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A LINGUAGEM SE REFLETINDO

INTRODUÇÃO À POÉTICA
DE MALLARMÉ
A LINGUAGEM SE REFLETINDO

INTRODUÇÃO À POÉTICA
DE MALLARMÉ

Larissa Drigo Agostinho


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Bibliotecária responsável: Bruna Heller – CRB 10/2348

A275l Agostinho, Larissa Drigo


A linguagem se refletindo: introdução à poética de Mallarmé/Larissa Drigo Agostinho. - São Paulo:
Annablume, 2018.

278 p. 16 x 23 cm

ISBN: 978-65-5684-006-2

1. Teoria literária. I. Mallarmé, Stéphane. II. Título.

CDU 82.0

Índice para catálogo sistemático:


1. Teoria, estética e filosofia da literatura 82.0

A linguagem se refletindo
Introdução à poética
de Mallarmé

Projeto, Produção e Capa


Coletivo Gráfico Annablume

Annablume Editora
Conselho Editorial
Eugênio Trivinho
Gabriele Cornelli
Gustavo Bernardo Krause
Iram Jácome Rodrigues
Pedro Paulo Funari
Pedro Roberto Jacobi

1ª edição: agosto de 2020

© Larissa Drigo Agostinho

Annablume Editora
www.annablume.com.br
Agradecimentos

Em primeiro lugar gostaria de agradecer meu orientador Betrand


Marchal e a prof. Françoise Mélonio presente na banca de defesa do
meu mestrado. Gostaria também de agradecer alguns dos professo-
res da Universidade de São Paulo que tiveram grande importância
na minha formação, Philippe Willemart, e, principalmente, Claudia
Amigo Pino que, entre outras coisas, foi quem primeiro me falou de
uma teoria da linguagem em Mallarmé. Quero também agradecer
os colegas membros do grupo Criação e Crítica, e os amigos Patrice
Boivin e Vinicius Pastorelli.Finalmente gostaria de agradecer meus
pais Avelino e Ogécia.

Este livro é dedicado a todos vocês.


Para minha vó,
Angelina Bertolla Drigo

in memoriam
S U M Á RI O

PREFÁCIO 9

INTRODUÇÃO 11

I - CRISE DA LITERATURA E SIMBOLISMO 19

II - A LINGUAGEM E O ESPAÇO OU O LIVRO


E O JORNAL 35

III - A LINGUAGEM E O TEMPO: MODERNIDADE 49

IV - A PALAVRA, SEM MAIS NADA 81

V - O MITO 101

VI - O TEATRO DA IDEIA
OU A LINGUAGEM EM AÇÃO 135
VII - A FICÇÃO 151

VIII - A MÚSICA 181

IX - O LANCE FINAL 211

X - CONSIDERAÇÕES FINAIS 237

APÊNDICE I - NOTES SUR LE LANGAGE 245

APÊNDICE II - NOTAS SOBRE A LINGUAGEM 257

BIBLIOGRAFIA 269
PREFÁCIO

Bertrand Marchal

O que foi batizado, por falta de título próprio, as Notas sobre a


linguagem de Mallarmé constitui sem dúvida um momento essencial
na sua aventura poética e intelectual, pois nelas se leem, conjunta-
mente com Igitur, o que pode aparecer como a resolução da crise dos
anos 1860, inaugurando, ou ao menos prefigurando, o momento que
ficou conhecido na história do pensamento como linguistic turn na
segunda metade do século XX. Ora, paradoxalmente, essas notas, das
quais se extraem apenas algumas citações, as mais impressionantes
(“A linguagem lhe pareceu o instrumento da ficção”, ou “a linguagem
se refletindo”) suscitaram poucos comentários aprofundados, com
uma exceção, o artigo de Édouard Gaède em 19681, no momento
da publicação tardia destas notas, pelo doutor Bonniot, em 1926 e
1929.2 Daí a importância do trabalho de Larissa Drigo Agostinho
que pretende se confrontar com essas notas conservadas apenas por-
que Mallarmé se serviu do verso dessas folhas como rascunho para
a tradução de poemas de Poe, e cuja dificuldade de leitura é ainda
reforçada não somente pelo seu caráter fragmentário e lacunar, mas
também pela convocação, em maiúsculas (o Verbo, a Ideia, o Tempo,

1. GAEDE, Édouard. GAEDE, « Le problème du langage chez Mallarmé »,Revue d’histoire


littéraire de la France, n° 1, 1968, p. 45-65.
2 Diptyque. La Nouvelle Revue française, 1er novembre 1926, et Diptyque II, Latinité,
n. 6, juin 1929.
o Ser, o Devir, o Espírito, a Linguagem, a Fala, a Escrita), de um
vocabulário conceitual que mais tarde desaparecerá da obra do poeta.
Neste trabalho, que constitui uma abertura para uma tese em
curso, não se trata de realizar uma leitura “fechada”, in abstracto, das
diferentes notas, mas de colocá-las em perspectiva no século que foi,
por excelência, o da crise da literatura e da poesia ou, para retomar
um título célebre, da “revolução da linguagem poética”, e, sobretudo,
de fazer com que elas ecoem e apareçam em consonância com toda
a obra de Mallarmé. O que nos vale excelentes sínteses teóricas de
autores como: Pierre Bourdieu, Jacques Derrida, Jacques Rancière,
Henri Meschonnic, Alain Vaillant, Jean-Pierre Bertrand e Pascal
Durand sobre a crise da literatura e seu avatar fim de século
(o simbolismo), sobre o tão famoso e tão mal compreendido
“duplo estado da fala”, a “crise de verso”, a evolução da ideia de
modernidade de Baudelaire à Mallarmé, a questão da mitologia,
o teatro da ideia, a mímesis… esclarecimentos que contribuem,
todos, para introduzir a questão prévia da linguagem em
Mallarmé e que mostram que a crise analisada por este foi bem
mais que uma simples crise de verso (a do poema em prosa ou do
verso livre), uma crise geral da representação. Quanto a análise
das Notas sobre a linguagem, longe de se manter na abstração
inevitável do vocabulário utilizado por Mallarmé, ela tem sempre
o mérito de estabelecer a relação com a obra do poeta, quer seja
através de “Démon de l’analogie”, Hérodiade, Igitur ou de Un coup
de Dés jamais n’abolira le Hasard. Por essas razões, Larissa Drigo
Agostinho consegue transformar este estudo sobre as Notas sobre
a linguagem, animada por uma forte convicção, em uma excelente
introdução à obra de Mallarmé e as suas questões fundamentais.

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INTRODUÇÃO

Há quem tenha dito que a poesia de Mallarmé pode ser difícil e


mesmo “absolutamente incompreensível”. Rancière (1996, p. 8) criti-
ca as interpretações que deturpam a obscuridade de Mallarmé com a
ideia de segredo, pressupondo que haja uma verdade escondida para
além de onde a mente ou o olho possam apreender. A revelação des-
sa verdade se daria de duas maneiras complementares: o extraordiná-
rio estaria escondido no banal, ou o inverso, o banal estaria travestido
no extraordinário. Segundo o autor, a primeira “atribui a dificuldade
da obra ao desenho hermético de dizer e esconder ao mesmo tempo
os segredos de alguma gnose ou kabala, segundo o espírito de uma
época ávida de segredos” (leia-se Robert Green Cohn, entre outros
L’oeuvre de Mallarmé. Un coup de dés.) Já a segunda opção busca na
vida do poeta a justificativa para sua obscuridade, apoiando-se no
fato de que o poeta foi um homem ansioso, que sofria de insônia,
angustiado, com uma história familiar complicada e problemas com
as mulheres (leia-se Jean-Paul Sarte, Mallarmé. La lucidité et sa face
d’ombre).
A abundância de trabalhos críticos sobre Mallarmé no século XX
é também o espelho de transformações na história da crítica literá-
ria. Jean-Pierre Richard, Thibaudet, Noulet, entre outros e a crítica
estruturalista e pós-estruturalista, com Barthes, Kristeva e Derrida.
A recepção crítica da obra de Mallarmé se confunde com a histó-
ria da própria crítica literária francesa no século XX. Essa recepção
tardia decorre do fato de que grande parte de sua obra foi deixada
inacabada, entre eles os manuscritos do Livro, de Igitur, “Tombeau
d’Anatole” e esses manuscritos foram publicados apenas no decorrer
do século XX.
Pascal Durand afirma que o exame da recepção crítica da obra
de Mallarmé informa mais sobre os diversos usos aos quais esta se
prestou, as diversas correntes teóricas que abordaram a obra mallar-
meana, do que sobre a obra em si mesma. Segundo Durand, o texto
mallarmeano teria sofrido uma apropriação ao longo do século XX
por parte das vanguardas, sobretudo críticas que descontextualiza-
ram e deshistoricizaram a obra.
Divagações foi um dos livros que mais sofreu esse tipo de apro-
priação indevida, citado sempre de maneira pontual. Alguns trechos,
sempre os mesmos, suficientemente ambíguos, são utilizados para
justificar as ideias mais distintas e disparates. Durand cita como
exemplo de descontextualizarão crítica a obra de Hugo Friedrich
que isolaria o texto literário, apagando seus componentes referen-
ciais, suprimindo tudo o que relaciona o espaço interno das formas e
figuras da obra a seu universo social.
Durand define qual será o seu método de leitura da obra mallar-
meanna. Ele repousa na ideia de

uma reconstrução da trajetória estética do poeta e de uma reconfigu-


ração de seus textos no espaço e na temporalidade que condicionaram
sua formação, e, para os mais radicais entre eles, a sua disposição par-
ticular com relação às prescrições formais que regulam a coisa literária,
são de natureza não somente a esclarecer o sentido do que chamamos
com frequência, a experiência mallarmeana, mas também tomar a
verdadeira medida de sua grandeza. (DURAND, 2008, p. 15)

Este trabalho teve início nos anos 1980, impulsionado também


pelo monumental Romantisme français I e II, de Paul Bénichou, que
compreende quatro livros: Le sacre de l’écrivain, Le temps des prophètes,
Les mages romantiques e L’école du désenchantement. Obra que preten-

12
de compreender o romantismo a partir de seu contexto histórico,
social, político e filosófico. Entre os trabalhos empreendidos nas úl-
timas décadas que pretendem reconfigurar o contexto e a história so-
cial, política e literária na qual Mallarmé se inscreve estão Lecture de
Mallarmé e La religion de Mallarmé, de Betrand Marchal, Le coup de
dés, de Mallarmé: Un recommencement de la poésie, de Michel Murat, e
Mallarmé: La politique de la sirène, de Jacques Rancière.
Mas, além de um trabalho de contextualização histórica da obra
mallarmeana, levando em consideração a relação entre a trajetória
estética do poeta, suas escolhas formais, bem como a configuração
histórica que as determinaram, é preciso compreender as verdadeiras
razões que tornam a obra do poeta difícil. Por isso, o mais importan-
te na leitura da obra de Mallarmé não é tentar explicar o que o poeta
diz, mas, principalmente, “o papel que ele se propôs como poeta”
(RANCIÈRE, 1996, p. 12).
Para abordarmos essa questão, tomamos como ponto de parti-
da as explicações que o próprio poeta forneceu a respeito da obs-
curidade de seus poemas. No artigo “Le mystère dans les Lettres”,
Mallarmé responde às críticas feita pelo então jovem Marcel Proust.
Um dos argumentos principais para justificar a possível “ininteligibi-
lidade” de seus textos é, justamente, a natureza da linguagem poética.
Mallarmé afirma: “Se apraz a alguém, que a envergadura surpreende
incriminar. Será a Língua, de que eis aqui o folguedo” (MALLAR-
MÉ, 2010, p. 189). Como o título do texto explicita as negras letras
da página branca de um livro, o mistério que obscurece suas páginas
é reflexo do mistério presente nas Letras, ou seja, constitutivo da
própria linguagem assim como da literatura.
Nossa abordagem da obra mallarmeana pretende acompanhar o
desenvolvimento e a elaboração de uma poética, que entendemos
não como um sistema de regras e normas que prescreve e define a
boa poesia, mas como a construção de uma ideia de poesia a par-
tir da exploração da complexidade e das contradições de seu mate-
rial constitutivo: a linguagem. Para isso, nosso trabalho tem como
centro a leitura e o comentário do texto Notes sur le langage que o
leitor encontrará em apêndice na versão original acompanhado de

13
uma tradução. Trata-se de notas manuscritas, algumas presentes no
verso de outros escritos, como Igitur, que datam de 1869, período
em que Mallarmé se dedicava à escrita do conto. Segundo Bertrand
Marchal, essas notas correspondem a um projeto de doutorado que
Mallarmé pretendia, conforme indicado em suas cartas, apresentar
à Sorbonne. O caráter fragmentário dessas notas não impede, no
entanto, a tentativa de construção do que seria a teoria mallarmea-
na da linguagem, que se explica e se desenvolve em outros escritos
do poeta, pertencentes a diversos momentos de sua carreira. Artigos
presentes no livro Divagations, entre outros, como Les dieux antiques
ou La musique et les lettres.
Essa leitura tem como base uma premissa: a ideia de que a crise
dos anos 1866 e 1869, a crise do Nada ou crise de Tournon, que
se iniciou com a escrita de Hérodiade e terminou com a escrita de
Igitur e deste projeto de tese, configura um momento importantís-
simo da obra do poeta, pois a descoberta do Nada, que é a desco-
berta da irremediável constituição causal ou arbitrária da linguagem,
constitui a ideia mallarmeana de ficção, a partir da qual a sua poesia
se configura. Podemos ainda afirmar que essa crise teria realmente
terminado, não com a escrita de Igitur, mas com a escrita do poema
Un coup de dés, no qual o acaso e a linguagem são uma só forma, a do
poema constelação. Ou seja, partimos da ideia de que é na crise dos
anos 1860 que toda a poética de Mallarmé se delineia (pois seu pon-
to central é a ideia de ficção, que não é outra coisa que a descoberta
do Nada). Ao longo dos anos, e mesmo das décadas que virão, o po-
eta não teria feito outra coisa a não ser desenvolver e procurar aplicar
suas ideias à poesia ou construir uma poesia que fosse a formalização
das descobertas desse período de juventude.
Iniciamos com uma introdução à obra do poeta que busca situá-
-lo historicamente. A segunda metade do século XIX foi marcada
pelo desenvolvimento fulgurante do capitalismo, a consolidação da
imprensa e da literatura de massa. Além disso, é desse período que
data o golpe de Estado de Napoleão III que transformou uma Re-
pública num Império. O desencantamento desse período histórico,
em que os romances de “ilusões perdidas” abundam, é o signo de uma

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literatura em crise, crise que tem o nome de modernidade. Nesse
momento em que a literatura se define a partir da distância que a
separa do mundo econômico e do trabalho produtivo, ela é obriga-
da a legitimar-se no interior do seu próprio campo, diria Bourdieu.
Essa noção de autonomia da arte pode, no entanto, ser extrema-
mente problemática e sustentar ainda mais a ideia de que a poesia
mallarmeana é difícil ou incompreensível, justamente porque recura
o mundo que a cerca. Buscaremos examinar essa questão a partir da
maneira como o poeta define a linguagem poética.
Para definir a linguagem poética é preciso primeiramente dis-
tingui-la da linguagem corrente. Segundo Mallarmé a linguagem
é una, mas seus modos de utilização e emprego podem variar,
eis o que o poeta chama de “duplo estado da fala”. A linguagem
poética, no seu estado “essencial”, se distingue da linguagem cor-
rente, do estado “bruto” ou “imediato” da fala, que constitui não é
exclusividade da língua falada, mas define textos e estilos como o
jornal e o folhetim. Se a linguagem poética, a fala em seu estado
“essencial”, encontra seu lugar no Livro, o jornal e o folhetim não
fazem outra coisa a não ser proliferar a fala em seu estado “bruto”,
Sustentando a ideia que a linguagem é capaz de narrar e descrever
o real, ou seja, de representá-lo.
É na linguagem e por meio dela que a sociedade e a história
entram na concepção poética mallarmeana. Como Baudelaire,
Mallarmé entende que o tempo tem um caráter duplo, um eterno
e outro imutável, fugaz e evanescente. Num primeiro momento,
pretendemos mostrar que Mallarmé transforma o tempo, seu próprio
tempo, a modernidade, ou seja, o contexto histórico social, político e
artístico no qual o poeta se insere, numa forma, numa ideia de forma.
Pois tanto para Baudelaire quanto para Mallarmé, o elemento his-
tórico da beleza, o caráter histórico da arte, reside justamente na sua
força destrutiva, no elemento fugaz que constitui a beleza, no caráter
fugidio do tempo. Eis o que, de efeito, Mallarmé pretende conferir à
forma poética. Ela deve ser como o tempo, como a forma mesma do
tempo, não estática ou sempre idêntica, mas fugaz e, assim, capaz de
dissolver o que há de mais concreto.

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Em seguida, pretendemos explorar o conceito mallarmeano de
ficção, que surge a partir do encontro do poeta com o Nada. O Nada
revela a Mallarmé o caráter nulo da ficção, que não passa de uma
ilusão, uma invenção humana, mentirosa, mas sublime, pois, afi-
nal de contas, só o homem é capaz de inventar Deus. Não se trata
aqui de ver na poesia mallarmeana o fruto mais bem-acabado de
um formalismo que, desencantado do mundo, se volta para a arte,
encontrando nela o último refúgio para sua própria impotência. O
Nada mallarmeano desvela a verdadeira natureza da ficção, ilusória,
certamente, mas também sublime, pois apesar de ser apenas ficção a
literatura é capaz de ir além de seus limites, ultrapassar determinado
estado de coisas do mundo. Ao desvelar seu próprio mecanismo de
constituição, a literatura expõe a racionalidade que governa todas as
esferas sociais, e que o poeta conhece muito bem, pois ela funciona
exatamente como seu material, como a linguagem.
Ao estudar a origem das línguas e dos mitos, o poeta encontra a
confirmação de sua descoberta, pois, se Deus é uma simples inven-
ção humana, os mitos não podem ser outra coisa que uma forma de
construção fictícia. Na análise da mitologia, o poeta se vê diante do
mito original, aquele que teria dado origem a todos os mitos, que
busca encenar o ciclo do sol, que é também o ciclo da vida e da mor-
te, que encerra no devir temporal, o ritmo mesmo da vida. Além dis-
so, tendo como base a história das línguas que se escrevia na recente
linguística comparada, o poeta se vê diante do caráter contingente
da linguagem que perdeu, ao longo dos anos, o vínculo inicial que a
unia à natureza.
Longe de buscar restabelecer o vínculo perdido com uma lingua-
gem mítica e originária, Mallarmé busca criar uma poesia cuja forma
seja não uma mentira que pretende criar uma ilusão e ludibriar o
leitor com falsas fantasias, mas uma forma que se mostre enquanto
ficção, que desvele seu mecanismo de constituição. É uma crítica
da representação, ou seja, da literatura realista e naturalista com sua
pretensão de duplicar o real, que leva Mallarmé ao encontro com o
Nada, encontro que ocorre quando o poeta “escava o Verso” até che-
gar ao seu limite, o Nada.

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A partir desse momento, a única questão será construir uma
poesia que escape do regime representativo da linguagem, que não
pretenda, à maneira do jornal, descrever o que é ou o que aconte-
ceu, mas que pretenda ir além da experiência que cabe no jornal, da
experiência ordinária, corriqueira. Daí porque o grande projeto que
surge dessa crise, além da tese de doutorado que permaneceu inaca-
bada, será o projeto de escrita do Livro, arquitetural e premeditado,
“explicação órfica da Terra”. Esse Livro deveria, como a arte total
wagneriana, conter todas as artes. É assim, portanto, que Mallarmé
criará sua poética, refletindo sobre a forma e a natureza das outras
artes, tais como o balé, a pantomima, o teatro e a música.
O teatro fornece ao poeta um modelo de arte objetiva. No palco
do teatro, o texto se torna ação, o drama íntimo e subjetivo dá lugar
à vida em ação, em contexto coletivo, não há mais um leitor e um
autor separados pela distância infinita do tempo e da diferença entre
intenção e expectativa. No entanto, por mais que o teatro possa pare-
cer concreto, ele ainda é uma convenção, tudo o que acontece é pura
ficção, sabemos que no teatro nada acontece ainda de fato. O teatro
parece, assim, fornecer um modelo de uma arte que é ao mesmo
tempo objetiva e “criada”, espaço onde a ilusão da ficção se desvela.
Já a música fornece um paradigma quase diametralmente oposto.
Em aparência, aqui não há corpo, a visão não é necessária, ela se
desmancha no ar antes mesmo de ter conquistado o espaço concreto.
Para a estética simbolista ou idealista, de matriz hegeliana, que era a
do século XIX, a música é a arte subjetiva por excelência, sua forma
de ser é a mais propícia para a apresentação da subjetividade porque,
entre todas as artes, é a menos determinada, a mais abstrata.
Além dessa “indeterminação” potencial e nobulosa como uma
paisagem impressionista, a música tem no seu modo de execução a
realização de sua própria ideia, ela não se sustenta nem momentane-
amente enquanto ilusão (concreta e visível), porque sua forma de ser
é um não ser. A música se dissolve no ar e ao fazê-lo dissolve todas
as pretensões da ficção de criar ilusões muito duradouras. A música,
como arte eminentemente temporal, fornecerá ao poeta um modelo
de arte “autônoma”, ou seja, antirrepresentativa ou não realista, se

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preferirem capaz de romper com os paradigmas representacionais
da arte poética.
Finalmente, passaremos da linguagem e de sua ideia para a con-
cepção da linguagem poética, a linguagem em operação no poema,
com seus elementos estruturais, não mais o verso e as regras de pro-
sódia, mas a “palavra-total” as “subdivisões prismáticas da ideia”, o
ritmo, estilo, os caracteres tipográficos, a dupla folha. No capítulo
dedicado ao poema Um lance de dados, veremos como a Música e as
Letras compõem o poema com seus elementos “sonoros” e “visuais”.
Veremos como a música e as letras fornecem ao poeta uma ideia
de forma capaz de apresentar ao leitor a linguagem como ela é, um
acaso que o pensamento não é capaz de abolir.

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I
CRISE DA LITERATURA E SIMBOLISMO

Travailler maintenant, jamais, jamais; je suis en grève.


Arthur Rimbaud, 1871.

Segundo Vaillant (2005, p. 19) o processo de divórcio entre os


escritores e o público leitor está na origem da crise moderna da li-
teratura:

[…] de 1830 até a Terceira República, enquanto o trabalho do escri-


tor-jornalista se profissionaliza e constitui, com o teatro, a única via
economicamente viável para o métier literário, a literatura – a dos
“grandes autores”, que lemos ainda hoje – mergulha numa espécie
de depressão rastejante, exibindo, do fundo de seu desespero, um
niilismo irônico, amargo e suicida. Não nos enganemos: esta crise é
bem mais que uma simples peripécia da história cultural, porque ela
toca no funcionamento e na natureza mesma do fato literário.

Para descrever a história da crise, Vaillant parte de suas origens,


que remontam a revolução de 1789, revolução também literária
como todas as outras que o século XIX conheceu, não pelo lugar de
destaque ocupado pelos escritores, mas pelas etapas que elas consti-
tuem na mutação e configuração da crise literária da época. A análise
de Vaillant segue este princípio: cada espasmo revolucionário tende
a legitimar o ideal do discurso literário e cada fracasso revolucionário
tende a provocar a falência do modelo literário que o precedeu.
O modelo literário de 1789, romântico, o da eloquência, cons-
tituiu o grau supremo da literatura que se configura como sín-
tese harmônica da razão e da emoção. A literatura é assim um
fato de essência retórica, com uma predileção pela eloquência
privada, pois no espaço público a fala é controlada pela autori-
dade. Esse ideal de eloquência é marcado pela crença na absoluta
performatividade do discurso. Assim surge a lírica de Lamartine
e do primeiro Victor Hugo.
O segundo modelo literário, paradigma desta história de discur-
sos literários, de discursos sobre a literatura ou sobre, como o autor
os denomina, de literatura discurso, é o teatro.Trata-se de um mode-
lo literário da revolução de 1830, que buscava realizar a união entre a
força do verbo político e a natureza discursiva do texto literário, uma
eloquência que renuncia ao seu caráter elocutório, pois é na cena que
o romântico encontra um espaço público, diante de um público que
é tido como equivalente ou representante do “povo”. O sonho de
Victor Hugo de um teatro polifônico é a consequência estética desse
momento de “democratização” do discurso. O fracasso da revolução
de 1830 é também o fracasso dessa teatralidade da impotência con-
sentida. O teatro só poderia fornecer a metáfora de um regime par-
lamentar representativo simbolizando a inautenticidade dos debates
e a veleidade do político.
Essa descrição que privilegia o sucessivo fracasso de modelos li-
terários a partir de fracassos políticos deixa de lado o papel relevante
que os próprios escritores tiveram na constituição desses modelos
político-literários. Como mostra Bénichou, a revolução de 1830 e
seu fracasso foram compreendidos de maneiras diferentes por gera-
ções distintas do romantismo francês. Os grandes poetas da Restau-
ração, nascidos em torno de 1800, Hugo, Vigny e Lamartine, não as-
similaram 1830 como um fracasso, mas como “uma porta semiaberta
em direção a tudo que se poderia imaginar” (BÉNICHOU, 2004, p.
1478). O romantismo humanitário toma forma a partir de então e
assume o governo a partir de 1848.
Já os poetas nascidos em torno de 1810, a chamada “segunda
geração” do romantismo, como Nerval ou Gautier, não assistiram

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ao progressivo despertar dos espíritos sob a restauração (tomemos,
por exemplo, Victor Hugo, que passou em pouco tempo, de monar-
quista a liberal republicano). Essa geração conheceu, pelo contrário,
um mundo em ruínas, o fim da monarquia e, sobretudo, do Parnaso.
Sem entusiasmo, julgaram mal o mundo e a vida, acreditavam que
um abismo intransponível separava seus sonhos e ideais, do mundo.
Voltemos à análise de Vaillant. A Revolução de 1848 adotou, se-
gundo o autor, outro paradigma, não mais o discurso de um homem
ao povo ou a representação do discurso do povo, mas um discurso
que pela sua natureza fosse capaz de captar a emoção coletiva e
restituí-la numa obra de arte que mostrasse aos homens o melhor
deles mesmos e lhes indicasse as vias do futuro. A poesia porta-voz
dos mudos, universalizante e profetizante, caracteriza esse momento
de 1848. O fracasso da revolução conduzira Flaubert e Baudelaire
ao “pessimismo violento e glacial”, que, segundo Bourdieu, marcara
suas obras. O fracasso da revolução de 1848 agravou, portanto, um
estado de desencantamento que começou com a geração de 1810
e o fracasso da revolução de 1830. No entanto, o fracasso de 1848
tem um peso inquestionável, como afirmara Bourdieu (1998, p. 220),
afinal tratava-se da república dos românticos, Lamartine chefe do
governo, Hugo deputado, Sand redigindo as proclamações oficiais.

Como não supor que a experiência política desta geração, com o


fracasso da revolução de 1848 e o golpe de estado de Luis Napoleão
Bonaparte, e depois a longa desolação do Segundo Império, não de-
sempenha um papel na elaboração da visão desencantada do mundo
político e social que caminha junto com o culto da arte pela arte.
(BOURDIEU, 1998,p. 220)

Assim o Império teria acentuado o desencantamento dessa ge-


ração levando a arte a voltar-se a si mesma, ética e esteticamente.
Ao golpe de Estado seguiu-se o exílio voluntário de Victor Hugo,
simbólico, pois significou a saída de toda poesia da cena pública
francesa, inaugurando um tempo de “retirada, de desilusão políti-
ca que ecoa, vinte anos depois, encoa junto ao desencantamento de

21
1830” (MÉLONIO; MARCHAL; NOIRAY, apud TADIÉ, 2007,
p. 329.) É o refúgio de Vigny na contemplação, exílio interior de
Leconte de Lisle na Antiguidade.

[…] é toda a poesia que se coloca orgulhosamente como exilada no


interior de uma sociedade condenada à indústria e ao lucro. A este
fantasma do exílio vem se acrescentar um outro desencantamento
profundo que reenvia o romantismo humanitário a suas quimeras e
desliga a poesia de todas as suas funções política, social e religiosa,
que lhe foram generosamente atribuídas pelo magistério profético
que surgiu depois de 1830. (MÉLONIO; MARCHAL; NOIRAY,
apud TADIE, 2007, p. 398-399)

O divórcio entre escritor e público leitor e entre política e lite-


ratura marca o nascimento de um campo literário autônomo, que
se constitui a partir das premissas da arte pela arte. O silêncio dos
autores para com a sociedade e a política é coberto por uma abun-
dância de discussões no interior do próprio campo literário que lhe
concernem exclusiva e particularmente e contribuem para sua cons-
tituição e legitimação.

Arte burguesa e arte pela arte

Em As regras da arte, Bourdieu recusa a ideia de uma determina-


ção direta da obra de arte pelas condições econômicas do seu con-
texto histórico, em nome de uma análise do microcosmo literário
– em que se situava Flaubert e também Baudelaire, Renan, Leconte
de Lisle ou os irmãos Goncourt. Espaço a partir do qual o escritor
apreendia de maneira particular a conjuntura política que o inclinava
na direção de uma independência artística.
No século xix, a sociedade burguesa é descrita pelos artistas
Flaubert, Balzac e Mallarmé, entre outros, como o reino do dinheiro,
uma sociedade hostil aos artistas e aos intelectuais. Esse reino do di-
nheiro é responsável pelo desenvolvimento de uma indústria cultural
que subordinava os artistas às leis do mercado (números de vendas,

22
números de entradas nos teatros, empregos no jornalismo etc.), que
Flaubert desvela em Educação sentimental e Balzac em diversas de
suas obras, como em Ilusões perdidas, onde narra justamente o adven-
to da imprensa.
É nos anos 1830 que o novo regime da prensa se inaugura per-
mitindo a produção industrial de livros e favorecendo, sobretudo, o
romance como literatura de entretenimento (MÉLONIO; MAR-
CHAL; NOIRAY, apud TADIÉ, 2007, p. 341). A indústria do ro-
mance criou também escritores empresários que lutaram pela im-
plantação das leis de direito autoral e da propriedade intelectual e
que criaram verdadeiras máquinas de produzir textos, como Dumas
ou Scribe, que recorriam a outras pessoas para escrever seus textos.
Sainte-Beuve foi sensível a esse tipo de prática. Em 1839, ele criou
o termo “literatura industrial”. A criação de uma literatura de massa
mudou completamente a configuração do público leitor de literatu-
ra, constituída, no século XVIII, por exemplo, essencialmente pelo
público dos salões e academicistas. No século XIX, o público “parece
uma poeira de leitores anônimos aos quais os livros são endereçados
como garrafas lançadas ao mar” (MÉLONIO; MARCHAL; NOI-
RAY, apud TADIE, 2007, p. 348).
Os anos 1840 viram surgir, ainda seguindo as descrições de
Bourdieu sobre o jugo do dinheiro que exercia enorme influência
sobre a imprensa e o Estado, uma “arte comercial”, seja na pintura, na
literatura, mas principalmente quando se tratava de teatro. Contra
essa arte comercial surgiram diversos movimentos literários, entre
eles, o realismo de Champfleury (que, na tradição da arte social,
opõe-se ao idealismo da arte burguesa com suas veleidades político-
literárias), o estilo de vida boêmio e a arte “decadente” de Verlaine e
Rimbaud, e, por fim, a arte pela arte de Baudelaire, Leconte de Lisle,
Banville, Villiers, Flaubert, Huysmans ou Barbey, “engajados numa
obra que se situa nas antípodas da produção submissa aos poderes
do mercado” (BOURDIEU, 1998, p. 214.). Esses artistas foram os
primeiros a formular as premissas da nova legitimidade da literatura,
do campo literário autônomo.

23
É evidente que o campo literário e artístico se constitui como tal na
e pela oposição a um mundo “burguês” que até então jamais tinha
afirmado de maneira tão brutal seus valores e sua pretensão a con-
trolar os instrumentos de legitimação, no domínio de arte como no
domínio da literatura, e que, através da imprensa e de suas plumas,
visa impor uma definição degradada e degradante da produção cul-
tural. (BOURDIEU, 1998, p. 103)

Jean-Pierre Bertrand e Pascal Durand situam o nascimento do


movimento da arte pela arte a partir do romantismo, antes mesmo
da geração de Flaubert e Baudelaire como o quer Bourdieu, a partir
especificamente do debate dos anos 1830 sobre a utilidade da arte,
ou seja, mais precisamente a partir da defesa, em 1834, realizada
por Théophile Gautier, no prefácio de Mademoiselle Maupin, da
arte pela arte.
Do lado dos que reclamavam a utilidade da poesia estavam Sain-
te-Beuve, Lamartine ou Pierre Leroux. Eles faziam da arte uma ex-
pressão consubstancial dos seus objetivos, entendendo que o gesto
do artista faz signo em direção a humanidade. Os gestos do artista,
no caso de Lamartine, consistiam em restaurar o prestígio da moral
católica no período pós-revolução francesa. Do lado de Gautier, con-
tra a utilidade da arte, estavam Vigny, Nerval e mais tarde Leconte
de Lisle, que preconizavam uma arte cultivada, sem utilidade públi-
ca, ou seja, sem obrigação moral; nesse modelo, o artista se dirige, em
princípio, a comunidade de artistas.
No entanto, essa história pode ser contada de outra maneira. A
explicação desse período histórico, por meio da ideia de desencan-
tamento do mundo, entendida como a decepção dos artistas com
relação aos rumos políticos e sociais da França a partir do golpe de
Napoleão, transforma a arte autônoma numa recusa total e abso-
luta da sociedade que esvazia a literatura de sua dimensão crítica.
Enquanto, na verdade, a “arte pela arte” nasceu justamente ligada
ao projeto político do romantismo francês, de fundar uma literatura
republicana, de construir uma nova sociedade a partir da Revolução
Francesa. Ela se funda na premissa de que a literatura deve funcionar

24
para construir uma nova vida social, assim, em vez de falar em nome
da moral, como a geração contrarrevolucionária do primeiro roman-
tismo (Lamartine e Hugo), outra corrente defendia a autonomia em
nome da criação de novas formas de vida, com o intuito de prolongar
a revolução e criar, de fato, uma nova sociedade, colocando fim defi-
nitivamente ao Antigo Regime.
De la littérature de Germaine de Staël, publicado em 1800,
inaugura não apenas um novo século, mas um novo momento
político e artístico na França pós-revolução: o romantismo. Nessa
obra, Germaine de Staël (1991, p. 298) declara seus objetivos e
premissas:

Todas as vezes em que falo das modificações e melhoras que pode-


mos esperar da literatura francesa, suponho sempre a existência e a
duração da liberdade e da igualdade política. […] Meu objetivo é
buscar conhecer qual seria a influência das instituições que exigem
estes princípios, e dos costumes que essas instituições trazem consi-
go, sobre as luzes e a literatura.

Trata-se, portanto, de continuar e prolongar, no terreno filosófi-


co, político e literário, a tarefa que foi a da Revolução Francesa. Uma
vez que ela derrubou o Antigo Regime, cabe à literatura, às artes e à
filosofia fundar uma nova sociedade a partir dos ideais da revolução:
liberdade e igualdade. Germaine de Staël, como herdeira do século das
Luzes, compreende a literatura como o conjunto das obras de poesia,
filosofia, moral, eloquência e história. Assim, ela se propõe a examinar
“qual a influência da religião, dos costumes e das leis sobre a literatu-
ra, e qual a influência da literatura sobre a religião, os costumes e as
leis”. Essa reflexividade da literatura é que permite que Germaine de
Staël eleja a literatura, hoje diríamos, o conjunto das ciências humanas,
como espaço privilegiado de construção de novas ordens sociais.
Uma vez que a sociedade se transforma, a literatura deve acom-
panhar esse desenvolvimento fornecendo à sociedade um espelho
em que ela se pensa e se reconhece. Esta reforma literária começou,
sobretudo, no teatro. O teatro francês, neoclássico, se contentava em

25
imitar e reproduzir os clássicos gregos e latinos. Para Germaine de
Staël, “A natureza da convenção, no teatro, é inseparavel da aristocra-
cia no governo” (1991, p. 354). Essas convenções do teatro clássico,
dividido em tragédia e comédia, determinam os gêneros de acordo
com os personagens retratados. A tragédia retrata a vida dos homens
“superiores”, hérois, deuses e semideuses, correspondendo ao gênero
alto; já a comédia retrata homens medíocres, comuns. Ela corres-
ponde ao gênero baixo. Tragédias e comédias devem ser escritas obe-
decendo a três regras fundamentais: aos princípios da inventio, que
determina a escolha do assunto; dispositio, que organiza as partes em
número de atos, tempo e espaço definidos e restritos, e elocutio, que
dita que as ações e os discursos devem ser adequados aos persona-
gens, portanto, ao gênero do poema.
A crítica ao teatro neoclássico é a de um sistema representativo
abstrato e que, sobretudo não corresponde à realidade social da Fran-
ça no século XIX. Uma nova sociedade precisava ver-se no palco.
Para isso, era preciso transformar a forma de apresentar, dividir e
narrar a vida social. Alguns anos mais tarde, nas décadas de 1820 e
1830, a reforma do teatro se intensifica, com a publicação de Racine
et Shakespeare de Stendhal e com as obras teatrais de Victor Hugo,
Hernanie Cromwell, cujo prefácio é um dos grandes manifestos do
romantismo, pelo drama, mas também em defesa do grotesco. Em
Racine et Shakespeare, Stendhal realiza uma crítica que visa eliminar
as formas literárias ligadas a um estado de coisas antigo, a uma so-
ciedade que pertence ao passado. O debate sobre a autonomização
da arte surge, portanto, como um debate sobre normas literárias,
novos gêneros e assuntos, que não busca substituir um sistema re-
presentativo por outro, mas criar uma nova ordem literária, uma
outra hierarquia ou nenhuma e outros critérios de gênero, o que
nos indica uma transformação radical do que se entende por fato
literário. Stendhal, como Germaine de Staël, critica as formas clás-
sicas com base na função social do escritor e da literatura: “De
memória de historiador, jamais povo algum experimentou, nos seus
costumes e nos seus prazeres, mudanças mais rápidas e radicais

26
do que estas de 1780 a 1823; e querem nos dar sempre a mesma
literatura!”(STENDHAL, 1925, p. 45).
Se a literatura representativa, mais especificamente o teatro neo-
clássico, se constitui a partir de regras de imitação e princípios regi-
dos que determinam o acordo entre seu modo de desenvolvimento,
seu assunto, personagens e seus discursos e ações, a nova poesia se
define a partir da inversão de todos esses princípios, como mostra
Rancière (1998, p. 28):

Ao primado da ficção se opõe o primado da linguagem. A distri-


buição em gêneros se opõe ao princípio antigenêros da igualdade
de todos os assuntos e temas representados. Ao princípio de con-
veniência se opõe a indiferença entre o estilo e o assunto represen-
tado. Ao ideal da fala em ação se opõe o modelo da escritura. São
estes quatro princípios que definem a nova poética.

Trata-se de uma revolução literária que procura mais do que sim-


plesmente substituir o conjunto de normas representativas clássicas
por outras normas, mas que produz uma interpretação do fato po-
ético, que associa diretamente o ato de escrever com a realização de
uma nova ideia. Assim, a revolução romântica abole o sistema repre-
sentativo, estabelecendo uma relação entre pensamento e matéria a
partir da linguagem. O que significa que, a partir desse momento,
a literatura se constitui com base na materialidade da linguagem, à
qual se submetem a expressão do pensamento, assim como o desen-
volvimento da ação. A linguagem deixa de ser um instrumento, ou
um meio na elaboração das obras para se tornar o fundamento em
que estas se constituem.
A reivindicação pela liberdade na escolha dos assuntos e temas
é também uma reivindicação do movimento que ficou conhecido
como “arte pela arte”. Ela aparece na lírica com o livro de poemas
Orientales, de Victor Hugo.
Por volta de 1825, Victor Hugo abandona os ideias monarquistas
e cristãos que ditaram suas Odes, e a sua crítica ao classicismo se
transforma em crítica geral ao século de Luis XIV. É nesse momen-

27
to de sua obra que a reivindicação de liberdade aparece: “O poeta é
livre. […] O espaço e o tempo pertencem ao poeta. Que ele vá onde
quiser fazendo o que lhe agrada: esta é a lei”(HUGO, 1972, p. 80).
Esse prefácio de Orientales busca romper com a arte clássica buscan-
do inspiração na mitologia oriental.

Ele não dissimula, para dizer de passagem, que muitos críticos o acharão
ousado e insensato por desejar para a França uma literatura que possa ser
comparada a uma cidade da Idade Média. Esta é uma das imaginações
mais loucas nas quais poderíamos nos aventurar. É querer muito a desor-
dem, a profusão, a estranheza e o mau gosto. Mais vale a bela e correta nu-
dez das muralhas simples, como dizem, com seus ornamentos sóbrios e de
bom gosto [...]O castelo de Versailles, a praça Louis XV, a rua de Rivoli: é isto.
Falem-me de uma literatura em linha reta! Os outros povos dizem: Home-
ro, Dante, Shakespeare. Nós dizemos: Boileau. (HUGO, 1972, p. 80)

O movimento da “arte pela arte” é, portanto, um movimento que rei-


vindica, num primeiro momento, uma liberdade de criação artística através
da instauração da dignidade de todos os assuntos e temas que passam da
lírica para os palcos do teatro. Liberdade que indica emancipação diante da
hierarquia social e da religião. O mais interessante é que essa reivindicação
de liberdade, que também pode ser entendida como postura liberal, é fun-
damentada na premissa da correspondência entre arte e sociedade. “Cor-
respondência” que não significa apenas simples espelhamento, mas relação,
criativa inclusive, pois o intuito da revolução literária romântica é prolongar
a obra da revolução política e social, ou seja, criar uma nova literatura para
uma nova sociedade. Assim, a arte autônoma se define, justamente, como a
arte contrarrevolucionária católica, a qual se opõe, inclusive, a partir da sua
função social. O verdadeiro debate, a verdadeira distinção entre esses grupos,
é muito mais político do que poética ou simplesmente formal. É por um
modelo de sociedade que liberais, contrarrevolucionários e jacobinos entram
em conflito dentro e fora do campo literário.
O fracasso sucessivo das revoluções de 1830 e 1848, como vi-
mos na análise de Vaillant, contribui para colocar em cheque esse
modelo literário que transformou os palcos num espaço de diálogo

28
político entre arte e sociedade. No entanto, isso não significa que
a literatura, a partir da metade do século, tenha renunciado intei-
ramente ao seu poder de “persuasão” ou mesmo à possibilidade de
“comunicar-se” com o público. Os sucessivos fracassos revolucioná-
rios não provocaram simplesmente um movimento em que a arte se
fecha sobre si mesma, muito pelo contrário. Tanto Baudelaire quanto
Flaubert têm consciência de que, por meio dos debates estéticos, o
que está de fato em jogo é o futuro da vida social.
Por essa razão, a literatura desse período é marcada pela crítica
de seu passado, pela crítica das ambições que configuram a literatura
no começo do romantismo. Trata-se, a partir desse momento, para a
literatura, de se consagrar à denúncia das ilusões e dos ideais român-
ticos, procurando compreender seus “erros”, para libertar-se deles,
para quem sabe, mais uma vez, construir um novo projeto literário.
Madame Bovary não é uma obra dedicada a expor as consequências
desastrosas da leitura de maus romances na vida de jovens da pequena
burguesia? E por maus romances entendemos, sobretudo, o tão popular
Paul et Virgine. Nesse romance, trata-se de expor a sociedade burguesa
como responsável pela corrupção de jovens de coração puro que apenas
desejavam, numa colônia africana, viver seu amor em harmonia com a
natureza e com seus ideais cristãos.
No romance de Flaubert, não se trata apenas de demonstrar a in-
compatibilidade entre os ideais românticos e a vida burguesa, mas de
mostrar que a vida burguesa é responsável pela criação desses ideais, que
a ruína do homem dessa metade do século XIX não se deve apenas aos
sonhos e delírios dos poetas, mas à própria vida burguesa. Fréderic, herói
de Educação sentimental, erra entre diversos círculos sociais, sem jamais
encontrar o seu lugar, negando-se a aceitar a vida burguesa que sua he-
rança lhe valia. Como Wilhelm Meister, Fréderic procura no amor o
que a sociedade parece lhe recusar, sua formação ou sua educação senti-
mental é mais uma tentativa de buscar algo que o permita simplesmente
escapar de sua condição de pequeno-burguês.
A literatura desse período não se define, portanto, pelo mutis-
mo absoluto que ela consagra às questões políticas e sociais. Assim,
com o desenvolvimento da indústria cultural, como já vimos ante-

29
riormente, a literatura se define não apenas em oposição ao mundo
burguês “em geral”, mas especificamente em oposição aos produtos e
às premissas que marcam essa indústria cultural nascente.
Para Jameson (2002, p. 175), o que carateriza a autonomia da arte
na modernidade não é esse movimento de purificação no qual a arte se
liberaria de tudo o que lhe é exterior, como a sociologia e a política, pro-
clamando a pureza estética em oposição à utilidade moral da arte, ne-
gando a vida cotidiana burguesa etc. Mesmo que alguns teóricos possam
identificar esse movimento de purificação da arte como característico
da modernidade, eles falham em estabelecer os termos por meio dos
quais a separação entre o estético e o social e político ocorre. Pois, ainda
para Jameson (2002, p. 176), a autonomia da arte “é alcançada através
da radical dissociação com a própria estética: pela radical disjunção e
separação entre a literatura e a arte da cultura” (2002, p. 176).
A cultura se define como um espaço de mediação entre a sociedade,
a vida ordinária e a arte. Uma vez que a cultura é compreendida como
esse espaço de mediação, transmutação e translação, a cultura passa a ter o
papel de fornecer à arte seu conteúdo e material. Ela oferece, na verdade, o
contexto no qual a arte pode se manifestar como um espaço de redenção
transfigurador de uma sociedade em falência completa. Assim, o verda-
deiro inimigo da arte não é o burguês, mas a cultura, da qual a arte verda-
deira precisa a todo momento se distanciar, a qual a arte absoluta precisa
radicalmente se opor mas que lhe fornece seu material, seu conteúdo e
que lhe permite reivindicar um poder de ação e de transformação capaz
de ultrapassar as barreiras da própria cultura.
Veremos, com base nas polêmicas entre Mallarmé e o parnasia-
nismo ou o naturalismo, que a literatura, principalmente a poesia,
buscava se definir e legitimar distinguindo-se e diferenciando-se de
toda arte voltada ao consumo e ao entretenimento e, sobretudo, ao
jornalismo e ao modelo de escrita que ele propaga.

O simbolismo

Excetuando o naturalismo, o simbolismo, segundo Marchal, responde


pelo conjunto da produção literária, musical e pictórica do período com-

30
preendido entre 1880 e 1914 e pode se definir como um contraponto a
esse outro movimento artístico do século XIX, o naturalismo, na medida
em que opõe uma “arte artista e espiritualista, cultivando o mistério, a uma
arte social e materialista, fundada na ciência” (MÉLONIO; MARCHAL;
NOIRAY, apud/TADIÉ, 2007, p. 429). O simbolismo busca se opor ao
materialismo burguês e ao positivismo científico. Oposição que aparece
como “preciosismo” da escola, no gosto pelo artifício, em oposição a tudo
que seria natural, uma arte predominantemente musical, abstrata, que recusa
toda plasticidade, como as descrições e narrações. O simbolismo literário
recusa o mundo exterior e natural propondo paisagens criadas a partir de
ritmos, assonâncias e aliterações que diluem a fronteira entre o eu interior e
o mundo exterior.
Seu apogeu é atingido com Poètes maudits, de Verlaine, publicado em
1883, que apresenta três estudos sobre Mallarmé, Rimbaud e Corbière
respectivamente. Além disso, podemos citar outros textos fundadores,
como: À rebours, de J-. K. Huysmans,Traité du verbe, de René Ghil, e,
finalmente, o Manifeste symboliste, de Jean Moréas. Mas a estreia desses
poetas na cena literária francesa é anterior ao seu reconhecimento público,
ela data dos anos 1860, os anos de publicação do Parnasse conteporain entre
1866 e 1869. Essa publicação apresenta a quarta geração de poetas ro-
mânticos: Cazalis, Villiers de l’Isle Adam, Mérat, Valade, Hérédia, Copée,
Mendès, Sully Prudhomme, Mallarmé, Verlaine, além de publicar seus
mestres e poetas reconhecidos e já célebres na época, Leconte de Lisle,
Baudelaire e Banville. Trata-se de uma geração que cresceu sob o Segundo
Império, que conheceu apenas o exílio de Victor Hugo, que declinava de
todas as maneiras possíveis o divórcio entre a realidade e o Ideal.

O simbolismo foi um efeito neorromântico, ou um romantismo


fim de século representando a conjunção entre uma reação ide-
alista contra o positivismo (e seu avatar literário, o naturalismo)
e uma dupla reivindicação: a liberdade do verso [...], a auto-
nomia da poesia, redefinida como essência mesma do literário.
(MÉLONIO; MARCHAL; NOIRAY, apud TADIÉ, 2007, p. 429)

31
O simbolismo se anuncia, portanto, como uma nova via literá-
ria, um outro caminho estético que se constitui nesse fim de século
fortemente marcado pelo signo da crise, uma crise eminentemen-
te literária, a crise da representação. As críticas feitas pelos poetas
simbolistas ao naturalismo ilustram perfeitamente o sentido dessa
crise e sua importância na constituição da estética simbolista. Em
entrevista a Jules Huret, Mallarmé comenta os erros de parnasianos
e de naturalistas: “Quanto ao fundo, os jovens estão mais próximos
do ideal do que os parnasianos que tratam ainda seus assuntos a
maneira de velhos filósofos e de velhos retóricos, apresentando os
objetos diretamente” (MALLARMÉ, 2003, p. 699).
Os parnasianos fazem poesia apresentando diretamente os obje-
tos, como velhos retóricos, partilham de uma visão instrumental da
linguagem, acreditam que é possível dispor o mundo e organizá-lo
como lhes convém, como velhos filósofos, que têm uma concepção
da linguagem como meio pelo qual se pode “apreender”, “apresentar”
e “compreender” os objetos. Como veremos adiante, a ideia de uma
linguagem “transparente”, instrumento para narrar e descrever é a
mesma que está por trás da escrita jornalística, ou seja, da “escrita
comercial” e do “romance industrial”.

Os parnasianos, tomam a coisa inteiramente e a mostram: assim


falta-lhes mistério, eles retiram dos espíritos esta alegria deliciosa
de acreditar que eles criam. Nomear um objeto é suprimir três quar-
tos do prazer que é adivinhar pouco a pouco: sugerir, eis o sonho.
(MALLARMÉ, 2003, p. 699 -700)

O ideal poético mallarmeano está distante, portanto, da lógica


representativa, que segundo o poeta caracteriza a poesia parnasiana.
Para ele, a poesia consiste em sugerir, evocar os objetos, sem jamais
apresentá-los diretamente. Mallarmé continua desta vez criticando
o naturalismo pelas mesmas razões: “A infantilidade da literatura até
aqui foi acreditar que a linguagem seria capaz de ascender ao real, de
realmente transcrevê-lo. A ideia de sugestão introduz certo mistério
entre as palavras e as coisas, uma indeterminação, um silêncio no

32
interior da própria linguagem que não visa os objetos, mas procura
direcionar-se às ideias” (MALLARMÉ, 2003, p. 701).
A “infantilidade” literária naturalista, segundo Mallarmé, reside no
fato de que essa poesia apresenta os objetos diretamente, trata-se clara-
mente de uma concepção representativa da linguagem, que permite um
acesso direto ao real e que reduz a linguagem a um instrumento facilmente
manipulável. A ideia mallarmeana de sugestão, que substitui a estética
representativa parnasiana, introduz um sentido de mistério, justamente
entre as palavras e as coisas, um silêncio no interior da linguagem que
não visa mais apresentar os objetos, mas alcançar sua ideia. Assim, para
Mallarmé, através da linguagem só é possível mensurar a distância que
nos separa dos objetos, ficções que se aproximam das ideias.
Como veremos no próximo capítulo, a imprensa, com sua indús-
tria cultural, submete a própria linguagem à forma de circulação de
suas mercadorias, criando parâmetros de escrita e expectativas no
público leitor. A ideia mallarmeana de sugestão busca uma alterna-
tiva contra esse processo de reificação da linguagem. Assim, vemos
que o advento da indústria cultural obriga a literatura a se definir e
legitimar a partir da diferenciação e da distância cada vez maior que
ela busca estabelecer com relação aos produtos dessa indústria. A
poética mallarmeana terá, portanto, como principal objetivo, através
de uma renovação da ideia de linguagem, de criar uma poesia que es-
cape ao primado representativo e mimético da linguagem como con-
cebida outrora. Essa crítica da representação aparece como crítica às
estéticas parnasiana e naturalista, mas também como uma crítica do
papel social da literatura e da linguagem, realizada através da reflexão
sobre o duplo estado da fala (“parole”), “imediato” e “essencial”.

33
II
A LINGUAGEM E O ESPAÇO OU O LIVRO
E O JORNAL

Journaux: Ne pouvoir s’en passer – mais tonner contre.


Flaubert, Dictionnaire des idées reçues

No capítulo anterior, vimos duas concepções históricas da literatura do


século XIX, a de Vaillant e a de Bourdieu. O primeiro, Vaillant, pretende
narrar a sucessão de modelos literários desse século e sua relação estreita
com os acontecimentos políticos. Para esse autor, cada acontecimento polí-
tico é impulsionado por um modelo literário que fracassa junto com a revo-
lução que dele decorreu. O segundo, Bourdieu, vê no fracasso da revolução
de 1830 e principalmente 1848 o motivo que gerou um desencantamento
do mundo e o consequente abandono da política por parte dos escritores
e poetas. De qualquer maneira essas duas interpretações, seja aquela que
relacionam literatura e política, ou a outra que veem no fracasso político o
silêncio e desengajamento dos poetas são frutos de interpretações e leituras
históricas baseadas em descrições literárias, em modelos literários. Bourdieu
descreve a segunda metade do século XIX, a partir do romance de Flaubert,
como Vaillant vê nos modelos literários românticos do século XIX o projeto
político, “democrático”, digamos republicano, que guia a política francesa
desde a revolução de 1789. O que propomos aqui é traçar, a partir das refle-
xões do próprio poeta, de que maneira a relação entre poesia, vida social e
política se coloca no interior de sua obra.
O que encontramos na obra de Mallarmé é uma crítica social
e política que surge e se configura a partir de uma reflexão sobre o
estado concreto da palavra que circula no interior da vida social, e
o veículo que torna possível essa circulação é o jornal. Dada a sua
forma, ele impõe à escrita certo número de características que, en-
tre outras coisas, distanciam o público do pensamento. A sugestão
mallarmeana visa justamente o contrário, não informar, dizer,
descrever, mas fazer pensar. Quando interrogado sobre um aten-
tado à bomba contra a Câmara dos deputados francesa, Mallarmé
declarou:“Eu não conheço arma mais eficaz que a literatura”. As-
sim, do interior da própria linguagem, o poeta pretendia explodir o
edifício que mantinha um falso império em pé, uma república fal-
samente democrática, uma república representativa. Por isso, uma
tentativa de historicização e contextualização da poesia mallarme-
ana que pretenda ir um pouco além da caricatura dos manuais de
história da literatura deve ser capaz de mostrar de que maneira,
em suas reflexões sobre a linguagem e a poesia, Mallarmé estava
pensando e intervindo em seu próprio tempo.

A poesia e o folhetim

Mallarmé foi extremamente sensível às modificações que o sur-


gimento da indústria cultural operou no mundo das Letras. O jornal
permitiu uma grande circulação do romance ou do folhetim, quer di-
zer da prosa, mas a poesia continuou excluída da cena pública, talvez
irrevogavelmente restrita ao âmbito privado e lida apenas pelos seus
próprios autores ou pequenos grupos. A partir da leitura de múlti-
plos artigos mallarmeanos, poderemos observar como o autor trata
dessa complexa questão da relação entre literatura comercial e poesia
ou do jornal e do livro.
Em Notes sur le langage, Mallarmé distingue a arte de salão,
a arte industrial e a arte antiga, apontando a necessidade do
poeta de retornar a seu ateliê, de criar seu próprio estilo para
diferenciar-se da arte definida pelo comércio: “Salão, obras des-
tinadas a deixar esse bazar, para os anteriores – indústria, os mu-
seus, – arte antiga, retornar ao ateliê, bizarrices privadas {estilo”
(MALLARMÉ, 1998, p. 511).
Assim, podemos imaginar que para Mallarmé a arte aristo-
crática restrita aos salões está tão distante de seu tempo e de seus

36
contemporâneos quanto a arte fechada e resguardada pelos museus.
A arte presente nos museus é a arte do passado. Assim como a arte
aristocrática, feita para agradar e distrair, ela não corresponde aos
ideais da arte contemporânea de Mallarmé, que privilegia o estilo, o
trabalho formal. Por isso, o artista deve se voltar para o interior, não
dos salões ou de seu próprio “eu”, mas para seu próprio ateliê, com o
intuito de criar um estilo único.
A mesma divisão que Mallarmé encontra nas artes se reflete na
linguagem. O poeta distingue em seu tempo um desejo inegável de
“Separar, para vias de atribuições diferentes, um duplo estado da fala,
bruto ou imediato aqui, lá essencial” (MALLARMÉ, 1998, p. 511).
A fala, ou parole, caracteriza a utilização social da linguagem na sua
realização concreta e factual, fruto de seu próprio tempo que opera
no seu interior uma divisão entre um estado imediato ou bruto da
fala e outro essencial, poético diríamos.

Narrar, ensinar, mesmo descrever, isso vai e ainda que a cada um


bastasse para talvez compartilhar o pensamento humano, de pegar
ou colocar sob a mão de um outro em silêncio uma moeda, o em-
prego elementar do discurso serve a universal reportagem de que,
com exceção da literatura, participa tudo entre os gêneros de escritos
humanos. (MALLARMÉ, 2003, p. 212)

Assim, esse desejo inegável de seus contemporâneos de dividir


a linguagem de acordo com seus usos sociais ou poéticos tem como
consequência uma distinção entre os gêneros de escritos humanos.
Cada estado ou uso da língua corresponderia a um gênero, a um
“tipo de escrito”. O “estado bruto da fala” corresponde à “universal
reportagem”, trata-se, portanto, do jornal que, além de apresentar
fatos cotidianos, é composto também de “literatura” em seu estado
industrial, comercial diríamos, o folhetim que narra, descreve e até
pretende em alguns casos ensinar; já o estado essencial da linguagem
corresponde à poesia. Ela não ensina, não educa, não descreve.
Mallarmé constrói, assim, uma crítica à representação a partir
de um senso comum da linguagem que se torna evidente quando

37
examinamos o “estado imediato de fala”. Um senso comum que vê a
linguagem como um simples instrumento de reportagem, narração e
descrição de acontecimentos, uma linguagem absolutamente trans-
parente. Essa utilização da fala não está somente presente nos jornais
e folhetins, mas fundamenta a estética parnasiana e naturalista. O
que as estéticas naturalista e parnasiana fazem, assim como o jornal,
é transformar a linguagem em moeda, equivalente geral, sem mate-
rialidade, sem singularidade.
O texto “Quanto ao Livro”, presente na coletânea Divagations,
como muitos outros que constam neste livro, foi escrito para ser pu-
blicado em jornal. Paradoxalmente, o texto trata do livro, instrumen-
to “espiritual”, que Mallarmé procura diferenciar e opor ao jornal via,
no entanto, esse mesmo meio de comunicação. Indício da relação
complexa que a literatura entretém com a sociedade e a política no
fim do século XIX. O texto apresenta três subtítulos: “A ação restri-
ta”, “À venda” e “O Livro: instrumento espiritual”.
No primeiro, Mallarmé narra diversas etapas da criação literária:
o ato da escrita, a publicação e a leitura da obra. O autor discute o
que seria a ação literária em comparação com a ação política. Essa
diferenciação implica a análise de dois tipos de escrita: o livro e o jor-
nal. O primeiro, ideal, transcende o banal, já o segundo está aprisio-
nado ao que há de mais ordinário. Em “À venda”, uma grande baixa
na venda das livrarias é o pressuposto que desencadeia uma discussão
sobre a literatura de massa, que tem como modelo de escrita e veícu-
lo de divulgação o jornal. Vamos começar a nos concentrar na leitura
desses dois primeiros trechos do texto.
O texto “À venda” justifica a distinção e a separação entre polí-
tica e literatura pela descrição de um fenômeno particular ao século
XIX e ao surgimento da imprensa: o “folhetim”, literatura de massa
responsável não somente pela venda de jornais, mas pela criação de
uma grande indústria, a indústria editorial. O texto parte de uma
referência real, de um acontecimento histórico, um suposto crash nas
livrarias, por queda nas vendas. No entanto, o fato específico aparece
como uma referência pouco clara. Pois o poeta se aproveita de um

38
acontecimento ordinário para aprofundar o debate através da refle-
xão sobre a literatura e a indústria burguesa.

Uma notícia corre, com o vento do outono, o mercado compa-


rado às árvores que perdem suas folhas, vocês sorriem, como eu,
trata-se de desastre na livraria, rememoremos o termo “Crash”  ?
(MALLARMÉ, 2010, p. 174)

O tom é extremamente irônico e o estilo, hiperbólico, quase


caricatural. A ironia primeiramente coloca em evidência a pouca
importância que o público leitor, melhor dizendo, a sociedade em
geral, pode conferir a um “Crash” nas livrarias. Em segundo lugar, a
ironia coloca em questão o próprio acontecimento e sua verdadeira
dimensão literária. Mallarmé se questiona se uma possível “quebra”
das livrarias, do mercado editorial, teria alguma importância para o
mundo financeiro, e, em segundo lugar, ele questiona sobre o que de
fato significa dizer que os livros não estão sendo vendidos, quer dizer,
se isso teria alguma importância para a literatura, mais precisamente
para a Poesia.

Os volumes se acumulavam no solo, que dizer, não vendidos; graças ao


público que perdeu o hábito de ler para contemplar verdadeiramente,
sem intermediários, os pores do sol familiares a estação e belos.
Triunfo, desespero, tão baixo e tão perto do céu, juntos, neste alto
comércio das Letras. (MALLARMÉ, 2010, p. 174)

Se o público contempla o pôr do sol é porque não precisa do


intermediário de um livro para ver o que está diante de seu nariz. No
entanto, esse triunfo não é literário, uma vez que o público perdeu
o hábito da leitura. Ora, se o público deixou de ler para contemplar
“diretamente” a beleza, isso quer dizer que esse público despreza a
literatura que não é capaz de lhe apresentar beleza semelhante ou
equivalente à da natureza? Isso nos levaria a concluir que se o pú-
blico perdeu o hábito da leitura, deve-se, antes de mais nada, à má
qualidade dos livros e não a um desinteresse do público pela beleza

39
em si. Podemos nos perguntar, então, se o crash das livrarias não
poderia indicar um possível triunfo da literatura face ao comércio?
O texto continua explorando as relações entre literatura e “co-
mércio”, hoje diríamos, indústria cultural, procurando definir e traçar
uma nítida distância entre os dois fatos “literários”.

Nada omitido nessa farsa (importância, consultas e gestos) do que


significaria que a gente ia então ser, graças ao ideal, assimilado aos
banqueiros decepcionados, ter uma situação sujeita às baixas e reve-
zes, na praça […]? (MALLARMÉ, 2010, p. 174)

Se a literatura pertencesse verdadeiramente ao mercado capita-


lista e funcionasse da mesma maneira, os autores estariam como os
banqueiros, sujeitos às flutuações e aos caprichos do mercado. A li-
teratura não possui as mesmas premissas, seu compromisso, como o
trecho anterior sugere, transcende essa lógica. O seu compromisso é
com a beleza. Por essa razão as vendas, o comércio literário, jamais
poderiam ser um indicío do que ocorre de fato no mundo das Letras.
O comércio das Letras está diretamente relacionado ao surgi-
mento e desenvolvimento da imprensa e da publicidade, está tam-
bém relacionado com o desenvolvimento industrial. Toda a socieda-
de burguesa se resume para Mallarmé nessa indústria do faits divers,
do banal:

Um comércio, resumo de interesses enormes e elementares,


aqueles do número, emprega a prensa, para a propaganda de
opinião, o narrado do fato diverso e isso se torna plausível, na
Imprensa, limitada à publicidade, parece, omitindo uma arte.
(MALLARMÉ, 2010, p. 177)

A indústria editorial se preocupa com números, vendas e,


para vender seus livros, utiliza os meios de comunicação dispo-
níveis, isto é, a imprensa, que serve de veículo de propaganda,
além de modelo de escrita para a indústria editorial. Seu pro-
duto mais vendido: o romance, literatura de massa, fácil, acessí-

40
vel, banal e limitada ao cotidiano, é exatamente como o jornal.
O romance, assim como o jornal, “não apresenta nada, quanto
ao leitor, de estranho; mas recorre à uniforme vida”, ou seja,
nesses textos o leitor se reconhece, pois, segundo Mallarmé, a
modernidade não exige nada além disso: “Eis o que, precisa-
mente, exige um moderno: mirar-se, qualquer – servido por seu
obsequioso fantasma tramado pela palavra pronta às ocasiões”
(MALLARMÉ, 2010, p. 176).
Os leitores apreciam reconhecer-se nos romancese, para que eles
possam se reconhecer nos textos que leem, o romance recorre à vida
ordinária, se transforma no seu espaço por excelência, concorrendo
com o jornal.
Mallarmé argumenta que o folhetim merece ocupar o lugar que
lhe é devido, o jornal, seu lugar não é na livraria. No jornal, o folhe-
tim está ao lado da publicidade e dos fatos diversos do cotidiano,
nada mais apropriado.

Ele percebe: ele não sente, a bem dizer, na sua profissão a se-
gurança que assenta uma vida. Mas ele perde um pouco desta
nobre pureza e de sua ingenuidade juvenil, e se diz: Ah! É uma
arte! e veja-o que, sonhando com os belos folhetins, se rende ao
que se tornou a cerimônia habitual da literatura, quase contente,
do resto, e mais leve de ser menos obrigado a observar o mundo.
(MALLARMÉ, 1998, p. 510-511)

Não é interessante que justamente os textos que descrevem a


vida ordinária sejam capazes de “distrair”? A distração significa
que o espectador se exime de imaginar, da mesma maneira que os
autores dessas estórias. Mallarmé se refere ao “trabalhador”, aque-
le que até então não tinha acesso ao mundo dos romances. Ele
é descrito como um leitor que lê pouco, sobretudo os autores da
renascença e os românticos. Ou seja, ele só lê o que o folhetim lhe
apresenta a baixo custo.
O Crash da livraria concerne exclusivamente o romance. Nesse
episódio, “Ninguém fez alusão ao verso” (MALLARMÉ, 2010, p.

41
174). O poeta pode, assim, ironicamente sorrir a distância segura das
oscilações caprichosas do mercado. A poesia continuará excluída dos
jornais, das livrarias e talvez, inclusive, das editoras, porque está fora
das “combinações mercantis”, ela não deveria sequer estar à venda,
porque ela não se vende às exigências do mercado, “Para que trafi-
car aquilo que, não se deve vender, sobretudo quando isso não ven-
de?” (MALLARMÉ, 2010, p. 179).No entanto, o poeta continua,
talvez justamente por essa exclusão, tendo um papel fundamental
em seu tempo:  “Uma época sabe, de ofício, a existência do Poeta”
(MALLARMÉ, 2010, p. 179). Muito poderia ser dito sobre esta
última afirmação mallarmeana, pois “office” não é simplesmente um
sinônimo de “missa” (MARCHAL, 1988) ou qualificação para qual-
quer outro ritual religioso, é a maneira como o poeta concebe o papel
social da poesia, uma profissão. Reconhecer um poeta como homem
que trabalha é algo de que a sociedade burguesa não é capaz.
Se aqui a poesia parece distante do universo literário, excluída das
livrarias, é porque ela jamais se submetera a negociações mercantis e
interesses financeiros, cedendo ao banal para aumentar suas vendas
e sua popularidade, abrindo mão de seu verdadeiro papel social, para
fazer parte de um jornal que só pode estalar ao leitor sua própria
mediocridade, mas nunca o tornará capaz de se servir de sua própria
imaginação.
No próximo texto que comentaremos há uma descrição do espa-
ço de ação e atuação do poeta numa sociedade regida por interesses
econômicos, hostil à poesia e a tudo o que diz respeito à arte.
O texto “Ação restrita” começa com uma referência a um cama-
rada que teria tido uma conversa com o poeta sobre a necessidade
da ação e da criação, questão que se tornaria o problema da década
anarquista por vir, nos anos 1890.
O poeta começa o artigo contando que, diversas vezes, um Ca-
marada (sim, com letra maiúscula) teria lhe confiado sua necessidade
e vontade de agir. O poeta se pergunta se esse jovem estaria se re-
ferindo à criação literária, à criação “com palavras”. Ele se pergunta
como o jovem entende essa necessidade de agir, de criar. E parece
passar a palavra ao camarada, que teria afirmado o seguinte:

42
Distender os punhos, em ruptura de sonho sedentário, para um tri-
pudiante face a face com a ideia, assim como uma vontade toma ou
se mexer: mas a geração parece pouco agitada, além do desinteresse
político, pela inquietação de extravagar do corpo. Excetuada a monoto-
nia, certamente, de enrolar, entre os jarretes, sobre a calçada, segundo
o instrumento em alta, a ficção de um deslumbrante trilho contínuo.
(MALLARMÉ, 2010, p. 169)

O jovem reclama da falta de entusiasmo de seus contemporâneos


no que diz respeito à política, ele manifesta sua vontade de romper
com o sedentarismo, de se mexer, de se ver face a face com a ideia,
mas sua época parece pouco agitada, distraída pela monotonia das
ruas, sem nenhum interesse em sair dos trilhos, em romper com a
continuidade do tempo vazio. O poeta continua tentando entender a
que tipo de ação o jovem se refere e como ele entende a relação entre
literatura e política.
O desejo do camarada era produzir no maior número possível
de homens um movimento capaz de lhe dar em retorno a mesma
emoção que o fez agir. O jovem gostaria de contagiar seus contem-
porâneos com seu desejo de agir, com sua vontade de transformação
política, e ele só poderia se satisfazer ao ver o resultado de sua ação,
literária, tornando-se igualmente uma ação, dessa vez, quem sabe,
política. Isso o levaria a receber de volta a emoção que o levou a
agir, gerando um ciclo de transformação. Isso garantiria o sucesso da
empreitada do jovem poeta, garantiria sua existência enquanto tal.
No entanto, o narrador tem algumas ressalvas a fazer; em primeiro
lugar, é preciso deixar claro que não há garantia nenhuma do sucesso
de tal vontade, mesmo que ela dure toda uma vida, pois o empenho
do poeta não pode se medir pelas reações que ele provoca, tampouco
pelo silêncio com o qual seus contemporâneos lhe respondem.
Mallarmé opõe-se a essa ideia de ação e à necessidade de re-
conhecimento e identificação catártica do público com a literatura
sublinhando que o ato do escritor se aplica ao papel: “Seu ato sempre
se aplica ao papel; pois meditar, sem traços, torna-se evanescente,
nem que exalte o instinto em algum gesto veemente e perdido que

43
você buscou” (MALLARMÉ, 2010, p. 170). No papel, o poeta deve
deixar os traços de seus pensamentos, de suas ideias, para que eles
não se tornem evanescentes, não se percam no ar. E esse ato, a escrita,
o único que um poeta é capaz de realizar, não possui nenhum traço
de luminosidade, talvez por isso ele não possa servir de guia para
o “povo”, pois na literatura não se trata de escrever luminosamente
sob um campo obscuro como os astros, mais ao contrário, “preto no
branco”. O ato de escrever se configura, justamente, em oposição ao
jornal que tem a arrogante pretensão de esclarecer e relatar a verdade
dos fatos. Ao escrever “preto no branco”, a poesia, para Mallarmé,
mantém o mistério original da página virgem, ou pior, corrompe sua
clareza, ela não esclarece ou explica, mas obscurece, em nome, talvez,
de uma verdade que não se vê, perdida nas sombras.
O poeta continua afirmando: “Não sei se o Hóspede perspicaz-
mente circunscreve seu domínio de esforço: será de meu agrado mar-
cá-lo, também certas condições” (MALLARMÉ, 2010, p. 170-171).
A literatura deve, como Mallarmé o faz nesse texto, delimitar seu
terreno de ação, circunscrever o espaço no qual ela aplica seus esfor-
ços e ainda determinar as suas condições. Parece um gesto simples
ou mesmo uma retirada estratégica da cena pública que isenta o po-
eta de suas responsabilidades, mas não se trata de maneira nenhuma
de algo dessa natureza. Delimitar o espaço do poeta significa definir
o que é literário, qual a sua singularidade interna e própria.
Em primeiro lugar, o poeta deve se omitir, apagar de seus escritos
sua individualidade e todo traço de sua personalidade. Escrever é
morrer enquanto indivíduo e tornar-se um spirituel histrion a quem
“o direito a nada realizar de excepcional ou que falte às manobras
vulgares, se paga, em qualquer um, com a omissão de si e dir-se-ia
pela sua morte como um tal” (MALLARMÉ, 2010, p. 171). Quando
comparada à ação política, com essa agitação corporal que o cama-
rada pretende provocar em seus leitores, a ação poética é quase ine-
xistente, um ato mínimo, um traço no papel, e se ela possui alguma
grandeza, essa reside justamente no “pouco” que é capaz de realizar.
Essa modalidade de ação é o que esperamos definir ao longo dos
próximos capítulos.

44
O autor deve, portanto, no esquecimento de si, na negação de seu
ser individual, se transfigurar-se em verdade:

[…]aí, sem razão dos intermediários da luz, da carne e dos risos, o


sacrifício que lhe faz, relativamente a sua personalidade, o inspira-
dor, resulta completo ou é, numa ressurreição estranha, terminado
por este aqui: de quem o verbo repercutido e vão doravante se exala
pela quimera orquestral. (MALLARMÉ, 2010, p. 171)

Podemos ver a relação que Mallarmé estabelece entre a criação


poética e a criação divina, através do emprego do verbo “ressuscitar”.
A palavra se desprende da carne, porque o poeta se exume da sua
personalidade. O escrito possui, portanto, uma natureza desencar-
nada, como um perfume que volteia no ar, da mesma natureza das
Ideias, leve como o vento.
Se a literatura existe, ela se realiza somente a partir do sacrifício
da “personalidade” do poeta, uma vez que este “morre”, “omite-se”,
desaparece dos textos que escreve, exclui-se da literatura, retira-se
do papel para deixar que o verbo repercuta e exale para além das
quimeras pessoais e vontades individuais. Não é difícil compreender
a criação poética como uma renúncia ou sacrifício, sobretudo quando
o senso comum nos transmite a ideia de que a criação é um engaja-
mento, que exige dedicação. No entanto, entender esse engajamento
como uma renúncia à sua própria personalidade, aos desejos pessoais
do poeta, está longe de ser simples. Trata-se de um ato político por
excelência, pois o que o poeta procura, deixando de lado sua indivi-
dualidade e personalidade, não se diz sob a forma do Eu, escapa do
egoísmo narcísico; omitir-se é renunciar à glória e ao reconhecimen-
to, em busca do que nem o poeta nem os leitores seriam capazes de
reconhecer.
A ação do poeta possui “imunidade do resultado nulo”. O risco
é grande, mas o poeta sabe que sua ação e o fracasso são quase o
mesmo. Isso porque a poesia, ao contrário do “vocabulário dos as-
tros”, não se escreve branco no preto: “O tinteiro, cristal como uma
consciência, com sua gota, no fundo, de trevas relativa a que alguma

45
coisa seja: depois, afasta a lâmpada” (MALLARMÉ, 2010, p. 173).
O procedimento poético que Mallarmé utiliza parece descrever a
ação poética que aqui é mais do que uma metáfora ou ilustração
do seu modo de operação. O poeta busca descrever o ato de escrita
a partir dos objetos do seu cotidiano, através do exame e descrição
das qualidades desses objetos. Assim, a literatura é obscura, como
tinteiro, ela mergulha nas trevas, e é assim que ela age, que ela se
configura. A lâmpada que poderia conferir alguma clareza ao texto é
afastada: “Você notou, não se escreve, luminosamente, sobre campo
obscuro, o alfabeto dos astros, só ele, assim se indica, esboçado ou
interrompido; o homem prossegue preto sobre branco” (MALLAR-
MÉ, 2010, p. 170).
A ação literária, modo de ser da literatura, parece se aparentar
ao de outra arte, o teatro, a arte da ação por excelência. Segundo
Mallarmé, “Assim a ação, no modo estabelecido, literário, não trans-
gride o Teatro; se limita à representação – imediato desvanecer do
escrito” (MALLARMÉ, 2010, p. 172). Se num primeiro momen-
to, Mallarmé ressaltava a importância do escrito, que impedia que
o pensamento se perdesse no ar, permitindo que ele deixasse seus
traços, sua marca no mundo, agora vem uma afirmação que pare-
ce contradizer a anterior. O poeta defende que a ação literária seja
como uma representação teatral, o próprio desvanecimento do texto
escrito.
O poeta, ao realizar esse sacrifício da sua personalidade, “celebra
a si mesmo”, “anônimo”, “no herói”, ele se “transfigura em verdade”,
assim se um “lugar se apresenta”, a cena, ou a própria literatura se
mostra como espaço onde o verdadeiro “espetáculo de Si” acontece.
Se por um acaso a poesia é capaz de sair da cena, do seu palco, do es-
paço que lhe é próprio e restrito, o papel, para ocupar a praça pública,
isso não diz respeito ao poeta: “Termine, na rua, outra parte, isso, a
máscara cai, não tenho a fazer com o poeta: perjure seu verso, ele não
é dotado mais que de fraco poder por fora, você preferiu alimentar
o saldo de intrigas cometidas ao indivíduo” (MALLARMÉ, 2010,
p. 173). Em todo caso, é certo que, se o poeta perjura seu verso e se
rende ao banal, ele perderá toda e qualquer possibilidade de inter-

46
venção efetiva, afinal, não fará nada além de reproduzir o que já é.
Todo veículo ou colocação “estranho ao ideal” só pode lhe corromper
e eliminar seu poder de ação. Da mesma maneira que a literatura
não pode se deixar corromper por necessidades e vontades pessoais,
fazendo delas seu fim, o poeta não pode se deixar corromper pelos
seus meios, cedendo às necessidades de divulgação e publicidade do
comércio literário.
Chega o momento da publicação. A poesia “sacraliza”, ela tenta
“durante outra gestação” resolver a crise. Essa outra gestação poderia
fazer referência aos movimentos políticos; lembremos que no come-
ço do texto o poeta faz referência aos trilhos, a “rua”, que fornece aos
manifestantes durante as crises políticas os pavês para formar bar-
ricadas. Assim, para resolver a crise o poeta publica e, apesar da sua
relação com as crises públicas, O Livro deve ser “impessoal”, espaço
onde o “espírito vive satisfeito”, e se o poeta se afasta como autor, o
livro também não requer leitor algum. Entre outros acessórios hu-
manos, ele existe “sozinho: faz, sendo”.
Que essa restrição do poeta ao espaço privado do livro, ao univer-
so restrito e particular da criação e da escritura poética não seja vista
como uma simples manifestação de purismo literário, de alienação
ou como um “aristocratismo”, pois a literatura mallarmeana não é ex-
clusivamente construída a partir da negação da sociedade e de toda
participação política.

[...] peço-lhe, sem julgamento, por falta de considerantes súbitos, que


você trate minha indicação como uma loucura, não o proíbo, rara. En-
tretanto tempera-a já essa sabedoria, ou discernimento, se não vale
mais – arriscar sobre um estado no mínimo incompleto circundante,
certas conclusões de arte extremas que podem explodir, diamanta-
riamente, nesse tempo para sempre, na integridade do Livro – jogá-
-las, mas e por uma triunfal inversão, com a injunção tácita que nada,
palpitando no flanco insciente da hora, nas páginas mostrado, claro,
evidente, a encontre pronta: ainda que não seja talvez uma outra em
que deva iluminar. (MALLARMÉ, 2010, p. 173-174)

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O poeta reconhece que suas considerações sobre a arte são “extre-
mas”, elas pertencem a um momento histórico, nelas palpita “a hora”
e, por isso, talvez, elas devam ser todas radicalmente invertidas, jo-
gadas na página de um Livro, onde elas reluziriam, paradoxalmente,
sem nenhuma clareza. A última ressalva do poeta diz respeito ao que
de fato essas considerações deveriam iluminar, talvez não fosse exa-
tamente a página de um Livro, mas outro lugar. Essa mera alusão, de
que a poesia deveria talvez iluminar a praça pública, deve ser enten-
dida como um verdadeiro programa poético e político, onde trata-se
de buscar na linguagem, no interior do campo literário, um meio e
um espaço de reflexão sobre tudo o que lhe é exterior e heterogêneo.
Mallarmé não apenas recusa o parnasianismo que quer pintar as
coisas tais quais elas são, como o naturalismo, grotesca representação
do real, mas também rechaça a poesia lírica, subjetiva, centrada no eu
e em suas emoções. O tédio aqui não procura o turbilhão da carne,
cansado da verdade abstrata dos livros. Da mesma maneira que Bau-
delaire outrora recusara a expressar-se como o católico Lamartine,
cantando amores impossíveis e musas mortas, Mallarmé compara
a posia lírica ao jornal, espelho da banalidade ordinária, nada mais
que produtor de bovarismo. O que ele procura, no entanto, não é
outro lado da moeda, a ideia pura, o sonhado, mas uma experiência,
além da realidade facilmente reconhecida e ordenada pela unidade
do Eu, pensamento senhor do corpo. O absurdo, a loucura, o acaso,
o imprevisível e incontrável. Aniquilar o eu e a expressão pessoal
narcísica é fundamental para fazer uma poesia na qual o burguês não
se reconhece, não se admire, não se lamente de sua própria condição.
Trata-se de alcançar um espaço, em que o eu desaparece para ceder
a iniciativa às palavras, dar voz às sombras, ao desconhecido, ouvir o
som do que é novo.

48
III
A LINGUAGEM E O TEMPO: MODERNIDADE

Eles estão doentes.


Nietzsche a cerca dos modernos ou decadentes.

Como vimos no capítulo anterior, a ação de um escritor, para


Mallarmé, é restrita e limitada à folha de papel na qual ele escreve.
Vimos o quanto essa definição de autonomia da obra de arte é de-
pendente do desenvolvimento da indústria cultural da qual a arte
busca se diferenciar. Neste momento buscaremos mostrar que o que
está em questão nessa afirmação da autonomia da arte, ao menos do
século XIX, é uma concepção da literatura que se desenvolve a partir
da reflexão sobre a relação entre a literatura e seu próprio tempo,
e que só é possível a partir de uma nova concepção do tempo e da
História.

O suicídio ou abstenção, nada fazer, por quê? – Única vez no mundo,


porque em razão de um acontecimento sempre que explicarei, não
há Presente, não, um presente não existe.. Por falta de que se declare
a Massa, por falta – de tudo. Mal informado aquele que se gritaria
seu próprio contemporâneo, desertando, usurpando, com impudên-
cia igual, quando o passado cessou e que tarda um futuro ou que
os dois se remesclam perplexamente para mascarar o afastamento.
(MALLARMÉ, 2010, p. 172)
A razão pela qual a ação do poeta se limita à folha de papel é
histórica. Para Mallarmé, o presente é apenas uma ilusão, presa entre
um passado que jamais fica inteiramente para trás e um futuro que já
está aqui. Tal indistinção, que apenas mascara a distância que separa
o passado do futuro na qual o presente se dissolve, impede que um
homem possa se dizer e se sentir seu próprio contemporâneo. Ape-
nas as massas podem se permitir tamanho impudor. Mallarmé não
descreve o acontecimento que provoca essa incapacidade do homem
moderno de se sentir contemporâneo de si mesmo, mas é inquestio-
nável que um acontecimento tenha alterado definitivamente o modo
como o homem percebe o tempo e seu papel na História.
Poderíamos supor que o acontecimento a que o poeta se refere
seja a Revolução Francesa, pois com a revolução surgiu um estrato da
população, a massa, principal agente da revolução, que passa a parti-
cipar e alterar o curso da História. Porque a revolução instaura a pos-
sibilidade de transformações políticas e sociais radicais, ela faz surgir
uma consciência histórica. Essa maneira de perceber e experimentar
o tempo é ela mesma histórica e a ela chamamos modernidade.
Com a modernidade o sentido da História, do tempo, se trans-
formou. O tempo se torna movimento, não mais um curso vazio, ou
uma linha, pois, agora, dele o homem adquire consciência. Ter cons-
ciência do tempo significa pensá-lo, e principalmente experimentá-
-lo como histórico. O moderno se sabe sujeito e principalmente pro-
duto da História, por isso ele vê o tempo como efêmero, descontínuo,
permeado por possibilidades constantes de mudanças imprevisíveis e
muitas vezes radicais. A modernização industrial que o século XIX
sofreu, alterando radicalmente as condições de trabalho, contribui e
muito para uma transformação radical da experiência. A tecnologia e
a modernização, por afastarem o homem do produto de seu trabalho
e do controle da produção, incrementa esse sentimento moderno de
que o tempo é indiscernível e fugidio. Pois na modernidade a expe-
riência, marcada pelo desencantamento do mundo e perda de poder
da religiões, aparece para o indivíduo como fragmentada, sempre in-
completa e destituída de um sentido unificador e seguro.

50
A poesia de Baudelaire é produto dessa contradição entre um
sentido e uma consciência histórica diante da qual o homem moder-
no só pode se sentir impotente. Além disso, essa poesia se encontra
no ponto em que uma consciência histórica se encontra com o ocaso
das formas literárias românticas que não mais correspondem a um
tempo novo, a uma nova situação histórica.
Em seu Peintre de la vie moderne, Baudelaire propõe uma teoria
racional e histórica da beleza, em oposição a uma ideia unitária e
absoluta, para mostrar, justamente, que a beleza

[...] é sempre, inevitavelmente, de uma composição dupla, bem que


a impressão que ela produz seja una; [...] O belo é feito de um ele-
mento eterno, invariável, cuja quantidade é excessivamente difícil
de determinar; e de um elemento relativo, circunstancial, que será,
se quisermos, cada um ou todos juntos, a época, a moda, a moral, a
paixão. (BAUDELAIRE, 1976, p. 685)

Esse elemento passageiro e fugaz da beleza é justamente o que


Baudelaire chama de modernidade. O poeta foi efetivamente o pri-
meiro a teorizar esse fenômeno e introduzir em seus poemas essa
“beleza passageira, fugaz, da vida presente, o caráter que o leitor per-
mite chamar de modernidade” (BAUDELAIRE, 1976, p. 724).
Para Meschonnic (1985) existe um paradoxo, às vezes implícito,
outrora evidente na definição baudeleriana de modernidade. Na ver-
dade, existem duas definições de modernidade na obra do poeta. A
primeira definição seria a que procura buscar o eterno no transitório,
onde o eterno e o transitório são os dois elementos que constituem
a modernidade. Na segunda definição “M. G.” se impõe a tarefa de
buscar e explicar a beleza na própria modernidade. Meschonnic su-
blinha que nessa definição a beleza é interior à modernidade, esta
não seria a união entre o transitório e o eterno, mas somente o tran-
sitório, enquanto a união desses dois elementos constituiria a arte.
“A modernidade, é o transitório, o fugitivo, o contingente, a metade
da arte, e a outra metade é o eterno e o imutável.” (BAUDELAIRE
apud MESCHONNIC, 2005, p.118). Não se trata de uma mesma

51
definição, portanto, a primeira se refere à modernidade, a segunda,
à arte. Esta última retoma a definição da beleza, justapondo o ele-
mento eterno e o elemento negativo. A primeira definição torna a
modernidade um todo indissociável, uma contradição firme. Ela
justapõe a historicidade da vida e da arte. A segunda definição, que
estabelece a modernidade como apenas o transitório, torna possível
a separação entre ambas. A modernidade é, assim, nada além da vida
presente, não mais sua historicidade, mas o histórico. Ela é, portanto,
em si mesma, transitória, mas guarda, no entanto, uma promessa de
antiguidade.
Essa distinção pode se prestar a alguns equívocos. Para evitá-
-los é necessário manter a distinção entre historicidade e histórico.
Se compreendermos a modernidade como o simplesmente transitó-
rio, então poderíamos dizer que a separação que ela pressupõe entre
a vida e a arte é responsável pelas diretrizes que fundamentam a
obra de arte autônoma. No entanto, como Meschonnic ressalta a
modernidade por encarnar simplesmente o transitório, é histórica e
não simplesmente historicista. Meschonnic comenta, por exemplo,
a obra de Jauss, que historiciza a modernidade mostrando-a como
uma oposição com relação ao tempo presente, uma descrição que é
também realizada por Bourdieu sobre quem comentamos em outro
capítulo.
Para Meschonnic essas descrições, apesar dos equívocos, confir-
mam o fato de que a modernidade é, apesar das divergências teóri-
cas de sua compreensão, signo de uma consciência histórica. Essa
historicização é um dos aspectos da modernidade, que é justamente
composta por essa contradição entre um tempo presente, no entanto,
consciente de si, consciente de seu caráter passageiro e fugaz, ou seja,
histórico.
A historicidade é busca do sentido a partir da consciência do
tempo, da história, sobretudo como uma consciência do presente.
A arte que busca a beleza da modernidade no seu interior procura,
portanto, a partir de sua consciência histórica e da consciência de
sua historicidade, conferir sentido ao caráter transitório e fugidio do
próprio presente.

52
É também importante distinguir a modernidade segundo
Baudelaire e o que o poeta entende por moderno. Como
Meschonnic destaca, modernidade e moderno são praticamente
opostos. A modernidade é aquela da vida presente, o moderno é
simplesmente o atual, a arte contemporânea que para Baudelaire
não é capaz de evocar a beleza transitória.
Nesse quadro teórico, a grande questão da modernidade é
o sujeito. A modernidade é um combate, um estado nascen-
te, indefinidamente nascente do sujeito, de sua história, de seu
sentido. Na modernidade o sujeito busca inscrever-se, ele pro-
cura encontrar sentido para si e para o mundo que o circunda.
A modernidade é assim, a incessante escrita de uma história e
de estórias.

Porque os conflitos nos constituem, a urgência do sentido é


permanente. A questão do que é o sentido e a do que é a mo-
dernidade são inseparáveis daquelas sobre o sentido e a his-
tória. O jogo dos jogos é justamente este do sentido. (MES-
CHONNIC, 2005, p. 219)

Esses conflitos se desenham entre diversas concepções da moder-


nidade, como incessante busca pelo sentido, permanente elaboração
e reconstituição do tempo e da História. Podemos falar de moderni-
dades como: a modernidade de Baudelaire, o desconhecido de Rim-
baud, a modernidade da arte e da literatura modernas, a modernida-
de-razão, a modernidade-crítica-da-razão, a modernidade técnica, a
modernidade que rejeita a técnica...
A modernidade é uma descontinuidade (com o social, com a
profissão, com o passado) na medida em que ela é o que acontece
no passado em um “sujeito histórico no instante do perigo”: o
presente. O tempo mais cheio de subjetividade. Onde se faz, ou
seja, se desfaz e se refaz sem cessar, o sentido. Esta negatividade,
a mais banal e imemorial das coisas, porque ela é de cada instan-
te, é vital para o presente (MESCHONNIC, 2005, p.69).

53
A modernidade é uma ideia contraditória do tempo. Se por um
lado, a modernidade marca o nascimento da História, se ela impri-
me uma consciência histórica no homem, por outro lado, é a eterna
busca pelo momento presente. O tempo histórico transforma a con-
cepção do tempo que agora é tido como um fluxo contínuo, um mo-
vimento incessante. O homem moderno parece preso nesse tempo
que lhe escapa como areia entre os dedos. Por isso, Meschonnic pode
afirmar que o presente é o tempo subjetivo por excelência, porque ele
não se deixa fixar, porque ele se desfaz, e assim requer uma interpre-
tação, requer que lhe atribuam, incessantemente, um novo sentido.
Assim, a consciência histórica da modernidade implica uma com-
preensão do tempo como fugidio, e tem como consequência a neces-
sidade da incessante escrita do presente com o objetivo de garantir
sentido e legitimidade ao tempo. A História é compreendida como
historicismo, interpretação e re-interpretação infinita do presente.
A modernidade escapa justamente à oposição clássico e moder-
no, ao movimento de oposição e ruptura entre um movimento artís-
tico e o movimento que o precede e a partir do qual a história da arte
se define. Isso porque a modernidade é o momento de nascimento da
História, que estabelece uma indistinção entre passado e futuro; nem
o passado, nem a antiguidade tem mais ou menos valor que o presen-
te, eles são simplesmente diferentes. A escolha entre a continuidade
e a ruptura é algo como um começo historiográfico absoluto, que
não pode ser justificado a partir do material histórico e de suas evi-
dências, já que é a própria história que organiza todo esse material
histórico. O presente não pode se nomear enquanto tal e caracterizar
sua própria originalidade, pois ele ainda não é um período histórico.
O próprio romantismo, como Jameson (2002, p. 94) ressalta, e
sua modernidade só existem, após o advento da própria história, ou
melhor dizendo da historicidade, a consciência da história e do ser
histórico aparecem com a dissolução da querelle entre os antigos e os
modernos. Ou seja, é a própria história que impede essa nova atitude
com relação ao presente. O crítico americano critica a periodicização
histórica que não passa de um historicismo. Não se pode periodicizar
a modernidade porque ela não é histórica, ela nasce certamente da

54
consciência da história, ou seja, da historicidade, mas ela pertence ao
presente, ela se define a partir do tempo presente.
A modernidade pode, então, ser compreendida a partir da re-
tórica clássica, como um topos, o que significa que a modernida-
de enquanto narrativa é sempre, de uma maneira ou de outra,
uma reescritura, um poderoso deslocamento de prévios paradig-
mas narrativos. Assim, todos os temas que geralmente aparecem
como determinanates da modernidade, consciênciadesi, reflexi-
vidade, representação, materialidade da surface pictórica etc. são
apenas meros pretextos para uma operação de reescritura capaz
de garantir o efeito de perplexidade e convicção necessários para
a instauração de um novo paradigma. Não que esses temas sejam
fictícios ou falsos, eles apenas nos mostram a prioridade da re-
escritura sob as perspectivas da análise histórica. No entanto, na
verdade, Jameson nos mostra que o historicismo também se con-
figura como uma obsessão pela reescrita de narrativas, ele enu-
mera os ditos marcos da modernidade, ora Lutero, ora Descartes,
ora a Revolução Francesa, entre muitos outros. Eis a razão pela
qual a modernidade não pode ser considerada como um conceito
filosófico, ela é simplesmente uma categoria narrativa.
O moderno é para Jameson o que Jesperson nomeou de shifter.
Um shifter é um termo como “agora”, “aqui”, “este”, “aquele”, um ve-
ículo vazio da “deixis” ou referência ao contexto da enunciação, cujo
significado varia de acordo com o falante, de acordo com o tempo e
de acordo com o contexto da própria enunciação. O termo moderno
deveria ser incluído entre os shifters, já que, sobretudo no que diz
respeito à moda, o que era moderno ontem já não é mais moderno
hoje, ou seja, a atualidade do moderno é momentânea, sempre de-
pendente do seu contexto de enunciação.
Essa ideia de moderno reduz o termo à ideia de “novo” e o subtrai
de sua historicidade, mas, no entanto, esta é justamente a caracterís-
tica maior da modernidade, segundo Jameson, (2002, p. 94) e que
impede todo tipo de periodicização histórica e de entendimento da
modernidade como um momento histórico. A modernidade, como
vimos, é o presente, não ainda o tempo histórico.

55
Jameson não procura comprender as causas da modernidade
e suas consequências nos mais diversos campos da vida social;
seu objetivo não é definir e apontar um conceito de moderni-
dade, mas simplesmente compreender como ela se transforma
em ideologia. Assim, a definição que Meschonnic apresenta da
modernidade seria apenas um dos desdobramentos ideológicos
de sua concepção, que transforma a modernidade num histori-
cismo. Dessa maneira, a modernidade define o tempo presente,
o tempo do instante, o tempo imediato, mas o presente não é
histórico e por isso parece sempre se recusar a toda determina-
ção. O moderno não seria nada além de um shifter, um termo
vazio que adquire significado apenas no interior da enunciação;
a experiência do tempo e a própria noção de experiência se tor-
nam problemáticas, uma vez que o presente é efêmero e fugaz.
Essa concepção da modernidade aponta certamente para o seu
caráter ideológico, mas mascara o verdadeiro problema que a
define. Para colocá-lo em evidência é importante não descar-
tamos tão rápido a ideia de que a modernidade pode ser sim, a
descrição de um tempo histórico.
A Idade Moderna se inicia no período em torno de 1500
inaugurado pelas grandes navegações, pelo Renascimento e pela
Reforma. No entanto, o emprego dos termos “tempos moder-
nos” ou “novos tempos” só se torna possível quando o sentido
cronológico dos termos se esvazia e não mais indica a classi-
ficação ainda hoje atual da História, dividida em períodos –
Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna –, mas sim uma
época eminentemente nova. Essa noção de modernidade indica
que o presente é um tempo orientado para o futuro, e não uma
consequência do passado, ele se define a partir de sua abertura
para o novo, para o que está por vir. Dessa maneira, os “tempos
modernos” são os novos tempos, sobretudo depois da Revolução
Francesa, quando o termo modernidade aparece como sinônimo
de outra vida social e o fim definitivo do Antigo Regime. Ao
menos é com o que contavam os liberais, como Victor Hugo e
Germaine de Staël.

56
A compreensão do passado e dos novos tempos se correlacionam,
pois o passado adquire valor de uma história universal, a reflexão so-
bre a atualidade se dá com relação à totalidade da história, disso de-
correm a experiência do progresso, da aceleração dos acontecimentos
e a compreensão da simultaneidade de desenvolvimentos históricos
cronologicamente distintos. Assim a história corre o risco de se tor-
nar um processo homogêneo, criador de problemas e o tempo será
tido como um recurso insuficiente para a resolução desses problemas
(KOSSELECK apud HABERMAS, 2000, p. 10). Contudo, essa
não é a única maneira de compreender a modernidade.
Hegel data o nascimento do “tempo presente”, ou o último está-
gio da história, entre o final do século XVIII e início do século XIX
com base em três acontecimentos marcantes: o Iluminismo, a Revo-
lução Francesa e a Reforma protestante. Este presente, que se com-
preende como “novos tempos”, como a atualidade do tempo mais
recente, só pode, segundo Habermas, se constituir a partir de uma
ruptura contínua com o passado. “É neste sentido que os conceitos
de movimento, que no século XVIII, juntamente com as expressões
“modernidade” ou “novos” tempos, se inserem ou adquirem os seus
novos significados, validos até hoje: revolução, progresso, emancipa-
ção, desenvolvimento, crise, espírito do tempo etc.” (KOSSELECK
apud HABERMAS, 2000, p. 10).
Eis a característica maior da modernidade, ela não busca no seu
passado ou em outras épocas seus critérios de orientação, “ela tem
de extrair de si mesma a sua normatividade” (HABERMAS, 2000,
p. 12). A modernidade faz sempre referência a si mesma, por isso
está sempre buscando afirmar-se, construindo novas narrativas, para
falar com Jameson, que a legitimem, produzindo incessantemente
sua autocompreensão. No entanto, a modernidade não é apenas um
problema teórico. Esse novo tempo, marcado pela Revolução, é com-
preendido como resultado de uma luta de forças, que pode inclusive
culminar em Revolução, transformação completa da vida social, po-
lítica e economicamente.
O grande problema da modernidade é a questão paradoxal “de
como obter critérios próprios valendo-se da contingência de uma

57
modernidade que se tornou eminentemente transitória” (HABER-
MAS, 2000, p. 16). Não seria melhor dizer que a questão moderna é.
nos termos de Germaine de Staël, criar uma nova ordem social que
substitua o Antigo Regime, com a Igreja, a monarquia e os aristo-
cratas no poder?
Se a modernidade busca estabelecer-se em relação ao próprio
presente, negando o passado, é porque ela viu surgir a revolução po-
lítica que serviu como matriz para as vanguardas estéticas. No ro-
mantismo francês, a função da arte é construir, definir, criar o modo
de sentir de um povo.
Para Habermas, é no campo da estética que o problema da fun-
damentação da modernidade aparece, mais precisamente no mo-
mento da Querelle des anciens et des modernes. Aqui, a ideia de um
belo absoluto é utilizada pelos modernos como argumento contra
a imitação dos clássicos defendida pelos antigos. Vimos que no ro-
mantismo o argumento contra os defensores do neoclassicismo era
social, e não escondia sua veia política e liberal. Tratava-se, nesses
primeiros anos, de transformar o teatro em espelho de uma nova
sociedade. No entanto, é com Baudelaire, como destaca Habermas,
que a experiência estética se confunde com a experiência histórica.
“Na experiência fundamental da modernidade estética intensifica-se
o problema da autofundamentação, pois aqui o horizonte da expe-
riência do tempo se reduz à subjetividade descentrada, que se afasta
das convenções cotidianas” (HABERMAS, 2000, p. 14).Extravagância
de artista que destrói a moralidade católica, barro que forma o “eu”
pessoal e ordinário das lamúrias contrarrevolucionárias. O presente
não pode buscar numa figura do passado a sua explicação, pois a
modernidade toma como ponto de referência “uma atualidade que
se consome a si mesma, custando-lhe a extensão de um período de
transição, de um tempo atual, constituído no centro dos tempos mo-
dernos e que dura algumas décadas” (HABERMAS, 2000, p. 14).
A questão da modernidade em geral significa para Paul de Man
(1989, p. 87), “a possibilidade problemática de toda literatura existir
no presente, ser considerada, e lida, de um ponto de vista que clama
compartilhar com ela o sentido temporal do presente”. O termo mo-

58
dernidade é pragmático e descritivo, mas também conceitual e norma-
tivo e, em geral, as duas primeiras características deixam de lado as
duas últimas. Ou seja, o caráter pragmático e programático da mo-
dernidade esconde seu caráter eminentemente problemático, que é
o seu caráter conceitual e normativo, segundo o qual a modernidade
se define, como vimos com Habermas, a partir da sua necessidade de
autocertificação. Assim, a modernidade não é somente a necessidade
que a literatura proclama para si mesma de existir e ser inteiramente
no presente, mas, a partir do momento em que o próprio presente
se torna um problema, devemos nos perguntar de que maneira essa
concepção problemática afeta a literatura. A questão é, portanto, sa-
ber de que maneira a literatura pode dar conta de uma experiência
do presente que se tornou, eminentemente, problemática?

A implacável vida

Essa contradição entre o eterno e o presente–que define a beleza


e a obra de arte– estrutura a obra de Baudelaire como um grande
jogo de contrários, que se pode resumir através das figuras do spleen e
do ideal. Maneira simbólica de figurar a contradição constitutiva da
modernidade, com seu caráter eterno (o eu fica do passado, a tradi-
ção, a História), que assume a figura do ideal, um momento distante,
um sofrido irrecuperável, que é ao mesmo tempo um sonho e uma
sombra que atormentam. Já o spleen é o sentimento decorrente do
caráter fugidio do tempo, a impossibilidade de uma reconciliação
com o ideal, com o passado, num presente que insiste em não lhe
corresponder.
Bertrand e Durand analisaram essa retórica da contradição. Ci-
tamos alguns exemplos de suas formas: união entre sujeitos “licen-
ciosos” e formas regulares, compreendendo, assim, formas clássicas
combinadas com a frieza da língua diante de assuntos violentos;
presença de antíteses e oxímoros, que, longe de resolver essas con-
tradições, propiciam a formalização das tensões próprias ao homem
e à vida moderna. Se “oximorizando” a prosa e a poesia, Baudelaire
apresenta as contradições da modernidade, a alegoria constitui, de

59
certa maneira, uma forma de “resolução” dessas contradições, como
sugerem Jean-Pierre Bertrand e Pascal Durand (2006, p. 81):

 A alegoria – extração do eterno no seio do transitório, construção


ao mesmo tempo histórica e filosófica, moral e metafísica – aparece
como operação constitutiva da modernidade tal como Baudelaire
a concebe: a afirmação melancólica do presente como presença da
historicidade no momento histórico.

Baudelaire não foi apenas o teórico da modernidade, uma vez


que na sua obra a modernidade é elevada à questão por excelência da
poesia, pois ela mobiliza as contradições constitutivas desta, formali-
zando a relação entre passado e presente. É a partir da modernidade,
das condições históricas que lhe são próprias, que a poesia de Baude-
laire se constitui. O poeta faz de seu tempo seu material de trabalho.
Pois a modernidade diz respeito ao caráter fugidio da vida presente,
a “obra de arte autêntica está radicalmente presa ao instante de seu
surgimento” (HABERMAS, 2000, p. 15), justamente porque ela se
consome na atualidade, ela é capaz de deter o fluxo do tempo, o
desfile das trivialidades, romper com todo anseio de normatividade
e criar a beleza através de uma ligação momentânea entre o presente
e o eterno. A alegoria é a forma por excelência desse encontro. Ela
dá forma e concretude ao que é abstrato, ela rompe com o fluxo do
tempo, fixando-o. Um corte, um choque, uma estratégia de escrita,
uma forma.
Existe nessa percepção do tempo e na maneira como o poeta es-
tabelece a relação entre a poesia e o mundo que a cerca algo de funda-
mental para a constituição da poesia, nessa segunda metade do século
XIX, e é nesse aspecto que vamos nos ater. Por isso, não pretendemos
aqui esmiuçar a poética baudeleriana, mas simplesmente definir qual
o legado de Baudelaire para um poeta em especial, Mallarmé.
Os primeiros poemas de Mallarmé, escritos nos primeiros anos
da década de 1860, são fortemente marcados não apenas por algu-
mas temáticas baudelerianas, mas também pelo tom de sua poesia,
até mesmo diríamos pelo seu estilo. Há, digamos, em certo senti-

60
do, Baudelaire demais, nesses primeiros anos do poeta Mallarmé.
Em poemas como “Brise marine” encontramos o spleen: “La chair
est triste, hélas! Et j’ai lu tous les livres” (“A carne é triste, ai! E li
todos os livros”). Em “Les fênetres” lemos a revolta de Baudelaire,
uma violência que não permanece na poesia mallarmeana das déca-
das que virão: “Et le vomissement impur de la Bêtise / Me force à
me boucher le nez devant l’azur” (“E o vômito impuro da bestiali-
dade/ Me força a tapar o nariz diante do azur”). Há também alguns
personagens parisienses caros a Baudelaire, como os mendigos, nos
poemas desse período, Mallarmé não hesita em identificá-los ao po-
eta. Como, por exemplo, em “Méndieurs d’azur” (Mendigos o azur),
homens diante dos quais os outros “cuspiram seu desprezo”; ou “Au-
mône” (“Esmola”), onde lemos: “Prends ce sac, Mendiant! Tu ne le
cajolas / Sénile nourisson d’une tetine avare / Afin de pièce à pièce
en égoutter ton glas” (“Pega esse saco, mendigo! Não o lisonjeie/ Se-
nil criança de uma teta avarenta/ vai sugar a peça e saciar sua sede”).
Nos anos que virão, essa influência mudará radicalmente, Mallar-
mé fará da poesia de Baudelaire muito mais do que um modelo a
imitar, e sim a responsável por legar ao seus predecessores uma tare-
fa, um legado, como a modernidade deixou para a História uma ta-
refa incompleta, terminar a revolução. Para entendermos esse legado,
é preciso que encontremos respostas às seguintes questões: “O que
a poesia de Baudelaire diz para seu tempo?”; “O que ela significou
para a história da poesia?” e “Que desafios ela coloca para a poesia
que virá?”.
A modernidade, entendida ao mesmo tempo como um momento
histórico e como uma maneira específica de compreender o tempo,
tem múltiplos desdobramentos através de diversos temas que mar-
cam a poética baudeleriana, por exemplo, o lesbianismo, a multidão,
o spleen, o ideal. Mas se há um ponto em que todos os temas da poe-
sia baudeleriana, descritos por Benjamin, se reúnem, seria a tentativa,
ou a impossibilidade de expressar a natureza do vivido, o que é uma
experiência. Uma experiência além do banal e do ordinário, a que não
podemos reconhecer como um déjà-vu.

61
Como Benjamin nos mostra na sua comparação entre as obras
de Bergson, Proust e Baudelaire, a experiência é pensada na filosofia
a partir da memória, este é o lócus da experiência, a memória é en-
tendida aqui como a tradição, a História propriamente dita, assim
a experiência é a matéria mesma da tradição, tanto na vida privada
como na vida coletiva.
O autor destaca que o movimento filosófico que tenta resgatar
algo da ordem da experiência, do vivido, em contraposição à vida
desfigurada da civilização, data justamente do final do século XIX.
No entanto, a poética do choque de Baudelaire está longe de propor
uma reescritura da vida na literatura como Proust, ou uma filosofia
da experiência e do vivido como Bergson. A poesia de Baudelaire,
como presente nos temas dos quais trataremos em seguida, coloca
“em questão a possibilidade mesma de uma poesia lírica” (BENJA-
MIN, 1989, p. 145). Isso porque em Baudelaire a memória dá lugar
à lembrança, “esquema da metamorfose da mercadoria em objeto
do colecionador” (BENJAMIN, 1989, p. 180), ou indício maior da
impossibilidade de reconstrução literária da vida ou de tudo o que é
da ordem da experiência subjetiva.
Para Benjamin, Baudelaire não teria escrito poemas se tivesse
tido por tema de sua obra aquele que os poetas geralmente têm,
por isso em seu trabalho Benjamin tem como maior objetivo “for-
necer a projeção histórica das experiências que fundamentam As
flores do mal” (BENJAMIN, 1989, p. 165). Independentemente das
razões que impediram que tal obra se realizasse por completo e
sem especular como ela teria sido, podemos afirmar que sua forma
fragmentária e seu caráter inacabado contribuem, talvez melhor
do que qualquer argumento ou descrição histórica esmiuçada, para
ilustrar o que está em questão no tempo inaugurado por Baudelai-
re. Não se pode negar que uma transformação profunda acometeu
essa sociedade e que ela teria sido suficientemente radical a ponto
de ter transformado a história, o tempo, em questão fundamental
da própria poesia.

62
Deve-se presumir que os objetos que formam o miolo da poesia de
Baudelaire não eram acessíveis a um esforço enérgico e sistemático:
aqueles objetos decisivamente novos – a cidade grande, a multidão –
tampouco são visados por ele como tais. Não são eles a melodia que
tem em mente. É, antes, o satanismo, o spleen, e o erotismo desvian-
te. Os verdadeiros objetos de As flores do mal se encontram em luga-
res mais invisíveis. São – a fim de permanecermos na imagem – as
cordas jamais tocadas do instrumento inaudível em que Baudelaire
devaneia. (BENJAMIN, 1989, p. 161)

Os temas de Baudelaire não são, portanto, visíveis, a cidade e sua


multidão, seus mendigos e prostitutas, mas a impotência masculina
e o lesbianismo (erotismo desviante), o satanismo e, sobretudo, o
spleen. Temas nos quais as contradições do presente aparecem fun-
damentalmente na impossibilidade de formalização da experiência,
dificuldade temporal e ao mesmo tempo histórica. Vejamos por quê.
O primeiro ciclo de Les Fleury Du Mal é formado pelo spleen
e o ideal. Para Benjamin, “o ideal insufla a força do rememorar; o
spleen lhe opõe a turba dos segundos. Ele é seu soberano e senhor,
como o demônio é o senhor do tempo” (BENJAMIN, 1989, p. 135).
O spleen, que segundo Benjamin “expõe a vivência em sua nudez”
(BENJAMIN, 1989, p. 137), que torna todo ideal incessantemente
insuficiente, ou mesmo simples quimera. No spleen, o tédio é mais
que uma situação momentânea, ele se transforma numa condição
histórica provocada por um sentimento do tempo, ou pela dificulda-
de de apreensão do próprio presente, onde nada acontece ou no qual
o que é excede nossa capacidade de apreensão.

O demoníaco

A primeira geração de poetas românticos franceses, Victor Hugo,


Lamartine e Vigny, será fortemente marcada pelo terror revolucio-
nário, que provocou no começo do século XIX um retorno das for-
ças conservadoras que pretendiam negar todos os ideais do século
XVIII. Trata-se de um movimento estético, moral e político a que se

63
chamou contrarrevolução. O poeta romântico dessa primeira gera-
ção é aquele que procura um retorno ao antigo regime e a reinstaura-
ção do catolicismo. Uma geração que Paul Bénichou definiu a partir
do termo “sacre de l’écrivain”:

Por mais difícil que seja definir através de caracteres constantes a


visão romântica do mundo, percebemos que uma certa modificação
na fé humanista do século precedente forneceu o essencial, e que
no seio desta modificação, mesmo que ela se apresentasse como um
compromisso com a fé religiosa, continuava a se desenhar os con-
tornos de um poder espiritual novo. Este poder residia na literatura
elevada a uma dignidade até então desconhecida. O espiritualismo
romântico se inclina na direção de um investimento particular na
poesia, neste sentido o romantismo é uma sacralização do poeta. [...]
É na exaltação da poesia, colocada na altura do valor mais elevado,
que se tornou religião, luz do nosso destino, que devemos ver o traço
distintivo do romantismo. (BENICHOU, 2004, p. 259)

O poeta do primeiro romantismo é o poeta mago, profeta, aquele


que fala ao povo em nome de Deus, como guardião de seu destino
terrestre e ponte entre o divino e o humano. O poeta é investido de
um poder “extraordinário” pois se faz porta-voz dos costumes e tra-
dições nacionais e religiosas, ele é capaz de unificar a nação em torno
de uma crença, em torno de um único Deus, como um rei simboliza
o poder divino, encarna-o na terra e assim reunindo a totalidade do
seu reino em torno de sua figura.
“Do Consulado à Restauração, um longo movimento do pensa-
mento conservador exalta a poesia para torná-la o esteio da religão,
a reparadora salutar da subversão filosófica” (BENICHOU, 2004, p
131). Por subversão filosófica entenda-se o racionalismo do sécu-
lo XVIII, sua crítica à dogmática religiosa, enfim todo movimento
de ideias que transformou o pensamento das Luzes em agente da
revolução. Portanto, nos anos 1820, os jovens românticos, católi-
cos e monarquistas fundam sua poesia na referência religiosa que
o movimento da contrarrevolução exaltava como único meio para

64
restaurar os costumes e tradições banidos da França pela revolução.
O romantismo tem sua origem no movimento contrarrevolucionário
posterior a 1789: “é do seio da contrarrevolução que emergiu entre
1800 e 1820 a fonte poética do século XIX. A ideia de um ministério
espiritual do poeta, que é a alma da poesia moderna, germinou neste
meio; os poetas saíram primeiramente, de lá” (BENICHOU, 2004,
p.186).
É dessa poesia que Baudelaire extrai o material de sua lírica, do
romantismo católico e conservador que transformou a religião na
fonte que garantiu legitimidade aos governos restauradores.

Deus, o diabo e as mulheres

É justamente nos poemas de temática “amorosa” que Baudelaire


destila todo seu veneno contra os ideais românticos. Observemos,
por exemplo, o poema “Je t’adore à l’égal de la voûte nocturne”(“Eu
te amo como se ama a abóbada noturna”)(XXIV): 

Eu te amo como se ama a abóbada noturna,


Ó taça de tristeza, ó grande taciturna,
E mais ainda te adoro quanto mais te ausentas
E quanto mais pareces, no ermo que ornamentas,
Multiplicar irônica as celestes léguas
Que me separam das imensidões sem tréguas.3 (BAUDELAIRE,
1985, p. 161)

A evocação da mulher amada adorada contrasta com os adjeti-


vos empregados pelo poeta para descrevê-la. O eu lírico compara
sua amada a um “vaso”, poderia ele ter sido mais cruel e irônico?
A mulher é aqui reduzida ao estatuto de um objeto de decoração.
Em seguida, ele a qualifica de “grande taciturna”. Uma mulher triste,

3. Je t’adore à l’égal de la voûte nocturne,/Ô vase de tristesse, ô grande taciturne,/ Et


t’aime d’autant plus, belle que tu me fuis,/ Et que tu me parais, ornement de mes nuits,/
Plus ironiquement accumuler les lieues/ Qui séparent mes bras des immensités bleues.

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portanto, como uma espécie de zumbi, uma morta-viva, que aparece
sempre à noite, para “ornamentar” o poema.
Como vemos nos últimos versos da estrofe citada, o poeta se per-
gunta se “não é irônico que seu amor aumente com a distância que o
separa de sua amada”. Não é irônico que o eu se sinta cada vez mais
apaixonado à medida que se sente cada vez mais distante de seu
ideal, cada vez mais incapaz de ter em seus braços as “imensidades
azuis”? Eis que a mulher adquire seu estatuto ideal, ironicamente
distante, e idealizada, ela é inacessível, comparada com o “azur”, ou
“Ideal”. Assim quando ela finalmente ocupa o lugar que é o seu no
imaginário romântico, (não sem ironia, pois ao se indagar sobre esse
ideal Baudelaire já procura indicar a sua nulidade), eis que ocorre o
seu rebaixamento, e se produz o ataque certeiro dos versos/vermes
baudelairianos:

Ao assalto me lanço e agito-me na liça,


Como um coro de vermes junto a uma carniça,
E adoro, ó fera desumana e pertinaz,
Até essa algidez que mais bela te faz! 
(BAUDELAIRE, 1985, p. 161)

O eu lírico avança na direção da mulher sempre distante, e a


ataca. Esse ataque é dirigido a mulher ideal, comparada às “imensi-
dões azuis”, que se torna agora uma “besta”,um animal, uma “presa”.
O poeta é comparado a um “coro de vermes” que profana um cadáver,
o corpo inerte da mulher idealizada e “querida” por poetas românti-
cos de várias gerações.
Para Vaillant (2007, p. 121) o alvo de Baudelaire seria a frigidez
feminina, “Devemos sem dúvida entender que a mulher […] cria
a ilusão pela sua ironia de estar a quilômetros de distância de seu
parceiro: a ironia qualifica o efeito de distanciamento – portanto,
de centralização – induzido pela indiferença”. A ironia seria, assim,
aquela da mulher que frígida se distancia do poeta, é indiferente a
ele e ao seu desejo.

66
No entanto, poderíamos ir muito mais longe nessa interpretação.
Devemos nos perguntar: Contra quem Baudelaire dirige sua ironia?
Quem é essa mulher fria e ideal? A ironia em questão não é a da
mulher frígida, mas sim aquela que faz com que o amor do poe-
ta aumente com a distância que o separa de seu objeto de desejo.
Como se Baudelaire se perguntasse: “Não é irônico, e cômico, tantos
poetas cantando amores impossíveis, cantando amores que existem
apenas em sua imaginação, amores ideais, idealizados, justamente
pela distância que separa os amantes?”. Essa frieza é, na verdade, não
a de uma mulher irônica ou frígida, mas a de uma mulher morta, de
um ideal feminino romântico que Baudelaire transforma num ca-
dáver em putrefação, que ele ataca como um verme com seus versos.
Essa mulher que para o crítico Vaillant é a mulher-frígida é
na verdade a mulher idealizada pelo primeiro romantismo que é
identificada com a própria Virgem Maria. Tomemos, por exemplo, o
poema de Victor Hugo (1972, p. 166),“À toi”, presente na antologia
Odes et ballades,de 1822, portanto, do primeiro livro do autor, mar-
cado pelo imaginário católico, e pelo conservadorismo político, do
jovem e monarquista Victor Hugo.
Esse poema foi escrito em comemoração à festa da Virgem, “le
jour sacré parmi les jours!”. O eu lírico relembra sua infância, que em
Victor Hugo rima com inocência, ignorância e esperança, em que
o eu via apenas a virgem no céu, “belle et pure”, aquela que deveria
com ele compartilhar uma felicidade sem fim (“partager un bonheur
qui ne doit pas finir”). Mas esse tempo passou. Hoje “o mal se ele-
va”  (“le malheur s’est levé”). O poeta “órfão”, “sem os prantos de sua
bem amada” (“sans les pleurs de sa bien-aimé”), segue sozinho, uma
“lâmpada apagada entre os vivos” (“il est chez le vivants comme une
lampe éteinte”).
Vemos que a Virgem “bela e pura” é também a bem amada do
poeta, ela é também a sua mãe que adquire cada vez mais traços
humanos ao longo do poema. O eu clama para que a Virgem em-
beleze sua vida com seu sorriso, pois “a maior felicidade ainda está
no amor” (“Le plus grand bonheur est encore dans l’amour”) e a
convida a experimentar com o poeta “um casto casamento” (“chaste

67
hymen”). Finalmente, ele pede que ela venha para seus braços sem
temor, pois “teu esposo não quer que sua glória/ prejudique sua fe-
licidade” (“ton époux ne veut pas que sa gloire / Retentisse dans son
bonheur”). O poema termina com o eu se dirigindo à mulher amada/
a Virgem e declarando que se arrependerá “gemendo”, “aquele que
morreu sem reclamar,/E que te amava com tanto amor!” (“gémissant
à son tour”,  “celui qui mourut sans se plaindre, / Et qui t’aimait de
tant d’amour !”).
Aqui vemos que a mulher fetiche dos românticos é ainda mais
adorada quanto mais se assemelha à Virgem Maria, quanto mais
distante, portanto, está do poeta, que vê o seu amor ainda aumentado
pela possibilidade de uma união casta e pura com essa mulher idea-
lizada. Esse ideal de amor e de mulher, construído a partir do imagi-
nário católico, será explorado por Baudelaire em todos seus contor-
nos e desdobramentos. Essa mulher casta será identificada com uma
“taciturna”, um “vaso de tristeza”, enfim uma morta – um cadáver
– que o poeta ataca e devora como um verme, com o único intuito
de ironizar, desmascarar e rir de uma poética católica que negava a
vida e seus prazeres materiais em nome da salvação extraterrena, da
felicidade casta, a “voluptuosidade santa” do paraíso celestial.
Vemos que a trajetória irônica do poema “Je t’adore à l’égal de
la voûte nocturne”, em que a mulher é idealizada e em seguida re-
baixada ao estatuto de cadáver, se torna cada mais evidente quando
comparamos a poesia de Baudelaire à de Victor Hugo, por exemplo.
Isso deixa claro que o alvo da ironia baudelairiana era justamente
a poesia do primeiro romantismo. Como se essa mulher fria fosse
não somente o indício da impossibilidade de se alçar esse ideal de
amor puro; essa mulher que, na verdade, é um cadáver, simboliza
aqui a morte do ideal romântico. Ao transformar um ideal de amor
num corpo inerte e em decomposição, Baudelaire ataca esses ide-
ais, procura mostrar que o que está verdadeiramente em estado de
putrefação nesse momento da história são os ideais românticos de
pureza, castidade, os ideais católicos que asseguram a manutenção
de um imperador que usurpou o poder que lhe foi concedido “de-
mocraticamente”.

68
Assim, ao rebaixar esse ideal romântico, é todo o imaginário do
romantismo que Baudelaire procura ironizar. A mulher pálida e cas-
ta só poderia ser um cadáver, pois todo amor que não se materia-
liza simplesmente não existe. A negação da realização amorosa, a
insistência romântica em manter o amor sempre casto ou impossível,
contribui certamente para a afirmação do amor, como um ideal que
não encontra lugar sobre a terra, mas para Baudelaire essa negação
da vida, esse ascetismo católico não passa de uma abstração vã, fora
de moda, de uma ideologia em ruínas, que insiste em se perpetuar.
Baudelaire quer deixar em evidência o estado de ruínas no qual se
encontra o imaginário romântico, que seria absolutamente incapaz
de dar conta da experiência dos sujeitos na modernidade.

Mas, afinal, por que o diabo?

Julles Vallès, crítico literário e jornalista do século XIX, contem-


porâneo de Baudelaire, escreve, no momento da morte do poeta, no
jornal La rue, uma dura crítica . O crítico afirma o seguinte:

Havia nele algo de padre, de velha dama, e de ator. Era sobretudo um


ator, bom ator.[...]
Satã, este diabinho, fora de moda, acabado, que ele se colocou como
objetivo de cantar, adorar e abençoar! Por quê? Por que o diabo ao
invés do bom Deus? É que, vejam vocês, este palhaço da imortalidade,
era no fundo um religioso; não um cético; ele não era um demolidor,
mas um crente; ele era o niam-niam de um misticismo besta e triste,
no qual os anjos têm asas de morcego e rostos de menina; eis o que ele
inventou para nos chocar, este Jeune France velho demais, essa criança
livre pensadora. (VALLES apud BAUDELAIRE, 1975, p. 971-973)

Essa crítica é muito importante, pois, além de nos mostrar que o


satanismo, em meados da metade do século XIX, não tinha nada de
chocante, pelo contrário não passava de um lugar-comum desgastado
da poesia francesa, nos mostra também que a pior acusação que
poderia ser feita a um poeta nesse período era justamente compará-

69
-lo aos poetas católicos do começo do século. Porque o crítico para
desqualificar a poesia baudelairiana atribui a ela total ausência de
originalidade devido ao seu caráter “religioso”.
O texto já nos fornece um caminho interpretativo, antes de
mais nada o recurso ao satanismo não tinha como intuito o choque,
assim ele deixa evidente que a agressividade da poesia baudelairia-
na não era gratuita, e isso nos coloca diante da questão de saber
por que, mesmo sabendo que o satanismo já estava fora de moda
em seu tempo, Baudelaire decide, apesar desse fato, utilizar essa
temática em sua poesia. Nós devemos nos perguntar que função
teria esse recurso que, longe de chocar seus contemporâneos, os
deixaria, na verdade, entediados ao ter diante dos olhos nada além
de um desgastado clichê?
Em seu Baudelaire, Sartre afirma que Baudelaire faz o Mal de
maneira consciente, e, justamente por ter consciência do mal que
ele praticava, afirma, na verdade, sua adesão ao Bem. Para Sartre,
ao querer fazer o contrário do Bem, Baudelaire afirma e conserva
a ordem que ele pretende negar. Assim, a moral baudelairiana
parece ser o último recurso racional que procura evitar a confron-
tação com a verdadeira natureza fictícia da moral. O hipócrita
seria, assim, um homem satânico, um pecador, aquele que faz o
contrário do Bem, conscientemente, e que sente um verdadeiro
prazer na culpa, no remorso, na martirização na qual a ação maldosa
o engaja.
Contudo, o que Baudelaire procura ao ironizar os ideais ro-
mânticos é evidenciar a falência moral de seu tempo expondo
suas contradições, demonstrando o caráter hipócrita dessa mo-
ral que mesmo ao fazer o mal afirma o bem supremo, clama por
redenção, nega a vida e se mantém pregando ideais absurdos. A
ironia, esta que permite ultrapassar a dicotomia entre o bem e
o mal, só é possível a partir da reivindicação de autonomia da
poesia, que se faz justamente a partir de sua desobrigação com
relação a moral:

70
Eu digo que se um poeta persegue um objetivo moral, ele diminuiria
a força de sua poesia, não é imprudente apostar que sua obra será
ruim. A poesia não pode, sob pena de morte, se assimilar à ciência
ou à moral; ela não tem a verdade por objeto, ela só tem a si mesma.
(BAUDELAIRE, 1976, p. 628)

Essa independência da arte em relação à moral nos permite jus-


tamente pensar a moral, como Nietzsche também pretendia, como
uma mentira, uma ficção. No Salão de 1859, capítulo 5, intitula-
do, “Religião, história, fantasia”, Baudelaire anuncia como devemos
compreender a moral presente numa obra de arte: “Digamos, por-
tanto simplesmente que a religião, sendo a mais elevada forma de
ficção do espírito humano (eu falo propositadamente como falaria
um professor ateu de belas-artes, e nada deve ser concluído contra a
minha fé)” (BAUDELAIRE, 1976, p. 628). Em seguida, ele explica
que o poeta, um comediante, um artista “acredita na realidade do que
representa, porque é acalentado pela necessidade”, por isso a arte é
o único domínio sobre o qual o homem pode dizer “eu acredito se
quiser, se eu não quiser, eu não acreditarei” (BAUDELAIRE, 1976,
p. 629).
Um hipócrita dissimula, mente, age contrariamente aos princí-
pios e ideais dos quais fala. E o que faz um poeta? Não é esta a arte
mesma de escrever: mentir? Dissimular? Tornar-se outro?
Não é assim que Fernando Pessoa define o poeta, como um fin-
gidor? Um fingidor que finge tão bem que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente? Como quem diz que a verdadeira arte da
poesia consiste em criar uma mentira convincente.
Mas Baudelaire não quer convencer e sim expor a hipocrisia bur-
guesa; a ironia de sua arte está no desejo de tornar evidente o caráter
dissimulado da moral, seu caráter fictício. Ele não quer convencer,
não quer esconder nada, quer expor a mentira que sustenta a sua
arte, quer expor a verdade do material a partir do qual ele cria, que é
a temática do primeiro romantismo francês.
A ironia de Baudelaire, que é a mentira desvelada, a arte que se
assume enquanto mera aparência, exprime e desvela a contradição

71
entre a ação e o enunciado, entre o imaginário romântico e o bau-
delairiano, em que o primeiro aparece em estado de putrefação. A
ironia abre uma fissura entre o real e o ideal, entre o conjunto das
ideias românticas e a realidade cotidiana, que o poeta, assim como
seus leitores hipócritas, conhecem bem. A ironia denuncia a dis-
tância entre o ideal e o real, e instaura uma desconfiança com rela-
ção a esses ideais, que parecem ironicamente cada vez mais puros
quando comparados à imundice e à miséria do mundo prostituído
no qual o poeta parece diabolicamente mergulhado. O que Baude-
laire quer não é simplesmente chocar seus leitores, mas levá-los a
desconfiar de um imaginário literário que os faz viver inexoravel-
mente na mentira.
Por isso Baudelaire recorre ao cômico. O próprio Baudelaire nos
deixou um tratado sobre a essência do riso, um artigo que atesta
a importância da questão em sua obra, uma questão que o poeta
confessa ter se tornado “uma obsessão”. Ele tem como título “De
l’essence du rire et généralement du comique dans les arts plastiques”
(“Da essência do riso e do cômico em geral nas artes plásticas”).
Baudelaire define o riso a partir de sua dimensão diabólica como
contrário às disposições dos sábios (o sábio ri tremendo). Rir da mo-
ral, rir dos costumes e de um sistema de valores é muito mais do que
simplesmente criticá-los
O riso é próprio dos espíritos superiores, ele implica certa supe-
rioridade do homem que ri em relação ao que provoca o seu riso. Por
isso o riso demonstra a insignificância do que nos faz rir, ele denigre,
rebaixa, desqualifica. Mas o riso é também o resultado da própria in-
significância humana. Ele se situa entre esses dois extremos, por isso
ele é também diabólico, porque o riso é essencialmente humano, ele
se situa entre a grandeza divina e a baixeza animal. Essa oscilação é
que nos faz rir; rimos das nossas pretensões de grandeza assim como
da nossa mediocridade.
Rindo, Baudelaire não apenas instaura uma desconfiança com
relação ao sistema de valores de seu tempo. Expondo suas contradi-
ções, ele pode, através do riso, dissolvê-las. Rindo da sua incoerência

72
é todo o edifício moral que se abala, que desvela sua hipocrisia, que
se mostra como uma mentira, mera aparência.
Ao rir de seu tempo, dos costumes e da moral cristã que limitava a
experiência poética moderna, Baudelaire indica um novo horizonte para
o qual a poesia deveria se abrir. Nele o primeiro romantismo aparece como
um clichê degradado, risível, rebaixado, exposto em toda a sua insignifi-
cância.
Com Baudelaire, a poesia se desprende das antigas formas de ex-
pressão da subjetividade e da gramática religiosa dos afetos (que man-
têm as relações amorosas enclausuradas pelas oposições entre amor/
sexo, corpo/alma, ideal/spleen, pecado/redenção etc.). Ela se desprende
do jogo de poder entre submissão e dominação; libera-se de toda obri-
gação moral (se desliga do Bem como do Mal, de Deus como de Satã).
A extravagância de Baudelaire reside no fato de que não é mais
possível em seu mundo ser romântico. Sua extravagância é o próprio
romantismo que aparece como um ideal, nada mais. Uma quimera,
uma ilusão. Na poesia de Baudelaire assistimos à derrocada do ro-
mantismo; em sua poesia os ideais românticos são apenas ruínas de
um mundo que faz parte do passado. Não há amor possível, pois as
mulheres são ora lésbicas, ora prostitutas, e as outras, como “a pas-
sante”, parecem ser apenas uma ilusão. Baudelaire pode apenas can-
tar sua impotência diante dessas mulheres prontas a devorá-lo. Com
Les Fleurs du mal, os ideais românticos desmoronam, se mostram
como ilusões, quimeras, extravagância, bizarrice, como os amores do
passado, eles apodrecem, feito carniça.
Esse ataque aos ideias românticos e à hipocrisia católica é um
passo decisivo na configuração de uma arte autônoma, que não pre-
tende ensinar, educar ou oferecer redenção, mas que se constitui
como o veículo de expressão e renovação do próprio presente, que
busca oferecer aos seus leitores uma arte na qual eles possam não
apenas se identificar, mas ir além de si mesmos.
A partir desse momento outra modernidade poderá surgir, a
que Baudelaire anuncia em seu Peintre de la vie moderne. Esse mo-
mento em que a arte autônoma, liberada de toda e qualquer obri-

73
gação moral, se dedicaria a extrair o que há de eterno e imutável no
fugídio e fugaz presente.
Spleen

A dificuldade de apreensão do presente, a percepção do tempo


como fugidio, provoca esse sentimento que não é outro senão uma
grande impotência. Porque um tempo que se mostra inapreensível
impede a expressão de tudo o que se dá no tempo, impede a configu-
ração e a elaboração de toda e qualquer experiência. O spleen expõe
a impossibilidade de qualquer vivência, de qualquer experiência que
não seja a do próprio spleen. Dessa maneira, os versos baudeleria-
nos são marcados por um insondável desespero do sujeito que tem
consciência da impossibilidade de expressão de toda e qualquer ex-
periência. A impotência provocada por essa situação é também causa
da raiva e revolta que anima a sua poesia. Fruto de uma experiência
fragmentária da História, Benjamin (1989) vê inclusive no spleen do
flaneur um protesto contra a aceleração do processo produtivo.
A impotência provocada pelo spleen ecoa em outro tema baudele-
riano, o lesbianismo, tema que, longe de ser marginal ou secundário,
é de uma grande importância para a poética do poeta, mesmo que
ele tenha sido, segundo Benjamin, frequentemente menosprezado. É
importante lembrar que Baudelaire teria, inclusive, cogitado o título
Les Lesbiennes para o seu livro Les Fleurs du mal. A lésbica é, em
Baudelaire, a heroína da modernidade. Benjamin ressalta as nuances
e ambiguidades que o tema adquire em Baudelaire. Des “Lesbos”,
hino ao amor lésbico, à sua condenação em “Delfina” ou “Hipólita”, e
acrescenta que “essa discrepância se esclarece assim: como Baudelai-
re não via a mulher lésbica como um problema – nem social nem de
predisposição –, poderíamos dizer que também não tinha, como um
prosador, nenhum posicionamento em relação a ela” (BENJAMIN,
1989, p. 90). Se a mulher lésbica pode parecer como uma figura an-
drógina com características masculinas, ela também é uma figura al-
ternativa à prostituta onipresente da obra baudeleriana.
No entanto, independentemente dessas nuances, o tema da mu-
lher lésbica, mais do que qualquer outra coisa, por ser uma mulher

74
estéril, coloca em cena a própria impotência masculina. Como su-
gere Benjamin, em suas notas, “A impotência é a base da via-crúcis
da sexualidade masculina. Índice histórico dessa impotência. Dessa
impotência provêm tanto a sua ligação à imagem seráfica da mulher
quanto o seu fetichismo” (BENJAMIN, 1989, p. 157). Porque a im-
potência é “a figura-chave da solidão”, imagem em que se inscreve o
abismo que separa o homem de seus semelhantes, e sabemos que é
na cidade, em meio à multidão, que esse sentimento eclode. Porque
é a impotência em comunicar o que é da ordem da experiência que
provoca a solidão do poeta, que se sabe, no entanto, semelhante a
seus semelhantes, igualmente incapaz de se comunicarem, sozinhos
e unidos pela mesma dificuldade.
A impotência do poeta diante da impossibilidade de expressar a
vivência da vida moderna, que aparece sob a forma do spleen ou na
visão baudeleriana do feminino, configura sem sombra de dúvidas o
ponto de partida da poesia mallarmeana.
A impotência masculina evocada na obra baudeleriana pela fi-
gura da heroína lésbica também aparece em Mallarmé, sobretudo
através de seu poema Hérodiade (que será o tema do capítulo sobre
a Beleza). Nele, o poeta constrói uma figura do feminino, da qual
ele permanece distante. Hérodiade é fria, pura e virgem, uma beleza
igualmente estéril diante da qual o poeta se sente impotente. Segun-
do Benjamin (1998, p. 165), “o amor lésbico leva a sublimação até
o colo feminino e planta o pendão de lírios do amor “puro” que não
conhece nem gravidez nem família”. Esse amor “puro” que não deixa
rastros, não se concretiza e por isso é a própria marca da impotência
que toma corpo na Hérodiade de Mallarmé, a virgem, que recusa se
deixar tocar para permanecer pura.

***

Para Mallarmé, sua tarefa poética deveria começar exatamente


onde Baudelaire terminou a sua, ou seja, a partir destes versos que
encerram Les fleurs du mal: “vers l’inconnu pour trouver du Nouve-
au” (em direção do desconhecido para encontrar o novo). O poeta

75
também ressaltou a ideia baudeleriana de modernidade e a ideia do
tempo que ela implica, em carta a Villiers de 24 de setembro de
1867, Mallarmé (1998, p. 724) declara: “Verdadeiramente, eu tenho
medo de começar (mesmo que, com certeza, a Eternidade tenha cin-
tilado em mim e devorado a noção de Tempo) onde nosso pobre e
sagrado Baudelaire terminou”.
A modernidade de Mallarmé segundo Bertrand e Durand (2006,
p. 284) se mede a partir de

[...] um princípio de distanciamento crescente com relação ao uni-


verso referencial, próprio da modernidade poética e da qual Mallar-
mé representa certamente o apogeu, as relações entre o texto e o
mundo passam do registro de conteúdos da representação, ainda
visíveis em Baudelaire ou Rimbaud, ao duplo registro do trabalho
das formas mesmas de expressão e de construção formal do mundo
expresso.

Se seguirmos a linha interpretativa dos autores do trecho citado,


poderíamos afirmar que a mudança que se produz entre a geração
de Baudelaire e a de Mallarmé, se configura, a partir da recusa deste,
em manter o estatuto que aquele garantia à representação. A poesia
de Baudelaire tem a cidade como décor, seus habitantes como perso-
nagens, Mallarmé entendeu bem a máxima baudeleriana, segundo a
qual a poesia só tem a ela mesma.
Mas explicar a modernidade de Mallarmé como um processo que
institui uma ruptura entre a modernidade poética e a modernidade
da vida moderna, e fazer da crise da representação uma crise da lin-
guagem referencial, simplesmente seria reduzir a dimensão da crítica
mallarmeana e o próprio conceito de representação, assim como sua
crítica. O que a crítica da representação coloca como questão é justa-
mente a maneira pela qual uma crítica da linguagem referencial pode
ser realizada sem, no entanto, excluir da poesia e da linguagem mes-
ma sua iminente e intrínseca relação com as coisas e o mundo que ela
contribui a criar. É preciso encontrar um equilíbrio entre uma crítica
da representação que, ao excluir da poesia a dimensão representativa

76
da linguagem, não exclua também sua dimensão crítica e política.
Para tanto devemos levar a sério a tarefa que Mallarmé colocou para
sua poesia: a de continuar exatamente no ponto em que Baudelaire
teria parado. Isso significa levar ao pé da letra o legado da poesia
baudeleriana. Se em Baudelaire o romantismo aparece como um
sistema de ideias em ruínas, escrever depois de Baudelaire significa
deixar para trás os ideais poéticos e inclusive políticos sob os quais
a História francesa se calcou durante meio século. No entanto, além
dessa enorme renúncia, que é também a compreensão das razões que
levaram ao fracasso desses ideais, significa se perguntar o que a po-
esia lírica pode fazer quando não se pode mais expressar o que é da
ordem da experiência subjetiva. Significa se perguntar se é possível,
diante dessa impossibilidade, que a poesia continue a existir. Para
responder essa pergunta Mallarmé se voltou para o mínimo, como
quem sabe que já não se pode com versos construir uma nação. Ele
reivindica para a poesia o direito de “nada realizar de excepcional”.
Se a poesia é uma ação restrita, mínima, ela se volta obrigatoriamen-
te sob si mesma, e procura no seu material a razão que justifique
seu lugar, talvez não mais na praça pública, mas simplesmente nas
páginas do Livro.
É a partir da modernidade que a linguagem poética, sujeito e
história constituem um único e mesmo problema, colocado a partir
de uma tomada de consciência histórica. Assim, nesse momento da
crise da representação, o sujeito e o tempo se inscrevem, não mais
através do retrato e da pintura da vida moderna, mas como o que eles
são: escrita e reescrita, linguagem, matéria a ser interpretada, inven-
tada, pura negatividade que não se deixa simplesmente nomear. As-
sim, a modernidade baudeleriana, como ideia, o transitório e fugidio
se transformam para Mallarmé, num método e numa forma poética.
A beleza passageira é meio e fim da poesia, ela define a linguagem
poética, define a própria poesia, porque se torna seu material cons-
titutivo e também a essência mesma do seu dito. Mallarmé trans-
porta a experiência baudeleriana da modernidade para o interior da
própria linguagem, transforma o tempo numa relação entre signo,
significante e significado, transformando a impossibilidade de narrar

77
e falar da experiência num problema estrutural da própria linguagem
que determina a relação entre a linguagem e o sujeito, que bloqueia
todo desejo de expressão, que deixa o poeta impotente. Transformar
a linguagem num Absoluto em que toda a questão da experiência se
transforma em questão linguística não significa limitar ou reduzir o
horizonte das experiências humanas, ou limitar e restringir as
possibilidades da própria linguagem, suas significações e senti-
dos. Isso significa que o poeta é consciente da imensa respon-
sabilidade que lhe recai quando resolve fazer da linguagem esse
instrumento ao mesmo tempo absoluto e absurdo, seu instru-
mento de trabalho.
Para ilustrar o caminho que Mallarmé escolheu percorrer para
encerrar essa crise podemos partir da noção de Tempo para mos-
trar como o poeta transforma um dado histórico, um diagnóstico de
época, não apenas num tema, mas numa forma poética. Essa trans-
formação é apenas o começo de um longo percurso que busca na
linguagem uma outra gramática dos afetos, desafetada e liberada de
todo sentimentalismo romântico que se tornou, por excesso de uso,
inexpressivo. Trata-se sobretudo de deixar para trás os princípios que
guiaram a constituição do romantismo francês, seu projeto político e
poético cuja falência Baudelaire denuncia. A poesia na modernidade
não é mais o espaço de construção de ideais, pois esses ideais se reve-
laram incompatíveis com a realidade exterior. Esse sentimento a que
Baudelaire deu o nome de spleen só pode ser definitivamente supe-
rado uma vez que a poesia deixar de se constituir a partir da lógica
da mistificação ou da construção de ideais e do seu desvelamento.
Isso implica, como veremos, uma outra noção de linguagem, uma
outra noção de interpretação e por consequência uma outra noção
de critica literária.
A partir dessa longa introdução podemos, neste momento,
comentar uma das definições mallarmeanas da linguagem nas
Notas que pretendemos analisar: “O verbo, através da Ideia e do
Tempo que são a “negação idêntica à essência” do devir, se torna
Linguagem” (MALLARMÉ, 1998, p. 506). Assim, o sentimen-
to da modernidade, essa maneira de perceber e conceber o tem-

78
po como fugaz e transitório, sempre instável e em movimento,
que inaugura a modernidade poética, se torna, para Mallarmé,
um princípio que estrutura e define a linguagem, uma ideia do
tempo que se transforma numa ideia de linguagem e de forma
poética.
O Tempo é uma potência negativa, que tem na negatividade a
sua essência e a sua verdade. E também como negação que o poeta
define a Ideia. O Verbo, que é outro nome para linguagem poética,
é composto desses dois elementos negativos e essenciais. Não só o
tempo é fugaz e transitório, mas a Ideia mesma é definida como
um devir, um processo, portanto, que tem no tempo não apenas um
aliado, já que a linguagem se faz e se desenvolve no tempo, mas a sua
verdade e sua essência.
O século XIX, de Hegel a Mallarmé não cessou de se interro-
gar sobre o poder de manifestação da linguagem, na sua natureza
enigmática de verbo, ou seja, como ação,“lá onde ele está mais
próximo do ser, onde ele é capaz de nomeá-lo, de transmitir ou de
fazer cintilar seu sentido fundamental, de torná-lo absolutamen-
te manifesto” (FOUCAULT, 1996, p. 111) Aqui, trata-se para
Mallarmé de expor a capacidade do Verbo de manifestar a verda-
de do próximo presente, o sentido do que entendemos por mo-
dernidade. Trata-se de afirmar que, na linguagem, que se confi-
gura como um modo essencial de devir, se manifestam ao mesmo
tempo o Tempo e sua Ideia. Quer dizer que na linguagem tudo
o que pode ser dito se manifesta absolutamente, no seu próprio
modo de configuração, de ser.
Não se trata de descrever o presente, portanto, como êxtase
do instante, capaz de sincronizar um sentimento de plenitude.
Trata-se de uma concepção do presente como negação mesma
da possibilidade do instante, o que pode nos sugerir outra ideia
de presença, que se configura num jogo entre aparecer e desa-
parecer, presença que se define como o momento mesmo de
esvanecimento, de desaparição de si mesmo e sua transformação
num outro, a presença é assim puro devir. Esse modo de presen-
ça que se torna possível a partir da ideia do tempo como efê-

79
mero, da linguagem como composta por uma essência negativa,
constituída pelo tempo e pela ideia, é a forma que Mallarmé
procura dar aos seus poemas, a de uma presença evanescente,
perfume que paira no ar.
Mallarmé define a linguagem poética a partir de uma série de
elementos, de metáforas, digamos, tais como: Tempo, Beleza, ficção,
devir, mito, escrita, Música, Letras, fala. Tais metáforas são toma-
das em alguns momentos como elementos concretos da linguagem
(como escrita e fala) e, em outros, como Ideia, noções (Tempo, Bele-
za, ficção, teatro). Neste livro percorreremos o desenvolvimento de
cada umas dessas ideias e as nuances que cada uma toma, ora como
simples termo técnico, procedimento formal, ora como conceito.

80
IV
A PALAVRA, SEM MAIS NADA

Deus disse: ‘que exista luz’, e a luz passou a existir.


Gênesis

“Notes sur le langage” é o nome dado a um conjunto de manus-


critos que data de 1869-1870, contemporâneo, portanto, de Igitur,
conto que deveria curar o poeta de sua crise de impotência, cuja ori-
gem remonta ao ano de 1866. Um momento da carreira poética de
Mallarmé que ficou conhecido como “crise do Nada” ou “crise de
Tournon”.
Essa crise, que começa na primavera de 1866, teria sido provo-
cada pela escrita de “Hérodiade”. As cartas escritas pelo poeta nesse
período testemunham a dificuldade que ele encontrava para realizar
esse poema, que o deixou estéril. O fato de que o poema foi publi-
cado no Parnasse Contemporain, em 1871, não encerra essa crise. Isso
porque, na verdade, como o poeta indica na bibliografia de seu Poésis,
pelas edições Deman, de 1894, o poema publicado é um “fragmento,
parte dialogada”, pois o poema completo – cujo título seria Hérodia-
de – é composto também pelo “Cantique de Saint Jean”, de um últi-
mo monólogo e de uma conclusão, “Prélude” e “Finale”, que seriam
publicados posteriormente. Pelo que podemos constatar a partir da
leitura da correspondência do poeta, Mallarmé retomou a escrita de
Hérodiade, no fim de sua vida, sem conseguir, no entanto, concluí-la.
O mesmo fim teve o projeto de escrita de Igitur que foi abandonado
pelo poeta sem ser concluído, como o projeto dessas notas, que deve-
riam resultar numa tese que o poeta jamais apresentou à Sorbonne.
O abandono das obras e dos projetos que deram início ou deveriam
culminar no fim dessa crise funciona como um indício da amplitude
e da gravidade desse momento que marcou definitivamente a carrei-
ra do poeta. Vejamos, portanto, em que consiste essa crise.
Sua primeira manifestação aparece nesta carta de 13 de julho de
1866 a Henri Cazalis:

Infelizmente, escavando o verso a esse ponto, encontrei dois abis-


mos que me desesperam. Um é o Nada, ao qual cheguei sem co-
nhecer o budismo, e estou ainda demasiado desolado para poder
acreditar mesmo na minha própria poesia e retomar o trabalho,
que este pensamento esmagador me fez abandonar. Sim, eu sei,
nós somos apenas formas vãs da matéria, mas bem sublimes por
termos inventado Deus e nossa alma. Tão sublimes, meu amigo!
Que eu quero este espetáculo da matéria, tendo consciência dela, e,
entretanto, se enlaçando fanaticamente no sonho que ela sabe não
ser, cantando a Alma e todas as divinas impressões semelhantes
que se acumulam dentro de nós desde os primórdios, e procla-
mando, diante do Nada que é a verdade, estas gloriosas mentiras!
(MALLARMÉ, 1998, p. 696)

Para indicar seu trabalho de escrita Mallarmé emprega o verbo


“creuser”, “cavar”, “escavar”, que indica a dimensão material do tra-
balho poético e sua dimensão corporal. Assim, escrever é um ato,
um trabalho de busca, uma escavação em direção às profundezas da
linguagem. O encontro com o Nada é produzido pelo próprio tra-
balho poético, que escava a linguagem a tal ponto, que um abismo
se desvela instransponível, um abismo que está nas profundezas, na
base, no fundamento mesmo da linguagem.
É, portanto, escavando as profundezas da linguagem poética que
o poeta descobre um abismo, um “pensamento esmagador” que co-
loca em questão Deus e a alma humana. Diante desse abismo, o
homem não passa de uma “forma vã da matéria”, mas pode se tornar
sublime porque ele é capaz de “inventar” Deus e a alma. O caráter

82
sublime do homem reside na sua capacidade de criar, de inventar, na
sua habilidade para a ficção. Mas o caráter aterrador dessa desco-
berta é que de tudo o que existe é forma vã da matéria, e tudo o que
há além da matéria, como Deus e a alma, são apenas formas vãs de
ficção, mentiras, Nada. O Nada é a verdade da condição humana que
a impele a criar o que há de mais sublime, mas é também a verdade
de toda e qualquer criação fictícia. Não há nada além da matéria, não
há nada por trás da ficção, só o nada, só mentiras.
O Nada é uma das metáforas, uma das figuras, poderíamos talvez
ousar dizer um dos conceitos fundamentais da poética mallarmeana,
pois não se trata apenas de um abismo avassalador que aniquila todas
as faculdades poéticas e esteriliza o poeta, não se trata de um pessi-
mismo desencantado, de um niilismo que transforma todo o univer-
so numa simples mentira. O nada é a verdade mesma que estrutura a
ficção, a base, o abismo a partir do qual estruturamos e construímos,
na linguagem e pela linguagem, o mundo em que vivemos.
Mas o encontro com o Nada e com a verdade da linguagem
não é apenas uma constatação “empírica”. Ela também não é de
ordem “espiritual”, pois o poeta mesmo sublinha que não conhecia o
budismo, talvez pudéssemos estender sua ignorância mística à obra
do tão célebre Swedenborg. Para Mallarmé, o encontro com o Nada
é, sobretudo, o fruto de um trabalho intelectual, de longos períodos
de reflexão. O poeta declara em uma outra carta do mesmo período:
“Acabo de passar um ano terrível: meu pensamento se pensou, e che-
gou a uma concepção pura” (MALLARMÉ, 1998, p. 713).Em carta
à Villiers d’Isle Adam, já em 1867, o poeta declara “Meu pensamen-
to chegou a pensar-se a si mesmo e só lhe resta forças para evocar
em um Nada único o vazio que se disseminou na sua porosidade”
(MALLARMÉ, 1998, p. 724).
A descoberta do Nada é o resultado de uma “longa agonia”, de
um processo de reflexão, ou de um movimento em que o pensamento
se volta para si mesmo, em que a poesia se volta para si mesma. Essa
descoberta vai se transfigurar em método. Mallarmé fará do Nada,
sua Beatriz, sua musa inspiradora:

83
[…] eu criei minha obra somente por eliminação, e toda ver-
dade adquirida nascia lampejando, estava consumada e me per-
mitia, graças às trevas dissipadas, avançar profundamente na
sensação das Trevas Absolutas. A Destruição foi minha Beatriz.
(MALLARMÉ, 1998, p. 717)

Nessa mesma carta, escrita em 1867, para Villiers d’Isle Adam,


outros contornos da crise se delineiam, a dimensão metafísica e in-
clusive os planos de obras futuras. Mallarmé anuncia que se trata
de uma descoberta que teria “refletido o ser”, ou que ele teria, como
lemos em outra carta, “descoberto a correlação íntima entre a Poesia
e o Universo e, para que ela seja pura, concebido o desenho para a
saída do Sonho e do Acaso justapondo-a à concepção do Universo”
(MALLARMÉ, 1998, p. 724). Desse período datam, como vimos,
a escrita de “Hérodiade”; “L’après-midi d’un faune” e o famoso “Son-
net en ix”, como ficou conhecido; mas também o projeto de tese do
qual nos restaram as “Notas sobre a linguagem”; o projeto de escrever
um conto Igitur e também os primeiros esboços do Livro, espécie de
cosmologia poética que deveria conter, como lemos nesta descrição,
a relação íntima entre o acaso e o sonho, ou a ficção. Assim, o Livro
é, antes de mais nada, uma possibilidade, um desejo de realizar uma
obra poética em que a relação entre a poesia e o universo se desve-
lasse. Ele é um ideal de poesia, uma ideia de poesia que se construiu
ao longo de muitos anos, o projeto literário de toda uma vida cujos
fragmentos podemos ler na obra efetiva do poeta, escrita justamente
a partir desse período.

O poeta face a seus demônios

Entre os muitos projetos que Mallarmé teria anunciado nesse


período, encontramos a escrita de quatro poemas em prosa sobre
a concepção espiritual do Nada. “Le démon de l’analogie” poderia
configurar entre esses poemas um exemplo poético exemplar da re-
lação entre a linguagem e o Nada. Um poema que, confrontando
prosa e poesia, acaso e trabalho poético, apresenta a aparição mesma

84
do Nada na poesia mallarmeana, narrada com o mesmo estupor e
angústia relatados nas cartas de 1866.
Segundo Assad (1987, p. 22):

“O demônio da analogia” encena um drama desdobrado: por um


lado o trabalho do logos que busca fixar e dominar a analogia, numa
luta de vida ou morte para poder preservar seu sistema fechado e
universal de saber; por outro lado, a usurpação do logos pela analogia
que o percorre do começo ao fim, o transgride e se insinua de ma-
neira ameaçadora.

Segundo o autor, o poema se configura a partir do conflito entre


a razão e a analogia, mas na verdade, como gostaríamos de mostrar,
esse conflito é entre a razão, a faculdade poética e o acaso, que é
o grande responsável pela produção dessa analogia demoníaca. A
interpretação da autora poderia levar a especulações em torno do
conflito entre a razão e a mística de um Swedenborg, por exemplo,
que poderia ser responsável pelo “tom”, pelo caráter “fantástico” do
poema. Mas, na verdade, todo mistério que essa analogia carrega, o
elemento fantástico do conto, diz respeito exclusivamente a lingua-
gem. Veremos, portanto, ao longo da nossa leitura do poema, como
se coloca e se desenvolve esse conflito entre acaso e razão, resultante
da própria configuração material da linguagem.
O poema começa com uma questão: “Falas desconhecidas can-
tariam, sobre seus lábios, farrapos malditos de uma frase absurda?”.
Essa primeira frase aparentemente paradoxal poderia ser interpre-
tada como um hipérbato, uma questão, portanto, invertida que diz:
“uma frase ‘absurda’ poderia cantar uma fala desconhecida”? Algo
de novo, de desconhecido e imprevisível pode se enunciar como ab-
surdo? Essa questão parece ecoar as críticas que Mallarmé recebera
alguns anos mais tarde, ao ser acusado de místico ou de louco. Lem-
bremos como o poeta se inscreve numa linhagem de poetas que têm
na figura de Baudelaire um mestre. Conhecemos o verso final de
Les Fleurs de mal, “vers l’inconnu pour trouver du nouveau”, assim
Mallarmé poderia estar se perguntando se o “desconhecido” baude-

85
leriano, o verso que dita toda a direção que a poesia pós-Baudelaire
tomará, seria simplesmente um absurdo. No entanto, a sintaxe da
frase mallarmeana é ao mesmo tempo mais complexa que um hi-
pérbato e mais sutil. Isso porque não se trata de uma frase absurda
cantando falas desconhecidas, mas de falas desconhecidas que can-
tariam farrapos de uma frase absurda, ou seja, trata-se de um ques-
tionamento sobre a possibilidade de o desconhecido evocar algo da
ordem do absurdo e não o contrário. E por essa razão estamos dian-
te de uma analogia demoníaca, já que a busca pelo desconhecido
pode facilmente se deparar com o absurdo. Assim, num primeiro
momento, uma analogia demoníaca seria aquela que reúne termos
dissonantes, contrários ou contraditórios, aparentando-se com algo
que, num primeiro olhar, pode parecer absurdo, pois não encontra
lugar na realidade.
A frase absurda a qual o narrador se refere é: “a penúltima está
morta”, ele conta que essa frase foi pronunciada num tom descen-
dente e “apareceu” acompanhada de um instrumento. Na verdade,
trata-se de uma sensação, da sensação de que uma asa tocava um
instrumento de cordas.

Saí do meu apartamento com a sensação própria de uma asa desli-


zando sobre as cordas de um instrumento, arrastada e leve, que uma
voz substituiu pronunciando as palavras num tom descendente: “A
penúltima está morta”, de maneira que
A Penúltima
Terminou o verso e

Está morta
se destacou
da suspensão fatídica mas inutilmente no vazio de significação.
(MALLARMÉ, 2003, p. 86-87)

O termo “asa” é muito frequente na poesia mallarmeana, ele de-


signa metonimicamente um voo em direção aos céus, em direção
ao “azur”, ao ideal, é a expressão metonímica de uma tentativa de

86
ascender, transcender o real. Ele figura, em termos mais gerais, o
movimento do verso em direção à ideia. No entanto, o caminho em
direção ao ideal não se faz sem tropeços e, nesse poema, naturalmen-
te prosaico, cujo tema é uma analogia demoníaca, nos vemos atados
à terra, espaço de um anjo sem asas. Se o tom da frase parece muito
elevado, ele é, em contrapartida, ironizado pelo caráter prosaico da
situação, “saí do meu apartamento”, “dei alguns passos na rua”.
Antes de continuarmos a leitura do poema, talvez possamos
estabelecer uma relação, um contraste que pode ser esclarecedor
entre o espaço desse poema e de um conto, seu contemporâneo,
Igitur. Esse conto, o poeta anuncia no prefácio, é destinado à inte-
ligência do leitor, percurso inteiramente intelectual, que configura
uma luta entre a razão e o acaso. Igitur tem como cenário um in-
terior. Não se trata de um poeta caminhando pela rua, mas de um
personagem que se encontra em seu quarto, no espaço individual
por excelência. No entanto, a ação de Igitur consiste justamente em
deixar o seu quarto para se reunir e completar o ato que o uniria a
sua comunidade, a sua raça. Para isso, ele deve descer “as escadas
do espírito humano, ir ao fundo das coisas, em ‘absoluto’ que ele é”
(MALLARMÉ, 1998, p. 474).
Lembremos que a frase que atormenta o poeta em “O demônio
da analogia” foi justamente pronunciada num tom“descendente”, ela
indica, de alguma maneira, essa descida aos infernos, ao fundo do
espírito humano e da linguagem, um ato que, para Mallarmé, é fun-
damental para que a poesia possa existir. No poema, a descida aos
infernos seria realizada pela sonoridade da frase, pelo tom no qual
ela é pronunciada, esse movimento é, inclusive, espacialmente mar-
cado pelo poeta que faz questão de apresentar o tom “visualmente”.
O tom descendente da frase é espacialmente representado. Nesse
momento do poema em prosa, o verso invade o espaço prosaico, da
rua, transgride a linearidade da prosa, da mesma maneira que inter-
rompe a caminhada do narrador. Além de transgredir a linearidade
da prosa, o verso insere espaços em branco, demasiado longos para a
espacialização prosaica.

87
O que confere à penúltima seu caráter “fantástico” é a sonoridade
da frase que aparece ao acaso, uma “sensação” que o poeta descreve
como eminentemente musical. O encontro do tom da frase e da “asa”,
que parece deslizar sobre as cordas de um instrumento, mergulha a
frase num vazio de significação, como se ela mergulhasse na nulidade
presente no termo penúltima. A música, quando compõe a poesia, é
responsável pelo mistério das letras, pelo seu caráter obscuro que elas
possuem, frágil e imaterial. Ela cria uma suspensão da significação,
que, em Mallarmé, é indicada pelo som (suspenso no ar).

[…] quando, pavor! – de uma magia facilmente dedutível e nervosa


–, eu senti que tinha minha mão refletida por uma vidraça de buti-
que ali fazendo o gesto de uma carícia que desce sobre alguma coisa,
a voz mesma (a primeira, que indubitavelmente tinha sido a única).
(MALLARMÉ, 2010, p.24)

A frase aparece ao poeta, como vimos, acompanhada por uma


sensação eminentemente musical, da qual o poeta tenta em seguida,
diante de seu tormento, se apropriar, para poder compreendê-la. No
entanto, a sucessiva repetição da frase provoca a perda de seu senti-
do, é o discurso lógico que se sabe como o túmulo da frase maldita.
Diante, portanto, da inutilidade de toda tentativa de compreensão,
o poeta a deixa errar na sua boca, até que ela finalmente desapareça,
morra. No entanto, ela insiste em retornar, dessa vez transfigurada
numa imagem, quase uma alegoria, proporcionada por um encontro
magicamente prosaico e casual.
O poeta se vê, de repente, diante de uma vidraça, através da qual
suas mãos parecem acariciar a voz, desta vez não a penúltima, mas
primeira e única voz. Esse encontro, num primeiro momento abs-
trato entre a voz e as mãos do poeta, se concretizara quando, através
da vidraça dessa loja de antiguidades, o poeta se depara com vários
instrumentos “pendurados nas paredes e, no chão, palmas amarelas
e as asas fugidas nas sombras, de pássaros antigos” (MALLARMÉ,
2010, p. 24).É a partir desse momento que podemos traçar a analo-
gia do poema.

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Uma analogia é composta de quatro termos divididos em dois
pares. O termo A está em relação com B, assim como C está para D.
Nesse caso, a analogia é composta, por um lado, pela relação entre
os instrumentos musicais e a música propriamente dita (sendo que
a música, como veremos adiante, vai muito além da sonoridade do
verso e é para o poeta a forma mesma do mistério que compõe o
mundo e se encontra no fundo de cada um de nós), e entre os pássa-
ros caídos no chão, ou a asa que desliza pelo instrumento musical, e a
significação, pois o voo dos pássaros indica o movimento de ascensão
do sentido, de passagem da palavra material e concreta em direção
à significação. O caráter demoníaco dessa analogia está no encontro
casual entre o poeta, que foi interpelado por essa frase enigmática, “a
penúltima está morta”, e que se depara com uma encarnação mate-
rial dessa frase através de uma vidraça. É demoníaco que uma frase
se materialize tanto como é demoníaco que um som encontre numa
palavra sua significação espelhada.
Os instrumentos musicais e os pássaros antigos no chão o
remetem à frase e ao seu movimento descendente, ao caráter nulo
presente na palavra “penúltima”. Se o voo dos pássaros em direção
ao céu simboliza o percurso da significação, a analogia em questão
é também demoníaca, pois seu tom é descendente, os pássaros se
encontram no chão, como demônios ou anjos caídos. Por isso, ela
encerra um paradoxo, pois se de um lado som e sentido parecem se
unir (na palavra penúltima), esse encontro é puro acaso, ou mais do
que isso, ele não realiza nada de fato, possui uma dimensão eminen-
temente negativa (os pássaros estão mortos como a penúltima está
morta). Esse encontro parece mais um presságio, a indicação de uma
catástrofe, de um fim muito próximo.
A frase e o encontro do poeta diante dessa loja são definidos
no poema como uma “irrecusável intervenção do sobrenatural”,
pois ela demonstra a natureza mesma da poesia, mágica, encontro
que produz o encantamento musical das palavras, encontro entre
sentido e música no interior da linguagem. A música guia o sentido,
carrega-o, mas muitas vezes esse encontro pode ter um caráter nega-
tivo, pode parecer não belo, mas aterrador. E o caso do poema, o som

89
“nul”, de penultième, acompanhado pelo tom descendente no qual a
frase é pronunciada, indica um fim muito próximo, já que a penúl-
tima está morta. Como se um demônio impedisse esse movimento
poético, esse voo das palavras em direção ao céu azul e límpido das
ideias. Mas que demônio é esse capaz de aterrorizar a tal ponto um
poeta?
A poesia se constrói a partir da união entre som e sentido. Essa
união não é fruto do acaso, mas do trabalho do poeta, trabalho que
é um encantamento das palavras, que procura sons capazes de fazer
ressoar e ecoar o sentido, acentuando-o, elevando-o. No entanto, a
linguagem não se estrutura a partir dessa relação, muito pelo con-
trário. Como Saussure bem mostrou, a união entre o significante, a
imagem acústica do som e o significado que compõe o signo linguís-
tico é arbitrária, imotivada, não há razão nenhuma capaz de explicar
essa relação.
Assim, a frase que parece invadir a mente do poeta e se torna
analogia a partir da sua visão, do encontro entre a frase e sua reali-
zação concreta, que faz dela um acontecimento, de natureza eviden-
temente poética, é na verdade um acontecimento do qual podemos
duvidar, pois ele parece de natureza “sobrenatural”. Ele contraria as
leis mesmas que constituem a linguagem, e certa ideia de poesia, que
busca no ideal a sua realização. Se a analogia é demoníaca, é porque,
longe de ser fruto de um trabalho e esforço intelectual, ela simples-
mente “aparece”, fruto de um mero acaso.
Diante da visão de um verso, de um som, espelhado na vitrine
de uma butique, o poeta aterrorizado, foge, “bizarro, persona con-
denada a portar provavelmente o luto da inexplicável Penúltima”
(MALLARMÉ, 2010, p. 24). O poeta é essa pessoa condenadaa-
levar nele próprio o luto de uma frase que pode paradoxalmente ser
poética e casual, motivada e imotivada, arbitrária, porém plena de
sentido e razão.
Agora, talvez o leitor seja capaz de dimensionar a amplitude da
crise na qual Mallarmé mergulhou, a natureza da linguagem colo-
ca o poeta diante de um paradoxo que parece irrevogável. Todo seu
trabalho e esforço devem caminhar para remotivar uma linguagem

90
que carrega consigo mesma, no seu interior, na sua estrutura, o luto
pela ausência do que ela tenta em vão presentificar, a distância que
a separa do real e da nossa vã materialidade. A poesia parece ter,
assim, algo de demoníaco ou sobrenatural, pois ela parece ser capaz
de tornar presente algo que, na verdade, já não é mais, que como a
penúltima está morta.
No entanto, seu verdadeiro caráter demoníaco reside, entre outras
coisas, no fato de que essa presentificação que ocorre através da lin-
guagem (figurada no poema pelo encontro do poeta com os instru-
mentos musicais e os pássaros) não é “sobrenatural” ou mesmo fruto
do acaso, mas uma representação, uma ilusão, uma ficção. E se, como
vimos, toda ficção se baseia no fato de que ela serve para mascarar o
Nada, o poema e sua analogia demoníaca pode indicar um caminho
para a resolução da crise.
O poeta não deve simplesmente dissolver esse parado-
xo constitutivo da linguagem que a faz arbitrária. A poesia
deve criar não demoniacamente tentando encantar as pala-
vras musicalmente, restabelecendo umamotivação significati-
va entre som e significado, pois isso seria criar apenas uma
ilusão, transformando a diferença em falsa semelhança, mas
respeitando e preservando, desvelando a constituição mesma
da linguagem, sua ausência de motivação, de razão, seu caráter
contingente e arbitrário. Assim, a poesia deve tecer redes de
relações, analogias, que desvelem através dos próprios meca-
nismos poéticos a diferença que forma e informa a linguagem,
construindo uma teia de significações e relações entre som,
sentido e imagem, que evidencie essa diferença estrutural da
linguagem. Ou seja, a poesia deve criar tendo como base o ca-
ráter arbitrário do signo, que, ao invés de pretender criar coi-
sas, torna presentes as coisas por meio da linguagem, aponta
simplesmente para o abismo que separa as palavras das coisas.
Estamos diante de uma poesia que carrega nela própria o luto
provocado pela morte da penúltima, e que assim se abre para o
espaço sem nome da linguagem.

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E, do nada, fez-se o verbo

Em  “O demônio da analogia”, o acaso era causa de tormento,


pois bloqueava a faculdade poética, assim o poeta se via em conflito
com uma força que parecia negar todo seu esforço para dominar a
linguagem. Igitur nasce desse conflito, de uma luta do poeta contra
o acaso. No entanto, se no poema em prosa o poeta se conforma
com a ideia de que terá que carregar o luto pela morte da “penúlti-
ma”, em Igitur um ato se realiza, a morte de Igitur, esse personagem
de caráter duplo que parece encerrar em si uma contradição insolú-
vel. Essa morte é o fim da impotência do poeta, pois transforma o
nada em ideia, em ato, em poesia: “Que o Nada seja ato como ideia”
(MALLARMÉ, 1998, p. 475).
Igitur é um conjunção latina, sinônimo de ergo. Ela é uma refe-
rência explícita à fórmula cartesiana, Cogito ergo sum. O que Mallar-
mé quer investigar nesse conto é a passagem da ideia à existência. Eis
a maneira através da qual ele elabora o problema da criação poética.
A questão aqui é tornar concreta, pôr no papel, uma ideia. Tudo seria
simples se a linguagem não oferecesse nenhuma resistência, se ela
não fosse em si mesma arbitrária e contingente, e se não houvesse
essa possibilidade mágica e quase sobrenatural de um verso surgir, de
um encontro acontecer, sem razão. Se Igitur é um conto intelectual é
porque se debruça sobre essa questão, se ele como personagem deve
morrer é justamente porque curar-se de sua impotência significa,
para Mallarmé, eliminar a barreira, a conjunção, a distância que se-
para o pensamento da existência concreta, dissolver a diferença entre
a Ideia e o que é material.
O ato de Igitur inverte os sinais, o negativo, a destruição, o Nada
ou o acaso, contrários à “razão poética”, se transformam em forças
criadoras. Se nossa imaginação não vacila diante do Nada, se nossa
imaginação nos torna capazes de criar Deus e outras sublimes fic-
ções, como a alma, ela deve também nos tornar capazes de transfor-
mar o acaso em força criadora.

92
Raça imemorial, cujo tempo que pesava caiu, excessivo, no passado,
e que, pleno de acaso, viveu, enquanto, de seu futuro – Este acaso
negado com ajuda de um anacronismo, um personagem, suprema
encarnação desta raça, que sente nele, graças ao absurdo, a existência
do Absoluto, tem, solitário, esquecido a fala humana num livro pouco
inteligível, e o pensamento numa luminária, um anunciando esta
negação do acaso, o outro clareando o sonho onde ele está.
O personagem que, acreditando na existência do único Absoluto, se
imagina por todos os lugares num sonho.
Ele age no ponto de vista Absoluto.
Acha o ato inútil, pois há e não há acaso – ele reduz o acaso ao
Infinito, que diz ele, deve existir em algum lugar. (MALLARMÉ,
1998, p. 478)

Aqui, vemos que Igitur, personagem que acredita no abso-


luto, reflete sobre o acaso. Diante do acaso, imemorial, como a
raça de Igitur, todo ato parece inútil, pois há e não há acaso, o
que quer dizer que, diante de qualquer ato, é sempre o acaso que
se realiza. Todo ato é, portanto, sempre fruto do acaso, pois este
é simplesmente infinito. Igitur como um poeta, representante
de sua raça, reflete sobre as possibilidades de realização do ato
poético diante da ameaça que o acaso representa. O acaso não
pode estar ao mesmo tempo em harmonia com o pensamento
e com a fala. Desse modo, o acaso impede a união entre pensa-
mento e poesia, ele impede a realização do poema, impede que
o pensamento se realize, se formalize.
Esse conto, como ressaltamos, foi concebido para colocar
fim à impotência do poeta diante da descoberta do Nada. Em
carta a Cazalis, datada de 14 novembro de 1869, o poeta decla-
ra: “É um conto, pelo qual eu quero enterrar o velho monstro
da Impotência” (MALLARMÉ, 1998, p. 748). Segundo Abas-
tado (1979, p. 270), a impotência do poeta é inseparável de seu
desejo de dominar intelectualmente o sistema poético. Domi-
nar intelectualmente o sistema poético significa, para Mallar-
mé, construir um livro “arquitetural e premeditado”, no qual

93
o acaso é vencido, palavra por palavra. Assim, escrever é lutar
para vencer o acaso:

Em resumo, num ato em que o acaso está em jogo, é sempre o acaso


que realiza sua própria Ideia, se afirmando ou se negando. Diante de
sua existência a negação e a afirmação falham. Ele contém o Absur-
do – o implica, mas em estado latente e o impede de existir: o que
permite ao infinito ser. (MALLARMÉ, 1998, p. 476)

Se o acaso contém o absurdo é porque ele é pura contradição,


ser e não ser, ou seja, um acontecimento é fruto do acaso. Por
outro lado, se esse acontecimento não se realiza, isso também se
deve ao acaso, o que implica a conclusão de que todo aconteci-
mento, real ou fictício, todo ato, é sempre fruto do acaso. Assim,
é sempre o acaso que determina sua própria ideia. O que pode
ser absolutamente absurdo, se esta não fosse a própria fórmula
do infinito.
Absurdo é uma contradição que se anula o acaso contém, por-
tanto, o absurdo, mas em estado latente, pois ele é pura possibi-
lidade, ele contém todas as possibilidades, ele é um poder ser e
ao mesmo tempo um poder ser outro, uma força demoníaca que
inverte e transforma tudo o que é e, inclusive, impede que algo se
fixe e se estabeleça.
Infinita não é a eterna inscrição do acaso, sua eterna rea-
lização, sua repetição incessante. Infinito é uma forma de ser
que se constitui a partir de uma contradição que não é absurda,
uma contradição que é uma forma de ser onde afirmação e ne-
gação não se anulam mutuamente. O infinito está na instabili-
dade fulgurante do acaso, ele se produz quando a contradição
transborda o binarismo e a oposição simples, e produz uma
multiplicidade de marcas, rastros, traços, constelações. Como
dados rolando.
Mas o que isso significa em termos de criação poética? Para o
senso comum, o poeta é aquele que lima seu verso, que procura sem-
pre as palavras certas, aquelas que são capazes de vencer o acaso,

94
que se mostram absolutamente necessárias e insubstituíveis e que
são capazes de expressar exatamente o que o poeta tem em mente. É
assim que imaginamos um processo de significação: há algo para ser
dito, uma ideia ainda abstrataque deve encontrar sua forma perfeita.
Eis o trabalho da poesia. No entanto, muitas vezes pedras cruzam o
caminho dos poetas, como no “Demônio da analogia”, por exemplo,
em que o acaso interfere, e as palavras aparecem como que trazidas
por forças sobrenaturais, e, mais ainda, que são capazes de encontrar
sua realização concreta, sua imagem, na vitrine de uma loja de anti-
guidades.
Contudo, se a poesia não se faz a partir de ideias que ela procura
esconder nas profundezas do poema, se não há significado para ser
expresso e desvelado, se não há verdade alguma por trás das palavras,
além do Nada da nossa condição, então devemos supor que também
não há uma faculdade superior, uma razão poética responsável pela
criação e expressão de ideias e verdades imutáveis. Ficamos sozinhos
diante de uma linguagem arbitrária e contingente que faz com que as
palavras, significados e objetos insistam em se desencontrar. A ques-
tão que Mallarmé se coloca é, portanto, de saber como criar, como
fazer poesia diante de linguagem arbitrária.
Eis a razão pela qual a melhor metáfora que ele encontrou para
a poesia e para o pensamento foi a do lance de dados. A poesia fun-
ciona quase como um “jogo de azar”. Pois sabemos que “todo pensa-
mento é um lance de dados”, mas sabemos também que “um lance de
dados jamais abolirá o acaso”. Assim a poesia é um ato, simples, por-
que ela lança os dados, mesmo na certeza de que qualquer resultado
será sempre fruto do acaso. No entanto, uma vez que temos diante
de nós, um número (uma palavra, uma frase), esse é absolutamente
necessário, único, e não poderia ser outro. A cada lance de dados o
acaso está presente, mas ele é abolido assim que temos diante de nós
um número único, real. Ele é abolido quando se realiza. Por isso,
no interior de um poema, cada palavra parece ocupar o seu devido
lugar, e se relacionar com as outras que a cercam, numa relação que
é da ordem da mais absoluta necessidade. Cada palavra ocupa o seu
devido lugar e parece ser a palavra perfeita, mesmo que ela tenho

95
sido, paradoxalmente, fruto do acaso. É com isso que a poesia joga,
com a infinita capacidade da linguagem de fazer sentido, apesar do
seu caráter contingente, ou talvez justamente devido ao seu caráter
contingente, que expande e multiplica essas possibilidades de senti-
do e faz com que, mesmo a partir do acaso, as palavras se encaixem
como as estrelas numa constelação, perfeitamente, incessantemente
em movimento.
O acaso só pode ser compreendido dessa maneira na moderni-
dade. Pois somente a modernidade torna possível compreender o
tempo como uma contradição, visto por um lado como uma presen-
ça fulgurante, por outro, como composto também por um elemento
eterno, imutável. Na verdade, o presente, como vimos anteriormente,
nada mais é que uma passagem, um não ser, preso entre o passado e o
futuro. A modernidade poética é produto dessa contradição, de uma
concepção do tempo como histórico. Mais do que um modo particu-
lar de relação com o presente, mais que uma compreensão histórica
da realidade social e política, a modernidade poética mallarmeana
encontra na forma mesma da passagem do tempo, no acaso, que dita
a forma contraditória de todo ato e a inscrição dos acontecimentos
no curso da História, seu modelo. Se todo acontecimento se inscreve
a partir de uma contradição então como contradição, o poema pro-
cura escrever o infinito através do modo de ser do acaso.
Se a poética mallarmeana se estrutura a partir dessa ideia do
Nada, como uma negatividade irredutível que compõe o tempo e
dita a natureza e o modo de ser dos acontecimentos através do acaso,
a linguagem que, como Mallarmé afirma, é imotivada e arbitrária
também terá como sua forma essencial, essa mesma “negatividade”,
destruidora:

O Verbo é um princípio que se desenvolve através da negação de


todo princípio, o acaso (hazard), como a Ideia, e se encontra, for-
mando (como ela o Pensamento suscitado por Anacronismo) ele, a
Fala, com a ajuda do Tempo que, permite a seus elementos dispersos
se encontrarem e se ligarem seguindo as leis próprias suscitadas pe-
las suas distrações. (MALLARMÉ, 1998, p. 505)

96
Temos aqui duas definições complementares da linguagem que
é Verbo e também Fala. O Verbo se desenvolve através do acaso,
enquanto a Fala se faz no Tempo. O Verbo forma a Fala, seu de-
senvolvimento através do acaso culmina na sua realização oral, na
execução musical do poema. O Verbo é muito mais do que a lingua-
gem em estado de dicionário, ele indica a dimensão performativa
da poesia que se determina através da destruição ou da negação de
todo e qualquer princípio, racional, ou seja, que é produto do acaso.
Ele realiza sua ideia quando tomado em sua negatividade, quando
compreendido enquanto acaso, ou seja, o verbo se estrutura como o
acaso, seu conceito é o conceito de acaso, ele se define enquanto tal.
O que significa afirmar que o Verbo é o acaso? Sabemos que a
linguagem é para Mallarmé arbitrária, mas como isso implica um
modo de ser no tempo? Ora, o acaso possui um modo de ser du-
plo, não se trata de uma presença fulgurante, como uma epifania,
ou de uma existência somente possível duvidosa, portanto de uma
ausência, mas de um meio-termo entre esses dois modos de ser.
É essa a ideia mallarmeana de acaso, entre o ser e o não ser, entre
presença e ausência que determina um novo modo de presença e
que é a da poesia.
Assim o Tempo se define, para Mallarmé, não como um conjun-
to de instantes, mas como a própria ausência do instante, em que o
tempo se fixaria, o tempo é passagem, movimento, devir. Assim, o
Verbo possui um modo de ser ambíguo, entre aparecer e desaparecer,
entre ser e não ser, entre a possibilidade e o ato que se concretiza
tanto na Fala quanto na Escritura.
A Fala, eminentemente oral, se compõe no tempo, através do
tempo e tendo o tempo como um elemento de sua própria estrutura.
Ela evanesce no ar na medida em que o tempo negativamente a dis-
solve, já a escrita, as letras, permanece no papel, alcança a eternidade.
O Tempo se torna, portanto, princípio formal de construção
poética, médium e meio através do qual a linguagem é como fala,
dissolução musical dos signos, esvanecimento que ao mesmo tempo
se fixa e constrói com as letras o poema. É nesse movimento que o
poema se constitui, ele é o retrato de um movimento, de um devir,

97
que encontrará no Lance de dados sua forma mais bem acabada. Com
a ajuda do Tempo, a linguagem se mostra como além do princípio
de representação, pois não se trata de espelhar o mundo, mas de re-
fletir sua própria ideia, seu próprio modo de funcionamento, daí a
importância crucial do Tempo. Assim, como o acaso se inscreve e
deixa rastros, a linguagem se dissolve no ar como fala e se fixa en-
quanto escrita. Esse jogo entre formas de ser e não ser talvez seja a
“adaptação ao absoluto da ficção”, porque nos coloca diante do que é
da ordem da infinitude.
Assim, a modernidade deixa de ser representada e sua ideia se
torna, portanto, forma, princípio de dissolução e transformação,
cuja negatividade estrutura a poesia e define a linguagem poética:
“O Verbo, através da Ideia e do Tempo, que são a ‘negação idêntica
à essência’ do devir, se torna Linguagem” (MALLARMÉ, 1998,
p. 506). Não se trata mais de retratar e pintar a vida ordinária tal
qual um jornalista o faria. A modernidade é aqui, uma maneira
particular de experimentar o tempo. Um tempo que não é mais vazio
e homogêneo, que não produz uma história com começo, meio e
fim, mas que se transforma com a ação contingente e fulgurante dos
homens e de suas ideias. A poesia mallarmeana se inscreve, assim,
na tradição que Baudelaire inaugurou, porque procura fazer dessa
experiência do tempo a forma através da qual a poesia se constrói.
O Verbo, que através do Tempo forma a Fala, se torna finalmen-
te linguagem quando sua essência corresponde à sua aparência. Ou
seja, quando através da fala e da escrita o verso realiza a sua própria
ideia, aparece como manifestação do acaso, puro devir. O devir nada
mais é do que a ideia mallarmeana de tempo, o tempo compreen-
dido como um continuum, capaz de produzir camadas distintas que
podem ser sobrepostas, como os motivos do Lance de dados. Eis o que
Igitur procura realizar, ele que representa toda a sua raça. Uma raça
de homens que lutaram incessantemente para abolir o que não pode
ser abolido, o princípio que transforma tudo o que é, o acaso.
O devir substitui toda ideia representativa da linguagem, ele é
assim princípio da criação poética. A poesia não é mais uma imita-
ção do real, ela não fala ou descreve um estado de coisas no mundo,

98
ela pode fazer muito mais do que isso, através de uma “transposi-
ção estrutural”: “Esta visada, eu a digo Transposição, Estrutura, uma
outra” (MALLARMÉ, 2003, p. 210). Ela é capaz de “apreender as
relações”, de colocar em evidência as relações entre a linguagem e o
mundo, relações se tecem porque, para Mallarmé, a ideia, a lingua-
gem, o acaso e o tempo têm a mesma estrutura, a mesma natureza.
Eis a razão pela qual tudo o que existe deve terminar num Livro. A
poesia encena o devir do mundo, sua metamorfose e seu movimento.
Ela é regida, como esse cosmos que ela quer abraçar, pelo mesmo
acaso, pelo mesmo tempo, pelo mesmo Verbo.
Romper com a linguagem representativa significa romper com a dis-
tância entre o representante e o representado, com a ideia de verdade como
adequação entre esses dois termos; significa pensar a linguagem através da
relação que sua aparência tece com sua essência, através da relação entre
a ideia da linguagem, seu conceito e seu modo de manifestação. Ou seja,
romper com a linguagem representativa significa tornar a aparência da
linguagem a manifestação de sua própria essência. Essência que é a Ideia
de acaso ou a contingência que une significante e significado, enquanto
na sua aparência ela é fala, manifestação no tempo como dissolução de si
mesma. A união entre esses dois momentos é a demonstração de que a
linguagem é puro devir, acaso, um tornar-se outro, um ser e nãoser que se
manifesta como aparecer e desaparecer. União e dissociação entre som e
significado constante, um processo de constituição de sentido, um movi-
mento em direção ao sentido, nada mais.

99
V
O MITO

Le soleil s’est couché ce soir dans les nuées;


Demain viendra l’orage, et le soir, et la nuit; 
Victor Hugo, Feuilles d’automne.

O deserto cresce. Infelicidade a quem protege o deserto. 


Nietzsche

Em Notes ser Le Langage encontramos o seguinte esquema:

III
Conclusões.

(velho espírito)* se tornando Inteligência (que sem seu germe final


foi desgarrado)
[f ͦ 4]e antes de mais nada essa inteligência deve se voltar para o
Presente.

* e ele conduzirá ainda em outra coisa na tese latina, a divindade


da Inteligência (ou espiritualidade da alma)

 A tese Latina.
De Divinitate (MALLARMÉ, 1998, p. 504)

Temos aqui um esboço do que seria uma das conclusões da tese


mallarmeana sobre a linguagem e, como vemos, elas dizem respeito
ao Verbo e sua dimensão divina, que deve se tornar Inteligência, que
aparece com letra maiúscula e cuja dimensão se restringe ao Pre-
sente, igualmente com letra maiúscula. Assim, temos um projeto do
percurso que o espírito deveria percorrer para se tornar inteligência,
espiritualidade da alma, uma inteligência voltada para o presente e
que deve conduzir o velho espírito na direção de uma inteligência
divina. Uma nova Fenomenologia do espírito? Resta saber, se essa con-
clusão diz respeito ao percurso do poeta, no ato da criação, ou se ela
configura uma crítica. O que é o velho espírito e de que maneira se
distingue da Inleligência? E que Inteligência divina é essa que apa-
rece como resultado de uma escavação sobre a linguagem e o mito?
Podemos observar, a partir desse trecho, a relação íntima que o
poeta tece entre o espírito, a inteligência e a linguagem. A inteligên-
cia não seria mais o velho espírito, mas uma inteligência que se volta
para o presente. Esse “velho espírito” desgarrado de seu germe parece
indicar o declínio da religião cristã. A ordem social do Antigo Regime
encontrava sua base em Deus, e o rei era seu representante na terra. Se
Deus está morto, ou se ele nunca foi outra coisa senão uma invenção
sublime e demasiado humano, então podemos dizer, com Bertrand
Marchal, que todos os sistemas, quer sejam religiosos, políticos ou so-
ciais, não são mais que representações que só podem existir no interior
da língua. Sem essa legitimação exterior, a sociedade se torna pura
ficção, suas regras e normas tornam-se atos da imaginação. A literatura
seria, assim, apenas um caso particular dentre outros.

O que Mallarmé revela por trás da crise é uma crise geral da


representação que afeta, em decorrência da morte de Deus, ga-
rantia e referência suprema, todas as referências gerais, todos os
valores absolutos [...] e consagra assim a autonomia dos signos.
(MARCHAL, 1993, p. 23)

O presente é, nesse contexto, o resultado de uma relação entre


o homem e o seu tempo, ditado pelo modo de ser da modernidade,
que se desprende de seu passado, principalmente da relação antes
determinante entre religião e sociedade. Uma modernidade que é,
em Mallarmé, mais que um período histórico, e que se torna, como
vimos, a forma que ditará a maneira de ser de sua poesia.
Mas em que consiste essa “tese latina” da linguagem? Ou como
caracterizar essa dimensão divina da inteligência?

102
Na já citada carta em que Mallarmé narra sua descoberta do
Nada, o caráter sublime do homem reside no ato de que ele é capaz
de inventar Deus e muitas outras ficções. Agora poderíamos também
dizer mitos. O caráter divino da inteligência humana seria seu
caráter sublime, sua capacidade para criar ficções. Nesse sentido, uma
inteligência divina é uma inteligência voltada para a criação de mitos,
para o passado, para o princípio mitológico da linguagem, onde esta
e os deuses estavam em perfeita harmonia. Para compreendermos
como essa tese se constitui, precisamos nos interrogar sobre o modo
pelo qual Mallarmé compreende a relação entre o mito e a linguagem,
entre mito e poesia.
Em Les Dieux Antiques podemos ler como o poeta compreende
a relação entre linguagem, a poesia e o mito. Trata-se, na verdade, de
uma “tradução” quase literal, de A Manual of Mythology in the Form of
Question and Answer, de George W. Cox. Mallarmé não apenas tra-
duziu o texto, como produziu certas alterações no original, além de
acrescentar trechos de outra obra do autor, The mythology of the aryan
nations. George W. Cox foi um discípulo e vulgarizador da obra de
Max Müller, autor de La Science du Langage, que transpôs para o
plano da mitologia as descobertas de Franz Bopp sobre a matriz
comum das línguas indo-europeias. Sua obra pretende mostrar que
a mitologia se produz a partir de mecanismos da própria linguagem,
ou seja, a linguagem na medida em que ela se desenvolve a partir de
deslocamentos e figuras é naturalmente mitopoética, criadora de mi-
tos. Os mitos não são nada além da origem esquecida da linguagem e
seu processo de constituição pode ser desconstruído e demonstrado
etimologicamente.
Bertrand Marchal (apud MALLARMÉ, 2003, p. 1814), destaca
uma diferença importante entre Les dieux antiques de Mallarmé e o
original do reverendo Cox, que parece operar a dissolução dos mitos
para destacar, por trás de seus horrores, um modo religioso universal
que se confunde com uma ideia cristã de Deus. Mallarmé, na sua
tradução, desfaz cuidadosamente esse ponto de vista, transformando
o Deus cristão num dos mitos dissolvidos por essa análise científica.
Assim, segundo Marchal (apud MALLARMÉ, 2003, p. 1814), “Os

103
Deuses antigos prolongam à sua maneira a tese latina, ela também
abandonada, sobre a divindade, uma divindade que se trata a partir
de agora de reaver como a potência simbólica que é a fonte comum,
na linguagem, dos mitos e da poesia”.
Se a “tese latina” deve compreender a divindade da inteligência,
como voltada para o presente, então ela deve não apenas entender o
mecanismo através do qual os mitos se produzem, mas utilizar esse
recurso à mitologia, ao passado, para pensar a linguagem hoje. Isso
implica desvendar o processo de criação dos mitos, ou seja, compre-
ender os mecanismos linguísticos, as propriedades da linguagem que
permitem que os mitos sejam quase “naturalmente” criados a partir
dela. Uma vez conhecidos esses mecanismos, possivelmente a lin-
guagem pode operar de outra maneira, sem precisar recorrer ao mito
e muito menos criar novos mitos, mas desvelando-os, revelando-os.
A inteligência divina da linguagem é assim, essencialmente crítica
ao mito.
Segundo o autor, nossos ancestrais, os povos antigos que ha-
bitavam a Terra, falavam e compreendiam o mundo de uma ma-
neira muito diferente da nossa: “Não sabendo quase nada sobre
eles mesmos, e nada sobre os objetos que eles percebiam ao seu
redor e no mundo inteiro, eles imaginavam que todas as coisas
eram dotadas de uma vida semelhante à deles” (MALLARMÉ,
2003, p. 1455).
A mitologia se constitui como um processo de simbolização, de
encantamento do mundo, um movimento de racionalização eviden-
te, onde o mundo que cerca os homens é compreendido à sua ima-
gem e semelhança. É na linguagem e através da linguagem que o
autor busca narrar o nascimento dos mitos nas sociedades antigas.O
homem cria, assim, mitos para explicar os fenômenos naturais, so-
bretudo, que o cercam, atribuindo uma força e um poder além do
humano ao mundo natural, que ele não é capaz de controlar. Os ho-
mens contam histórias, constroem narrativas e nomeiam a natureza
da mesma maneira que os poetas criam seus poemas:

104
No fundo, eu os vejo, esses pensamentos, os mesmos que inspiram
a linguagem dos poetas de todos os tempos e de todos os países.
Sim, agora como anteriormente, os poetas não fazem outra coisa
a não ser atribuir vida ao que eles veem e escutam em torno de si.
(MALLARMÉ, 2003, p. 1460)

Os povos primitivos utilizavam a linguagem para exprimir o


que eles viam e sentiam. Com o tempo e as sucessivas migrações
e deslocamentos dos povos, o verdadeiro sentido dessas palavras
e frases se perde, sua referência não é mais imediata, imediata-
mente presente para os falantes da língua. Com a passagem do
tempo, a linguagem, assim como os mitos por ela contados, perde
sua ligação originária e original com a natureza. O mito é uma
narrativa que visa refazer essa relação perdida, às vezes afastando-
-se ainda mais da natureza.
Trata-se, portanto, como em “Crise de vers”,de afirmar a arbi-
trariedade da linguagem, a partir de razões distintas, entretanto, não
mais a relação entre som e significado, mas entre o signo em si e seu
referente extralinguístico. Relação que, um dia, nos primórdios da
História humana, teria sido motivada, mas cuja origem já não pode
ser reconstruída inteiramente, a não ser na forma do mito, como uma
história, uma narrativa. Assim, a ideia mesma de que a linguagem
seria motivada é que aparece mito.
Les Dieux Antiques é, portanto, uma história que nos conta sobre
a perda do vínculo fundamental e originário entre as palavras e o
mundo natural, entre as palavras e sua referência. Assim, o objetivo
dessa obra, como podemos ler no seu prefácio, é desvelar a verdade
que se encontra na estrutura de todo mito:

Liberar as divindades de sua aparência pessoal, e restabelecer, como


volatilizadas por uma química intelectual, seu estado primitivo de
fenômenos naturais, pôrdosol, auroras etc. É esse o objetivo da Mi-
tologia moderna. (MALLARMÉ, 2003, p. 1448)

105
O objetivo da mitologia moderna é, portanto, mostrar a rela-
ção natural entre mito e linguagem, entre a natureza e o mito. A
função do pensamento aqui é volatilizar o caráter antropomórfico
desses mitos, restituí-los ao fênomenos naturais. Em vez de “natu-
ralizar” a linguagem através dos mitos, a inteligência da tese divina
da linguagem busca mostrar na origem dos mitos sua necessidade,
a importância de todo e qualquer processo de simbolização, que é
sempre intrínseco à linguagem, intrínseco à relação do homem com
o mundo que o rodeia. A importância dessa tese consiste em mostrar
que a linguagem é investida de um poder de simbolização, do qual o
homem investe, por sua vez, a própria natureza.
Apesar de os mitos terem sido transmitidos de geração em ge-
ração entre povos distintos, em línguas diversas e, por isso, terem se
transformado tão radicalmente a ponto de romper o vínculo que os
unia à natureza, podemos, no entanto, estabelecer, através da compa-
ração entre as diversas histórias contadas por esses mitos, uma ori-
gem comum, uma história, digamos, “inicial” ou “originária”, uma
origem comum a todos os mitos. O que significa dizer que há um
mito presente em grande parte das culturas e tradições, um mito
que seria o mito por excelência, “grande e perpétuo assunto da Mi-
tologia”. Trata-se da dupla evolução solar, do ciclo cotidiano e anual
do sol, o Deus de todos os astros, e principal ator na regularização e
manutenção da vida na Terra:

O que importa a imagem? Ao menos ela reveste, no estudo dos mi-


tos do passado, um charme histórico que é ao mesmo tempo curioso
e comovente. O que é o sol? Um noivo que sai de seu quarto ou um
herói que se alegra em percorrer sua estrada. (MALLARMÉ, 2003,
p. 1460)

O ciclo do sol, a passagem da noite para o dia e a passagem


das estações ritmam a vida humana e são, por isso mesmo, muito
mais que uma simples metáfora que figuraria o ciclo humano da
vida e da morte. O mito originário, fonte de todos os mitos e da
linguagem mesma, é assim um jogo entre luz e escuridão, a noite

106
e o dia, a vida e a morte, um jogo a partir do qual a linguagem se
funda e que a determina e a estrutura. E uma vez que essa ilusão se
dissolve, a linguagem realiza por sua vez um ciclo, como o do sol,
que simboliza a alternância entre a luz e as trevas, pois a partir do
momento em que os mitos são despidos das ilusões representativas
que os produzem, eles aparecem, em toda clareza, como linguagem.
E a linguagem aparece como o meio de transporte que liga o homem
e sua essência ao mundo que o cerca. O mito é assim, Verbo, cria-
ção humana, criação linguística, obra da linguagem, e seu poder de
transcendência consiste unicamente no fato de que a linguagem per-
mite o acesso aos recônditos primitivos do homem, aos seus mitos
fundadores, naturais, mitos que não são mais capazes de estabelecer
o vínculo entre o homem e a natureza, mas somente indicar essa
distância que constitui o homem moderno, dotado de uma divina
inteligência, através da qual ele reconhece esses mitos como criação
da linguagem da qual ele agora pode se apropriar.
O estudo da mitologia nos mostra, portanto, esse vínculo entre
a linguagem e o mito, ou seja, o mito solar, mas nos faz também
tomar consciência de que esse vínculo natural entre a linguagem e a
natureza está para sempre perdido. Como então conciliar essas cons-
tatações aparentemente tão distantes: de um lado, a linguagem que
perdeu sua significação original, o vínculo que a ligava indissolu-
velmente à natureza; de outro, o mito original que guia e estrutura
a vida humana e igualmente sua relação com a natureza, descrita a
partir do ciclo do sol?
Na verdade, há apenas um mito, o mito originário, e neste a ver-
dadeira natureza do mito se revela, a verdadeira natureza da pró-
pria mitologia. Temos aqui, mais uma vez, a estrutura que compõe
a linguagem, como vimos no capítulo anterior, o acaso e o tempo,
que devem realizar a união entre aparência e essência da linguagem.
O mito originário, como o mito de Orfeu, por exemplo, é um mito
em que se narra um modo de ser tal que não é outro a não ser o do
próprio mito.
A mitologia grega tem também seu mito solar, mito particu-
larmente interessante, pois ele sintetiza a relação do homem com

107
o ciclo do sol, e esse “homem” é além de tudo um poeta. Trata-se
evidentemente do mito de Orfeu, que Blanchot,em seu L’espace lit-
téraire, transforma no mito literário por excelência. Há muito a ser
dito a respeito desse mito, mas, nesse caso, nos interessa a caminhada
que Orfeu realiza, a sua descida aos infernos em busca de sua amada
Eurídice. No ensaio de Blanchot, Eurídice, anônima e ausente, se
confunde em última instância com a própria linguagem. Orfeu não é
capaz de trazer sua amada ao mundo dos vivos, como o sol não pode
ocupar o céu ao mesmo tempo que a lua, assim como as palavras pa-
recem irremediavelmente escapar dos lábios que as pronunciam e se
distanciar inevitavelmente das coisas que elas devem supostamente
nomear. Assim como o pôrdosol evoca o momento em que o dia já
não é mais dia, mas a noite ainda não se instalou, um momento entre
dois, portanto, é também o momento em que o dia deve terminar, se
dissolver, tal como Eurídice desaparece diante do olhar apaixonado
de Orfeu, tal como a palavra se dissolve no ar, na musicalidade do
tempo que a transforma em silêncio.
A partir dessas considerações sobre a relação entre a linguagem
e o mito solar, propomos uma leitura, diríamos um passeio rápido
por alguns poemas nos quais Mallarmé trabalha essa questão. As-
sim poderemos acompanhar as transformações que a compreensão
mallarmeana do mito sofreu ao longo de alguns anos.
Os poemas são: “Les Fleurs” e “Hérodiade”. Com a comparação
entre os dois poemas podemos mostrar como a oposição fundamen-
tal que estrutura o mito solar aparece transfigurada nas duas obras.

LES FLEURS

Des avalanches d’or du vieil azur, au jour


Premier et de la neige éternelle des astres
Jadis tu détachas les grands calices pour
La terre jeune encore et vierge de désastres,

Le glaïeul fauve, avec le cygne au col fin,


Et ce divin laurier des âmes exilées

108
Vermeil comme le pur orteil du séraphin
Que rougit la pudeur des aromes foulées,

L’hyacinthe, le myrte à l’adorable éclair


Et, pareille à la chair de la femme, la rose
Cruelle, Hérodiade en fleur du jardin clair,
Celle qu’un sang farouche et radieux arrose!

Et tu fis la blancheur sanglotante des lys


Qui roulant sur des mers de soupirs qu’elle effleure
À travers l’encens bleu des horizons pâlis
Monte rêveusement vers la lune qui pleure!

Hosannah sur le cistre et dans les encensoirs,


Notre dame, hosannah du jardin de nos limbes!
Et finisse l’écho par les célestes soirs,
Êxtase des regards, scintillement des nimbes!

Ô mère, qui créas en ton sein juste et fort,


Calices balançant la future fiole,
De grands fleurs avec la balsamique Mort
Pour le poëte las que la vie étiole.4 (MALLARMÉ, 1998, p. 10-11)

4. AS FLORES./ As avalanches de ouro do velho azur, ao dia/Primeiro e a neve eterna


dos astros/ Outrora você desatou os grandes cálices para/ A terra jovem e virgem de
desastres,/ O gladíolo ocre, com cisnes de pescoços finos,/ E este divino louro das almas
exiladas/ Vermelho como a artéria do serafim/ Que enrubesce o pudor dos aromas dei-
xados/ O jacinto, o mirto ao adorável relâmpago/ E, parecido à carne de uma mulher,
a rosa/ Cruel, Hérodiade em flor do jardim claro,/ Aquela que um sangue selvagem e
radioso rega!/ E você fez a brancura sanguinolenta dos lírios/ Que rolava sobre os mares
de suspiros que ela desflora/ Através dos incensos azuis de horizontes pálidos/ Sobe so-
nhadoramente pela lua que chora!/ Hosannah sob a cítara e nos turíbulos / Nossa dama,
hosannah do jardim de nossos limbos!/ E termine o eco das noites celestes,/ Êxtase de
olhares, brilho dos nimbos!/ O mãe, que criou em seu seio justo e forte,/Cálices balan-
çando o futuro frasco,/De grandes flores com a balsâmica Morte/ Para o poeta covarde
que a vida murcha. (A tradução do poema é literal e não mantém a versificação original.)

109
A primeira versão desse poema data de 1864. Esta versão é a últi-
ma do poema, presente em Poésies, edições Deman, de 1899. Trata-se
da primeira aparição de Hérodiade, na poesia mallarmeana, persona-
gem que o poeta não pode nunca abandonar.
As flores são não somente símbolo da beleza, elas são também
sinônimo de poesia. No grego, flor é “anthos”, e essa palavra compõe
“antologia”, ou “florilège” no francês antigo, antologia de poemas. No
latim, “legere” forma “rassembler”, e “coligere”, “compor”, “colecionar”,
“colher”. Os verbos “compor” e “colher” têm, portanto, a mesma ori-
gem latina e unem mais uma vez as flores à poesia.
Como o próprio título do poema indica, as flores são aqui múl-
tiplas, “Les fleurs”, fundamentalmente duas: as rosas vermelhas e os
lírio brancos. A oposição entre essas flores, entre essas duas cores,
é evocada em diversos momentos, através de múltiplos vocábulos,
como “avalanches”, “la neige des astres”, “vierge”, “cygnes”, “divin”,
“blancheur”, “lune” (“avalanches”, “a neve dos astros”, “virgem”, “cis-
nes”, “divino”, “brancura”, “lua”); o vermelho é evocado através dos
termos “vermeil”, “aurore”, “rougit”, “chair”, “sang” (“vermelho”, “au-
rora”, “enrubescer”, “carne”, “sangue”), sem mencionar as palavras
cuja sonoridade sugere indiretamente essas cores, como “éclair”,
“scintillement”, “sanglotante”, “farouche”, “arrose”.
O poema evoca o dia, primeiro, o momento da criação, o
nascimento do sol, a aurora, esse momento preciso em que o céu
é invadido por uma multiplicidade de cores, em que o vermelho e
o branco se transformam no amarelo do céu. A aurora é também
a morte da lua, por isso “a lua chora”, a noite que já não é mais.
Se a aurora produz uma multiplicidade de cores, a noite é dupla,
suas cores são resultado de uma oposição, essencial e total, entre
o negro do céu e o branco dos astros. Assim, a noite é a “neve
eterna dos astros”.
É interessante notar as modificações que o poeta introduziu no
poema ao longo das suas reescrituras. O primeiro verso da primei-
ra estrofe, na primeira versão do poema, era “Mon Dieu, tu déta-
chas les grands calices pour / La terre encore vierge de desastres”
(Meu Deus, você desprendeu os grandes cálices para/ A terra ainda

110
virgem de desastres).Nesse verso a ambiguidade do vocativo, que
parece perder força com o verso que o segue, permite uma leitura
interessante. Deus criou o mundo fazendo com que os grandes cá-
lices se perdessem, transformando um mundo antes “puro”, a terra
virgem de desastres. No entanto, a preposição “pour” não possui
uma referência evidente no verso, o que deixa o leitor sem saber
que fenômeno é esse, em que os cálices se deslocam talvez, saindo
do lugar que lhes reservou O criador. Ainda sim, o vocativo mais
parece uma lamentação diante desse ato de criação, que impuro e
desastroso. Por isso o poeta implora uma redenção, “Ö mon père,
hosannah du profond de nos limbes!”:

Car, n’oubliant personne en ton charmant effort


Tu donnas, lui montrant son devoir sans mensonge,
De fortes fleurs versant comme un parfum la Mort
Au poète ennuyé que l’impuissance ronge.5 (MALLARMÉ,
1998, p.121)

A morte aparece como um refúgio, uma redenção deste mun-


do que deixa o poeta entediado, sofrendo de sua impotência, pois,
mesmo que o poeta possa criar, dar vida e semear beleza, suas
criações terão sempre um perfume de morte. A mensagem não
poderia ser mais baudeleriana. A última versão do poema traz
uma modificação, o desaparecimento de Deus, que é substituído
por uma figura divina feminina, divindade que será, posterior-
mente, substituída por um mito, Hérodiade, ou uma personagem
de ficção. Outra mudança significativa no poema é a substituição
de “l’impuissance” (impotência) por “le poète las que la vie étiole”
(o poeta cansado que a vida murcha). Como uma flor que nasce
e murcha, o poeta desvanece diante da vida, empalidecido e fra-
gilizado. Sua impotência é como um desvanecimento, diante da
riqueza e exuberância desse jardim, diante da violência de uma

5. Pois, não esquecendo ninguém em todo seu charmoso esforço/ Deste, mostrando-
-lhe seu dever sem mentira,/ Fortes flores versando como um perfume a Morte/ Ao poeta
entediado que a impotência corrói.

111
“rosa cruel”, como Hérodiade, de “sangue selvagem”, que faz do
poeta um ser totalmente desmunido. Assim, o poema, que terá
como título Hérodiade, parte dessa imagem tão badeleriana de
flores com perfume de morte, de sangue selvagem, de um verme-
lho sensual que contrasta com a impotência do poeta que a vida
selvagem e cruel não cessa de enfraquecer.
Na primeira versão de “Hérodiade”, o personagem é forte-
mente associado à flor, sobretudo à rosa, ou ao outono, estação
equivalente à aurora, vermelha. A cor branca aparece relacio-
nada ao cisne, alegoria do poeta, “Le cygne légendaire et froid”
(“cisne legendário e frio”), e é também associada à Hérodiade:
“étoile éteinte, et qui ne brillera plus” (estrela brilhante, que não
brilhará mais).
Nas versões posteriores do poema, que sofreu diversas alterações
durante toda a vida do poeta, permanecendo, no entanto, inacabado,
a aurora figura um momento privilegiado, a morte da noite e o nas-
cimento do sol, exatamente como em “Les Fleurs”.

Abolie, et son aile affreuse dans les larmes


Du bassin, aboli, qui mire les alarmes,
De l’or nu fustigeant l’espace cramoisi,
Une Aurore a, plumage héraldique, choisi
Notre tour cinéraire et sacrificatrice,6 (MALLARME, 1998, p. 137)

Entretanto, na versão publicada em 1871, no Le Parnasse Con-


temporain, de Hérodiade, a personagem aparece sob o signo da
brancura, da virgindade. As rosas vermelhas dão lugar aos lírios,
e a ambiguidade e o caráter duplo do mito solar, que foi outro-
ra figurado pela aurora, parecem desparecer. Mallarmé (1998, p.
699) diz de Hérodiade: “je tiens à en faire en être purement rêvé

6. Abolida, e sua asa assombrosa nas lágrimas


Da bacia, abolida, mira os alarmes,
Do ouro nu castigando o espaço carmesim,
Uma aurora tem, plumagem heráldica, escolhido
Nossa torre cinerária e sacrificadora,

112
et absolument indépendant de l’histoire”. A personagem não ti-
nha, portanto, nenhuma relação com a personagem bíblica Salo-
mé, figura recorrente na mitologia simbolista. Na história bíblica,
Salomé dança para seu pai, que, encantado, promete fazer o que
ela quiser. A moça persuadida pela mãe pede a cabeça do santo
João Batista numa bandeja.
Salomé, que no poema de Mallarmé é Hérodiade, nos remete
à sedução e ao poder da arte, mas ao mesmo tempo traz consigo
qualquer coisa de macabro e cruel, devido à morte e à violência a ela
associadas. Num esboço de prefácio para o poema, Mallarmé diz que
gostaria de isolar justamente esse aspecto assombroso da persona-
gem, o que a faz ser considerada um monstro, para expor aquilo que
de fato se esconde na história. Vejamos como Mallarmé compõe a
sua Hérodiade.
A personagem é descrita ainda com alguns traços da Salomé,
tão caros ao período: uma mulher fatal, sua beleza transborda a
sedução da arte e a morte. Beleza cheia de mistérios, fascinante:
“Mais n’allais-tu pas me toucher?” (“Não vais me tocar ?”), Hé-
rodiade pergunta a sua babá, que responde: “J’aimerais être à qui
le Destin réserve vos secrets” (“Eu gostaria de ser aquela a quem
o Destino reserva seus segredos”) (MALLARMÉ, 1998, p. 147).
Mas a sua beleza é solitária, ela é virgem, Hérodiade se nega a
experimentar “la vertu Fúnebre”, a virtude Fúnebre.
O poeta faz questão de manter o aspecto sedutor da perso-
nagem, que a relaciona à arte, mas acrescenta um dado que não
está presente na personagem bíblica ou nas Salomé retratadas
na época, o que se constata no trecho em que a babá pergunta
à personagem: “E para quem, devorada/ De angústia, guardas o
esplendor ignorado/ E o vão mistério de vosso ser?” Hérodiade
responde: “Para mim” (MALLARMÉ, 1998, p. 147). O aspecto
macabro da personagem bíblica é substituído pelo horror e pela
frieza de uma beleza que se mantém pura, que se resguarda, que
resiste ao desejo que quer possuí-la e dominá-la.

113
J’aime l’horreur d’être vierge et je veux
Vivre parmi l’effroi que me font mes cheveux
Pour, le soir, retirée en ma couche, reptile,
Inviolé, sentir en la chair inutile
Le froid scintillement de ta pâle clarté.7 (MALLARMÉ, 1998,
p. 147).

Mas o que é essa virgindade do mito, essa pureza, esse aspecto


do intocável que Hérodiade possui? Qual é a relação entre a arte e o
poder de sedução e a pureza da personagem do poema? A pureza de
Hérodiade a faz sedutora. Sua beleza, virgem estéril, solitária, como
num “château de pureté”, é a figura mesma de um ideal de poe-
sia pura. Num primeiro momento, o caminho para a concretização
desse ideal parece ser a recusa da carne, a recusa do mundo, pois só
se resguardando do mundo e do contato com os outros homens é
que Hérodiade poderá se manter virgem, guardar para si mesma os
segredos do seu corpo, os segredos da própria vida. Mas Hérodiade
também espera algo de “desconhecido”, ela não parece tomada por
um ideal, pois afirma “detestar o belo azur”, além disso, ao se olhar
no espelho, ao ver-se despida, ela se vê diante da inutilidade e da
nulidade de todo e qualquer sonho, sobretudo de um certo ideal de
pureza, vão e estéril. A pálida claridade que cintila em seu corpo é
também fria e vã, como a sua pureza.

Et tout, autour de moi, vit dans l’idolâtrie


D’un miroir qui reflète en son calme dormant
Hérodiade au clair regard de diamant...8 (MALLARME, 1998,
p. 148)

7. Amo o horror de ser virgem e quero


Viver em meio ao espanto que fazem meus cabelos
Para, à noite, retida em minha cama, reptílica
Inviolada, sentir na carne inútil
O brilho frio de sua pálida claridade.
8. E tudo, em volta de mim, vive na idolatria
De um espelho que reflete em sua calma dormente
Hérodiade com seu claro olhar de diamante.

114
A partir dessa cena final poderíamos, talvez, supor que a babá,
que deseja apenas a imagem de Hérodiade no espelho, é como um
poeta em busca da poesia pura, apaixonada por uma imagem, como
Narciso. Pois o poema funciona também como um espelho que, mais
do que refletir uma imagem de Hérodiade, espelha uma imagem do
mito, reflete, pensa Hérodiade. Por isso, mais do que realizar uma
apologia da poesia pura, o poema desvela a nulidade de toda e qual-
quer tentativa nesse sentido. O nada que Mallarmé descobre ao es-
crever “Hérodiade” é justamente a inutilidade e esterilidade desse
poeta que, como a babá, guardião da beleza, quer tocá-la, possuí-
-la, mas ela insiste em lhe escapar. A virgindade de Hérodiade é a
sua própria morte, ela não vive, não transmite pureza, mas faz dessa
pureza sua esterilidade, sua nulidade, seu fim. Sua pureza contém o
germe da sua própria destruição. Ao resguardar-se, a personagem
se aniquila, como Narciso que, ao se contemplar, morre, e assim ela
demonstra a esterilidade de toda busca por uma poesia pura. Hé-
rodiade denuncia aqueles poetas que vivem absortos em ideias, que
admiram como idolatria uma pureza vã e estéril.
A Hérodiade de Mallarmé é construída como o oposto da Salo-
mé bíblica. Na sua origem bíblica, o caráter monstruoso de Héro-
diade, que Mallarmé queria eliminar, era o de provocar a morte do
outro. Salomé é a figura de uma mulher bruxa, de um desejo que pro-
voca a ruína dos homens, que os torna escravos, que provoca mortes.
No poema de Mallarmé, Hérodiade é outro mito, o oposto, o mito
da virgem pura e cândida, guardiã da verdade. Se o caráter sedutor de
Salomé provoca a ruína alheia, o mito da pureza, encarnada através
da virgindade de Hérodiade,é a sua própria. Assim as características
que relacionavam a personagem à arte foram mantidas e reforçadas.
Mas se na Salomé bíblica, a beleza da arte seduzia e provocava a
morte, em Hérodiade, a morte aparece como o desejo de preservar a
sua pureza. Mas por queessa inversão? Por quea ruptura tão brusca?
A resposta para tal pergunta pode estar na compreensão que
Mallarmé tem do mito. O mito como parte integrante, elemento
fundamental da linguagem. Para Mallarmé, a importância do recur-
so literário à mitologia reside no fato de que a mitologia fornece

115
à poesia muito mais do que um conjunto pronto de histórias que
encarnam a história do homem e suas transformações, o mito é o
símbolo fundamental da própria linguagem e de sua necessidade. A
verdade da linguagem reside na sua predisposição a se tornar mito,
na sua estrutura simbólica. O que o mito desvela ao poeta é a capa-
cidade da linguagem de simbolizar, de criar significações e contar
histórias.
No entanto, o mito é um símbolo pronto, como que estanque e
fechado num conjunto de significações limitadas que ele pode pro-
duzir, enquanto a linguagem, em princípio, com suas vinte e quatros
letras, encerra um infinito de possibilidades. Assim, Mallarmé não se
limita a elogiar e utilizar os mitos da cultura ocidental, ele empre-
ende também uma crítica ao uso utilitário do mito, como podemos
observar no artigo “Richard Wagner. Devaneio de um poeta fran-
cês”, de Divagações.
Nesse texto, após um elogio à ideia de arte total wagneriana,
que muito influenciou Mallarmé no seu ideal estético, principal-
mente no que diz respeito ao Livro, o poeta se desculpa por não
fazer parte daqueles que louvam a arte de Wagner. Mallarmé re-
prova em Wagner o fato de que este teria “entronizado a Lenda”,
ele colocaria diante do seu espectador um espetáculo dito “das ori-
gens”, que não trata de mitos gregos, mas germânicos. Porém, nessa
busca pelo primitivo, num espetáculo em que tudo banha em águas
primitivas, ele não chegaria de fato à fonte. Mallarmé reprova em
Wagner o fato de que esse transforma deuses e mitos em objetos de
adoração, “quase um Culto!” (MALLARMÉ, 2003, p. 153). Trata-
-se de uma encenação de um mito, como se ele contivesse o segredo
de nossas origens.Como vimos, a partir da leitura de Les Dieux
Antiques, o mito deve mostrar-se enquanto tal, desvelar seu modo
de constituição, expor-se como ficção, mas Wagner os transforma
em objeto de culto. Grande problema de Hérodiade, idolatrada e
estéril em sua pureza.
O poeta sugere uma presentificação mais adequada ao espírito
francês, “imaginativo e abstrato, portanto, poético”. Segundo o poeta,
seu século e seu país, que exaltam Wagner, “dissolveram através do

116
pensamento os mitos, para refazê-los.” Nenhuma anedota de qual-
quer tipo que seja teria sido poupada nesse processo. O espírito fran-
cês não suportaria ver em cena um desfile de mitos, ao menos que

a Fábula, virgem de tudo, espaço, tempo e pessoa sabidos, se desvela


de empréstimo ao sentido latente com a colaboração de todos, está
escrita na página do Céus e cuja História mesma não passa de
uma interpretação, vã, ou seja, um Poema, a Ode. (MALLARMÉ,
2003, p. 157)

O poeta propõe, portanto, uma reflexão sobre os mitos e seu pa-


pel na criação ficcional, uma reflexão que deve chegar à sua fonte,
ao ponto que fundamenta o mito, onde ele se encontra com a ficção,
se mostra como tal. Esse movimento deve ser realizado diante dos
olhos dos espectadores. Para que esse processo ocorra, o mito deve
aparecer desprovido de qualquer referência espacial, temporal ou
pessoal, ele deve ser compreendido como ideia.

um fato espiritual, o desabrochar dos símbolos ou sua preparação,


necessita de um lugar, para se desenvolver, outro que o fictício lar
de visão apunhalado pelo olhar da multidão! Santo dos Santos, mas
mental.. assim concretizam, em alguns lampejos supremos, de onde
se eleva a Figura que Nenhum não é. (MALLARMÉ, 2003, p. 157)

Mallarmé utiliza uma metáfora floral para descrever o processo


de desvelamento do mito, “desabrochar”. A obra wagneriana seria
apenas um espaço onde os mitos desfilam sob o olhar cativado e
seduzido da multidão, enquanto a ficção deveria, para Mallarmé, ser
o espaço por excelência, em que o processo de construção do mito
se desvela para dar lugar à figura, à ideia mesma do mito e de toda
ficção, o Nada. Assim, o mito é a figura privilegiada que pode en-
cenar a verdade que o poeta descobre na sua crise de Tournon, o
caráter mentiroso de todo processo fictício. O mito deve se desvelar
como não sendo, como apenas um receptáculo de significações, um
significante.

117
O que Mallarmé aprecia na mitologia é o que ela tem em
comum com a poesia. Os mitos são nomes e narrativas que con-
cernem a natureza, mas que com o tempo perdem sua relação
com essa. Assim, a mitologia aparece como uma forma de ficção.
Para o poeta, Wagner pretendia despertar fé no espectador, ele
buscava a veracidade da ação, bem como o princípio da veros-
similhança. Ele acusa Wagner de fabricar “a Ficção” a partir de
um elemento grosseiro: “porque ela se impõe mesmo e de um
só golpe, obrigando a crer na existência dos personagens e da
aventura – de crer, simplesmente, nada mais” (MALLARMÉ,
2003, p. 154).
O poeta critica, a partir disso, o papel assumido pela música no
drama wagneriano. Esse conceito é, segundo ele, “autoritário e ingê-
nuo”, isso porque para Wagner a música deve ajudar a contar uma
história, ela deve auxiliar o drama, corresponder-lhe: “o drama pes-
soal e a música ideal, ele efetuou a união” (MALLARMÉ, 2003, p.
155) Assim, a música serve para mover as paixões, comover, ela seduz
e contribui para que o espectador “acredite” no que vê, se envolva
com a história. Ela contribui para a verossimilhança, ela ajuda a criar
uma ilusão. A música se torna um meio de encantamento para “vio-
lentar sua razão”.
Em Nietzsche contra Wagner e O caso Wagner Nietzsche endereça a
Wagner uma crítica que se tece exatamente nos mesmos moldes que
a crítica mallarmeana ao músico.
O rompimento entre Nietzsche e Wagner não se deve apenas pelo
fato de o último ter se convertido ao cristianismo, mas sobretudo no
tratamento que o músico dispensava aos mitos, e consequentemente
na maneira como Wagner subordinava a música à construção de mi-
tos edificantes e redentores. Certamente Wagner foi um dos respon-
sáveis pela renovação do mito no século XIX, e justamente por isso,
Nietzsche é o primeiro a reconhecer a importância do músico no seu
tempo, sua capacidade em se mostrar filho de seu próprio tempo. No
entanto, ao filósofo não cabe apenas descrever sua época, ele deve
também superá-la, e Nietzsche o faz quando deixa de admirar Wag-

118
ner, quando compreende que criticá-lo seria ultrapassar e deixar para
trás o que sua época tinha de mais negativo e nefasto.
Um bom exemplo do que Nietzsche reprova em Wagner pode
ser observado no comentário de Sigfredo. Wagner teria acredita-
do, durante metade de sua vida, na revolução, e procurou encarnar
em seu personagem a figura do revolucionario típico. Para Sigfredo
todos os males do mundo provêm das convenções, da moral e dos
costumes, como diriam os maiores “ideólogos da revolução”. Todo
o mal do mundo repousa sobre as instituições, as leis e os costumes
do mundo antigo que devem, portanto, ser destruídos. Para eliminar
toda a desventura do mundo, para suprimir a velha sociedade basta
eliminar as convenções, a moral, a tradição etc. E é isso que Sigfredo
faz. Seu próprio nascimento é um atentado à moral, pois é filho de
um adultério e de um incesto. Criação wagneriana que não pertence
à lenda. Assim Sigfredo vive destruindo tudo o que não lhe agrada,
mas sua grande obra foi a redenção de uma mulher. Assim, Sigfredo,
o revolucionário, buscando destruir o velho mundo e suas institui-
ções, é apenas capaz de realizar um elogio do amor livre, que deveria,
sozinho, ser capaz de arruinar toda a velha moral.
Por isso, se traduzíssemos os mitos de Wagner para a realidade,
para o mundo moderno, veríamos que seus personagens não passam
de burgueses. Eis o que Nietzsche lhe reprova. Eis o que nos conta
um drama de Wagner: pequenos problemas de pequenos burgueses.
Suas heroínas são todas como Madame Bovary, inclusive se Flaubert
as traduzisse para o escandinavo ou cartagenês, se as mitologizasse,
elas poderiam certamente figurar num drama wagneriano.
Por todas essas razões, entre Wagner e Bizet, Nietzsche prefere
o segundo. Para o filósofo a música de Bizet é leve, conta com a
inteligência de seu ouvinte, com o qual Wagner é sempre descortês,
sua música ingênua, seu grande estilo, são uma moeda falsa. Wag-
ner procura se mostrar ausente de um mundo corrompido, repetindo
sempre as mesmas palavras, “felicidade”, “pureza”, “devoção”, desco-
nhecendo a verdadeira natureza do amor, que aparece em Bizet em
toda a sua verdade “cínica, ingênua, cruel”. Onde o destino longe
oferecer redenção aparece como uma fatalidade. O que falta a Wag-

119
ner é a ironia com a qual Bizet trabalha um material musical em
ruínas, desgastado, vinculando esse material ao mito também mais
desgastado pelo romantismo, o do amor paixão. Em Wagner o amor
livre aparece como a única possibilidade de redenção burguesa, já na
Carmem de Bizet, o amor aparece como vimos, de acordo com sua
própria natureza, cruel, cínico, como uma fatalidade, um mito em
vias de esgotamento, em vias de dissolução. Um mito que se mostra,
portanto, como tal, através da ironia, por isso Bizet é leve e Wagner,
um mentiroso, hipnotizador.
Vemos como a crítica de Mallarmé e a de Nietzsche contra Wag-
ner se cruzam. Para o poeta, um escritor não deve de maneira nenhu-
ma esperar e construir sua obra de maneira a suscitar nos seus espec-
tadores ou leitores alguma espécie de crença, ele não deve alimentar
ilusões, não deve criar mitos. Mallarmé desaprovava em Wagner seu
desejo de que a sua história fosse crível, que ela parecesse ou que
tivesse o intuito de parecer verdadeira, pois isso contribui para criar,
em torno dela, uma aura de adoração. Nietzsche, da mesma maneira,
critica Wagner pela sua pretensão em ser verdadeiro, em oferecer ao
espectador uma espécie de redenção, sendo que sua obra, na verdade,
é tudo menos verdadeira. Dessa maneira, não se trata de oferecer
ao leitor como Wagner busca ofertar aos seus ouvintes uma espécie
de redenção, mas sim de despertar-lhes à consciência crítica. A ver-
dadeira obra de arte não deve criar mitos, fazer crer e ter ambições
religiosas, ela deve, antes de mais nada, endereçar-se à inteligência de
seus leitores, ouvintes ou espectadores.
Assim, para Mallarmé, a poesia deve – como os estudos de mi-
tologia de Cox ou de Müller –, operar uma desmontagem do mito,
indo verdadeiramente até suas fontes. Uma obra deve se realizar a
partir da “tese latina da divindade da inteligência”, ou seja, ela não
deve procurar restituir o vínculo original entre a linguagem e a na-
tureza, mas compreender que a inteligência deve estar voltada para o
presente. Assim, trata-se de mostrar e demonstrar que um mito não
passa de uma ficção, que nada no mito é capaz de nos levar às nossas
origens ou garantir uma cosmologia, ou oferecer alguma espécie de
redenção. Muito pelo contrário, o mito é apenas capaz de nos desviar

120
da crítica, de sustentar crenças. Por isso, render-se ao presente signi-
fica mostrar de que maneira nosso presente foi construído por mitos.
Ou seja, na obra de arte verdadeira, a ficção deve se mostrar en-
quanto tal, a obra deve realizar essa operação de desvelamento do
mito, que é também o desvelamento da verdadeira natureza da obra
de arte, que é, na verdade, ficção.Tudo o que podemos conhecer atra-
vés do mito é o caráter contingente da linguagem e sua predisposição
natural para construir ficções. Assim, uma vez que nos dirigimos à
origem dos mitos, encontramos seu verdadeiro fundamento, outro
mito sobre uma linguagem que corresponderia de fato à natureza,
mas que não é mais a linguagem que temos hoje, ao nosso dispor.
Por isso, entregar-se ao presente significa não mais tentar restabe-
lecer os vínculos que uniam a linguagem e a natureza através do
mito, mas sim reafirmar a natureza mesma da linguagem, arbitrária
e contingente, e criar a partir do material que é dado ao poeta pelo
seu próprio tempo.

A linguagem poética e a Beleza

“Hérodiade” é mais que uma flor, mais que um mito transfigu-


rado. Nesse poema, todo desejo parece irrealizável e a beleza pura,
branca e virgem da personagem pode apenas ser asceticamente con-
templada. Mais do que nunca, Hérodiade é a flor do jardim poéti-
co de Mallarmé que melhor encarna sua crise de impotência. Ela é
também um diálogo com a tradição romântica contrarrevolucioná-
ria, que fez da pureza e do amor impossível o símbolo do ascetismo
católico na terra.
No entanto, a linguagem não se limita a criar uma beleza fria e
estéril que pode ser apenas contemplada. A linguagem se define a
partir da beleza, pela sua capacidade de “tornar belo”. Esse tornar-se
ou o devir da beleza é um movimento que caracteriza a linguagem e
que torna essa impotência, ou a pureza de Hérodiade, algo além de
mais um índice de esterilidade. Na nossa breve apresentação do po-
ema buscamos mostrar como ele foi o terreno de experimentação de
uma concepção mallarmeana do mito, nele começa a se esboçar uma

121
teoria da ficção. Vimos que a crise do Nada marca essa concepção,
a de que todo mito não passa de uma ficção, de uma mentira que
esconde o Nada que a gerou. Nesse momento buscaremos mostrar
que há uma concepção da linguagem diretamente dependente de
um fundamento estético, uma linguagem que se define a partir de
sua capacidade de tornar-se bela. Vejamos o que isso significa para
Mallarmé.
O mito original, que representa o ciclo do sol, como já mencio-
namos, mais do que colocar em cena uma contradição irreconciliável
entre a vida e a morte, entre a luz e as sombras, ou ainda, entre o
sol e a lua, encena o desvelamento do processo de constituição do
mito, o desvela como obra da linguagem. O mito que encena o ciclo
do sol e suas variantes é o mito por excelência, portanto, narra a si
mesmo, se mostra enquanto mito. Por essa razão, Mallarmé elegeu
esse mito como o mito de sua predileção. Essa escolha é perceptível
na preferência clara do poeta por momentos do dia em que o sol e a
lua parecem se encontrar no céu, como o pôr do sol e a aurora, mo-
mentos em que as cores do céu se multiplicam e se misturam. Nesse
momento duplo – ambíguo, entre dois –, o que se enfatiza é o caráter
efêmero dessa passagem de um momento para o outro, processo que
é o desvelamento do mito como ficção, produto simbólico da lingua-
gem significante em busca de significação.
No rascunho de escritura de “Hérodiade”, como testemunham as
cartas desseperíodo, a cor vermelha da aurora e da rosa é o símbolo
por excelência ao qual o poeta pretende vincular sua criação. Em
carta a Eugène Lefébure o poeta afirma:

A mais bela página de minha obra será aquela que contiver este
nome divino Hérodiade. […] O pouco de inspiração que tive, eu
devo a esse nome, e creio que se minha heroína se chamasse Sa-
lomé, eu teria inventado essa palavra sombria e vermelha como
uma romã aberta, Hérodiade. De resto, eu tenho a fazê-la um ser
puramente sonhado e absolutamente independente da história.
(MALLARMÉ, 1998, p. 669)

122
O personagem, que no poema vive sua própria morte, fascina
Mallarmé pela riqueza metafórica e sonora de seu nome. “Héros” +
“díade”, duplo herói, ao mesmo tempo virgem, branca como um lírio
e vermelha como uma romã aberta. Hérodiade figura um modo de
ser contraditório que estrutura a ficção. Vimos até agora algumas
das formas que a contradição pode assumir: a fala, o acaso, o próprio
mito. Embora ela não seja como as figuras femininas de Baudelaire,
a prostituta ou a heroína lésbica, sua virgindade é também signo da
impotência masculina. Por isso ela está na origem da crise vivida pelo
poeta, provocada pela sua incapacidade em reconciliar essecaráter
duplo da personagem.

Le blond torrent des mes cheveux immaculés,


Quand il baigne mon corps solitaire la glace
D’horreur, et mes cheveux que la lumière enlace
Sont immortels. Ô femme, un baiser me tuerait
Si la beauté n’était la mort.9 (MALLARMÉ, 1998, p. 143)

Os cabelos loiros como o sol de Hérodiade são “imaculados” e


refletem a “luz” e também, paradoxalmente, “o gelo”, a frieza dessa
beleza que não é nada além da própria morte. Beleza, no entanto,
fascinante, repleta de mistérios.
Pela riqueza de contradições e pela complexidade das imagens
que o poema evoca não poderíamos dizer que Hérodiade é simples-
mente uma personagem que nega o mundo sensível em nome de um
ideal supraterrestre para resguardar e manter sua virgindade, sua pu-
reza, pois a própria personagem declara detestar o “azur”. Indício de
que a questão aqui é realizar uma crítica do ideal ascético de beleza
e pureza que estruturam a lírica católica.

9. A corrente loira dos meus cabelos imaculados,


Quando ele banha meu corpo solitário o gelo
De horror, e meus cabelos que a luz enlaça
São imortais. Ó mulher, um beijo me mataria
Se a beleza não fosse a morte” (tradução semântica).

123
O mesmo pode ser dito se atentamos para o poema mallarmeano que
leva esse nome, “Azur”. Aqui encontramos o seguinte verso: “De l’éternel
Azur la sireine ironie / Accable, belle indolemment comme les fleurs”
(Do eterno Azur a serena ironia/ oprime, bela indolentemente como as
flores ). O ideal é, assim, ferido pela ironia, que, como as flores, possui
uma beleza indolente. Beleza mortal que, como o ideal, assola e perturba o
poeta, oprime e suprime sua capacidade de ação. Assim a súplica do poeta
que se dirige à matéria, única salvação diante de um ideal inatingível: “Le
Ciel est mort. – Vers toi, j’accours! Donne, ô matière, L’oubli de l’Idéal
cruel et du Péché" é inutil, "En vain!"e o poeta conclui "l’Azur triomphe
[…]". (– O céu está morto – Corro em sua direção! De, ô matéria, o es-
quecimento do Ideal cruel e do Pecado”). Súplica que se mostra vã e que
leva o eu lírico a concluir que o Azur continua triunfando.
Hérodiade não se inscreve, portanto, entre a dualidade puramen-
te contraditória do “spleen” e do ideal, sua natureza é mais complexa,
misteriosa diríamos. Ela figura não a beleza ideal em sua relação direta
com a pureza, mas sim a impossibilidade de uma beleza eterna e pura.

Quant à toi femme née en des siècles malins


Pour la méchanceté des antres sibyllins,
Qui parle d’un mortel devant qui, des calices
De mes robes, arôme aux farouches délices,
Sortirait le frisson blanc de ma nudité,
Prophétise que si le tiède azur d’été,
Pour lequel par instants la femme se dévoile,
Me voit dans ma pudeur grelottante d’étoile,
Je meurs!10 (MALLARMÉ, 1998, p. 145)

10. Quanto à você mulher nascida em século escuso


Pela maldade dos antros sibilinos,
Que fala de um mortal diante de quem, os cálices
De meus vestidos, aromas de selvagens delícias,
Partirá o frisson branco da minha nudez,
Profetize que se o tépido azur de verão,
Pelo qual por instantes uma mulher se desvela,
Me veja no meu pudor trepidante de estrela,
Eu morro!

124
Hérodiade parece, nesse momento do poema, dialogar com a sua
ama que teria profetizado que, se a personagem se desvelasse, se des-
nudasse diante de um mortal, isso seria a sua ruína, provocaria a sua
própria morte. Mas Hérodiade parece desacreditar essa “profecia”
evocando a “maldade” da mulher “nascida em séculos malignos”.
Para a maioria dos comentadores, Hérodiade é o símbolo do ideal da
poesia pura. Segundo Friedrich (1999, p. 155), por exemplo, o poema
Hérodiade faz parte de um movimento, presente na poesia moderna,
que o crítico nomeia “desumanização”, que consiste em um distancia-
mento constante da vida natural, numa recusa por parte da poesia do
fato vivido e de sua confissão. Segundo o autor, Hérodiade teme seu
corpo e toma consciência de seu destino: “tornar-se um ser de pura ide-
alidade”. Salomé recusa a natureza e entra na “noite branca de blocos de
neves cruéis”, figurando uma espiritualidade fatal à vida onde subsistiria
apenas a dor de não poder transcendê-la completamente.
Se Hérodiade fossede fato um ser puramente ideal, que recusa o
mundo e tudo o que é humano em nome do Ideal, como poderíamos
interpretar a metáfora da “romã”, sombria, vermelha e vivaz? Onde esta-
riam esse aspecto sombrio, a força, a sedução e a volúpia que a imagem
da romã aberta evoca? Para compreender essaproblemática examinemos
os manuscritos em que Mallarmé trabalhava no ano de sua morte.

Quand le sang coule il est un incendie


quelque part
libère

suinte
viole11  (MALLARME, 1998, p. 1083)

11. Quando o sangue escorre há um incêndio


em algum lugar
libera

escoa
estupra.

125
Hérodiade aparece como o contrário do que ela evoca na versão
publicada do poema “Scène d’Hérodiade”. A cor vermelha aqui se
faz presente, ela é o sangue versado na defloração da personagem,
sangue que Hérodiade versa também ao provocar a morte do santo
João Batista. Lembremos que, no mito bíblico de Salomé,a perso-
nagem dança para seu pai que, completamente seduzido pela sua
beleza, propõe realizar todos os seus desejos. Sob a influência de sua
mãe, Hérodiade pede a cabeça de São Batista que lhe é servida numa
bandeja. Essa morte é interpretada na bíblia como um prenúncio
da morte de Jesus. No mito bíblico é a arte, a beleza que seduzem e
levam à morte do santo. Esse caráter macabro de Hérodiade é resga-
tado por Mallarmé nos últimos manuscritos do poema.

l’ambiguité d’Hé-
rodiade et de sa
danse...

elle maîtrise cette


tête révoltée
Qui a voulu
penser plus haut
Où s’éteint l’idée
inouïe et riche12 (MALLARME, 1998, p. 1084)

Nos manuscritos do poema inacabado encontramos aspec-


tos que não estão presentes na primeira cena publicada. Aqui,
Hérodiade ressurge como dançarina e a questão da relação

12 A ambiguidade de Hé-
rodiade e de sua
dança...

ela manipula esta


cabeça revoltada
Que quis
pensar mais alto
Onde se apaga a ideia
extraordinária e rica.

126
entre o Ideal e a matéria aparece na metáfora da decapitação do
Santo, que decorre da dança. A decapitação do Santo aparece
como signo do desacordo entre corpo e pensamento, ele equi-
vale ao suicídio de Hérodiade para manter sua pureza. Ela é seu
par feminino, e tanto Hérodiade quanto o Santo, no suicídio
ou no assassinato, são punidos pelo excesso de idealidade, pela
recusa da materialidade. A dança, enquanto realização corpo-
ral, ação do corpo no mundo, contrariamente à virgindade, que
recusa o corpo e a ação no mundo, é também a figura de uma
possível harmonia entre o corpo e a mente, quando essa se torna
simples corpo e não mais símbolo de abstração, de um ideal,
mental e incorporal. Aqui, a cabeça, que quis pensar mais alto
e desprender-se do corpo, é controlada por uma Heródiade que
faz do corpo o espaço de manifestação de outra ideia, não mais o
Ideal puro e abstrato, mas uma arte que toma corpo, que é corpo,
que se desvincilha de todo ideal.

Et ma tête surgie
[...]
Les anciens désaccords
Avec le corps.13 (MALLARMÉ, 1998, p. 1114)

Na medida em que a cabeça do santo representa a ausência


de harmonia entre o ideal e a matéria, a ideia e o corpo, a dança
aparece, em contraponto, como a arte que realiza com perfeição
essa união. Assim, o título do poema, como ele foi original-
mente concebido, deveria ser “Les noces d’Hérodiade”, essas
bodas são o extremo oposto do que vemos na Cena, no poema
publicado, e nas leituras como a de Friedrich, elas indicama
união entre a matéria e o ideal que somente a dança poderia
configurar.

13. E minha cabeça surgida


[...]
Antigos desacordos
Com o corpo

127
joiaillerie-
et vie
étoile et chair
mariée.14 (MALLARMÉ, 1998, p. 1085)

A frieza da pedraria que orna o corpo da virgem se contrapõe


à vida do corpo, à carne posta em movimento pela dança, ao ideal
(estrela) reconciliado com a vida. Hérodiade pretendia, portanto,
realizar a união entre o corpo e o pensamento, entre o ideal e a vida
e entre todas as outras variantes da mesma contradição.
No entanto, na Cena, no primeiro trecho do poema, terminado e efe-
tivamente publicado, só há reconciliação entre o corpo e algo que o trans-
cende, como o ideal, na morte. Uma pergunta ecoa por todo o poema. A
questão do suicídio de Hérodiade, da abnegação, do sacrifício da carne e do
corpo é uma questão que concerne, ao mesmo tempo, a morte e a beleza:
“se a beleza fosse a morte?”. O caráter sombrio da heroína resplandece nes-
sa questão. Afinal, Hérodiade é a causa da morte do São João Batista, a pre-
figuração da morte de Jesus. Talvez agora possamos compreender por que
esse poema fez que Mallarmé mergulhasse em uma crise de impotência.
A descoberta do Nada não foi a única descoberta do poeta nessa
época, ela é acompanhada de outra. Em carta a Cazalis, Mallarmé declara:
“eu digo que estou há um mês, nas mais puras geleiras da Estética – após
ter encontrado o Nada, encontrei a Beleza” (MALLARMÉ, 1998, p. 701)
A beleza, que no poema é a própria morte, configura-se, portanto, como
uma consequência direta da descoberta do Nada. Uma vez que o poeta
toma consciência do caráter vão e sublime do homem, da mentira que
define a ficção, ele se engaja, transforma essadescoberta em poesia, em
beleza: “Em uma palavra,o assunto da minha obra é a Beleza, e o assunto
aparente é apenas um pretexto para ir na direção Dela. É, eu creio, a pala-
vra da Poesia” (MALLARMÉ, 1998, p. 687). A Beleza seria, assim, o úl-
timo ponto antes do horror do Nada, uma maneira de nos aproximarmos

14. joalheria-
e vida
estrela e carne
casadas.

128
do vazio que ela mascara, o único caminho na direção do que não se deixa
nomear, do que não se deixa tocar. Assim, a resistência de Hérodiade, que
prefere morrer a ser tocada, é, na verdade, uma defesa contra um vazio
muito maior do que a morte, diante do qual já veria mais beleza alguma,
diante do qual só nos restaria o temor diante do Nada.
Poesia e Beleza são sinônimas para Mallarmé. Vimos aqui algu-
mas das séries de metáforas e questões que a relação entre as flores e
o azur pode encarnar. Das cores, da rosa e do lírio, em contraponto
ao azul ideal, Mallarmé passa pela exploração da aurora, da vida, san-
gue, estupro, matéria, até chegar à morte. Figurações de uma mesma
oposição entre matéria e ideal, corpo e mente, sensação e pensamen-
to. Como Baudelaire, Mallarmé também entendia que a poesia só
poderia começar ou recomeçar quando se confrontasse com os ideias
do ascetismo católico que marcaram o início do século e do roman-
tismo francês. A novidade é que, em Mallarmé, o Nada ganha um
peso que ainda não tinha na poesia baudelariana, e é essa descoberta
que o leva a repensar o Ideal, a Poesia e a Beleza.
A descoberta do Nada é contemporânea da escrita de Hérodiade e
também contemporânea de uma outra descoberta, a da Beleza.Em carta a
Henri Cazalis, de 14 de maio de 1867, o poeta declara: “Eu fiz uma desci-
da bem longa ao Nada para poder falar com certeza. Só há a Beleza; – e ela
só tem uma expressão perfeita, a Poesia” (MALLARMÉ, 1998, p. 715)
Em Notes sur le Langage o poeta distingue dois momentos na aná-
lise da linguagem, um é relacionado ao espírito, o segundo diz respeito
à beleza. Ele destaca a necessidade “de estudar as coisas nelas mesmas”.

Em “A Linguagem” explicar a Linguagem, e seu jogo com o Espíri-


to, demonstrá-lo, sem tirar conclusões absolutas (do Espírito)
Em A Linguagem poética – mostrar apenas a direção da Lingua-
gem, seu devir Beleza – e não do Verbo a exprimir o Belo que será
reservado ao Tratado. (Mallarmé, 1998, p. 505)

Podemos destacar, portanto, que para o poeta a linguagem se define,


por um lado, em relação ao Espírito, e por outro, em relação à Beleza.
Além disso, há uma distinção para Mallarmé entre “a Linguagem” e o

129
que ele chama de “Linguagem Poética”. Se a linguagem é definida a
partir de sua relação com o Espírito, a linguagem Poética se distingue a
partir de sua capacidade de tornar-se Beleza. A linguagem deve ser ex-
plicada com relação ao espírito, ela deve ser a sua própria demonstração.
Já a linguagem poética se divide em, de um lado, linguagem; de outro,
Verbo. Se a linguagem poética tende a tornar-se bela, transfigurar-se em
beleza, o Verbo apenas exprime a beleza. E essa distinção é fundamental
para compreendermos o que Mallarmé entende por Poesia.
Os manuscritos deixados por Mallarmé não nos permitem precisar
como seria esse Tratado que se dedicaria à análise e definição do Verbo
e que seria distinto do que o poeta entende por Linguagem. Podemos
inferir, a partir disso, que existe uma distinção clara para o poeta entre
uma linguagem, que ele nomearia o Verbo, capaz de exprimir a Beleza,
e outra linguagem, poética, com a capacidade de tornar-se Bela, na
qual não existiria mais distância entre a expressão e seus meios, entre
o verbo e o dizer, entre o dito e sua forma. Vimos, no Capítulo 4, que
o Verbo se torna Linguagem através da Ideia e do Tempo, formas de
uma “negação idêntica à essência”, do “devir”. Assim, o Verbo, por ser
capaz de exprimir o Belo, pode se tornar Linguagem, pois na Lingua-
gem poética parece não haver distinção entre linguagem e beleza.
Retomemos o poema. Diante de um espelho, Hérodiade se pergun-
ta: “Sou bela?”. Hérodiade é fruto da fantasia de um poeta que procura
nas palavras a manifestação da própria Beleza, ela é uma ode à própria
poesia, manifestação de um desejo puro, de um desejo de poesia pura e
de pura poesia. Ela é a encarnação do desejo de criação de toda uma
geração de poetas atormentados por um Ideal, um ideal de algo como
uma “comunhão” poética. Nas primeiras gerações românticas, tanto a
comunhão política quanto a amorosa eram escritas em forma de poesia;
a palavra do poeta era expressão do seu desejo amoroso e era a voz que
deveria guiar o povo. Esse ideal de harmonia entre os desejos mais par-
ticulares e mais universais do homem encontrava na poesia o seu lugar.
Na primeira publicação do poema, Mallarmé o intitulou “Scène”,
mas em outro manuscrito, publicado por Garnier Davis, em 1959,
recebe o título “Les Noces d’Hérodiade. Mystère”. Ora, seria mesmo
misterioso imaginar as bodas de Hérodiade, que preferia morrer a

130
se deixar tocar. Esse trecho do poema, inacabado, seria, no entanto,
o indício de que Hérodiade provavelmente não teria permanecido,
digamos, pura. O poema seria assim animado, muito mais do que
pelo simples desejo de poesia pura, pelo desejo de realização de uma
união, do que Mallarmé chama de “noces” ou, em muitos outros po-
emas, como Um lance de dados “fiançailles”. Essa ideia de comunhão
poética, de união, diríamos, se torna clara quando examinamos o tex-
to, também inacabado, “Épouser la notion” (“Esposar a noção”). O
próprio título já indica que quando Mallarmé pensa em união, ele
tem em mente a realização poética de uma ideia. Nesse texto lemos:

il ne lui
faut pas moins
qu’épouser la notion, lui-
faute d’une dame
à sa taille15 (MALLARME, 1998, p.1063)

E em seguida:

en vain
lui faisait-on
entendre
qu’elle
n’existe que si vierge –
Comment ?
disait-il –
Comment?16 (MALLARME, 1998, p. 1063)

15. ele não


precisa de nada menos que
esposar a noção, ele-
falta de uma dama
à sua medida.
16. só existe virgem −
Como?
dizia ele –
Como?

131
Esse homem que deve esposar a noção parece ser o próprio po-
eta, que não encontra uma dama à sua altura. Aqui, a ideia aparece
claramente como o nome do feminino, uma ideia de feminino que
substitui todas as mulheres reais. O poeta busca, em seu poema, a
noção pura, ciente de que não haveria mulher neste mundo capaz de
satisfazer suas expectativas ideias. No entanto, no segundo fragmen-
to, uma contradição aparece, a noção, a ideia, única dama à altura
das pretensões do poeta, só existe quando é virgem, o que o deixa
perplexo. Ele, então, se pergunta como isso seria possível. Como uma
ideia virgem, pura, se mantém enquanto tal, não se deixa corromper
ao passar para o papel, ao ganhar forma, vida, concretude? Como
ela pode não se transfigurar, não se transformar? Isso seria ignorar
a materialidade mesma da palavra? O caráter negro e obscuro das
letras sobre a página branca.
Assim, a virgindade, a pureza, parece ser a razão mesma que
impede qualquer realização de um “ideal”, qualquer concretização da
ideia. Eis o que encontramos em outro fragmento do mesmo poema:
“olhar ele julga que ela/ não existe/ é isso”.
A questão com a qual Mallarmé se debate na escrita de Héro-
diade é a da poesia pura. Hérodiade é uma virgem, símbolo da po-
esia pura, e da mais alta expressão da beleza, pois sua pureza seria
a manifestação mesma de um ideal poético. Mas esse ideal vai se
mostrando frio, estéril, a tal ponto que ele provoca uma crise de im-
potência no poeta. Ela terminaria numa aporia, “e se a beleza fosse
a morte?”, colocando uma contradição para a qual Mallarmé, nesse
momento, não consegue imaginar uma saída.
Por outro lado, Hérodiade é pura demais para este mundo, por
isso ela deve morrer, como um ideal que pelo excesso de luz cega
todos os que tentam dele se aproximar. Hérodiade é a beleza que
se realiza apenas na morte. Na sua morte, mais uma vez é o Nada
que se afirma, que parece ser o único resultado da busca pelo “ideal”.
Assim, esse ideal se mostra como pura idealidade, abstração vazia e
irrealizável. Mesmo Hérodiade, no auge de seus delírios de pureza,
na “Scène”, declara que conhece a nulidade de seu sonho. Hérodiade
é, portanto, pura negação, a expressão mais crua da descoberta do

132
“Nada”, que se exprime, num primeiro momento, como um desejo,
de antemão irrealizável, de realização de uma poesia pura. Desejo de
criação de uma beleza que ofereça redenção diante da ausência de
sentido de todo e qualquer ideial. Em outro momento, Hérodiade
desvela a nulidade de todo ideal de pureza, ela desvela, como o mito,
seu caráter ficcional. Assim, os ideais de pureza que guiaram a poesia
do primeiro romantismo são desmontados para aparecerem como
quimeras, mentiras, ficções, não mais sublimes, mas frias e estéreis.
Dessa maneira é toda a poesia pura que aparece como um ideal vão,
uma construção literária, imaginária, ficcional, enfim, um mito.

133
VI
O TEATRO DA IDEIA OU A LINGUAGEM EM AÇÃO

Para mim, o mais importante na tragédia é o sexto ato.


Wislawa Szymborska

A descoberta mallarmeana do Nada, aliada à crítica da mitologia,


funciona como objetivo do método da ficção, “refletir a linguagem”.
Refletir, aqui, significa que a poesia é o espaço em que a linguagem
desmonta os mitos que a constituem e em que ela contribui para
criar.
Se a linguagem se concretiza através do Verbo, ele mesmo nega-
ção e essência do devir, a linguagem se constitui, podemos concluir,
essencialmente como um devir. O devir é um conceito que busca
substituir o conceito de representação. No “devir”, essência e aparên-
cia são o mesmo, um movimento que se realiza ao longo do tempo,
ou a linguagem que se apresenta tal como ela é, desmontando fic-
ções. O “devir” é um conceito que busca substituir a noção de repre-
sentação, ele corresponde ao movimento através do qual os objetos
do mundo se transformam em palavras dentro de um Livro. Essa
transposição, como veremos nos capítulos seguintes, busca fixar a
ideia mesma do objeto, não se trata simplesmente de nomeá-lo, mas
de sugeri-lo, buscando, através de seus contornos e nuances, se apro-
ximar o máximo possível do que há de inominável na coisa. Por isso,
o devir é sempre um movimento duplo, que busca ao mesmo tempo
apresentar o movimento de dissolução dos objetos que perdem sua
concretude ao tornar-se ideia, através do som e ao também fixar esse
processo, a constelação através da qual o objeto se mostra enquanto
ideia, que deve se apresentar através da escrita, na solidez das letras
negras sobre o papel.
A Beleza é simplesmente o nome que Mallarmé dá para a união
entre o Tempo e a Ideia no devir. Ela é a realização, a ideia de lin-
guagem, sua demonstração, há beleza quando o poema realiza na sua
forma, sua ideia, quando sua aparência reflete a sua essência. A Bele-
za é, portanto, a linguagem que toma forma, que se mostra enquanto
tal, a ideia mesma do Nada que se realiza no poema, que toma forma
poética através da linguagem. A linguagem possui essa capacidade
de tornar-se Bela, esse movimento se realiza em cada poema, quando
o Verbo, através da fala e da escrita, dissolve todo conteúdo dado,
todo sentido preestabelecido, transforma toda representação, na
apresentação da ficção, desvelando o Nada que a constitui. A forma
capaz de dar conta dessa linguagem, Mallarmé foi buscar em outras
artes, como o teatro, o balé e a música.
Entre 1886 e 1887, Mallarmé escreveu alguns textos sobre o te-
atro que, reunidos em Divagações, ganharam o título de “Rabiscado
no teatro”. Nesse fim de século, “a poesia dramática era apenas um
resíduo que sobreviveu, e o teatro quando ele não servia a comédia
burguesa e o eterno vaudeville, se tornava o fim cênico do romance
contemporâneo” (MÉLONIO; MARCHAL; NOIRAY apud TA-
DIE, 2007, p. 432.)
O século XIX viu surgir o drama romântico, mas também o te-
atro burguês, o vaudeville e o melodrama, o teatro de boulevard ou
os grandes espetáculos, com abundância de imagens e decoração
suntuosa, para o divertimento exclusivo dos espectadores e não para
atender a fins “pedagógicos”. O teatro se tornou, nesse período, o
templo da emoção, tribuna, espaço em que a sociedade burguesa se
dava em espetáculo.
A situação era grave, segundo Mallarmé, pois o teatro, que nos
anos 1830 fora palco de disputas poéticas e políticas, espaço por ex-
celência do poeta, se tornara, como muitos espaços antes exclusivos
da arte, mais um espaço comercial. Antigamente os poetas não po-
diam ficar indiferentes ao que acontecia nas salas de teatro, nenhum
poeta poderia ser indiferente “a tal objetividade dos jogos da alma”,

136
porém em seu tempo as coisas são muito distintas. Os próprios po-
etas deixaram o palco, Mallarmé cita o exemplo de Gautier, para
quem o teatro “é uma arte tão grosseira... tão abjeta”, uma ocupação,
uma distração, sem relação nenhuma com a Arte. O teatro se tornou
um fenômeno moderno, urbano, um evento social como tantos ou-
tros, uma ocupação mundana, um divertimento. Ir ao teatro passou
a fazer parte das atividades dos moradores de grandes cidades como
Paris, “Não se passa menos que pessoas advenham, vivam, residam
na cidade: fenômeno que não cobre, aparentemente, mais que uma
intenção de ir algumas vezes ao espetáculo” (MALLARMÉ, 2010,
p. 132). O poeta sepergunta com que objetivo, por que razão essas
pessoas se mobilizam para ir ao teatro.

Que fizeram os Senhores e as Senhoras surgidos a seu modo para


assistir, na ausência de todo funcionamento de majestade e de êxtase,
segundo seu unânime desejo preciso, a uma peça de teatro: era preci-
so divertir-se, não obstante; (MALLARMÉ, 2010, p. 133)

O teatro não passa, portanto, de um divertimento, de onde está


ausente toda “majestade” e “êxtase”, e o público do teatro participa
dessa degradação, pois seu único desejo ao ver uma peça, sua única
demanda é a diversão: “Este véu convencional que, tom, conceito,
etc., erra em toda sala, enganchando nos cristais perspicazes eles
mesmos seu tecido de falsidade e não descobre mais que banal a
cena” (MALLARMÉ, 2010, p. 140). O teatro se torna cada vez
mais convencional, pouco inovador, homogêneo, não se vê em cena a
“magnificência” da verdadeira obra de arte ou a sua “grandeza”, ape-
nas a banalidade é encenada de maneira igualmente banal.
Mallarmé realiza com essas críticas um diagnóstico do teatro con-
temporâneo: “quem quer que se aventure num teatro contemporâneo
e real seja punido com o castigo de todos os comprometimentos; se é
um homem de gosto, por sua incapacidade de aplaudir” (MALLAR-
MÉ, 2003, p. 162). Esse teatro é feito por autores inconscientes de
sua “nulidade” e que, segundo o poeta, se baseiam numa noção es-
pecial do público, eles procuram atender às expectativas de diversão

137
deste, e, assim, criam uma “arte oficial”, “que podemos chamar de
vulgar”. Por essa razão, o poeta declara que não frequenta o teatro ou
frequenta muito pouco.
No entanto, se a situação do teatro deixa a desejar, não se deve
somente à falta de talentos e aos interesses financeiros em jogo. Os
críticos também são responsáveis, pois não fazem seu trabalho e,
assim, encorajam uma produção medíocre. Segundo o poeta, a crítica
cede à atração exercida pelo teatro, que mostra somente uma repre-
sentação para aqueles que não preferem simplesmente ver as coisas,
olhá-las face a face, diretamente. Ao aceitar e difundir a ideia de
teatro que mimetiza e reproduz o mundo exterior, a crítica contri-
bui para sua banalização, pois lhe caberia denunciar a banalidade
propondo verdadeiras reflexões sobre a arte teatral. Se o teatro só se
preocupa em divertir e reproduzir fatos do cotidiano é porque seu
público é burguês e seus críticos, simples jornalistas. Os poetas estão
excluídos da crítica, assim como da vida artística de seu tempo, e
como os poetas estão ausentes do teatro, a poesia, por consequência,
está ausente da cena artística pública. O que falta ao teatro é, portan-
to, poesia, uma operação complementar à representação teatral que
pode criar outro teatro, não mais este que é espaço do banal, mas um
que seja como “uma peça escrita no fólio do céu e apresentada com o
gesto de suas paixões pelo Homem” (MALLARMÉ, 2010, p. 111).
Ora, o teatro é uma arte objetiva, ao contrário da poesia ou do
romance, que apresentam personagens, diálogos ou ideias através da
simples descrição linguística no suporte do papel, o teatro apresenta
seus personagens que falam e agem diante dos olhos do espectador.
O teatro, além de apresentar fatos e ações, é capaz de objetivamente
apresentar cenas íntimas e momentos “subjetivos”. No teatro, tudo
é ação, todo sentimento e páthos do personagem se transforma em
ação, por isso ele oferece ao poeta a ocasião de refletir sobre o modo
de apresentação dos objetos e dos acontecimentos e paixões na po-
esia, ele nos faz pensar sobre a possibilidade ou o caráter da objeti-
vidade lírica, ele torna possível a reflexão sobre a natureza do gesto
poético.

138
Nas suas reflexões Mallarmé aponta alguns traços fundamentais
desse teatro, que é também inspirado nas páginas do céu:

Há (atiça-se), uma arte, a única ou pura, onde enunciar significa pro-


duzir: ela urra suas demonstrações pela prática. No instante em que
dela estrondar o milagre, acrescentar que foi isso e não outra coisa,
mesmo a enfraqueceria: tanto ela não admite luminosa evidência
que a de existir. (MALLARMÉ, 2003, p. 162).

É evidente que no teatro o texto se torna ação, os personagens


estão presentes diante dos olhos dos espectadores e agem, o teatro
realiza esse milagre de fazer um texto literário realmente existir.
Contudo, o modo como uma peça se desenrola aponta para outro
caráter do teatro, que o aproxima, na verdade, da música, pois, por
mais concreta e objetiva que uma apresentação teatral possa ser, que
uma encenação possa parecer, ela não deixa de ser momentânea e
fugaz: “uma obra dramática mostra a sucessão das exterioridades do
ato sem que nenhum momento guarde realidade e que se passe, no
fim das contas, nada” (MALLARMÉ, 2010, p. 113). A objetividade
do teatro ainda é ficcional, seu caráter efêmero se deve ao fato de que
a representação é momentânea, e verdadeiramente “nada acontece”.
A peça que acontece encontra seu lugar no curto momento da
representação, ela mostra, ela aparece, ela é para enfim desaparecer.
Sua existência tem a força luminosa e fugaz de um clarão, de um re-
lâmpago, ela dura o tempo de uma apresentação, ela não possui nada
em comum com a realidade, sua fugacidade, seu caráter efêmero a
mostra como ficção.
Se, de um lado, o teatro é das formas poéticas a mais concreta, se
ele pode objetivamente apresentar não apenas ações, mas impressões
e emoções, de outro, seu modo de existir ainda é o da ficção. Mallar-
mé ressalta que a objetividade teatral é passageira, momentânea, sua
existência é a de uma representação, que se sucede, é verdade, nunca
igual a si mesma. O poeta gostaria de ser capaz de criar uma poesia
que pudesse ser como o teatro, objetiva no sentido de que ela possa

139
ser mais que simples enunciação ou descrição, e, sim, pura ação, um
verdadeiro acontecimento.
Entretanto, o modo de existir do teatro é muito particular e por
isso ele se assemelha às outras artes que Mallarmé analisa, como a
música, por exemplo. Uma peça existe enquanto é representada num
momento determinado. Como um relâmpago, ela é, existe, mas se
desfaz no ar ao apresentar-se. Mallarmé também queria formalizar
esse elemento em sua poesia, certo caráter evanescente de ser de tudo
o que o é no tempo e através do tempo. Assim, há nas análises e re-
flexões de Mallarmé sobre o teatro a busca do poeta por uma forma
ideal, dupla, que fosse ao mesmo tempo concreta, porém momentâ-
nea, e, portanto, evanescente.
Ao tratar do balé, a “forma teatral da poesia por excelência”,
Mallarmé expõe suas ideias sobre a cena teatral, ou como ela de-
veria ser, se a poesia se tornasse teatro, se ela se unisse ao teatro.
Como no teatro, no balé “(...) nada acontece, a não ser a perfeição
dos executantes que valha um instante de exercício anterior do olhar,
nada [...]” (MALLARMÉ, 2010, p. 125). A enunciação do poema é
no teatro ação, e no balé, gesto. O que Mallarmé procura no balé é
uma forma de exposição, uma formalização, uma ideia de forma que
poderia garantir para a poesia a mesma gestualidade do balé, pois
para o poeta, como veremos, a dançarina anuncia a ideia, ela é signo,
alegoria, o balé seria assim o teatro por excelência:

[...] tão somente através do rito, lá, enunciado da Ideia, não parece a
dançarina metade o elemento em causa, metade humanidade apta a
aí se confundir, na flutuação de devaneio? A operação, ou poesia, por
excelência e o teatro. (MALLARMÉ, 2010, p. 112)

A bailarina é a forma de aparecer de uma ideia, sua enunciação.


Segundo o poeta, ela é dupla, humana e elemento em causa (como
ideia). Como no teatro, no balé, o espectador está diante de uma
ação, mas uma ação igualmente evanescente, “flutuação de devaneio”,
ideia pronta para reconquistar o espaço sem limites. O processo é
alegórico: “a representação figurativa dos elementos terrestres pela

140
Dança contém uma experiência relativa a seu grau estético, uma sa-
gração se efetua enquanto prova de nossos tesouros” (MALLAR-
MÉ, 2003, p. 163). A dança, ao contrário do teatro, é abstrata, ela
representa ideias, noções; a dançarina é impessoal, apenas um corpo,
ela não realiza ações, não participa de diálogos, ela é apenas instru-
mento da ideia; como as letras, ela executa, melhor seria dizer, ela é o
gesto mesmo da ideia:

A deduzir o ponto filosófico em que está situada a impessoalida-


de da dançarina, entre sua feminina aparência e um objeto mima-
do, para qual hímen: ela o pica com uma segura ponta, o pousa;
depois desenrola nossa convicção na cifra de piruetas prolongada
até um outro motivo, desde que tudo, na evolução pela qual ela
ilustra o sentido de nossos êxtases e triunfos entoados na orques-
tra, é, como o quer a arte mesma, no teatro f ictício ou momentâneo.
(MALLARMÉ, 2010, p. 113)

O balé e o teatro são atos momentâneos, fictícios. Contudo,


no balé, a dançarina é impessoal, como o poema deve ser, sem
eu lírico ou enunciação pessoal, puro espaço em que a lingua-
gem se mostra, se demonstra. A dançarina é impessoal porque
cede seu corpo aos movimentos da dança, a uma gramática ri-
tualizada de gestos simbólicos, ela é um instrumento utilizado
para contar uma história. Seus traços, seu rosto, sua voz, nada
disso importa, apenas os movimentos que seu corpo, como um
instrumento, como uma linguagem, realiza. As “piruetas” da
bailarina, que transportam o espectador, são como metáforas,
como imagens poéticas que se movem de acordo com o rit-
mo ditado pela orquestra. Movimentos e gestos momentâneos,
pois o balé, como o teatro, existe, à maneira da ficção, por
alguns raros instantes.

A saber, que a dançarina não é uma mulher que dança, por esses
motivos que ela não é uma mulher, mas uma metáfora resumindo
um dos aspectos elementares de nossa forma, gládio, taça, flor,

141
etc., e que ela não dança, sugerindo, pelo prodígio de encurtamen-
tos ou de elãs, com uma escritura corporal o que se precisaria
de parágrafos em prosa dialogada tanto quanto descritiva, para
exprimir, na redação: poema liberto de todo aparelho do escriba.
(MALLARMÉ, 2010, p. 121)

A dançarina é metáfora da própria poesia que Mallarmé bus-


cava escrever. Isso porque, da mesma maneira que o teatro é
ação, através do corpo da bailarina “a Poesia, ou natureza anima-
da sai do texto”. Trata-se de fazer emergir a partir da dança uma
arte da sugestão, uma poesia que se distingue da descrição, da
prosa jornalística, que seja algo além da pura representação dos
fatos. A dançarina não é como a atriz que empresta seu corpo e,
sobretudo, sua voz a uma personagem, ela é um signo.A dança
se distingue do teatro, pois a dançarina aparece como tal, ideia
em ação, gesto puro.
A dançarina não é uma mulher que dança como uma atriz re-
presenta, assim como a dança não é, não representa, não se refere
a ações ou sentimentos definidos. O que interessa a Mallarmé na
dança é o movimento puro: “A dança são asas, trata-se de pássaros
e das partidas ao para - sempre, e dos retornos vibrantes como
flecha” (MALLARMÉ, 2010, p. 122).
As reflexões do poeta terminam com esta afirmação:

Agrada-me reatar, um ao outro, esses estudos, por uma ano-


tação; quando a ela convida um sagaz confrade que consente
em olhar a execução plástica, sobre a cena, da poesia – outros
evitam trair, ao público ou a si, que jamais, com a metamorfose
adequada de imagens, não disponham mais que um Balé, re-
presentável; que elãs e tão espaçosos, que à visão multiplica sua
estrofe. (MALLARMÉ, 2010, p. 129)

A descrição e as definições que Mallarmé confere ao balé são


muito próximas do que o poeta realizará em Um lance de dados,

142
um teatro da ideia, o pensamento em movimento, a linguagem
que, como uma dançarina, impessoal, simples signo, gesto puro da
ideia no espaço: “o corpo do balé, total não figurará ao redor da
estrela (pode-se melhor nomear!) a dança ideal das constelações”
(MALLARMÉ, 2010, p. 120).Toda a plasticidade do poema, de-
senvolvida através das imagens no espaço, não é outra coisa senão
um balé, uma coreografia de ideias, que se faz com as letras no
espaço da página.
Como no teatro toda interioridade subjetiva aparece objeti-
vada através de gestos, diálogos e ações. Ao buscar no teatro um
modelo de arte, Mallarmé estaria à procura de uma arte objeti-
va, concreta. Ele estaria à procura de uma forma capaz de fazer
com que a poesia escapasse da universal reportagem, ou seja, da
representação. Trata-se de pensar como o teatro pode fornecer à
poesia um modelo de objetividade, pode tornar a poesia capaz
de igualmente apresentar diante dos olhos de seus leitores, sem
recurso à cena evidentemente, ações e gestos de maneira direta.
Assim, Mallarmé procuraria, ao se voltar para o teatro, uma per-
formatividade que a linguagem em si mesma deveria ser capaz de
assegurar. No entanto, vimos que as reflexões de Mallarmé vão
muito além do caráter objetivo da cena teatral, pois o que está
em questão para o poeta é pensar qual o modo de ação próprio da
obra de arte, é repensar a noção mesma de objetividade. Por isso,
Mallarmé descontrói a objetividade teatral e mostra que, em to-
das as artes, mas principalmente no teatro, porque essa arte pare-
ce ser a mais objetiva, toda objetividade, toda encenação, é sempre
uma ilusão. Uma vez terminado o espetáculo, os mortos retornam
para receber os aplausos do público, os inimigos se colocam lado
a lado, promessas, gestos, ações, tudo desaparece e finalmente a
cortina se fecha.
Por isso, Mallarmé parece preferir o balé. Nele a objetividade do
teatro é reduzida, não se trata mais da encenação e mimese de ações
como se elas fossem reais. A imitação já não interessa no balé, que tem
sua gramática própria, tradicional ou não, onde tudo é, a princípio,
puro movimento. A bailarina não é uma mulher, ela aparece como

143
simples veículo, como uma pluma, ela é o meio através do qual uma
história é contada, ela empresta seu corpo, ela não tem voz, porque
no balé as palavras não são necessárias. A ação é reduzida ao movi-
mento, ao puro gesto da Ideia. Paira sob o balé certa imprecisão e
vagueza que parecem agradar particularmente a Mallarmé. Nele a
linguagem não é mais referencial ou representativa, mas puramente
gestual.

Afinal de contas, o que nos conta a poesia?

Além do teatro e do balé, Mallarmé escreveu sobre espetáculos


de pantomima. Segundo o poeta, a mímica e a dança são hostis a
toda aproximação, pois cada uma dessas artes tem sua especificação.
A dançarina que se exprime pelos seus passos e gestos não conhece
outra eloquência, fora dessa gramática fechada e determinada, en-
quanto a mímica pode fazer de qualquer gesto seu instrumento, seu
objeto. Na verdade, é na mímica que a questão do gesto, da gestuali-
dade é realmente colocada.
No livreto que Mallarmé escreveu para o espetáculo de pantomi-
ma de Paul Marguerite, texto conhecido como “Mímica”, a dança, a
mímica e o teatro se aproximam como ficções, modos de existência
efêmeros:

A cena não ilustra mais que a ideia, não uma ação efetiva, num hí-
men (de onde procede o Sonho), vicioso mas sagrado, entre o desejo
e a realização, a perpetração e sua lembrança: aqui se adiantando, lá
rememorando, no futuro, no passado, sob uma falsa aparência de pre-
sente. Tal opera o Mímico, cujo jogo se limita a uma alusão perpétua
sem quebrar o espelho: ele instala, assim um meio, puro de ficção.
(MALLARMÉ, 2010, p. 130)

Falando sobre a mímica, como nos textos sobre teatro e dança,


Mallarmé distingue nessas artes alguns elementos próprios à poesia.
Ele define, na verdade, sua própria poesia, como ele gostaria que ela
fosse, como ele a fará.

144
O modo de ser da mímica consiste num jogo, numa “alusão per-
pétua sem quebrar o espelho”, uma ficção que se sabe tal e que não
pretende despertar emoções ou ilusões no espectador. Eça não quer
fazer crer. A mímica se instaura num “meio puro, de ficção” que apa-
rece como tal ao espectador. Não há ilusão que se sustente, nem prin-
cípio de verossimilhança que se mantenha diante de uma arte que se
coloca como “imitação”. A mímica pode apenas fazer alusão ao real,
e porque ela não pode ser mais do que isso, ela é uma ficção que se
sabe tal e que se constitui a partir dessa consciência de sua limitação
representativa.
Derrida, em La dissémination, procura responder à questão “O
que é a literatura?”, com base em um comentário desse texto, lido
a partir das ideias platônicas sobre a mimese. Segundo Derrida,
há duas definições para mimese: a primeira compreende a mimese
como a apresentação da coisa mesma, a natureza que se produz e que
aparece tal qual ela é, na presença de sua imagem, no seu aspecto
visível; o segundo conceito é aquele que podemos traduzir por imi-
tação, ou seja, é o ato de reproduzir a coisa. Nesse tipo de mimese, o
que está em jogo é a adequação entre o imitante e o imitado, pois a
boa imitação é fiel, verossímil, verdadeira.
Em toda história de sua interpretação, a mimese, como afirma
Derrida, se regula sempre com relação ao processo de verdade. A
história da essência da verdade não é nada além da diferença, da dis-
tância e duplicidade desses dois processos. Derrida toma Heidegger
como referência e define a verdade como ato de desvelamento do
que é, do ser que se esconde atrás do ente, da aparência. A verdade
é, portanto, “acordo, relação de semelhança ou de igualdade entre
uma representação e uma coisa”. O processo de verdade que consti-
tui a mimese é baseado na “presença do presente”. E, é em nome da
verdade, sua única referência, a referência, que ela é julgada, proscrita
ou prescrita segundo uma alternância regulada (DERRIDA, 1972,
p. 237-238).
O comentário do texto mallarmeano se baseia na tríade: repre-
sentação, mimese e verdade. Derrida se aproxima da mimese pla-
tônica, aquela que não é simples imitação, mas apresentação da coisa

145
mesma, a “mímica” como Mallarmé a entende. Segundo o autor, a
representação é uma relação que se inscreve entre imitante e imitado
e sua única referência é a verdade, a adequação entre os termos em
questão. Para Derrida, a ideia mallarmeana de mímica consiste em
afirmar que “a cena não ilustra nada, nenhuma ação efetiva”. Ou
seja, na ideia de mímica, de Mallarmé, “não há imitação. A mímica
não imita nada”. “E em primeiro lugar, ela não imita”. Mais adiante
ele afirma: “a mímica inaugura, inicia uma página em branco”. Ou
seja, não há nada anterior ao gesto, nada anterior a mímica, ela não
representa nada. A página branca apaga a referência a um sistema
de verdade, uma operação que só pode ter grandes consequências
literárias e filosóficas. Ao apagar o sistema de verdade, sob o qual se
baseia toda representação, Derrida procura realizar uma crítica ao
logos, representação mental, bem como uma crítica ao sujeito car-
tesiano, entendido como uma representação subjetiva. Na verdade,
essa operação se funda excluindo o referente do signo, mas deixando
intacto o sistema representativo.
Vejamos como o apagamento dessa referência se faz pouco a
pouco ao longo do texto de Derrida. O autor se propõe examinar a
operação que o texto “Mímica” realiza, ou o que Mallarmé “faz”nesse
texto. Em primeiro lugar, segundo Derrida,

Mallarmé (aquele que preenche a função de “autor”) escreve sobre


uma página branca a partir de um texto que ele lê e no qual está
escrito que é preciso escrever sobre uma página branca. Poderíamos,
no entanto, fazer observar que se o referente visado por Mallarmé
não é um espetáculo efetivamente percebido, é ao menos um objeto
real, chamado libreto. (DERRIDA, 1972, p. 244)

Em seguida, Derrida descreve o catálogo, suas diversas versões,


autores e prefácios. Ele descreve também o conteúdo do espetáculo
de Paul Marguerite, segundo a primeira versão do catálogo, escrita
por Beissier. E ele afirma:

146
A estrutura textual da “coisa” (como nomeá-la?) se anuncia as-
sim, por enquanto: um drama-mímico “acontece”, escritura ges-
tual sem libreto, um prefácio é projetado e depois escrito após
o “acontecimento” (...) refletindo o drama-mímico ao invés de
recomendá-lo. Esse prefácio é substituído quatro anos mais tarde
por uma nota do próprio “autor”, espécie de texto forado livro,
flutuante. (DERRIDA, 1972, p. 246)

Diante de todas essas referências, podemos nos perguntar se


essa “precisão” é necessária para a leitura do texto mallarmeano,
que não seria outra coisa senão uma reflexão sobre a mimese,
que não precisa de uma referência real, de um verdadeiro es-
petáculo para existir. Diante dessas considerações, Derrida se
pergunta: “O que realmente Mallarmé tinha diante dos olhos,
um espetáculo de mímica, ou apenas um livreto, um catálogo do
espetáculo?”.

Nós ainda não abrimos esse libreto “em si mesmo”. A maquinação


textualse complica, em primeiro lugar, devido ao fato de que esse
libreto, texto verbal alinhando às palavras e às frases, descreve uma
sequência puramente gestual e silenciosa, a inauguração de uma es-
critura do corpo. (DERRIDA, 1972, p. 246)

Assim a referência “real” se torna uma “maquinação textual”, um


processo que Derrida realiza ao misturar as referências do texto de
Mallarmé e ao tentar estabelecer indubitavelmente uma fonte ori-
ginária do texto. Dessa maneira, o referente é excluído do processo
de elaboração literária e os jogos de relações entre o texto e seu ex-
terior são reduzidos a uma “maquinaria verbal” que se chama escri-
tura. Conceito que não substitui ou torna desnecessário o conceito
de mimese, pois se trata aqui de definir uma mimese sem referência,
sem modelo, pois a escritura remete apenas a si mesma, ou a outra
escritura. (Como o próprio autor nos mostra através de diversas ci-
tações, diversos textos aos quais “Mímica” faz referência, de Gautier
à commedia dell’arte.)

147
O autor prossegue afirmando:

Estamos diante de uma mímica que não imita nada, diante, se


podemos dizer, de um duplo que não duplica nada, que nada
previne, nada que não seja, em todo caso, um duplo. Nenhuma
referência simples. E por isso que a operação da mímica faz alu-
são, mas alusão a nada, alusão sem quebrar o gelo, sem um além
do espelho [...] Neste spéculum sem realidade, neste espelho de
espelho, há uma diferença, uma díade, porque há mímica e fan-
tasma. Mas trata-se de uma diferença sem referência, ou melhor
dizendo de uma referência sem referente, sem unidade primeira
ou última. (DERRIDA, 1972, p. 254)

Por essa razão, porque há uma mímica e um fantasma, há repre-


sentação, e a literatura continua prisioneira dessa duplicação, a não
ser que, pensemos como Derrida, que afirma que a literatura não tem
modelo, é referente, ela se escreve e reescreve a si mesma, dissemi-
nando o sentido.
O materialismo mallarmeano (termo utilizado por Jean Hyppoli-
te como uma interpretação alternativa às interpretações tradicionais
de Mallarmé, que o definem como um idealista, no sentido platônico
ou hegeliano do termo) é entendido como uma mimese, “um simu-
lacro de platonismo ou de hegelianismo que se separa daquilo que
simula apenas por um véu, pouco perceptível” (DERRIDA, 1972, p.
246). A ideia mallarmeana de teatro não separa, portanto, o simu-
lacro do simulado, ou de sua simulação. A expressão e o exprimido
são um só.
Até aqui podemos concordar com Derrida, quando se trata de
afirmar uma perfeita união, uma indistinção entre o dito e a forma
como é dito, entre o expresso e sua expressão. Mas devemos desconfiar
do termo mimese, de seu emprego para construir a argumentação.
Pois não seria um retrocesso ou no mínimo contraditório utilizar
um conceito representativo para criticar a representação? Derrida
conclui, por fim, que Mallarmé “imita a imitação”, que o poeta realiza
“a cópia da cópia”, “simulacro que simula o simulacro platônico”, que

148
perdeu a referência, o saber absoluto, “não sabemos jamais a que a
alusão faz alusão, senão a ela mesma fazendo alusão” (DERRIDA,
1972, p. 246).
Derrida submete toda a literatura e toda a filosofia a uma mesma
e única ideia de representação que garante o sistema de verdade a
partir da adequação do simulado ao que ele simula, da adequação a
um modelo, a uma referência. Assim, ao afirmar o primado da disse-
minação do sentido sob a mimese, ou uma mimese capaz de imitar
a si mesma, o autor pode excluir todo pensamento, toda referência e
relação entre a ideia e o mundo, todo o sistema de verdade, manten-
do, no entanto, intacto o princípio representativo, a ideia de mimese
e sua funcionalidade. Ora, os textos de Mallarmé nos mostram que
é justamente o princípio representativo, a ideia de representação que
deve ser criticada. Fazer a mimese do nada é excluir todo o mundo
exterior da poesia, negar o mundo afirmando uma linguagem que só
fala de si mesma, que tem em si sua única referência. Se fosse assim,
a literatura seria de fato exatamente como o mito, a base de uma
religião que requer que o leitor creia.
Mallarmé afirma que o teatro não ilustra nada, não represen-
ta nada, mas ele existe e é “a única arte em que enunciar significa
produzir”, uma arte que “não admite nenhuma evidência luminosa
senão a de existir”. Há entre essas ideias uma falsa contradição que
Derrida e seu signo dualista não são capazes de ultrapassar. O autor
afirma que “A operação que não pertence mais ao sistema de verdade
não manifesta, não produz, não desvela presença alguma”. (DER-
RIDA, 1972, p. 257). Isso porque sua ideia de mimese se limita à
oposição entre representação e a apresentação do ser, ou seja, ela se
sustenta em dois conceitos possíveis de verdade, a verdade desvela-
da que subjaz, escondida, por trás de todo sistema representativo, e
a verdade da representação, entendida como adequação. Mallarmé
queria encontrar outra via, uma poesia que não fosse a apresentação
da coisa mesma, ou sua representação, que fosse capaz de nos levar
além do que é, do que nos aparece como dado, uma poesia capaz de
sugerir, imaginar, criar.

149
No momento em que a ideia de representação é colocada em
questão, justamente o conceito ou a forma de presença clama por
uma revisão. Eis o interesse da poesia mallarmeana, pois trata-se de
pensar uma forma de presença, objetiva, como a que encontramos no
palco teatral, mas que, no entanto, seja também uma existência nos
moldes da ficção, breve, fugaz, como um relâmpago, como a mímica
de Pierrot, que se configura “sob uma falsa aparência de presente”.
Esse talvez seja não apenas o modo de ser da ficção, mas de tudo o
que é verdadeiro. Verdade além do que é e de sua representação.
Se o teatro é a única arte em que enunciar é produzir, e a única
que pode se gabar de uma luminosa existência, por outro lado, ainda
é uma ficção, toda encenação é limitada e restrita, mesmo que seja
no tempo. Por isso, ela desvanece no ar, como a música. Poderíamos
dizer o mesmo do balé, mas, nesse caso, não estamos mais diante
de atores, que emprestam seu corpo, sua voz, seus gestos a persona-
gens, mas de metáforas. Se a dançarina é uma metáfora, é porque,
como uma estrela, em torno dela se move uma constelação. Eis o que
interessa a Mallarmé no balé. Sua gestualidade pura, uma arte que
não é outra coisa senão movimento. Assim, a linguagem que o poeta
procura construir se coloca entre o movimento de concretização e
abstração, entre o alçar voo da ideia que emana de cada palavra, e seu
gesto, fixo no papel. Assim, a mímica “não ilustra nada a não ser a
ideia”; como o balé, ela é puro gesto, movimento. A ideia, por trás de
cada ato ficcional, por trás de todo movimento poético, não é outra
coisa senão a desmontagem da representação, capaz de nos colocar
diante de outro modo de presença. Eis a maneira como Mallarmé
entende o ato poético, a escrita.

150
VII
A FICÇÃO

But the fiction is not myth, for it knows and names itself fiction.
It is not a demystification, it is demystified from the start.
Paul de Man

Os manuscritos de Notes sur le langage são o esboço de projeto de


tese que Mallarmé pretendia apresentar na Sorbonne, como pode-
mos constatar nas cartas desse período que evidenciam o desejo do
poeta de escrever uma tese cujo tema seria a linguagem: “eu deveria
me preparar para o exame de licença em letras e pensar na possibi-
lidade de uma tese de doutorado” (MALLARMÉ, 1998, p. 751). O
projeto dessa tese consistia em:

Para não fazer muito esforço, eu escolhi assuntos de linguística, es-


perando, de resto, que este esforço especial não seja sem influência
sobre a totalidade do aparelho da linguagem que minha doença ner-
vosa parece especialmente detestar. (MALLARMÉ, 1998, p. 751)

Um assunto escolhido, não por acaso, por um poeta, não poderia


ser outro senão a linguagem, razão da “doença nervosa” que o poeta
enfrentou no momento da crise de Tournon. Esse projeto de tese
tem como objetivo, assim como o conto Igitur, seu contemporâneo,
esclarecer o aparelho da linguagem, acalmar os nervos do poeta e
curar sua impotência criativa.
Na mesma carta, o poeta continua expondo a relação entre os es-
tudos linguísticos e sua experiência de escrita, “como anteriormente
eu cavava meus assuntos de poemas, irrupção do Sonho no Estu-
do, que pilha tudo, vai direto às consequências gulosas e as devora”
(MALLARMÉ, 1998, p. 751). O estudo linguístico, como a criação
poética, é o ato de “cavar” a linguagem, “cavar” o verso, em profun-
didade, e nesse movimento de trabalho poético, de escavação da lin-
guagem, Mallarmé alcança sua verdadeira natureza e se vê diante
da necessidade de compreender seu aparelho, seus mecanismos de
funcionamento. Mallarmé não opõe o sonho ao estudo, a poesia
à teoria, pois o sonho invade o estudo, o devora, assim, o estudo
tem sua base no sonho, se alimenta dele. Estamos diante de uma
questão que está na base de toda construção poética, a relação entre
a inspiração, o sonho, o desejo que move a criação e o estudo do
material, o trabalho de criação. Para Mallarmé, esses dois momentos
estão imbricados a tal ponto, que se confundem. Assim, podemos
concluir que toda a elaboração poética mallarmeana, toda sua criação,
parte de um estudo sobre a linguagem.
As cartas desse período mostram o interesse de Mallarmé pelas
ciências. Ele pede ao amigo Henri Cazalis indicações de leitura nos
assuntos mais variados, como química, física, fisiologia e anatomia,
obras “elementares”, ele especifica, pois, para o poeta,“um livro de
ciência jamais será suficientemente simples”, “Ora, serão necessários
para meus estudos linguísticos algumas noções suficientemente sim-
ples para se manterem como tais em minha memória” (MALLAR-
MÉ, 2003, 755). Podemos afirmar, a partir dessas declarações, que
as pesquisas do poeta sobre a ciência de seu tempo não foram muito
profundas e pouco influenciaram seu projeto linguístico. No entanto,
como veremos mais adiante, Mallarmé tinha uma grande preocupa-
ção com a relação entre a ciência e um de seus ramos, a ciência da
linguagem.
As Notas sobre a linguagem começam anunciando o que deveria
ser seu objetivo principal, anunciar os resultados da pesquisa mallar-
meana sobre a ideia de linguagem, além de tratar das tentativas con-
temporâneas, bem como apresentar as consequências de sua tese no
que diz respeito à compreensão do Espírito, da Ficção, da Ciência e
finalmente para os estudos do Homem em geral. Projeto ambicio-

152
so, portanto, mas que não surpreende vindo do poeta que planejava
também escrever o Livro. Assim, vemos que a tese mallarmeana da
linguagem buscava a partir da ficção e tendo-a como método reno-
var a noção de linguagem e provocar uma revisão na ideia de ciência,
de espírito, de homem.

A linguagem e a ciência

Em suas Notas sobre a linguagem Mallarmé lamenta o fato de que


o estudo da linguagem recebe um nome, um campo à parte na ci-
ência, a chamada ciência da linguagem, pois para ele a linguagem
participa de maneira ainda pungente na constituição do que chama-
mos de Homem e por conseguinte de toda ciência que se consagra
ao seu estudo.

Essa junção de termos na qual tardamos [ciência da linguagem], não


carrega a impressão, pelo vocábulo de ciência, de encaminhamento
ao conhecimento das pesquisas sobre um objeto, destinadas a culmi-
nar no estado de Noção e a formar um dos termos no conjunto das
noções humanas, cuja consciência somente é reconhecida para nossa
época pelo Espírito; (MALLARMÉ, 2003, p. 506)

Temos aqui uma crítica da ciência e das ciências humanas que


não reconhece a centralidade da linguagem na sua constituição, que
não a reconhece como um objeto fundamental e constitutivo de seu
campo, de seu modo mesmo de operar. Apenas a consciência é re-
conhecida pela época como fator fundamental e condição de possi-
bilidade do saber científico, enquanto a linguagem é ignorada e não
chega a alcançar o estatuto de noção. Isso se deve ao isolamento da
linguagem, objeto de estudo de uma ciência própria, a ciência da
linguagem ou linguística.
Em seguida, o poeta enfatiza que a Linguagem, compreendida
isoladamente, é um simples meio de expressão, pois podemos falar
da linguagem das coisas, da linguagem do coração, por exemplo.

153
[…]e, por este de Linguagem, seu objeto, empregado sozinho, a
impressão, a mais geral, de um meio de expressão, eu não diria do
homem absolutamente, pois, modificado por um termo adjacente,
como a linguagem do coração, a dos olhos, linguagens mudas, con-
vêm a certas porções isoladas de sua alma, e nós assimilamos essas
variações à linguagem das coisas, mas aplicando-as momentanea-
mente aos dados que pode almejar uma ciência, que são noções, a
expressão geral de nosso espírito. (MALLARMÉ, 2003, p. 507)

A linguagem, de um lado, não é o meio por excelência através do


qual o homem pode se exprimir absolutamente. Entre o homem e a
linguagem Mallarmé não encontra uma relação direta. No entanto,
se podemos falar “linguagem do coração”, ou dos olhos, por exem-
plo, é porque entende-se que a linguagem como meio de expressão
significa exteriorização de determinado funcionamento ou modo de
ser. Por outro lado, a linguagem pode se elevar ao estatuto de ciência,
alcançar noções, de tal maneira que ela pode ser concebida como
“expressão geral de nosso espírito”. Por isso, Mallarmé critica o fato
de que a ciência da linguagem seria apenas um ramo específico das
ciências, enquanto ela deveria ser o nome mesmo da ciência, da ci-
ência em geral. O poeta ressalta que “todas as outras ciências encon-
tram sua denominação, que as classifica, na tecnologia intelectual,
que equivale a sua classificação” (MALLARMÉ, 2003, p. 507), en-
quanto a linguagem permanece inclassificável. Ou seja, a ciência da
linguagem constitui um campo à parte, ao lado da ciência, enquanto,
na realidade, os outros ramos da ciência estão no interior dela.
Assim, a própria ciência, como construção de noções e descrição
de operações, é entendida, por Mallarmé, como conhecimento da
linguagem dos objetos da ciência. Se nós podemos falar de uma lin-
guagem do coração, das coisas, dos olhos etc., é porque a linguagem
pressupõe um conceito, pressupõe uma ideia. Linguagem e conceito
podem ser compreendidos como equivalentes, na medida em que
quem diz “linguagem de” diz “ideia de”, assim, toda linguagem nada
mais é do que uma noção, uma racionalidade em operação. Alcançar
a noção de alguma coisa nada mais é do que conhecer sua linguagem,

154
expor seu funcionamento é, portanto, descrevê-la enquanto método,
no sentido mais amplo do termo.
A ciência deve alcançar, culminar numa noção, no conhecimento
sobre a linguagem, mas, como vimos, a linguagem pode ser entendi-
da como conceito da própria ciência. Assim, o objetivo de Mallarmé
vai muito além de conhecer a linguagem, de alcançar sua noção clara
e verdadeira através de uma demonstração, do desmantelamento da
ficção. Não se trata simplesmente de afirmar a importância do
conhecimento da Linguagem para a constituição de uma ciên-
cia, nem de demonstrar a cientificidade de toda linguagem, nem
de afirmar que a linguagem é um meio através do qual todas as
ciências se constroem. A linguagem para Mallarmé é ciência em
si, é a própria ciência, pois conhecer a linguagem das coisas é
conhecer as coisas tal qual elas são “cientificamente”, ou seja, é
conhecer sua ideia e seu modo de funcionamento. Podemos con-
cluir que o grande objetivo de Mallarmé é fundar toda a ciên-
cia a partir de uma ciência da linguagem, invertendo as posições
atuais, transformando toda ciência numa ramificação da ciência
da linguagem. “A ciência, tendo encontrado na linguagem uma
confirmação dela mesma, deve agora encontrar uma conf irmação
da Linguagem” (MALLARMÉ, 2003, p. 507).
A ciência deve compreender como a linguagem determina, de
maneira visceral, o conhecimento. Assim, tendo consciência de si
mesma, encontrando sua confirmação na linguagem, a ciência apare-
ce como consciente de seu funcionamento. Isso quer dizer que a ci-
ência compreende o funcionamento de seu meio de expressão como
mais que um simples meio, mas um modo. Na verdade, isso significa
que a ciência encontra na linguagem seu método, reconhece nela
seu modo operatório. Na linguagem, a ciência encontra sua própria
definição.
Agora podemos compreenderpor que o poeta critica o termo “ci-
ência da linguagem”, uma vez que para ele há uma identidade entre
linguagem e ciência, visto que toda ciência pode se definir através
do conhecimento da Linguagem, como, portanto, uma ciência da
linguagem. No trecho seguinte o poeta anuncia que:

155
Essa ideia de ciência aplicada à Linguagem, agora que a Linguagem
teve consciência desta e de seus meios, continua fecunda, no que ela
nos fornece a priori os seguintes dados que a ciência deve se aplicar
a desenvolver. (MALLARMÉ, 2003, p. 507)

Assim, uma vez que a ciência se mostra como um conhecimento


sobre a linguagem, ela pode tirar as consequências desse fato. A pri-
meira delas é a seguinte:

Voltada sobre si mesma e vendo que, por um lado, ela é um ato


momentâneo do espírito e respondendo à necessidade de noção, e
que, por outro lado, os termos que servem a apreciação de manifes-
tações do Verbo e que são tirados de seu repertório se equivalem,
e se equilibram, portanto, nela igualmente, ela conclui que tudo e
todos são atos momentâneos situados entre os objetos, a matéria e
o espírito, e pode audaciosamente elucidar esse problema, agora que
ela reconhece o valor de seu meio de expressão. (MALLARMÉ,
2003, p. 507)

Ao se voltar sobre si mesma, de um lado, a ciência se autoexami-


na e constata que ela responde a uma necessidade de noção interna
ao espírito humano; de outro, só os termos da ciência podem servir
para uma verdadeira apreciação do Verbo. Ou seja, a linguagem, para
se definir enquanto ciência, precisa dos termos dela, ao passo que
a ciência não parece ser nada além de uma necessidade interior à
própria linguagem. A ciência só pode elucidar o fato de que “tudo e
todos são atos momentâneos”, pois ela possui o valor de seu meio de
expressão, ou seja, o valor da linguagem. A ciência conclui, portanto,
a partir do exame de sua relação com a linguagem em que “tudo e
todos são atos momentâneos” e essa ideia só pode de fato ter valor
a partir do momento em que a ciência se reconhece como mais um
ato momentâneo entre tantos outros, um momento entre a matéria,
o espírito e os objetos.
A ciência toma consciência de que ela equivale ao Verbo, à lin-
guagem, portanto, não passa de um ato momentâneo, eis a sua cienti-

156
ficidade. Consciente de si como um entre outros atos momentâneos,
a ciência pode elucidar as relações entre os objetos, entre a matéria e
o espírito, desvelando-se como uma dissolução, uma transposição em
direção à ideia. O poeta prossegue afirmando que é no Homem, ou
na humanidade, que tudo isso se equivale: matéria, objetos, espírito,
ciência e linguagem. O Homem deve ser estudado, igualmente, na
sua relação com o espírito e a matéria.
Em seguida, o poeta afirma que essa relação dupla se repete, mas
em relação ao espírito. “O que é o espírito em relação a sua dupla
expressão da matéria e da humanidade, e como nosso mundo pode
se relacionar com o Absoluto?” Os meios para que essa relação se
estabeleça entre homem, matéria e espírito deveriam ser dados pelos
mesmos meios que “nos fizeram encontrar a ideia da linguagem e sua
ideia na linguagem” (MALLARMÉ, 2003, p. 507).
A ciência que agora tem o valor de seu meio de expressão, ou seja,
uma vez que a ciência é definida como uma linguagem, ela é capaz de
elucidar a verdadeira natureza do homem, do espírito, de si mesma. A
linguagem e a ciência estabelecem a mesma relação que a aparência e
a essência, ou a apresentação e a ideia. A linguagem, como vimos, é a
negatividade como ideia, ela se apresenta como uma negação, como
um devir, uma forma de presença que é sua própria desaparição. E é a
partir desses termos que podemos pensar o homem e o espírito. Se a
ciência é um ato momentâneo em busca da noção, se é também uma
definição de linguagem, então o homem e o espírito são também
atos momentâneos. A Linguagem, o homem e o espírito são um
desaparecimento vibratório, eles são devir. O homem se define a
partir dessas relações entre matéria e ideal, se constrói e se desfaz
entre os dois, ou seja, ele é uma eterna reflexão que sempre se cons-
trói, que se define no tempo, ao longo de seu devir outro. Homem e
espírito são e se apresentam essencialmente como devir, linguagem.
Assim, não é apenas a poesia que se constitui a partir de seu pró-
prio material, da linguagem e de sua configuração determinada e
limitada, de seu modo de ser e de suas possibilidades, mas tudo o
que diz respeito ao homem, à matéria, aos objetos que o circundam.

157
Por essa razão, tanto o Homem quanto a ciência se definem como-
linguagens:

[…] a natureza que, misturada com a modificação do tempo, seja


nossa humanidade, menos a porção espiritual ocupada com a re-
flexão. O que significa dizer que nós podemos perfeitamente apli-
car a parte essencialmente humana de nós mesmos neste estudo.
(MALLARMÉ, 2003, p. 507)

Assim, o estudo da linguagem traz consequências para o estudo


do homem, do espírito e da ciência. A linguagem mostra à ciência
que ela é um ato momentâneo, que ela deve se apresentar como tal.
A ciência conclui, assim, que “todos são atos momentâneos”, prin-
cipalmente o homem e o espírito. A ciência mallarmeana tem, por
isso, como mérito maior demonstrar que o homem, assim como
toda a ciência que ele constrói, tem como base a própria linguagem
e as possibilidades e limitações que ela traz em si mesma. Nada do
que é humano pode, portanto, estar fora da linguagem, tudo o que
é humano de alguma maneira está atado, determinado, pela própria
linguagem.

Ficção e representação

Foi demonstrado pela letra – equivalente da ficção, e a inanidade


da adaptação ao Absoluto da Ficção de um objeto que faria uma
convenção absoluta. (MALLARMÉ, 2003, p. 503)

A “letra” é a forma concreta que a linguagem toma, enquan-


to equivalente da “Ficção”. Linguagem e Literatura, são para
Mallarmé o mesmo, atos momentâneos, como a matéria, inclu-
sive. Pois bem, a linguagem fornece a prova contra toda ten-
tativa de absolutização da ficção, demonstrando sua nulidade.
“Absolutizar a ficção” seria tomá-la como verdadeira e absoluta,
ou seja, transformar a ficção em mito. A letra é um objeto de
convenção, como a linguagem. Como é uma convenção, ela é ar-

158
bitrária. Ou seja, tanto a relação entre a palavra e a coisa, quanto
a relação entre significante e significado são arbitrárias. Mallar-
mé nos coloca aqui diante da irremediável distância que separa
as palavras e as coisas. Assim, se a linguagem é uma convenção,
a literatura não pode, por meio de uma linguagem arbitrária,
imotivada, refletir, copiar ou imitar o real. Isso também indica
que o objetivo da poesia de Mallarmé não é, sequer, criar uma
linguagem poética que permita com que nos aproximemos do
real. Mas, então, o que faz a literatura?
O caráter imotivado do signo linguístico fornece a prova
dessa nulidade, da impossibilidade de toda “adaptação ao Ab-
soluto” da ficção, que é limitada pela linguagem, pela sua arbi-
trariedade. Assim, como a relação primordial entre a palavra e
a natureza configurada pelo mito se perdeu, a linguagem tam-
bém se constitui a partir de uma relação que não é motivada,
entre significante e significado. Toda tentativa de restaurar
essa ligação perdida entre linguagem e natureza, entre som e
significado, é igualmente vã, pois toda ficção que se constitui
a partir dessa tentativa é duplamente mentirosa, cria ilusões a
partir de ilusões. Por isso, a ficção não deve ser compreendida
como uma tentativa de restaurar essa relação originária, míti-
ca, ela obedece outros princípios. Desde já podemos observar
que a teoria mallarmeana da ficção é na verdade uma teoria
da linguagem poética, ela discute a ideia de linguagem e suas
consequências para a poesia. Assim, uma vez que o poeta toma
consciência do caráter contingente do signo linguístico, ele se
vê diante de duas alternativas. Em primeiro lugar, ele pode a
qualquer custo tentar remotivar o signo, como se fosse possível
construir uma linguagem como a do tempo mítico em que a
palavra é simplesmente um invólucro da própria coisa, outra
forma de manifestação do objeto, a manifestação mesma do ser
e da verdade. Há também uma segunda opção, representativa,
que faz da linguagem um meio, um instrumento transparente
que comunica, reproduz e espelha o real. Ou seja, as duas defi-
nições de mimese tais quais Derrida as apresenta. Mas há ou-

159
tra alternativa, que Mallarmé desenvolve a partir de sua noção
de ficção, a partir da consciência crítica do caráter irrevogavel-
mente arbitrário da linguagem, a partir da exposição e do des-
velamento de seu caráter representativo e de seu viés mítico.
Para que possamos compreender melhor a ideia mallarmeana de
ficção, é importante inserir esse exame no debate sobre a moderni-
dade e, sobretudo, no debate sobre o papel da representação na lírica
moderna.
Foi Hugo Friedrich quem primeiro apontou para essa espe-
cificidade da lírica de Mallarmé, que teria aguçado um proces-
so de “desrealização” e “despersonalização” próprio da poesia
moderna. A poesia de Mallarmé não descreve acontecimentos
relativos ao mundo das coisas, mas sim ao mundo da língua.
Trata-se de uma poesia que nada tem a ver com o fato vivido,
com uma poesia dos sentimentos ou da experiência. No poema
mallarmeano, “o caráter de “coisa” de todo objeto é anulado”,
“os objetos são imputados de seu caráter de objeto, desloca-
dos numa ausência, em que são portadores de uma tensão in-
visível”. O poema “abole as coisas para elevá-las à categoria
de coisas em-si, que, não tendo relação alguma com o mundo
empírico, são realmente presentes apenas na língua. Graças a
essa língua, as coisas se constituem em estruturas subtraídas
de toda realidade” (FRIEDRICH, 1999, p. 140). Isso porque
a poética mallarmeana é, de acordo com Friedrich, sustentada
por uma ontologia que define que as coisas reais, na medida
em que têm uma presença real e sensível, são impuras e não
absolutas. É apenas através de sua anulação, de seu aniquila-
mento, que tornam possível o nascimento, na língua, de suas
forças essenciais e puras.
Um dos atos fundamentais da poesia de Mallarmé seria sua ati-
tude de lançar os objetos na sua “ausência”. Um movimento que, para
o autor, é também presente na poesia de Baudelaire e Rimbaud, na
qual encontramos essa mesma “fuga do real”. No entanto, Mallarmé
aprofunda esse movimento de “desrealização” que aparece aqui como
uma desarmonia sob o plano ontológico entre o real e a língua.

160
Muito poderia ser dito sob essa dimensão ontológica da relação
entre a linguagem e o real, no entanto, vamos nos ater às críticas que
Paul de Man elaborou a respeito dessa teoria da lírica de Friedrich
em Blindness and insight.
De Man segue a definição de lírica de Yeats, para quem a
poesia moderna utiliza um imaginário ao mesmo tempo sim-
bólico e alegórico, que representa a natureza e seus objetos,
mas que também recorre a fontes puramente literárias. Assim,
a lírica moderna seria a expressão consciente de um conflito
entre a função representativa da linguagem e a concepção
da linguagem como ato de um sujeito autônomo. Por isso, é
importante para De Man criticar a visão de Friedrich, para
quem poesia lírica moderna se define a partir da perda da
função representativa da linguagem, acompanhada de um
movimento de perda da subjetividade, ou despersonalização
da lírica. Ele procura mostrar que a poesia é sempre repre-
sentativa, que a linguagem é sempre referencial. Portanto ele
contraria a tese de Stierle da qual ele parte, segundo a qual
a poesia mallarmeana ultrapassa a dimensão representativa
da linguagem para se instaurar numa dimensão puramente
alegórica, ou seja, figurativa da linguagem. Stierle, aluno de
Jauss, utiliza aqui sua definição de alegoria como ausência de
referência a qualquer objeto exterior à linguagem, definição
que retoma a temática de Friedrich sobre a perda da função
representativa na linguagem da poesia lírica. Seu objetivo
é justamente afirmar a tese de que a passagem da poesia de
Baudelaire para Mallarmé é um processo contínuo que implica
uma perda ainda mais acentuada do caráter representativo da
linguagem, numa renúncia ao seu caráter mimético e referencial
– característica maior da modernidade.
Para De Man, por outro lado, a poesia lírica é marcada por
essa ambivalência de uma linguagem que é ao mesmo tempo
representativa e não representativa. Toda poesia representativa
é sempre também alegórica, conscientemente ou não, e o poder
alegórico da linguagem torna obscuro o significado literal de

161
uma abertura representativa para a sua compreensão. No entan-
to, toda poesia alegórica deve conter elementos representativos
que convidam e permitem seu entendimento, mesmo que seja
apenas para apontar os erros que esse entendimento alcança.
Assim não há ilusão maior, para De Man, do que acreditar que
é possível passar da representação para a alegoria, como quem
passa do velho para o novo, da história para a modernidade.
Alegar a dimensão alegórica da poesia como característica única
da modernidade é para De Man um erro, pois este é um caráter
que sempre esteve presente na história da poesia.
O autor nos mostra que a ideia de que o sistema representa-
tivo da linguagem pode ser simplesmente abandonado é falsa. A
representação é um movimento repetitivo, um mostrar que deve
aparecer enquanto tal, não como uma verdade definitiva, mas
como um movimento. Uma tentativa de se aproximar do mundo,
é isso que a lírica busca. Vimos que em “Ação restrita” Mallarmé
insinua que a poesia deve iluminar algo além da própria folha de
papel onde se insere. Ela tem como função, portanto, denunciar o
caráter insuficiente da representação, ela não deve ser ilusória e se
basear na crença de que a linguagem é capaz de apreender a tota-
lidade do mundo que nos rodeia, ela deve expor essa insuficiência
que é, na verdade, a origem mesma da poesia e de sua necessidade.
Seu caráter metafórico, simbólico ou alegórico procura justamen-
te fechar as lacunas deixadas pela linguagem e sua referência, não
para apontar para um real já dado e facilmente reconhecível, mas
para colocá-lo em cheque.
De fato, a questão do caráter representativo da linguagem parece
ser uma das grandes questões a partir da qual a poesia lírica moderna
é pensada. Ela também está presente no trabalho de Jameson que
citamos anteriormente, A singular modernity.
O autor procura mostrar que a tese de De Man é na verdade uma
defesa do caráter autônomo da linguagem e da poesia lírica. Ele se
vale de outro artigo do autor, “The rethoric of temporality”, em que
De Man discute a relação entre símbolo e alegoria na poética do

162
romantismo para comprovar sua tese de que a modernidade é, na
verdade, um discurso, uma narrativa.
Segundo De Man, grande parte da crítica literária está de acordo
em estabelecer como principal característica da poética romântica
a predominância de uma dicção simbólica, segundo a qual haveria
uma unidade analógica entre a natureza e a consciência subjetiva que
confere prioridade ao caráter simbólico da linguagem no qual uma
síntese entre sujeito e objeto se configura. No entanto, o que o autor
procura mostrar é que em Rousseau, por exemplo, há uma predileção
pela alegoria.

Rousseau nem sequer pretende estar observando. A linguagem é


puramente figurada, não baseada na percepção, ainda menos base-
ada numa experiência dialética entre natureza e consciência. A rei-
vindicação de Julie de dominação e controle sob a natureza (“il n’y
a rien là que je n’aie ordonné”) pode ser considerada o emblema
da linguagem que submete inteiramente o mundo exterior aos seus
propósitos [...]. (DE MAN, 1989, p. 203)

A predominância da alegoria corresponde ao desvelamento de


um destino temporal autêntico; esse processo temporal é o da pró-
pria leitura. Num mundo simbólico é possível que uma imagem
coincida com sua própria substância já que a substância e sua repre-
sentação não se distinguem uma da outra. No mundo da alegoria,
o tempo é a categoria constitutiva, o que temos são relações entre
signos em que a referência aos seus respectivos significados é de se-
gunda importância. Na alegoria, o signo refere-se sempre a outro
signo, indefinidamente. De Man poderia ter se servido dessa citação
para apontar os riscos dessa noção de autonomia presente no concei-
to de alegoria. Ele poderia ter apontado para o caráter autoritário de
uma linguagem que aparece como resultado da dominação da natu-
reza e princípio de ordenamento do mundo, colocando em questão
a possibilidade de uma linguagem sem referência ao mundo exterior.
No entanto, ele prefere salientar o caráter alegórico da linguagem e
temporal do sentido, construído a partir de leituras.

163
Ao descrever a análise de De Man, Jameson conclui que o mo-
dernismo não passa de um processo de alegorização. Ele critica sua
posição descrevendo-a como puramente retórica, ou melhor dizendo,
ele argumenta que De Man utiliza a retórica como “instância final
de determinação”, como base de sua teoria. Por essa razão, sua teoria
não passa de mais uma narrativa, “uma ideologia da representação e
da possibilidade de total encarnação do símbolo e do significado”.
De acordo com essa ideologia o método retórico que a desmistifica
nos levaria de volta para a literatura ou para uma área filosófica geral
pós-estruturalista ( JAMESON, 2002, p. 117).
Assim, para Jameson há uma relação direta entre a modernidade
que se constitui como narrativa, como discurso, e a crítica do caráter
representativo da linguagem empreendida pela poesia lírica. Jame-
son parece criticar o estruturalismo de De Man, mas, na verdade, ele
partilha com esse autor os mesmos pressupostos, pois não ultrapassa
o pós-estruturalismo com sua crítica do historicismo e das narrati-
vas, ou seja, ele não empreende uma crítica do caráter representa-
tivo da linguagem, presente justamente na concepção de De Man
a respeito da alegoria. Ele simplesmente se preocupa em mostrar
que a modernidade é apenas mais um dentre tantos outros discursos.
Para que seja possível desmontar a ideia de linguagem que sustenta a
ideologia estruturalista, a french theory (que vai de Derrida, com sua
noção de disseminação, até De Man e seus discípulos americanos),
é preciso, como Mallarmé o faz na sua crítica de Wagner, ou seja, do
mito, ir até a fonte, até a noção de linguagem que produz esse tipo de
conceito ideológico e representativo. Para isso, antes que possamos
situar a teoria mallarmeana da ficção no interior desse debate, deve-
mos voltar um momento para a discussão do caráter representativo
da linguagem, a partir de um dos textos de referência nessa discus-
são: a análise que Heidegger empreende da filosofia cartesiana.
Para Heidegger, na metafísica moderna a questão tradicional so-
bre “o que é o ente?” se transforma na questão do método, numa
pergunta sobre qual o caminho a seguir na busca pelo incondicio-
nalmente certo e seguro no qual toda a verdade estaria circunscrita.
Essa transformação da questão “o que é o ente?” na questão da busca

164
por um fundamento incondicional e inabalável da verdade define um
novo pensamento, uma nova época, a modernidade. E é a metafísica
de Descartes que fornece o fundamento para a nova liberdade mo-
derna em que o homem livre das explicações religiosas do mundo
procura certificar-se de si mesmo, assegurar suas intenções e repre-
sentações. Esse fundamento só poderia ser, como ressalta Heidegger,
o próprio homem.
Assim como Habermas, Heidegger entende a modernidade
como um tempo que procura sempre fornecer sua autocertificação.
Para ele esse fundamento se encontra na noção cartesiana de cogito,
já para Habermas o fundador da modernidade não é Descartes mas
Hegel, pois foi a filosofia hegeliana que primeiro estabeleceu para si
a tarefa de pensar a questão do fundamento da modernidade, que,
assim como para o Descartes de Heidegger, reside na noção de sub-
jetividade.
No entanto, o que nos interessa aqui é a relação que Heidegger
estabelece entre o primado do sujeito na modernidade e a questão
da representação. Para isso precisamos pensar com Heidegger o que
a afirmação cartesiana Ego cogito, (ergo) sum, “eu penso, logo existo”,
significa realmente, pois não se trata apenas de demonstrar nossa
existência a partir da constatação de que somos capazes de pensar.
Heidegger se pergunta, então, como entendemos o pensar ou o que
Descartes entende por cogitare. Segundo Heidegger, em algumas
passagens importantes Descartes utiliza para cogitare a palavra per-
cipere, que significa apossar-se de algo, apoderar-se de alguma coisa,
no sentido de apresentar para si, apresentar diante si ou representar.
Nós nos aproximamos mais do sentido cartesiano de cogitare, cogita-
tio ou perceptio e o entendemos como representar, no sentido literal,
por diante de si, apresentar para si.
As palavras terminadas em “ção” têm a particularidade de desig-
nar algo duplo que se acha em situação de mútua pertinência, repre-
sentação indica tanto “representar” como “algo que é representado”,
por isso Descartes utiliza no lugar de perceptio o termo idea, pois
trata-se de indicar aqui o que é representado e também o próprio ato
de representar. Elas incluem as percepções, a imaginação e as ideias

165
inatas, aquelas já presentes no espírito humano. Cogitare é, assim,
trazer algo para si, trazer diante de si o que é representável. Nesse
processo de exposição, o representado se mostra como disponível.
“Portanto, algo só é apresentado para, representado – cogitatum –
para o homem, quando é fixado e assegurado para ele como aquilo
sobre o que ele pode ser senhor [...] sem hesitação e dúvida” (HEI-
DEGGER, 2007, p. 112). Por isso, Heidegger pode dizer que “o
representar é um assegurar”. Mas o que deve ser assegurado?
Se examinarmos mais uma vez o significado de “representar”,
temos que todo ego cogito é cogito me cogitare, “eu represento” signi-
fica “me” representar, antes de mais nada, representar é um represen-
tar para si, um representar de si mesmo. O que há de essencial em
todo representar é a quem se representa ou diante de quem. Assim,
o homem está sempre de antemão inserido em toda representação.
Mesmo antes de Descartes já se tinha visto que o representar e o re-
presentado estão ligados a um eu que representa. No entanto, o que é
novo com Descartes é que “essa ligação com aquele que re-presenta e,
com isso, esse que representa mesmo enquanto tal, assumem o papel
essencial de critério para aquilo que ocorre e deve ocorrer no repre-
sentar” (HEIDEGGER, 2007, p. 115). Assim, cogito sum não diz
apenas respeito ao “eu penso”, não indica apenas “que eu sou” ou “que
minha existência se deduz do fato de que eu penso”, mas sim que eu
sou determinado pela representação, que o meu representar decide e
assegura a normatividade da representação, e a verdade como certeza.
Heidegger relaciona a determinação do sujeito como funda-
mento da metafísica cartesiana com o desenvolvimento do método
matemático cartesiano. Para Heidegger, a sentença cogito sum tem a
dimensão de um fundamento, funciona como um princípio. O pen-
samento matemático, como já ilustramos, como um raciocínio dedu-
tivo, funciona a partir de axiomas. Com base nisso, Heidegger supõe
que a sentença cogito sum precisaria ser a sentença fundamental, a
premissa maior de qualquer silogismo.

A representação tornou-se em si a a-presentação e fixação da essên-


cia da verdade e do ser. A re-presentação coloca aqui a si mesma em

166
seu próprio espaço essencial e posiciona esse espaço como o padrão
de medida para a essência do ser do ente e para a essência da verda-
de. Porquanto a verdade significa agora asseguramento da apresen-
tação, ou seja, certeza, e porquanto ser significa representatividade
no sentido de certeza, o homem se torna, de acordo com seu papel
no representar que estabelece assim um fundamento, sujeito insigne.
(HEIDEGGER, 2007, p. 124)

Vimos quão importante para Mallarmé era a questão cartesiana


posta pela fórmula cogito ergo sum. Mallarmé transformou a conjun-
ção que permite a passagem do pensamento à existência em tema
central de um conto, Igitur. Vimos que a principal ação de Igitur
nesse conto é sua própria morte. Vimos também quão importante
para Mallarmé era criar uma poesia sem sujeito, quer dizer sem eu
lírico. Para ele, a poesia só poderia existir se o autor se desvencilhasse
de toda e qualquer expressão particular. Esse é o primeiro passo para
que a poesia possa, de fato, ceder a iniciativa às palavras. Assim, da
mesma maneira que Mallarmé coloca em questão a centralidade do
sujeito no ato representativo, ele colocará em questão a linguagem,
como ato de nomear, designar e descrever o mundo. Se o “eu” não
pode mais funcionar como garantia de certeza e verdade da repre-
sentação, a linguagem aparecerá como arbitrária, sem fundamento
ou razão, imotivada. Para Mallarmé, toda tentativa de transformar
o caráter contingente e arbitrário da linguagem e motivá-la de tal
maneira que já não haja mais distância alguma entre o representado
e sua referência, entre a referência e o significado, entre linguagem,
o mundo e a verdade, é vã, nula. Ou seja, não há poeta que possa
assegurar e certificar o bom funcionamento da representação, suas
certezas e seu sistema de verdade. Na verdade, o lugar da poesia é
crítico, cabe a ela desmontar toda e qualquer ficção, toda e qualquer
ilusão representativa.

Pois este além é o agente, e o motor eu diria, se eu não repugnasse


operar, em público, a desmontagem profana da ficção e consequen-

167
temente do mecanismo literário, para estalar a peça principal ou
nada. (MALLARMÉ, 2003, p. 67)

Diante da nulidade da representação e toda tentativa poética


dessa ordem, a operação que procura desmontar a ficção acaba por
revelar aquilo que o poeta havia descoberto “cavando” a linguagem,
o Nada, a peça principal. Ou seja, a literatura não consiste em criar
narrativas com pretensão de verdade, nem construir significados ou
dar sentido ao que nos rodeia. Ela não descreve e também não legi-
tima nem assegura nossas representações da realidade e nossas certe-
zas sobre o que é da ordem do real. Ela também não procura, isolada
em sua torre de marfim, formas vazias de sentido que remetem in-
cessantemente a ela própria. A poesia tem uma tarefa muito concreta
e essencialmente crítica, desmontar todo o aparato ficcional, desfazer
todas nossas ilusões representativas.
Assim, a linguagem não é nem um meio nem um instrumen-
to que nos permite aceder à verdade, ela não nos aproxima do
real. Em si mesma, ela apenas reproduz o nada, ou a ausência de
fundamento seguro que possa legitimar o pensamento e a razão.
Assim, podemos concluir que a poesia mallarmeana tem como
objetivo principal realizar uma crítica da representação que des-
vele seu funcionamento, para nos deixar sozinhos diante da au-
sência de fundamento de tudo o que há. O que Mallarmé nunca
fez foi dar um passo à frente, esse exclusivo do estruturalismo
(Derrida) ou da french theory, que consiste em afirmar que, uma
vez que a ausência de fundamento da representação se desvela, a
linguagem passa a ser uma fábrica de sentidos que se disseminam
ad inf initum. Não, o que interessava Mallarmé era destruir toda e
qualquer pretensão dos poetas de seu tempo de aceder à verdade
do real através de uma linguagem que tinha sido transformada
em instrumento transparente, meio para aceder a um fim.
Nas Notas sobre a linguagem encontramos esta descrição do que
parece ser o método definido pelo poeta para efetuar essa operação
de desmontagem da ficção:

168
Todo método é uma ficção, e bom para a demonstração.
A linguagem lhe parece o instrumento da ficção: ele seguirá o méto-
do da linguagem. (determiná-lo) A linguagem se refletindo.
Enfim a ficção lhe parece ser o procedimento mesmo do espírito
humano – é ela que coloca em jogo todo método, e o homem é
reduzido à vontade.
Página do discurso sobre o Método. (MALLARMÉ, 2003, p. 504)

Para desmontar a ficção, Mallarmé pretendia se servir de um mé-


todo, “o método da linguagem”, que nada mais é do que uma reflexão
sobre a linguagem, reflexão que transforma o poema num reflexo da
ideia mesma de linguagem, no espaço em que ela se manifesta tal
qual é, uma linguagem que, como vimos, é arbitrária e imotivada.
Mas isso significaria que a poesia abandonou toda a pretensão à ver-
dade? Que ela se constitui como desmontagem da ficção, desmon-
tagem eminentemente negativa, que ao destruir nosso sistema de
representação nos deixaria diante do Nada?
Vejamos com mais detalhes como entender esse método. Num
primeiro momento, é importante evocarmos outro trecho das Notas,
em que o poeta afirma: “Nós não compreendemos Descartes”. As-
sim, cabe-nos examinar o Discurso do método, pois talvez Descartes
seja, de fato, a fonte na qual o poeta teria se inspirado para construir
o seu próprio método poético e crítico.
Em seu Discurso do método, Descartes define o método como
uma maneira de conduzir adequadamente a razão. Seu objetivo ao
descrever seu método seria expor como ele próprio conduziu sua
razão, sem, no entanto, querer ensinar aos outros o que fazer, mas
enfatizando que seu método lhe permitiu chegar a demonstrações
verdadeiras, estabelecer algumas certezas. No entanto, apesar das
certezas estabelecidas, Descartes se refere a seu método como uma
espécie de ficção: “Propondo este escrito como uma história, ou se
vocês preferirem, como uma fábula” (DESCARTES, 2000, p. 70). O
discurso do método seria, assim, uma história, uma narrativa, a nar-
rativa de uma descoberta científica, a história de uma reflexão. Des-
cartes buscava, assim, mostrar que seu método poderia ser útil para

169
outras investigações, sem, no entanto, garantir sua plena eficácia. Ou
seja, o método é importante apenas com relação às descobertas que
ele torna possíveis, ele não poderia ser eficaz em si mesmo. Ele deve
ser, portanto, julgado a partir das certezas que permite estabelecer.
A ideia de ficção está presente em outros momentos da obra
de Descartes, não apenas, evidentemente, na Fábula do mundo, mas
também nas Meditações e em seus Princípios da filosofia e Regras para
a direção do espírito humano.
Mallarmé, em suas Notas, faz referência ao termo “demonstra-
ção” e à matemática. Não poderia ser diferente, já que sua ideia de
método parte de Descartes, para quem todo o universo poderia ser
explicado a partir da matemática. (Mathesis universalis, grande pro-
jeto do racionalismo que pretendia racionalizar a natureza a partir
das leis matemáticas.) Mas como funciona a matemática e suas de-
monstrações? Descartes afirma no seu Discurso que uma demonstra-
ção é uma razão certa, evidente. E o objetivo do método cartesiano
é conduzir a razão para realizar demonstrações claras e evidentes.
Uma demonstração matemática procura estabelecer uma verdade
no interior de um sistema preestabelecido e a partir de axiomas e
definições também predeterminadas. O que Mallarmé procura ao
comparar e definir seu método a partir de Descartes é nos mostrar
que a matemática funciona como a linguagem, ela é uma linguagem,
um sistema igualmente preestabelecido no interior do qual podemos
alcançar determinadas verdades a partir de regras preestabelecidas.
Num primeiro momento poderíamos achar que Mallarmé está
simplesmente criticando essa espécie de nominalismo que procura
entender o mundo a partir de uma linguagem totalmente indepen-
dente do mundo físico e que funciona a partir de normas e regras
próprias ao próprio sistema. No entanto, na verdade, a comparação
entre a literatura e a matemática visa nos colocar diante da possibi-
lidade de um método, que o próprio Descartes entedia como uma
fábula, uma ficção, que nem por isso deixava de ser capaz de produzir
demonstrações verdadeiras e estabelecer certezas. A ciência, as mate-
máticas, com suas demonstrações e seu método, são apenas fábulas,

170
narrativas, histórias – ficção, no entanto, nos permitem alcançar cer-
tezas, ideias claras e distintas.
Em seus Princípios, na introdução em que o filósofo apresenta
o conjunto de suas teses, premissas e princípios, Descartes anun-
cia no princípio 43 que não é verossímil que as causas das quais
podemos deduzir todos os fenômenos sejam falsas. O princípio 44
anuncia que Descartes não pretende assegurar que todas as causas
que ele mesmo propõe sejam verdadeiras. Em seguida, no princípio
45, temos que ele poderá inclusive propor causas falsas, e finalmente,
no princípio 47, ele afirma que a falsidade das causas não impede
que as deduções decorrentes delas sejam verdadeiras. Ora, como não
imaginar que discussões sobre astronomia poderiam deixar um po-
eta como Mallarmé, cujo Livro deveria fornecer a explicação órfica
da Terra, indiferente? Nessa obra, Descartes discute as hipóteses de
Copérnico e, mesmo que ele refute muitas de suas teses, certamente
concordaria com a afirmação de que o conhecimento em astronomia
se constrói sobretudo a partir de hipóteses, de possibilidades que
são posteriormente confirmadas pela experiência. Assim, Mallarmé
concluiria que, mesmo que a literatura se faça preto no branco, ao
contrário do vocabulário dos astros, estrelas luminosas sob um fundo
negro, ainda assim ela partilha com os céus a mesma dupla de cores
e se define na ciência, seja na astronomia, seja na poesia, como uma
ficção, fundamental, um possível que pode se mostrar verdadeiro.
Poderíamos ir mais além, mostrando que esse tipo de raciocínio,
no qual a ficção se funda, um raciocínio por hipóteses que podem
chegar a verdades mesmo experimentalmente comprovadas, está,
para Descartes, profundamente ancorado no espírito. Nas Medita-
ções o tão famoso gênio maligno que o filosofo supõe estar sempre
a sua espreita prestes a enganá-lo não passa de uma hipótese, de
uma ficção que, no entanto, é determinante para a noção de dúvida
cartesiana e, consequentemente, fundamental no estabelecimento de
certezas.
A questão é, portanto, de saber, diante dessa definição de método,
quais verdades Mallarmé procura demonstrar. Que tipo de certeza
ele acredita ser possível estabelecer ao desmontar a ficção?

171
A partir dessa leitura de Descartes e, se levarmos a sério o que
ele afirma, estabelecendo uma relação com o que Mallarmé define
como método, pode-se concluir que todo procedimento racional,
todo método científico, ou poético, não passa de uma ficção. O que
há de mais instigante nessa definição é que, por mais fictício que o
método seja, ele ainda é capaz de estabelecer verdades, de culminar
em demonstrações claras e evidentes. O método é então uma ficção,
e o discurso sobre o método, uma fábula que conta a história de uma
reflexão. Mas, como conciliar termos aparentemente tão contraditó-
rios quanto ficção, método, pensamento e verdade?
Mallarmé nos diz, pela leitura de Descartes, que podemos abor-
dar a história de uma descoberta matemática, de uma reflexão, como
uma fábula, uma ficção que mesmo sendo fictícia pode culminar em
demonstrações verdadeiras. A ficção é, portanto, ao mesmo tempo
método e demonstração, meio e fim em si mesma. Para o poeta, a
poesia deveria mostrar seu processo de construção, ela deveria se
constituir como uma narrativa sobre sua própria elaboração.
O método mallarmeano para desmontar a ficção seguirá, como
vimos, o método mesmo da linguagem, que o poeta resume na fór-
mula “a linguagem se refletindo”. A ficção demonstra e desmonta
a si mesma, pois ela se torna um espelho no qual a linguagem se
reflete, no qual a linguagem aparece em toda a sua verdade. Mas,
além disso, e aqui o método mallarmeano é também científico, a fic-
ção ao desmontar-se coloca algo, revela a linguagem ao pensamento,
coloca-a como objeto do pensamento e seu produto, pois desvela o
Nada como sua parte principal. Um reflexo e uma reflexão, é assim
que a ficção é também demonstração. Podemos unir essas ideias para
afirmar que a demonstração da linguagem deve ser uma reflexão so-
bre esta, na qual ela se mostra como realmente é.
Se Mallarmé pode afirmar que a ficção “coloca em jogo todo mé-
todo”, é justamente porque ela desvela seu mecanismo de constitui-
ção, idêntico ao que torna possível a existência mesma da linguagem,
véu que mascara o nada. Assim, a ficção coloca em jogo todo método,
porque coloca em jogo a razão e sua boa condução, porque coloca em
questão o “eu” que a funda e legitima a verdade.

172
A tese que procuramos defender é de que a ideia mallar-
meana de ficção é uma crítica ao caráter representativo da
linguagem, pois, ao procurar desvelar o mecanismo da ficção,
Mallarmé busca desmontar seu funcionamento, expor o modo
de funcionamento da linguagem, seu caráter duplo, ao mesmo
tempo representativo e alegórico, referencial e metafórico. Tra-
ta-se de dizer que, se a poesia é possível, se há ação na poesia, ela
acontece porque a poesia é capaz de provocar um curto-circuito
entre essas dimensões da linguagem. Assim a poesia lança seus
dados (seus dardos também, por que não?) para fora de si mes-
ma; ela vai de encontro ao mundo, impele o leitor a reorgani-
zar seu próprio sistema de referências. Ela não separa o real da
ficção, não se distancia do mundo, para fechar-se em si mesma;
muito pelo contrário, ela se mistura com ele a tal ponto que,
para defini-la, para pensar a natureza de sua ação e seu caráter
político, nos perguntamos até que ponto a literatura é capaz de
alterar a dimensão representativa da linguagem, até que ponto
ela é capaz de desfazer as representações que nos acostumamos
a aceitar, colocar o que nos aparece como dado em xeque, até
que ponto ela é capaz de colocar em questão a base que sustenta
nossas certezas, a razão, o “eu”.
Isso só é possível porque a literatura é capaz de fazer da lingua-
gem não apenas um simples instrumento, mas um método ou ainda
mais do que isso, porque a linguagem é uma ciência, não uma ciência
particular, mas a matriz de todas as ciências. Em outro comentário
de Heidegger sobre Nietzsche, vemos como a representação não é
apenas fundamental para o pensamento moderno porque ela requer
a noção de subjetividade, mas sim porque nela está em questão o
funcionamento do próprio pensamento.
O pensamento nietzschiano se constituiu, segundo Heidegger
(2010), como uma crítica da representação. Para o autor, o caminho
que toma o pensamento de Nietzsche passa pela seguinte afirmação:
“o deserto cresce. Infelicidade àquele que protege o deserto”. Uma
fala que nos remete a outra afirmação, segundo a qual o que nos
daria mais a pensar em nosso tempo seria o fato de que nós ainda

173
não pensamos, e, se nós não pensamos, isso se deve ao fato de que,
segundo Heidegger, leitor de Nietzsche, há muito tempo, a forma
de pensamento dominante é a representação. Mas como entender a
representação?
Aqui não se trata, como no comentário de Descartes, de demons-
trar as razões e maneiras que levam o filósofo a estabelecer o sujeito
como fundamento do pensar, mas simplesmente de definir o que
está em questão no ato de representar e como ele determina nosso
entendimento do que é o próprio pensamento.
Chamamos justa uma representação que se adéqua ao seu
objeto. Identificamos há muito tempo a adequação da repre-
sentação com a verdade, ou seja, definimos a essência da ver-
dade a partir da adequação da representação ao seu objeto.
Representar um objeto significa, para Heidegger, ter consci-
ência da representação, tê-la presente no espírito, na alma, ou
na nossa mente. Nós temos representações de objetos dentro
de nós. Há alguns séculos, a filosofia vem se perguntando se
as representações que temos em nossa mente correspondem de
fato aos objetos, a uma realidade que temos diante de nós. As-
sim, a afirmação de Schopenhauer parece ter resumido um dos
maiores problemas da filosofia ao afirmar “o mundo é minha
representação”.
A questão da natureza representativa da linguagem diz, por-
tanto, respeito à relação entre a linguagem e o mundo, entre as
palavras e as coisas. Na teoria da lírica moderna as interpreta-
ções como a de Friedrich entre outros, que procuram enfatizar
o caráter “não representativo” da poesia, constroem uma no-
ção de poesia autônoma, no mínimo ingênua. Diametralmen-
te oposta às teorias marxistas que elegem um cânone realista,
para, através da literatura, colocar em questão a sociedade que
a produziu. Não se trata aqui apenas de demonstrar como o faz
De Man, que a linguagem sempre possui um caráter represen-
tativo, referencial, mas de compreender o que está em questão
na representação.

174
Vimos que, no que concerne à questão da representação, De
Man critica a posição de Friedrich ao defender o caráter refe-
rencial da poesia mallarmeana e de toda linguagem. No entanto,
vimos ainda que sua teoria da linguagem procura também de-
monstrar a possibilidade de uma linguagem alegórica, na qual
cada signo faz referência a outro signo e se define exclusivamen-
te no interior da própria linguagem. Trata-se, portanto, para De
Man, ao menos nesse texto, de fundamentar a poesia românti-
ca a partir de uma linguagem não referencial, puramente “re-
presentativa”. Contudo, aqui, a representação não é entendida
como mimese do real, mas como um puro símbolo. Aqui, esbo-
ça-se outra teoria da representação, outra teoria de autonomia
da arte e da linguagem, na qual a representação não é entendida
a partir da capacidade da linguagem simplesmente se descolar
da sua referência, mas a partir de sua capacidade de criar repre-
sentações independentes, verdadeiros sistemas fechados em si
mesmos e autônomos.
Por caráter semiótico da linguagem, Foucault entende uma
das suspeitas que a linguagem, sobretudo nas culturas indo-eu-
ropeias, produz:

há muitas outras coisas que falam e que não são linguagem. Depois
disso, poder-se-ia dizer que a natureza, o mar, o sussurro do ven-
to nas árvores, os animais, os rostos, os caminhos que se cruzam,
tudo isso fala. Talvez, haja linguagens que se articulam em formas
não verbais. Isso equivaleria, grosso modo, ao semäion dos gregos.
(FOUCAULT, 1997, p. 14)

Essa é uma suspeita que ainda vigora e que Foucault demonstra


ser um dos fundamentos da nova interpretação e hermêutica do século
XX, fundada sobretudo a partir da tríade Nietzsche, Freud e Marx.
Em Comment vivre ensemble Barthes define o viver junto
não somente como uma questão espacial, mas também como
um problema temporal. “Viver junto” é também “viver no mes-

175
mo tempo”. O autor cita um exemplo:“Posso dizer sem mentir que
Marx, Mallarmé, Nietzsche e Freud viveram vinte e sete anos juntos”
(BARTHES, 2002, p. 36).Eles poderiam, inclusive, ter se encon-
trado em algum lugar da Suíça para juntos discutirem. Essa con-
comitância alerta, segundo Barthes, para uma questão de suma
importância, no entanto, pouco estudada: a contemporaneidade,
a questão de saber “de quem sou contemporâneo?”, “com quem eu
vivo?”. De fato, Barthes tem razão, pois Mallarmé, Marx, Freud
e Nietzsche têm algo em comum. Todos eles, em suas obras, não
fizeram outra coisa a não ser pensar as causas, asconsequências
e os pressupostos da afirmação de Schopenhauer: “o mundo é
minha representação”.
Segundo Foucault, Nietzsche, Freud e Marx mudaram a ma-
neira de compreensão do que é um símbolo, que a partir desse
momento passa a ser pensado não como no século XVIII com
base em semelhanças e analogias, mas em sua verticalidade, sua
profundidade ou banalidade. Foucault se refere à crítica da pro-
fundidade feita por Nietzsche que a considerava a profundida-
de da consciência como uma simples invenção dos filósofos, ou
por Marx, que afirmava que a investigação da ordem burguesa,
acerca da moeda, do valor, não tem profundidade alguma, pelo
contrário não passa de uma banalidade, pois afinal é o fetiche
que cria a ilusão da profundidade, a ilusão de que haveria “algo
mais” na mercadoria.
No entanto, o ponto que nos interessa aqui é a segunda caracte-
rística de uma reflexão sobre a natureza da linguagem que Foucault
encontra nesses três pensadores: o caráter infinito da interpretação,
seu caráter fragmentado, sempre inacabado, presente sob a forma
da negação do começo. Negação da “Robinsonada” para Marx. Em
Freud, essa questão aparece na Traumdeutung, quando ele passa a
analisar seus próprios sonhos; em seguida, na problemática do fim
da análise, do caráter infinito da relação de transferência. Em Niet-
zsche, ela está presente na sua própria definição de filosofia como
uma filologia que nunca pode ser fixada. Poderíamos dizer que ela
também está presente em Mallarmé, da mesma maneira, na crítica

176
da origem mítica da linguagem e na crítica da tentativa de resgate
desse caráter mítico perdido da linguagem, como ocorre, por exem-
plo, na obra de Wagner.
Esse caráter inacabado da interpretação está relacionado com
outro princípio também fundamental na hermenêutica moder-
na: “se a interpretação não pode nunca acabar, isso quer sim-
plesmente significar que não há nada a interpretar. Não há nada
absolutamente primário a interpretar, porque, no fundo, tudo já
é interpretação, cada símbolo é em si mesmo não a coisa que
se oferece à interpretação, mas a interpretação de outros signos”
(FOUCAULT, 1997, p. 22).
Mallarmé foi o poeta eleito por toda uma tradição da filosofia
francesa para portar o estandarte de uma representação em ocaso
que se transforma em interpretação infinita. De Foucault a Der-
rida, passando por Friedrich e De Man, na América do Norte, o
que temos aqui é uma oposição pura e simples em relação a uma
ideia da linguagem como representação de ideia ou objeto, cen-
trada na figura do “eu”, que, uma vez entrando em colapso, torna
possível a produção infinita de sentido e significado.. Se o pen-
samento e a verdade perdem seu fundamento, a linguagem perde
seu corpo e sua materialidade.
Quando Mallarmé estabelece como fim da desmontagem da
ficção a exposição de sua parte principal, o Nada, nada nos per-
mite inferir que ele de fato entendia a linguagem como interpre-
tação que reenvia a outra interpretação. Afinal, essa não seria uma
última tentativa de salvar, custe o que custar, a própria ideia de
representação? Não seria essa uma tentativa de evitar o face a face
com o Nada, com a ausência de fundamento e solo seguro para o
estabelecimento da razão? Não seria essa uma tentativa de evitar
se deparar com o que Mallarmé não cessou de afirmar, que na
ausência de fundamento ou de razão, na ausência de um “eu” que
assegure a verdade de nossas representações, estamos sós diante
de um acaso que o pensamento jamais será capaz de abolir?
Desvelar o Nada como base de sustentação da linguagem
é, portanto, o mesmo que colocar em questão uma noção de

177
representação no interior da qual a verdade é entendida como
adequação da ideia/palavra ou enunciado aos objetos que re-
presenta. Não há um “mundo exterior”, fora da linguagem, que
possa legitimar a existência da literatura. Na verdade, ela, a par-
tir de Baudelaire, deseja construir-se fora do mundo que a cerca.
No entanto, isso não significa que ela vai, como Wagner em
suas óperas, naturalizar o símbolo ou tentar fazer crer que há
símbolos que existem primariamente como marcas persistentes
e sistemáticas de uma verdade que antecede o homem e é eterna.
Nem realismo nem mistificação. Afinal, que é o mito, segundo
Mallarmé, se não um sistema de interpretações que reenvia a
outras interpretações? Assim, o que Mallarmé procura é uma
terceira via: nem a representação, a linguagem instrumento que
duplica o real, nem o universo do mito, em que o símbolo reen-
via a outros símbolos e as interpretações a outras interpretações.
Nem uma linguagem que designa o real, nem uma linguagem
fechada em si mesma. Nem uma literatura realista, nem um for-
malismo abstrato.
Se Mallarmé insiste tanto em definir a literatura em oposição
clara e direta à linguagem jornalística, é porque o que ele procura
é uma literatura que nos leve além do que já sabemos, vimos e
ouvimos, do que somos capazes de reconhecer, da mediocridade da
vida ordinária. Escrever é mergulhar no desconhecido, em busca
do novo, criar.
Muitas vezes, sua poesia foi entendida como uma manifestação
do pessimismo que corroía a imaginação dos poetas, que, desolados,
se isolavam em suas torres de marfim, para escrever uma poesia que
só tem como referência a si mesma. Não se trata, na desmontagem da
ficção, de uma retirada estratégica da vida social e política num mo-
mento de desencantamento, mas, sim, em uma crítica que impedisse
que a poesia fosse apropriada por arautos hipócritas da moral e dos
bons costumes com boas intenções a respeito da educação das moças
burguesas. Impedir que a literatura funcionasse, como a religião, para
fazer crer. Que ela fosse instrumento político a dignificar os mitos
fundadores de uma grande nação (como no caso de Wagner).

178
Assim, o que Mallarmé pretendia, com sua arte total, era criar
uma arte cuja legitimação se daria através de sua capacidade de
transcender uma situação, um contexto, um dado, um quadro social
e político, e criar a partir de seu interior, a partir do seu próprio
funcionamento, novas formas que fossem também formas de viver e
experimentar o mundo.

179
VIII
A MÚSICA

De la musique avant toute chose.


Verlaine

A música está no centro de um debate que marcou a poesia do


fim do século XIX. Um debate sobre inteligibilidade, pois a música
justificava o caráter abstrato, obscuro da poesia “simbolista”, forne-
cendo-lhe um modelo artístico, ou seja, uma nova forma de inteligi-
bilidade. Na verdade, a poesia desse fim de século contrariou ideias
de clareza e nitidez linguísticas tradicionais nas letras francesas em
nome do mistério, que se esconde, segundo Mallarmé, no fundo de
todos nós. A poesia é obscura, pois pretende não mais claramente
expor ideias burguesas, mas procurar, além do visível, algo que nos
diga respeito. Essa poesia procura, na música, no silêncio, uma forma
de dizer que é um não dizer. Mas recusando-se a falar claramente,
a representar, essa poesia pode facilmente irritar, aborrecer seus lei-
tores e foi o que aconteceu com a poesia mallarmeana e a de seus
contemporâneos.
Em Mallarmé, Mémoire de La critique, podemos ler, sobretudo, o
incômodo que essa poesia obscura, difícil, provocava em seus con-
temporâneos. O livro reúne diversas críticas, publicadas na impressa
francesa desde que Mallarmé publicou seus primeiros poemas até o
ano de sua morte, trata-se, portanto, de críticas que o poeta pode ter
lido. Podemos observar ao longo desses textos a recepção da obra do
poeta, eminentemente negativa, e as discussões e polêmicas que ela
suscitava.
Como as primeiras publicações de Mallarmé apareceram no Le
parnasse contemporain, em 1864, a primeira recepção de sua obra fi-
cou ligada a esse movimento poético. Os críticos observavam nesses
primeiros poemas o mesmo tom que em Fleurs Du mal e também
a mesma “impotência”, “a falta de simplicidade”, até mesmo a “ex-
travagância”. Para Zola, na poesia de Mallarmé “toda a loucura da
forma eclodiu”. Zola o via como um “louco literário” que escreve
versos “absolutamente incompreensíveis”, para quem “a impotência
não tem outra fonte senão o delírio” (MARCHAL, 1998b, p. 22).
“O demônio de analogia”, por exemplo, suscitou o seguinte comen-
tário da parte de Francis Magnard: “Isso dura duas páginas, absolu-
tamente incompreensíveis e poderia surpreender o senhor Stéphane
Mallarmé dizendo-lhe que seu estilo é um espécime do mundo novo,
o novo mundo não deve ter a cabeça muito sólida” (apud MAR-
CHAL, 1998b, p. 35). Em 1886, quando Mallarmé já não era um
jovem desconhecido, Wyezwa resume o problema que atormenta-
va os jornalistas da época, a questão: “Mallarmé é um louco ou um
mistificador?” (apud MARCHAL, 1998b, p. 99).
Segundo Jauss (1978, p. 54), a descrição da recepção da obra se
realiza com a reconstituição do horizonte de expectativa do público
resultante de três fatores: experiência prévia que o público possuiu
do gênero em questão; a forma e a temática das obras anteriores e
a oposição entre a linguagem poética e a linguagem prática, mundo
imaginário e realidade cotidiana. Vimos, desde o primeiro capítulo,
que há na poesia de Mallarmé uma tentativa de surpreender o leitor
quebrando suas expectativas criadas pela literatura contemporânea.
Em Crise de vers, Mallarmé reconstitui esse horizonte de expectativa
evocando a figura de Victor Hugo e afirmando que o leitor de sua
época teve seus hábitos de leitura rompidos pela morte desse “monu-
mento”, verdadeira “divindade poética”. Victor Hugo teria reduzido
toda prosa, filosofia, história ao verso, confiscando o direito de outros
de se enunciarem. Vimos também as críticas que o poeta endereça
ao Parnaso, à sua temática e ao modo de composição excessivamente
direto, que visava descrever objetos, por exemplo. Mallarmé reprova-
va o fato de que os parnasianos teimavam em “apresentar os objetos

182
diretamente”. A mesma crítica pode se estender aos escritores na-
turalistas, escritores que acreditam, como diria o poeta, que escrever
sobre pedras preciosas é o mesmo que fazê-las. O mais importante
aqui é ressaltar o caráter dessas críticas que não seriam temáticas ou
simplesmente formais, mas estruturais. Mallarmé não se preocupa
com questões ligadas à cesura do alexandrino ou à forma romance,
mas com concepções da linguagem que sustentam essas literaturas
de seu tempo. As concepções da linguagem devem ser entendidas
como um conjunto de práticas e normas, de usos com os quais se
define e se coloca em ação uma noção de expressão, uma temática,
enfim um universo literário coerente, em que a forma e o conteúdo
se determinam mutuamente. As críticas mallarmeanas concernem,
portanto, o próprio fundamento da literatura e, mesmo a sua possibi-
lidade de existência, ou seja, elas dizem respeito à linguagem. Assim,
o terceiro ponto que nos permite reconstituir o horizonte de expec-
tativas dos leitores, do final do século XIX, é a própria ideia que eles
teriam da linguagem. Citamos, para ilustrar nossos propósitos, esta
crítica que Anatole France endereça a Mallarmé, em 1888:

Em um tempo bárbaro e gótico as palavras tinham um sentido; nes-


te momento os escritores exprimiam ideias. Doravante, para a jovem
escola, as palavras não têm mais nenhuma significação própria, ne-
nhuma relação necessária entre elas. Elas são esvaziadas de todo o
seu sentido e desligadas de toda sintaxe. Elas sobrevivem, portanto,
num estado de fenômeno, sonoros ou gráficos; sua função nova é de
sugerir imagens ao acaso da forma das letras e do som das sílabas.
(ANATOLLE FRANCE apud MARCHAL, 1998b, p. 138)

Se Mallarmé era obscuro é porque sua ideia de linguagem e a


poesia que realizava não correspondiam às ideias em voga em seu
tempo. Como podemos observar pelo tom irônico de Anatole Fran-
ce, para a jovem escola, as palavras foram “esvaziadas de seu sentido”,
“desligadas de toda sintaxe”. Para os contemporâneos, a linguagem é
indubitavelmente portadora de um sentido inquestionável, que não
é ambíguo e por isso é capaz de exprimir pensamentos, ideias claras.

183
Nesse fim de século, fazer poesia significava “encontrar uma ideia
precisa e expressá-la em linguagem d’honnête homme” (ANATOLE
FRANCE apud MARCHAL, 1998b, p. 24).
A acusação de que a poesia mallameana seria “absolutamente in-
compreensível” nos deixa supor que ela contrariava inteiramente a
expectativa de seus leitores. Essa diferença entre o que a obra realiza
e o horizonte de expectativas de seus leitores é o que Jauss chama de
“distância estética”. Ela pode nos oferecer uma ideia da dimensão da
revolução poética operada por essa poesia. É essa “distância estéti-
ca” que define a obra de arte a partir de seu efeito nos leitores. No
entanto, a recepção de uma obra pode mudar,

sentida como uma fonte de prazer ou de admiração e perplexidade


pode se apagar para seus leitores futuros à medida que a negativi-
dade original da obra se transforma numa evidência e se torna um
objeto familiar de expectativa, se integra no horizonte de expectativa
das experiências estéticas futuras.( JAUSS, 1998, p. 59)

Nesse caso, a recepção da obra de Mallarmé, essa negatividade


inicial que aparece na primeira recepção da obra se manteve quase
intacta durante mais de um século. Certamente, hoje, o poeta já não é
incompreensível, mas ainda é um autor difícil, pois talvez o horizonte
de expectativas dos leitores não tenha sofrido grandes alterações. A
segunda razão que torna difícil a leitura de Mallarmé diz respeito à
natureza mesma de sua poesia. Segundo Badiou, Mallarmé pertence
à “era dos poetas”, uma definição que não é histórica ou estética, mas
filosófica. Mallarmé pertenceria a uma geração de poetas que vai até
Celan passando por Rimbaud, Trakl, Pessoa e Mandelstam. Os poe-
mas dessa linhagem de poetas são aqueles em que “o dito poético não
somente é um pensamento, e instrui uma verdade, como também se
vê obrigado a pensar este pensamento” (RANCIÈRE,1992, p. 22).
E se pudermos generalizar o pensamento da poesia de Mallarmé,
como já deve ter ficado claro para o leitor, esse pensamento concerne
à linguagem, o próprio fazer poético, suas condições e possibilidades.

184
A poesia de Mallarmé faz mais que flertar com a filosofia, ela é capaz
de colocar para o pensamento uma questão de natureza filosófica.
O horizonte de expectativas de um leitor do século XX não é
muito diferente do de um leitor do século XIX. Mesmo no século
XXI um leitor de literatura ainda tem certa expectativa de inteli-
gibilidade no que diz respeito mesmo a um texto poético. Passado
o momento de “contemplação” e “êxtase estético”, todo leitor busca
num texto o seu sentido, sua significação, todo leitor espera ser capaz
de determinar o sentido de um texto que lê. Ler é fundamentalmen-
te uma operação de distinção, de demarcação, de determinação. E a
especificidade da obra de Mallarmé reside justamente na resistência
que impõe a todo tipo de leitura limitadora e restritiva.
O sentido não se oferece ao leitor, gratuito e claro, na verdade, o
poema mallarmeano, como, na maioria das vezes, não tem referências
claras, faz com que o leitor não possa encontrar uma resposta para
as questões: “De que trata o poema?”, “Sobre o que o poema fala?”.
Contudo, o ponto aqui seria saber se essa é de fato a questão que um
leitor deve colocar a um poema. Essa pergunta é sinal de duas coisas.
Em primeiro lugar, evidencia que em Mallarmé o sentido não se ofe-
rece claro e límpido numa primeira leitura; em segundo lugar, indica
que talvez seus poemas clamem por outro tipo de leitura.
A leitura, para o autor, é uma prática, se engana o leitor que acre-
dita que pode ler um poema como quem lê uma notícia de jornal.

Apoiar, segundo a página, no branco, que inaugura sua ingenuidade,


a si, esquecida mesmo do título que falaria alto demais: e, quando
se alinhou, numa quebra, a menor, disseminada, o acaso vencido pa-
lavra por palavra, indefectivelmente o branco volta, ainda há pouco,
certo agora, para concluir que nada há além e autenticar o silêncio.
(MALLARMÉ, 2003, p. 234)

Se, de um lado, o ato da leitura pode realizar o que nenhuma cria-


ção do poeta talvez tenha alçando, a abolição do acaso, “palavra por
palavra”, esse ato não deixa de ser a própria autenticação do silêncio,
que após a leitura retorna, definitivamente. A “inteligência do leitor”

185
pode ser capaz de colocar as coisas em ordem, mas não há ordem
que possa resistir ao silêncio que o fim da leitura instaura. Por isso,
não é preciso pressa, nem excesso de rigor, o que é preciso na leitura
dos textos de Mallarmé é uma atenção aos espaços em branco, um
respeito ao tempo do poema, pois é nesses momentos de suspensão
que as ideias costumam se deixar espiar.
Quando questionado pelo jornalista Jules Huret sobre as repe-
tidas acusações de obscuridade feitas por seus contemporâneos, o
poeta respondeu:

[...] é de fato, igualmente perigoso [...] que a obscuridade venha da


insuficiência do leitor, ou da do poeta [...]mas seria trapacear escapar
desse trabalho. Que se um ser de uma inteligência mediana, e com
uma preparação literária insuficiente abre por acaso um livro assim
feito e pretende gozar, há um mal-entendido, é preciso colocar as
coisas no seu devido lugar. Deve sempre haver enigma em poesia,
e esse é o objetivo da literatura – não há outros – evocar os objetos.
(MALLARMÉ, 2003, p. 700)

Para o poeta, a acusação de ininteligibilidade é duplamente pe-


rigosa, pois ela pode se dirigir à incapacidade do leitor de compre-
ender o que lê e à incapacidade do poeta em escrever de maneira
suficientemente clara. Mallarmé não responde a possível acusação
de sua incapacidade poética, prefere simplesmente alegar que
elucidar seus métodos de trabalho seria trapacear. Prefere tratar da
incapacidade do leitor. Ele alega que a leitura da poesia requer certa
inteligência e preparação. Não discutiremos o possível elitismo de
tais afirmações, mas é interessante notar que o poeta não se restringe
à apologia da arte aristocrática e sim esclarece que toda poesia deve
ser, por natureza, enigmática. Para Mallarmé, a poesia perde muito
ao submeter-se ao paradigma da clareza, perde não apenas a ocasião
de proporcionar ao leitor o prazer de decifrar os objetos, mas a pos-
sibilidade de ir além da imediaticidade dos objetos e de sua aparên-
cia, perde a possibilidade de evocar algo que está além das certezas
perceptivas e intuitivas. Assim, se sua poesia é obscura, não se trata

186
de uma incapacidade do leitor e muito menos do poeta, mas sim do
próprio caráter da linguagem poética e do que ela é capaz de evocar
e tornar presente. Pois uma vez desfeito o imperativo de clareza, a
poesia pode quebrar também com os paradigmas e procedimentos
mistificadores da linguagem, ela pode evitar seu processo de reitifi-
cação, contorná-lo e criticá-lo.
No texto “Le Mystère dans les Letres” (“O mistério nas Letras”),
escrito em resposta a um artigo do então jovem Marcel Proust, in-
titulado “Contre l’obscurité”, Mallarmé responde, como mestre dos
poetas mais jovens e em nome de toda “escola”, às críticas de obscuri-
dade. Essa resposta se estende a todas as outras críticas que insistiam
em qualificar a poesia mallarmeana como obscura ou mesmo incom-
preensível. Veremos na leitura sucinta desse artigo como Mallarmé
respondeu a essas críticas com uma argumentação que parte da críti-
ca à linguagem representativa e a própria ideia de real, passando pela
criação poética até chegar ao fundamento da própria poesia, à ideia
de linguagem.
A questão da inteligibilidade do texto passa pela natureza mes-
ma do mundo, complexo e misterioso, pela linguagem como fonte e
reflexo do mistério exterior e define a leitura como prática do des-
conhecido, experiência do indizível. Por essa razão, o poeta não deve
ceder ao imperativo de inteligibilidade:

Todo escrito, exteriormente a seu tesouro, deve, por consideração


àqueles de quem empresta, afinal, para um objeto outro, a lingua-
gem, apresentar, com as palavras, um sentido mesmo indiferente: se
ganha em desviar o ocioso, encantado de que nada lhe concirna, à
primeira vista. (MALLARMÉ, 2010, p. 185)

Todo escrito, toda a literatura, deve em consideração aos objetos


a quem empresta uma linguagem, apresentar um sentido indiferente,
pois de outra maneira ela estaria limitando os objetos, restringindo-
-os às limitações da linguagem, do real e da experiência do próprio
leitor. Apresentar um sentido indiferente significa, para a literatu-
ra, reconhecer suas limitações e respeitar os outros “objetos”, todos

187
aqueles a quem ela pretende emprestar uma linguagem, ou seja, todos
aqueles dos quais ela trata, fala, ou, como Mallarmé gostaria, todos
que ela procura evocar e sugerir. Essa linguagem desafetada, esvazia-
da de toda expressão subjetiva, emocional e sentimental, é, antes de
mais nada, uma resposta à literatura contemporânea e anterior a esse
período, trata-se de uma alternativa diante de uma linguagem ex-
pressiva e sentimental que o romantismo tanto usou, que desgastou.
O objetivo de Mallarmé é justamente esvaziar a linguagem de toda
sua história romântica, de toda sua carga emotiva, a tal ponto que as
palavras sejam como um véu, uma nuvem que encobre o horizonte,
que impede todo olhar direto, toda apreensão imediata.
Se a poesia é misteriosa, se ela evoca os objetos em vez de apre-
sentá-los diretamente, não se trata de simples escolha estética, a
poesia não pode ser nada além de uma nuvem de mistério que paira
sobre o mundo porque, na verdade, há algo de obscuro, de misterioso
no fundo de todas as coisas e, principalmente, no fundo de todos nós,

[...] deve haver algo de oculto no fundo de todos, creio decidida-


mente em alguma coisa de absconso, significante, fechado e escon-
dido, que habita o comum: pois, tão logo essa massa lançada a algum
traço que é uma realidade, existindo, por exemplo, sobre uma folha
de papel, em tal escrito – não em si –, isso que é obscuro: ela se agita,
furacão ciumento de atribuir as trevas ao que quer que seja, profusa-
mente, flagrantemente. (MALLARMÉ, 2010, p. 186)

Não se trata aqui de uma profissão de fé do inefável, da evocação


mística de um mistério sobrenatural e extraordinário que recobriria
o universo. O que Mallarmé procura salientar é que a obscuridade
da poesia não é uma questão de inteligibilidade, não se trata de um
capricho do poeta ou da ausência de inteligência do leitor, mas de
um problema de natureza “social”, um fato concreto. Pois trata-se de
afirmar que existe algo de obscuro no comum, em todos nós, que só
a sugestão pode evocar. A poesia é obscura porque o que ela procura
evocar não se deixa aprender claramente, não permite ser clarificado.

188
No entanto, para o poeta, o que é de fato obscuro, mais obscuro
que o mistério que cerceia o mundo e habita em cada um de nós, é
que “essa massa” possa ser “jogada na direção de algum traço que é
uma folha de papel”, que se agita, como que com inveja, de atribuir
trevas ao que quer que seja. Para o poeta, o escrito tem uma existên-
cia, uma realidade concreta, afinal ele tem um suporte, o papel. E é
isso que é obscuro, o escrito, a tinta negra que o poeta deposita no
papel, que corrompe a brancura da página, obscuro é que algo como a
literatura possa existir, sendo assim, preto no branco, contrariamente
ao fólio dos céus. Misterioso é esse dado concreto, as letras sobre a
página branca, o fato de que numa folha de papel algum mistério
possa transparecer, se dar a ver, tornar-se, inclusive, visível. O que
deve nos levar a questionar por que essas letras negras são capazes de
expor, ao homem, o que ele próprio ignora? Se temos, no fundo de
nós mesmos, algo de absconso, não deveríamos estranhar em ver no
papel essa mesma sombra, essa mesma escuridão, que não passa de
uma imagem de nós mesmos. Por isso, o que deveria provocar ver-
dadeiro espanto é a existência mesma da literatura, e a incapacidade
dos homens de se reconhecerem nesse espaço de trevas e obscurida-
de que parece ser o único capaz de lhes acolher e espelhar.
Em seguida, o poeta descreve a postura desses poetas que sempre
exigem clareza e que se baseiam num modelo representativo respon-
sável pela incompreensão da qual o poeta é vítima. Mallarmé tem
clareza no fato de que o “escândalo é representativo”. Mais uma vez
o problema reside nessa literatura industrial que não cessa

[...] de exibir as coisas num imperturbável primeiro plano, em came-


lôs, ativados pela pressão do instante, de acordo – escrever, no caso,
por que, indevidamente, salvo para expor a banalidade? Em vez de
estender a nuvem, preciosa, flutuando sobre a íntima voragem de
cada pensamento, visto que vulgar o é aquilo a que se atribui, não
mais, um caráter imediato. (MALLARMÉ, 2010, p. 187)

189
O poeta critica essa representação feita em nome da “pressão do
instante”, que só é capaz de exprimir o banal, baseada na ilusão de
que a realidade pode ser captada pela pluma do escritor, que mos-
traria as coisas como elas são tirando de um “tinteiro sem noite”, um
escrito que apresenta apenas “a vã camada suficiente de inteligibili-
dade”. A exigência de inteligibilidade é para ele uma “postura hu-
milhante”, pois “argumentar obscuridade [...] implica uma renúncia
anterior a julgar”, ou seja, exigir clareza e inteligibilidade de um texto
implica isenção de julgamento, de reflexão, o texto que se apresenta
claramente não pode ir além do banal e assim contribuir com a “vas-
ta incompreensão humana” (MALLARMÉ, 2003, p. 230).
Contra a banalidade e a mediocridade de uma literatura que se
curva diante das exigências de inteligibilidade da “massa”, que toma
o real pelo imediato e não cessa de dizer o mesmo, a poesia tem sua
arma, a Música, que aparece para “varrer tudo isso”. Através da união
entre a poesia, o escrito, ou seja, as Letras e a Música, a poesia pode
recuperar seu caráter abstrato, alçar voo em direção às ideias. Só a
união entre as letras e o universo sonoro permite que a poesia apre-
sente ideias e escape da “tagarelice”, da “universal reportagem”. Atra-
vés da música, o mistério que se esconde no fundo de todos nós se
torna audível, perceptível, e encontra sua forma própria de expressão:

O escrito, alçar voo, tácito de abstração, retoma seus direitos em face


da queda dos sons nus: todos os dois, Música e ele, intimando uma
prévia disjunção, aquela da palavra, certamente por pavor de nutrir a
tagarelice. (MALLARMÉ, 2003, p. 231)

Em seguida temos:

Que pivô, escuto, nesses contrastes, à ininteligibilidade? É preciso


uma garantia –
A sintaxe – (...)
Se apraz a alguém, que a envergadura surpreende, incriminar [...]
será a Língua, de que eis aqui o folguedo. (MALLARMÉ, 2010,
p. 189)

190
A sintaxe poderia fornecer uma garantia de inteligibilidade, mas
Mallarmé mostra que na história do francês há uma tradição não de
clareza, mas de negligência com relação à lógica: “Um falar, o francês,
guarda uma elegância a falar em negligenciado”. A “conversa”, por
sua vez, não é menos clara ou direta, pelo contrário, ela é marcada
por “torneios espontâneos” que, além disso, são um artifício na hora
de convencer. Por isso, se alguém se compraz em apontar um cul-
pado, que culpe a Língua. Se a sintaxe não pode garantir nenhuma
inteligibilidade, se ao contrário o poeta só tem a ganhar ao deturpá-
-la de sua lógica, isso se deve a própria Língua, que ganha em signi-
ficação quando se desvia da lógica e das regras gramaticais.

As palavras, por si mesmas, se exaltam em muitas facetas reconhe-


cida a mais rara ou valente para o espírito, centro de suspense vi-
bratório; que as percebe independentemente da sequência ordinária,
projetadas, em paredes de grota, enquanto dura sua mobilidade ou
princípio, sendo o que não se diz do discurso: prontas todas, antes da
extinção, a uma reciprocidade de fogos distante ou apresentada de
viés como contingência. (MALLARMÉ, 2010, p. 189)

A sintaxe não pode oferecer nenhuma garantia de inteligibilida-


de. A Língua parece, então, ser a grande responsável pela obscurida-
de da poesia, que se faz a partir do choque contingente das palavras,
das relações que as palavras estabelecem umas com as coisas, criando
um “centro de suspense vibratório”, de onde ecoam múltiplos senti-
dos, onde se mantém apenas a faceta mais rara de cada palavra, que
ressoa e vale apenas para o pensamento, para o “espírito” se mantém.
Essa faceta de cada palavra que só o espírito é capaz de distinguir
“independentemente da sequência ordinária” é o que “não se diz do
discurso”, a parte da linguagem que é “apresentada de viés como
contingência”. Muito poderia ser dito sobre essa ideia mallarmeana
de poesia que parece ser casual quando é, na verdade, uma simples
aparência de acaso que mascara longas elaborações. Muito poderia
ser dito ainda sobre essa ideia de que as palavras podem, na folha de
papel, contaminar umas as outras, espalhar e disseminar seu sentido,

191
sem obedecer a nenhuma regra ou lei, ao puro sabor do acaso, e mui-
to mais ainda poderia ser dito sobre a capacidade ímpar da lingua-
gem de ir além de nossas expectativas, dessa capacidade de expandir
o reino aparentemente sem fim de suas possibilidades.
Se há ininteligibilidade na poesia, o poeta está longe de ser
o grande culpado, o verdadeiro culpado é o acaso, que parece
interferir nas relações que as palavras estabelecem umas com
as outras. Culpada é a língua, pois, mesmo que a sintaxe fosse
capaz de fornecer uma garantia de legibilidade, mesmo que
ela pudesse fornecer um conjunto de regras que reduziriam a
língua ao estatuto de instrumento, a língua resistiria. O acaso
não deixaria de intervir. A própria constituição da linguagem é
responsável por essa contradição que faz com que ela possa ao
mesmo tempo ser utilizada de maneira “bruta” ou “essencial”.
Assim, não são as regras gramaticais, não são as normas sintá-
ticas e os imperativos de clareza que fazem a poesia, pois eles
são responsáveis pela “tagarelice” pela “universal reportagem”.
A língua é poética, lá onde ela se rende ao acaso, onde ela se
deixa transportar, lá onde ela se entrega as palavras, simples-
mente, nelas mesmas. Só a linguagem é capaz de ao mesmo
tempo criar acasos e aboli-los palavra por palavra.
Se a poesia pode deixar aparecer seu lado contingente, isso
é possível porque ela se faz escrito e música, porque a música
fornece ao poeta não apenas um modelo de inteligibilidade,
mais maleável que a universal reportagem e a língua instru-
mento de descrição, mas também a possibilidade de uma ex-
pressão mais abstrata, menos definida, mais indeterminada. Ela
é que faz da poesia sugestão. A poesia, com a música, perde em
determinação, mas não exatamente em clareza. Tendo a músi-
ca como modelo, a poesia pode evocar, em vez de descrever e
narrar, pode estender uma nuvem de indeterminação sobre o
escrito, escrever preto no branco, voar mais alto, almejar ideias.

192
As ideias sem medida, ou o verso livre

O texto “Crise de verso” é uma montagem composta de diversos


textos, como “Vers et musique en France”, publicado no jornal Le-
National Observer, em 1892, a oitava “Variations sur un sujet”, publi-
cada na Revue Blanche, em 1895, e o prefácio ao Traité du verbe, de
René Ghil, anterior a 1886. Ele se consagra a um debate contempo-
râneo que envolveu toda a imprensa em torno do recém-criado verso
livre. No entanto, como o próprio título indica, não se trata apenas
de uma crise do verso, mas de uma crise de verso, ou seja, uma crise
que diz respeito ao futuro da própria literatura.
Ao anunciar o assunto do artigo, o poeta também indica sua am-
plitude e gravidade: “A literatura aqui sofre uma delicada crise, fun-
damental”. Uma crise que vai abalar os fundamentos da literatura
(MALLARMÉ, 2010, p. 157). O debate, como o poeta observa, está
presente mesmo na imprensa; ele divide duas gerações de poetas,
duas escolas literárias, o Parnaso e os Decadentes, como foram cha-
mados os simbolistas.
A crise começa com a morte de Victor Hugo, o qual citamos
para descrever o horizonte de expectativas de um leitor de poesia do
século XIX. Além de ter sido uma referência literária onipresente
durante praticamente todo o século, Victor Hugo foi acima de tudo
o responsável por uma transformação na concepção de literatu-
ra, pois ele tinha essa “majestosa ideia inconsciente, a saber, que
a forma chamada verso é simplesmente ela mesma a literatura”.
(MALLARMÉ, 2010, p. 157)
É importante lembrar que desde o século XVII a poesia é arte de
compor obras em versos, e essa arte, justamente com a eloquência,
a gramática e a história, forma as belas artes. A poesia era, então,
composta por três gêneros: lírico, dramático e épico (MÉLONIO;
MARCHAL; NOIRAY apud TADIE, 2007, p. 373). Esses três gê-
neros eram, portanto, compostos em versos. Victor Hugo, segundo
Mallarmé, teria acrescentado a esses gêneros a eloquência, a filosofia
e a história.

193
Contudo, o século XIX viu surgir um movimento de emancipa-
ção da prosa, que invadiu os gêneros tradicionais, legando ao gêne-
ro lírico a exclusividade do verso, pois na poesia dramática a prosa
substituiu o verso na cena e a poesia épica deu lugar ao romance,
igualmente em prosa. A literatura como nós conhecemos hoje, que
se divide em romance, teatro e poesia, é, portanto, uma invenção
do século XIX. Porém, mesmo o gênero lírico, ou simplesmente a
poesia, também se viu invadida pela prosa, fazendo com que o verso
perdesse sua soberania. Caso exemplar é o do poema em prosa, cujo
próprio nome anuncia a contradição: poema, obra em verso escrito,
no entanto, em prosa, nominação que bloqueia a identificação direta
entre poesia e verso.
Por essas razões, a morte de Victor Hugo assim como a eman-
cipação da prosa permitiram que o poeta afirmasse que “o verso,
creio, com respeito esperou que o gigante que o identificava a
sua mão tenaz e mais firme sempre de forjador, viesse a faltar;
para, dilacerar-se”, assim “Toda a língua, ajustada à métrica, aí
recobrando seus cortes vitais, evade-se, (...)” (MALLARMÉ,
2003, p. 205). A morte de Victor Hugo, a falta que ele represen-
tou para a poesia, era também uma ausência do verso na cena
poética que permitiu que o verso se liberasse, de sua mão tenaz
e, consequentemente, de todas as outras.
O verso não se liberou somente com a morte de Victor Hugo,
o próprio poeta contribui para essa liberação, ele e muitos outros
que lentamente introduziram alterações na prosódia. Alterações
do hemistíquio no alexandrino com ritmos variados, por exemplo,
entre outros. Mallarmé conta essa história. Ele destaca alguns
precursores, os versos “ondulantes” dos românticos, o verso ímpar
de Verlaine, Henri de Régnier, os versos de onze e treze sílabas,
Laforgue e o verso falso. O privilégio anteriormente conferido à
rima também se modificou. No entanto, essas alterações apenas
prepararam o terreno, pois “toda a novidade se instala, relativa-
mente ao verso livre” (MALLARMÉ, 2010, p. 169), Mallarmé o
nomeou também “polimorfo”.

194
Diante da novidade, o poeta se declara simplesmente “testemu-
nha dessa aventura, em que me quiseram um papel mais eficaz ainda
que ele não convenha a ninguém, dirijo-lhe, ao menos, meu ferven-
te interesse” (MALLARMÉ, 2010, p. 158). Isso porque Mallarmé
sempre manifestou uma posição ambígua com relação ao verso
livre e o possível “fim” do alexandrino; até o poema Lance de dados,
Mallarmé não tinha escrito poemas dessa natureza, e mesmo esse
não é considerado por ele um poema em verso livre; na verdade,
o poeta sempre manteve um grande respeito pelo alexandrino, que,
segundo ele, deveria ser preservado e reservado a “ocasiões especiais”.

Uma alta liberdade de aquisição, a mais nova: não vejo, e permanece


minha intensa opinião, apagamento de nada que tenha sido belo no
passado, continuo convencido de que nas ocasiões amplas obedecer-
-se-á sempre à tradição solene, cuja preponderância provém do gê-
nio clássico [...]. (MALLARMÉ, 2010, p. 161)

O verso tradicional não deve ser completamente abandonado,


muito pelo contrário, seu prestígio se mantém intacto e, por isso,
ele deve ser reservado a ocasiões especiais. Não se trata, portanto, de
impor unicamente o verso livre de maneira dogmática, pois isso seria
retornar a um momento de restrição de criação, enquanto o verso
livre permite justamente que o poeta crie, de maneira “individual”,
absolutamente “pessoal”, que adapte a língua a seu gosto, a seu ouvi-
do, a seu estilo e ao assunto que bem desejar:

O notável é que, pela primeira vez, no curso da história literária


de povo algum, concorrentemente aos grandes órgãos gerais e
seculares, em que se exalta, segundo um latente teclado, a or-
todoxia, qualquer um com seu jogo e seu ouvido individuais
pode se compor um instrumento, desde que ele sopre, o roce ou
fira com ciência; usá-lo à parte e dedicá-lo também à Língua.
(MALLARMÉ, 2010, p. 161)

195
O verso novo se configura simplesmente como uma alterna-
tiva ao verso estrito, outra opção de criação que tem a vantagem
de permitir a livre “expressão” do poeta, que articula essa ex-
pressão a uma “flauta pessoal”, a um ritmo próprio a seu estilo.
Assim, uma poética não designa mais um conjunto de regras e
normas que um poeta deve obedecer para compor com exatidão
seus versos, um bom poeta não é mais aquele que é capaz de res-
peitar e se adequar às regras dos tratados. Ele é aquele capaz de
criar um universo poético particular, com temas, ritmos, estilo
adequados, um poeta capaz de verdadeiramente fazer jus à ideia
de expressão, que cria a partir das relações internas possíveis
entre conteúdo e forma.

Verso e sociedade

Em torno de 1886, o simbolismo atingiu seu apogeu com a


publicação de alguns textos que contribuíram para a divulgação
e consagração da obra de seus grandes expoentes. Entres esses
textos estão “Poètes maudits”, de Verlaine, com três estudos
sobre Mallarmé, Rimbaud e Corbière, respectivamente, além
de “À rebours”, de J-.K. Huysmans, que apresentava Mallarmé
como um dos grandes mestres da nova poesia, o “Traité du
verbe”, de René Ghil, e finalmente, o “Manifeste symbolis-
te”, de Jean Moréas. Para Mallarmé, particularmente, os dois
primeiros textos citados coroaram-no como grande mestre da
nova geração de poetas.
Com a recepção positiva de sua obra, Mallarmé adquire
uma consciência renovada de seu papel diante das novas ge-
rações de poetas, ele se vê como mestre de escola e se inscreve
na história literária francesa, torna-se um paradigma do gosto
moderno. Os tempos de Victor Hugo são definitivamente par-
te do passado, novas preocupações surgem com relação ao liris-
mo, ditadas principalmente pela música, pela obra de Wagner,
sobretudo, que com a ideia de arte total colocou um grande
desafio para os poetas de seu tempo. É nesse contexto que

196
Mallarmé escreve “La musique et les Lettres”, texto concebido
para uma conferência proferida na Inglaterra, onde o poeta se
coloca como portador e representante de uma novidade poé-
tica, o verso livre: “Eu trago notícias. As mais surpreendentes.
Mesmo caso ainda não se viu. Tocaram no verso” (MALLAR-
MÉ, 2003, p. 64).
O tom é irônico e o estilo imita o jornalístico. O poeta pro-
cura criar polêmica. Já o emprego de “On” marca a ambiguidade
do papel de Mallarmé nesse atentado quase “terrorista” ao verso
tradicional, ele nos impede de identificá-lo diretamente nes-
sa revolução prosódica. O poeta parece buscar evocar em seus
leitores a imagem dos recentes ataques terroristas na França,
enquanto a necessidade de transformação poética é comparada à
necessidade de transformação política. Pois, até nesse momento
na história de França. “Os governos mudaram; sempre a prosó-
dia continuou intacta: seja que, nas revoluções, ela passa des-
percebida ou que o atentado não se imponha com a opinião de
que este último dogma não possa variar” (MALLARMÉ, 2003,
p. 64). Se a prosódia não sofreu nenhuma alteração nos últimos
séculos na França, apesar de todas as transformações políticas e
sociais, isso contribui para mostrar a urgência das transforma-
ções que o verso livre operou, pois, se durante as revoluções a
prosódia passou sempre despercebida, ou se as transformações
não ocorrem porque se acreditava que o verso não pudesse se
transformar, as duas razões apontam, na verdade, a distância
entre o verso e a sociedade que o lia e escrevia. E essa situação
não pode, de maneira nenhuma, perdurar. É preciso que o verso
se redima de seu atraso diante da sociedade e se adapte a nova
situação social. Trata-se de afirmar a possibilidade de uma
revolução no interior da literatura, uma mudança de “governo”,
de “direção”, que permite que literatura e sociedade se alinhem,
caminhem lado a lado, em direção ao novo.
“Crise de vers” historiciza a literatura e a questão do verso livre,
na maneira mais radical do termo, mostrando que as transformações
poéticas são urgentes, imperativas. Durand (1998, p. 164) propõe

197
cinco hipóteses, cinco fatos históricos e no interior da história lite-
rária, que permitiram que o verso livre eclodisse e reivindicasse seu
espaço nas folhas em branco, tal como nas praças públicas. Segundo
o autor, em primeiro lugar o verso livre se coloca numa posi-
ção herege em relação à escola parnasiana e o dogma do verso
“estreito”, impecavelmente limitado; em segundo lugar, a escola
parnasiana não oferecia muitas perspectivas de carreira para os
poetas recém-chegados; a terceira e quarta razões que o autor
aponta são o horizonte social de recepção do gênero poético,
que se restringiu consideravelmente com as restrições e norma-
tizações que os parnasianos pregavam e, em quinto lugar, está a
relação íntima e estreita que o verso livre mantém com as for-
mações sociopolíticas e com o equipamento tecnocultural desse
começo da Terceira República. Vejamos, resumidamente, como
cada uma dessas razões contribuiu para o advento e cristalização
do verso livre na cena poética francesa.
A primeira razão que Durand destaca é a relação entre os
poetas do verso livre e os parnasianos. No momento que o verso
livre eclode, os parnasianos dominavam a cena literária francesa,
e, do alto de seu reinado, empreenderam e impuseram o que esse
autor chama de racionalização dogmática dos valores formais.
Na famosa entrevista a Jules Huret, Mallarmé explica a situação
nos seguintes termos:

Mais imediatamente, o que explica as recentes inovações é


que compreendemos que a forma antiga do verso não era a
forma absoluta, única e imutável, mas uma maneira segura de
fazer bons versos [...] fora dos preceitos consagrados, é pos-
sível fazer poesia? Nós achamos que sim e tínhamos razão.
(MALLARMÉ, 2003, p. 698)

A escola simbolista, ou os decadentes, fizeram campanha pelo


verso livre para romper com os códigos sacralizados da prosódia par-
nasiana. Essa campanha fez do alexandrino estrito o “santuário dos
ídolos”, o tabernáculo das “formas eternas”, como gostava de dizer

198
Leconte de Lisle, e por isso mesmo foram “pejorativamente” chama-
dos de decadentes, porque romperam com uma tradição clássica, que
fazia com que a glória da nação francesa se medisse pela cesura no
hemistíquio de um verso de 12 sílabas. Segundo Mallarmé (2003, p.
697), ainda na mesma entrevista,“Nós jogamos e tocamos demais, e
nós os deixamos”.
Depois de 1870, a quantidade de poetas aumentou considera-
velmente na França, enquanto as tiragens editorais nunca foram tão
baixas. A grande quantidade de poetas no mercado literário aumenta
a concorrência e obriga os poetas a buscarem meios para se diferen-
ciarem uns dos outros, para se destacarem da massa, daí a grande
quantidade de escritas individuais e de doutrinas, que viam no verso
livre, segundo Durand (1998, p. 168), sua expressão e legitimação
genéricas. Assim, o verso livre era para a nova escola literária que
surgia, seja ela simbolista, seja decadente, uma maneira de ocupar o
espaço dominante no mundo literário e, ao mesmo tempo, se opor à
escola parnasiana. Uma vez ocupado esse espaço, o verso livre permi-
te que cada autor, individualmente, se diferencie dos outros, criando
sua própria poética.
Estamos diante de uma ruptura estética entre gerações distintas
de poetas, a geração nascida dos anos 1820 e a geração dos anos
1840. Uma ruptura que Mallarmé nomeia “cisão” entre verso livre
e verso “estrito”. Entretanto, como vimos anteriormente, Mallarmé
sempre guardou um grande respeito para com o alexandrino, por
isso mesmo o poeta não clama por uma ruptura absoluta com o ver-
so “metrificado” e muito menos com a já antiga escola parnasiana.
Segundo Mallarmé os esforços dos poetas dessas diferentes gerações
poderiam se unir,

[...] pois se, por um lado, os parnasianos foram, de fato, os servidores


absolutos do verso, sacrificando-lhe inclusive sua personalidade, os
jovens tiraram diretamente seus instintos da música, mas eles so-
mente espaçaram o enrijecimento, a construção parnasiana e, para
mim, os esforços podem se completar. (MALLARMÉ, 2003, p. 699)

199
O verso livre não seria nada além de um espaçamento efetuado
no próprio verso tradicional, esse “espaçamento” a que o poeta se
refere são as diferentes medidas métricas que ele pode agora con-
ter, porém, como ainda é definido a partir de seu ritmo, do estilo,
pouco difere do verso tradicional. Por isso, Mallarmé acredita que
as novas gerações poderiam criar em conjunto com os parnasianos.
Por mais moderado que o poeta tenha sido nessas considerações,
não podemos deixar de mencionar a definição de verso apresentada
nesse trecho. O poeta afirma que o verso livre se define e se configura
não pelo ritmo ou estilo, como vimos anteriormente, mas pelo seu
“espaçamento”. O verso se define a partir da tipografia do poema,
de seu lugar na folha, assim à questão “O que é o verso?”, Mallarmé
parece responder como Roubaud (1978, p. 121) recentemente, em
La vieillesse d’Alexandre, “vá à linha”.
Durand continua sua exposição sobre as relações entre verso
tradicional e verso livre e as condições históricas do advento deste
último examinando a relação entre os poetas e seu público leitor.
O autor ressalta o fato evidente de que o verso livre rompe com o
horizonte de expectativas dos leitores do século XIX, criado a partir
do modelo de ensino de literatura do Segundo Império e responsável
pela transmissão de modelos literários clássicos e sua fundação em
formas perfeitas e bem-acabadas da poesia. Segundo Durand (1978,
p. 171), o ensino da retórica, as explicações literárias, os trabalhos
de escrita imitativa e os rituais de exercício de prosódia constitu-
íram o verso alexandrino, estrito, tradicional, e o conjunto do sis-
tema simbólico no interior do qual ele figura como um verdadeiro
monumento da cultura. O verso livre seria uma maneira radical de
romper com os mecanismos escolares de reprodução literária, mas
também com os cânones que representavam o Império. Além disso,
na Terceira República, as políticas públicas de acesso ao ensino e de
alfabetização aumentaram o público leitor não apenas qualitativa-
mente, pois as políticas sociais e culturais diversificaram também o
público literário.
O regime de gêneros concordava com uma sociedade de ordens e
de classes rígidas e estáveis, com a instalação da classe média e com

200
a possibilidade de ascensão social que a república tornava tecnica-
mente possível. Surge, assim, outro sistema de classificação de gêne-
ros, não mais representativo e adequado ao assunto, mas horizontal,
respondendo também às exigências verticais dos públicos visados. A
poesia procurava, desse modo, promover uma conversão semelhante
à operada pelo romance, dirigindo-se às diferentes classes e aos dife-
rentes públicos, tentando escapar à classificação de gênero “inferior”.
Essa iniciativa fazia parte, segundo Durand (1998, p. 178), de
uma disposição geral no interior do mercado cultural pós-roman-
tismo, uma disposição para abranger o repertório de possibilidades
formais e de tomar o partido da diversidade ou da pluralidade sem
freios, a despeito do princípio de estabilidade e de unidade que pre-
valecera até então. Enfim, a liberação poética corresponde e respon-
de ao sistema social que organiza o campo social como um todo. A
República reclama, para poder se fundamentar, um distanciamento
recíproco dos sujeitos sociais, os “cidadãos” não podem ser contíguos,
sem o que se evaporaria a cidade abstrata que os nomeia. Eles devem
permanecer separados uns dos outros, bem como da estrutura ausen-
te e anônima do Estado.
Para Mallarmé, a instabilidade do verso livre correspondia per-
feitamente ao Estado político da França nesse século que conheceu
tantas mudanças e revoluções, e a necessidade de afirmação indivi-
dual dos poetas surge, indubitavelmente, dessa configuração social:

[…] indubitavelmente: que numa sociedade sem estabilidade, sem


unidade, não se pode criar arte estável, definitiva. Desta organiza-
ção social inacabada, que explica ao mesmo tempo a inquietude
dos espíritos, nasce a inexplicável necessidade de individualidade
das quais as manifestações literárias presentes são o reflexo direto.
(MALLARMÉ, 2003, p. 698)

Para Mallarmé, a instabilidade política de seu tempo se reflete na


literatura e a inquietude que essa instabilidade provoca se transforma
na necessidade de expressão da individualidade, como se a literatura
fosse o espaço privilegiado onde o que não encontra seu lugar na

201
sociedade e na política pudesse se manifestar. A crise provocada pela
invenção do verso livre e da emancipação da prosa provocou uma
revisão na ideia de verso e, por consequência, de poesia e de litera-
tura. Segundo Mallarmé,“Que verso há tão logo se acentua a dicção,
ritmo desde que estilo” (MALLARMÉ, 2003, p. 205). A liberdade
métrica permite que o verso, agora “polimorfo”, englobe toda a prosa,
já que ele se caracteriza como “estilo” e “ritmo”, permitindo, assim,
que a poesia se defina e seja medida pela capacidade do poeta em
articular estilo, assunto, ritmo de maneira, diríamos, “original”, co-
erente, ou “pessoal”. Isso significa que expressão individual não se
mede pela quantidade de exclamações ou emoções que um poeta é
capaz de transcrever em alexandrinos, mas pelo talento com o qual
o poeta elabora sua própria poética. Por essa razão, Mallarmé podia
afirmar que Hugo, mesmo inconscientemente, definiu o verso como
toda a literatura.
Por essas razões, “Crise de verso” é um texto de ruptura. Ruptura
poética com o Parnaso e ruptura social com o horizonte de expec-
tativas do leitor. Rupturas que buscam inserir a poesia no contexto
social renovado pelas transformações políticas que culminaram na
Terceira República.

O verso que remunera o defeito das línguas

Vimos como, para Mallarmé, acreditar que a linguagem possa


exprimir a realidade é um erro, mas o verso pode, através das modu-
lações que opera, remunerar “filosoficamente” o defeito constitutivo
da linguagem.

As línguas, imperfeitas nisso que várias, falta a suprema: pensar sendo


escrever sem acessórios, nem cochicho, mas tácita ainda a imortal fala,
a diversidade, sobre a terra, dos idiomas impede ninguém de proferir
as palavras que, senão, se encontrariam, por um cunho único, ele mes-
mo materialmente a verdade. (MALLARMÉ, 2010, p. 161) 

202
Para justificar o caráter arbitrário de todo signo linguísti-
co, Mallarmé recorre ao mesmo argumento que será utilizado por
Saussure, a diversidade das línguas. Questão que “não valha de ra-
zão para considerar Deus”, ou seja, a diversidade das línguas pare-
ce uma questão suficientemente complicada e capaz de colocar em
questão o monoteísmo, ela vale bem um mito, Babel. Pensar que a
diversidade das línguas esconde o fato de que uma língua suprema e
única não existe, nos remete a outro texto de Mallarmé, que tratamos
anteriormente Les Dieux Antiques, no qual o mito aparece como a
fala primeira, a língua primordial, diretamente ligada à natureza, ao
ciclo do sol que, no entanto, ao longo dos tempos, devido às diversas
migrações e à distância que separava um povo do outro, perdeu seu
vínculo originário com a natureza.
O signo é arbitrário, pois as línguas são diversas. No entanto, para
Mallarmé há ainda outro argumento, interior ao próprio signo, que
justifica essa arbitrariedade e que não diz respeito à sua referência,
mas à relação entre som (imagem acústica) e significado. O poeta
cita alguns exemplos, como as palavras “jour” e “nuit”, “dia” e “noi-
te”. Em português (os poetas devem agradecer esse feliz acaso) não
temos esse problema, mas em francês a significação das palavras se
opõe a sua sonoridade, assim “jour” (dia) tem uma sonoridade “som-
bria” para o poeta, enquanto “nuit” (noite) é sonoramente “clara”,
“iluminada”. Isso é o que o poeta chama de “defeito” das línguas, que
ele classifica como uma “perversidade”, mas pode ser “remediado”
através do verso: “Somente, saibamos não existiria o verso: ele filoso-
ficamente remunera o defeito das línguas, complemento superior”
(MALLARMÉ, 2010, p. 162).
A arbitrariedade que constitui as línguas impede, portanto, toda
tentativa literária que se baseie num princípio mimético, represen-
tativo, pois esse acaso que torna toda língua imperfeita separa de-
finitivamente as palavras das coisas, sua música de seu significado.
Assim, o verso, ao reunir e fazer com que as palavras emprestem
umas às outras aquilo que em si mesmas não possuem, pode criar
sonoridades em harmonia com a significação, ou criar significações a
partir da sonoridade das palavras, do ritmo, dos desencontros e que-

203
bras sintáticas. A literatura, como forma “essencial da fala”, através
da sugestão e da alusão, nega os objetos, porque se nega a descrevê-
-los, a nomeá-los. A poética mallarmeana demonstra que, através
da linguagem, do verso, podemos apenas medir a distância que nos
separa dos objetos e, assim, criar ficções, ideias.
A poesia opera uma transposição de “estrutura” que visa apresen-
tar a noção pura que se desprende musicalmente dos objetos:

Digo: uma flor! E, fora do oblívio em que minha voz relega algum
contorno, enquanto algo de outro que os cálices conhecidos, musi-
calmente se eleva, ideia mesma e suave, a ausente de todos os bu-
quês. (MALLARMÉ, 2003, p. 213)

Esse trecho concebido inicialmente para figurar como prefá-


cio ao  Traité du verbe,  de Renée Ghil, se configura a partir de
diversos elementos, presentes em poemas que apresentamos an-
teriormente neste livro. Em “Fleurs”, o verso presente na primeira
estrofe que evoca o ato de criação é “au jour/Premier”, “Jadis tu
détachas les grands calices pour”, em Hérodiade temos: “des calices
de mes robes sortirait le frisson blanc de ma nudité”. Vemos que a
ato de criação aparece com um desprender-se, um ato de desliga-
mento, de deslocamento, os cálices evocam não somente as flores,
mas também um recipiente sagrado. Em “Prose”, temos: “D’un
lucide contour, lacune/Qui des jardins la separa”, as flores aqui,
ou simplesmente seus contornos, se separam do jardim, como no
trecho de “Crise de vers”. A partir do momento em que o poeta
nomeia a flor, quando ela é transposta para o livro, ela se separa de
todo e qualquer jardim, de toda e qualquer flor, seus contornos se
desprendem da palavra e de todas as flores reais, pois eles já não
são mais nem palavra nem a mesma realidade.
Durand propõe uma leitura desse fragmento presente no fim do
texto “Crise de verso”, que se baseia justamente no lugar que ocupa
no texto, ou seja, como o fim da crise, a configuração de uma saída
para ela. Esse parágrafo responderia, segundo o autor, ao senso co-
mum que submete a poesia à questão do mundo, que quer ver o

204
mundo através da poesia, que vê a poesia como uma representação
do mundo. Para o autor, o papel que Mallarmé confere à poesia, na
conclusão de “Crise de verso”, é evitar, de antemão, que o poema seja
reconduzido ao real e julgado pela sua fidelidade ou infidelidade para
com ele. Assim, para evitar que a realidade prática se oponha ao po-
ema, é preciso que o poema postule, na e pela sua escrita, a ausência
do mundo ao qual ele envia, e, portanto, para o qual ele não pode
mais ser remetido.
Certamente, trata-se de uma resposta à exigência do sen-
so comum de uma linguagem representativa, de uma literatura
mimética, mas a crítica ao caráter referencial da linguagem não
pode ser produzida apenas pela simples exclusão de toda e qual-
quer referência. Mallarmé não procura realizar uma “negação
linguística do mundo e da história” como quer Durand. Trata-
-se, na verdade, de reivindicar um estatuto de verdade para o
próprio fato literário, para a ficção. Trata-se de reivindicar um
modo de existência distinto do real do qual podemos ter uma
certeza imediata e sensível.
No trecho citado, a flor “dita”, a palavra pronunciada, não sig-
nifica o ato de abolição de todas as outras flores, nenhuma palavra
poderia ir tão longe. No entanto, a palavra não é a flor, ela se dife-
rencia das flores reais, a palavra “flor” como o perfume que as flo-
res exalam, se desprende da flor existente e assim, uma distância
se instaura, distância que separa a realidade das ideias. A flor de
Mallarmé é mais verdadeira que a flor real, pois é no seu reflexo
que ela se mostra, que ela aparece, como reflexão, ideia, outra, e
ausente de todos os buquês.

A música e as ideias

A discussão em torno do verso livre, ao envolver as questões


de prosódia e ritmo poético, coloca em evidência a relação íntima
entre verso e música. Ela aponta o fato de que o verso não é sim-
plesmente composto de uma série de sons. No entanto, quando
Mallarmé fala da música, ele entende, muito mais do que a mu-

205
sicalidade do verso, a música é um conceito, uma ideia de forma,
através do qual a poesia pode alcançar uma dimensão ideal, a
dimensão das próprias ideias.
A música é compreendida para além do verso, ela apresenta “as
sinuosas e móveis variações da Ideia”, mas ela é vã quando a lingua-
gem não lhe confere um sentido, por isso música e letras devem,
unidas, compor a poesia:

Não que um ou outro elemento não se afaste, com vantagem, em


direção a uma integridade à parte triunfante, enquanto concerto
mudo se ele não articula e o poema, enunciador: de sua comunidade
e retempero, esclarece a instrumentação até a evidência sob o véu,
como a elocução desce ao anoitecer das sonoridades. O moderno
dos meteoros, a sinfonia, ao sabor ou à revelia do músico, aproxima
o pensamento; que não se vale mais somente da expressão corrente.
(MALLARMÉ, 2010, p. 163)

Para escapar da “universal reportagem”, o poeta recorre à mú-


sica, arte menos plástica, sem imagens. A música é a arte abstrata
por excelência;como um “concerto mudo” ela oferece a mais au-
têntica expressão do mistério, ela não descreve ou narra, ela não
diz, apenas sugere.
Se o teatro apresenta objetivamente mesmo os dramas mais
subjetivos, se ele pode reivindicar uma existência, mesmo que
momentânea, na música, a união entre aparência e essência, en-
tre forma e conteúdo, parece se realizar inteiramente. Pois nela
o sensível aparece em toda a sua verdade, pois a música é, não
sendo. Ela é uma arte eminentemente abstrata, expressão subje-
tiva por excelência, sua realização corresponde à natureza de seu
material. A música não é arte do espaço, mas do tempo, no tempo
ela se faz e se dissolve. Se o teatro transforma dramas interiores
em ação, na música a execução é claramente uma dissolução, nada
acontece de fato, sua realização é negação de toda materialidade
e objetividade em nome da subjetividade que encontra espaço no

206
tempo da execução musical, uma subjetividade que não ousa se-
quer se nomear, de caráter negativo como a própria música.
Mallarmé aparece aqui como herdeiro das discussões sobre o ca-
ráter absoluto da música que percorreram todo o idealismo alemão.
No primeiro romantismo, dos irmãos Schlegel, Schelling, E.T.A
Hoffman, entre outros, a música aparece como veículo privilegiado
do sublime, compreendido a partir da noção kantiana de “conceito
indeterminado da razão”. O romantismo encontrou na ausência de
determinação particular da música o veículo mais adequado para ex-
por essa inadequação entre a razão e seu objeto.
Já para Schopenhauer, que nos parece mais próximo de Mallar-
mé, a música não é a expressão de uma inadequação, mas o melhor
veículo para apresentar o que é da ordem da vontade ou a verdade da
representação. Pois na música o que se expõe não é a impotência da
razão diante de seu objeto, mas o motor que move toda representa-
ção, a vontade. Aquela mesma que apareceria quando a poesia fizesse
do seu método uma reflexão sobre a linguagem.
A música é para Schopenhauer completamente distinta das ou-
tras artes. Nela não conhecemos a cópia de uma ideia e, no entanto,
ela é capaz de produzir no homem um efeito profundo, “temos de
reconhecer-lhe uma significação muito mais séria e profunda, refe-
rida à essência íntima do mundo e de nós mesmos” (Schopenhauer,
2005, p. 337). A música, assim como as outras artes, “tem de estar no
mundo como a exposição para o exposto”, mas seu efeito parece mais
forte, mais vigoroso, infalível.
A música opera através de caracteres abstratos que possuem sig-
nificado no interior de uma escala, seu material é puro signo, que
nada significa em si mesmo, cada nota existe e se define com relação
às outras que a rodeiam, como as palavras que no poema devem ilu-
minar e refletir umas às outras.
Enquanto abstração dos elementos concretos e materiais do
mundo, da materialidade que constitui todas as coisas, seu fundo de
mistério e verdade, irrevogável e inefável, a música se reúne às letras,
toma forma de poesia para enunciar o que é da ordem da Ideia. “A
Música e as Letras são a face alternativa aqui estendida em dire-

207
ção ao obscuro; cintilante lá, com certeza, de um fenômeno, o único,
eu o chamei Ideia.” (MALLARMÉ, 2003, p. 69) A perfeita união
entre as duas artes se realiza quando a poesia é capaz de anunciar
o mistério, porém preservando-o, ou seja, enunciá-lo sonoramente,
musicalmente, sem nomeá-lo, pois isso seria eliminar a possibilidade
de conceder espaço, nos espaços em branco do poema, para a imagi-
nação do leitor.
Para Schopenhauer, as artes estimulam o conhecimento das coi-
sas particulares por meio das Ideias, que são a objetivação da vonta-
de. As artes, na verdade, nos apresentam o próprio mundo, que não
é outra coisa senão o fenômeno das Ideias. No entanto, a música é
capaz de ultrapassar as Ideias e todo o mundo fenomênico; ela pode-
ria existir, inclusive, se não houvesse mundo.

De fato, a música é tão imediata objetivação, é cópia de toda a


vontade, como o mundo mesmo o é, sim, como as Ideias o são, cuja
aparição multifacetada constitui o mundo das coisas particulares. A
música, portanto, de modo algum é semelhante às outras artes, ou
seja, cópia das Ideias, mas cópia da vontade mesma, cuja objetivida-
de também são as Ideias. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 338)

Dessa maneira, “a música é a cópia de um modelo que ele mesmo


nunca pôde ser traduzido à representação”, pois não representa, é a
própria vontade. Assim, a música absoluta fornece à poesia um mo-
delo de arte não representativa, não mimética, um paradigma para
a constituição de algo como uma poesia pura. Vimos anteriormente
que o método mallarmeano da ficção buscava, ao expor o funcio-
namento da linguagem, reduzir o homem à vontade. Vontade aqui
deve ser entendida no sentido schopenhaueriano do termo, como a
totalidade do mundo, “o mundo é minha vontade”, cuja outra metade
é composta pela afirmação “o mundo é minha representação”.
Assim, porque a música nunca expressa os fenômenos, mas sua
essencialidade íntima, ela possui uma universalidade que a aproxima
da filosofia. Ela é a expressão do mundo através de uma linguagem
universal que está para os conceitos assim como eles estão para as

208
coisas particulares. Desse modo, explicar a música e o seu funciona-
mento seria o mesmo que explicar o mundo através de seus concei-
tos, como faz a verdadeira filosofia, segundo Schopenhauer.
A música é, portanto, a arte que pode fornecer à poesia um pa-
radigma de arte não representativa, mas que também não é uma
simples prosa filosófica, como queria Hegel. Na verdade, a poesia
deve ser como a música, o modo mesmo de apresentação da ver-
dade íntima das coisas, ou seja, o que a filosofia expõe através de
conceitos cabe a música expor através de seu próprio material, assim
a poesia deve encontrar na linguagem um meio de expressão próxi-
mo do material musical. Isso é possível quando a linguagem aparece
desvinculada de toda forma de narração e descrição que, além de
torná-la demasiado representativa, reifica a linguagem e subtrai sua
verdadeira capacidade expressiva.
Em “La musique et les Lettres” (2003), o poeta anuncia que a
pesquisa sobre o verso livre fez com que “o ato de escrever se exami-
nasse até a sua origem”, o que corrobora com a afirmação de “Crise
de vers” de que a crise de verso, provocada pela crise do verso tradi-
cional, é uma crise dos fundamentos da literatura, em que se ques-
tiona a possibilidade de existência do texto literário, as razões que
movem um poeta a escrever e sobre a natureza de seu ato.

[…] a saber se escrever é preciso. Os monumentos, o mar, a face


humana […]não valeriam uma descrição, evocação digamos,
alusão eu sei, sugestão: [...] Seu sortilégio, a ele, se não é libe-
rar, fora de um punhado de poeira ou realidade sem fronteiras,
ao livro, mesmo como texto, a dispersão volátil do espírito, que
não pode fazer de nada outra coisa que a musicalidade de tudo.
(MALLARMÉ, 2003, p. 65)

O sentido dessa conferência começa neste momento a se desve-


lar. Se o verso tem uma relação com a música, não é uma questão de
ritmo, de cadência. A música é a verdade da literatura que não pode
fazer nada, a não ser evocar a “musicalidade de tudo”, a “dispersão
volátil” das coisas, de tudo o que é. Não se trata de defender o ritmo

209
do verso, independentemente do número de sílabas, como vemos em
muitos outros poetas de seu tempo, sobretudo Verlaine, com seu “la
musique avant toute chose”, mas trata-se de compreender a música
como forma de expressão de algo cuja presença, cuja forma de apre-
sentar-se é a da volatilidade. E se a Música, com a ajuda das Letras,
é capaz de fazer resplandecer e brilhar algo da ordem das ideias é
porque elas, ao compor a poesia, conferem-lhe a forma mesma das
ideias, que é essa forma, volátil, evanescente.
Para Mallarmé, a poesia não busca outra coisa que criar a noção
dos objetos, ou melhor, esposar a noção, unir-se a ela. Criar uma
noção, ou apreendê-la é o mesmo que “saisir les rapports”, ou seja,
estabelecer uma rede de relações, traçadas entre as palavras, suas le-
tras, seus sons. Assim, escrever é sugerir para liberar a realidade de
seus contornos ilusórios, é transpor o mundo para o Livro, espaço de
ficção, espaço de verdade, pois no Livro as coisas aparecem tais quais
elas são, “musicalmente”, como “dispersão volátil”.
Schopenhauer termina suas considerações sobre a música, acres-
centando que haveria muito a dizer sobre a forma como a música é
percebida, “a saber, única e exclusivamente por meio do tempo, com
total exclusão do espaço, também sem influência do conhecimento
da causalidade, portanto do entendimento” (Schopenhauer, 2005, p.
349). Essas considerações nos indicam a via que Mallarmé seguiu
na elaboração de sua poética. A música não apenas fornece um pa-
radigma de reflexão sobre a representação e um modelo de arte não
mimética, mas também, por estar imune à influência da causalidade,
pode indicar um caminho para a reflexão sobre a natureza do acaso e
sua influência na criação poética. Vimos que para Mallarmé o tempo
é o meio que permite que o acaso se deixe entrever, resta sabermos
como isso ocorre, de fato, na poesia mallarmeana. Esse será o objeti-
vo do próximo capítulo.

210
IX
O LANCE FINAL

É sempre mais difícil


ancorar um navio no espaço.
Ana Cristina César

Nada mais fácil do que julgar o que tem conteúdo e solidez;


apreendê-lo é mais difícil;
e o que há de mais difícil é produzir sua exposição, que unifica ambos.
Hegel

Vimos ao longo dos capítulos anteriores que o poema mallarme-


ano, enquanto obra de ficção, deve no seu interior funcionar como
um espelho no qual a própria linguagem possa se mostrar, aparecer
como o que ela realmente é. Se a ficção tem na linguagem seu méto-
do, o poema deve também fazer de seu material, de seu instrumento,
um método. No interior do poema, a linguagem deve se apresentar
como ela é, se desvelar, mostrar-se a si mesma, esse é o ato por ex-
celência que a poesia deve realizar, desvelar sua natureza efêmera, se
mostrar como outra forma de aparecer da linguagem, da ciência, do
próprio homem.
A linguagem se desenvolve no tempo, e através dele, de sua es-
sência eminentemente negativa, se mostra como idêntica ao acaso,
como um puro devir. A questão que se coloca aqui é saber se o acaso
pode ser algo além de um simples ato momentâneo, se há algo que se
inscreve e que se constrói a partir do acaso, de seu caráter efêmero e
fugaz. Trata-se de acompanhar esse movimento de desvanecimento
da linguagem, buscando encontrar os traços e rastros do acaso ou as
ruínas que o tempo vai deixando para trás.
Vimos no capítulo anterior que a poesia mallarmeana encontra
na música um modelo de arte não representativa, mas vimos também
que para Mallarmé só a união entre a música e as letras é capaz de
expressar o que é da ordem das Ideias. Trata-se, neste momento, de
compreendermos como essa união opera na sua própria poesia.
A poesia, ou as Letras, se constitui, grosso modo, a partir da união
entre as letras e a música, entre os caracteres escritos na página, seu
contorno concreto e a sonoridade das palavras, pronta a se desman-
char no ar. É justamente realizando a união desses elementos que
o poeta constrói sua poesia, a partir de uma leitura literal do que
seriam as Letras e a Música. No entanto, é importante ressaltar que
tanto a Música como as Letras podem também, como vimos, ser
entendidas como formas mais amplas, ideias gerais da forma poética
ou ideais artísticos.
Nas Notas sobre a linguagem encontramos o seguinte trecho:

Daí as duas manifestações da Linguagem, a Fala e a Escrita, desti-


nadas (se nos atermos aos dados de Linguagem) a se reunirem ambas
na ideia do Verbo: a Fala (criando analogias de coisas pelas analogias
de sons) [ f° I] a Escrita marcando os gestos da Ideia se manifestando
na fala, e oferecendo sua reflexão, de maneira a perfazer, no presente
(pela leitura), e a conservá-las para o futuro como anais do esforço
sucessivo da fala e de sua filiação: e a dar o parentesco.
de maneira que um dia, suas analogias contrastadas, o Verbo apareça
por trás de seu meio de linguagem, entregue a física e a fisiologia,
como um princípio, desprendido, adequado ao Tempo e à Ideia.
(MALLARMÉ, 1998, p. 506)

A linguagem possui dois modos de manifestação concretos, duas


formas de ser, a escrita e a fala. Esses dois elementos compõem a
“Ideia do Verbo”, ou a poesia. A fala cria analogias entre coisas ao es-
tabelecer analogias entre sons. Ela coloca em relação às coisas através
de uma espécie de rima que aproxima universos distintos, criando
novos sentidos, novas relações, novos significados. A fala também
possui um caráter gestual; ao criar analogias entre as coisas e os sons
ela inscreve o sentido enquanto som, pois o gesto “sonoro”, enquanto
forma abstrata, sem determinação concreta, e como dissolução no
espaço e no tempo, é também uma forma de aparecer da ideia. Já a

212
escrita se define a partir das discussões que apresentamos anterior-
mente sobre a importância do teatro, do balé e da mímica no desen-
volvimento da poética mallarmeana. Trata-se aqui de determinar a
objetividade da linguagem, seu caráter concreto, visual, de compre-
endê-la como um modo de ação. Os aspectos que mais atraíam o
poeta nessas artes aparecem reunidos na ideia de escrita que compõe
a linguagem, ou o verbo poético. A escrita é, assim, a marca dos ges-
tos da ideia que se manifesta pela fala. A escrita é gestual, ela encarna
a objetividade do teatro, mas sua existência é fulgurante, seus gestos
são o da ideia, que se manifesta na fala, pura dissolução de si mesma.
Assim a escrita reflete a ideia que se manifesta na música, ela escreve
a ideia mesma do som, a sonoridade se transforma com a escrita num
traço, concreto, numa marca. A escrita fixa o que a música dissolve.
Esse modo de ser da linguagem, visual e sonoro, é a própria
exposição do modo de ser da linguagem, segundo Mallarmé, que
deve ser adequado ao Tempo e à Ideia. O que interessa é o sentido,
o significado desse movimento, pois não se trata para Mallarmé de
fazer um elogio do inefável, mas de unir os elementos opostos da
linguagem, a fala e a escrita “de maneira a perfazer no presente
(pela leitura) e a conservá-las para o futuro”. Assim, esses opostos
não se anulam, mas são capazes de instaurar um presente, indicar
um futuro. Através da fala e da escrita o tempo não é somente dis-
solução, mas inscrição. Há algo nesse ato momentâneo da ideia, na
música do poema, que se conserva, que se mantém irredutível sob
a página: as próprias Letras.
Trata-se de buscar o significado da própria linguagem, ao des-
velar o processo de constituição de todo significado, como modo de
ser contraditório, entre a ausência e a presença. O que está em ques-
tão é expor o mecanismo representativo para buscar reconfigurar o
presente, reconfigurar nossa ideia de presente, nossa ideia de poesia,
reconfigurar a poesia do presente. Assim, há algo que se diz no mo-
vimento de desvanecimento da linguagem, na exposição e no desve-
lamento da representação, e é esse dito que permanece sob a folha de
papel, porque só a poesia é capaz de fixá-lo.

213
Aspectos visuais de Um lance de dados

Segundo Julia Kristeva (1974), a França, no fim do século XIX,


foi palco de uma verdadeira revolução literária, uma revolução que
ocorreu através da transformação da linguagem poética. Seus prin-
cipais atores seriam Lautréamont e Stéphane Mallarmé. Ainda se-
gundo a mesma autora, a obra mallarmeana responsável por essa
revolução seria o poema Un coup de dés.
Publicado pela primeira vez em 1897, na revista Cosmopolis, dois
anos antes da morte do autor, em seguida publicado em livro, edição
póstuma, porém seguindo minuciosamente as instruções e anotações
do poeta, o poema é uma obra madura, coroamento de uma carreira
poética que se define pela grande consciência do poeta com relação
à sua arte.
Não se trata aqui de realizar uma análise minuciosa do poema,
pretendemos simplesmente fornecer ao leitor algumas indicações
primeiras de leitura, definindo a estrutura do poema, sobretudo no
que diz respeito à relação entre a tipografia e seus aspectos “sonoros”
e como esses dois momentos compõem uma ideia de linguagem, ou
a ideia mesma da linguagem. Ou seja, pretendemos compreender de
que maneira Mallarmé entende o poema como espaço de reflexão da
linguagem e sobre a linguagem.
Toda a problemática do poema Um lance de dados está presente
décadas antes de sua publicação, no conto Igitur, um conto filosófico,
dirigido à inteligência do leitor, que deve colocar as coisas em seu
devido lugar. Nesse conto, o poeta narra um percurso realizado pela
inteligência, uma luta travada entre o sujeito e sua própria razão con-
tra o acaso e a impotência. Igitur “desce as escadas, do espírito hu-
mano, vai ao fundo das coisas: em ‘absoluto’ que ele é” (MALLAR-
MÉ, 1998, p. 474). O trecho em seguida resume a problemática do
poema, o dilema da razão e da poesia diante do acaso, ele especula
sobre as possibilidades da ação e do pensamento, da poesia diante da
onipresença do acaso:

214
Que uma fala lançada sobre os dados pois não pode ser com certeza
que uma fala, não se realize, como havia segundo o pensamento, II
chances que ela não se realizasse contra uma, o acaso se afirma em
relação à fala, se negando em relação ao pensamento – Pois o acaso
foi que a fala se realizou. Todavia se ela se realiza, o acaso se nega
quanto à fala, se afirmando em relação ao pensamento, pois essa
deve. (MALLARMÉ, 1998, 476)

Segundo o pensamento há duas chances contra uma de que a fala


não se realize, pois o acaso está do lado da fala ou do pensamento. Se
a fala se realiza o acaso se nega com relação a ela, mas se afirma com
relação ao pensamento. A realização da fala ou do poema se deve ao
ato de abolição do acaso. Em compensação, quando o acaso se nega
em relação à fala e ao poema, ele se afirma em relação ao pensamen-
to, o que significa que o poema não pode estar em harmonia com o
pensamento, na presença do acaso, pois este impede que o poema se
realize, que a fala encontre o pensamento e se exprima.
Trata-se aqui de problematizar a criação poética. Para Poe, um
poema se escreve como uma equação matemática é resolvida, basta
definir o efeito a ser provocado no leitor e, em seguida, reunir os
meios de alcançá-lo. Mallarmé problematiza essa relação mostran-
do que nem sempre o poeta é capaz de exprimir exatamente aquilo
que pensa, pois, na verdade, o pensamento também é marcado pela
presença do acaso. Assim, escrever seria outra coisa, muito além de
exprimir ideias claras numa linguagem límpida.
Acaso e pensamento não são termos opostos, o acaso não é sim-
plesmente uma força exterior que impede a expressão, que interfere
no pensamento, ele deve ser compreendido como o próprio modo
de funcionamento do pensamento. Por isso, a poesia deve encontrar
uma forma capaz de acolher o acaso, sem desfigurá-lo, sem controlá-
-lo, pois esse esforço é inútil, procurando na verdade potencializá-lo,
criando as condições ideais para que o acaso possa agir e interagir
com as palavras, transformando-as. No entanto, isso não significa
uma entrega total ao acaso, como John Cage procuraria fazer com a
sua música anos depois, isso não significa a “disseminação” total do

215
sentido como queria Derrida, o que Mallarmé procura é o equilíbrio
difícil, entre o controle e o abandono, o ponto em que uma diferença
mínima entre os dois aparece, que não é, no entanto, suficiente para
que acaso e pensamento possam se distinguir e se excluir mutua-
mente.
Un coup de dés formaliza a questão central de Igitur, responde po-
eticamente a uma questão que só poderia se resolver dessa maneira,
formalmente. Isso quer dizer que se Igitur permaneceu inacabado é
porque a forma conto não é capaz de responder à questão do acaso.
É essa ideia que pretendemos demonstrar neste capítulo.
O poema já não tem mais como personagem principal Igitur,
uma conjunção, mas um outro “Le Maître”, o mestre, alter ego do
poeta que surge para lançar os dados. Se Igitur é a conjunção que
procura ligar dois termos distintos, acaso e pensamento, no poema
essa função é do poeta, o mestre que deve, no verso, “remunerar o
defeito das línguas”. Aqui o poeta não se esconde mais atrás de seu
personagem, ele resolve diretamente expor seu drama, problematizar
a criação, transformando-a no tema, na forma do poema.
O poema também não está escrito em “prosa”, mas em verso, pois
a questão aqui gira em torno do maître/mètre que é mestre e metro
ao mesmo tempo, poeta e prosódia, o que indica que o conflito do
poema gira explicitamente em torno da sua própria execução. Un
coup de dés mantém, no entanto, a “estrutura” narrativa do conto,
trata-se da narração de uma hesitação. Os modos verbais são o sub-
juntivo e o condicional, “tout se passe, par raccourci en hypothèse”
(“tudo acontece, por atalhos em hipótese”), como se o poeta refletisse
sobre o ato poético, sobre a possibilidade de existência da poesia. A
questão existencialista de Hamlet é aqui a questão da existência da
própria poesia; o poeta hesita não entre ser e não ser, entre agir ou se
calar, sua questão é: lançar ou não lançar os dados? Escrever ou não
escrever?
“O mestre” hesita porque sabe que, se os dados forem lançados,
o número viria pelo acaso, ou seja, o ato de lançar os dados é sem-
pre uma confirmação do acaso: “si c’était un nombre ce serait

216
le hasard” (“se houvesse um número, seria o acaso”) (MALLAR-
MÉ, 2003, p. 432).
O conflito principal é, portanto, a luta contra o acaso, que não se
deixa resumir pelo cálculo das probabilidades ou ao cálculo das síla-
bas do verso: “le maître” “surgi” “pour le jeter”, para lançar os da-
dos, no entanto, ele “hesite”, “ancestralement à n’ouvrir pas la main”,
trata-se do “l’ultérieur démon immémorial” que “induit”, “dans” “des
contrés nulles”, “le vieillard vers cette conjonction suprême avec la
probabilité”.
Esse demônio, “né / d’un ébat”, “la mer par l’aïeul tentant et
l’aïeul contre la mer”, representa o noivado, “Fiançailles”, união en-
tre o pensamento e o acaso, que venceria o acaso. Mas o velho sabe
que se trata de uma loucura, “folie”. As duas páginas que seguem
apresentam o que seria essa loucura, o desejo de eliminar o acaso,
que transforma o mestre em “prince amer de l’écueil”, seduzido pelo
canto de uma sereia, este ser de ficção que provocaria a sua perdição,
o naufrágio do homem “faux manoir/ évaporé en brumes”.
Diante da impossibilidade de eliminar o acaso, o poema afirma
que não há, portanto, um ato possível, “rien n’aura eu lieu que le
lieu”, que nada pode acontecer. A hesitação do mestre é um questio-
namento sobre a possibilidade mesma da literatura. Diante do acaso,
nenhum ato parece possível, pois se não pode ser abolido, o pensa-
mento será sempre impotente. E a poesia impossível. No entanto,
parece haver um momento excepcional, uma exceção que permitiria
que o poema se realizasse, a condição de que ele seja como uma
constelação, sem as barragens do mar que impõem limites ao infini-
to, como o espaço onde toda realidade se dissolve, mas que serve, no
entanto, como guia para os navegantes, para os homens. Na constela-
ção o caminho do poema parece estar escrito. Esse lugar excepcional,
esse lugar de exceção que é o poema, o fundo do naufrágio do ho-
mem, talvez possa funcionar como o espaço de onde emergiria uma
nova gramática, uma nova sintaxe de nossos desejos, gestos e ações.
No prefácio do poema, na edição da revista Cosmopolis, de 1897,
Mallarmé indica que a única novidade do poema é relativa ao seu
“espaçamento”: “o todo sem novidade a não ser um espaçamento na

217
leitura”, ele não se considerava em posição de romper definitivamen-
te com a tradição, de agir radicalmente contra o que era habitual. Ex-
cesso de modéstia talvez, timidez, ou excesso de precaução por medo
de desagradar seus contemporâneos, o fato é que o poeta tem consci-
ência de estar participando,“com imprevisto, às buscas particulares e
caras a seu tempo, o verso livre e o poema em prosa” (MALLARMÉ,
1998, p.391).
Mallarmé não foi durante toda a sua carreira um defensor do
verso livre. Muito pelo contrário, grande parte da sua obra foi escrita
com versos tradicionais, para entender o que o levou a tal mudança
basta olharmos para o cenário poético da França, dos anos 1880.
É notável a distância formal que separa Um lance de dados da
poesia mallarmeana anterior. Como Murat observa, as únicas “ino-
vações” que Mallarmé realiza desde “L’après-midi d’un faune”, de
1866, até “Prose”, de 1875, são simplesmente alterações na cesura
do alexandrino. O “fauno”, por exemplo, é construído com um ritmo
irregular deixando de lado a regra da cesura no hemistíquio. Esse
verso poderia ser definido como “todas as combinações possíveis
de doze timbres”, que, embora não caracterize uma ruptura com a
poesia anterior, custou ao poeta uma recusa na segunda edição do
Parnasse contemporain. Entre esse período e a publicação de Um lance
de dados, uma grande transformação deve ter ocorrido para que o
verso deixasse de ser uma combinação de doze timbres para se tornar
“polimorfo”, apenas ritmo e estilo, expressão pessoal e individual do
poeta. Algo deve ter acontecido para que Mallarmé deixasse de lado
seu lado conservador e afirmasse na entrevista a Jules Hurêt que já
era tempo de o alexandrino “descansar”. Segundo o autor, devemos
supor que nesse intervalo um conjunto de fatores veio modificar a
concepção que Mallarmé tinha da literatura e de sua própria obra,
historicizando-a sem, no entanto, traí-la.
Os fatores que poderiam ter contribuído para essa tomada de
posição no interior do campo literário foram: a recepção positiva da
obra do poeta, nos textos que já citamos anteriormente, sobretudo
“Les poètes maudits”, de Verlaine, e À rebours, de Huysmans. Textos

218
que permitiram que o poeta adquirisse uma consciência renovada de
sua obra, pois inscreveram sua poesia na história da literatura.
O “lance de dados” se inscreve historicamente, se torna possível,
como o próprio poeta aponta, devido às outras “invenções” de seu
tempo, como o verso livre e o poema em prosa. Essas novas formas
permitiram que o poema eclodisse e dispersasse com ele o verso.
No entanto, como pretendemos demonstrar, o poema ultrapassa a
forma do verso livre, ele se constitui a partir de outro paradigma,
daí a insistência do poeta no prefácio do poema em se comparar aos
seus contemporâneos guardando ao mesmo tempo certa distância.
Na verdade, Mallarmé vai além do verso, além da métrica e define o
espaço da página como o responsável pela apresentação da Ideia, de
seus gestos.
Como nos mostra Laurent (2002, p. 57), a partir do trabalho crí-
tico de Roubaud, o verso livre não pode se definir sintaticamente
como outrora se definia o verso metrificado, nem como unidade fo-
nológica, nem mesmo pelo ritmo. O verso livre “só tem existência
visual”. Mallarmé parece ter em pouco tempo compreendido o que
estava em jogo no verso livre, ele foi um dos primeiros que soube
aproveitar o caráter espacial do novo verso e de utilizá-lo para criar
novos paradigmas formais. Para Mallarmé, o verso também não é
uma unidade sintática ou fonológica, pois, através da sua espacializa-
ção, ele agora se define pela operação que realiza. O verso é a “sub-
divisão prismática da ideia”: “O papel intervém cada vez que uma
imagem, ela mesma, cessa ou entra, aceitando a sucessão de outras e,
como não se trata, como sempre, de traços sonoros ou regulares do
verso – mas antes, de subdivisões prismáticas da Ideia” (MALLAR-
MÉ, 1998, p. 391).
A forma de uma ideia é determinada pelo espaço que se torna um
aliado do poeta; ele contribui para gerar significado tanto quanto as
próprias letras, por isso Mallarmé sempre ressalta a importância dos
espaços em branco de seus poemas. Se a imagem se torna fragmento
da ideia, ela pode ser reforçada pelos caracteres das letras, fazendo
com que os “gestos da ideia” tenham sua relevância ressaltada pelo

219
tamanho e pelo negrito ou itálico das letras, como se os diferentes
caracteres tipográficos correspondessem aos tons e timbres musicais.
Os diferentes caracteres tipográficos são utilizados para distinguir
diversos “motivos” do poema, enquanto os espaços em branco
organizam sua disposição em torno do motivo principal, como uma
constelação de letras. Mallarmé distingue os motivos do poema
em “preponderantes”, “secundários” e “adjacentes”, além do motivo
principal que é a própria frase-título do poema. Cada um desses
motivos recebe um caráter especial. As “subdivisões prismáticas da
ideia” se organizam, através dos caracteres, em diversos motivos.
As imagens entram e saem de cena, elas se ligam e se desligam do
motivo principal, da frase-título, girando em torno dela como uma
constelação. O motivo preponderante é formado por: UN COUP
DE DÉS / JAMAIS / N’ABOLIRA / LE HASARD. O primeiro
motivo secundário seria: Si / c’était / le nombre / ce serait – que possui
como termos adjacentes: comme si / comme si, e diversas outras rami-
ficações. O motivo secundário (com muitos adjacentes): quand bien
même dans des circonstances éternelles / du fond d’un naufrage /
soit / le maître / existât-il / commençât-il et cessât-il / se chiffrât-il
/ illuminât-il / rien/ n’aura eu lieu/ que le lieu/ excepté/ peut-être
/ une constellation. Outros motivos adjacentes estão representados
pelas letras menores.
Cada motivo tem sua importância definida pelo tipo e tamanho
do caractere, além do espaço que ocupa na página. E, além disso, o
espaço funciona para criar um ritmo de leitura, a altura da página
em que as palavras aparecem determinaria, assim, a entonação da
leitura. Como indica o poeta: “os caracteres de impressão […] ditam
sua importância na emissão oral e a dimensão, média, alta, em baixo
da página, notará que sobe ou desce a entonação” (MALLARMÉ,
1998, p. 391-392).
O tamanho das letras, assim como os caracteres, indica sua im-
portância na constituição do poema, sua entonação, contribui para
definir um ritmo individual, baseado no espaço, no caráter visual do
poema. Além disso, o espaço cria um sentido de leitura, os caracteres
sempre realizam um movimento de descida na página, como Igitur,

220
que desce ao fundo do espírito humano, mas longe de mergulhar
num abismo, aparece na página seguinte, mais uma vez nas alturas.
Esse sentido é mais que espacial, como o espaço é mais que uma
transposição da organização sonora, os timbres e as alturas, sonoros
ou espaciais, organizam pares de contrários, oposições entre letras
maiores ou menores, em negrito ou itálico, no alto ou em baixo da
página, entre sons distintos, sonoridades “abertas”, “fechadas” etc.
Como se todo poema se estruturasse a partir de oposições, seguin-
do a oposição fundamental das Letras, entre o negro da escrita e o
branco da página, presente também nos dados, em que os números
são símbolos negros sobre a face branca e em que figura, portanto,
a própria oposição entre pensamento e acaso, criação poética e con-
tingência. Em uma nota manuscrita, recentemente publicada, lemos:

Podemos subir com caracteres maiores


Eles servem para isso
– os do texto descem sempre e essa descida da página – esse sentido
– é conforme a sombra dos caracteres preto sobre branco, que cavam
o mistério de cada página se acumulam (e rejeitadas se lidas) para
deixar eclodir à altura o texto na página seguinte. (MALLARMÉ,
1998, p. 407)

O poema é no espaço um movimento de descida e subida, uma


elevação em direção à ideia, um mergulho no espírito humano, uma
escavação da linguagem, que procura fazer o céu se refletir no espaço
do poema. Os caracteres tipográficos representam o movimento do
mar, por onde o mestre navegava, com quem ele luta, as forças in-
controláveis da natureza. Luta contra os limites do homem, contra
as próprias palavras, ou, deveríamos dizer, contra os números, contra
o acaso que faz rolar os dados. O poema efetua uma descida que é
um mergulho nas profundezas das circunstâncias eternas em que ele
ocorre, um naufrágio, momentâneo, pois na página seguinte tudo re-
começa, as letras como que espelhadas no céu aparecem nas alturas,
concorrendo com as estrelas. Movimento em que o poema se faz, se

221
coloca em questão diante dos nossos olhos, ele se procura, entre os
números e as letras, se elabora, se dissolve, é, desaparece e reaparece.
No entanto, a definição do espaço como operador “das divisões
prismáticas da ideia” não resolve a questão do verso livre e muito
mesmo explica a relação de Mallarmé com a tradição poética, com a
qual o poeta jamais rompeu definitivamente.
Se Mallarmé é tão contraditório nas afirmações que concernem
o verso livre e o verso tradicional é porque a questão do espaçamento
do poema, como vimos anteriormente, é a questão mesma do verso
livre. Nesse momento, nos primeiros anos de seu aparecimento, o
verso livre já era compreendido como definido pelo espaço. Assim, a
questão da métrica é sempre ambígua, pois podemos entender que
o poema é composto de diversos metros, dispostos ao longo da pá-
gina, de tal modo que se as palavras forem reagrupadas e os espaços
encurtados, então se obtém a métrica “real” do verso, que pode então
aparecer como um octossílabo, um dodecassílabo etc. Isso quer dizer,
na prática, que o verso metrificado continua presente no verso livre,
ele é sua referência, mesmo que implícita, e é só em relação a ele que
o verso não metrificado pode ser dito livre. Essa leitura se baseia nas
declarações do poeta, que afirma jamais ter rompido inteiramente
com a tradição, conforme consta do prefácio do poema:

Os “brancos”, com efeito, assumem importância, surpreendem pri-


meiramente; a versificação exige, como silêncio em torno, ordinaria-
mente, ao ponto que um trecho, lírico ou de poucos pés, ocupa, no
meio, um terço da folha: eu não transgrido essa medida, somente a
disperso. (MALLARMÉ, 1998, p. 391)

Nessa afirmação encontramos a confirmação de que os espaços


em branco contribuem para compor o verso, que aparece simples-
mente “disperso” na página. Assim, Mallarmé não cede inteiramente
à novidade, muito pelo contrário, na verdade ele expõe o que o verso
livre é de fato, um verso que só pode ser dito livre em relação ao
verso metrificado, portanto que precisa da métrica para se definir.
Mallarmé declarou também na mesma entrevista a Jules Huret que

222
o alexandrino deveria ser guardado e reservado para ocasiões solenes.
Ora, a frase-título do poema parece ser uma ocasião desse gênero,
pois trata-se de afirmar a irredutibilidade do acaso, por isso o poeta
utiliza um metro, que não é o alexandrino, mas que faz referência a
ele, o verso de treze sílabas, quase um verso falso: “Un coup de dés
jamais n’abolira le hasard”. Dessa maneira o poeta joga com o acaso
e com a tradição, procura ironizar o metro tradicional e ao mesmo
tempo utilizá-lo para conferir um caráter “solene” à sua afirmação.

Aspectos sonoros de Um lance de dados

Tratamos anteriormente do caráter visual, espacial, do poema, o


que compõe um dos elementos da linguagem, a escrita, ou as Le-
tras. Examinamos, assim, a importância dos caracteres tipográficos
na construção do sentido bem como a influência da configuração
espacial na configuração do próprio verso. Vamos agora analisar de
que maneira o poema se constitui enquanto “fala”, sonoramente,
ou como a Música determina a configuração do poema; como ela
contribui na constituição de uma linguagem menos representativa e
mais abstrata, mais próxima das Ideias.
Nos manuscritos das Notas sobre a linguagem, o caráter oral apa-
rece não somente teorizado através do conceito de “fala” (parole), mas
também através da ideia de conversa.

a Conversa; não em uma conversa, o que ela é no momento (aca-


bou) nem na parte de sua abstração que nós queremos conhecer,
mas na sua Ficção, aqui tal qual ela é expressa com relação à essas
duas fases que ela reflete. Chegar da frase à letra, pela palavra;
servindo-nos do signo ou da escritura, que liga a palavra ao seu
Sentido. (MALLARMÉ, 1998, p. 508)

O que o poeta busca definir não é o caráter momentâneo de


uma conversa, nem seu caráter abstrato, mas o caráter ficcional da
conversa, que se constitui a partir das duas fases que ela reflete. A
conversa poderia ser chamada também de conversão, pois trata-se

223
de examinar o processo de escrita e de leitura que incessantemente
transforma a escrita em fala e o som em escrita. Assim, temos que a
conversa é composta por um primeiro movimento que vai da frase
à letra; que ainda não é sentido mas signo; o segundo movimento
deve se servir do signo, da escrita ou das letras para ligar a palavra
ao seu significado. Assim, a letra é, antes de mais nada, signo, quase
um objeto, não ainda um símbolo, mas apenas índice, ela indica algo
além de si mesma, uma direção, ela abre um horizonte.
No entanto, a conversa não é somente escritura, transformação
da palavra em signo, do signo em sentido, ela é também, como a
leitura, fala, som. A frase passa para as letras, se torna signo, palavra
escrita, e, enfim, num segundo momento, o momento da leitura, que
realiza o sentido inverso da escrita, que contribui igualmente para o
sentido, passando do signo escrito à fala, ao som. Essas duas fases da
“conversa” representam os dois momentos da linguagem. Além disso,
a conversa vai além da “fala”, do som; ela implica troca, que se reali-
za no interior da própria linguagem, justamente porque a “conversa”
não é apenas signo ou som, mas também a união dessas duas fases
da linguagem.
A “conversa” é a dissolução da escrita através do seu tornar-se
outro, seu tornar-se fala. Enquanto “procedimento essencial da lin-
guagem”, tem um caráter duplo. De um lado se constitui como uma
abstração, mas de outro o poeta afirma a importância de compreen-
dermos a “conversa” “tal qual ela aparece em sua manifestação habi-
tual e tal qual a possuímos no caso presente” (MALLARMÉ, 1998,
p. 508). Ela se define, pois “permite uma abstração de nosso objeto, a
Linguagem, ao mesmo tempo que espaço da Linguagem, ela permi-
te oferecer seu momento à Ciência” (MALLARMÉ, 1998, p. 508).
Homem, Espírito, Linguagem se definem, no seu momento presen-
te, como Mallarmé diz, ou a partir de suas manifestações, em que a
presentificação é a apresentação conceitual. No entanto, o momento
presente é negativo, é um devir, ao mesmo tempo um momento de
irrupção, no qual a fala se escreve, e de dissolução, no qual ela se
torna som mais uma vez.

224
Nos rascunhos que Mallarmé deixou do poema ele define seu
caráter oral a partir do caráter efêmero e abstrato da “fala”: “a fala
se profere como sons à inteligência, no ar e por assim dizer musi-
calmente” (MALLARMÉ, 1998, p. 403).
Retornemos ao prefácio:

Sua reunião se realiza sob a influência, eu sei, estrangeira, a da Mú-


sica escutada no concerto; reencontramos diversos meios que me
parecem pertencer às Letras, eu os retomo. O gênero, que se torne
um como a sinfonia, pouco a pouco, ao lado do canto pessoal, deixa
intacto o verso, ao qual guardo um culto e atribuo o império da pai-
xão e dos sonhos. (MALLARMÉ, 1998, p. 392)

Para escapar da noção representativa da linguagem, o poeta cons-


trói outra via, outro modo de trabalhar a linguagem: a Música.Ela
deixa intactos o verso e seu império sobre as Letras, dissolve os ob-
jetos através do recurso a uma sintaxe particular que permite que
muitas relações se estabeleçam entre as palavras. A indeterminação
sintática aproxima as palavras umas das outras permitindo que, além
da sintaxe, as relações se deem através dos sons. O espaço é então
utilizado para criar um ritmo, ditar entonações, enquanto os espaços
em branco consomem o negro das letras e dissolvem toda fala, para
transformá-la em ideia.
Poderíamos citar como exemplo do funcionamento “musical” do
poema a frase título, “Un coup” (um lance), com sonoridade obscura,
fechada, no entanto, o ato de lançar os dados parece ligeiro, leve.
Lançar os dados é abrir um horizonte de possibilidades infinitas.
A significação da palavra parece estar na contramão do som que
ela possui, mas essa contradição é atenuada pelo vocábulo “de dés”
(de dados), som aberto, luminoso. A repetição da letra “d” garante
ainda mais significação a esses termos, já que a oclusiva repete o
som mesmo dos dados a rolar. Em seguida, temos “Jamais” (jamais),
sonoridade clara e aberta para uma palavra que indica, na verdade,
uma negação, uma impossibilidade, uma restrição. Em seguida te-
mos “n’abolira” (abolirá), que contém uma negação, “n’”, que reforça

225
ainda mais a negação que “jamais” porta. Outra palavra com sentido
negativo é “abolição”, que possui, no entanto, um som neutro, di-
gamos entre “coup” e “dés”, nem muito fechado, nem muito aberto.
Uma neutralidade que contrasta com a forma da palavra, que de-
finitivamente encerra as possibilidades de abolição do acaso que o
lance de dados, o pensamento busca efetuar. Não consideramos aqui o
lugar que os vocábulos ocupam nas páginas do poema, mas o leitor
pode observar que, frequentemente, o espaço visa neutralizar o som
e o sentido, contrabalanceando-os, como se o espaço fosse mais um
elemento na constituição do sentido (COHN, 1951).
No entanto, como vimos anteriormente, a oralidade do poema
se configura não apenas com os sons das palavras, mas como ideia
mesmo de poesia. Mallarmé ressaltou muitas vezes que o verso livre
permitia um tipo de articulação “individual”, ele permitia que um
poeta desenvolvesse um estilo próprio, pessoal, único. Meschonnic
(apud MALLARMÉ, 1985, p. 41) desenvolve toda uma teoria da
voz poética a partir dessa hipótese da leitura do poema. No prefácio
de Écrits sur le Livre, de Mallarmé, constata-se que a impessoalidade
não caracteriza em nada um não sujeito, mas sim o trabalho do poeta
que cede a iniciativa às palavras. O sujeito, segundo o autor, é a pas-
sagem da subjetividade na e para a linguagem. Essa subjetividade se
constitui na prosódia que acompanha a escrita do poema, “ato de in-
dividuação” que o autor nomeia “fala”, parole, união entre a oralidade,
primado do ritmo e voz, ato de individuação, o próprio verso, ou seja,
a fala seria uma aliança entre o ritmo e o sujeito. Segundo o autor,
ligar o individual e o oral deixa transparecer que a subjetividade e
a historicidade são solidárias e presentes na voz. A poesia é, assim,
recolocada na oralidade, portanto, no sujeito, com sua historicidade.
A ideia de Meschonnic pode ser válida se admitirmos uma lei-
tura oral do poema, no entanto, essa questão não é de todo clara e já
gerou diversas polêmicas. Laurent comenta essa questão em La fin de
l’intériorité. Ele se opõe à leitura de Meschonnic e utiliza como justi-
ficativa a descrição que Valéry faz da leitura que o próprio Mallarmé
teria feito do poema, em sua presença, o que testemunha seu caráter
eminentemente “mental”. Contudo, o que definitivamente impede

226
uma leitura “oral” do poema é, para Laurent, sua configuração espa-
cial, que nenhuma performance oral é capaz de “representar” (como
configuração espacial entende-se a posição de cada palavra na pá-
gina, a dupla página ou a “dobra”, o tamanho de cada vocábulo, os
caracteres tipográficos, seu regime de constituição e as relações que
cada um desses elementos estabelece visualmente e que contribui
para gerar significados).
Como o autor afirma, o poema se configura no espaço da página
que representa o espaço mesmo do pensamento, tal como em Igitur.
Assim, a inteligência do leitor deve colocar as palavras no seu devido
lugar. No poema o pensamento toma forma, se exterioriza, mas essa
exteriorização não se dá somente devido à solidez dos caracteres
na página. Ao contrário, a forma da exteriorização do pensamento,
a forma do poema se constitui a partir da contradição entre a fala
e a escrita. Por isso, não podemos desligar um aspecto do outro,
a oralidade e o aspecto visual do poema, pois ambos só adquirem
sentido quando em relação um com o outro. Como o próprio poeta
ressalta, o poema, na sua própria constituição espacial, resulta, para
quem pretende lê-lo em voz alta, numa partitura: “Acrescentamos que
esse emprego a nu do pensamento com retrações, prolongamentos e
fugas, ou seu próprio desenho, resulta, para quem quer ler em voz
alta, numa partitura” (MALLARMÉ, 1998, p. 391). Uma partitura
que cabe ao leitor interpretar e executar.
Considerar o poema apenas em seu aspecto visual, sem levar em
consideração seu aspecto oral, transforma o poema num “gênero” se-
melhante à sinfonia; como o próprio poeta ressalta, seria equivalente
a afirmar, com Blanchot (1959, p. 318), que no poema Um lance de
dados: “O acaso é senão vencido, ao menos atirado no rigor da fala
e elevado à sólida figura de uma forma onde ele se encerra”. Ora, a
fala e igualmente o aspecto visual do poema colaboram para criar a
impressão e a aparência de que o poema é puramente casual, não a
realização racional, fruto do cálculo, mas a própria forma do acaso,
sua realização máxima. É na fala e no espaço que o poema, em vez de
se fechar sobre si mesmo, abre um infinito de possibilidades, inclu-
sive de possibilidades de leitura e interpretações, pois a cada palavra

227
vista ou pronunciada ele se dissolve e recomeça, incessantemente,
sem encontrar um ponto último que o sacralize, no limite em que
“toda a realidade se dissolve”. Assim, ele está sempre aquém ou além
do acaso e não pode se restringir à sua forma que seria, na verdade, a
ausência total de forma.
Por isso, é preciso manter o equilíbrio entre os dois aspectos do
poema, o aspecto oral e o aspecto visual, pois um aspecto constitui
e contradiz o outro, sem que eles se anulem, mas, pelo contrário,
criem novas possibilidades de sentido, configurem o próprio sen-
tido, no seu movimento. A coreografia do poema se realiza nessa
interface entre visual e oral, no espelhamento desses dois aspectos
de onde emergem significações múltiplas. Essa, sim, seria a verda-
deira forma do acaso, uma forma que nunca se encerra, que não se
deixa restringir, em que o acaso não é mimetizado ou controlado,
mas em que ele aparece como elemento constituinte da própria
forma, capaz de transformá-la do seu interior e impedir que se fixe
completamente. Só assim o acaso pode aparecer como algo além de
uma presença fulgurante e instantânea, como um verdadeiro pro-
cesso, como devir.
Trata-se, portanto, de encontrar um equilíbrio entre o acaso e
o pensamento, entre a forma e a não forma, entre o passado, o pre-
sente e o futuro; trata-se de deixar que o movimento evanescente
da fala se inscreva no poema, deixe traços de sentido no papel, para
em seguida, na leitura, dissolver-se novamente, e assim sucessiva-
mente. O que está em questão nessa relação entre letras e música,
entre tempo e espaço, é expor o que se constrói no movimento
fugaz de passagem do tempo, expor o espaço onde o tempo se de-
senvolve, se desdobra. O que está em jogo nesse lance de dados é a
constituição de uma forma, de um modo de presença capaz de ser
ao mesmo tempo passado, presente e futuro, presença fulgurante
e, no entanto, permanente; trata-se de fixar essa luz, esse lampejo
que eclode no choque entre as palavras, na sua reflexão mútua. Esse
jogo de espelhos é possível através de outro recurso formal inova-
dor, a página dupla.

228
A página dupla: a dobra

Mallarmé via na dobra da página do jornal, que é também a


dobra das páginas do livro, um índice “quase religioso”, um elemen-
to constitutivo do ato de leitura, da própria criação poética. Uma
página que se dobra, se volta sobre si mesma e se encerra, como
num túmulo. Uma página virada é uma página morta, deixada
para trás, um segredo guardado. Além disso, a dobra da página
representa um movimento – como mencionamos anteriormente –,
caro ao poeta, o da reflexão, esse voltar-se sobre si mesmo. No texto
“O livro, instrumento espiritual”, o poeta define o papel da dobra
da página na configuração do livro, ou de sua ideia de literatura.
“A dobra é, em face da folha impressa grande, um índice, quase
religioso; que não impressiona tanto quanto seu empilhamento, em
espessura, oferecendo o minúsculo túmulo, certamente, da alma”
(MALLARMÉ, 2010, 181).
Essa dobra indica que um livro é, a princípio, fechado sobre si
mesmo e, porque ele é composto de uma sucessão de dobras, ele é
o “empilhamento” de uma sucessão de páginas, de camadas. Dessa
maneira, um livro é uma pilha de papel que se articula através dessa
dobra que liga uma página à outra, que as faz dobrar-se umas sobre
as outras, para melhor esconder o segredo que guardam. Essas pá-
ginas fechadas umas sobre as outras, como num minúsculo túmulo,
não podem guardar outro segredo a não ser o da nossa própria alma,
um livro como um túmulo encerra definitivamente toda a verdade
sobre nós mesmos.

Até o formato, ocioso: e, em vão, concorres esta extraordinária,


como um voo recolhido, mas prestes a se alargar, intervenção da
dobradura ou o ritmo, inicial causa que uma folha fechada, con-
tenha um segredo, o silêncio aí permanece, precioso e signos evo-
catórios sucedem, para o espírito, a tudo literalmente abolido.
(MALLARMÉ, 2010, p. 181)

229
A página dupla evoca uma metáfora muito presente na obra
mallarmeana, à qual já fizemos alusão quando tratamos de Héro-
diade. Trata-se do  “hymne”, ou “hymen”, termo que o poeta utiliza
para designar a união de dois termos opostos. “As dobras perpetua-
rão uma marca, intacta, convidando a abrir, fechar a folha, segundo
o mestre. Tão cego e pouco um procedimento, o atentado que se
consuma, na destruição de uma frágil inviolabilidade” (MALLAR-
MÉ, 2010, p.183). Eis a razão pela qual encontramos na poesia de
Mallarmé objetos como o leque, as asas, indicando esse movimento
que é o do próprio livro abrindo e fechando.
A dobra, ou esse hímen, funciona como véu, pois cada página
virada rompe com a inviolabilidade do texto, com a virgindade do
escrito, que se revela ao leitor. Assim, cada página virada é uma apa-
rição, um desvelamento, uma revelação. A “dobra” se assemelha, des-
se modo, à ideia de reflexão, termo que também implica um duplo,
termo que gera um duplo, uma imagem, a página dividida em duas
não reflete seu outro lado, apenas se fecha sobre si mesma. Ou seja,
apenas a página dupla, sem dobra, permite que um lado da página
se espelhe no outro, dialogue com o outro e nele se reflita. A página
dupla permite um movimento de ir e vir, que é a verdadeira reflexão,
um ir além dos limites do livro que a dobra na página impede, encer-
rando, como mencionamos, ao virar a página, um segredo.
As “subdivisões prismáticas da ideia”, termo que Mallarmé uti-
liza para caracterizar sua utilização do verso livre nesse poema, são
possíveis porque a página dupla permite o espelhamento das pala-
vras; elas se refletem umas nas outras, tornando o movimento da lei-
tura similar ao de um barco que navega por um oceano tumultuado.
O espaço reflete o som, a imagem mimetiza o próprio movimento
do sentido, ondulante, um ir e vir repetitivo, mas que, em vez de girar
em torno de si mesmo, não cessa de se expandir, como numa cons-
telação. Se as estrelas fornecem aos navegantes um caminho, uma
direção, o verso livre multiplica as direções, e, com uma visão dupla
da página, as direções do sentido se multiplicam igualmente. Como
o poeta indica no prefácio do poema:

230
a vantagem, se tenho direito a dizê-lo, literária, dessa distância co-
piada que mentalmente separa os grupos de palavras e as palavras
entre si, parece acelerar ora e retardar o movimento, escandindo-o,
intimando mesmo de acordo com uma visão simultânea da página.
(MALLARMÉ, 1998, p. 391)

Essa nova configuração da página favorece a configuração do rit-


mo do poema, que passa a ser estabelecido visualmente. Além disso,
o espaço separa e aproxima palavras e grupos de palavras “mental-
mente”, o que quer dizer que ele funciona “sintaticamente” e, sobre-
tudo, semanticamente, diríamos, criando significações, determinan-
do verdadeiros sentidos de leitura.
De acordo com Laurent (2002, p. 65), a inovação de Mallarmé
quanto ao verso simbolista está no que ele chama de “absolutização
subjetiva”, que consiste em reconhecer a natureza espacial do verso
livre e de buscar transpor no espaço a estrutura métrica. Por essa ra-
zão a estrutura fundamental do poema é a página dupla. Além disso,
Mallarmé deixa de lado o conceito de expressão da interioridade em
nome da ideia de “representação” do pensamento, e faz do espaço
um aliado da música na construção dessa representação, como indica
Laurent neste trecho: “A novidade, com relação ao simbolismo, é
que por um lado o ‘pensamento’ não é mais entendido como ‘ex-
pressão’ da interioridade, mas como ‘representação’, por outro lado,
o espaço sucede a música como instrumento dessa representação”
(LAURENT, 2002, p. 65).
No entanto, Mallarmé não apenas deixa de lado a ideia de expres-
são da interioridade, ela, na verdade, renova esse conceito de “expres-
são” (a mera exclusão da noção de “expressão” da poesia mallarmeana
nos impediria de indicar o caminho que a poesia lírica parece seguir
desse Baudelaire, um caminho trilhado a partir da crítica da noção
de expressão e de interioridade). A ideia de representação também
não parece satisfatória para indicar a natureza da ideia da forma que
Mallarmé parece construir, bem como sua dimensão na história da
estética. Pois, para o poeta, o pensamento realiza seu próprio movi-
mento no espaço do poema. A forma realiza seu próprio conceito,

231
como se entre o dito e o que se diz não houvesse mais distância, a
qual constitui, no caso, a ideia de representação.
Justamente a dupla página que permite esse abandono do con-
ceito de representação. A página dupla, em que a dobra não é mais
dobra porque ela se desdobra e se expande, simboliza esse movimen-
to reflexivo do poema. Ela permite que o poema se espelhe, se reflita,
seja reflexão sobre sua criação, espelho em que o acaso interfere a
cada lance, a cada pensamento. Aqui, poema e pensamento são um
só, porque a cada lance é o acaso que realiza sua própria ideia.
O poema tipográfico se torna figura do pensamento, não mais
como tradução da interioridade, mas como exterioridade inteligível.
Assim, as palavras, as frases, os movimentos que apresentam são os
próprios gestos da ideia. Não podemos mais falar em interioridade,
certamente, pois o poeta exclui a figura do autor. No entanto, o po-
ema ainda conta com seu alter ego, digamos, o mestre, ou o próprio
metro. Para explicar melhor essa ideia vamos reconstituir o que pa-
rece ser a “ação” central do poema.
“o mestre” “surge” para lançar os dados, no entanto, ele
“hesita”“ancestralmente a abrir as mãos” buscando o único número
que não pode ser outro. Mas um “demônio imemorial” induz diante
de oposições nulas o velho em direção a uma conjunção suprema
com a probabilidade. Esse demônio imemorial, nascido de um em-
bate, o mar pelos ancestrais e os ancestrais contra o mar, teria uma
chance ociosa, luta por um “noivado”, por uma união desejada entre
o pensamento e o acaso, que poderia abolir o acaso. No entanto, o
velho sabe que isso é uma loucura. Uma loucura que só pode ser
pensada como hipótese, como possibilidade, sob o modo do “comme
si”, como se uma insinuação simples girasse em torno do abismo,
como se uma pluma solitária pudesse imobilizar a brancura rígida e
derrisória que se opõe ao céu, como se uma sereia aparecesse numa
rocha para impor limites ao infinito. Pois, se houvesse um número,
“ele existiria, começaria e terminaria, se enumeraria e iluminaria”, e
seria, sempre, o próprio acaso. Por consequência, “nada” foi dessa me-
morável crise, nada acontece, apenas “um acontecimento realizado
em vista de todo resultado nulo”, “nada teria acontecido”, “nada teria

232
tido lugar” a não ser o lugar, o próprio poema. Como se Mallarmé
se perguntasse, “Alguma coisa como as letras existe de fato?”. Não se
trata apenas de números no universo, não é assim no céu, não é assim
na economia? Esse acontecimento humano, a literatura, é, por isso,
nulo, nada realiza, trata-se apenas de ficção (pouco menos do que
uma probabilidade, uma simples possibilidade), apenas poesia, pois
nada aconteceu a não ser o próprio poema, que “pela sua mentira
teria fundado a perdição”, “onde toda realidade se dissolve”. Assim, a
poesia é uma exceção, um espaço em que nada acontece, a não ser a
própria poesia, um espaço em fusão “com o além”, uma constelação
que enumera o “choque sucessivo” de “um cálculo total em forma-
ção”, antes de encontrar um ponto último que o sacralize.
O pensamento poético é um cálculo. Como num lance de dados
ele “escolhe”, “determina” os números, enumera o mundo, o nada, o
infinito. O cálculo poético é capaz de fazer com que todas as estrelas
caibam numa folha de papel. Fazer poesia nada mais é do que en-
contrar o bom número, o número certo, que não poderia ser outro.
Deveríamos pensar que a poesia deve, na verdade, escolher palavras,
mas para Mallarmé o cálculo é feito em torno dos números, a poesia
enumera as palavras. Calcular é pensar, mas não é preciso ser um
grande gênio matemático para saber que as probabilidades pouco
têm a dizer sobre poemas ou lances de dados. Não há cálculo de
probabilidade capaz de vencer o acaso, mas o acaso que faz com que
os dados caiam numa posição e não em outra. O cálculo vale para o
momento anterior ao ato e, para cada novo lance, a cada vez que os
dados são lançados ou a cada resultado do lance, o cálculo não pode
dizer mais nada e o acaso é reinstaurado. No entanto, uma vez que as
palavras são fixadas pelas letras no papel, o acaso é abolido, elas ocu-
pam o seu devido lugar, são absolutamente necessárias e irrevogáveis.
Pensemos na frase-título do poema, “Un coup de dés jamais
n’abolira le hasard” (“Um lance de dados jamais abolira o acaso”),
que possui treze sílabas com ritmo bem irregular (4-2-4-3), seria um
verso falso, ou simples acaso? De uma maneira ou de outra, é uma
recusa ao alexandrino que não deixa de ser uma referência ao verso
oficial. O jogo, com o acaso, aparece formalmente figurado na relação

233
entre o verso tradicional e o verso livre. O “mestre” não é, portanto,
apenas um personagem que confere um tom épico à narrativa, ele
figura a própria luta do poeta contra o acaso. O mestre hesita em
lançar os dados, hesita em empregar um “metro”, pois sabe que o
acaso não pode ser abolido, que é sempre o acaso que realiza sua
própria ideia.
Mallarmé não escolheu os dados por acaso, seu número máximo
é justamente 12, o número de sílabas de um alexandrino, bem como
a hora fatídica entre a noite e o dia. O “mestre”, ou o “metro”, é o
acaso desnudado, sua própria forma, a impossibilidade de vencê-lo,
que faz com que o poeta se retire de cena e conceda à iniciativa as
palavras. Visualmente o poema parece ser a obra em que o poeta
desaparece de fato, pois ele não se enuncia, não há “eu” por trás dos
verbos, ou por trás do lance de dados, como se as palavras tivessem,
misteriosamente, sido jogadas na folha, e não cessassem de se es-
pelhar umas às outras. A situação hipotética parece acontecer num
espaço inalcançável, no fundo de um naufrágio, seu lugar no tempo
é a eternidade, nada parece de fato acontecer, como se as palavras
tivessem de fato assumido o controle e, sem ordem nenhuma, se dis-
persassem pela página. Porém, é justamente atrás dessa desordem
que o poeta se esconde, a forma do acaso é por ele construída, num
frágil equilíbrio entre controle total e ausência de controle.

No que me diz respeito, conheço mal o volume e uma maravilha que


intima sua estrutura, se não posso, cientemente, imaginar tal motivo
em vista de um lugar especial, página e altura, a orientação de luz a
sua ou quanto a obra. Mais o vai e vem sucessivo incessante do olhar,
uma linha terminada, a seguinte, para recomeçar: semelhante prática
não representa a delícia, tendo imortalmente rompido, uma hora,
com tudo, de traduzir sua quimera. (MALLARMÉ, 2003, p. 226)

A fabricação do Livro não tem nada de industrial; ela começa


desde sua primeira frase, pois um poeta sempre sabe qual o lugar que
seu verso deve ocupar, seja num soneto, seja num Livro, seja num
“espaço puro”. Para Mallarmé, um autor se deixa ler em seu livro

234
na medida em que é ele quem organiza o volume, o que quer dizer
que ele aparece como forma. E a forma é, sobretudo, organização e
disposição espacial. Organização que obedece a forma mesma da letra,
“O livro, expansão total da letra, deve dela tirar, diretamente, uma
mobilidade e espaçoso, por correspondências, instituir um jogo, não
se sabe, que confirma a ficção” (MALLARMÉ, 2003, p. 226). Assim,
entre as palavras se estabelece um jogo. É no espaço, através dos di-
versos movimentos que as letras, as palavras, os sons provocam, que
o texto confirma a ficção. Esse movimento se torna possível, entre
outras coisas, pela página dupla, que na sua própria forma evidencia
o caráter reflexivo do poema.
Assim, na ficção, e só na ficção, o acaso pode ser abolido, palavra
por palavra. Cada palavra aparece como o signo da mais absoluta
necessidade, cada palavra se impõe como única, como aquela que
jamais poderia ser outra, pois se justifica e se explica a partir das re-
lações que estabelecem umas com as outras. Uma vez que o poema se
encontra feito, realizado, completo, ele justifica a própria existência,
pois é visível e palpável à maneira das coisas, à maneira dos simples
objetos, dos quais nossos olhos não ousam duvidar. No entanto, o
acaso não desaparece totalmente de cena, uma vez que as letras ocu-
pam seu devido lugar no espaço em branco e o livro existe. A cada
palavra, a cada espaço em branco, o acaso reaparece, pois é ele que
determina a emergência do significado, ele se renova e reaparece a
cada palavra, a cada linha, no vaivém da leitura. Por isso, a existência
do poema ultrapassa a materialidade e objetividade das coisas, pois
não se deixa fixar e restringir. Porque o acaso está presente, a cada
nova palavra que aparece no horizonte de leitura o sentido se reno-
va e outras significações surgem. Mesmo quando o poema termina,
descobrimos que, na verdade, ele apenas recomeça, pois ao fim da
viagem percebemos que nesse lance de dados é o pensamento que
está em questão; “toute pensée émet um coup de dés”, e assim somos
reenviados ao começo do poema, e convidados pelo poeta a mais
uma vez lançar os dados.

235
X
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os grandes romances do século XIX, como Ilusões perdidas ou


Educação sentimental, parecem narrar um estado de desencantamen-
to do mundo que marcou gerações sucessivas de poetas, de Balzac
a Flaubert, chegando até o final do século com Verlaine, Rimbaud
e Mallarmé, seu maior expoente. Trata-se não apenas de um des-
contentamento com os rumos políticos da França, mas também de
um repúdio total e absoluto da sociedade burguesa. Tal configuração
política e social hostil à arte fez com que os poetas se refugiassem
na literatura recusando tudo o que lhe fosse exterior. É assim que
Bourdieu descreve o surgimento da arte autônoma.
Esse movimento no qual a poesia se voltou sobre si mesma é pro-
vocado por uma situação histórica e por um estado de configuração
histórica da própria poesia. Baudelaire parece ser o poeta que marcou
esse momento de falência dos ideais românticos que coincide com
uma série de fracassos revolucionários que culminaram com o golpe
de Estado de Luís Bonaparte em 1851. O esgotamento das formas e
temas românticos faz com que toda enunciação em primeira pessoa
se torne duvidosa, porque inexpressiva, colocando em questão a pró-
pria possibilidade de existência da poesia lírica.
No entanto, esse ponto de vista, eminentemente literário, deve
ser ponderado. O século XIX é também o tempo em que poética e
política estavam diretamente relacionadas. Lamartine, um dos pri-
meiros grandes poetas do século, “abandonou” a poesia para fazer
política, foi, inclusive, candidato à presidência e porta-voz da revo-
lução de fevereiro de 48. Victor Hugo foi eleito deputado, senador.
O grande projeto literário do romantismo francês era construir uma
sociedade – possibilidade aberta pela Revolução Francesa –, uma re-
volução gerada nos ateliês dos poetas, nas escrivaninhas dos filósofos
e na alcova de Sade. Por isso, os sucessivos fracassos das revoluções
do século XIX, bem como a demora da República para se instalar
definitivamente na França, não devem ser tidos apenas como uma
causa do desencantamento, mas também como produto de proje-
tos literários, de modelos discursivos que não funcionaram. Inde-
pendentemente desses fracassos, toda a literatura do século XIX é
marcada pelos ideais românticos, pelo chamado sacre de l’écrivain, e
essa herança, de uma literatura que é também um projeto político e
social, é um legado com o qual os escritores franceses, durante todo o
século, em um momento ou outro, tiveram de se confrontar.
Assim, de um lado, a arte se autonomiza porque não encontra nas
formas da tradição meios para expressar algo que é da ordem de seu
próprio presente. De outro, a poesia reconhece sua tarefa, sua mis-
são, tem consciência da herança romântica que lhe foi legada. Assim,
trata-se da contradição entre uma missão poética, que busca fundar
uma sociedade ou fornecer-lhe o paradigma de sua própria supera-
ção, e um estado das formas poéticas, que, por ter sido demasiado
usado, não é mais capaz de dar conta da experiência moderna, que
move a poesia mallarmeana. A grande questão que essa poesia pro-
cura responder é como continuar a missão romântica ciente de que
as formas que o romantismo cunhou perderam completamente sua
força significativa? Diante dessa contradição, dessa aparente aporia,
como não colocar em questão a missão do poeta, o sacre de l’écrivain?
Como não colocar em xeque a própria poesia?
Ao cavar o verso, o poeta se depara com o seu material de traba-
lho e descobre que além da linguagem não há mais nada. E se a lin-
guagem existe é para velar esse abismo. Por isso é preciso desvelá-lo,
desmascarar a linguagem, suas falsas pretensões, desmascarar toda

238
ficção, desmascarar nosso próprio desejo de ilusão. Desfazer os mitos
que sustentaram a ideia de que era tarefa da poesia fundar uma nova
sociedade, uma nova nação, um novo espírito e uma nova sensibili-
dade nacional. Assim, Mallarmé continua a tarefa que Baudelaire
legou aos poetas que o sucederam: a crítica do imaginário romântico,
dos ideais católicos de pureza, da expressão subjetiva reificada em es-
tado de putrefação, incapaz de dar conta da experiência do presente,
incapaz de abrir os horizontes do futuro para o novo e o desconheci-
do. Se Mallarmé se volta para a linguagem é justamente para abolir a
expressão em primeira pessoa, para convocar o pensamento do leitor,
desfazer suas crenças e construir outra maneira de sentir.
Se a página dupla é, segundo Mallarmé, a maior inovação do
seu poema Un coup de dés, é porque oferece a imagem, diríamos a
figura espacial do movimento, que para o poeta é essencial na poesia.
A página dupla funciona como um espelho, que permite que o
duplo sentido da palavra “refletir” se transforme na forma mesma do
poema, transformando-o num espaço privilegiado de reflexão sobre
seu processo de constituição, um espelho em que se desvela a própria
linguagem que o constitui, em que a ficção se monstra como tal e o
pensamento vacila diante da impossibilidade de abolição do acaso.
Poderíamos dizer que Mallarmé constitui seu pensamento sobre
a linguagem a partir de um procedimento fundamental: o desdobra-
mento sobre uma figura de linguagem, a antanáclase, que se tornou
célebre através de Pascal, na afirmação “o coração tem razões que a
própria razão desconhece”. A antanáclase joga com dois empregos
de um termo – um literal, restrito, e outro abstrato, metafórico, dirí-
amos. Entre esses dois sentidos, um terceiro parece ser evidenciado:
a dimensão conceitual do termo em questão. Na frase de Pascal, por
exemplo, podemos afirmar que as razões do coração, as causas através
das quais ele opera, não coincidem com a razão em si. Ou seja, há
uma diferença entre razão entendida como causa e a razão, sinônimo
de pensamento.
Já Mallarmé busca mostrar que os elementos que constituem a
linguagem funcionam como conceitos que a definem, ou seja, o sen-
tido literal de um termo é a manifestação concreta do seu próprio

239
conceito. Assim, temos, por um lado, a música, entendida como so-
noridade do verso, por outro lado, ela também é uma forma ideal,
abstrata, uma linguagem não espacial, puramente temporal, que se
dissolve no ar, invisível como o vento.
O mesmo pode ser dito das Letras, elas designam toda a lite-
ratura, mas, ao mesmo tempo, são o aspecto visual e concreto da
literatura, o texto, os traços das ideias no papel. Assim como pode
ser dito a respeito das discussões sobre as artes, como o teatro, o
balé e a mímica. Mallarmé pensa cada uma dessas artes não apenas
como crítico que comenta as apresentações que vê e discute sobre sua
qualidade, conferindo-lhes valor, mas à maneira do filósofo da arte
que busca em cada uma delas a sua ideia, a forma que a caracteriza
e a define. Toda complexidade da poesia mallarmeana repousa nes-
se jogo entre sentido conotativo e denotativo, ou na transformação
de um fato bruto em ideia. Trata-se de uma tentativa intelectual de
grande envergadura, ou seja, compreender a natureza do aconteci-
mento poético em que um quase nada, um verso, um simples lance
de dados requer existência.
Porque na linguagem o poeta não tem apenas seu material de
trabalho, mas um método. Esse método se tece como uma constela-
ção que extrai de cada arte seu fundamento, que extrai de cada arte a
sua linguagem, a sua forma. O teatro, por exemplo, cuja objetividade
é inquestionável, se mostra como o espelho por excelência da ficção,
porque nele a objetividade não passa de um momento fulgurante,
efêmero. A dança, arte do corpo, transforma a bailarina numa pura
metáfora, gesto da ideia. Já a mímica, arte dos gestos, não ilustra
nada, apenas um desejo de ilusão, se alimenta da imaginação do es-
pectador, do seu desejo de “acreditar”, nos mostra que tudo não passa
de um jogo. A música, por outro lado, não faz apelo ao desejo do
espectador, ouvinte. Ela não requer uma crença, não sustenta uma
ilusão. Ela é arte que não pode esconder nada, pois não há nada para
esconder, não há nada para ser visto. Ela não ocupa lugar nenhum
no espaço, nela não há corpo, não há personagem, não há gesto. A
música é pura ausência, seu modo de ser é este, o do que não é.

240
A linguagem é, portanto, como a música, a arte por excelência,
em que todas as outras artes encontram sua verdade. A arte do tem-
po, em que esse se mostra como um princípio negativo, Cronos que
devora os próprios filhos. A música é efêmera, evanescente, a forma
mesma do negativo, do que não se deixa apreender, do que não se
deixa representar. A música desvela, assim, a verdadeira natureza
das artes, da própria linguagem que se constitui como um processo
no qual sua forma de execução é a dissolução de toda forma, de toda
determinação.
Pois é no tempo e através do tempo que a linguagem se desvela,
é no tempo que ela encontra sua própria ideia. A linguagem é, por-
tanto, devir puro. Sua essência é ser sempre outra, se transformar, se
desfazer, se tornar música, se tornar ideia. A linguagem eclode, se
dissolve, aflora e se dissipa, sucessivamente, como um processo de
negação de toda determinação. Ela é a exposição do eterno jogo en-
tre aparecer e desaparecer, o ciclo do sol, mito por excelência, trans-
formado em forma, ela dissolve toda forma concreta, desfaz a escrita,
a transforma em som, fala, e o som, por sua vez, se dissolve no ar,
desaparece restituindo ao papel sua brancura original.
A ficção segue o método de seu próprio instrumento, a lingua-
gem. Se esta deve desvelar seu mecanismo de funcionamento, a
ficção deve proceder da mesma maneira. Quando a linguagem se
desvela, ela demonstra também o modo de funcionamento da ficção
e realiza sua crítica. Com o desvelamento da linguagem, a ficção
aparece como o que ela é, um momento, fugaz e passageiro, ela exibe,
assim, o nada que a sustenta, o caráter fictício de toda representação.
Esse movimento de absolutização da linguagem pode ser visto
simplesmente como um procedimento formal, próprio da arte pela
arte que, excluindo tudo o que lhe é exterior, tece uma crítica à lin-
guagem representativa transformando a linguagem poética num ab-
soluto e a poesia num falar sobre si mesma. Contudo, o que tentamos
mostrar é que a natureza da crítica mallarmeana é eminentemente
estrutural. Não se trata apenas de um refúgio da literatura em si
mesma, mas de um questionamento sobre a possibilidade da poesia
lírica, que só é possível, para Mallarmé, através de um exame das

241
possibilidades que seu próprio material, a linguagem, oferece. Assim,
uma vez que a poesia toma consciência da impossibilidade de sim-
plesmente utilizar a linguagem para expressar o que é da ordem da
experiência, ela se torna um questionamento sobre o próprio modo de
configuração da experiência.
Essa poesia que se torna pensamento e que obriga a pensar a
linguagem, desvendar o mecanismo pelo qual a experiência subjetiva
se configura, encontra seu ponto máximo na crise mallarmeana do
Nada. Se de um lado a linguagem parece ser a forma mesma pela
qual a experiência humana se constitui; de outro, ela é apenas uma
máscara que vela a própria verdade do Espírito, o Nada. O encontro
com o Nada revela ao poeta a nulidade de toda ficção, a inutilidade
de toda “adaptação ao absoluto” dessa. Uma descoberta que ecoa na
frase-título de Um lance de dados, em que se afirma que o pensamento
não pode jamais abolir o acaso. O Nada é a afirmação da impossibili-
dade de uma linguagem que possa dar conta da experiência, de uma
linguagem que possa de maneira absoluta expressar o que o poeta
chama de vontade, ou a impossibilidade de o poeta conseguir, através
da criação racional e meticulosa, eliminar o acaso.
Assim, a questão que move a poesia de Mallarmé é encontrar um
equilíbrio entre dois movimentos aparentemente contraditórios, pois
o poema deve ser racionalmente construído, vencer o acaso “palavra
por palavra”, um Livro deve ser “arquitetural e premeditado”. No
entanto, há algo que aparece na natureza mesma da linguagem, no
seu caráter arbitrário, que constitui e configura nossa experiência, a
experiência do presente, algo que insiste em não se deixar formalizar,
que aparece como efêmero, irredutível e à primeira vista até mesmo
irracional: o acaso. Diante da impossibilidade de abolição do acaso, a
poesia deve criar a partir dele, fazendo do acaso um aliado, não ape-
nas o ponto em que o pensamento paralisa. É preciso ultrapassar a
irredutibilidade do acaso, sua aparente irracionalidade, e transformá-
-lo na essência mesma da forma, da racionalidade poética. A questão
que se coloca seria, então, como dar forma ao que não tem forma,
ao que contraria a própria ideia de forma. Assim só resta ao poeta
uma alternativa, ceder a iniciativa às palavras, entregar-se ao acaso,

242
e deixar que a linguagem manifeste sua própria natureza, desvele o
Nada que a constitui.
O que é o acaso senão o modo mesmo pelo qual a literatura se
define, seu próprio modo de ser? O poema Um lance de dados ofere-
ce, inclusive, à primeira vista, ou seja, visualmente, a demonstração
de que o pensamento não é capaz de apreender completamente os
objetos, apenas girar em torno deles, como uma constelação. O pen-
samento se define, portanto, como a impossibilidade de uma deter-
minação simples e fechada, como um espaço aberto, infinito, “onde
toda realidade se dissolve”. No poema, o pensamento realiza seu mo-
vimento de constituição e o desvela. Assim, a poesia se mostra como
um processo infinito de escrita e reescrita em que o acaso parece
sempre ter a palavra final.
Se a poesia é puro acaso, o seu modo de ser é duplo, ambíguo,
modo de ser da simples possibilidade. No entanto, por ser possível,
ele é também impossível, absurdo. O que está em questão na forma
de ser do acaso é a decisão entre o absurdo, a loucura e o infinito.
Assim, a poesia, pura possibilidade, puro acaso, nos coloca diante
da questão de saber “como pensar que uma simples possibilidade,
uma forma, possa adquirir existência”, ou “como garantir existência
ao que se mostra como simples possibilidade”. Essa é a questão que
move a literatura. “Como pode uma simples possibilidade existir?”
“Como uma possibilidade pode se tornar real?” “E que realidade é
essa, que não passa de mentira, de ficção?” “Que realidade pode ter
uma simples possibilidade?”
Há na poesia mallarmeana um sentido afirmativo que ultrapassa
todo diagnóstico pessimista sobre a impossibilidade da poesia. Para
compreendermos isso, é preciso estarmos atentos para o modo de ser
da própria poesia, o da simples possibilidade. Há nele a instauração
de um modo de presença, que reconfigura o próprio campo da expe-
riência a partir da centralidade do acaso.
A literatura existe, ninguém negaria, mas sua existência tal como
a do acaso, é muito precária. Ela é pura possibilidade, um não ser, um
possível, um horizonte, um desejo. E o que move a literatura é esse
desejo de ultrapassar o próprio desejo, de transformá-lo em reali-

243
dade, de atualizá-lo. A literatura existe para ultrapassar a si mesma,
para ultrapassar as barreiras do finito e do que chamamos de real. O
que ela nos ensina é que uma simples possibilidade, um mero acaso,
um desejo pode adquirir força e se impor ao homem como uma ne-
cessidade, absoluta.
Na leveza das ninfas da “tarde de um fauno”, cuja encarnação
ligeira dá voltas no ar, o poeta busca perpetuar, no canto ilusório da
sereia, num simples lance de dados, um modo de presença da ficção,
de toda a literatura. Não se trata de um simples elogio da leveza,
mas de mostrar que na fragilidade desse modo de presença há uma
verdade. A verdade do que ainda não se tornou real, que suscite en-
quanto possibilidade e insista, até que um acaso a transforme em
necessidade.

244
APÊNDICE I

[NOTES SUR LE LANGAGE]


[f° 29]

Résultats de l’accointance
De l’Idée de Science et de l’Idée de Langage
et essai sur la tentative actuelle.

________

Résultats pour l’Esprit. Fiction. Moyen


Résultats pour les Sciences.
Enfin, avenir ouvert à l’étude de l’Homme.
Fin, après avoir démontré quel était son aboutissement, de cette
tentative.

___________________________________________________

Notes.

Il a été démontré par la lettre – l’équivalent de la Fiction, et l’ina-


nité de l’adaptation à l’Absolu de la Fiction d’un objet qui en ferait
une Convention absolue.
[ff°ˢ 5, 4]

III

Conclusions

(vieil esprit)* devenant Intelligence ( qui sans son germe final


se fût égarée).
[f ͦ 4] et avant tout cette intelligence doit se tourner ver le Pré-
sent.

* et il aboutira encore en autre chose dans la thèse latine, en divi-


nité de l’Intelligence (ou spiritualité de l’âme)

246
[f° 3]

La Thèse Latine.
De Divinitate. 

[f° 19]

D’une méthode
_____

Plan

Toute méthode est une fiction, et bonne pour la démonstration.


Le langage lui est apparu l’instrument de la fiction: il suivra la
méthode du Langage. (la déterminer) Le langage se réfléchissant.
Enfin la fiction lui semble être le procédé même de l’esprit
humain – c’est elle qui met en jeu toute méthode, et l’homme est
réduit à la volonté.
Page du discours sur la Méthode.
(en soulignant)

[f° 16]

un étrange petit livre, très-mystérieux, un peu déjà à la façon des


Pères, très distillé et concis – ceci aux endroits qui pourraient prêter
à l’enthousiasme (étudier Montesquieu)
Aux autres, la grande et longue période de Descartes
Puis, en général : du La Bruyère et du Fénelon, avec un parfum
de Baudelaire.
Enfin du moi, et du langage mathématique.
______

247
[f° 23]

Nous n’avons pas compris Descartes, l’étranger s’est emparé de


lui : mais il a suscité les mathématiciens français.
Il faut reprendre son mouvement, étudier nos mathématiciens
– et ne nous servir de l’étranger, l’Allemagne ou l’Angleterre, que
comme d’une contre-épreuve  : nous aidant ainsi de ce qu’ils nous
ont pris.
Du reste le mouvement hyper scientifique ne vient que
d’Allemagne, l’Angleterre ne peut à cause de Dieu, que Bacon, son
législateur, respecte, adopter la science pure.

[f° 27]

M’arrêter dans ces trois écrits aux conclusions générales, qui doi-
vent se trouver dans le Traité; étudier les choses en elles.
Dans « le Langage » expliquer le Langage, dans son jeu par ra-
pport à l’Esprit, le démontrer, sans tirer de conclusions absolues (de
l’Esprit)
Dans le Langage poëtique – ne montrer que la visée du Langage
à devenir beau – et non à exprimer mieux que tout, le Beau – et non
du Verbe à exprimer le Beau ce qui est réservé au Traité.
Ne jamais confondre le Langage avec le Verbe.

[f° 8]

Le Verbe est un principe qui se développe à travers la négation de


tout principe, le hazard, comme l’Idée, et se retrouve, formant, (com-
me elle la Pensée suscité par l’Anachronisme), lui, la Parole, à l’aide
du Temps qui, permet à ses éléments épars de se retrouver et de se
raccorder suivant ses lois suscitées par ces diversions
___

248
[ff°ˢ 2, 1]

Le Verbe, à travers l’Idée et le Temps qui sont «  la négation iden-


tique à l’essence » du Devenir, devient le Langage.
Le Langage est le développement du Verbe, son idée, dans l’Être,
le temps, devenu son mode : cela à travers les phases de l’Idée et du
Temps en l’Être, c.à.d. selon la Vie et l’Esprit 
D’où les deux manifestations du Langage, la Parole et l’Écriture,
destinées, (en nous arrêtant à la donnée du Langage) à se réunir tou-
tes deux en l’Idée du Verbe : la Parole, (en créant les analogies des
choses par les analogies des sons [f° I] l’Écriture en marquant les
gestes de l’Idée se manifestant par la parole, et leur offrant leur réfle-
xion, de façon à les parfaire, dans le présent (par la lecture), et à les
conserver à l’avenir comme annales de l’effort successif de la parole
et de sa filiation : et à en donner la parenté.
de façon à ce qu’un jour, leurs analogies constatées, le Verbe ap-
paraisse derrière son moyen du langage, rendu à la physique et à
la physiologie, comme un principe, dégagé, adéquat au Temps et à
l’Idée.

[ff°ˢ 10, 15]

P.

Quiconque promène un regard de curieux sur les investigations


actuelles ne peut s’empêcher de l’arrêter un moment sur la tendance
qui, servie par des savants d’un incontestable mérite, arrive seule-
ment à se formuler par cette accointance de mots  : la Science du
Langage, tandis que toutes les autres sciences ont trouvé leur déno-
minateur, qui les classe, dans la technologie intellectuelle, qui équi-
vaut à leur classification. Cette jonction de termes qui nous arrête, ne
nous apporte-t-elle pas l’impression, par le vocable de science, [f° 15]
d’acheminement à la connaissance de recherches sur un objet, desti-
nées à parvenir à l’état de Notion et à former un des termes de l’en-
semble des notions humaines, dont la conscience seule est reconnue

249
par notre époque pour l’Esprit ; et, par celui du Langage, leur objet,
employé seul, l’impression la plus générale d’un moyen d’expression,
je ne dirai pas de l’homme absolument car, modifié par un terme
adjacent, tel que le langage du cœur, celui des yeux, langages muets,
il convient à certaines portions isolées de son âme, et nous assimilons
ces variations au langage des choses, mais l’appliquant momentané-
ment aux données que peut atteindre une science, lesquelles sont des
notions, à l’expression générale de notre esprit.

[ff°ˢ 14, 13]

α Cette idée de la Science appliquée au


Langage, maintenant que le Langage a eu
De la Science conscience de lui et de ses moyens, reste
____ féconde, en ce qu’elle nous fournit a priori
les données suivantes que la Science doit
La science ayant s’appliquer à développer:
dans le Langage
trouvé une I° Tournée sur elle-même et voyant que
confirmation d’un côté elle est un acte momentané de
d’elle-même, l’esprit répondant au besoin de notion, et
devenir une que de l’autre les termes qui servent à l’ap-
confirmation du préciation des manifestations du Verbe et
Langage qui sont tirés de son répertoire s’équivalent,
et s’équivalent donc chez elle également,
elle en conclut que tous sont des actes mo-
mentanés situés entre ses objets, la matière
et l’esprit, et peut hardiment élucider ce
problème ; maintenant qu’elle a la valeur de
son moyen d’expression.

250
[f°13 ] a 2° C’est en l’homme ou son humanité que
tout cela s’équivaut – étudier par la physiolo-
gie ce qu’est l’homme par rapport aux choses
de l’esprit et de la matière, et pour cela appli-
quer la physiologie à l’histoire. La physiolo-
gie historique

3° L’esprit. Ce qu’est l’esprit par rapport à sa


double expression de la matière et de l’hu-
manité, et comment notre monde peut se
rattacher à l’Absolu.
___________________________
__________
_______ Chose qu’elle trouvera, mais que
nous nous proposerons de résoudre par des
moyens complètement différents, pareils à
ceux qui nous ont fait trouver l’idée du Lan-
gage et leur idée dans le Langage.

[f° 9]

β la Conversation ; non dans une conversation,


ce qu’elle est au moment (c’est fini) ni dans
la partie de son Abstraction que nous vou-
lons connaître, mais dans sa Fiction, ici telle
qu’elle est exprimée par rapport à ces deux
phases qu’elle réfléchit. Arriver de la phrase à
la lettre, par le mot ; en nous servant du signe
ou de l’écriture, qui relie le mot à son Sens.
La Science n’est donc pas autre que la
Grammaire, historique et comparée, afin de
devenir générale, et la Rhétorique –

251
[f° 28]

Méthode

Conversation - Sens des mots, diffère, d’abord, puis le ton ;


on trouve du nouveau dans le ton dont une
personne dit telle et telle chose
– Nous prendrons le ton de la conversation, com-
me limite suprême, et où nous devons nous ar-
rêter pour ne pas toucher à la science – comme
arrêt des cercles vibratoires de notre pensée.
Enfin les mots ont plusieurs sens, sinon on
s’entendrait toujours – nous en profiterons –
et pour leur sens principal, nous chercherons
quel effet ils nous produiraient prononcés
par la voix intérieure de notre esprit, [v°] dé-
posée par la fréquentation des livres du passé
(Science, Pascal), si cet effet s’éloigne de ce-
lui qu’il nous fait de nos jours.

[f° 22]

C’est donc puisque nous retrouvons dans la conversation le procédé


essentiel du Langage, qui est d’abstraire ; dans la conversation que nous
étudierons le Langage, et
C’est donc, puisque la conversation nous permet une abstraction de
notre objet, le Langage, en même temps que, site du Langage, elle nous
permet d’offrir son moment à la Science.
_________

Ainsi nos deux termes ne se tiennent dans l’adhésion momenta-


née de notre esprit que grâce au procédé de la conversation

252
[f° 25]

Toutefois puisque nous en avons retiré déjà le procédé


d’Abstraction qui l’a réfléchie, étudions-la, telle qu’elle demeure, non
plus en tant qu’abstraction d’elle-même, mais telle qu’elle nous appa-
raît dans sa manifestation habituelle et telle que nous la possédons
dans le cas présent, et si ce dernier concorde avec le premier comme
il le fait déjà avec l’abstraction de la conversation, nous en conclurons
que nous pouvons continuer à nous en servir, et que ses différences
devenant des équivalences, seront évaluées, et nous serviront de me-
sure commune.

[f° 11]

Le moment de la Notion d’un objet est donc le moment de la


réflexion de son présent pur en lui-même ou sa pureté présente.
_______ En tirer une époque de réflexion du langage.
la pensée vient de sortir de la conversation : nous nous servirons
de cela pour y rentrer

[f° 12]

à la façon de celles de l’histoire naturelle : c’est une classification


historique pure ; et la classification d’histoire naturelle reste celle des
races,

[f° 24]

principaux, que tels sons équivalent à telle idée, modifiée de telle


et telle façon que tels son[s] signifient ceci, et, trouvant une langue
neutre, s’il en est une, que tel son par excellence signifie ceci, a telle
valeur.
‘Tirer des lois phoniques qui permettent de reconnaître
l’antériorité’.

253
[f° 7]

rendre au mot, qui peut vicieusement se stéréotyper en nous, sa


mobilité.
En effet, le travailleur lit peu d’œuvres faites. Le nôtre se re-
trempe assez volontiers dans les anciens auteurs de la renaissance
ou du romantisme qui furent ses maîtres privilégiés. De plus, il aime
l’histoire – goût du passé.
La vie extérieure, comme du reste celle de beaucoup de ses
contemporains est un peu

[f° 6]

de la nature qui, mêlé avec la modification du temps, soit notre


humanité, moins la portion spirituelle occupée à la réflection. Ce
qui revient à dire que nous pouvons parfaitement appliquer la partie
essentiellement humaine de nous-mêmes à cette étude.
Du reste ce ne sera que temporaire, et l’acquiescence sera parfaite
quand nous aurons rattaché les résultats à ce qu’ils devaient être pour
satisfaire l’esprit.

[f° 17]

Il le ressent : il ne sent pas, à vrai dire, dans sa profession la sé-


curité qui assoit une vie. Mais s’il perd un peu de cette noble pureté
et de sa candeur juvénile, il se dit : Bah ! c’est un Art ! et le voici
qui, songeant aux beaux feuilletons, se rend à ce qui est devenu les
quelques cérémonies habituelles de la littérature, presque content, du
reste, et plus léger d’être moins obligé d’observer le monde.
Il se dit puisque la conversation n’existe plus

254
[f° 18]

– il est une volonté dans une vielle forme – le reste de la fiction.


–Salon, œuvres destinées à quitter ce bazar, pour les intérieurs –
industrie ; les musées, – art ancien ; retourner à l’atelier, bizarreries
privées {style. 

[ff°ˢ 26, 21, 20]

Je n’avais jamais aussi complètement que cette après-midi connu


le bonheur d’un ancien mobilier. Comme il réfléchit bien l’âme,
habituée à une Idée fixe de Beauté, alors qu’elle est au repos, par sa
magnificence ornementale, derrière laquelle se devine l’écho d’une
sonore profondeur ; cela à travers un luxe de miroitement irisé pareil
à l’opale ou à la nacre, à l’agathe ; qui n’est que le trop plein d’une
exquise et élyséenne atmosphère que je compare à l’impression que
me fait l’abstraction de [f° 21] ce vocable d’heures, ou, car pour moi
peut-être, il est permis en ce séjour d’être archaïque, d’heure ; (la plu-
ralité laissée se réfléchissant sur les meubles). Car voicil’instant per-
nicieux pour moi comme l’horloge, ancienne et heureusement arrêtée, où
d’habitude commencent les heures ; l’après-midi souvent mauvaise pour
moi la réalité des heures, cette prolongation et cette limite de toute
jouissance humaine, n’existant pas, je me suis fait, alors que l’absence
n’en est pas un supplice, de leur abstraction et de la contemplation de
ce terme l’idéal du plus [f° 20] vrai bonheur, répandu en moi ainsi que
cette atmosphère l’est dans cette chambre. Derrière ces meubles, où
commence le vague, où je craindrais de retrouver mon ennemi habi-
tuel, de belles tentures qui me présentent les ébauches, telles qu’elles
sont sans doute dans le moment, de mes rêves, assument sur elle ce
temps, que j’ai le malheur souvent de voir immédiatement et non
plus à travers les heures humaines. La satisfaction de vivre l’impres-
sion du jour même m’est souvent refusée, et c’est dans l’après-midi,
alors que les heures commencent que je souffre de cette absence  :
mais sans doute dans
(l’horloge arrêtée)

255
256
APÊNDICE II

[NOTAS SOBRE A LINGUAGEM]


[f° 29]

Resultados da freqüentação
Da Ideia de Ciência e da Ideia de Linguagem
e ensaio sobre a tentativa atual.

________

Resultados para o Espírito. Ficção. Meio


Resultados para as Ciências.
Enfim, posteridade aberta ao estudo do Homem.
Fim, após ter demonstrado qual seria o resultado, dessa tentativa.
___________________________________________________

Notas.

Foi demonstrado pela letra – equivalente da Ficção, e a inanidade


da adaptação ao Absoluto da Ficção de um objeto que faria uma
convenção absoluta.

[ff°ˢ 5, 4]

III
Conclusões

(velho espírito)* tornando-se Inteligência ( que sem seu germe


final foi desgarrado).
[f ͦ 4] e antes de mais nada essa inteligência deve se voltar para
o Presente.

* e ele conduzirá ainda a outra coisa na tese latina, a divindade da


Inteligência (ou espiritualidade da alma)

258
[f° 3]

A tese Latina.
De Divinitate. 

[f° 19]

De um método
_____

Plano

Todo método é uma ficção, e bom para a demonstração.


A linguagem parece-lhe o instrumento da ficção: ele seguirá o
método da Linguagem. (determiná-lo) A linguagem se refletindo.
Enfim a ficção lhe parece ser o procedimento mesmo do espí-
rito humano – é ela que coloca em jogo todo método, e o homem é
reduzido à vontade.
Página do discurso sobre o Método.
(sublinhando)

[f° 19]

Um estranho livrinho, muito misterioso, um pouco já à moda dos


Pais, muito destilado e conciso – isto nos lugares que poderiam se
prestar ao entusiasmo (estudar Montesquieu)
Aos outros, o grande e longo período de Descartes
Depois, em geral: La Bruyère e Fénelon, com um perfume de
Baudelaire.
Enfim do eu, e da linguagem matemática.

______

259
[f° 23]

Nós não compreendemos Descartes, o estrangeiro se amparou


dele: mas ele suscitou os matemáticos franceses.
É preciso retomar seu movimento, estudar nossos matemáticos –
e nos servir do estrangeiro, a Alemanha ou a Inglaterra, apenas como
contra prova: ajudando-nos assim com o que eles nos tomaram.
De resto o movimento hiper científico vem somente da Alema-
nha, a Inglaterra não pode, por causa de Deus, que Bacon, seu legis-
lador, respeita, adotar a ciência pura.

[f° 27]

Parar nestes três estudos nas conclusões gerais, que devem se


encontrar no Tratado; estudar as coisas nelas mesmas.
Em “A Linguagem” explicar a Linguagem, no seu jogo com o
Espírito, demonstrá-lo, sem tirar conclusões absolutas (do Espírito)
Em A Linguagem poética – mostrar apenas a direção da Lingua-
gem, seu devir Beleza – e não do Verbo à exprimir o Belo o que será
reservado ao Tratado.
Jamais confundir a Linguagem com o Verbo.

[f° 8]

O Verbo é um princípio que se desenvolve através da negação de


todo princípio, o acaso, como Ideia, e se encontra, formando, (como
ela o Pensamento suscitado por Anacronismo), ele, a Fala, com ajuda
do Tempo, que, permite que seus elementos dispersos se reencon-
trem e se arranjem seguindo leis suscitadas por suas diversões
___

260
[ff°ˢ 2, 1]

O Verbo, através da Ideia e do Tempo que são a “negação idêntica


à essência” do devir, torna-se Linguagem.
A Linguagem é o desenvolvimento do Verbo, sua ideia, no Ser,
e o tempo, tornou-se seu modo: isso através das fases da Ideia e do
Tempo no Ser, ou seja, segundo a Vida do Espírito
Daí as duas manifestações da Linguagem, a Fala e a Escrita,
destinadas, (se nos atermos aos dados de Linguagem) a se reunirem
ambas na ideia do Verbo: a Fala (criando analogias de coisas pelas
analogias de sons) [f° I] a Escrita marcando os gestos da Ideia se
manifestando na fala, e oferecendo sua reflexão, de maneira a perfa-
zer, no presente (pela leitura), e a conservá-los para o por vir como
anais do esforço sucessivo da fala e de sua filiação: oferecendo assim
o parentesco.
de maneira que um dia, suas analogias contrastadas, o Verbo apa-
reça por trás de seu meio de linguagem, entregue à física e à fisiolo-
gia, como um princípio, desprendido, adequado ao Tempo e à Ideia.

[ff°ˢ 10, 15]

P.

Quem quer que passeie um olhar curioso pelas investigações atu-


ais não pode resistir e se ater um momento nessa tendência que, ofe-
recida por sábios de incontestável mérito, chega somente a formular-
-se pela junção de palavras: Ciência da Linguagem, enquanto todas
as outras ciências encontram seu denominador, que as classifica, na
tecnologia intelectual, e que equivale a sua classificação. Essa junção
de termos na qual tardamos, não carrega a impressão, pelo vocábulo
de ciência, de encaminhamento ao conhecimento das pesquisas so-
bre um objeto, destinadas a culminar no estado de Noção e a formar
um dos termos no conjunto das noções humanas, cuja consciência
somente é reconhecida para nossa época pelo Espírito; e, por este

261
de Linguagem, seu objeto, empregado sozinho, a impressão,a mais
geral, de um meio de expressão, eu não diria do homem absoluta-
mente, pois, modificado por um termo adjacente, como a linguagem
do coração, a dos olhos, linguagens mudas, convêm a certas porções
isoladas de sua alma, e nós assimilamos essas variações à linguagem
das coisas, mas aplicando-as momentaneamente aos dados que pode
almejar uma ciência, que são noções, a expressão geral de nosso es-
pírito.

[ff°ˢ 14, 13]

α Essa ideia de ciência aplicada à Linguagem,


agora que a Linguagem tem consciência de
si e de seus meios, continua fecunda, já que
nos fornece a priori os seguintes dados que a
Ciência deve aplicar e desenvolver:
Da ciência
1° Voltada sobre si mesma e vendo que, por
_____ um lado, ela é um ato momentâneo do espí-
rito respondendo à necessidade de noção, e
A ciência tendo que, por outro lado, os outros termos servem
na Linguagem à apreciação das manifestações do Verbo e
encontrado uma que são tiradas de seu repertório se equiva-
confirmação lem e se equivalem nela igualmente, ela con-
dela mesma, clui que tudo e todos são atos momentâneos
deve agora situados entre os objetos, a matéria e o es-
torna-se uma pírito, e pode audaciosamente elucidar esse
confirmação da problema; agora que ela tem o valor de um
Linguagem meio de expressão.

262
[f°13 ] α 2° É no homem ou sua humanidade que
tudo isto se equivale – estudar a fisiologia
o que é o homem em relação as coisas do
espírito e da matéria, e para isso aplicar a fi-
siologia à história. A fisiologia histórica.

3° O Espírito. O que é o espírito com rela-


ção à sua dupla expressão da matéria e da
humanidade, e como nosso mundo pode se
ligar ao Absoluto.
___________________________________
_______ Coisas que ela encontrará, mas que
nós nos propomos resolver por meios com-
pletamente diferentes, parecidos aos que nos
fizeram encontrar a ideia da Linguagem e
sua ideia na linguagem.

[f° 9]

β a Conversa; não em uma conversa, o que ela é


no momento (acabou) nem na parte de sua abs-
tração que nós queremos conhecer, mas na sua
Ficção, aqui tal qual ela é expressa com relação
à essas duas fases que ela reflete. Chegar da frase
à letra, pela palavra; servindo-nos do signo ou da
escritura, que liga a palavra ao seu Sentido.
A Ciência não é outra a não ser a Gramáti-
ca, histórica e comparada, a fim de tornar-se
geral, e a Retórica −

263
[f° 28]
Método

Conversa -
Sentido das palavras, difere, primeiramente,
em seguida o tom; encontramos algo de novo
no tom com o qual uma pessoa diz tal ou
tal coisa– Nós tomamos o tom da conversa,
como limite supremo, e onde nós devemos
nos ater para não tocar na ciência – como
parada dos círculos vibratórios do nosso
pensamento.
Enfim as palavras tem múltiplos sentidos,
senão nós nos entenderíamos sempre – nos
aproveitaremos – e para o seu sentido princi-
pal, buscaremos qual efeito eles produziriam
em nós pronunciados pela voz interior de
nosso espírito, [v°] colocado pela freqüenta-
ção de livros do passado (Ciência, Pascal),
se este efeito se distância do necessário em
nossos dias.

[f° 22]

É portanto porque nós encontramos na conversa o procedimento es-


sencial da Linguagem, que é de abstrair; na conversa que nós estudaremos
a Linguagem, e
É portanto, porque a conversa nos permite uma abstração de nosso
objeto, a Linguagem, ao mesmo tempo em que, espaço da Linguagem, ela
nos permite oferecer seu momento à Ciência.
_________

Já que os dois termos só se mantém na adesão momentânea de


nosso espírito graças ao procedimento da conversa

264
[f° 25]

Todavia já que nós retiramos o procedimento de Abstração que a


reflete, estudaremos, como ela apresenta, não mais enquanto abstra-
ção, de si mesma, mas tal qual ela nos aparece na sua manifestação
habitual e tal qual nós a possuímos no caso presente, e esse último
concorda com o primeiro como ele o faz com a abstração da con-
versa, nós concluiremos que nós podemos continuar a nos servir, e
que essas diferenças tornando-se equivalências, serão avaliadas, e nos
servirão da medida comum.
[f° 11]

O momento da Noção de um objeto é portanto o momento da


reflexão de seu presente puro nele mesmo ou de sua pureza presente.
_______ Tirar uma época de reflexão da linguagem.
o pensamento acaba de sair da conversação : nós nos serviremos
disto para entrar

[f° 12]

à maneira da história natural : é uma classificação histórica pura ;


e a classificação da história natural continua sendo a das raças,

[f° 24]

principais, que tais sons equivalem à tal ideia, modificados de tal


e tal maneira que tais son [s] significam isso, e, encontrando uma
língua neutra, se é que há uma, que tal som por excelência significa
isso, tem tal valor.
‘Tirar leis fônicas que permitam reconhecer a anterioridade’

[f° 7]

Entregar às palavras, que podem de maneira viciosa se estereoti-


par em nós, sua mobilidade.

265
De fato, o trabalhador lê pouco obras feitas. O nosso mergulha
sem hesitar nos antigos autores da renascença e do romantismo que
foram seus mestres privilegiados. Do mais, ele ama a história – gosto
do passado.
A vida exterior, como de resto a de muitos de seus contemporâ-
neos é um pouco

[f° 6]
da natureza que, junto com a modificação do tempo, seja nossa
humanidade, menos a porção espiritual ocupada com a reflexão. O
que significa dizer que nós podemos perfeitamente aplicar a parte
essencialmente humana de nós mesmos a este estudo.
De resto será temporário, e o consentimento será perfeito quan-
do nos atermos aos resultados, ao que eles deveriam ser para satisfa-
zer ao espírito.

[f° 17]

Ele ressente : ele não sente, a bem dizer, na sua profissão a segu-
rança que assenta uma vida. Mas ele perde um pouco desta nobre
pureza e de sua ingenuidade juvenil, e diz: Ah! É uma arte! e veja-o
que, sonhando com os belos folhetins, se rende ao que se tornou a
cerimônia habitual da literatura, quase contente, do resto, e mais leve
de ser menos obrigado a observar o mundo.
Ele se diz por que a conversa não existe mais

[f° 18]

- ele é uma vontade numa forma antiga – o resto da ficção.


- Salão, obras destinadas à deixar este bazar, para os anteriores
– indústria, os museus, - arte antiga, retornar ao atelier, bizarrices
privadas { estilo.

266
[ff°ˢ 14, 13]

Eu não tinha até então, jamais tão completamente como nes-


ta tarde, conhecido a felicidade de uma antiga mobília. Como ela
reflete bem a alma, habituada à uma ideia fixa de beleza, enquanto
descansa, na sua magnificência ornamental, atrás da qual se advinha
o eco de uma sonoridade profunda; isso através de um luxo de es-
pelhamento irisado como a opala ou a madrepérola, a ágata; dema-
siado plena de uma delicada e eliseana atmosfera que eu comparo
à impressão que me causa uma abstração desse [f° 21] vocábulo de
horas, ou, pois para mim talvez, é permitido nessa estadia arcaica, de
hora; ( a pluralidade deixada se refletindo sobre os móveis). Eis aqui
está o instante pernicioso para mim como o relógio, antigo e felizmente
parado, onde habitualmente começam as horas; a tarde freqüentemente é
para mim a realidade das horas, este prolongamento e este limite de
todo prazer humano, não existindo, eu me fiz, quando a ausência não
é um suplício, de sua abstração e da contemplação deste termo ideal
da mais [f° 20] verdadeira felicidade, propalado em mim como essa
atmosfera é nesse quarto. Por trás dos móveis, onde começa o vago,
onde eu temia encontrar meu inimigo habitual, belas tapeçarias que
me apresentam os rascunhos, tais como são sem dúvida no momen-
to, dos meus sonhos, assumem sobre ela esse tempo, que eu tenho
a infelicidade de ver imediatamente e não mais através das horas
humanas. A satisfação de viver a impressão do dia me é recusada, e é
à tarde, quando as horas começam que eu sofro desta ausência: mas
sem dúvida
(o relógio parado)

267
BIBLIOGRAFIA
Textos de referência:

MALLARMÉ, S. Œuvres complètes I, II. Paris: Gallimard, 1998,


2003.

___________. Divagações.Trad.: Fernando Scheibe. Florianópolis:


Editora da UFSC, 2010.

___________ Um lance de dados. Trad.: Álvaro Faleiros. Cotia,


SP: Ateliê Editorial, 2012.

CAMPOS, A; CAMPOS, H; PIGNATARI, D. Mallarmé. São


Paulo: Perspectiva, 2006.

Livros inteiramente ou parcialmente dedicados a Mallarmé:

ABASTADO, C. Mythes et rituels de l’écriture. Bruxelles: Edi-


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Mallarmé. Paris: Lang, 1987.

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tique des poètes. Paris: Albain Michel, 1992.

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