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INTRODUÇÃO À POÉTICA
DE MALLARMÉ
A LINGUAGEM SE REFLETINDO
INTRODUÇÃO À POÉTICA
DE MALLARMÉ
278 p. 16 x 23 cm
ISBN: 978-65-5684-006-2
CDU 82.0
A linguagem se refletindo
Introdução à poética
de Mallarmé
Annablume Editora
Conselho Editorial
Eugênio Trivinho
Gabriele Cornelli
Gustavo Bernardo Krause
Iram Jácome Rodrigues
Pedro Paulo Funari
Pedro Roberto Jacobi
Annablume Editora
www.annablume.com.br
Agradecimentos
in memoriam
S U M Á RI O
PREFÁCIO 9
INTRODUÇÃO 11
V - O MITO 101
VI - O TEATRO DA IDEIA
OU A LINGUAGEM EM AÇÃO 135
VII - A FICÇÃO 151
BIBLIOGRAFIA 269
PREFÁCIO
Bertrand Marchal
10
INTRODUÇÃO
12
de compreender o romantismo a partir de seu contexto histórico,
social, político e filosófico. Entre os trabalhos empreendidos nas úl-
timas décadas que pretendem reconfigurar o contexto e a história so-
cial, política e literária na qual Mallarmé se inscreve estão Lecture de
Mallarmé e La religion de Mallarmé, de Betrand Marchal, Le coup de
dés, de Mallarmé: Un recommencement de la poésie, de Michel Murat, e
Mallarmé: La politique de la sirène, de Jacques Rancière.
Mas, além de um trabalho de contextualização histórica da obra
mallarmeana, levando em consideração a relação entre a trajetória
estética do poeta, suas escolhas formais, bem como a configuração
histórica que as determinaram, é preciso compreender as verdadeiras
razões que tornam a obra do poeta difícil. Por isso, o mais importan-
te na leitura da obra de Mallarmé não é tentar explicar o que o poeta
diz, mas, principalmente, “o papel que ele se propôs como poeta”
(RANCIÈRE, 1996, p. 12).
Para abordarmos essa questão, tomamos como ponto de parti-
da as explicações que o próprio poeta forneceu a respeito da obs-
curidade de seus poemas. No artigo “Le mystère dans les Lettres”,
Mallarmé responde às críticas feita pelo então jovem Marcel Proust.
Um dos argumentos principais para justificar a possível “ininteligibi-
lidade” de seus textos é, justamente, a natureza da linguagem poética.
Mallarmé afirma: “Se apraz a alguém, que a envergadura surpreende
incriminar. Será a Língua, de que eis aqui o folguedo” (MALLAR-
MÉ, 2010, p. 189). Como o título do texto explicita as negras letras
da página branca de um livro, o mistério que obscurece suas páginas
é reflexo do mistério presente nas Letras, ou seja, constitutivo da
própria linguagem assim como da literatura.
Nossa abordagem da obra mallarmeana pretende acompanhar o
desenvolvimento e a elaboração de uma poética, que entendemos
não como um sistema de regras e normas que prescreve e define a
boa poesia, mas como a construção de uma ideia de poesia a par-
tir da exploração da complexidade e das contradições de seu mate-
rial constitutivo: a linguagem. Para isso, nosso trabalho tem como
centro a leitura e o comentário do texto Notes sur le langage que o
leitor encontrará em apêndice na versão original acompanhado de
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uma tradução. Trata-se de notas manuscritas, algumas presentes no
verso de outros escritos, como Igitur, que datam de 1869, período
em que Mallarmé se dedicava à escrita do conto. Segundo Bertrand
Marchal, essas notas correspondem a um projeto de doutorado que
Mallarmé pretendia, conforme indicado em suas cartas, apresentar
à Sorbonne. O caráter fragmentário dessas notas não impede, no
entanto, a tentativa de construção do que seria a teoria mallarmea-
na da linguagem, que se explica e se desenvolve em outros escritos
do poeta, pertencentes a diversos momentos de sua carreira. Artigos
presentes no livro Divagations, entre outros, como Les dieux antiques
ou La musique et les lettres.
Essa leitura tem como base uma premissa: a ideia de que a crise
dos anos 1866 e 1869, a crise do Nada ou crise de Tournon, que
se iniciou com a escrita de Hérodiade e terminou com a escrita de
Igitur e deste projeto de tese, configura um momento importantís-
simo da obra do poeta, pois a descoberta do Nada, que é a desco-
berta da irremediável constituição causal ou arbitrária da linguagem,
constitui a ideia mallarmeana de ficção, a partir da qual a sua poesia
se configura. Podemos ainda afirmar que essa crise teria realmente
terminado, não com a escrita de Igitur, mas com a escrita do poema
Un coup de dés, no qual o acaso e a linguagem são uma só forma, a do
poema constelação. Ou seja, partimos da ideia de que é na crise dos
anos 1860 que toda a poética de Mallarmé se delineia (pois seu pon-
to central é a ideia de ficção, que não é outra coisa que a descoberta
do Nada). Ao longo dos anos, e mesmo das décadas que virão, o po-
eta não teria feito outra coisa a não ser desenvolver e procurar aplicar
suas ideias à poesia ou construir uma poesia que fosse a formalização
das descobertas desse período de juventude.
Iniciamos com uma introdução à obra do poeta que busca situá-
-lo historicamente. A segunda metade do século XIX foi marcada
pelo desenvolvimento fulgurante do capitalismo, a consolidação da
imprensa e da literatura de massa. Além disso, é desse período que
data o golpe de Estado de Napoleão III que transformou uma Re-
pública num Império. O desencantamento desse período histórico,
em que os romances de “ilusões perdidas” abundam, é o signo de uma
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literatura em crise, crise que tem o nome de modernidade. Nesse
momento em que a literatura se define a partir da distância que a
separa do mundo econômico e do trabalho produtivo, ela é obriga-
da a legitimar-se no interior do seu próprio campo, diria Bourdieu.
Essa noção de autonomia da arte pode, no entanto, ser extrema-
mente problemática e sustentar ainda mais a ideia de que a poesia
mallarmeana é difícil ou incompreensível, justamente porque recura
o mundo que a cerca. Buscaremos examinar essa questão a partir da
maneira como o poeta define a linguagem poética.
Para definir a linguagem poética é preciso primeiramente dis-
tingui-la da linguagem corrente. Segundo Mallarmé a linguagem
é una, mas seus modos de utilização e emprego podem variar,
eis o que o poeta chama de “duplo estado da fala”. A linguagem
poética, no seu estado “essencial”, se distingue da linguagem cor-
rente, do estado “bruto” ou “imediato” da fala, que constitui não é
exclusividade da língua falada, mas define textos e estilos como o
jornal e o folhetim. Se a linguagem poética, a fala em seu estado
“essencial”, encontra seu lugar no Livro, o jornal e o folhetim não
fazem outra coisa a não ser proliferar a fala em seu estado “bruto”,
Sustentando a ideia que a linguagem é capaz de narrar e descrever
o real, ou seja, de representá-lo.
É na linguagem e por meio dela que a sociedade e a história
entram na concepção poética mallarmeana. Como Baudelaire,
Mallarmé entende que o tempo tem um caráter duplo, um eterno
e outro imutável, fugaz e evanescente. Num primeiro momento,
pretendemos mostrar que Mallarmé transforma o tempo, seu próprio
tempo, a modernidade, ou seja, o contexto histórico social, político e
artístico no qual o poeta se insere, numa forma, numa ideia de forma.
Pois tanto para Baudelaire quanto para Mallarmé, o elemento his-
tórico da beleza, o caráter histórico da arte, reside justamente na sua
força destrutiva, no elemento fugaz que constitui a beleza, no caráter
fugidio do tempo. Eis o que, de efeito, Mallarmé pretende conferir à
forma poética. Ela deve ser como o tempo, como a forma mesma do
tempo, não estática ou sempre idêntica, mas fugaz e, assim, capaz de
dissolver o que há de mais concreto.
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Em seguida, pretendemos explorar o conceito mallarmeano de
ficção, que surge a partir do encontro do poeta com o Nada. O Nada
revela a Mallarmé o caráter nulo da ficção, que não passa de uma
ilusão, uma invenção humana, mentirosa, mas sublime, pois, afi-
nal de contas, só o homem é capaz de inventar Deus. Não se trata
aqui de ver na poesia mallarmeana o fruto mais bem-acabado de
um formalismo que, desencantado do mundo, se volta para a arte,
encontrando nela o último refúgio para sua própria impotência. O
Nada mallarmeano desvela a verdadeira natureza da ficção, ilusória,
certamente, mas também sublime, pois apesar de ser apenas ficção a
literatura é capaz de ir além de seus limites, ultrapassar determinado
estado de coisas do mundo. Ao desvelar seu próprio mecanismo de
constituição, a literatura expõe a racionalidade que governa todas as
esferas sociais, e que o poeta conhece muito bem, pois ela funciona
exatamente como seu material, como a linguagem.
Ao estudar a origem das línguas e dos mitos, o poeta encontra a
confirmação de sua descoberta, pois, se Deus é uma simples inven-
ção humana, os mitos não podem ser outra coisa que uma forma de
construção fictícia. Na análise da mitologia, o poeta se vê diante do
mito original, aquele que teria dado origem a todos os mitos, que
busca encenar o ciclo do sol, que é também o ciclo da vida e da mor-
te, que encerra no devir temporal, o ritmo mesmo da vida. Além dis-
so, tendo como base a história das línguas que se escrevia na recente
linguística comparada, o poeta se vê diante do caráter contingente
da linguagem que perdeu, ao longo dos anos, o vínculo inicial que a
unia à natureza.
Longe de buscar restabelecer o vínculo perdido com uma lingua-
gem mítica e originária, Mallarmé busca criar uma poesia cuja forma
seja não uma mentira que pretende criar uma ilusão e ludibriar o
leitor com falsas fantasias, mas uma forma que se mostre enquanto
ficção, que desvele seu mecanismo de constituição. É uma crítica
da representação, ou seja, da literatura realista e naturalista com sua
pretensão de duplicar o real, que leva Mallarmé ao encontro com o
Nada, encontro que ocorre quando o poeta “escava o Verso” até che-
gar ao seu limite, o Nada.
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A partir desse momento, a única questão será construir uma
poesia que escape do regime representativo da linguagem, que não
pretenda, à maneira do jornal, descrever o que é ou o que aconte-
ceu, mas que pretenda ir além da experiência que cabe no jornal, da
experiência ordinária, corriqueira. Daí porque o grande projeto que
surge dessa crise, além da tese de doutorado que permaneceu inaca-
bada, será o projeto de escrita do Livro, arquitetural e premeditado,
“explicação órfica da Terra”. Esse Livro deveria, como a arte total
wagneriana, conter todas as artes. É assim, portanto, que Mallarmé
criará sua poética, refletindo sobre a forma e a natureza das outras
artes, tais como o balé, a pantomima, o teatro e a música.
O teatro fornece ao poeta um modelo de arte objetiva. No palco
do teatro, o texto se torna ação, o drama íntimo e subjetivo dá lugar
à vida em ação, em contexto coletivo, não há mais um leitor e um
autor separados pela distância infinita do tempo e da diferença entre
intenção e expectativa. No entanto, por mais que o teatro possa pare-
cer concreto, ele ainda é uma convenção, tudo o que acontece é pura
ficção, sabemos que no teatro nada acontece ainda de fato. O teatro
parece, assim, fornecer um modelo de uma arte que é ao mesmo
tempo objetiva e “criada”, espaço onde a ilusão da ficção se desvela.
Já a música fornece um paradigma quase diametralmente oposto.
Em aparência, aqui não há corpo, a visão não é necessária, ela se
desmancha no ar antes mesmo de ter conquistado o espaço concreto.
Para a estética simbolista ou idealista, de matriz hegeliana, que era a
do século XIX, a música é a arte subjetiva por excelência, sua forma
de ser é a mais propícia para a apresentação da subjetividade porque,
entre todas as artes, é a menos determinada, a mais abstrata.
Além dessa “indeterminação” potencial e nobulosa como uma
paisagem impressionista, a música tem no seu modo de execução a
realização de sua própria ideia, ela não se sustenta nem momentane-
amente enquanto ilusão (concreta e visível), porque sua forma de ser
é um não ser. A música se dissolve no ar e ao fazê-lo dissolve todas
as pretensões da ficção de criar ilusões muito duradouras. A música,
como arte eminentemente temporal, fornecerá ao poeta um modelo
de arte “autônoma”, ou seja, antirrepresentativa ou não realista, se
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preferirem capaz de romper com os paradigmas representacionais
da arte poética.
Finalmente, passaremos da linguagem e de sua ideia para a con-
cepção da linguagem poética, a linguagem em operação no poema,
com seus elementos estruturais, não mais o verso e as regras de pro-
sódia, mas a “palavra-total” as “subdivisões prismáticas da ideia”, o
ritmo, estilo, os caracteres tipográficos, a dupla folha. No capítulo
dedicado ao poema Um lance de dados, veremos como a Música e as
Letras compõem o poema com seus elementos “sonoros” e “visuais”.
Veremos como a música e as letras fornecem ao poeta uma ideia
de forma capaz de apresentar ao leitor a linguagem como ela é, um
acaso que o pensamento não é capaz de abolir.
18
I
CRISE DA LITERATURA E SIMBOLISMO
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ao progressivo despertar dos espíritos sob a restauração (tomemos,
por exemplo, Victor Hugo, que passou em pouco tempo, de monar-
quista a liberal republicano). Essa geração conheceu, pelo contrário,
um mundo em ruínas, o fim da monarquia e, sobretudo, do Parnaso.
Sem entusiasmo, julgaram mal o mundo e a vida, acreditavam que
um abismo intransponível separava seus sonhos e ideais, do mundo.
Voltemos à análise de Vaillant. A Revolução de 1848 adotou, se-
gundo o autor, outro paradigma, não mais o discurso de um homem
ao povo ou a representação do discurso do povo, mas um discurso
que pela sua natureza fosse capaz de captar a emoção coletiva e
restituí-la numa obra de arte que mostrasse aos homens o melhor
deles mesmos e lhes indicasse as vias do futuro. A poesia porta-voz
dos mudos, universalizante e profetizante, caracteriza esse momento
de 1848. O fracasso da revolução conduzira Flaubert e Baudelaire
ao “pessimismo violento e glacial”, que, segundo Bourdieu, marcara
suas obras. O fracasso da revolução de 1848 agravou, portanto, um
estado de desencantamento que começou com a geração de 1810
e o fracasso da revolução de 1830. No entanto, o fracasso de 1848
tem um peso inquestionável, como afirmara Bourdieu (1998, p. 220),
afinal tratava-se da república dos românticos, Lamartine chefe do
governo, Hugo deputado, Sand redigindo as proclamações oficiais.
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1830” (MÉLONIO; MARCHAL; NOIRAY, apud TADIÉ, 2007,
p. 329.) É o refúgio de Vigny na contemplação, exílio interior de
Leconte de Lisle na Antiguidade.
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números de entradas nos teatros, empregos no jornalismo etc.), que
Flaubert desvela em Educação sentimental e Balzac em diversas de
suas obras, como em Ilusões perdidas, onde narra justamente o adven-
to da imprensa.
É nos anos 1830 que o novo regime da prensa se inaugura per-
mitindo a produção industrial de livros e favorecendo, sobretudo, o
romance como literatura de entretenimento (MÉLONIO; MAR-
CHAL; NOIRAY, apud TADIÉ, 2007, p. 341). A indústria do ro-
mance criou também escritores empresários que lutaram pela im-
plantação das leis de direito autoral e da propriedade intelectual e
que criaram verdadeiras máquinas de produzir textos, como Dumas
ou Scribe, que recorriam a outras pessoas para escrever seus textos.
Sainte-Beuve foi sensível a esse tipo de prática. Em 1839, ele criou
o termo “literatura industrial”. A criação de uma literatura de massa
mudou completamente a configuração do público leitor de literatu-
ra, constituída, no século XVIII, por exemplo, essencialmente pelo
público dos salões e academicistas. No século XIX, o público “parece
uma poeira de leitores anônimos aos quais os livros são endereçados
como garrafas lançadas ao mar” (MÉLONIO; MARCHAL; NOI-
RAY, apud TADIE, 2007, p. 348).
Os anos 1840 viram surgir, ainda seguindo as descrições de
Bourdieu sobre o jugo do dinheiro que exercia enorme influência
sobre a imprensa e o Estado, uma “arte comercial”, seja na pintura, na
literatura, mas principalmente quando se tratava de teatro. Contra
essa arte comercial surgiram diversos movimentos literários, entre
eles, o realismo de Champfleury (que, na tradição da arte social,
opõe-se ao idealismo da arte burguesa com suas veleidades político-
literárias), o estilo de vida boêmio e a arte “decadente” de Verlaine e
Rimbaud, e, por fim, a arte pela arte de Baudelaire, Leconte de Lisle,
Banville, Villiers, Flaubert, Huysmans ou Barbey, “engajados numa
obra que se situa nas antípodas da produção submissa aos poderes
do mercado” (BOURDIEU, 1998, p. 214.). Esses artistas foram os
primeiros a formular as premissas da nova legitimidade da literatura,
do campo literário autônomo.
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É evidente que o campo literário e artístico se constitui como tal na
e pela oposição a um mundo “burguês” que até então jamais tinha
afirmado de maneira tão brutal seus valores e sua pretensão a con-
trolar os instrumentos de legitimação, no domínio de arte como no
domínio da literatura, e que, através da imprensa e de suas plumas,
visa impor uma definição degradada e degradante da produção cul-
tural. (BOURDIEU, 1998, p. 103)
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para construir uma nova vida social, assim, em vez de falar em nome
da moral, como a geração contrarrevolucionária do primeiro roman-
tismo (Lamartine e Hugo), outra corrente defendia a autonomia em
nome da criação de novas formas de vida, com o intuito de prolongar
a revolução e criar, de fato, uma nova sociedade, colocando fim defi-
nitivamente ao Antigo Regime.
De la littérature de Germaine de Staël, publicado em 1800,
inaugura não apenas um novo século, mas um novo momento
político e artístico na França pós-revolução: o romantismo. Nessa
obra, Germaine de Staël (1991, p. 298) declara seus objetivos e
premissas:
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imitar e reproduzir os clássicos gregos e latinos. Para Germaine de
Staël, “A natureza da convenção, no teatro, é inseparavel da aristocra-
cia no governo” (1991, p. 354). Essas convenções do teatro clássico,
dividido em tragédia e comédia, determinam os gêneros de acordo
com os personagens retratados. A tragédia retrata a vida dos homens
“superiores”, hérois, deuses e semideuses, correspondendo ao gênero
alto; já a comédia retrata homens medíocres, comuns. Ela corres-
ponde ao gênero baixo. Tragédias e comédias devem ser escritas obe-
decendo a três regras fundamentais: aos princípios da inventio, que
determina a escolha do assunto; dispositio, que organiza as partes em
número de atos, tempo e espaço definidos e restritos, e elocutio, que
dita que as ações e os discursos devem ser adequados aos persona-
gens, portanto, ao gênero do poema.
A crítica ao teatro neoclássico é a de um sistema representativo
abstrato e que, sobretudo não corresponde à realidade social da Fran-
ça no século XIX. Uma nova sociedade precisava ver-se no palco.
Para isso, era preciso transformar a forma de apresentar, dividir e
narrar a vida social. Alguns anos mais tarde, nas décadas de 1820 e
1830, a reforma do teatro se intensifica, com a publicação de Racine
et Shakespeare de Stendhal e com as obras teatrais de Victor Hugo,
Hernanie Cromwell, cujo prefácio é um dos grandes manifestos do
romantismo, pelo drama, mas também em defesa do grotesco. Em
Racine et Shakespeare, Stendhal realiza uma crítica que visa eliminar
as formas literárias ligadas a um estado de coisas antigo, a uma so-
ciedade que pertence ao passado. O debate sobre a autonomização
da arte surge, portanto, como um debate sobre normas literárias,
novos gêneros e assuntos, que não busca substituir um sistema re-
presentativo por outro, mas criar uma nova ordem literária, uma
outra hierarquia ou nenhuma e outros critérios de gênero, o que
nos indica uma transformação radical do que se entende por fato
literário. Stendhal, como Germaine de Staël, critica as formas clás-
sicas com base na função social do escritor e da literatura: “De
memória de historiador, jamais povo algum experimentou, nos seus
costumes e nos seus prazeres, mudanças mais rápidas e radicais
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do que estas de 1780 a 1823; e querem nos dar sempre a mesma
literatura!”(STENDHAL, 1925, p. 45).
Se a literatura representativa, mais especificamente o teatro neo-
clássico, se constitui a partir de regras de imitação e princípios regi-
dos que determinam o acordo entre seu modo de desenvolvimento,
seu assunto, personagens e seus discursos e ações, a nova poesia se
define a partir da inversão de todos esses princípios, como mostra
Rancière (1998, p. 28):
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to de sua obra que a reivindicação de liberdade aparece: “O poeta é
livre. […] O espaço e o tempo pertencem ao poeta. Que ele vá onde
quiser fazendo o que lhe agrada: esta é a lei”(HUGO, 1972, p. 80).
Esse prefácio de Orientales busca romper com a arte clássica buscan-
do inspiração na mitologia oriental.
Ele não dissimula, para dizer de passagem, que muitos críticos o acharão
ousado e insensato por desejar para a França uma literatura que possa ser
comparada a uma cidade da Idade Média. Esta é uma das imaginações
mais loucas nas quais poderíamos nos aventurar. É querer muito a desor-
dem, a profusão, a estranheza e o mau gosto. Mais vale a bela e correta nu-
dez das muralhas simples, como dizem, com seus ornamentos sóbrios e de
bom gosto [...]O castelo de Versailles, a praça Louis XV, a rua de Rivoli: é isto.
Falem-me de uma literatura em linha reta! Os outros povos dizem: Home-
ro, Dante, Shakespeare. Nós dizemos: Boileau. (HUGO, 1972, p. 80)
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político entre arte e sociedade. No entanto, isso não significa que
a literatura, a partir da metade do século, tenha renunciado intei-
ramente ao seu poder de “persuasão” ou mesmo à possibilidade de
“comunicar-se” com o público. Os sucessivos fracassos revolucioná-
rios não provocaram simplesmente um movimento em que a arte se
fecha sobre si mesma, muito pelo contrário. Tanto Baudelaire quanto
Flaubert têm consciência de que, por meio dos debates estéticos, o
que está de fato em jogo é o futuro da vida social.
Por essa razão, a literatura desse período é marcada pela crítica
de seu passado, pela crítica das ambições que configuram a literatura
no começo do romantismo. Trata-se, a partir desse momento, para a
literatura, de se consagrar à denúncia das ilusões e dos ideais român-
ticos, procurando compreender seus “erros”, para libertar-se deles,
para quem sabe, mais uma vez, construir um novo projeto literário.
Madame Bovary não é uma obra dedicada a expor as consequências
desastrosas da leitura de maus romances na vida de jovens da pequena
burguesia? E por maus romances entendemos, sobretudo, o tão popular
Paul et Virgine. Nesse romance, trata-se de expor a sociedade burguesa
como responsável pela corrupção de jovens de coração puro que apenas
desejavam, numa colônia africana, viver seu amor em harmonia com a
natureza e com seus ideais cristãos.
No romance de Flaubert, não se trata apenas de demonstrar a in-
compatibilidade entre os ideais românticos e a vida burguesa, mas de
mostrar que a vida burguesa é responsável pela criação desses ideais, que
a ruína do homem dessa metade do século XIX não se deve apenas aos
sonhos e delírios dos poetas, mas à própria vida burguesa. Fréderic, herói
de Educação sentimental, erra entre diversos círculos sociais, sem jamais
encontrar o seu lugar, negando-se a aceitar a vida burguesa que sua he-
rança lhe valia. Como Wilhelm Meister, Fréderic procura no amor o
que a sociedade parece lhe recusar, sua formação ou sua educação senti-
mental é mais uma tentativa de buscar algo que o permita simplesmente
escapar de sua condição de pequeno-burguês.
A literatura desse período não se define, portanto, pelo mutis-
mo absoluto que ela consagra às questões políticas e sociais. Assim,
com o desenvolvimento da indústria cultural, como já vimos ante-
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riormente, a literatura se define não apenas em oposição ao mundo
burguês “em geral”, mas especificamente em oposição aos produtos e
às premissas que marcam essa indústria cultural nascente.
Para Jameson (2002, p. 175), o que carateriza a autonomia da arte
na modernidade não é esse movimento de purificação no qual a arte se
liberaria de tudo o que lhe é exterior, como a sociologia e a política, pro-
clamando a pureza estética em oposição à utilidade moral da arte, ne-
gando a vida cotidiana burguesa etc. Mesmo que alguns teóricos possam
identificar esse movimento de purificação da arte como característico
da modernidade, eles falham em estabelecer os termos por meio dos
quais a separação entre o estético e o social e político ocorre. Pois, ainda
para Jameson (2002, p. 176), a autonomia da arte “é alcançada através
da radical dissociação com a própria estética: pela radical disjunção e
separação entre a literatura e a arte da cultura” (2002, p. 176).
A cultura se define como um espaço de mediação entre a sociedade,
a vida ordinária e a arte. Uma vez que a cultura é compreendida como
esse espaço de mediação, transmutação e translação, a cultura passa a ter o
papel de fornecer à arte seu conteúdo e material. Ela oferece, na verdade, o
contexto no qual a arte pode se manifestar como um espaço de redenção
transfigurador de uma sociedade em falência completa. Assim, o verda-
deiro inimigo da arte não é o burguês, mas a cultura, da qual a arte verda-
deira precisa a todo momento se distanciar, a qual a arte absoluta precisa
radicalmente se opor mas que lhe fornece seu material, seu conteúdo e
que lhe permite reivindicar um poder de ação e de transformação capaz
de ultrapassar as barreiras da própria cultura.
Veremos, com base nas polêmicas entre Mallarmé e o parnasia-
nismo ou o naturalismo, que a literatura, principalmente a poesia,
buscava se definir e legitimar distinguindo-se e diferenciando-se de
toda arte voltada ao consumo e ao entretenimento e, sobretudo, ao
jornalismo e ao modelo de escrita que ele propaga.
O simbolismo
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preendido entre 1880 e 1914 e pode se definir como um contraponto a
esse outro movimento artístico do século XIX, o naturalismo, na medida
em que opõe uma “arte artista e espiritualista, cultivando o mistério, a uma
arte social e materialista, fundada na ciência” (MÉLONIO; MARCHAL;
NOIRAY, apud/TADIÉ, 2007, p. 429). O simbolismo busca se opor ao
materialismo burguês e ao positivismo científico. Oposição que aparece
como “preciosismo” da escola, no gosto pelo artifício, em oposição a tudo
que seria natural, uma arte predominantemente musical, abstrata, que recusa
toda plasticidade, como as descrições e narrações. O simbolismo literário
recusa o mundo exterior e natural propondo paisagens criadas a partir de
ritmos, assonâncias e aliterações que diluem a fronteira entre o eu interior e
o mundo exterior.
Seu apogeu é atingido com Poètes maudits, de Verlaine, publicado em
1883, que apresenta três estudos sobre Mallarmé, Rimbaud e Corbière
respectivamente. Além disso, podemos citar outros textos fundadores,
como: À rebours, de J-. K. Huysmans,Traité du verbe, de René Ghil, e,
finalmente, o Manifeste symboliste, de Jean Moréas. Mas a estreia desses
poetas na cena literária francesa é anterior ao seu reconhecimento público,
ela data dos anos 1860, os anos de publicação do Parnasse conteporain entre
1866 e 1869. Essa publicação apresenta a quarta geração de poetas ro-
mânticos: Cazalis, Villiers de l’Isle Adam, Mérat, Valade, Hérédia, Copée,
Mendès, Sully Prudhomme, Mallarmé, Verlaine, além de publicar seus
mestres e poetas reconhecidos e já célebres na época, Leconte de Lisle,
Baudelaire e Banville. Trata-se de uma geração que cresceu sob o Segundo
Império, que conheceu apenas o exílio de Victor Hugo, que declinava de
todas as maneiras possíveis o divórcio entre a realidade e o Ideal.
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O simbolismo se anuncia, portanto, como uma nova via literá-
ria, um outro caminho estético que se constitui nesse fim de século
fortemente marcado pelo signo da crise, uma crise eminentemen-
te literária, a crise da representação. As críticas feitas pelos poetas
simbolistas ao naturalismo ilustram perfeitamente o sentido dessa
crise e sua importância na constituição da estética simbolista. Em
entrevista a Jules Huret, Mallarmé comenta os erros de parnasianos
e de naturalistas: “Quanto ao fundo, os jovens estão mais próximos
do ideal do que os parnasianos que tratam ainda seus assuntos a
maneira de velhos filósofos e de velhos retóricos, apresentando os
objetos diretamente” (MALLARMÉ, 2003, p. 699).
Os parnasianos fazem poesia apresentando diretamente os obje-
tos, como velhos retóricos, partilham de uma visão instrumental da
linguagem, acreditam que é possível dispor o mundo e organizá-lo
como lhes convém, como velhos filósofos, que têm uma concepção
da linguagem como meio pelo qual se pode “apreender”, “apresentar”
e “compreender” os objetos. Como veremos adiante, a ideia de uma
linguagem “transparente”, instrumento para narrar e descrever é a
mesma que está por trás da escrita jornalística, ou seja, da “escrita
comercial” e do “romance industrial”.
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interior da própria linguagem que não visa os objetos, mas procura
direcionar-se às ideias” (MALLARMÉ, 2003, p. 701).
A “infantilidade” literária naturalista, segundo Mallarmé, reside no
fato de que essa poesia apresenta os objetos diretamente, trata-se clara-
mente de uma concepção representativa da linguagem, que permite um
acesso direto ao real e que reduz a linguagem a um instrumento facilmente
manipulável. A ideia mallarmeana de sugestão, que substitui a estética
representativa parnasiana, introduz um sentido de mistério, justamente
entre as palavras e as coisas, um silêncio no interior da linguagem que
não visa mais apresentar os objetos, mas alcançar sua ideia. Assim, para
Mallarmé, através da linguagem só é possível mensurar a distância que
nos separa dos objetos, ficções que se aproximam das ideias.
Como veremos no próximo capítulo, a imprensa, com sua indús-
tria cultural, submete a própria linguagem à forma de circulação de
suas mercadorias, criando parâmetros de escrita e expectativas no
público leitor. A ideia mallarmeana de sugestão busca uma alterna-
tiva contra esse processo de reificação da linguagem. Assim, vemos
que o advento da indústria cultural obriga a literatura a se definir e
legitimar a partir da diferenciação e da distância cada vez maior que
ela busca estabelecer com relação aos produtos dessa indústria. A
poética mallarmeana terá, portanto, como principal objetivo, através
de uma renovação da ideia de linguagem, de criar uma poesia que es-
cape ao primado representativo e mimético da linguagem como con-
cebida outrora. Essa crítica da representação aparece como crítica às
estéticas parnasiana e naturalista, mas também como uma crítica do
papel social da literatura e da linguagem, realizada através da reflexão
sobre o duplo estado da fala (“parole”), “imediato” e “essencial”.
33
II
A LINGUAGEM E O ESPAÇO OU O LIVRO
E O JORNAL
A poesia e o folhetim
36
contemporâneos quanto a arte fechada e resguardada pelos museus.
A arte presente nos museus é a arte do passado. Assim como a arte
aristocrática, feita para agradar e distrair, ela não corresponde aos
ideais da arte contemporânea de Mallarmé, que privilegia o estilo, o
trabalho formal. Por isso, o artista deve se voltar para o interior, não
dos salões ou de seu próprio “eu”, mas para seu próprio ateliê, com o
intuito de criar um estilo único.
A mesma divisão que Mallarmé encontra nas artes se reflete na
linguagem. O poeta distingue em seu tempo um desejo inegável de
“Separar, para vias de atribuições diferentes, um duplo estado da fala,
bruto ou imediato aqui, lá essencial” (MALLARMÉ, 1998, p. 511).
A fala, ou parole, caracteriza a utilização social da linguagem na sua
realização concreta e factual, fruto de seu próprio tempo que opera
no seu interior uma divisão entre um estado imediato ou bruto da
fala e outro essencial, poético diríamos.
37
examinamos o “estado imediato de fala”. Um senso comum que vê a
linguagem como um simples instrumento de reportagem, narração e
descrição de acontecimentos, uma linguagem absolutamente trans-
parente. Essa utilização da fala não está somente presente nos jornais
e folhetins, mas fundamenta a estética parnasiana e naturalista. O
que as estéticas naturalista e parnasiana fazem, assim como o jornal,
é transformar a linguagem em moeda, equivalente geral, sem mate-
rialidade, sem singularidade.
O texto “Quanto ao Livro”, presente na coletânea Divagations,
como muitos outros que constam neste livro, foi escrito para ser pu-
blicado em jornal. Paradoxalmente, o texto trata do livro, instrumen-
to “espiritual”, que Mallarmé procura diferenciar e opor ao jornal via,
no entanto, esse mesmo meio de comunicação. Indício da relação
complexa que a literatura entretém com a sociedade e a política no
fim do século XIX. O texto apresenta três subtítulos: “A ação restri-
ta”, “À venda” e “O Livro: instrumento espiritual”.
No primeiro, Mallarmé narra diversas etapas da criação literária:
o ato da escrita, a publicação e a leitura da obra. O autor discute o
que seria a ação literária em comparação com a ação política. Essa
diferenciação implica a análise de dois tipos de escrita: o livro e o jor-
nal. O primeiro, ideal, transcende o banal, já o segundo está aprisio-
nado ao que há de mais ordinário. Em “À venda”, uma grande baixa
na venda das livrarias é o pressuposto que desencadeia uma discussão
sobre a literatura de massa, que tem como modelo de escrita e veícu-
lo de divulgação o jornal. Vamos começar a nos concentrar na leitura
desses dois primeiros trechos do texto.
O texto “À venda” justifica a distinção e a separação entre polí-
tica e literatura pela descrição de um fenômeno particular ao século
XIX e ao surgimento da imprensa: o “folhetim”, literatura de massa
responsável não somente pela venda de jornais, mas pela criação de
uma grande indústria, a indústria editorial. O texto parte de uma
referência real, de um acontecimento histórico, um suposto crash nas
livrarias, por queda nas vendas. No entanto, o fato específico aparece
como uma referência pouco clara. Pois o poeta se aproveita de um
38
acontecimento ordinário para aprofundar o debate através da refle-
xão sobre a literatura e a indústria burguesa.
39
em si. Podemos nos perguntar, então, se o crash das livrarias não
poderia indicar um possível triunfo da literatura face ao comércio?
O texto continua explorando as relações entre literatura e “co-
mércio”, hoje diríamos, indústria cultural, procurando definir e traçar
uma nítida distância entre os dois fatos “literários”.
40
vel, banal e limitada ao cotidiano, é exatamente como o jornal.
O romance, assim como o jornal, “não apresenta nada, quanto
ao leitor, de estranho; mas recorre à uniforme vida”, ou seja,
nesses textos o leitor se reconhece, pois, segundo Mallarmé, a
modernidade não exige nada além disso: “Eis o que, precisa-
mente, exige um moderno: mirar-se, qualquer – servido por seu
obsequioso fantasma tramado pela palavra pronta às ocasiões”
(MALLARMÉ, 2010, p. 176).
Os leitores apreciam reconhecer-se nos romancese, para que eles
possam se reconhecer nos textos que leem, o romance recorre à vida
ordinária, se transforma no seu espaço por excelência, concorrendo
com o jornal.
Mallarmé argumenta que o folhetim merece ocupar o lugar que
lhe é devido, o jornal, seu lugar não é na livraria. No jornal, o folhe-
tim está ao lado da publicidade e dos fatos diversos do cotidiano,
nada mais apropriado.
Ele percebe: ele não sente, a bem dizer, na sua profissão a se-
gurança que assenta uma vida. Mas ele perde um pouco desta
nobre pureza e de sua ingenuidade juvenil, e se diz: Ah! É uma
arte! e veja-o que, sonhando com os belos folhetins, se rende ao
que se tornou a cerimônia habitual da literatura, quase contente,
do resto, e mais leve de ser menos obrigado a observar o mundo.
(MALLARMÉ, 1998, p. 510-511)
41
174). O poeta pode, assim, ironicamente sorrir a distância segura das
oscilações caprichosas do mercado. A poesia continuará excluída dos
jornais, das livrarias e talvez, inclusive, das editoras, porque está fora
das “combinações mercantis”, ela não deveria sequer estar à venda,
porque ela não se vende às exigências do mercado, “Para que trafi-
car aquilo que, não se deve vender, sobretudo quando isso não ven-
de?” (MALLARMÉ, 2010, p. 179).No entanto, o poeta continua,
talvez justamente por essa exclusão, tendo um papel fundamental
em seu tempo: “Uma época sabe, de ofício, a existência do Poeta”
(MALLARMÉ, 2010, p. 179). Muito poderia ser dito sobre esta
última afirmação mallarmeana, pois “office” não é simplesmente um
sinônimo de “missa” (MARCHAL, 1988) ou qualificação para qual-
quer outro ritual religioso, é a maneira como o poeta concebe o papel
social da poesia, uma profissão. Reconhecer um poeta como homem
que trabalha é algo de que a sociedade burguesa não é capaz.
Se aqui a poesia parece distante do universo literário, excluída das
livrarias, é porque ela jamais se submetera a negociações mercantis e
interesses financeiros, cedendo ao banal para aumentar suas vendas
e sua popularidade, abrindo mão de seu verdadeiro papel social, para
fazer parte de um jornal que só pode estalar ao leitor sua própria
mediocridade, mas nunca o tornará capaz de se servir de sua própria
imaginação.
No próximo texto que comentaremos há uma descrição do espa-
ço de ação e atuação do poeta numa sociedade regida por interesses
econômicos, hostil à poesia e a tudo o que diz respeito à arte.
O texto “Ação restrita” começa com uma referência a um cama-
rada que teria tido uma conversa com o poeta sobre a necessidade
da ação e da criação, questão que se tornaria o problema da década
anarquista por vir, nos anos 1890.
O poeta começa o artigo contando que, diversas vezes, um Ca-
marada (sim, com letra maiúscula) teria lhe confiado sua necessidade
e vontade de agir. O poeta se pergunta se esse jovem estaria se re-
ferindo à criação literária, à criação “com palavras”. Ele se pergunta
como o jovem entende essa necessidade de agir, de criar. E parece
passar a palavra ao camarada, que teria afirmado o seguinte:
42
Distender os punhos, em ruptura de sonho sedentário, para um tri-
pudiante face a face com a ideia, assim como uma vontade toma ou
se mexer: mas a geração parece pouco agitada, além do desinteresse
político, pela inquietação de extravagar do corpo. Excetuada a monoto-
nia, certamente, de enrolar, entre os jarretes, sobre a calçada, segundo
o instrumento em alta, a ficção de um deslumbrante trilho contínuo.
(MALLARMÉ, 2010, p. 169)
43
você buscou” (MALLARMÉ, 2010, p. 170). No papel, o poeta deve
deixar os traços de seus pensamentos, de suas ideias, para que eles
não se tornem evanescentes, não se percam no ar. E esse ato, a escrita,
o único que um poeta é capaz de realizar, não possui nenhum traço
de luminosidade, talvez por isso ele não possa servir de guia para
o “povo”, pois na literatura não se trata de escrever luminosamente
sob um campo obscuro como os astros, mais ao contrário, “preto no
branco”. O ato de escrever se configura, justamente, em oposição ao
jornal que tem a arrogante pretensão de esclarecer e relatar a verdade
dos fatos. Ao escrever “preto no branco”, a poesia, para Mallarmé,
mantém o mistério original da página virgem, ou pior, corrompe sua
clareza, ela não esclarece ou explica, mas obscurece, em nome, talvez,
de uma verdade que não se vê, perdida nas sombras.
O poeta continua afirmando: “Não sei se o Hóspede perspicaz-
mente circunscreve seu domínio de esforço: será de meu agrado mar-
cá-lo, também certas condições” (MALLARMÉ, 2010, p. 170-171).
A literatura deve, como Mallarmé o faz nesse texto, delimitar seu
terreno de ação, circunscrever o espaço no qual ela aplica seus esfor-
ços e ainda determinar as suas condições. Parece um gesto simples
ou mesmo uma retirada estratégica da cena pública que isenta o po-
eta de suas responsabilidades, mas não se trata de maneira nenhuma
de algo dessa natureza. Delimitar o espaço do poeta significa definir
o que é literário, qual a sua singularidade interna e própria.
Em primeiro lugar, o poeta deve se omitir, apagar de seus escritos
sua individualidade e todo traço de sua personalidade. Escrever é
morrer enquanto indivíduo e tornar-se um spirituel histrion a quem
“o direito a nada realizar de excepcional ou que falte às manobras
vulgares, se paga, em qualquer um, com a omissão de si e dir-se-ia
pela sua morte como um tal” (MALLARMÉ, 2010, p. 171). Quando
comparada à ação política, com essa agitação corporal que o cama-
rada pretende provocar em seus leitores, a ação poética é quase ine-
xistente, um ato mínimo, um traço no papel, e se ela possui alguma
grandeza, essa reside justamente no “pouco” que é capaz de realizar.
Essa modalidade de ação é o que esperamos definir ao longo dos
próximos capítulos.
44
O autor deve, portanto, no esquecimento de si, na negação de seu
ser individual, se transfigurar-se em verdade:
45
coisa seja: depois, afasta a lâmpada” (MALLARMÉ, 2010, p. 173).
O procedimento poético que Mallarmé utiliza parece descrever a
ação poética que aqui é mais do que uma metáfora ou ilustração
do seu modo de operação. O poeta busca descrever o ato de escrita
a partir dos objetos do seu cotidiano, através do exame e descrição
das qualidades desses objetos. Assim, a literatura é obscura, como
tinteiro, ela mergulha nas trevas, e é assim que ela age, que ela se
configura. A lâmpada que poderia conferir alguma clareza ao texto é
afastada: “Você notou, não se escreve, luminosamente, sobre campo
obscuro, o alfabeto dos astros, só ele, assim se indica, esboçado ou
interrompido; o homem prossegue preto sobre branco” (MALLAR-
MÉ, 2010, p. 170).
A ação literária, modo de ser da literatura, parece se aparentar
ao de outra arte, o teatro, a arte da ação por excelência. Segundo
Mallarmé, “Assim a ação, no modo estabelecido, literário, não trans-
gride o Teatro; se limita à representação – imediato desvanecer do
escrito” (MALLARMÉ, 2010, p. 172). Se num primeiro momen-
to, Mallarmé ressaltava a importância do escrito, que impedia que
o pensamento se perdesse no ar, permitindo que ele deixasse seus
traços, sua marca no mundo, agora vem uma afirmação que pare-
ce contradizer a anterior. O poeta defende que a ação literária seja
como uma representação teatral, o próprio desvanecimento do texto
escrito.
O poeta, ao realizar esse sacrifício da sua personalidade, “celebra
a si mesmo”, “anônimo”, “no herói”, ele se “transfigura em verdade”,
assim se um “lugar se apresenta”, a cena, ou a própria literatura se
mostra como espaço onde o verdadeiro “espetáculo de Si” acontece.
Se por um acaso a poesia é capaz de sair da cena, do seu palco, do es-
paço que lhe é próprio e restrito, o papel, para ocupar a praça pública,
isso não diz respeito ao poeta: “Termine, na rua, outra parte, isso, a
máscara cai, não tenho a fazer com o poeta: perjure seu verso, ele não
é dotado mais que de fraco poder por fora, você preferiu alimentar
o saldo de intrigas cometidas ao indivíduo” (MALLARMÉ, 2010,
p. 173). Em todo caso, é certo que, se o poeta perjura seu verso e se
rende ao banal, ele perderá toda e qualquer possibilidade de inter-
46
venção efetiva, afinal, não fará nada além de reproduzir o que já é.
Todo veículo ou colocação “estranho ao ideal” só pode lhe corromper
e eliminar seu poder de ação. Da mesma maneira que a literatura
não pode se deixar corromper por necessidades e vontades pessoais,
fazendo delas seu fim, o poeta não pode se deixar corromper pelos
seus meios, cedendo às necessidades de divulgação e publicidade do
comércio literário.
Chega o momento da publicação. A poesia “sacraliza”, ela tenta
“durante outra gestação” resolver a crise. Essa outra gestação poderia
fazer referência aos movimentos políticos; lembremos que no come-
ço do texto o poeta faz referência aos trilhos, a “rua”, que fornece aos
manifestantes durante as crises políticas os pavês para formar bar-
ricadas. Assim, para resolver a crise o poeta publica e, apesar da sua
relação com as crises públicas, O Livro deve ser “impessoal”, espaço
onde o “espírito vive satisfeito”, e se o poeta se afasta como autor, o
livro também não requer leitor algum. Entre outros acessórios hu-
manos, ele existe “sozinho: faz, sendo”.
Que essa restrição do poeta ao espaço privado do livro, ao univer-
so restrito e particular da criação e da escritura poética não seja vista
como uma simples manifestação de purismo literário, de alienação
ou como um “aristocratismo”, pois a literatura mallarmeana não é ex-
clusivamente construída a partir da negação da sociedade e de toda
participação política.
47
O poeta reconhece que suas considerações sobre a arte são “extre-
mas”, elas pertencem a um momento histórico, nelas palpita “a hora”
e, por isso, talvez, elas devam ser todas radicalmente invertidas, jo-
gadas na página de um Livro, onde elas reluziriam, paradoxalmente,
sem nenhuma clareza. A última ressalva do poeta diz respeito ao que
de fato essas considerações deveriam iluminar, talvez não fosse exa-
tamente a página de um Livro, mas outro lugar. Essa mera alusão, de
que a poesia deveria talvez iluminar a praça pública, deve ser enten-
dida como um verdadeiro programa poético e político, onde trata-se
de buscar na linguagem, no interior do campo literário, um meio e
um espaço de reflexão sobre tudo o que lhe é exterior e heterogêneo.
Mallarmé não apenas recusa o parnasianismo que quer pintar as
coisas tais quais elas são, como o naturalismo, grotesca representação
do real, mas também rechaça a poesia lírica, subjetiva, centrada no eu
e em suas emoções. O tédio aqui não procura o turbilhão da carne,
cansado da verdade abstrata dos livros. Da mesma maneira que Bau-
delaire outrora recusara a expressar-se como o católico Lamartine,
cantando amores impossíveis e musas mortas, Mallarmé compara
a posia lírica ao jornal, espelho da banalidade ordinária, nada mais
que produtor de bovarismo. O que ele procura, no entanto, não é
outro lado da moeda, a ideia pura, o sonhado, mas uma experiência,
além da realidade facilmente reconhecida e ordenada pela unidade
do Eu, pensamento senhor do corpo. O absurdo, a loucura, o acaso,
o imprevisível e incontrável. Aniquilar o eu e a expressão pessoal
narcísica é fundamental para fazer uma poesia na qual o burguês não
se reconhece, não se admire, não se lamente de sua própria condição.
Trata-se de alcançar um espaço, em que o eu desaparece para ceder
a iniciativa às palavras, dar voz às sombras, ao desconhecido, ouvir o
som do que é novo.
48
III
A LINGUAGEM E O TEMPO: MODERNIDADE
50
A poesia de Baudelaire é produto dessa contradição entre um
sentido e uma consciência histórica diante da qual o homem moder-
no só pode se sentir impotente. Além disso, essa poesia se encontra
no ponto em que uma consciência histórica se encontra com o ocaso
das formas literárias românticas que não mais correspondem a um
tempo novo, a uma nova situação histórica.
Em seu Peintre de la vie moderne, Baudelaire propõe uma teoria
racional e histórica da beleza, em oposição a uma ideia unitária e
absoluta, para mostrar, justamente, que a beleza
51
definição, portanto, a primeira se refere à modernidade, a segunda,
à arte. Esta última retoma a definição da beleza, justapondo o ele-
mento eterno e o elemento negativo. A primeira definição torna a
modernidade um todo indissociável, uma contradição firme. Ela
justapõe a historicidade da vida e da arte. A segunda definição, que
estabelece a modernidade como apenas o transitório, torna possível
a separação entre ambas. A modernidade é, assim, nada além da vida
presente, não mais sua historicidade, mas o histórico. Ela é, portanto,
em si mesma, transitória, mas guarda, no entanto, uma promessa de
antiguidade.
Essa distinção pode se prestar a alguns equívocos. Para evitá-
-los é necessário manter a distinção entre historicidade e histórico.
Se compreendermos a modernidade como o simplesmente transitó-
rio, então poderíamos dizer que a separação que ela pressupõe entre
a vida e a arte é responsável pelas diretrizes que fundamentam a
obra de arte autônoma. No entanto, como Meschonnic ressalta a
modernidade por encarnar simplesmente o transitório, é histórica e
não simplesmente historicista. Meschonnic comenta, por exemplo,
a obra de Jauss, que historiciza a modernidade mostrando-a como
uma oposição com relação ao tempo presente, uma descrição que é
também realizada por Bourdieu sobre quem comentamos em outro
capítulo.
Para Meschonnic essas descrições, apesar dos equívocos, confir-
mam o fato de que a modernidade é, apesar das divergências teóri-
cas de sua compreensão, signo de uma consciência histórica. Essa
historicização é um dos aspectos da modernidade, que é justamente
composta por essa contradição entre um tempo presente, no entanto,
consciente de si, consciente de seu caráter passageiro e fugaz, ou seja,
histórico.
A historicidade é busca do sentido a partir da consciência do
tempo, da história, sobretudo como uma consciência do presente.
A arte que busca a beleza da modernidade no seu interior procura,
portanto, a partir de sua consciência histórica e da consciência de
sua historicidade, conferir sentido ao caráter transitório e fugidio do
próprio presente.
52
É também importante distinguir a modernidade segundo
Baudelaire e o que o poeta entende por moderno. Como
Meschonnic destaca, modernidade e moderno são praticamente
opostos. A modernidade é aquela da vida presente, o moderno é
simplesmente o atual, a arte contemporânea que para Baudelaire
não é capaz de evocar a beleza transitória.
Nesse quadro teórico, a grande questão da modernidade é
o sujeito. A modernidade é um combate, um estado nascen-
te, indefinidamente nascente do sujeito, de sua história, de seu
sentido. Na modernidade o sujeito busca inscrever-se, ele pro-
cura encontrar sentido para si e para o mundo que o circunda.
A modernidade é assim, a incessante escrita de uma história e
de estórias.
53
A modernidade é uma ideia contraditória do tempo. Se por um
lado, a modernidade marca o nascimento da História, se ela impri-
me uma consciência histórica no homem, por outro lado, é a eterna
busca pelo momento presente. O tempo histórico transforma a con-
cepção do tempo que agora é tido como um fluxo contínuo, um mo-
vimento incessante. O homem moderno parece preso nesse tempo
que lhe escapa como areia entre os dedos. Por isso, Meschonnic pode
afirmar que o presente é o tempo subjetivo por excelência, porque ele
não se deixa fixar, porque ele se desfaz, e assim requer uma interpre-
tação, requer que lhe atribuam, incessantemente, um novo sentido.
Assim, a consciência histórica da modernidade implica uma com-
preensão do tempo como fugidio, e tem como consequência a neces-
sidade da incessante escrita do presente com o objetivo de garantir
sentido e legitimidade ao tempo. A História é compreendida como
historicismo, interpretação e re-interpretação infinita do presente.
A modernidade escapa justamente à oposição clássico e moder-
no, ao movimento de oposição e ruptura entre um movimento artís-
tico e o movimento que o precede e a partir do qual a história da arte
se define. Isso porque a modernidade é o momento de nascimento da
História, que estabelece uma indistinção entre passado e futuro; nem
o passado, nem a antiguidade tem mais ou menos valor que o presen-
te, eles são simplesmente diferentes. A escolha entre a continuidade
e a ruptura é algo como um começo historiográfico absoluto, que
não pode ser justificado a partir do material histórico e de suas evi-
dências, já que é a própria história que organiza todo esse material
histórico. O presente não pode se nomear enquanto tal e caracterizar
sua própria originalidade, pois ele ainda não é um período histórico.
O próprio romantismo, como Jameson (2002, p. 94) ressalta, e
sua modernidade só existem, após o advento da própria história, ou
melhor dizendo da historicidade, a consciência da história e do ser
histórico aparecem com a dissolução da querelle entre os antigos e os
modernos. Ou seja, é a própria história que impede essa nova atitude
com relação ao presente. O crítico americano critica a periodicização
histórica que não passa de um historicismo. Não se pode periodicizar
a modernidade porque ela não é histórica, ela nasce certamente da
54
consciência da história, ou seja, da historicidade, mas ela pertence ao
presente, ela se define a partir do tempo presente.
A modernidade pode, então, ser compreendida a partir da re-
tórica clássica, como um topos, o que significa que a modernida-
de enquanto narrativa é sempre, de uma maneira ou de outra,
uma reescritura, um poderoso deslocamento de prévios paradig-
mas narrativos. Assim, todos os temas que geralmente aparecem
como determinanates da modernidade, consciênciadesi, reflexi-
vidade, representação, materialidade da surface pictórica etc. são
apenas meros pretextos para uma operação de reescritura capaz
de garantir o efeito de perplexidade e convicção necessários para
a instauração de um novo paradigma. Não que esses temas sejam
fictícios ou falsos, eles apenas nos mostram a prioridade da re-
escritura sob as perspectivas da análise histórica. No entanto, na
verdade, Jameson nos mostra que o historicismo também se con-
figura como uma obsessão pela reescrita de narrativas, ele enu-
mera os ditos marcos da modernidade, ora Lutero, ora Descartes,
ora a Revolução Francesa, entre muitos outros. Eis a razão pela
qual a modernidade não pode ser considerada como um conceito
filosófico, ela é simplesmente uma categoria narrativa.
O moderno é para Jameson o que Jesperson nomeou de shifter.
Um shifter é um termo como “agora”, “aqui”, “este”, “aquele”, um ve-
ículo vazio da “deixis” ou referência ao contexto da enunciação, cujo
significado varia de acordo com o falante, de acordo com o tempo e
de acordo com o contexto da própria enunciação. O termo moderno
deveria ser incluído entre os shifters, já que, sobretudo no que diz
respeito à moda, o que era moderno ontem já não é mais moderno
hoje, ou seja, a atualidade do moderno é momentânea, sempre de-
pendente do seu contexto de enunciação.
Essa ideia de moderno reduz o termo à ideia de “novo” e o subtrai
de sua historicidade, mas, no entanto, esta é justamente a caracterís-
tica maior da modernidade, segundo Jameson, (2002, p. 94) e que
impede todo tipo de periodicização histórica e de entendimento da
modernidade como um momento histórico. A modernidade, como
vimos, é o presente, não ainda o tempo histórico.
55
Jameson não procura comprender as causas da modernidade
e suas consequências nos mais diversos campos da vida social;
seu objetivo não é definir e apontar um conceito de moderni-
dade, mas simplesmente compreender como ela se transforma
em ideologia. Assim, a definição que Meschonnic apresenta da
modernidade seria apenas um dos desdobramentos ideológicos
de sua concepção, que transforma a modernidade num histori-
cismo. Dessa maneira, a modernidade define o tempo presente,
o tempo do instante, o tempo imediato, mas o presente não é
histórico e por isso parece sempre se recusar a toda determina-
ção. O moderno não seria nada além de um shifter, um termo
vazio que adquire significado apenas no interior da enunciação;
a experiência do tempo e a própria noção de experiência se tor-
nam problemáticas, uma vez que o presente é efêmero e fugaz.
Essa concepção da modernidade aponta certamente para o seu
caráter ideológico, mas mascara o verdadeiro problema que a
define. Para colocá-lo em evidência é importante não descar-
tamos tão rápido a ideia de que a modernidade pode ser sim, a
descrição de um tempo histórico.
A Idade Moderna se inicia no período em torno de 1500
inaugurado pelas grandes navegações, pelo Renascimento e pela
Reforma. No entanto, o emprego dos termos “tempos moder-
nos” ou “novos tempos” só se torna possível quando o sentido
cronológico dos termos se esvazia e não mais indica a classi-
ficação ainda hoje atual da História, dividida em períodos –
Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna –, mas sim uma
época eminentemente nova. Essa noção de modernidade indica
que o presente é um tempo orientado para o futuro, e não uma
consequência do passado, ele se define a partir de sua abertura
para o novo, para o que está por vir. Dessa maneira, os “tempos
modernos” são os novos tempos, sobretudo depois da Revolução
Francesa, quando o termo modernidade aparece como sinônimo
de outra vida social e o fim definitivo do Antigo Regime. Ao
menos é com o que contavam os liberais, como Victor Hugo e
Germaine de Staël.
56
A compreensão do passado e dos novos tempos se correlacionam,
pois o passado adquire valor de uma história universal, a reflexão so-
bre a atualidade se dá com relação à totalidade da história, disso de-
correm a experiência do progresso, da aceleração dos acontecimentos
e a compreensão da simultaneidade de desenvolvimentos históricos
cronologicamente distintos. Assim a história corre o risco de se tor-
nar um processo homogêneo, criador de problemas e o tempo será
tido como um recurso insuficiente para a resolução desses problemas
(KOSSELECK apud HABERMAS, 2000, p. 10). Contudo, essa
não é a única maneira de compreender a modernidade.
Hegel data o nascimento do “tempo presente”, ou o último está-
gio da história, entre o final do século XVIII e início do século XIX
com base em três acontecimentos marcantes: o Iluminismo, a Revo-
lução Francesa e a Reforma protestante. Este presente, que se com-
preende como “novos tempos”, como a atualidade do tempo mais
recente, só pode, segundo Habermas, se constituir a partir de uma
ruptura contínua com o passado. “É neste sentido que os conceitos
de movimento, que no século XVIII, juntamente com as expressões
“modernidade” ou “novos” tempos, se inserem ou adquirem os seus
novos significados, validos até hoje: revolução, progresso, emancipa-
ção, desenvolvimento, crise, espírito do tempo etc.” (KOSSELECK
apud HABERMAS, 2000, p. 10).
Eis a característica maior da modernidade, ela não busca no seu
passado ou em outras épocas seus critérios de orientação, “ela tem
de extrair de si mesma a sua normatividade” (HABERMAS, 2000,
p. 12). A modernidade faz sempre referência a si mesma, por isso
está sempre buscando afirmar-se, construindo novas narrativas, para
falar com Jameson, que a legitimem, produzindo incessantemente
sua autocompreensão. No entanto, a modernidade não é apenas um
problema teórico. Esse novo tempo, marcado pela Revolução, é com-
preendido como resultado de uma luta de forças, que pode inclusive
culminar em Revolução, transformação completa da vida social, po-
lítica e economicamente.
O grande problema da modernidade é a questão paradoxal “de
como obter critérios próprios valendo-se da contingência de uma
57
modernidade que se tornou eminentemente transitória” (HABER-
MAS, 2000, p. 16). Não seria melhor dizer que a questão moderna é.
nos termos de Germaine de Staël, criar uma nova ordem social que
substitua o Antigo Regime, com a Igreja, a monarquia e os aristo-
cratas no poder?
Se a modernidade busca estabelecer-se em relação ao próprio
presente, negando o passado, é porque ela viu surgir a revolução po-
lítica que serviu como matriz para as vanguardas estéticas. No ro-
mantismo francês, a função da arte é construir, definir, criar o modo
de sentir de um povo.
Para Habermas, é no campo da estética que o problema da fun-
damentação da modernidade aparece, mais precisamente no mo-
mento da Querelle des anciens et des modernes. Aqui, a ideia de um
belo absoluto é utilizada pelos modernos como argumento contra
a imitação dos clássicos defendida pelos antigos. Vimos que no ro-
mantismo o argumento contra os defensores do neoclassicismo era
social, e não escondia sua veia política e liberal. Tratava-se, nesses
primeiros anos, de transformar o teatro em espelho de uma nova
sociedade. No entanto, é com Baudelaire, como destaca Habermas,
que a experiência estética se confunde com a experiência histórica.
“Na experiência fundamental da modernidade estética intensifica-se
o problema da autofundamentação, pois aqui o horizonte da expe-
riência do tempo se reduz à subjetividade descentrada, que se afasta
das convenções cotidianas” (HABERMAS, 2000, p. 14).Extravagância
de artista que destrói a moralidade católica, barro que forma o “eu”
pessoal e ordinário das lamúrias contrarrevolucionárias. O presente
não pode buscar numa figura do passado a sua explicação, pois a
modernidade toma como ponto de referência “uma atualidade que
se consome a si mesma, custando-lhe a extensão de um período de
transição, de um tempo atual, constituído no centro dos tempos mo-
dernos e que dura algumas décadas” (HABERMAS, 2000, p. 14).
A questão da modernidade em geral significa para Paul de Man
(1989, p. 87), “a possibilidade problemática de toda literatura existir
no presente, ser considerada, e lida, de um ponto de vista que clama
compartilhar com ela o sentido temporal do presente”. O termo mo-
58
dernidade é pragmático e descritivo, mas também conceitual e norma-
tivo e, em geral, as duas primeiras características deixam de lado as
duas últimas. Ou seja, o caráter pragmático e programático da mo-
dernidade esconde seu caráter eminentemente problemático, que é
o seu caráter conceitual e normativo, segundo o qual a modernidade
se define, como vimos com Habermas, a partir da sua necessidade de
autocertificação. Assim, a modernidade não é somente a necessidade
que a literatura proclama para si mesma de existir e ser inteiramente
no presente, mas, a partir do momento em que o próprio presente
se torna um problema, devemos nos perguntar de que maneira essa
concepção problemática afeta a literatura. A questão é, portanto, sa-
ber de que maneira a literatura pode dar conta de uma experiência
do presente que se tornou, eminentemente, problemática?
A implacável vida
59
certa maneira, uma forma de “resolução” dessas contradições, como
sugerem Jean-Pierre Bertrand e Pascal Durand (2006, p. 81):
60
do, Baudelaire demais, nesses primeiros anos do poeta Mallarmé.
Em poemas como “Brise marine” encontramos o spleen: “La chair
est triste, hélas! Et j’ai lu tous les livres” (“A carne é triste, ai! E li
todos os livros”). Em “Les fênetres” lemos a revolta de Baudelaire,
uma violência que não permanece na poesia mallarmeana das déca-
das que virão: “Et le vomissement impur de la Bêtise / Me force à
me boucher le nez devant l’azur” (“E o vômito impuro da bestiali-
dade/ Me força a tapar o nariz diante do azur”). Há também alguns
personagens parisienses caros a Baudelaire, como os mendigos, nos
poemas desse período, Mallarmé não hesita em identificá-los ao po-
eta. Como, por exemplo, em “Méndieurs d’azur” (Mendigos o azur),
homens diante dos quais os outros “cuspiram seu desprezo”; ou “Au-
mône” (“Esmola”), onde lemos: “Prends ce sac, Mendiant! Tu ne le
cajolas / Sénile nourisson d’une tetine avare / Afin de pièce à pièce
en égoutter ton glas” (“Pega esse saco, mendigo! Não o lisonjeie/ Se-
nil criança de uma teta avarenta/ vai sugar a peça e saciar sua sede”).
Nos anos que virão, essa influência mudará radicalmente, Mallar-
mé fará da poesia de Baudelaire muito mais do que um modelo a
imitar, e sim a responsável por legar ao seus predecessores uma tare-
fa, um legado, como a modernidade deixou para a História uma ta-
refa incompleta, terminar a revolução. Para entendermos esse legado,
é preciso que encontremos respostas às seguintes questões: “O que
a poesia de Baudelaire diz para seu tempo?”; “O que ela significou
para a história da poesia?” e “Que desafios ela coloca para a poesia
que virá?”.
A modernidade, entendida ao mesmo tempo como um momento
histórico e como uma maneira específica de compreender o tempo,
tem múltiplos desdobramentos através de diversos temas que mar-
cam a poética baudeleriana, por exemplo, o lesbianismo, a multidão,
o spleen, o ideal. Mas se há um ponto em que todos os temas da poe-
sia baudeleriana, descritos por Benjamin, se reúnem, seria a tentativa,
ou a impossibilidade de expressar a natureza do vivido, o que é uma
experiência. Uma experiência além do banal e do ordinário, a que não
podemos reconhecer como um déjà-vu.
61
Como Benjamin nos mostra na sua comparação entre as obras
de Bergson, Proust e Baudelaire, a experiência é pensada na filosofia
a partir da memória, este é o lócus da experiência, a memória é en-
tendida aqui como a tradição, a História propriamente dita, assim
a experiência é a matéria mesma da tradição, tanto na vida privada
como na vida coletiva.
O autor destaca que o movimento filosófico que tenta resgatar
algo da ordem da experiência, do vivido, em contraposição à vida
desfigurada da civilização, data justamente do final do século XIX.
No entanto, a poética do choque de Baudelaire está longe de propor
uma reescritura da vida na literatura como Proust, ou uma filosofia
da experiência e do vivido como Bergson. A poesia de Baudelaire,
como presente nos temas dos quais trataremos em seguida, coloca
“em questão a possibilidade mesma de uma poesia lírica” (BENJA-
MIN, 1989, p. 145). Isso porque em Baudelaire a memória dá lugar
à lembrança, “esquema da metamorfose da mercadoria em objeto
do colecionador” (BENJAMIN, 1989, p. 180), ou indício maior da
impossibilidade de reconstrução literária da vida ou de tudo o que é
da ordem da experiência subjetiva.
Para Benjamin, Baudelaire não teria escrito poemas se tivesse
tido por tema de sua obra aquele que os poetas geralmente têm,
por isso em seu trabalho Benjamin tem como maior objetivo “for-
necer a projeção histórica das experiências que fundamentam As
flores do mal” (BENJAMIN, 1989, p. 165). Independentemente das
razões que impediram que tal obra se realizasse por completo e
sem especular como ela teria sido, podemos afirmar que sua forma
fragmentária e seu caráter inacabado contribuem, talvez melhor
do que qualquer argumento ou descrição histórica esmiuçada, para
ilustrar o que está em questão no tempo inaugurado por Baudelai-
re. Não se pode negar que uma transformação profunda acometeu
essa sociedade e que ela teria sido suficientemente radical a ponto
de ter transformado a história, o tempo, em questão fundamental
da própria poesia.
62
Deve-se presumir que os objetos que formam o miolo da poesia de
Baudelaire não eram acessíveis a um esforço enérgico e sistemático:
aqueles objetos decisivamente novos – a cidade grande, a multidão –
tampouco são visados por ele como tais. Não são eles a melodia que
tem em mente. É, antes, o satanismo, o spleen, e o erotismo desvian-
te. Os verdadeiros objetos de As flores do mal se encontram em luga-
res mais invisíveis. São – a fim de permanecermos na imagem – as
cordas jamais tocadas do instrumento inaudível em que Baudelaire
devaneia. (BENJAMIN, 1989, p. 161)
O demoníaco
63
chamou contrarrevolução. O poeta romântico dessa primeira gera-
ção é aquele que procura um retorno ao antigo regime e a reinstaura-
ção do catolicismo. Uma geração que Paul Bénichou definiu a partir
do termo “sacre de l’écrivain”:
64
restaurar os costumes e tradições banidos da França pela revolução.
O romantismo tem sua origem no movimento contrarrevolucionário
posterior a 1789: “é do seio da contrarrevolução que emergiu entre
1800 e 1820 a fonte poética do século XIX. A ideia de um ministério
espiritual do poeta, que é a alma da poesia moderna, germinou neste
meio; os poetas saíram primeiramente, de lá” (BENICHOU, 2004,
p.186).
É dessa poesia que Baudelaire extrai o material de sua lírica, do
romantismo católico e conservador que transformou a religião na
fonte que garantiu legitimidade aos governos restauradores.
65
portanto, como uma espécie de zumbi, uma morta-viva, que aparece
sempre à noite, para “ornamentar” o poema.
Como vemos nos últimos versos da estrofe citada, o poeta se per-
gunta se “não é irônico que seu amor aumente com a distância que o
separa de sua amada”. Não é irônico que o eu se sinta cada vez mais
apaixonado à medida que se sente cada vez mais distante de seu
ideal, cada vez mais incapaz de ter em seus braços as “imensidades
azuis”? Eis que a mulher adquire seu estatuto ideal, ironicamente
distante, e idealizada, ela é inacessível, comparada com o “azur”, ou
“Ideal”. Assim quando ela finalmente ocupa o lugar que é o seu no
imaginário romântico, (não sem ironia, pois ao se indagar sobre esse
ideal Baudelaire já procura indicar a sua nulidade), eis que ocorre o
seu rebaixamento, e se produz o ataque certeiro dos versos/vermes
baudelairianos:
66
No entanto, poderíamos ir muito mais longe nessa interpretação.
Devemos nos perguntar: Contra quem Baudelaire dirige sua ironia?
Quem é essa mulher fria e ideal? A ironia em questão não é a da
mulher frígida, mas sim aquela que faz com que o amor do poe-
ta aumente com a distância que o separa de seu objeto de desejo.
Como se Baudelaire se perguntasse: “Não é irônico, e cômico, tantos
poetas cantando amores impossíveis, cantando amores que existem
apenas em sua imaginação, amores ideais, idealizados, justamente
pela distância que separa os amantes?”. Essa frieza é, na verdade, não
a de uma mulher irônica ou frígida, mas a de uma mulher morta, de
um ideal feminino romântico que Baudelaire transforma num ca-
dáver em putrefação, que ele ataca como um verme com seus versos.
Essa mulher que para o crítico Vaillant é a mulher-frígida é
na verdade a mulher idealizada pelo primeiro romantismo que é
identificada com a própria Virgem Maria. Tomemos, por exemplo, o
poema de Victor Hugo (1972, p. 166),“À toi”, presente na antologia
Odes et ballades,de 1822, portanto, do primeiro livro do autor, mar-
cado pelo imaginário católico, e pelo conservadorismo político, do
jovem e monarquista Victor Hugo.
Esse poema foi escrito em comemoração à festa da Virgem, “le
jour sacré parmi les jours!”. O eu lírico relembra sua infância, que em
Victor Hugo rima com inocência, ignorância e esperança, em que
o eu via apenas a virgem no céu, “belle et pure”, aquela que deveria
com ele compartilhar uma felicidade sem fim (“partager un bonheur
qui ne doit pas finir”). Mas esse tempo passou. Hoje “o mal se ele-
va” (“le malheur s’est levé”). O poeta “órfão”, “sem os prantos de sua
bem amada” (“sans les pleurs de sa bien-aimé”), segue sozinho, uma
“lâmpada apagada entre os vivos” (“il est chez le vivants comme une
lampe éteinte”).
Vemos que a Virgem “bela e pura” é também a bem amada do
poeta, ela é também a sua mãe que adquire cada vez mais traços
humanos ao longo do poema. O eu clama para que a Virgem em-
beleze sua vida com seu sorriso, pois “a maior felicidade ainda está
no amor” (“Le plus grand bonheur est encore dans l’amour”) e a
convida a experimentar com o poeta “um casto casamento” (“chaste
67
hymen”). Finalmente, ele pede que ela venha para seus braços sem
temor, pois “teu esposo não quer que sua glória/ prejudique sua fe-
licidade” (“ton époux ne veut pas que sa gloire / Retentisse dans son
bonheur”). O poema termina com o eu se dirigindo à mulher amada/
a Virgem e declarando que se arrependerá “gemendo”, “aquele que
morreu sem reclamar,/E que te amava com tanto amor!” (“gémissant
à son tour”, “celui qui mourut sans se plaindre, / Et qui t’aimait de
tant d’amour !”).
Aqui vemos que a mulher fetiche dos românticos é ainda mais
adorada quanto mais se assemelha à Virgem Maria, quanto mais
distante, portanto, está do poeta, que vê o seu amor ainda aumentado
pela possibilidade de uma união casta e pura com essa mulher idea-
lizada. Esse ideal de amor e de mulher, construído a partir do imagi-
nário católico, será explorado por Baudelaire em todos seus contor-
nos e desdobramentos. Essa mulher casta será identificada com uma
“taciturna”, um “vaso de tristeza”, enfim uma morta – um cadáver
– que o poeta ataca e devora como um verme, com o único intuito
de ironizar, desmascarar e rir de uma poética católica que negava a
vida e seus prazeres materiais em nome da salvação extraterrena, da
felicidade casta, a “voluptuosidade santa” do paraíso celestial.
Vemos que a trajetória irônica do poema “Je t’adore à l’égal de
la voûte nocturne”, em que a mulher é idealizada e em seguida re-
baixada ao estatuto de cadáver, se torna cada mais evidente quando
comparamos a poesia de Baudelaire à de Victor Hugo, por exemplo.
Isso deixa claro que o alvo da ironia baudelairiana era justamente
a poesia do primeiro romantismo. Como se essa mulher fria fosse
não somente o indício da impossibilidade de se alçar esse ideal de
amor puro; essa mulher que, na verdade, é um cadáver, simboliza
aqui a morte do ideal romântico. Ao transformar um ideal de amor
num corpo inerte e em decomposição, Baudelaire ataca esses ide-
ais, procura mostrar que o que está verdadeiramente em estado de
putrefação nesse momento da história são os ideais românticos de
pureza, castidade, os ideais católicos que asseguram a manutenção
de um imperador que usurpou o poder que lhe foi concedido “de-
mocraticamente”.
68
Assim, ao rebaixar esse ideal romântico, é todo o imaginário do
romantismo que Baudelaire procura ironizar. A mulher pálida e cas-
ta só poderia ser um cadáver, pois todo amor que não se materia-
liza simplesmente não existe. A negação da realização amorosa, a
insistência romântica em manter o amor sempre casto ou impossível,
contribui certamente para a afirmação do amor, como um ideal que
não encontra lugar sobre a terra, mas para Baudelaire essa negação
da vida, esse ascetismo católico não passa de uma abstração vã, fora
de moda, de uma ideologia em ruínas, que insiste em se perpetuar.
Baudelaire quer deixar em evidência o estado de ruínas no qual se
encontra o imaginário romântico, que seria absolutamente incapaz
de dar conta da experiência dos sujeitos na modernidade.
69
-lo aos poetas católicos do começo do século. Porque o crítico para
desqualificar a poesia baudelairiana atribui a ela total ausência de
originalidade devido ao seu caráter “religioso”.
O texto já nos fornece um caminho interpretativo, antes de
mais nada o recurso ao satanismo não tinha como intuito o choque,
assim ele deixa evidente que a agressividade da poesia baudelairia-
na não era gratuita, e isso nos coloca diante da questão de saber
por que, mesmo sabendo que o satanismo já estava fora de moda
em seu tempo, Baudelaire decide, apesar desse fato, utilizar essa
temática em sua poesia. Nós devemos nos perguntar que função
teria esse recurso que, longe de chocar seus contemporâneos, os
deixaria, na verdade, entediados ao ter diante dos olhos nada além
de um desgastado clichê?
Em seu Baudelaire, Sartre afirma que Baudelaire faz o Mal de
maneira consciente, e, justamente por ter consciência do mal que
ele praticava, afirma, na verdade, sua adesão ao Bem. Para Sartre,
ao querer fazer o contrário do Bem, Baudelaire afirma e conserva
a ordem que ele pretende negar. Assim, a moral baudelairiana
parece ser o último recurso racional que procura evitar a confron-
tação com a verdadeira natureza fictícia da moral. O hipócrita
seria, assim, um homem satânico, um pecador, aquele que faz o
contrário do Bem, conscientemente, e que sente um verdadeiro
prazer na culpa, no remorso, na martirização na qual a ação maldosa
o engaja.
Contudo, o que Baudelaire procura ao ironizar os ideais ro-
mânticos é evidenciar a falência moral de seu tempo expondo
suas contradições, demonstrando o caráter hipócrita dessa mo-
ral que mesmo ao fazer o mal afirma o bem supremo, clama por
redenção, nega a vida e se mantém pregando ideais absurdos. A
ironia, esta que permite ultrapassar a dicotomia entre o bem e
o mal, só é possível a partir da reivindicação de autonomia da
poesia, que se faz justamente a partir de sua desobrigação com
relação a moral:
70
Eu digo que se um poeta persegue um objetivo moral, ele diminuiria
a força de sua poesia, não é imprudente apostar que sua obra será
ruim. A poesia não pode, sob pena de morte, se assimilar à ciência
ou à moral; ela não tem a verdade por objeto, ela só tem a si mesma.
(BAUDELAIRE, 1976, p. 628)
71
entre a ação e o enunciado, entre o imaginário romântico e o bau-
delairiano, em que o primeiro aparece em estado de putrefação. A
ironia abre uma fissura entre o real e o ideal, entre o conjunto das
ideias românticas e a realidade cotidiana, que o poeta, assim como
seus leitores hipócritas, conhecem bem. A ironia denuncia a dis-
tância entre o ideal e o real, e instaura uma desconfiança com rela-
ção a esses ideais, que parecem ironicamente cada vez mais puros
quando comparados à imundice e à miséria do mundo prostituído
no qual o poeta parece diabolicamente mergulhado. O que Baude-
laire quer não é simplesmente chocar seus leitores, mas levá-los a
desconfiar de um imaginário literário que os faz viver inexoravel-
mente na mentira.
Por isso Baudelaire recorre ao cômico. O próprio Baudelaire nos
deixou um tratado sobre a essência do riso, um artigo que atesta
a importância da questão em sua obra, uma questão que o poeta
confessa ter se tornado “uma obsessão”. Ele tem como título “De
l’essence du rire et généralement du comique dans les arts plastiques”
(“Da essência do riso e do cômico em geral nas artes plásticas”).
Baudelaire define o riso a partir de sua dimensão diabólica como
contrário às disposições dos sábios (o sábio ri tremendo). Rir da mo-
ral, rir dos costumes e de um sistema de valores é muito mais do que
simplesmente criticá-los
O riso é próprio dos espíritos superiores, ele implica certa supe-
rioridade do homem que ri em relação ao que provoca o seu riso. Por
isso o riso demonstra a insignificância do que nos faz rir, ele denigre,
rebaixa, desqualifica. Mas o riso é também o resultado da própria in-
significância humana. Ele se situa entre esses dois extremos, por isso
ele é também diabólico, porque o riso é essencialmente humano, ele
se situa entre a grandeza divina e a baixeza animal. Essa oscilação é
que nos faz rir; rimos das nossas pretensões de grandeza assim como
da nossa mediocridade.
Rindo, Baudelaire não apenas instaura uma desconfiança com
relação ao sistema de valores de seu tempo. Expondo suas contradi-
ções, ele pode, através do riso, dissolvê-las. Rindo da sua incoerência
72
é todo o edifício moral que se abala, que desvela sua hipocrisia, que
se mostra como uma mentira, mera aparência.
Ao rir de seu tempo, dos costumes e da moral cristã que limitava a
experiência poética moderna, Baudelaire indica um novo horizonte para
o qual a poesia deveria se abrir. Nele o primeiro romantismo aparece como
um clichê degradado, risível, rebaixado, exposto em toda a sua insignifi-
cância.
Com Baudelaire, a poesia se desprende das antigas formas de ex-
pressão da subjetividade e da gramática religiosa dos afetos (que man-
têm as relações amorosas enclausuradas pelas oposições entre amor/
sexo, corpo/alma, ideal/spleen, pecado/redenção etc.). Ela se desprende
do jogo de poder entre submissão e dominação; libera-se de toda obri-
gação moral (se desliga do Bem como do Mal, de Deus como de Satã).
A extravagância de Baudelaire reside no fato de que não é mais
possível em seu mundo ser romântico. Sua extravagância é o próprio
romantismo que aparece como um ideal, nada mais. Uma quimera,
uma ilusão. Na poesia de Baudelaire assistimos à derrocada do ro-
mantismo; em sua poesia os ideais românticos são apenas ruínas de
um mundo que faz parte do passado. Não há amor possível, pois as
mulheres são ora lésbicas, ora prostitutas, e as outras, como “a pas-
sante”, parecem ser apenas uma ilusão. Baudelaire pode apenas can-
tar sua impotência diante dessas mulheres prontas a devorá-lo. Com
Les Fleurs du mal, os ideais românticos desmoronam, se mostram
como ilusões, quimeras, extravagância, bizarrice, como os amores do
passado, eles apodrecem, feito carniça.
Esse ataque aos ideias românticos e à hipocrisia católica é um
passo decisivo na configuração de uma arte autônoma, que não pre-
tende ensinar, educar ou oferecer redenção, mas que se constitui
como o veículo de expressão e renovação do próprio presente, que
busca oferecer aos seus leitores uma arte na qual eles possam não
apenas se identificar, mas ir além de si mesmos.
A partir desse momento outra modernidade poderá surgir, a
que Baudelaire anuncia em seu Peintre de la vie moderne. Esse mo-
mento em que a arte autônoma, liberada de toda e qualquer obri-
73
gação moral, se dedicaria a extrair o que há de eterno e imutável no
fugídio e fugaz presente.
Spleen
74
estéril, coloca em cena a própria impotência masculina. Como su-
gere Benjamin, em suas notas, “A impotência é a base da via-crúcis
da sexualidade masculina. Índice histórico dessa impotência. Dessa
impotência provêm tanto a sua ligação à imagem seráfica da mulher
quanto o seu fetichismo” (BENJAMIN, 1989, p. 157). Porque a im-
potência é “a figura-chave da solidão”, imagem em que se inscreve o
abismo que separa o homem de seus semelhantes, e sabemos que é
na cidade, em meio à multidão, que esse sentimento eclode. Porque
é a impotência em comunicar o que é da ordem da experiência que
provoca a solidão do poeta, que se sabe, no entanto, semelhante a
seus semelhantes, igualmente incapaz de se comunicarem, sozinhos
e unidos pela mesma dificuldade.
A impotência do poeta diante da impossibilidade de expressar a
vivência da vida moderna, que aparece sob a forma do spleen ou na
visão baudeleriana do feminino, configura sem sombra de dúvidas o
ponto de partida da poesia mallarmeana.
A impotência masculina evocada na obra baudeleriana pela fi-
gura da heroína lésbica também aparece em Mallarmé, sobretudo
através de seu poema Hérodiade (que será o tema do capítulo sobre
a Beleza). Nele, o poeta constrói uma figura do feminino, da qual
ele permanece distante. Hérodiade é fria, pura e virgem, uma beleza
igualmente estéril diante da qual o poeta se sente impotente. Segun-
do Benjamin (1998, p. 165), “o amor lésbico leva a sublimação até
o colo feminino e planta o pendão de lírios do amor “puro” que não
conhece nem gravidez nem família”. Esse amor “puro” que não deixa
rastros, não se concretiza e por isso é a própria marca da impotência
que toma corpo na Hérodiade de Mallarmé, a virgem, que recusa se
deixar tocar para permanecer pura.
***
75
também ressaltou a ideia baudeleriana de modernidade e a ideia do
tempo que ela implica, em carta a Villiers de 24 de setembro de
1867, Mallarmé (1998, p. 724) declara: “Verdadeiramente, eu tenho
medo de começar (mesmo que, com certeza, a Eternidade tenha cin-
tilado em mim e devorado a noção de Tempo) onde nosso pobre e
sagrado Baudelaire terminou”.
A modernidade de Mallarmé segundo Bertrand e Durand (2006,
p. 284) se mede a partir de
76
da linguagem, não exclua também sua dimensão crítica e política.
Para tanto devemos levar a sério a tarefa que Mallarmé colocou para
sua poesia: a de continuar exatamente no ponto em que Baudelaire
teria parado. Isso significa levar ao pé da letra o legado da poesia
baudeleriana. Se em Baudelaire o romantismo aparece como um
sistema de ideias em ruínas, escrever depois de Baudelaire significa
deixar para trás os ideais poéticos e inclusive políticos sob os quais
a História francesa se calcou durante meio século. No entanto, além
dessa enorme renúncia, que é também a compreensão das razões que
levaram ao fracasso desses ideais, significa se perguntar o que a po-
esia lírica pode fazer quando não se pode mais expressar o que é da
ordem da experiência subjetiva. Significa se perguntar se é possível,
diante dessa impossibilidade, que a poesia continue a existir. Para
responder essa pergunta Mallarmé se voltou para o mínimo, como
quem sabe que já não se pode com versos construir uma nação. Ele
reivindica para a poesia o direito de “nada realizar de excepcional”.
Se a poesia é uma ação restrita, mínima, ela se volta obrigatoriamen-
te sob si mesma, e procura no seu material a razão que justifique
seu lugar, talvez não mais na praça pública, mas simplesmente nas
páginas do Livro.
É a partir da modernidade que a linguagem poética, sujeito e
história constituem um único e mesmo problema, colocado a partir
de uma tomada de consciência histórica. Assim, nesse momento da
crise da representação, o sujeito e o tempo se inscrevem, não mais
através do retrato e da pintura da vida moderna, mas como o que eles
são: escrita e reescrita, linguagem, matéria a ser interpretada, inven-
tada, pura negatividade que não se deixa simplesmente nomear. As-
sim, a modernidade baudeleriana, como ideia, o transitório e fugidio
se transformam para Mallarmé, num método e numa forma poética.
A beleza passageira é meio e fim da poesia, ela define a linguagem
poética, define a própria poesia, porque se torna seu material cons-
titutivo e também a essência mesma do seu dito. Mallarmé trans-
porta a experiência baudeleriana da modernidade para o interior da
própria linguagem, transforma o tempo numa relação entre signo,
significante e significado, transformando a impossibilidade de narrar
77
e falar da experiência num problema estrutural da própria linguagem
que determina a relação entre a linguagem e o sujeito, que bloqueia
todo desejo de expressão, que deixa o poeta impotente. Transformar
a linguagem num Absoluto em que toda a questão da experiência se
transforma em questão linguística não significa limitar ou reduzir o
horizonte das experiências humanas, ou limitar e restringir as
possibilidades da própria linguagem, suas significações e senti-
dos. Isso significa que o poeta é consciente da imensa respon-
sabilidade que lhe recai quando resolve fazer da linguagem esse
instrumento ao mesmo tempo absoluto e absurdo, seu instru-
mento de trabalho.
Para ilustrar o caminho que Mallarmé escolheu percorrer para
encerrar essa crise podemos partir da noção de Tempo para mos-
trar como o poeta transforma um dado histórico, um diagnóstico de
época, não apenas num tema, mas numa forma poética. Essa trans-
formação é apenas o começo de um longo percurso que busca na
linguagem uma outra gramática dos afetos, desafetada e liberada de
todo sentimentalismo romântico que se tornou, por excesso de uso,
inexpressivo. Trata-se sobretudo de deixar para trás os princípios que
guiaram a constituição do romantismo francês, seu projeto político e
poético cuja falência Baudelaire denuncia. A poesia na modernidade
não é mais o espaço de construção de ideais, pois esses ideais se reve-
laram incompatíveis com a realidade exterior. Esse sentimento a que
Baudelaire deu o nome de spleen só pode ser definitivamente supe-
rado uma vez que a poesia deixar de se constituir a partir da lógica
da mistificação ou da construção de ideais e do seu desvelamento.
Isso implica, como veremos, uma outra noção de linguagem, uma
outra noção de interpretação e por consequência uma outra noção
de critica literária.
A partir dessa longa introdução podemos, neste momento,
comentar uma das definições mallarmeanas da linguagem nas
Notas que pretendemos analisar: “O verbo, através da Ideia e do
Tempo que são a “negação idêntica à essência” do devir, se torna
Linguagem” (MALLARMÉ, 1998, p. 506). Assim, o sentimen-
to da modernidade, essa maneira de perceber e conceber o tem-
78
po como fugaz e transitório, sempre instável e em movimento,
que inaugura a modernidade poética, se torna, para Mallarmé,
um princípio que estrutura e define a linguagem, uma ideia do
tempo que se transforma numa ideia de linguagem e de forma
poética.
O Tempo é uma potência negativa, que tem na negatividade a
sua essência e a sua verdade. E também como negação que o poeta
define a Ideia. O Verbo, que é outro nome para linguagem poética,
é composto desses dois elementos negativos e essenciais. Não só o
tempo é fugaz e transitório, mas a Ideia mesma é definida como
um devir, um processo, portanto, que tem no tempo não apenas um
aliado, já que a linguagem se faz e se desenvolve no tempo, mas a sua
verdade e sua essência.
O século XIX, de Hegel a Mallarmé não cessou de se interro-
gar sobre o poder de manifestação da linguagem, na sua natureza
enigmática de verbo, ou seja, como ação,“lá onde ele está mais
próximo do ser, onde ele é capaz de nomeá-lo, de transmitir ou de
fazer cintilar seu sentido fundamental, de torná-lo absolutamen-
te manifesto” (FOUCAULT, 1996, p. 111) Aqui, trata-se para
Mallarmé de expor a capacidade do Verbo de manifestar a verda-
de do próximo presente, o sentido do que entendemos por mo-
dernidade. Trata-se de afirmar que, na linguagem, que se confi-
gura como um modo essencial de devir, se manifestam ao mesmo
tempo o Tempo e sua Ideia. Quer dizer que na linguagem tudo
o que pode ser dito se manifesta absolutamente, no seu próprio
modo de configuração, de ser.
Não se trata de descrever o presente, portanto, como êxtase
do instante, capaz de sincronizar um sentimento de plenitude.
Trata-se de uma concepção do presente como negação mesma
da possibilidade do instante, o que pode nos sugerir outra ideia
de presença, que se configura num jogo entre aparecer e desa-
parecer, presença que se define como o momento mesmo de
esvanecimento, de desaparição de si mesmo e sua transformação
num outro, a presença é assim puro devir. Esse modo de presen-
ça que se torna possível a partir da ideia do tempo como efê-
79
mero, da linguagem como composta por uma essência negativa,
constituída pelo tempo e pela ideia, é a forma que Mallarmé
procura dar aos seus poemas, a de uma presença evanescente,
perfume que paira no ar.
Mallarmé define a linguagem poética a partir de uma série de
elementos, de metáforas, digamos, tais como: Tempo, Beleza, ficção,
devir, mito, escrita, Música, Letras, fala. Tais metáforas são toma-
das em alguns momentos como elementos concretos da linguagem
(como escrita e fala) e, em outros, como Ideia, noções (Tempo, Bele-
za, ficção, teatro). Neste livro percorreremos o desenvolvimento de
cada umas dessas ideias e as nuances que cada uma toma, ora como
simples termo técnico, procedimento formal, ora como conceito.
80
IV
A PALAVRA, SEM MAIS NADA
82
sublime do homem reside na sua capacidade de criar, de inventar, na
sua habilidade para a ficção. Mas o caráter aterrador dessa desco-
berta é que de tudo o que existe é forma vã da matéria, e tudo o que
há além da matéria, como Deus e a alma, são apenas formas vãs de
ficção, mentiras, Nada. O Nada é a verdade da condição humana que
a impele a criar o que há de mais sublime, mas é também a verdade
de toda e qualquer criação fictícia. Não há nada além da matéria, não
há nada por trás da ficção, só o nada, só mentiras.
O Nada é uma das metáforas, uma das figuras, poderíamos talvez
ousar dizer um dos conceitos fundamentais da poética mallarmeana,
pois não se trata apenas de um abismo avassalador que aniquila todas
as faculdades poéticas e esteriliza o poeta, não se trata de um pessi-
mismo desencantado, de um niilismo que transforma todo o univer-
so numa simples mentira. O nada é a verdade mesma que estrutura a
ficção, a base, o abismo a partir do qual estruturamos e construímos,
na linguagem e pela linguagem, o mundo em que vivemos.
Mas o encontro com o Nada e com a verdade da linguagem
não é apenas uma constatação “empírica”. Ela também não é de
ordem “espiritual”, pois o poeta mesmo sublinha que não conhecia o
budismo, talvez pudéssemos estender sua ignorância mística à obra
do tão célebre Swedenborg. Para Mallarmé, o encontro com o Nada
é, sobretudo, o fruto de um trabalho intelectual, de longos períodos
de reflexão. O poeta declara em uma outra carta do mesmo período:
“Acabo de passar um ano terrível: meu pensamento se pensou, e che-
gou a uma concepção pura” (MALLARMÉ, 1998, p. 713).Em carta
à Villiers d’Isle Adam, já em 1867, o poeta declara “Meu pensamen-
to chegou a pensar-se a si mesmo e só lhe resta forças para evocar
em um Nada único o vazio que se disseminou na sua porosidade”
(MALLARMÉ, 1998, p. 724).
A descoberta do Nada é o resultado de uma “longa agonia”, de
um processo de reflexão, ou de um movimento em que o pensamento
se volta para si mesmo, em que a poesia se volta para si mesma. Essa
descoberta vai se transfigurar em método. Mallarmé fará do Nada,
sua Beatriz, sua musa inspiradora:
83
[…] eu criei minha obra somente por eliminação, e toda ver-
dade adquirida nascia lampejando, estava consumada e me per-
mitia, graças às trevas dissipadas, avançar profundamente na
sensação das Trevas Absolutas. A Destruição foi minha Beatriz.
(MALLARMÉ, 1998, p. 717)
84
do Nada na poesia mallarmeana, narrada com o mesmo estupor e
angústia relatados nas cartas de 1866.
Segundo Assad (1987, p. 22):
85
leriano, o verso que dita toda a direção que a poesia pós-Baudelaire
tomará, seria simplesmente um absurdo. No entanto, a sintaxe da
frase mallarmeana é ao mesmo tempo mais complexa que um hi-
pérbato e mais sutil. Isso porque não se trata de uma frase absurda
cantando falas desconhecidas, mas de falas desconhecidas que can-
tariam farrapos de uma frase absurda, ou seja, trata-se de um ques-
tionamento sobre a possibilidade de o desconhecido evocar algo da
ordem do absurdo e não o contrário. E por essa razão estamos dian-
te de uma analogia demoníaca, já que a busca pelo desconhecido
pode facilmente se deparar com o absurdo. Assim, num primeiro
momento, uma analogia demoníaca seria aquela que reúne termos
dissonantes, contrários ou contraditórios, aparentando-se com algo
que, num primeiro olhar, pode parecer absurdo, pois não encontra
lugar na realidade.
A frase absurda a qual o narrador se refere é: “a penúltima está
morta”, ele conta que essa frase foi pronunciada num tom descen-
dente e “apareceu” acompanhada de um instrumento. Na verdade,
trata-se de uma sensação, da sensação de que uma asa tocava um
instrumento de cordas.
Está morta
se destacou
da suspensão fatídica mas inutilmente no vazio de significação.
(MALLARMÉ, 2003, p. 86-87)
86
ascender, transcender o real. Ele figura, em termos mais gerais, o
movimento do verso em direção à ideia. No entanto, o caminho em
direção ao ideal não se faz sem tropeços e, nesse poema, naturalmen-
te prosaico, cujo tema é uma analogia demoníaca, nos vemos atados
à terra, espaço de um anjo sem asas. Se o tom da frase parece muito
elevado, ele é, em contrapartida, ironizado pelo caráter prosaico da
situação, “saí do meu apartamento”, “dei alguns passos na rua”.
Antes de continuarmos a leitura do poema, talvez possamos
estabelecer uma relação, um contraste que pode ser esclarecedor
entre o espaço desse poema e de um conto, seu contemporâneo,
Igitur. Esse conto, o poeta anuncia no prefácio, é destinado à inte-
ligência do leitor, percurso inteiramente intelectual, que configura
uma luta entre a razão e o acaso. Igitur tem como cenário um in-
terior. Não se trata de um poeta caminhando pela rua, mas de um
personagem que se encontra em seu quarto, no espaço individual
por excelência. No entanto, a ação de Igitur consiste justamente em
deixar o seu quarto para se reunir e completar o ato que o uniria a
sua comunidade, a sua raça. Para isso, ele deve descer “as escadas
do espírito humano, ir ao fundo das coisas, em ‘absoluto’ que ele é”
(MALLARMÉ, 1998, p. 474).
Lembremos que a frase que atormenta o poeta em “O demônio
da analogia” foi justamente pronunciada num tom“descendente”, ela
indica, de alguma maneira, essa descida aos infernos, ao fundo do
espírito humano e da linguagem, um ato que, para Mallarmé, é fun-
damental para que a poesia possa existir. No poema, a descida aos
infernos seria realizada pela sonoridade da frase, pelo tom no qual
ela é pronunciada, esse movimento é, inclusive, espacialmente mar-
cado pelo poeta que faz questão de apresentar o tom “visualmente”.
O tom descendente da frase é espacialmente representado. Nesse
momento do poema em prosa, o verso invade o espaço prosaico, da
rua, transgride a linearidade da prosa, da mesma maneira que inter-
rompe a caminhada do narrador. Além de transgredir a linearidade
da prosa, o verso insere espaços em branco, demasiado longos para a
espacialização prosaica.
87
O que confere à penúltima seu caráter “fantástico” é a sonoridade
da frase que aparece ao acaso, uma “sensação” que o poeta descreve
como eminentemente musical. O encontro do tom da frase e da “asa”,
que parece deslizar sobre as cordas de um instrumento, mergulha a
frase num vazio de significação, como se ela mergulhasse na nulidade
presente no termo penúltima. A música, quando compõe a poesia, é
responsável pelo mistério das letras, pelo seu caráter obscuro que elas
possuem, frágil e imaterial. Ela cria uma suspensão da significação,
que, em Mallarmé, é indicada pelo som (suspenso no ar).
88
Uma analogia é composta de quatro termos divididos em dois
pares. O termo A está em relação com B, assim como C está para D.
Nesse caso, a analogia é composta, por um lado, pela relação entre
os instrumentos musicais e a música propriamente dita (sendo que
a música, como veremos adiante, vai muito além da sonoridade do
verso e é para o poeta a forma mesma do mistério que compõe o
mundo e se encontra no fundo de cada um de nós), e entre os pássa-
ros caídos no chão, ou a asa que desliza pelo instrumento musical, e a
significação, pois o voo dos pássaros indica o movimento de ascensão
do sentido, de passagem da palavra material e concreta em direção
à significação. O caráter demoníaco dessa analogia está no encontro
casual entre o poeta, que foi interpelado por essa frase enigmática, “a
penúltima está morta”, e que se depara com uma encarnação mate-
rial dessa frase através de uma vidraça. É demoníaco que uma frase
se materialize tanto como é demoníaco que um som encontre numa
palavra sua significação espelhada.
Os instrumentos musicais e os pássaros antigos no chão o
remetem à frase e ao seu movimento descendente, ao caráter nulo
presente na palavra “penúltima”. Se o voo dos pássaros em direção
ao céu simboliza o percurso da significação, a analogia em questão
é também demoníaca, pois seu tom é descendente, os pássaros se
encontram no chão, como demônios ou anjos caídos. Por isso, ela
encerra um paradoxo, pois se de um lado som e sentido parecem se
unir (na palavra penúltima), esse encontro é puro acaso, ou mais do
que isso, ele não realiza nada de fato, possui uma dimensão eminen-
temente negativa (os pássaros estão mortos como a penúltima está
morta). Esse encontro parece mais um presságio, a indicação de uma
catástrofe, de um fim muito próximo.
A frase e o encontro do poeta diante dessa loja são definidos
no poema como uma “irrecusável intervenção do sobrenatural”,
pois ela demonstra a natureza mesma da poesia, mágica, encontro
que produz o encantamento musical das palavras, encontro entre
sentido e música no interior da linguagem. A música guia o sentido,
carrega-o, mas muitas vezes esse encontro pode ter um caráter nega-
tivo, pode parecer não belo, mas aterrador. E o caso do poema, o som
89
“nul”, de penultième, acompanhado pelo tom descendente no qual a
frase é pronunciada, indica um fim muito próximo, já que a penúl-
tima está morta. Como se um demônio impedisse esse movimento
poético, esse voo das palavras em direção ao céu azul e límpido das
ideias. Mas que demônio é esse capaz de aterrorizar a tal ponto um
poeta?
A poesia se constrói a partir da união entre som e sentido. Essa
união não é fruto do acaso, mas do trabalho do poeta, trabalho que
é um encantamento das palavras, que procura sons capazes de fazer
ressoar e ecoar o sentido, acentuando-o, elevando-o. No entanto, a
linguagem não se estrutura a partir dessa relação, muito pelo con-
trário. Como Saussure bem mostrou, a união entre o significante, a
imagem acústica do som e o significado que compõe o signo linguís-
tico é arbitrária, imotivada, não há razão nenhuma capaz de explicar
essa relação.
Assim, a frase que parece invadir a mente do poeta e se torna
analogia a partir da sua visão, do encontro entre a frase e sua reali-
zação concreta, que faz dela um acontecimento, de natureza eviden-
temente poética, é na verdade um acontecimento do qual podemos
duvidar, pois ele parece de natureza “sobrenatural”. Ele contraria as
leis mesmas que constituem a linguagem, e certa ideia de poesia, que
busca no ideal a sua realização. Se a analogia é demoníaca, é porque,
longe de ser fruto de um trabalho e esforço intelectual, ela simples-
mente “aparece”, fruto de um mero acaso.
Diante da visão de um verso, de um som, espelhado na vitrine
de uma butique, o poeta aterrorizado, foge, “bizarro, persona con-
denada a portar provavelmente o luto da inexplicável Penúltima”
(MALLARMÉ, 2010, p. 24). O poeta é essa pessoa condenadaa-
levar nele próprio o luto de uma frase que pode paradoxalmente ser
poética e casual, motivada e imotivada, arbitrária, porém plena de
sentido e razão.
Agora, talvez o leitor seja capaz de dimensionar a amplitude da
crise na qual Mallarmé mergulhou, a natureza da linguagem colo-
ca o poeta diante de um paradoxo que parece irrevogável. Todo seu
trabalho e esforço devem caminhar para remotivar uma linguagem
90
que carrega consigo mesma, no seu interior, na sua estrutura, o luto
pela ausência do que ela tenta em vão presentificar, a distância que
a separa do real e da nossa vã materialidade. A poesia parece ter,
assim, algo de demoníaco ou sobrenatural, pois ela parece ser capaz
de tornar presente algo que, na verdade, já não é mais, que como a
penúltima está morta.
No entanto, seu verdadeiro caráter demoníaco reside, entre outras
coisas, no fato de que essa presentificação que ocorre através da lin-
guagem (figurada no poema pelo encontro do poeta com os instru-
mentos musicais e os pássaros) não é “sobrenatural” ou mesmo fruto
do acaso, mas uma representação, uma ilusão, uma ficção. E se, como
vimos, toda ficção se baseia no fato de que ela serve para mascarar o
Nada, o poema e sua analogia demoníaca pode indicar um caminho
para a resolução da crise.
O poeta não deve simplesmente dissolver esse parado-
xo constitutivo da linguagem que a faz arbitrária. A poesia
deve criar não demoniacamente tentando encantar as pala-
vras musicalmente, restabelecendo umamotivação significati-
va entre som e significado, pois isso seria criar apenas uma
ilusão, transformando a diferença em falsa semelhança, mas
respeitando e preservando, desvelando a constituição mesma
da linguagem, sua ausência de motivação, de razão, seu caráter
contingente e arbitrário. Assim, a poesia deve tecer redes de
relações, analogias, que desvelem através dos próprios meca-
nismos poéticos a diferença que forma e informa a linguagem,
construindo uma teia de significações e relações entre som,
sentido e imagem, que evidencie essa diferença estrutural da
linguagem. Ou seja, a poesia deve criar tendo como base o ca-
ráter arbitrário do signo, que, ao invés de pretender criar coi-
sas, torna presentes as coisas por meio da linguagem, aponta
simplesmente para o abismo que separa as palavras das coisas.
Estamos diante de uma poesia que carrega nela própria o luto
provocado pela morte da penúltima, e que assim se abre para o
espaço sem nome da linguagem.
91
E, do nada, fez-se o verbo
92
Raça imemorial, cujo tempo que pesava caiu, excessivo, no passado,
e que, pleno de acaso, viveu, enquanto, de seu futuro – Este acaso
negado com ajuda de um anacronismo, um personagem, suprema
encarnação desta raça, que sente nele, graças ao absurdo, a existência
do Absoluto, tem, solitário, esquecido a fala humana num livro pouco
inteligível, e o pensamento numa luminária, um anunciando esta
negação do acaso, o outro clareando o sonho onde ele está.
O personagem que, acreditando na existência do único Absoluto, se
imagina por todos os lugares num sonho.
Ele age no ponto de vista Absoluto.
Acha o ato inútil, pois há e não há acaso – ele reduz o acaso ao
Infinito, que diz ele, deve existir em algum lugar. (MALLARMÉ,
1998, p. 478)
93
o acaso é vencido, palavra por palavra. Assim, escrever é lutar
para vencer o acaso:
94
que se mostram absolutamente necessárias e insubstituíveis e que
são capazes de expressar exatamente o que o poeta tem em mente. É
assim que imaginamos um processo de significação: há algo para ser
dito, uma ideia ainda abstrataque deve encontrar sua forma perfeita.
Eis o trabalho da poesia. No entanto, muitas vezes pedras cruzam o
caminho dos poetas, como no “Demônio da analogia”, por exemplo,
em que o acaso interfere, e as palavras aparecem como que trazidas
por forças sobrenaturais, e, mais ainda, que são capazes de encontrar
sua realização concreta, sua imagem, na vitrine de uma loja de anti-
guidades.
Contudo, se a poesia não se faz a partir de ideias que ela procura
esconder nas profundezas do poema, se não há significado para ser
expresso e desvelado, se não há verdade alguma por trás das palavras,
além do Nada da nossa condição, então devemos supor que também
não há uma faculdade superior, uma razão poética responsável pela
criação e expressão de ideias e verdades imutáveis. Ficamos sozinhos
diante de uma linguagem arbitrária e contingente que faz com que as
palavras, significados e objetos insistam em se desencontrar. A ques-
tão que Mallarmé se coloca é, portanto, de saber como criar, como
fazer poesia diante de linguagem arbitrária.
Eis a razão pela qual a melhor metáfora que ele encontrou para
a poesia e para o pensamento foi a do lance de dados. A poesia fun-
ciona quase como um “jogo de azar”. Pois sabemos que “todo pensa-
mento é um lance de dados”, mas sabemos também que “um lance de
dados jamais abolirá o acaso”. Assim a poesia é um ato, simples, por-
que ela lança os dados, mesmo na certeza de que qualquer resultado
será sempre fruto do acaso. No entanto, uma vez que temos diante
de nós, um número (uma palavra, uma frase), esse é absolutamente
necessário, único, e não poderia ser outro. A cada lance de dados o
acaso está presente, mas ele é abolido assim que temos diante de nós
um número único, real. Ele é abolido quando se realiza. Por isso,
no interior de um poema, cada palavra parece ocupar o seu devido
lugar, e se relacionar com as outras que a cercam, numa relação que
é da ordem da mais absoluta necessidade. Cada palavra ocupa o seu
devido lugar e parece ser a palavra perfeita, mesmo que ela tenho
95
sido, paradoxalmente, fruto do acaso. É com isso que a poesia joga,
com a infinita capacidade da linguagem de fazer sentido, apesar do
seu caráter contingente, ou talvez justamente devido ao seu caráter
contingente, que expande e multiplica essas possibilidades de senti-
do e faz com que, mesmo a partir do acaso, as palavras se encaixem
como as estrelas numa constelação, perfeitamente, incessantemente
em movimento.
O acaso só pode ser compreendido dessa maneira na moderni-
dade. Pois somente a modernidade torna possível compreender o
tempo como uma contradição, visto por um lado como uma presen-
ça fulgurante, por outro, como composto também por um elemento
eterno, imutável. Na verdade, o presente, como vimos anteriormente,
nada mais é que uma passagem, um não ser, preso entre o passado e o
futuro. A modernidade poética é produto dessa contradição, de uma
concepção do tempo como histórico. Mais do que um modo particu-
lar de relação com o presente, mais que uma compreensão histórica
da realidade social e política, a modernidade poética mallarmeana
encontra na forma mesma da passagem do tempo, no acaso, que dita
a forma contraditória de todo ato e a inscrição dos acontecimentos
no curso da História, seu modelo. Se todo acontecimento se inscreve
a partir de uma contradição então como contradição, o poema pro-
cura escrever o infinito através do modo de ser do acaso.
Se a poética mallarmeana se estrutura a partir dessa ideia do
Nada, como uma negatividade irredutível que compõe o tempo e
dita a natureza e o modo de ser dos acontecimentos através do acaso,
a linguagem que, como Mallarmé afirma, é imotivada e arbitrária
também terá como sua forma essencial, essa mesma “negatividade”,
destruidora:
96
Temos aqui duas definições complementares da linguagem que
é Verbo e também Fala. O Verbo se desenvolve através do acaso,
enquanto a Fala se faz no Tempo. O Verbo forma a Fala, seu de-
senvolvimento através do acaso culmina na sua realização oral, na
execução musical do poema. O Verbo é muito mais do que a lingua-
gem em estado de dicionário, ele indica a dimensão performativa
da poesia que se determina através da destruição ou da negação de
todo e qualquer princípio, racional, ou seja, que é produto do acaso.
Ele realiza sua ideia quando tomado em sua negatividade, quando
compreendido enquanto acaso, ou seja, o verbo se estrutura como o
acaso, seu conceito é o conceito de acaso, ele se define enquanto tal.
O que significa afirmar que o Verbo é o acaso? Sabemos que a
linguagem é para Mallarmé arbitrária, mas como isso implica um
modo de ser no tempo? Ora, o acaso possui um modo de ser du-
plo, não se trata de uma presença fulgurante, como uma epifania,
ou de uma existência somente possível duvidosa, portanto de uma
ausência, mas de um meio-termo entre esses dois modos de ser.
É essa a ideia mallarmeana de acaso, entre o ser e o não ser, entre
presença e ausência que determina um novo modo de presença e
que é a da poesia.
Assim o Tempo se define, para Mallarmé, não como um conjun-
to de instantes, mas como a própria ausência do instante, em que o
tempo se fixaria, o tempo é passagem, movimento, devir. Assim, o
Verbo possui um modo de ser ambíguo, entre aparecer e desaparecer,
entre ser e não ser, entre a possibilidade e o ato que se concretiza
tanto na Fala quanto na Escritura.
A Fala, eminentemente oral, se compõe no tempo, através do
tempo e tendo o tempo como um elemento de sua própria estrutura.
Ela evanesce no ar na medida em que o tempo negativamente a dis-
solve, já a escrita, as letras, permanece no papel, alcança a eternidade.
O Tempo se torna, portanto, princípio formal de construção
poética, médium e meio através do qual a linguagem é como fala,
dissolução musical dos signos, esvanecimento que ao mesmo tempo
se fixa e constrói com as letras o poema. É nesse movimento que o
poema se constitui, ele é o retrato de um movimento, de um devir,
97
que encontrará no Lance de dados sua forma mais bem acabada. Com
a ajuda do Tempo, a linguagem se mostra como além do princípio
de representação, pois não se trata de espelhar o mundo, mas de re-
fletir sua própria ideia, seu próprio modo de funcionamento, daí a
importância crucial do Tempo. Assim, como o acaso se inscreve e
deixa rastros, a linguagem se dissolve no ar como fala e se fixa en-
quanto escrita. Esse jogo entre formas de ser e não ser talvez seja a
“adaptação ao absoluto da ficção”, porque nos coloca diante do que é
da ordem da infinitude.
Assim, a modernidade deixa de ser representada e sua ideia se
torna, portanto, forma, princípio de dissolução e transformação,
cuja negatividade estrutura a poesia e define a linguagem poética:
“O Verbo, através da Ideia e do Tempo, que são a ‘negação idêntica
à essência’ do devir, se torna Linguagem” (MALLARMÉ, 1998,
p. 506). Não se trata mais de retratar e pintar a vida ordinária tal
qual um jornalista o faria. A modernidade é aqui, uma maneira
particular de experimentar o tempo. Um tempo que não é mais vazio
e homogêneo, que não produz uma história com começo, meio e
fim, mas que se transforma com a ação contingente e fulgurante dos
homens e de suas ideias. A poesia mallarmeana se inscreve, assim,
na tradição que Baudelaire inaugurou, porque procura fazer dessa
experiência do tempo a forma através da qual a poesia se constrói.
O Verbo, que através do Tempo forma a Fala, se torna finalmen-
te linguagem quando sua essência corresponde à sua aparência. Ou
seja, quando através da fala e da escrita o verso realiza a sua própria
ideia, aparece como manifestação do acaso, puro devir. O devir nada
mais é do que a ideia mallarmeana de tempo, o tempo compreen-
dido como um continuum, capaz de produzir camadas distintas que
podem ser sobrepostas, como os motivos do Lance de dados. Eis o que
Igitur procura realizar, ele que representa toda a sua raça. Uma raça
de homens que lutaram incessantemente para abolir o que não pode
ser abolido, o princípio que transforma tudo o que é, o acaso.
O devir substitui toda ideia representativa da linguagem, ele é
assim princípio da criação poética. A poesia não é mais uma imita-
ção do real, ela não fala ou descreve um estado de coisas no mundo,
98
ela pode fazer muito mais do que isso, através de uma “transposi-
ção estrutural”: “Esta visada, eu a digo Transposição, Estrutura, uma
outra” (MALLARMÉ, 2003, p. 210). Ela é capaz de “apreender as
relações”, de colocar em evidência as relações entre a linguagem e o
mundo, relações se tecem porque, para Mallarmé, a ideia, a lingua-
gem, o acaso e o tempo têm a mesma estrutura, a mesma natureza.
Eis a razão pela qual tudo o que existe deve terminar num Livro. A
poesia encena o devir do mundo, sua metamorfose e seu movimento.
Ela é regida, como esse cosmos que ela quer abraçar, pelo mesmo
acaso, pelo mesmo tempo, pelo mesmo Verbo.
Romper com a linguagem representativa significa romper com a dis-
tância entre o representante e o representado, com a ideia de verdade como
adequação entre esses dois termos; significa pensar a linguagem através da
relação que sua aparência tece com sua essência, através da relação entre
a ideia da linguagem, seu conceito e seu modo de manifestação. Ou seja,
romper com a linguagem representativa significa tornar a aparência da
linguagem a manifestação de sua própria essência. Essência que é a Ideia
de acaso ou a contingência que une significante e significado, enquanto
na sua aparência ela é fala, manifestação no tempo como dissolução de si
mesma. A união entre esses dois momentos é a demonstração de que a
linguagem é puro devir, acaso, um tornar-se outro, um ser e nãoser que se
manifesta como aparecer e desaparecer. União e dissociação entre som e
significado constante, um processo de constituição de sentido, um movi-
mento em direção ao sentido, nada mais.
99
V
O MITO
III
Conclusões.
A tese Latina.
De Divinitate (MALLARMÉ, 1998, p. 504)
102
Na já citada carta em que Mallarmé narra sua descoberta do
Nada, o caráter sublime do homem reside no ato de que ele é capaz
de inventar Deus e muitas outras ficções. Agora poderíamos também
dizer mitos. O caráter divino da inteligência humana seria seu
caráter sublime, sua capacidade para criar ficções. Nesse sentido, uma
inteligência divina é uma inteligência voltada para a criação de mitos,
para o passado, para o princípio mitológico da linguagem, onde esta
e os deuses estavam em perfeita harmonia. Para compreendermos
como essa tese se constitui, precisamos nos interrogar sobre o modo
pelo qual Mallarmé compreende a relação entre o mito e a linguagem,
entre mito e poesia.
Em Les Dieux Antiques podemos ler como o poeta compreende
a relação entre linguagem, a poesia e o mito. Trata-se, na verdade, de
uma “tradução” quase literal, de A Manual of Mythology in the Form of
Question and Answer, de George W. Cox. Mallarmé não apenas tra-
duziu o texto, como produziu certas alterações no original, além de
acrescentar trechos de outra obra do autor, The mythology of the aryan
nations. George W. Cox foi um discípulo e vulgarizador da obra de
Max Müller, autor de La Science du Langage, que transpôs para o
plano da mitologia as descobertas de Franz Bopp sobre a matriz
comum das línguas indo-europeias. Sua obra pretende mostrar que
a mitologia se produz a partir de mecanismos da própria linguagem,
ou seja, a linguagem na medida em que ela se desenvolve a partir de
deslocamentos e figuras é naturalmente mitopoética, criadora de mi-
tos. Os mitos não são nada além da origem esquecida da linguagem e
seu processo de constituição pode ser desconstruído e demonstrado
etimologicamente.
Bertrand Marchal (apud MALLARMÉ, 2003, p. 1814), destaca
uma diferença importante entre Les dieux antiques de Mallarmé e o
original do reverendo Cox, que parece operar a dissolução dos mitos
para destacar, por trás de seus horrores, um modo religioso universal
que se confunde com uma ideia cristã de Deus. Mallarmé, na sua
tradução, desfaz cuidadosamente esse ponto de vista, transformando
o Deus cristão num dos mitos dissolvidos por essa análise científica.
Assim, segundo Marchal (apud MALLARMÉ, 2003, p. 1814), “Os
103
Deuses antigos prolongam à sua maneira a tese latina, ela também
abandonada, sobre a divindade, uma divindade que se trata a partir
de agora de reaver como a potência simbólica que é a fonte comum,
na linguagem, dos mitos e da poesia”.
Se a “tese latina” deve compreender a divindade da inteligência,
como voltada para o presente, então ela deve não apenas entender o
mecanismo através do qual os mitos se produzem, mas utilizar esse
recurso à mitologia, ao passado, para pensar a linguagem hoje. Isso
implica desvendar o processo de criação dos mitos, ou seja, compre-
ender os mecanismos linguísticos, as propriedades da linguagem que
permitem que os mitos sejam quase “naturalmente” criados a partir
dela. Uma vez conhecidos esses mecanismos, possivelmente a lin-
guagem pode operar de outra maneira, sem precisar recorrer ao mito
e muito menos criar novos mitos, mas desvelando-os, revelando-os.
A inteligência divina da linguagem é assim, essencialmente crítica
ao mito.
Segundo o autor, nossos ancestrais, os povos antigos que ha-
bitavam a Terra, falavam e compreendiam o mundo de uma ma-
neira muito diferente da nossa: “Não sabendo quase nada sobre
eles mesmos, e nada sobre os objetos que eles percebiam ao seu
redor e no mundo inteiro, eles imaginavam que todas as coisas
eram dotadas de uma vida semelhante à deles” (MALLARMÉ,
2003, p. 1455).
A mitologia se constitui como um processo de simbolização, de
encantamento do mundo, um movimento de racionalização eviden-
te, onde o mundo que cerca os homens é compreendido à sua ima-
gem e semelhança. É na linguagem e através da linguagem que o
autor busca narrar o nascimento dos mitos nas sociedades antigas.O
homem cria, assim, mitos para explicar os fenômenos naturais, so-
bretudo, que o cercam, atribuindo uma força e um poder além do
humano ao mundo natural, que ele não é capaz de controlar. Os ho-
mens contam histórias, constroem narrativas e nomeiam a natureza
da mesma maneira que os poetas criam seus poemas:
104
No fundo, eu os vejo, esses pensamentos, os mesmos que inspiram
a linguagem dos poetas de todos os tempos e de todos os países.
Sim, agora como anteriormente, os poetas não fazem outra coisa
a não ser atribuir vida ao que eles veem e escutam em torno de si.
(MALLARMÉ, 2003, p. 1460)
105
O objetivo da mitologia moderna é, portanto, mostrar a rela-
ção natural entre mito e linguagem, entre a natureza e o mito. A
função do pensamento aqui é volatilizar o caráter antropomórfico
desses mitos, restituí-los ao fênomenos naturais. Em vez de “natu-
ralizar” a linguagem através dos mitos, a inteligência da tese divina
da linguagem busca mostrar na origem dos mitos sua necessidade,
a importância de todo e qualquer processo de simbolização, que é
sempre intrínseco à linguagem, intrínseco à relação do homem com
o mundo que o rodeia. A importância dessa tese consiste em mostrar
que a linguagem é investida de um poder de simbolização, do qual o
homem investe, por sua vez, a própria natureza.
Apesar de os mitos terem sido transmitidos de geração em ge-
ração entre povos distintos, em línguas diversas e, por isso, terem se
transformado tão radicalmente a ponto de romper o vínculo que os
unia à natureza, podemos, no entanto, estabelecer, através da compa-
ração entre as diversas histórias contadas por esses mitos, uma ori-
gem comum, uma história, digamos, “inicial” ou “originária”, uma
origem comum a todos os mitos. O que significa dizer que há um
mito presente em grande parte das culturas e tradições, um mito
que seria o mito por excelência, “grande e perpétuo assunto da Mi-
tologia”. Trata-se da dupla evolução solar, do ciclo cotidiano e anual
do sol, o Deus de todos os astros, e principal ator na regularização e
manutenção da vida na Terra:
106
e o dia, a vida e a morte, um jogo a partir do qual a linguagem se
funda e que a determina e a estrutura. E uma vez que essa ilusão se
dissolve, a linguagem realiza por sua vez um ciclo, como o do sol,
que simboliza a alternância entre a luz e as trevas, pois a partir do
momento em que os mitos são despidos das ilusões representativas
que os produzem, eles aparecem, em toda clareza, como linguagem.
E a linguagem aparece como o meio de transporte que liga o homem
e sua essência ao mundo que o cerca. O mito é assim, Verbo, cria-
ção humana, criação linguística, obra da linguagem, e seu poder de
transcendência consiste unicamente no fato de que a linguagem per-
mite o acesso aos recônditos primitivos do homem, aos seus mitos
fundadores, naturais, mitos que não são mais capazes de estabelecer
o vínculo entre o homem e a natureza, mas somente indicar essa
distância que constitui o homem moderno, dotado de uma divina
inteligência, através da qual ele reconhece esses mitos como criação
da linguagem da qual ele agora pode se apropriar.
O estudo da mitologia nos mostra, portanto, esse vínculo entre
a linguagem e o mito, ou seja, o mito solar, mas nos faz também
tomar consciência de que esse vínculo natural entre a linguagem e a
natureza está para sempre perdido. Como então conciliar essas cons-
tatações aparentemente tão distantes: de um lado, a linguagem que
perdeu sua significação original, o vínculo que a ligava indissolu-
velmente à natureza; de outro, o mito original que guia e estrutura
a vida humana e igualmente sua relação com a natureza, descrita a
partir do ciclo do sol?
Na verdade, há apenas um mito, o mito originário, e neste a ver-
dadeira natureza do mito se revela, a verdadeira natureza da pró-
pria mitologia. Temos aqui, mais uma vez, a estrutura que compõe
a linguagem, como vimos no capítulo anterior, o acaso e o tempo,
que devem realizar a união entre aparência e essência da linguagem.
O mito originário, como o mito de Orfeu, por exemplo, é um mito
em que se narra um modo de ser tal que não é outro a não ser o do
próprio mito.
A mitologia grega tem também seu mito solar, mito particu-
larmente interessante, pois ele sintetiza a relação do homem com
107
o ciclo do sol, e esse “homem” é além de tudo um poeta. Trata-se
evidentemente do mito de Orfeu, que Blanchot,em seu L’espace lit-
téraire, transforma no mito literário por excelência. Há muito a ser
dito a respeito desse mito, mas, nesse caso, nos interessa a caminhada
que Orfeu realiza, a sua descida aos infernos em busca de sua amada
Eurídice. No ensaio de Blanchot, Eurídice, anônima e ausente, se
confunde em última instância com a própria linguagem. Orfeu não é
capaz de trazer sua amada ao mundo dos vivos, como o sol não pode
ocupar o céu ao mesmo tempo que a lua, assim como as palavras pa-
recem irremediavelmente escapar dos lábios que as pronunciam e se
distanciar inevitavelmente das coisas que elas devem supostamente
nomear. Assim como o pôrdosol evoca o momento em que o dia já
não é mais dia, mas a noite ainda não se instalou, um momento entre
dois, portanto, é também o momento em que o dia deve terminar, se
dissolver, tal como Eurídice desaparece diante do olhar apaixonado
de Orfeu, tal como a palavra se dissolve no ar, na musicalidade do
tempo que a transforma em silêncio.
A partir dessas considerações sobre a relação entre a linguagem
e o mito solar, propomos uma leitura, diríamos um passeio rápido
por alguns poemas nos quais Mallarmé trabalha essa questão. As-
sim poderemos acompanhar as transformações que a compreensão
mallarmeana do mito sofreu ao longo de alguns anos.
Os poemas são: “Les Fleurs” e “Hérodiade”. Com a comparação
entre os dois poemas podemos mostrar como a oposição fundamen-
tal que estrutura o mito solar aparece transfigurada nas duas obras.
LES FLEURS
108
Vermeil comme le pur orteil du séraphin
Que rougit la pudeur des aromes foulées,
109
A primeira versão desse poema data de 1864. Esta versão é a últi-
ma do poema, presente em Poésies, edições Deman, de 1899. Trata-se
da primeira aparição de Hérodiade, na poesia mallarmeana, persona-
gem que o poeta não pode nunca abandonar.
As flores são não somente símbolo da beleza, elas são também
sinônimo de poesia. No grego, flor é “anthos”, e essa palavra compõe
“antologia”, ou “florilège” no francês antigo, antologia de poemas. No
latim, “legere” forma “rassembler”, e “coligere”, “compor”, “colecionar”,
“colher”. Os verbos “compor” e “colher” têm, portanto, a mesma ori-
gem latina e unem mais uma vez as flores à poesia.
Como o próprio título do poema indica, as flores são aqui múl-
tiplas, “Les fleurs”, fundamentalmente duas: as rosas vermelhas e os
lírio brancos. A oposição entre essas flores, entre essas duas cores,
é evocada em diversos momentos, através de múltiplos vocábulos,
como “avalanches”, “la neige des astres”, “vierge”, “cygnes”, “divin”,
“blancheur”, “lune” (“avalanches”, “a neve dos astros”, “virgem”, “cis-
nes”, “divino”, “brancura”, “lua”); o vermelho é evocado através dos
termos “vermeil”, “aurore”, “rougit”, “chair”, “sang” (“vermelho”, “au-
rora”, “enrubescer”, “carne”, “sangue”), sem mencionar as palavras
cuja sonoridade sugere indiretamente essas cores, como “éclair”,
“scintillement”, “sanglotante”, “farouche”, “arrose”.
O poema evoca o dia, primeiro, o momento da criação, o
nascimento do sol, a aurora, esse momento preciso em que o céu
é invadido por uma multiplicidade de cores, em que o vermelho e
o branco se transformam no amarelo do céu. A aurora é também
a morte da lua, por isso “a lua chora”, a noite que já não é mais.
Se a aurora produz uma multiplicidade de cores, a noite é dupla,
suas cores são resultado de uma oposição, essencial e total, entre
o negro do céu e o branco dos astros. Assim, a noite é a “neve
eterna dos astros”.
É interessante notar as modificações que o poeta introduziu no
poema ao longo das suas reescrituras. O primeiro verso da primei-
ra estrofe, na primeira versão do poema, era “Mon Dieu, tu déta-
chas les grands calices pour / La terre encore vierge de desastres”
(Meu Deus, você desprendeu os grandes cálices para/ A terra ainda
110
virgem de desastres).Nesse verso a ambiguidade do vocativo, que
parece perder força com o verso que o segue, permite uma leitura
interessante. Deus criou o mundo fazendo com que os grandes cá-
lices se perdessem, transformando um mundo antes “puro”, a terra
virgem de desastres. No entanto, a preposição “pour” não possui
uma referência evidente no verso, o que deixa o leitor sem saber
que fenômeno é esse, em que os cálices se deslocam talvez, saindo
do lugar que lhes reservou O criador. Ainda sim, o vocativo mais
parece uma lamentação diante desse ato de criação, que impuro e
desastroso. Por isso o poeta implora uma redenção, “Ö mon père,
hosannah du profond de nos limbes!”:
5. Pois, não esquecendo ninguém em todo seu charmoso esforço/ Deste, mostrando-
-lhe seu dever sem mentira,/ Fortes flores versando como um perfume a Morte/ Ao poeta
entediado que a impotência corrói.
111
“rosa cruel”, como Hérodiade, de “sangue selvagem”, que faz do
poeta um ser totalmente desmunido. Assim, o poema, que terá
como título Hérodiade, parte dessa imagem tão badeleriana de
flores com perfume de morte, de sangue selvagem, de um verme-
lho sensual que contrasta com a impotência do poeta que a vida
selvagem e cruel não cessa de enfraquecer.
Na primeira versão de “Hérodiade”, o personagem é forte-
mente associado à flor, sobretudo à rosa, ou ao outono, estação
equivalente à aurora, vermelha. A cor branca aparece relacio-
nada ao cisne, alegoria do poeta, “Le cygne légendaire et froid”
(“cisne legendário e frio”), e é também associada à Hérodiade:
“étoile éteinte, et qui ne brillera plus” (estrela brilhante, que não
brilhará mais).
Nas versões posteriores do poema, que sofreu diversas alterações
durante toda a vida do poeta, permanecendo, no entanto, inacabado,
a aurora figura um momento privilegiado, a morte da noite e o nas-
cimento do sol, exatamente como em “Les Fleurs”.
112
et absolument indépendant de l’histoire”. A personagem não ti-
nha, portanto, nenhuma relação com a personagem bíblica Salo-
mé, figura recorrente na mitologia simbolista. Na história bíblica,
Salomé dança para seu pai, que, encantado, promete fazer o que
ela quiser. A moça persuadida pela mãe pede a cabeça do santo
João Batista numa bandeja.
Salomé, que no poema de Mallarmé é Hérodiade, nos remete
à sedução e ao poder da arte, mas ao mesmo tempo traz consigo
qualquer coisa de macabro e cruel, devido à morte e à violência a ela
associadas. Num esboço de prefácio para o poema, Mallarmé diz que
gostaria de isolar justamente esse aspecto assombroso da persona-
gem, o que a faz ser considerada um monstro, para expor aquilo que
de fato se esconde na história. Vejamos como Mallarmé compõe a
sua Hérodiade.
A personagem é descrita ainda com alguns traços da Salomé,
tão caros ao período: uma mulher fatal, sua beleza transborda a
sedução da arte e a morte. Beleza cheia de mistérios, fascinante:
“Mais n’allais-tu pas me toucher?” (“Não vais me tocar ?”), Hé-
rodiade pergunta a sua babá, que responde: “J’aimerais être à qui
le Destin réserve vos secrets” (“Eu gostaria de ser aquela a quem
o Destino reserva seus segredos”) (MALLARMÉ, 1998, p. 147).
Mas a sua beleza é solitária, ela é virgem, Hérodiade se nega a
experimentar “la vertu Fúnebre”, a virtude Fúnebre.
O poeta faz questão de manter o aspecto sedutor da perso-
nagem, que a relaciona à arte, mas acrescenta um dado que não
está presente na personagem bíblica ou nas Salomé retratadas
na época, o que se constata no trecho em que a babá pergunta
à personagem: “E para quem, devorada/ De angústia, guardas o
esplendor ignorado/ E o vão mistério de vosso ser?” Hérodiade
responde: “Para mim” (MALLARMÉ, 1998, p. 147). O aspecto
macabro da personagem bíblica é substituído pelo horror e pela
frieza de uma beleza que se mantém pura, que se resguarda, que
resiste ao desejo que quer possuí-la e dominá-la.
113
J’aime l’horreur d’être vierge et je veux
Vivre parmi l’effroi que me font mes cheveux
Pour, le soir, retirée en ma couche, reptile,
Inviolé, sentir en la chair inutile
Le froid scintillement de ta pâle clarté.7 (MALLARMÉ, 1998,
p. 147).
114
A partir dessa cena final poderíamos, talvez, supor que a babá,
que deseja apenas a imagem de Hérodiade no espelho, é como um
poeta em busca da poesia pura, apaixonada por uma imagem, como
Narciso. Pois o poema funciona também como um espelho que, mais
do que refletir uma imagem de Hérodiade, espelha uma imagem do
mito, reflete, pensa Hérodiade. Por isso, mais do que realizar uma
apologia da poesia pura, o poema desvela a nulidade de toda e qual-
quer tentativa nesse sentido. O nada que Mallarmé descobre ao es-
crever “Hérodiade” é justamente a inutilidade e esterilidade desse
poeta que, como a babá, guardião da beleza, quer tocá-la, possuí-
-la, mas ela insiste em lhe escapar. A virgindade de Hérodiade é a
sua própria morte, ela não vive, não transmite pureza, mas faz dessa
pureza sua esterilidade, sua nulidade, seu fim. Sua pureza contém o
germe da sua própria destruição. Ao resguardar-se, a personagem
se aniquila, como Narciso que, ao se contemplar, morre, e assim ela
demonstra a esterilidade de toda busca por uma poesia pura. Hé-
rodiade denuncia aqueles poetas que vivem absortos em ideias, que
admiram como idolatria uma pureza vã e estéril.
A Hérodiade de Mallarmé é construída como o oposto da Salo-
mé bíblica. Na sua origem bíblica, o caráter monstruoso de Héro-
diade, que Mallarmé queria eliminar, era o de provocar a morte do
outro. Salomé é a figura de uma mulher bruxa, de um desejo que pro-
voca a ruína dos homens, que os torna escravos, que provoca mortes.
No poema de Mallarmé, Hérodiade é outro mito, o oposto, o mito
da virgem pura e cândida, guardiã da verdade. Se o caráter sedutor de
Salomé provoca a ruína alheia, o mito da pureza, encarnada através
da virgindade de Hérodiade,é a sua própria. Assim as características
que relacionavam a personagem à arte foram mantidas e reforçadas.
Mas se na Salomé bíblica, a beleza da arte seduzia e provocava a
morte, em Hérodiade, a morte aparece como o desejo de preservar a
sua pureza. Mas por queessa inversão? Por quea ruptura tão brusca?
A resposta para tal pergunta pode estar na compreensão que
Mallarmé tem do mito. O mito como parte integrante, elemento
fundamental da linguagem. Para Mallarmé, a importância do recur-
so literário à mitologia reside no fato de que a mitologia fornece
115
à poesia muito mais do que um conjunto pronto de histórias que
encarnam a história do homem e suas transformações, o mito é o
símbolo fundamental da própria linguagem e de sua necessidade. A
verdade da linguagem reside na sua predisposição a se tornar mito,
na sua estrutura simbólica. O que o mito desvela ao poeta é a capa-
cidade da linguagem de simbolizar, de criar significações e contar
histórias.
No entanto, o mito é um símbolo pronto, como que estanque e
fechado num conjunto de significações limitadas que ele pode pro-
duzir, enquanto a linguagem, em princípio, com suas vinte e quatros
letras, encerra um infinito de possibilidades. Assim, Mallarmé não se
limita a elogiar e utilizar os mitos da cultura ocidental, ele empre-
ende também uma crítica ao uso utilitário do mito, como podemos
observar no artigo “Richard Wagner. Devaneio de um poeta fran-
cês”, de Divagações.
Nesse texto, após um elogio à ideia de arte total wagneriana,
que muito influenciou Mallarmé no seu ideal estético, principal-
mente no que diz respeito ao Livro, o poeta se desculpa por não
fazer parte daqueles que louvam a arte de Wagner. Mallarmé re-
prova em Wagner o fato de que este teria “entronizado a Lenda”,
ele colocaria diante do seu espectador um espetáculo dito “das ori-
gens”, que não trata de mitos gregos, mas germânicos. Porém, nessa
busca pelo primitivo, num espetáculo em que tudo banha em águas
primitivas, ele não chegaria de fato à fonte. Mallarmé reprova em
Wagner o fato de que esse transforma deuses e mitos em objetos de
adoração, “quase um Culto!” (MALLARMÉ, 2003, p. 153). Trata-
-se de uma encenação de um mito, como se ele contivesse o segredo
de nossas origens.Como vimos, a partir da leitura de Les Dieux
Antiques, o mito deve mostrar-se enquanto tal, desvelar seu modo
de constituição, expor-se como ficção, mas Wagner os transforma
em objeto de culto. Grande problema de Hérodiade, idolatrada e
estéril em sua pureza.
O poeta sugere uma presentificação mais adequada ao espírito
francês, “imaginativo e abstrato, portanto, poético”. Segundo o poeta,
seu século e seu país, que exaltam Wagner, “dissolveram através do
116
pensamento os mitos, para refazê-los.” Nenhuma anedota de qual-
quer tipo que seja teria sido poupada nesse processo. O espírito fran-
cês não suportaria ver em cena um desfile de mitos, ao menos que
117
O que Mallarmé aprecia na mitologia é o que ela tem em
comum com a poesia. Os mitos são nomes e narrativas que con-
cernem a natureza, mas que com o tempo perdem sua relação
com essa. Assim, a mitologia aparece como uma forma de ficção.
Para o poeta, Wagner pretendia despertar fé no espectador, ele
buscava a veracidade da ação, bem como o princípio da veros-
similhança. Ele acusa Wagner de fabricar “a Ficção” a partir de
um elemento grosseiro: “porque ela se impõe mesmo e de um
só golpe, obrigando a crer na existência dos personagens e da
aventura – de crer, simplesmente, nada mais” (MALLARMÉ,
2003, p. 154).
O poeta critica, a partir disso, o papel assumido pela música no
drama wagneriano. Esse conceito é, segundo ele, “autoritário e ingê-
nuo”, isso porque para Wagner a música deve ajudar a contar uma
história, ela deve auxiliar o drama, corresponder-lhe: “o drama pes-
soal e a música ideal, ele efetuou a união” (MALLARMÉ, 2003, p.
155) Assim, a música serve para mover as paixões, comover, ela seduz
e contribui para que o espectador “acredite” no que vê, se envolva
com a história. Ela contribui para a verossimilhança, ela ajuda a criar
uma ilusão. A música se torna um meio de encantamento para “vio-
lentar sua razão”.
Em Nietzsche contra Wagner e O caso Wagner Nietzsche endereça a
Wagner uma crítica que se tece exatamente nos mesmos moldes que
a crítica mallarmeana ao músico.
O rompimento entre Nietzsche e Wagner não se deve apenas pelo
fato de o último ter se convertido ao cristianismo, mas sobretudo no
tratamento que o músico dispensava aos mitos, e consequentemente
na maneira como Wagner subordinava a música à construção de mi-
tos edificantes e redentores. Certamente Wagner foi um dos respon-
sáveis pela renovação do mito no século XIX, e justamente por isso,
Nietzsche é o primeiro a reconhecer a importância do músico no seu
tempo, sua capacidade em se mostrar filho de seu próprio tempo. No
entanto, ao filósofo não cabe apenas descrever sua época, ele deve
também superá-la, e Nietzsche o faz quando deixa de admirar Wag-
118
ner, quando compreende que criticá-lo seria ultrapassar e deixar para
trás o que sua época tinha de mais negativo e nefasto.
Um bom exemplo do que Nietzsche reprova em Wagner pode
ser observado no comentário de Sigfredo. Wagner teria acredita-
do, durante metade de sua vida, na revolução, e procurou encarnar
em seu personagem a figura do revolucionario típico. Para Sigfredo
todos os males do mundo provêm das convenções, da moral e dos
costumes, como diriam os maiores “ideólogos da revolução”. Todo
o mal do mundo repousa sobre as instituições, as leis e os costumes
do mundo antigo que devem, portanto, ser destruídos. Para eliminar
toda a desventura do mundo, para suprimir a velha sociedade basta
eliminar as convenções, a moral, a tradição etc. E é isso que Sigfredo
faz. Seu próprio nascimento é um atentado à moral, pois é filho de
um adultério e de um incesto. Criação wagneriana que não pertence
à lenda. Assim Sigfredo vive destruindo tudo o que não lhe agrada,
mas sua grande obra foi a redenção de uma mulher. Assim, Sigfredo,
o revolucionário, buscando destruir o velho mundo e suas institui-
ções, é apenas capaz de realizar um elogio do amor livre, que deveria,
sozinho, ser capaz de arruinar toda a velha moral.
Por isso, se traduzíssemos os mitos de Wagner para a realidade,
para o mundo moderno, veríamos que seus personagens não passam
de burgueses. Eis o que Nietzsche lhe reprova. Eis o que nos conta
um drama de Wagner: pequenos problemas de pequenos burgueses.
Suas heroínas são todas como Madame Bovary, inclusive se Flaubert
as traduzisse para o escandinavo ou cartagenês, se as mitologizasse,
elas poderiam certamente figurar num drama wagneriano.
Por todas essas razões, entre Wagner e Bizet, Nietzsche prefere
o segundo. Para o filósofo a música de Bizet é leve, conta com a
inteligência de seu ouvinte, com o qual Wagner é sempre descortês,
sua música ingênua, seu grande estilo, são uma moeda falsa. Wag-
ner procura se mostrar ausente de um mundo corrompido, repetindo
sempre as mesmas palavras, “felicidade”, “pureza”, “devoção”, desco-
nhecendo a verdadeira natureza do amor, que aparece em Bizet em
toda a sua verdade “cínica, ingênua, cruel”. Onde o destino longe
oferecer redenção aparece como uma fatalidade. O que falta a Wag-
119
ner é a ironia com a qual Bizet trabalha um material musical em
ruínas, desgastado, vinculando esse material ao mito também mais
desgastado pelo romantismo, o do amor paixão. Em Wagner o amor
livre aparece como a única possibilidade de redenção burguesa, já na
Carmem de Bizet, o amor aparece como vimos, de acordo com sua
própria natureza, cruel, cínico, como uma fatalidade, um mito em
vias de esgotamento, em vias de dissolução. Um mito que se mostra,
portanto, como tal, através da ironia, por isso Bizet é leve e Wagner,
um mentiroso, hipnotizador.
Vemos como a crítica de Mallarmé e a de Nietzsche contra Wag-
ner se cruzam. Para o poeta, um escritor não deve de maneira nenhu-
ma esperar e construir sua obra de maneira a suscitar nos seus espec-
tadores ou leitores alguma espécie de crença, ele não deve alimentar
ilusões, não deve criar mitos. Mallarmé desaprovava em Wagner seu
desejo de que a sua história fosse crível, que ela parecesse ou que
tivesse o intuito de parecer verdadeira, pois isso contribui para criar,
em torno dela, uma aura de adoração. Nietzsche, da mesma maneira,
critica Wagner pela sua pretensão em ser verdadeiro, em oferecer ao
espectador uma espécie de redenção, sendo que sua obra, na verdade,
é tudo menos verdadeira. Dessa maneira, não se trata de oferecer
ao leitor como Wagner busca ofertar aos seus ouvintes uma espécie
de redenção, mas sim de despertar-lhes à consciência crítica. A ver-
dadeira obra de arte não deve criar mitos, fazer crer e ter ambições
religiosas, ela deve, antes de mais nada, endereçar-se à inteligência de
seus leitores, ouvintes ou espectadores.
Assim, para Mallarmé, a poesia deve – como os estudos de mi-
tologia de Cox ou de Müller –, operar uma desmontagem do mito,
indo verdadeiramente até suas fontes. Uma obra deve se realizar a
partir da “tese latina da divindade da inteligência”, ou seja, ela não
deve procurar restituir o vínculo original entre a linguagem e a na-
tureza, mas compreender que a inteligência deve estar voltada para o
presente. Assim, trata-se de mostrar e demonstrar que um mito não
passa de uma ficção, que nada no mito é capaz de nos levar às nossas
origens ou garantir uma cosmologia, ou oferecer alguma espécie de
redenção. Muito pelo contrário, o mito é apenas capaz de nos desviar
120
da crítica, de sustentar crenças. Por isso, render-se ao presente signi-
fica mostrar de que maneira nosso presente foi construído por mitos.
Ou seja, na obra de arte verdadeira, a ficção deve se mostrar en-
quanto tal, a obra deve realizar essa operação de desvelamento do
mito, que é também o desvelamento da verdadeira natureza da obra
de arte, que é, na verdade, ficção.Tudo o que podemos conhecer atra-
vés do mito é o caráter contingente da linguagem e sua predisposição
natural para construir ficções. Assim, uma vez que nos dirigimos à
origem dos mitos, encontramos seu verdadeiro fundamento, outro
mito sobre uma linguagem que corresponderia de fato à natureza,
mas que não é mais a linguagem que temos hoje, ao nosso dispor.
Por isso, entregar-se ao presente significa não mais tentar restabe-
lecer os vínculos que uniam a linguagem e a natureza através do
mito, mas sim reafirmar a natureza mesma da linguagem, arbitrária
e contingente, e criar a partir do material que é dado ao poeta pelo
seu próprio tempo.
121
teoria da ficção. Vimos que a crise do Nada marca essa concepção,
a de que todo mito não passa de uma ficção, de uma mentira que
esconde o Nada que a gerou. Nesse momento buscaremos mostrar
que há uma concepção da linguagem diretamente dependente de
um fundamento estético, uma linguagem que se define a partir de
sua capacidade de tornar-se bela. Vejamos o que isso significa para
Mallarmé.
O mito original, que representa o ciclo do sol, como já mencio-
namos, mais do que colocar em cena uma contradição irreconciliável
entre a vida e a morte, entre a luz e as sombras, ou ainda, entre o
sol e a lua, encena o desvelamento do processo de constituição do
mito, o desvela como obra da linguagem. O mito que encena o ciclo
do sol e suas variantes é o mito por excelência, portanto, narra a si
mesmo, se mostra enquanto mito. Por essa razão, Mallarmé elegeu
esse mito como o mito de sua predileção. Essa escolha é perceptível
na preferência clara do poeta por momentos do dia em que o sol e a
lua parecem se encontrar no céu, como o pôr do sol e a aurora, mo-
mentos em que as cores do céu se multiplicam e se misturam. Nesse
momento duplo – ambíguo, entre dois –, o que se enfatiza é o caráter
efêmero dessa passagem de um momento para o outro, processo que
é o desvelamento do mito como ficção, produto simbólico da lingua-
gem significante em busca de significação.
No rascunho de escritura de “Hérodiade”, como testemunham as
cartas desseperíodo, a cor vermelha da aurora e da rosa é o símbolo
por excelência ao qual o poeta pretende vincular sua criação. Em
carta a Eugène Lefébure o poeta afirma:
A mais bela página de minha obra será aquela que contiver este
nome divino Hérodiade. […] O pouco de inspiração que tive, eu
devo a esse nome, e creio que se minha heroína se chamasse Sa-
lomé, eu teria inventado essa palavra sombria e vermelha como
uma romã aberta, Hérodiade. De resto, eu tenho a fazê-la um ser
puramente sonhado e absolutamente independente da história.
(MALLARMÉ, 1998, p. 669)
122
O personagem, que no poema vive sua própria morte, fascina
Mallarmé pela riqueza metafórica e sonora de seu nome. “Héros” +
“díade”, duplo herói, ao mesmo tempo virgem, branca como um lírio
e vermelha como uma romã aberta. Hérodiade figura um modo de
ser contraditório que estrutura a ficção. Vimos até agora algumas
das formas que a contradição pode assumir: a fala, o acaso, o próprio
mito. Embora ela não seja como as figuras femininas de Baudelaire,
a prostituta ou a heroína lésbica, sua virgindade é também signo da
impotência masculina. Por isso ela está na origem da crise vivida pelo
poeta, provocada pela sua incapacidade em reconciliar essecaráter
duplo da personagem.
123
O mesmo pode ser dito se atentamos para o poema mallarmeano que
leva esse nome, “Azur”. Aqui encontramos o seguinte verso: “De l’éternel
Azur la sireine ironie / Accable, belle indolemment comme les fleurs”
(Do eterno Azur a serena ironia/ oprime, bela indolentemente como as
flores ). O ideal é, assim, ferido pela ironia, que, como as flores, possui
uma beleza indolente. Beleza mortal que, como o ideal, assola e perturba o
poeta, oprime e suprime sua capacidade de ação. Assim a súplica do poeta
que se dirige à matéria, única salvação diante de um ideal inatingível: “Le
Ciel est mort. – Vers toi, j’accours! Donne, ô matière, L’oubli de l’Idéal
cruel et du Péché" é inutil, "En vain!"e o poeta conclui "l’Azur triomphe
[…]". (– O céu está morto – Corro em sua direção! De, ô matéria, o es-
quecimento do Ideal cruel e do Pecado”). Súplica que se mostra vã e que
leva o eu lírico a concluir que o Azur continua triunfando.
Hérodiade não se inscreve, portanto, entre a dualidade puramen-
te contraditória do “spleen” e do ideal, sua natureza é mais complexa,
misteriosa diríamos. Ela figura não a beleza ideal em sua relação direta
com a pureza, mas sim a impossibilidade de uma beleza eterna e pura.
124
Hérodiade parece, nesse momento do poema, dialogar com a sua
ama que teria profetizado que, se a personagem se desvelasse, se des-
nudasse diante de um mortal, isso seria a sua ruína, provocaria a sua
própria morte. Mas Hérodiade parece desacreditar essa “profecia”
evocando a “maldade” da mulher “nascida em séculos malignos”.
Para a maioria dos comentadores, Hérodiade é o símbolo do ideal da
poesia pura. Segundo Friedrich (1999, p. 155), por exemplo, o poema
Hérodiade faz parte de um movimento, presente na poesia moderna,
que o crítico nomeia “desumanização”, que consiste em um distancia-
mento constante da vida natural, numa recusa por parte da poesia do
fato vivido e de sua confissão. Segundo o autor, Hérodiade teme seu
corpo e toma consciência de seu destino: “tornar-se um ser de pura ide-
alidade”. Salomé recusa a natureza e entra na “noite branca de blocos de
neves cruéis”, figurando uma espiritualidade fatal à vida onde subsistiria
apenas a dor de não poder transcendê-la completamente.
Se Hérodiade fossede fato um ser puramente ideal, que recusa o
mundo e tudo o que é humano em nome do Ideal, como poderíamos
interpretar a metáfora da “romã”, sombria, vermelha e vivaz? Onde esta-
riam esse aspecto sombrio, a força, a sedução e a volúpia que a imagem
da romã aberta evoca? Para compreender essaproblemática examinemos
os manuscritos em que Mallarmé trabalhava no ano de sua morte.
suinte
viole11 (MALLARME, 1998, p. 1083)
escoa
estupra.
125
Hérodiade aparece como o contrário do que ela evoca na versão
publicada do poema “Scène d’Hérodiade”. A cor vermelha aqui se
faz presente, ela é o sangue versado na defloração da personagem,
sangue que Hérodiade versa também ao provocar a morte do santo
João Batista. Lembremos que, no mito bíblico de Salomé,a perso-
nagem dança para seu pai que, completamente seduzido pela sua
beleza, propõe realizar todos os seus desejos. Sob a influência de sua
mãe, Hérodiade pede a cabeça de São Batista que lhe é servida numa
bandeja. Essa morte é interpretada na bíblia como um prenúncio
da morte de Jesus. No mito bíblico é a arte, a beleza que seduzem e
levam à morte do santo. Esse caráter macabro de Hérodiade é resga-
tado por Mallarmé nos últimos manuscritos do poema.
l’ambiguité d’Hé-
rodiade et de sa
danse...
12 A ambiguidade de Hé-
rodiade e de sua
dança...
126
entre o Ideal e a matéria aparece na metáfora da decapitação do
Santo, que decorre da dança. A decapitação do Santo aparece
como signo do desacordo entre corpo e pensamento, ele equi-
vale ao suicídio de Hérodiade para manter sua pureza. Ela é seu
par feminino, e tanto Hérodiade quanto o Santo, no suicídio
ou no assassinato, são punidos pelo excesso de idealidade, pela
recusa da materialidade. A dança, enquanto realização corpo-
ral, ação do corpo no mundo, contrariamente à virgindade, que
recusa o corpo e a ação no mundo, é também a figura de uma
possível harmonia entre o corpo e a mente, quando essa se torna
simples corpo e não mais símbolo de abstração, de um ideal,
mental e incorporal. Aqui, a cabeça, que quis pensar mais alto
e desprender-se do corpo, é controlada por uma Heródiade que
faz do corpo o espaço de manifestação de outra ideia, não mais o
Ideal puro e abstrato, mas uma arte que toma corpo, que é corpo,
que se desvincilha de todo ideal.
Et ma tête surgie
[...]
Les anciens désaccords
Avec le corps.13 (MALLARMÉ, 1998, p. 1114)
127
joiaillerie-
et vie
étoile et chair
mariée.14 (MALLARMÉ, 1998, p. 1085)
14. joalheria-
e vida
estrela e carne
casadas.
128
do vazio que ela mascara, o único caminho na direção do que não se deixa
nomear, do que não se deixa tocar. Assim, a resistência de Hérodiade, que
prefere morrer a ser tocada, é, na verdade, uma defesa contra um vazio
muito maior do que a morte, diante do qual já veria mais beleza alguma,
diante do qual só nos restaria o temor diante do Nada.
Poesia e Beleza são sinônimas para Mallarmé. Vimos aqui algu-
mas das séries de metáforas e questões que a relação entre as flores e
o azur pode encarnar. Das cores, da rosa e do lírio, em contraponto
ao azul ideal, Mallarmé passa pela exploração da aurora, da vida, san-
gue, estupro, matéria, até chegar à morte. Figurações de uma mesma
oposição entre matéria e ideal, corpo e mente, sensação e pensamen-
to. Como Baudelaire, Mallarmé também entendia que a poesia só
poderia começar ou recomeçar quando se confrontasse com os ideias
do ascetismo católico que marcaram o início do século e do roman-
tismo francês. A novidade é que, em Mallarmé, o Nada ganha um
peso que ainda não tinha na poesia baudelariana, e é essa descoberta
que o leva a repensar o Ideal, a Poesia e a Beleza.
A descoberta do Nada é contemporânea da escrita de Hérodiade e
também contemporânea de uma outra descoberta, a da Beleza.Em carta a
Henri Cazalis, de 14 de maio de 1867, o poeta declara: “Eu fiz uma desci-
da bem longa ao Nada para poder falar com certeza. Só há a Beleza; – e ela
só tem uma expressão perfeita, a Poesia” (MALLARMÉ, 1998, p. 715)
Em Notes sur le Langage o poeta distingue dois momentos na aná-
lise da linguagem, um é relacionado ao espírito, o segundo diz respeito
à beleza. Ele destaca a necessidade “de estudar as coisas nelas mesmas”.
129
que ele chama de “Linguagem Poética”. Se a linguagem é definida a
partir de sua relação com o Espírito, a linguagem Poética se distingue a
partir de sua capacidade de tornar-se Beleza. A linguagem deve ser ex-
plicada com relação ao espírito, ela deve ser a sua própria demonstração.
Já a linguagem poética se divide em, de um lado, linguagem; de outro,
Verbo. Se a linguagem poética tende a tornar-se bela, transfigurar-se em
beleza, o Verbo apenas exprime a beleza. E essa distinção é fundamental
para compreendermos o que Mallarmé entende por Poesia.
Os manuscritos deixados por Mallarmé não nos permitem precisar
como seria esse Tratado que se dedicaria à análise e definição do Verbo
e que seria distinto do que o poeta entende por Linguagem. Podemos
inferir, a partir disso, que existe uma distinção clara para o poeta entre
uma linguagem, que ele nomearia o Verbo, capaz de exprimir a Beleza,
e outra linguagem, poética, com a capacidade de tornar-se Bela, na
qual não existiria mais distância entre a expressão e seus meios, entre
o verbo e o dizer, entre o dito e sua forma. Vimos, no Capítulo 4, que
o Verbo se torna Linguagem através da Ideia e do Tempo, formas de
uma “negação idêntica à essência”, do “devir”. Assim, o Verbo, por ser
capaz de exprimir o Belo, pode se tornar Linguagem, pois na Lingua-
gem poética parece não haver distinção entre linguagem e beleza.
Retomemos o poema. Diante de um espelho, Hérodiade se pergun-
ta: “Sou bela?”. Hérodiade é fruto da fantasia de um poeta que procura
nas palavras a manifestação da própria Beleza, ela é uma ode à própria
poesia, manifestação de um desejo puro, de um desejo de poesia pura e
de pura poesia. Ela é a encarnação do desejo de criação de toda uma
geração de poetas atormentados por um Ideal, um ideal de algo como
uma “comunhão” poética. Nas primeiras gerações românticas, tanto a
comunhão política quanto a amorosa eram escritas em forma de poesia;
a palavra do poeta era expressão do seu desejo amoroso e era a voz que
deveria guiar o povo. Esse ideal de harmonia entre os desejos mais par-
ticulares e mais universais do homem encontrava na poesia o seu lugar.
Na primeira publicação do poema, Mallarmé o intitulou “Scène”,
mas em outro manuscrito, publicado por Garnier Davis, em 1959,
recebe o título “Les Noces d’Hérodiade. Mystère”. Ora, seria mesmo
misterioso imaginar as bodas de Hérodiade, que preferia morrer a
130
se deixar tocar. Esse trecho do poema, inacabado, seria, no entanto,
o indício de que Hérodiade provavelmente não teria permanecido,
digamos, pura. O poema seria assim animado, muito mais do que
pelo simples desejo de poesia pura, pelo desejo de realização de uma
união, do que Mallarmé chama de “noces” ou, em muitos outros po-
emas, como Um lance de dados “fiançailles”. Essa ideia de comunhão
poética, de união, diríamos, se torna clara quando examinamos o tex-
to, também inacabado, “Épouser la notion” (“Esposar a noção”). O
próprio título já indica que quando Mallarmé pensa em união, ele
tem em mente a realização poética de uma ideia. Nesse texto lemos:
il ne lui
faut pas moins
qu’épouser la notion, lui-
faute d’une dame
à sa taille15 (MALLARME, 1998, p.1063)
E em seguida:
en vain
lui faisait-on
entendre
qu’elle
n’existe que si vierge –
Comment ?
disait-il –
Comment?16 (MALLARME, 1998, p. 1063)
131
Esse homem que deve esposar a noção parece ser o próprio po-
eta, que não encontra uma dama à sua altura. Aqui, a ideia aparece
claramente como o nome do feminino, uma ideia de feminino que
substitui todas as mulheres reais. O poeta busca, em seu poema, a
noção pura, ciente de que não haveria mulher neste mundo capaz de
satisfazer suas expectativas ideias. No entanto, no segundo fragmen-
to, uma contradição aparece, a noção, a ideia, única dama à altura
das pretensões do poeta, só existe quando é virgem, o que o deixa
perplexo. Ele, então, se pergunta como isso seria possível. Como uma
ideia virgem, pura, se mantém enquanto tal, não se deixa corromper
ao passar para o papel, ao ganhar forma, vida, concretude? Como
ela pode não se transfigurar, não se transformar? Isso seria ignorar
a materialidade mesma da palavra? O caráter negro e obscuro das
letras sobre a página branca.
Assim, a virgindade, a pureza, parece ser a razão mesma que
impede qualquer realização de um “ideal”, qualquer concretização da
ideia. Eis o que encontramos em outro fragmento do mesmo poema:
“olhar ele julga que ela/ não existe/ é isso”.
A questão com a qual Mallarmé se debate na escrita de Héro-
diade é a da poesia pura. Hérodiade é uma virgem, símbolo da po-
esia pura, e da mais alta expressão da beleza, pois sua pureza seria
a manifestação mesma de um ideal poético. Mas esse ideal vai se
mostrando frio, estéril, a tal ponto que ele provoca uma crise de im-
potência no poeta. Ela terminaria numa aporia, “e se a beleza fosse
a morte?”, colocando uma contradição para a qual Mallarmé, nesse
momento, não consegue imaginar uma saída.
Por outro lado, Hérodiade é pura demais para este mundo, por
isso ela deve morrer, como um ideal que pelo excesso de luz cega
todos os que tentam dele se aproximar. Hérodiade é a beleza que
se realiza apenas na morte. Na sua morte, mais uma vez é o Nada
que se afirma, que parece ser o único resultado da busca pelo “ideal”.
Assim, esse ideal se mostra como pura idealidade, abstração vazia e
irrealizável. Mesmo Hérodiade, no auge de seus delírios de pureza,
na “Scène”, declara que conhece a nulidade de seu sonho. Hérodiade
é, portanto, pura negação, a expressão mais crua da descoberta do
132
“Nada”, que se exprime, num primeiro momento, como um desejo,
de antemão irrealizável, de realização de uma poesia pura. Desejo de
criação de uma beleza que ofereça redenção diante da ausência de
sentido de todo e qualquer ideial. Em outro momento, Hérodiade
desvela a nulidade de todo ideal de pureza, ela desvela, como o mito,
seu caráter ficcional. Assim, os ideais de pureza que guiaram a poesia
do primeiro romantismo são desmontados para aparecerem como
quimeras, mentiras, ficções, não mais sublimes, mas frias e estéreis.
Dessa maneira é toda a poesia pura que aparece como um ideal vão,
uma construção literária, imaginária, ficcional, enfim, um mito.
133
VI
O TEATRO DA IDEIA OU A LINGUAGEM EM AÇÃO
136
porém em seu tempo as coisas são muito distintas. Os próprios po-
etas deixaram o palco, Mallarmé cita o exemplo de Gautier, para
quem o teatro “é uma arte tão grosseira... tão abjeta”, uma ocupação,
uma distração, sem relação nenhuma com a Arte. O teatro se tornou
um fenômeno moderno, urbano, um evento social como tantos ou-
tros, uma ocupação mundana, um divertimento. Ir ao teatro passou
a fazer parte das atividades dos moradores de grandes cidades como
Paris, “Não se passa menos que pessoas advenham, vivam, residam
na cidade: fenômeno que não cobre, aparentemente, mais que uma
intenção de ir algumas vezes ao espetáculo” (MALLARMÉ, 2010,
p. 132). O poeta sepergunta com que objetivo, por que razão essas
pessoas se mobilizam para ir ao teatro.
137
deste, e, assim, criam uma “arte oficial”, “que podemos chamar de
vulgar”. Por essa razão, o poeta declara que não frequenta o teatro ou
frequenta muito pouco.
No entanto, se a situação do teatro deixa a desejar, não se deve
somente à falta de talentos e aos interesses financeiros em jogo. Os
críticos também são responsáveis, pois não fazem seu trabalho e,
assim, encorajam uma produção medíocre. Segundo o poeta, a crítica
cede à atração exercida pelo teatro, que mostra somente uma repre-
sentação para aqueles que não preferem simplesmente ver as coisas,
olhá-las face a face, diretamente. Ao aceitar e difundir a ideia de
teatro que mimetiza e reproduz o mundo exterior, a crítica contri-
bui para sua banalização, pois lhe caberia denunciar a banalidade
propondo verdadeiras reflexões sobre a arte teatral. Se o teatro só se
preocupa em divertir e reproduzir fatos do cotidiano é porque seu
público é burguês e seus críticos, simples jornalistas. Os poetas estão
excluídos da crítica, assim como da vida artística de seu tempo, e
como os poetas estão ausentes do teatro, a poesia, por consequência,
está ausente da cena artística pública. O que falta ao teatro é, portan-
to, poesia, uma operação complementar à representação teatral que
pode criar outro teatro, não mais este que é espaço do banal, mas um
que seja como “uma peça escrita no fólio do céu e apresentada com o
gesto de suas paixões pelo Homem” (MALLARMÉ, 2010, p. 111).
Ora, o teatro é uma arte objetiva, ao contrário da poesia ou do
romance, que apresentam personagens, diálogos ou ideias através da
simples descrição linguística no suporte do papel, o teatro apresenta
seus personagens que falam e agem diante dos olhos do espectador.
O teatro, além de apresentar fatos e ações, é capaz de objetivamente
apresentar cenas íntimas e momentos “subjetivos”. No teatro, tudo
é ação, todo sentimento e páthos do personagem se transforma em
ação, por isso ele oferece ao poeta a ocasião de refletir sobre o modo
de apresentação dos objetos e dos acontecimentos e paixões na po-
esia, ele nos faz pensar sobre a possibilidade ou o caráter da objeti-
vidade lírica, ele torna possível a reflexão sobre a natureza do gesto
poético.
138
Nas suas reflexões Mallarmé aponta alguns traços fundamentais
desse teatro, que é também inspirado nas páginas do céu:
139
ser mais que simples enunciação ou descrição, e, sim, pura ação, um
verdadeiro acontecimento.
Entretanto, o modo de existir do teatro é muito particular e por
isso ele se assemelha às outras artes que Mallarmé analisa, como a
música, por exemplo. Uma peça existe enquanto é representada num
momento determinado. Como um relâmpago, ela é, existe, mas se
desfaz no ar ao apresentar-se. Mallarmé também queria formalizar
esse elemento em sua poesia, certo caráter evanescente de ser de tudo
o que o é no tempo e através do tempo. Assim, há nas análises e re-
flexões de Mallarmé sobre o teatro a busca do poeta por uma forma
ideal, dupla, que fosse ao mesmo tempo concreta, porém momentâ-
nea, e, portanto, evanescente.
Ao tratar do balé, a “forma teatral da poesia por excelência”,
Mallarmé expõe suas ideias sobre a cena teatral, ou como ela de-
veria ser, se a poesia se tornasse teatro, se ela se unisse ao teatro.
Como no teatro, no balé “(...) nada acontece, a não ser a perfeição
dos executantes que valha um instante de exercício anterior do olhar,
nada [...]” (MALLARMÉ, 2010, p. 125). A enunciação do poema é
no teatro ação, e no balé, gesto. O que Mallarmé procura no balé é
uma forma de exposição, uma formalização, uma ideia de forma que
poderia garantir para a poesia a mesma gestualidade do balé, pois
para o poeta, como veremos, a dançarina anuncia a ideia, ela é signo,
alegoria, o balé seria assim o teatro por excelência:
[...] tão somente através do rito, lá, enunciado da Ideia, não parece a
dançarina metade o elemento em causa, metade humanidade apta a
aí se confundir, na flutuação de devaneio? A operação, ou poesia, por
excelência e o teatro. (MALLARMÉ, 2010, p. 112)
140
Dança contém uma experiência relativa a seu grau estético, uma sa-
gração se efetua enquanto prova de nossos tesouros” (MALLAR-
MÉ, 2003, p. 163). A dança, ao contrário do teatro, é abstrata, ela
representa ideias, noções; a dançarina é impessoal, apenas um corpo,
ela não realiza ações, não participa de diálogos, ela é apenas instru-
mento da ideia; como as letras, ela executa, melhor seria dizer, ela é o
gesto mesmo da ideia:
A saber, que a dançarina não é uma mulher que dança, por esses
motivos que ela não é uma mulher, mas uma metáfora resumindo
um dos aspectos elementares de nossa forma, gládio, taça, flor,
141
etc., e que ela não dança, sugerindo, pelo prodígio de encurtamen-
tos ou de elãs, com uma escritura corporal o que se precisaria
de parágrafos em prosa dialogada tanto quanto descritiva, para
exprimir, na redação: poema liberto de todo aparelho do escriba.
(MALLARMÉ, 2010, p. 121)
142
um teatro da ideia, o pensamento em movimento, a linguagem
que, como uma dançarina, impessoal, simples signo, gesto puro da
ideia no espaço: “o corpo do balé, total não figurará ao redor da
estrela (pode-se melhor nomear!) a dança ideal das constelações”
(MALLARMÉ, 2010, p. 120).Toda a plasticidade do poema, de-
senvolvida através das imagens no espaço, não é outra coisa senão
um balé, uma coreografia de ideias, que se faz com as letras no
espaço da página.
Como no teatro toda interioridade subjetiva aparece objeti-
vada através de gestos, diálogos e ações. Ao buscar no teatro um
modelo de arte, Mallarmé estaria à procura de uma arte objeti-
va, concreta. Ele estaria à procura de uma forma capaz de fazer
com que a poesia escapasse da universal reportagem, ou seja, da
representação. Trata-se de pensar como o teatro pode fornecer à
poesia um modelo de objetividade, pode tornar a poesia capaz
de igualmente apresentar diante dos olhos de seus leitores, sem
recurso à cena evidentemente, ações e gestos de maneira direta.
Assim, Mallarmé procuraria, ao se voltar para o teatro, uma per-
formatividade que a linguagem em si mesma deveria ser capaz de
assegurar. No entanto, vimos que as reflexões de Mallarmé vão
muito além do caráter objetivo da cena teatral, pois o que está
em questão para o poeta é pensar qual o modo de ação próprio da
obra de arte, é repensar a noção mesma de objetividade. Por isso,
Mallarmé descontrói a objetividade teatral e mostra que, em to-
das as artes, mas principalmente no teatro, porque essa arte pare-
ce ser a mais objetiva, toda objetividade, toda encenação, é sempre
uma ilusão. Uma vez terminado o espetáculo, os mortos retornam
para receber os aplausos do público, os inimigos se colocam lado
a lado, promessas, gestos, ações, tudo desaparece e finalmente a
cortina se fecha.
Por isso, Mallarmé parece preferir o balé. Nele a objetividade do
teatro é reduzida, não se trata mais da encenação e mimese de ações
como se elas fossem reais. A imitação já não interessa no balé, que tem
sua gramática própria, tradicional ou não, onde tudo é, a princípio,
puro movimento. A bailarina não é uma mulher, ela aparece como
143
simples veículo, como uma pluma, ela é o meio através do qual uma
história é contada, ela empresta seu corpo, ela não tem voz, porque
no balé as palavras não são necessárias. A ação é reduzida ao movi-
mento, ao puro gesto da Ideia. Paira sob o balé certa imprecisão e
vagueza que parecem agradar particularmente a Mallarmé. Nele a
linguagem não é mais referencial ou representativa, mas puramente
gestual.
A cena não ilustra mais que a ideia, não uma ação efetiva, num hí-
men (de onde procede o Sonho), vicioso mas sagrado, entre o desejo
e a realização, a perpetração e sua lembrança: aqui se adiantando, lá
rememorando, no futuro, no passado, sob uma falsa aparência de pre-
sente. Tal opera o Mímico, cujo jogo se limita a uma alusão perpétua
sem quebrar o espelho: ele instala, assim um meio, puro de ficção.
(MALLARMÉ, 2010, p. 130)
144
O modo de ser da mímica consiste num jogo, numa “alusão per-
pétua sem quebrar o espelho”, uma ficção que se sabe tal e que não
pretende despertar emoções ou ilusões no espectador. Eça não quer
fazer crer. A mímica se instaura num “meio puro, de ficção” que apa-
rece como tal ao espectador. Não há ilusão que se sustente, nem prin-
cípio de verossimilhança que se mantenha diante de uma arte que se
coloca como “imitação”. A mímica pode apenas fazer alusão ao real,
e porque ela não pode ser mais do que isso, ela é uma ficção que se
sabe tal e que se constitui a partir dessa consciência de sua limitação
representativa.
Derrida, em La dissémination, procura responder à questão “O
que é a literatura?”, com base em um comentário desse texto, lido
a partir das ideias platônicas sobre a mimese. Segundo Derrida,
há duas definições para mimese: a primeira compreende a mimese
como a apresentação da coisa mesma, a natureza que se produz e que
aparece tal qual ela é, na presença de sua imagem, no seu aspecto
visível; o segundo conceito é aquele que podemos traduzir por imi-
tação, ou seja, é o ato de reproduzir a coisa. Nesse tipo de mimese, o
que está em jogo é a adequação entre o imitante e o imitado, pois a
boa imitação é fiel, verossímil, verdadeira.
Em toda história de sua interpretação, a mimese, como afirma
Derrida, se regula sempre com relação ao processo de verdade. A
história da essência da verdade não é nada além da diferença, da dis-
tância e duplicidade desses dois processos. Derrida toma Heidegger
como referência e define a verdade como ato de desvelamento do
que é, do ser que se esconde atrás do ente, da aparência. A verdade
é, portanto, “acordo, relação de semelhança ou de igualdade entre
uma representação e uma coisa”. O processo de verdade que consti-
tui a mimese é baseado na “presença do presente”. E, é em nome da
verdade, sua única referência, a referência, que ela é julgada, proscrita
ou prescrita segundo uma alternância regulada (DERRIDA, 1972,
p. 237-238).
O comentário do texto mallarmeano se baseia na tríade: repre-
sentação, mimese e verdade. Derrida se aproxima da mimese pla-
tônica, aquela que não é simples imitação, mas apresentação da coisa
145
mesma, a “mímica” como Mallarmé a entende. Segundo o autor, a
representação é uma relação que se inscreve entre imitante e imitado
e sua única referência é a verdade, a adequação entre os termos em
questão. Para Derrida, a ideia mallarmeana de mímica consiste em
afirmar que “a cena não ilustra nada, nenhuma ação efetiva”. Ou
seja, na ideia de mímica, de Mallarmé, “não há imitação. A mímica
não imita nada”. “E em primeiro lugar, ela não imita”. Mais adiante
ele afirma: “a mímica inaugura, inicia uma página em branco”. Ou
seja, não há nada anterior ao gesto, nada anterior a mímica, ela não
representa nada. A página branca apaga a referência a um sistema
de verdade, uma operação que só pode ter grandes consequências
literárias e filosóficas. Ao apagar o sistema de verdade, sob o qual se
baseia toda representação, Derrida procura realizar uma crítica ao
logos, representação mental, bem como uma crítica ao sujeito car-
tesiano, entendido como uma representação subjetiva. Na verdade,
essa operação se funda excluindo o referente do signo, mas deixando
intacto o sistema representativo.
Vejamos como o apagamento dessa referência se faz pouco a
pouco ao longo do texto de Derrida. O autor se propõe examinar a
operação que o texto “Mímica” realiza, ou o que Mallarmé “faz”nesse
texto. Em primeiro lugar, segundo Derrida,
146
A estrutura textual da “coisa” (como nomeá-la?) se anuncia as-
sim, por enquanto: um drama-mímico “acontece”, escritura ges-
tual sem libreto, um prefácio é projetado e depois escrito após
o “acontecimento” (...) refletindo o drama-mímico ao invés de
recomendá-lo. Esse prefácio é substituído quatro anos mais tarde
por uma nota do próprio “autor”, espécie de texto forado livro,
flutuante. (DERRIDA, 1972, p. 246)
147
O autor prossegue afirmando:
148
perdeu a referência, o saber absoluto, “não sabemos jamais a que a
alusão faz alusão, senão a ela mesma fazendo alusão” (DERRIDA,
1972, p. 246).
Derrida submete toda a literatura e toda a filosofia a uma mesma
e única ideia de representação que garante o sistema de verdade a
partir da adequação do simulado ao que ele simula, da adequação a
um modelo, a uma referência. Assim, ao afirmar o primado da disse-
minação do sentido sob a mimese, ou uma mimese capaz de imitar
a si mesma, o autor pode excluir todo pensamento, toda referência e
relação entre a ideia e o mundo, todo o sistema de verdade, manten-
do, no entanto, intacto o princípio representativo, a ideia de mimese
e sua funcionalidade. Ora, os textos de Mallarmé nos mostram que
é justamente o princípio representativo, a ideia de representação que
deve ser criticada. Fazer a mimese do nada é excluir todo o mundo
exterior da poesia, negar o mundo afirmando uma linguagem que só
fala de si mesma, que tem em si sua única referência. Se fosse assim,
a literatura seria de fato exatamente como o mito, a base de uma
religião que requer que o leitor creia.
Mallarmé afirma que o teatro não ilustra nada, não represen-
ta nada, mas ele existe e é “a única arte em que enunciar significa
produzir”, uma arte que “não admite nenhuma evidência luminosa
senão a de existir”. Há entre essas ideias uma falsa contradição que
Derrida e seu signo dualista não são capazes de ultrapassar. O autor
afirma que “A operação que não pertence mais ao sistema de verdade
não manifesta, não produz, não desvela presença alguma”. (DER-
RIDA, 1972, p. 257). Isso porque sua ideia de mimese se limita à
oposição entre representação e a apresentação do ser, ou seja, ela se
sustenta em dois conceitos possíveis de verdade, a verdade desvela-
da que subjaz, escondida, por trás de todo sistema representativo, e
a verdade da representação, entendida como adequação. Mallarmé
queria encontrar outra via, uma poesia que não fosse a apresentação
da coisa mesma, ou sua representação, que fosse capaz de nos levar
além do que é, do que nos aparece como dado, uma poesia capaz de
sugerir, imaginar, criar.
149
No momento em que a ideia de representação é colocada em
questão, justamente o conceito ou a forma de presença clama por
uma revisão. Eis o interesse da poesia mallarmeana, pois trata-se de
pensar uma forma de presença, objetiva, como a que encontramos no
palco teatral, mas que, no entanto, seja também uma existência nos
moldes da ficção, breve, fugaz, como um relâmpago, como a mímica
de Pierrot, que se configura “sob uma falsa aparência de presente”.
Esse talvez seja não apenas o modo de ser da ficção, mas de tudo o
que é verdadeiro. Verdade além do que é e de sua representação.
Se o teatro é a única arte em que enunciar é produzir, e a única
que pode se gabar de uma luminosa existência, por outro lado, ainda
é uma ficção, toda encenação é limitada e restrita, mesmo que seja
no tempo. Por isso, ela desvanece no ar, como a música. Poderíamos
dizer o mesmo do balé, mas, nesse caso, não estamos mais diante
de atores, que emprestam seu corpo, sua voz, seus gestos a persona-
gens, mas de metáforas. Se a dançarina é uma metáfora, é porque,
como uma estrela, em torno dela se move uma constelação. Eis o que
interessa a Mallarmé no balé. Sua gestualidade pura, uma arte que
não é outra coisa senão movimento. Assim, a linguagem que o poeta
procura construir se coloca entre o movimento de concretização e
abstração, entre o alçar voo da ideia que emana de cada palavra, e seu
gesto, fixo no papel. Assim, a mímica “não ilustra nada a não ser a
ideia”; como o balé, ela é puro gesto, movimento. A ideia, por trás de
cada ato ficcional, por trás de todo movimento poético, não é outra
coisa senão a desmontagem da representação, capaz de nos colocar
diante de outro modo de presença. Eis a maneira como Mallarmé
entende o ato poético, a escrita.
150
VII
A FICÇÃO
But the fiction is not myth, for it knows and names itself fiction.
It is not a demystification, it is demystified from the start.
Paul de Man
152
so, portanto, mas que não surpreende vindo do poeta que planejava
também escrever o Livro. Assim, vemos que a tese mallarmeana da
linguagem buscava a partir da ficção e tendo-a como método reno-
var a noção de linguagem e provocar uma revisão na ideia de ciência,
de espírito, de homem.
A linguagem e a ciência
153
[…]e, por este de Linguagem, seu objeto, empregado sozinho, a
impressão, a mais geral, de um meio de expressão, eu não diria do
homem absolutamente, pois, modificado por um termo adjacente,
como a linguagem do coração, a dos olhos, linguagens mudas, con-
vêm a certas porções isoladas de sua alma, e nós assimilamos essas
variações à linguagem das coisas, mas aplicando-as momentanea-
mente aos dados que pode almejar uma ciência, que são noções, a
expressão geral de nosso espírito. (MALLARMÉ, 2003, p. 507)
154
expor seu funcionamento é, portanto, descrevê-la enquanto método,
no sentido mais amplo do termo.
A ciência deve alcançar, culminar numa noção, no conhecimento
sobre a linguagem, mas, como vimos, a linguagem pode ser entendi-
da como conceito da própria ciência. Assim, o objetivo de Mallarmé
vai muito além de conhecer a linguagem, de alcançar sua noção clara
e verdadeira através de uma demonstração, do desmantelamento da
ficção. Não se trata simplesmente de afirmar a importância do
conhecimento da Linguagem para a constituição de uma ciên-
cia, nem de demonstrar a cientificidade de toda linguagem, nem
de afirmar que a linguagem é um meio através do qual todas as
ciências se constroem. A linguagem para Mallarmé é ciência em
si, é a própria ciência, pois conhecer a linguagem das coisas é
conhecer as coisas tal qual elas são “cientificamente”, ou seja, é
conhecer sua ideia e seu modo de funcionamento. Podemos con-
cluir que o grande objetivo de Mallarmé é fundar toda a ciên-
cia a partir de uma ciência da linguagem, invertendo as posições
atuais, transformando toda ciência numa ramificação da ciência
da linguagem. “A ciência, tendo encontrado na linguagem uma
confirmação dela mesma, deve agora encontrar uma conf irmação
da Linguagem” (MALLARMÉ, 2003, p. 507).
A ciência deve compreender como a linguagem determina, de
maneira visceral, o conhecimento. Assim, tendo consciência de si
mesma, encontrando sua confirmação na linguagem, a ciência apare-
ce como consciente de seu funcionamento. Isso quer dizer que a ci-
ência compreende o funcionamento de seu meio de expressão como
mais que um simples meio, mas um modo. Na verdade, isso significa
que a ciência encontra na linguagem seu método, reconhece nela
seu modo operatório. Na linguagem, a ciência encontra sua própria
definição.
Agora podemos compreenderpor que o poeta critica o termo “ci-
ência da linguagem”, uma vez que para ele há uma identidade entre
linguagem e ciência, visto que toda ciência pode se definir através
do conhecimento da Linguagem, como, portanto, uma ciência da
linguagem. No trecho seguinte o poeta anuncia que:
155
Essa ideia de ciência aplicada à Linguagem, agora que a Linguagem
teve consciência desta e de seus meios, continua fecunda, no que ela
nos fornece a priori os seguintes dados que a ciência deve se aplicar
a desenvolver. (MALLARMÉ, 2003, p. 507)
156
ficidade. Consciente de si como um entre outros atos momentâneos,
a ciência pode elucidar as relações entre os objetos, entre a matéria e
o espírito, desvelando-se como uma dissolução, uma transposição em
direção à ideia. O poeta prossegue afirmando que é no Homem, ou
na humanidade, que tudo isso se equivale: matéria, objetos, espírito,
ciência e linguagem. O Homem deve ser estudado, igualmente, na
sua relação com o espírito e a matéria.
Em seguida, o poeta afirma que essa relação dupla se repete, mas
em relação ao espírito. “O que é o espírito em relação a sua dupla
expressão da matéria e da humanidade, e como nosso mundo pode
se relacionar com o Absoluto?” Os meios para que essa relação se
estabeleça entre homem, matéria e espírito deveriam ser dados pelos
mesmos meios que “nos fizeram encontrar a ideia da linguagem e sua
ideia na linguagem” (MALLARMÉ, 2003, p. 507).
A ciência que agora tem o valor de seu meio de expressão, ou seja,
uma vez que a ciência é definida como uma linguagem, ela é capaz de
elucidar a verdadeira natureza do homem, do espírito, de si mesma. A
linguagem e a ciência estabelecem a mesma relação que a aparência e
a essência, ou a apresentação e a ideia. A linguagem, como vimos, é a
negatividade como ideia, ela se apresenta como uma negação, como
um devir, uma forma de presença que é sua própria desaparição. E é a
partir desses termos que podemos pensar o homem e o espírito. Se a
ciência é um ato momentâneo em busca da noção, se é também uma
definição de linguagem, então o homem e o espírito são também
atos momentâneos. A Linguagem, o homem e o espírito são um
desaparecimento vibratório, eles são devir. O homem se define a
partir dessas relações entre matéria e ideal, se constrói e se desfaz
entre os dois, ou seja, ele é uma eterna reflexão que sempre se cons-
trói, que se define no tempo, ao longo de seu devir outro. Homem e
espírito são e se apresentam essencialmente como devir, linguagem.
Assim, não é apenas a poesia que se constitui a partir de seu pró-
prio material, da linguagem e de sua configuração determinada e
limitada, de seu modo de ser e de suas possibilidades, mas tudo o
que diz respeito ao homem, à matéria, aos objetos que o circundam.
157
Por essa razão, tanto o Homem quanto a ciência se definem como-
linguagens:
Ficção e representação
158
bitrária. Ou seja, tanto a relação entre a palavra e a coisa, quanto
a relação entre significante e significado são arbitrárias. Mallar-
mé nos coloca aqui diante da irremediável distância que separa
as palavras e as coisas. Assim, se a linguagem é uma convenção,
a literatura não pode, por meio de uma linguagem arbitrária,
imotivada, refletir, copiar ou imitar o real. Isso também indica
que o objetivo da poesia de Mallarmé não é, sequer, criar uma
linguagem poética que permita com que nos aproximemos do
real. Mas, então, o que faz a literatura?
O caráter imotivado do signo linguístico fornece a prova
dessa nulidade, da impossibilidade de toda “adaptação ao Ab-
soluto” da ficção, que é limitada pela linguagem, pela sua arbi-
trariedade. Assim, como a relação primordial entre a palavra e
a natureza configurada pelo mito se perdeu, a linguagem tam-
bém se constitui a partir de uma relação que não é motivada,
entre significante e significado. Toda tentativa de restaurar
essa ligação perdida entre linguagem e natureza, entre som e
significado, é igualmente vã, pois toda ficção que se constitui
a partir dessa tentativa é duplamente mentirosa, cria ilusões a
partir de ilusões. Por isso, a ficção não deve ser compreendida
como uma tentativa de restaurar essa relação originária, míti-
ca, ela obedece outros princípios. Desde já podemos observar
que a teoria mallarmeana da ficção é na verdade uma teoria
da linguagem poética, ela discute a ideia de linguagem e suas
consequências para a poesia. Assim, uma vez que o poeta toma
consciência do caráter contingente do signo linguístico, ele se
vê diante de duas alternativas. Em primeiro lugar, ele pode a
qualquer custo tentar remotivar o signo, como se fosse possível
construir uma linguagem como a do tempo mítico em que a
palavra é simplesmente um invólucro da própria coisa, outra
forma de manifestação do objeto, a manifestação mesma do ser
e da verdade. Há também uma segunda opção, representativa,
que faz da linguagem um meio, um instrumento transparente
que comunica, reproduz e espelha o real. Ou seja, as duas defi-
nições de mimese tais quais Derrida as apresenta. Mas há ou-
159
tra alternativa, que Mallarmé desenvolve a partir de sua noção
de ficção, a partir da consciência crítica do caráter irrevogavel-
mente arbitrário da linguagem, a partir da exposição e do des-
velamento de seu caráter representativo e de seu viés mítico.
Para que possamos compreender melhor a ideia mallarmeana de
ficção, é importante inserir esse exame no debate sobre a moderni-
dade e, sobretudo, no debate sobre o papel da representação na lírica
moderna.
Foi Hugo Friedrich quem primeiro apontou para essa espe-
cificidade da lírica de Mallarmé, que teria aguçado um proces-
so de “desrealização” e “despersonalização” próprio da poesia
moderna. A poesia de Mallarmé não descreve acontecimentos
relativos ao mundo das coisas, mas sim ao mundo da língua.
Trata-se de uma poesia que nada tem a ver com o fato vivido,
com uma poesia dos sentimentos ou da experiência. No poema
mallarmeano, “o caráter de “coisa” de todo objeto é anulado”,
“os objetos são imputados de seu caráter de objeto, desloca-
dos numa ausência, em que são portadores de uma tensão in-
visível”. O poema “abole as coisas para elevá-las à categoria
de coisas em-si, que, não tendo relação alguma com o mundo
empírico, são realmente presentes apenas na língua. Graças a
essa língua, as coisas se constituem em estruturas subtraídas
de toda realidade” (FRIEDRICH, 1999, p. 140). Isso porque
a poética mallarmeana é, de acordo com Friedrich, sustentada
por uma ontologia que define que as coisas reais, na medida
em que têm uma presença real e sensível, são impuras e não
absolutas. É apenas através de sua anulação, de seu aniquila-
mento, que tornam possível o nascimento, na língua, de suas
forças essenciais e puras.
Um dos atos fundamentais da poesia de Mallarmé seria sua ati-
tude de lançar os objetos na sua “ausência”. Um movimento que, para
o autor, é também presente na poesia de Baudelaire e Rimbaud, na
qual encontramos essa mesma “fuga do real”. No entanto, Mallarmé
aprofunda esse movimento de “desrealização” que aparece aqui como
uma desarmonia sob o plano ontológico entre o real e a língua.
160
Muito poderia ser dito sob essa dimensão ontológica da relação
entre a linguagem e o real, no entanto, vamos nos ater às críticas que
Paul de Man elaborou a respeito dessa teoria da lírica de Friedrich
em Blindness and insight.
De Man segue a definição de lírica de Yeats, para quem a
poesia moderna utiliza um imaginário ao mesmo tempo sim-
bólico e alegórico, que representa a natureza e seus objetos,
mas que também recorre a fontes puramente literárias. Assim,
a lírica moderna seria a expressão consciente de um conflito
entre a função representativa da linguagem e a concepção
da linguagem como ato de um sujeito autônomo. Por isso, é
importante para De Man criticar a visão de Friedrich, para
quem poesia lírica moderna se define a partir da perda da
função representativa da linguagem, acompanhada de um
movimento de perda da subjetividade, ou despersonalização
da lírica. Ele procura mostrar que a poesia é sempre repre-
sentativa, que a linguagem é sempre referencial. Portanto ele
contraria a tese de Stierle da qual ele parte, segundo a qual
a poesia mallarmeana ultrapassa a dimensão representativa
da linguagem para se instaurar numa dimensão puramente
alegórica, ou seja, figurativa da linguagem. Stierle, aluno de
Jauss, utiliza aqui sua definição de alegoria como ausência de
referência a qualquer objeto exterior à linguagem, definição
que retoma a temática de Friedrich sobre a perda da função
representativa na linguagem da poesia lírica. Seu objetivo
é justamente afirmar a tese de que a passagem da poesia de
Baudelaire para Mallarmé é um processo contínuo que implica
uma perda ainda mais acentuada do caráter representativo da
linguagem, numa renúncia ao seu caráter mimético e referencial
– característica maior da modernidade.
Para De Man, por outro lado, a poesia lírica é marcada por
essa ambivalência de uma linguagem que é ao mesmo tempo
representativa e não representativa. Toda poesia representativa
é sempre também alegórica, conscientemente ou não, e o poder
alegórico da linguagem torna obscuro o significado literal de
161
uma abertura representativa para a sua compreensão. No entan-
to, toda poesia alegórica deve conter elementos representativos
que convidam e permitem seu entendimento, mesmo que seja
apenas para apontar os erros que esse entendimento alcança.
Assim não há ilusão maior, para De Man, do que acreditar que
é possível passar da representação para a alegoria, como quem
passa do velho para o novo, da história para a modernidade.
Alegar a dimensão alegórica da poesia como característica única
da modernidade é para De Man um erro, pois este é um caráter
que sempre esteve presente na história da poesia.
O autor nos mostra que a ideia de que o sistema representa-
tivo da linguagem pode ser simplesmente abandonado é falsa. A
representação é um movimento repetitivo, um mostrar que deve
aparecer enquanto tal, não como uma verdade definitiva, mas
como um movimento. Uma tentativa de se aproximar do mundo,
é isso que a lírica busca. Vimos que em “Ação restrita” Mallarmé
insinua que a poesia deve iluminar algo além da própria folha de
papel onde se insere. Ela tem como função, portanto, denunciar o
caráter insuficiente da representação, ela não deve ser ilusória e se
basear na crença de que a linguagem é capaz de apreender a tota-
lidade do mundo que nos rodeia, ela deve expor essa insuficiência
que é, na verdade, a origem mesma da poesia e de sua necessidade.
Seu caráter metafórico, simbólico ou alegórico procura justamen-
te fechar as lacunas deixadas pela linguagem e sua referência, não
para apontar para um real já dado e facilmente reconhecível, mas
para colocá-lo em cheque.
De fato, a questão do caráter representativo da linguagem parece
ser uma das grandes questões a partir da qual a poesia lírica moderna
é pensada. Ela também está presente no trabalho de Jameson que
citamos anteriormente, A singular modernity.
O autor procura mostrar que a tese de De Man é na verdade uma
defesa do caráter autônomo da linguagem e da poesia lírica. Ele se
vale de outro artigo do autor, “The rethoric of temporality”, em que
De Man discute a relação entre símbolo e alegoria na poética do
162
romantismo para comprovar sua tese de que a modernidade é, na
verdade, um discurso, uma narrativa.
Segundo De Man, grande parte da crítica literária está de acordo
em estabelecer como principal característica da poética romântica
a predominância de uma dicção simbólica, segundo a qual haveria
uma unidade analógica entre a natureza e a consciência subjetiva que
confere prioridade ao caráter simbólico da linguagem no qual uma
síntese entre sujeito e objeto se configura. No entanto, o que o autor
procura mostrar é que em Rousseau, por exemplo, há uma predileção
pela alegoria.
163
Ao descrever a análise de De Man, Jameson conclui que o mo-
dernismo não passa de um processo de alegorização. Ele critica sua
posição descrevendo-a como puramente retórica, ou melhor dizendo,
ele argumenta que De Man utiliza a retórica como “instância final
de determinação”, como base de sua teoria. Por essa razão, sua teoria
não passa de mais uma narrativa, “uma ideologia da representação e
da possibilidade de total encarnação do símbolo e do significado”.
De acordo com essa ideologia o método retórico que a desmistifica
nos levaria de volta para a literatura ou para uma área filosófica geral
pós-estruturalista ( JAMESON, 2002, p. 117).
Assim, para Jameson há uma relação direta entre a modernidade
que se constitui como narrativa, como discurso, e a crítica do caráter
representativo da linguagem empreendida pela poesia lírica. Jame-
son parece criticar o estruturalismo de De Man, mas, na verdade, ele
partilha com esse autor os mesmos pressupostos, pois não ultrapassa
o pós-estruturalismo com sua crítica do historicismo e das narrati-
vas, ou seja, ele não empreende uma crítica do caráter representa-
tivo da linguagem, presente justamente na concepção de De Man
a respeito da alegoria. Ele simplesmente se preocupa em mostrar
que a modernidade é apenas mais um dentre tantos outros discursos.
Para que seja possível desmontar a ideia de linguagem que sustenta a
ideologia estruturalista, a french theory (que vai de Derrida, com sua
noção de disseminação, até De Man e seus discípulos americanos),
é preciso, como Mallarmé o faz na sua crítica de Wagner, ou seja, do
mito, ir até a fonte, até a noção de linguagem que produz esse tipo de
conceito ideológico e representativo. Para isso, antes que possamos
situar a teoria mallarmeana da ficção no interior desse debate, deve-
mos voltar um momento para a discussão do caráter representativo
da linguagem, a partir de um dos textos de referência nessa discus-
são: a análise que Heidegger empreende da filosofia cartesiana.
Para Heidegger, na metafísica moderna a questão tradicional so-
bre “o que é o ente?” se transforma na questão do método, numa
pergunta sobre qual o caminho a seguir na busca pelo incondicio-
nalmente certo e seguro no qual toda a verdade estaria circunscrita.
Essa transformação da questão “o que é o ente?” na questão da busca
164
por um fundamento incondicional e inabalável da verdade define um
novo pensamento, uma nova época, a modernidade. E é a metafísica
de Descartes que fornece o fundamento para a nova liberdade mo-
derna em que o homem livre das explicações religiosas do mundo
procura certificar-se de si mesmo, assegurar suas intenções e repre-
sentações. Esse fundamento só poderia ser, como ressalta Heidegger,
o próprio homem.
Assim como Habermas, Heidegger entende a modernidade
como um tempo que procura sempre fornecer sua autocertificação.
Para ele esse fundamento se encontra na noção cartesiana de cogito,
já para Habermas o fundador da modernidade não é Descartes mas
Hegel, pois foi a filosofia hegeliana que primeiro estabeleceu para si
a tarefa de pensar a questão do fundamento da modernidade, que,
assim como para o Descartes de Heidegger, reside na noção de sub-
jetividade.
No entanto, o que nos interessa aqui é a relação que Heidegger
estabelece entre o primado do sujeito na modernidade e a questão
da representação. Para isso precisamos pensar com Heidegger o que
a afirmação cartesiana Ego cogito, (ergo) sum, “eu penso, logo existo”,
significa realmente, pois não se trata apenas de demonstrar nossa
existência a partir da constatação de que somos capazes de pensar.
Heidegger se pergunta, então, como entendemos o pensar ou o que
Descartes entende por cogitare. Segundo Heidegger, em algumas
passagens importantes Descartes utiliza para cogitare a palavra per-
cipere, que significa apossar-se de algo, apoderar-se de alguma coisa,
no sentido de apresentar para si, apresentar diante si ou representar.
Nós nos aproximamos mais do sentido cartesiano de cogitare, cogita-
tio ou perceptio e o entendemos como representar, no sentido literal,
por diante de si, apresentar para si.
As palavras terminadas em “ção” têm a particularidade de desig-
nar algo duplo que se acha em situação de mútua pertinência, repre-
sentação indica tanto “representar” como “algo que é representado”,
por isso Descartes utiliza no lugar de perceptio o termo idea, pois
trata-se de indicar aqui o que é representado e também o próprio ato
de representar. Elas incluem as percepções, a imaginação e as ideias
165
inatas, aquelas já presentes no espírito humano. Cogitare é, assim,
trazer algo para si, trazer diante de si o que é representável. Nesse
processo de exposição, o representado se mostra como disponível.
“Portanto, algo só é apresentado para, representado – cogitatum –
para o homem, quando é fixado e assegurado para ele como aquilo
sobre o que ele pode ser senhor [...] sem hesitação e dúvida” (HEI-
DEGGER, 2007, p. 112). Por isso, Heidegger pode dizer que “o
representar é um assegurar”. Mas o que deve ser assegurado?
Se examinarmos mais uma vez o significado de “representar”,
temos que todo ego cogito é cogito me cogitare, “eu represento” signi-
fica “me” representar, antes de mais nada, representar é um represen-
tar para si, um representar de si mesmo. O que há de essencial em
todo representar é a quem se representa ou diante de quem. Assim,
o homem está sempre de antemão inserido em toda representação.
Mesmo antes de Descartes já se tinha visto que o representar e o re-
presentado estão ligados a um eu que representa. No entanto, o que é
novo com Descartes é que “essa ligação com aquele que re-presenta e,
com isso, esse que representa mesmo enquanto tal, assumem o papel
essencial de critério para aquilo que ocorre e deve ocorrer no repre-
sentar” (HEIDEGGER, 2007, p. 115). Assim, cogito sum não diz
apenas respeito ao “eu penso”, não indica apenas “que eu sou” ou “que
minha existência se deduz do fato de que eu penso”, mas sim que eu
sou determinado pela representação, que o meu representar decide e
assegura a normatividade da representação, e a verdade como certeza.
Heidegger relaciona a determinação do sujeito como funda-
mento da metafísica cartesiana com o desenvolvimento do método
matemático cartesiano. Para Heidegger, a sentença cogito sum tem a
dimensão de um fundamento, funciona como um princípio. O pen-
samento matemático, como já ilustramos, como um raciocínio dedu-
tivo, funciona a partir de axiomas. Com base nisso, Heidegger supõe
que a sentença cogito sum precisaria ser a sentença fundamental, a
premissa maior de qualquer silogismo.
166
seu próprio espaço essencial e posiciona esse espaço como o padrão
de medida para a essência do ser do ente e para a essência da verda-
de. Porquanto a verdade significa agora asseguramento da apresen-
tação, ou seja, certeza, e porquanto ser significa representatividade
no sentido de certeza, o homem se torna, de acordo com seu papel
no representar que estabelece assim um fundamento, sujeito insigne.
(HEIDEGGER, 2007, p. 124)
167
temente do mecanismo literário, para estalar a peça principal ou
nada. (MALLARMÉ, 2003, p. 67)
168
Todo método é uma ficção, e bom para a demonstração.
A linguagem lhe parece o instrumento da ficção: ele seguirá o méto-
do da linguagem. (determiná-lo) A linguagem se refletindo.
Enfim a ficção lhe parece ser o procedimento mesmo do espírito
humano – é ela que coloca em jogo todo método, e o homem é
reduzido à vontade.
Página do discurso sobre o Método. (MALLARMÉ, 2003, p. 504)
169
outras investigações, sem, no entanto, garantir sua plena eficácia. Ou
seja, o método é importante apenas com relação às descobertas que
ele torna possíveis, ele não poderia ser eficaz em si mesmo. Ele deve
ser, portanto, julgado a partir das certezas que permite estabelecer.
A ideia de ficção está presente em outros momentos da obra
de Descartes, não apenas, evidentemente, na Fábula do mundo, mas
também nas Meditações e em seus Princípios da filosofia e Regras para
a direção do espírito humano.
Mallarmé, em suas Notas, faz referência ao termo “demonstra-
ção” e à matemática. Não poderia ser diferente, já que sua ideia de
método parte de Descartes, para quem todo o universo poderia ser
explicado a partir da matemática. (Mathesis universalis, grande pro-
jeto do racionalismo que pretendia racionalizar a natureza a partir
das leis matemáticas.) Mas como funciona a matemática e suas de-
monstrações? Descartes afirma no seu Discurso que uma demonstra-
ção é uma razão certa, evidente. E o objetivo do método cartesiano
é conduzir a razão para realizar demonstrações claras e evidentes.
Uma demonstração matemática procura estabelecer uma verdade
no interior de um sistema preestabelecido e a partir de axiomas e
definições também predeterminadas. O que Mallarmé procura ao
comparar e definir seu método a partir de Descartes é nos mostrar
que a matemática funciona como a linguagem, ela é uma linguagem,
um sistema igualmente preestabelecido no interior do qual podemos
alcançar determinadas verdades a partir de regras preestabelecidas.
Num primeiro momento poderíamos achar que Mallarmé está
simplesmente criticando essa espécie de nominalismo que procura
entender o mundo a partir de uma linguagem totalmente indepen-
dente do mundo físico e que funciona a partir de normas e regras
próprias ao próprio sistema. No entanto, na verdade, a comparação
entre a literatura e a matemática visa nos colocar diante da possibi-
lidade de um método, que o próprio Descartes entedia como uma
fábula, uma ficção, que nem por isso deixava de ser capaz de produzir
demonstrações verdadeiras e estabelecer certezas. A ciência, as mate-
máticas, com suas demonstrações e seu método, são apenas fábulas,
170
narrativas, histórias – ficção, no entanto, nos permitem alcançar cer-
tezas, ideias claras e distintas.
Em seus Princípios, na introdução em que o filósofo apresenta
o conjunto de suas teses, premissas e princípios, Descartes anun-
cia no princípio 43 que não é verossímil que as causas das quais
podemos deduzir todos os fenômenos sejam falsas. O princípio 44
anuncia que Descartes não pretende assegurar que todas as causas
que ele mesmo propõe sejam verdadeiras. Em seguida, no princípio
45, temos que ele poderá inclusive propor causas falsas, e finalmente,
no princípio 47, ele afirma que a falsidade das causas não impede
que as deduções decorrentes delas sejam verdadeiras. Ora, como não
imaginar que discussões sobre astronomia poderiam deixar um po-
eta como Mallarmé, cujo Livro deveria fornecer a explicação órfica
da Terra, indiferente? Nessa obra, Descartes discute as hipóteses de
Copérnico e, mesmo que ele refute muitas de suas teses, certamente
concordaria com a afirmação de que o conhecimento em astronomia
se constrói sobretudo a partir de hipóteses, de possibilidades que
são posteriormente confirmadas pela experiência. Assim, Mallarmé
concluiria que, mesmo que a literatura se faça preto no branco, ao
contrário do vocabulário dos astros, estrelas luminosas sob um fundo
negro, ainda assim ela partilha com os céus a mesma dupla de cores
e se define na ciência, seja na astronomia, seja na poesia, como uma
ficção, fundamental, um possível que pode se mostrar verdadeiro.
Poderíamos ir mais além, mostrando que esse tipo de raciocínio,
no qual a ficção se funda, um raciocínio por hipóteses que podem
chegar a verdades mesmo experimentalmente comprovadas, está,
para Descartes, profundamente ancorado no espírito. Nas Medita-
ções o tão famoso gênio maligno que o filosofo supõe estar sempre
a sua espreita prestes a enganá-lo não passa de uma hipótese, de
uma ficção que, no entanto, é determinante para a noção de dúvida
cartesiana e, consequentemente, fundamental no estabelecimento de
certezas.
A questão é, portanto, de saber, diante dessa definição de método,
quais verdades Mallarmé procura demonstrar. Que tipo de certeza
ele acredita ser possível estabelecer ao desmontar a ficção?
171
A partir dessa leitura de Descartes e, se levarmos a sério o que
ele afirma, estabelecendo uma relação com o que Mallarmé define
como método, pode-se concluir que todo procedimento racional,
todo método científico, ou poético, não passa de uma ficção. O que
há de mais instigante nessa definição é que, por mais fictício que o
método seja, ele ainda é capaz de estabelecer verdades, de culminar
em demonstrações claras e evidentes. O método é então uma ficção,
e o discurso sobre o método, uma fábula que conta a história de uma
reflexão. Mas, como conciliar termos aparentemente tão contraditó-
rios quanto ficção, método, pensamento e verdade?
Mallarmé nos diz, pela leitura de Descartes, que podemos abor-
dar a história de uma descoberta matemática, de uma reflexão, como
uma fábula, uma ficção que mesmo sendo fictícia pode culminar em
demonstrações verdadeiras. A ficção é, portanto, ao mesmo tempo
método e demonstração, meio e fim em si mesma. Para o poeta, a
poesia deveria mostrar seu processo de construção, ela deveria se
constituir como uma narrativa sobre sua própria elaboração.
O método mallarmeano para desmontar a ficção seguirá, como
vimos, o método mesmo da linguagem, que o poeta resume na fór-
mula “a linguagem se refletindo”. A ficção demonstra e desmonta
a si mesma, pois ela se torna um espelho no qual a linguagem se
reflete, no qual a linguagem aparece em toda a sua verdade. Mas,
além disso, e aqui o método mallarmeano é também científico, a fic-
ção ao desmontar-se coloca algo, revela a linguagem ao pensamento,
coloca-a como objeto do pensamento e seu produto, pois desvela o
Nada como sua parte principal. Um reflexo e uma reflexão, é assim
que a ficção é também demonstração. Podemos unir essas ideias para
afirmar que a demonstração da linguagem deve ser uma reflexão so-
bre esta, na qual ela se mostra como realmente é.
Se Mallarmé pode afirmar que a ficção “coloca em jogo todo mé-
todo”, é justamente porque ela desvela seu mecanismo de constitui-
ção, idêntico ao que torna possível a existência mesma da linguagem,
véu que mascara o nada. Assim, a ficção coloca em jogo todo método,
porque coloca em jogo a razão e sua boa condução, porque coloca em
questão o “eu” que a funda e legitima a verdade.
172
A tese que procuramos defender é de que a ideia mallar-
meana de ficção é uma crítica ao caráter representativo da
linguagem, pois, ao procurar desvelar o mecanismo da ficção,
Mallarmé busca desmontar seu funcionamento, expor o modo
de funcionamento da linguagem, seu caráter duplo, ao mesmo
tempo representativo e alegórico, referencial e metafórico. Tra-
ta-se de dizer que, se a poesia é possível, se há ação na poesia, ela
acontece porque a poesia é capaz de provocar um curto-circuito
entre essas dimensões da linguagem. Assim a poesia lança seus
dados (seus dardos também, por que não?) para fora de si mes-
ma; ela vai de encontro ao mundo, impele o leitor a reorgani-
zar seu próprio sistema de referências. Ela não separa o real da
ficção, não se distancia do mundo, para fechar-se em si mesma;
muito pelo contrário, ela se mistura com ele a tal ponto que,
para defini-la, para pensar a natureza de sua ação e seu caráter
político, nos perguntamos até que ponto a literatura é capaz de
alterar a dimensão representativa da linguagem, até que ponto
ela é capaz de desfazer as representações que nos acostumamos
a aceitar, colocar o que nos aparece como dado em xeque, até
que ponto ela é capaz de colocar em questão a base que sustenta
nossas certezas, a razão, o “eu”.
Isso só é possível porque a literatura é capaz de fazer da lingua-
gem não apenas um simples instrumento, mas um método ou ainda
mais do que isso, porque a linguagem é uma ciência, não uma ciência
particular, mas a matriz de todas as ciências. Em outro comentário
de Heidegger sobre Nietzsche, vemos como a representação não é
apenas fundamental para o pensamento moderno porque ela requer
a noção de subjetividade, mas sim porque nela está em questão o
funcionamento do próprio pensamento.
O pensamento nietzschiano se constituiu, segundo Heidegger
(2010), como uma crítica da representação. Para o autor, o caminho
que toma o pensamento de Nietzsche passa pela seguinte afirmação:
“o deserto cresce. Infelicidade àquele que protege o deserto”. Uma
fala que nos remete a outra afirmação, segundo a qual o que nos
daria mais a pensar em nosso tempo seria o fato de que nós ainda
173
não pensamos, e, se nós não pensamos, isso se deve ao fato de que,
segundo Heidegger, leitor de Nietzsche, há muito tempo, a forma
de pensamento dominante é a representação. Mas como entender a
representação?
Aqui não se trata, como no comentário de Descartes, de demons-
trar as razões e maneiras que levam o filósofo a estabelecer o sujeito
como fundamento do pensar, mas simplesmente de definir o que
está em questão no ato de representar e como ele determina nosso
entendimento do que é o próprio pensamento.
Chamamos justa uma representação que se adéqua ao seu
objeto. Identificamos há muito tempo a adequação da repre-
sentação com a verdade, ou seja, definimos a essência da ver-
dade a partir da adequação da representação ao seu objeto.
Representar um objeto significa, para Heidegger, ter consci-
ência da representação, tê-la presente no espírito, na alma, ou
na nossa mente. Nós temos representações de objetos dentro
de nós. Há alguns séculos, a filosofia vem se perguntando se
as representações que temos em nossa mente correspondem de
fato aos objetos, a uma realidade que temos diante de nós. As-
sim, a afirmação de Schopenhauer parece ter resumido um dos
maiores problemas da filosofia ao afirmar “o mundo é minha
representação”.
A questão da natureza representativa da linguagem diz, por-
tanto, respeito à relação entre a linguagem e o mundo, entre as
palavras e as coisas. Na teoria da lírica moderna as interpreta-
ções como a de Friedrich entre outros, que procuram enfatizar
o caráter “não representativo” da poesia, constroem uma no-
ção de poesia autônoma, no mínimo ingênua. Diametralmen-
te oposta às teorias marxistas que elegem um cânone realista,
para, através da literatura, colocar em questão a sociedade que
a produziu. Não se trata aqui apenas de demonstrar como o faz
De Man, que a linguagem sempre possui um caráter represen-
tativo, referencial, mas de compreender o que está em questão
na representação.
174
Vimos que, no que concerne à questão da representação, De
Man critica a posição de Friedrich ao defender o caráter refe-
rencial da poesia mallarmeana e de toda linguagem. No entanto,
vimos ainda que sua teoria da linguagem procura também de-
monstrar a possibilidade de uma linguagem alegórica, na qual
cada signo faz referência a outro signo e se define exclusivamen-
te no interior da própria linguagem. Trata-se, portanto, para De
Man, ao menos nesse texto, de fundamentar a poesia românti-
ca a partir de uma linguagem não referencial, puramente “re-
presentativa”. Contudo, aqui, a representação não é entendida
como mimese do real, mas como um puro símbolo. Aqui, esbo-
ça-se outra teoria da representação, outra teoria de autonomia
da arte e da linguagem, na qual a representação não é entendida
a partir da capacidade da linguagem simplesmente se descolar
da sua referência, mas a partir de sua capacidade de criar repre-
sentações independentes, verdadeiros sistemas fechados em si
mesmos e autônomos.
Por caráter semiótico da linguagem, Foucault entende uma
das suspeitas que a linguagem, sobretudo nas culturas indo-eu-
ropeias, produz:
há muitas outras coisas que falam e que não são linguagem. Depois
disso, poder-se-ia dizer que a natureza, o mar, o sussurro do ven-
to nas árvores, os animais, os rostos, os caminhos que se cruzam,
tudo isso fala. Talvez, haja linguagens que se articulam em formas
não verbais. Isso equivaleria, grosso modo, ao semäion dos gregos.
(FOUCAULT, 1997, p. 14)
175
mo tempo”. O autor cita um exemplo:“Posso dizer sem mentir que
Marx, Mallarmé, Nietzsche e Freud viveram vinte e sete anos juntos”
(BARTHES, 2002, p. 36).Eles poderiam, inclusive, ter se encon-
trado em algum lugar da Suíça para juntos discutirem. Essa con-
comitância alerta, segundo Barthes, para uma questão de suma
importância, no entanto, pouco estudada: a contemporaneidade,
a questão de saber “de quem sou contemporâneo?”, “com quem eu
vivo?”. De fato, Barthes tem razão, pois Mallarmé, Marx, Freud
e Nietzsche têm algo em comum. Todos eles, em suas obras, não
fizeram outra coisa a não ser pensar as causas, asconsequências
e os pressupostos da afirmação de Schopenhauer: “o mundo é
minha representação”.
Segundo Foucault, Nietzsche, Freud e Marx mudaram a ma-
neira de compreensão do que é um símbolo, que a partir desse
momento passa a ser pensado não como no século XVIII com
base em semelhanças e analogias, mas em sua verticalidade, sua
profundidade ou banalidade. Foucault se refere à crítica da pro-
fundidade feita por Nietzsche que a considerava a profundida-
de da consciência como uma simples invenção dos filósofos, ou
por Marx, que afirmava que a investigação da ordem burguesa,
acerca da moeda, do valor, não tem profundidade alguma, pelo
contrário não passa de uma banalidade, pois afinal é o fetiche
que cria a ilusão da profundidade, a ilusão de que haveria “algo
mais” na mercadoria.
No entanto, o ponto que nos interessa aqui é a segunda caracte-
rística de uma reflexão sobre a natureza da linguagem que Foucault
encontra nesses três pensadores: o caráter infinito da interpretação,
seu caráter fragmentado, sempre inacabado, presente sob a forma
da negação do começo. Negação da “Robinsonada” para Marx. Em
Freud, essa questão aparece na Traumdeutung, quando ele passa a
analisar seus próprios sonhos; em seguida, na problemática do fim
da análise, do caráter infinito da relação de transferência. Em Niet-
zsche, ela está presente na sua própria definição de filosofia como
uma filologia que nunca pode ser fixada. Poderíamos dizer que ela
também está presente em Mallarmé, da mesma maneira, na crítica
176
da origem mítica da linguagem e na crítica da tentativa de resgate
desse caráter mítico perdido da linguagem, como ocorre, por exem-
plo, na obra de Wagner.
Esse caráter inacabado da interpretação está relacionado com
outro princípio também fundamental na hermenêutica moder-
na: “se a interpretação não pode nunca acabar, isso quer sim-
plesmente significar que não há nada a interpretar. Não há nada
absolutamente primário a interpretar, porque, no fundo, tudo já
é interpretação, cada símbolo é em si mesmo não a coisa que
se oferece à interpretação, mas a interpretação de outros signos”
(FOUCAULT, 1997, p. 22).
Mallarmé foi o poeta eleito por toda uma tradição da filosofia
francesa para portar o estandarte de uma representação em ocaso
que se transforma em interpretação infinita. De Foucault a Der-
rida, passando por Friedrich e De Man, na América do Norte, o
que temos aqui é uma oposição pura e simples em relação a uma
ideia da linguagem como representação de ideia ou objeto, cen-
trada na figura do “eu”, que, uma vez entrando em colapso, torna
possível a produção infinita de sentido e significado.. Se o pen-
samento e a verdade perdem seu fundamento, a linguagem perde
seu corpo e sua materialidade.
Quando Mallarmé estabelece como fim da desmontagem da
ficção a exposição de sua parte principal, o Nada, nada nos per-
mite inferir que ele de fato entendia a linguagem como interpre-
tação que reenvia a outra interpretação. Afinal, essa não seria uma
última tentativa de salvar, custe o que custar, a própria ideia de
representação? Não seria essa uma tentativa de evitar o face a face
com o Nada, com a ausência de fundamento e solo seguro para o
estabelecimento da razão? Não seria essa uma tentativa de evitar
se deparar com o que Mallarmé não cessou de afirmar, que na
ausência de fundamento ou de razão, na ausência de um “eu” que
assegure a verdade de nossas representações, estamos sós diante
de um acaso que o pensamento jamais será capaz de abolir?
Desvelar o Nada como base de sustentação da linguagem
é, portanto, o mesmo que colocar em questão uma noção de
177
representação no interior da qual a verdade é entendida como
adequação da ideia/palavra ou enunciado aos objetos que re-
presenta. Não há um “mundo exterior”, fora da linguagem, que
possa legitimar a existência da literatura. Na verdade, ela, a par-
tir de Baudelaire, deseja construir-se fora do mundo que a cerca.
No entanto, isso não significa que ela vai, como Wagner em
suas óperas, naturalizar o símbolo ou tentar fazer crer que há
símbolos que existem primariamente como marcas persistentes
e sistemáticas de uma verdade que antecede o homem e é eterna.
Nem realismo nem mistificação. Afinal, que é o mito, segundo
Mallarmé, se não um sistema de interpretações que reenvia a
outras interpretações? Assim, o que Mallarmé procura é uma
terceira via: nem a representação, a linguagem instrumento que
duplica o real, nem o universo do mito, em que o símbolo reen-
via a outros símbolos e as interpretações a outras interpretações.
Nem uma linguagem que designa o real, nem uma linguagem
fechada em si mesma. Nem uma literatura realista, nem um for-
malismo abstrato.
Se Mallarmé insiste tanto em definir a literatura em oposição
clara e direta à linguagem jornalística, é porque o que ele procura
é uma literatura que nos leve além do que já sabemos, vimos e
ouvimos, do que somos capazes de reconhecer, da mediocridade da
vida ordinária. Escrever é mergulhar no desconhecido, em busca
do novo, criar.
Muitas vezes, sua poesia foi entendida como uma manifestação
do pessimismo que corroía a imaginação dos poetas, que, desolados,
se isolavam em suas torres de marfim, para escrever uma poesia que
só tem como referência a si mesma. Não se trata, na desmontagem da
ficção, de uma retirada estratégica da vida social e política num mo-
mento de desencantamento, mas, sim, em uma crítica que impedisse
que a poesia fosse apropriada por arautos hipócritas da moral e dos
bons costumes com boas intenções a respeito da educação das moças
burguesas. Impedir que a literatura funcionasse, como a religião, para
fazer crer. Que ela fosse instrumento político a dignificar os mitos
fundadores de uma grande nação (como no caso de Wagner).
178
Assim, o que Mallarmé pretendia, com sua arte total, era criar
uma arte cuja legitimação se daria através de sua capacidade de
transcender uma situação, um contexto, um dado, um quadro social
e político, e criar a partir de seu interior, a partir do seu próprio
funcionamento, novas formas que fossem também formas de viver e
experimentar o mundo.
179
VIII
A MÚSICA
182
diretamente”. A mesma crítica pode se estender aos escritores na-
turalistas, escritores que acreditam, como diria o poeta, que escrever
sobre pedras preciosas é o mesmo que fazê-las. O mais importante
aqui é ressaltar o caráter dessas críticas que não seriam temáticas ou
simplesmente formais, mas estruturais. Mallarmé não se preocupa
com questões ligadas à cesura do alexandrino ou à forma romance,
mas com concepções da linguagem que sustentam essas literaturas
de seu tempo. As concepções da linguagem devem ser entendidas
como um conjunto de práticas e normas, de usos com os quais se
define e se coloca em ação uma noção de expressão, uma temática,
enfim um universo literário coerente, em que a forma e o conteúdo
se determinam mutuamente. As críticas mallarmeanas concernem,
portanto, o próprio fundamento da literatura e, mesmo a sua possibi-
lidade de existência, ou seja, elas dizem respeito à linguagem. Assim,
o terceiro ponto que nos permite reconstituir o horizonte de expec-
tativas dos leitores, do final do século XIX, é a própria ideia que eles
teriam da linguagem. Citamos, para ilustrar nossos propósitos, esta
crítica que Anatole France endereça a Mallarmé, em 1888:
183
Nesse fim de século, fazer poesia significava “encontrar uma ideia
precisa e expressá-la em linguagem d’honnête homme” (ANATOLE
FRANCE apud MARCHAL, 1998b, p. 24).
A acusação de que a poesia mallameana seria “absolutamente in-
compreensível” nos deixa supor que ela contrariava inteiramente a
expectativa de seus leitores. Essa diferença entre o que a obra realiza
e o horizonte de expectativas de seus leitores é o que Jauss chama de
“distância estética”. Ela pode nos oferecer uma ideia da dimensão da
revolução poética operada por essa poesia. É essa “distância estéti-
ca” que define a obra de arte a partir de seu efeito nos leitores. No
entanto, a recepção de uma obra pode mudar,
184
A poesia de Mallarmé faz mais que flertar com a filosofia, ela é capaz
de colocar para o pensamento uma questão de natureza filosófica.
O horizonte de expectativas de um leitor do século XX não é
muito diferente do de um leitor do século XIX. Mesmo no século
XXI um leitor de literatura ainda tem certa expectativa de inteli-
gibilidade no que diz respeito mesmo a um texto poético. Passado
o momento de “contemplação” e “êxtase estético”, todo leitor busca
num texto o seu sentido, sua significação, todo leitor espera ser capaz
de determinar o sentido de um texto que lê. Ler é fundamentalmen-
te uma operação de distinção, de demarcação, de determinação. E a
especificidade da obra de Mallarmé reside justamente na resistência
que impõe a todo tipo de leitura limitadora e restritiva.
O sentido não se oferece ao leitor, gratuito e claro, na verdade, o
poema mallarmeano, como, na maioria das vezes, não tem referências
claras, faz com que o leitor não possa encontrar uma resposta para
as questões: “De que trata o poema?”, “Sobre o que o poema fala?”.
Contudo, o ponto aqui seria saber se essa é de fato a questão que um
leitor deve colocar a um poema. Essa pergunta é sinal de duas coisas.
Em primeiro lugar, evidencia que em Mallarmé o sentido não se ofe-
rece claro e límpido numa primeira leitura; em segundo lugar, indica
que talvez seus poemas clamem por outro tipo de leitura.
A leitura, para o autor, é uma prática, se engana o leitor que acre-
dita que pode ler um poema como quem lê uma notícia de jornal.
185
pode ser capaz de colocar as coisas em ordem, mas não há ordem
que possa resistir ao silêncio que o fim da leitura instaura. Por isso,
não é preciso pressa, nem excesso de rigor, o que é preciso na leitura
dos textos de Mallarmé é uma atenção aos espaços em branco, um
respeito ao tempo do poema, pois é nesses momentos de suspensão
que as ideias costumam se deixar espiar.
Quando questionado pelo jornalista Jules Huret sobre as repe-
tidas acusações de obscuridade feitas por seus contemporâneos, o
poeta respondeu:
186
de uma incapacidade do leitor e muito menos do poeta, mas sim do
próprio caráter da linguagem poética e do que ela é capaz de evocar
e tornar presente. Pois uma vez desfeito o imperativo de clareza, a
poesia pode quebrar também com os paradigmas e procedimentos
mistificadores da linguagem, ela pode evitar seu processo de reitifi-
cação, contorná-lo e criticá-lo.
No texto “Le Mystère dans les Letres” (“O mistério nas Letras”),
escrito em resposta a um artigo do então jovem Marcel Proust, in-
titulado “Contre l’obscurité”, Mallarmé responde, como mestre dos
poetas mais jovens e em nome de toda “escola”, às críticas de obscuri-
dade. Essa resposta se estende a todas as outras críticas que insistiam
em qualificar a poesia mallarmeana como obscura ou mesmo incom-
preensível. Veremos na leitura sucinta desse artigo como Mallarmé
respondeu a essas críticas com uma argumentação que parte da críti-
ca à linguagem representativa e a própria ideia de real, passando pela
criação poética até chegar ao fundamento da própria poesia, à ideia
de linguagem.
A questão da inteligibilidade do texto passa pela natureza mes-
ma do mundo, complexo e misterioso, pela linguagem como fonte e
reflexo do mistério exterior e define a leitura como prática do des-
conhecido, experiência do indizível. Por essa razão, o poeta não deve
ceder ao imperativo de inteligibilidade:
187
aqueles a quem ela pretende emprestar uma linguagem, ou seja, todos
aqueles dos quais ela trata, fala, ou, como Mallarmé gostaria, todos
que ela procura evocar e sugerir. Essa linguagem desafetada, esvazia-
da de toda expressão subjetiva, emocional e sentimental, é, antes de
mais nada, uma resposta à literatura contemporânea e anterior a esse
período, trata-se de uma alternativa diante de uma linguagem ex-
pressiva e sentimental que o romantismo tanto usou, que desgastou.
O objetivo de Mallarmé é justamente esvaziar a linguagem de toda
sua história romântica, de toda sua carga emotiva, a tal ponto que as
palavras sejam como um véu, uma nuvem que encobre o horizonte,
que impede todo olhar direto, toda apreensão imediata.
Se a poesia é misteriosa, se ela evoca os objetos em vez de apre-
sentá-los diretamente, não se trata de simples escolha estética, a
poesia não pode ser nada além de uma nuvem de mistério que paira
sobre o mundo porque, na verdade, há algo de obscuro, de misterioso
no fundo de todas as coisas e, principalmente, no fundo de todos nós,
188
No entanto, para o poeta, o que é de fato obscuro, mais obscuro
que o mistério que cerceia o mundo e habita em cada um de nós, é
que “essa massa” possa ser “jogada na direção de algum traço que é
uma folha de papel”, que se agita, como que com inveja, de atribuir
trevas ao que quer que seja. Para o poeta, o escrito tem uma existên-
cia, uma realidade concreta, afinal ele tem um suporte, o papel. E é
isso que é obscuro, o escrito, a tinta negra que o poeta deposita no
papel, que corrompe a brancura da página, obscuro é que algo como a
literatura possa existir, sendo assim, preto no branco, contrariamente
ao fólio dos céus. Misterioso é esse dado concreto, as letras sobre a
página branca, o fato de que numa folha de papel algum mistério
possa transparecer, se dar a ver, tornar-se, inclusive, visível. O que
deve nos levar a questionar por que essas letras negras são capazes de
expor, ao homem, o que ele próprio ignora? Se temos, no fundo de
nós mesmos, algo de absconso, não deveríamos estranhar em ver no
papel essa mesma sombra, essa mesma escuridão, que não passa de
uma imagem de nós mesmos. Por isso, o que deveria provocar ver-
dadeiro espanto é a existência mesma da literatura, e a incapacidade
dos homens de se reconhecerem nesse espaço de trevas e obscurida-
de que parece ser o único capaz de lhes acolher e espelhar.
Em seguida, o poeta descreve a postura desses poetas que sempre
exigem clareza e que se baseiam num modelo representativo respon-
sável pela incompreensão da qual o poeta é vítima. Mallarmé tem
clareza no fato de que o “escândalo é representativo”. Mais uma vez
o problema reside nessa literatura industrial que não cessa
189
O poeta critica essa representação feita em nome da “pressão do
instante”, que só é capaz de exprimir o banal, baseada na ilusão de
que a realidade pode ser captada pela pluma do escritor, que mos-
traria as coisas como elas são tirando de um “tinteiro sem noite”, um
escrito que apresenta apenas “a vã camada suficiente de inteligibili-
dade”. A exigência de inteligibilidade é para ele uma “postura hu-
milhante”, pois “argumentar obscuridade [...] implica uma renúncia
anterior a julgar”, ou seja, exigir clareza e inteligibilidade de um texto
implica isenção de julgamento, de reflexão, o texto que se apresenta
claramente não pode ir além do banal e assim contribuir com a “vas-
ta incompreensão humana” (MALLARMÉ, 2003, p. 230).
Contra a banalidade e a mediocridade de uma literatura que se
curva diante das exigências de inteligibilidade da “massa”, que toma
o real pelo imediato e não cessa de dizer o mesmo, a poesia tem sua
arma, a Música, que aparece para “varrer tudo isso”. Através da união
entre a poesia, o escrito, ou seja, as Letras e a Música, a poesia pode
recuperar seu caráter abstrato, alçar voo em direção às ideias. Só a
união entre as letras e o universo sonoro permite que a poesia apre-
sente ideias e escape da “tagarelice”, da “universal reportagem”. Atra-
vés da música, o mistério que se esconde no fundo de todos nós se
torna audível, perceptível, e encontra sua forma própria de expressão:
Em seguida temos:
190
A sintaxe poderia fornecer uma garantia de inteligibilidade, mas
Mallarmé mostra que na história do francês há uma tradição não de
clareza, mas de negligência com relação à lógica: “Um falar, o francês,
guarda uma elegância a falar em negligenciado”. A “conversa”, por
sua vez, não é menos clara ou direta, pelo contrário, ela é marcada
por “torneios espontâneos” que, além disso, são um artifício na hora
de convencer. Por isso, se alguém se compraz em apontar um cul-
pado, que culpe a Língua. Se a sintaxe não pode garantir nenhuma
inteligibilidade, se ao contrário o poeta só tem a ganhar ao deturpá-
-la de sua lógica, isso se deve a própria Língua, que ganha em signi-
ficação quando se desvia da lógica e das regras gramaticais.
191
sem obedecer a nenhuma regra ou lei, ao puro sabor do acaso, e mui-
to mais ainda poderia ser dito sobre a capacidade ímpar da lingua-
gem de ir além de nossas expectativas, dessa capacidade de expandir
o reino aparentemente sem fim de suas possibilidades.
Se há ininteligibilidade na poesia, o poeta está longe de ser
o grande culpado, o verdadeiro culpado é o acaso, que parece
interferir nas relações que as palavras estabelecem umas com
as outras. Culpada é a língua, pois, mesmo que a sintaxe fosse
capaz de fornecer uma garantia de legibilidade, mesmo que
ela pudesse fornecer um conjunto de regras que reduziriam a
língua ao estatuto de instrumento, a língua resistiria. O acaso
não deixaria de intervir. A própria constituição da linguagem é
responsável por essa contradição que faz com que ela possa ao
mesmo tempo ser utilizada de maneira “bruta” ou “essencial”.
Assim, não são as regras gramaticais, não são as normas sintá-
ticas e os imperativos de clareza que fazem a poesia, pois eles
são responsáveis pela “tagarelice” pela “universal reportagem”.
A língua é poética, lá onde ela se rende ao acaso, onde ela se
deixa transportar, lá onde ela se entrega as palavras, simples-
mente, nelas mesmas. Só a linguagem é capaz de ao mesmo
tempo criar acasos e aboli-los palavra por palavra.
Se a poesia pode deixar aparecer seu lado contingente, isso
é possível porque ela se faz escrito e música, porque a música
fornece ao poeta não apenas um modelo de inteligibilidade,
mais maleável que a universal reportagem e a língua instru-
mento de descrição, mas também a possibilidade de uma ex-
pressão mais abstrata, menos definida, mais indeterminada. Ela
é que faz da poesia sugestão. A poesia, com a música, perde em
determinação, mas não exatamente em clareza. Tendo a músi-
ca como modelo, a poesia pode evocar, em vez de descrever e
narrar, pode estender uma nuvem de indeterminação sobre o
escrito, escrever preto no branco, voar mais alto, almejar ideias.
192
As ideias sem medida, ou o verso livre
193
Contudo, o século XIX viu surgir um movimento de emancipa-
ção da prosa, que invadiu os gêneros tradicionais, legando ao gêne-
ro lírico a exclusividade do verso, pois na poesia dramática a prosa
substituiu o verso na cena e a poesia épica deu lugar ao romance,
igualmente em prosa. A literatura como nós conhecemos hoje, que
se divide em romance, teatro e poesia, é, portanto, uma invenção
do século XIX. Porém, mesmo o gênero lírico, ou simplesmente a
poesia, também se viu invadida pela prosa, fazendo com que o verso
perdesse sua soberania. Caso exemplar é o do poema em prosa, cujo
próprio nome anuncia a contradição: poema, obra em verso escrito,
no entanto, em prosa, nominação que bloqueia a identificação direta
entre poesia e verso.
Por essas razões, a morte de Victor Hugo assim como a eman-
cipação da prosa permitiram que o poeta afirmasse que “o verso,
creio, com respeito esperou que o gigante que o identificava a
sua mão tenaz e mais firme sempre de forjador, viesse a faltar;
para, dilacerar-se”, assim “Toda a língua, ajustada à métrica, aí
recobrando seus cortes vitais, evade-se, (...)” (MALLARMÉ,
2003, p. 205). A morte de Victor Hugo, a falta que ele represen-
tou para a poesia, era também uma ausência do verso na cena
poética que permitiu que o verso se liberasse, de sua mão tenaz
e, consequentemente, de todas as outras.
O verso não se liberou somente com a morte de Victor Hugo,
o próprio poeta contribui para essa liberação, ele e muitos outros
que lentamente introduziram alterações na prosódia. Alterações
do hemistíquio no alexandrino com ritmos variados, por exemplo,
entre outros. Mallarmé conta essa história. Ele destaca alguns
precursores, os versos “ondulantes” dos românticos, o verso ímpar
de Verlaine, Henri de Régnier, os versos de onze e treze sílabas,
Laforgue e o verso falso. O privilégio anteriormente conferido à
rima também se modificou. No entanto, essas alterações apenas
prepararam o terreno, pois “toda a novidade se instala, relativa-
mente ao verso livre” (MALLARMÉ, 2010, p. 169), Mallarmé o
nomeou também “polimorfo”.
194
Diante da novidade, o poeta se declara simplesmente “testemu-
nha dessa aventura, em que me quiseram um papel mais eficaz ainda
que ele não convenha a ninguém, dirijo-lhe, ao menos, meu ferven-
te interesse” (MALLARMÉ, 2010, p. 158). Isso porque Mallarmé
sempre manifestou uma posição ambígua com relação ao verso
livre e o possível “fim” do alexandrino; até o poema Lance de dados,
Mallarmé não tinha escrito poemas dessa natureza, e mesmo esse
não é considerado por ele um poema em verso livre; na verdade,
o poeta sempre manteve um grande respeito pelo alexandrino, que,
segundo ele, deveria ser preservado e reservado a “ocasiões especiais”.
195
O verso novo se configura simplesmente como uma alterna-
tiva ao verso estrito, outra opção de criação que tem a vantagem
de permitir a livre “expressão” do poeta, que articula essa ex-
pressão a uma “flauta pessoal”, a um ritmo próprio a seu estilo.
Assim, uma poética não designa mais um conjunto de regras e
normas que um poeta deve obedecer para compor com exatidão
seus versos, um bom poeta não é mais aquele que é capaz de res-
peitar e se adequar às regras dos tratados. Ele é aquele capaz de
criar um universo poético particular, com temas, ritmos, estilo
adequados, um poeta capaz de verdadeiramente fazer jus à ideia
de expressão, que cria a partir das relações internas possíveis
entre conteúdo e forma.
Verso e sociedade
196
Mallarmé escreve “La musique et les Lettres”, texto concebido
para uma conferência proferida na Inglaterra, onde o poeta se
coloca como portador e representante de uma novidade poé-
tica, o verso livre: “Eu trago notícias. As mais surpreendentes.
Mesmo caso ainda não se viu. Tocaram no verso” (MALLAR-
MÉ, 2003, p. 64).
O tom é irônico e o estilo imita o jornalístico. O poeta pro-
cura criar polêmica. Já o emprego de “On” marca a ambiguidade
do papel de Mallarmé nesse atentado quase “terrorista” ao verso
tradicional, ele nos impede de identificá-lo diretamente nes-
sa revolução prosódica. O poeta parece buscar evocar em seus
leitores a imagem dos recentes ataques terroristas na França,
enquanto a necessidade de transformação poética é comparada à
necessidade de transformação política. Pois, até nesse momento
na história de França. “Os governos mudaram; sempre a prosó-
dia continuou intacta: seja que, nas revoluções, ela passa des-
percebida ou que o atentado não se imponha com a opinião de
que este último dogma não possa variar” (MALLARMÉ, 2003,
p. 64). Se a prosódia não sofreu nenhuma alteração nos últimos
séculos na França, apesar de todas as transformações políticas e
sociais, isso contribui para mostrar a urgência das transforma-
ções que o verso livre operou, pois, se durante as revoluções a
prosódia passou sempre despercebida, ou se as transformações
não ocorrem porque se acreditava que o verso não pudesse se
transformar, as duas razões apontam, na verdade, a distância
entre o verso e a sociedade que o lia e escrevia. E essa situação
não pode, de maneira nenhuma, perdurar. É preciso que o verso
se redima de seu atraso diante da sociedade e se adapte a nova
situação social. Trata-se de afirmar a possibilidade de uma
revolução no interior da literatura, uma mudança de “governo”,
de “direção”, que permite que literatura e sociedade se alinhem,
caminhem lado a lado, em direção ao novo.
“Crise de vers” historiciza a literatura e a questão do verso livre,
na maneira mais radical do termo, mostrando que as transformações
poéticas são urgentes, imperativas. Durand (1998, p. 164) propõe
197
cinco hipóteses, cinco fatos históricos e no interior da história lite-
rária, que permitiram que o verso livre eclodisse e reivindicasse seu
espaço nas folhas em branco, tal como nas praças públicas. Segundo
o autor, em primeiro lugar o verso livre se coloca numa posi-
ção herege em relação à escola parnasiana e o dogma do verso
“estreito”, impecavelmente limitado; em segundo lugar, a escola
parnasiana não oferecia muitas perspectivas de carreira para os
poetas recém-chegados; a terceira e quarta razões que o autor
aponta são o horizonte social de recepção do gênero poético,
que se restringiu consideravelmente com as restrições e norma-
tizações que os parnasianos pregavam e, em quinto lugar, está a
relação íntima e estreita que o verso livre mantém com as for-
mações sociopolíticas e com o equipamento tecnocultural desse
começo da Terceira República. Vejamos, resumidamente, como
cada uma dessas razões contribuiu para o advento e cristalização
do verso livre na cena poética francesa.
A primeira razão que Durand destaca é a relação entre os
poetas do verso livre e os parnasianos. No momento que o verso
livre eclode, os parnasianos dominavam a cena literária francesa,
e, do alto de seu reinado, empreenderam e impuseram o que esse
autor chama de racionalização dogmática dos valores formais.
Na famosa entrevista a Jules Huret, Mallarmé explica a situação
nos seguintes termos:
198
Leconte de Lisle, e por isso mesmo foram “pejorativamente” chama-
dos de decadentes, porque romperam com uma tradição clássica, que
fazia com que a glória da nação francesa se medisse pela cesura no
hemistíquio de um verso de 12 sílabas. Segundo Mallarmé (2003, p.
697), ainda na mesma entrevista,“Nós jogamos e tocamos demais, e
nós os deixamos”.
Depois de 1870, a quantidade de poetas aumentou considera-
velmente na França, enquanto as tiragens editorais nunca foram tão
baixas. A grande quantidade de poetas no mercado literário aumenta
a concorrência e obriga os poetas a buscarem meios para se diferen-
ciarem uns dos outros, para se destacarem da massa, daí a grande
quantidade de escritas individuais e de doutrinas, que viam no verso
livre, segundo Durand (1998, p. 168), sua expressão e legitimação
genéricas. Assim, o verso livre era para a nova escola literária que
surgia, seja ela simbolista, seja decadente, uma maneira de ocupar o
espaço dominante no mundo literário e, ao mesmo tempo, se opor à
escola parnasiana. Uma vez ocupado esse espaço, o verso livre permi-
te que cada autor, individualmente, se diferencie dos outros, criando
sua própria poética.
Estamos diante de uma ruptura estética entre gerações distintas
de poetas, a geração nascida dos anos 1820 e a geração dos anos
1840. Uma ruptura que Mallarmé nomeia “cisão” entre verso livre
e verso “estrito”. Entretanto, como vimos anteriormente, Mallarmé
sempre guardou um grande respeito para com o alexandrino, por
isso mesmo o poeta não clama por uma ruptura absoluta com o ver-
so “metrificado” e muito menos com a já antiga escola parnasiana.
Segundo Mallarmé os esforços dos poetas dessas diferentes gerações
poderiam se unir,
199
O verso livre não seria nada além de um espaçamento efetuado
no próprio verso tradicional, esse “espaçamento” a que o poeta se
refere são as diferentes medidas métricas que ele pode agora con-
ter, porém, como ainda é definido a partir de seu ritmo, do estilo,
pouco difere do verso tradicional. Por isso, Mallarmé acredita que
as novas gerações poderiam criar em conjunto com os parnasianos.
Por mais moderado que o poeta tenha sido nessas considerações,
não podemos deixar de mencionar a definição de verso apresentada
nesse trecho. O poeta afirma que o verso livre se define e se configura
não pelo ritmo ou estilo, como vimos anteriormente, mas pelo seu
“espaçamento”. O verso se define a partir da tipografia do poema,
de seu lugar na folha, assim à questão “O que é o verso?”, Mallarmé
parece responder como Roubaud (1978, p. 121) recentemente, em
La vieillesse d’Alexandre, “vá à linha”.
Durand continua sua exposição sobre as relações entre verso
tradicional e verso livre e as condições históricas do advento deste
último examinando a relação entre os poetas e seu público leitor.
O autor ressalta o fato evidente de que o verso livre rompe com o
horizonte de expectativas dos leitores do século XIX, criado a partir
do modelo de ensino de literatura do Segundo Império e responsável
pela transmissão de modelos literários clássicos e sua fundação em
formas perfeitas e bem-acabadas da poesia. Segundo Durand (1978,
p. 171), o ensino da retórica, as explicações literárias, os trabalhos
de escrita imitativa e os rituais de exercício de prosódia constitu-
íram o verso alexandrino, estrito, tradicional, e o conjunto do sis-
tema simbólico no interior do qual ele figura como um verdadeiro
monumento da cultura. O verso livre seria uma maneira radical de
romper com os mecanismos escolares de reprodução literária, mas
também com os cânones que representavam o Império. Além disso,
na Terceira República, as políticas públicas de acesso ao ensino e de
alfabetização aumentaram o público leitor não apenas qualitativa-
mente, pois as políticas sociais e culturais diversificaram também o
público literário.
O regime de gêneros concordava com uma sociedade de ordens e
de classes rígidas e estáveis, com a instalação da classe média e com
200
a possibilidade de ascensão social que a república tornava tecnica-
mente possível. Surge, assim, outro sistema de classificação de gêne-
ros, não mais representativo e adequado ao assunto, mas horizontal,
respondendo também às exigências verticais dos públicos visados. A
poesia procurava, desse modo, promover uma conversão semelhante
à operada pelo romance, dirigindo-se às diferentes classes e aos dife-
rentes públicos, tentando escapar à classificação de gênero “inferior”.
Essa iniciativa fazia parte, segundo Durand (1998, p. 178), de
uma disposição geral no interior do mercado cultural pós-roman-
tismo, uma disposição para abranger o repertório de possibilidades
formais e de tomar o partido da diversidade ou da pluralidade sem
freios, a despeito do princípio de estabilidade e de unidade que pre-
valecera até então. Enfim, a liberação poética corresponde e respon-
de ao sistema social que organiza o campo social como um todo. A
República reclama, para poder se fundamentar, um distanciamento
recíproco dos sujeitos sociais, os “cidadãos” não podem ser contíguos,
sem o que se evaporaria a cidade abstrata que os nomeia. Eles devem
permanecer separados uns dos outros, bem como da estrutura ausen-
te e anônima do Estado.
Para Mallarmé, a instabilidade do verso livre correspondia per-
feitamente ao Estado político da França nesse século que conheceu
tantas mudanças e revoluções, e a necessidade de afirmação indivi-
dual dos poetas surge, indubitavelmente, dessa configuração social:
201
sociedade e na política pudesse se manifestar. A crise provocada pela
invenção do verso livre e da emancipação da prosa provocou uma
revisão na ideia de verso e, por consequência, de poesia e de litera-
tura. Segundo Mallarmé,“Que verso há tão logo se acentua a dicção,
ritmo desde que estilo” (MALLARMÉ, 2003, p. 205). A liberdade
métrica permite que o verso, agora “polimorfo”, englobe toda a prosa,
já que ele se caracteriza como “estilo” e “ritmo”, permitindo, assim,
que a poesia se defina e seja medida pela capacidade do poeta em
articular estilo, assunto, ritmo de maneira, diríamos, “original”, co-
erente, ou “pessoal”. Isso significa que expressão individual não se
mede pela quantidade de exclamações ou emoções que um poeta é
capaz de transcrever em alexandrinos, mas pelo talento com o qual
o poeta elabora sua própria poética. Por essa razão, Mallarmé podia
afirmar que Hugo, mesmo inconscientemente, definiu o verso como
toda a literatura.
Por essas razões, “Crise de verso” é um texto de ruptura. Ruptura
poética com o Parnaso e ruptura social com o horizonte de expec-
tativas do leitor. Rupturas que buscam inserir a poesia no contexto
social renovado pelas transformações políticas que culminaram na
Terceira República.
202
Para justificar o caráter arbitrário de todo signo linguísti-
co, Mallarmé recorre ao mesmo argumento que será utilizado por
Saussure, a diversidade das línguas. Questão que “não valha de ra-
zão para considerar Deus”, ou seja, a diversidade das línguas pare-
ce uma questão suficientemente complicada e capaz de colocar em
questão o monoteísmo, ela vale bem um mito, Babel. Pensar que a
diversidade das línguas esconde o fato de que uma língua suprema e
única não existe, nos remete a outro texto de Mallarmé, que tratamos
anteriormente Les Dieux Antiques, no qual o mito aparece como a
fala primeira, a língua primordial, diretamente ligada à natureza, ao
ciclo do sol que, no entanto, ao longo dos tempos, devido às diversas
migrações e à distância que separava um povo do outro, perdeu seu
vínculo originário com a natureza.
O signo é arbitrário, pois as línguas são diversas. No entanto, para
Mallarmé há ainda outro argumento, interior ao próprio signo, que
justifica essa arbitrariedade e que não diz respeito à sua referência,
mas à relação entre som (imagem acústica) e significado. O poeta
cita alguns exemplos, como as palavras “jour” e “nuit”, “dia” e “noi-
te”. Em português (os poetas devem agradecer esse feliz acaso) não
temos esse problema, mas em francês a significação das palavras se
opõe a sua sonoridade, assim “jour” (dia) tem uma sonoridade “som-
bria” para o poeta, enquanto “nuit” (noite) é sonoramente “clara”,
“iluminada”. Isso é o que o poeta chama de “defeito” das línguas, que
ele classifica como uma “perversidade”, mas pode ser “remediado”
através do verso: “Somente, saibamos não existiria o verso: ele filoso-
ficamente remunera o defeito das línguas, complemento superior”
(MALLARMÉ, 2010, p. 162).
A arbitrariedade que constitui as línguas impede, portanto, toda
tentativa literária que se baseie num princípio mimético, represen-
tativo, pois esse acaso que torna toda língua imperfeita separa de-
finitivamente as palavras das coisas, sua música de seu significado.
Assim, o verso, ao reunir e fazer com que as palavras emprestem
umas às outras aquilo que em si mesmas não possuem, pode criar
sonoridades em harmonia com a significação, ou criar significações a
partir da sonoridade das palavras, do ritmo, dos desencontros e que-
203
bras sintáticas. A literatura, como forma “essencial da fala”, através
da sugestão e da alusão, nega os objetos, porque se nega a descrevê-
-los, a nomeá-los. A poética mallarmeana demonstra que, através
da linguagem, do verso, podemos apenas medir a distância que nos
separa dos objetos e, assim, criar ficções, ideias.
A poesia opera uma transposição de “estrutura” que visa apresen-
tar a noção pura que se desprende musicalmente dos objetos:
Digo: uma flor! E, fora do oblívio em que minha voz relega algum
contorno, enquanto algo de outro que os cálices conhecidos, musi-
calmente se eleva, ideia mesma e suave, a ausente de todos os bu-
quês. (MALLARMÉ, 2003, p. 213)
204
mundo através da poesia, que vê a poesia como uma representação
do mundo. Para o autor, o papel que Mallarmé confere à poesia, na
conclusão de “Crise de verso”, é evitar, de antemão, que o poema seja
reconduzido ao real e julgado pela sua fidelidade ou infidelidade para
com ele. Assim, para evitar que a realidade prática se oponha ao po-
ema, é preciso que o poema postule, na e pela sua escrita, a ausência
do mundo ao qual ele envia, e, portanto, para o qual ele não pode
mais ser remetido.
Certamente, trata-se de uma resposta à exigência do sen-
so comum de uma linguagem representativa, de uma literatura
mimética, mas a crítica ao caráter referencial da linguagem não
pode ser produzida apenas pela simples exclusão de toda e qual-
quer referência. Mallarmé não procura realizar uma “negação
linguística do mundo e da história” como quer Durand. Trata-
-se, na verdade, de reivindicar um estatuto de verdade para o
próprio fato literário, para a ficção. Trata-se de reivindicar um
modo de existência distinto do real do qual podemos ter uma
certeza imediata e sensível.
No trecho citado, a flor “dita”, a palavra pronunciada, não sig-
nifica o ato de abolição de todas as outras flores, nenhuma palavra
poderia ir tão longe. No entanto, a palavra não é a flor, ela se dife-
rencia das flores reais, a palavra “flor” como o perfume que as flo-
res exalam, se desprende da flor existente e assim, uma distância
se instaura, distância que separa a realidade das ideias. A flor de
Mallarmé é mais verdadeira que a flor real, pois é no seu reflexo
que ela se mostra, que ela aparece, como reflexão, ideia, outra, e
ausente de todos os buquês.
A música e as ideias
205
sicalidade do verso, a música é um conceito, uma ideia de forma,
através do qual a poesia pode alcançar uma dimensão ideal, a
dimensão das próprias ideias.
A música é compreendida para além do verso, ela apresenta “as
sinuosas e móveis variações da Ideia”, mas ela é vã quando a lingua-
gem não lhe confere um sentido, por isso música e letras devem,
unidas, compor a poesia:
206
tempo da execução musical, uma subjetividade que não ousa se-
quer se nomear, de caráter negativo como a própria música.
Mallarmé aparece aqui como herdeiro das discussões sobre o ca-
ráter absoluto da música que percorreram todo o idealismo alemão.
No primeiro romantismo, dos irmãos Schlegel, Schelling, E.T.A
Hoffman, entre outros, a música aparece como veículo privilegiado
do sublime, compreendido a partir da noção kantiana de “conceito
indeterminado da razão”. O romantismo encontrou na ausência de
determinação particular da música o veículo mais adequado para ex-
por essa inadequação entre a razão e seu objeto.
Já para Schopenhauer, que nos parece mais próximo de Mallar-
mé, a música não é a expressão de uma inadequação, mas o melhor
veículo para apresentar o que é da ordem da vontade ou a verdade da
representação. Pois na música o que se expõe não é a impotência da
razão diante de seu objeto, mas o motor que move toda representa-
ção, a vontade. Aquela mesma que apareceria quando a poesia fizesse
do seu método uma reflexão sobre a linguagem.
A música é para Schopenhauer completamente distinta das ou-
tras artes. Nela não conhecemos a cópia de uma ideia e, no entanto,
ela é capaz de produzir no homem um efeito profundo, “temos de
reconhecer-lhe uma significação muito mais séria e profunda, refe-
rida à essência íntima do mundo e de nós mesmos” (Schopenhauer,
2005, p. 337). A música, assim como as outras artes, “tem de estar no
mundo como a exposição para o exposto”, mas seu efeito parece mais
forte, mais vigoroso, infalível.
A música opera através de caracteres abstratos que possuem sig-
nificado no interior de uma escala, seu material é puro signo, que
nada significa em si mesmo, cada nota existe e se define com relação
às outras que a rodeiam, como as palavras que no poema devem ilu-
minar e refletir umas às outras.
Enquanto abstração dos elementos concretos e materiais do
mundo, da materialidade que constitui todas as coisas, seu fundo de
mistério e verdade, irrevogável e inefável, a música se reúne às letras,
toma forma de poesia para enunciar o que é da ordem da Ideia. “A
Música e as Letras são a face alternativa aqui estendida em dire-
207
ção ao obscuro; cintilante lá, com certeza, de um fenômeno, o único,
eu o chamei Ideia.” (MALLARMÉ, 2003, p. 69) A perfeita união
entre as duas artes se realiza quando a poesia é capaz de anunciar
o mistério, porém preservando-o, ou seja, enunciá-lo sonoramente,
musicalmente, sem nomeá-lo, pois isso seria eliminar a possibilidade
de conceder espaço, nos espaços em branco do poema, para a imagi-
nação do leitor.
Para Schopenhauer, as artes estimulam o conhecimento das coi-
sas particulares por meio das Ideias, que são a objetivação da vonta-
de. As artes, na verdade, nos apresentam o próprio mundo, que não
é outra coisa senão o fenômeno das Ideias. No entanto, a música é
capaz de ultrapassar as Ideias e todo o mundo fenomênico; ela pode-
ria existir, inclusive, se não houvesse mundo.
208
coisas particulares. Desse modo, explicar a música e o seu funciona-
mento seria o mesmo que explicar o mundo através de seus concei-
tos, como faz a verdadeira filosofia, segundo Schopenhauer.
A música é, portanto, a arte que pode fornecer à poesia um pa-
radigma de arte não representativa, mas que também não é uma
simples prosa filosófica, como queria Hegel. Na verdade, a poesia
deve ser como a música, o modo mesmo de apresentação da ver-
dade íntima das coisas, ou seja, o que a filosofia expõe através de
conceitos cabe a música expor através de seu próprio material, assim
a poesia deve encontrar na linguagem um meio de expressão próxi-
mo do material musical. Isso é possível quando a linguagem aparece
desvinculada de toda forma de narração e descrição que, além de
torná-la demasiado representativa, reifica a linguagem e subtrai sua
verdadeira capacidade expressiva.
Em “La musique et les Lettres” (2003), o poeta anuncia que a
pesquisa sobre o verso livre fez com que “o ato de escrever se exami-
nasse até a sua origem”, o que corrobora com a afirmação de “Crise
de vers” de que a crise de verso, provocada pela crise do verso tradi-
cional, é uma crise dos fundamentos da literatura, em que se ques-
tiona a possibilidade de existência do texto literário, as razões que
movem um poeta a escrever e sobre a natureza de seu ato.
209
do verso, independentemente do número de sílabas, como vemos em
muitos outros poetas de seu tempo, sobretudo Verlaine, com seu “la
musique avant toute chose”, mas trata-se de compreender a música
como forma de expressão de algo cuja presença, cuja forma de apre-
sentar-se é a da volatilidade. E se a Música, com a ajuda das Letras,
é capaz de fazer resplandecer e brilhar algo da ordem das ideias é
porque elas, ao compor a poesia, conferem-lhe a forma mesma das
ideias, que é essa forma, volátil, evanescente.
Para Mallarmé, a poesia não busca outra coisa que criar a noção
dos objetos, ou melhor, esposar a noção, unir-se a ela. Criar uma
noção, ou apreendê-la é o mesmo que “saisir les rapports”, ou seja,
estabelecer uma rede de relações, traçadas entre as palavras, suas le-
tras, seus sons. Assim, escrever é sugerir para liberar a realidade de
seus contornos ilusórios, é transpor o mundo para o Livro, espaço de
ficção, espaço de verdade, pois no Livro as coisas aparecem tais quais
elas são, “musicalmente”, como “dispersão volátil”.
Schopenhauer termina suas considerações sobre a música, acres-
centando que haveria muito a dizer sobre a forma como a música é
percebida, “a saber, única e exclusivamente por meio do tempo, com
total exclusão do espaço, também sem influência do conhecimento
da causalidade, portanto do entendimento” (Schopenhauer, 2005, p.
349). Essas considerações nos indicam a via que Mallarmé seguiu
na elaboração de sua poética. A música não apenas fornece um pa-
radigma de reflexão sobre a representação e um modelo de arte não
mimética, mas também, por estar imune à influência da causalidade,
pode indicar um caminho para a reflexão sobre a natureza do acaso e
sua influência na criação poética. Vimos que para Mallarmé o tempo
é o meio que permite que o acaso se deixe entrever, resta sabermos
como isso ocorre, de fato, na poesia mallarmeana. Esse será o objeti-
vo do próximo capítulo.
210
IX
O LANCE FINAL
212
escrita se define a partir das discussões que apresentamos anterior-
mente sobre a importância do teatro, do balé e da mímica no desen-
volvimento da poética mallarmeana. Trata-se aqui de determinar a
objetividade da linguagem, seu caráter concreto, visual, de compre-
endê-la como um modo de ação. Os aspectos que mais atraíam o
poeta nessas artes aparecem reunidos na ideia de escrita que compõe
a linguagem, ou o verbo poético. A escrita é, assim, a marca dos ges-
tos da ideia que se manifesta pela fala. A escrita é gestual, ela encarna
a objetividade do teatro, mas sua existência é fulgurante, seus gestos
são o da ideia, que se manifesta na fala, pura dissolução de si mesma.
Assim a escrita reflete a ideia que se manifesta na música, ela escreve
a ideia mesma do som, a sonoridade se transforma com a escrita num
traço, concreto, numa marca. A escrita fixa o que a música dissolve.
Esse modo de ser da linguagem, visual e sonoro, é a própria
exposição do modo de ser da linguagem, segundo Mallarmé, que
deve ser adequado ao Tempo e à Ideia. O que interessa é o sentido,
o significado desse movimento, pois não se trata para Mallarmé de
fazer um elogio do inefável, mas de unir os elementos opostos da
linguagem, a fala e a escrita “de maneira a perfazer no presente
(pela leitura) e a conservá-las para o futuro”. Assim, esses opostos
não se anulam, mas são capazes de instaurar um presente, indicar
um futuro. Através da fala e da escrita o tempo não é somente dis-
solução, mas inscrição. Há algo nesse ato momentâneo da ideia, na
música do poema, que se conserva, que se mantém irredutível sob
a página: as próprias Letras.
Trata-se de buscar o significado da própria linguagem, ao des-
velar o processo de constituição de todo significado, como modo de
ser contraditório, entre a ausência e a presença. O que está em ques-
tão é expor o mecanismo representativo para buscar reconfigurar o
presente, reconfigurar nossa ideia de presente, nossa ideia de poesia,
reconfigurar a poesia do presente. Assim, há algo que se diz no mo-
vimento de desvanecimento da linguagem, na exposição e no desve-
lamento da representação, e é esse dito que permanece sob a folha de
papel, porque só a poesia é capaz de fixá-lo.
213
Aspectos visuais de Um lance de dados
214
Que uma fala lançada sobre os dados pois não pode ser com certeza
que uma fala, não se realize, como havia segundo o pensamento, II
chances que ela não se realizasse contra uma, o acaso se afirma em
relação à fala, se negando em relação ao pensamento – Pois o acaso
foi que a fala se realizou. Todavia se ela se realiza, o acaso se nega
quanto à fala, se afirmando em relação ao pensamento, pois essa
deve. (MALLARMÉ, 1998, 476)
215
sentido como queria Derrida, o que Mallarmé procura é o equilíbrio
difícil, entre o controle e o abandono, o ponto em que uma diferença
mínima entre os dois aparece, que não é, no entanto, suficiente para
que acaso e pensamento possam se distinguir e se excluir mutua-
mente.
Un coup de dés formaliza a questão central de Igitur, responde po-
eticamente a uma questão que só poderia se resolver dessa maneira,
formalmente. Isso quer dizer que se Igitur permaneceu inacabado é
porque a forma conto não é capaz de responder à questão do acaso.
É essa ideia que pretendemos demonstrar neste capítulo.
O poema já não tem mais como personagem principal Igitur,
uma conjunção, mas um outro “Le Maître”, o mestre, alter ego do
poeta que surge para lançar os dados. Se Igitur é a conjunção que
procura ligar dois termos distintos, acaso e pensamento, no poema
essa função é do poeta, o mestre que deve, no verso, “remunerar o
defeito das línguas”. Aqui o poeta não se esconde mais atrás de seu
personagem, ele resolve diretamente expor seu drama, problematizar
a criação, transformando-a no tema, na forma do poema.
O poema também não está escrito em “prosa”, mas em verso, pois
a questão aqui gira em torno do maître/mètre que é mestre e metro
ao mesmo tempo, poeta e prosódia, o que indica que o conflito do
poema gira explicitamente em torno da sua própria execução. Un
coup de dés mantém, no entanto, a “estrutura” narrativa do conto,
trata-se da narração de uma hesitação. Os modos verbais são o sub-
juntivo e o condicional, “tout se passe, par raccourci en hypothèse”
(“tudo acontece, por atalhos em hipótese”), como se o poeta refletisse
sobre o ato poético, sobre a possibilidade de existência da poesia. A
questão existencialista de Hamlet é aqui a questão da existência da
própria poesia; o poeta hesita não entre ser e não ser, entre agir ou se
calar, sua questão é: lançar ou não lançar os dados? Escrever ou não
escrever?
“O mestre” hesita porque sabe que, se os dados forem lançados,
o número viria pelo acaso, ou seja, o ato de lançar os dados é sem-
pre uma confirmação do acaso: “si c’était un nombre ce serait
216
le hasard” (“se houvesse um número, seria o acaso”) (MALLAR-
MÉ, 2003, p. 432).
O conflito principal é, portanto, a luta contra o acaso, que não se
deixa resumir pelo cálculo das probabilidades ou ao cálculo das síla-
bas do verso: “le maître” “surgi” “pour le jeter”, para lançar os da-
dos, no entanto, ele “hesite”, “ancestralement à n’ouvrir pas la main”,
trata-se do “l’ultérieur démon immémorial” que “induit”, “dans” “des
contrés nulles”, “le vieillard vers cette conjonction suprême avec la
probabilité”.
Esse demônio, “né / d’un ébat”, “la mer par l’aïeul tentant et
l’aïeul contre la mer”, representa o noivado, “Fiançailles”, união en-
tre o pensamento e o acaso, que venceria o acaso. Mas o velho sabe
que se trata de uma loucura, “folie”. As duas páginas que seguem
apresentam o que seria essa loucura, o desejo de eliminar o acaso,
que transforma o mestre em “prince amer de l’écueil”, seduzido pelo
canto de uma sereia, este ser de ficção que provocaria a sua perdição,
o naufrágio do homem “faux manoir/ évaporé en brumes”.
Diante da impossibilidade de eliminar o acaso, o poema afirma
que não há, portanto, um ato possível, “rien n’aura eu lieu que le
lieu”, que nada pode acontecer. A hesitação do mestre é um questio-
namento sobre a possibilidade mesma da literatura. Diante do acaso,
nenhum ato parece possível, pois se não pode ser abolido, o pensa-
mento será sempre impotente. E a poesia impossível. No entanto,
parece haver um momento excepcional, uma exceção que permitiria
que o poema se realizasse, a condição de que ele seja como uma
constelação, sem as barragens do mar que impõem limites ao infini-
to, como o espaço onde toda realidade se dissolve, mas que serve, no
entanto, como guia para os navegantes, para os homens. Na constela-
ção o caminho do poema parece estar escrito. Esse lugar excepcional,
esse lugar de exceção que é o poema, o fundo do naufrágio do ho-
mem, talvez possa funcionar como o espaço de onde emergiria uma
nova gramática, uma nova sintaxe de nossos desejos, gestos e ações.
No prefácio do poema, na edição da revista Cosmopolis, de 1897,
Mallarmé indica que a única novidade do poema é relativa ao seu
“espaçamento”: “o todo sem novidade a não ser um espaçamento na
217
leitura”, ele não se considerava em posição de romper definitivamen-
te com a tradição, de agir radicalmente contra o que era habitual. Ex-
cesso de modéstia talvez, timidez, ou excesso de precaução por medo
de desagradar seus contemporâneos, o fato é que o poeta tem consci-
ência de estar participando,“com imprevisto, às buscas particulares e
caras a seu tempo, o verso livre e o poema em prosa” (MALLARMÉ,
1998, p.391).
Mallarmé não foi durante toda a sua carreira um defensor do
verso livre. Muito pelo contrário, grande parte da sua obra foi escrita
com versos tradicionais, para entender o que o levou a tal mudança
basta olharmos para o cenário poético da França, dos anos 1880.
É notável a distância formal que separa Um lance de dados da
poesia mallarmeana anterior. Como Murat observa, as únicas “ino-
vações” que Mallarmé realiza desde “L’après-midi d’un faune”, de
1866, até “Prose”, de 1875, são simplesmente alterações na cesura
do alexandrino. O “fauno”, por exemplo, é construído com um ritmo
irregular deixando de lado a regra da cesura no hemistíquio. Esse
verso poderia ser definido como “todas as combinações possíveis
de doze timbres”, que, embora não caracterize uma ruptura com a
poesia anterior, custou ao poeta uma recusa na segunda edição do
Parnasse contemporain. Entre esse período e a publicação de Um lance
de dados, uma grande transformação deve ter ocorrido para que o
verso deixasse de ser uma combinação de doze timbres para se tornar
“polimorfo”, apenas ritmo e estilo, expressão pessoal e individual do
poeta. Algo deve ter acontecido para que Mallarmé deixasse de lado
seu lado conservador e afirmasse na entrevista a Jules Hurêt que já
era tempo de o alexandrino “descansar”. Segundo o autor, devemos
supor que nesse intervalo um conjunto de fatores veio modificar a
concepção que Mallarmé tinha da literatura e de sua própria obra,
historicizando-a sem, no entanto, traí-la.
Os fatores que poderiam ter contribuído para essa tomada de
posição no interior do campo literário foram: a recepção positiva da
obra do poeta, nos textos que já citamos anteriormente, sobretudo
“Les poètes maudits”, de Verlaine, e À rebours, de Huysmans. Textos
218
que permitiram que o poeta adquirisse uma consciência renovada de
sua obra, pois inscreveram sua poesia na história da literatura.
O “lance de dados” se inscreve historicamente, se torna possível,
como o próprio poeta aponta, devido às outras “invenções” de seu
tempo, como o verso livre e o poema em prosa. Essas novas formas
permitiram que o poema eclodisse e dispersasse com ele o verso.
No entanto, como pretendemos demonstrar, o poema ultrapassa a
forma do verso livre, ele se constitui a partir de outro paradigma,
daí a insistência do poeta no prefácio do poema em se comparar aos
seus contemporâneos guardando ao mesmo tempo certa distância.
Na verdade, Mallarmé vai além do verso, além da métrica e define o
espaço da página como o responsável pela apresentação da Ideia, de
seus gestos.
Como nos mostra Laurent (2002, p. 57), a partir do trabalho crí-
tico de Roubaud, o verso livre não pode se definir sintaticamente
como outrora se definia o verso metrificado, nem como unidade fo-
nológica, nem mesmo pelo ritmo. O verso livre “só tem existência
visual”. Mallarmé parece ter em pouco tempo compreendido o que
estava em jogo no verso livre, ele foi um dos primeiros que soube
aproveitar o caráter espacial do novo verso e de utilizá-lo para criar
novos paradigmas formais. Para Mallarmé, o verso também não é
uma unidade sintática ou fonológica, pois, através da sua espacializa-
ção, ele agora se define pela operação que realiza. O verso é a “sub-
divisão prismática da ideia”: “O papel intervém cada vez que uma
imagem, ela mesma, cessa ou entra, aceitando a sucessão de outras e,
como não se trata, como sempre, de traços sonoros ou regulares do
verso – mas antes, de subdivisões prismáticas da Ideia” (MALLAR-
MÉ, 1998, p. 391).
A forma de uma ideia é determinada pelo espaço que se torna um
aliado do poeta; ele contribui para gerar significado tanto quanto as
próprias letras, por isso Mallarmé sempre ressalta a importância dos
espaços em branco de seus poemas. Se a imagem se torna fragmento
da ideia, ela pode ser reforçada pelos caracteres das letras, fazendo
com que os “gestos da ideia” tenham sua relevância ressaltada pelo
219
tamanho e pelo negrito ou itálico das letras, como se os diferentes
caracteres tipográficos correspondessem aos tons e timbres musicais.
Os diferentes caracteres tipográficos são utilizados para distinguir
diversos “motivos” do poema, enquanto os espaços em branco
organizam sua disposição em torno do motivo principal, como uma
constelação de letras. Mallarmé distingue os motivos do poema
em “preponderantes”, “secundários” e “adjacentes”, além do motivo
principal que é a própria frase-título do poema. Cada um desses
motivos recebe um caráter especial. As “subdivisões prismáticas da
ideia” se organizam, através dos caracteres, em diversos motivos.
As imagens entram e saem de cena, elas se ligam e se desligam do
motivo principal, da frase-título, girando em torno dela como uma
constelação. O motivo preponderante é formado por: UN COUP
DE DÉS / JAMAIS / N’ABOLIRA / LE HASARD. O primeiro
motivo secundário seria: Si / c’était / le nombre / ce serait – que possui
como termos adjacentes: comme si / comme si, e diversas outras rami-
ficações. O motivo secundário (com muitos adjacentes): quand bien
même dans des circonstances éternelles / du fond d’un naufrage /
soit / le maître / existât-il / commençât-il et cessât-il / se chiffrât-il
/ illuminât-il / rien/ n’aura eu lieu/ que le lieu/ excepté/ peut-être
/ une constellation. Outros motivos adjacentes estão representados
pelas letras menores.
Cada motivo tem sua importância definida pelo tipo e tamanho
do caractere, além do espaço que ocupa na página. E, além disso, o
espaço funciona para criar um ritmo de leitura, a altura da página
em que as palavras aparecem determinaria, assim, a entonação da
leitura. Como indica o poeta: “os caracteres de impressão […] ditam
sua importância na emissão oral e a dimensão, média, alta, em baixo
da página, notará que sobe ou desce a entonação” (MALLARMÉ,
1998, p. 391-392).
O tamanho das letras, assim como os caracteres, indica sua im-
portância na constituição do poema, sua entonação, contribui para
definir um ritmo individual, baseado no espaço, no caráter visual do
poema. Além disso, o espaço cria um sentido de leitura, os caracteres
sempre realizam um movimento de descida na página, como Igitur,
220
que desce ao fundo do espírito humano, mas longe de mergulhar
num abismo, aparece na página seguinte, mais uma vez nas alturas.
Esse sentido é mais que espacial, como o espaço é mais que uma
transposição da organização sonora, os timbres e as alturas, sonoros
ou espaciais, organizam pares de contrários, oposições entre letras
maiores ou menores, em negrito ou itálico, no alto ou em baixo da
página, entre sons distintos, sonoridades “abertas”, “fechadas” etc.
Como se todo poema se estruturasse a partir de oposições, seguin-
do a oposição fundamental das Letras, entre o negro da escrita e o
branco da página, presente também nos dados, em que os números
são símbolos negros sobre a face branca e em que figura, portanto,
a própria oposição entre pensamento e acaso, criação poética e con-
tingência. Em uma nota manuscrita, recentemente publicada, lemos:
221
coloca em questão diante dos nossos olhos, ele se procura, entre os
números e as letras, se elabora, se dissolve, é, desaparece e reaparece.
No entanto, a definição do espaço como operador “das divisões
prismáticas da ideia” não resolve a questão do verso livre e muito
mesmo explica a relação de Mallarmé com a tradição poética, com a
qual o poeta jamais rompeu definitivamente.
Se Mallarmé é tão contraditório nas afirmações que concernem
o verso livre e o verso tradicional é porque a questão do espaçamento
do poema, como vimos anteriormente, é a questão mesma do verso
livre. Nesse momento, nos primeiros anos de seu aparecimento, o
verso livre já era compreendido como definido pelo espaço. Assim, a
questão da métrica é sempre ambígua, pois podemos entender que
o poema é composto de diversos metros, dispostos ao longo da pá-
gina, de tal modo que se as palavras forem reagrupadas e os espaços
encurtados, então se obtém a métrica “real” do verso, que pode então
aparecer como um octossílabo, um dodecassílabo etc. Isso quer dizer,
na prática, que o verso metrificado continua presente no verso livre,
ele é sua referência, mesmo que implícita, e é só em relação a ele que
o verso não metrificado pode ser dito livre. Essa leitura se baseia nas
declarações do poeta, que afirma jamais ter rompido inteiramente
com a tradição, conforme consta do prefácio do poema:
222
o alexandrino deveria ser guardado e reservado para ocasiões solenes.
Ora, a frase-título do poema parece ser uma ocasião desse gênero,
pois trata-se de afirmar a irredutibilidade do acaso, por isso o poeta
utiliza um metro, que não é o alexandrino, mas que faz referência a
ele, o verso de treze sílabas, quase um verso falso: “Un coup de dés
jamais n’abolira le hasard”. Dessa maneira o poeta joga com o acaso
e com a tradição, procura ironizar o metro tradicional e ao mesmo
tempo utilizá-lo para conferir um caráter “solene” à sua afirmação.
223
de examinar o processo de escrita e de leitura que incessantemente
transforma a escrita em fala e o som em escrita. Assim, temos que a
conversa é composta por um primeiro movimento que vai da frase
à letra; que ainda não é sentido mas signo; o segundo movimento
deve se servir do signo, da escrita ou das letras para ligar a palavra
ao seu significado. Assim, a letra é, antes de mais nada, signo, quase
um objeto, não ainda um símbolo, mas apenas índice, ela indica algo
além de si mesma, uma direção, ela abre um horizonte.
No entanto, a conversa não é somente escritura, transformação
da palavra em signo, do signo em sentido, ela é também, como a
leitura, fala, som. A frase passa para as letras, se torna signo, palavra
escrita, e, enfim, num segundo momento, o momento da leitura, que
realiza o sentido inverso da escrita, que contribui igualmente para o
sentido, passando do signo escrito à fala, ao som. Essas duas fases da
“conversa” representam os dois momentos da linguagem. Além disso,
a conversa vai além da “fala”, do som; ela implica troca, que se reali-
za no interior da própria linguagem, justamente porque a “conversa”
não é apenas signo ou som, mas também a união dessas duas fases
da linguagem.
A “conversa” é a dissolução da escrita através do seu tornar-se
outro, seu tornar-se fala. Enquanto “procedimento essencial da lin-
guagem”, tem um caráter duplo. De um lado se constitui como uma
abstração, mas de outro o poeta afirma a importância de compreen-
dermos a “conversa” “tal qual ela aparece em sua manifestação habi-
tual e tal qual a possuímos no caso presente” (MALLARMÉ, 1998,
p. 508). Ela se define, pois “permite uma abstração de nosso objeto, a
Linguagem, ao mesmo tempo que espaço da Linguagem, ela permi-
te oferecer seu momento à Ciência” (MALLARMÉ, 1998, p. 508).
Homem, Espírito, Linguagem se definem, no seu momento presen-
te, como Mallarmé diz, ou a partir de suas manifestações, em que a
presentificação é a apresentação conceitual. No entanto, o momento
presente é negativo, é um devir, ao mesmo tempo um momento de
irrupção, no qual a fala se escreve, e de dissolução, no qual ela se
torna som mais uma vez.
224
Nos rascunhos que Mallarmé deixou do poema ele define seu
caráter oral a partir do caráter efêmero e abstrato da “fala”: “a fala
se profere como sons à inteligência, no ar e por assim dizer musi-
calmente” (MALLARMÉ, 1998, p. 403).
Retornemos ao prefácio:
225
ainda mais a negação que “jamais” porta. Outra palavra com sentido
negativo é “abolição”, que possui, no entanto, um som neutro, di-
gamos entre “coup” e “dés”, nem muito fechado, nem muito aberto.
Uma neutralidade que contrasta com a forma da palavra, que de-
finitivamente encerra as possibilidades de abolição do acaso que o
lance de dados, o pensamento busca efetuar. Não consideramos aqui o
lugar que os vocábulos ocupam nas páginas do poema, mas o leitor
pode observar que, frequentemente, o espaço visa neutralizar o som
e o sentido, contrabalanceando-os, como se o espaço fosse mais um
elemento na constituição do sentido (COHN, 1951).
No entanto, como vimos anteriormente, a oralidade do poema
se configura não apenas com os sons das palavras, mas como ideia
mesmo de poesia. Mallarmé ressaltou muitas vezes que o verso livre
permitia um tipo de articulação “individual”, ele permitia que um
poeta desenvolvesse um estilo próprio, pessoal, único. Meschonnic
(apud MALLARMÉ, 1985, p. 41) desenvolve toda uma teoria da
voz poética a partir dessa hipótese da leitura do poema. No prefácio
de Écrits sur le Livre, de Mallarmé, constata-se que a impessoalidade
não caracteriza em nada um não sujeito, mas sim o trabalho do poeta
que cede a iniciativa às palavras. O sujeito, segundo o autor, é a pas-
sagem da subjetividade na e para a linguagem. Essa subjetividade se
constitui na prosódia que acompanha a escrita do poema, “ato de in-
dividuação” que o autor nomeia “fala”, parole, união entre a oralidade,
primado do ritmo e voz, ato de individuação, o próprio verso, ou seja,
a fala seria uma aliança entre o ritmo e o sujeito. Segundo o autor,
ligar o individual e o oral deixa transparecer que a subjetividade e
a historicidade são solidárias e presentes na voz. A poesia é, assim,
recolocada na oralidade, portanto, no sujeito, com sua historicidade.
A ideia de Meschonnic pode ser válida se admitirmos uma lei-
tura oral do poema, no entanto, essa questão não é de todo clara e já
gerou diversas polêmicas. Laurent comenta essa questão em La fin de
l’intériorité. Ele se opõe à leitura de Meschonnic e utiliza como justi-
ficativa a descrição que Valéry faz da leitura que o próprio Mallarmé
teria feito do poema, em sua presença, o que testemunha seu caráter
eminentemente “mental”. Contudo, o que definitivamente impede
226
uma leitura “oral” do poema é, para Laurent, sua configuração espa-
cial, que nenhuma performance oral é capaz de “representar” (como
configuração espacial entende-se a posição de cada palavra na pá-
gina, a dupla página ou a “dobra”, o tamanho de cada vocábulo, os
caracteres tipográficos, seu regime de constituição e as relações que
cada um desses elementos estabelece visualmente e que contribui
para gerar significados).
Como o autor afirma, o poema se configura no espaço da página
que representa o espaço mesmo do pensamento, tal como em Igitur.
Assim, a inteligência do leitor deve colocar as palavras no seu devido
lugar. No poema o pensamento toma forma, se exterioriza, mas essa
exteriorização não se dá somente devido à solidez dos caracteres
na página. Ao contrário, a forma da exteriorização do pensamento,
a forma do poema se constitui a partir da contradição entre a fala
e a escrita. Por isso, não podemos desligar um aspecto do outro,
a oralidade e o aspecto visual do poema, pois ambos só adquirem
sentido quando em relação um com o outro. Como o próprio poeta
ressalta, o poema, na sua própria constituição espacial, resulta, para
quem pretende lê-lo em voz alta, numa partitura: “Acrescentamos que
esse emprego a nu do pensamento com retrações, prolongamentos e
fugas, ou seu próprio desenho, resulta, para quem quer ler em voz
alta, numa partitura” (MALLARMÉ, 1998, p. 391). Uma partitura
que cabe ao leitor interpretar e executar.
Considerar o poema apenas em seu aspecto visual, sem levar em
consideração seu aspecto oral, transforma o poema num “gênero” se-
melhante à sinfonia; como o próprio poeta ressalta, seria equivalente
a afirmar, com Blanchot (1959, p. 318), que no poema Um lance de
dados: “O acaso é senão vencido, ao menos atirado no rigor da fala
e elevado à sólida figura de uma forma onde ele se encerra”. Ora, a
fala e igualmente o aspecto visual do poema colaboram para criar a
impressão e a aparência de que o poema é puramente casual, não a
realização racional, fruto do cálculo, mas a própria forma do acaso,
sua realização máxima. É na fala e no espaço que o poema, em vez de
se fechar sobre si mesmo, abre um infinito de possibilidades, inclu-
sive de possibilidades de leitura e interpretações, pois a cada palavra
227
vista ou pronunciada ele se dissolve e recomeça, incessantemente,
sem encontrar um ponto último que o sacralize, no limite em que
“toda a realidade se dissolve”. Assim, ele está sempre aquém ou além
do acaso e não pode se restringir à sua forma que seria, na verdade, a
ausência total de forma.
Por isso, é preciso manter o equilíbrio entre os dois aspectos do
poema, o aspecto oral e o aspecto visual, pois um aspecto constitui
e contradiz o outro, sem que eles se anulem, mas, pelo contrário,
criem novas possibilidades de sentido, configurem o próprio sen-
tido, no seu movimento. A coreografia do poema se realiza nessa
interface entre visual e oral, no espelhamento desses dois aspectos
de onde emergem significações múltiplas. Essa, sim, seria a verda-
deira forma do acaso, uma forma que nunca se encerra, que não se
deixa restringir, em que o acaso não é mimetizado ou controlado,
mas em que ele aparece como elemento constituinte da própria
forma, capaz de transformá-la do seu interior e impedir que se fixe
completamente. Só assim o acaso pode aparecer como algo além de
uma presença fulgurante e instantânea, como um verdadeiro pro-
cesso, como devir.
Trata-se, portanto, de encontrar um equilíbrio entre o acaso e
o pensamento, entre a forma e a não forma, entre o passado, o pre-
sente e o futuro; trata-se de deixar que o movimento evanescente
da fala se inscreva no poema, deixe traços de sentido no papel, para
em seguida, na leitura, dissolver-se novamente, e assim sucessiva-
mente. O que está em questão nessa relação entre letras e música,
entre tempo e espaço, é expor o que se constrói no movimento
fugaz de passagem do tempo, expor o espaço onde o tempo se de-
senvolve, se desdobra. O que está em jogo nesse lance de dados é a
constituição de uma forma, de um modo de presença capaz de ser
ao mesmo tempo passado, presente e futuro, presença fulgurante
e, no entanto, permanente; trata-se de fixar essa luz, esse lampejo
que eclode no choque entre as palavras, na sua reflexão mútua. Esse
jogo de espelhos é possível através de outro recurso formal inova-
dor, a página dupla.
228
A página dupla: a dobra
229
A página dupla evoca uma metáfora muito presente na obra
mallarmeana, à qual já fizemos alusão quando tratamos de Héro-
diade. Trata-se do “hymne”, ou “hymen”, termo que o poeta utiliza
para designar a união de dois termos opostos. “As dobras perpetua-
rão uma marca, intacta, convidando a abrir, fechar a folha, segundo
o mestre. Tão cego e pouco um procedimento, o atentado que se
consuma, na destruição de uma frágil inviolabilidade” (MALLAR-
MÉ, 2010, p.183). Eis a razão pela qual encontramos na poesia de
Mallarmé objetos como o leque, as asas, indicando esse movimento
que é o do próprio livro abrindo e fechando.
A dobra, ou esse hímen, funciona como véu, pois cada página
virada rompe com a inviolabilidade do texto, com a virgindade do
escrito, que se revela ao leitor. Assim, cada página virada é uma apa-
rição, um desvelamento, uma revelação. A “dobra” se assemelha, des-
se modo, à ideia de reflexão, termo que também implica um duplo,
termo que gera um duplo, uma imagem, a página dividida em duas
não reflete seu outro lado, apenas se fecha sobre si mesma. Ou seja,
apenas a página dupla, sem dobra, permite que um lado da página
se espelhe no outro, dialogue com o outro e nele se reflita. A página
dupla permite um movimento de ir e vir, que é a verdadeira reflexão,
um ir além dos limites do livro que a dobra na página impede, encer-
rando, como mencionamos, ao virar a página, um segredo.
As “subdivisões prismáticas da ideia”, termo que Mallarmé uti-
liza para caracterizar sua utilização do verso livre nesse poema, são
possíveis porque a página dupla permite o espelhamento das pala-
vras; elas se refletem umas nas outras, tornando o movimento da lei-
tura similar ao de um barco que navega por um oceano tumultuado.
O espaço reflete o som, a imagem mimetiza o próprio movimento
do sentido, ondulante, um ir e vir repetitivo, mas que, em vez de girar
em torno de si mesmo, não cessa de se expandir, como numa cons-
telação. Se as estrelas fornecem aos navegantes um caminho, uma
direção, o verso livre multiplica as direções, e, com uma visão dupla
da página, as direções do sentido se multiplicam igualmente. Como
o poeta indica no prefácio do poema:
230
a vantagem, se tenho direito a dizê-lo, literária, dessa distância co-
piada que mentalmente separa os grupos de palavras e as palavras
entre si, parece acelerar ora e retardar o movimento, escandindo-o,
intimando mesmo de acordo com uma visão simultânea da página.
(MALLARMÉ, 1998, p. 391)
231
como se entre o dito e o que se diz não houvesse mais distância, a
qual constitui, no caso, a ideia de representação.
Justamente a dupla página que permite esse abandono do con-
ceito de representação. A página dupla, em que a dobra não é mais
dobra porque ela se desdobra e se expande, simboliza esse movimen-
to reflexivo do poema. Ela permite que o poema se espelhe, se reflita,
seja reflexão sobre sua criação, espelho em que o acaso interfere a
cada lance, a cada pensamento. Aqui, poema e pensamento são um
só, porque a cada lance é o acaso que realiza sua própria ideia.
O poema tipográfico se torna figura do pensamento, não mais
como tradução da interioridade, mas como exterioridade inteligível.
Assim, as palavras, as frases, os movimentos que apresentam são os
próprios gestos da ideia. Não podemos mais falar em interioridade,
certamente, pois o poeta exclui a figura do autor. No entanto, o po-
ema ainda conta com seu alter ego, digamos, o mestre, ou o próprio
metro. Para explicar melhor essa ideia vamos reconstituir o que pa-
rece ser a “ação” central do poema.
“o mestre” “surge” para lançar os dados, no entanto, ele
“hesita”“ancestralmente a abrir as mãos” buscando o único número
que não pode ser outro. Mas um “demônio imemorial” induz diante
de oposições nulas o velho em direção a uma conjunção suprema
com a probabilidade. Esse demônio imemorial, nascido de um em-
bate, o mar pelos ancestrais e os ancestrais contra o mar, teria uma
chance ociosa, luta por um “noivado”, por uma união desejada entre
o pensamento e o acaso, que poderia abolir o acaso. No entanto, o
velho sabe que isso é uma loucura. Uma loucura que só pode ser
pensada como hipótese, como possibilidade, sob o modo do “comme
si”, como se uma insinuação simples girasse em torno do abismo,
como se uma pluma solitária pudesse imobilizar a brancura rígida e
derrisória que se opõe ao céu, como se uma sereia aparecesse numa
rocha para impor limites ao infinito. Pois, se houvesse um número,
“ele existiria, começaria e terminaria, se enumeraria e iluminaria”, e
seria, sempre, o próprio acaso. Por consequência, “nada” foi dessa me-
morável crise, nada acontece, apenas “um acontecimento realizado
em vista de todo resultado nulo”, “nada teria acontecido”, “nada teria
232
tido lugar” a não ser o lugar, o próprio poema. Como se Mallarmé
se perguntasse, “Alguma coisa como as letras existe de fato?”. Não se
trata apenas de números no universo, não é assim no céu, não é assim
na economia? Esse acontecimento humano, a literatura, é, por isso,
nulo, nada realiza, trata-se apenas de ficção (pouco menos do que
uma probabilidade, uma simples possibilidade), apenas poesia, pois
nada aconteceu a não ser o próprio poema, que “pela sua mentira
teria fundado a perdição”, “onde toda realidade se dissolve”. Assim, a
poesia é uma exceção, um espaço em que nada acontece, a não ser a
própria poesia, um espaço em fusão “com o além”, uma constelação
que enumera o “choque sucessivo” de “um cálculo total em forma-
ção”, antes de encontrar um ponto último que o sacralize.
O pensamento poético é um cálculo. Como num lance de dados
ele “escolhe”, “determina” os números, enumera o mundo, o nada, o
infinito. O cálculo poético é capaz de fazer com que todas as estrelas
caibam numa folha de papel. Fazer poesia nada mais é do que en-
contrar o bom número, o número certo, que não poderia ser outro.
Deveríamos pensar que a poesia deve, na verdade, escolher palavras,
mas para Mallarmé o cálculo é feito em torno dos números, a poesia
enumera as palavras. Calcular é pensar, mas não é preciso ser um
grande gênio matemático para saber que as probabilidades pouco
têm a dizer sobre poemas ou lances de dados. Não há cálculo de
probabilidade capaz de vencer o acaso, mas o acaso que faz com que
os dados caiam numa posição e não em outra. O cálculo vale para o
momento anterior ao ato e, para cada novo lance, a cada vez que os
dados são lançados ou a cada resultado do lance, o cálculo não pode
dizer mais nada e o acaso é reinstaurado. No entanto, uma vez que as
palavras são fixadas pelas letras no papel, o acaso é abolido, elas ocu-
pam o seu devido lugar, são absolutamente necessárias e irrevogáveis.
Pensemos na frase-título do poema, “Un coup de dés jamais
n’abolira le hasard” (“Um lance de dados jamais abolira o acaso”),
que possui treze sílabas com ritmo bem irregular (4-2-4-3), seria um
verso falso, ou simples acaso? De uma maneira ou de outra, é uma
recusa ao alexandrino que não deixa de ser uma referência ao verso
oficial. O jogo, com o acaso, aparece formalmente figurado na relação
233
entre o verso tradicional e o verso livre. O “mestre” não é, portanto,
apenas um personagem que confere um tom épico à narrativa, ele
figura a própria luta do poeta contra o acaso. O mestre hesita em
lançar os dados, hesita em empregar um “metro”, pois sabe que o
acaso não pode ser abolido, que é sempre o acaso que realiza sua
própria ideia.
Mallarmé não escolheu os dados por acaso, seu número máximo
é justamente 12, o número de sílabas de um alexandrino, bem como
a hora fatídica entre a noite e o dia. O “mestre”, ou o “metro”, é o
acaso desnudado, sua própria forma, a impossibilidade de vencê-lo,
que faz com que o poeta se retire de cena e conceda à iniciativa as
palavras. Visualmente o poema parece ser a obra em que o poeta
desaparece de fato, pois ele não se enuncia, não há “eu” por trás dos
verbos, ou por trás do lance de dados, como se as palavras tivessem,
misteriosamente, sido jogadas na folha, e não cessassem de se es-
pelhar umas às outras. A situação hipotética parece acontecer num
espaço inalcançável, no fundo de um naufrágio, seu lugar no tempo
é a eternidade, nada parece de fato acontecer, como se as palavras
tivessem de fato assumido o controle e, sem ordem nenhuma, se dis-
persassem pela página. Porém, é justamente atrás dessa desordem
que o poeta se esconde, a forma do acaso é por ele construída, num
frágil equilíbrio entre controle total e ausência de controle.
234
na medida em que é ele quem organiza o volume, o que quer dizer
que ele aparece como forma. E a forma é, sobretudo, organização e
disposição espacial. Organização que obedece a forma mesma da letra,
“O livro, expansão total da letra, deve dela tirar, diretamente, uma
mobilidade e espaçoso, por correspondências, instituir um jogo, não
se sabe, que confirma a ficção” (MALLARMÉ, 2003, p. 226). Assim,
entre as palavras se estabelece um jogo. É no espaço, através dos di-
versos movimentos que as letras, as palavras, os sons provocam, que
o texto confirma a ficção. Esse movimento se torna possível, entre
outras coisas, pela página dupla, que na sua própria forma evidencia
o caráter reflexivo do poema.
Assim, na ficção, e só na ficção, o acaso pode ser abolido, palavra
por palavra. Cada palavra aparece como o signo da mais absoluta
necessidade, cada palavra se impõe como única, como aquela que
jamais poderia ser outra, pois se justifica e se explica a partir das re-
lações que estabelecem umas com as outras. Uma vez que o poema se
encontra feito, realizado, completo, ele justifica a própria existência,
pois é visível e palpável à maneira das coisas, à maneira dos simples
objetos, dos quais nossos olhos não ousam duvidar. No entanto, o
acaso não desaparece totalmente de cena, uma vez que as letras ocu-
pam seu devido lugar no espaço em branco e o livro existe. A cada
palavra, a cada espaço em branco, o acaso reaparece, pois é ele que
determina a emergência do significado, ele se renova e reaparece a
cada palavra, a cada linha, no vaivém da leitura. Por isso, a existência
do poema ultrapassa a materialidade e objetividade das coisas, pois
não se deixa fixar e restringir. Porque o acaso está presente, a cada
nova palavra que aparece no horizonte de leitura o sentido se reno-
va e outras significações surgem. Mesmo quando o poema termina,
descobrimos que, na verdade, ele apenas recomeça, pois ao fim da
viagem percebemos que nesse lance de dados é o pensamento que
está em questão; “toute pensée émet um coup de dés”, e assim somos
reenviados ao começo do poema, e convidados pelo poeta a mais
uma vez lançar os dados.
235
X
CONSIDERAÇÕES FINAIS
238
ficção, desmascarar nosso próprio desejo de ilusão. Desfazer os mitos
que sustentaram a ideia de que era tarefa da poesia fundar uma nova
sociedade, uma nova nação, um novo espírito e uma nova sensibili-
dade nacional. Assim, Mallarmé continua a tarefa que Baudelaire
legou aos poetas que o sucederam: a crítica do imaginário romântico,
dos ideais católicos de pureza, da expressão subjetiva reificada em es-
tado de putrefação, incapaz de dar conta da experiência do presente,
incapaz de abrir os horizontes do futuro para o novo e o desconheci-
do. Se Mallarmé se volta para a linguagem é justamente para abolir a
expressão em primeira pessoa, para convocar o pensamento do leitor,
desfazer suas crenças e construir outra maneira de sentir.
Se a página dupla é, segundo Mallarmé, a maior inovação do
seu poema Un coup de dés, é porque oferece a imagem, diríamos a
figura espacial do movimento, que para o poeta é essencial na poesia.
A página dupla funciona como um espelho, que permite que o
duplo sentido da palavra “refletir” se transforme na forma mesma do
poema, transformando-o num espaço privilegiado de reflexão sobre
seu processo de constituição, um espelho em que se desvela a própria
linguagem que o constitui, em que a ficção se monstra como tal e o
pensamento vacila diante da impossibilidade de abolição do acaso.
Poderíamos dizer que Mallarmé constitui seu pensamento sobre
a linguagem a partir de um procedimento fundamental: o desdobra-
mento sobre uma figura de linguagem, a antanáclase, que se tornou
célebre através de Pascal, na afirmação “o coração tem razões que a
própria razão desconhece”. A antanáclase joga com dois empregos
de um termo – um literal, restrito, e outro abstrato, metafórico, dirí-
amos. Entre esses dois sentidos, um terceiro parece ser evidenciado:
a dimensão conceitual do termo em questão. Na frase de Pascal, por
exemplo, podemos afirmar que as razões do coração, as causas através
das quais ele opera, não coincidem com a razão em si. Ou seja, há
uma diferença entre razão entendida como causa e a razão, sinônimo
de pensamento.
Já Mallarmé busca mostrar que os elementos que constituem a
linguagem funcionam como conceitos que a definem, ou seja, o sen-
tido literal de um termo é a manifestação concreta do seu próprio
239
conceito. Assim, temos, por um lado, a música, entendida como so-
noridade do verso, por outro lado, ela também é uma forma ideal,
abstrata, uma linguagem não espacial, puramente temporal, que se
dissolve no ar, invisível como o vento.
O mesmo pode ser dito das Letras, elas designam toda a lite-
ratura, mas, ao mesmo tempo, são o aspecto visual e concreto da
literatura, o texto, os traços das ideias no papel. Assim como pode
ser dito a respeito das discussões sobre as artes, como o teatro, o
balé e a mímica. Mallarmé pensa cada uma dessas artes não apenas
como crítico que comenta as apresentações que vê e discute sobre sua
qualidade, conferindo-lhes valor, mas à maneira do filósofo da arte
que busca em cada uma delas a sua ideia, a forma que a caracteriza
e a define. Toda complexidade da poesia mallarmeana repousa nes-
se jogo entre sentido conotativo e denotativo, ou na transformação
de um fato bruto em ideia. Trata-se de uma tentativa intelectual de
grande envergadura, ou seja, compreender a natureza do aconteci-
mento poético em que um quase nada, um verso, um simples lance
de dados requer existência.
Porque na linguagem o poeta não tem apenas seu material de
trabalho, mas um método. Esse método se tece como uma constela-
ção que extrai de cada arte seu fundamento, que extrai de cada arte a
sua linguagem, a sua forma. O teatro, por exemplo, cuja objetividade
é inquestionável, se mostra como o espelho por excelência da ficção,
porque nele a objetividade não passa de um momento fulgurante,
efêmero. A dança, arte do corpo, transforma a bailarina numa pura
metáfora, gesto da ideia. Já a mímica, arte dos gestos, não ilustra
nada, apenas um desejo de ilusão, se alimenta da imaginação do es-
pectador, do seu desejo de “acreditar”, nos mostra que tudo não passa
de um jogo. A música, por outro lado, não faz apelo ao desejo do
espectador, ouvinte. Ela não requer uma crença, não sustenta uma
ilusão. Ela é arte que não pode esconder nada, pois não há nada para
esconder, não há nada para ser visto. Ela não ocupa lugar nenhum
no espaço, nela não há corpo, não há personagem, não há gesto. A
música é pura ausência, seu modo de ser é este, o do que não é.
240
A linguagem é, portanto, como a música, a arte por excelência,
em que todas as outras artes encontram sua verdade. A arte do tem-
po, em que esse se mostra como um princípio negativo, Cronos que
devora os próprios filhos. A música é efêmera, evanescente, a forma
mesma do negativo, do que não se deixa apreender, do que não se
deixa representar. A música desvela, assim, a verdadeira natureza
das artes, da própria linguagem que se constitui como um processo
no qual sua forma de execução é a dissolução de toda forma, de toda
determinação.
Pois é no tempo e através do tempo que a linguagem se desvela,
é no tempo que ela encontra sua própria ideia. A linguagem é, por-
tanto, devir puro. Sua essência é ser sempre outra, se transformar, se
desfazer, se tornar música, se tornar ideia. A linguagem eclode, se
dissolve, aflora e se dissipa, sucessivamente, como um processo de
negação de toda determinação. Ela é a exposição do eterno jogo en-
tre aparecer e desaparecer, o ciclo do sol, mito por excelência, trans-
formado em forma, ela dissolve toda forma concreta, desfaz a escrita,
a transforma em som, fala, e o som, por sua vez, se dissolve no ar,
desaparece restituindo ao papel sua brancura original.
A ficção segue o método de seu próprio instrumento, a lingua-
gem. Se esta deve desvelar seu mecanismo de funcionamento, a
ficção deve proceder da mesma maneira. Quando a linguagem se
desvela, ela demonstra também o modo de funcionamento da ficção
e realiza sua crítica. Com o desvelamento da linguagem, a ficção
aparece como o que ela é, um momento, fugaz e passageiro, ela exibe,
assim, o nada que a sustenta, o caráter fictício de toda representação.
Esse movimento de absolutização da linguagem pode ser visto
simplesmente como um procedimento formal, próprio da arte pela
arte que, excluindo tudo o que lhe é exterior, tece uma crítica à lin-
guagem representativa transformando a linguagem poética num ab-
soluto e a poesia num falar sobre si mesma. Contudo, o que tentamos
mostrar é que a natureza da crítica mallarmeana é eminentemente
estrutural. Não se trata apenas de um refúgio da literatura em si
mesma, mas de um questionamento sobre a possibilidade da poesia
lírica, que só é possível, para Mallarmé, através de um exame das
241
possibilidades que seu próprio material, a linguagem, oferece. Assim,
uma vez que a poesia toma consciência da impossibilidade de sim-
plesmente utilizar a linguagem para expressar o que é da ordem da
experiência, ela se torna um questionamento sobre o próprio modo de
configuração da experiência.
Essa poesia que se torna pensamento e que obriga a pensar a
linguagem, desvendar o mecanismo pelo qual a experiência subjetiva
se configura, encontra seu ponto máximo na crise mallarmeana do
Nada. Se de um lado a linguagem parece ser a forma mesma pela
qual a experiência humana se constitui; de outro, ela é apenas uma
máscara que vela a própria verdade do Espírito, o Nada. O encontro
com o Nada revela ao poeta a nulidade de toda ficção, a inutilidade
de toda “adaptação ao absoluto” dessa. Uma descoberta que ecoa na
frase-título de Um lance de dados, em que se afirma que o pensamento
não pode jamais abolir o acaso. O Nada é a afirmação da impossibili-
dade de uma linguagem que possa dar conta da experiência, de uma
linguagem que possa de maneira absoluta expressar o que o poeta
chama de vontade, ou a impossibilidade de o poeta conseguir, através
da criação racional e meticulosa, eliminar o acaso.
Assim, a questão que move a poesia de Mallarmé é encontrar um
equilíbrio entre dois movimentos aparentemente contraditórios, pois
o poema deve ser racionalmente construído, vencer o acaso “palavra
por palavra”, um Livro deve ser “arquitetural e premeditado”. No
entanto, há algo que aparece na natureza mesma da linguagem, no
seu caráter arbitrário, que constitui e configura nossa experiência, a
experiência do presente, algo que insiste em não se deixar formalizar,
que aparece como efêmero, irredutível e à primeira vista até mesmo
irracional: o acaso. Diante da impossibilidade de abolição do acaso, a
poesia deve criar a partir dele, fazendo do acaso um aliado, não ape-
nas o ponto em que o pensamento paralisa. É preciso ultrapassar a
irredutibilidade do acaso, sua aparente irracionalidade, e transformá-
-lo na essência mesma da forma, da racionalidade poética. A questão
que se coloca seria, então, como dar forma ao que não tem forma,
ao que contraria a própria ideia de forma. Assim só resta ao poeta
uma alternativa, ceder a iniciativa às palavras, entregar-se ao acaso,
242
e deixar que a linguagem manifeste sua própria natureza, desvele o
Nada que a constitui.
O que é o acaso senão o modo mesmo pelo qual a literatura se
define, seu próprio modo de ser? O poema Um lance de dados ofere-
ce, inclusive, à primeira vista, ou seja, visualmente, a demonstração
de que o pensamento não é capaz de apreender completamente os
objetos, apenas girar em torno deles, como uma constelação. O pen-
samento se define, portanto, como a impossibilidade de uma deter-
minação simples e fechada, como um espaço aberto, infinito, “onde
toda realidade se dissolve”. No poema, o pensamento realiza seu mo-
vimento de constituição e o desvela. Assim, a poesia se mostra como
um processo infinito de escrita e reescrita em que o acaso parece
sempre ter a palavra final.
Se a poesia é puro acaso, o seu modo de ser é duplo, ambíguo,
modo de ser da simples possibilidade. No entanto, por ser possível,
ele é também impossível, absurdo. O que está em questão na forma
de ser do acaso é a decisão entre o absurdo, a loucura e o infinito.
Assim, a poesia, pura possibilidade, puro acaso, nos coloca diante
da questão de saber “como pensar que uma simples possibilidade,
uma forma, possa adquirir existência”, ou “como garantir existência
ao que se mostra como simples possibilidade”. Essa é a questão que
move a literatura. “Como pode uma simples possibilidade existir?”
“Como uma possibilidade pode se tornar real?” “E que realidade é
essa, que não passa de mentira, de ficção?” “Que realidade pode ter
uma simples possibilidade?”
Há na poesia mallarmeana um sentido afirmativo que ultrapassa
todo diagnóstico pessimista sobre a impossibilidade da poesia. Para
compreendermos isso, é preciso estarmos atentos para o modo de ser
da própria poesia, o da simples possibilidade. Há nele a instauração
de um modo de presença, que reconfigura o próprio campo da expe-
riência a partir da centralidade do acaso.
A literatura existe, ninguém negaria, mas sua existência tal como
a do acaso, é muito precária. Ela é pura possibilidade, um não ser, um
possível, um horizonte, um desejo. E o que move a literatura é esse
desejo de ultrapassar o próprio desejo, de transformá-lo em reali-
243
dade, de atualizá-lo. A literatura existe para ultrapassar a si mesma,
para ultrapassar as barreiras do finito e do que chamamos de real. O
que ela nos ensina é que uma simples possibilidade, um mero acaso,
um desejo pode adquirir força e se impor ao homem como uma ne-
cessidade, absoluta.
Na leveza das ninfas da “tarde de um fauno”, cuja encarnação
ligeira dá voltas no ar, o poeta busca perpetuar, no canto ilusório da
sereia, num simples lance de dados, um modo de presença da ficção,
de toda a literatura. Não se trata de um simples elogio da leveza,
mas de mostrar que na fragilidade desse modo de presença há uma
verdade. A verdade do que ainda não se tornou real, que suscite en-
quanto possibilidade e insista, até que um acaso a transforme em
necessidade.
244
APÊNDICE I
Résultats de l’accointance
De l’Idée de Science et de l’Idée de Langage
et essai sur la tentative actuelle.
________
___________________________________________________
Notes.
III
Conclusions
246
[f° 3]
La Thèse Latine.
De Divinitate.
[f° 19]
D’une méthode
_____
Plan
[f° 16]
247
[f° 23]
[f° 27]
M’arrêter dans ces trois écrits aux conclusions générales, qui doi-
vent se trouver dans le Traité; étudier les choses en elles.
Dans « le Langage » expliquer le Langage, dans son jeu par ra-
pport à l’Esprit, le démontrer, sans tirer de conclusions absolues (de
l’Esprit)
Dans le Langage poëtique – ne montrer que la visée du Langage
à devenir beau – et non à exprimer mieux que tout, le Beau – et non
du Verbe à exprimer le Beau ce qui est réservé au Traité.
Ne jamais confondre le Langage avec le Verbe.
[f° 8]
248
[ff°ˢ 2, 1]
P.
249
par notre époque pour l’Esprit ; et, par celui du Langage, leur objet,
employé seul, l’impression la plus générale d’un moyen d’expression,
je ne dirai pas de l’homme absolument car, modifié par un terme
adjacent, tel que le langage du cœur, celui des yeux, langages muets,
il convient à certaines portions isolées de son âme, et nous assimilons
ces variations au langage des choses, mais l’appliquant momentané-
ment aux données que peut atteindre une science, lesquelles sont des
notions, à l’expression générale de notre esprit.
250
[f°13 ] a 2° C’est en l’homme ou son humanité que
tout cela s’équivaut – étudier par la physiolo-
gie ce qu’est l’homme par rapport aux choses
de l’esprit et de la matière, et pour cela appli-
quer la physiologie à l’histoire. La physiolo-
gie historique
[f° 9]
251
[f° 28]
Méthode
[f° 22]
252
[f° 25]
[f° 11]
[f° 12]
[f° 24]
253
[f° 7]
[f° 6]
[f° 17]
254
[f° 18]
255
256
APÊNDICE II
Resultados da freqüentação
Da Ideia de Ciência e da Ideia de Linguagem
e ensaio sobre a tentativa atual.
________
Notas.
[ff°ˢ 5, 4]
III
Conclusões
258
[f° 3]
A tese Latina.
De Divinitate.
[f° 19]
De um método
_____
Plano
[f° 19]
______
259
[f° 23]
[f° 27]
[f° 8]
260
[ff°ˢ 2, 1]
P.
261
de Linguagem, seu objeto, empregado sozinho, a impressão,a mais
geral, de um meio de expressão, eu não diria do homem absoluta-
mente, pois, modificado por um termo adjacente, como a linguagem
do coração, a dos olhos, linguagens mudas, convêm a certas porções
isoladas de sua alma, e nós assimilamos essas variações à linguagem
das coisas, mas aplicando-as momentaneamente aos dados que pode
almejar uma ciência, que são noções, a expressão geral de nosso es-
pírito.
262
[f°13 ] α 2° É no homem ou sua humanidade que
tudo isto se equivale – estudar a fisiologia
o que é o homem em relação as coisas do
espírito e da matéria, e para isso aplicar a fi-
siologia à história. A fisiologia histórica.
[f° 9]
263
[f° 28]
Método
Conversa -
Sentido das palavras, difere, primeiramente,
em seguida o tom; encontramos algo de novo
no tom com o qual uma pessoa diz tal ou
tal coisa– Nós tomamos o tom da conversa,
como limite supremo, e onde nós devemos
nos ater para não tocar na ciência – como
parada dos círculos vibratórios do nosso
pensamento.
Enfim as palavras tem múltiplos sentidos,
senão nós nos entenderíamos sempre – nos
aproveitaremos – e para o seu sentido princi-
pal, buscaremos qual efeito eles produziriam
em nós pronunciados pela voz interior de
nosso espírito, [v°] colocado pela freqüenta-
ção de livros do passado (Ciência, Pascal),
se este efeito se distância do necessário em
nossos dias.
[f° 22]
264
[f° 25]
[f° 12]
[f° 24]
[f° 7]
265
De fato, o trabalhador lê pouco obras feitas. O nosso mergulha
sem hesitar nos antigos autores da renascença e do romantismo que
foram seus mestres privilegiados. Do mais, ele ama a história – gosto
do passado.
A vida exterior, como de resto a de muitos de seus contemporâ-
neos é um pouco
[f° 6]
da natureza que, junto com a modificação do tempo, seja nossa
humanidade, menos a porção espiritual ocupada com a reflexão. O
que significa dizer que nós podemos perfeitamente aplicar a parte
essencialmente humana de nós mesmos a este estudo.
De resto será temporário, e o consentimento será perfeito quan-
do nos atermos aos resultados, ao que eles deveriam ser para satisfa-
zer ao espírito.
[f° 17]
Ele ressente : ele não sente, a bem dizer, na sua profissão a segu-
rança que assenta uma vida. Mas ele perde um pouco desta nobre
pureza e de sua ingenuidade juvenil, e diz: Ah! É uma arte! e veja-o
que, sonhando com os belos folhetins, se rende ao que se tornou a
cerimônia habitual da literatura, quase contente, do resto, e mais leve
de ser menos obrigado a observar o mundo.
Ele se diz por que a conversa não existe mais
[f° 18]
266
[ff°ˢ 14, 13]
267
BIBLIOGRAFIA
Textos de referência:
270
DURAND, P. Crises. Mallarmé via Manet. Leuven: Peeters Vrin,
1998.
271
NOULET, E. Suite mallarméenne. Bruxelles: Éditions des Artis-
tes, 1959.
272
BIBLIOGRAFIA GERAL:
273
BENICHOU, P. Romantisme français I et II: Le sacre de l’écrivain.
Le temps des prophètes. Les mages romantiques. L’école du désenchante-
ment. Paris: Gallimard, 2004.
274
HEGEL. Cursos de Estética I. Trad.: Marco Aurélio Werle. São
Paulo: Edusp, 1999.
275
ROUBAUD, J. La vieillesse d’Alexandre. Paris: François Maspero,
1978.
276