhe havia sido dissociada ao telefone,
antecipando uma separação posterior – a dele em relação à avó. Ela é, agora, uma
fotografia.

89
A repetição do mal-estar aquando do telefonema não é à toa, e não tem a ver
simplesmente com o fato de ambos episódios se desenrolarem próximos
cronologicamente. Telefone e aparelho fotográfico são tecnologias que mediam a
relação com o objeto e o dissociam de seu contexto – o telefone separa a voz do
resto; a fotografia, a imagem. Eles se colocam entre duas pessoas, são uma espécie
de tabique (o famoso cloison) que intenciona conectar, sem de fato abolir a distância
espacial e temporal.
Marcel não participa da cena. Ele é um observador ainda mais radical que será
na ocasião da morte da avó, quando ao menos o entorno sabia de sua presença.
Neste caso em questão, ele assiste. Samuel Beckett resume bem a cena: “Ele está
presente em sua própria ausência” (1978 [1931]: 15). Em outras palavras, o encontro
de Marcel é com a sua ausência, de uma forma prosaica e profunda. Isto é, com aquilo
que se passa quando ele não está, e com o seu apagamento, pois a avó, tornando-se
uma estranha, exclui ele próprio de seu mundo.
A recusa de Marcel em participar da cena, preferindo, ao contrário, ser apenas
testemunha ocular, reforça um lugar análogo do fotógrafo. Marcel é tão alheio à
realidade da avó quanto seria um fotógrafo que tivesse vindo fotografá-la. A única
reciprocidade possível, e assustadora, é a que coloca ambos, fotógrafo e
fotografado, como estranhos.
Na cena, ao comparar a situação com o olhar do fotógrafo e com a fotografia,
Marcel faz coincidir duas coisas diferentes, a saber, o operador de uma máquina e o
resultado material de seu trabalho; um pouco mais à frente, incluirá o processo
fotográfico na equação. Deste modo, se avança uma crítica a todo campo da
fotografia, seja ela uma prática ou uma imagem: ela transforma quem vemos em
estranhos. Além disso, nessa realidade onde se entra de modo efêmero, também são
estranhos o fotógrafo e o espectador que olhará uma fotografia alheia.
Por um lado, o narrador propõe uma perspectiva derrotista a respeito da
fotografia, que rompe com todo o arcabouço da história de uma pessoa para
apresentar sua aparência sem qualquer lastro, alienando e afastando os indivíduos.
Por outro lado, a cena deixa um elogio para o qual os críticos nem sempre estiveram
alertas: a fotografia consegue justamente furar as camadas que o hábito depositou
em nosso olhar sobre o mundo. O que o narrador está a dizer, e que não

90
necessariamente corresponde a uma posição unívoca na Recherche, é que a
fotografia pode ser mais exata porque mais profunda e verdadeira quando oferece
uma imagem não habitual. Também por isso ela é mais cruel.
O curioso de tudo isso é que, embora ele fale de foto, não há qualquer
aparelho fotográfico na cena. Tudo se passa nos olhos de Marcel. Daí que a definição
de uma percepção mais arguta prescinda da fotografia, encontrando nela uma
metáfora e uma possibilidade, e não uma exclusividade. Fotografias produzem
estranhos, mas certos olhares também.
Tendo dito tudo isso, já se pode afirmar que não é propriamente a fotografia
tirada por Saint-Loup que cria o caráter estrangeiro da avó: é o olhar de Marcel. A
visão no sofá antecipa a leitura da fotografia impressa tirada por Saint-Loup. Em “Les
Intermittences du cœur”, o narrador parece ratificar a qualidade dissociativa da
fotografia em relação ao contexto. Contudo, ao termos em mente a discussão sobre
cena do sofá, pode se perceber que o estranhamento não é uma consequência
imputável à fotografia.
Por outro lado, há que se notar, na história da fotografia, que ela aparece, para
seus críticos, justamente associada à infeliz capacidade de fazer do sujeito
fotografado um estranho. Proust, aqui, afasta-se dessa tradição e sabiamente
introduz o leitor em uma conta que, até então, se repassava direta e exclusivamente
à fotografia e ao fotógrafo55.
A participação do leitor/espectador no estranhamento da pessoa retratada se
tornará cada vez mais evidente à medida em que Marcel vai mudando sua apreciação
em relação à foto da avó. Essa leitura vai sofrendo alterações, tal como o luto de
Marcel.
Vamos ver as posições maiores que, na teoria da fotografia, a qualificam como
uma prática descontextualizadora. Depois, veremos como tal associação está
presente em Proust para mostrar que, em algumas circunstâncias, nomeadamente
sob o choque, a percepção humana faz o mesmo que um aparelho.

55
O estranhamento, visto como qualidade inerente da fotografia, guarda semelhanças com a defesa
de Barthes a respeito da presença do referente, intrínseca à fotografia. Nessa visão, exclui-se a
hipótese de que seja o leitor a imprimir a presença. Nesse mesmo sentido, André Gunthert afirma:
“O efeito de presença não é uma propriedade da fotografia, mas uma projeção da recepção” (2016:
09).

91
Como a fotografia produz estranhos?

Siegfried Kracauer, no ensaio “A fotografia” (1927), trata do processo de


descontextualização que toda a fotografia opera em relação àquilo que é
fotografado. Ele elabora seus argumentos a partir de um contraste entre duas
referências, o momento em que uma fotografia é tirada e, mais tarde, quando
olhamos para ela. Quanto mais tempo decorre entre uma e outra, mais se separa a
imagem fotografada de seu contexto.
O motivo (real ou imaginário?) que percorre o ensaio de Kracauer é a
fotografia antiga de uma diva do cinema em frente a um hotel de luxo, estampada na
primeira página do jornal. Os netos não a reconhecem. Na foto, só conseguem ver
uma roupa fora de moda. É preciso repetir para eles que, sim, se trata da avó, apesar
do coque e da saia com crinolina, apesar dos seus vinte e quatro anos, a mesma avó
que eles conheceram, e em cujos últimos anos de vida morou em um quarto bem
apertado.
Mas a semelhança entre diva e avó, fotografia e pessoa, a existir, não serviria
de nada, uma vez que ela se refere somente ao aspecto exterior. Não poderia, por
isso, dar conta da “verdade” (2008 [1927] : 47) de uma pessoa. Da imagem da avó,
sessenta anos mais tarde, restaria apenas “um manequim arqueológico” (44); sua
roupa é um cadáver com pretensões de alguém vivo.
Para Kracauer, a descontextualização é inerente a toda fotografia, embora vá
se tornando mais evidente nas antigas. O que vemos em uma fotografia não é o ser
humano, mas “fragmentos em torno de um nada” (53). Ela só consegue produzir um
vazio, pois arranca o sujeito de um contexto e uma história que só podem ser
conservados pela memória. Em outro texto, Kracauer dirá que a vida “não é aquela
que aparece para a lente da câmera, mas somente para a memória” (2008 [1928] :
106).
Em uma visão dualista, à memória pertence a história, a vida e a verdade, e é
sustentada pela tradição oral; a fotografia, com o que tem de memória mediada,
pertence à historicidade, desvinculada de um sentido atual, não podendo restituir um
mundo passado porque, ao congelar o tempo, o destitui de sentido. Em outras

92
palavras, para saber mais sobre a avó, mais valeria aos netos socorrerem-se das
imagens da memória e das histórias sobre a avó que foram transmitidas (e
modificadas) de geração em geração. Enfim, de tudo quanto retiveram sobre a avó
porque, o que quer que tenha sido, está imbuído de significado e contexto.
Estamos a um passo da teoria benjaminiana. Aquilo que nas imagens da
memória de Kracauer vai além da pura visualização e consegue desvendar a verdade
de um ser, lembra o que Walter Benjamin chamará, na “Pequena história da
fotografia”, de “aura” (1931). Ambos reagem à era da difusão em massa de imagens.
Para Benjamin, com o advento da fotografia e a possibilidade de reprodução de
imagens, os objetos se tornam estrangeiros, sem o envelope da aura.
O que nos interessa assinalar no discurso pessimista da escola dos ‘fotófobos’
é a associação da fotografia, em sua essência onto-tecnológica, à
descontextualização do referente. Como consequência, ela só consegue produzir
estranhos.
Kracauer por vezes sugere que o afastamento do contexto original de
produção é apenas agravado com a fotografia. Seria mais um efeito perverso do
tempo do que uma especificidade técnica do meio, daí que as fotografias antigas
fossem mais propensas à perda de significado56. Deste ponto de vista, nenhum
veículo da memória conseguiria manter intacto o contexto original. No limite,
também as narrativas orais estariam sujeitas ao gradual descolamento das tramas
primitivas.
Mas essa intuição permanece isolada no ensaio. Kracauer se direciona
sobretudo para a incapacidade de a fotografia ser um veículo fiável de recordação
(como o é, para ele, a memória baseada na experiência e nas narrativas orais
familiares, por mais fragmentárias que sejam).

56
Kracauer afirma que os netos conheciam “uma história desagradável sobre a avó e duas máximas
verdadeiras, que mudam um pouco à medida que passam de uma geração para a outra” (44). Isso
sugere que também a memória sustentada oralmente muda e pode “em breve ser esquecida” (44).
Em outra altura, escreve: “Quando a fotografia envelhece, a relação direta com o original não é
mais possível” (51), subtendendo-se que o problema não é da fotografia, mas do passar do tempo.

93
Outra via que a teoria da fotografia explorou é quanto à objetificação. Além
de extrair a pessoa de seu contexto e de sua história (e em parte devido a isso), a
ação do fotógrafo objetificaria o sujeito e, assim, o tornaria um estranho.
Cinquenta anos depois de Kracauer, em Sobre a fotografia (1977), Susan
Sontag falaria algo parecido ao se referir ao lado predatório da fotografia. Ela o
identifica, por excelência, na fotografia de turismo57, em que pessoas substituem a
experiência real pela captação das imagens do que veem: “Fotografar pessoas é
violá-las, ao vê-las como elas nunca se veem, ao ter um conhecimento delas que elas
nunca podem ter; transforma as pessoas em objetos que podem ser simbolicamente
possuídos.” (14)
Sontag incorpora ao predatório a agressão e a objetificação. A objetificação é
uma forma de agressão, de nadificar o outro, retirando-lhe a subjetividade.
Fotografar seria então um “assassinato sublimado” (14-5), pois subtrai a
individualidade de maneira simbólica, sem sangue. Uma peça importante dessa
objetificação é o voyeurismo, postura evidente no turista. Na verdade, para Sontag,
trata-se de uma postura partilhada por todo fotógrafo – o que faz dele,
fundamentalmente, um turista: “Em essência, a câmera transforma qualquer pessoa
em um turista na realidade dos outros e, finalmente, na sua própria realidade.” (57)
O turista é uma pessoa alheia à realidade que testemunha, incapaz de
compreender e de se inserir em outro contexto. Ele o verifica, observa, investiga.
Pretensamente isento, o turista é um juiz. Quando fotografa, ele usurpa e se apropria
indevidamente de parcelas da realidade de outrem e, ao fazê-lo, ele a transforma em
fragmentos sem sentido.
Neil Evernden resume o vínculo, para Sontag indissolúvel, entre objetificação
e fotografia: “A obstrução da reciprocidade ocorre por meio da câmera, cujo uso
efetivamente exclui um dos participantes da cena e permite que ele assuma o papel
de um estranho”. (1985: 74). A objetificação seria, nesse entendimento, uma
consequência do voyeurismo e inescapável da própria tecnologia da qual depende o
ato fotográfico.

57
As fotografias de reportagem também são alvo de severas críticas.

94
Sem uma abordagem de intimidade nem participação, o exercício do
fotógrafo que segura a câmera nas mãos e se esconde atrás do visor ótico permitiria
e encorajaria a separação entre ele e o motivo fotografado, criando as condições para
o crônico voyeurismo de que Sontag acusa a fotografia.
Na explicação de Evernden, o estranho é o fotógrafo que não participa da
cena. Mas podemos espelhar a situação: a separação radical entre fotógrafo e
fotografado faz com que, atrás da câmera, o fotógrafo veja objetos onde há sujeitos,
e objetos são mais facilmente descritos como estranhos. Disso resulta que também
o motivo fotografado se torna um estranho.
Essa teoria depende de reduzir todo o olhar pura e simplesmente à
objetificação do motivo visto, de reduzir toda a fotografia a um olhar objetificador, e
todo olhar objetificador a um estranhamento do objeto. Excluem-se da equação as
diferentes leituras do espectador a respeito de uma fotografia e as diferentes
abordagens que o fotógrafo possa fazer do motivo fotografado. Mas o que pode ser
um efeito colateral de um certo tipo de fotografia58, para Sontag é uma característica
própria do ato fotográfico59.

Por trás da frase de Sontag a respeito da posição universal do fotógrafo como


turista está a noção de que o tipo de imagem que circula a respeito de uma pessoa
deva coincidir com a imagem que essa pessoa tem de si mesma, ou pelo menos deva
ser validada por ela.
É fácil perceber que a crítica se prolonga a todo ato fotográfico, pois o
resultado nunca garante um acordo de visões entre fotógrafo e fotografado.
Seguindo essa linha de raciocínio, será agressivo fotografar alguém que não sabe
estar sendo fotografado. Isso porque a fotografia que se obtém por tais meios pode
contradizer a ideia que o fotografado tem de si ou que desejaria que fosse de
conhecimento dos outros.

58
EVERNDEN fala, talvez com uma sobredose de confiança, das boas intenções do fotógrafo e do
uso de outras máquinas, como aquelas com o visor na altura da cintura, que permitiriam mitigar a
objetificação e abrir espaço à comunicação com as pessoas fotografadas.
59
“Há uma agressão implícita em todo uso da câmera” (SONTAG, Op.cit.: 07)

95
Voltando à cena do sofá, Marcel se coloca, já à partida, alheio ao contexto. Sua
posição parece inofensiva, como a de um profissional que, de chapéu e capa de
viagem, viesse apenas tomar uma fotografia de alguém desconhecido. Seu olhar,
sugere o narrador, estaria mais próximo à realidade, porque seria atual, fotografaria
a pessoa tal e como ela é naquele momento.
Mas há qualquer coisa de agressivo no olhar de Marcel. Ele flagra a avó sem
subterfúgios ou dissimulações, a avó no exercício de ser ela própria, transparente,
indefesamente descabelada. O cruel na atitude de Marcel é tanto a ruína que ele
acredita testemunhar (se tivesse visto beleza, haveria sido inquietante?) quanto o
voyeurismo, pelo fato de que a avó provavelmente não teria permitido ser vista dessa
forma.
O problema é que, a não ser bloqueando a visão de Marcel, não há solução
diante da forma com que a avó é flagrada. A desordem dos cabelos da avó não
poderia ter sido remediada por um penteado antes da chegada de Marcel, porque é
uma desordem que concentra uma verdade maior – a velhice, a precariedade do
corpo, a corrida para a morte.
Contra essa repentina descoberta, talvez não houvesse nada que a avó
pudesse fazer. Nem se colocasse um chapéu. Afinal, em última instância, o chapéu de
abas largas que lhe servira, diante da máquina fotográfica de Saint-Loup em Balbec,
para camuflar seu mau aspecto (o de alguém que pouco antes tivera um ataque), não
explica a cegueira de Marcel. O neto estivera todas as semanas com a avó, sem
contudo perceber a fisionomia de uma doente. Não é o chapéu que bloqueou a
percepção de Marcel; ele é mais um recurso simbólico. O que impediu que Marcel
visse uma outra avó era seu costume de ver sempre a mesma avó.
Ver uma pessoa como ela própria nunca se vê, para Sontag, parece ser o
resultado unilateral da prática fotográfica, sob quaisquer circunstâncias. Mas, no
cotidiano, trata-se de um efeito colateral da interação humana e é parte da forma
como construímos o conhecimento acerca das pessoas e de nós mesmos. Não está
totalmente em nosso controle aquilo que veem e pensam de nós, e vice-versa.
Parte do desejo de controle de Sontag justifica-se pela amplitude que as
fotografias adquirem “na era da reprodutibilidade técnica” (para usar a famosa

96
expressão de Benjamin em 193660), pois poderem circular livremente, alheias às
intenções dos fotografados. Mas o que o episódio da Recherche mostra é que ter um
conhecimento acerca de uma pessoa que ela nunca pode ter ou que ela não quer que
os outros tenham são consequências não controláveis das relações humanas. Para
Marcel, quando esse conhecimento é reprimido e diz respeito a uma pessoa muito
amada, acessá-lo é uma revelação.
Vista sob o olhar fotográfico, instantâneo, a avó se torna para Marcel “uma
velha acabada que eu não conhecia” (II, CG 113 | II, CG 440), justamente porque
dissociada de um passado comum e de um contexto reconhecível. Mas esse passado
comum, a história da avó e a pessoa que ela era se resumiam a um contexto
construído pelo hábito de Marcel; cristalizado ao redor de um tempo que já não
existia e de uma pessoa que havia mudado, o hábito reproduzia erroneamente
sempre a mesma imagem.
Que imagem é essa que Marcel, até aquele momento, cristalizara na sua
mente? Talvez possamos localizá-la em Du côté de chez Swann, na infância de Marcel,
em Combray; ela parece cobrir todas as outras imagens da avó, até ir sendo
desestabilizada e desafiada pela intrusão do tempo:

Quanto à minha avó, em qualquer tempo, mesmo quando a


chuva caía com força [...] era vista no jardim vazio e fustigado
pelo aguaceiro, levantando as mechas grisalhas e desordenadas
para que sua testa melhor se embebesse da salubridade do cento
e da chuva (I, CS 29 | I, CS 11)

Em Combray, a desordem dos cabelos é unicamente efeito da chuva. É essa


imagem primordial que ecoa nas seguintes, inclusive nos primeiros dias em Balbec
com a avó, na imagem que já tivemos ocasião de referir, quando ele acaricia “seus
lindos cabelos, que recém se faziam grisalhos” (I, MF 536 | II, JF 29).

60
No ensaio “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”, escrito entre 1935 e 1936, Benjamin
contrapõe o valor de culto ao de exposição. Com a fotografia, aumentam-se as ocasiões nas quais
as imagens podem ser expostas e deslocadas de seus contextos originais: “o valor de culto começa
a recuar, em todas as frentes, diante do valor de exposição”. Sendo assim, a aura resistiria pela
última vez nas fotografias antigas: “é o que lhes dá sua beleza melancólica e incomparável” (1994
[1935-6]: 174)

97
A visão de Marcel no retorno de Doncières, oposta à da memória, é tida como
mais fiel à realidade. Daí a analogia fotográfica, ao considerar a fotografia como mais
distanciada e objetiva, porque não corrompida pela piedade do olhar de quem ama.
Por outro lado, se sugere uma outra leitura sobre a fotografia: é como se até
ali o que Marcel visse a cada vez que interagia com a avó fosse sempre a projeção de
uma mesma fotografia. A imagem habitual da avó é aquela fotografia antiga de que
fala Kracauer, irreconhecível para os netos, completamente alienada do presente.
Sendo assim, a cena de Le Côté de Guermantes não trataria propriamente de
uma verdade perene guardada na fotografia (a verdade revelada na fotografia da avó
que o neto figurativamente realiza com os olhos naquele momento); ela trataria do
modo como, com o passar do tempo, uma foto se distancia daquilo que retratou61.
Isso é mais ou menos a sugestão que Kracauer não aprofunda, preferindo apostar em
propriedades intrínsecas da fotografia.
No romance, a escolha da analogia com a fotografia (imagem e processo) não
é por acaso. Ela remete a toda uma tradição crítica, mas a extrapola, na medida em
que quer falar do modo particular como vemos e conhecemos as pessoas:
nomeadamente, a precariedade de nossas descrições e a necessidade de
construirmos novas descrições das coisas.
“Todo o olhar habitual é uma necromancia” (II, CG 113 | II, CG 439), porque sem
perceber se refere continuamente aos mortos, lê o mundo através deles, daquilo que
já não está ali. Mais que necromancia, diríamos que o olhar habitual é uma necrofilia.
Estamos presos à imagem de outrora, à qual devotamos fidelidade. Esse olhar não
revela o futuro, apenas repete o passado: “cada rosto que amamos é o espelho do
passado” (II, CG 113 | II, CG 439). Ao olhar a avó durante todos aqueles anos, Marcel
não adivinhara nada que já não soubesse sobre a avó.
Muitos dos pensadores ‘fotófobos’ viram na Recherche o contramodelo
poderoso da fotografia, a saber, a memória involuntária; esta estaria nas antípodas
da empobrecida memória voluntária mediada pela fotografia (Kracauer, Benjamin,

61
A solução para o dilema não deveria, deste ponto de vista, ser procurada escolhendo entre a
imagem mediada e não mediada, mas realizando uma fotografia mais recente? Ainda assim, visto
que a fotografia não é a fixação neutra da realidade, não há quaisquer garantias de que uma foto
atual romperia a imagem habitual que temos acerca de uma pessoa.

98
Barthes, Sontag). Proust, contudo, beneficia a fotografia e a situa para além da
memória voluntária. Sem compromisso com a manutenção de uma imagem familiar
indulgente, ela seria mais livre e melhor que a memória voluntária, refém da seleção
exercida pela misericórdia para com quem amamos.
Em outro exemplo, uma máquina que fotografasse um professor saindo da
escola seria capaz de ver o que nenhum olho veria, um homem a vacilar perante a
morte: “havemos de ver, por exemplo no pátio do instituto, em vez da saída de um
acadêmico que quer chamar um fiacre, será a sua vacilação [...] a parábola de sua
queda” (II, CG 114). Ao coincidir o olho desatento com a máquina fotográfica, Proust
quer dizer que a fotografia seria capaz de captar uma verdade escondida tal qual a
percepção humana o faz sob o choque. Trata-se de uma verdade que só pode ser
conhecida na forma de um lampejo, e à distância, como no caso do telefonema.
Ao suspender o hábito, por uma fresta ínfima, Marcel teria captado uma
verdade escondida. Não como o fotógrafo alvo do desprezo de Sontag, saindo à caça
dos pobres para documentar uma realidade oculta. Marcel não caça nada: ele é
surpreendido. Na sala de casa, mais do que a avó ser pega distraída, é Marcel que é
pego distraído.
Katja Haustein (2012) compara essa revelação com “o inquietante” (das
Unheimliche) de Freud. A comparação é pertinente. Não apenas porque o que é
familiar se torna estranho, mas porque esse conteúdo tem a ver com um processo de
repressão.
Depois de uma extensa pesquisa das mudanças que dos vocábulos heimlich e
unheimlich adquiriram ao longo do tempo, Freud nota como o “familiar” (heimlich)
se desenvolve de modo ambíguo, até finalmente vir a coincidir seu significado com
seu oposto, o alheio ou inquietante (unheimlich). Para explicar essa coincidência,
Freud afirma que o inquietante “não é realmente nada de novo ou estranho, mas algo
familiar à psique e antigo, que só alheou-se dela pelo processo de repressão” (1919,
SE XVII: 241).
O que, na cena da avó, estava sendo reprimido e emergiu? Para Haustein, é a
alteridade. Para nós, é a morte. É ela que não pode ser vista, é a parábola de uma
queda que o hábito tenta camuflar. Ela é continuamente sabotada, porque aponta,

99
como já vimos, para uma série de consequências danosas ao protagonista (o nada, a
solidão, a própria morte62).
Tal qual o disparo de uma máquina fotográfica, a revelação acaba
rapidamente, brusca “como um raio” (II, CG 595 | III, SG 156). A brevidade dessa visão
tem a ver não apenas com o fato de que ela só acontece quando o hábito é suspenso,
e ele só pode ser suspenso temporariamente, mas também porque a notícia que a
imagem da avó dá conta é insuportável. Novamente, Marcel precisa cegar-se, ou
precisa travestir a realidade para suportá-la. Com os próprios olhos Marcel
fotografou a avó morta antes de ela vir a falecer, mas fechará o obturador e não
olhará mais para essa fotografia.

Mudanças

É quando Marcel mais tarde se dá conta da perda que ele se volta para o
registro fotográfico da avó. Primeiramente, exalta a dor intensa que a fotografia
alimenta e da qual é alimentada. A seguir, ele vê na fotografia uma estranha. Na
página seguinte, Marcel volta a falar da fotografia. Vamos recuperar a segunda
menção e mostrar a terceira, a fim de chamar atenção para duas frases iguais com
diferentes tempos verbais:

II.
Depois, voltavam-me as doces recordações. Ela era minha avó, eu
era seu neto. [...] Ela já não me conhece, eu jamais voltarei a vê-
la. [...] tratava-se de uma estranha. Essa estranha, eu a
contemplava na fotografia tirada por Saint-Loup. (II, SG 607 | III,
SG 172)

62
Sobre a consciência da própria morte, trata-se de um conteúdo tão difícil de lidar que, segundo
Freud, nem mesmo nosso inconsciente consegue alojá-lo: “É certo que a afirmação ‘Todos os
homens são mortais’ se exibe, nos manuais de lógica, como exemplo de proposição universal, mas
ninguém realmente a compreende, e nosso inconsciente não tem espaço para a ideia da própria
mortalidade, nem hoje nem outrora.” (1919, SE XVII: 242). A mesma ideia já havia aparecido em um
ensaio anterior, “Considerações sobre a guerra e a morte” (1915): “Nossa própria morte é
inconcebível, e mesmo se tentamos imaginá-la, podemos perceber que seguimos presentes
enquanto observadores” (SE XIV: 291).

100
III.
[...] mantinha os olhos fixos, como sobre um desenho que a
gente acaba por não ver mais de tanto o olhar, na fotografia
tirada por Saint-Loup, quando subitamente pensei de novo: “É a
avó, sou seu neto. (II, SG 608 | III, SG 172)

Marcel tem uma abordagem ambígua diante da fotografia. Embora não


pretenda fingir que a avó não morreu (ele enfatiza isso na primeira vez em que
menciona a foto), apela à sua presença. De algum modo, utiliza a fotografia como
atestado de presença, mas um atestado que falha.
Marcel oscila entre boas e más lembranças como oscila entre a presença e o
nada. Ele precisa a todo custo se certificar da realidade da avó e da relação de ambos.
A mudança de tempo verbal é reveladora dessa atitude: ao olhar para a fotografia,
reivindica a quota de real, esse real que, na morte, só pode ser a memória dos que
viveram, a mesma que aos poucos vai sendo engolida pelo esquecimento.
Em “Les Intermittences du cœur”, ele quer impor ao passado uma
continuidade. Frente ao avanço do esquecimento, Marcel repete. Como se pela
repetição pudesse ser convencido e atualizar o tempo pretérito na constatação:
Marcel continua sendo o neto. A repetição tem algo de Orfeu e de Sísifo, um repete
um nome, outro, um gesto, ambos fadados ao fracasso63.
A seguir, Françoise entra no quarto, o vê com a fotografia, e conta a história
secreta por trás da imagem. A intervenção de Françoise é carregada de
sentimentalismo. Sem se privar dos detalhes e, provavelmente, amplificando-os,
tamanho o interesse que ela “sente ao ver a carne que sofre” (II, CG 254 | II, CG 615).
Ela conta que a avó, já doente e sem querer que Marcel o soubesse, escolheu o
chapéu para disfarçar seu mau aspecto. Ela queria ser fotografada para lhe deixar
uma última lembrança, pois se sabia próxima da morte. Não deixa de soar excessiva
a tamanha profusão de detalhes por Françoise, e os mais sórdidos. O efeito imediato
sobre Marcel é a intensificação da culpa.

63
Ele repetirá uma frase quando Albertine for embora, mas as palavras assinalarão unicamente a
perda do outro: “Albertine est partie”.

101
A história contada por Françoise é reforçada posteriormente pelo diretor do
hotel. Com uma crueldade ingênua64, ele conta que a avó tivera uma síncope. Diante
da reprovação dele, que não queria causar incômodo aos clientes mantendo uma
doente no hotel, ela lhe pedira que não contasse para ninguém e lhe prometera não
ter mais ataques.
Logo depois da história de Françoise, a fotografia passa a ser lida como
testamento. O conhecimento de um futuro que já se projetava nessa fotografia a
torna algo difícil de ver.

IV.
Eu sofri todo o dia diante da fotografia de minha avó. Ela me
torturava. (II, SG 609 | III, SG 174)

Lembremos de Barthes ao inflacionar o efeito da fotografia de sua mãe


porque era um documento de uma pessoa falecida, com toda a dimensão de tragédia
anunciada65 de um ente querido. Esse mecanismo pode ser bem compreendido pelo
futuro composto (no francês, o futur antérieur), que introduz uma noção de certeza
e anterioridade em relação ao evento que terá lugar – e que já conhecemos.
A fotografia de pessoas que já morreram abre a oportunidade de ler o futuro
do sujeito fotografado, justamente porque é um futuro que se sabe de antemão, e
daí que sobre ela o leitor mais facilmente projete afetos. A presença da morte no
conhecimento do leitor tinge a fotografia de um pathos fatalista, uma melancolia que
parece aderida ao objeto, tal o sépia pálido da antiga fotografia de que fala Barthes,
mas cuja adesão é produto, na verdade, da interpretação. Segundo Barthes, “que a
pessoa já esteja morta ou não, toda a fotografia é esta catástrofe” (1980: 150). Ele diz
“toda a fotografia”, mas na verdade a única que o toca é a da pessoa que ele sabe já
morta. É isso que a torna especial e traumática.

64
Ingênua porque o diretor não parece ciente de que a história que relata é extremamente
desvantajosa para ele próprio, na medida em que o descreve como uma pessoa insensível.
65
A tragédia anunciada é tão remotamente associada à figura da criança fotografada, visto que
somente muitas décadas depois estaria morta, que Barthes acaba projetando sobre ela outra
desgraça: o divórcio dos pais dela, ocorrido pouco tempo depois de tomada a fotografia.

102
O encontro do semiólogo com aquela imagem tem algo de revelação; uma
revelação que é, paradoxalmente, confirmação, na medida em que projeta sobre o
objeto, retrospectivamente, as provas de que desde criança a mãe já era a boa pessoa
que Barthes conheceria. O salto de Barthes é afirmar que a fotografia lhe revelou
certas coisas por possuir determinadas propriedades intrínsecas.
Em Proust, não existe essa aposta tão alta. A revelação nunca provém da
fotografia; Marcel se socorre dela, mas ela não diz nada. Ela só reforça os próprios
sentimentos de Marcel. Isso fica mais claro ao analisar a mudança na leitura da
fotografia. Marcel se deixa influenciar pela história contada por Françoise e a leitura
da fotografia responde ao novo conhecimento sobre o sujeito fotografado.

Marcel sai então do quarto e vai à praia sentar-se na areia, longe das pessoas.
Nesse momento, ele tem uma visão, na qual a avó lhe aparece sentada em uma
poltrona, “tão fraquinha, parecia viver menos que qualquer outra pessoa” (II, SG 610
| III, SG 175). Nessa aparição, se acentua o enfraquecimento gradual da avó enquanto
figura da memória, um aspecto que havia aparecido no sonho.
No sonho, ao comentário do filho (“não é verdade que os mortos não vivem
mais [...] pois a avó existe ainda”), o pai responde: “Oh, bem pouco, bem pouco.” Na
aparição na praia, esse “pouco” não faz mais do que diminuir. O pai lhe diz: “O que
você quer? Os mortos são os mortos”. A afirmação tautológica se impõe como
dogma, não permite qualquer manobra para ressuscitar o morto para além, somente,
da pouca vida que ele pode ter na memória cada vez mais débil.
Depois de dias de luto, de olhar a fotografia, de conhecer a história de sua
produção, de tentar prolongar a presença da avó no sonho, o impacto da passagem
do tempo vai se fazendo notar:

V.
Alguns dias depois, a fotografia tirada por Saint-Loup era doce de
olhar; já não despertava a recordação do que me dissera
Françoise porque essa recordação não me deixara mais e eu me
habituara a ela. (II, SG 610 | III, SG 176)

103
Quanta diferença em relação a uma fotografia que o torturava! Marcel
insistentemente analisara a fotografia, até ao ponto de já nada ver. Tornar a olhar a
fotografia uma e outra vez como a prova de um crime é torturar-se, é fisgar a isca de
Françoise. Mas também é habituar-se. À força da repetição, Marcel vai se habituando
aos conteúdos que ele projeta na fotografia, e amenizando, aos poucos, o sofrimento
que ela provoca.
Contudo, para sobreviver, para se preservar da dor, Marcel precisa de um
ingrediente a mais. Sobre o hábito sempre paira a possibilidade de que ele seja
momentaneamente suspenso e Marcel se depare de novo com a morte. Por isso, ele
não só se habitua à ideia de que a avó morreu e de que na sessão de fotografia ela já
estava marcada para morrer: Marcel também se deixa levar pelo truque da avó. Ela
queria se fazer passar por alguém elegante, e não gravemente doente, e é isso que
Marcel concede à imagem fotográfica:

Diante da ideia que eu me fazia de seu estado tão grave e


doloroso daquele dia, a foto, aproveitando ainda as manhas
que tivera a minha avó e que logravam enganar-me até
quando me foram reveladas, mostrava-a tão elegante, tão
despreocupada, debaxo do chapéu que ocultava um pouco o
seu rosto, que eu a via menos infeliz e de melhor saúde do que
imaginara. (II, SG 610 | III, SG 176)

Marcel se deixa enganar. A tensão, contudo, nunca desaparece. Ela está lá,
junto ao conhecimento de um destino fatal, enganosamente misturada à imagem
como “uma expressão própria”, à revelia da avó:

E no entanto suas faces, tendo mantido à sua revelia uma


expressão própria, algo de plúmbeo, de esgazeado, como o olhar
de um animal que se sentisse já escolhido e designado, minha avó
exibia um ar de condenada à morte [...] que me escapava, mas
que impedia mamãe de olhar jamais para aquela fotografia [...]
(II, SG 610-11 | III, SG 176)

O ar de condenada à morte torna-se parte integrante da leitura. Marcel o sabe,


como também sabe que fingir que não sabe, deixar a morte escapar de sua leitura,
isto é, deixar-se enganar, é a única atitude possível para seguir vivo.

104
O que as múltiplas leituras da fotografia da avó nos permitem entrever é que
a fotografia é objeto de uma leitura imaginária. É porque “estritamente falando,
nunca se compreende nada a partir de uma foto” (SONTAG, 1977), que as fotos são
“convites inesgotáveis à dedução, à especulação e à fantasia”.
Quanto mais se aproxima da morte, quanto mais dá conta de objetos
desaparecidos, mais a fotografia escapa à tentação de imitar o real e se presta à
imaginação. Essa ideia fora referida em À l’ombre des jeunes filles en fleur pelo barão
de Charlus: “A fotografia ganha um pouco da dignidade que lhe falta quando deixa
de ser reprodução da realidade e nos mostra coisas que já não existem” (I, MF 610 |
II, JF 123).
Marcel fantasia sobre a fotografia, e essas fantasias são importantes porque
apontam para a relação de Marcel com a morte da avó. Não é a avó que muda a cada
vez (a cada dia) que ele olha a fotografia, às vezes com pena e remorso, às vezes com
horror e, na última vez, capaz de abrir espaço para algum conforto e doçura; é Marcel
quem muda em relação à figura representada no papel.
As perguntas mais importantes que Marcel tem a fazer não são sobre a
presença do referente e sua vivacidade mimética, mas outra: quem é essa avó da
fotografia? Uma velha acabada, uma coquete fazendo pose, uma senhora elegante?
Quanto sofrimento ela esconde? Que relação ainda é possível manter com a avó desta
fotografia?
As várias avós da fotografia dão a ver as transformações lentamente ocorridas
em Marcel. O objeto, aos olhos de Marcel, vai aos poucos mudando, e são essas
transformações na leitura, pequenas e graduais, que nos informam sobre o caminho
do luto, um luto em movimento. Os conteúdos do sonho e da leitura da fotografia se
retroalimentam, e a imagem fotográfica tanto reflete quanto provoca mudanças na
resposta afetiva que Marcel dá à morte.
Em contrapartida, a aderência da mãe a uma única leitura da fotografia, leitura
tal que a impede de olhar para aquele pedaço de papel, corrobora a vivência de um
luto cristalizado. A capacidade de fantasiar e de autoengano da mãe é menor.
Para que tenhamos uma noção de conjunto, apresentamos um esquema de
todos os momentos em que a fotografia é mencionada, contextualizados em relação
a outros eventos entre colchetes.

105
I.
Não buscava tornar mais suave o sofrimento, embelezá-lo, fingir
que minha avó estava apenas ausente e momentaneamente
invisível, ao dirigir à sua fotografia (a que fora tirada por Saint-
Loup e que eu trazia comigo) palavras e rogativas [...]. Jamais o
fiz, pois não só estava empenhado em sofrer, mas também em
respeitar a originalidade do meu sofrimento tal como o havia
sentido de súbito, sem querer [...] (II, SG 595 | III, SG 156)

[sonho]

II.
Essa estranha, eu a contemplava na fotografia tirada por Saint-
Loup. (II, SG 607 | III, SG 172)

III.
mantinha os olhos fixos, como sobre um desenho que a gente
acaba por não ver mais de tanto o olhar, na fotografia tirada por
Saint-Loup, quando subitamente pensei de novo: “É a avó, sou
seu neto”. (II, SG 608 | III, SG 172)

[Françoise]

IV.
Eu sofri todo o dia diante da fotografia de minha avó. Ela me
torturava. (II, SG 609 | III, SG 174)

[aparição imaginária da avó]

V.
Alguns dias depois, a fotografia tirada por Saint-Loup era doce de
olhar; já não despertava a recordação do que me dissera
Françoise porque essa recordação [...] (II, SG 610 | III, SG 176)

VI.
a foto, aproveitando ainda as manhas que tivera a minha avó e
que logravam enganar-me até quando me foram reveladas,
mostrava-a tão elegante [...] (II, SG 610 | III, SG 176)

106
VII.
como o olhar de um animal que se sentisse já escolhido e
designado, minha avó exibia um ar de condenada à morte [...]
que me escapava, mas que impedia mamãe de olhar jamais para
aquela fotografia [...] (II, SG 610-11 | III, SG 176)

De objeto que violenta, a fotografia passa a ser um consolo. É a capacidade de


Marcel de ler na foto um consolo, isto é, de projetar sobre ela uma avó fora da doença
e do sofrimento, que o distingue da mãe.
O fato de o luto de Marcel estar em movimento não quer dizer que se resolva.
A inteligência não resolve a aporia entre a presença e o nada, e a dor advinda da
consciência desse contraste pode diminuir, mas isso não é o mesmo que afirmar a
superação.
Logo a seguir a última menção à fotografia, o próprio Marcel, exaurido, manda
dizer que receberia Albertine em breve no hotel. Poderíamos ser tentados a
prontamente interpretar esse gesto como a prova de superação da dor pela
substituição afetiva do ser amado por outro. Mas que Marcel continue a vida não
significa que os mortos não possam mais atormentá-lo.
No modo teleológico como o luto é explicado por Freud, a realidade dos fatos
sai vencedora face à presença afetivo-imaginária do morto, e o resultado normal é a
superação final: “Em primeiro lugar, o luto normal também supera a perda do objeto”
(LM: 139). Por “superar a perda” entende-se tanto sermos capazes de nos ligar a um
novo objeto como deixarmos de sofrer pelo anterior. O enlutado que gradualmente
se desfez do objeto ausente já não sofre nem investe toda a energia do ego a
lamentar a morte do objeto. Haverá uma superação deste tipo para Marcel?
A Recherche mostra que o hábito é a chave do sobrevivente: uma pessoa
precisa de se habituar ao fato de que a pessoa que mais amava morreu. É “o instinto
de conservação [...] que nos preserva da dor”66 (II, SG 595 | III, SG 157) que começará
a reconstruir “sobre as ruínas ainda fumegantes” a “sua obra útil e nefasta” (II, SG

66
Em Albertine disparue, aparece a mesma expressão “instinto de conservação” (III, F 131 | IV, AD 03).

107
595 | III, SG 157), o hábito e o esquecimento. Embora, como vimos, o esquecimento
não é total.
Mas se o hábito passa por enfraquecer a memória do morto, a princípio
tentacular e hipertrofiada, e a fidelidade a essa memória, ele nem sempre comporta
uma ideia de completude e superação. Dizer que a fotografia “era doce de olhar” não
significa tomar por concluída a interpretação. Não há, propriamente, uma
interpretação final da fotografia. E, se não há interpretação final, é porque o próprio
movimento de que ela resulta – o luto – pode não terminar.
A certa altura referimos que La Chambre claire de Barthes era um livro tanto
sobre o luto quanto sobre a fotografia. Nessa obra que seria a última publicada em
vida (e que aguça, com tentação, uma leitura tão testamentária como a fotografia da
avó de Marcel), Barthes duvida do que seria o luto: “Dizem que o luto, pelo seu
trabalho progressivo, apaga lentamente a dor; eu não podia, eu não posso acreditar;
pois, para mim, o Tempo elimina a emoção da perda (eu não choro mais), isso é tudo.
Quanto ao resto, tudo ficou parado.” (1980: 118)67
Há uma semelhança entre tudo ficar parado para Barthes e para a mãe de
Marcel: o pranto seca, mas a alma também, e a memória do morto se repete em eco,
imutável. Essa paralisia se lê no “olhar fixo e sem lágrimas” da mãe de Marcel, olhar
“preso naquela incompreensível contradição da lembrança e do nada” (II, SG 602 |
III, SG 156) que define o luto. Por isso, ela lê a fotografia da sra. Bathilde sempre do
mesmo jeito, sempre como catástrofe, e daí evitá-la. Uma tal leitura faz da fotografia
uma forma de violência. É Barthes quem diz: “A fotografia é violenta: [...] nela, nada
pode ser negado, nem se transformar.” (1980: 143)
Por outro lado, que as coisas se mexam para Marcel, tanto em sua vida quanto
na leitura que faz acerca da fotografia, não quer dizer um “triunfo” (FREUD, LM: 139).
Elas não se mexem de modo contínuo nem unívoco, nem necessariamente indolor.
Que Marcel evoque pouco sua avó até o final do livro não diz nada de absoluto ou
conclusivo sobre uma eventual indiferença ou esquecimento completo em relação à
avó. Aliás, o próprio fato de Marcel tantas vezes aludir ao fato de tê-la esquecido
contradiz a posição de alguém que, de fato, a teria esquecido completamente.

67
Ele escreve essa reflexão cerca de dois anos depois da morte da mãe. Não sabemos se poderia tê-
la escrito muitos anos mais tarde.

108
No início de “As intermitências do coração”, o narrador fala sobre a fantasia
recorrente de que tudo o que nos pertence enquanto riqueza interior, incluindo as
memórias, está regularmente em nossa possessão. Não está. Na maior parte das
vezes, as memórias permanecem em nós em um “domínio desconhecido”. Sempre
há a possibilidade de eclodirem, e de que sejamos acometidos, ao longo da vida, pela
dolorosa memória dos mortos e a consciência de sua ausência.

O luto enclausurado

Vimos como Marcel tenta se distanciar da perda real da avó. Na passagem “Les
Intermittences du cœur”, ela é epifania, isto é, aquilo que aparece. Situamos a
fotografia como uma peça fundamental (junto com o sonho e a ‘aparição’) do
caminho que vai se construindo internamente em Marcel. Com essa discussão em
mente, já podemos avançar um modo particular de caracterizar as “Les
Intermittences du cœur”. A passagem é uma espécie de represa dentro do livro, pois
pretende circunscrever o luto da avó àquele capítulo.
De modo não menos surpreendente, ela pode ser vista, formalmente, como o
sinal do parêntesis, referido de passagem por Françoise em Du côté de chez Swann,
ao falar da necessidade de respeitar as convenções do luto pela finada Léonie: “il
reste toujours le respect qu'on doit à la parentèse”68 (I, CS 140 | I, CS 152, erro no
original).
O sinal do parêntesis abre e a seguir fecha, e assim, duplo, no plural, os
parênteses concentram um desvio do discurso. Na nossa comparação, esse desvio é
a própria morte, vista assim como uma espécie de acidente de percurso que não
macula o percurso, um desvio de rota que logo retoma os trilhos. Os parênteses
enclausuram o desvio e, fechados, permitem que o discurso retorne ao tema
principal.
O tema principal parece ser a continuação da vida de Marcel, para além da
morte da sra. Bathilde. E é assim que “Les Intermittences du cœur” termina com o

68
A tradução preferível seria: “sempre existe o respeito devido aos parêntisis”, mais próxima àquela
de Mária Quintana (1948: 155).

109
otimismo em relação aos dias de luto, como uns parênteses por excelência. Depois
de calibrar a leitura da fotografia da avó e ver nela uma senhora elegante, Marcel
manda vir Albertine. Está ansioso por revê-la. Ela vem na semana seguinte. O primeiro
encontro não dura muito. Depois de acompanhá-la até Incarville, Marcel passeia pela
estrada, a mesma onde costumava passear com a avó e a sra. de Villeparisis. Ele vê,
pela primeira vez, as macieiras em plena floração. O capítulo termina com uma longa
descrição da natureza e das flores que resistem à chuva: “estas continuavam a erguer
a sua beleza, florida e rósea, ao vento que se tornara glacial sob o aguaceiro que caía:
era um dia de primavera.” (II, SG 612 | III, SG 178).
No primeiro parágrafo do capítulo seguinte, Marcel está dentro do vagão de
um trem que outrora os levaram, neto e avó, de Paris a Balbec, e que agora o levava
de Balbec a Incarville para buscar Albertine. Novamente, a lembrança da avó retorna.
Marcel recorda os sofrimentos que inflingiu à senhora ao beber no trem durante a
primeira viagem para Balbec. O mal-estar é tamanho que ele acaba por abandonar
seus planos e descer do trem. Desta vez, porém, feito o último prolongamento de
uma onda que, já sem ímpeto, alcança os nossos pés na praia, a lembrança não tem
força o bastante para durar. Pouco a pouco, as referências à avó vão diminuindo em
intensidade e frequência.
Que “Les Intermittences” seja, por excelência, a passagem parentética da
Recherche, parece ser uma forma razoável de ler as intenções do narrador. Mas,
surpreendentemente, o luto não consegue ser barrado e fechado pelos parênteses.
O livro é, ele próprio, na sua presença metaliterária, isto é, na história do esforço para
ser escrito, uma tentativa de reparação dos mortos e de dar vida a eles.
Antoine Compagnon defende que a sra. Bathilde morre antes e depois do
óbito. Ou seja, quando falece e, um ano mais tarde, quando ‘ressuscita’ pela memória
involuntária, fazendo o neto lembrar de que ela está morta. É verdade, mas é ainda
pior: ela morre antes, durante, depois – muitas vezes, todas vezes,
intermitentemente: ela morre no quarto, deitada na cama ao lado de um balão de
oxigênio, mas morre também ao telefone, morre enquanto lê um livro no sofá, morre
nos Campos Elísios. Desde quando a voz delata seu estado precário, ela não para de
morrer para Marcel. Não de modo contínuo, mas aos solavancos. Morrerá de novo
(pela última vez?) em Balbec. Cada uma delas infligirá uma dor diferente em Marcel.

110
As dores do coração que “as mortes” da avó infligem a Marcel também vêm e
voltam. Talvez pudéssemos compará-la a uma crise de tosse, persistente em sua
natureza descontínua. Uma imagem para resumi-la seria parecida com esta:

_____ ___ __ __ ________ ___ __ __

Haveria auge na ideia de intermitência? Seria a intermitência algo que vai se


acumulando até alcançar um pico? Não parece haver um caminho retilíneo para as
dores do coração: elas vêm à tona de modo não regulado e a órbita que traçam não
é previsível. São um caminho desregrado, mas cujo desenho podemos perceber a
posteriori. O olhar retrospectivo, porque é capaz de comparar as ocorrências das
dores, também nos revela a tendência ao arrefecimento, mesmo que este não seja
constante. Frente ao desaparecimento da avó, a dor mais aguda de Marcel –
assomando com atraso – vai cedendo aos poucos, até chegar a uma espécie de tosse
crônica: sem remédio, mas sociável. Marcel lembrará da avó outras vezes, sem a dor
abismal de Balbec.
As dores do coração são móveis, como nos é relatado em Doncières, quando
o protagonista ainda estava apaixonado pela sra. de Guermantes: “Mas uma
recordação e um desgosto são coisas móveis. Há dias em que se vão para tão longe
que mal os avistamos e os julgamos desaparecidos. Então prestamos atenção a
outras coisas” (II, CG 79).
Do arrefecimento da dor não se pode deduzir uma cura, se por cura
entendermos a solução permanente. Nesse sentido, o luto não se completa. Ele
nunca pode ser completo porque ele se confunde com a própria vida. É dessa
incompletude que nos fala “As intermitências do coração”: o luto é o próprio
processo contínuo e vivo de estarmos diante da morte.

111
PARTE II
ALBERTINE

Trataremos nesta parte do luto por Albertine, buscando explicar o que


entendemos como uma atitude ambígua de Marcel. A análise nos permitirá também
comparar algumas posturas acerca do luto de Marcel pela avó. Finalmente,
poderemos oferecer uma interpretação do romance inseparável das experiências de
morte e luto do protagonista. Vamos chamar atenção para:
a) A convivência de versões díspares do luto: por um lado, um luto que
termina com a indiferença total em relação ao morto; por outro, um luto
intermitente, não volitivo e inconcluso;
b) O lamento ambíguo de Marcel: ao mesmo tempo em que sofre pela
perda, desqualifica Albertine;
c) O ciúme póstumo: motivado pelo desejo i) de controle de Albertine, ii)
de mantê-la presente e iii) de desviar o foco da dor da perda;
d) A atitude que reivindica um luto sumário e se traduz pela busca por um
substituto amoroso;
e) A superação narratológica: a propensão controladora e racionalizadora
do narrador-protagonista, buscando resolver o luto pelo discurso (um
discurso autoiludido) que visa à aplicação da lei geral do esquecimento;
f) O papel da dor na expiação da culpa e no impulso à criação literária;
g) A análise das mudanças que a perda de Albertine e da avó contribuíram
para produzir em Marcel:
i) A solidão e a emergência de um protagonista vocacionado à
escrita (a construção do narrador);
ii) A consciência da passagem do tempo;
iii) A consciência da morte (dos outros e de si).
h) O livro como um monumento aos mortos, mas um monumento que os
profana.

112
CAPÍTULO IV
O LAMENTO

“A srta. Albertine foi-se embora” (III, F 331 | IV, AD 03). Aqui começa o luto de
Marcel. Sem morte, mas com separação. No momento da partida de sua prisioneira,
antes mesmo de morrer, tem início “esse golpe físico no coração, que uma tal
separação produz” (III, F 335 | IV, AD 08).
Poderíamos recuar a genealogia da dor e situar o início do luto por Albertine,
de modo menos literal, quando Marcel se apercebe que ela não pode ser possuída,
ao encontrá-la pela primeira vez, em À l’ombre des jeunes filles en fleurs. O recuo pode
ainda ser maior: o luto começaria na infância em Combray e no “drame du coucher”.
É a posição, por exemplo, de Anna M. Elsner (2017), para quem a espera de Marcel
pelo beijo de boa noite da mãe é o primeiro luto de Marcel, antecipa e molda aquele
que acontecerá por Albertine.
Uma posição afim mantém Inge Crosman Wimmers (2003). Embora sem falar
em luto, Wimmers interpreta (como outros exegetas), a separação da mãe enquanto
cena original, no sentido psicanalítico em que a cena funda um trauma que será
reencenado69, a saber, a ansiedade da separação, a qual estará presente em todas as
futuras relações amorosas do protagonista. Tal cena adquire o poder de modelo, do
mesmo modo como a mãe será um arquétipo para Gilles Deleuze (Op. cit).
Esse tipo de interpretação excessivamente psicanalítica tem como efeito
colateral uma visão demasiado abrangente e vaga do luto. Arriscaríamos nos perder
na mesma dificuldade de Jean Starobinski (2012) para definir o que é a melancolia,
vocábulo cujo uso extenso e abusivo obscurece a definição. No entanto, onde
Starobinski busca traçar a história de um termo (“Nesse campo, a tarefa do
historiador se assemelha à do filólogo”), nós buscamos analisar um certo tipo de
descrição sobre o luto. Por isso, nos interessa o luto de Marcel por Albertine em um

69
Para mais detalhes sobre a formação do trauma e as diferentes posições de Freud sobre esse
ponto, ver a análise minuciosa de FLETCHER (2013).

113
sentido restrito: embora o protagonista possa tê-lo antecipado emocionalmente, ele
o sente, de fato, a partir de quando Albertine foge.
Em vários momentos da Recherche, o amor é comparado a uma doença e a
separação amorosa, à morte. Em Albertine Disparue não é diferente: a separação
amorosa engendra a morte. As malas de Albertine, por exemplo, possuem a forma
de caixão fúnebre (III, F 339 | IV, AD 14), saber de sua partida é como um “enterro”
(III, F 340 | IV, AD 14).
Toda a sequência que se segue à fuga mostra os elementos de um luto que se
inicia atroz: “em meu peito uma dor tal que eu sentia não poder suportá-la por muito
tempo” (III, F 331 | IV, AD 03). Com a morte acidental de Albertine, a perda (e o luto)
se tornam mais agudos e irreversíveis.
Vamos encontrar, ao longo de todo o volume, a caracterização da dor do
protagonista com elementos comuns ao luto e à melancolia, tais como entendidos
por Freud em 1917: a repetição, a memória hipertrofiada a respeito do morto, a
intermitência da dor. Outros aspectos, como a autorrecriminação e a culpa, que
seriam exclusivos da melancolia, segundo “Luto e Melancolia”, também estão
presentes, sugerindo que a distinção entre luto e melancolia é mais difícil do que
Freud primeiramente supôs.
Ao mostrar os elementos do luto, daremos especial atenção para o lamento,
a fim de mostrar que ele funciona tanto como forma de perpetuar a dor quanto de
esgotá-la: ao lamentar incessantemente a perda de Albertine, o protagonista sofre,
mas, à força de repetir o mesmo lamento, vai se habituando a ele, e a dor vai ficando
cada vez menos intensa.
Além disso, o luto se mostra uma experiência fundamental, embora não
exclusiva, para as mudanças que ao longo do tempo se fazem presentes em Marcel
– no modo de ver o mundo e a si próprio – e as quais propiciam e fertilizam a
descoberta sobre sua vocação.

114
I.
A resposta imediata

A resposta imediata de Marcel perante a fuga de Albertine é aniquilar a dor da


separação: “Era necessário fazer cessar de imediato o meu sofrimento” (III, F 331 | IV,
AD 03). Se o luto é causado pela separação de quem amamos, revogar a separação
ou deixar de amar quem amamos parecem para Marcel duas soluções cabíveis e, mais
do que isso, controláveis por ele.
A pressa em acabar com o sofrimento gerado pela perda sugere que o
protagonista almeja, como primeira opção, interromper instantaneamente o luto.
Neste caso, ao reunir-se com Albertine já não haveria separação e, portanto, motivo
para o luto. No pior dos casos, não podendo reunir-se com Albertine, a segunda
opção seria um luto sumário, este entendido como a aceleração do processo de
renúncia ao ser amado. Se o luto pode ser visto como uma sucessão de certas etapas,
visão que por vezes nos dá a ver o narrador, fazer um luto sumário seria o mesmo
que abreviar ao máximo a etapa do sofrimento.
No caso de não ser possível o regresso de Albertine, então o recomendável
para o protagonista seria deixar logo de amá-la. A separação cessaria de ser dolorosa
e, sem amor nem sofrimento (ambos se retroalimentam), o luto teria se cumprido
sumariamente. Com tal objetivo, Marcel explora ambas vias: tenta forçar o retorno
de Albertine e, concomitantemente, aplicar medidas para esquecê-la, entre elas
buscar outras mulheres para substituí-la70.
Para controlar os próprios sentimentos, de cuja análise intelectual, minutos
antes de saber da fuga de Albertine, decorrera uma conclusão oposta (a de que
Marcel desejava a separação), o protagonista empenha-se novamente em uma
atitude intelectual que justifique a ação de reaver Albertine. Assim, estrategista, não
apenas conclui que quer Albertine de volta, mas calcula os meios que,

70
Falaremos com profundidade sobre as substituições no capítulo V desta Parte, por entender que é
um dos mecanismos mais controversos e interessantes do luto de Marcel.

115
organizadamente empregados, alcançarão o retorno dela: “[...] vou mandar trazê-la
de volta imediatamente. Vou examinar os meios, mas de qualquer forma ela estará
aqui esta noite” (III, F 331 | IV, AD 03).
É com algum custo que ele vai cogitando e cedendo à necessidade da
renúncia, como se tivesse de se habituar aos poucos à má notícia, pois prefere, até
onde pode, a única “solução possível, o regresso de Albertine, custasse o que
custasse” (III, F 338 | IV, AD 13).
Pese todos os mecanismos deliberadamente utilizados pelo protagonista, do
fingimento expresso nas cartas – ao blefar com a suposta oferta de um Rolls-Royce –
até o envio de Saint-Loup para convencer a tia de Albertine, sra. de Bontemps, a fazer
a sobrinha casar-se com Marcel em troca de dinheiro – Marcel não logra, pela
vontade, forçar o retorno de Albertine. Tampouco substituí-la. Nem muito menos
chegar a uma conclusão sobre as intenções da amada. Não será possível conhecê-la
como ele quer, nem controlá-la71.
Apesar do tom de racionalidade do discurso do narrador, a razão é qualificada
de “serva” (III, F 334 | IV, AD 07) das forças do coração, muitas vezes inconscientes.
O narrador afirma que o coração é insondável para a inteligência, e por isso ela não é
o melhor instrumento para se chegar à verdade. Mas essa é uma conclusão à qual o
protagonista chega aos poucos, a muito custo e de modo não sistemático. Por
enquanto, ele está ávido por validar seus argumentos que advogam pelo regresso de
Albertine, mesmo reconhecendo que “quem tem razão por vezes comprova seus
direitos com argumentos que lhe parecem irrefutáveis porquanto correspondem à
sua paixão” (III, TR 617 | IV, TR 352).
A fuga de Albertine teria sido blefe ou verdade? Diante da carta que ela lhe
deixara, onde estava escrito “Entre nós, a vida se tornou impossível” e “Minha
decisão é irrevogável” (III, F 332 | IV, AD 05), Marcel conjectura sucessivamente:

71
A dificuldade em conhecer e controlar as intenções das ações e os sentimentos dos outros e de nós
próprios atravessa todo o romance: é quando Swann não faz nada, quando deixa o tempo passar,
que Odette volta para ele, após a longa viagem com os Verdurin (I, CS 309-312 | I, CS 367-372). O
máximo controle que o barão de Charlus pode exercer é pagar para alguém lhe bater com
correntes e, mesmo assim, se frusta a respeito da maldade simulada de seu algoz (III, TR 651 | IV,
TR 396).

116
Não, o que Albertine desejou é que não fosse mais insuportável
com ela, e sobretudo – como outrora Odette em relação a Swann
– que me decidisse a desposá-la.72 (III, F 333 | IV, AD 06)

[ela] deseja unicamente pedir melhores condições [...], deseja


ferir, quer para vingar-se ou para continuar a ser amada. (III, F 335
| IV, AD 09)

como ela não pensa nada de tudo isso, evidentemente o


escreveu apenas para causar um grande impacto, a fim de que eu
me apavore. (III, F 332 | IV, AD 05)

Nesse sentido, o comportamento de Marcel continua sendo o de alguém


ciumento que tenta investigar as intenções da amada. As hipóteses de Marcel são
numerosas, mas, do ponto de vista do incansável ciúme, também insuficientes, e
nenhuma consegue explicar definitivamente o que Marcel busca.
A decisão de Albertine, em algum momento “irrevogável” (III, F 332 | IV, AD
05), vai mudando, até ela dizer “Se for para que eu volte, tomarei o trem
imediatamente” (III, F 377 | IV, AD 60), o que enche Marcel de esperanças. Com a
morte dela, contudo, o protagonista terá de se ver com uma situação incontrolável.

72
Como se verá no último capítulo desta tese, anos depois, esta parece ser uma das conclusões de
Marcel.

117
II.
Ciúme póstumo

Se a resposta imediata de Marcel perante a fuga de sua prisioneira era acabar


o mais rápido possível com o sofrimento, ele tem uma atitude contraditória após a
morte dela: alimenta um ciúme póstumo, que por sua vez prolonga a dor. Vamos
analisar como o ciúme funciona enquanto instrumento ilusório de controle diante da
notícia incontrolável da morte de Albertine.
Ingrid Wassenaar escreve taxativamente sobre o ciúme em Albertine disparue:
“De todas as emoções a serem experimentadas na sequência da morte de alguém
amado, o ciúme parece talvez o mais obsceno e desavergonhado.” (1997: 210) O
espanto dela diante de um luto póstumo tem a ver com a acepção de que a morte
esvaziaria o ciúme e o tornaria inútil e sem motivo.
Contra tal ideia, gostaríamos de chamar atenção para o fato de que a utilidade
do ciúme é apenas aparentemente pragmática: imaginamos que, uma vez
sentenciado o veredito probatório da infidelidade de nosso parceiro, imediatamente
agiríamos para romper a relação. Em outras palavras, é como se o ciúme visasse obter
uma informação que, por sua vez, impulsionasse ações contundentes a respeito de
uma relação amorosa. Entretanto, histórias cotidianas desmentem a ligação de
necessidade entre conhecimento e ação. Podemos nos saber traídos e ainda assim
seguir ao lado de nossos traidores. Ou, como coloca Joshua Landy (2004), podemos
propositadamente nunca chegar a confirmar a hipótese plausível da traição.
Por trás da perplexidade de Wassenaar com o ciúme póstumo de Marcel está
também a ideia de que a dor da perda deveria se sobrepor ou mesmo anular a dor do
ciúme, como espécie de prova de um luto virtuoso e da autenticidade do amor. Sentir
ciúme de um morto, deste ponto de vista, parece absurdo. Tomando a tese de Landy,
o ciúme em Proust seria em qualquer caso absurdo e interminável, no sentido em que
não sai do lugar e atua em prejuízo de qualquer resolução: o que o ciumento quer é

118
evitar descobrir a verdade, mas manter para si próprio a fantasia de que a busca
incessantemente.
Por outro lado, o próprio Landy, ao descrever o ciúme como afeto autônomo
na Recherche, contribui para a conclusão de Wassenaar: se Marcel continuou
enciumado após a morte de Albertine, isso provaria a sobrevida do ciúme, e não do
amor73. Para ele, o ciúme “segue sua própria agenda autônoma” (95) e permanece
ativo mesmo “depois que o amor e/ou o seu objeto estão mortos” (95), como é o
caso com Albertine.
Tal explicação nos parece equivocada. Primeiramente, não há por que o amor
acabar no momento em que seu objeto morre. Em segundo lugar, se o ciúme
sobrevive à Albertine, isso somente atesta a força do ciúme, e não a ausência do amor
ou sua autonomia. Por isso, a presença do ciúme após a morte de Albertine não pode
ser usada como prova de que Marcel não gostava dela.
Nem a autonomia dos afetos nem o espanto diante da obscenidade do ciúme
explicam por que a morte alimenta o ciúme, um “clímax paradoxal” (MILLER, 1995:
124) e à partida contraintuitivo, mas relevante em Albertine disparue. Vamos propor
nesse ponto três explicações complementares:

Controle

I.
Havíamos mostrado como a resposta imediata de Marcel era o controle. Com
a morte de Albertine, apesar de já não poder forçar o retorno dela, o protagonista
não pretende renunciá-la. Ao contrário, tenta restaurá-la. É aí que vem um dos
momentos mais engenhosos de Proust. Marcel procede a dois tipos de restauro:
tenta restaurar Albertine em outras mulheres e também restaurar sua vida pregressa.
É sobretudo a segunda atitude que nos interessa agora74, e que revela o desejo
de controle de Marcel. Ao final do episódio da morte da avó, o narrador exibira uma
imagem restaurada da senhora Bathilde – retocada, reparada, com aparência de

73
GRAU (2015) também concebe o amor como sendo independente do ciúme.
74
A primeira será tratada no capítulo V desta tese, como referimos anteriormente.

119
mocinha. O restauro de Albertine, contudo, é de outro tipo: não beneficia a peça nem
propõe compensá-la com alguma suposta antiga beleza. O restauro é mais de tipo
Sherlock Holmes, como ele próprio refere. Feito alguém que restitui a cena de um
crime, Marcel quer é trazer de volta a história pregressa de Albertine e, aliás, uma
parcela muito específica: se ela esteve ou não com outras mulheres, quem, quando,
como, onde.
Curiosamente, Marcel não investiga as causas do acidente de Albertine, como
poderia ter feito. Não se preocupa em saber por que ela caiu do cavalo, se houve
negligência de alguém, se ela estava sendo perseguida ou qualquer outra hipótese
que girasse em torno da preocupação pela segurança dela. Ele investiga apenas o que
pensa apontar a virtude ou o vício de Albertine. Uma tal atitude permite a Marcel
entreter-se com uma ilusão de controle: a de descobrir as peças em falta para
reconstituir o passado dela. Quando, em verdade, ele nada pode fazer para forçar o
retorno de uma morta nem para fazê-la falar a verdade.
O ponto mais absurdo (e cômico) do paradoxo do ciúme é quando envia
Aimée para outra cidade, a fim de se informar se Albertine frequentava as lavadeiras.
O enviado, incompetente, não consegue obter nenhuma informação relevante, e
aproveita a ocasião para levar a cabo aventuras sexuais sob justificativa de obter
informação privilegiada.

II.
O ciúme póstumo não contradiz a existência do amor, como não contradiz a
existência da dor por haver perdido a pessoa amada – mas pode ajudar a mascará-la
ou diminui-la.
A manobra de Marcel, ao lançar-se paradoxalmente como ‘espião do que pode
ter acontecido’, projetando restrospectivamente o ciúme, o permite se ocupar com
sofrer por uma incerteza: ele sofre com a dúvida própria do ciúme, e não com a
certeza da morte. Do ponto de vista estrito do ciúme, perder Albertine para a morte
(e não para outra pessoa) é secundário.
O ciúme disputa espaço com a dor da perda e, deste modo, torna-se
inseparável do luto por Albertine. A dor de tê-la perdido convive com a dor do ciúme

120
que, em suas profundezas, também é a dor de não saber de fato quem ela era nem
poder ser a mulher que supostamente lhe daria prazer.
Para um personagem da complexidade de Marcel, a dor do ciúme é também
um escape da dor da perda, e lhe permite sentir-se (ou querer estar) sob controle.
Mas o alcance do ciúme é limitado, no sentido em que não exime Marcel de sofrer
pelo desaparecimento de Albertine.

III.
Há uma outra explicação para a proeminência do ciúme no luto de Marcel. As
ações do protagonista, partindo para uma investigação de detetive movida pelo
ciúme de uma pessoa morta, se justificam também pelo medo de esquecer Albertine.
Podemos mesmo afirmar que a investigação do passado de Albertine, movida pelo
ciúme, é uma das formas que o protagonista encontra de prolongar a dor para, assim,
sentir que ainda ama Albertine e que ela ainda está presente.
O narrador afirma que, quando uma pessoa morre, continuamos a pensar nela
como se ela estivesse viajando: “a criatura não morre imediatamente para nós […]
ela continua a ocupar nossos pensamentos da mesma maneira como quando vivia. É
como se estivesse viajando.” (III, F 402 | IV, AD 92). Em certo sentido, não houve
diferença substancial nem no modo de pensar nem de agir em relação a Albertine
antes e depois da morte dela: isto é, Marcel continuou se comportando de modo
ciumento.
Em nossa interpretação, o ciúme permite que Albertine esteja presente para
Marcel como outrora, isto é, enquanto objeto amado mas suspeito sobre o qual é
preciso investigar (sem descobrir) os segredos. O ciúme, em vista disso, é uma forma
mais aguda de evadir a morte: “via Albertine ressuscitada pelo meu ciúme,
verdadeiramente viva” (III, F 415 | IV, AD 109).

Autoengano

121
Investigar as práticas homossexuais de Albertine é um ponto cego. Proust
transforma o que seria, segundo Reginald McGinnis, um vazio na história75, em um
problema literário e cognitivo maior: “O que era uma lacuna na história se torna, na
Recherche, um símbolo do incognoscível” (1989: 84-5). Albertine é por excelência o
inacessível: conhecê-la está vetado a Marcel, tanto porque ela morreu quanto porque
entender Gomorra lhe é interdito.
E, apesar de tudo, Marcel insiste. É assim que Marcel tem a sensação de
controlar a vida de Albertine, restaurando seu passado desconhecido. O problema é
que, a cada nova peça encontrada a favor de um tipo de Albertine (infiel, lésbica), um
discurso oposto se manifesta: “O que o amante ciumento quer é um conhecimento
verificável, pessoal e íntimo da pessoa amada. [...] Essas coisas ele nunca pode saber,
e por isso seu ciúme é sempre insaciável”, comenta J. Hillis Miller (1995: 138).
A insistência de Marcel é típica da atitude de autoengano descrita por Joshua
Landy: o que o protagonista busca é manter para si próprio a ilusão de que se
empenha em conhecer a verdade quando, de fato, busca “uma mentira convincente”
(Op.cit.: 96). Segundo Landy, a maquinação mental não teria a ver com a ânsia por
saber, mas por não saber. O instinto de autopreservação de Marcel se traduziria no
desejo de ignorância: “ele emprega recursos suficientes para gerar a ilusão de saber
a verdade, mas se detém diante daqueles que arriscam realmente descobri-la.”
Marcel investiga a vida de Albertine, mas não tanto: sempre mantém a incerteza e,
assim, suspende um veredito final que pode ser ainda mais doloroso.
Neste ponto, Marcel coincide com Golaud de Pelléas et Mélisande
(MAETERLINCK, 1892), mencionada na Recherche. No último ato, no leito de morte
de Mélisande, Golaud espera por fim descobrir o veredito sobre a suspeita de
infidelidade: “tudo o que eu não sabia até agora, me salta aos olhos esta noite…”
(5.2: 90). Salta aos olhos, mas ele não vê.

75
McGINNIS se refere à história não contada de Gomorra: “Gomorra tem uma história apenas por
associação a Sodoma” (1989: 86). A Bíblia narra a destruição das cidades da planície por Jeová, que
enviou uma chuva de fogo e enxofre como forma de punição contra os vícios sexuais. O Senhor
diz: “É imenso o clamor que se eleva de Sodoma e Gomorra, e o seu pecado é muito grande. Eu
vou descer agora para ver se as suas obras correspondem realmente ao clamor que chegou até
mim; se não for, eu o saberei.” (Gênesis, 18.20-1). Contudo, a Bíblia mostra apenas a visita a
Sodoma, com três homens encarregados de verificar os vícios. A conduta dos habitantes de
Gomorra é, para McGinnis, uma suposição.

122
GOLAUD: Você amou Pelléas?
MÉLISANDE: Sim; eu o amei. Onde ele está?
GOLAUD: Você não me entende? Não quer me entender? Me
parece que... me parece...Bom, é assim: eu pergunto se você o
amou com um amor proibido. Você foi... vocês foram culpados?
Diga, diga, sim, sim?...
MÉLISANDE: Não, não; nós não fomos culpados. Por que você me
pergunta isso?
(5.2: 90-1)

Cabe a interpretação de que, ao dizer “Sim, eu o amei”, Mélisande já estaria


reconhecendo a infidelidade, ao menos no nível dos afetos. Mas não há revelação
para Golaud. Mesmo quando a amada afirma que amou Pelléas, Golaud não parece
ouvi-la e prossegue em sua inquisição: “Chegou a hora! Chegou a hora! Rápido,
rápido! A verdade, a verdade!” À última resposta da amada, que repete “A verdade...
a verdade”, ele responde: “Nunca saberei! ...Vou morrer como um cego!…” (5.2: 91-
2)
Por mais perguntas que Marcel fizesse a Albertine, e por mais respostas que
ela lhe tivesse oferecido, ele não escutaria a verdade e prosseguiria seu questionário
e espionagem. O que busca está para além de qualquer palavra que o interlocutor
pode emitir. O que é que Marcel busca, afinal, mesmo com Albertine morta? O
narrador dirá que é conhecer a essência dela e possuí-la.

Ganhos afetivos

Segundo J. Hillis Miller, a persistência do ciúme após a morte de Albertine


mostra quão inacessível é a pessoa amada, cuja essência nos é permanentemente
interdita: “é como se ela [Albertine] já estivesse morta quando ainda está viva”
(MILLER, Op.cit.: 125). A morte expõe o fato de que é tão difícil conhecer Albertine
em vida quanto morta76. Embora não seja preciso nos alinhar com a acepção

76
Para MILLER, o conhecimento falho a respeito de uma pessoa (no caso, Albertine) não é um
método exclusivo do ciumento, mas inerente às relações humanas.

123
essencialista que Miller tem sobre a identidade pessoal em Proust (neste ponto,
próxima a Landy e Deleuze), é interessante notar que o ciúme póstumo intensifica o
isolamento de Marcel. Mas há ganhos que o compensam.
Manter Albertine presente por meio do ciúme não traz ganhos cognitivos
significativos. Na falta de um “semelhante narrador informado” (III, F 433 | IV, AD 131)
como poderia ser o caso do narrador proustiano em “Un amour de Swann” (I, CS 166-
315 | I, CS 185-375), Marcel, em Albertine disparue, apela a enviados especiais, sem
contudo se beneficiar de nenhum deles para chegar à verdade. Albertine continua
sendo, em última análise, desconhecida e fora de posse. Mantê-la presente tampouco
permite a Marcel libertar-se da dor – ao contrário.
Porém, os ganhos afetivos parecem relevantes o suficiente para que Marcel
continue investindo na atitude enciumada, como também na hipertrofia da memória
a respeito de Albertine. Os ganhos de Marcel são, em suma, a proteção de si contra a
dor do luto (mascarada pelo ciúme) e, sobretudo, a proteção do objeto perdido
contra o apagamento. Laurent Jenny resume bem a contradição do luto: “[...]
gostaríamos de deixar de sofrer, mas receamos acima de tudo que já não soframos
porque é o último elo que nos liga ao objeto perdido.” (2005: 206)
Marcel sabe que o fim da dor necessariamente coincidirá com a volta ao hábito
tedioso (na hipótese em que Albertine voltasse à casa dele); ou, quando Albertine
morre e já fica descartada tal hipótese, o fim da dor coincidiria com o esquecimento,
e daí devesse ser evitada. Não é sem culpa que Marcel visualiza o dia em que terá
esquecido Albertine. Desfecho inexorável da passagem do tempo, ponto final da
marcha do sofrimento, o esquecimento é tanto temido quanto esperado: “Só me
restava uma esperança para o futuro – esperança bem mais dilacerante que o temor
–; era a de esquecer Albertine.” (III, F 380 | IV, AD 64)
O movimento que se segue à dor descreve com perfeição aquele de Freud em
1917: esquecimento total pelo qual “somos desligados daqueles que não mais
amamos” (III, F 380 | IV, AD 64). O luto, aqui, é um trabalho que resulta na conclusão
de um problema, isto é, no apagamento da pessoa que morreu e, junto com ela, da
dor advinda da sua perda. O que em Freud é uma libertação unilateral, em Proust
trata-se do “mais justo e mais cruel castigo” (idem).

124
II.
Definições do luto

Em meio ao “longo queixume da alma (III, F 394 | IV, AD 82), o narrador reflete
acerca da natureza e extensão da sua dor. Há algumas passagens da narração que
podem ser tomadas como modos de definir o luto. Falaremos sobre algumas delas,
mostrando como as visões sobre o luto, segundo o narrador, às vezes se
complementam, outras se contradizem.
De modo geral, convivem duas descrições: em uma, o luto é um processo
contínuo ou mesmo interminável, embora marcado por interrupções; em outra, um
processo que alcança uma conclusão final com o esquecimento ou a indiferença em
relação à pessoa que amávamos. Essas definições são reflexões intelectuais, pelo que
não devem ser tomadas necessariamente como espelho das emoções de Marcel, não
são isentas de erro ou mesmo de mudança de perspectiva. Veremos mudanças
ocorrerem ao longo de Albertine disparue e Le Temps retrouvé.
Analisemos uma das primeiras vezes em que o narrador nos oferece uma visão
concentrada do luto: “a renúncia voluntária, a resignação progressiva” (III, F 338-9 |
IV, AD 13). Na primeira parte da expressão (“renúncia voluntária”, vamos chamá-la de
(i)), se trata de, pela vontade, desistir da pessoa que amamos, de deixar de a querer.
Como fazê-lo não nos é dito: bastaria abdicar de toda e qualquer possibilidade de
estar com a pessoa amada?
Uma descrição desse tipo é, para quem está em luto, um disparate: ela diz
respeito ao luto concluído. Para Marcel, trata-se de “uma solução para romance,
inverossímil na vida” (III, F 339 | IV, AD 13), em tudo contrária à sua vontade que, no
momento da perda, resume-se exclusivamente em trazer de volta Albertine. Projetar
o fim da dor, como depende de projetar a renúncia à pessoa amada, é mais uma causa
de sofrimento do que de alívio.
Freud alertava que ninguém, enquanto ama (ou enquanto ama
intensamente), quer voluntariamente abdicar da pessoa amada, mesmo quando ela

125
na realidade já desapareceu. Contra a retirada da libido desse objeto perdido há uma
“compreensível oposição”, a qual cedemos “pouco a pouco, com grande dispêndio
de tempo e de energia” (LM: 132).
Para Marcel enlutado, falar de renúncia voluntária só pode ser apreciado pela
inteligência, descolada do sentimento. É uma descrição finalística inaceitável para
aquele que presentemente sofre (ao menos no início ou enquanto sofre em
demasia). Por isso, uma descrição racional como esta só faz sentido
retrospectivamente. É assim que ele afirma em Le Temps retrouvé que “eu não mais
a amava” (III, TR 822 | IV, TR 615) – mas teremos de colocar sua declaração à prova de
outros elementos do texto.
Na segunda parte da expressão usada pelo narrador, “a resignação
progressiva” (vamos chamá-la de (ii)), temos um luto mais afim à ideia de processo
do que de ação única (como “renunciar”)77. A resignação seria algo que se
desenvolve ao longo do tempo, pouco a pouco e em contínuo crescimento. A noção
de processo parece mais adequada para descrever o que se passa com Marcel, ou
como o narrador nos conta aquilo que se passou com Marcel.
O narrador referenda a cura como resultado e ápice de um processo de
transformação dos sentimentos do enlutado que desemboca na abdicação da amada
e no esquecimento: “esse amor [...] acabava também, ele que fora uma exceção, por
ingressar, bem como o meu amor por Gilberte, na lei geral do esquecimento” (III, F
508 | IV, AD 223).
Mais à frente, o narrador recapitula as principais etapas pelas quais teria
passado antes do final de seu luto. Chegar até a resignação ou a superação, portanto,
pressuporia um longo caminho com muitas etapas. O luto poderia ser narrado, então,
como a passagem progressiva de um estado a outro, até atingir a cura.
Esta maneira de descrevê-lo está presente, grosso modo, em diversos estudos
da psicologia clínica do luto. Muitos autores tentaram estabelecer as fases pelas quais
o paciente passa até a cura (BOWLBY, 1980; GLICK, WEISS e PARKES, 1974). Em uma

77
A associação, na mesma frase, à expressão “renúncia voluntária”, imediatamente anterior, pode
sugerir que também na resignação há voluntarismo. Contudo, gostaríamos apenas de salientar que
a segunda expressão, “resignação progressiva”, traz imbuída a noção de processo, ausente da
anterior.

126
revisão da literatura sobre o tema, Stephen R. Shuchter e Sidney Zisook (1993)
propõem, de modo resumido e por ordem: o choque (com um sentimento de
descrença), o sofrimento agudo (raiva ou depressão) e a aceitação da perda78. Neste
que seria o desenvolvimento sem complicações do luto, a cura é entendida como a
aceitação da perda e o desaparecimento dos sintomas típicos (pesar agudo,
pensamentos repetitivos, raiva, solidão ou mesmo culpa por sobreviver).
Instrumentos como o Inventory of Complicated Grief (ICG) ou o menos
conhecido Reaction to Loss Inventory foram concebidos para diagnosticar (e
prevenir), de uma maneira estatística que se pretende fiel, a situação patológica de
um luto que tarda a se concluir79 (cf. HOROWITZ et al., 1997 e PRIGERSON et al. 1995).
A inclusão, em 2013, do quadro clínico chamado “Prolonged Grief Desorder” ou luto
prolongado no famoso Manual para Diagnóstico e Estatística das Perturbações
Mentais (DSM-5, na sigla em inglês), publicado pela Associação Americana de
Psiquiatria, é resultado de um entendimento de que o luto, quando duradouro, pode
se converter em uma doença que deve ser tratada (e, muitas vezes, medicada), com
sintomas debilitantes e incapacidade funcional persistente (cf. STROEBE et al. 1993;
PRIGERSON et al. 1995; PRIGERSON et al., 2009).
Implícita nessa visão do luto está a ideia de uma evolução do estado do
enlutado, em um período de tempo não muito longo, em direção à solução. É o que
nos conta o narrador ao descrever as etapas que o teriam levado à indiferença em
relação a Albertine. A passagem (iii) merece destaque:

Portanto, se não podemos, antes de retornar à indiferença de


onde partimos, evitar cobrir em sentido inverso as distâncias que
vencemos para atingir o amor, o trajeto e a linha que seguimos
não são forçosamente os mesmos. Têm em comum o não serem
diretos, pois o esquecimento, bem como o amor, não progride

78
SHUCHTER & ZISOOK chamam atenção para não se tomar as fases e sua duração muito
literalmente, uma vez que o luto é um processo não linear e idiossincrático. Isso, no limite, os leva
a admitir que “alguns aspectos do luto podem nunca terminar para uma porção significativa de
pessoas enlutadas normais” (Op. cit.: 25).
79
Se a patologização do estado melancólico por Freud em “Luto e Melancolia” guarda semelhanças
com alguns sintomas do “distúrbio do luto prolongado”, como a culpa, a ideia de mesurar a
normalidade do luto é ainda mais radical do que propunha Freud. Além disso, Freud inicialmente
descreveu a melancolia como uma resposta patológica e duradoura frente à perda, e não
patológica porque duradoura. Essa nuance pode se perder em certas leituras de Freud, como a que
propõe Judith Butler, ao definir a melancolia como “o processo inacabado de luto” (1995: 166).

127
de forma regular. Mas ambos não utilizam obrigatoriamente as
mesmas rotas. E nessa que eu segui de volta houve, já bem perto
da chegada, quatro etapas de que especialmente me recordo [...]
(III, F 439 | IV, AD 139)

Disso se depreende que o processo é irregular, embora progressivo. A solução


é para frente, isto é, se localiza após o cumprimento das etapas, e, curiosamente,
também para trás, pois é um retorno a um estado original: “antes de retornar à
indiferença de onde partimos”. O enlutado, então, voltaria à estaca zero, como se
regressasse de trem para sua cidade natal, mas passando por um trajeto com
conexões diferentes daquelas empregadas no trajeto de ida.
Percorrer o sentido contrário do trajeto que levou ao amor é como deixar de
amar, tornar-se indiferente à pessoa que se amava e esquecê-la. Essas três situações,
aqui colocadas como ponto de chegada, embora não sejam sinônimos, são
constantemente evocadas ao longo de Albertine disparue como a solução do luto
(ver, em especial, o último capítulo desta tese).
O narrador cita as últimas etapas prévias à solução: um passeio no dia da
Toussaint pelo Bois de Bologne, onde as recordações de Albertine são mais
charmosas que atrozes; a segunda visita de Andrée, revelando supostos segredos da
conduta de Albertine, mas cujo efeito, surpreendentemente, já não é nocivo para
Marcel; a viagem a Veneza, onde por vezes ele sente ressurgir o amor mas,
sobretudo, a indiferença.
A ideia de processo formado pela sucessão irregular de etapas não contradiz,
a rigor, a de agência: o luto pode ser entendido como a sequência de ações
conscientes do enlutado que culminarão em um fim. Mas o papel de Marcel enquanto
agente das próprias mudanças afetivas que relata é dúbio: apesar de a narrativa
empregar a primeira pessoa, “eu segui de volta”, a resposta de Marcel perante os
eventos narrados não advém da vontade dele. A citação, na verdade, contesta o
poder de agência; ela também questiona tanto o controle dos eventos quanto a
natureza e duração da resposta que Marcel está em medida de oferecer. Que o
narrador declare a indiferença de Marcel perante Albertine não é garantia que ela em
qualquer caso alguma vez exista ou que exista sempre.

128
Marcel não parece a salvo do impacto duradouro da perda de Albertine, como
alguém que regressasse ao ponto do qual partiu. Uma tese assim, do tipo tábula rasa,
em que a perda de Albertine não gera mudanças e passa sem deixar traços, mostra
mais a vontade do narrador em esquecê-la. Parece muito mais que ele “imita o
desapego antes da hora”, como diz Wassenaar (1997: 205), forçando e antecipando,
pelo intelecto, uma solução. Esse tipo de atitude favorece as práticas substitutivas –
isto é, a busca por outras mulheres.
Na seguinte passagem (iv), vemos uma noção ao mesmo tempo processual e
cética quanto à vontade:

O sofrimento, evolução [prolongement] de um abalo moral


imposto, aspira a mudar de forma; esperamos que se desvaneça,
fazendo projetos, pedindo informações; desejamos que passe
por suas inumeráveis metamorfoses; isso exige menos coragem
do que suportar sem disfarce o sofrimento. (III, F 339 | IV, AD 13)

Novamente, temos a ideia de um processo gradual, progressivo, durante o


qual a dor se transforma. De modo mais marcado, retira-se o comando da pessoa que
sofre: nem somos nós que provocamos o sofrimento nem seremos nós que o
transformaremos para que acabe. Tanto a origem da dor quanto o domínio sobre ela
escapam a Marcel. O sofrimento modifica-se, mas segundo leis internas. O que cabe,
então, fazer? Sofrer, e sem disfarces. Não é o que Marcel faz: ele tanto disfarça
quanto usa todos os meios possíveis para tornar a situação mais favorável para si.
No original, prolongement tem muito mais a ver com uma continuação
persistente para além do tempo previsto do que com evolução. Embora a palavra
‘evolução’ retenha a ideia de desenvolvimento, o que nos parece aceitável, também
enseja um outro sentido, o de um movimento concertado e racionalmente
ordenado80. Ao contrário, nesta passagem específica, e em acordo com o que o
narrador vinha dizendo, a única ordem que o luto poderia obedecer seria a do
coração.

80
Na linguagem militar, por exemplo, o termo descreve o movimento disciplinado das tropas para
ocupar uma nova posição de ataque ou defesa: “É pelas evoluções que se modifica a forma e a
disposição de uma batalha e de um esquadrão segundo a disposição do terreno, seja para atacar
ou se defender.” (Dictionnaire Universel de Furitière, I, 1690: s/p).

129
Há ainda um campo semântico possível, que aponta para a noção de
consequência, se bem que mais comumente encontrado no plural (prolongements).
Assim, outros termos, como ‘repercussão’ ou ‘sequela’, mostrariam a dor como
efeito negativo de um abalo vindo de fora, embora já sem a implicação temporal mais
explícita da ideia de prolongamento.
O sentido de algo involuntário reaparece em outra passagem (v). Segundo o
narrador:

A mágoa que de modo algum é conclusão pessimista livremente


extraída de um conjunto de circunstâncias funestas, mas a
revivescência intermitente e involuntária de uma impressão
específica, vinda do exterior, e que não escolhemos. (III, F 339-
340 | IV, AD 14)

O narrador afasta-se de modo ainda mais explícito da razão e do voluntarismo


como ferramentas para explicar a dor da perda, controlá-la ou resolvê-la. Opõe a
impressão à conclusão pela inteligência, que analisa as diversas circunstâncias para
construir seu juízo. O luto, eminentemente assunto da impressão – tanto emocional
quanto corporal, pois os sintomas se sentem também no corpo – é a repetição
(descontínua e alheia à vontade) de uma impressão específica: a dor pela partida de
Albertine. É assim que o texto articula uma descrição do luto em seu caráter
emocional, processual, intermitente e involuntário.
Uma tal descrição proposta pelo narrador proustiano encontra eco em
algumas posições de psicanalistas que pensaram o luto no seguimento de “Luto e
Melancolia”, como Daniel Lagache (1938), J.-B. Pontalis (2000) ou Laurie Laufer
(2018).
Para Lagache, a insólita expressão freudiana “trabalho de luto” (Trauerarbeit)
gera mal-estar pela posterior apropriação indevidamente produtivista realizada pela
sociedade contemporânea: “evoca uma ideia de um esforço intenso e árduo em vista
de um resultado a obter” (1938: 693).
Pontalis igualmente criticou o caráter voluntarista e economicista com que se
usa a expressão atualmente: “Que um trabalho de luto se efetue ou não em mim,

130
pode ser. Mas que eu gerencie meu luto, que aprenda a ‘negociar’ minha dor, que me
seja prescrito um manual, não.” (2000: 149)
Nesse sentido, a atitude requerida do enlutado na experiência com a morte se
aproximaria muito mais daquilo que descreve Laurie Laufer como “abrir passagem”
para a autotransformação, e não “enfrentar” a dor e a perda (2018: s/p).
É importante salientar que a concepção do luto como uma experiência
emocional, processual, intermitente e insubmissa ao nosso controle não é uma
posição definitiva ou homogênea ao longo da Recherche, nem especificamente em
relação à Albertine. Ao contrário, há uma miríade de visões conflitantes sobre luto
para o protagonista e para diferentes personagens. Françoise dirá que se trata de uns
parênteses na vida familiar de uma pessoa. Ela sofre de uma dor convencional,
vestida de negro.
Outros sequer sofrem. A morte vista como empecilho para o desfrute de uma
noitada é recorrente nos salões, e suprime qualquer necessidade de luto.
Recordemos o sr. Verdurin, diante da mensagem de condolência pela morte da
princesa Sherbatoff: “– Sim, sei que ela está muito mal. – Mas não, ela morreu às seis
horas – exclamou Saniette. – O senhor exagera sempre – retrucou brutalmente o sr.
Verdurin, que, já que a reunião noturna não fora cancelada, preferia a hipótese da
doença.” (III, P 180 | III, P 733).
O narrador assim resume o incômodo da morte para o desenrolar normal das
atividades cotidianas na sociedade: “Pois toda morte é para os outros uma
simplificação da existência, anula os escrúpulos da gratidão, a obrigação de fazer
visitas” (III, TR 776 | IV, TR 556). No que se refere a ele próprio, as reflexões do
narrador são cambiantes: pensa o luto como intermitência, mas também identifica
padrões de afeto que a inteligência pode explicar, como a lei do esquecimento, para
domar suas emoções. Mesmo quando propõe uma acepção menos voluntarista, isso
não invalida o fato de que Marcel atue frequentemente em desacordo com ela,
tentando controlar o curso de seus sofrimentos.
Em Proust among the stars ([1998] 2016), Malcolm Bowie fala que a morte é
mais “um fato que precisa ser reconhecido do que um problema que precisa de uma
solução”. Esta afirmação oferece uma interpretação bastante justa do romance, mas
não do narrador. Isto é, reconhecer a morte, e não solucioná-la – nem escondê-la ou

131
interditá-la, como diria o historiador Philippe Ariès (1975, 1977) – é uma ideia que o
romance nos demanda ver, mas justamente ao nos mostrar pessoas que fazem o
contrário – entre elas, o narrador-protagonista.
Ainda não sabemos se há uma resolução para um luto assim entendido. Marcel
quer que haja.

132
III.
Preparar-se

O luto de Marcel independe da morte, mas ela o intensifica em grau pela


espécie de separação que provoca. O protagonista já sofria com sintomas típicos do
luto desde a fuga da amada; a morte os exacerba e pressiona o protagonista a aceitar
a irreversibilidade da separação.
O anúncio da morte de Albertine é diametralmente diferente da narração
teatral da morte da avó. Não há audiência, cadáver ou agonia. O evento é narrado
por uma terceira pessoa. Sucinta, a morte de sua fugitiva cabe em algumas linhas –
aquelas escritas na carta enviada pela sra. Bontemps, cujas frases alongam um pouco
o anúncio outrora já feito na contundente fórmula “Albertine foi embora”81.
Diferentemente da avó, Albertine morre de modo inesperado. A notícia do
acidente tem um caráter ambíguo: guarda surpresa para Marcel, mas vem revestida
por um certo fatalismo que se liga à fuga precedente. Isso porque a morte, de fato, é
o desenrolar e o coroar de uma fuga longamente receada e, contraditoriamente,
desejada: “A presença de Albertine era um peso; eu a olhava, doce e enfadonha,
sentindo que era uma pena que não tivéssemos rompido.” (III, P 317 | III, P 905);
“Como um pássaro que vai de uma extremidade a outra da gaiola, eu passava
incessantemente da inquietação que Albertine pudesse partir a uma relativa calma”
(III, P 315 | III, P 902).
A construção da possibilidade de fuga acompanha toda La Prisonnière e
justifica os cuidados obsessivos de Marcel em ter Albertine sempre sob controle. Nos
últimos dias antes de sua partida, o protagonista é acordado à noite com o ruído da
janela se abrindo violentamente no quarto dela. Como um “presságio mais misterioso
e mais fúnebre que um pio de coruja” (III, P 316 | III, P 903), o barulho anunciava, para
Marcel, a iminente fuga da amada, ruptura desde o início associada à morte de

81
A frase inicial, “Mademoiselle Albertine est partie”, é resumida depois, e definitivamente, em
“Albertine est partie”.

133
Albertine, da relação e também do próprio Marcel. Ele compara a situação à da avó
antes de morrer: em um estado de “uma sonolência profunda” e “coma”, ela de
repente punha-se a tremer82. Aflito, também tremendo, ele se pergunta: “Teria eu
também entrado em agonia? Seria isso a aproximação da morte?” (III, P 317 | III, P
905).
Albertine, portanto, não foge de forma totalmente inesperada. Por que,
então, Marcel vivencia a partida dela como se fosse súbita e chocante? Há algumas
qualificações a fazer a esse respeito. Elas ajudam a explicar a relação entre fuga e
morte, a vivência de Marcel de tais eventos como esperados e inesperados, como
também por que o protagonista tem dificuldade em aceitar a perda de Albertine e
não consegue, pese sua vontade, fazer um luto sumário.

1. Presságio

Marcel, de modo ambíguo, pressente a fuga, mas nunca valida esse presságio.
É uma maneira de ser perpetuamente acometido por uma polaridade (Albertine vai
ou não embora?) que tipicamente impulsiona o ciúme. A ameaça, mesmo passageira,
de que ela pode não estar mais disponível para ele o atormenta. Uma vez consumada,
torna a fuga repentina, sim, mas não totalmente imprevista.
Em La Prisonnière, após uma briga, Marcel lhe pede perdão: “Respondeu que
nada tinha a me perdoar. Voltara a mostrar-se muito meiga. Mas, sob a sua fisionomia
triste e abatida, pareceu-me que se formara um segredo. Sabia muito bem que ela
não podia abandonar-me sem aviso; além do mais, não podia sequer desejá-lo (dentro
de oito dias deveria experimentar os novos vestidos do Fortuny), nem fazê-lo com
decência” (III, P 313 | III, P 900).
O mesmo cenário acontece com a morte. Quase no final de La Prisonnière, há
alguns momentos premonitórios da morte de Albertine: “em lugar de me conceder
um beijo, ela se afastou com o tipo de obstinação instintiva e nefasta dos animais que

82
É interessante que o narrador, tendo se colocado em Le Côté de Guermantes como observador
privilegiado da agonia da avó, diga agora não ter testemunhado uma tal cena: “[a avó] punha-se,
pelo que me disseram, a tremer por um instante como uma folha” (III, P 317 | III, P 904).

134
pressentem a morte” (III, P 313 | III, P 900); “Sei que na ocasião pronunciei a palavra
“morte”, como se Albertine fosse morrer” (III, P 315 | III P 902).
Antes, a visão pictórica de Albertine dormida, comparada a uma pessoa morta,
chama atenção: “Foi de fato uma morta que eu vi quando entrei em seguido no seu
quarto. Adormecera logo que se deitara; e os lençóis, enrolados como um sudário em
torno a seu corpo, haviam assumido, com suas belas dobras, uma rigidez de pedra”
(III, P 283 | III, P 862). Ainda mais explícito é quando o narrador diz: “‘– Peço-lhe,
minha querida, nada de cabriolas como fez outro dia. Pense Albertine, se lhe ocorre
um acidente! – Mas é claro que não lhe desejava nenhum mal.” (III, P 95 | III, P 627).
Mais tarde, ele se arrependerá por ter previsto o acidente e não ter tentado impedi-
lo.
O presságio, por natureza, paira como assombração. É por não haver certeza
que, mesmo insistente, o presságio não diminui a dor da ausência de Albertine, nem
o impacto assombroso com que Marcel recebe a notícia.

2. Eventos repentinos ou inesperados

Que um evento seja qualificado como possível ou até previsível não quer dizer
que não soframos aquando de sua realização, nem que nos sintamos preparados para
sua execução. Já havíamos mencionado brevemente esse tópico ao tratar da morte
da avó (ver pp. 36-7), mas convém aprofundá-lo. Vamos nos apoiar em alguns
preceitos da psicologia clínica para analisar como eles são afirmados ou rechaçados
no romance.
A psicologia clínica mostra diversos fatores que acentuam ou não a dor do
enlutado e tornam mais ou menos difícil para ele lidar com a perda. Um deles é a
questão temporal. A reação do enlutado perante a morte tem muito que ver com a
intempestividade ou não da perda, por conta das “oportunidades de preparação
antecipada que a precedem”. (PARKES & PRIGERSON, 2010: 148).
Na pessoa idosa, esse aspecto é mais evidente. O falecimento de uma pessoa
com idade avançada é mais facilmente concebível que o de uma pessoa jovem,
simplesmente porque é tido como mais esperado, se analisado o ciclo biológico da

135
vida83. O enlutado tende a se sentir menos surpreendido, mesmo se a morte da
pessoa idosa for repentina: “A morte de uma esposa idosa pode ser repentina, mas
não é, no final das contas, totalmente inesperada”84 (idem: 153).
Esse raciocínio psicológico não é aceito em sua integralidade e relação de
necessidade na Recherche. Por um lado, sim, o tipo de separação (fuga) e morte
(acidental) de Albertine, enquanto eventos repentinos, intensificam a dor do
narrador. Por outro lado, não são, como vimos, propriamente inesperados, motivo
que deveria ter de imediato amenizado o impacto da notícia dolorosa, o que não se
verifica.
O caso da avó é ainda mais notório. A velhice de Bathilde deveria, segundo
esse ponto de vista, ter amortizado o impacto de sua morte. A ela associa-se a
doença, que torna a morte ainda mais provável: “A doença, a velha serva da morte”,
diz Arkël no quarto ato de Pelléas et Mélisande (4.2). Não é o que acontece, e a reação
da mãe de Marcel mostra bem a que grau podemos sofrer com a morte de alguém
que amamos. Poderíamos contra-argumentar dizendo que a mãe não sabia do
alcance da doença de Bathilde, e por isso não pôde se beneficiar de um conhecimento
que a teria “preparado” e necessariamente amenizado sua dor. Mas não sabemos ao
certo, porque a narrativa é em primeira pessoa, quanto a mãe estava informada em
relação à saúde de Bathilde, e se, caso estivesse, teria aceitado mais rápido a morte.
Estando ou não, o fato é que a morte de sua mãe é assoladora para ela.
Françoise, em contrapartida, parece ter sido a primeira a saber da crise que a
senhora tivera em Balbec e de sua saúde precária. A julgar pelo que nos conta o
narrador, a morte de Bathilde não lhe causou impacto para além do desespero um
pouco teatralizado durante os dias de agonia. Mas seria arbitrário imputar essa
resposta unicamente ao conhecimento prévio da condição da enferma. Diante da
morte, Françoise comportou-se como a pessoa que era, segundo o narrador: serviçal,

83
Como exemplo, a alta mortalidade infantil até o século XIX nas Américas e na Europa, apesar de
contradizer o ciclo biológico da vida, não chocava como hoje, porque era esperada, dado o
contexto de epidemias, higiene precária e fome.
84
Os fatores se entrecruzam. Que uma pessoa idosa e doente venha a falecer tende a chocar menos
do que se fosse uma pessoa jovem e sã, novamente porque a situação é avaliada como sendo mais
esperada ou provável. Em contrapartida, mortes inesperadas tendem a ser mais devastadoras para
o enlutado, e aqui se enquadram os acidentes.

136
mas também cruel e afeita às demonstrações escandalosas em relação ao sofrimento
alheio.
Quanto a Marcel, conhecer o diagnóstico médico da doença da avó e o
prognóstico fatal que o doutor E*** lhe anunciou não foi causa de alívio da sua dor
nem retirou a percepção de sua morte como sendo repentina. Os motivos para
Marcel não ter sofrido intensamente até um ano depois da morte da avó tiveram a
ver, como vimos na Parte I, com os mecanismos de autoproteção dele e, em última
instância, com a pessoa que ele era.
Aquilo que é esperado em geral, pela probabilidade estatística, não
necessariamente equivale àquilo que é aceitável, pelo indivíduo, emocionalmente. Tal
constatação, analisada de modo mais global, evidentemente nos impede ler a
Recherche quer como um tratado de psicologia quer como propondo
especificamente uma teoria do luto. Não podemos controlar a reação que teremos
perante a morte de alguém, nem garantir nossa recuperação imediata. As reações à
morte são idiossincráticas. Alguns fatores podem contribuir para o modo como
respondemos à morte de uma pessoa, como a doença ou o acidente que a
acometeram, mas nunca em uma relação de necessidade.
Daí a dificudade de uma adesão unilateral às leis psicológicas que o narrador
incansavelmente procura e declara. Onde ele mostra movimentos padronizados à
maneira das leis naturais, podemos igualmente testemunhar personagens, em suas
idiossincrasias, vivendo de diferentes maneiras o luto. A dor de Marcel tem uma
tendência à amenização com o passar do tempo; a da mãe, uma tendência à
cristalização e repetição. Essas maneiras diferentes têm a ver com a importância, para
nós, da pessoa que morreu, mas também têm a ver com quem somos.

3. A proeminência das impressões

Saber que alguém vai morrer (ou ir embora) enseja reações emocionais
diferentes de saber que alguém que ia morrer (ou ir embora) finalmente morreu (ou
foi embora): “Se a tivesse previsto, poderia ter pensado nela sem cessar durante
anos, sem que, reunidos, todos esses pensamentos tivessem tido a menor relação,

137
não só de intensidade, mas de semelhança, com o inimaginável inferno” (III, F 335 |
IV, AD 08) da partida efetiva de Albertine. Ao se realizar, ela passa a ser não só um
assunto do intelecto, mas uma impressão.
A diferença entre conhecimento por contato e por descrição (knowledge by
acquaintance e knowledge by description, respectivamente), proposta por Bertrand
Russell, é bastante elucidativa. No primeiro tipo, “digo que estou em contato com
um objeto quando eu tenho uma relação cognitiva direta com ele, isto é, quando
estou diretamente consciente do objeto em si” (1917: 209), “sem a intermediação de
qualquer processo de inferência ou conhecimento de verdades” (2001 [1912]: 25). É
como quando dizemos que conhecemos algo ou alguém ‘de primeira mão’.
O segundo tipo de conhecimento é obtido por inferências, o que permite
ultrapassar nossas experiências privadas e imediatas. Ao dizer que conhecemos Júlio
César, no famoso exemplo de Russell, não queremos dizer que o conhecemos
pessoalmente, mas que conhecemos uma descrição sobre ele.
O conhecimento por descrição permite conhecer a História e o passado, mas
também projetar um futuro hipotético, como o faz Marcel acerca do que seria a perda
de Albertine, sem nunca tê-la perdido. É uma projeção limitada, pois intelectual, e em
nada parecida às consequências que a partida definitiva de Albertine engendraria: “a
ideia da partida de Albertine” era, afinal, uma ideia e, como tal, diferente da “coisa
original, atroz, desconhecida”, do “mal inteiramente novo” que resultou ser a
experiência da morte dela (III, F 334-5 | IV, AD 08).
Adiante, ele diz: “se houvesse previsto aquela partida, talvez fosse incapaz de
me representá-la em seu horror” (III, F 335 | IV, AD 08). Apesar de também ter havido
um presságio no que se refere à morte (e, como discutimos, à fuga), Marcel as
vivencia, morte e fuga, enquanto rupturas repentinas e insuportáveis. Como
empirista, o narrador declara: “Pois a realidade original de um perigo só é percebida
nesta coisa nova, irredutível ao que já sabíamos, chamada impressão” (III, TR 639 | IV,
TR 381).
Enquanto ideia e possibilidade, a perda existe de modo abstrato e, a rigor,
imaginário; por isso, pode inclusive ser mais facilmente negada. Vimos um
mecanismo semelhante de negação aquando da morte da avó: mesmo a morte sendo
provável, Marcel a nega e quer estar impermeável para essa revelação. Em relação à

138
avó, de modo radical, sua reação posterga a tomada de consciência da situação e
escapa às suas piores mazelas mesmo quando a morte chega, vindo a sofrer muito
tempo depois.
Se com a avó ocorre uma negação sistemática, com Albertine é diferente.
Marcel não nega sua fuga, mas seu caráter definitivo. Nega, sabendo que se
autoengana, do mesmo modo paradoxal que Landy verificou nos ciúmes. Quando ela
morre, atua como antes, ciumento, levando a cabo suas inquisições. Como vimos, é
um modo de não enterrar Albertine.

4. Hábito e poder

Há um outro lado no que toca à caracterização da fuga e morte repentinas de


Albertine e à dificuldade de Marcel em aceitar sua ausência, vivida como algo
insuportável, e ele tem a ver com o hábito tal como Proust o entende. Se, em seu
reinado, o Hábito (assim, com letra maiúscula, como escreve o narrador) aniquila a
vontade e a novidade, ao retirar-se é ainda pior: inflige “tormentos mais terríveis que
quaisquer outros” (III, F 332 | IV, AD 04). Quando Albertine vai embora, ela provoca a
ruptura de um hábito, cuja retirada é “tão cruel como a morte” (III, F 332 | IV, AD 04).
Marcel padece por Albertine deixar de estar todos os dias ao seu lado.
O hábito se liga ao controle e ao exercício do poder. A partida de Albertine foi
iniciativa dela, e não de Marcel. Esta é uma questão crucial, e das mais importantes
para o impacto do desaparecimento da prisioneira. Marcel primeiramente sofre
porque ela não quer voltar; depois, porque ela não pode. No primeiro caso, sempre
paira a possibilidade, mesmo remota, do retorno, ainda que seja uma decisão de
outrem. Aliás, Marcel custa a admitir que a decisão é de Albertine, daí tentar
incessantemente manipulá-la e influenciá-la, seja pelas cartas e ofertas materiais, seja
ao enviar Saint-Loup ao encalço dela. A morte, ao contrário, impõe uma realidade
definitiva totalmente fora do controle de qualquer agente.
O que agrava desmesuradamente o sofrimento de Marcel, no modo como
rompe com Albertine, é porque ele tem, pela primeira vez, seu poder de fato
diminuído perante ela: “Só pensara, como uma alma equilibrada pela presença de

139
Albertine, numa partida organizada por mim numa data incerta, quer dizer, situada
num tempo inexistente.” (III, F 334 | IV, AD 08)
Teríamos, portanto, de refazer uma afirmação: Marcel padece também por
Albertine deixar de estar todos os dias ao seu lado, disponível e sob seu jugo. A
partida de Albertine choca tanto porque, ao romper um hábito de modo abrupto (o
hábito da convivência e de exercer poder sobre Albertine), escapa ao controle de
Marcel e questiona seu poder.
A ser assim, a morte de Albertine não é tão trágica quanto sua fuga. Esta
interpretação é respaldada inclusive pelo título do volume, La Fugitive. Sabemos que
é assim que Proust designa este volume na correspondência com o editor Gaston
Gallimard a partir de 1922. Após a publicação de um livro homônimo por outro autor,
ele desiste da ideia85. Anne Chevalier justifica a opção por Albertine disparue pelo fato
de ser esse o título indicado à mão em um datilograma posterior86.
Mas a discussão sobre o título não é a principal. Se analisarmos o texto, o
narrador passa quase sessenta páginas a lamentar a fuga da amada e a conjecturar
desesperadamente formas de recuperá-la, antes de saber da sua morte. Lá já estavam
todas as marcas de um luto agudo que começa com a ruptura do hábito e do exercício
do poder de Marcel. Isso equivaleria dizer que o que ele gosta em Albertine não é ela,
mas o hábito de viver com ela? Sim, mas não somente. O hábito não exclui
necessariamente o amor; o amor pode ser também apreciarmos o hábito de conviver
com alguém.
Do fato de Marcel ter se habituado a Albertine não advém a conclusão de que,
por isso, não gostasse da pessoa que ela era. Esta, contudo, é uma lei que o narrador
pretende encampar do primeiro ao último volume do romance, da gênese do amor
no modelo de Swann e Odette até as reflexões finais em Le Temps retrouvé. Mas as
razões de seu amor não são totalmente explicáveis, como não é o luto.

85
“[...] pensei em chamar a primeira parte de La Prisonnière; a segunda, La Fugitive. Porém, a sra. de
Brimont acaba de traduzir um livro de Tagore, intitulado La Fugitive. Sendo assim, nada de Fugitive,
o que provocaria mal-entendidos.” (Correspondance M. Proust – G. Gallimard, 1989: 544-545).
86
Para a história detalhada sobre os títulos, ver CHEVALIER, “Notice” de Albertine disparue (1989:
1034-1038).

140
Em Albertine disparue, ele resume seus sentimentos ao hábito, com um
sentido claramente negativo. Uma indicação desse tipo já vinha em La Prisonnière: “E,
no amor, é mais fácil renunciar a um sentimento do que perder um hábito.” (III, P 279
| III, P 857-8). No último volume, também o faz, em guisa de conclusão. Ao fazê-lo,
convoca certas leis psicológicas com as quais explica sua paixão. O apelo sistemático
a tais leis precisa ser lido criticamente: elas podem ser justamente uma forma de
controle com vistas a lhe assegurar conforto. Havendo leis, elas lhe permitiriam
inclusive prever um desfecho favorável para si. Afinal, ninguém morre pela ruptura
de um hábito: sempre pode adquirir outro. Deixamos o tabaco pelo álcool, a
discoteca noturna pela caminhada de manhã, mudamos a marca da pasta de dente.
É, aliás, o que sugere Marcel no final de Albertine disparue, quando afirma ter
encontrado uma nova prisioneira.
Igualmente importante, quando Marcel resume seus sentimentos por
Albertine ao hábito, ele também diminui o valor da amada e, por consequência, do
próprio fracasso: sente-se menos impotente diante de Albertine e da decisão (dela)
de não voltar. Curiosamente, a amenização da dor, como veremos ao longo desta
tese, encontrará um colaborador justamente no hábito: habituamo-nos à ausência de
uma pessoa, o que não quer necessariamente dizer que deixamos de gostar dela.

141
IV.
Antielegia e virtudes

Neste capítulo, vamos aprofundar o tipo de atitude de Marcel ao lamentar


Albertine. Nosso objetivo é salientar a irredutível ambiguidade do lamento – uma
ambiguidade que sempre esteve presente, ademais, na relação amorosa entre
Marcel e Albertine87.
Entre as tentativas de suplantar Albertine ou de trazê-la de volta, a narrativa
está permeada por um lamento profuso e repetitivo, em nada parecido ao silêncio do
narrador a seguir à morte da avó. Em contraste com o que se passa em Le Côté de
Guermantes, a perda de Albertine é desde o primeiro instante verbalizada e reiterada.
O narrador, com a loquacidade do lamento, não mostra desconfiança da
linguagem e de seus limites; ao contrário, ele a explora. Diferencia-se, aliás, de uma
certa ideia bastante difundida na tradição artística e crítica segundo a qual a
linguagem é precária para representar o sofrimento extremo. O luto, em última
instância, seria inenarrável88.
A noção de um luto irrepresentável encontra eco nos primeiros versos da
“Elegia por ocasião da morte de dona Bulstrode” (1609), do inglês John Donne:
“Língua, és muito magra e muito fraca / para nos confortar; dor funda não pode
falar”89.

87
Podemos ir mais longe e afirmar que na Recherche todas as relações pessoais intensas são
marcadas pela ambiguidade. Este, aliás, é também um ponto freudiano: “somos [...] divididos (ou
seja, ambivalentes) em relação àqueles que amamos.” (FREUD, 1916, SE XIV: 299)
88
Esta tese ganhou um impulso sem precedentes com a chamada “primeira onda” da teoria do
trauma, desenvolvida a partir dos anos 1990 por nomes como HARTMAN (1995), CARUTH (1996),
FELMAN & LAUB (1992, em co-autoria). Em linhas gerais, o trauma (o caso mais notório foi a Shoah)
estabeleceria uma cisão entre o evento e a linguagem, expondo os limites do dispositivo linguístico
para representar a experiência extrema. Para uma crítica sobre essa posição, ver SÁ AVELAR (2012)
e MANDEL (2001).
89
“Language, thou art too narrow, and too weak / To ease us now; great sorrow cannot speak”
(“Elegy upon the Death of Mistress Bulstrode”, The complete poems, ed. Robin Robbins, 2008:
755). Como indica o editor em nota, o verso “great sorrow cannot speak” remete a um verso de
Sêneca bastante utilizado na época: Spes nulla tantum posse leniri malum (Phaedra, 3, v.360). Em
português, “Esperança nula de poder abrandar tanto mal” (trad. Camila Machado Reis).

142
Quase dois mil anos antes, o luto de Agamenon90 figura como um caso famoso
na história da arte. O pintor Timantes (séc. IV a.C.), a quem se lhe atribui a obra
pictórica sobre os prelúdios do sacrifício de Ifigênia pelo pai, teria concebido quatro
personagens ao redor da moça: Calchas, Ulisses, Menelau e Agamenon. Cícero os
descreve como tendo uma gradação crescente de tristeza. Quanto ao pai, ele está
com a cabeça coberta por um véu “porque ele [o pintor] não poderia retratar o
sofrimento extremo com seu pincel” (Orator XXII, 74)91 92 93
E, apesar disso, os limites da linguagem que tantos autores assinalam não os
impediram de continuar escrevendo e pintando. Em Albertine disparue, o narrador
passa ao largo de tais limites, no sentido em que eles, se existem, não são sua
preocupação. Ao contrário, o luto impulsiona e alimenta o discurso.
Para Ingrid Wassenaar, a maior prova dos limites da linguagem do luto é a
inabilidade generalizada das pessoas e dos poetas de não fazer nada além do que
repetir sem rumo uma resposta inadequada. O narrador de Albertine disparue não
estaria imune a essa falha. Apesar do mérito de Wassenaar, ao fazer uma leitura em
close reading deste volume da Recherche ainda nos anos 1990, a sua conclusão nos
parece equivocada. Ela critica, com grande frustração, a simplicidade do texto,
distante do que considera como a beleza das frases complexas e sonoras e das
digressões anedóticas, típicas da escrita de Proust: “[...] um texto em outras alturas
extremamente hábil em amplificar a plenitude [...]. Aqui, o que devemos aceitar é o
léxico incessante, repetitivo e vacilante de nulidade e desespero” (1997: 202-3).
Adiante, ela volta a se queixar: “O jogo na linguagem se foi” (idem, 229).

90
Diversas versões explicam o infortúnio envolvendo a filha de Agamenon, que é obrigado a sacrificar
Ifigênia para amansar a ira da deusa Ártemis e permitir o avanço das tropas para Troia, após o rapto
de Helena. O motivo da ira de Ártemis divide helenistas. Entre os autores trágicos que trataram do
tema, estão Eurípedes (Ifigênia em Áulis e Ifigênia em Táurida), Ésquilo (Agamenon, primeira obra
da trilogia Oresteia) e Apolodoro (Epítome).
91
No original: ‘quoniam summum illum luctum penicillo non posset imitari’ (Cicero, Orator XXII 74).
Ver as excelentes notas da edição crítica estabelecida por John Edwin Sandys (1885).
92
A obra à qual Cícero se refere está há muito tempo desaparecida; um fresco pompeiano que data
de meados do século I, conhecido como O sacrifício de Ifigênia (62 d.C), contém os elementos que
Cícero descreve e atualmente se encontra no Museu Nacional de Nápoles.
93
Além de Cícero, diversos outros intelectuais tentaram explicar a escolha de cobrir o rosto do
personagem. Entre eles, Quintiliano, Lessing e Winckelmann. Para uma análise recente sobre a
obra, ver PLATT (2014).

143
Se insistimos na posição a respeito dos limites da linguagem e da
irrepresentabilidade de sentimentos extremos – como pode ser aquele de alguém
diante da morte de uma pessoa amada – é porque ela não dá conta dos problemas
de Albertine disparue, por ser demasiado generalista e contraditória. Levando a sério
a deficiência da linguagem, não caberia criticar o narrador, como faz Wassenaar, pois
a incapacidade de fugir à repetição é, segundo ela, generalizada, comum à espécie.
Consideramos que o luto não é somente representável, mas possui
características identificáveis exploradas pela tradição literária. A repetição presente
em Albertine disparue, por exemplo, é uma das expressões linguísticas da dor da
perda e um traço relevante do lamento, frequente em discursos de luto94. O lamento,
do ponto de vista retórico, possui uma característica truncada e recursiva (AUSTIN,
1998: 282), às vezes, inclusive, se parecendo a uma reza.
A memória de Albertine é convocada obsessivamente onde quer que Marcel
esteja. São os “milhares de laços” de que fala Freud, que vinculam a pessoa e o
objeto. A ruptura com o objeto tem como efeito primeiro uma memória hipertrofiada
no enlutado (FREUD, LM: 139).
Aquilo que Wassenaar lê como “maçante e lento” (1997: 230) se justifica,
portanto, pelo caráter repetitivo e centrípeto próprio do luto. A mente e o corpo de
Marcel estão concentrados na perda de Albertine e na memória dolorosa e circular
que essa perda suscita. Recordemos do canto de Orfeu, que deixa de ser música para
se tornar eco, som fragmentário e repetitivo.
Para Wassenaar, parece o contrário. Ela duvida de que a dor por Albertine
possa ser verificada ou mesmo narrada: “Se a dor é inverificável, também é indizível.”
(205). Para ela, não é possível apontar que Marcel sofre, e onde: “a dor emocional
parece não ocorrer de forma alguma” (204); “A dor não pode ser vista em nenhum
lugar neste texto sobre o luto” (229-230). Como exemplo, ela menciona a reação de
Marcel assim que toma conhecimento da morte, interpretando seu gesto como uma
“reação puramente física” (204). Vejamos esta passagem do romance:

94
Nesse sentido, o texto de Proust se insere na tradição literária e utiliza uma linguagem de discursos
tipicamente elegíacos; por outro lado, veremos que traz questões muito mais ousadas, como a
minoração e ‘profanação’ do morto, bem como a visão utilitarista que visa substituir o objeto
perdido.

144
Instintivamente, passei a mão pelo pescoço e pelos lábios, que se
sentiam beijados por ela desde que partira, e que nunca mais o
seriam; passei a mão por eles, como mamãe me havia acariciado
quando da morte de minha avó [...] (III, F 376 | IV, AD 59).

Ora, o gesto corporal é justamente o mais significativo do excerto. A


passagem, contraditoriamente, ao mesmo tempo em que demarca um lugar físico
para a dor sentimental – portanto, colocando-a o mais próxima e imediata possível –
, também insere uma posição de distância, afinal, Marcel cria uma terceira instância
imaginária entre Marcel e a pessoa perdida – a mãe.
Ele, em contato físico com o próprio corpo, mostra um gesto libidinoso e
maternal95, já buscando o que nunca mais será encontrado. Traz à tona uma morte
anterior (a da avó) e a tentativa de um consolo que ele não é capaz de se dar, e que
foi tarefa da sua mãe oferecer96. Onde encontrar mais prova da dor? Estaria o leitor à
espera de soluços, alaridos, gritos de aflição e sons ininteligíveis, como o góos97,
enquanto expressões linguísticas do sofrimento autêntico?
Wassenaar sugere qual seria a resposta adequada: a evocação lírica da perda
de Albertine, com a “grande chance” (Op. cit.: 208) de finalmente usar um evento
desse porte para fins literários, considerando que o protagonista é aquele em busca
de sua vocação98. Em vez disso, de usar a oportunidade para seduzir o leitor com uma
prosa lírica, Wassenaar vê Marcel se debater entre o ciúme póstumo por Albertine e
o desejo de substituí-la.
O problema, portanto, parece ser não propriamente de fiabilidade da
linguagem, que como tal abrangeria toda a humanidade, mas de fiabilidade do
narrador. Como confiar em um narrador ciumento e tão pouco virtuoso? A Recherche
ainda traz um problema adicional, mas não menos importante, que é a dificuldade de

95
A própria autora oferece essa leitura: “Ma main se transforma em Maman” (Op. cit.: 205).
96
Sobre a mesma cena, Anna Elsner vê a evocação do corpo de uma morta cuja morte, ao contrário
da avó, não deixou cadáver: “uma tentativa de tocar as fronteiras do próprio corpo e, assim, buscar
os restos corporais de Albertine e uma prova física da morte dela.” (2017: 49)
97
É como os gregos chamavam o lamento que manifestava o abalo de alguém diante da morte, e
originalmente se referia ao choro estridente de uma parente pelo morto (cf. ALEXIOU, 1974).
98
Esse, como veremos no último capítulo desta tese, é um dilema ético da maior importância, e o
narrador não passa ao largo dele.

145
julgar as intenções do protagonista em uma narração em primeira pessoa. Não se
pode diferenciar com rigor o que é uma resposta imediata do protagonista no
momento dos acontecimentos da apreciação retrospectiva do narrador.
O que finalmente Wassenaar parece estar à espera é da expressão literária de
um sentimento virtuoso e sem ambiguidades; o que Albertine disparue nos apresenta
é o tormento de um protagonista cujo luto evoca sentimentos e estados mentais tão
díspares e complexos como as relações humanas: ciúme, solidão, desespero. Não por
acaso, o amor também é na Recherche um afeto que convoca outros: ciúmes, raiva,
tédio, angústia etc.
Na falta de qualquer critério de fiabilidade para a presença e a verdade da dor,
a posição de Wassenaar é por afirmar (resguardada em uma retórica com advérbio
de dúvida e afirmações escondidas em comparações) que essa espécie de
parafernália linguística serve para mascarar que Marcel nunca amou Albertine:
“talvez, como inúmeras digressões, este ludo soa como um modo de evitar a verdade,
uma justificação por meio da ofuscação por nunca ter amado de todo [Albertine]”
(1997: 230, itálico no original).
Nossa posição é diferente. Como procuraremos mostrar, há uma ambiguidade
fundamental na relação entre Marcel e Albertine viva, e também quando ela
desaparece, e essa ambiguidade é própria às relações afetivas.

Louvar o morto

A fim de melhor avaliar a ambiguidade e o papel da dor, será interessante


comparar Albertine disparue com outro discurso tradicionalmente empregado para
tratar do luto, a elegia. Que a obra de Proust não é estritamente uma elegia, isso é
evidente, a começar pelo fato de ser um romance, e não um poema. Mas a
comparação da Recherche (ou de certas passagens) à elegia é pertinente e já foi
realizada por alguns exegetas.
Walter Benjamin emprega o termo para amparar sua interpretação da
Recherche como obra nostálgica. É isso o que ele quer dizer quando afirma que o
romance é “uma elegia da felicidade” (1994 [1929]: 39). Na mesma direção de

146
nostalgia, Jacques Chessex comenta o “espírito elegíaco” de um Proust em busca da
unidade perdida (1991: 141). De passagem, Malcolm Bowie fala da “elegia de Proust”
(1998/2016: s/p). A elegia é tomada em um sentido lato e pouco categórico, mas
significativo.
Em contraste, consideramos que a narração do luto de Albertine tem um
profundo sentido antielegíaco que, à primeira vista, pode escapar à atenção
concentrada no lamento sombrio do livro, no evento da morte ou, como os autores
citados defenderam, na nostalgia.
Para uma melhor avaliação, cabe refletir sobre a acepção de que Albertine
disparue possa ser elegíaca em sentidos bastante precisos associados a esse gênero
literário: porque lamenta o morto, louvando-o e porque encontraria um consolo para
a perda da pessoa amada.

Em seus primórdios (séc. VII-V a.C.), a elegia grega arcaica designava não um
tipo de poema, mas um tipo de métrica (hexâmetro seguido de pentâmetro), com
uma ampla variedade temática, não exclusivamente o luto. O lamento, contudo, já
figurava como uma antiga função, quando a elegia ainda era acompanhada pela
flauta (ALEXIOU, 1974: 104).
A definição que gradualmente tomou lugar tem uma complexa (e
controversa) rede de motivações na história da literatura, e pode ser tributária de
outras práticas literárias e formas líricas da Antiguidade Clássica (cf. BARTOL, 2011;
FARRELL, 2003). Ovídio, com a elegia para o finado amigo Tibulo (Amores, III 9), ele
também um elegista, ajudaria o humor nostálgico-melancólico a se tornar cada vez
mais associado ao gênero (HARRISON, 2002) e, durante séculos, foi se acentuando a
visão da elegia como lamento sobre os mortos.
Somente no século XVI, com o Renascimento inglês e a tradição das elegias
pastorais, o termo se impôs com maior força para designar um poema de lamento ou
luto por uma pessoa, com diversas convenções formais99. Mesmo assim, o escopo

99
Para um panorama histórico introdutório da elegia dos poetas arcaicos até nossos dias, ver
KENNEDY (2007) e CHILDS & FOWLER (2006 [1973]).

147
temático anterior, mais alargado, continuou a ser praticado (cf. CUDDON, 1991;
KENNEDY, 2007).
Tipicamente, na elegia, tomada como gênero lírico moderno de tributo a
alguém que morreu, “o poeta, uma pessoa real, expressa pesar pela morte ou partida
de um indivíduo real e histórico” (WILSON, 2013: 80)100.
Aqui, o que nos interessa é menos uma discussão sobre gênero do que sobre
certos elementos do subgênero das elegias pastorais, tal como se convenciou estudá-
lo. Eles nos permitem melhor entender Albertine disparue. Entre as várias convenções
dessa prática literária, uma amplamente reconhecida é o desenvolvimento do texto
em dois movimentos: do lamento ao louvor e deste ao consolo.101
Esses gestos são amplamente descritos na fortuna crítica da elegia (cf. SACKS,
1981 e 1985; PIGMAN, 1985; CUDDON, 1991; RIQUELME, 1999; DAVIS, 2008). Alguns
críticos divergem sobre a presença necessária de ambos os movimentos e a
importância dada a cada um102. Com essa reserva em mente, vale averiguar se e como
o modelo do duplo gesto (louvor e consolo) apareceria em Proust.

Tomemos primeiramente o movimento do lamento ao louvor. O consolo será


objeto de uma avaliação no último capítulo. O louvor era bem-vindo na Renascença
tanto porque intensificava o lamento quanto porque o justificava103. Essa ideia
remonta ao retórico grego Menandro (Menandros Rhetor), muito influente na
Renascença, quando fala dos tipos de oração fúnebre, em seu segundo tratado. O
elogio não seria um fim em si mesmo, mas uma forma de tornar o lamento
convincente, ao mostrar por que deveríamos estar tristes com a morte de uma

100
Muitas alterações foram tomando lugar desde então. Por exemplo, a expansão do homenageado
para conceitos, animais ou coisas, e não pessoas, ou para pessoas não reais ou anônimas, até a
chegada a um conceito bastante amplo de elegia enquanto lírica ou texto sobre a perda. Este
último sentido é notado no Oxford Dictionary of Literary Terms (2008).
101
Como mostra BARTOL (Op. cit.), o consolo não é invenção moderna e já estava presente em
trabalhos de poetas arcaicos, como Mimnermo e Antímaco.
102
HARDISON (1962) advoga pela proeminência do louvor ou reverência sobre o consolo como função
da elegia; PIGMAN, pelo consolo. Para mais detalhes, ver deste último autor especialmente o
capítulo “Praise and Mourning” (1985: 40-51).
103
A explicação da função do elogio e do louvor é variada, mas podemos resumi-las assim. Para A. L.
Bennett, por exemplo, o elogio é uma forma de conforto para o enlutado, uma vez que saberíamos
que o morto seria imortalizado, com suas virtudes, no poema. (BENNETT, 1954: 109)

148
pessoa específica: “a peça [monódia] não é apenas um encomium104, mas o encomium
é a oportunidade para o lamento.” (Tratado II, XVI: 203)
Por outro lado, também funcionaria para intensificar o sofrimento: “Deixe a
encomia ser a sua matéria-prima para a lamentação”, ele diz sobre os epitáfios
(Tratado II, XI: 175). Isto é, o elogio está em função do lamento. O elogio deveria levar
em conta convenções retóricas e abarcar tudo quanto pudesse ser elogiado: feitos
do morto, família, nascimento, educação, atributos físicos e mentais etc.
A primeira grande distância de Albertine disparue deste modelo é a
ambiguidade do louvor: contrastam-se passagens de elogio dúbio a Albertine com
outras em que ela é minorada. O elogio nunca é claro ou direto. Sabemos, por
exemplo, que Marcel admira o fato de Albertine ter se cultivado na arte, mas isso
muito se deve à convivência com ele (embora ela tenha aprendido a apreciar a pintura
com Elstir). Marcel fala dela nesses termos: “Pequena estatueta no passeio em
direção à ilha, tranquilo rosto gordinho e granuloso junto à pianola, ela era assim,
alternadamente pluviosa e rápida, provocante e diáfana, imóvel e risonha, anjo da
música.” (III, F 385 | IV, AD 70)
Por outra parte, tem considerações que explicitamente a desvalorizam e
objetificam. Ele compara o prazer de vê-la ao das crianças quando dizem: “Minha
querida caminha, meu querido travesseirinho, meus queridos espinheirinhos.” (III, F
391 | IV, AD 78)
Mais adiante, ele afirma:

Ora, quanto a Albertine, já não alimentava dúvida alguma; estava


seguro de que poderia não ser ela que eu tivesse amado, poderia
ser outra. Para tanto, bastaria que a sra. de Stermaria, na noite
em que deveria jantar comigo na ilha do Bois, não tivesse
desmarcado o encontro. (III, F 395 | IV, AD 83)

[...] essa mulher única, bem sabemos que outra a encarnaria para
nós, se tivéssemos estado numa cidade diversa daquela em que

104
Do grego enkṓmion, do latim encomium (elogio); plural -mia. Originalmente tratava-se de um coral
cantado em celebração de um atleta; passou posteriormente a definir a eulogia, que em prosa ou
verso glorifica pessoas, ideias ou acontecimentos. Muitas elegias são também parcialmente
encomiásticas. (Cf. BALDICK, 2008 e CUDDON, 1991)

149
a encontramos, se fôssemos passear em outros bairros, se
frequentássemos outro salão. (III, F 396 | IV, AD 85)

Albertine é esvaziada indiretamente. Não fosse uma pequena circunstância do


destino, Marcel bem poderia ter se apaixonado por outra mulher. Assim, retira-se
valor à pessoa por quem, de fato, Marcel se apaixonou: ela não possuiria nada que
outra não tivesse. A necessidade do amor do protagonista por Albertine é removida
e, junto com ela, o fato de que Albertine merecesse seu amor. São formulações que
não guardam qualquer elogio ou louvor.
No final das contas, a julgar por citações desse tipo, o valor e a importância de
Albertine perante Marcel são simplesmente arbitrários. Devem-se mais ao hábito de
projetar sobre ela, como uma moldura, um “sentimento que ela não inspirara”:
“fomos nós mesmos que, dando-lhe seus traços, fornecemos toda a matéria sólida
da pessoa amada” (III, F 396 | IV, AD 86).
A efetividade da elegia, tal e como a tomamos, dependia de retratar o morto
como um modelo de virtude cívica e individual, “tipos ideais em vez de indivíduos
pecadores” (LEWALSKI, 1973: 38). O poeta deveria usar estratégias retóricas para
persuadir os leitores a sofrerem por alguém que foi virtuoso e, depois, a encontrarem
consolo. Em muitos casos, o poeta era também um enlutado105.

a elegia baseava-se em expectativas genéricas para retratar o


morto como modelo de virtude cívica e pessoal. Este ato de
persuasão se assentava no consenso social acerca da natureza da
virtude. Também era possível, naturalmente, ser virtuoso no
sofrimento, e modelos de luto apropriados impunham restrições
retóricas não apenas para a quem consolava, mas também ao
enlutado. (BRADY, 2006: 31)

Segundo Andrea Brady, o louvor ao morto também possuía uma utilidade


moral relevante. Ao persuadir o leitor sobre a virtude do morto, pretendia-se
igualmente encorajar a comunidade a imitá-la e reforçar valores partilhados (idem:
13). Este ponto é comumente evocado para estabelecer a ligação entre o que viria a

105
Segundo PIGMAN, a maior parte dos elegistas podia não estar sofrendo pessoalmente, mas se
identificava com o enlutado. Em muitos casos, os poetas conheciam pouco o morto ou apenas pela
sua reputação.

150
ser a elegia do século XVII, ou o que já eram as orações fúnebres (epitathios logos) na
Antiguidade Clássica, e o gênero epidítico da Retórica, conhecido por seu caráter
laudatório 106 107.
Uma das razões para rechaçar o “espírito elegíaco” de Albertine disparue é
que a ideia tradicional de honrar os mortos sem reservas encontra uma forte
resistência. Albertine está longe de ser um modelo de virtude, e as declarações sobre
ela o enfatizam bem. Desde À l’ombre des jeunes filles en fleurs, Marcel
obstinadamente cogita as intenções virtuosas da amada; quando ela foge, vimos que
ele duvida se ela queria somente obter vantagens ou se realmente fugiu para não
mais voltar.
Adiante, investiga postumamente os hábitos sexuais de Albertine: “Eram
infinitas as minhas curiosidades ciumentas sobre o que poderia fazer Albertine.
Subornei grande número de mulheres, que não me contaram nada.” (III, F 402 | IV,
AD 92). Querer provar a inocência ou a culpa de Albertine é consequência da
desconfiança de suas virtudes.
A tendência de não reverenciar os mortos será, segundo Jahan Ramazani
(1993 e 1994), uma característica das chamadas antielegias modernas do século XX,
com obras de Silvia Plath, Anne Sexton e W. B. Yeats. Desses, Ramazani considera
Plath a mais radical, evocando a ira contra um pai chamado de “bárbaro”, “Fascista”
e “bastardo”108.
Em Albertine disparue o quadro não é menos complexo. Não temos aqui uma
profanação abertamente empreendida do morto, como poderia ser o poema de Plath
ou como ocorre na Recherche na cena de Montjouvain, por exemplo. O leitor se

106
Uma opinião forte entre os críticos, impulsionada por HARDISON (1962), é de que a elegia deriva
da retórica epidítica. Nessa visão, o elogio e o louvor têm um papel predominante. BRADY, ao
enfatizar o apelo à adesão do público, analisa os instrumentos retóricos da elegia em relação com
os gêneros epidíticos e também deliberativo. Para uma perspectiva da elegia crítica a HARDISON e
mais centrada nas teorias da psicologia contemporânea do que na Retórica, ver PIGMAN (1985).
107
Dos três gêneros da tipologia estabelecida por Aristóteles na Retórica (deliberativo, judiciário e
epidítico), o último foi historicamente o de mais difícil definição e visto como sem a clara função
pragmática de levar a audiência a uma ação. No século XX, PERELMAN (1958: 62-68) apresentará o
epidítico como um gênero que também visa a adesão do público para os valores imbuídos no texto,
mesmo que não implique a tomada de ação.
108
Do poema “Daddy”, publicado postumamente na coletânea Ariel (1965). Plath não é a primeira a
tratar o morto com raiva ou sentimentos não laudatórios, embora a radicalidade com que o faz é
marcadamente diferente da poesia dos séculos XVI e XVII. Para uma avaliação desta última, ver
especialmente o capítulo “The angry consoler” de PIGMAN (1985: 11-26).

151
lembrará que a namorada de Mlle Vinteuil cospe no retrato do sogro recentemente
falecido, com o consentimento dela. Albertine, ao contrário, é tanto escorraçada
quanto idealizada. Nisso, o movimento pendular se assemelha à dor, da qual o
protagonista quer se livrar, mas a qual também busca.
Um aspecto interessante levantado por G. W. Pigman merece aqui destaque.
Ao falar do papel do louvor na elegia, ele questiona sua função unicamente como
estímulo à emulação virtuosa. Segundo ele, nas elegias, o morto não é somente
louvado: ele é também idealizado. A exageração de suas virtudes, segundo o crítico,
seria um sinal de que o poema na verdade mascara uma ambiguidade: “A idealização
é uma defesa contra os sentimentos de ambivalência que acompanham a maioria das
relações [...] uma tentativa de neutralizar a hostilidade ou o ressentimento em
relação ao falecido que se acumulou ao longo do tempo e é provocado também pela
própria morte” (PIGMAN, 1985: 46).
Reteremos esse comentário para quando tratarmos de modo mais direto da
ambiguidade. Albertine é idealizada, mas não de modo positivo, o que, em convívio
com a lamentação, também sinaliza um tratamento ambíguo do personagem.

Luto virtuoso

Como deixa clara a citação de Andrea Brady, na elegia, a virtude, estabelecida


por um consenso social, se estende à pessoa morta, mas também ao poeta que sofre
e consola, ao enlutado que o escuta e ao tipo de luto que eles deveriam fazer. Brady
está a pensar sobretudo em elegias ou orações fúnebres de caráter público.
O modelo na Recherche é distinto: temos um narrador protagonista que não
intenciona, em primeiro lugar, consolar um público, mas si mesmo. Isso não nos
impede de verificar como a virtude é tratada. Em Albertine disparue, junto com a ideia
de pessoa virtuosa, na qual Marcel não consegue encaixar Albertine, também são
questionadas a virtude do narrador, do protagonista e do luto por ele praticado.
De modo esquemático, podemos destacar dois tipos radicalmente
antagônicos de luto virtuoso. Marcel recusa um para aderir a outro, mas nunca
incondicionalmente.

152
Chorar, mas não muito

O primeiro deles é o estoico. Para o estoicismo de Sêneca, um luto virtuoso é


aquele moderado. Nada de muito choro nem por muito tempo. É preciso, porém, que
justifiquemos essa afirmação. Afinal de contas, para Sêneca, moderar emoções é tão
absurdo como moderar uma doença ou a loucura. As emoções, sendo irracionais, são
incontroláveis e não podem ser moderadas: devem ser erradicadas e substituídas por
respostas racionais.

Consequentemente, esta atenuação dos vícios [...] é não só falsa


como inútil; devemos considerá-la do mesmo modo como se nos
dissessem que se deve ter moderação na loucura ou na doença.
A virtude deve ocupar toda a alma, pois os defeitos da alma não
são suceptíveis de moderação; é mais fácil erradicá-los do que
controlá-los. (Epistulae Morales ad Lucilium, Livro XI, Carta 85.10)

Poderíamos apressadamente ler nessa posição sobre as emoções uma defesa


da eliminação total do luto. Porém, há algumas reservas a levantar. Em primeiro lugar,
não é claro se o luto pode ser classificado enquanto uma emoção propriamente dita.
Quando Sêneca apregoa a eliminação das emoções, ele as pensa de modo bem
delimitado: são paixões cuja causa nós reconhecemos, cujos méritos nós julgamos e
a cujos efeitos nós assentimos. Não são, portanto, instintos ou quaisquer
sentimentos, mas derivam de atos mentais voluntários e envolvem a razão109. As
emoções assim definidas deveriam ser erradicadas com base na defesa da apatheia
(ou ausência de pathos)110.

109
Houve uma tendência dos primeiros intérpretes modernos de tomar por anestesia perante o
sofrimento o que Sêneca defendia como a equanimidade das emoções, uma das traduções
possíveis para apatheia. A herança de uma espécie de indiferença generalizada, contudo, ficou
erroneamente associada ao estoicismo de Sêneca. (BRADY, Op.cit.: 38).
110
O ponto não é consensual entre os estoicos. SORABJI (2000) defende que a abordagem estoica
não é pela supressão das emoções, mas por dissipá-las após um entendimento da situação. Para
uma análise detalhada do termo apatheia e das diferentes posições dos estoicos, ver
especialmente os capítulos “The case for and against eradication of emotion” e “The traditions of
moderation and eradication” (pp. 181-210).

153
Entender que determinada reação é uma emoção é crucial para a terapia
estoica: “se ela [emoção] nasce contra nossa vontade, nunca irá se curvar à razão”
(De ira, 2.1.2). O exemplo mais conhecido é a ira, descrita como um desejo de vingança
no seguimento de algo que julgamos como uma ofensa injusta111. Para se ter raiva,
seriam necessários, portanto, vários passos: “perceber algo, indignar-se, condenar,
cobrar vingança” (idem). Não se trata meramente de um impulso e depende de nossa
vontade e aprovação.
E o luto? Certas cartas de consolo que Sêneca enviou sugerem que o luto é
uma reação inevitável – e, portanto, fora do controle da razão. Como tal, não seria
uma emoção e não estaria sujeita à necessidade de extirpação112. Se não todo luto,
pelo menos uma parte dele, nomeadamente o sofrimento agudo inicial.
Durante seu exílio forçado na ilha de Córsega, ele escreve uma carta à mãe
Helvia, conhecida como Consolação a Helvia (Ad Helviam matrem de consolatione):

Ceder à uma dor sem fim pela perda daqueles que nos são mais
caros é uma fraqueza infantil; não sentir nada seria uma dureza
de coração desumana. A melhor maneira de temperar a ternura
é sentir arrependimento e sufocá-lo. (Ad Helviam matrem de
consolatione, 16.1)

Como se nota, Sêneca não interdita o luto, mas visa moderá-lo, evocando uma
certa ideia aristotélica de virtude113. Os rituais fúnebres de então, ao estabelecer uma
duração para o luto (dez meses para as viúvas, por exemplo) provariam, segundo
Sêneca, que é saudável chorar... mas não muito. Um luto para além dos limites de
tempo e de intensidade é visto como um vício (talvez, aí, como uma emoção).
Por ocasião da morte de um amigo de Lucílio, Sêneca tenta consolá-lo:

111
Sêneca assim define a ira: “[...] tomar a ideia de uma injúria recebida e desejar sua vingança, e juntar
uma coisa à outra – que não se deve sofrer agressão e que se deve obter vingança –, isso não é um
impulso da alma suscitado sem a nossa vontade.” (De ira, 2.1.4)
112
De modo geral, o luto é tido pelos estoicos como resultado de uma atribuição falsa de valor à
situação (como no mais as emoções), daí que a terapia consista, em larga medida, em corrigir tais
avaliações. (Cf. GRAVER, 2007; especialmente cap. 9, “The tears of Alcibiades”, pp. 191-211.)
113
“Um mestre em qualquer arte evita o excesso e a falta, buscando e preferindo o meio termo – o
meio termo não em relação ao próprio objeto, mas em relação a nós” (ARISTÓTELES, Ethica
Nicomachea, Livro II, 1106b)

154
A homens como nós pode perdoar-se que deixemos correr as
lágrimas, desde que não em excesso [...]. Importa que, perante o
desaparecimento de um amigo, os nossos olhos nem fiquem
secos nem inundados. (Epistulae Morales ad Lucilium, Livro VII,
Carta LXIII)

Chorar, sim, mas com medida. Portanto, o luto estoico para Sêneca é um luto
moderado, sem sentimentos de muita ostentação e com uma duração temporal não
prolongada.
Estamos de acordo com David Konstan (2015) quando afirma que, nas cartas
de consolação, a atitude recomendada por Sêneca perante a morte de uma pessoa
querida assemelha-se menos à apatheia, largamente propagada pelos estoicos, e
mais à ideia aristotélica de metriopatheia, isto é, a moderação das paixões, as
emoções com medida, proporcionais à natureza de suas causas114.
Na Recherche, a ideia de dedicar um período preciso do tempo para o luto,
como advogava Sêneca, é totalmente ridicularizada. Recordemos o retrato pouco
favorável de Françoise com o “respeito aos parênteses” a seguir da morte da tia
Léonie. É ridículo não apenas pelo limite temporal, mas porque um luto nesses
termos nada informa sobre a verdade da dor. Podemos nos vestir de negro e
lamentar o morto sem sinceridade.
Em Proust, há uma constante recusa de entrincheirar o luto nas convenções
sociais. Sempre que ele aparece em termos convencionais é para salientar a
frivolidade das normas e das pessoas que as seguem. Um bom exemplo é o estorvo
causado pela visita inoportuna do duque de Guermantes, empenhado em oferecer à
mãe do protagonista fórmulas cerimoniosas.
Por outro lado, quando uma convenção está ligada ao sofrimento psicológico
autêntico, ela é defendida. Isso fica evidente durante a guerra, com o hábito dos
militares de não demonstrarem sofrimento pela morte dos colegas, e quando as
forças armadas interditam demonstrações públicas e efusivas de luto pelos soldados.

114
Em última instância, não é possível identificar com exatidão se as observações de Sêneca nas cartas
são uma exceção à regra estoica da erradicação das emoções, ou se o luto não é visto como
emoção. FOURNIER (2009) vê nas cartas, nomeadamente na Consolação a Márcia (Ad Marciam), a
sugestão de Sêneca de passar progressivamente do luto moderado para a eliminação do luto.

155
Em Le Temps retrouvé, o narrador, dentro do hotel, ao notar que alguns
soldados velariam um moribundo, diz: “Esse ideal – de certos militares, de certos
diplomatas – é particularmente exasperador. Sob seu aspecto mais vil, é
simplesmente a dureza de coração115 de ouro que não quer parecer comovido” (III,
TR 593 | IV, TR 323). Depois, arremata: “esse tom seco é a mágoa nas pessoas que
não deseja parecer magoadas, o que seria simplesmente ridículo, mas que é
igualmente horrendo e desesperador, pois é o modo de sentir desgosto entre as
criaturas que julgam que o desgosto já não conta” (III, TR 593 | IV, TR 324).
Em todo caso, em Albertine disparue, de modo oposto ao que recomenda
Sêneca, a profusão do sofrimento de Marcel é tudo, menos estoica: excessiva,
repetitiva, lamuriosa. O narrador não economiza palavras e tempo para falar de sua
dor por Albertine. Diferentemente do que ocorre com a avó, não há silêncio a seguir
à morte como instrumento para escapar da dor da perda116.

Chorar muito como prova de amor e virtude

Nas antípodas da ideia estoica do luto moderado, outro tipo de luto considera
a presença e intensidade do sofrimento enquanto provas de virtude do enlutado.
Quem sofre, mostra-se à altura do morto e o estima; quanto mais sofre, mais o ama
e mais virtuoso é.
Podemos testemunhar um eco implícito dessa concepção de luto virtuoso
quando Wassenaar afirma que Marcel não sofre de verdade pelas pessoas que diz
amar. Ou quando Alessia Ricciardi (2003) diz, em tom reprovatório, que Marcel
esqueceu rápido demais os mortos.
De modo dominante, esse tipo de luto está presente no pensamento
romântico do século XIX. Segundo Philippe Ariès, a atitude romântica perante a
morte ou perda manifesta-se “com ostentação”; é a “expressão mais espontânea e
insuperável de uma lesão gravíssima: choramos, desmaiamos, definhamos,

115
Notemos a semelhança da expressão de Proust com a de Sêneca, “dureza de coração”, na
Consolação a Helvia.
116
Para complicar ainda mais a leitura, como já salientamos, o investimento de tempo e energia no
ciúme póstumo também tem por efeito desviar a atenção do evento insuportável da morte de
Albertine, embora não de modo permanente.

156
jejuamos” (1975: 52). Até então (grosso modo, do fim da Idade Média até o século
XVIII), a dedicação de um luto ritualizado durante um tempo delimitado cumpria
funções específicas: por exemplo, garantir que o enlutado pudesse manifestar suas
penas e que não estivesse sempre sozinho, mas que mantivesse um certo tipo de vida
social (visita de parentes, vizinhos, amigos etc).
No século XIX, esse limiar temporal é rompido. Para o historiador, é a época
por excelência dos lutos intermináveis, e uma tal atitude sugere a dificuldade
sensivelmente maior em lidar com a morte dos outros, “uma nova intolerância à
separação” (1975: 48)117. Alguns costumes permaneceram então, como a mise en
scène: a morte no leito do quarto, com o moribundo rodeado de parentes. Contudo,
se antes havia uma familiaridade tradicional com a morte, que não era nem
assustadora nem assombrosa, a grande diferença é que, “a partir de então, ela é uma
ruptura”: arranca o homem de sua vida normal para entregá-lo a um mundo irracional
e cruel.
A atitude copiosa diante da morte será uma tônica nos românticos (GLAUDES,
2005), a exemplo de Chateaubriand, com Atala e René. Sabemos que o personagem
proustiano Bergotte é um admirador de ambas as obras118. Aliás, a afinidade de Proust
com Chateaubriand (e, especificamente, com a concepção de memória
afetiva/involuntária) é citada pelo narrador na Recherche.119
Por um lado, Marcel lamenta a perda de Albertine, e nesse sentido mostra-se
virtuoso para o leitor – em conformidade mesmo com a ideia de Sêneca segundo a
qual não chorar quando perdemos uma das pessoas que mais amamos seria uma
“dureza de coração”, como escreve para a mãe. Concomitantemente, Marcel entrevê
soluções para substituir Albertine o mais rápido possível. Isto é, Marcel embarca em
um lamento prolixo, mas não parece aderir incondicionalmente a um luto de tal
intensidade. Ele recusa o sofrimento infinito e se engaja em estratégias para fazer

117
As raízes desse fenômeno remontariam ao século XVIII, quando o homem, com uma crescente
consciência individual, começa a exaltar a morte, “a dramatiza, quer que seja impressionante e
avassaladora” (1975: 46).
118
“Sim, todavia gosto mais do Chateaubriand de Atala que do que de René, pois este me parece mais
suave.” (I, MF 450 | I, JF 546)
119
Em Le Temps retrouvé, o narrador compara “uma sensação do gênero da madeleine” à “mais bela
parte das Mémoires d’Outre-tombe”. Ela é considerada uma “obra-prima” ao lado de Sylvie, do
também romântico Nerval (III, TR 730 | IV, TR 498). Para uma análise comparativa entre Proust e
Chateaubriand, ver BÉDÉ (1934).

157
cessar a dor. Aceita (e busca) viver o sofrimento até onde ele lhe pode ser útil
enquanto fonte de criatividade.
A rigor, seu luto não se enquadra no modelo virtuoso nem para um estoico
nem para um romântico. Porém, guarda mais relações com o último, pela motivação
em usar a dor com fins criativos, embora com culpa.

Ambiguidades

A Recherche coloca em questão a virtude também do personagem principal


que sofre e do narrador que conta a história, rompendo novamente uma convenção
elegíaca. O narrador, por exemplo, assume ter escravizado Albertine. Marcel, por sua
vez, logo a seguir à fuga de Albertine, volta para casa com uma garota menor de
idade. O episódio lhe causará mais tarde complicações legais120. Além disso, escreve
cartas de blefe e, depois de morta, investiga sem pudores a vida pregressa de
Albertine.
A ânsia por resolver o problema do luto caminha lado a lado com a
desqualificação do objeto amado. Mas a minoração de Albertine, como tivemos
oportunidade de apontar, não é unilateral, e contrasta com o lamento em um tom
profundamente afetivo, como em afirmações desse tipo: “meu coração foi
atravessado com mais rapidez do que se estivesse em contato com uma corrente
elétrica, pois a força que dá mais voltas à Terra em um segundo não é a eletricidade,
mas a dor.” (III, F 372 | IV, AD 54)
É essa ambiguidade que marca o luto de Marcel por Albertine: lamentar e
desvalorizar. Ela está na base do impulso do protagonista em substituir a amada. É
uma ambiguidade que vai além do binômio amor e ódio, como Compagnon definira
a relação entre filho e genitor: “O mal é inseparável do desejo, o ódio do amor” (1989:
154).

120
Ele é intimado junto à delegacia após denúncia dos pais da garota por corrupção de pessoa menor
de idade. A reação condescendente do delegado, que lhe recomenda mais habilidade e discrição
com garotas menores de idade, é avaliada pelo narrador como pouco virtuosa. (III, F 350 | IV, AD
27-8).

158
Como explicar esse disparate? A que se deve tal ambiguidade? Por que, afinal,
lamentar tanto por alguém que não valeria a pena? Estaria Marcel incorrendo no erro
criticado por Sêneca? “O pranto [desmesurado] não decorre da dor, mas do desejo
de mostrar aos outros que sofremos! Ninguém prodigaliza manifestações de tristeza
quando está sozinho... Ó desgraçada estultícia, que até da própria dor faz uma arma
de propaganda”, ele afirma na mesma carta a Lucílio (Epistulae, Carta LXIII).
Em relação a Albertine, Marcel está literalmente só. Não há um contexto
público de enlutamento. Se a morte da avó envolvia toda a família, além de médicos
e visitas, a de Albertine chega por carta e é vivenciada durante todo o primeiro
capítulo do volume (aquele que concentra com mais evidência a maior parte da
trajetória do luto) praticamente dentro de casa, dentro do quarto com as persianas
fechadas, nessa “chambre obscure”121 (III, F 377 | IV, AD 61) com ares de sala funerária.
Ninguém chora muito sozinho, diz Sêneca. E, de um certo ponto de vista, é
certo que Marcel não está completamente sozinho: há uma encenação arranjada pelo
narrador de um livro por vir122. O narrador quase nunca interpela o leitor, é certo, mas
isso não quer dizer que não tenha consciência de que se trata de uma narração, de
seus artifícios retóricos e da existência de um leitor. Se o público não é evidente como
na elegia ou nas orações fúnebres123, em que o poeta pretende dar provas públicas a
uma audiência sobre a virtude do morto (e, segundo uma extensa fortuna crítica,
também provas de sua própria habilidade de poeta) – a Recherche, enquanto livro,
traz implícita a ideia de público.

Audiência e encenação

Em Proust, há uma encenação do narrador diante de uma audiência interna do


livro. Por exemplo, ele tira proveito do modo como arranja as cenas, dando a si

121
Na tradução, “quarto ensombrado” perde o sentido da analogia fotográfica com a câmera escura.
Para outras analogias, ver BRASSAï (1997).
122
Se o livro que anuncia o narrador é ou não a própria Recherche, ver LANDY (Op. cit.: 38-43). Em todo
caso, isso em nada muda nosso argumento.
123
Há uma convenção moderna de chamar a poesia funerária de elegia, embora nem sempre foi este
o caso.

159
próprio a posição de espectador e a sensação ao leitor de que tudo se desenrola
espontaneamente diante de seus olhos. Quando ele fala consigo por meio do que
podemos chamar de reflexões, também fala, implicitamente e sem menos
importância, para essa audiência, pleiteando sua adesão e empatia.
Alguns outros sentidos da encenação que ocorrem na Recherche têm a ver
com atuação, fingimento, disfarce ou exagero. Em uma das citações já mencionadas,
o narrador afirma ser preciso sofrer sem disfarces, mas o que ele faz é justamente
disfarçar, para si e para os outros. Como ele próprio diz, deseja causar uma certa
impressão. Por exemplo, esforça-se por aparentar felicidade e esconder de Françoise
o sofrimento, quanto mais não fosse para não lhe dar razão quando a empregada
dizia que Albertine não era sincera: “procurava dar essa impressão a Françoise sem
deixar que um sofrimento transparecesse, [...] não esquecia que era importante
aparentar-lhe um amor feliz, um amor compartilhado” (III, F 331 | IV, AD 03-4).
Para Albertine, Marcel atua de forma inversa: ele esconde e/ou minimiza seus
sentimentos de amor e de desespero: “estava eu condenado a proceder como se não
a amasse, como se não sofresse com a sua partida, estava condenado a continuar a
lhe mentir.” (III, F 343 | IV, AD 19) Também com Saint-Loup, Marcel se põe a disfarçar
seu desespero por uma garota que poderia ser julgada como bem pouco bonita, e
por muito tempo tenta esconder de seu emissário especial a Touraine o retrato de
Albertine, que havia mudado e engordado124 (III, F 344-7 | IV, AD 20-23).
Concomitantemente, há uma atuação de Marcel para si mesmo, a fim de
atenuar a verdade da situação. Um modo indireto de dissimular a situação é atuar
como mãe de si próprio. Imediatamente a seguir ao aviso de Françoise sobre a partida
de Albertine, Marcel se trata como segunda pessoa, encenando uma instância
externa misericordiosa que lhe conforta ao prometer amparo: “carinhoso comigo
mesmo, como a minha mãe para com minha avó agonizante, eu me dizia [...] ‘Tem um
pouquinho de paciência, vamos achar um remédio para ti, fica tranquilo, não vamos
te deixar sofrer desse jeito.’” (III, F 331 | IV, AD 03).

124
Quando por fim decide mostrar a fotografia, o amigo fica decepcionado: “– Por fim, encontrei a
fotografia. – Com certeza ela é maravilhosa – continuou a dizer Robert, que não tinha visto que eu
lhe estendia a foto. De repente a viu, segurou-a nas mãos por um momento. Seu rosto exprimiu
um espanto que chegou às raias da estupidez. – É esta a moça a quem amas?” (III, F 345 | IV, AD 21)

160
Ele tenta temporariamente afastar-se da dor na medida em que, como faria a
mãe, anuncia os “primeiros calmantes” a si próprio, como se fosse um outro: a dor
não ataca o “eu”, mas o “ti”. Nesse momento, o remédio de que precisa é o mesmo
que exige um filho mimado: que seus desejos sejam cumpridos.
Marcel atua como se o mundo onde Albertine de repente regressasse à casa
dele em breve fosse vir à tona, e isso dependesse da vontade dele. É uma atitude de
autoengano. Nesse ponto, o autoengano se mistura a um teatro para si próprio. O
ator, à força de repetir, acaba acreditando no personagem que ele constrói.
Na Recherche, temos um narrador que, à força de escrever cartas de
indiferença, acaba indiferente. A interpretação que nos é oferecida sobre Gilberte é
exemplar: Marcel, ao fingir para os outros e para si que já não tinha necessidade de
vê-la, e ao escrever cartas com uma falsa indiferença, acaba por senti-la: “fingida a
princípio, acaba por tornar-se verdadeira.” (III, F 343 | IV, AD 19)
Há fingimento nas cartas para Albertine e Gilberte. Há também uma
exageração recorrente no comportamento de Marcel. Lembremos da culpa que ele
sentira, em “Les intermittences du cœur”, em Sodome et Gomorrhe, pelas vezes em
que exagerava suas dores para a avó.
Quando o assunto é a ausência de Albertine, o narrador corre sempre um risco
de exagero, pois a cada vez o sofrimento é maior – fuga, tentativas frustradas de
trazer Albertine de volta e, finalmente, morte. Isso evoca a representação de
Agamenon com o rosto tapado: depois de Timantes haver pintado um sofrimento
cada vez mais intenso, como seguir pintando a dor ainda maior sem incorrer na
hipérbole e sem deixar de ser crível?

Cinismo?

Isso nos leva a retomar algumas perguntas: Por que sofrer por alguém que,
finalmente, não vale assim tanto a pena? Marcel encena a dor – no sentido de fingir –
por Albertine? A conclusão mais radical é afirmar que, finalmente, o lamento do
protagonista não é crível: Marcel seria um cínico que nunca amou Albertine
(WASSENAAR, Op. cit.) e que esquece e apaga sistematicamente os mortos, mesmo
aqueles que lhe foram mais caros (RICCIARDI, Op. cit.). Uma resposta assim, com a

161
qual discordamos, inevitavelmente rompe a ambiguidade de que falamos e oferece
um diagnóstico unilateral do protagonista e do narrador – o qual, ao nosso ver, não
se sustenta.
Nossa interpretação articula algumas explicações:

a) Sentimento e narração
A pergunta outrora formulada, “Por que, afinal, Marcel lamenta tanto por
alguém que não vale a pena?”, parte da ideia de que Albertine não vale a pena. No
entanto, a defesa de que ela realmente não valia mesmo a pena para Marcel é
narratológica, isto é, é construída pelo narrador, e é uma conclusão feita a partir de
uma análise retrospectiva – e, em todo caso, pendular.
Nessa análise pendular realizada a posteriori, deve-se levar em conta a
presença e às vezes a ausência de deliberação: o narrador pode, tanto como afirma
sobre Marcel, mudar de ideias a respeito de coisas sobre as quais se considerava, em
uma certa altura, enganado; igualmente, ele pode continuar enganado (no estilo
involuntário do autoengano de que fala Landy) sobre essas mesmas coisas.
O componente narratológico é de suma importância para entender não
apenas a avaliação a respeito de Albertine, mas para colocar em questão a suposta
superação da perda da avó e de Albertine que o narrador declara em Albertine
disparue e em Le Temps retrouvé.

b) O papel da dor
O papel da dor para Marcel é tudo, menos unívoco. Por um lado, vemos como
reação inicial dele diante da notícia da fuga de Albertine é domar e extirpar o
sofrimento. Por outro lado, ele próprio alimenta um sofrimento que se revela
profícuo.
Ao tratar do ciúme póstumo, havíamos sugerido que o protagonista o
estimulava pelo temor ao esquecimento da pessoa amada, ou seja, como ferramenta
de preservação da memória de Albertine. Mas há ainda outro lado da dor, para além
daquela gerada especificamente pelo ciúme. Para Marcel (e para o narrador), a dor
do luto mostra-se intensamente criativa: não só suspende o hábito maçante dos dias

162
ao lado de Albertine como também abre a possibilidade de sentir o mundo de um
novo jeito, mais intenso, verdadeiro, inesperado – e de narrá-lo.
É a dor, afinal, que ativa a criação: “A imaginação e o pensamento podem em
si mesmos ser máquinas admiráveis, mas também inertes. O sofrimento, então, as
põe em marcha.” (III, TR 722 | IV, TR 487). Isso vale para o luto por Albertine e pela
avó.
Em Love’s Knowledge (1990), Martha Nussbaum argutamente descreve a
crença de Marcel segundo a qual a dor é o instrumento adequado para aceder à
verdade. Ao perguntar por que a impressão que lhe chega pelo sofrimento o
convence de que ali está a verdade, e não no intelecto, Nussbaum responde: “Porque
ele não a prevê nem a governa, porque simplesmente fica carimbada nele, parece
natural concluir que ela é autêntica e não um estratagema concebido por uma razão
autossuficiente.” (1990: 267)
A dor profunda do luto, mais poderosa que qualquer pensamento acerca da
morte, permite ao enlutado, em primeiro lugar, viver e conhecer uma verdade que o
hábito e o intelecto sistematicamente escondem. Em segundo lugar, permite a
Marcel nutrir-se para sua escrita. É assim que ele afirma que “certos romances são
como grandes lutos momentâneos, abolem o hábito, repõem-nos em contato com a
realidade da vida, mas apenas por algumas horas” (III, F 441 | IV, AD 141).
Com a ferida aberta pelas mortes da avó e de Albertine, luto e escrita se
tornam inseparáveis. Novamente, vemos aqui um eco do pensamento romântico,
segundo o qual o sofrimento extremo (como aquele advindo da morte) é necessário
para a criação artística: “Não sem ambivalência, os escritores deste período adoram
o sofrimento que os dilacera. Eles o cultivam, veem-no como um sinal distintivo, uma
eleição, a sua melancolia lhes permite prolongar ad libitum um estado que é o
adjuvante da criação” (GLAUDES, 2005: 34).
Nesse sentido, não apenas a dor da perda, mas também aquela gerada pelo
ciúme, é criativa e serve, segundo o narrador dirá em Le Temps retrouvé, para recrutar
o objeto da arte: “O ciúme é um bom aliciador que, quando existe um vazio no nosso
quadro, vai buscar-nos na rua a bela moça que faltava.” (III, F 728 | IV, TR 495)

c) Expiação da culpa

163
Ao analisar o capítulo “Les intermittences du cœur”, na Parte I desta tese,
havíamos notado como Marcel se impunha uma dor profunda, no estilo de um
autoflagelo. Aqui, um mecanismo semelhante acontece.
Marcel sente-se culpado pela morte de Albertine e de sua avó: “aproximando
a morte de minha avó à de Albertine, tinha a impressão de que minha vida estava
manchada por um duplo assassinato que somente a covardia da sociedade poderia
me perdoar” (III, F 391 | IV, AD 78). Ele sabe que não se portou bem com elas: “parecia-
me que, devido à minha ternura apenas egoísta, eu havia deixado que Albertine
morresse, como havia assassinado a minha avó” (III, F 395 | IV, AD 83).
À culpa pelo destino das pessoas que ele amava, e a quem causou
sofrimentos, adiciona-se a culpa pela eventualidade (e, conforme o narrador,
inevitabilidade) de vir a esquecê-las. Como se não bastasse, veremos de modo mais
explícito em Le Temps retrouvé que há ainda outra culpa nessa conta: a de sentir-se
aproveitando-se da vida dos mortos para a criação literária, como introduzimos
anteriormente.
O sentimento de culpa, como o que Marcel relata, dificulta a assimilação da
morte e gera respostas mais dolorosas do enlutado125. A culpa de Marcel não se
circunscreve somente ao fato de ter previsto e não impedido o acidente, mas de o
haver indiretamente provocado, na medida em que escravizou Albertine, forçando
sua fuga e posterior acidente. Que ele agora sofra é parcialmente uma maneira de
expiar a culpa, e nisso precisa de um luto no qual a presença do sofrimento indique
sobretudo o desejo de redenção de quem sofre, e não propriamente o valor do
morto.
Marcel constrói um discurso com duas visões recorrentes: em uma delas,
Albertine é culpada, pois não virtuosa; em outra, é ele o culpado, pois a teria privado
de liberdade, e quer expiar sua culpa. A culpa de Marcel por ter criado as condições
para a fuga de Albertine, portanto, convive com a culpa imputada à Albertine por ela
não ser confiável (e por isso, em certo sentido, merecer ser aprisionada).

125
Notemos que, para a psicologia clínica, a atribuição dada para a causa da morte é um ponto-chave
para o tipo de luto que se seguirá. Atribuir uma morte, correta ou incorretamente, a causas naturais
ou a algum agente, incluindo o próprio enlutado, tem consequências diferentes para a aceitação
da perda, podendo facilitá-la ou dificultá-la. Verifica-se que o sentimento de culpa pela morte de
outrem, para o enlutado, é um entrave para a assimilação da perda. (cf. WEINBERG, 2015).

164
Ele não se exime da culpa e se autorrecrimina: “o cansaço, o horror que ela
sentia em viver desse modo como escrava” (III, F 334 | IV, AD 07). Contudo, suas duras
autocríticas garantem sua própria punição, podendo o leitor abrir mão de puni-lo
duas vezes. Ao lamentar a perda de Albertine, vemo-lo sofrer a tal grau que, por
vezes, somos tentados a pensar: “Não é para tanto, não precisa sacrificar-te”. Por
esta mesma via Marcel é livrado de uma punição muito dura, pois sofrimento já tem
o bastante com a perda de Albertine.
Wassenaar está certa quando afirma: “A autoacusação é uma
autojustificativa, na medida em que postula uma interpretação exagerada e inviável
das ações de um indivíduo, na esperança de que uma audiência reinterprete e reduza
a escala do exagero.” (Op. cit.: 214, grifos no original). As questões que escapam à
Wassenaar são a escala e a natureza do exagero e suas equivalências:
i) Exagerar não é exatamente o mesmo que fingir;
ii) É incorreto interpretar toda Albertine disparue como exagero ou
fingimento completos, embora haja algumas atitudes de exagero,
fingimento e disfarce;
iii) Querer expiar a culpa não é o mesmo que não gostar da pessoa em
relação a quem nos sentimos culpados;
iv) Querer expiar a culpa sublinha uma ambiguidade de sentimentos em
relação à pessoa lamentada.

Sobre a diferença entre cínicos e estoicos, Brady nos esclarece: “Ao contrário
do Cínico, que recusa sentir qualquer sofrimento, o sábio Estoico aprendeu a superar
o mal por meio da razão” (BRADY, Op. cit.: 38, itálico no original). Marcel, nem estoico
nem cínico, dará vazão à dor ao mesmo tempo em que tenta extirpá-la com medidas
que visam prontamente resolver o luto.
Uma das formas de resolver o luto é encontrar um substituto para o amor
perdido. É sobre isso que discutiremos a seguir. A análise sobre a busca de Marcel por
um substituto, no próximo capítulo, aprofundará o caráter ambíguo do luto,
mostrando uma concepção funcional das pessoas que amamos e o fracasso em
encontrar um consolo – fracasso que, uma vez mais, como se verá no capítulo VI,
distancia a Recherche do “espírito elegíaco” tradicional.

165
CAPÍTULO V
SUBSTITUIÇÕES

Neste capítulo, tentaremos perceber uma noção fundamental que


acompanha o luto de Marcel – a substituição. Logo a seguir à fuga de Albertine,
Marcel tenta substituí-la por outras mulheres, como uma ferramenta de um luto
sumário. A estratégia se intensificará após a morte dela. Ao final de Albertine
disparue, ele afirmará, de passagem e sem qualquer constrangimento – mas também
sem paixão –, ter encontrado outra amante: “minha amante atual, que eu ocultava
aos visitantes e que preenchia a minha vida, como outrora Albertine.” (III, F 534 | IV,
AD 256)
Teremos de entender o que acontece entre o início e o fim desse volume, e os
vários tipos de substituição de que ele trata. É preciso que imaginemos uma pessoa
de modo funcionalista para sermos capazes de descrevê-la como substituta, e para
lograrmos (ao menos, em nossa imaginação) transferir para ela nosso amor, também
ele visto de modo funcional.

166
I.
As primeiras tentativas

A substituição é uma resposta comum face à morte de uma pessoa amada.


Nas narrativas amorosas, proliferam casos nos quais a superação da perda ou da
rejeição passa por encontrar um substituto do ser amado. Geralmente encarada
como tentativa de abreviar o luto e acabar com a dor da perda, essa atitude tem uma
função terapêutica: é tanto um remédio para a cura da perda como, nos casos menos
exitosos, um paliativo ou consolo.
Pensemos no romance de Italo Svevo, La conscienza di Zeno (1923). O
protagonista é apaixonado no mais alto grau por Ada. Ele lhe declara seu amor e,
sendo por Ada rejeitado, imediatamente pede em casamento as irmãs dela, em
sequência, na mesma noite e lugar. Até que consegue o ‘sim’ de Augusta, a mais feia
e a única entre elas que Zeno jamais admirou. A proposição que ele lhe faz é explícita:
“– Isso mesmo. Amo apenas Ada e agora me casaria com você...” (1930 [1923]: 165).
À falta da amada, ele, enfim, se consola com a irmã dela, estrábica.
O objetivo de Zeno é ter uma esposa e não ficar sozinho, mas isso não basta:
a esposa deve substituir Ada e ser amada. Ele primeiro escolhe Augusta como futura
esposa e depois se empenha em se apaixonar por ela. Para tal, repete consigo, na
tentativa de se convencer: “Amo Augusta, não amo Ada. Amo Augusta e esta noite
realizei o meu grande sonho” (idem: 180).
A ideia de que encontrar um substituto possa ser uma escolha deliberada que
precede os sentimentos de amor confere o caráter cômico e desajeitado da decisão
de Zeno. Uma escolha assim, desvinculada do afeto, soa absurda para o pequeno-
burguês, mas comum entre os personagens da aristocracia, como nos mostra a
Recherche: assim é que a sra. Verdurin, sempre ridicularizada pelos Guermantes, se
tornará sra. de Guermantes. A escolha pelos casamentos tem mais a ver com modos
de galgar o poder do que com afeto, e por isso os discursos de substituição são
frequentes.

167
A substituição parece funcionar como remédio, e Zeno declara-se curado.
Contudo, apesar de afirmar ter chegado a uma total indiferença pela primeira amada
(Ada), a dúvida sobre se ele nutre amor pela esposa (Augusta) o viria a perseguir
durante toda a vida.
Muitos são os pontos de consternação diante de episódio tão extremo: já é
difícil admitir que uma pessoa pela qual estivemos tão apaixonados seja substituível;
ainda mais embaraçoso é admitir que a substituição poderia se dar com voluntarismo,
de modo imediato, linear e por qualquer outra pessoa disponível – ainda mais
significativo, que a substituta seja a irmã da amada.
Zeno substitui racionalmente a amada por outra, com algum nível de
sucesso126. No polo oposto, a Laura de Canzoniere127 ou a Beatriz de Vita Nuova são
insubstituíveis para o eu-lírico, que cantará o amor e a perda por toda a vida.
A obra de Dante, ademais, levanta uma questão importante que é ignorada
por Zeno ao escolher Augusta: a culpa em buscar consolo em outra mulher128. Dante,
depois de um ano da morte de Beatriz, parece encontrar em uma mulher que lhe
olhava da janela uma candidata à substituição: não apenas suscitava nele amor, mas
também lembrava a falecida, “cuja tez tinha semelhante cor.” (Vita Nuova, XXXVI:
145).
Imediatamente, debatem-se no poeta pensamentos contraditórios, um
advogando pelo fim da amargura e pelo consolo via substituição, outro pela
fidelidade à morta. Esta última prevalecerá. Dante começa a “arrepender-se
dolorosamente do desejo de que tão vilmente alguns dias se deixara possuir contra

126
Como sinais de sucesso, podemos apontar a indiferença por Ada que ele alega, a duração do
casamento com Augusta e todas as vezes em que Zeno crê e sente amar a esposa. Isso basta para
levar a substituição adiante. Outros aspectos contradizem a indiferença pela primeira amada (em
uma ocasião em que está ébrio, ele lhe lança um olhar libidinoso). Ele também se sentira humilhado
pelo rival Guido, futuro marido de Ada e que está na origem da dor crônica nas ancas de Zeno. Do
fato que Zeno teve uma amante não se pode concluir o fracasso da substituição, uma vez que não
sabemos se ele a teria se tivesse se casado com Ada.
127
Canzoniere ou Rime sparse foram os famosos títulos dados posteriormente ao conjunto de 366
poemas em vulgar de Francesco Petrarca, composto ao longo da vida do poeta. Rerum vulgarium
fragmenta é o único título confirmadamente dado pelo autor. Cf. GRAÇA MOURA, Vasco.
“Setecentos anos de Petrarca (Introdução)”, PETRARCA. As rimas de Petrarca, trad. Vasco Graça
Moura, Lisboa: Quetzal, 2018, p. 17.
128
A única culpa de Zeno acontece quando já existe um compromisso formal entre as partes, por
exemplo, ao trair a esposa com uma amante.

168
a constância da razão” e, tendo “expulsado tão malvado desejo, se volveram todos
meus pensamentos a sua gentilíssima Beatriz.” (XXXIX: 155).
Marcel oscila entre ambos movimentos – o passar a página de Zeno, ligando-
se a uma substituta, e o lamento de Orfeu, Dante ou Petrarca pela perda. Já vimos
como, contrariamente aos últimos, ele recusa empunhar a dor indefinidamente, e aos
poucos vai se habituando à ausência de Albertine. Uma das formas que encontra de
superar a dor é tentar substituir Albertine.

Uma garota desconhecida

A primeira tentativa de substituição, a seguir à fuga de Albertine, ocorre com


uma garota pobre, desconhecida e menor de idade. Desolado depois de ouvir do
porteiro que Albertine estava em Touraine, isto é, longe de seu controle, o
protagonista encontra uma menina justamente em frente à porta da amada: “me
fitava com os olhos bem abertos e com o olhar tão doce [...]” (III, F 341 | IV, AD 15).
Ele a leva para a casa dele, como o faria a um “fiel cachorro”. Marcel a berça sobre os
joelhos, tal qual uma criança, mas não chega às vias de fato: a presença da garota
desconhecida “fazendo-me sentir demais a ausência de Albertine, me foi
insuportável” (III, F 341 | IV, AD 15-6). Por fim, ele a despacha com um bilhete de 500
francos.
A tentativa malograda não o impede de refugiar-se em uma grande fantasia: a
de “ter uma outra menina ao meu lado, e de jamais ficar sozinho sem o apoio de uma
presença inocente” (III, F 341 | IV, AD 16). Ter alguém inocente que lhe faça companhia
e sobre quem ele possa exercer poder. Essa virtualidade é colocada como a única
coisa que tornaria tolerável a distância de Albertine – uma distância que Marcel
supõe, cada vez mais, poder se estender para além do tempo que ele havia
imaginado.
O narrador julga agora poder estar potencialmente com quem quiser, algo que
lhe era impedido devido à relação com Albertine. Lembremos do que diz em La
Prisonnière: “A presença de Albertine era um peso; eu a olhava, doce e enfadonha,
sentindo que era uma pena que não tivéssemos rompido” (III, P 317 | III, P 905). Mas

169
a nova liberdade é uma fantasia, e inútil. O universo de mulheres disponíveis para
Marcel é muito mais restrito do que ele gostaria; e, sobretudo, a realização desse
desejo chega no momento em que Marcel não mais precisa dele. O que ele desejava
era o poder de decidir, quando quisesse, estar com outras mulheres sem abdicar de
Albertine. Uma vez que Albertine já não está sob seu alcance, não precisa se sentir
livre estando com outras mulheres porque já está, de fato, desimpedido.
Antes de Albertine ir embora, Marcel já fantasiava com outras mulheres. Sem
Albertine, contudo, elas (ou melhor, a expectativa de possuí-las) passam a ser
desejadas como paliativo ou cura permanente para a dor da separação. Servem para
ocupar o vazio deixado por Albertine, seja enquanto ela não volta, seja se a ausência
dela for definitiva. Neste último caso, estar com outras mulheres, para ele, implicaria
substituir Albertine e, assim, deixar de amá-la – deixando também de sofrer por ela.
Marcel fracassa. Aquando da primeira tentativa, a garota o lembrava da
ausência de Albertine – que, neste momento, é irreparável para Marcel. Portanto,
Albertine não pode ser substituída.

Andrée e os atributos necessários

A seguir, o narrador insinua outra justificativa para o fracasso da substituição,


que passa a concorrer com a justificativa anterior: o fato de a garota desconhecida
ser uma garota qualquer. Em outras palavras, como se lhe faltassem certos atributos
necessários para uma substituição adequada.
O problema, portanto, é imputado ao objeto substituído, e não à eficácia do
processo de substituição, cuja descrição implícita permanece inalterada – ela serve
para reparar a ausência de uma pessoa, preenchendo-a com a presença de outra.
Portanto, Albertine pode ser substituída, desde que o seja pela pessoa certa. A
dificuldade da eficácia cairá sobre a identificação da pessoa certa.
Os atributos que a primeira garota carecia (nunca são explicitados), Marcel
pensa encontrá-los em uma moça conhecida e especial: Andrée, a melhor amiga de
Albertine. É a mais velha do pequeno grupo das garotas que ele conhece em Balbec.
Desde que a vira dançar com Albertine no cassino de Incarville, após os comentários

170
do doutor Cottard, em Sodome et Gomorrhe, ele suspeita das relações homossexuais
entre as duas. A dúvida persistirá após a morte de Albertine e pese os testemunhos
contraditórios de Andrée.
A decisão de escolher Andrée para reparar a ausência de Albertine é, no início,
um blefe: Marcel quer provocar ciúmes na ex-cativa129. Como se sabe, Albertine lhe
havia escrito que não voltaria. A decisão por Andrée lhe é comunicada em carta,
escrita artificiosamente de forma a parecer que Marcel ainda não recebera a carta de
Albertine.

Já que decidimos que você não voltaria, pensei que a pessoa que
melhor a poderia substituir, por ser a que me mudaria menos, a
que mais me lembraria você, seria Andrée, e lhe pedi que viesse
(III, F 370 | IV, AD 51-2)

Em primeiro lugar, nota-se que a substituição é movida por um desejo de


exercer poder sobre os outros, tanto sobre Albertine quanto sobre Andrée. Marcel,
a despeito de ter sido rejeitado, quer partilhar da decisão da partida de Albertine,
como se ele também tivesse tomado parte na escolha de ela fugir. Quer igualmente
decidir a posse de Andrée.
Como se justifica a opção pela melhor amiga? Quais são as propriedades que
ela possui que a tornariam a pessoa adequada à substituição? Andrée teria duas
propriedades: mudaria pouco Marcel e manteria preservada nele a memória de
Albertine. Entre ambas propriedades, há muito mais uma relação de dependência do
que simplesmente de adição. Por isso, a explicação que nos parece mais apropriada
é que Andrée lembraria Marcel de Albertine porque o mudaria pouco.
Se atentarmos à ideia recorrente na Recherche segundo a qual a amada é uma
projeção do eu130, a melhor substituta é aquela que não modificaria muito o eu. A
imutabilidade de Marcel seria, pois, a garantia de que o protagonista não esqueceria
Albertine e, em última análise, continuaria gostando dela. É ao manter Marcel intacto
que Andrée potencialmente poderia reproduzir Albertine.

129
O consentimento que Albertine mostrará por carta o deixará frustrado.
130
Entre os inúmeros exemplos ao longo da Recherche, podemos citar esta passagem: “somente a
percepção grosseira e errônea coloca tudo no objeto quando, ao contrário, tudo está no espírito.”
(III, TR 727 | IV, TR 493).

171
Também se pode interpretar de modo diverso a explicação que o narrador
oferece para a escolha de Andrée: não se trataria de pleitear a imutabilidade de
Marcel, mas de pleitear que ele mude segundo certas leis – as leis de Albertine.
Andrée seria a mais apta a atuar dentro do que fosse esperado de Albertine, e
suscitaria no protagonista as mesmas reações que ele tinha com Albertine. Nesse
caso, teríamos igualmente uma espécie de reprodução de Albertine em Andrée.
Se assumirmos que ele acredita nessa explicação (isto é, que Andrée não é
exclusivamente uma armadilha retórica para ferir Albertine, mas pode efetivamente
ser uma substituta), ela aponta um erro frequente de Marcel: tentar projetar um
futuro sem saber que, quando esse mundo chegasse, talvez o próprio Marcel não
tivesse o mesmo desejo que então impulsionara a sua projeção.
Mas a escolha estratégica também diz muito sobre os mecanismos da
substituição. Quando dizemos que A faz lembrar B, apontamos uma associação entre
ambos (por exemplo, pela semelhança, proximidade, história partilhada etc.). É essa
associação que Marcel busca entre Albertine e Andrée. Uma associação baseada na
aparência física não é convincente; afinal, elas são bem diferentes. Já o fato de
Andrée ser a melhor amiga de Albertine não é negligenciável. Ao procurar pessoas
do círculo de relações de Albertine, é como se Marcel buscasse pedaços que
contivessem a fórmula Albertine, ou que lhe fossem, por extensão, próximas.
No limite, parece haver uma ilusão de que as propriedades de Albertine
pudessem ser transferidas para suas adjacências, isto é, às pessoas com as quais
mantinha contato estreito. Isso se tornará mais claro nas reflexões do narrador e nas
posteriores tentativas de substituição.
Antes, vamos analisar melhor o conceito de substituição de um ponto de vista
psicanalítico e filosófico, para ver como ele é usado por Marcel como instrumento
para resolver o luto.

172
II.
Freud e o aceno funcionalista

Na linguagem comum, partilhamos a ideia de que substituir é trocar um objeto


por outro, ou seu uso por outro uso. Substituem-se muitas coisas: uma palavra por
outra de significado parecido, sapatos, serviços, mobília. Na maior parte das vezes,
pensa-se a substituição como um processo linear de suplantação, em que uma coisa
se segue a outra, colocando a anterior no ostracismo. O substituto suplanta valor,
posição ou existência do objeto precedente.
A maneira como tradicionalmente nos é ensinado o desenvolvimento do
capitalismo baseia-se exatamente nesse modo: as fases do capitalismo (comercial,
industrial e financeiro) se sucedem, uma suplantando a outra, a qual, obsoleta, é
esquecida no curso linear da história131.
Há casos em que, após a substituição, o objeto ou uso obsoleto é reabilitado.
Pensemos no costume (sexista, diga-se) de adquirir o sobrenome do cônjuge,
sobretudo do marido, prática esta que, na maioria das vezes, comuta o sobrenome
original da mulher, dando origem a um sobrenome ‘adotado’. Após o divórcio, pode-
se legalmente reaver o sobrenome ‘de solteira’, tal qual aparece na certidão de
nascimento. Por vezes, a suplantação decorrente da substituição é definitiva. Na
informática, por exemplo, se quisermos criar um novo arquivo com nome idêntico a
outro já existente, o mais recente substituirá definitivamente o anterior.
Todas essas são concepções funcionais da coisa a ser substituída. Vamos
analisar como o luto, tal como o entendia Freud, implica um movimento substitutivo
e uma acepção moderadamente funcional do objeto amado. Mais tarde, voltaremos
ao luto de Marcel por Albertine para avaliar melhor seus movimentos.

131
A divisão em fases guarda semelhanças com a lei dos três estados (ou estágios) de Auguste Comte
(1830: 01-56), segundo a qual o modo de pensar da humanidade passaria progressivamente por
três etapas mutualmente excludentes.

173
A substituição do objeto perdido ocupa um papel importante na superação do
luto. Nos primeiros escritos de Freud sobre o tema, ele descreve o luto como um
processo de superação que consiste em dois movimentos: a ruptura e a substituição.
Devemos renunciar ao vínculo afetivo com o objeto amado e perdido a fim de tornar
um outro vínculo possível, o qual vem substituir o anterior.
A menção à substituição é escassa em “Luto e melancolia”, e não há
propriamente uma teoria da substituição no que se refere ao luto. Contudo, ela nos
parece um movimento importante do processo teleológico de superação da perda
do qual trata Freud. Por isso, analisaremos, em contexto, algumas incidências
textuais, aproveitando para desenvolver uma análise semântica e histórica do termo.
A ideia de substituto é anunciada bem no início do texto: “O homem não
abandona de bom grado uma posição da libido, nem mesmo quando um substituto
[Ersatz] já se lhe acena.” (LM: 132)
Em alemão, os significados mais importantes de Ersatz trazem a noção de
substituição: encontramo-la no campo militar, administrativo, comercial, alimentar,
jurídico e até fonético. Ele forma substantivos compostos como membro suplente ou
tropa de reserva. Outro sentido ainda é a noção de sucessão: Ersatz é o sucedâneo,
isto é, que sucede, trazendo em si a ideia de algo não somente posterior, mas que
vem suplantar.
Também pode ser usado com a ideia de reparação. É assim que Ersatz forma
palavras como peça de reposição ou produto de reserva (um pneu sobresselente ou
de estepe, por exemplo). Na linguagem comercial e jurídica existe um outro sentido
de reparação associado a Ersatz, para designar um pedido de indenização ou
reembolso.
Não é inócua, para a discussão sobre o luto, a conjunção de todos esses
significados de Ersatz: substituição, reparação, reposição. O substituto é aquele que
irá reparar um dano, isto é, a dor causada pela perda do objeto perdido; ele repõe ou
restabelece uma situação anterior ao dispor um novo objeto amoroso.
No período da Primeira Guerra Mundial, mais ou menos enquanto Freud
escreve “Luto e Melancolia”, começa a haver uma mudança curiosa da acepção do
termo, que passa a integrar o sentido pejorativo até então exclusivo da palavra
Surrogat. Por conta da escassez de produtos sobretudo alimentícios na Alemanha e

174
Áustria-Hungria, Ersatz passou a designar um substituto, frequentemente de pior
qualidade, de um produto mais caro e escasso (em geral, cerveja, café e manteiga)132.
O vocábulo é atualmente bastante assimilado, em sua acepção pejorativa, por
outras línguas, que o integraram na forma germânica. Dessa “palavra alemã a que
nenhuma tradução faz as honras” (VERBITSKY, 2013)133, restaria a ideia de cópia
degradada: “As fitas de vídeo são um Ersatz pobre e efêmero do cinema” (COLI,
2000) ou “O dendê ficou sendo um Ersatz [...]. Mas o português regressava ao azeite
doce quando o produto reaparecia no mercado” (CASCUDO, 1967 (2): 214). Fitas de
vídeo e dendê funcionam como substitutos enfraquecidos do original.
Vale a pena perceber que esse sentido é mobilizado em visões mais
funcionalistas e sumárias do luto: é comum ver o substituto amoroso como
um sucedâneo de menor qualidade. É assim que o substituto amoroso faz referência
continuamente ao original, com o qual estabelece uma relação não apenas
inseparável, mas hierárquica.
Encontramos inúmeras qualificações desse gênero na Recherche. Um exemplo
é Charlus. Incurável de seu amor por Morel, “para se consolar de sua ausência,
procurava homens que se lhe assemelhassem” (III, TR 652 | IV, TR 397). Assim, os
outros rapazes com os quais ele sai após a separação, um aprendiz de ourives ou um
empregado de hotel, são descritos pelo narrador como “vagos sucedâneos de
Morel” (idem).
A mudança de acepção do vocábulo Ersatz é contemporânea do próprio
ensaio de Freud, o que nos impede dizer se, nele, ela carrega de modo inequívoco o
sentido pejorativo. Mostraremos que, no fundo, do ponto de vista de Freud – mas
também de Proust e, veremos, de Hume –, pouco importa quem é o substituto e sua
qualidade, mas sua função.

132
Em outras áreas, a ideia de qualidade inferior igualmente se expandiu: a recente mão de obra
feminina na indústria ficou associada a um substituto de segunda categoria (Ersatzarbeiterinnen);
no campo militar, o Exército usava informalmente o termo Ersatzhaufen para referir-se aos novos
recrutas, não bons o suficiente para que tivessem sido enviados antes ao fronte. Cf. (DAVIS, 2007:
262-64).
133
A afirmação é do jornalista Horacio Verbitsky, ao se referir ao novo bispo de Roma. Ele completa:
“feito a água com farinha que as mães indigentes usam para enganar a fome dos filhos.” (Folha de
S.Paulo, 15.03.2013).

175
*

Freud, mais à frente no mesmo ensaio, escreve: “[o resultado normal do luto
é] uma retirada da libido deste objeto e o seu deslocamento para um novo” (Op. cit:
135). Portanto, espera-se que, uma vez terminado o luto, a libido esteja livre para ligar-
se a outro objeto. Esse último passo, no contexto do que vinha sendo exposto no
ensaio, se explica pelo encontro de um substituto.
Pode acontecer que, mesmo depois da ruptura com o objeto perdido, a libido,
em vez de se ligar a um novo objeto, regrida ao ego, ao qual se vincula. Freud chama
este caso de melancolia, a qual possui uma “disposição patológica”134 (Op. cit: 131).
Como explica a psicanalista e tradutora Marilene Carone nas notas à tradução
do ensaio, “nesta patologia há uma regressão (por substituição) do amor objetal à
etapa da identificação, anterior e mais primitiva” (idem, notas, p.142). À diferença da
melancolia, o luto normal, como literalmente afirma Freud, implica outro tipo de
substituição: substituir o lamentado é encontrar outro objeto de amor.
Isso fica ainda mais claro em outra passagem. Ao elencar os sintomas do “luto
profundo”, o autor fala da “perda da capacidade de escolher um novo objeto de amor
– em substituição ao pranteado” (idem: 131-2, grifos nossos). No original, was den
Betrauerten ersetzen hieße é ainda mais explícito: algo como “o que significaria
substituir o lamentado”. Novamente, temos ersetzen, que nos remete aos
significados de Ersatz.
Em um ensaio escrito imediatamente depois de “Luto e Melancolia”, a ideia
de que o luto culmina com a substituição do objeto se mantém. Trata-se de “Sobre a
Transitoriedade”, escrito no final de 1915 e editado no ano seguinte. No texto,
produzido em meio à Primeira Guerra Mundial, ele faz uma aposta unilateral e
otimista na recuperação das “conquistas de nossa civilização”, comparando a
resolução do luto individual ao coletivo:

134
Como veremos no último capítulo desta tese, Freud reviu sua teoria em O Eu e o Id (1923), afirmando
que esse movimento, tipicamente narcisista, é frequente e essencial para o nosso
desenvolvimento. Desta forma, as fronteiras entre luto/saúde e melancolia/patologia deixam de
ser categóricas.

176
Quando o luto terminar, descobriremos que nossa alta estima
acerca das riquezas da civilização não perdeu nada com nossa
descoberta de suas fragilidades. Vamos reconstruir tudo que a
guerra destruiu, e talvez em bases mais firmes e duradouras que
antes. (1916, SE XIV: 307)

Há uma nuance importante. Freud afirma que, seguindo o caminho do luto,


que “chega a um fim espontâneo”, aquilo que foi destruído não apenas poderá ser
reparado, como substituído por algo melhor: “para substituir os objetos perdidos por
novos igualmente ou ainda mais preciosos.” (SE XIV: 307) Essa afirmação nos parece
mais uma declaração pessoal e passional de esperança no futuro da humanidade do
que propriamente uma avaliação teórica a respeito do fim do luto (e da superioridade
do substituto em relação ao substituído). Os termos que ele emprega são claros
nesse sentido: “É de se esperar que o mesmo aconteça com as perdas ocasionadas
por esta guerra.” (idem)

A leitura das passagens citadas, em atenção ao conjunto de ambos ensaios,


nos leva a algumas considerações a respeito da noção de substituição. A primeira
delas é que a substituição é um passo importante do luto, entendido como caminho
de superação da perda. A superação se verifica na substituição. A existência de um
novo vínculo apenas é possível se houver uma ruptura com o vínculo anterior, e
pressupõe a suplantação dele pelo novo. No entanto, o objeto substituto não é o
responsável pela ruptura, nem a causa da cura.
Não é claro se o enlutado se vincula ao substituto depois de a libido ter sido
total ou parcialmente redirecionada para esse novo objeto. A favor da última
interpretação, está a intermitência do luto, a qual abre a possibilidade de alguém
começar a se vincular a outrem e ter uma ‘recaída’ pela pessoa anterior, sem que um
afeto anule o outro. Porém, considerando o ensaio de modo global, nossa leitura é
pela primeira interpretação. Embora assinale o caminho errático da libido, Freud
tende a ver o novo vínculo como sendo possível uma vez superado (ou seja, rompido)
o anterior. Portanto, o novo objeto se instala a posteriori. Se a pessoa não romper

177
com o vínculo precedente, não logrará encontrar um substituto, mesmo que ele já
exista como possibilidade.
Uma interpretação assim, que coloca a substituição como consequência
desejável do luto, mas não uma condição, está de acordo com a leitura de Freud que
propõe L. Scott Lerner: “O enlutado bem-sucedido, escolhendo a vida, romperá seu
apego com o objeto perdido, permitindo que a libido que estava investida no objeto
retorne ao self, onde se torna disponível para o investimento posterior em um novo
objeto.” (2007: 47)
A substituição é uma espécie de sintoma de que o luto terminou bem. Se o
luto seguiu seu curso normal até a “fase de triunfo” (FREUD, LM: 139), verificamos
que deixamos de sofrer pelo objeto perdido (com o qual rompemos) e fomos capazes
de nos ligar a outro objeto.
Os significados inequívocos de Ersatz à época da escrita do ensaio de Freud –
substituição, reparação, reposição – descrevem o novo objeto de amor de um modo
específico e funcional. O substituto é aquele que vem reparar um dano, isto é, a dor
causada pela perda do objeto perdido; ele repõe ou restabelece um estado inicial
normal que é a situação amorosa.
Há um aceno funcionalista em Freud, pois ele encara o novo objeto de amor
como uma espécie de peça reparatória (independentemente da qualidade que lhe é
imputada). Isso é coerente, de modo geral, com a ideia reparadora do luto para
Freud: um trabalho teleológico de superação triunfal da dor, da qual o substituto é
parte importante, desejável (e, por vezes nos faz crer Freud, necessária), mas não
suficiente.
O que em Freud é um aceno funcionalista, em Proust, ao tratar do luto de
Albertine, será um método e uma reivindicação que o protagonista levará a cabo
obstinadamente – mas sem sucesso.

178
III.
A substituta certa

Nos diferentes exemplos que demos para substituições (e, especificamente,


naqueles que empregam a palavra alemã Ersatz), pudemos notar que o contexto da
substituição acompanha funções. O mesmo se passa na substituição amorosa. Vem
daí parte da surpresa do leitor da Recherche perante essas soluções afetivas para um
mal-estar amoroso: que as relações amorosas possam ser avaliadas sob o mesmo
prisma funcional que utilizamos para falar de pneus ou sobrenomes, a obra de Proust
nos dá muitos exemplos.
São provas os diferentes arranjos de casamento ao longo do romance: “os
casamentos, na sociedade, muitas vezes se fazem assim de golpe, não raro para
substituir uma combinação diversa que fracassou.” (III, F 523 | IV, AD 242).

Hume e o desgosto de amor

O fracasso de uma combinação amorosa, no entanto, costuma acarretar muita


dor. Para David Hume, um defensor do que podemos chamar de luto sumário, não é
apenas possível substituir a amada, mas recomendável perante um desgosto de
amor. Isso tem a ver com uma visão funcional do amor e do remédio para a desilusão
amorosa. No ensaio “Do amor e do casamento”135 (1741-42), dos Essays Moral and
Political, ao dar sua versão da famosa teoria de Platão sobre o amor no Symposium,
ele escreve:

quando se encontram, unem-se novamente com o maior carinho


e simpatia. Mas muitas vezes acontece [...] que as partes não se

135
Este ensaio aparece na primeira edição dos Essays, Moral and Political (publicado pelo proeminente
editor Alexander Kincaid) e em edições posteriores. Sua última publicação é em 1760, nos Essays
and Treatises on several subjects, depois do qual ele foi abandonado.

179
encaixam nem se unem, como é comum nas fraturas. Neste caso,
a união foi logo dissolvida, e cada parte é solta novamente para
caçar sua metade perdida, juntando-se a todos que encontrar, por
tentativa e erro. (“Of love and marriage”, §7, p. 561, ênfase nossa)

A melhor atitude perante um desgosto de amor é buscar logo outra pessoa.


Para sanar a dor advinda da desunião com alguém que percebemos não ser nossa
metade originária, a solução é sair atrás de outra. Uma caça urgente, na qual vamos
testando novas metades que se nos encaixam como se fossem peças.
No Tratado da natureza humana (1739-40), Hume prescrevera ir ter com outras
pessoas como a cura da filosofia. O remédio para filosofia não estaria, portanto, na
filosofia, mas na companhia dos outros na vida comum. Nos Essays, a cura para a
desilusão amorosa é largar uma pessoa para ir ter com outra – de preferência,
rapidamente. Há um tom abertamente jocoso ao defender que, em qualquer caso, o
remédio está em nunca ficarmos sozinhos.
Quando lemos Hume prescrever a caça desenfreada por outra pessoa ou
quando vemos Marcel desesperadamente buscar uma mulher que o aliviasse da
lembrança onipresente de Albertine, os vemos inclinados a uma visão funcionalista
dos encontros amorosos. Estes seriam também terapêuticos, no sentido em que
viriam remediar o fracasso e a separação amorosa anteriores. É uma conduta que sem
grande dificuldade encararia a nova metade enquanto um substituto da falsa metade
da qual anteriormente nos separamos136.
Tal abordagem não está totalmente longe do Freud de 1917. Ele não
prescreveu ir logo atrás de outra pessoa – uma vez que não há tratamento possível
para o luto, senão aceitar aos poucos a realidade e renunciar ao objeto perdido.

136
Apesar de diversas afinidades entre Proust e Platão, como o fato, inclusive, de Proust ter sido
cofundador, no liceu, da revista Le Banquet, cujo nome é tirado da tradução francesa do Symposium
e com a qual ele contribuiu ativamente (BLOOM, 2004: 26, PAINTER, 1989 (2): 113-4), seria exagero
afirmar que Proust é platônico. A maior reserva, a nosso ver, é quanto ao estatuto das percepções.
Se para Platão elas são inferiores às ideias, na Recherche o narrador as enaltece, embora não de
forma inequívoca. Pensemos, por exemplo, no impulso do narrador em racionalizar os sentimentos
em relação a Albertine (mecanismo no qual se baseia o discurso de substituição amorosa) como
forma necessária e suficiente para se chegar à verdade e ao autoconhecimento (ver, a esse
respeito, NUSSBAUM, 1990: 262-7). É assim que o narrador-protagonista qualifica os sentimentos
como uma barreira a ser eliminada, pois distorce o julgamento. No entanto, é nessa atitude,
quando o narrador é o mais platônico possível, que o romance, pelos resultados pífios obtidos por
Marcel por meio da razão, tece a mais fecunda crítica ao filósofo grego.

180
Contudo, ele considerava desejável e importante encontrar outra pessoa, e ela
substituiria a anterior, passando a ser o destino de nossa libido e selando o fim do
amor pela pessoa precedente.
Entretanto, entre Hume e Freud há uma diferença radical. Para o primeiro,
substituir é um método terapêutico: buscamos outra pessoa para nos curar; para
Freud, a substituição não pode ser um método: enquanto não estivermos curados,
isto é, enquanto não fizermos alguma renúncia do objeto perdido, não
conseguiremos nos ligar afetivamente a outro.
O narrador proustiano se alinha muito mais a Hume. O método, porém, não se
mostra eficaz. Não serão as substituições que o farão superar a desilusão amorosa;
se há alguma mudança, como a atenuação da dor, ela tem mais a ver com a passagem
do tempo e as mudanças de perspectiva sobre si, a vida e o caso Albertine. No final
das contas, as sugestões de Freud mostram-se mais sábias que o método terapêutico
de Hume: em “Luto e Melancolia”, a substituição não é método; mais tarde, como
veremos, Freud escreverá que o tempo ameniza nossas dores, sugestão que já estava
no ensaio de 1917.
Hume, nos Essays, supõe não uma, mas várias substituições. Mais
especificamente, uma substituição em série de falsas metades até encontrar, por
tentativa e erro, a verdadeira. Essa atitude de base platônica – um Platão caricaturado
– também encontramos em Marcel. Ele não se questiona sobre o fundamento da
substituição – a suplantação linear de alguém por outra pessoa. Como um cliente para
quem basta escolher a pilha correta para trocar com a caduca e fazer o controle
remoto voltar a funcionar, o problema a resolver se resume à pergunta funcionalista:
quem é a substituta certa?
Se quisermos aproveitar outros pontos relevantes para a discussão, teremos
de nos aprofundar em outros textos de Hume, nomeadamente o Tratado da natureza
humana.

A associação de paixões e objetos

181
Para os defensores da substituição amorosa, como Marcel, saber quem pode
ser a substituta certa é crucial. Tentaremos responder à pergunta por meio de uma
leitura do Tratado de Hume. Na obra, a associação de ideias e a associação de
impressões tornam não apenas provável, mas recorrente, às paixões passarem de um
objeto para outro. Uma leitura em sentido lato desse ponto nos permitiria supor a
capacidade de encontrar substitutos das pessoas de quem gostamos. Além disso,
sugere certos tipos de relação que devem existir entre a primeira pessoa amada e a
sua substituta, para que se trate de “uma relação perfeita” (T 2.2.4.10: 416).
Primeiramente, definiremos, sempre com vistas ao nosso argumento, as
paixões indiretas, dentre as quais o orgulho e o amor – os quais, se são próximos para
Hume, o são de uma maneira ainda mais radical para Marcel. A partir daí, trataremos
de como elas podem se associar a objetos diferentes, dando passo para nossa
hipótese sobre substituição amorosa.
Em seguida, levantaremos algumas reservas importantes. Elas têm a ver com
a noção ampla de amor para Hume, bem como com a pertinência de enxergar na
associação um veículo que necessariamente levará à substituição. Será a ocasião para
olharmos alguns comentários de Hume em seu tratado histórico.
Nossa conclusão é a de que somente uma abordagem em algum grau
funcionalista (das pessoas e do amor) dá conta de descrever retrospectiva ou
prospectivamente um novo objeto de amor como substituto do anterior. Essa
abordagem é recorrente em Marcel.

Hume, um fervoroso empirista, afirma que o espírito humano é formado


exclusivamente por impressões e ideias137, cuja principal característica é poderem se
associar segundo certas regras. A associação de ideias ocorre por semelhança,
contiguidade e causalidade; a de impressões, apenas por semelhança.
No segundo livro do Tratado, ele define as paixões como impressões que
derivam de outras impressões e independem da razão. Elas podem ser diretas ou

137
Pode-se inclusive afirmar que o espírito humano é formado unicamente por impressões, uma vez
que as ideias são impressões mais fracas e menos vívidas.

182
indiretas. Nas paixões diretas138, não há uma mudança de atenção entre a causa da
paixão e seu objeto. Na hipótese de uma pessoa que não viaja em avião porque tem
medo de que ele caia, a causa do medo coincide com o objeto, a saber, a ideia ou a
impressão de uma viagem em avião. A atenção à causa, que vivifica a paixão, continua
no objeto – avião139.
Quando se tratam das paixões indiretas140, ocorre uma dupla relação entre
ideias e impressões, e a causa difere do objeto. A causa de paixões desse tipo é
sempre a ideia de que algo que produz prazer ou dor está intimamente associado a
nós próprios ou a uma pessoa que nos é próxima. Este é o ponto que nos interessa.
Para sermos mais exatos, a causa das paixões indiretas são coisas (ou ideias de coisas)
que consideramos como sendo de algum modo parte de nós (no caso do orgulho e
da humildade) ou de outrem a quem estamos ligados e queremos ou não (no caso do
amor e do ódio).
O modo como consideramos certas coisas associadas a nós terá um impacto
relevante na associação de nossas paixões a diferentes objetos. De que modo certas
(ideias de) coisas são associadas a nós ou a outra pessoa a qual nos sentimos ligados?
Novamente, por semelhança, contiguidade ou causalidade.
Das quatro paixões indiretas básicas, a mais discutida é o orgulho. Se possuo
uma casa bonita, o objeto do meu orgulho sou eu próprio, na justa medida em que eu
me relaciono à ideia da casa bonita pelo fato de ser o proprietário desse bem. O tipo
de relação entre mim e a casa dá-se por causalidade, pois Hume assim considera a
noção de propriedade141.
Sobre o amor, ele diz que suas causas são as mais variadas, mas sempre ligadas
a uma impressão agradável. À diferença do orgulho, o objeto do amor sempre se
dirige para outra pessoa.
De forma resumida para nossos fins, notemos os principais eixos que
caracterizam as paixões segundo sua taxonomia:

138
Ele cita o desejo e a aversão, a tristeza e a alegria, o medo etc.
139
Estritamente falando, o último objeto do medo não seria exatamente o avião, mas a dor (em
oposição ao prazer) advinda da possibilidade de o avião cair.
140
Ele define quatro básicas: o amor, o ódio, o orgulho e a humildade.
141
Portanto, houve uma transição de ideias: da ideia de casa para a ideia de seu proprietário (eu); e
uma transição de impressões: do prazer estético de olhá-la para o orgulho de possuí-la. Hume
chama tal mecanismo de uma dupla relação entre ideias e impressões.

183
a) Todas as paixões são despertadas pela dor ou pelo prazer, inclusive pela
consideração de que dor e prazer venham a existir no futuro142.
b) Nas paixões diretas: despertam-se imediatamente do prazer ou da dor; a
causa é idêntica ao objeto.
c) Nas paixões indiretas: dupla relação entre ideias e impressões; a causa é
distinta do objeto.
i. Amor e ódio: outra pessoa é o objeto da paixão.
ii. Orgulho e humildade: eu sou o objeto da paixão.

Amor associativo

Havíamos dito que a principal característica das ideias e impressões (como as


paixões) é a capacidade de se associarem entre si e umas às outras. “É difícil para o
espírito, quando está sob a acção de uma paixão, limitar-se a esta única paixão, sem
mudança nem variação. [...] A mutabilidade é-lhe essencial.” (T 2.1.4.3: 336) É assim
que podemos passar do amor para outras paixões que lhe são próximas, como o
orgulho143.
Interessa-nos chamar atenção para um ponto especialmente relevante a
respeito das associações: é que elas tocam não somente as paixões, mas incluem
igualmente seus objetos. Esse ponto de Hume nos dá licença para falarmos de uma
espécie de amor associativo ou amor por associação: porque existe uma transição
entre impressões e ideias, podemos associar ou transferir nosso amor de um objeto
a outro. Essa passagem merece especial atenção:

notamos que, quando amamos ou odiamos uma pessoa, as


paixões raramente se conservam dentro dos seus primeiros
limites; estendem-se a todos os objectos contíguos e englobam os
amigos e parentes daquele que amamos ou odiamos. (T 2.2.2 18:
400, ênfase nossa)

142
Apesar disso, as paixões podem também ser provocadas por instintos sem explicação causal
(fome, por exemplo).
143
Hume cita o exemplo de um pai que ama seu filho e sente-se orgulhoso dele (a ideia de paternidade
associa amor e orgulho, e faz do pai o objeto indireto do orgulho).

184
Como não lembrar dos amores de Marcel? Em diferentes graus, esse
mecanismo vem à tona com as pessoas que exercem fascínio (tantas vezes misturado
com inveja) sobre o protagonista, não necessariamente amantes; em especial,
aquelas consideradas exemplares de uma vida aristocrática quando esta ainda é
inacessível a Marcel (por exemplo, Robert Saint-Loup). Isso ocorre, sobretudo, no
início da relação, uma vez que o convívio tende a amenizar ou erradicar o fascínio,
que é baseado na idealização.
Quando se tratam das grandes paixões do protagonista, o amor associativo
alcança graus extremos. A começar por Gilberte: é o amor de Marcel por ela que torna
Swann e Odette tão espetacularmente importantes para o jovem protagonista, e faz
do sobrenome Swann algo “quase mitológico” (I, CS 132 | I, CS 142). Tudo o que se
referisse, mesmo lateralmente, a Gilberte, tudo o que se avizinhasse à pessoa amada
e tudo que emanasse de seu mundo particular era importante para Marcel, mas
unicamente por causa da própria Gilberte144. Veremos o mesmo se passar com a sra.
de Guermantes e Albertine.
Na Recherche, o amor é contagioso e alastra-se com celeridade. Não somente
ocorre uma associação simbiótica entre pessoas, mas entre pessoas e lugares. Antes
de serem amigos, o nome de Gilberte começaria a se espalhar pela paisagem do
entorno da província – como se espalharia mais tarde por Paris.

E já o encanto com que seu nome havia incensado esse lugar, sob
os espinheiros-rosa, onde havia sido ouvido por mim e por ela, ia
atingir, impregnar, embalsamar tudo o que lhe dicava perto, seus
vós, que os meus tinham tido a fortuna inegável de conhecer, a
sublime profissão de corretor, o bairro doloroso dos Champs-
Elysées que ela habitava em Paris. (I, CS 131 | I, CS 141)

144
O pai, Charles Swann, amigo de longa data da família, exercerá sobre Marcel apaixonado apenas
uma “veneração secundária” (I, MF 400 | I, JF 400). Vemos, porém, que na verdade a veneração é
originária. Se na infância Swann aparece para Marcel como um entrave para o beijo de boa noite
da mãe, não é com menos fascínio que ele fala desse personagem, que aparece em todo o primeiro
volume da Recherche (Du côté de chez Swann). O narrador lhe dedica toda a segunda parte do
volume (“Un amour de Swann”) para traçar a relação de Swann e Odette. No segundo volume, À
l’ombre des jeunes filles en fleurs, Marcel só avalia a veneração por Swann como secundária em
relação àquela que nutre por Gilberte enquanto está apaixonado por ela.

185
Os arredores dos Campos Elísios serão venerados (Marcel andava com o mapa
à mão para ler a rua de Gilberte) ou se contaminará de pena, quando o amor não
vingar. Tal Dante da Vita Nuova, a dizer de Florença após a morte de Beatriz: “Logo
que deste século partiu ficou a dita cidade como viúva, despojada de toda a
dignidade” (XXX: 127); e, um ano depois: “o centro da cidade tão dolente” (XL: 159)145.
Com Albertine ocorrerá o mesmo. Como consequência, para Marcel, esquecer
Albertine será também esquecer tudo aquilo que a ela está associado, e que parece
ser todo o universo: “Ligada como estava a todas as estações a lembrança de
Albertine, para que eu a perdesse seria preciso esquecê-las todas” (III, F 381-2 | IV, AD
66).

Transferência das paixões

Nós propomos que esse mecanismo associativo de Hume, que torna o amor e
o ódio tão expansivos, pode ser mobilizado para a substituição da pessoa amada.
Analisemos como isso acontece.
Na ordem de nossos argumentos, havíamos dito que, popularmente, a
substituição amorosa é a suplantação de alguém por outra pessoa; posteriormente,
vimos que por “pessoa” tomava-se, em maior ou menor grau, uma acepção
funcional.
Outra explicação, mais psicológica, é de ver no que chamamos substituição
amorosa a reorientação dos sentimentos, a priori dirigidos a alguém, para outrem. É
o que Hume chamaria de transferência de paixões. O narrador proustiano também
utiliza o termo como sinônimo de substituição: “o processo de emoções e angústias,
ao menos no que se refira a ela, pois conseguiu desenvolver-se de novo, porém
transferido a outra.” (III, F 341 | IV, AD 17)

145
Lembremos outro caso de amor associativo: com Beatriz em vida, o poeta chora ao saber da morte
de uma moça, unicamente porque um dia a viu acompanhar a amada, e lhe recompensa com dois
sonetos. (ALIGHIERI, Op. cit., VIII: 39-43).

186
Para entender a substituição como tranferência, vamos aprofundar alguns
requisitos, ou melhor, elementos facilitadores na relação entre os objetos, a fim de
que possam se associar e admitir a transferência da paixão de um para outro.
Segundo Hume, há uma hierarquia na consideração dos objetos. Ela permite
ao primeiro contagiar o segundo. Assim, quando um objeto da paixão é muito
considerável, isto é, desperta com vivacidade sensação de dor ou prazer, “produz
sempre uma paixão semelhante para com o segundo [objeto], se o grande e o
pequeno estiverem ligados um ao outro.” (T 2.2.2.24: 404).
Para além da hierarquia na consideração dos objetos, um fator que facilita a
transferência é a ordem específica entre eles: “embora todas as paixões passem
facilmente de um objecto para outro que lhe está ligado, esta transição faz-se mais
facilmente quando o objecto mais considerável se apresenta primeiro. (T 2.2.2.19:
401). Ou seja, a transição funciona melhor do objeto mais considerável para outro
menos. No caso do amor, não estaria errado dizer que ela acontece do objeto mais
amado para um menos, mas que lhe está ligado.

O papel da imaginação

Examinemos com mais detalhe como ocorre a transferência: “Para produzir


uma relação perfeita entre dois objectos” (T 2.2.4.10: 416), isto é, de modo a que um
remeta ao outro e seja, como o anterior, também um receptáculo da paixão, faz-se
necessário um duplo movimento da imaginação: ela deve ser dirigida do objeto A para
o B, mas também é necessário que ela volte de B para A com a mesma facilidade: “Se
um objeto se assemelhar a outro, o segundo objecto deve necessariamente
assemelhar-se ao primeiro” (idem).
O movimento da imaginação opera de A para B por contiguidade (vimos como
o amor e o ódio se estendem a “objectos contíguos” ao primeiro), mas também por
semelhança ou causação, as três formas pelas quais as ideias (dos objetos) se
associam.
Um objeto pode suscitar a imaginação de outro do mesmo modo como uma
impressão pode se ligar a uma ideia: “A impressão presente dá vivacidade à

187
imaginação”, conduzindo essa vivacidade para uma ideia ligada. (T 2.1.6.10: 343). No
limite, o que interessa é perceber o fenômeno da associação entre coisas diversas,
isto é, o fato mesmo de dois elementos poderem se associar.
Ao falar do papel da imaginação, Hume amplia significativamente o
entendimento do que é associar. A associação pela imaginação é uma constante na
noção de substituição de pessoas: tanto se descrevemos a substituição como a troca
de uma coisa por outra, quanto como a transição das mesmas emoções para
diferentes objetos. Ao substituirmos uma pessoa por outra, estamos a associá-la à
precedente.
Marcel enxerga – ou melhor, imagina – semelhanças físicas, contextuais,
psicológicas, de caráter etc. entre certas mulheres e Albertine, e são tais semelhanças
que o motivarão a escolher uma pessoa, e não outra, para melhor substituir sua ex-
prisioneira. O critério de associação pode, a rigor, se estender ao infinito: qualquer
pessoa (ou qualquer característica dela) pode nos fazer imaginar ou lembrar (duas
atividades indiscerníveis em Proust) daquela que amamos e queremos substituir.
A imaginação, como se vê, tem um papel importante, pois é ela quem cria as
relações de proximidade. A cada nova tentativa de substituir Albertine, Marcel irá se
distanciando dela, por critérios de associação cada vez mais remotos. Beirando o
cômico, chegará a associar Albertine a uma outra garota (e potencial substituta)
apenas porque esta andou em um bairro por onde um dia passou a amada.
Mas o laço que o liga às substitutas é, não esqueçamos, duplo: por mais
remoto que seja o critério de associação, ele torna a substituída dependente da
substituta. Isso nos leva à constatação estupefata de que, em última instância,
qualquer outra mulher pode vir a substituir Albertine, requerendo somente que se
imagine a associação. A substituição amorosa por transferência de paixões, por isso,
também enseja uma noção funcionalista de pessoa.
Quando Zeno escolhe a irmã de Ada para se casar, ela é qualquer outra mulher,
no sentido de poder ser ela ou outra, Alberta, por exemplo, desde que aceitasse sua
proposta. Mas não é bem qualquer uma: se trata de uma mulher de um certo grupo,
o das irmãs. Há uma relação de íntima proximidade que permite associar com mais
facilidade Ada, Alberta e Augusta, as três mulheres a quem Zeno pede em casamento.
Significativamente, são todas ligadas por laços consanguíneos – para Hume, “o laço

188
mais forte de que o espírito é capaz” (T 2.2.4.2: 412). A proximidade genética é
reforçada pelos nomes: todos começam com a letra A.
Um dado interessante é que a relação entre substituída e substituta também
marca diferenças, mas nem por isso enfraquece o dispositivo substitutivo. Zeno
caracteriza as irmãs pelo contraste – seja pela idade, pelos traços físicos, pelo caráter.
A história nos mostra que, apesar de ele escolher aquela que é mais diferente de Ada
– é seu oposto em termos de beleza e temperamento –, Zeno continua ligado àquela
por quem primeiro se apaixonou. Onde pensa estar mais distante do objeto
substituído, na verdade, busca-o.
No fim das contas, não interessa tanto os critérios de associação entre duas
pessoas, mas o vínculo que é aí estabelecido por nós. Que esse vínculo possa ser
exclusivamente funcional (uma nova namorada, simplesmente) ou baseado na
aparência física (uma nova namorada com o mesmo tipo de cabelo da anterior, por
exemplo), importa menos.
A tragédia do filme Rebecca (Alfred Hitchcock, 1940) decorre somente porque
a governanta encara a nova esposa do viúvo Mr. de Winter como uma substituta da
falecida patroa, Rebecca, por quem nutre uma devoção desmesurada. Não há nada,
para além de o novo personagem ser a nova patroa e a nova esposa de Mr. de Winter,
que a ligue à morta. Marcel, por sua vez, se diz que “Meu amor por Albertine me fazia
procurar exclusivamente um certo gênero de mulheres” (III, F 435 | IV, AD 133-4),
busca com o passar do tempo as mulheres mais variadas, sem sucesso.
Sob a ótica que nos interessa, a da substituição amorosa, é o “laço duplo” de
que trata Hume, no fundo, que impõe o entrave à substituição. É ele que nos causa
tanto espanto quando é revelado e chama atenção para o que, muitas vezes, não
havíamos nos dado conta: a remissão mútua entre os objetos. Por que esse laço é
um entrave? Porque “prende os objectos um ao outro da forma mais estreita e mais
íntima” (T 2.2.4.11: 417). Quando Marcel tenta se ligar a Andrée – ou a alguma
“operária” ou “as morenas da burguesia” (III, F 434 | IV, AD 133) – está o tempo todo
se reportando à Albertine: “Mas Andrée, para mim, era apenas uma testa de ferro,
uma estrada de ligação, uma tomada de corrente que indiretamente me unia a
Albertine.” (III, F 419 | IV, AD 113)

189
A armadilha da substituição é justamente essa: manter-nos indefinidamente
associados à pessoa que, pensávamos, seria substituída. É assim que, em outro
célebre filme de Hitchcock, Vertigo (1958), Judy será sempre associada à Madeleine,
como veremos.

190
IV.
Algumas reservas

1. Associar sem substituir

Não é sem reservas que podemos ler no Tratado pistas para fundamentar a
substituição de pessoas como aparece no luto de Marcel por Albertine, do ponto de
vista filosófico e psicológico146. Se a noção ampla de associação nos autoriza a falar
de substituições, certos aspectos dos textos de Hume levantam objeções a essa ideia.
Conforme explicamos, a substituição de coisas e pessoas possui um
componente importante: a suplantação (ou a expectativa de suplantação) do
substituído pelo substituto. Hume, contudo, não fala que a passagem da paixão de
um objeto para outro provoque a suplantação, a diminuição ou o desaparecimento
do sentimento dirigido para o primeiro objeto. Ao contrário, são os objetos
secundários (e não os primeiros) que, em uma cadeia longa de associação, podem ser
objeto de uma paixão mais esmorecida.
Estritamente falando, portanto, não se trataria de substituição, mas de
expansão e transferência de paixões, e é disso que fala Hume. No Tratado, não está
em causa o amor pelo primeiro (e mais importante) objeto/pessoa, mas a sua
extensão para objetos que lhe são próximos. Quando estou apaixonado, meu amor
se expande para tudo aquilo que minha imaginação consegue associar à pessoa que
amo.
Embora o Tratado não nos fale sobre apagar o objeto primeiro, ele nos fornece
a chave para o que poderia ser uma substituição: uma “relação perfeita entre dois
objectos” (T 2.2.4.10: 416). Em outras palavras, uma associação tal que a paixão
originalmente dirigida ao primeiro objeto logra se dirigir integralmente para o

146
Para Hume seria a mesma coisa, pois raciocínio lógico e psicológico fazem os mesmos tipos de
inferências.

191
segundo. Embora nem toda a transferência de paixões seja uma substituição, toda
substituição parece pressupor uma transferência afetiva.

História da Inglaterra: duas anedotas

Não encontraremos a transferência como mecanismo da substituição


amorosa no Tratado de Hume, mas na sua obra historiográfica. Merecem destaque
duas anedotas da História da Inglaterra – seu monumental trabalho historiográfico,
publicado em diversos volumes (1754-62, 1778) e escrito de modo intermitente
enquanto Hume trabalhava como bibliotecário em Edimburgo.

I.
Ao tratar do reinado dos anglo-saxões, Hume disserta sobre o rei Edgar (943
– 975). Esse aliado do clero teria ficado conhecido, injustamente, como um homem
virtuoso. No tocante à sua vida amorosa, alguns casos preservados pela História
poderiam ilustrar sua má conduta. Um deles foi a relação com uma amante, pela qual
ele teria se apaixonado “por um tipo de acidente” (H 1.1.2.68): tendo Edgar, em
viagem, desejado avidamente a filha de um nobre, pediu à mãe da moça passar a
noite com ela. A mãe, sem querer ofender o rei nem desonrar a filha, mandou uma
bela criada no lugar. O rei descobriu a mentira apenas na manhã seguinte. À
continuação, nas palavras de Hume:

Ele havia passado uma noite tão contente, que não expressou
nenhum descontentamento com a velha [a mãe da donzela] por
causa de sua fraude; seu amor foi transferido para Elfleda; ela se
tornou sua amante favorita; e manteve sua influência sobre ele,
até seu casamento com Elfrida. (H 1.1.2.68, ênfase nossa)

Podemos conceder que, aqui, é difícil discernir entre amor e desejo. Para
Hobbes, por exemplo, amor e desejo são iguais147. Hume, ao dizer que o amor de

147
“O que os homens Desejam, eles também dizem Amar; e Odiar essas coisas pelas quais dizem ter
Aversão. De forma que Desejo e Amor são a mesma coisa.” (HOBBES, Leviathan, 1.6.23-4: 40)

192
Edgar foi “transferido para Elfleda” (em inglês, transferred to), pode estar a falar, em
primeiro lugar, de desejo, uma paixão diferente. Desejo, para Hume, engaja uma
relação menos profunda que o amor. Não se trata de um instinto (como a sede, a
fome), mas é uma paixão direta e, por isso, mais simples. Posso deixar de desejar um
bolo de chocolate assim que me for ofertado um sorvete de baunilha, sem grande
impacto emocional e sem precisar apreciar o objeto para além da expectativa de
prazer imediato que daí advirá.
Do nosso ponto de vista, apenas o desejo, sendo fundado unicamente na
impressão de prazer, poderia explicar o caráter acidental da conexão afetiva entre
Edgar e Efleda. O rei julgou estar com a pessoa que acabara de desejar, mas acabava
de privar com outra que também desejou. Seria diferente a transferência imediata,
mesmo involuntariamente, de uma paixão como o amor, na qual está implicado a
admiração do caráter e “um desejo de tornar feliz a pessoa amada” (T 3.3.1.31: 680).

II.
Uma outra anedota volta a colocar a opção de substituição amorosa. O rei
Henrique VIII (1491-1547), enciumado após revelações infundadas contra a decência
da rainha consorte Ana Bolena ( ? – 1536), teria sido acometido por grandes crises de
ciúmes que o levaram a abrir um processo contra ela por adultério.

Se o ciúme de Henrique tivesse sido derivado do amor, ainda que


de repente pudesse ter ido até as extremidades mais violentas,
teria sido sujeito a muitos remorsos e contrariedades; e poderia
finalmente ter servido apenas para aumentar esse afeto, no qual
foi fundado. Mas era mais um ciúme severo, fomentado
inteiramente pelo orgulho: seu amor foi transferido para outro
objeto. (H 3.1.31.36, ênfase nossa)

No curso das desconfianças do rei, ele se apaixona pela dama de quarto de


Ana Bolena, e decide casar-se com ela. Apesar de o rei não conseguir reunir provas
contra a rainha, um tribunal condena o irmão dela por incesto e quatro outros
homens. Por fim, Henrique VIII casa-se com a nova amante, Joana Seymour, no dia a
seguir à decapitação de Ana.

193
Ora, não estamos a falar aqui de alguém que o rei conhecera no mesmo dia,
como teria ocorrido com Edgar, nem de alguém de quem ele não gostava. De fato,
sua paixão por Ana teria sido de tal modo intensa a ponto de o levar a pedir o divórcio
da então rainha Catarina de Aragão, o que lhe valeu a excomunhão da Igreja Católica.
Conforme nos narra Hume, durante anos, o rei teria persistido em seu amor
por Ana e na vontade de ter seu divórcio com Catarina validado. Contudo, a paixão,
diante da falta de certeza de posse do objeto, arrefeceu: “Mas a afeição, que subsistiu
e ainda aumentou, sob dificuldades, não havia alcançado a posse segura de seu
objeto, quando definhou de saciedade; e o coração do rei estava aparentemente
distante de sua consorte.”148 (H 3.1.31.34)
Pela explicação de Hume, Henrique VIII talvez já não amasse Ana (ou não a
amasse tanto) quando se apaixonou por Joana. Podemos cogitar que é no momento
em que a paixão pela primeira pessoa desapareceu (ou está em baixa intensidade)
que se pode transferi-la para outra. Seria possível, então, continuar a falar de
“transferência” de uma paixão que acabou? E daquela que está desaparecendo, seria
como transportar uma planta que está morrendo em terra seca para uma terra fértil?
Não é totalmente claro.
Imaginemos o segundo cenário. Se a paixão estiver em declínio, o mecanismo
consistiria em transferi-la para uma nova pessoa e, a partir daí, intensificá-la em grau?
Estaríamos longe do modelo de transferência do Tratado, em que é a paixão pelo
objeto mais considerável que se transfere para um mais longínquo (sempre
mantendo o laço com o primeiro).
Diferentemente de Henrique VIII, o narrador da Recherche busca substitutas
não no declínio, mas no auge de sua paixão – que coincide com a perda de Albertine.
Diferentemente de Edgar, não encontra a pessoa para quem transferirá seu amor (ou
desejo) por acidente, mas por escolha. Mesmo se ele viu por acaso uma desconhecida

148
A causa do arrefecimento da paixão por Ana teria sido, como quer Hume, a dificuldade em
assegurar a posse definitiva de Ana. Poderíamos supor que também pode ter tido papel o costume
de estar com a rainha consorte? Sobre este último fenômeno, Hume explica no Tratado: “Nada tem
maior efeito, tanto para aumentar como para diminuir as nossas paixões, [...] do que o costume e
a repetição. [...] Quando ela [novidade] volta com frequência a nós, a novidade gasta-se, as paixões
acalmam-se, a excitação das tendências cessa e observamos os objectos com mais traquilidade.”
(T 2.3.5.1-2: 490-1) Esse mecanismo é muito conhecido para o leitor da Recherche, e é assim que o
narrador explica a paixão por Albertine (embora, ao contrário do que afirma Hume, nunca alcance
a tranquilidade, pendendo entre a excitação e o tédio).

194
em frente à casa de Albertine, chamá-la para a casa dele e tentar fazer dela uma nova
amante é uma ação motivada pela escolha consciente de esquecer Albertine. É esse
tipo de escolha que motiva a substituição amorosa e que expõe seus limites.
Não nos interessa tanto a anedota no seu conteúdo de veracidade, uma vez
que não se pode, no limite, comprová-la. O que de Hume nos interessa é o modo
como podemos explicar teleologicamente a mudança de sentimentos – criando ou
não uma relação de dependência entre as duas pessoas supostamente objetos de
nosso amor (uma delas apagando a outra). É dessa explicação que virá a resposta
sobre as substituições.
Falar sobre “transferência do amor” pode simplesmente ser um emprego
figurado da língua – e provavelmente também o é –, para falar de alguém que deixa
de amar uma pessoa para amar outra, sem, contudo, pretender implicar uma teoria
filosófica dos afetos. Mas a presença mesma desse tipo de vocabulário em textos
mais tardios de Hume está longe de ser anódina, haja vista a discussão de cenários
afins no Livro das Paixões.

2. O objeto do amor: características ou pessoa como um todo?

Uma segunda reserva do diálogo entre Hume e Proust, quando se fala em


substituir uma pessoa amada, é o que se entende por amor.
É preciso que imaginemos uma pessoa de modo funcionalista para sermos
capazes de descrevê-la como substituta, e para lograrmos (em nossa imaginação, ao
menos) transferir para ela nosso amor, também ele visto de modo funcional. Nesse
ponto, podemos encontrar dificuldades em Hume. Pode-se dizer que, no limite,
sobressaem nele duas visões sobre o amor; uma é claramente funcionalista.
Tratamos de apontá-la nas anedotas sobre a história da Inglaterra e sobre a leitura
que ele oferece de Platão, por exemplo.
Outra é menos, e por isso desafia uma leitura totalizadora de sua teoria em
prol das substituições amorosas. Trata-se do problema de saber se o amor é dirigido
a certas características de uma pessoa ou à pessoa como um todo. Posto de outro

195
modo, há de se perguntar se, por objeto do amor, consideramos certas qualidades
(numa abordagem potencialmente mais funcionalista) ou a integralidade de uma
pessoa – mesmo se por pessoa não haja um conjunto coerente e regular de
componentes ao qual chamar de identidade149.
Um momento em que o assunto aparece indiretamente em Hume é quando
ele fala sobre consanguinidade.

Quem quer que nos esteja unido por uma conexão qualquer tem
sempre assegurada uma parte do nosso amor, em proporção
com a conexão, sem ter em consideração as suas outras
qualidades. Assim, a consanguinidade produz o laço mais forte
de que o espírito é capaz [...] (T 2.2.4.2: 412)

Seguindo o raciocínio de Hume, podemos nos perguntar se amo um membro


de minha família, estrita e exclusivamente, pelo traço de parentesco entre nós, ou se
amo a pessoa que ele é. Amar somente um aspecto (por exemplo, o parentesco)
pode mais facilmente ensejar uma substituição afetiva: troco uma cunhada por outra
cunhada, e assim deixo de amar a anterior e passo a amar a atual.
Ao longo do Tratado, há uma variação de amplitude do termo. Por vezes,
Hume usa “amor” com um sentido bastante amplo, para falar de sentimentos como
a estima e o respeito (cf. COHON, 2008: 181, nota 12). Outras vezes, mais restrito, se
dirige a “outra pessoa, de cujos pensamentos, acções e sensações não somos
conscientes” (T 2.2.1.3: 387).
A certa altura do Livro II, ao tratar de algumas dificuldades sobre amor e ódio,
Hume defende uma ética deontológica: julgamos as ações de outra pessoa segundo
suas intenções. Se forem boas, as ações serão causa de amor por nossa parte; se
forem mal-intencionadas, serão causa de ódio. Contudo, se a qualidade de outrem
for “constante e inerente à sua pessoa e ao seu caráter” (T 2.2.3.4: 408), vai causar
amor ou ódio de modo independente das intenções. Um louco pode nos causar
aversão (aqui equiparada ao ódio), apesar de não intencionar ser louco.
O ponto parece ser então a necessidade de que aquilo que gera nosso apreço
ou repulsa esteja relacionado a uma pessoa por uma qualidade duradoura, constante

149
Para uma discussão sobre a identidade pessoal em Hume, ver: NOONAN (2012: 167-180).

196
e inerente. Pode ser que amemos ou odiemos uma qualidade isolada, porém
duradoura, de alguém. No entanto, se esta qualidade é tão parte da pessoa a ponto
de se confundir com ela, ou ao menos de caracterizá-la, concluímos que o tipo de
amor ao qual Hume se refere toma a pessoa como um todo.
O fato de os aspectos apreciáveis ou não em alguém serem longevos o
suficiente para serem o fundamento das paixões não descarta a hipótese de que
podemos deixar de amar ou de odiar uma pessoa: “Nunca podemos pensar na pessoa
sem reflectir nas suas qualidades, a não ser que o arrependimento e uma mudança
de vida tenham produzido uma modificação a este respeito; neste caso a paixão é
igualmente modificada.” (T 2.2.3.4: 409) Ou seja, podemos fazer uma outra descrição
de uma pessoa que amávamos, e isso gerar por efeito a mudança de nossa paixão.
A discussão de Rachel Cohon (2008) elucida ainda outros pontos a esse
respeito. Não se pode considerar unicamente o prazer ou as vantagens obtidas por
quem ama na persistência do amor. Podemos deixar de gostar de comida asiática
quando ela deixa de nos dar prazer. Mas podemos persistir no amor mesmo quando
não temos nada a ganhar, ou quando consideramos que o objeto do amor não é bom,
ou quando ele não supre nossos apetites.

3. Amor e orgulho

Uma questão advém do tópico anterior, e é a de saber se, pelo modelo


humeano, Marcel sente amor por Albertine. A transição entre o amor e o orgulho é
recorrente, habitual e prevista no sistema de Hume. O amor, paixão cujo objeto é
outra pessoa, pode também tornar-se orgulho, uma paixão cujo objeto sou eu
próprio. Na maneira como Marcel fala de Albertine, essa transição parece estar
presente de uma forma obscuramente circular que extrapola Hume.
Se é certo que, segundo Hume, o amor é sempre direcionado para um objeto
exterior e, portanto, nunca pode ser narcisista, Marcel parece tirar proveito de um
duplo movimento: amar Albertine não é bem desejar o bem para ela, mas beneficiar-
se do prazer de possuí-la.

197
Não nos parece acertado definir exclusivamente como orgulho (como o
concebe Hume) o que busca Marcel ao pretender possuir Albertine. Mas nota-se uma
grande necessidade do protagonista de saber-se proprietário de Albertine. A
sensação efêmera ou a expectativa de possuí-la lhe produz prazer, embora o objeto
a todo momento se lhe escape.
Aqui, vale nos concentrar no modo como, para Hume, o orgulho e o amor são
definidos em relação aos objetos, e como eles se associam entre si. Já sabemos que,
no trânsito de paixões, é comum a passagem de paixões que são próximas, como o
amor e o orgulho. Um pai que ama o filho sente-se a seguir orgulhoso dele porque,
de algum modo – e esse modo é um tipo de forte associação, a consanguinidade – o
filho está ligado ao pai. As fronteiras entre o objeto de amor e o self são, por isso,
tênues, o que permite a mudança das paixões e de seus objetos.
Marcel explora à exaustão a ideia de que o que ama é a projeção de si próprio,
que a amante é a mera “moldura vazia de uma obra-prima” (III, F 393 | IV, AD 81) .
Assim, ele pode tanto ser descrito como alguém cujo objeto da afeição é Albertine
quanto como alguém cujo objeto da afeição é si próprio ou advém de si próprio. Em
ambas as descrições, os princípios da associação reforçam os laços que podem ligar
Albertine a outras garotas substitutas como objetos de amor ou de posse.
Algumas manobras seriam necessárias para imaginarmos “Albertine-
enquanto-objeto-de-posse” (cuja paixão que desperta, finalmente, voltaria para
Marcel) sendo, ao mesmo tempo, “Albertine-objeto-de-amor” (cuja paixão se
direcionaria para ela). Claro está que uma equação deste tipo está fora do sistema
humeano, mas nos faz ver a complexidade do protagonista da Recherche. De um
personagem complexo, só podemos esperar um luto também complexo, e é o que
verificamos.

Sem precisar defender um argumento unificador de toda a obra de Hume, nos


basta perguntar: seria possível, para Hume, substituir Albertine? E para Marcel?
A resposta à primeira pergunta, que tentamos construir ao longo deste
capítulo, é sim. Para Hume, é possível e desejável ir logo atrás de outra pessoa para

198
se curar; também não seria nada descabido descrever esse movimento como uma
substituição da pessoa amada – mesmo se uma descrição assim levanta reservas.
E para Marcel? Que a substituição é desejável, parece ser claro. Que seja
possível, Marcel vacila. Que tipo de explicação contém a substituição de Albertine?
Há, sim, uma ideia terapêutica e funcionalista à la Hume. Mas é possível para Marcel
colocá-la em prática e se curar?

199
V.
Réplicas e serialismo amoroso

Cópia e original

A repetição e a reprodução desempenham um papel relevante na substituição


amorosa falhada de Albertine, mas também na descrição que o próprio narrador,
retrospectivamente, oferece de seus casos amorosos. Antes de examinarmos o
romance, vamos falar considerar o caso de uma obra que mencionamos de
passagem, e que nos permitirá descrever melhor a relação entre substituir e repetir
– Vertigo.
O filme é um exemplo radical de substituição que mobiliza a noção de cópia e
original como um jogo de bonecas russas, e por isso merece mais atenção. No enredo,
o detetive aposentado Scottie é contratado por um antigo amigo da faculdade para
descobrir porque Madeleine, sua esposa, está alegadamente atormentada, sob a
influência de um espírito ancestral. Nesse percurso, ela e o detetive se apaixonam,
mas Madeleine, obsessa, se suicida. O que o detetive não sabe é que aquela mulher
era Judy, e seu suicídio fora simulado: ela havia sido contratada para atuar como se
fosse a real Madeleine, a fim de que o amigo que contratou Scottie pudesse dar cabo,
sem suspeitas, da verdadeira esposa.
Quando mais tarde, ocasionalmente, o detetive (re)encontra Judy, ela leva sua
vida real. Sem ela jamais revelar o segredo, os dois começam a se relacionar. A
semelhança física com a suposta defunta Madeleine impulsiona o detetive a fazer
dela a réplica de Madeleine, por quem ainda está apaixonado. Mas o leitor sabe que
o que ele julga como original era já uma cópia.
O detetive empenha-se em reproduzir em Judy a defunta Madeleine; Judy
aceita o jogo (sem nunca revelar o segredo de que atuara antes), e concorda em se
comportar conforme lhe ordena Scottie. Porém, ela não consegue desempenhar

200
exatamente do mesmo modo o papel. Apesar das vestimentas, do penteado ou do
modo de andar, em tudo parecido à Madeleine que interpretara, algo lhe falta, e não
há a mesma intenção e atitude atormentada de antes. Ambos fracassam, Scottie e
Judy.
Por quem, afinal, Scottie estava apaixonado? Por Judy? Por Madeleine, que ele
nunca viu? Ou por Judy-enquanto-atuava-como-Madeleine? O detetive gostava de
Judy não sendo Judy, de Judy segundo uma certa descrição, e essa descrição está
associada ao papel que ela desempenhava. Aqui, fundem-se o sentido funcional e
teatral. O seu papel criava uma identidade que não coincidia com a Judy real.
Ao querer fazer de Judy a substituta amorosa de seu amor malogrado por
Madeleine (melhor dito: pela réplica de Madeleine), o filme mostra que a substituição
nunca é ontológica, mas funcional. Não se substitui a pessoa, mas a função (ou papel)
que ela desempenha, e que pode ou não ser reforçada por traços de semelhança
física.
Quando inicialmente Marcel tenta substituir Albertine, é para esquecê-la. Mas,
se há um laço duplo e uma visão funcionalista que liga substituído e substituto,
facilmente podemos explicar essa atitude de outro modo: o motivo para encontrar
uma substituta é reproduzir Albertine (na substituta). É por isso que ele não
consegue: porque nenhuma outra mulher será igual a Albertine.
A noção de que a substituição é uma forma de restaurar uma pessoa perdida
e de reproduzi-la em outra pessoa fica desde cedo clara nas escolhas de Marcel. Se
ele convida Andrée, é na verdade como fonte de Albertine, como possibilidade de
replicar Albertine nela (e, como tivemos ocasião de comentar, reproduzir o próprio
Marcel-tal-como-era-com-Albertine em Marcel-como-é-com-Andrée).
Nessa visão, a substituta é uma réplica ou um duplo que repete o original. Esse
mecanismo, a rigor, não começa com a fuga/morte de Albertine e a tentativa de
Marcel de reparar a perda. Na Recherche, e já desde o primeiro tomo, muitas são as
sugestões de que haveria um outro tipo mais arcaico de substituição que dá passo a
um serialismo amoroso.
É assim que haveria a repetição de certos padrões no amor, que ligariam todas
as pessoas por quem Marcel se apaixonara. Esta série, que o narrador descreve por
primeira vez colocando Swann e Odette como modelos, com Marcel vai de Gilberte,

201
passando por Mme de Guermantes, Mlle de Stermaria e desembocando em
Albertine, como a “repetição involuntária de um gesto ancestral” (III, F 530 | IV, AD
263). Potencialmente, poderia se expandir. “Pois por mais que se esqueça de um
amor, ele pode determinar a forma do amor seguinte.” (III, F 534 | IV, AD 255-6). Uma
consideração como esta é meio caminho para prolíferas analogias psicoanalíticas que
consideram o vínculo original entre criança e genitor como protótipo para as futuras
relações amorosas da criança.
Famosamente, Melanie Klein150, por exemplo, teorizou sobre o desejo de
reparação, em relações posteriores, da ferida originária entre mãe e criança: o adulto
procura em relações amorosas substitutos da mãe original, com o intuito de reparar
os desejos que a mãe não lhe pôde satisfazer. Nessa interação, ele é “capaz de
transferir esses desejos (não satisfeitos pelos seus pais) para outras pessoas, que
então representam os objetos de desejo do passado, embora não sejam idênticos a
eles.” (1937: 317)
A situação não é tão simples, pois só aqueles que conseguiram se desvencilhar
da culpa pelos desejos proibidos e se desvencilhar dos próprios pais é que conseguem
satisfazer esses desejos com outras pessoas: “Isto é, somente se o indivíduo cresceu
no verdadeiro sentido da palavra é que suas fantasias infantis podem ser satisfeitas
na idade adulta.” (idem)
Na transposição psicoanalítica que costuma fazer muito da fortuna crítica da
Recherche, a impossibilidade de fusão com a mãe, assinalada já desde o drama de
dormir sem ela durante a infância de Marcel, teria gerado um trauma original
responsável pelas ansiedades do protagonista em relação às futuras relações
amorosas dele. A interdição na infância seria igualmente responsável pela busca
desenfreada, desde a juventude, por espécies de réplicas da mãe151.
Portanto, a sucessão de amores de Marcel seria uma espécie de compulsão à
repetição de padrões cujo original é a mãe152. Algumas frases do narrador apontam

150
Para uma leitura marcadamente kleiniana de Marcel e da Recherche, ver: BERSANI (1986; 1990),
KRISTEVA (1994) e ELSNER (2017).
151
CHARDIN (1990) dirá que a permissividade do pai, ao permitir à mãe ir ter com o filho, impediu o
curso normal do ciúme no complexo de Édipo e teria levado à busca constante do protagonista
pela figura de uma mãe protetora.
152
É esta a ideia que defende DELEUZE (1964) quando fala sobre o desejo por reproduzir versões
restauradas do tema original, o arquétipo materno: “um Tema que nos ultrapassa, uma espécie de

202
nesse sentido: “Quem me diria, em Combray, quando eu esperava o boa noite de
minha mãe com tanta tristeza, que tais ansiedades seriam curadas e depois haveriam
de renascer um dia, não por minha mãe, mas por uma jovem” (III, F 394 | IV, AD 82).
Se o serialismo amoroso inicialmente coloca Albertine como peça original, e
as demais mulheres como réplicas, gradualmente o narrador faz Albertine descender
do trono ao apresentar uma versão bastante platônica do amor. O objeto de seu
desejo não seria Albertine ela própria, mas aquilo que ele amava através dela, uma
ideia: a juventude: “meu amor por Albertine não tinha sido mais que a forma
passageira de minha devoção à juventude.”153 (III, F 508 | IV, AD 223)
Ao esvaziar Albertine de um conteúdo original, que passa a ser localizado nas
ideias, o narrador apela para uma metafísica como saída de emergência para o
sofrimento mundano. Albertine, assim, aparece como uma cópia degradada
(lembremos os significados de Ersatz), o final de uma série de substituições. Nesse
serialismo amoroso, Albertine é, ela própria, cópia e substituta.

Andrée e essas outras mulheres, tudo isso em relação a Albertine


– como Albertine mesma o fora em relação a Balbec154 – eram
desses substitutos do prazer, sucedendo-se uns aos outros em
degradação continuada. (III, F 434 | IV, AD 132-3).

No fundo, não há tanta diferença entre substituir uma pessoa para esquecê-la
ou para reproduzi-la: em ambos casos, a ideia de substituição amarra o amante a
quem quer que ele queira substituir. Ambos casos também possuem uma visão
funcionalista de pessoa, e frequentemente consideram que depende da vontade do
agente lograr substituir uma pessoa.
A substituição, portanto, não resulta na superação do elemento substituído, a
não ser que deixe de se reportar a ele, em outras palavras, que deixe de funcionar
como substituição. Enquanto substituição, não é um remédio que cura.

arquétipo. Imagem, ideia ou essência suficientemente rica para se diversificar nos seres que
amamos [...] se repete nos nossos amores sucessivos.” (1964: 84)
153
A mesma ideia será retomada em Le Temps retrouvé: “[...] depois de vinte anos, espontaneamente,
eu queria buscar, em vez das moças que conhecera, aquelas que hoje possuíam a juventude que
elas haviam tido naquela época.” (III, TR 779 | IV, TR 565)
154
Balbec é signo da juventude, o local onde ele a descobre e a explora com maior intensidade.

203
Para Zeno, trata-se de um consolo: “Estava prestes a dizer que não podia me
resignar em me tornar um estranho para Ada, e que por isso me contentava em me
tornar seu cunhado.” (Op. cit: 164). Trata-se de um consolo que, por vezes, parecerá
ser remédio. Ao se casar com Augusta, Zeno acreditará ter suplantado Ada.
Em algumas alturas, o narrador proustiano coloca o problema como uma
questão de adaptação a qual, cedo ou tarde, aceitamos ao custo da espontaneidade
e do prazer:

“Eu levava para casa as mocinhas que menos me agradavam,


alisava-lhes as tranças virginais, admirava um narizinho bem
modelado, uma palidez espanhola. Antigamente, é claro, [...] eu
sentira o que o meu desejo possuía de individual, e que seria
falseá-lo procurar sarisfazê-lo com outro objeto. Mas a vida [...]
ensinara-me que, à falta de uma criatura, é forçoso contentarmo-
nos com outra.” (III, F 437 | IV, AD 136)

Em outras alturas, o narrador deixa claro que o método não é capaz de


suplantar a pessoa amada e nem apagar o sofrimento. Em Albertine disparue, ele diz:
“Entendia agora os viúvos que julgamos consolados e que, pelo contrário, provam
que são inconsoláveis porque se casam com a cunhada.” (III, F 435 | IV, AD, 134).
Consolo, aqui, não é tomado em seu sentido habitual de atenuação do
sofrimento, mas de superação dele. Por isso, inconsolável é a pessoa que não
consegue esquecer a amada morta e por isso se vincula à irmã dela, por ser a pessoa
viva mais próxima da morta. Uma tal consciência da natureza da substituição (seja
como apagamento da amada, réplica dela ou consolo) vai se tornando clara para
Marcel na medida em que o tempo passa e ele se distancia do dia em que Albertine
morreu:

[...] o desejo por mulheres do mesmo meio de Albertine [não


passava] de uma revivescência da recordação de Albertine” (III, F
436 | IV, AD 135)

O que essas mulheres tinham de Albertine me fazia sentir melhor


o que dela lhes faltava, que era tudo, e que não seria jamais, pois
Albertine estava morta. E assim, o meu amor por Albertine, que

204
me atraíra para essas mulheres, tornava-as indiferentes para mim
[...] (III, F 437 | IV, AD 137)

Albertine e catedrais

O caso de Albertine possui uma complexidade suplementar. E é que não só


Marcel buscava uma substituta que de algum modo lhe recordasse Albertine: o que
ele gostava em Albertine estava localizado no passado, era tanto Albertine de então
quanto o tempo vivido com ela:

De maneira que, mesmo a semelhanca, com Albertine, da mulher


que eu havia escolhido, a semelhanca, se conseguisse obtê-la, de
sua ternura com a de Albertine, apenas me fazima sentir melhor
a ausência daquilo que, sem o saber, eu havia procurado [...] ; ou
seja, a própria Albertine, o tempo que tínhamos vivido juntos, o
passado, em cuja busca andava eu sem o saber. (III, F 436 | IV, AD
135)

Albertine é o tempo vivido junto com ela, como um livro é o tempo que
passamos a ler. A comparação não é inócua. O tempo que passamos a ler um livro
inclui a pessoa que éramos e tudo o que se passava à nossa volta enquanto o líamos.
Proust desenvolve essa ideia de leitura no longo prefácio da tradução,
publicada em 1906, de Sesame and Lillies [Sesame et les Lys], de John Ruskin155. O
texto, chamado “Sur la lecture”156 se inicia com o narrador lamentando que tudo
aquilo que o atrapalhava na leitura dos livros preferidos resultaria ser o mais precioso
e memorável da experiência da leitura, desde a abelha ou o raio de sol que o obrigava

155
Em 1897, Proust teve contato com o inglês John Ruskin (1819-1900) por meio do artigo “Ruskin et
la religion de la beauté”, assinado por Robert de La Sizeranne e publicado em La Revue des Deux
Mondes. Antes, havia lido excertos traduzidos para o francês no Bulletin de l’union pour l'action
morale. Grande admirador de arquitetura e, sobretudo, das catedrais góticas, Proust escreveu
sobre o tema e sobre Ruskin em diversas ocasiões. Dedicou seis anos à tradução de The bible of
Amiens e Sesame and Lillies, apesar das limitações de seu inglês. Para as traduções, ver a edição
comentada de Jérôme Bastianelli, Proust Ruskin (2015).
156
Posteriormente, o prefácio seria publicado como um ensaio pela NRF em Pastiches et mélanges
(1919), sob o título “Journée de lecture”.

205
“a erguer os olhos da página ou a mudar de lugar”, até a entrada da cozinheira
faladora para preparar a mesa:

[...] tudo isso que a leitura nos fazia perceber apenas como
inconveniências, ela as gravava, contudo, em nós, como uma
lembrança tão doce (muito mais preciosa, vendo agora à distância,
do que o que líamos então com tanto amor) que, se nos acontece
ainda hoje folhearmos esses livros de outrora, já não é senão como
simples calendários que guardamos dos dias perdidos, com a
esperança de ver refletidas sobre as páginas as habitações e os lagos
que não existem mais. (PM, 1919: 237 | 2003: 09-10)

Em Le temps retrouvé, o narrador dirá: “uma coisa que vimos em certa época,
um livro que lemos, não ficam ligados para sempre somente ao que havia ao nosso
redor; este associa-se tão fielmente ao que éramos então”, que só pode ser sentido
“pela pessoa que éramos naquele tempo.” (III, TR 704 | IV, TR 464). O mesmo se
passa com Albertine. A consciência da impossibilidade de reproduzir uma certa
realidade – porque ela depende não só da pessoa ou lugar que queremos reaver,
como de quem fomos nós em relação a eles e a um estado de coisas a eles associados
– interdita qualquer tentativa de restaurar Albertine em outra pessoa (uma forma de
substituir o objeto perdido).
Se levarmos em conta as invectivas de Ruskin contra o tipo de restauro
praticado no século XIX nas igrejas góticas francesas, e que tanto influenciaram
Proust, entenderemos melhor a discussão sobre querer reaver Albertine. Esse tipo
de restauro, cujo maior expoente foi Eugène Viollet-le-Duc (1814-1879), consistia na
recuperação física de edifícios ou monumentos, de modo que, pela aparência, eles
fossem idênticos ao que teriam sido originariamente (ou ao que se julgava como tal).
Apesar dos estudos iconográficos da situação original dos edifícios que orientavam o
restauro, a imaginação dos restauradores inevitavelmente acabava exercendo um
papel importante157.

157
Entre os casos mais controversos está a flecha da catedral de Notre-Dame de Paris. Construída por
volta de 1250 com a função de também albergar sinos, ela foi ao longo dos séculos parcialmente
destruída pela ação dos ventos e da chuva, até ser desmontada no século XVIII. Durante os
trabalhos de restauro da catedral, na metade do século XIX, Viollet-le-Duc decide construir uma
nova flecha com fim ornamental, e para isso ele não se inspira na flecha precedente, mas em uma
que ele próprio havia concebido em 1852 para a catedral de Orléans. A fim de ornamentar o

206
Considerava-se então que haveria um momento de máximo esplendor de uma
obra arquitetônica, e que ele se localizava em um passado originário. Ao resgatar (e,
em parte, inventar) a aparência física do objeto, pensava-se que se estava fazendo
justiça à sua história.
Tal atitude, porém, é problemática: ela separa a relação que a própria matéria
estabelece com o tempo. Não se reconhece que a passagem do tempo é ela mesma
parte da história de um objeto; arbitrariamente, se define um momento e uma
aparência como superiores e devendo ser imutáveis. Se a passagem do tempo é parte
do objeto, não é possível restaurá-lo em suas condições originais.
Proust irá além da matéria em “La mort des cathédrales”158. Nesse texto, ele
define o que é uma catedral e defende por que não deveria ser dessacralizada (no
seguimento da lei de 1905 que previa a separação entre a Igreja e o Estado).
Segundo Proust, o que dá nome e sentido a uma catedral – e, por extensão, a
qualquer igreja –, ultrapassa a matéria de que ela é feita. Catedral é uma unidade
formada por pedra e fiéis, vitrais e culto; em outras palavras, é tanto um edifício
arquitetônico quanto o uso que lhe damos, incluindo a interação das pessoas durante
as cerimônia; é também a história marcada nas pedras, revelando a passagem do
tempo. A cada missa, a catedral acontece. Por isso, em uma sociedade onde
hipoteticamente a religião tivesse desaparecido (é o exemplo fictício que Proust
imagina), a catedral perderia seu sentido.
A posição de Proust neste ensaio é oposta ao pensamento de Viollet-le-Duc. O
primeiro favorece o uso e a história do edifício ao longo do tempo, ou seja, valoriza
as marcas do tempo; o segundo, a recuperação de um tempo passado, aqui
identificado com a aparência.
Em relação à prática do restauro na França, a Recherche tampouco economiza
críticas. Albertine, por exemplo, diz sobre a igreja Marcouville-l’Orgueilleuse, com

pináculo, ele concebe 16 estátuas dos apóstolos e evangelistas, posteriormente esculpidas. É um


consenso entre público e críticos que o rosto de São Tomás possui os traços do arquiteto. Ver
MANCA (2019: 38-41).
158
O artigo apareceu pela primeira vez em 16 de agosto de 1904 no jornal Le Figaro, e foi
posteriormente alterado e reunido no longo ensaio titulado “En memoire des églises assassinées”,
publicado em 1919 em Pastiches et mélanges.

207
desprezo, “Ela é restaurada” enquanto Marcel enganara-se pela beleza dos raios do
sol sobre a fachada. (III, F 377 | IV, AD 61)
Nota-se a influência de Ruskin sobre Proust. Ele criticava a restauração como
“uma destruição da qual não se salva nenhum vestígio: uma destruição acompanhada
pela falsa descrição da coisa destruída.” (2018 [1849]: 79). Algo “tão impossível
quanto restaurar os mortos” (idem). Por isso, ele defendia que se deixassem
aparentes as marcas do tempo159.
Curiosamente, Martin Bressani (2014) descreve a posição de Viollet-le-Duc
como alguém incapaz de fazer o trabalho do luto. Contudo, a abordagem claramente
freudiana de Bressani é pouco convincente e se propõe a dar uma unidade
psicológica para todo o conjunto da obra de restauro do arquiteto. Deste modo, ele
a explica como “o aprofundamento progressivo de uma identificação com o passado
baseada na perda” (2014: 27). O luto patológico é imputado a experiências biográficas
traumáticas e a perdas significativas, como a da mãe.
Apesar do evidente reducionismo e causalidade na leitura da obra extensa de
Viollet-le-Duc (que inclui igualmente o célebre Dictionnaire raisonné de l’architecture
française du XIème au XVIème siècle), pode-se dizer que o pensamento inscrito na
atitude restauradora do arquiteto é a de um enlutado refratário a aceitar o fim e/ou
a mudança dos objetos pela ação do tempo.
Tentar restaurar uma catedral em um mundo sem rituais religiosos públicos
resultaria na negação da catedral. Comparativamente, tentar restaurar Albertine em
outra pessoa, em um mundo já sem o mesmo Marcel que a amara, já sem a interação
entre ele e Albertine, já sem o tempo vivido com ela – é tão impossível quanto
indesejável.

159
Apesar da grande influência de textos como The seven lamps of memory de Ruskin nos debates
internacionais sobre a restauração e, já no século XX, da obra do italiano Cesare Brandi, a prática
restauradora na França historicamente se alinhou mais ao modelo de imitação (“à l’identique”).
Após os incêndios que destruíram grande parte de Notre-Dame, incluindo a flecha, a opinião
pública majoritária reclamou pelo restauro idêntico da catedral, tal como foi entregue por Viollet-
le-Duc – incluindo uma nova flecha. Ver: GARAT (2019), BOMMELAER (2020) e CACHON (2020).

208
Enquanto houver o impulso de substituição, Marcel permanecerá ligado a
Albertine, como Mr. de Winter a Mrs de Winter, como Scottie a Madeleine. Mesmo
quando, em Vertigo, Scottie descobre que Madeleine é Judy, ele de fato não se liberta
do passado, mas o reproduz, o que se confirma pela repetição da morte trágica da
garota.
A substituição é motivada como instrumento para o esquecimento e a
superação. Marcel, ao conjecturar estar com outras mulheres, quer sentir-se
poderoso para obliterar a memória e os sentimentos que nutre por Albertine. Mas as
tentativas de substituição se mostram todas fracassadas.

Gostaria que a recém-chegada viesse morar comigo e me desse à


noite, antes de recolher-se, um beijo familial de irmã. De modo
que eu pudesse acreditar – se já não tivesse experimentado antes
a presença insuportável de uma outra – que lastimava mais a
ausência de um beijo que de certos lábios, de um prazer que de
um amor, de um hábito que de uma pessoa. Gostaria igualmente
que a recém-chegada pudesse me tocar Vinteuil como Albertine,
conversar comigo sobre Elstir como ela o fazia. Tudo era
impossível. (III, F 435-6 | V, AD 134-5).

Andrée e as demais mulheres que ele procura gravitam em torno da figura de


Albertine, lhe fazem referência, apelo, homenagem – mesmo onde ele pensa que a
apaga. Em outras palavras, não o deixam esquecer a amada.
Mesmo em Veneza, espaço que o narrador anuncia como sendo o lugar onde
ele se dá conta da indiferença a que chegara em relação a Albertine, não é um lugar
de exceção. Ali se repetem os mesmos fantasmas. Por exemplo, ao se apaixonar por
uma das muitas austríacas de férias, que lhe fazia recordar Albertine:

[...] encontrava mais facilmente essas mulheres do povo,


vendedoras de fósforos, enfiadeiras de pérolas, trabalhadoras
em vidro e rendeiras, pequenas operárias de grandes xales
negros franjados que nada me impedia de amar (pois eu já
esquecera em grande parte Albertine), e que me pareciam mais
desejáveis que outras, pois lembrava-me ainda um pouco dela.
(III, F 493 | IV, AD 205)

209
Entre elas havia uma, cujas feições não se pareciam com as de
Albertine, mas que me agradava pela mesma frescura de tez,
pelo mesmo olhar risonho e fácil. Em breve senti que princiiava a
lhe dizer as mesmas coisas que dizia no começo a Albertine [...]
Aquilo não durou; ela devia voltar para a Áustria [...]. (III, F 511 |
IV, AD 227-8)

É sintomático que a derradeira mulher com quem ele estabelece laços íntimos
de que temos notícia em Albertine disparue não tenha qualquer caracterização e
sequer seu nome seja mencionado: “eu tinha em Paris certa moça que dormia num
apartamento alugado por mim” (III, F 534 | IV, AD 255). Ela só pode ser vista como
substituindo a função de prisioneira outrora de Albertine: ele a “ocultava aos
visitantes” e ela “preenchia” a vida dele, “como outrora Albertine”. Para visitar
Gilberte em Tansonville, “tive de alcançar dela que se fizesse guardar por um de meus
amigos que não gostava de mulheres, durante alguns dias.” (III, F 534 | IV, AD 256)
Em Le Temps retrouvé, ele fala de alguém que amava, também sem qualquer
delonga:

Ocorrendo quando não mais servia para coisa alguma, essa


reviravolta da vida [o fato de já não se interessar por Albertine] me
entristecia profundamente, não por causa de Albertine, que eu
teria recebido sem prazer se me fosse devolvida, não da Touraine
mas de além-túmulo; mas por causa de uma jovem a quem eu
amava e que não podia chegar a ver. (III, TR 562 | IV, TR 284)

A nova garota não é importante o suficiente para se prolongar por mais de


uma página. Isso mostra dois pontos interessantes. Marcel, a seguir de Albertine,
continua, bem ou mal, sua vida afetiva com outras mulheres. Não se torna um
recluso160. Apesar disso, nenhuma lhe parece gerar uma intensidade afetiva
comparável àquela que ele sentia pela amiga perdida. Se ele sugere por vezes que
elas cumpriam a mesma função de Albertine, não conseguiram obliterá-la nem
substituí-la. Afinal, como bem aponta Jean Allouch, “as pessoas cuja morte

160
Mais adiante em TR, ele dirá, de passagem: “Quando uma moça vinha me visitar [...]”. (III, TR 597 |
IV, TR 328)

210
lamentamos são precisamente aquelas que têm o status de seres insubstituíveis.”
(2007: 08)
Se Marcel consegue aliviar a dor aguda pela perda de Albertine (o que é
diferente de “se curar” ou esquecer Albertine), será menos por uma substituição
enquanto método racionalmente empregado para um luto sumário do que por seguir
a vida, com a passagem do tempo, que engendra mudanças em nós e pode contribuir
para a diminuição de algumas penas: “Não chegamos a mudar as coisas conforme o
nosso desejo, mas aos poucos o nosso desejo muda. [...] Não pudemos superar o
obstáculo, como o queríamos de qualquer maneira, porém a vida nos fez contorná-lo
e transpô-lo” (III, F 356 | IV, AD 35). Não é uma volta por cima, Albertine nunca
desaparecerá; mas já não será para sempre como no primeiro dia em que recebeu a
notícia de sua partida.

211
IV.
Querer se apaixonar

Conceber a transferência de uma paixão intacta de uma pessoa para outra, de


modo a substituir a primeira pela segunda, como Marcel alega querer em relação a
Albertine, implica a associação de pessoas (a substituída e a substituta) com um “laço
duplo”. Também implica uma explicação teleológica do que é se apaixonar, que traz
alguns problemas. O maior deles é tomar como volitiva uma ação – apaixonar-se ou
desapaixonar-se – que muito pouco possui de volição.

Teleologia e causalidade

I.

Para tal, convém explicitar a teleologia envolvida na ideia de substituição.


Tomemos a definição de G. H. von Wright a respeito da explicação teleológica de um
comportamento: deve-se “apontar nele um objeto de intenção” (VON WRIGHT, 1971:
89). No caso que nos interessa, poderíamos ilustrar com a seguinte afirmação:

(a) X começou a amar B para deixar de amar A.

Explicações teleológicas normalmente apontam para o futuro. Tipicamente, o


objeto desse tipo de explicação é um item do comportamento ou um resultado do
comportamento. Comportamento, para nossa discussão, possui um caráter de ação.
Assim, temos: “Por que X começou a amar B?”, “Para esquecer A”161. As premissas e
a conclusão, na forma de um argumento, podem ser explicitadas no esquema abaixo:

161
Como vimos no capítulo anterior, há uma explicação da substituição como um método tanto para
esquecer a pessoa amada quanto para reproduzi-la. Ambos partilham as mesmas características: a

212
(a) X intenciona deixar de amar A.
X considera que, amando B, deixará de amar A.
X começa a amar B.

Não é nosso interesse aqui qualificar, em termos psicológicos mais profundos,


o que é amar alguém ou deixar de amar alguém. Para nossa discussão, poderíamos
substituir “amar” por “gostar” ou mesmo por “se apaixonar”. Não estamos
sugerindo que tais termos sejam sinônimos, mas que a troca de um por outro, no
conjunto do argumento, não altera significativamente a natureza do problema – o de
saber se alguém pode amar B para deixar de amar A. No mesmo sentido, pode-se
igualmente tomar “deixar de amar A” por “esquecer A”, tal como são utilizados
indistintamente na linguagem comum – e por vezes pelo narrador proustiano.
Inúmeros problemas advêm de uma posição como esta. O mais evidente é
considerar “começar a amar B” (e sua contraparte, “deixar de amar A”) como um
item do comportamento. Como tal, ele seria uma ação intencional que podemos ou
não realizar. Isso consideraria uma ideia de vontade imbuída na ação “apaixonar-se”
ou “desapaixonar-se”. A substituição amorosa pode ser algo racionalmente dirigido?
Se lembrarmos da narrativa de Hume sobre Edgar e Henrique VIII, a paixão
inicialmente dirigida para uma pessoa é transferida para outra. Na primeira,
acidentalmente, de maneira involuntária. Na segunda, ao cabo das desilusões com a
primeira pessoa, as quais teriam diminuído sua paixão por ela – em todo caso, não é
claro que apaixonar-se por Joana, a dama de honra da rainha consorte, tenha sido
resultado da vontade do rei.
Para Marcel, quando convida Andrée ou a garota desconhecida para sua casa
(e para Zeno, quando pede Augusta em casamento), a história é outra. Por trás da
natureza aparentemente impulsiva desses encontros por parte de Marcel, há uma
decisão premeditada de encontrar uma substituta e transferir a quota de amor para
ela. Uma decisão parecida a de alguém que quer transferir uma soma de dinheiro,
uma medalha, uma relíquia.

dependência do termo substituto em relação ao substituído, a visão funcionalista e a acepção


volitiva do que é apaixonar-se ou esquecer alguém.

213
A explicação teleológica qualifica “amar” ou “se apaixonar” como uma
escolha, e disponível para o agente. As escolhas nem sempre possuem motivos162,
embora sejam intencionais. Por vezes, decidimos sem razão aparente nem remota.
Mas não são os motivos aqui o mais problemático: é a ideia mesma de escolha.
No caso da decisão de Marcel de apaixonar-se por Andrée – ou de Zeno por
Augusta –, considerá-la tanto uma escolha fortuita quanto coberta de razões é
infundada, pois, em primeiro lugar, não parece haver muitos casos nos quais
apaixonar-se seja resultado direto de uma decisão do agente – seja ela fortuita ou
não. Isso vai no mesmo sentido do que pensa Hume: “a razão por si só jamais pode
produzir uma acção ou gerar uma volição.” (T 2.3.2.4: 482)
Marcel pôde decidir ir de férias a Balbec, onde conheceria Albertine, por quem
viria a se apaixonar; pôde decidir aproximar-se do grupo de garotas; pôde decidir
inclusive dar prosseguimento à relação com Albertine em Paris; mas não pôde decidir
apaixonar-se por ela. Contudo, no seu desejo (e ilusão) de controle, o narrador jogará
constantemente com essa possibilidade.
A explicação segundo a qual “me apaixonei por A por considerar que fazê-lo
definitivamente me levaria a esquecer B”, apesar de responder satisfatoriamente à
questão “Por que começo a gostar de B?”, não é conclusiva. Pode ser que eu
considerasse que me apaixonar por B não levaria definitivamente ao esquecimento
de A, mas o favoreceria ou aumentaria a probabilidade de que isso acontecesse.
Teríamos, portanto, de alargar o sentido da explicação teleológica de ação para
entender a proposição163.

II.

Outro problema relevante, ligado ao anterior, é quanto a verificar uma


proposição deste tipo. Embora apaixonar-se possa assumir expressões e gestos
externos, trata-se de um estado mental ou emocional cujas marcas nem sempre são

162
“A escolha, embora necessariamente intencional, pode, no entanto, ser inteiramente fortuita”
(VON WRIGHT, 1971: 99).
163
Sobre este aspecto, ver VON WRIGHT (idem: 98-100).

214
visíveis. Ter taquicardia, suores ou tremores ao ver alguém é um sintoma fiável,
necessário ou mesmo suficiente para afirmar que estamos apaixonados?
Os sinais externos da paixão, que em todo caso não são suficientes para
atestar a presença dela, podem inclusive ser simulados. Dante é pego publicamente
de surpresa quando olha insistentemente para Beatriz na igreja; com medo de
descobrirem o alvo de sua paixão, afirma ser outra moça, a que estava ao lado de
Beatriz, e para ela compõe “umas trovinhas”164.
Se a questão é, ao contrário, deixar de amar alguém, a verificação dá-se por
qual critério: quando deixamos de sofrer de amor? Quando esquecemos da pessoa
amada? Ou, ainda, quando ela se nos é indiferente? Marcel parece flertar com todas
essas possibilidades (ver último capítulo desta tese).
Por trás da explicação teleológica, é importante notar também a dimensão
causal. Ao dizer “X começou a amar B para deixar de amar/esquecer A”, o agente
toma como certo que “começar a amar B” é causalmente relevante para alcançar o
estado que intenciona, a saber, “deixar de amar/esquecer A”. Ou seja, começar a
amar B é um meio cujo emprego tem como consequência esquecer A.
O fato de X poder se enganar não invalida a explicação. A explicação pode ser
correta, apesar de incorretas a crença e a aposta de X no meio para alcançar o que
intenciona. O problema poderia ser resolvido ao expandir a quantidade de meios?
Podem haver muitos meios que separam a intenção de deixar de amar A de sua
realização efetiva, como também muitos outros meios podem separar a intenção de
amar B de sua realização efetiva. Cumprir todos os meios garantiria o fim? É possível
cumpri-los? Como defini-los?
Parte do espanto do leitor ao perceber Marcel planejar se apaixonar por outra
mulher ou esquecer Albertine é que não se pode apostar em uma longa cadeia causal
de situações intermediárias que possibilitariam tal fim: o agente não controla esse(s)
meio(s), e por isso não pode colocá-lo(s) em operação. Além disso, a existência de
situações que ocorrem antes de alguém se apaixonar não faz delas meios, ou seja,
causalmente relevantes para a obtenção do fim.

164
“Com esta dama me encobri alguns anos e meses; e para melhor o fazer crer a outrem, fiz para ela
certas trocinhas em rima, que não fora minha tenção escrever aqui, se não em quanto servisse a
tratar daquela mui nobre Beatriz” (ALIGHIERI, Op. cit., V: 35)

215
Zeno poderia ter aprendido a tocar bem violino, e nem por isso
necessariamente se tornaria o alvo da paixão de Ada; Marcel poderia reproduzir
exatamente o que fez antes de se apaixonar por Albertine, e nem por isso se
apaixonaria por Andrée, pois muito do que é se apaixonar não advém de nada que
conscientemente fazemos. Por mais que Scottie tente reproduzir em Judy a defunta
Madeleine, e Judy faça o mesmo, ele não se apaixona por ela.
A explicação teleológica mais radical, e que mais fortemente subsidiará a
noção de substituição amorosa, fazendo dela um instrumento urgente e desejado na
cura do desgosto amoroso, é a seguinte: “Somente é possível deixar de amar A ao
amar B”. Amar A e B é, portanto, incompatível.
Tomado em seu extremo, o pensamento substitutivo, ao intensificar o grau de
causalidade, faz do segundo termo, “amar B”, a única condição que torna possível
“deixar de amar A”; além disso, faz de “deixar de amar A” a única razão para “querer
amar B” (e, para todos os efeitos, “amar B”). Mas querer se apaixonar é tão
disparatado como querer esquecer quem amamos.

Outra forma de explicar a situação é a seguinte:

(b) X começou a amar B porque deixou de amar A.

Nesta explicação tipicamente causal, a atenção está no passado. Ela não faz
sentido para o caso de Albertine-Andrée, uma vez que a substituição não se realiza.
Mas, quando Marcel enfim encontra outra prisioneira, no final de Albertine disparue,
ou quando, em Le Temps retrouvé, afirma amar outra mulher, não se pode concluir
que sua explicação, querendo ser do tipo substitutiva, seja de fato verificável.
Para o pensamento substitutivo, ou para Marcel-que-quer-esquecer-Albertine,
começar a gostar de B é necessário para esquecer A. Esquecer Albertine é também,
deste ponto de vista, uma condição suficiente para gostar de outra pessoa. Ora,
posso esquecer A, sem contudo me apaixonar por B. Mas, no discurso da
substituição, não é assim; deixar de amar A é uma condição necessária e suficiente
para gostar de B.
Se enfocarmos não o apaixonar-se, mas o desapaixonar-se, teríamos:

216
(c) X deixou de amar A para amar B.
[substituição em sentido forte ® explicação teleológica]

(d) X deixou de amar A porque começou a amar B.


[substituição em sentido fraco ® explicação causal]

(e) X deixou de amar A ; X ama B.


[sem relação de substituição]

Em (c), deixei de amar alguém antes, de modo que pudesse gostar de outra
pessoa; como se fosse um pré-requisito ao qual decido atender ou que coloco em
prática com o fim de amar outra pessoa. Deixar de gostar de A justifica-se tão
racionalmente como começar a gostar de B. Trata-se de uma explicação teleológica
e fortemente substitutiva.
No caso (d), deixar de amar alguém é uma avaliação retrospectiva de quem
começou a amar outra pessoa. Pode ter havido um período em que eu gostava de
ambas, inclusive. Deixar de amar não é descrito necessariamente como resultado da
vontade: pode ser a consequência (involuntária) ou um efeito secundário de eu ter
começado a amar outra pessoa. Mantém-se neste caso um modo de substituição,
mas não pronunciado e não intencional.
Por fim, o cenário (e) é o único em que as duas partes da explicação não estão
ligadas por causalidade165. Deixar de amar e começar a amar são situações
independentes e situadas potencialmente à distância no tempo. Já não subsiste um
pensamento substitutivo justamente porque um termo não responde ao outro. Se as
paixões fossem matéria de fácil organização, alguém poderia dizer assim: “Em 2020,
deixei de amar A; em 2022, comecei a amar B”.
Curiosamente, é em geral muito mais difícil apontar quando deixamos de
gostar de alguém do que quando começamos a gostar. Podemos nos apaixonar à

165
Se quisermos ser humeanos, diríamos que a única causalidade que existe entre “deixar de amar X”
e “amar Y” é que frequentemente uma situação ocorre a seguir de outra. Sobre causalidade em
Hume, ver especialmente “Do conhecimento e da probabilidade” (T 1.3: 103-221). Contudo, o que
nos interessa é apontar o problema da explicação da substituição amorosa: imputar a causa do
amor pela pessoa substituta ao esquecimento da pessoa substituída.

217
primeira vista, mas é pouco plausível deixar de amar de modo imediato166. Isso torna
mais difícil aderir aos comentários de Marcel sobre ter esquecido definitivamente
Albertine e, portanto, ter superado a perda.
A intermitência parece ser um elemento muito mais presente na dor da perda
do que na paixão. Em À l’ombre des jeunes filles en fleurs, por exemplo, Marcel não
esquece que está apaixonado por Gilberte; ele a esquece quando já não mais gosta
dela. A paixão, em seu auge, está sempre presente. Porém, quando perde Gilberte ou
Albertine, a dor da perda por vezes emudece, para depois voltar a golpeá-lo.

Sentimentos sobrepostos

Para os tipos de explicação amorosa acima, (b), (c), (d) e (e), é inconcebível
alguém que goste de duas pessoas ao mesmo tempo. No contexto do luto, podemos
vir a amar outra pessoa apesar de seguirmos gostando da pessoa que perdemos?
Esta, nos parece, é a maior dificuldade de Freud em “Luto e Melancolia”.
Em quem está drasticamente concentrado na pessoa que perdeu, Freud
sugere que não há libido suficientemente disponível para se ligar a outra pessoa. Por
isso, seria difícil conceber uma paixão intensa regularmente dirigida para duas
pessoas, uma morta e outra disponível. Daí que fosse necessário, primeiramente,
uma disponibilização da energia.
Em 1917, para Freud, disponibilizar a libido somente é possível com a ruptura
total com o objeto anterior. É difícil alojar nesse pensamento econômico e
exclusivista da libido a hipótese de que ambos investimentos da libido possam ser
compatíveis, em graus diferentes.
Uma alternativa ao modelo exclusivista seria a seguinte:

166
Isso talvez possa ocorrer em casos, como coloca Hume, em que mudamos a avaliação que
tínhamos a respeito das qualidades de uma pessoa (T 2.2.3.4). Pensemos em situações extremas
nas quais quem amamos nos causa um mal maior e/ou que nos vemos completamente enganados
a respeito da identidade da pessoa que amamos ou da descrição que fazíamos a respeito dela.
Ainda assim, é difícil concluir que tal decepção teria como consequência imediata deixar de amar.
Em L’Adversaire, de Emmanuel Carrère (2000), tivessem as vítimas sobrevivido, teriam
imediatamente deixado de amar o protagonista?

218
(f) X não deixou de gostar de A, e/mas gostou também de B.
[sem relação de substituição]

Que Marcel se ligue a outras mulheres depois da perda de Albertine (e se ligue


de modo muito menos intenso) não é prova de que, como quer Ricciardi, o
protagonista esqueceu completamente Albertine. Muitas vezes, seguimos gostando
de alguém que já não está disponível, embora tenhamos continuado a viver e nossa
libido tenha se ligado a outras pessoas. Isso pode ter acontecido com Marcel. Em
todo caso, o afeto dirigido às demais pessoas que ele declara ter vindo a gostar não
é narrado com qualquer intensidade.
Dizer que Albertine segue presente em Marcel tampouco exige que
expliquemos em que consiste exatamente essa presença: se é lembrar dessa pessoa
com mais ou menos regularidade e intensidade, se é querer estar ao seu lado etc.
Pode ser tudo isso, e pode ser que ela está presente, como nos parece, no novo modo
como o protagonista olha a vida, conforme discutiremos no próximo capítulo.

219
CAPÍTULO VI
MUDANÇAS

Marcel não logrou substituir Albertine. Mas houve algo que podemos chamar
de “resultado” do luto?
Havíamos chamado atenção para o caráter involuntário, emocional,
processual, intermitente e idiossincrático do luto. A ser assim, projetar seu fim,
entendido como a renúncia voluntária em relação ao morto, pode não fazer sentido
para quem está em luto, mas apenas retrospectivamente.
Como avaliar se Marcel “curou-se” de Albertine? Ele encontrou consolo para
a morte dela? Analisaremos a temporalidade do luto, mostrando que só podemos
falar sobre superação a partir de um comentário que leve em conta a história de vida
de uma pessoa e que vá além de critérios comportamentais.
Vamos nos debruçar sobre as mudanças que a perda de Albertine (e também
da avó) provocaram em Marcel, sem com isso implicar uma relação causalista. Nessa
análise, daremos especial atenção à cena do “baile de máscaras”. Finalmente, será a
ocasião para falarmos sobre o final do romance e o papel dos mortos para o livro que
o narrador pretende escrever.

220
I.
Temporalidade

Sincronicidade

O luto funda um novo calendário para Marcel, que passa a remeter o início dos
tempos à perda. Tudo começa a ser contado a partir dela: “era a primeira vez que me
levantava da cama desde que Albertine se fora” (III, F 339 | IV, AD 13).
Outro elemento curioso da temporalidade é que, diz o narrador, o luto
sincroniza todas as dores de uma vida. Perder Albertine é voltar a perder tudo e
todos, é reviver todas as dores em um só instante. Todas os pesares anteriores
ressuscitam na dor de uma nova morte, pela memória sensorial das perdas
anteriores: a dor se torna “algo contemporâneo a todas as épocas da nossa vida em
que temos sofrido” (III, F 335 | IV, AD 08). Isso sugere não somente que a dor é
violenta e excessiva, mas que outras dores maiores permanecem, por assim dizer, em
estado de latência em nós, sendo atualizadas a cada nova grande perda/dor.
Se, resgatando a ideia do narrador, as nossas dores passadas tornam-se
contemporâneas na dor atual, é necessário examinar melhor como se dá esse
movimento de acúmulo ou ressuscitação. Parece que, a cada vez que sofro por
alguém, ressuscito os demais mortos e a história partilhada com eles. Em outras
palavras, se choro intensamente pelo último morto, em maior ou menor grau
também choro por todos.
Mas “todos” para Marcel são apenas algumas pessoas, as pessoas que lhe
foram mais importantes. Há um acúmulo de afetos e memórias, embora não linear. A
sincronicidade das dores desperta com maior intensidade a memória de outras, se
bem que distintas: a de Gilberte, da mãe e da avó. Se a primeira não lhe causa
desconforto, uma vez que é sentida como completamente superada, as duas últimas
são mais problemáticas.

221
Antes mesmo da perda de Albertine, o barulho da abertura da janela do seu
quarto rebenta uma dor antiga: “Numa agitação como talvez não tivera desde aquela
noite em Combray, quando Swann jantara em nossa casa, caminhei a noite inteira
pelo corredor, esperando, pelo barulho que fazia, atrair a atenção de Albertine, para
que ela tivesse pena de mim e me chamasse [...]” (III, P 316 | III, P 903-4).
O “drame du coucher” é evocado após o desaparecimento de Albertine: “eu
deveria sofrer tanto como em criança, quando mamãe não podia ir ver-me” (III, F 394
| IV, AD 83). O serialismo amoroso também é um serialismo da dor.
A perda da avó é constantemente explorada. Como sabemos pelos estudos
genéticos da Recherche167, durante a concepção da obra havia uma confusão entre a
avó e Albertine. Havia dúvidas do autor quanto a certas passagens de sofrimento, se
seriam colocadas no luto pela avó ou por Albertine. Além disso, a ressurreição da avó
foi primeiramente escrita como parte da viagem à Veneza, e posteriormente situada
na segunda visita a Balbec. Em Veneza, é Albertine quem “ressuscita”168, mesmo se
de forma distinta ao que lemos em “Les Intermittences du cœur”.
Curiosamente, em paralelo à vivência da sincronicidade, aparece a lei geral do
esquecimento, cujo avanço, lê-se, é irrefreável. Em outras palavras, é no momento
em que nos damos conta da “necrópolis” que somos, como escreve Théophile
Gautier169, com “os mortos sob os vivos”, quando a história pregressa eclode como
história presente – é aí que mais tememos o olvido.
A força com que surgem a dor e o esquecimento – a presença do morto e sua
extinção – evocam a contradição típica do luto, tal como aparece em “Les
intermittences du coeur”: o convívio entre a consciência do nada e a presença do
morto na pessoa que lhe sobrevive.
Mas os extremos em contradição também nos fazem pensar no modo bipolar
com que Marcel vive o estado mental no que se refere às relações amorosas,
extrapolando a experiência do luto: “há certos estados morais, notadamente a

167
CHEVALIER, Anne. “Notice” de Albertine disparue, pp. 1005 e 1011.
168
“Às vezes, ao crepúsculo, voltando para o hotel, eu sentia que a Albertine de antigamente, invisível
para mim mesmo, estava, no entanto, encerrado no fundo de mim como nas masmorras de uma
Veneza interior” [...] “Albertine vivia em mim” (III, F 504 | IV, AD 218).
169
“Encontramos sempre as lágrimas sob o riso, / Os mortos sob os vivos, e o homem é quanto a isso
/ Uma Necrópolis.” (“La mort dans la vie”, IV.12, em La Comédie de la mort, 1838)

222
inquietação, que, apresentando-nos apenas duas alternativas, têm algo de tão
atrozmente limitado quanto um simples sofrimento físico.” (III, P 315 | III, P 903).
O narrador, continuamente limitado por esses polos, está igualmente
cerceado pela vontade de oferecer um discurso coeso sobre eles, sugerindo que há
mais para além de ambas alternativas, embora ele próprio não consiga situar outras
saídas.
A sincronicidade das dores torna presentes mazelas do passado. A ser assim,
podemos alguma vez falar em superação, se a classificarmos como um ponto estável
de cura, um estado indolor permanente em relação a alguém que perdemos?
Teremos de alargar o sentido de superação ou rechaçá-lo.

Cronologia e intermitência

Havendo passado quatro dias desde a partida de Albertine, Marcel apega-se


ao evento de, sucessivamente, não ter lhe dado boa noite antes de dormir. E não lhe
dar boa noite é parte das coisas que o coração dele deveria cumprir para aprender a
viver sem a amada: “que ele [coração] as tenha cumprido já quatro vezes provava
que agora seria capaz de continuar a cumpri-las.” (III, F 354 | IV, AD 32)
Se o calendário do luto se refere continuamente à dor da perda, curiosamente,
também dá suporte e força para Marcel, pois cria pequenos marcos e experiências
que cronologicamente se acumulam e constroem essa nova vida que começa sem
Albertine. Tais marcos nutrem a expectativa de que, se existiram em sequência,
continuarão a existir. A regularidade de sua aparição nos leva a esperar que ela se
reproduzirá no futuro. Trata-se de uma ideia bastante humeana. Se tomarmos a
noção de causa para Hume, a única explicação para a assertividade da previsão no
futuro é referir-se à incidência repetitiva no passado (T 1.3).
Marcel está de acordo, e vai além: a única razão para continuar a cumprir
certas coisas que lhe são extremamente penosas (porque decorrentes da ausência
de Albertine) seria o fato de tê-las cumprido no dia anterior. No limite, não há nenhum
sentido em viver, além do fato de ter vivido na véspera.

223
Com base na análise de suas experiências imediatamente anteriores, Marcel
projeta a construção de um novo hábito, o de viver sem Albertine: “E, dentro em
breve, talvez essa razão que me ajudava a continuar a viver assim – o próximo
regresso de Albertine –, essa razão, eu deixaria de precisar dela – poderia dizer
comigo mesmo: ‘Ela não voltará mais’, e ainda assim viver como já o fizera durante
quatro dias.” (III, F 354 | IV, AD 32)
Em Proust, vemos a antecipação do desastre e da cura. Se a possibilidade de
separação assombra Marcel antes de se consolidar, fazendo-o viver sempre sob a sua
ameaça, quando ela por fim se concretiza, Marcel pensa controlá-la ao antecipar
precocemente a solução: “nesse dia, tudo aquilo que parecia ligar-me tão doce e
indissoluvelmente à recordação de Albertine já não existiria para mim” (III, F 438 | IV,
AD 138). Trata-se, contudo, de uma antecipação intelectual, a perfomance de um
Marcel que ainda não existe, de ideias que a vontade de Marcel quer tornar atuais, e
que talvez jamais o sejam.
Havíamos notado que Marcel explica seus sentimentos e faz projeções, como
se houvesse leis que pudessem ser reproduzidas, a fim de se obter o resultado
esperado. É assim que, não só pelo passado imediato, mas sobretudo pela análise da
vida pregressa mais longínqua, ele cogita a superação vindoura. Ao fazê-lo, concebe
um desenvolvimento sentimental que, visto de maneira linear, justificaria a
reincidência no futuro. Afinal, Marcel sabe que já se habituara a outras separações,
como a de Gilberte.
Por que, no entanto, ele não logra fazer o mesmo com Albertine? Uma
reprodução dos meios depende de equivaler os dois “problemas”, e a dificuldade não
é apenas conseguir reproduzir Gilberte em Albertine, mas reproduzir o próprio
Marcel em relação a Gilberte no Marcel de agora em relação a Albertine170.
O acúmulo de minúsculos marcos tidos como avanços no longo percurso até
a superação – que Marcel já começa a cogitar e projetar –, é continuamente
interrompido e posto em xeque, expondo a fragilidade das intenções do
protagonista e a linearidade da recuperação que ele almeja. De modo global, o luto

170
A diferença do fracasso com Andrée é que, enquanto Marcel projeta em Gilberte um exemplo de
caso solucionado que pode ser reproduzido, pois já foi vivenciado, Andrée sempre foi uma
virtualidade.

224
tanto em “Les intermittences du cœur” como em Albertine disparue é
profundamente marcado pela intermitência da memória e da dor, que atuam à revelia
das ações do protagonista e mostram uma temporalidade descontínua:

Mas após uma interrupção, quando, por um impulso de sua vida


independente, o sofrimento inicial me voltava por si mesmo, era
sempre e da mesma forma atroz [...] (III, F 343 | IV, AD 19)

[...] deixei de desejar esse regresso, que me apavorava. Gostaria


de lhe telegradar para que não viesse. E imediatamente,
sufocando tudo o mais, invadiu-me o desejo apaixonado de que
ela regressasse. (III, F 353 | IV, AD 30)

De resto, acordado, minha mágoa ia aumentando a cada dia em


vez de diminuir. (III, F _| IV, AD 31)

A intermitência traz eclosões irregulares, mas periódicas, da memória


carregada de afeto e sofrimento. O narrador conta que, às vezes, elas acudiam
durante o sono, quando as “retomadas” da memória, que o narrador compara às da
capo171, “faziam-me retroceder a uma impressão dolorosa, porém antiga” e
esquecida. (III, F 423| IV, AD 119).
O que fazer? Como se habituar à ausência de uma pessoa? Não é uma questão
de vontade: “eu já não tinha forças para renunciar a ela como tivera no caso de
Gilberte” (III, F 338 | IV, AD 12). Não há nada que o protagonista possa
conscientemente fazer para acelerar a cura de uma dor que atua de forma
independente da sua vontade, embora haja certas atitudes que prolonguem o estado
de prostração. A atitude do ciumento, por exemplo.
É uma questão de tempo, especificamente da passagem do tempo: “Tudo é
uma questão de cronologia” (III, TR 587 | IV, TR 316), afirma o narrador no último
volume. Na passagem do tempo, ganha-se perspectivas novas e distanciadas das
próprias mazelas: “Como o afastamento torna as coisas menores, mais incertas e
menos perigosas […]” (III, F 461 | IV, AD 166); “as palavras referentes a Albertine,

171
Em música, trata-se de uma diretiva na partitura para o intérprete repetir a peça ou uma sequência
desde o início até o final. Ver REY & ROGERS, “Notice” de Le Temps retrouvé (1989: 1082).

225
como um veneno evaporado, haviam perdido seu poder tóxico. A distância já era por
demais longínqua.” (III, F 474 | IV, AD 181)
A cronologia de que fala o narrador tem a ver com o estabelecimento, que é
sempre lento e gradual, de um novo hábito: “Era preciso que eu convivesse com a
ideia da morte de Albertine, com a ideia de suas faltas, para que essas ideias se me
tornassem habituais, ou seja, para que eu pudesse esquecer essas ideias e, por fim, a
própria Albertine.” (III, F 422 | IV, AD 117).
É preciso ressaltar que a narração ocorre muitos anos depois da morte de
Albertine. Alguém que afirme isso não quer dizer que o faça deliberadamente, no
momento, com esse propósito. Ou seja, uma explicação teleológica da cura é
inverossímil. Que Marcel tenha sofrido para se habituar ao sofrimento é uma
avaliação a posteriori. O que se pode afirmar é que, ao sofrer, ele foi se habituando.
Habituar-se à ausência de uma pessoa não é necessariamente o mesmo que
esquecê-la; tampouco significa que ela se nos tornou indiferente. Significa o quê,
então? Em parte, significa que somos conscientes da ausência da pessoa que amamos
e das implicações dessa ausência (não viveremos nem viajaremos mais com ela, por
exemplo), e que, mesmo dolorosa, aceitamos essa realidade, nos adaptamos a ela.
Se Marcel se habituará, nunca será de modo completamente exitoso, nunca
será o Hábito tal como ele o define, que acarreta tédio e monotonia. Marcel nunca
será totalmente indiferente a Albertine, embora possa já não lamentá-la
intensamente, diariamente ou mesmo frequentemente.

História de vida

Outro aspecto importante da temporalidade do luto tem a ver com a


dimensão diacrônica. Essa percepção nos veio como uma intuição a seguir à leitura
de um artigo de imprensa da escritora brasileira Carol Bensimon sobre a percepção
da bissexualidade (e que talvez interessasse às elocubrações de Marcel sobre
Albertine). A certa altura, Bensimon diz:

226
A bissexualidade dificilmente se apresenta como algo
perceptível no instante presente. Com isso quero dizer que, se
você encontrar minha amiga Alice de mãos dadas com outra
mulher, vai depreender que ela é lésbica. Se encontrá-la com um
homem, concluirá que é hétero. A identidade bi, portanto, só se
constrói a partir de uma narrativa; é preciso conhecer o histórico
das relações afetivas de Alice, bem como suas disposições e
desejos em relação a ambos os gêneros, para que se tenha a real
dimensão de sua sexualidade. (BENSIMON, 2014: s/p)

A demanda por uma história seria “uma característica intrínseca à


bissexualidade, característica esta que está no cerne da descrença em relação à sua
própria existência”, afirma Bensimon.
Que a forma mais apropriada, para quem deseja entender desde fora a
bissexualidade, seja abordá-la de forma diacrônica, não quer dizer garantia de acerto.
Podemos contar uma história que revele uma evolução ou um ponto de estabilidade.
Freud, por exemplo, famosamente teorizou um primórdio bissexual comum à espécie
e que, mais tarde, na maior parte dos casos, se orientaria para um modelo
monossexual172. Nesse sentido, um conservador que olhasse uma garota (bissexual)
atualmente com seu namorado e analisasse sua vida pregressa, poderia erradamente
concluir sobre a relação da garota com uma outra, no passado: “a fase lésbica de A”.
É o caso de uma das amigas bissexuais de Bensimon.
O ponto para o qual nos interessa chamar atenção é que a análise da
sexualidade de uma pessoa dentro de sua história de vida quer dizer que ela abriga
um potencial, um tipo de afeto e um tipo de prática que podem retornar
espontaneamente. Tal diacronia tem uma relação estreita, ao nosso ver, com a
própria noção de intermitência que, por definição, para e retoma em intervalos. Já o
pensamento por fases (tipicamente usado para falar do luto, aliás), implica uma
noção de evolução com vistas a um final estável. No luto pela avó e, sobretudo, por
Albertine, esse final parece nunca chegar.
Tomar o luto sob a perspectiva da intermitência torna obsoleto um
diagnóstico ou prognóstico de Marcel. Isolar uma frase (ou um momento) do

172
Ver Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905, SE VII: 141) e O mal-estar na civilização (1930, SE
XXI: 105-6).

227
narrador para atestar a superação completa de Marcel é tão errôneo como tentar
estabelecer o nível absoluto do mar, ignorando a maré: falta-nos perspectiva.
Isso nos leva a uma segunda conclusão. Talvez procuramos a resposta no lugar
errado ou no lugar que só pode nos oferecer uma resposta incompleta: no
comportamento. O critério comportamental não dá conta, necessária e/ou
exclusivamente, de descrever os sentimentos de Marcel nem as mudanças que o luto
terá para o protagonista – como é, no limite, insuficiente para definir quem é
bissexual.
No caso de Marcel, tem-se ainda um problema adicional, a saber, a dificuldade
em distinguir o que são ações e comportamento daquilo que são as reflexões mentais
do narrador a respeito das ações e comportamento de Marcel. Se se tratasse de Jean
Santeuil, com um narrador em terceira pessoa, o leitor poderia se sentir mais seguro
para julgar as ações do protagonista.

228
II.
Duas descrições

Então a minha vida mudou completamente. (III, F 377 | IV, AD 60)

Sem dúvida, não havia nada de extraordinário no fato de que a


morte de Albertine tivesse mudado tão pouco as minhas
preocupações. [...] A morte igualmente não muda grande coisa.
(III, F 411-2 | IV, AD 104)

Eis duas afirmações opostas do narrador. A primeira, logo a seguir da morte


de Albertine, é comparável ao tremor existencial, ao bouleversement de toute ma
personne que advém da descoberta da morte da avó e da consequente eclosão do
luto, em Sodome et Gomorrhe. A segunda aparece algum tempo mais tarde, enquanto
Marcel espera as informações de seu inábil emissário especial em Touraine, Aimé.
Elas ilustram bem o tipo de preocupação que queremos explorar, e que
consiste em avaliar o alcance do luto e a natureza das mudanças, se existiram, na vida
de Marcel. Segundo a primeira citação, a morte de Albertine teria mudado a vida de
Marcel completamente; a segunda, ao contrário, afirma que ela não teve qualquer
efeito relevante. Ambas afirmações podem ser usadas para propor descrições
extremas de Marcel: alguém que mudou completamente ou alguém que não mudou
– esta, por sua vez, permite extrapolar o evento e descrever o protagonista como
alguém que, no limite, nunca muda. Vamos analisá-las.
Sobre a primeira descrição, a morte de Albertine teria convertido Marcel –
como, na vida de Proust, a morte da mãe173 o teria radicalmente afastado da vida
social e o levado, enfim, a escrever. Uma tal interpretação parece responder a
expectativas românticas do leitor sobre o que deveria ser o luto por uma pessoa

173
A crítica costuma assemelhar a morte da mãe à da avó diegética (BARTHES, 2003 e 2020 [1966]),
mas a leitura de que a morte de Albertine foi um divisor de águas instantâneo para a atividade
literária de Marcel seria, nesse sentido, mais propensa a fazer a correspondência com a reação de
Marcel Proust à morte da mãe.

229
amada: prolongado, à altura da estima que se espera que se tenha por ela. Que a
morte de Albertine tenha radicalmente mudado Marcel, de modo que ele a chore
indefinidamente, convém à tese que procura preservar a ideia e o valor do amor
supremo174.
Contra ela, há inúmeras indicações no romance. Seria difícil argumentar que
Marcel tenha mudado completamente se, logo a seguir, continua enciumado por
Albertine e continua indo atrás de amigas, operárias, lavadeiras, damas de companhia
etc. para obter prazer175. Em Le Temps retrouvé, chega inclusive a solicitar que
Gilberte (agora marquesa de Saint-Loup) lhe apresente mocinhas, e ela lhe apresenta,
para o espanto de Marcel, a filha adolescente dela e Saint-Loup.
A ideia do luto interminável e da fidelidade póstuma à morta, nos moldes de
Petrarca da Canzioniere ou Dante de Vita Nuova, como uma postura permanente de
Marcel, já foi analisada e rechaçada nas seções anteriores. Ela mais facilmente se
associa à descrição de Marcel totalmente mudado (porque eternamente enlutado)
após a morte de Albertine.
É a descrição oposta que mais nos interessa analisar agora, a saber, a de que
Marcel não mudou. Segundo essa visão completamente deflacionada do luto, Marcel
passaria incólume pela morte das pessoas ao seu redor, incluindo a da avó e de
Albertine. Mesmo se por ventura tenha chorado por tais perdas de modo sincero (o
que não é consensual), em seguida as superou definitivamente. Deste ponto de vista,
a internação em uma casa de saúde, por exemplo, não encontraria qualquer
justificativa.
Uma versão ampliada e radical dessa postura descreveria Marcel como uma
espécie de autista mundano, entretido com as reuniões nos salões ao longo de todo
o romance, que passa pelos eventos ileso (ou como mero voyeur), sem tomar parte
deles, inclusive quando se tratam das pessoas que ele afirma mais ter amado. Deste

174
Em um certo sentido, essa visão aproxima-se de aspectos do chamado “amor cortês”. Não à toa,
o que veio a ser chamado assim é, em larga medida, a leitura que, durante o século XIX, foi feita
pelos românticos a respeito da Idade Média. Uma das mais influentes foi o estudo de Gaston Paris
(1883), que de forma indutiva e a partir de um corpus restrito define como elementos fundamentais
do conceito a posição superior e idealizada da mulher nos romances de cavalaria, as inúmeras
proezas do amante para ser digno dela e o adultério. Para uma discussão mais ampla sobre o
conceito, ver CORBELLARI (2009).
175
Ao querer substituir Albertine (seja com a fantasia de esquecê-la ou reproduzi-la), Marcel também
busca a satisfação de seus prazeres.

230
modo, o final da Recherche é um choque sem qualquer relação com o passado: de
repente, o protagonista tropeça no pavimento desigual no pátio do hotel dos
Guermantes e tem uma revelação que, esta sim, mudará sua vida para sempre.
Tentaremos argumentar que o tipo de interpretação do final do romance deve
levar em conta o alcance do luto para Marcel e o tipo de mudança que o luto teve
para ele. Contra a ideia de uma pessoa completamente autocentrada ou alguém que
deliberadamente se cega de modo permanente, por conveniência, consideramos que
Marcel não passa incólume às grandes perdas: elas provocam mudanças, mas não
imediatamente, não drasticamente e não por um critério comportamental; tampouco
são a razão exclusiva das mudanças, mas um fator de grande importância.

231
III
Mudanças

Ela falava de destruição, assassinato, chorava, desesperada e


convencida de ser uma assassina. Eu não tentei nem consolá-la,
nem desmentir aquilo que ela estava dizendo. Suas palavras
eram como um desenho de uma criança atormentada, saturado
de diversas cores e traços. (LAUFER, 2011: 187)

Esse é o relato que a psicanalista Laurie Laufer faz de uma paciente sua,
internada em um hospital parisiense devido a uma doença física grave. Os
pensamentos negativos a dominavam. Mais tarde, ela teria alta do hospital, após uma
recuperação “milagrosa”, nas palavras do médico. A data da alta coincidiria com o dia
do aniversário de seu filho, cuja morte, havia anos, a deixara extremamente culpada
e a tornara muda a respeito.
É uma história de doença física para os médicos, mas de luto para a
psicanalista. “Tudo aconteceu como se a senhora S., na e por meio de sua doença,
tivesse passado pela provação do luto” (idem: 183). Com o fim das sessões, não
saberemos o alcance ou durabilidade desse luto bem sucedido, se assim avaliarmos
o fato de a paciente ter recuperado sua fala e até rir às vezes.
O leitor tem a impressão de que não há uma superação completa, porque a
paciente volta a perguntar à psicanalista, pouco antes de receber alta, se enfim era
culpada pela morte do filho. Ao mesmo tempo, é uma pergunta sem grandes
consequências. S. pergunta, sem com isso entrar no “negro túnel” (III, F 420 | IV, AD
115), como o narrador proustiano chama os pensamentos repetitivos e intensamente
dolorosos do luto.
Essa pergunta insistente, como um membro do corpo a se mexer quase de
forma involuntária, oferece a medida de um luto não triunfal: a pergunta está
presente, faz parte de quem nos tornamos, vem à tona em intervalos temporais

232
irregulares de forma por vezes consciente, outras quase involuntária, embora já não
doa com a intensidade original. Não podemos lhe oferecer uma resposta. Habituamo-
nos a ela.
A comparação do luto inicial com o desenho de uma criança, desgovernado e
revolto, nos dá pistas de que pouco a pouco ele vai se ordenando, de forma gradual,
mesmo que frequentemente recue ou que se mova de modo intermitente. Só
podemos identificar um desenho desse tipo quando temos a medida do desenho de
um adulto. Haveria uma mitigação da dor, embora não a sua supressão.
Uma noção deste tipo já fora entrevista por Freud. A mudança de tom em
relação ao luto pode ser observada na carta que ele enviou em 1929 ao amigo de
longa data, o psiquiatra Ludwig Binswanger176. Freud começa afirmando não ter
entendido a letra de mão do amigo; com indignação, a teria considerado um
garrancho e cogitado devolver a carta ao remetente para que ele a reescrevesse.
Apenas com a ajuda da cunhada, Freud compreende a razão daquela letra quase
ilegível: Binswanger acabara de perder um filho. Nove anos antes, era Freud quem
perdera a filha, Sophie:

Embora saibamos que após tal perda o estado agudo do luto


diminuirá, também sabemos que permanecemos inconsoláveis e
nunca encontraremos um substituto. Não importa o que possa
preencher a lacuna, mesmo se ela for preenchida
completamente, no entanto, continua a ser outra coisa. E, na
verdade, é assim que deve ser. É a única forma de perpetuar
aquele amor do qual não queremos abdicar.

Aqui, Freud parece recuar de qualquer ideia triunfal de que o luto termina. Os
críticos que têm sinalizado a mudança de posição de Freud em relação ao luto são
quase unânimes ao se aterem a esta carta. Como se ele tivesse acordado em uma
manhã de abril pensando de modo diferente.

176
“Letter to Ludwig Binswanger”, 11.04.1929. FREUD, Ernst L. (ed). Letters of Sigmund Freud (1960:
386).

233
A análise de um conjunto epistolar mais significativo, datando de 1896 e de
1920 a 1936, nos permitiu verificar que a mudança de perspectiva foi gradual177. As
cartas consideradas tratam, entre outros temas, da morte dos pais de Freud, de
Sophie e do filho dela de quatro anos (neto de Freud, portanto). É apenas aos poucos
que Freud considera a consciência de que, com a morte, algo se perdeu para sempre
e isso é irreparável, ideia que aparecerá de modo mais evidente na famosa carta a
Binswanger.
Se é certo que algo se perdeu, o enlutado pode querer, legitimamente,
guardar um vestígio do morto, recusando-se a substituí-lo ou a abdicar dele. Já não
necessariamente um vestígio físico enquanto relíquia palpável – lembremos dos
livros da sra. de Sevigné, pertencentes à sra. Bathilde, que se tornam relíquia para a
mãe de Marcel –, mas um conteúdo interno. É isso que sugere Freud em 1923, em O
Eu e o Id. Como já tivemos ocasião de analisar, no luto interminável e patológico, tal
como descrito em “Luto e Melancolia”, a libido do melancólico se retira do objeto
mas, em vez de ligar-se a outro, volta-se para o ego, produzindo uma identificação.
Vejamos o que o autor dirá seis anos depois:

Foi-nos dado esclarecer o doloroso infortúnio da melancolia,


através da suposição de que um objeto perdido é novamente
estabelecido no Eu, ou seja, um investimento objetal é
substituído por uma identificação. Mas ainda não
reconhecíamos, então, todo o significado deste processo, e não
sabíamos como ele é típico e frequente. Desde então
compreendemos que tal substituição participa enormemente na
configuração do Eu e contribui de modo essencial para formar o
que se denomina seu caráter. (2011 [1923]: 25-6)

Se não enterramos definitivamente os mortos, isso quer dizer que nosso luto,
tal como imaginava Freud, pode não ter fim. Judith Butler, ao avaliar a mudança de
posição de Freud, afirma que as identificações formadas a partir do luto inacabado

177
A análise pormenorizada das cartas não cabe na discussão desta tese. Para uma leitura um pouco
mais ampla da teoria de Freud à luz de suas experiências pessoais de luto, embora sem atenção às
epístolas, ver WOODWARD (1990-91: 93-110).

234
“são os modos pelos quais o objeto perdido é incorporado e fantasmaticamente
preservado no Eu178 e como o Eu.” (1995: 166)
Nesse sentido, a mudança radical do luto triunfal que ele defende no ensaio
“Sobre a transitoriedade”, escrito no estalido da Primeira Guerra Mundial (ver
capítulo V), em nada se parece ao que ele desenvolverá mais tarde nas cartas. O
conformismo pessimista que vemos na epístola privada parece inseparável das
vicissitudes da vida de Freud: o exílio durante a guerra, o avanço da idade, a saúde
debilitada e as mortes familiares importantes com as quais ele teve de lidar. Não
estamos a afirmar que tais eventos causaram a acepção tardia de um luto
inconsolável, mas que, ao longo do tempo, o acúmulo de diversas experiências com
a morte (em escala individual e coletiva) e seus “arredores” (a velhice e a doença),
podem ter contribuído para o novo olhar sobre o luto que vemos nas cartas.

Outro ponto relevante para o qual o texto de Laufer chama atenção é que o
“desenho” atormentado de sua paciente segue sua própria partitura, quase por si só,
sem que lhe seja preciso guiá-lo, corrigi-lo, desmenti-lo ou consolá-lo. Essa ideia nos
recorda certas passagens da Recherche analisadas no capítulo IV, nas quais o narrador
proustiano define o luto como um processo irregular e alheio à vontade do enlutado.
Não é Marcel quem decide o seu desenrolar: “embora a ideia da morte de Albertine
fizesse progressos em mim”, estes não eram “regulares” (III, F 421 | IV, AD 116)
A repetição do lamento adquire um papel importante para a paciente de
Laufer: ela perpetua a dor e a esgota. A mudança que o luto opera em Marcel também
aproveita a repetição da dor: pela incidência repetida e intermitente dela e da
consciência do que a morte significa, vão sendo introduzidas mínimas modificações
sentimentais e de ideias em Marcel.
Ao falar sobre a perda de Albertine, Marcel sofre; mas, à força de repetir o
mesmo lamento, vai se habituando a ele; a dor vai ficando cada vez menos intensa,
se transformando, e Marcel encontrando formas menos violentas de Albertine
continuar sobrevivendo nele. Consideradas retrospectivamente, as alterações fazem
sentido e resultam da transformação, no curso do tempo, de desenhos ininteligíveis.

178
No original, ego. O termo é muitas vezes traduzido como Eu.

235
A amenização da dor, como Freud sugere na carta ao amigo, é um ponto em
comum entre os processos de luto da avó e de Albertine. O luto de Marcel, tanto em
um quanto em outro caso, começa como um golpe de grande impacto e confusão:
“Forte perturbação de todo o meu ser” em Balbec (II, SG 592 | III, SG 152), com a avó;
“Então a minha vida mudou completamente” no quarto em Paris (III, F 377 | IV, AD
60), com a morte de Albertine.
Alguns dias após a “ressurreição” da avó, na segunda visita a Balbec, a
fotografia que Saint-Loup havia feito “era doce de olhar” (II, SG 610 | III, SG 176). O
hábito de ver a fotografia, como também a necessidade de estancar o sofrimento, a
tornaram doce para Marcel. Ele se deixa enganar pelo truque da avó, que queria
esconder a morte iminente, dissimulando o rosto com o chapéu; assim, ele deixa
escapar o “ar de condenada à morte” da imagem – ar que não escapava à mãe e que
a impedia de olhar para a imagem.
Em última análise, é o mesmo “instinto de conservação” (III, F 131 | IV, AD 03),
isto é, de autopreservação de Marcel – como ele dirá em Albertine disparue a respeito
de Albertine –, que tornou doce, e não fúnebre, a imagem da avó. Mesmo assim, a
tensão entre presença e nada nunca desaparecerá, misturada à imagem mais
benevolente que Marcel adere à fotografia. Anos depois a avó lhe aparecerá em
sonho com o queixo desfigurado.
A imagem de Albertine resiste mais a ter um tom doce. O instinto de
autopreservação de Marcel torna sua ausência minimamente aceitável, mas para isso
tem de diminuir seu valor. Se em várias passagens o narrador conclui pelo
esquecimento, o faz com muito mais custo e com a mobilização mais intensa de todo
um aparato intelectual que tenta oferecer – sem um êxito definitivo – uma solução e
um fim à incerteza e intermitência da dor.
O que acontece entre um momento e outro? Como passar dos rabiscos de uma
criança a um desenho inteligível? É uma questão de tempo, dissemos no tópico
anterior. Sim, mas não exclusivamente.
O narrador aposta por demais no tempo, tenta antecipadamente identificar
nele o desfecho inexorável e necessário, uma chave-mestra da lei geral do
esquecimento. O tempo pode facilitar a distância dos eventos e, com isso, um maior

236
desapego afetivo e o ganho de uma nova perspectiva. Mas, por si só, o tempo não é
garantia de adaptação, de total aceitação da morte nem de mudança.
O luto da mãe de Marcel, por exemplo, é interminável. Ela adquire um novo
hábito, o de imitar sua própria mãe para tê-la consigo onde quer que fosse, pois não
aceita ter sobrevivido (mais: sente-se culpada), não aceita um mundo onde a sra.
Bathilde não esteja: – “Isso teria deixado estupefata a tua avó e não lhe agradaria
nada.” (III, F 519 | IV, AD 236), ela diz, sempre imaginando o que a avó pensaria,
sempre necessitando torná-la presente.
É preciso uma mudança de posição na pessoa que fica, para que possa ver o
mundo de outro jeito sem a pessoa agora morta, e para que se coloque nele levando
em conta a ausência da pessoa amada e as exigências para a própria sobrevivência.
Essa mudança pode ser um dos efeitos do tempo, mas nada dirá que ela será
necessária nem que a mudança não será de tipo “retrógrada”, como ocorre com a
mãe de Marcel – ela muda, mas para se cristalizar no passado: “o sentimento da
estagnação do passado que, em certos lugares [...] imobiliza-se indefinidamente, de
modo que é possível recuperá-lo intacto.” (III, TR 779 | IV, TR 560), dirá o narrador
sobre pessoas que não mudam, como a Gilberte viúva de Saint-Loup.

Querer esquecer

Querer esquecer é tão absurdo quanto querer se apaixonar (ver o capítulo


anterior, seção IV). Para o narrador, superar a perda de Albertine é sinônimo de
esquecimento; outras vezes, de indiferença. São esses dois sentidos que o narrador
mobiliza no discurso que tenta antecipar a solução. Em um e outro caso, trata-se de
deixar de sofrer, alcançar um estado indolor em relação à pessoa que perdemos:
“sabemos que é um estado indolor, um estado de indiferença.” (III, F 380 | IV, AD 64)

237
Marcel afirma ter chegado a tal estado. Isso, por si só, não nos permite afirmar
que seu luto foi concluído, os parênteses fechados e que ele superou a perda de
Albertine. Essa, porém, é uma posição partilhada por diversos críticos179.
A começar por uma análise do primeiro capítulo de Albertine disparue, há uma
ideia geral de que já no final desta parte haveria uma superação. Anne Chevalier
descreve o capítulo (que condensa o essencial do episódio da fuga e morte de
Albertine180) em três partes, cujo conjunto espelharia o estado do protagonista:
sofrimento, ciúme e esquecimento. É o esquecimento que, em sua avaliação, melhor
descreve Albertine disparue – e que, na sequência, reforçará o declínio em Le Temps
retrouvé: “Se há uma unidade neste livro, é a da devastação dos desejos e das
lembranças: no final da jornada, não resta nada mais, nem amor, nem amiga.”
(CHEVALIER, 1989: 1038).
Donatien Grau fala do “esquecimento final” (2015: 152). Angela Moorjani, em
certas alturas, coincide na indiferença: “como a morte da avó, a de Albertine evocará
o mesmo padrão de culpa e luto terminando em uma reparação parcial seguida pela
indiferença.” (1990: 887). Moorjani justifica a indiferença com frases como “Uma vez
que o esquecimento se apoderou de alguns pontos culminantes do sofrimento e do
prazer, a resistência do meu amor estava derrotada: eu já não amava Albertine” (III,
F 507 | IV, AD 221-122).
Em nossa leitura, não é possível afirmar que tudo virou pó e foi esquecido.
Tampouco é possível dizer que a afeição por Albertine acabou ou nunca existiu, sob
pena de estarmos a apontar para Sofia, a amiga bissexual de Bensimon, e dizer que
ela é uma heterossexual (visto que está de mãos dadas com um homem) e sua
namorada anterior faz parte da sua “fase lésbica”, devidamente concluída.
Em outras palavras, seria incorreto imputar a prova da superação – ou de
qualquer mudança significativa em Marcel – exclusivamente a critérios
comportamentais e com base na análise de um momento isolado de sua vida.

179
Entre eles, de forma explícita, CHEVALIER (1989), WASSENAAR (1997), RICCIARDI (2003) e GRAU
(2015).
180
Muito dessa unidade se deve à própria história da gênese do romance. É entre 1913 e 1914 que
Proust escreve o que viria a se tornar este capítulo, a seguir à fuga de seu motorista, Alfred
Agostinelli, e à morte do mesmo em um acidente aéreo.

238
Albertine não poderá ser resumida como a “fase Albertine”: ela se estende por toda
a vida de Marcel.
Se é necessário levar em consideração o luto dentro de uma história de vida,
a dificuldade da análise literária da Recherche é que essa história somente nos é
contada em primeira pessoa, por meio de um narrador protagonista com evidente
conflito de interesse. Não é por acaso, aliás, que tantos exegetas tenham concordado
com a aplicação da lei geral do esquecimento. Afinal, como apontamos ao longo
desta tese, o narrador muitas vezes antecipa o esquecimento para um presente que
ainda não chegou e constantemente o projeta em um futuro bem próximo.
Ao longo de Albertine disparue, ele não se cansa de declarar Albertine morta:

a realidade das criaturas sobrevive para nós apenas por breve


tempo após a sua morte, e depois de alguns anos são como esses
deuses das religiões abolidas que a gente ofende sem medo
porque deixa de crer em sua existência. (III, F 475 | IV, AD 182)

Ao final do primeiro capítulo, lemos: “e viria a hora em que, de bom grado, eu


daria à primeira mulher que chegasse o quarto de Albertine” (III, F 438 | IV, AD 138).
Como asseverar a fiabilidade de uma tal previsão de conteúdo afetivo? Marcel pode
estar querendo apenas convencer-se de que a passagem do tempo o fará
necessariamente esquecer a amada. Pode inclusive enganar-se a respeito do que
sente ou do que sentiu. Afinal, não se pode ter uma visão precisa dos próprios
sentimentos: “Eu me enganara julgando ver claramente no meu coração” (III, F 331 |
IV, AD 04): estamos sempre arriscados a nos enganar.

Narrador interessado

Na segunda e terceira partes de Albertine disparue, o narrador cita quatro


etapas que teriam sido incontornáveis para o seu restabelecimento, descrevendo
três delas: o encontro com Gilberte, então Mlle de Forcheville (ele não a reconhece e
se sente atraído por ela); a visita de Andrée (ela lhe teria revelado os gostos
homossexuais de Albertine em um momento em que, segundo o narrador, ele já não

239
a amava); a viagem à Veneza (onde ele quer encontrar a dama de companhia da sra.
de Putbus).
Paralelamente, uma série de eventos têm lugar: além da viagem à Veneza, é
mencionada a série de casamentos – de Andrée com Octave, de Gilberte com Saint-
Loup e do sobrinho de Legrandin com a sobrinha de Jupien (bem como sua morte
precoce) – e a publicação de um artigo de Marcel no jornal Le Figaro. Ao acompanhar
o narrador falar desses eventos, por vezes temos a impressão de que a vida retomou
seu rumo: coisas voltaram a acontecer, há uma sucessão de acontecimentos
exteriores tomando lugar e rompendo o quarto mortuário e o “negro túnel”. Mas
por que haveríamos de confiar cegamente no narrador?
Ingrid Wassenaar argutamente nos esclarece a respeito dessa impressão:
“esta ilusão de eventos tomando vida própria e mostrando sua autonomia em
relação à vida mental do narrador [...] fornece a aceitação indiferente do narrador das
‘coisas-como-elas-são’” (WASSENAAR, Op. cit.: 198). O que ela nos diz é que a
separação entre a vida mental e as coisas – separação muito difícil de realizar nesse
tipo de narrativa em primeira pessoa – é usada pelo próprio narrador para criar um
campo objetivo, incólume às suas maquinações e angústias e dar a sensação de que
a vida continua – e que, portanto, ele também tem o direito de seguir a vida, no
sentido de abandonar Albertine morta.
Apesar de concordarmos com o que diz Wassenaar – isto é, que se deve
questionar o que se nos é narrado –, nossa posição tem uma abordagem diferente.
Desconfiar do narrador quando sofre demais requer igualmente desconfiar dele
quando declara ser totalmente indiferente à avó e à Albertine. Em nenhum caso
dispomos do “narrador informado”, parafraseando Proust. Por isso, a conclusão de
tipo tábula rasa de Wassenaar, como tivemos ocasião de analisar no capítulo IV, nos
parece inapropriada.
Gostaríamos de propor uma leitura em que aquilo que nos é apresentado –
uma sucessão de etapas, mesmo tortuosa e irregular, culminando na superação –,
não é nada mais do que aquilo que o narrador destaca e gostaria de reter. Devem ser

240
reavaliadas igualmente as afirmações categóricas sobre a lei do esquecimento, que é
intelectual e em constante conflito com as intermitências do coração181.

Há um lado de persuasão: Marcel quer convencer Albertine de que ela poderá


ser esquecida. Depois de enviar Saint-Loup ao seu encalço, sempre temeroso de que
Albertine descubra o tamanho de seu desespero, Marcel fica vexado ao receber uma
carta dela. Albertine lhe repudia as “medidas absurdas” (III, F 357 | IV, AD 36) e a
decisão de enviar Saint-Loup. É assim que ele lhe responde, novamente dissimulando
suas intenções:

Você tomou uma decisão que acho muito sensata [...] Você
conhece a criatura inconstante que sou, e como esqueço
depressa. [...] Você me disse isso várias vezes, sou
principalmente um homem de hábitos. [...] Justo por esse
motivo, eu havia pensado em aproveitar esses últimos dias em
que ver você ainda não seria para mim o que será daqui a duas
semanas, talvez menos (desculpe a franqueza): um incômodo –
pensei em aproveitá-los, antes do esquecimento final [...] (III, F
358-9 | IV, AD 37-8)

Ele tenta convencê-la de que a esquecerá e se habituará à sua ausência, como


se habitua a tudo. Quando o narrador enfatiza um conhecido aspecto de sua
personalidade, mas aqui cuidadosamente posto ao seu favor, o leitor não tem
dificuldades em desconfiar dele. Ele dá voz para o mesmo protagonista que sempre
quis ser o mestre do jogo, causar grandes impressões em Albertine e que afirmara,
sobre as crises de ciúmes: “a necessidade de saber sempre fora superada, em meu
amor por Albertine, pela neessidade de lhe mostrar que eu sabia” (III, F 408 | IV, AD
100). É o mesmo que responde para Albertine, sobre as críticas dela pelo envio de

181
A propensão à racionalização e controle forja diversas outras leis, entre elas: “as leis gerais do
amor” (III, TR 653 | IV, TR 399), “as leis psicológicas” (TR 572 | IV, TR 297), a lei da natureza (III, TR
700 | IV, TR 459), as leis da morte (III, TR 676-7 | IV, TR 429), a lei da transformação (III, TR 718 | IV,
TR 482) e a lei da guerra, segundo Hegel (III, TR 600 | IV, TR 331).

241
Saint-Loup para oferecer dinheiro à tia Bontemps em troca do retorno de Albertine:
“Isso é coisa de Sherlock Holmes” (III, F 360 | IV, AD 39).
As citações assinaladas enfatizam um aspecto deliberativo do narrador e de
suas autodeclarações. Mas há também um outro aspecto importante, e é a parte não
voluntária do que é selecionado e narrado. É isso que von Wright parece estar a dizer
quando afirma que nós não somos os melhores juízes de nossas próprias intenções –
nem, na Recherche, o narrador é a melhor figura para declarar a natureza, a resolução
e a permanência de seus sentimentos:

O conhecimento de mim próprio é tão ‘externo’ e ‘indireto’


quanto o de outro observador, e pode ser ainda menos confiável
que o conhecimento dele sobre mim. (Não é de modo algum
certo que eu mesmo seja o melhor juiz de minhas próprias
intenções ou de minhas atitudes cognitivas, neste assunto.)
(VON WRIGHT, 1971: 114).

Marcel (e o narrador) por vezes está enganado sobre várias coisas. Uma delas
é, segundo Joshua Landy, a aposta errônea na verdade objetiva, que ele levará toda
a Recherche para sanar. Outra, do nosso ponto de vista, é sobre o caráter definitivo
da superação do luto, que implica uma mistura de confusão e autoilusão a respeito
dos próprios sentimentos.
Acompanhamos os esforços do protagonista-narrador em compreender
intelectualmente os sentimentos e tentar freá-los, moldando-os às suas teorias. É
assim que o narrador declara o “esquecimento definitivo” da pessoa que ama (III, F
469 | IV, AD 175), mas é justamente o fato de amá-la que o faz tão suscetível a enganar-
se: “Pois o amor obscurece nosso julgamento” (III, F 486 | IV, AD 197). Isso já tornam
no mínimo suspeitas suas afirmações mais contundentes; lidas assim, elas se parecem
mais a reivindicações ou asserções intelectuais.
Marcel quer persuadir Albertine do mesmo modo como tenta persuadir a si
mesmo. Pode-se falar aqui de um caráter linguístico e discursivo do luto: uma
performance de um narrador que quer diagnosticar o luto para saná-lo. A persuasão
de Marcel é em relação a ambos, embora possa não ser totalmente deliberada e
consciente quando se trata de persuadir a si próprio.

242
Notemos a semelhança entre o que ele escreveu à Albertine por carta, citado
anteriormente, e outras reflexões posteriores do narrador ao longo do volume, que
serão aqui dispostas em ordem cronológica de aparição:

Sabia que iria esquecê-la mais cedo ou mais tarde, pois esquecera
Gilberte e a sra. de Guermantes, esquecera de todo a minha avó.
(III, F 380 | IV, AD 64)

[…] se os mortos vivem em alguma parte, minha avó conhecia


tão bem o esquecimento como Albertine a minha recordação.
(III, F 401-2 | IV, AD 92)

[…] minha separação forçada de Albertine, em consequência de


sua morte, me levaria à mesma infiderença causada pela
separação voluntária de Gilberte. (III, F 402 | IV, AD 92)

Eu percebia que esse amor prolongado por Albertine era como a


sombra do sentimento que tivera por ela […] Pois eu sentia
muito bem que, se podia pôr alguns intervalos entre meus
pensamentos dedicados a Albertine, por outro lado, se pusesse
demais, já não a teria amado; devido a essas fendas, ela ia se
tornando indiferente para mim182, como já o era a minha avó. (III,
F 418 | IV, AD 112)

Eu já não amava Albertine. (III, F 466 | IV, AD 172)

Notemos o esforço do narrador por apresentar a indiferença em relação a


Albertine como um desfecho definitivo, já que assim o foi em outras ocasiões. Toda
a expectativa de solução é alimentada. Não porque Marcel seja um cínico, mas porque,
justamente, sofre demais e deseja controlar o luto, mesmo se não está consciente
disso.
Esse mesmo narrador, enquanto oscila entre a presença e o nada, sente prazer
ao falar da morte de “uma amiga a quem muito amava” (III, F 463 | IV, AD 169),
quando justifica-se diante da sra. de Guermantes sobre a longa ausência dele nos
salões. A partir de então, o narrador diz, “comecei a escrever a todo mundo que

182
No original, enfatiza-se uma indiferença já alcançada em relação a Albertine: “elle me fût par cette
coupure devenue indifférente [...].”

243
acabava de ter um grande desgosto e a deixar de senti-lo” (III, F 463 | IV, AD 169). Ele
necessita se autodeclarar curado, construindo um discurso de triunfo que se
sobreponha ao caminho muito mais tortuoso e incerto do luto.
A dificuldade de interpretação é, em parte, querer julgar unilateralmente
Marcel. É querer fixá-lo em “uma fotografia”, mostrando a psicologia individual como
uma noção imóvel – prática que o narrador condena, chamando de “nosso erro” (III,
F 451 | IV, AD 153). Ao classificá-lo ora como um nostálgico incurável183, ora, no outro
extremo, como um cínico para quem ninguém é inesquecível, tenta-se ratificar uma
descrição global e homogênea do protagonista.
Esse tipo de interpretação padece do mesmo mal do próprio Marcel, quando,
ao longo da Recherche, tenta desesperadamente, e com mais evidência ao longo de
Albertine disparue, chegar a uma descrição estável, completa, coerente e definitiva
de Albertine. Ela não existe – tanto porque Albertine muda quanto pela incapacidade
humana de alcançar a visão completa do que é uma pessoa184.
A dificuldade também advém da equivocada confiança seletiva em relação ao
narrador: para os favoráveis a uma descrição de Marcel cínico, confia-se no narrador
somente quando diz que esqueceu a avó e Albertine. Mas algumas páginas depois de
declarar em Veneza “Deixara em definitivo de amar Albertine” (III, F 508 | IV, AD 223),
o narrador afirma ter sido invadido “por um sentimento perturbador, logo dissipado,
de desejo e melancolia”185 (III, F 510 | IV, AD 226).
Veremos inúmeras irrupções da avó e de Albertine ao longo de Le Temps
retrouvé, contrariando a ideia de indiferença ou esquecimento ou absolutos.
Há motivos suficientes para tomar as afirmações do narrador com vários grãos
de sal:

183
Nas palavras de Jacques Chessex: “esse nostálgico da unidade perdida” (CHESSEX, 1991: 140). Os
favoráveis a essa descrição parecem se inspirar em algumas frases do narrador, como a famosa “os
verdadeiros paraísos são aqueles que já perdemos” (III, TR 692 | IV, TR 449) ou “Os anos felizes são
os anos perdidos” (III, TR 722 | IV, TR 488).
184
Nesse sentido, conhecer uma pessoa é mais do que apontar a soma de vários comportamentos ao
longo do tempo.
185
Poderia se contra-argumentar que quando se refere a desejo e melancolia, não se está a referir ao
amor, confirmando a tese do esquecimento total. Mas a confusão entre afetos (amor, desejo,
ciúmes etc.) existia desde antes da morte de Albertine.

244
A partir de uma certa idade, por amor-próprio e por sagacidade,
as coisas que mais desejamos são aquelas que mais fingimos
desprezar. (III, P 271 | III, P 847)

Portanto, de modo algum minhas palavras refletiam meu


pensamento. Se o leitor não tem disso senão uma ideia bastante
fraca, é que, enquanto narrador, eu lhe exponho meus
sentimentos e, ao mesmo tempo, repito-lhe minhas palavras.
Mas, se lhe ocultasse os primeiros, ele conhecesse apenas estas,
os meus atos, que têm tão pouca relação com elas dar-lhe-iam
tantas vezes a impressão de estranhas reviravoltas que ele me
julgaria mais ou menos louco. (III, P 273 | III, P 850)

Por que não atentar para o caráter justamente contraditório das posições de
Marcel, ora afirmando, pelo discurso, a superação da dor, ora reencontrando o
sofrimento nas experiências cotidianas? Daí que se deva, primeiramente, assinalar o
convívio, na narrativa, de versões díspares de Marcel sobre amor e luto – versões tão
múltiplas quanto pode ser a história sentimental de uma pessoa.
Mas isso não pode levar o crítico ao ceticismo completo em relação ao
conteúdo narrado. Em outras palavras, ao discordarmos da atitude crítica de
desconfiar parcialmente do narrador, a qual concluiria pela superação final do
protagonista, não propomos em troca uma desconfiança absoluta, a mútua anulação
das frases, cada uma vindo a revogar a anterior, e assim por diante. O narrador não é
um louco nem um mentiroso compulsivo (por muito atormentado que seja): ao
contrário, desenvolve mecanismos sofisticados de autoproteção, e são eles que
conformam o juízo intelectual a respeito de Albertine como alguém de quem, afinal,
ele já esqueceu.
Defendemos que se desconfie mais do narrador quando ele diz que não ama
Albertine do que quando diz que a ama. Por quê? Por uma razão simples: não amar
resolve o problema dele, que é lidar com a ausência de Albertine – primeiro sob a
forma da rejeição (ela foge dele), depois da morte. Se ele já não a ama, não carece de
sofrer pela pessoa que foi embora.
Aliás, esse é um dos motivos que também nos leva a refutar a autonomia do
ciúme em relação ao amor, tal e como defende Joshua Landy, e que tivemos ocasião
de analisar (ver p. 117 desta tese): é ao narrador quem, em primeiro lugar, interessa

245
defender a autonomia do ciúme, e é o que ele faz. A sobrevivência do ciúme como
afeto independente seria uma prova de que o amor já morreu; portanto, a única razão
para Marcel continuar a sofrer é pela doença do ciúme, e não por quem ele já não
amava. No combate para superar Albertine, lutar contra um afeto (ciúme) é mais
difícil que lutar contra dois (ciúme e amor).
Portanto, a descrição de um esquecimento absoluto e de uma Albertine que
lhe é indiferente é uma composição retrospectiva de um narrador ávido por solução:
“a tantos anos de distância, foi-me necessário retonar uma imagem que eu recordava
tão bem” (III, F 546 | IV, AD 271). Mas não amar não lhe surge facilmente, e daí porque
ele incessantemente fareja todo e qualquer vestígio sobre o qual aplicar a lei universal
do esquecimento.
A cena mais marcante sobre o mecanismo de autocegueira e autocontrole por
meio da razão é quando, confundindo os nomes de Gilberte e Albertine, julga ter
recebido uma carta desta última, dando conta de que não morreu. Sua reação é não
sentir nada e querer logo se desfazer do papel. Diante da recusa do porteiro do hotel
em tomar de volta um telegrama já aberto, Marcel o acaba guardando no bolso186.
(III, F 508 | IV, AD 223)
Essa contradição que apontamos no seu discurso revela um padrão, que é o
de tentar conhecer e, sobretudo, controlar pela inteligência as vicissitudes do
coração. Lemos em Nussbaum: “O choque da perda e o consequente aumento da dor
mostram-lhe que suas teorias eram formas de racionalização autoenganosas – não
apenas falsas acerca de sua condição, mas também manifestações e cúmplices de um
reflexo para negar e lacrar as próprias vulnerabilidades” (1990: 264, grifo no original).
O típico “autoescrutínio” de Marcel, tentando contrabalancear a perda por
meio de uma “análise custo-benefício do coração”, é um “estratagema [que] se opõe
ao reconhecimento do amor – e, de fato, ao próprio amor.” (idem)
Em Le Temps retrouvé, é assim que o narrador resume toda a relação
atormentada com Albertine e o seu desgosto amoroso: “Aliás, eu já fui noivo, mas
não pude decidir a casar-me (e ela própria desistiu por causa do meu temperamento

186
O que o narrador diz a seguir torna explícita a atitude de autocontrole e autoengano: “voltei a pô-
lo no bolso, mas prometi a mim mesmo agir como se jamais o tivesse recebido.” (III, F 508 | IV, AD
223)

246
indeciso e maçante)” (III, TR 563 | IV, TR 285). É uma fórmula, como ele próprio avalia,
“bem simplista” para julgar sua antiga relação amorosa, e somente possível “agora
que via essa aventura unicamente de fora.” (idem, ênfase nossa).
E, apesar de julgar a si próprio como alguém de fora, sempre explorando sua
posição de observador187, o distanciamento e a perspectiva menos dilacerante,
facilitados pela passagem do tempo, não são sinônimo de indiferença.

Necrópolis

Voltemos à Albertine disparue. Ao final do primeiro capítulo, segundo o


narrador, o estado de alma em relação a Albertine, “como todo estado mental,
mesmo os mais duradouros” deveria “achar-se um dia fora de uso, ser ‘substituído’”
(III, F 438 | IV, AD 138). Mais à frente, o encontro com Gilberte em Tansonville oferece
a Marcel a visão de um luto acabado, do qual já “nada restava” (III, F 546 | IV, AD 270)
por Albertine. Estamos a um ano da morte dela e no final de Albertine disparue. O
narrador declara: “algo que tomba em ruínas, que se destrói ainda mais
completamente, deixando menos vestígios até do que a beleza: é a mágoa.”188 (III, F
546 | IV, AD 270)
É muito clara a intenção de convergir Albertine e Gilberte: pela confusão entre
os nomes, pelas histórias de amor e desgostos vivenciados, por Andrée se tornar, em
Le Temps retrouvé, a amiga inseparável de Gilberte. Chevalier defende que a primeira
se substitui à última, de forma definitiva, como a última veio por um momento
substituir-se à primeira enquanto objeto de amor. A história de Albertine se
completaria no reencontro com Gilberte, já sem qualquer resquício de paixão.
Mas essa leitura é traiçoeira. O narrador, ao situar o esquecimento e a
indiferença por Gilberte na conclusão de Albertine disparue, leva o leitor a
(equivocadamente) ler nelas também o fim do luto por Albertine. Apesar da lei do
esquecimento, da defesa da substituição amorosa, da apresentação de uma teoria

187
Vemos aqui novamente os artifícios da encenação sobre a qual comentamos no capítulo IV desta
tese.
188
No original, chagrin, estado de tristeza profunda.

247
serial do amor pelo narrador, Albertine não é Gilberte, e o curso de seu amor por
Gilberte não poderá ser reproduzido no amor por Albertine.
Em Le Temps retrouvé, ele mostra que a associação construída como
necessária entre ambas é, afinal, literariamente construída: “a obra deve ser
considerada apenas um amor infeliz que pressagia fatalmente outros, fazendo com
que a vida se pareça à obra [...]. Assim, o meu amor por Albertine, tão diverso, já
estava inscrito em meu amor por Gilberte” (III, TR 718-9 | IV, TR 483).
Em Veneza, o lugar onde Chevalier situa como o enterro definitivo de
Albertine, vimos no capítulo anterior como ele repete a compulsão por tentar reparar
a ausência de Albertine com mulheres que não lhe servem. Misturado ao desejo de
estar com outras mulheres, lá está Albertine: “Aliás, quem me poderia dizer
exatamente, nessa busca apaixonada pelas moças venezianas, o que havia [...] de
Albertine, daquele meu antigo desejo de outrora de viajar a Veneza?” (III, F 493 | IV,
AD 205-6).
É muito mais provável, e é o que defendemos nesta tese, de que o coração de
Marcel seja como a Necrópolis de Gautier: quando andamos no cemitério, visitando
tumbas, pensamos que os mortos estão ali, e somente ali. “Dizem: estes aí estão
mortos” (1838, IV.6). Para o poeta, ao contrário, cada alma é um sepulcro onde jazem
os antepassados e os amores antigos.
Na Necrópolis de Marcel habitam Albertine e a avó189. Não por acaso, ambas
são evocadas em um sonho relatado no primeiro capítulo do volume, embora em
estados bastante diferentes. Nele, Marcel inquire agitadamente Albertine sobre suas
atividades suspeitas em Balbec e Touraine. Vê-se que Albertine, nesse momento, está
bem viva para Marcel. A avó, por outro lado, anda para lá e para cá, ao fundo do
quarto. Sua figura se descompusera, como a própria memória: “Um pedaço de seu
queixo caíra em pedacinhos como um mármore corroído” (III, F 424 | IV, AD 120).
Diante do absurdo da morte física, o narrador, ao contar o sonho, conclui pela
sobrevivência, em si, da avó morta, mesmo depois de tantos anos: “como dizem, os
mortos não podem sentir nem fazer nada. Diz-se, mas isto não impedia a minha avó,

189
E também catedrais, Combray, antigos usos da língua, a representação de Berma etc.

248
que estava morta, de continuar a viver, todavia, há vários anos e, nesse momento, ela
ia e vinha pelo quarto.” (III, F 424 | IV, AD 120)
Isto é, confrontado com a abolição da pessoa pela morte, o que ele verifica
nas experiências cotidianas – entre elas o sonho tem um lugar especial por falar
daquilo que muitas vezes não queremos aceitar – apontam que ela continua a viver
em nós. O luto, portanto, não necessariamente extingue seu paradoxo e desafia o
“esquecimento completo” do morto (III, F 380 | IV, AD 64), tornando a paz de um
cemitério impossível na vida sentimental de uma pessoa.
Contra esse paradoxo, a inteligência se insurgirá sempre: “Eu não retinha da
morte senão a comodidade e o otimismo de um desenlace que simplifica e resolve
tudo.” (III, F 403 | IV, AD 93)

Freud, mais uma vez

Anteriormente, havíamos assinalado nosso espanto com a descrição a


respeito da mudança repentina de Freud a respeito do triunfo do luto. Sem insinuar
qualquer relação de causalidade, consideramos que essa mudança de ideias parece
ter a ver, entre outras coisas, com o convívio prolongado de Freud com as dores
advindas da morte de sua filha, de que fala na carta.
E não só. A morte da filha se insere em uma série de outras experiências
significativas com a morte, a última delas sendo a do neto, em 1923. Essas não foram
as únicas. A primeira grande morte que ele vivencia foi a do pai, em 1896. Em uma
carta ao amigo Wilhelm Fliess, ele escreve: “Por meio de um desses padrões obscuros
por trás da consciência, a morte do velho me afetou profundamente” (FREUD, E.,
1960: 232). Doze anos mais tarde, em 1908, no prefácio da segunda edição de A
interpretação dos sonhos, publicado pela primeira vez em 1900, ele afirma:

Este livro tem um significado subjetivo adicional para mim – um


significado que eu apenas compreendi depois de tê-lo concluído.
Foi, descobri, uma parte da minha própria autoanálise, minha
reação à morte do meu pai – isto é, o evento mais importante, a
perda mais pungente da vida de um homem. Uma vez tendo

249
descoberto isso, senti-me incapaz de apagar os traços da
experiência. (FREUD, SE IV xxvi, ênfases nossas)

A passagem citada possui sugestões interessantes. As mudanças que a morte


por vezes engendra em nós podem ser, em última análise, imprevisíveis, graduais,
silenciosas e atuar por solavancos.
Que a Interpretação dos sonhos tenha sido uma reação à morte do pai, Freud
só viria a saber depois (ou a julgar como tal). De imediato, não conseguimos ser
plenamente conscientes do alcance que a morte de alguém querido terá para nós.
Em 1908, a maior perda na vida de um homem – perda cujos traços são persistentes
– foi a do pai; no final da vida, seria a da filha e do neto.
A reação perante a morte da filha, avaliada em retrospectiva, o obrigou a rever
suas ideias, mas não é negligenciável que a perda do pai também tenha sido
importante, embora de modo pouco mensurável e imediato. Portanto, que a morte
da filha de Freud tenha sidof para ele mais impactante para a mudança de ideias a
respeito do curso normal do luto é, afinal, apenas uma suposição nossa; ela é também
a história que ele próprio conta em certa altura da vida.
Freud provavelmente não acordou subitamente em um dia de primavera com
uma ideia completamente nova sobre a impossibilidade de consolo para o luto. Uma
leitura da mudança enquanto ruptura total e sem história – como definimos a Eureka
na linguagem popular – ignora que a mudança de ideias pode ser o efeito da interação
e do acúmulo gradual de pequenas mudanças introduzidas pelo tempo.
Em “Luto e Melancolia”, Freud afirmara que as mudanças que o luto exige (a
aceitação da realidade e a abdicação do morto) eram graduais e intermitentes. Ou
seja, em 1917, grau e intermitência já eram aspectos relevantes do ensaio, mas ele não
conseguia dar conta da medida temporal da mudança nem da natureza dessa
mudança: a mudança pode durar anos e, no limite, ser infinita; e pode nunca resultar
na abdicação do morto. É o que parece acontecer com Marcel.

Solidão

250
Uma das mais profundas mudanças em Marcel, a partir de Albertine disparue,
é a acentuação da solidão do protagonista. O primeiro vislumbre da solidão remonta
à Du côté de chez Swann, com a agonia da separação materna e, como desenvolvemos
na Parte I desta tese, a solidão é intensificada de modo violento aquando do
desaparecimento da avó – embora negada a seguir. Não à toa, a morte de Albertine
evoca ambos episódios.
É ao perder Albertine que Marcel começa a se ausentar da vida mundana, que
tanto invejara e na qual tanto quis se integrar. Albertine disparue é o único volume
onde está ausente um evento coletivo, uma recepção mundana de grandes
proporções190, como poderia ser o caso do casamento da sobrinha de Jupien – a
cerimônia, por exemplo, constava nos manuscritos191.
Em Veneza, em meio ao seu “desejo de não perder para sempre certas
mulheres”192 (III, F 513 | IV, AD 230), como a dama de companhia da baronesa de
Putbus, que teria acabado de chegar à cidade, Marcel tenta postergar sua estadia,
pese a recusa da mãe, que parte à estação de trem. Diante da possiblidade de
realização de um desejo há tempos alimentado, o que lhe sobrevém não é a
perseguição do deleite, mas a solidão e o estranhamento em relação à realidade em
volta:

Minha solidão irrevogável estava tão próxima que já me parecia


principiada e total. Pois eu não me sentia sozinho, as coisas se me
tinha tornado estranhas [...] (III, F 514 | IV, AD 231).

O estranhamento tem a ver com a posição radicalmente solitária que se


desenvolve a partir da morte de Albertine. É no desenrolar desse luto que Marcel se
interna em uma casa de saúde. Embora a internação não possa ser explicada
exclusiva ou diretamente pela perda de Albertine – com a mesma simplicidade de um

190
O jantar com Gilberte nos Guermantes, apesar de ser uma recepção, é íntimo e conta com apenas
dois convidados: Gilberte e Marcel.
191
Como mostra Chevalier, no projeto inicial de Proust (Cahier Babouche, ffºs 05-20), o barão de
Charlus faria uma recepção em seu hotel para o acordo nupcial. Ver CHEVALIER, “Notes et
variantes” de Albertine disparue (1989: 1131, nota nº2) e “Notice” (1989: 1016).
192
Esta passagem está ausente das primeiras edições de Albertine disparue, publicadas a partir de 1925
sob o título às vezes de La Fugitive. Consta apenas nas edições que, a partir de 1986, integraram as
anotações de Proust no original do romance datilografado.

251
balde de água que apaga uma fogueira –, é significativo que antes do sanatório, em
Veneza, onde Marcel supostamente se livraria do fantasma da amada, o mundo se
lhe tenha tornado estranho.
A solidão, um dos efeitos do luto em Marcel, personagem que o tempo todo
evita estar sozinho, é tanto aquilo que o torna alheio ao entorno quanto aquilo de
que necessita para escrever. A morte da avó o havia empurrado, a contragosto, para
ela. A de Albertine é o estopim. Mesmo não praticada de modo contínuo, a solidão
vai se consolidando como um modo de vida, que é um modo de falar com os mortos.
A importância da solidão é relevante para a escrita e também para a leitura.
Desde “Sur la lecture”, Proust assinala o papel da solidão e de seu cúmplice, o
silêncio. O leitor é aquele que se esconde e se “asila” nas horas “calmas” e
“invioláveis” do dia (PM, 2013 [1919] : 237); é aquele que aproveita o passeio da família
para ler sozinho na sala de jantar, até que a presença e ruído de outras pessoas vêm
atrapalhá-lo.
Além da solidão e silêncio como condições materiais favoráveis à leitura (e à
escrita), há um outro sentido, mais filosófico, para esse par: ao contrário do que
defendia Ruskin, a leitura não é uma conversa com sábios [os autores]; ela é um
convite para que, a partir do que se nos comunica o livro, desçamos “às regiões mais
profundas” de nós, “onde começa a verdadeira vida do espírito” (idem, 264), e
façamos um trabalho solitário de interpretação pessoal e intransferível.
A conversa, aliás, é prejudicial e dissipa os poderes intelectuais que temos na
solidão. O estímulo que a leitura oferece só pode acontecer “no seio da solidão”
(265). Fora dela, não há atividade criativa como a leitura. Se analisarmos a Recherche,
pode-se afirmar o mesmo sobre a escrita.
A decisão de Marcel, em Le Temps retrouvé, de começar a escrever sua grande
obra, só pode se realizar junto com a decisão de se isolar: “eu teria a coragem para
responder, aos que me viessem visitar ou convidar-me, que [...] tinha um encontro
urgente, fundamental, comigo mesmo.” (III, TR 782 | IV, TR 564).
No último volume, o protagonista avalia que todo compromisso social e toda
companhia é um entrave à escrita, até mesmo escrever cartas de condolências:
depois de escrever à sra. de Sazerat, que havia perdido um filho, e de, portanto,
sacrificar o tempo da obra ao dos compromissos, Marcel fica de cama por oito dias.

252
Nos parece que uma das transformações que o luto proporcionou ao
protagonista teve a ver com tornar-se narrador. Mas talvez não tenha sentido
categorizar tal mudança propriamente como ‘efeito’. Para Laufer (2018), “o luto é
uma experiência de transformação cujos efeitos desconhecemos, para não falar dos
resultados”.
A dificuldade em falar em efeitos e resultados é, como já discutimos, descrever
o luto como um trabalho que visa de antemão resultados bem definidos, alcançados
com o emprego proposital de certos meios ou certas atitudes. Se a experiência
pessoal com as mortes da avó e de Albertine foram importantes para a gestação de
Marcel enquanto narrador, não o foram de modo causal ou premeditado. Não há uma
corrente elétrica a ligar luto e escrita – como aquela entre Andrée substituta e
Albertine substituída, de que fala o narrador.
As experiências do luto tampouco se relacionam à escrita de modo exclusivo.
A mudança de Marcel de alguém que posterga a escrita para alguém que escreve é
provavelmente tributária do amor e da desilusão amorosa, mas também da música
de Vinteuil, dos quadros de Elstir, de Racine e Berma, das viagens. Também da guerra,
por apresentar um outro tipo de calendário e de relação com a morte.

Rupturas: sanatório e guerra

Gérard Genette qualificou o silêncio a seguir da morte da avó como o mais


misterioso do romance. A elipse de vários anos concentrada na sentença “os longos
anos que passei longe de Paris, num sanatório” (III, TR 576 | IV, TR 301), por sua vez,
nos parece também constrangedora. Ainda mais porque, em seu regresso193, depois
de vários anos (e aqui talvez possamos falar de mais uma katabasis ou descida aos
infernos), Marcel encontra um mundo irreconhecível e desfigurado pela guerra: seu
regresso à terra é um convívio com os mortos.

193
Na diegese do romance, a primeira visita a Paris é logo no início da guerra, em 1914. O regresso
definitivo ocorre em 1916.

253
Albertine disparue marca o fim de uma era. É um fim sem monumento
funerário, um enterro no qual partes dos cadáveres ficam à mostra, com a terra a se
revolver nas camadas geológicas do tempo – “As transformações geológicas fazem
aflorar à superfície, pertetuamente, camadas mais antigas” (III, F 428 | IV, AD 125).
Isso ficará evidente em “Le bal de têtes”, encontro de mortos-vivos.
Em Le Temps retrouvé, que se inicia com o recolhimento no sanatório e a
eclosão da guerra, a ruptura é dupla, e por isso mais evidente: “Regressei, então, a
uma Paris bem diversa” (III, TR 576 | IV, TR 301). A guerra estabelece um fosso
geológico entre presente e passado. Ela transforma o tecido social, as crenças, a
linguagem, a moda. O mundo de antes torna-se um tempo pré-histórico (III, TR 579 |
IV, TR 306), com “um abismo que o relegava ao passado mais remoto”194 (III, TR 609
| IV, TR 343).
Incorporada durante a escrita do romance, a guerra é um ponto relevante da
Recherche. A importância é não apenas do ponto de vista genético195 e editorial196,
mas diegético. Por muito tempo, a guerra será para Marcel “a única coisa que então
[me] importava” (III, TR 576 | IV, TR 301). Ela provocará uma “mudança profunda”
(III, TR 579 | IV, TR 306), modificará todo o entorno do protagonista, acentuará a sua
solidão e tornará a relação com a morte mais evidente. Marcel perambulará pelas
ruas escuras, com os hotéis, restaurantes, o Louvre e todos os demais museus
fechados.
Um verdadeiro espetáculo de luzes e sombras, a guerra fornece ao
protagonista uma Paris de contrastes entre extinção e presença, de ambiguidade

194
No original, a ruptura parece ainda mais definitiva: “une coupure qui le reculait dans le passé le plus
mort.”
195
Du côté de chez Swann é publicado em novembro de 1913. Entre 1914 e 1918, Proust escreve,
reescreve e desenvolve a maior parte do romance, que até então estava previsto em mais dois
volumes, Le Côté de Guermantes e Le Temps retrouvé. O primeiro é desenvolvido e dividido,
aparecendo À l’ombre des jeunes filles en fleurs; três outros ganham forma (Sodome et Gomorrhe,
La Prisonnière e Albertine disparue) e o episódio dos soldados no hotel de Jupien é introduzido em
Le Temps retrouvé. Proust seguiria revisando e reescrevendo os volumes até a sua publicação e,
aqueles não publicados em vida, até a sua morte. Sobre as mudanças operadas na narrativa para
incluir o advento da guerra, ver DUPONT (2015).
196
A mobilização de toda a equipe de Bernard Grasset, incluindo o próprio editor, suspende a
publicação de Le Côté de Guermantes. Proust também teria decidido não publicar durante a guerra,
por respeito àqueles que sofriam. No curso da guerra ele muda de editores, com o famoso
arrependimento da Nouvelle Revue Française (NRF, liderada por Gaston Gallimard), que rechaçara
o manuscrito do primeiro volume. Ver LHOMEAU & COELHO (1988).

254
entre a violência intolerável e a macabra beleza da guerra: é “ainda mais escura que
Combray da minha infância” (III, TR 586 | IV, TR 313-4), mas, perto dos Invalides,
“acima da cidade noturnamente iluminada, [...] ainda era dia um tanto claro [...] o céu
dava a impressão de ser um mar imenso matizado de turquesa que se retira” (III, TR
608 | IV, TR 341).”
Com novos rostos e adaptados aos novos horários, lugares e trajetos, as
pessoas persistem em seus hábitos convivais e na busca do prazer: “evita-se a música,
a pretexto da guerra, mas dança-se e janta-se fora [...]. As festas preenchem o que,
se os alemães continuarem a avançar, será os últimos dias de nossa Pompeia.” (III, T
642-3 | IV, TR 385), nas palavras do barão de Charlus.
Uma guerra que se prolonga muito mais do que qualquer pessoa previu, como
a ausência de Albertine se prolongaria por toda a vida do protagonista, ela obriga que
se atualizem as hipóteses sobre o futuro e as ações do presente. Essas ações estão
ligadas também à presença da morte que, inevitavelmente, torna-se uma realidade e
um assunto frequente: “Agora, os homens escasseavam, o luto era mais frequente”
(III, T 613 | IV, TR 348).
A narração critica a falta de rituais, a hipocrisia dos que seguem levando a
mesma vida de antes e o discurso patriótico que impõe a interdição ao sofrimento.
Em um exemplo, Saint-Loup escreve197 para Marcel contando sobre a morte de um
jovem soldado morto em combate, le petit Vaugoubert, cujos pais obtiveram
excepcionalmente a permissão de ir ao enterro, desde que não se vestissem de luto
e ficassem apenas cinco minutos, por conta dos bombardeios:

A mãe, um cavalão que talvez conheças, podia estar muito


magoada, porém não deixava perceber coisa alguma. Mas o
desgraçado do pai estava em tal estado, que te asseguro que eu,
já tornado insensível pelo hábito de ver subitamente aberta em
sulcos por um torpedo, ou até separada do tronco, a cabeça do
companheiro com quem estava conversando, não podia me
conter [...]. Por mais que o general lhe dissesse que aquilo fora
pela França, que seu filho se portara como um herói, isso não

197
Enquanto está internado, Marcel recebe duas cartas, uma de Saint-Loup, outra de Gilberte. Ambas
falam da guerra. Gilberte relata a destruição provocada pelo avanço alemão nos territórios da
infância, mas ela parece sofrer mais do que o protagonista.

255
fazia mais que redobrar os soluços do pobre homem, que não
conseguia se afastar do corpo do filho. (III, TR 601 | IV, TR 333)

O luto não é apenas evitado na fronte, por ser elemento dissuasivo para o
combate, mas também na futilidade dos salões. Os Verdurin – como antes os
Guermantes – o encaram como um impedimento às festas, e por isso se empenham
em abreviar os parênteses.
À força da repetição, as pessoas terminam por se habituar à morte: “Ouço
pessoas que parecem muito felizes o dia inteiro, que tomam excelentes coquetéis,
declararem que não chegariam ao final da guerra”, diz o barão de Charlus (III, TR 623
| IV, TR 360). Não parece que seja totalmente o caso para o protagonista e o narrador,
e muito disso também se deve ao fato de Marcel ter vivido longe de Paris. O novo
cenário da guerra o obriga a se reposicionar nesse novo mundo, aguçando a
percepção de que os restos do universo de antes convivem em perpétuo conflito com
o presente.

Onde está Albertine?

Há um paralelismo entre a guerra e o esquecimento total empreendido pela


passagem do tempo em relação aos mortos, como reivindicava o narrador em
Albertine disparue. A destruição e a nova era que se inicia com a guerra poderiam ser
comparáveis à destruição operada pelo esquecimento.
Mas a guerra não apagou tudo em seu avanço: permaneceram os costumes
frívolos da sociedade e a falta de empatia com a dor alheia, por exemplo. Apesar dos
novos rostos nos salões, como os das norte-americanas, muitos ainda são os
mesmos, embora envelhecidos.
Do mesmo modo, a morte tampouco obliterou Albertine: “acreditar que a
morte não faz mais que riscar o que existe e deixar o resto intacto [...], que ela
arrebata a dor e não põe nada em seu lugar?” (III, F 375 | IV, AD, 57-8). No que diz
respeito ao protagonista, a morte parece ter colocado no lugar dor e memória.
Durante o último volume, o narrador apelará diversas vezes a Albertine:

256
Ah!, se Albertine tivesse vivido, como seria doce, nas noites em
que eu fosse jantar no centro da cidade, marcar um encontro ao
ar livre, sob as arcadas! A princípio, eu não distinguiria nada, teria
a emoção de crer que ela faltara ao encontro; quando, de
repente, veria destacar-se da parede negra um de seus caros
vestidos grises, seus olhos risonhos que me tinham avistado, e
poderíamos passear abraçados sem que ninguém nos visse ou
incomodasse [...]. (III, TR 586 | IV, TR 314)

Ele também lembrará da avó pelas razões mais corriqueiras (por exemplo,
quando ele comenta a obra da sra. de Beausergent ou compara as pessoas que ele
conhecia com aquilo que a avó pensara delas) e sérias (quando se culpabiliza pela
indiferença que teve diante de sua morte ou quando reflete que, se ela não poderia
testemunhar os progressos do neto que, enfim, começaria a escrever, ao menos
deixara de testemunhar sua inação).
A internação em um sanatório, bem como a ruptura social e existencial
provocada pela guerra, exacerba a “separação prolongada” (III, TR 583 | IV, TR 310)
de Marcel com Albertine e com o mundo à sua volta. Antes da internação, subsistia,
segundo o narrador, uma espécie de memória involuntária em torno de Albertine,
mas em nada parecida àquela despertada pela madeleine; ao contrário, tratava-se
nesse caso de um gesto automatizado. Assim, no meio da noite, já passados vários
anos, Marcel acorda em Tansonville, na casa de Gilberte, chamando Albertine para
que ela soasse a campainha (III, TR 556 | IV, TR 277).
Com isso queremos dizer que resquícios de Albertine (ou de partes do que
formava a relação de ambos e do interesse de Marcel por ela) resistem, mas já
anacrônicos: é assim que ele pergunta à Gilberte, sem se importar muito com a
resposta, se Albertine gostava de mulheres. É uma pergunta sem consequência e no
entanto persistente, como a pergunta da paciente de Laufer sobre a culpa pela morte
do filho. O protagonista toma consciência inclusive da automatização dos gestos de
ciúme que vez ou outra emergem, “como esses velhos que são obrigados a terminar
até o fim um movimento começado, mesmo se este se tornou inútil” (III, F 446 | IV,
AD 148).

257
O isolamento com o mundo e a consequente solidão que o sanatório impõe
realçam a ruptura com a Albertine imaginária que sobrevivia e, no regresso a Paris, o
narrador declara: “[os] restos de reminiscências de Albertine, num caminho
inteiramente abandonado, há vários anos de distância. Pois eu nunca pensava nela.
Era um caminho de recordações, um rumo que jamais seguia.” (III, TR 582 | IV, TR
309). Albertine, nesta citação, resume-se a uma lembrança, ao conteúdo positivo de
uma anamnese que pode ser voluntariamente mobilizado (ou involuntariamente
repetido como um refrão gasto, sem afeto).
Essa relação de Marcel com aquilo que restou faz lembrar os “restos de casca
ao redor do pintinho” (III, TR 580 | IV, TR 307), os fragmentos de um mundo antigo
que já quase ninguém reconhece. Uma parte de Albertine torna-se anacrônica, como
uma parte do próprio Marcel. Por um lado, porque já estão longe da atualidade; por
outro, porque estão repetidos, habituados e anestesiados: “uma espécie de
supersaturação das coisas em que pensamos demais.” (III, TR 583 | IV, TR 310)
Mas seria incorreto resumir tudo o que restou dos mortos ao nada ou a uma
lembrança qualquer. Marcel afirma que já esqueceu Albertine e a avó, mas as evoca
continuamente para afirmar isso: “nossos mais fortes sentimentos, como foram o
amor pela minha avó, por Albertine, não os reconhecemos mais ao fim de alguns
anos, pois tornaram-se para nós apenas palavras incompreensíveis.” (III, TR 718 | IV,
TR 482)
Isso nos leva a concluir, na esteira do que vem sendo analisado até aqui, que
Albertine sobrevive. Seu apagamento é parcial: engendrado pelo passo do tempo,
sim, mas sobretudo anunciado por um narrador que quer superar a desilusão
amorosa.

258
IV.
Revelação

Na crítica proustiana predomina uma linha de interpretação do final da


Recherche segundo a qual ela seria uma apoteose redentora que levaria o
protagonista à posse definitiva de sua vocação de escritor e de sua essência. Assim,
a revelação, pela memória involuntária, oferece um sentido final e global ao romance.
Georges Poulet afirma:

Quando o romance proustiano chega ao fim, quando a


consciência que não cessou de registrar os acontecimentos se
encontra capaz de lançar sobre eles um último olhar,
retrospectivo e esclarecedor, então a multiplicidade descontínua
dos episódios, semelhante até aquele momento a uma série de
imagens isoladas e justapostas, abre espaço no espírito da
pessoa que abraça o todo. (1982 [1963]: 132)

Como se sabe, ao chegar ao hotel dos Guermantes para uma recepção, ele
tropeça no pavimento desigual do pátio de entrada, e ali começa uma “felicidade”
gerada pela memória involuntária: ele reconhece Veneza e a basílica de São Marcos,
e todas as dúvidas a respeito de seu talento desaparecem. Outros alertas virão a
seguir, como o tilintar de uma colher contra um prato.
Instalado na biblioteca dos Guermantes, ele se deixa invadir pelo prazer de
uma tal epifania que faz emergir memórias involuntariamente, que traz a descoberta
da essência das coisas e a revelação de seu talento de escritor. É quando ele diz ter
apreendido “uma fração de tempo em estado puro” (III, TR 694 | IV, TR 451).
Notemos a cisão entre o terreno confuso do coração e a racionalização de
teorias estéticas. Durante essa experiência “da essência das coisas, isto é, fora do
tempo” (III, TR 693 | IV, TR 450), o protagonista afirma a ausência total de Albertine.
Ela, portanto, parece só poder ser excluída quando a razão está no comando: “E,
sempre continuando o meu raciocínio”, (III, TR 702 | IV, TR 461) ele reflete sobre as

259
imagens que lhe vêm à mente. “Porém, a dolorosa lembrança de ter amado Albertine
não se mesclava a tal sensação. Lembrança dolorosa só existe a que vem dos mortos.
Ora, estes se extinguem depressa, e já não sobra, ao redor de seus próprios túmulos,
senão o encanto da natureza, o silêncio, o ar puro.” (III, TR 695 | IV, TR 453)
Poderíamos ser tentados a identificar a consumação do que o narrador de
Albertine disparue às vezes declarava antecipadamente: o esquecimento de
Albertine. Aqui, a mudança é ainda mais profunda, definitiva e positiva, pois tem a ver
com a manifestação da vida verdadeira de Marcel (aquela até então escondida,
aquela que vale a pena), e na qual já não há mais espaço para os mortos. Tem a ver
também com a declaração de um novo comportamento, totalmente motivado para
a escrita.
Contudo, na Recherche, a cena onde se pode confirmar uma mudança
profunda de Marcel está no final de Le temps retrouvé. Não se trata de uma mudança
comportamental, mas do modo como vê o mundo e como é obrigado a reformular
as ideias que possuía sobre ele, sobre os outros e sobre si.
Na biblioteca (um lugar simbólico para a explosão epifânica do intelecto) ele
projeta seu futuro como escritor, agora que afirma ter encontrado o sentido da sua
vocação e o assunto da grande obra que começará a escrever na solidão. É então que
o chamam para entrar no salão. O que ele vê são rostos totalmente desconectados
da imagem original, já velhos e arruinados. Não reconhecer as pessoas e esse velho
mundo que ele frequentara (e que agora é outro) implica fazer uma nova descrição,
onde a morte tem um lugar basilar. O que reflete as mudanças de Marcel é mais o
baile de máscaras do que as elocubrações intelectuais na biblioteca.
Como Paris bombardeada e desfigurada pela guerra, os rostos dos convidados
são irreconhecíveis, e dar-se conta dessa diferença é entender a “noção de tempo
escoado” (III, TR 800 | IV, TR 587). A esse propósito, parece-nos pertinente a analogia
que Anne-Hélène Dupont faz entre a guerra e a festa. Para ela, a guerra é uma festa
que acaba mal (DUPONT, 2015: 305-6). Se é assim, então nos parece que o baile de
máscaras é uma festa tão mortuária quanto poderia ser a guerra, pois apresenta a
mutilação dos corpos e dos costumes operada pelo tempo.
Em Du côté de chez Swann, a relação com o tempo era evocada com um tom
melancólico:

260
Todas essas lembranças reunidas umas às outras não formavam
mais que uma massa, mas nem por isso eu deixava de perceber
entre elas [...] senão fissuras, verdadeiras fendas, pelo menos
essas nervuras, essas misturas de cores que, em certas rochas e
certos mármores, revelam diferenças de origem, de idade e de
“formação”. (I, CS 164 | I, CS 184)

No último tomo, o reencontro do tempo é a fissura, e não a união, que existe


com um passado longínquo ao qual dificilmente podemos fazer apelo; isto é, é a
consciência de que reencontrá-lo é rever rostos que agora não somos capazes de
identificar. Ou que o fazemos pagando um alto preço: descobrindo que também nós
nos desfiguramos. É nos tornarmos também irreconhecíveis aos outros. O tempo
reencontrado não é uma epifania, mas um pesadelo198.
Um entendimento comportamental, conforme vínhamos criticando como a
falsa régua para medir as mudanças de Marcel, não permite responder ou explicar
atos mentais, mas a partir de seus “resultados” visíveis. Ora, não há resultado visível
em Marcel: lá está ele, frequentando e conversando com os convidados. Mas é o seu
espanto interno o resultado das alterações no decorrer dos anos e da consciência
dessas mudanças: já passou muito tempo, muitas pessoas que ele conhecia
morreram, outras estão à beira da morte, ele incluído.
É no momento em que deixa a solidão da biblioteca, na posição que lhe
permitira alçar voos imagináveis a respeito do valor da literatura e do lugar que ela,
por fim, ocuparia em sua vida, é quando encontra os convidados, que advém outra
solidão inimaginável: a de saber-se velho, a olhar para o rosto da morte em cada
pessoa cujos traços lhe é difícil de associar àqueles que ele um dia conhecera.
Reencontrar rostos irreconhecíveis exige de Marcel a consciência das mudanças de
posição ao longo do tempo, da revolução que cada indivíduo vive em relação aos
outros e a si próprio, “e notadamente pelas posições que [cada indivíduo] ocupara
sucessivamente em relação a mim” (III, TR 816 | IV, TR 608).

198
Nesse sentido, não há tempo realmente reencontrado, o que se faz é topar com aquilo que já não
se reconhece.

261
Marcel é agora o solitário em meio à multidão, e é a compreensão chocante
(porque súbita, embora não arbitrária) da diferença de posição que ele ocupa nesse
novo-velho mundo o que lhe permite entender de que se trata a vida. Uma tal
consciência é formada a partir da impressão, do contato com as pessoas, e não do
pensamento abstrato: “compreendia o que significava a morte, o amor, as alegrias
do espírito, a utilidade da dor, a vocação etc.” (III, TR 740 | IV, TR 510).

Sem teleologia

Como reforçamos ao longo desta tese, as mudanças pelas quais passa Marcel
são graduais, assistemáticas e funcionam por acúmulo, embora certas circunstâncias
que possam acelerá-las, ao distanciá-lo temporariamente do ambiente e dos hábitos
de outrora – como foi ter se ausentado por bastante tempo da vida social, após a
morte de Albertine e, de modo radical, com os anos no sanatório, e como foi o
período excepcional da guerra.
O “efeito Albertine” mais profundo – a solidão, a consciência da morte dos
outros e de si –, não se constata logo de supetão. Ele não é o único fator, como foi
dito, mas contribui para a cena final. Nesta cena, embora assimilada como um único
quadro ou um travelling, se imprime toda a vida de Marcel. A mudança em Marcel,
portanto, é “obscuramente preparada dia a dia”, “mas brucamente realizada em seu
conjunto” (III, F 466 | IV, AD 172).
Que a cena final só possa ser assimilada por alguém que perdeu pessoas, por
alguém que viveu tempo suficiente para se dar conta do passado e por alguém que
rompeu com certos hábitos – disso não advém que toda a Recherche seja um discurso
teleológico à espera do remate final. Esta é a posição de Ricciardi. Não a respeito do
baile de máscaras, mas da “Adoration perpétuelle” que a precede. Ela é, para
Ricciardi, a cúspide triunfal do romance, sua explicação e seu fim199.
O momento da revelação de sua vocação de escritor explicaria de modo
prospectivo o baile de máscaras, pois a busca do narrador pelo passado se resolve

199
Encontramos uma interpretação triunfal e teleológica do romance em diversos outros críticos,
como POMEAU (1957).

262
“por meio do final feliz da descoberta de sua missão artística” (Op. cit.: 71). Segundo
esse ponto de vista, o fim do romance (aqui localizado na biblioteca) oferece um
“êxtase ahistórico”, Marcel triunfalmente passa por cima do passado por meio da
memória involuntária.
Ricciardi lê a Recherche como um continuum biológico linear que conta o
início, o desenrolar e o fim de uma vida. Isso parece uma armadilha da qual é preciso
se desvencilhar, mas na qual o texto nos induz, por tratar, grosso modo, de forma
cronológica dos principais eventos narrados: os eventos contados no volume 1
aconteceram antes daqueles do volume 2, e assim por diante, mesmo com rupturas,
elipses, flashbacks e antecipações internas dentro de um mesmo volume.
Não nos parece adequado ler o livro como uma linha reta em direção à
solução, pois seria ater-nos ao desejo de controle do narrador e à sua vontade de
agência, postas em xeque aquando da perda da avó e de Albertine e no baile.
O fato de a revelação se encontrar quase no final do último volume não torna
todo o romance uma construção teleológica da vocação, nem torna necessário
sobrepor o suposto triunfo do final como explicação retrospectiva de toda a
Recherche. Tampouco o conhecimento que temos, pelo estudo dos manuscritos, de
que as teorias estéticas dessa parte foram uma das primeiras passagens que Proust
escreveu da Recherche200 obriga uma leitura que ratifica o que o autor pensava duas
décadas antes de, em uma noite de primavera de 1922, escrever a palavra “fim”201.
É assim, no entanto, que Ricciardi encontra a unidade do romance: a “primeira
parte” (isto é, todos os sete volumes) seria a preparação da última (“Adoration
perpétuelle”), e existiria em sua função. A vida de Marcel, assim, é a preparação para
um clímax de sua vocação literária, uma “teologia cômica e otimista” (idem, 70). O
próprio narrador constrói esse discurso durante seu êxtase: “após tantos anos
decorridos e tanto tempo desperdiçado, eu sentia esse influência capital do ato

200
Os primeiros escritos que viriam a se tornar o episódio da “Adoration perpétuelle” datam de
1903. Ver, a esse propósito, REY & ROGERS, “Notice” de Temps retrouvé, pp. 1146-1175. Em cartas,
o autor enfatiza que o começo e o fim do que seria a Recherche foram escritos seguidamente. É
assim que ele escreve em 1919: “o último capítulo do último volume foi escrito logo a seguir o
primeiro capítulo do primeiro volume” (Corr. XVIII: 536).
201
Conforme ele teria relatado para sua governanta e secretária Céleste Albaret, antes de acrescentar:
“Agora eu posso morrer” (cf. ALBARET, 1973: 403).

263
interno [...]” (III, TR 726 | IV, TR 492). Mais tarde, durante o baile de máscaras, ele
afirma:

Além disso, o homem que desde a infância visa a um só objetivo,


que a preguiça e mesmo o estado de saúde, fazendo-o adiar
interminavelmente suas realizações, anula a cada noite o dia
passado e perdido [...] (III, TR 738 | IV, TR 508).

Toda a vida de Marcel é, assim, resumida como alguém que tinha uma intenção
(a de escrever) e que a posterga. O narrador rearranja as peças de sua vida à luz dessa
descoberta derradeira, que resolve o problema ao encontrar o assunto para o livro a
vir e o modo como o assunto seria explorado. A narração se aplica a explicar a vida
de modo teleológico (algo como “vivi até aqui para me descobrir escritor”) e causal
(“se não fosse Swann, não haveria Gilberte nem Balbec, e por isso não haveria os
Guermantes, Albertine etc e nem este dia na biblioteca”).
Mas a continuação da segunda citação é mais problemática. Logo a seguir, o
narrador revela que esta mesma pessoa ensimesmada que passou tantos anos a
perder tempo, “mostra-se surpreso e perturbado” ao perceber que não parou de
viver dentro do Tempo. Não é o fato de a citação aparecer depois o que nos leva a
lhe dar um peso maior: é porque a parte precedente resolve sua situação, de um
modo parecido ao que discutimos sobre as autodeclarações de cura a respeito do
luto. Por isso, a passagem problemática é a que precisa de uma atenção maior, pois
coloca fissuras nas explicações intelectuais coerentes e redentoras de antes.
Como se não bastasse, a razão da sua angústia não é apenas o fato de se ver
refém do tempo, mas de que essa consciência (da ordem da impressão) se choca com
as lições que Marcel tira na biblioteca (da ordem do intelecto) e que fundamentam
seu “projeto”. Desta forma, ele coloca em questão os superpoderes da memória
involuntária e da revelação literária:

Mas um motivo mais grave explicava a minha angústia; descobria


a ação destruidora do Tempo justo no momento em que desejava
empenhar-me por tornar claras, intelectualizando-as numa obra
de arte, realidades extratemporais. (III, TR 738 | IV, TR 508-9)

264
A revelação é, portanto, dupla: tanto sobre a ação do tempo quanto sobre a
vocação; levando em conta ambas, Marcel percebe que tem pouco tempo para
escrever a obra, que o extra-temporal é unicamente uma empreitada intelectual.
O peso e a natureza que Ricciardi concede à “Adoration perpétuelle” é
desproporcional: ela não é capaz de fundar um novo Marcel. Marcel pós-revelação
não está a salvo; é um Marcel continuamente açoitado pela visão da morte:

Com efeito, logo que entrei no grande salão, conquanto sempre


mantivesse firme em mim, no ponto em que me achava, o
projeto recém-formado, deu-se um lance teatral que ergueria
contra minha empreitada a mais grave das objeções. Uma
objeção que eu certamente haveria de superar, mas que,
enquanto continuava a refletir sobre as condições da obra de
arte, iria, pelo exemplo cem vezes repetido da ponderação mais
adequada para me fazer hesitar, interromper a todo instante o
meu raciocínio. (III, TR __| IV, TR 499)

O romance não termina na memória involuntária; ele prossegue por mais de


uma centena de páginas durante as quais a ideia da morte “me acompanhava, tão
incessante quanto a ideia do meu próprio eu” (III, TR 826 | IV, TR 620), “se instalou
definitavamente em mim como um amor” (III, TR 825 | IV, TR 619). Saberemos que,
três anos depois da matinée nos Guermantes, Marcel estará em outro salão, e
lembrará da ruína da sra. de Forcheville (antiga Odette), um pouco gagá e
ridicularizada por todos.

Tais fatores inserem o tropeço de Marcel no pavimento dos Guermantes


dentro do tempo e da história. A leitura que encara a revelação como um evento
isolado e ahistórico é comparável a uma leitura de tipo conversão. Lembremos que,
após a morte da avó, o narrador sugere ter renascido e já avançava um discurso
parecido ao do convertido. (ver Parte I desta tese, capítulo II, seção “Uma nova vida”,
pp. 67-72) .
Tomemos o caso da conversão mais conhecida no mundo cristão, a paulina
(At., 9.1-22; 22.6-16). Ela descreve um momento de crise seguido da mudança radical

265
de personalidade. Tal modelo enfatiza um movimento do convertido da escuridão
para a claridade (isto é, a verdade), e tem na revelação o ponto de virada para o novo
ser (FINN, 1997). Via de regra, existe um erro inicial que precisa ser sanado (para o
cristão, corresponde ao pecado). No caminho de Damasco, por exemplo, Paulo,
pecador e perseguidor dos judeus, converte-se em devoto de Jesus.
Vista sob esse ângulo, a Recherche seria contada como uma história de
conversão de alguém que estava errado e subitamente descobriu a verdade. O que
no Novo Testamento seria um ato divino, na Recherche seria um efeito da memória
involuntária e, em última análise, um ato intelectual. Esse modo de contar o romance
é em tudo partidário de um Marcel impermeável e insensível ao mundo ao redor, e
convertido posteriormente de modo súbito, definitivo e permanente202.
A gestação de Marcel escritor e o entendimento que ele tem sobre o tempo e
a morte no final do romance se parecem em certo sentido mais à experiência de
Tolstoi do que de S. Paulo: são o resultado de um acesso gradativo a conteúdos antes
ignorados (deliberada ou involuntariamente), mas que pressionam a consciência, e
cujos efeitos não podem ser mensurados apenas pelas ações do sujeito: “impossível
julgar, pela sua vida ou comportamento, se uma pessoa é ou não crente” (TOLSTOI,
1987 [1879-82]: 20).
Quanto ao impacto das mortes em Marcel, Ricciardi diz que ele “renuncia de
fato a qualquer relação melancólica com o passado” (Op. cit.: 72). Deste modo, a
crítica alinha-se de imediato a uma parte do discurso do narrador, que quer desfazer-
se do passado para desfazer-se de suas dores.
Em comum, Ricciardi e Wassenaar enquadram a Recherche como exemplar
freudiano do luto como superação final da perda do objeto perdido. A nossa leitura
do romance mostra, ao contrário, quer no luto pela avó quer no luto por Albertine,
que não se pode enterrar todos os mortos, não se pode esquecê-los como quem vira
a página203: nas últimas páginas do livro, lá estão eles, visíveis ou latentes, cá está o

202
O psicólogo e filósofo William JAMES (1902) famosamente contradisse esse tipo de descrição,
mostrando que as conversões narradas como um cataclismo, isto é, caracterizadas por uma súbita
mudança, são o resultado do acúmulo ao longo do tempo de novos conteúdos psicológicos, os
quais alcançam um nível de tensão tão elevado que se projetam na consciência de forma abrupta.
203
É interessante notar que, à expressão popular “virar/passar a página”, isto é, seguir em frente,
esquecendo um episódio doloroso do passado, contrapõe-se na Recherche a ideia de um luto que
retomamos sempre no mesmo lugar: “Desde o momento em que despertava e que retomava a

266
presente de um necrotério – com as pessoas que morreram, queridas ou inimigas, e
os outros velhos que estão perto da morte.
Entre os velhos “caducos”, “mendigo(s)”, “moribundos” que “já não
inspirava(m) nenhum respeito” (III, TR 732 | IV, TR 500), Marcel também conversa
com outros mortos, os mais importantes: “Acontecia-me às vezes desejar que, por
um milagre, estivessem junto a mim, vivas, ao contrário do que havia suposto, minha
avó e Albertine. Acreditava vê-las, meu coração ia-lhes ao encontro.” (III, TR 783 | IV,
TR 566)
Mas, como Ulisses, que tenta abraçar a mãe morta para se aperceber que era
apenas a memória204, o narrador a seguir adiciona: “Olvidava apenas uma coisa: é
que, se de fato vivessem, Albertine teria agora mais ou menos o aspecto da sra.
Cottard em Balbec, e minha avó, tendo mais de 95 anos, nada me mostraria do belo
rosto calmo [...]” (idem).
A consciência dessa diferença, que é a consciência da morte e do tempo, é
narrada durante o baile, a última grande cena do romance – a mais fúnebre de todas,
porque se quer festiva –, sugerindo o alcance que o luto de Albertine e avó tiveram
para ele; ali é onde o narrador-protagonista se apercebe dos corpos envelhecidos,
das pessoas que já morreram, da própria velhice e doença e dos fragmentos de um
mundo dentro do tempo.

minha mágoa no ponto em que me encontrava ao adormecer, como um livro por um instante
fechado [...]” (III, F 354 | IV, AD 33).
204
“Três vezes me lancei para ela, / dizendo-me o espírito/ que a abraçasse! Três vezes ela se / evolou
dos meus braços / como sombra ou sonho; a minha / dor tornou-se mais aguda [...]” HOMERO,
Ilíada, Canto XI, v. 206-208, trad. Frederico Lourenço, Quetzal: Lisboa, 2018. A relação com a Ilíada,
evocada páginas antes pelo narrador, é sugerida na presente passagem por REY & ROGERS, “Notes
et variantes” de Le temps retrouvé, p. 1281, nota nº1.

267
IV.
Consolo

Freud concluiria, a respeito da própria vida, que pode não haver consolo nem
substitutos para um enlutado. Vimos em Albertine disparue como Marcel fracassa em
substituir Albertine por outras mulheres. Mas, no final da Recherche, durante a
revelação na biblioteca, vimos que ele volta à carga, desta vez mobilizando o poder
da literatura e se dispondo a encontrar um consolo na escrita.
Em Le Temps retrouvé, Marcel afirma que o assunto do livro que começará a
escrever será sua própria vida: “a obra de arte era o único meio de recuperar o Tempo
Perdido [...] E compreendi que todos as materiais da obra literária eram a minha vida
passada” (III TR 715 | IV TR 478). Na obra vindoura, Albertine e a avó teriam um espaço
especial – à altura, presume-se, do que tiveram, retrospectivamente, na vida de
Marcel. Além de a obra falar delas, se lhes seria dedicada.
A arte é o meio pelo qual podemos “começar a entender tais palavras
esquecidas” que são os mortos (III, TR 718 | IV, TR 482). O escritor as traduz em
linguagem literária e permanente, e a obra faz dos mortos, “em sua mais verdadeira
essência, uma aquisição perpétua para todas as almas” (idem). Em outras palavras, a
obra é um monumento feito pelos e para os mortos: eles ajudam a edificá-lo e ele lhes
é dedicado.
Fazer dos mortos o monumento literário que lhes será dedicado, encontrando
aí um consolo, é tipicamente a atitude atribuída ao poeta na elegia: “De que serve a
elegia se não servir de monumento aos mortos?” (BERNHARDT, 2003). Isso tem a ver
com um dos movimentos-chave do gênero, que permite partir do lamento ao
consolo, passando pelo louvor. No capítulo IV, falamos do louvor. Agora, uma breve
discussão em relação ao consolo nos ajudará a melhor interpretar essa última parte
do romance.
O modelo da compensação da dor pelo consolo tornou-se dominante na
crítica literária das elegias sobretudo com o trabalho de Peter Sacks (1981 e 1985)

268
sobre a poesia inglesa do século XVI205. Segundo ele, a elegia representa e executa o
trabalho do luto: começa com o sofrimento pela morte de uma pessoa querida, para,
reconhecendo seu valor, aos poucos encontrar um consolo.
O movimento da perda em direção ao consolo “envolve um desvio do desejo”
(1981: 09) para um outro objeto, que funciona como substituto. Muitas vezes, o
objeto é uma figura da linguagem e, com frequência, se sugere que o morto sobrevive
em espíritos da natureza. Ao garantir uma sobrevida àquele que morreu, o poema
torna-se, em última análise, o substituto do morto.
Como se vê, Sacks projeta sobre os textos literários uma interpretação
freudiana do luto como um problema que se resolve, e cuja solução literária está na
desistência do objeto original e no deslocamento da afeição (ou da libido) para novos
objetos literários. A substituição distanciaria o enlutado do morto, aliviando a dor de
se confrontar não apenas com a morte de outrem, mas com a própria morte.
Na elegia tradicional, um objeto representa o morto. O exemplo de Sacks é a
aceitação de Apolo do loureiro no lugar de Dafne (Ovid., Met., I. 447-449): o louro
torna-se um prêmio de consolação, “um sinal não apenas de seu amor perdido, mas
de sua própria busca, um sinal de consolação que traz em si uma lembrança da perda
na qual foi fundado.”206 (SACKS, Op. cit.: 05)
Na leitura tradicional da elegia, o self (representado pelo eu-lírico) seria
restabelecido, voltando à sua coerência inicial, o que é visto como um triunfo207. Ele
opta pela vida (e não pela melancolia) ao retirar a libido do morto; ganha, assim, uma
importante recompensa narcisista208, como sugere Freud em “Luto e Melancolia”.

205
Posteriormente, RAMAZANI (1994) questionou esse modelo, chamando atenção para poemas
contemporâneos antielegíacos que recusavam o consolo. HOWARD (2003), por sua vez, já
apontava a ausência de consolo em poetas da Idade Média e da Renascença, que encontrariam
conforto não na escrita, mas na submissão aos desejos divinos.
206
Nesse sentido, remete à nossa discussão do capítulo V sobre a substituição amorosa como consolo
para o desgosto amoroso: a pessoa substituta, em todo caso, sempre recordará a substituída.
207
As bases desse restauro da consciência não são complemente alheias a uma ideia otimista da
unidade da mente que encontramos em Freud entre os anos 1893 e 1905. Em On the psychical
mechanism of hysterical phenomena: a lecture (1893), por exemplo, postulava que era possível
restabelecer a coerência e unidade da mente; quando a causa da histeria terminava (pelo método
da recordação e da “abreaction”), o paciente estaria curado: “O momento em que o médico
descobre a ocasião em que o sintoma apareceu pela primeira vez e o motivo de seu aparecimento
é também o momento em que o sintoma desaparece.” (1893, SE III: 35).
208
O narcisimo está ligado a um “instinto de autopreservação”, ele afirmara um ano antes, em
“Introdução ao narcisismo” (1914b, SE XIV: 74). Lembremos que “Luto e Melancolia” foi escrito em
1915, embora publicado dois anos mais tarde.

269
Essa recompensa, para o poeta, também é o reconhecimento de sua técnica e a sua
exposição a um público.
É deste modo que o poeta retira satisfação do poema, “sua própria defesa
contra a mortalidade” (SACKS, 1981: 56). “O poema, seu ‘discurso’, torna-se um
emblema da sobrevivência do poeta e possivelmente de sua própria imortalidade.”
(KENNEDY, 2007: 25). Também é assim, com o uso da substituição e do consolo, que
se fixa o sujeito elegíaco como monumento. (BERNHARDT, 2003)
Na Recherche, há algumas passagens nas quais o narrador deixa ver ideias
parecidas. O livro por vir é um monumento para os mortos, é fabricado a partir da dor
da perda e pode servir de consolo. Além de encontrar consolo na obra, o próprio ato
da escrita seria consolador. O narrador afirma que escrever é, em um certo sentido,
um consolo diante da perda:

Quando buscamos extrair a generalidade do nosso desgosto,


escrever a seu respeito, talvez nos sintamos um tanto
consolados ainda por um outro motivo [...] o fato de que pensar
de um modo geral, escrever, é para o escritor uma função sadia
e necessária [...] (III, TR 717 | IV, TR 480).

[...] como eu deveria experimentar a seguir, mesmo no momento


em que amamos e sofremos, caso a vocação enfim se realize nas
horas em que trabalhamos na nossa obra, sentimos tão
claramente a criatura amada dissolver-se numa realidade mais
ampla que chegamos a esquecê-la por instantes, e não mais
sofremos dos males de amor [...] (III, TR 719 | IV, TR 483).

Mesmo ao “reviver nossa mágoa particular” (III, TR 719 | IV, TR 484) no ato da
escrita, o escritor se distancia da pessoa real para criar um personagem. Esse gesto
tem duas consequências: enquanto escreve, o escritor consegue fugir à opressão do
real e esquecer a amada, agora metamorfoseada em uma generalidade acessível aos
demais; ao fazer os leitores participarem do sofrimento, o escritor sente “certa
alegria” e satisfação. Assim, o narrador vai se distanciando de Albertine. O que
começa como um grande tributo e sacrifício aos mortos, vai se revelando mais
complexo, na medida em que é fonte de prazer para o escritor.

270
Tudo estaria a serviço da arte, incluindo as pessoas que a inspirariam. Se os
fins artísticos amparam a necessidade de um pintor utilizar várias mulheres, a
seguinte se substituindo à anterior, como “modelo” para sua obra, Marcel teria carta
branca para encontrar novas amantes (e aqui vemos ainda o eco de sua atitude em
Albertine disparue, ávida por justificativas e por solução):

a mulher que nos servia de modelo para um sentimento, já não


no-lo causa mais. É preciso continuar a descrevê-lo segundo
outra mulher, e, se nisso há traição, literalmente, graças à
semelhança de nossos sentimentos que faz com que uma obra
seja, a um tempo, a lembrança dos amores passados e a profecia
de amores novos, não existe grande inconveniente nessas
substituições. (III, TR 721 | IV, TR 486)

Para além de defender que possa seguir a vida com novas amantes (em uma
atitude substitutiva sistemática que nega o “ser” anterior), o narrador também
defende que deva usá-las como fontes da obra, apreciando nelas exclusivamente sua
utilidade para ele. Mas estaríamos enganados ao afirmar que a escrita, ao produzir
uma obra que pretende homenagear e substituir o morto, distanciando o autor do
ser real que o inspirou, finalmente o consola: “esquece-se que a vida do escritor não
termina com esse trabalho, que o mesmo temperamento que o fez passar por esses
sofrimentos, os quais entraram em sua obra, o levará a viver após o término desta”.
(III, TR 718 | IV, TR 482-3)
O consolo, se existe, é parcial, precário e provisório. Como sabemos, depois
dessas reflexões, caberá a Marcel seguir a vida (como o fará, ao entrar no grande
salão). A quanta distância estamos, neste momento, das impressões. O “fragmento
fora do tempo”, como o narrador intelectualmente define sua obra, será assombrado
pela consciência despertada no baile de máscaras, sobre a distância do tempo em
que conseguia facilmente reconhecer os rostos hoje caducos.
“Nenhuma palavra apropriada de consolo é encontrada” (1998 [2016]: s/p),
escrevera Malcolm Bowie a propósito do capítulo “Les intermittences du cœur”.
Acreditamos que ela possa ser estendida para todo o romance. Como o próprio Sacks
assume, a consolação nunca consegue “mascarar totalmente a perda que ela
implica” (1981: 15). Além disso, no final da Recherche, nem o protagonista nem o

271
narrador cumprem o movimento tipicamente elegíaco da incoerência para a
coerência.
Parte da incapacidade de encontrar um consolo definitivo para a perda de
Albertine tem a ver com aquilo que John Paul Riquelme (1999) chama de dupla perda,
reconhecida pelo eu-lírico de certos poemas de Thomas Hardy:

Na verdade, a pessoa que morreu já estava morta para o poeta


em vida devido a um distanciamento emocional. Não basta
devolver a pessoa à vida, pois isso não repara a distância que
separava o poeta dela mesmo durante a vida. A impossibildade
de uma dupla reparação impede o consolo. (RIQUELME, 1999:
217)

Uma espécie de cloison ontológico separa radicalmente o protagonista de


Albertine em vida, como o separava da avó no hotel de Balbec. O narrador também
perceberá que, mesmo se trouxesse Albertine à vida, ela se pareceria à sra. Cottard
(III, TR 783 | IV, TR 566).

Literatura e profanação

A importância de Albertine e da avó não é somente que ele as tenha amado,


mas que tenha aprendido com a perda delas. Em vida, ao se dar conta que Albertine
não lhe amava, ele afirma que a relação com Albertine o obrigou a conhecer o amor
e o sofrimento (III, TR 717 | IV, TR 480).
A perda delas teria sido um verdadeiro impulso para sua criação artística, na
medida em que a descoberta das dores do abandono, “penosa para o homem, torna-
se preciosa para o artista” (III, TR 717 | IV, TR 480). Seu projeto literário então passa a
ser “desprender-se das criaturas” para lhe devolver “a generalidade” e tornar
comunicável para o leitor o amor que sentiu. (III, TR 713 | IV, TR 476). Ele diz aceitar o
mal físico que o amor provoca em nome do “conhecimento espiritural que nos traz”.
(III, TR 720 | TR 485) A dor, ademais, ensinaria tudo quanto um homem de letras deve
aprender.

272
O distanciamento que ele empreende dos fatos e dos seres que amou é
grande, “voo de pássaro” (IV, TR 547). Grande o suficiente para se descolar dos
mortos e profaná-los. É assim que ele se vinga de Albertine: “[...] dando-me
desgostos, Albertine me fora talvez mais útil, até mesmo do ponto de vista literário
do que um secretário que pusesse em ordem minha papelada” (III, TR 722 | IV, TR
488). Afirmações como essas datam de muitos anos depois da perda da avó e de
Albertine. Mas uma empreitada de tal envergadura não acontece sem reservas: “A
falar a verdade, eu me revoltava um tanto contra isso” (III, TR 723 | IV, TR, 481).
O narrador conclui que, ao ter aproveitado das pessoas que ele amou como
fonte de inspiração e conhecimento prático, é como se suas vidas tivessem sido
vividas apenas para o proveito dele mesmo: como se tivessem sido mortas por ele209
(III, TR 717 | IV, TR 481). Uma tal conclusão já fora entrevista em Albertine disparue:

E, de fato, parecia-me, nas horas em que menos sofria, que de


alguma forma me beneficiava da sua morte, pois uma muher é de
maior utilidade em nossa vida se ela constitui, em vez de um
elemento de felicidade, um elemento de desgosto. (III, F 391 | IV,
AD 78)

Deste ponto de vista, ele mostra um incômodo com a constatação que lhe fica
clara: a morte é uma grande oportunidade para o desenvolvimento artístico e para a
exposição pública da figura do poeta – uma visão, como vimos, historicamente
associada à prática da elegia210.
A esse propósito, é de notar que, por exemplo, Peter Sacks analisa “Lycidas”
como fruto de uma situação pessoal e histórica211 de John Milton, que teria “feito
render uma extraordinariamente complexa oportunidade”, a qual “explorou ao
máximo” (1981: ii-iii) com um uso sofisticado da linguagem. Vemos aqui o eco de
Wassenaar, a questionar por que o narrador de Albertine disparue não teria, segundo

209
No original, “comme s’ils étaient morts pour moi” guarda um sentido de culpa por assassinato,
ausente da tradução (“como se estivessem mortas para mim”).
210
Sobre a “culpa do elegista”, ver o estudo de DESPREZ (2001) sobre a obra do norte-americano
Robert Frost. O poeta mostraria uma consciência (e uma reprovação) de que no fundo aquele que
escreve sobre os mortos não quer ressuscitá-los ou imortalizá-los, mas salvar a si próprio.
211
No ano da morte do amigo Edward King, para quem Milton dedica o poema, também morreu a
mãe do poeta, além das vítimas da peste, que atingiu inclusive a cidade onde morava.

273
ela, aproveitado a “sua grande chance, o único evento que ninguém pode tirar dele
[...]” (Op. cit.: 208).
Mas aproveitar a chance não é uma tarefa sem dilemas morais. Há, na escolha
do narrador por escrever sua vida, uma tentativa de redimir o duplo assassinato de
Albertine e da avó, ao torná-las aquilo que “teria inspirado”(III, TR 728 | IV, TR 495) o
livro. A obra seria, portanto, um veículo para expiar a culpa de seu autor. A culpa,
contudo, é dupla. Ele sente-se uma segunda vez culpado por querer sanar a culpa
primeira (pelos sofrimentos causados às suas fontes) beneficiando-se da vida das
fontes e do sofrimento que teve com elas.
Há qualquer coisa de imoral, mas necessário, no desejo (ou defesa) de que a
obra seja um “monumento que [os mortos] não hão de ver” (III, TR 718 | IV, TR 482),
mas que ajudaram a construir: “[...] eu me indagava todavia se uma obra de arte da
qual não teriam conhecimento seria para elas, para o destino dessas pobres mortas,
uma realização de fato.” (III, TR 717 | IV, TR 481).
Fato interessante é que o reconhecimento de sua culpa e da punição que
merece não tem sempre o tom do lamento, mas também do sentimentalismo ou do
escárnio:

Minha avó que eu vira, com tamanha indiferença, agonizar e


morrer junto a mim! Ó, possa eu, como expiação, tão logo
termine a minha obra, irremediavelmente ferido, sofrer longas
horas, abandonado de todos, antes de morrer! (III, TR 717 | IV, TR
481)

Na obra de que quer falar, o escritor é alguém a conversar com mortos212, o


que ficará ainda mais evidente no baile a seguir. E parece que, para falar sobre eles
na literatura, o único modo possível é sendo-lhes infiel. Da mesma forma como o
narrador lamenta que o leitor projete sobre o “modelo” de seu livro outras mulheres
(III, TR 717 | IV, TR 481), a infidelidade póstuma também é do narrador, que concebe
um personagem “tão desligado de um ser particular” (idem).

212
Esse gesto se assemelha a uma leitura que no ensaio “En mémoire des églises assassinées” Proust
fizera de John Ruskin: “Sua obra divina não era suscitar os vivos, mas ressuscitar os mortos.” (PM:
169).

274
Apesar das dúvidas morais (que, na biblioteca, são migalhas perto da ‘grande
obra’ a vir), o narrador, sabemos, prossegue. Ao preço de profanar seus mortos,
afirma o poder da literatura. Nesse sentido, que ela consiga reparar a morte ao trazer
à tona os mortos é mais incerto do que o fato de que ele só consiga fazer literatura
ao profaná-los – isto é, sendo-lhes infiel, reinventando-os, vingando-se deles, como o
bom romancista que fala “justamente do que não convém falar”213 (II, SG 647 | III, SG
222). Enfim, fazendo das pessoas reais personagens de ficção.

**
Os dois tipos fortes de resposta de Marcel face à perda de Albertine, a
substituição e o lamento, permanecem sem uma solução. Apesar de ambas existirem,
e em conflito, não há uma vitória permanente de uma sobre a outra, tampouco um
equilíbrio entre elas. A riqueza da Recherche é que, pese o conflito entre elas, outra
atitude vai se desenvolvendo aos poucos: é a atitude de alguém que segue vivendo.
Com a passagem do tempo, o protagonista não sofre como no primeiro dia, mas
tampouco esquece Albertine. Que não sofra muito nem todos os dias não quer dizer
que tenha superado a perda, se por superar entendermos uma zona bem definida de
esquecimento, de indiferença ou de permanente indolor. Esta seria uma “solução
para romance, inverossímil na vida” (III, F 339 | IV, AD 13), como ele diz em certa
altura.
Procuramos demarcar momentos em que contradições escapam a certas
teorias gerais do narrador, como o inexorável progresso do hábito e do
esquecimento, e sugerem que o itinerário do luto não atraca em um cais firme; em
certos casos, ele pode ser incompleto, inconclusivo e guardar o paradoxo entre a
presença e a negação.
Sobre os limites da inteligência, o narrador afirma: “É a vida que, aos poucos,
caso a caso, nos permite assinalar que o mais importante para o nosso coração, ou
para o nosso espírito, não nos é ensinado através do raciocínio, mas por outras
forças.” (III, F 334 | IV, AD 07). Também poderíamos dizer que é a vida, pouco a pouco,

213
Na passagem completa, lemos: “Assim, encontram-se na sociedade polida poucos romancistas,
poetas, todas essas criaturas sublimes que falam justamente do que não convém falar.” (II, SG 647
| III, SG 222)

275
caso a caso, que nos permite viver, de diferentes formas, com a notícia de uma
ausência, com os mortos.
Em Albertine disparue, a dor e a memória intermitentes que assaltam o
protagonista não se enquadram no mapa que ele tenta traçar para o luto, com uma
série de ações e eventos que culminariam na superação; ao contrário, vêm e vão, a
cada vinda lhe lembrando da ausência – e lhe desesperando.
Disso se conclui que, se Marcel não superou a perda de Albertine, é porque ele
pode vir a lembrar dela e sofrer por ela. Nesse sentido, o fracasso da superação se
localiza no conteúdo positivo do esquecimento, isto é, na recordação. Isso faz da
recordação dos mortos uma “intermitência” não controlável pela razão e sem o
êxtase intelectual da “Adoration pérpetuelle”214.
No entanto, nesta tese queremos chamar atenção para um ponto além, e é
que Albertine subsiste não apenas quando é lembrada: ela é parte inseparável da
pessoa em quem Marcel foi se tornando.
Algo parecido parece ter sinalizado Freud, ao rever a definição patológica da
melancolia, em oposição ao luto. O processo melancólico de identificação do
indivíduo com o objeto perdido, muito mais frequente do que Freud pensava,
passaria a ser considerado fundamental para a formação do indivíduo. Mas também
é aquilo que nos permite preservar o morto.
Quando, em 1917, ele diz que “a sombra do objeto caiu sobre o ego” (LM: 135),
isso é um meio pelo qual “um vestígio da pessoa que perdemos torna-se internalizado
como uma parte viva do self” (CLEWELL, 2004: 60). Se então ele pressupunha um
sujeito que poderia (mais: que deveria) abdicar dos mortos e viver sem qualquer
rastro das perdas, em O Ego e o Id ele coloca a identificação com o que perdemos
como indispensável para a formação de quem somos.
Em outras palavras, somos formados também pela “sedimentação desses
objetos amados e perdidos, o remanescente arqueológico, por assim dizer, do luto
não resolvido” (BUTLER, 1995: 167). Como a Necrópolis de Gautier, tornamo-nos

214
O caráter doloroso das intermitências, por oposição ao caráter extasiado das reminiscências na
“Adoration pérpetuelle”, é também sinalizado por COMPAGNON (ver “Notice” de Sodome et
Gomorrhe, 1988:1432). No mesmo sentido, Proust escreve ao amigo René Blum: “acreditamos não
amar mais os mortos, mas é somente porque não nos lembramos deles; de repente vemos uma luva
velha e desfazemo-nos em lágrimas.” (Corr., XII: 296).

276
inseparáveis daqueles que perdemos e cuja incorporação nos ajudou a nos formar
como pessoas. Essa visão leva Freud a cogitar “a concepção de que o caráter do Eu é
um precipitado dos investimentos objetais abandonados, de que contém a história
dessas escolhas de objeto.” (FREUD, 1923: 36)
O narrador proustiano, das poucas vezes em que desconfia abertamente que
o luto não passa sem deixar rastros, pergunta o que a morte deixa no lugar. Havíamos
respondido dor e memória. Mas também pode deixar uma pessoa diferente – nós:
não porque passemos a fazer coisas diferentes, mas porque mudamos o modo como
enxergamos o mundo, ao ter de incluir nele a morte e o passo do tempo. Nesse
sentido, Albertine não é parêntesis nem fase; ela é tentacular e acabou “por se
estender sobre toda a minha vida” (III, TR 719 | IV, TR 483), mesmo depois de morta.
A ausência de Albertine permanece como ferida intermitente. É o que os
franceses chamam de vivre avec: vivemos com nossas feridas, não nos desfazemos
dela quando viajamos ou quando as declaramos ausentes e vencidas. Uma espécie de
doença crônica que pode manifestar sinais de vez em quando.
Ainda mais importante, a ausência de Albertine é uma ferida que transforma.
O narrador, ao final da Recherche, mesmo depois de tantos anos, não apenas não
esquece Albertine, mas reconhece que as dores e desgostos atrozes advindas de sua
perda, como da perda da avó, são aqueles “contra os quais lutamos [...], impossíveis
de substituir e que por vias subterrâneas nos conduzem à verdade e à morte.” (III, TR
723 | IV, TR 488).
Viver com Albertine e a avó mortas requer uma nova posição de Marcel no
mundo, um outro tipo de movimento e de percepção, que leve em conta o rearranjo
de uma mobília interna: “Como esses móveis colocados na penumbra de uma galeria
e nos quais, embora sem distingui-los, procuramos não esbarrar, eu me havia
acostumado” (III, F 427 | IV, AD 124).

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