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Então Lulu tomou banho e vestiu sua roupa nova, que a mamãe tinha comprado
para ela. E se arrumou toda e a mamãe botou nela um pouquinho de água de
colônia.
Lulu gostou de todos os presentes, mas o que ela mais gostou foi da caixa grande
de lápis de cor que se abria feito uma sanfona e que tinha todas, mas todas as
cores, mesmo.
Depois que todos foram embora a Lulu foi dormir e ela até botou a caixa de lápis de
cor do lado da caminha dela.
Então, logo de manhã, a Lulu já se sentou na mesa da sala, pegou o bloco grande
de desenho e começou a fazer um desenho bem bonito, com seus novos lápis. Aí
chegou o Miguel, que veio passar o dia com ela.
Ela foi subindo as escadas, subindo as escadas, até que já estava chegando lá em
cima, quando ela perdeu o equilíbrio e deixou os lápis caírem todos escada abaixo.
Os lápis rolaram pela escada e foram batendo, batendo, batendo nos degraus.
A Lulu desceu as escadas e viu que todas as pontas dos lápis estavam quebradas.
Então ela começou a chorar, que os lápis estavam estragados e que nunca mais ela
ia poder desenhar. O Miguel, que estava brincando lá fora, veio correndo apara ver
o que tinha acontecido.
E o Miguel veio e eles fizeram uma porção de desenhos, e o Miguel ensinou a Lulu a
fazer um automóvel e a Lulu ensinou o Miguel a fazer um elefante. Aí o Miguel
ensinou a Lulu a fazer um foguete que voava direitinho. E a Lulu ensinou o Miguel a
recostar umas bonecas engraçadas.
E a Lulu se divertiu muito mais do que quando ela ficava desenhando sozinha...
Eu tenho um irmãozinho que se chama Pedro. A gente chama ele de Pedrinho. Ele é
bem bonitinho e eu gosto muito dele. Acho que eu gosto.
Antes que ele nascesse eu vivia chateando a minha mãe pra ela me arranjar um
irmãozinho. Eu até andava pra trás, porque quando uma criança anda pra trás, é
porque ela vai ganhar um irmãozinho.
E fui eu que escolhi o nome dele: Pedro, que é o nome do meu melhor amigo. E no
dia que ele nasceu, eu fui no hospital visitar minha mãe e meu pai botou ele no
meu colo! E ele era tão pequenininho! Eu até achei que eu tinha que tomar conta
dele sempre!
E a minha mãe fica me enchendo, que ela quer que eu leve ele pra todo lugar que
eu vou: pra brincar na areia, pras festas de aniversário, pra ir ao shopping com
meu pai.
Quando a gente sai na rua, todo mundo fica dizendo:
“Que bonitinho!”
“Que engraçadinho!”
Eu não acho graça nenhuma, que eu quero andar depressa e ele não sabe andar
depressa...
Então ele me leva pra sala, pra contar histórias, e eu acabo dormindo no sofá!
E quando o Pedrinho fica doente? Todo mundo só quer saber dele, só manda eu
ficar quieto, pra não acordar ele, e todo mundo traz presentes pra ele e esquece de
me trazer presentes...
Mas no outro dia eu estava um pouquinho doente. Aí minha mãe nem foi trabalhar
pra ficar comigo e a minha tia passou o dia todo me agradando e meu pai me
trouxe um monte de brinquedos.
É! Aquele dia foi bom!
Também foi bom no outro dia, quando a vovó veio lá em casa, e todo mundo
estava fazendo festa pro Pedrinho, e ela disse:
“Eu quero é ver o Miguel! Que eu gosto muito do Miguel!”
Aí minha avó me pegou no colo, me contou um monte de histórias e disse que eu já
estava ficando muito grande e muito bonito!
Ela até falou que ela gostava de brincar comigo, porque eu sei brincar de uma
porção de coisas, que o Pedrinho ainda não sabe.
E quando meu amigo veio na minha casa e disse que não queria brincar com o
Pedrinho que ele era chato, eu fiquei louco da vida e disse que meu irmão não era
chato, nada! Só se fosse o irmão dele!
E eu boto ele no carrinho de brinquedo e empurro pela casa toda, e ele ri muito e
eu também.
Maluquinha, eu?
Quem me pôs esse apelido foi aquele menino de casacão e panela na cabeça.
Mas a mãe dele telefonou pra minha mãe, ela disse que o Mauricinho era muito
tímido e que ela queria que ele brincasse com umas crianças mais... Não sei o que
ela disse, acho que ela queria que ele brincasse com umas crianças mais
descoladas...
Eu não me incomodo de fazer lição logo depois do almoço, porque eu fico logo livre.
E então eu fiz minha lição correndo e o Mauricinho ficou lá toda a vida, ele não
acabava mais de fazer a lição dele.
Gato não, gata. Chamava Pom-pom. Ou era Fru-fru... Ou era Bom-Bom, sei lá.
Então eu resolvi dar um banho nela. Gato não gosta de banho, vocês sabem.
Mas meu avô tinha me contado que quando ele queria dar banho no gato ele
botava o bicho dentro da banheira e ele não conseguia sair e meu avô dava banho
à vontade!
Quando eu fui chegando perto da banheira a gata arrepiou toda e eu joguei ela
bem depressa lá dentro e tapei o ralo e enchi de água.
Mas acho que aí caiu shampoo no olho da gata, porque ela deu um pulo e agarrou
na minha roupa e conseguiu pular fora e saiu correndo, espalhando espuma de
shampoo por todo lado e nisso a mãe do Mauricinho vinha chegando e levou o
maior susto e caiu sentada e a gata continuou correndo e assustando todo mundo e
respingando tudo de espuma.
Eu não sei quem estava mais assustado: se era o Mauricinho, a mãe dele, a gata,
ou se era eu.
Eu corri atrás da gata, mas ela pulou pela janela, atravessou o jardim, saiu pela rua
e eu atrás.
E eles levaram o maior susto, cada um correu para um lado, e atrás de mim vinha
a mãe do Mauricinho e o Mauricinho e a cozinheira e o jardineiro todos correndo e
gritando e eu resolvi correr para a minha casa e me esconder lá.
Mas no dia seguinte... a escola toda já sabia da história e aquele menino, aquele da
panela na cabeça começou a me chamar de maluquinha...
- Não – disse o Miguel – não sou invisível pra todo mundo, não. Só pros meus pais.
Eles olham pra mim, mas acho que eles não me enxergam!
O Tanaka ficou espantado. E então eles combinaram que iriam à casa do Miguel só
pro Tanaka ver.
Miguel abriu a porta, mandou o amigo entrar e anunciou a todos que já estavam
sentados pra almoçar :
A mãe do Miguel levantou, botou um a cadeira pro Tanaka, foi buscar um prato, um
copo e os talheres.
-Olá, Tanaka, faz tempo que você não aparece! E sua mãe vai bem? E sua irmã,
tão bonitinha, sua irmã...
Miguel sentou-se, serviu-se, comeu, e ninguém olhou pra ele. Tanaka ficou
reparando.
Então o Miguel fez uma pergunta pra pai, mas ele estava prestando atenção à TV e
só fez:
-Shhh...
-Acho que as famílias são assim mesmo. Ninguém presta atenção aos filhos...
-Pois é, quando eu saio com mau pai é ainda pior! Mau pai fala comigo como se eu
fosse o cachorro “Anda!”, “Anda logo!” “Espera!” “Anda!” “Vem logo!”
Na semana seguinte Miguel saiu com o pai. E como ele tinha dito o pai só dizia
“Anda!”, “Vem logo!”
O pai olhou espantado, mas o ônibus estava chegando e eles tomaram o ônibus.
E o Miguel:
Miguel resolveu parar, porque achou que o pai estava ficando bravo...
Mas na outra semana havia um casamento de uma prima e o pai levou o Miguel
para comprar uma roupa. Nem perguntou o que ele queria. Já foi escolhendo uma
calça comprida, uma camisa, um suéter e ... uma gravata.
Miguel não falou nada, porque ninguém perguntou. Mas ele pensou: “Eu não vou
botar gravata, nem morto. Eu não sou cachorro pra usar coleira...”
O pai dele chamou: “Vem aqui. Miguel chegou perto do pai e disse:
-Vem!
-Aúúúúúúú!
E então o laço estava tão apertado que o Miguel não agüentou. Tacou uma mordida
na mão do pai.
O pai ficou furioso, cheio de “Que é issos” e de “ Para já com issos” e de “Vam’ver,
vam’veres”.
A mãe veio lá de dentro pra ver o que estava acontecendo e o Miguel disse:
-Se não querem que eu vire cachorro, não me tratem como cachorro!
E o Tanaka e contou que quando foi à casa do Miguel, na semana passada, os pais
falavam com ele direitinho:
Borba, o gato
Vocês já ouviram falar que duas pessoas brigam como cão e gato?
Pois os nossos amigos nunca brigavam, apesar de serem realmente cão e gato.
Quando chegou a hora de irem para escola, Diogo, que era um cão policial,
resolveu estudar na escola da polícia.
- Mas, mamãe, só porque nunca houve não quer dizer que não possa aparecer um.
Afinal, é a minha vocação...
E explicava a Diogo:
- Eu preciso reabilitar a raça felina.
Em todas as histórias, os ratos são bonzinhos e os gatos são malvados. Veja os
desenhos animados.
Veja Tom e Jerry! É uma injustiça. Eu vou mostrar a todo mundo que os gatos são
grandes homens, quer dizer, grandes gatos...
O tempo passou e Diogo recebeu seu diploma. Ganhou uma linda farda e todas as
noites fazia a ronda do bairro:
- PRIIIUUUUU! PRIIIUUUUU!...
Borba ainda tinha esperanças de vir a ser um policial e por isso saía sempre com o
seu amigo.
Uma noite, quando vinham passando pela casa do seu Godofredo, viram alguma
coisa muito suspeita no telhado:
O ladrão levou tamanho susto que despencou do telhado, caindo bem em cima do
Diogo.
O Borba ainda gritou:
- Cuidado, Diogo!
Se ele te pega, faz cachorro-quente!
Mas o ladrão, que era o ladrão de galinhas, estava tão assustado que não
conseguiu nem fugir.
- Está preso em nome da lei! – disse Diogo, todo satisfeito, pois era o primeiro
ladrão que ele prendia.
Diogo levou seu prisioneiro para a delegacia e explicou, direitinho, como é que
tinha prendido o ladrão.
E agora, todas as noites, enquanto Diogo vigia as ruas, Borba cuida do seu setor.
A escolinha do Mar
E há o siri-patola, que só sabe andar de lado e por isso nunca acompanha a aula de
ginástica.
No fim do ano, Dona Ostra, que é uma professora muito moderna, leva seus alunos
para uma excursão pelo fundo do mar.
No dia da partida, todas as mamães foram despedir-se dos filhinhos e todas faziam
muitas recomendações:
- Veja lá, hein? Não vá chegar à beira do ar, e cuidado com as gaivotas!
- Meu filho, não chegue perto do peixe-elétrico quando ele estiver ligado. É muito
perigoso!
- Adeus, adeus, boa viagem, aproveitem bem!
Começou a caçoar de todos, a imitar o jeito de cada um, que é uma coisa muito
feia.
Dona Ostra ficou aborrecida.
- Olhe aqui, menino, se você quiser, pode ficar, mas tem que se comportar
direitinho, como os outros.
E arrancou a pérola de dona Ostra e fugiu, espirrando água para todos os lados.
- Ah, dona Ostra, não se aflija, não - disse Peixoto, que, apesar de pequenininho,
era muito valente.
- Eu vou já ao castelo buscar a pérola. Se ele não devolver, falo com o pai dele!
Dona Ostra empalideceu:
- Ai, não vai não! Eu tenho tanto medo de tubarão, ainda mais de tubarão barão.
- Eu vou, sim. Se a gente ficar de braços cruzados, sua pérola não volta nunca
mais.
- Boa noite, dona Cobra, diga ao Tubaronete que aqui está o Peixoto, que quer falar
com ele sem demora – disse o peixinho.
- Cobra, não! Dobre a língua, ouviu? Meus patrões não têm tempo a perder com
senhores Peixotos...
E foi entrando, sem querer escutar o que Peixoto estava dizendo.
O Barão não disse nada, mas, no ano seguinte, Tubaronete foi o primeiro aluno que
se matriculou na escola de dona Ostra.
Pedrinho embarcou.
No dia da partida houve grandes festas.
Pedrinho viu, do seu navio, quando o rei, Dom Manoel, se despediu do chefe da
expedição, Pedro Álvares Cabral.
E esperaram chegar o vento. E quando o vento chegou, as velas se enfunaram e os
navios partiram.
- Sinais de terra!!!
Todos vieram olhar e houve grande alegria.
- Sinais de terra!!!
E todos trabalharam com mais vontade.
Até que, no outro dia, Pedrinho avistou, ao longe, o que parecia um monte.
E gritou o aviso tão esperado:
- Terra à vista!
E como era o dia da Páscoa, o monte recebeu o nome de Monte Pascoal.
E, depois, as caravelas tiveram que partir para as Índias, mas uma voltou para
Portugal...
Para contar ao rei Dom Manuel, o Venturoso, as aventuras que tinham vivido: as
histórias da linda terra descoberta por Pedro Álvares Cabral.
E Pedrinho, do alto do mastro, deu adeus aos seus amigos índios.
Levava como lembrança a arara.
E pensava:
- Quando eu crescer, eu vou voltar para ficar morando aqui.
E foi o que aconteceu.
E os barões e os cavaleiros,
ministros e camareiros,
damas, valetes e o rei
tremiam como geléia,
daquela grande assembléia,
como eu nunca imaginei!
Procurando firme
Uma história que parece história de fadas mas não é. Também parece história para
criança pequena mas não é.
“Era uma vez um castelo, com rei, rainha, príncipe, princesa, muralha, fosso em
volta, ponte levadiça e um terrível dragão na frente da porta do castelo, que não
deixava ninguém sair.”
- Mas como não deixava?
- Sei lá. A verdade é que ele parecia muito perigoso.
E cada pessoa via um perigo no dragão.
Uns reparavam que ele tinha unhas compridas, outros reparavam que ele tinha
dentes pontudos, um tinha visto que ele tinha um rabo enorme, com a ponta toda
cheia de espinhos... tinha gente que achava que ele era verde, outros achavam que
era amarelo, roxo, cor-de-burro-quando-foge... E saía fogo do nariz dele. Saía, sim!
Por isso ninguém se atrevia a cruzar o pátio para sair de dentro das muralhas.”
“ Mas o príncipe desde pequeno, estava sendo treinado para sair um dia do castelo
e correr mundo, como todo príncipe que se preza faz.
Ele tinha professor de tudo: professor de esgrima, que ensinava o príncipe a usar a
espada; professor de berro...”
- Professor de berro? Essa eu nunca ouvi!
- Ouviu sim. Nos filmes de Kung Fu, ou nas aulas de caratê os caras dão sempre
uns berros, que é pra assustar o adversário.
Tinha aula de berro. Tinha aula de corrida, que era para atravessar bem depressa o
pátio e chegar logo no muro... tinha aula de alpinismo, que é a arte de subir nas
montanhas e que ele praticava nas paredes do castelo; tinha aula de tudo quanto é
língua, tudo era para quando ele saísse do castelo e fosse correr mundo pudesse
falar com as pessoas e entender o que elas diziam...Tinha aula de andar a cavalo,
de dar pontapés...Tinha aula de natação, que era para atravessar o fosso quando
chagasse a hora, tinha aula do uso de cotovelo...”
- Ah, essa não! Você está inventando tudo isso. Nunca ouvi falar no uso do
cotovelo!
- Pois o príncipe tinha aula. Ensinavam pra ele esticar o braço dobrado, com
cotovelo bom espetado e cutucar quem ficasse na frente.
E tinha aula de cuspir no olho... e ele até esfregava o joelho no chão, que é para o
joelho ficar bem grosso e não machucar muito quando ele caísse. E ele aprendia a
não chorar toda hora, que ás vezes chorar é bom, mas chorar demais pode ser uma
bruta perda de tempo. E quem tem que fugir de dragão, espetar dragão, enganar
dragão, não tem tempo para ficar choramingando pelos cantos.
Enquanto isso a princesinha, irmã do príncipe, que era linda como os amores e
tinha os olhos mais azuis que o azul do céu, e tinha os cabelos mais dourados do
que as espigas do campo e que tinha a pele branca como as nuvens nos dias de
inverno...”
- Branca como as nuvens do inverno? Por que no inverno? Não pode ser no verão?
- Ah, não pode, não. Nuvem no verão é nuvem de chuva. Portanto é escura...
- É, mas nos países frios, no inverno as nuvens são escurinhas...
- Olha, vamos parar com essas discussões que não levam a nada. No máximo
encompridam o livro e fazem ele muito chato...A pele da princesa era branca,
pronto. E as mãos da princesa eram macias como... Ah, não importa. As mãos
eram macias, os pés eram pequenos, e a voz da princesa era maviosa.
- Maviosa?
- É, maviosa, melodiosa! Eu sei que essa palavra não se usa mais, mas se eu não
usar umas palavras bonitas, meio difíceis, vão ficar dizendo que eu não incentivo a
cultura dos leitores.
- E o que é que a princesa fazia o dia inteiro?
- A princesa se ocupava de ocupações principescas, quer dizer, a princesa tomava
aulas de canto, de bordados, de tricô, de pintura em cerâmica. A princesa fazia
cursinhos de iniciação à poesia de Castro Alves, estudava um pouquinho de piano,
fazia flores de marzipã...
- O que é marzipã?
- Ah, mazipã é um doce muito caro, que ninguém come mais, que não há dinheiro
que chegue...
E ela aprendia a enfeitar bolos, a fazer crochê com fios de cabelo...
- Com fios de cabelo?
- Pois é, naquele reino era muito bonito ter prendas...
- Prendas?
- É, dotes...
- Dotes?
- É, saber fazer coisas que não servem pra nada, que é pra todos saberem que a
pessoa é rica... só faz as coisas pra se distrair... Se uma pessoa estuda datilografia,
por exemplo, tá na cara que ela vai trabalhar em alguma coisa...Ou se ela entra
num curso de medicina, de engenharia, de confecção industrial... aí está claro que
ela quer trabalhar, ganhar a vida, ganhando dinheiro, sacou? Agora, de ela estuda
frivolitê, por exemplo, tá na cara que ela está só se distraindo, deixando o tempo
passar...
- E pra que uma pessoa quer deixar o tempo passar?
- Bom, as pessoas em geral eu não sei. Agora, a princesa da nossa história estava
deixando o tempo passar que é pra esperar um príncipe encantado que vinha
derrotar o dragão e casar com ela. Até estava deixando o cabelo crescer pra fazer
que nem a Rapunzel, que jogava as tranças para o príncipe subir por elas.
Aí chegou o dia do príncipe sair para correr mundo. Ele não quis levar muita
bagagem, para não ficar pesado. Saiu de madrugada, bem cedinho. E lá se foi
correndo, dando cotoveladas, cuspindo no olho de quem passasse perto. Passou
pelo dragão, escalou o muro do palácio, caiu do outro lado, nadou pelo fosso, subiu
na outra margem e se foi pelo mundo, procurando, não sei bem o quê, mas
procurando firme.
- E a princesa?
- A princesa continuava esperando.
E tanto esperou que um dia apareceu em cima do muro do castelo um príncipe com
cara de encantado que desceu por umas cordas, deu umas cutucadas no dragão,
montou uma bicicleta desmontável que ele tinha trazido, atravessou o pátio
inteirinho e subiu pelas tranças da princesa, que estava fazendo força para parecer
graciosa com aquele marmanjão subindo pelas tranças dela acima. No que o
príncipe chegou lá em cima já foi fazendo uns salamaleques para a princesa e já foi
perguntando se ela queria casar com ele.
Mas a princesa estava desapontada! Aquele não era o príncipe que ela estava
esperando! Até que ele não era feio, tinha umas roupas bem bonitas, sinal que
devia ser meio riquinho, mas era meio grosso, tinha um jeitão de quem achava que
estava abafando, muito convencido!
A essa altura o príncipe também já estava tão cheio daquela princesa que não
agradava ele mesmo, que foi embora e não voltou mais, para tristeza dos reis e
grande alívio de Linda Flor.
E então, num outro dia, apareceu um outro príncipe em cima do muro, deu um pulo
por cima do dragão, jogou areia nos olhos dele e subiu pelas tranças de Linda Flor,
que agüentou firme o peso do príncipe, mas nem fez força para parecer graciosa.
O príncipe chegou, coisa e tal, deu uma palavrinha com o rei, fez uns elogios à
rainha, deu umas piscadas pra Linda Flor e já foi perguntando se ela queria casar
com ele.
Esse príncipe também não era feio, também era bem vestidinho, tinha até uma
pena de galinha no chapéu, levava jeito de ser bom moço, mas Linda Flor não
estava gostando dele.
- Como não gostava dele?
- Ah, sei lá, não gostava e pronto!
E assim muitos príncipes vieram, muitos príncipes se foram. Linda Flor já nem
jogava as traças pra eles subirem. Tinha posto uma escada na janela que era mais
prático.
Para falar a verdade, com grade susto dos pais, Linda Flor tinha cortado os cabelos
e estava usando um penteado esquisitíssimo copiado de povos longínquos de
Africolândia.
E as roupas de Linda Flor? Ela não usava mais aqueles lindos vestidos de veludo
com entremeios de renda e beiradas de arminho que agente vê nas figuras dos
contos de fadas.
Ela agora estava usando... calças compridas!
Ela usava calças compridas, que nem o príncipe. E estava diferente, não sei,
queimada de sol, logo ela que era tão branquinha!”
Os professores estavam se queixando que ela não ia mais às aulas de craquelê,
nem às aulas de etiqueta, nem às aulas de minueto. E a corte inteira se espantava
com a modificação da princesa, que deu para rir alto e até se intrometia nas
conversas dos mais velhos. Até nas conversas dos ministros sobre política ela deu
para dar palpites! E não queria mais ser chamada de Linda Flor.
- Que nome mais careta! Quero que me chamem de Teca, de Zaba, de Mari, um
nome mais moderninho!”
Gabriela e a Titia
Gabriela menina.
Gabriela levada...
Ô menina encapetada!
A GABRIELA?
Lá se vai a titia com o macaco pela mão!
- Vamos embora, menina! Tenho que
comprar comida para o papagaio!
Uma vez um vaqueiro por nome de Pedro se empregou num convento de irmãos.
De tanto lidar com os frades, Pedro foi ficando muito amigo deles.
De todos os irmãos, Pedro gostava mais era de frei Damião, o mais sábio de
quantos sábios havia no convento.
Frei Damião não permitiu de jeito nenhum que Pedro fosse. Mas, de madrugada,
Pedro saiu bem de mansinho, sem que ninguém visse, e foi para a corte vestido de
frade.
Foi uma risada só. Todos na corte acharam tanta graça que o rei não teve outro
remédio senão rir também.
E deu a Pedro uma porção de presentes e mandou que ele fosse em paz.
Historinhas malcriadas
Então me deu uma vontade danada de fazer primeira comunhão. Eu nem sabia
direito o que era isso, mas falei pra minha mãe e pro meu pai e eles acharam que
até podia ser bom, que eu andava muito lavada e coisa e tal, e me arranjaram uma
tal de aula de catecismo, que era na igreja.
Aí eu não gostei muito, que todo sábado de manhã, enquanto meus amigos ficavam
brincando na rua, eu tinha que ir na tal aula. Eu ia, né, e aí eu arranjei uns amigos
e tinha uma menina boazinha que vinha me buscar que ela também ia na aula e a
gente ia pra igreja rindo de tudo que a gente via.
E na aula a gente aprendia uma porção de coisas, e tinha uma que eu achava
engraçada e que era uma rezinha bem curtinha, que se chamava jaculatória. Eu
achava esse nome meio feio, sei lá, me lembrava alguma coisa esquisita...
E o padre uma vez mostrou pra gente um livrão, que tinha uma figura com o
inferno e uma porção de gente se danando lá dentro.
E tinha um tal de ato de contrição, e uma tal de ladainha, que a gente morria de
rir.
E aí a gente começou a aprender como é que se confessava, que tinha que dizer
todos os pecados pro padre e eu perguntava pro padre o que era pecado e ele
parece que nem sabia direito.
Quando eu chegava em casa e contava essas coisas, meu pai e minha mãe meio
que achavam graça e eu comecei a achar que esse negócio de primeira comunhão
era meio engraçado...
E aí o padre começou a explicar pra gente como era a comunhão e que a gente ia
comer o corpo de Cristo, que na hora da missa aquela bolachinha chamada hóstia
vira o corpo de Cristo.
Eu estava muito animada era com o meu vestido novo, que era branco e era cheio
de babados e rendas, e na cabeça eu ia botar um véu, que nem a minha avó na
missa, só que o meu era branco e mais parecia uma roupa de noiva.
E eu perguntei pra minha mãe por que é que ela nunca comungava e ela disse que
um dia desses ela ia.
E eu perguntei por que é que o meu pai nunca ia na igreja e ele disse que um dia
desses ele ia.
Eu fiquei meio que achando que era pecado ouvir os pecados dos outros, mas como
ninguém tinha falado nada pra mim eu fiquei quieta, e quando o padre veio pro
meu lado eu fui logo falando o ato de contrição: eu pecador me confesso e o resto
que vem depois.
E eu contei os meus pecados, que pra falar a verdade eu nem achava que eram
pecados, mas foi assim que me ensinaram. E aí o padre disse uma coisa que eu não
entendi e eu perguntei “o quê” e o padre disse "vai tirar o cera do ouvido”. E eu
disse “posso ir embora?” e ele disse “vai, vai logo e reze vinte Ave-Marias”. E eu
achei que ele nem tinha escutado o que eu disse e que ele que precisava tirar a
cera do ouvido.
No dia seguinte eu botei o meu vestido branco e eu não comi nadinha, nem bebi
água, e nem escovei os dentes, de medo de engolir uma aguinha.
E eu estava morrendo de medo, que todo mundo tinha dito que se a gente
mordesse a hóstia saía sangue.
A igreja cheirava a lírio, que é um cheiro que até hoje eu acho enjoado.
E o padre veio vindo com uma taça dourada na mão e ele tirava a hóstia lá de
dentro e ia dando uma por uma para cada menina e menino.
Aí chegou a minha vez e abri bem a boca e fechei os olhos que nem eu vi as outras
crianças fazerem e o padre botou a hóstia na minha língua. Eu não sabia o que
fazer, que morder não podia e a minha boca estava sequinha e a hóstia grudou no
céu da boca eu empurrava com a língua e não desgrudava e enquanto isso eu tinha
que levantar e voltar pro meu lugar que já tinha gente atrás de mim querendo
ajoelhar.
Eu estava sentindo tudo que é gosto na boca, que devia de estar saindo sangue da
hóstia, mas não tinha coragem de pegar pra olhar.
Aí eu pensei assim: “se eu não olhar se saiu sangue agora, nunca mais na minha
vida eu vou saber se é verdade essa história”.
E foi assim que eu aprendi que quando as pessoas falam pra gente coisas que
parecem besteira não é pra acreditar, que tem muita gente besta neste mundo!
Arranjei uma caixa de fósforo na cozinha, escondi o maço e fui pro fundo do
quintal.
Subi no muro, que eu gostava muito de ficar encarapitado no muro.
Então eu peguei o maço de cigarros e comecei a fumar.
Pra falar a verdade eu achei uma droga! Mas eu já sabia que no começo a gente
acha uma porcaria. A gente tem que insistir, até acostumar. Não é fácil não!
Eu fui fumando, fumando, fui tossindo, tossindo, até que eu comecei a enjoar.
Então ela fez eu lavar a boca, foi até lá em casa buscar a minha escova de dentes...
Mas não adiantava nada...
Então dona Esmeralda veio lá de dentro com um copo de pinga. Ela disse que a
melhor coisa pra tirar cheiro de cigarro é pinga.
E me fez lavar a boca com pinga, até que ela achou que eu não estava mais
cheirando cigarro...
A mãe do Alvinho andava meio zangada, que o Alvinho estava muito vagabundo,
não estudava nada de nada, só queria ouvir música e comer sucrilho. E ele repetiu
de ano por causa de uma tal de equacão de 1° grau.
Então a mãe dele foi lá na escola e ficou um tempão conversando com a psicóloga.
O Alvinho ficou esperando na sala de espera e só ouvia dona Branca dizer:
- Paciência? Estou cansada de ter paciência...
Todo mundo achava que ele estava arrependido da vagabundagem que ele tinha
feito o ano todo.
Dona Branca dizia em segredo pras amigas:
- Desta vez o Alvinho conserta!
Vocês vão ver!
Até que chegou a hora de fazer matrícula do Alvinho no colégio.
Um dia dona Branca chamou o filho:
- Olha aqui, Alvinho, amanhã você não vai trabalhar. É preciso avisar seu chefe.
Nós vamos ao colégio fazer sua matrícula.
Alvinho olhou espantado para a mãe:
- Matrícula? Que matrícula? Eu não vou mais pra escola, não!
- Que é isso, meu filho? Como não vai pra escola?
- Pois é, resolvi – disse o Alvinho – estou achando ótimo esse negócio de trabalhar.
Eu fico o dia inteiro na rua, cada vez que eu vou fazer uma entrega eu vou pra um
lugar diferente... conheço uma porção de gente nova, ganho um bom dinheirinho,
me encho de sorvete e de chocolate o dia inteiro, não me amolo com lição disso,
lição daquilo, não tenho mais que me incomodar com equação de 1° grau, estou
achando ótimo...
E na escola? Primeiro da classe perde. Ele sabe tudo! Só tira 10. Nunca vai pra fora
de classe, nunca tem anotação na caderneta.
E quando ele vai na minha casa, puxa vida!
Meu pai fica dizendo “Olha a caderneta do Armandinho. Só tem 10...”
E a minha mãe fala “Olha como o Armandinho se comporta direitinho e
cumprimenta todo mundo, não é como você que entra que nem furacão, sem falar
com ninguém...”
E as canetas do Armandinho não estouram e não sujam a mão dele toda de tinta,
os cadernos dele não enrolam nos cantos que nem os meus e os lápis de cor dele
gastam todos iguaizinhos, não ficam que nem os meus que logo acaba o vermelho
e o azul.
É por isso que eu não posso nem ouvir falar de Armandinho... e é por isso que
quando aconteceu o que eu vou contar eu fiquei bem me divertindo...
Nesse dia o Armandinho já tinha enchido as minhas medidas. Vocês não vão
acreditar, mas o Armandinho trouxe flores pra minha vó. Pode?
E ele veio com uma roupa que eu acho que a minha mãe e a dele compraram no
mesmo dia e que era um horror e que eu disse pra minha mãe que eu não ia vestir
nem que fosse amarrado.
A Arca de Noé
Quando a bicharada
Estava toda embarcada,
E mais a família do Noé todinha,
Começou a cair uma chuvarada.
Mas não era uma chuvarada
Dessas que caem agora.
Você já viu uma cachoeira?
Pois era igualzinho
A uma cachoeira caindo,
Caindo, que não acabava mais.
E o sabiá explicou
Que a cor mais linda do mundo
Era a cor alaranjada,
Cor de laranja, dourada.
Na pracinha da floresta,
Saindo da capelinha,
Vinha o senhor louva-a-deus,
Mais a família inteirinha.
Ele é um senhor muito sério,
Que não gosta de gracinha.
- bom dia, Camaleão!
Que cor mais escandalosa!
Parece até fantasia
Pra baile de carnaval...
Todos os dias Catapimba levava dinheiro para escola para comprar o lanche.
Mas seu Lucas ficou chateado mesmo quando apareceu o Caloca puxando um bode.
Aí, seu Lucas correu e chamou a diretora.
Os meninos fizeram uma festa, deram pique-pique pra dona Júlia e tudo.
Naquele dia, nem houve mais aula.
Mas o melhor de tudo é que todos do bairro ficaram sabendo do caso.
E, agora, seu Pedro da farmácia não dá mais compridos de troco, seu Ângelo do
mercado não dá mais mercadoria como se fosse dinheiro.
Afinal, ninguém quer receber um bode em pagamento, como se fosse dinheiro. É,
ou não é?
Davi Ataca ao Outra Vez
SUPERULTRA MERCADÃO
GOLIAS
Capítulo 3
A gente então resolveu fazer uma reunião p´ra conversar sobre o que é que se
podia fazer.
A reunião foi na casa do Calota. A mãe dele chegava tarde em casa, e a gente
podia ficar conversando sem ninguém ficar ouvindo. E graças a Deus ele não tinha
irmãos mais velhos, que querem mandar na gente, e nem irmãos mais moços que
se metem em tudo.
A gente discutiu um bocado antes que alguém tivesse uma idéia boa:
- O seu Golias só pensa em ganhar dinheiro, não é? - disse o Beto. -Então o jeito é
atrapalhar tanto os negócios dele que ele fique louco e desista do supermercadão.
- E como é que a gente pode atrapalhar os negócios dele? - disse Mariana.
- Há, isso é fácil - disse Cassiano, que era louco por uma desordem. - Eu vou lá e
derrubo as latas, solto umas bobinas, pego os frangos e jogo tudo no chão e ...
- Chega, Cassiano! - gritou Madalena. - Assim a gente não consegue nada. Seu
Golias pega a gente pela orelha e ainda
Capítulo 4
No sábado nós esperamos que o supermercado ficasse bem cheio. Então a turma
foi entrando e se espalhando lá por dentro.
O Beto juntou um carrinho cheinho de balas, bombons, biscoitos, chocolates e se
pôs na fila da caixa pra pagar.
As pessoas passavam e achavam graça:
- Puxa, menino, vai comer tudo isso? Olha a dor de barriga, hein?
- Menino guloso, hein?
- Vai ter festa em casa, neném?
E o Beto, firme.
Aí ele chegou na caia,a moça somou o preço de tudo. Fez uma tira de papel de um
metro e comprimento.
E era m tal das pessoas chegarem à caixa e começarem a reclamar que não tinham
comprado nada daquilo, o que é que estava acontecendo, meu Deus?
O Davi só o que fazia era rabiscar as paredes do supermercado do mesmo jeito que
ele fazia na rua. Uma porção de letras, eu não queriam dizer nada, as, bês, cês e
até erres, todas ao contrário, assim:
Quando seu Golias ouviu o barulho, lá do escritório, veio ver o que é que havia e
ficou furioso, porque ele logo reconheceu a turma e percebeu que era tudo
molecagem.
Então começou a gritar, que ia chamar a polícia, e coisa e tal, e nós, quando vimos
a coisa malparada, tratamos de dar o fora. E saímos correndo pelo beco da padaria
e só fomos parar na outra rua, longe da vista do seu Golias.
Capítulo 5
A gente pensou que ia ficar por isso mesmo, mas quando chegamos em casa cada
pai e mãe estava com uma cara de meter medo. Seu Golias foi dar queixa de todos
na casa de um por um.
Não sei qual dos pais qual das mães estava brava.
O Caloca eram mais feliz que a gente, que a mãe ele é separada do pai, e o pai Del
mora no Rio Grande do Sul e só tinha um pra brigar com ele.
Mas foi um tal de palmada pra cá, castigo pra lá, o-senhor-não-vai-ver-televisão-o-
mês-inteiro-o-senhor-não
Em todo caso o que sabemos é que procuramos tornar o texto legível, já que
achamos que conviria muito bem para completar um livro que vínhamos compondo
há tempos e para o qual já não tínhamos mais assunto.
O autor deste manuscrito refere-se ás vezes aos habitantes do nosso planeta com
alguma ironia.
Mas vocês vão notar que o relatório em questão não obedece a um rigor científico
na sua exposição, de maneira que não devemos nos impressionar muito com ele.
Algumas palavras, como o leitor inteligente não poderá deixar de notar, não
pertencem á nossa língua.
Vamos chamar estes espécimes de freguetes, que são a coisa mais parecida com os
terráqueos de que eu me lembro.
Como é que eles são?
Vou tentar descrevê-los.
Os freguetes estão sempre botando dentro deste buraco uma coisa que eles
chamam de comida.
Essa tal de comida é que dá a eles energia, como a nossa fagula.
Tem uns que botam bastante comida dentro. Tem outros que só botam de vez em
quando.
Esses buracos servem pra outras coisas, também.
É por aí que saem uns sons horrorosos que é a voz lá deles.
Embaixo da bola tem um tubo que une a bola ao corpo.
Do corpo saem quatro tubos: dois pra baixo e dois pros lados.
Os tubos de baixo, que se chamam pernas, chegam até o chão e servem para
empurrar os freguetes de um lado pro outro.
A coisa funciona mais ou menos assim: um tubo fica ficando no chão, enquanto o
outro se projeta para a frente e se finca no chão, por sua vez.
Quando o segundo tubo está ficando o primeiro se projeta para frente e assim por
diante.
Eles chamam isso - andar.
Bem embaixo dos tubos, onde eles se fincam no chão, geralmente eles enfiam
umas cápsulas duras, acho que pra proteger as pontas dos tubos.
Os tubos que saem pros lados se chamam braços; têm cinco tubinhos em cada
ponta. E com essas pontas eles pegam nas coisas.
Vou tentar fazer uns esquemas de como eles são, para que todos entendam
melhor.
Por mais absurdos que estes esquemas pareçam é assim mesmo que eles são. É
inútil chamarem minha atenção para o fato de que eles não parecem obedecer a
um padrão lógico de desenvolvimento.
Eu também acho que não.
Eles moram, quase todos, amontoados nuns lugares muito feios, que eles chamam
de cidades.
Esses lugares cheiram muito mal por causa de uma s porcarias que eles fabricam e
de umas nuvens escuras que saem de uns tubos muito grande que por sua vez
saem de dentro de umas caixas que eles chamam de fabricas.
Parece que eles vivem dentro de outras caixas.
Algumas destas caixas são grandes, outras são pequenas.
Quando fica claro, eles saem das caixas deles e todos começam a ir pra outro lugar
de onde vieram.
Não sei como é que eles encontram, o lugar de onde eles saíram, mas encontram;
e entram outra vez nas caixas.
Assim que eu cheguei era um pouco difícil compreender o que eles diziam. Mas
logo, logo, graças a meus estudos de flóbitos, consegui aprender uma porção das
línguas que eles falam.
Ah, porque eles falam uma porção de línguas diferentes.
É muito difícil explicar esta tal de guerra porque eu também não entendi. Não sei
direito pra que é que serve esta tal de guerra. Acho que é pra gastar as tais coisas
que eles jogam uns nos outros e que eles fabricam em grandes quantidades e que
fazem as cidades ficarem cada vez mais fedorentas.
Eles gostam muito de jogar coisas uns nos outros.
Tem até uma festa que eles chamam Carnaval e eles jogam pedacinhos de umas
coisas coloridas uns nos outros, enquanto ficam gritando muito.
Essas coisas coloridas sujam muito e então vem uns freguetes que recolhem toda
aquela sujeira e jogam num lugar onde eles guardam uma porção de porcarias que
ninguém quer.
E embora ninguém queira eles ficam o tempo todo fabricando essas porcarias.
Eu poderia ainda contar muitas coisas sobre este planeta. Mas como eu não entendi
quase nada, acho que não adianta muito.
Recomendo, por isso uma nova visita ao planeta, ,mas com muito cuidado, por um
grupo especializado em planetas de alto risco.
Pois este planeta, que é chamado por seus freguetes de Terra ´-e incrivelmente
semelhante ao planeta Flórides do sistema Flíbito, que se desintegrou, na era
Flatônica, não se sabe por que, mas, que nessa ocasião desprendeu grandes
nuvens de fumaça em forma de cogumelos...
Isso aconteceu há muitos anos, quando as cidades começaram a ficar tão cheias de
gente que ir de um lugar para o outro se tornou um problema.
Eu morava em São Paulo, que nesta época já tinha 20 milhões de habitantes, e
mesmo o metrô com suas 27 linhas principais não dava conta de transportar todo
mundo.
Nas avenidas auxiliares, aquelas enormes avenidas que o prefeito eleito em 1996
construiu, e que têm 18 faixas de rodagem, o trânsito ás vezes ficava parado 5, 6
horas, de maneira que as pessoas faziam de tudo dentro dos carros: liam, faziam a
barba, estudavam, jogavam batalha naval, faziam tricô, jogavam xadrez, faziam de
tudo!
Nas ruas secundárias as pessoas desciam dos carros, dançavam, faziam cooper,
ginástica, balé, lutavam caratê...
A gente tinha que ficar o dia inteiro abrindo a porta, que toda hora tinha alguém
pedindo pra usar o banheiro, beber água, ou pedindo um comprimido pra dor de
cabeça.
Então, não sei bem quem foi que encontrou uma maneira de facilitar algumas
tarefas, ou se foram várias pessoas ao mesmo tempo, que tiveram a mesma idéia.
O que eu sei é que todo mundo começou a trocar os encargos, uns com os outros,
que era pra facilitar as coisas.
Mas o cúmulo, mesmo, foi no dia em que um tal de Generalino Caradura chegou
cedo no palácio do Governo, e foi dizendo que o Presidente tinha telefonado pra
ele, e tinha pedido que ele ficasse na presidência por uns tempos, que ele estava
muito gripado, e que Brasília era muito longe, p trânsito estava impossível e coisa e
tal...
E depois que ele entrou no palácio, quem disse que ele saía?
Mas nunca mais!
Ele inventava que agora não podia, porque estava resolvendo umas coisas
importantes, que agora não podia, porque ia receber uma visita de fora, que agora
não podia por isso, por aquilo, por aquiloutro.
Esse cara ficou no palácio durante anos, e só saiu quando soube que tinha um cara
na casa dele morando com a mulher dele, gastando o dinheiro dele, e o pior,
usando o carro dele, que era feito sob encomenda nas oficinas especializadas de
Cochabamba.
Essas coisas hoje em dia já são raras...
E agora vocês me desculpem. Tenho muito o que fazer.
Tenho que jogar uma partida de futebol para o meu sobrinho, enquanto ele
experimenta meu vestido na costureira...
Naquele tempo eu até que achava natural que as coisas fossem daquele jeito.
Eu nem desconfiava que existissem lugares muito diferentes...
Eu ia pra escola todos os dias de manhã e quando chagava, logo, logo, eu tinha que
me meter no vidro.
É, no vidro!
Cada menino ou menina tinha um vidro e o vidro não dependia do tamanho de cada
um, não!
O vidro dependia da classe em que a gente estudava.
Uns eram muito gordos, outros eram muito grandes, uns eram pequenos e ficavam
afundados no vidro, nem assim era confortável.
Os muitos altos de repente se esticavam e as tampas dos vidros saltavam longe, ás
vezes até batiam no professor.
Ele ficava louco da vida e atarrachava a tampa com força, que era pra não sair
mais.
A gente não escutava direito o que os professores diziam, os professores não
entendiam o que a gente falava...
As meninas ganhavam uns vidros menores que os meninos.
Ninguém queria saber se elas estavam crescendo depressa, se não cabia nos
vidros, se respiravam direito...
Se agente reclamava?
Alguns reclamavam.
E então os grandes diziam que sempre tinha sido assim; ia ser assim o resto da
vida.
Uma professora, que eu tinha, dizia que ela sempre tinha usado vidro, até pra
dormir, por isso que ela tinha boa postura.
Uma vez um colega meu disse pra professora que existem lugares onde as escolas
não usam vidro nenhum, e as crianças podem crescer a vontade.
Então a professora respondeu que era mentira, que isso era conversa de
comunistas. Ou até coisa pior...
Tinha menino que tinha até de sair da escola porque não havia jeito de se
acomodar nos vidros. E tinha uns que mesmo quando saíam dos vidros ficavam do
mesmo jeitinho, meio encolhidos, como se estivessem tão acostumados que até
estranhavam sair dos vidros.
Mas uma vez, veio para minha escola um menino, que parece que era favelado,
carente, essas coisas que as pessoas dizem pra não dizer que é pobre.
Aí não tinha vidro pra botar esse menino.
Então os professores acharam que não fazia mal não, já que ele não pagava a
escola mesmo...
Então o Firuli, ele se chamava Firuli, começou a assistir as aulas sem estar dentro
do vidro.
O engraçado é que o Firuli desenhava melhor que qualquer um, o Firuli respondia
perguntas mais depressa que os outros, o Firuli era muito mais engraçado...
E os professores não gostavam nada disso...
Afinal, o Firuli podia ser um mal exemplo pra nós...
E nós morríamos de inveja dele, que ficava no bem-bom, de perna esticada,
quando queria ele espreguiçava, e até mesmo que gozava a cara da gente que vivia
preso.
Então um dia um menino da minha classe falou que também não ia entrar no vidro.
Dona Demência ficou furiosa, deu um coque nele e ele acabou tendo que se meter
no vidro, como qualquer um.
Mas no dia seguinte duas meninas resolveram que não iam entrar no vidro
também:
- Se o Firuli pode por que é que nós não podemos?
Mas Dona Demência não era sopa.
Deu um coque em cada uma, e lá se foram elas, cada uma pro seu vidro...
Já no outro dia a coisa tinha engrossado.
Já tinha oito meninos que não queriam saber de entrar nos vidros.
Dona Demência perdeu a paciência e mandou chamar seu Hermenegildo que era o
diretor lá da escola.
Seu Hermenegildo chegou muito desconfiado:
- Aposto que essa rebelião foi fomentada pelo Firuli. É um perigo esse tipo de gente
aqui na escola. Um perigo!
A gente não sabia o que é que queria dizer fomentada, mas entendeu muito bem
que ele estava falando mal do Firuli.
E seu Hermenegildo não conversou mais. Começou a pegar as meninos um por um
e enfiar á força dentro dos vidros.
Mas nós estávamos loucos para sair também, e pra cada um que ele conseguia
enfiar dentro do vidro - já tinha dois fora.
E todo mundo começou a correr do seu Hermenegildo, que era pra ele não pegar a
gente, e na correria começamos a derrubar os vidros.
E quebramos um vidro, depois quebramos outro e outro mais dona Demência já
estava na janela gritando - SOCORRO! VÂNDALOS! BÀRBAROS!
(pra ela bárbaro era xingação).
Chamem o Bombeiro, o exército da Salvação, a Polícia Feminina...
Os professores das outras classes mandaram cada um, um aluno para ver o que
estava acontecendo.
E quando os alunos voltaram e contaram a farra que estava na 6° série todo
mundo ficou assanhado e começou a sair dos vidros.
Na pressa de sair começaram a esbarrar uns nos outros e os vidros começaram a
cair e a quebrar.
Foi um custo botar ordem na escola e o diretor achou melhor mandar todo mundo
pra casa, que era pra pensar num castigo bem grande, pro dia seguinte.
Então eles descobriram que a maior parte dos vidros estava quebrada e que ia ficar
muito caro comprar aquela vidraria tudo de novo.
E os problemas que eles tinham não eram diferentes dos problemas de todos os
irmãos.
Por exemplo...
Joana ficava furiosa, batia as portas, chutava o que encontrasse no chão, fazia cara
feia.
Dona Brites ficava zangada:
- Que é isso, menina? Que comportamento! Menina tem que ser delicada,
boazinha...
- Boazinha? Pois sim! - respondia Joana de maus modos.
Pedrinho desapontava:
- Eu estou chorando é de raiva! É de ódio! Joana se metia :
- Homem é assim mesmo! Quando a gente chora é porque é mole, é boba, é
covarde. Agora, homem quando chora é de ódio...
Um dia...
Tinha chovido muito e os dois vinham voltando da escola.
De repente, Pedro gritou:
- Olha só o arco-íris!
- É mesmo! - disse Joana. - que grandão! Que bonito!
- Puxa! - espantou-se Pedro. - Parece que está pertinho! Vamos passar por baixo?
Vamos!
Joana se riu:
- Tia Edith disse que se a gente passar por baixo do arco-íris, antes do meio-dia,
homem vira mulher e mulher vira homem...
- Que besteira! - disse Pedro. - Quem é que acredita numa coisa dessas?
E os dois se deram as mãos e correram, correram, na direção do arco-íris. E de
repente pararam espantados.
Vocês podem imaginar o reboliço que foi na casa deles quando contaram o que
tinha acontecido.
No começo ninguém estava acreditando.
- Que brincadeira mais idiota! - falou seu Setúbal.
- Vamos parar com isso? - disse dona Brites.
Mas depois tiveram que se convencer...
E naquele dia, no jantar, ninguém brigou para saber se menina podia ou não podia
fazer isso ou aquilo.
Afinal ninguém sabia direito quem era quem...
nome de gente? E o Pedro, que horror! Vai ter que se chamar Pêdra. Pode uma
coisa dessas?
- E tem um outro problema em que estou pensando - disse seu Setúbal. - Está bem
que a gente vista o Joano de homem... afinal as mulheres hoje em dia só querem
se vestir de homem... mas vestir a Pêdra de mulher... não sei, não! E se ele, quer
dizer, ela, virar homem outra vez?
- Ah, sei lá! - disse dona Brites. - Jà nem sei o que pensar. Acho melhor a gente ir
dormir...
No dia seguinte o problema da roupa foi resolvido com facilidade. Foi só vestir calça
de brim nos dois, mais camiseta e tênis.
Joano e Pêdra estavam brincando e rindo, como se nada estivesse acontecido,
disfarçando para que os pais não se preocupassem ainda mais do que já estavam
preocupados. Mas assim que saíram de casa ficaram sérios. Eles não sabiam como
é que iam fazer na escola.
Logo na esquina, Pedro, quer dizer Pêdra, que agora era menina, deu o maior chute
numa tampinha de cerveja que estava no chão.
- Vamos parar co isso? - disse Joano. - Menina não faz essas coisas.
- E eu sou menina? - reclamou Pêdra.
- É, não é?
- Ah, mas eu não me sinto menina! Tenho vontade de chutar tampinha, de empinar
papagaio, de pular sela...
- Ué, eu também tinha vontade de fazer tudo isso e você dizia que menina não
podia - reclamou Joano.
- Mas é que todo mundo diz isso - disse Pêdra. - que menina não joga futebol, que
mulher é dentro de casa...
- Pois é, agora agüenta! Não pode, não pode, não pode...
- Ah, mas agora eu posse chorar a vontade, posse dizer fita, posso ter medo de
escuro...
Quando tiver que ir buscar água de noite você é que tem que ir... e quando eu
quiser ver novela ninguém vai me chatear...
Até que um dia eles acordaram e estava chovendo a maior chuva que já tinha
visto.
Trovão, relâmpagos, água que não acabava mais.
Os dois ficaram torcendo para a chuva passar. E quando passou, saíram, como
sempre um para cada lado, procurando o arco-íris.
Joano chegou para lá da escola, num lugar onde ele nunca tinha ido.
E já vinha voltando, desanimado, quando viu, bem na sua frente, o arco-íris.
Joano correu e passou por baixo.
Mas não aconteceu nada.
Joano continuava Joano...