Você está na página 1de 59

Uma cidade encantada

Memórias da Vila Amaury em Brasília

Ivany Câmara Neiva


Uma cidade encantada
Memórias da Vila Amaury em Brasília

Ivany Câmara Neiva


Uma cidade encantada
Memórias da Vila Amaury em Brasília
Coordenação do projeto e texto
Ivany Câmara Neiva

Imagens
Ivany Câmara Neiva
Ane Molina (páginas 74 e 86)
Bruna Neiva (páginas 54, 60, 80, 92)
Ivany Neiva (página 12 e verso da capa)
Acervo do Arquivo Público do DF
Acervo do Instituto Moreira Salles

Fotografia de capa (e página 10)


Paulo Manhães

Programação visual
Gabriel Menezes

Agradecimentos
Agradeço aos narradores da Vila Amaury (que entraram
ou não neste livro), à equipe de trabalho, ao Leo Arruda
(pelas fotos e pelo contato com D. Eunice), à Ana (pelo
apoio e pelas conversas sobre Transmídia), ao pessoal do
Fundo de Apoio à Cultura.

Apoio
Fundo de Apoio à Cultura – FAC

N417u Neiva, Ivany Câmara


Uma cidade encantada: memórias da Vila Amaury,
em Brasília / Ivany Câmara Neiva.- Brasília :
Ed. da Autora, 2017.
112 p.: il.

ISBN: 978-85- 912614-1-3

1. Vila Amaury. 2. Brasília. 3. águas.


4. Lago Paranoá. 5. narradores. I. Título.

CDU 981.74

Edição da Autora
Brasília
2017
Sumário

17 Narradores da “cidade encantada”


19 A Vila Amaury
27 O Lago Paranoá
33 As águas do Lago chegaram: narradores da Vila Amaury

Narradores
55 Argemiro Gomes de Andrade Junior (Andrade Junior)
61 Eunice Pereira dos Santos
71 Joselina dos Santos Lima (Dona Di)
75 Espedito Ferreira da Silva (Pernambuco)
81 Antônio Alves de Souza (Toninho de Souza)
87 Elizabeth Fernandes Neves
93 Amélia Andrade Albuquerque

101 Bibliografia e referências


105 Notas
109 Texto de Maria Osanette de Medeiros
“A água é só superfície? Debaixo da superfície é água também?”
Em julho de 2016, o professor Hilan Bensusan contava, na banca
de Mestrado de Gabriel Menezes, que essa era uma questão que o
ocupava desde os tempos de infância. Ainda na banca, falava-se
sobre mergulhos, sobre ilhas, sobre retiros... Mergulhando no
Lago Paranoá podem ser encontrados outros mundos, além da
água... Pode até se encontrar uma vila submersa – uma vila
operária que existiu entre 1959 e 1960, a Vila Amaury, conhecida
de muitas pessoas, e onde muitos moraram...

"[...] Apenas certos da constância da impermanência: dos


ventos, das chuvas, das marés imprevistas e do sol a pino."
[Yana Tamayo. Mapas errantes, pegadas na areia: notas sobre
Poema 193. Exposição Poema 193, de Diego de Santos. Curadora:
Iana Tamayo. Brasília: Funarte, 2017.]

Acrescentamos:

Apenas certos da constância da impermanência: dos ventos,


das chuvas, das marés imprevistas e do sol a pino. Das águas,
das vilas sob as águas.
Quarenta clics em curitiba Velhas questões
Quem me dera Você já percorreu
um mapa de tesouro No meio da noite clara
que me leve a um velho baú Uma cidade antiga?
cheio de mapas do tesouro Já sentiu a presença
Dessa ausência do que já foi?
Nomes a menos Os habitantes antigos
[...] Que já se foram?
Cidades passam. Só os nomes vão ficar. Os sonhos que sonharam
Que coisa dói dentro do nome Nos tempos perdidos?
que não tem nome que conte Acho que tudo está
nem coisa pra se contar? Fixado na lenta destruição
Das moradas
Winterverno
lá embaixo Climério Ferreira
vai ter
o que eu acho

Paulo Leminski
Há uma vila submersa no lago artificial construído em Brasília.
Ainda há vestígios da Vila Amaury no fundo do Lago Paranoá, 56
ou 57 anos depois de ela ter existido. E há antigos moradores e
pessoas que frequentavam a Vila, que vivenciaram a experiência
da barragem que fechou suas comportas, das águas que chegavam
e cobriam as casas e tudo que estava dentro, das perdas, das mu-
danças de vida, das boas mudanças.
Quando se olha o Lago desde o que resta do Clube da Imprensa,
ou do Bay Park, ou da orla do Lago na altura do que seria prolonga-
mento da Vila Planalto, não se vê mais que as águas do Lago. Mas,
sob elas, está submersa a Vila Amaury. É uma “cidade encantada”,
como pela primeira vez ouvimos da neta de um pioneiro – “en-
cantada” porque a Vila existe e ninguém vê, porque existe nas
histórias contadas... As memórias se espalham por Sobradinho,
Taguatinga, Gama e por outros lugares para onde se mudaram os
antigos moradores e visitantes, neste mais de meio século.
Muitas pessoas procuraram quem viveu lá, muitas pessoas
Páginas anteriores: estudaram a existência da Vila Amaury. Este é mais um trabalho
Vila Amaury em 1959 (foto de Paulo Manhães)
e submersa pelo Lago Paranoá, em 2010 sobre esse lugar. Sete narradores contam sua passagem pela Vila.
(foto de Ivany Neiva). Nossos respeitos e homenagens a elas e eles, e a quem se interessou
e se interessa por essas histórias.

15
1
Narradores da “cidade encantada”

Se Javé tem algo de bom são as histórias da origem, [...] lá do


começo, que vocês vivem contando e recontando... A maneira
de saber é ouvindo de nossa gente as tais histórias... e escre-
vendo. Ouvindo e escrevendo! [Zaqueu, personagem do filme
Narradores de Javé, 2003.]

Aqui no Lago Paranoá tem uma Vila submersa, uma “cidade en-
cantada”... É mesmo? Aqui pertinho? Então o Lago tem histórias
deste e do século passado... [José Dumont, ator que representou
o personagem Antônio Biá em Narradores de Javé. Conversa
durante o 37º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, 2004.]

Em 2003 foi feito o filme brasileiro Narradores de Javé, dirigido


por Eliane Caffé. O filme conquistou vários prêmios em festivais
de cinema brasileiros e internacionais.
A trama, a temática e o produto o foram consolidando, também,
como referência de discussão para quem se interessa por questões
como usos da história oral, da memória, do imaginário, de histórias
de impactos sociais de construção de barragens.
O filme trata da história de Javé, povoado fictício que está sob a
ameaça de desaparecer sob o poder econômico, a modernização e as

16 17
águas de uma represa. A resistência de seus habitantes se expressa
na tentativa de comprovar a importância de Javé – o que julgam
possível a partir do registro escrito de sua “grande história”. As
2
histórias narradas revelam as diferentes e peculiares visões dos A Vila Amaury
narradores sobre as origens do povoado e seus heróis fundadores.
Ao mesmo tempo em que a memória dos moradores de Javé vai
aparecendo, as águas vão fazendo o povoado desaparecer. Mas os
narradores sobrevivem, constroem-se histórias diferentes entre
si, os tempos e as redes de memória se renovam.
Sob inspiração de Narradores de Javé e elegendo como conduta
de pesquisa a história oral, trazemos a voz de narradores de outro
povoado, que viveu pouco tempo – 1959, 1960, e era/é localizado
na capital do Brasil. São os Narradores da Vila Amaury – a “cidade
encantada” submersa no Lago Paranoá. Naquele 21 de abril, como em muitos outros dias que o antece-
A “grande história” da Vila Amaury é construída, aqui, a partir deram, moradores da Vila Amaury repetiram o percurso que
das narrativas de sete antigos moradores ou visitantes, que em os levava de casa às águas do Lago Paranoá. Àquela altura,
2016 residem em diferentes localidades do Distrito Federal1. Foram 14 das 23 ruas da vila já tinham sido engolidas pelo lago e
também ouvidos, anteriormente, pescadores, mergulhadores e dali a dois meses toda a Vila Amaury estaria submersa [...]
fotógrafos que localizaram a Vila submersa, onde encontraram A Vila Amaury não estava feliz naquele 21 de abril de 1960.
vestígios das casas, objetos de uso doméstico, instrumentos de [Conceição Freitas, 20044.]
trabalho, marcas do cotidiano e da memória2.
Entrelaçando-se com as histórias contadas no nosso presente,
foram lidas cartas escritas à época do início da construção da Em abril de 2016 completaram-se 56 anos da inauguração de
capital, bem como notícias veiculadas pela imprensa sobre a Brasília, capital do Brasil desde 21 de abril de 1960, no governo do
formação do Lago e as condições de vida na Vila Amaury. Presidente Juscelino Kubitschek. Ao longo do tempo, as histórias
Nosso sujeito é o narrador, que neste nosso presente vem contadas por antigos moradores nos revelam faces por vezes
partilhar a memória de um tempo passado. O eixo é a narrativa esquecidas nas diferentes versões dessa história. É o caso da Vila
- “num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação [...] Amaury.
que não está interessada em transmitir o ‘puro em-si’ da coisa Na Vila Amaury moravam operários que trabalhavam em
narrada como uma informação ou um relatório”, como dizia Walter obras da construção civil da nova capital, como o Palácio da Al-
Benjamin em O Narrador. E nossa fonte, como diz Benjamin, é a vorada, o Palácio do Planalto, o Congresso. (Inicialmente, houve a
“experiência que passa de pessoa a pessoa” - “a fonte a que recor- construção da Barragem do Rio Paranoá e de outros rios, riachos
reram todos os narradores3”. As imagens visuais, acompanhando e nascentes próximos).
todo o livro, também atualizam o presente, trazendo fotografias Quando a barragem teve suas comportas fechadas, criou-se o
desde o início da construção do Lago, até nossos narradores atuais. lago artificial construído com o objetivo de abastecer a cidade de

18 19
Palácio da Alvorada. Rio Paranoá. 1957. Acervo depha / sc / gdf. [fonseca, p. 24] Cachoeira do Rio Paranoá. 1958. Acervo depha / sc / gdf. Foto: Mário Fontenele. [fonseca, p.28]

água e energia, e de amenizar o clima seco dominante na região. A primeira alternativa para esses migrantes sem-teto era
Passava a existir o Lago Paranoá – “Um lago em pleno cerrado, montar moradias nas proximidades dos acampamentos das
cercado de canteiros de obras por todos os lados5”. A data em que construtoras. Era das buscas de local de moradia, das remoções
isso ocorreu aparece em vários documentos e histórias: 12 de e das “invasões” que surgiam as vilas. Comentava Alcy Pereira
setembro de 1959, aniversário do Presidente JK. de Carvalho - antigo presidente da Associação dos Moradores do
Os operários vinham de uma trajetória de buscas por emprego Paranoá, em 1983:
e qualidade de vida, e vislumbravam possibilidades promissoras
na capital em construção. O governo fala invasão, como se a gente estivesse clandestino.
A maioria deles vinha do Nordeste do país, muitos com “pouca Mas era tudo trabalhador, e trabalhador tem direito a morar
familiaridade com o próprio processo de trabalho6”, sem traba- com dignidade. Ainda mais quando está construindo as obras
lho contratado nem perspectivas definidas de moradia naquele da cidade que está começando, que é pra ser nossa cidade. A
imenso canteiro de obras que era a Brasília daquela época. Ten- gente era removido e mesmo no local novo ainda tinha quem
tavam ser fichados nas empresas de construção civil e, quando falava invasão. A Vila Amaury, por exemplo, não é invasão
contratados e solteiros, conseguiam acomodação nos alojamentos nem favela, é Vila7.
das companhias. Segundo os critérios das firmas, só os solteiros
podiam ficar nesses locais, como confirmam os narradores de Assim tiveram origem espaços pioneiros como a Vila do Parafu-
2016. Aqueles que vinham com suas famílias, ou as constituíam so, a Vila do Sapo, a Vila dos Mineiros, a Vila Piauí, a Vila Planalto,
aqui, precisavam solucionar de outra forma a questão da moradia. a Vila Paranoá, a Vila Amaury. O vento em redemoinho, o coaxar
Surgiam as vilas pioneiras, e são essas famílias, especialmente, os dos sapos, a predominância de mineiros ou de piauienses estão
personagens desta saga. na origem dos nomes das Vilas.

20 21
O fotógrafo e jornalista Paulo Manhães8, fotógrafo do jornal São muitas as histórias dos moradores: houve os que foram
Diário Carioca – Brasília (DC-Brasília), que conheceu a futura deslocados para outros locais, a tempo de não serem atingidos
capital em 1958 e no mesmo ano “veio para ficar”, conta que o nome pelas águas e conseguiram guardar o pouco que tinham e seguir
da Vila Amaury remete ao funcionário da Novacap responsável adiante; há os que perderam endereço e pertences; há os que
pela remoção dos barracos “provisórios”. Há desconhecimento por perderam tudo no fundo das águas.
parte de alguns e variam as histórias sobre a origem do nome da Mas a memória, a história, as lembranças daquele tempo e
Vila; esse assunto está presente nas histórias contadas em 2016. daquele lugar continuaram com eles – e com quem se inquieta
No jornal DC-Brasília de 27 de novembro de 1959, a manchete com as histórias deles e com as histórias do Distrito Federal.
“Vila Amaury: não se pode mais ali construir casas” é acompanhada Voltando aos tempos de início da construção de Brasília, ob-
de uma foto de Amaury de Almeida, “membro da Comissão de servamos que, certamente, o Lago Paranoá foi um projeto de
Mudança da Vila Amaury, em grande atividade na ‘Operação proporções mais modestas que os das grandes hidroelétricas
Mudança’ ”. Foi registrado nesse jornal que ele fez “importantes como Itaipu, Itaparica, Tucuruí ou Corumbá IV, e das barragens
declarações sobre o assunto”, na sede da Associação Pró-Melhoria de Sobradinho e as de Minas Gerais. Mas as perdas, as mudanças,
da Vila Amaury9. a memória, não se medem apenas em metros cúbicos de água
As histórias têm variantes sobre vários acontecimentos. É o nem em hectares inundados, e não diferenciam povoados antigos
caso da origem da popularidade do Amaury que teria até dado ou vilas de barracos provisórios: os moradores, os narradores,
nome à Vila. O antigo pescador Pedro Venzi contava que “o nome sabem disso.
pegou porque tinha um homem muito conhecido no local, o Seu
Amaury, que tinha um botequim... Foi chegando gente, foi mon-
tando os barracos, falava: vamo lá no Amaury, Amaury – e aí ficou
o nome da Vila...”.
Em comum, todos se lembravam da chegada ao novo local de
moradia: “Separamos umas madeiras de resto de construção e
fomos pra lá, pra vila do Amaury...”, contava Antônio Sousa, antigo
morador da Vila10. “Tudo tinha vindo pra construir a Brasília, os
prédios, o Lago...”.
As obras de construção da cidade e da barragem tiveram início
em 195611. Para a formação do Lago, as águas foram ocupando as
terras, os contornos do Lago saíram do papel para as margens
vivas. As terras planas onde se localizava a Vila se transformam
em fundo do Lago... Ruas e casas foram aos poucos (rapidamente,
segundo os antigos moradores) inundadas, deixando submersa
a Vila Amaury. Quem morava na parte alta da Vila continuou até
o Lago chegar lá - até 1960.

22 23
• Vila Amaury

24 25
3
O Lago Paranoá

Aconteceu aqui, em Brasília? Tem uma vila submersa? Quem


vem aqui, às vezes nem se lembra que esse Lago é artificial, foi
construído... [José Dumont, ator que representou o personagem
Antônio Biá em Narradores de Javé. Conversa durante o 37º
Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, 2004.]

Para muitos brasilienses, os 37,5 km² do Lago Paranoá12 significam,


como proposto na sua origem, lazer, esporte, turismo, contem-
plação. Para outros, importam o equilíbrio ambiental e a geração
de energia, também argumentos para sua criação. Segundo in-
formações de Fernando Fonseca (da CEB – Companhia Energética
de Brasília), a Usina Hidroelétrica do Paranoá é pequena e teve
importância no início de Brasília, quando a cidade era pequena
também.
Para brasilienses e brasileiros, o Lago Paranoá é uma das marcas
de Brasília, como componente da paisagem da capital e da região.
Sua história geológica remete ao período terciário, cerca de
dois ou três milhões de anos atrás. As especulações mais conhe-
cidas sobre a criação de um lago artificial nessa região, na bacia
Página anterior: do Rio Paranoá, datam do final do século XIX, pela Missão Cruls
Acréscimo da localização da Vila Amaury
sobre fotografia aérea. [facó, foto 14] – Comissão de Estudos da Nova Capital da União, designada em

26 27
1892 para explorar o Planalto Central do Brasil e apontar o local
para a futura capital. O botânico e naturalista Glaziou observava a
região e deduzia que ali existira um lago que, ao longo dos séculos,
havia desaparecido, e que deveria ser reativado:

Entre os dois grandes chapadões conhecidos na localidade


pelos nomes de Gama e Paranoá, existe imensa planície em
parte sujeita a ser coberta pelas águas da estação chuvosa;
outrora era um lago devido à junção de diferentes cursos de
água formando o rio Parnauá13; o excedente desse lago [...] Construção da Barragem do Paranoá. 1958-1960. Acervo depha / sc / gdf. Foto: Mário Fontenele.
[fonseca, p. 34]
acabou por abrir nesse ponto uma brecha funda, de paredes
quase verticais pela qual se precipitam hoje todas as águas
dessas alturas. É fácil compreender que, fechando essa brecha
com uma obra de arte [...], forçosamente a água tomará ao
seu lugar primitivo e formará um lago navegável em todos
os sentidos... 14”.

O pesquisador Paulo Bertran15 acreditava que o botânico deveria


estar certo: “as rochas logo depois da Barragem do Lago Paranoá
são rachadas de uma forma especial, o que talvez indique a exis-
tência do lago extinto”.
Entre os elementos que vão compondo o imaginário sobre Vista aérea da Barragem do Paranoá em construção. 1958-1960. Arquivo Público do DF, 2014.

o Lago, tem destaque o relato feito pelo sacerdote italiano Dom


Bosco, mais tarde canonizado pela Igreja Católica como São Dom
Bosco, sobre o sonho que tivera no ano de 1883, em que se anun- indicava o Rio Paranoá como o mais adequado para a instalação
ciava “um ponto onde se formava um lago” e de onde surgiria “a de uma barragem e de uma usina hidroelétrica. Essas indicações
terra prometida, vertendo leite e mel”. A localização desse lago subsidiaram as definições da Comissão de Localização da Nova
imaginário coincide, em graus de latitude, com o local escolhido Capital Federal, criada em 1953, que propunha o represamento
para a construção de Brasília: “entre os paralelos 15 e 2016”. do Rio Paranoá para a formação do Lago na área escolhida para
A questão dos recursos hídricos e, especificamente, da criação abrigar a nova capital.
de um lago artificial no futuro Distrito Federal, é recorrente nos Em 1956, quando foi lançado o Edital para escolha do projeto
estudos para a mudança da capital. urbanístico de Brasília, já era estabelecido o traçado do lago a ser
Assim ocorreu com a Comissão Polli Coelho – Comissão de construído. No projeto vencedor e em documentos posteriores, o
Estudos para Localização da Nova Capital do Brasil (1947-1948) urbanista Lucio Costa incluía o Lago como componente do que
e com as recomendações do Relatório Belcher (1950), em que se indicava como escala bucólica da nova capital, conferindo a Brasília

28 29
chamado de Paranoá. As referências variavam de Lago Artificial
de Brasília a Lago do Alvorada e Lago Israel Pinheiro21.
Na edição do dia 9 de dezembro, havia destaque para a in-
quietação dos moradores da Vila Amaury, e eram registradas
iniciativas tanto da população quanto das instâncias de governo:
“Intranquilizados com o andamento contínuo das águas do Lago
Artificial de Brasília, os moradores da Vila Amaury, por intermédio
de uma comissão especial, procuraram os elementos integrantes
da comissão de mudança da população da Vila para as cidades de
Taguatinga e Sobradinho, a fim de solicitar sejam ultimados os
trabalhos de transferência, o mais rápido possível22”.
Em 12 de dezembro, informava-se que a mudança tinha sido
marcada para janeiro de 1960, mas que “O Lago não esperou. A mu-
Inauguração da Barragem do Paranoá. 1960. Arquivo Público do DF. 2014. dança será apressada, segundo declarações dos seus responsáveis,
em consequência das águas do Lago Artificial estarem subindo
mais rapidamente do que o previsto nos cálculos primários, tanto
“o caráter de cidade-parque, configurada em todas as áreas livres, que existem residências da Vila Amaury que já foram atingidas
contíguas e terrenos atualmente edificados ou institucionalmente pelas águas do Lago23”.
previstos para edificação e destinados à preservação paisagística Três dias depois, o DC-Brasília falava da “apreensão na Vila
e ao lazer17”. Amaury” e relatava que “sobressaltados com a rápida ascensão
Já nesse ano foram iniciadas as obras de construção da Barra- das águas do Lago Israel Pinheiro, quatro famílias residentes em
gem do Paranoá. Mas não se encontram registros oficiais precisos Vila Amaury, num total de vinte pessoas, anteciparam para hoje
sobre datas de conclusão de cada etapa da construção18. sua mudança para Taguatinga, que estava prevista para janeiro24”.
No dia da criação do Lago, em 1959, começou a circular em As notícias de que dispomos, pela cobertura jornalística, pelas
Brasília a Edição Brasiliense do Diário Carioca, conhecida como cartas remanescentes e, em especial, pela memória dos antigos
DC-Brasília – primeiro jornal diário com noticiário local, que moradores, nos mostram que a incerteza e a apreensão cresciam,
circulou de setembro daquele ano a dezembro de 1965, quando à medida que as águas chegavam25.
foi fechado19. José Freire, o Zé da Kombi que nos guiou na Vila
Planalto, confirmou que o DC-Brasília “foi o primeiro jornal que
chegou por aqui”.
A construção da cidade e o avanço das águas do Lago eram acom-
panhados dia a dia pelo jornal. Em 29 de outubro de 195920, abaixo
da manchete “Descontentes com mudança para Sobradinhos”, uma
foto de Paulo Manhães, tirada “a bordo de um barco improvisado”,
mostrava uma vista do lago que, naquele momento, ainda não era

30 31
4
As águas do Lago chegaram:
narradores da Vila Amaury

E a Vila do Bananal, que o povo chamava Amaury, afogou-se


antes do tempo... [Clemente Luz, 1967.]

Bananal? Nunca teve banana lá... Nunca ouvi isso não.


Sacolândia? Também ninguém nunca ninguém me contou, mas
pode ser, porque tinha muito barraco feito de saco de cimento.
Era Amaury...[Eunice Pereira dos Santos, 2016.]

Brasília tem seus narradores, como em Narradores de Javé. Com


o Lago também é assim: sua história está nas lembranças e no
cotidiano da Vila Planalto, da Vila Paranoá, da orla, dos locais
para onde foram os moradores da Vila Amaury e de outras vilas.
Era sabido e previsto, principalmente por quem trabalhava
nas obras da barragem, que a região onde estava localizada a Vila
Amaury seria inundada. “Quase todo mundo sabia, mas não deu
tempo de tirarem suas coisas, a água chegou rápido e inundou
toda a história daquelas pessoas. A gente não queria acreditar que
tudo ia desaparecer”, contava Domingas França Noiar, moradora
da Vila Planalto, em 2005.

32 33
Havia moradores que não sabiam da futura vinda das águas. velmente, seguiam as margens do Rio Paranoá. Era estreita e
É o caso de Andrade Junior e de Dona Di, como contam em 2016: comprida, devia ter 60 metros de largura, por um quilômetro
de comprimento.
Nós nem sabíamos o que era Lago... Eu tinha 13 anos, nem
reparava se um dia ia chegar água de Lago lá... Mas se tivesse No fundo do Lago, Ricardo encontrou vestígios das casas e tam-
aviso, a gente ia saber... [Andrade Junior, 2016.] bém garrafas, sapatos, bonecas, utensílios domésticos e achados
inesperados, como um isqueiro de bronze, um capacete usado na
Nada... Não se sabia de nada não, de águas que vinham.. época da construção de Brasília, uma espada...
[Di, 2016.] O mergulhador contava que, ao visitar o que restava da Vila
Amaury, tinha a sensação de voltar ao passado: “quando vejo uma
Pedro Venzi, o pescador, observava que as memórias dos anti- casa, um objeto, fico imaginando quem usou aquilo, de onde a
gos moradores e as histórias dos remanejamentos não eram (não pessoa pode ter vindo, o que fazia na construção de Brasília. Cada
são ainda) contadas nas escolas, e associava isso à “exigência” de botão, cada detalhe, me faz viver uma história, uma emoção, uma
documento escrito: adrenalina”.
Na margem oposta à Vila Planalto, Pedro Venzi avistava o local
Muita gente não acredita, porque não está nos livros. Eu mesmo onde ficava a Vila Amaury e recordava sua chegada a Brasília;
nem comento que cheguei aqui em 1958, porque não tenho brincava com seu sobrenome Venzi (venci...):
documento provando. Muitos daquele tempo, e lá da Amaury,
sentem isso. Estavam lá, viram e viveram tudo, mas é a palavra [Depois morei no Guará, mas] cheguei quando a capital estava
deles, sem comprovação. Quando as águas vieram, as pessoas começando. Vim pra cá tentar a vida. Vim para chegar, ver e
corriam primeiro para salvar seus documentos, para adiante vencer... Eu morava num acampamento que ficava do ladinho
provar que existiam. da Vila Amaury, que é uma das mais antigas, mas pouco falada,
porque ali só moravam peões.
Esse comentário nos aproxima da ficção de Javé, em que o
registro escrito era esperado como redentor, pelos moradores. Pedro contou que, com o tempo, a futura capital foi abrigando
Pedro não escreveu a história, mas, a partir de seus percursos de cada vez mais pessoas. Começou a construção da barragem e o
memória, em 2002 guiou o instrutor de mergulho José Ricardo represamento dos rios, para a formação do Lago. O que era terra
Silva dos Santos até a Vila submersa, onde estavam fragmentos firme, ia virar fundo de lago. Pedro explicava que antes da atual
materiais da antiga ocupação. Contava o mergulhador, em 2005: barragem foi começada outra, “que quebrou”26: “a água foi subindo,
os cálculos da barragem foram mal feitos, e a força e o peso das
Essa Vila, esses barracos submersos são do conhecimento de águas a derrubou”.
diversas pessoas, há bastante tempo, mas ninguém sabia da Depois, uma nova barragem (a atual) foi feita, para um dia
sua localização. Vários mergulhadores tentaram achá-la e se formar o Lago. “Daí a água foi subindo, subindo, subindo e
finalmente o Pedro nos mostrou o local, próximo ao atual Bay ninguém acreditava. Olhava, mas não acreditava. Diziam: ‘não é
Parque. Pelo que vimos, a Vila era bem linear: as casas, possi- possível que essa água vai chegar aqui’ ”, contava Pedro. E a água

34 35
Houve relatos apaixonados e histórias de saudade e desencan-
to. Zé Ramalho, Pai Velho, Domingas, Albaniza, Margarida, José
Freire... Durante as conversas na Associação de Idosas Pioneiras
da Vila Planalto, foram descobertas histórias submersas nas águas
do Lago.
Em meio a lembranças, cada um relatou sua vivência. Na ten-
tativa de formar esse mosaico de memórias, fomos desvendando
o passado daquelas pessoas, até chegarmos à Vila Amaury.
Domingas, então aos cinquenta e seis anos, pediu a palavra e
relembrou sua adolescência, no acampamento Tamboril:

Cheguei aqui com dezessete anos e sempre morei na Vila Planal-


Candidatas do concurso “Broto do Ano”, em lancha no Lago Paranoá, onde, submersa, está a Vila to, mas tinha amigos que moravam na Vila Amaury, vindos da
Amaury. Foto: Paulo Manhães, 1960.
Bahia. Lembro bem da Valentina – os pais dela eram baianos.
Era tudo muito animado, tinha muita festa, muito forró e
muitos rapazes bonitos... Foi muito triste quando a Vila se
foi, são lembranças que nunca vou esquecer: a beleza do Lago,
chegou: “as pessoas deixavam tudo para trás no dia em que a água que é uma obra de arte, e a tristeza de lembrar de tudo aquilo
chegou. Reparei vizinho correndo, acordando os outros: vem cá, que ele inundou.
a água está subindo...”.
Os moradores e suas histórias se espalharam. Alguns foram “O Lago vem vindo, o Lago vem vindo!”, relembrava Domingas:
para casas de parentes, outros foram levados para Taguatinga,
Gama e Sobradinho – opções que eram apresentadas pelo GDF Ninguém acreditava que as águas iam, mesmo, inundar a Vila.
aos “deslocados”. A Operação Mudança destinava-se a levá-los Só deu tempo de pegar as roupas, e as casas ficaram debaixo
para esses recém-criados núcleos urbanos. “As pessoas saem de do Lago. Ali tem televisão, rádio, geladeira, barraco, ali tem
Minas, Goiás, da Bahia, do Nordeste para vir tentar a vida aqui. E tudo. Só não perderam a família, porque correram.
depois, de uma hora para a outra, ver a água chegando e invadindo
e levando tudo o que elas construíram - casas, móveis, memórias, Ao ver o Lago “lindo e maravilhoso como está aí”, a pionei-
histórias, a vida... É triste, viu...”, comentava Pedro. ra falava da dor que sentia ao lembrar-se daquelas pessoas que
Seu Zé da Kombi, antigo mascate, com sua kombi azul, foi perderam não só os seus únicos bens, mas, também, parte da sua
nosso guia na Vila Planalto, em 2004. Lá, outros pioneiros nos história. “O pessoal da Vila Amaury ficou sem nada”, recordava.
aguardavam. A notícia dos mergulhos e das descobertas, e as fotos Conta-se que não houve reação. “Reagir como? Cê vai brigar
dos objetos encontrados, emocionaram e reavivaram lembranças: com a água?” Domingas acreditava que se não fosse o Lago Paranoá,
“Viu, eu contava que minha casa estava lá no fundo do Lago e as ainda estariam lá seus amigos, as pessoas, as casas. “O Lago veio
pessoas não levavam a sério...”. pra baixar o calor do concreto, do asfalto e só”.

36 37
A instabilidade da moradia, o misto de expectativa de apoio seus pertences e instalação prévia de infraestrutura, “enfim o que
e de receio da remoção, eram questões constantes no cotidiano é mais necessário para a acomodação de uma massa trabalhadora
desses trabalhadores. Por estarem ligados à construção da capital, e operosa, que se debate, sobretudo, nas construções que em
as reivindicações e pedidos de providências eram dirigidos à Brasília se verificam”.
administração da Novacap – Companhia Urbanizadora da Nova “O pessoal da Assistência falava que iam dar casa fora ali da
Capital do Brasil - e, muitas vezes, diretamente ao Presidente da Vila. Nós mesmo, mandaram nós pra Sobradinho. Mas as condi-
República. ções foram de muita tristeza de largar tudo pra trás, por causa
É o caso do telegrama encaminhado ao Presidente em 16 de das águas...30”, contava Antônio Sousa há mais de quarenta anos.
fevereiro de 1958. Era endereçado ao Palácio do Catete27, por re- Esse sentimento se reflete na carta enviada ao Presidente Jusce-
presentantes do Sindicato da Construção e Mobiliário de Brasília: lino por um morador, em março de 1960: “Senhor Presidente, tenho
”Trabalhadores Brasília desesperados falta habitações acomodarem a impressão de que os operários que construíram Brasília estão
suas famílias vêm recurso extremo apelar Vossência para sustar sendo injustiçados”. Nessa carta era anexado o “Plano de Trans-
ordens despejo emanadas polícia local ao mesmo tempo pedem ferência da População de Vila Amaury para as Cidades Satélites”,
sejam localizadas cidades satélites pt saudações28”. encaminhado pela Comissão de Transferência de Vila Amaury ao
Consultado, o General Chefe de Polícia informava ao Presidente Diretor da Novacap, em outubro de 1959, e divulgado pelo Conselho
da Novacap que “se trata de uma ‘favela’ construída indevidamente de Bem-Estar Social de Brasília em novembro. O Plano tratava das
em terreno contíguo ao Hospital ‘Juscelino Kubitschek de Oliveira’, condições de deslocamento de “aproximadamente 4.000 famílias”
pertencente ao I.A.P.I., cujos habitantes tiveram ordem para se para as cidades de Sobradinho e Taguatinga, “tendo em vista as
mudarem para local previamente escolhido, em Taguatinga”. observações feitas e as sugestões recebidas de diferentes setores
A propósito de telegramas, em 1961 o presidente JK enviou interessados no problema” e detalhando aspectos relativos a ter-
um telegrama a Gustavo Corção, que tinha posição contrária (ou reno, serviços, etapas da mudança e critérios para a prioridade
de dúvida) sobre a construção de Brasília e do Lago. O telegrama na mudança. A carta do morador, por sua vez, confronta “tudo
dizia apenas: “Encheu, viu?”29 quanto foi planejado” com as medidas efetivamente tomadas
Em dezembro de 1959, Roque Matias dos Santos, que traba- para a remoção31.
lhava “na margem direita do Rio Torto”, revelava ao Presidente Nas lembranças não só dos antigos moradores, mas de pessoas
da Novacap a apreensão existente quanto à formação do Lago: que viveram esses tempos em outros locais do Distrito Federal, a
requeria que “lhe seja concedida licença para funcionamento de Vila era populosa e animada, apesar da precariedade das cons-
sua olaria num outro local, em vista de o local atual estar sendo truções e da permanente possibilidade de remoção.
inundado pela barragem do Paranoá [...]”. O paraibano Luiz Rufino Freitas32, morador de Sobradinho,
Três meses antes, o presidente da Associação Pró Melhora- contava em 2004 que morou na Cidade Livre e na Vila Planalto,
mentos da Vila Amaury dirigia uma carta, datada da Vila, ao mas que frequentava a Vila Amaury:
Vice-Presidente do Brasil, João Goulart, em que se referia aos
“16.000 habitantes que aqui residem” e solicitava que lhes fosse
facultado “um aviso prévio de seis meses, para a transladação ao
local definitivo, [...]”, meios de transporte para os moradores e

38 39
Fotografia aérea do Plano Piloto, Lago Sul
e Lago Norte. [facó, foto 10]

40 41
Lá era o melhor lugar para passar os finais de semana e para Muitos comerciantes se instalaram numa ruazinha que ligava
comer. Eu comia no restaurante da Dona Osana. A Vila Amaury a Vila Amaury à Vila Planalto, pois sabiam que a água não
era o point dos finais de semana nossos. Lá tinha uma avenida chegaria lá. Essa ruazinha ficou cheia de botecos e comércio
principal, bem grande, com botecos dos dois lados. Essa avenida de frutas, doces, comidas”.
era quase toda de comércio, tinha poucas residências. As resi-
dências ficavam mais nas ruas pequenas. O comércio da Vila Seu Luizinho arrematava:
Amaury tinha de tudo, fruta, verdura, fazenda... O que mais
tinha era boteco... Lá na Vila tinha também muito serviço de Tive saudade da Vila Amaury, mas como não tinha um vínculo
som, tipo forró, sertaneja. Os botecos tinham aquela vitrola de com ela, a não ser farra e também por saber que o Lago ia
ficha, que você colocava moeda e pedia música... encher, não tive muito trauma quando a Vila se foi. O Lago
chegou para o lazer, nós nadávamos muito, atravessando de
Seu Luizinho, como era conhecido, continuava a descrever a margem a margem. O Lago estava cheio, não tinha mais nada,
Vila Amaury: não tinha mais Vila Amaury, só a lembrança34.

A Vila ia do fim da Vila Planalto, uns 500 metros, em direção Nas lembranças dos habitantes de Brasília da época do início da
ao Minas . Eu vi o Lago chegando nas casas, cobrindo tudo. Se
33
construção, a imagem da Vila Amaury é de um lugar movimentado,
deixasse a Vila Amaury lá, como estava, hoje ela seria como com muitos bares e estabelecimentos comerciais. Notícias esparsas
o Paranoá é hoje, com aquela avenida comercial bem grande. ilustram esse movimento, inclusive político. Em clima de campa-
A Vila Amaury deixou saudade para nós, era muito boa. Nós nha presidencial para as eleições de 196035, em outubro de 1959
tínhamos muitos amigos lá. Nós encontrávamos as pessoas que instalou-se na Vila o Comitê Pró Marechal Lott e Jango Goulart36.
vieram do Nordeste com a gente, mas que tinham arrumado Na edição do DC-Brasília do dia de Natal de 1959, noticiava-se
emprego em construtoras. Encontrava os conhecidos da Cidade o prejuízo causado por um incêndio na Vila, e são listadas doze
Livre e de outros acampamentos... casas comerciais atingidas – bares, lojas de roupas, relojoaria,
gabinete dentário, barbearia37.
Segundo sua avaliação, a inundação foi gradual, avisada, e Nos primeiros tempos, antes da inundação, o movimento na
“quem perdeu suas coisas foi porque demorou a sair ou nem saiu...”: Vila aumentava nos fins de semana, e sua população crescia não
só pela instalação de novos moradores, como pelo nascimento de
Quando começou a subir o Lago, muitos tiraram suas coisas. novos candangos38. Inês Martins Folha, residente na Ceilândia em
A Novacap ofereceu lotes em Taguatinga. Outros insistiram 2005, contava que seu registro é de Sobradinho, mas sua mãe lhe
em ficar, falando que o Lago não ia chegar. Quando o Lago ia disse que ela nasceu na Vila Amaury.
enchendo, nós íamos tomar banho, pescar. Ele foi enchendo Inês contava uma das histórias de “salvamento material”: “deu
aos poucos, não foi da noite para o dia. O pessoal viu chegando tempo de sair antes das águas”, mas “o sonho de morar em Brasília
aos poucos, todo mundo sabia que ali seria um lago... Muitos, acabou”. Seus pais, baianos de Barreiras, vieram para Brasília
inclusive, trabalhavam nas obras do próprio lago. Ele não pegou tentar uma vida melhor. O pai fazia de tudo, a mãe era cozinheira
ninguém de surpresa. Houve vários avisos para o pessoal sair. e lavadeira. Inês passou seis meses com o pai em Salvador, mas

42 43
quando já tinha um ano de idade, sua mãe a trouxe de volta para a Maria, então aos oitenta e um anos, contava que comprou a
Vila. Com a chegada do Lago, a mãe ganhou um lote em Sobradinho: casa na Vila Amaury “por Cr$12,00” (como referência, o preço de
capa do jornal DC-Brasília, nessa época, era Cr$8,0039) mas morou
Não tenho lembrança da Vila Amaury. Só sei que nasci lá, de ali por apenas 15 dias, durante o mês de maio de 1960:
parteira. Minha mãe me contou. Ela também meu contou coisas
sobre a Vila – que era muito animada, principalmente nos Eles passaram avisando pela manhã que a gente tinha que
finais de semana. Os peões que trabalhavam nos Ministérios, sair, porque a água ia chegar. Quando o meu marido chegou
na construção do Palácio da Alvorada, iam namorar na Vila, pra almoçar, não voltou mais pro trabalho. Ficou em casa e
iam ao cinema. Segundo minha mãe, era muito bom. Minha mudamos logo. Eu e meus vizinhos tratamos de sair, mas outros
mãe lavava roupa nas margens do Paranoá, e conta que era uma continuaram por lá mesmo, esperando.
cantoria só. As mulheres, lavadeiras, se juntavam e enquanto
lavavam as roupas ficavam cantando. Depois iam buscar lenha, Durante os meses de janeiro a março de 1960, foram frequentes
em latas de tinta, para esquentar água, banhar as crianças e as notícias sobre a Vila Amaury, no jornal DC-Brasília. Em janeiro,
fazer brasa para o ferro de passar roupa. Toda a minha família as fortes chuvas aumentaram a subida das águas, e apressaram
veio para trabalhar na construção de Brasília e morava na as remoções e mudanças dos moradores: no dia 7, “vinte famílias,
Vila Amaury. Minha tia, rindo, me contou que conheceu meu por dia, escapam à inundação – perigo aumentou com as últimas
tio na Vila. Ela também disse que lá era muito animado. Mas chuvas40”.
com a inundação, muitos da minha família não conseguiram Três dias depois, a manchete mencionava o número de “quinze
lotes e, desmotivados, voltaram para a Bahia. famílias que deixam todos os dias a Favela da Amaury41”. No dia 9,
comentava-se a ocorrência de afogamentos no Lago e a falta de
Já Maria de Lurdes Batista dos Santos, costureira que morou no serviços de prevenção de acidentes, e a “tragédia [que] enfrentam
Paranoá, e sua mãe, Maria Batista dos Santos, tinham suas melhores os moradores da Vila Amaury, cujas casas estão sendo invadidas
lembranças da Vila Planalto, para onde foram, e não da Vila Amaury, pelas águas do lago e pelo lamaçal provocado pelas chuvas42”.
de onde precisaram sair. Maria de Lurdes contava que chegou à Vila Noticiava-se que o processo de mudança estava sendo acelerado,
Amaury com três anos de idade, e que sua família se mudou para a já que o “nível do Lago [está] prestes a atingir a cota mil43”, ou seja,
Vila Planalto: os 1000m acima do mar, definidos como limite para as águas do
Lago44. Comentava-se novamente que a instalação da Vila não
Ficamos na Vila Amaury até a água chegar, até eles passarem deveria ter sido consentida originalmente, pois a administração
avisando que era pra sair todo mundo, que a água ia cobrir toda já sabia que aquele local estava abaixo da cota mil e que, por isso,
a cidade. Eu não me lembro muito desse dia quando a gente saiu ia ser inundado. Era o tema da reportagem “Problemas sacodem
da Vila Amaury. Eu era criança e não me lembro muito. Mas o povo da Vila que está condenada45”.
via meu pai contando que o povo não acreditava que a água Essa questão voltou a ser abordada em junho46, quando se
ia chegar. Sei que nós saímos logo e meu pai fez um barraco na informava que a “mudança da Vila Amaury vem se processando
Vila Planalto... Minha mãe conta muita coisa, ela sabe mais... normalmente”. Essa matéria fazia uma retrospectiva da trajetória
da Vila, observando que “os milhares de barracos de madeira (onde

44 45
moraram mais de 20 mil habitantes) eram construídos dentro da
faixa denominada ‘cota mil’, que as águas represadas cobririam
com o fechamento da barragem.” Relatava-se que estava previsto
que “o lago levaria cerca de dois anos para atingir o atual volume
d’água e os moradores não se preocupavam com a submersão da
vila”. E era utilizada a mesma expressão encontrada em matéria
do dia 12 de dezembro de 1959: “o Lago não esperou”.
No dia 21 de abril de 1960, quando se inaugurava a nova capital,
uma foto do “Lago Artificial” ilustrava a matéria que trazia o Presi-
dente da Novacap, Israel Pinheiro, declarando que “o compromisso
que tínhamos com o Governo, de entregar Brasília pronta até o
dia 21 de abril, foi cumprido à risca, dispondo desde já a cidade
de todas as condições mínimas de conforto e urbanização para
ser convertida em capital do país47”.
Nem todos os moradores da Vila Amaury, remanescentes ou
deslocados para outros locais, assistiram aos festejos da inau-
guração. “A [minha filha] Lucimar assistiu, mas foi na minha
barriga, que eu estava grávida dela, de sete meses...”, conta Dona
Di, em 2016. Outros, foram até a Praça dos Três Poderes, viram o
Presidente e as autoridades, encontraram–se e festejaram com
seus companheiros operários, candangos. Contavam, muitos
anos depois, sobre os fogos de artifício e a emoção daquele mo-
mento marcante – é o caso de Osanette e de Amélia, em 2016.
Contavam também sobre a poeira, a seca e a água, os encontros
e desencontros no dia da inauguração, sobre o trabalho que
continuava e sobre os desafios cotidianos de uma vida e de uma
cidade em construção.
Assim, ao escutarmos e registrarmos por escrito as histórias
contadas por esses narradores da Vila Amaury em 2004/2005 e em
2015/2016, buscamos entrelaçar a escrita e a oralidade, o passado
e o presente, a história oral e a memória.
Lembramos do personagem Antônio Biá, de Narradores de Javé,
Cadeira, sandálias, bonecas quebradas e outros que não chega a escrever a grande história de Javé, explicando que
objetos encontrados no fundo do Lago, onde estava “quanto às histórias tais, melhor ficar na boca do povo, porque no
a Vila Amaury. Acervo do mergulhador José Ricardo.
Fotos em Revista Miragens, 2004. papel não há mão que lhes dê razão...”.

46 47
Voltamos também a Walter Benjamin, quando nos lembra de
que “quem escuta uma história está em companhia do narrador;
mesmo quem a lê, partilha dessa companhia48”.
E entrelaçando nosso olhar, nossa trajetória de vida e a voz
desses antigos narradores, podemos partilhar a história da Vila
Amaury com quem nos vai ouvir, e também com quem vai ler este
texto - em qualquer canto onde se contem histórias.

Narradores

48 49
De homens se continuará a falar, mas também cada vez mais
de mulheres [...]. [José Saramago. 1989. p.183.]

Foi desafiante encontrar pessoas que tivessem morado na Vila


Amaury, ou que a conhecessem de perto, mais de meio século de-
pois da existência da Vila. Escolhemos sete narradores para contar
suas histórias: três homens, quatro mulheres. Todos viveram na
Vila, ou a conheceram, quando eram crianças ou adolescentes.
A ligeira maioria de mulheres – mas maioria – é proposital e se
deve ao fato de frequentemente se verem referências a que eram
poucas as mulheres no início da construção, e se atribuir a elas
menor importância que aos homens. Os relatos confirmam que
havia mulheres, e que sua participação e seu olhar são valiosos
para a construção da história da capital.
Todos eram migrantes e pessoas comuns, à época de suas
vidas na Vila Amaury: Andrade Junior, Eunice Pereira dos Santos,
Toninho de Souza, Espedito Ferreira da Silva, Di, Amélia Andrade
Albuquerque, Elizabeth Fernandes Nunes.
A esses narradores foram se somando outros, como Maria Osa-
nette de Medeiros, professora universitária em Planaltina. Chegou
à Vila Amaury com 11 anos, em 1959, vindo de Goiás, com os pais e
cinco irmãos. Tinham saído da seca do Rio Grande do Norte de 1958.
Seu Pai trabalhava na construção civil (era marceneiro) e a Mãe
era dona de casa – fazia marmita para vender nas obras. Osanette

50 51
e o irmão mais velho vendiam. Brincavam na rua, rodavam tudo
de bicicleta, andavam descalços. Tinha lama, chuva, poeira, esgoto.
“Eu vi o Lago nascer”, diz ela. De lá foram para o acampamento
do R1, Reservatório 1, Estação de Tratamento de Água 1, perto do
DETRAN. E depois, de acampamento em acampamento...
Osanette enviou um documento, que vem depois das conversas
com os demais narradores que aqui aparecem, em que relata e
“autoriza” a publicação de sua história.
Esses narradores de 2016 contam histórias de sua vinda para
onde seria inaugurada a nova capital do Brasil; contam sobre a
Vila Amaury e suas origens, seus nomes, córregos, ruas e casas
de madeira; falam de experiências que vão da liberdade ao medo;
das brincadeiras, da vida fora de casa, às proibições de sair; do
desconforto, das lembranças boas, da violência, da não violência,
dos desafios; da chegada das águas, da criação do Lago Paranoá; do
fim da Vila Amaury; dos deslocamentos para outros locais, como
Sobradinho, Taguatinga, Gama; das mudanças de vida, dos novos
locais de moradia.

52 53
Argemiro Gomes
de Andrade Junior
“Andrade Junior”
Fortaleza, no Ceará. 1945.
Conversa na beira do Lago Paranoá, perto do antigo Clube da Imprensa.

— Eu morei na Vila Amaury. A Vila Amaury durou mais ou


menos um ano. De 59 a 60.

— Agora é Lago, mas eu reconheço os lugares.


— Eu subia por ali de bicicleta pra vender coisas nos botecos da
Vila Planalto. Vendia pacote de café, manteiga, queijo...
— Na Vila Planalto tinha acampamento – da Pacheco, da Ra-
belo. E tinha as construções, fora de lá. Eu vendia também nas
construções.

— Era uma bicicleta de três rodas. Eu vinha subindo pedalando


e meus dois irmãos empurrando.
— Isso aqui era um buraco, era muito fundo.
— Na volta subiam os dois na frente e a bicicleta descia em-
balada... Tinha dia que dava queda que era gente pra todo lado...

54 55
— Cheguei no Núcleo Bandeirante em primeiro de maio de 1959. para São Paulo (não tinha email não, tinha que escrever e mandar
— Vendia revistas no aeroporto, que era perto. Entrava nos pra São Paulo por carta, malote...).
aviões. O aeroporto não era fechado não. As aeromoças davam
lanche pra gente... Bimotor da Douglas, aviãozão da Real, Lloyd — Nós viemos do Ceará de avião – não foi de pau-de-arara
Aéreo... não. Saímos 5 da manhã de Fortaleza, chegamos 5 da tarde aqui.
Veio minha mãe, 4 irmãs, 3 irmãos (capaz de eu esquecer algum
— Depois meu pai resolveu ir para a Vila Amaury, em 59 mesmo. nome) – eu sou o mais velho (tinha 13 anos); o Abinoem (é de 50
Ele era amigo do Amaury, que era engenheiro. – tinha 9 anos), o Raimundo (de 49 – tinha 10), a Sheila, a Beta, a
Kedma (que nasceu em 58). Depois nasceu aqui a Eda (em 61), e
— Fui trabalhar na construção do Palácio do Planalto. Morava um menino que nasceu já em Sobradinho, em 60, mas não viveu...
na Vila Amaury e ia trabalhar na construção do Palácio do Planalto. Meu pai deu o nome de Amaury.
Tinha 13 pra 14 anos.
— Mas eu sabia ler, sabia escrever bem – e aqui quase ninguém — Em 60 o Lago estava quase cheio. Foi chegando a água, o
sabia. Então um engenheiro me viu num boteco, me chamou pra pessoal foi indo embora. E o Governo dava madeira, caminhão,
trabalhar no almoxarifado de uma empresa, de apontador... para o pessoal ir pra Taguatinga ou Sobradinho, conforme o lugar
que a pessoa escolhia... Meu pai escolheu um lote comercial em
— Meu pai tinha um boteco e eu tinha também, na Vila Amaury. Sobradinho, fez um armazém.
O armazém do meu pai progrediu rapidamente, vendia bastante.
Aí meu pai tomou o meu... Ele era motorista de caminhão pra — Na Vila Amaury eu trabalhava... A adolescência minha foi
fazer asfalto. trabalhando no Congresso...
— Nós passamos cinco anos sem estudar. Que eu me lembre,
— Eu ganhava bem, ganhava mais que ele, lá no almoxarifado na Vila Amaury não tinha escola.
da empresa. Era uma empresa que vendia peça para a construção
do Palácio do Planalto. — Os solteiros ficavam nos alojamentos.
— Mas quem vinha com família (como era o caso do meu pai)...
— Eu vinha ali pelo Congresso, Câmara – estava tudo cons- — Inventaram a Vila Amaury. Era perto das construções. Era
truindo – ia ali por baixo... mais perto que o Bandeirante, que a Candangolândia. Mais central,
perto das construções dos ministérios.
— Juscelino parou várias vezes, vinha de helicóptero.
— E as águas foram chegando... foram chegando... e as cobras
— A empresa tinha transporte – era a Salim Badra, de São Paulo, subindo (cobra não gosta muito de água, então subia...). Às vezes
que a Pacheco contratava. Era para colocar espelho, vidro, tapete. eu acordava de manhã tinha 4, 5 cobras debaixo da cama... (e a
Ritmo alucinante. E eu ficava dia e noite. Dormia às vezes nuns cobra não é ofensiva; a gente acha que é, mas não é; você via que
caixotes. Fechava para os ratos não me pegarem. elas estavam fugindo da água...).
— Eu ganhava 100 horas. O engenheiro mandava fazer anotações

56 57
— A água foi chegando... A barragem foi chegando... Foi lento.
— Em 60 eu ainda estava na Vila Amaury. Tínhamos um arma-
zém em Sobradinho; eu e a Sheila minha irmã ficávamos lá. Eu
ficava lá e cá... E todos os outros na Vila Amaury; meu pai ficava
na Vila a trabalho.

— A inauguração de Brasília foi em abril de 1960. Já tinha quase


o Lago; ainda tinha gente morando no Lago, na parte mais alta.
Meu pai continuou aqui com minha mãe e os irmãos. Morávamos
na parte mais alta.

— A Vila tinha vários rios, riachos. Cidade grande.

— Lei seca, não se podia beber. Mas tinha garrafa de “café” que
era de cachaça...

58
Eunice Pereira dos Santos
Gilbués, no Piauí. 1949.
Conversa na casa de Eunice, no Guará II.

Chamada de Soberana pelos filhos e por alguns amigos; come-


çou a ser chamada assim por causa da novela da Globo “Amor
à Vida”, escrita por Walcyr Carrasco e exibida em 2013, em
que o filho Felix chamava o pai de “papi poderoso” e a mãe de
“mami soberana” (ou vice-versa).

— Foi uma vida difícil... Agora, aqui no Guará, sou soberana...

— Tinha muita gente sem dinheiro, mas muita gente ganhou


dinheiro... Eu mesma, se tivesse chegado com uns 15 anos, era
dona do Guará II...

— Tem gente da família que tem vergonha de contar as histórias...

— Foi pouco tempo que a Vila existiu. 59, 60. Saímos de lá em


61, porque a água chegou depois, era na parte de cima onde a
gente morava...

60 61
— Eu não tive uma infância muito infantil não... Ajudava minha — Como morreu gente naquela obra do 28 (o prédio alto do
mãe na criação dos irmãos menores, ajudava a lavar roupa... Eu Congresso, que tem 28 andares)...
me lembro de lavar roupa dentro do Lago... E tinha as cobrinhas (hoje é que tem muita preocupação com segurança do trabalho,
(acho que quando fizeram essas represas botaram veneno, as mas naquela época...).
cobras pareciam meio bêbadas...)...
— Saímos do Piauí em 1958. Eu não ligava muito para datas...
— Quando chegamos já tinha represa. A gente usava as águas do Chegamos em Brasília no mesmo ano.
córrego, água limpinha... A gente descia só um pouquinho já dava
no córrego. Não tinha tanta água assim, o córrego. Porque esse — Viemos a pé – meu avô e turma toda dele (tios solteiros;
Lago foi formado por pequenos córregos, pequenas nascentes... minha mãe já casada, com 4 filhos; as duas irmãs dela). Muita
E de repente a gente teve que parar de se divertir com aquele gente casou, registraram os filhos... O tio que era solteiro casou...
córrego, onde a gente tomava banho, fazia tudo, para ver aquela — A caravana era de umas 25 a 30 pessoas.
quantidade imensa de água... — A gente andava muito. Nos primeiros dias foi bom. Era pro-
gramado parar em fazenda de gente conhecida. Quando a gente
— Saímos da Vila Amaury depois da minha Avó, que também chegava tinha festa... E quando não tinha mais fazenda, era no
tinha casa lá. Uns 15 dias depois. meio do mato que a gente ficava...

— Morei na Vila Amaury quando tinha 9 anos – quase 9, cheguei — Além dos mirrados trocados que a gente tinha, só tinha para
com 8 anos. negociar dois jumentos. Eram o Cafuringa e o Bolota. Eles acompa-
— Duas tias casadas, um tio solteiro vieram antes. O tio foi nhavam, carregando alimentos – porque as outras coisas a gente
casar e buscar família. Ele foi, quem não era casado casou, filho carregava. Depois meu Avô precisou trocar os jumentinhos por
foi registrado... passagem, em Barreiras. Não esqueço da cena: o caminhão lotou,
— A família veio em busca de melhoria; a região no Piauí era saímos, e depois no caminhão passamos por um cercado e vimos
garimpo que já estava muito garimpado... os dois jumentinhos lá; e um deles chegou perto da cerca e ficou
zurrando; acho que eles sabiam que a gente estava no caminhão...
— Meu pai trabalhava no garimpo e na roça. Ele não queria
trabalhar de empregado... Aqui ele foi trabalhar em comércio. — O caminhão tinha aquela estrutura de ferro com uma lona
Eu tinha um tio que saiu de lá, analfabeto... foi para Mato Grosso, em cima... O combustível do caminhão ficava lá em cima, junto
e de lá veio para Brasília; veio um da família, vieram mais... “Foi com os passageiros... Quando o caminhão balançava, balançava
pra São Paulo, tá bem... Foi pra Brasília, tá bem... Então vamos também aquele tambor, e ficava um cheiro...
para Brasília”.
— De lá onde morávamos fomos até Barreiras – a pé.
— E a chuva que tinha naquela Vila Amaury? Chuva de grani- — Demoramos em Barreiras uma semana, porque o caminhão
zo... — O pessoal nunca tinha visto gelo... Carregava balde, depois (o pau de arara) tinha que completar a lotação. Ficamos numa
o gelo derretia, bebia a água... hospedaria que era na beira de um rio... Ficou todo mundo lá. Eu

62 63
era criança. Tinha um irmão mais velho, eu, um outro irmão que mas voltaram para a construção civil, por causa do período de
faleceu aqui em Brasília e uma mais nova. pagamento... Os outros continuaram na construção civil.

— De Barreiras até Brasília eram uns 5 dias de caminhão. Tinha — Não tinha nada em torno do Zoológico. Não tinha nada em
trechos que não dava pro caminhão passar... Todo mundo descia lugar nenhum...
do caminhão e os homens ajudavam a empurrar...
— Eu sei que ia para o Zoológico para comer... Era um passeio,
— Ninguém tinha emprego em Brasília. Meu pai não foi direto ir ao Zoológico. Eu um tempo morei com a minha tia (depois da
pra construção civil, mas deu um apoio... Quem já tinha idade pra Vila Amaury – em Sobradinho, eu ficava de lá prá cá), e o meu tio
trabalhar foi para a construção civil. Quem não tinha foi trabalhar trabalhava na cozinha do Zoológico – preparava comida para os
de outra forma: vendendo docinho, vendendo laranja, vendendo animais. Eu comia a banana dos macacos...
sabão (que meu pai fazia). As mulheres faziam bolo, lavavam
roupa pra piãozada... Minha mãe lavava roupa e ajudava meu pai — Esse primeiro acampamento em que nós fomos “jogados” deve
a fazer as coisas pra vender. ser ali perto da atual usina de lixo, perto da primeira ponte. Foi
pouco tempo lá. Logo veio a notícia da Vila Amaury, e fomos prá lá.
— Quando viemos, fomos morar em um acampamento de traba-
lhadores de duas empresas: a Kosmos Engenharia e a Pederneiras. — Quem era sozinho morava nos alojamentos das empresas.
A Pederneiras era responsável pela produção de asfalto. Tinha Quem tinha família morava nos acampamentos, nas vilas. Tinha
muita gente. E tinha uns 3 ou 4 barracos, e como a minha tia já já a Vila Planalto – que eu não conheci na época. Já com a represa,
morava em um desses barracos, foi acrescentando para alojar a quando começou o Lago Paranoá, eles foram pegando esses mini
turma que chegou. Aí emendou e morava todo mundo... Vendia- acampamentos (porque tinha só umas 3 ou 4 famílias ali, em
-se marmita... Lembro direitinho de lavar marmita, para no dia vários) e foram formando a Vila Amaury. Foram juntando esses
seguinte minha tia preparar tudo e vender de novo. acampamentos e mais o pessoal que ia chegando.
— A Vila Amaury foi sendo formada de acampamentos. Eu acho
— Ficar com a família que já tinha vindo pra Brasília era um que na época a ideia era deixar os trabalhadores mais próximos
porto seguro. Depois da viagem não tínhamos mais nada... Imagina das construções. Tinha muita gente que trabalhava na barragem.
chegar e encontrar as tias que já moravam aqui, que deram os
primeiros apoios... Duas casas de pessoas do mesmo sangue, já — A Vila Amaury era grande. Talvez tenha sido a maior vila
instaladas, já com emprego, e que davam comida e dormida, era da época. Era muita gente, muita gente.
tudo o que a gente queria...
— E o lago foi crescendo, crescendo...
— Desses meus tios que já tinham idade para trabalhar em
obra (todos começaram na construção civil), uns depois foram ser — Faltava 1 metro mais ou menos para a água entrar na nossa
funcionários públicos (um deles foi trabalhar no Jardim Zoológico, porta quando nós saímos da Vila Amaury. Aí fomos para Sobra-
outro começou na Kosmos e depois foi para a administração); dinho (porque não tinha mais vaga para Taguatinga...) Podia

64 65
escolher Taguatinga, Sobradinho, Gama. Gama estava começando. — Aquela foto da Vila que aquele jornalista tirou... Eu me vi
Todos estavam começando. naquela foto... Gente, eu estive aí, eu morei aí... Eu era aquela
—Como a minha avó tinha ido primeiro e tinha ido para Tagua- menininha de sainha de prega...
tinga, então minha mãe queria ir também. Nunca ninguém tinha se
separado. No Piauí morava tudo perto, no primeiro acampamento — Tinha escola lá. E tinha um detalhe: lá no Piauí a gente apren-
morava tudo colado, na Vila Amaury um morava na parte de baixo, dia o alfabeto lê mê nê... Aqui diziam na escola que era ele, eme, ene...
outro na parte de cima (corria, pegava lá um pouquinho de sal, E na escola aqui era assim, quando a gente “errava” o alfabeto: “tá
um pouquinho de açúcar...) e de repente ia separar... fora, vai procurar outra escola”...

— Aí fomos para Sobradinho. E ficamos em cima do mato... Meu — Na festa de inauguração (eu não fui...), o cantor convidado
pai separou uma barraca para a família dormir, um foguinho... foi o Luiz Gonzaga. Fizeram um palanque tão bom que o palanque
— Levamos tudo. Inclusive os docinhos, o que o meu pai vendia caiu... Aí foi aquele corre-corre. O Juscelino cumprimentou todos
lá na bodeguinha. (Ô peãozada folgada. Comeram os docinhos, os peões que estavam lá.
tomaram os guaranás... Quase não ficou estoque na mudança)
— Meu tio foi. Mas ele trabalhou mesmo na construção. Pri-
— Porque você podia escolher: ou ficava num alojamento, mis- meiro ele trabalhou com pixe. Ele contava que nos primeiros
turado com um monte de gente que você não conhecia, ou ia pra apartamentos os tacos eram colados com pixe: derretia o pixe,
lá pro meio do capim, tinha que limpar o terreno e construir colocava prego... Mas como meu tio era um pouco letrado, logo
alguma coisa. logo ele foi ser apontador... Anotava as horas trabalhadas, era
quase uma autoridade... E ele ficava a semana toda no canteiro de
— O governo não dava nada. A maioria das casas era feita e obra. Depois ele voltou ao Piauí e casou e trouxe a esposa. Faleceu
coberta com aqueles tambores de óleo, umas latas, de um metal no ano passado. Outro trabalhou no pesado mesmo, era servente
muito quente. Fazia as paredes e a cobertura (já tinha sauna e de obra. Outro era cobrador de jardineira, transporte da Cidade
não sabia...). Os tambores eram abertos, sem o fundo, e viravam Livre para os acampamentos e outros lugares...
placas, e eram pregados nas madeiras... E as revistas, lindas, vi-
ravam paredes. — O trabalho da mulher nesse tempo ou era ser secretária lá
dos homens, ou trabalhava pro povão, lavando roupa, fazendo
— Tiraram tudo daquele primeiro acampamento. Levamos comida, vendendo bolo e tudo que você pode imaginar que servia
umas madeiras. Na Vila também foi assim. de alimento. Meu pai tinha uma bodeguinha que vendia de tudo
(guaraná caçula - que a gente às vezes roubava -, doce de leite,
— É difícil achar foto daquele tempo... Ninguém tirava foto não... queijo, rapadura, sabão que ele fazia...). Todo mundo trabalhava.
Era muita pobreza, a gente só se preocupava em trabalhar... Foto Os meninos até uns 10 anos, antes de poder trabalhar em obra,
era só os adultos que tiravam pra carteira de trabalho... Nem os vendiam tudo. O que botava no tabuleiro e que era de comer (café,
meus tios, que eram adultos, têm foto... Nem na escola tinha foto... bolo, pedaço de melancia...), o povo da obra comprava. O povo
comprava até promessa, não tinha nada...

66 67
— Era fácil vender, era fácil casar. Mulher que era encalhada lá
na minha terra, e que veio nessa caravana, chegava aqui e casava,
porque não tinha mulher... Quer dizer: não é que tivesse pouca
mulher, é que tinha homem demais...

— Conheci meu marido, que é do Ceará, na casa da minha Mãe;


ele era amigo do meu irmão.

— Quando morava em Taguatinga, trabalhava na 414 Sul e


estudava. Fui babá, cozinheira...

— Na Vila Amaury o chão era batido. Quando nós fomos para


Taguatinga já tinha chão de cimento...

— Morei em muito lugar, trabalhei em muito lugar.


— Trabalhei na Benecap... Depois fui pra CEB, até aposentar...
E aí já tinha casado, tinha meus 3 filhos e o marido.

— Hoje viajo para Goiás, para Minas. Nem voltei à minha terra...
No Piauí não tem orquídea, e eu tenho esse orquidário aqui em
casa... Acabou o garimpo, o pessoal saiu tudo...

68
Joselina dos Santos Lima
“Dona Di”
Barreiras, na Bahia. 1940.
Conversa na casa dela, no Sudoeste.

— Não gosto de ser fotografada não.

— Esse apelido Di foi meu pai quem deu... E todo mundo me


conhece por Di...

— Viemos para cá em julho de 1959, para a Vila Planalto. Saímos


de lá em maio de 1960, para Taguatinga.

— Vim porque o meu marido (Irineu de Souza Lima, que morreu


em 1994) já estava aqui, trabalhando na Rabello, na construção
Lavadeiras na orla. Moradoras da Vila Amaury. civil. Já vim casada. Ele primeiro veio de Barreiras para o Goiás
Foto disponível no Arquivo Público do DF.
Fotógrafo não referido. [KIM e WESELY, p. 188]
– para Jataí. Veio a pé... De Jataí veio para Brasília, aí voltou para
Barreiras, casamos e viemos para cá.

70 71
— Eu não morei na Vila Amaury não... Só convivia com o povo Brasília, Capital da Esperança
de lá. Morávamos na Vila Planalto... [...]
Quem pôs a mão na massa,
— Era difícil conseguir água naquele tempo. Então eu ia buscar na argamassa, no cimento e na areia
água na nascente do Rio Paranoá, e via a Vila Amaury. Ia eu e mais foi o peão meu pai
outras mulheres que também moravam na Vila Planalto, mas lá que passava três dias longe de casa
tinha mulher que morava na Vila Amaury. porque não havia meio de transporte
e nem bicicleta ainda possuía.
— A Vila Amaury era muito grande, muita gente morava lá...
Foi minha mãe
— Lembro mais dos vizinhos da Vila Planalto... E das chuvas, que nas noites frias, nem barraco frágil
que eram muito fortes... na Vila Planalto tremia de medo e solidão
[...]
— Irineu saiu da Rabello e ficou como civil na Aeronáutica. A eles, verdadeiros pioneiros, a alegria
Recebemos uma casa no Cruzeiro, morei muito tempo lá. Só vim por terem acreditado nesse sonho e
para o Sudoeste depois que o Irineu morreu. tornado realidade essa cidade.

D. Joselina – D. Di - tem quatro filhas, entre elas Lucimar, a


primeira delas.
Lucimar Rodrigues nasceu em Brasília, dois meses depois da
inauguração. Escreve poemas e contos.
Publicou, em 2009, “O livro na Rua”, pela Thesaurus. Em 2011
publicou “Eu e Meus Nós”. Valoriza a experiência dos “verdadeiros
pioneiros”, entre eles sua Mãe e seu Pai:

72 73
Espedito Ferreira da Silva
“Pernambuco”
Triunfo, em Pernambuco. 1929.
Conversa em Taguatinga Norte.

— É Espedito com s. Sou analfabeto, criatura... Não posso mentir


pra ninguém... Eu não tenho leitura... Minha mãe dizia “quem
não sabe ler também passa; vamos pra roça, vamos trabalhar”.
Eu chorava quando via aqueles meninos com a roupinha bonita,
azul e branco, e eu trabalhava trabalhava...

Espedito é uma síntese de histórias.


Nasceu em Triunfo, Pernambuco, veio como pedreiro para
o Distrito Federal que se formava, aqui morou na Vila Amaury.
Seu neto estudou na Universidade Católica de Brasília, que em
2007 Espedito conheceu. E então disse, para que todos ouvissem:
“Sou pernambucano, de Triunfo, moro em Taguatinga e vivi na
Vila Amaury!”.
Triunfo foi citado pelo designer Aloísio Magalhães, que nasceu
no Recife em 5 de novembro de 1927. Aloísio Magalhães pensava em

74 75
políticas de bens culturais, defendia a preservação do patrimônio — Passei 43 anos sem ir lá no Triunfo. Voltei mas não gostei,
histórico. Pensava em bens culturais de regiões esquecidas. ninguém me conhecia. Só tinha aquela rapaziada nova...
5 de novembro: em homenagem a ele, foram criados no Brasil
o Dia do Designer e o Dia da Cultura. — Lembro que saímos de Triunfo, fomos para Paulo Afonso,
Em seu livro “E Triunfo? a questão dos bens culturais no Brasil”, Bahia. Viemos para Brasília. Minha mulher adoeceu, voltamos
Aloísio Magalhães conta que em 1980 participava de uma reunião pra lá, pra minha mulher se tratar de saúde.
em São Paulo, em que se discutiam políticas culturais em escala — Minha mulher ficou boa na Vila Amaury, e nunca mais sentiu
grande. Ele dizia, então: “[...] A nossa realidade é riquíssima, a nada.
nossa realidade é inclusive desconhecida. E é essa realidade que — Já sofri demais aqui...
precisa ser conhecida. É essa realidade que precisa ser levantada”.
Aloísio vinha de uma viagem pelo Nordeste, e questionava: “[...] — Fiquei pouco tempo na Vila Amaury – uns oito meses. A Vila
E Triunfo? E quantos Triunfos existem por aí? É preciso proteger, existiu pouco tempo.
é preciso estimular situações como a de Triunfo.”. — Quando o Lago encheu, disseram: “Vocês vão escolher ir para
Espedito depois viveu em outro “Triunfo”: a Vila Amaury, que Sobradinho, Taguatinga, Planaltina”. Gama ainda não falavam não.
guarda histórias no fundo do Lago Paranoá. Fui ao Gama, mas queria morar num canto que fosse adiantado...

— Saí de Triunfo em 1954. — Quando saí de lá da Vila, que vim pro Bandeirante, não
— Cheguei de Triunfo e fui primeiro para um acampamento demorou nem uma semana pras águas chegarem... Quem não
no Zoológico. Mas lá não pagavam direito... tirou os barracos, perdeu tudo na água...
— Fui para a Praça 21 de Abril. Depois desmancharam e levaram — A barragem encheu do dia pra noite. Quem saiu saiu; quem
nosso barraco para a Vila Amaury. não saiu, não tirou os barracos, perdeu tudo.
— Em 1959 fui para a Vila Amaury. Tinha as firmas Ecisa, Ipase,
Tinha alojamento, lá no Paranoá... — Todo domingo eu atravessava pra beber na Vila.
— Depois, fui para a Cidade Livre, que é agora o Núcleo — Eu andava muito, mas tinha 24, 25 anos...
Bandeirante. — Casei novo, com 19 anos.
— Depois, para a Ceilândia. — Quando a coisa apertou no meu Triunfo, deixei a mulher lá.
— (O sofrimento de pobre andando pelo meio do mundo... So- Eu já tinha casa lá em Triunfo.
fremos muito por aqui.) — Quando cheguei cá (Deus é maior que tudo, né?), arranjei
— E depois vim para Taguatinga, que eu escolhi pra morar vaga e fichei no Quartel do Exército.
e comprei. (Quando Juscelino passou para Jânio Quadros, eles — Saudade da mulher... Voltei lá pra buscar ela e os meus filhos.
queriam por fina força que fôssemos morar no Gama; mas eu
não quis. Fui lá, não tinha nem estrada... Vim pra cá. Lá na QNG — Na Vila Amaury escola era paga. Tinha uma mulher lá, uma
tinha um rapaz vendendo um barraco. Comprei isso aqui por 25 cearense, que ensinava às crianças. Mas era pago, os pais tinham
mil. 51.350,00, com a escritura. Viemos praqui). que pagar. Não tinha escola não... Veio a ter escola aqui em Ta-
guatinga, em 60. Escola particular.

76 77
— Naquele tempo o governador que mandava aqui era o Israel
Pinheiro. Pra que ele fazia aquela malvadeza de por o povo na barra-
gem, se já sabia que ia inundar? Maldade, era pra judiar com o povo...

— Aí pensei: sabe de uma coisa? Eu vou é sair daqui. E fui lá


pro Bandeirante. Era invasão também. Cheguei lá, comprei umas
tábuas, fiz depressinha um barraco... Tinha uns formigueiros desse
tamanho... Não era brincadeira não... Eu, a mulher e três filhos...

— Aí vim para Taguatinga, estou aqui até hoje.

— Trabalhava de pedreiro. Sou construtor de obra. Mas não


trabalhei na Barragem. Lá só ia beber cachaça.

— Era muito bom... Era? O pessoal falava que era bom, mas não
era bom, porque a gente trabalhava o dia e a noite para viver. Hoje
você trabalha só o dia e ainda sobra dinheiro. Quer dizer que hoje
tá muito melhor que naquele tempo, não tá? Tá?

— Olha, quando eu cheguei aqui passei a ser encarregado de


obra, com quinze dias eu era encarregado de obra. Ali na 308 tem
a Escola Parque e a Escola Classe. Eu fui encarregado de obra ali
na Escola Classe. Dali eu fui como encarregado pro Ipase.

— Taguatinga cresceu de um dia pro outro. Foi um relâmpago.


— Depois daquele Israel Pinheiro teve o Wadjô Gomide, goiano.
Depois o Valmir Campelo. Administrador de Taguatinga, abriu a
mão pra construir prédios de 3 andares. Antes era proibido. Eu
construí essa casinha de cachorro porque não podia fazer uma
casa boa, porque não tinha dinheiro para comprar material. Saber
fazer eu sabia, mas cadê dinheiro?

— Trabalhava de noite e de dia... Era duro...

78
Antônio Alves de Souza
“Toninho de Souza”
Riachão das Neves, na Bahia. 1951.
Conversa no Espaço Chatô, Correio Brasiliense. Exposição “Arte pós-con-
temporânea de Toninho de Souza”.

— Sou filho único. Meu Pai era pedreiro, minha Mãe costureira
(ela tem 85 anos, mora em Sobradinho, como eu).

— Nós morávamos em Uruaçu, na Bahia. (Eu tinha 10 meses


e meu pai saiu de Riachão das Neves e foi para Uruaçu – Fazenda
Cafeeira – já em busca de trabalho). Lá, em 1956, meu pai soube
da construção de Brasília. E viemos para cá, no final de 1957.

— Pegamos uma jardineira49 e passamos mais ou menos um


mês em Anápolis, em Goiás. Dali viemos para a nova capital. Fi-
camos na Cidade Livre, morando num barraco enquanto meu Pai
procurava emprego.

— O primeiro emprego dele foi na Novacap. Mas meu Pai não

80 81
gostava de ficar num mesmo lugar... Saiu da Novacap e começou — Teve pessoas que procuraram outros lugares. Por exemplo,
a procurar emprego de novo, em firmas privadas (de construção). no Lago Norte davam lotes de graça. Ou se não davam, vendiam
Meu Pai trabalhava nos canteiros de obra, minha mãe cozinhava bem baratinho.
bem e montou em cantina no canteiro de obra, lá na 507 Sul. A
cantina era feita com sacos de cimento vazios; não tinha madeira; — Eu acredito que algumas pessoas que tinham mais visão
eram só as telhas de chapa asfalto, de papelão e os sacos de ci- podem ter escolhido o início do Lago Norte, aquelas primeiras
mento vazios, dobrados como escama de peixe. Quando eu ficava quadras. Só que ainda era muito cerrado, e as pessoas não acre-
na cantina, brincava muito naquela terra vermelha. Comecei a ditavam que a cidade ia crescer... Meu Pai tinha aquela visão: só
riscar com carvão, argila, sacos de cimento vazio... Era o começo preciso de uma casa. Ele podia ter vários lotes, que eles davam
da minha trajetória artística. para quem pudesse construir... Eles queriam é que construísse.

— Começa a formar a Vila Amaury. Meu Pai mudou pra lá e — O que eu lembro mais da Vila Amaury... Comparando com um
fez um barraco de madeira. Tínhamos uma venda na rua, que lugar de agora, era como a Vila Buritis, em Planaltina. Muita gente
vendia balinha, bolo. Naquela época comecei a estudar o abc, com circulando pela cidade, armazém, tudo misturado, não existia nada
professora particular – foi meu primeiro contato com a leitura - organizado. Eram barracos de madeira. Em frente à casa da minha
quando aprendi a escrever. Naquele período eu ficava brincando Mãe tinha uma empresa que vendia bananas; faziam um buraco
com os sacos de cimento na cantina e sábado e domingo ficávamos no chão, enorme, guardavam as folhas de bananeira, tampavam
na Vila Amaury. Depois acabou a cantina e ficamos mais tempo com terra, as bananas amadureciam em menos de dois dias. E
na Vila Amaury. um dia teve um temporal grande, com pedras de gelo, inundou
tudo, e foi banana pra todo lado, pelas ruas... Era pior que essas
— Pela minha visão, cheguei com 7 anos em Brasília. Ficamos enchentes que andam noticiando por aí. O comentário na época
na Vila Amaury em torno de 2 anos. era que caíram pedras de até 1kg, nas construções. Praticamente
todos os telhados das casas ficaram furados. Quem não tinha
— A Vila Amauri existiu antes da inauguração de Brasília. dinheiro comprava telha mais barata...
— Era o início das obras. Quem era solteiro ficava morando nos
alojamentos das firmas. Quem tinha família, ia para as vilas. Era — Tinha muito quintal na Vila. Naquela época a gente brincava
o caso do meu Pai, que já tinha filho... na rua... Se você já foi no Buritis, vê que as pessoas andam pela
rua. Cachorro, galinha, tudo solto. Lá na Vila Amaury também:
— Depois, quando o lago encheu, a Vila ficou totalmente não tinha cerca, era uma casa do lado da outra, sem cerca.
submersa. ­— As brincadeiras eram pião, bolinha de gude, carrinhos feitos
de caixa de leite, lata de óleo, toco dos canteiros de obras, jardi-
— A maioria foi para Sobradinho, Taguatinga, Gama. A Vila neiras de lata...
Amaury é origem de 3 cidades...
— Eu, por exemplo, cheguei em Sobradinho em fevereiro de — Eu tinha acesso, descia, ia até a beira do córrego Paranoá,
1960, quando foi a mudança. esse córrego que foi enchendo.

82 83
— Lá tinha muita cacimba. A gente ia, curtia a água, pegava fotos oficiais, do Fontenelle. Ele era o fotógrafo oficial, trabalhava
água, brincava... na Novacap.
— O córrego Paranoá era muito estreito. Por causa da barragem — As pessoas não tem aquele cuidado de guardar fotos.
foi aumentando. As águas subiam, a barragem veio subindo, a
água ia descendo, não tinha pra onde a água sair, ela veio subindo, — Quem fez a planta de Sobradinho foram arquitetos da No-
entupindo tudo. Então tinha que tirar as pessoas... vacap. O mesmo arquiteto que bolou as quadras aqui das 700, foi
quem bolou as quadras de Sobradinho. Os lotes são parecidos, são
— As vilas daquela época? Tinha a Sacolândia, Vila do IAPI, iguais. Tem área verde... Sobradinho é uma cidade que seria de
Morro do Urubu... E Vila Telebrasília, Vila Planalto, que ficaram. característica rural-urbana. Tem muita natureza, muita árvore.
Mas a Vila Amaury foi a maior vila que existiu no Distrito Federal. O Gama teve quase a mesma filosofia. Já Taguatinga não é uma
a mesma coisa: é casa frente com frente. Não existe área verde.
— As pessoas tinham direito de escolher para onde iam: So-
bradinho, Taguatinga, Gama. Meu pai escolheu Sobradinho. Se
a gente tivesse escolhido Taguatinga, ia morar ali na primeira
quadra central, ali onde tem o relógio. Quando a gente chegou
a Sobradinho, ficou no cerradão, porque era um número muito
grande de pessoas que tinham escolhido Sobradinho.

— Quando o lago estava enchendo, tinha que ir embora mesmo


ou então ficava naquelas residências flutuantes como as que tem
no litoral brasileiro...

— Tem umas ruínas da Vila Amauri embaixo do Lago... Cheguei


a ver umas, mas eu era muito fraco. A cidade não tinha esgoto,
tinha muita cacimba. A gente pegava água de cacimba. Inclusive,
a água aflorava a 1metro.

— Registro fotográfico era raro... Eu só via pessoas fotografando


na Rodoviária, que era aquele lambe lambe – aquelas máquinas
Kodak quadradas, que você colocava o pano em cima do pescoço...

— O Arquivo Público só tem bastantes fotos da construção de


Brasília porque teve o Fontenelle... Se não fosse o Fontenelle, eu
acho que Brasília não ia ser registrada desde o início não...
— Hoje, se eu tenho fotos de Sobradinho, é por causa daquelas

84 85
Elizabeth Fernandes Neves
Goiatuba, em Goiás. 1952.
Conversa no apartamento de Elizabeth, em Águas Claras.

— Morei na Vila Amaury em 1959. Foi pouco tempo lá. Mas a


Vila Amaury durou pouco tempo mesmo...

— Viemos para Brasília antes da inauguração - meu Pai, minha


Mãe, eu, dois irmãos.

— Viemos de Goiânia, primeiro para a Candangolândia. Fomos


morar com minha Avó e meu Avô, na Candangolândia – veio um
tio também.
— Depois (tinha gente demais na casa dos meus Avós) surgiu
a história da Vila Amaury, e nos mudamos para lá.

— Na Candangolândia as casas eram de lona.


— Lembro que tinha muito índio. Muito índio mesmo. Não sei
se eles eram de lá, ou se tinham vindo... Eu tinha medo deles – as
crianças tinham medo deles. Fico pensando de onde eles eram, se
tinham ido para lá por causa da construção, se eram de lá...

86 87
— Meu Pai trabalhou na Novacap. Mas depois saiu de lá e passou
a viver de comércio.

— Esses restaurantes populares, baratos, que o Roriz diz que


criou, já tinha lá na Candangolândia. Nós almoçávamos no saps50. O
Presidente de vez em quando ia até o restaurante. Lembro que eles
serviam um leite gelado. (Eu nunca tinha tomado leite com almoço...)

— Na Vila Amaury, lembro que tinha muita muriçoca; acho


que por causa daquele brejo, daquela areia branca;
— Lembro da liberdade... Eu era criança e brincava muito. Não
sabíamos de violência por lá.
— Tinha a capelinha redonda, perto de onde morava. A cape-
linha parece que pertencia ao Palácio da Alvorada... Era muito
perto. Devia ser ela, aquela capela do Alvorada.
— Lembro muito do barro branco com as flores branquinhas que
tinha na Vila. Era tão fino... a gente afundava nesse mar branco...
As flores eram branquinhas, como essas flores do cerrado que se
vende na Catedral e na Torre.
— Era na parte baixa da Vila que tinha aquela areia branca...

— Tenho lembrança boa da Vila Amaury... Era criança, tudo


era bom.

— Era uma casa de madeira. As casas lá eram de madeira.


— Meu Pai construiu um mercadinho em frente à casa. Mas
não deu certo, o lugar era ruim...

— Não havia escola.


— Sabe aquelas fotos de escola, que todo mundo tem? A minha
era da escola em Goiânia...
— Tenho poucas fotos de quando era criança. Só algumas, mas
nenhuma na Vila Amaury. Ônibus urbano, 1960. Foto: Peter Scheier.
Nos destinos, aparece “Vila Mauri”.
— Era difícil alguém tirar fotos. Máquina fotográfica não era [ims, p.150]
acessível...

88 89
— Tinha mulheres, na Vila os trabalhadores eram casados; e
tinha muita criança lá.
— As mulheres ficavam mais em casa, nos serviços de casa:
tirando poeira, lavando roupa, cozinhando...

— A parte baixa é que ia ser inundada primeiro. Aí juntou: eles


diziam que aquela parte ia ser inundada, e a minha Mãe queria
ir embora. Então saímos da Vila Amaury.

— Da Vila Amaury fomos para Goiânia, depois voltamos para


Brasília em 1963. Tinha um tio que morava no Gama, e fomos para
o Gama. Moramos no Gama 22 anos – de 1963 a 1985.
— Depois moramos na Asa Sul, no Guará, e agora em Águas
Claras.

— Não sei se a ideia era o Lago ser menor, que não atingisse as
pessoas que moravam lá... Não sei.
— Não tinha por que fazer aquela Vila lá, botar aquelas pessoas...

— 20 mil pessoas? Deve ter variado a quantidade de pessoas.


Eu não imaginava que chegou a ter tanta gente assim – mas era
muita gente...

— E para onde foram essas pessoas todas?

— Era Vila Amaury ou Vila Mauri? Tinha gente que dizia Vila
Mauri... Nos ônibus tinha Vila Mauri...

90
Amélia Andrade Albuquerque
Bahia, 1948.
Conversa na casa de Amélia, em Taguatinga Norte.

Amélia é evangélica, batista, cursou Direito, é viúva, tem 3 filhos.

— Moramos na Vila Amaury de dezembro de 1959 a maio de 1960.


Eu tinha 10 anos. Tenho uma memória muito forte desses tempos.

— Fomos para a Vila Amaury porque era o início da construção...


Moravam só trabalhadores.

— Papai veio morar na Vila Amaury para evangelizar. Cons-


truiu a Igreja Batista do Planalto, que depois foi transferida para
Sobradinho.

— Um dia você acordava e o Lago estava mais ou menos longe.


No outro dia você encontrava o Lago praticamente a uns 10 metros
da sua casa... Era rápida a subida da água...
— Quando nós chegamos, ainda estava a uma distância que
dava para vermos o Lago... Mas Mamãe não queria que a gente

92 93
chegasse perto do Lago, porque podia ter cobra, jacaré... Era um — Não tinha escola.
proibitivo para a gente. Então a gente não chegava perto da água. — Minha Mãe era professora, mas lá na Vila Amaury ela se
Mas a água chegou tão rápido... dedicou a costurar. As máquinas de costura não tinham esses
equipamentos de hoje, então ela me pedia para fazer os acaba-
— Antes de vir para Brasília, morávamos numa cidade chamada mentos na mão, na agulha. Eu nunca tive muita vocação para isso...
Firminópolis, em Goiás, perto de Trindade.
— Da Bahia fomos para Ceres, Firminópolis, Belém, Parintins, — Papai era pastor batista e fazia também serviços de marce-
voltamos para Firminópolis, e depois Brasília. naria, doces, sabão... E era professor.

— Foi muito grande a diferença de viver em Firminópolis e na — As mulheres se ocupavam mais era dos serviços domésticos...
Vila Amaury. Era como sair de mundo para outro. A Vila Amaury Algumas faziam salgadinhos, docinhos, para serem vendidos nas
era um mundo estranho, a gente não estava acostumado... obras.
— Meus irmãos mais velhos vendiam maçãs... Meu pai comprava
— Lembro que era muito barulho, das obras. Era barulho de caixas de maçãs, colocava num carrinho de mão, e eles vendiam
bater, de lixar, de serrote... Nosso barraco era perto das constru- na obra...
ções - Palácio do Planalto, Palácio do Jaburu, da Alvorada... — A obra era pertinho... Palácio da Alvorada, Palácio do Planalto,
— Lembro dos barracos que eram construídos. Todos os dias Palácio Jaburu...
apareciam barracos novos, construídos nas redondezas.
— Mamãe não deixava a gente ver as obras.
— Lembro que nunca vi tanto homem... Era uma quantidade — Quando muito, Papai nos levava domingo à tarde... Mas
imensa de homens... eram lugares perigosos... Não era lugar para criança. Papai era
muito curioso e eu era muito apegada a ele. Então eu ia com ele,
— E lembro que tínhamos que ficar em casa: “Não saia de casa e ele mostrava o que estava sendo feito: aqui vai ser o Palácio do
sozinha, não brinque na porta da rua, não vá à casa do vizinho”, Presidente da República (que era o JK – e eu já tinha uma paixão
minha Mãe orientava. alucinada por ele...)

— Os recursos financeiros eram poucos... — Todo mundo na Vila Amaury adorava JK. Ele era ídolo.
Papai nunca recebeu salário de igreja nenhuma, a exemplo — Falava com os trabalhadores, apertava a mão...
do apóstolo Paulo. — No dia da inauguração ele me pegou no colo....
— Fomos todos. Foi a família toda.
— Para Papai devia ser uma experiência muito boa, conhecer — Fui passando pelas pernas dos guardas, para ver Juscelino
tanta gente, levar a palavra de Deus para os trabalhadores... de perto. Juscelino perguntou quem era aquela menininha. Mas
— Mas para nós era muito medo... Tinha muito estupro, era muito barulho, então não dava para ouvir Papai dizendo: “É
assassinatos... minha! Essa menina é minha!”. Só muito mais tarde Papai me
encontrou, na guarita, com JK... Fui muito bem tratada lá. Mas

94 95
Papai já estava desesperado. e sanduíche, na inauguração de Brasília, lá na guarita onde eu
— Eu era franzininha, pequenina para a idade... Tinha uns fiquei; tecidos grossos como jeans, com que se faziam as roupas
cabelos louros longos, era muito faladeira... resistentes dos trabalhadores...
— JK e o pessoal ficaram encantados comigo.
— O nome da Vila Amaury era por causa de um engenheiro
— Eram poucas, as mulheres. Não tinha tanta mulher. Vinham que havia por lá, o Amaury. Nunca soube dos nomes Bananal e
muitos trabalhadores que deixavam as mulheres no lugar de Sacolândia.
onde vinham. — Sacolândia até podia ser, porque não existia sacola de plástico
— Na nossa Igreja é que nós notávamos. Era uma média de uns e o que se vendia era carregado em sacos...
20 homens para duas, três mulheres. Poucas crianças... — Não era saco de cimento vazio que cobria as casas – quase
todas tinham telhado de zinco.
— Casos de estupro eram muito frequentes. Tanto de adultos
como de crianças. Porque os homens vinham sem os familiares. — Praticamente não havia fotos daquele tempo. Era muito cara,
E quando dava o cio, quando eles ficavam loucos, atacavam... a máquina fotográfica.
— Era muito perigosa, a Vila Amaury, nesse aspecto. Volta e meia Nem eu no colo de JK, nem disso tem foto... Já procuramos no
a própria população tomava as dores... Linchavam... Eu mesma, Arquivo Público e outros lugares, e não tem...
apesar de ser muito criança, assisti a um linchamento. Não vi até
o fim, porque meus pais me retiraram. Mas vi espancamentos. — Eram três lugares para se escolher ir, quando o Lago chegou:
Um homem atacou um criança de 6 anos. A população se revoltou. Taguatinga, Sobradinho, Gama.
— Papai foi conhecer, para escolher.
— Papai era pastor evangélico, batista - José Leitão de Albu- — Mas enquanto ele foi, nem tinha escolhido ainda, e veio
querque. Viemos justamente para trabalhar na divulgação da um caminhão da Novacap, e os homens desmancharam nosso
palavra de Deus... Papai veio em 1957 e depois em 1959 foi nos barraco, jogaram as tábuas encima do caminhão, arrancaram as
buscar, porque ele já tinha feito um barraquinho de madeira... Lá madeiras e os poucos móveis, amontoaram tudo e nós encima do
na Vila Amaury eram barraquinhos de madeira de construção, de caminhão. Despejaram nós em Sobradinho, no meio do mato, no
andaimes, cheios de cimento. Arranhava. Era um quarto de casal escuro. E os homens foram embora... Nós em pânico, pensando:
(um pouquinho maior) e mais quatro quartos, porque era muito como Papai vai nos achar?
menino... Eram 7 filhos e eles criaram mais 4. Éramos 11. E Papai — Nós em pânico, pensando: Papai não vai nos achar nunca!
recebia visitas... — Um frio cortante!
— Minha Mãe cantava conosco, para diminuir nosso medo.
— Conheci muitas novidades naquele tampo: água gelada, com — Fizemos uma fogueirinha, Mamãe nos agasalhou e dizia que
os blocos de granizo que caíam e que Papai dizia para nós e as não ia nos acontecer nada de mal...
crianças da vizinhança recolhermos nas nossas canequinhas de — Papai insistiu e ficou sabendo para onde a família tinha sido
ágata, como brincadeira para desviar nosso medo daquelas chuvas levada. E foi para Sobradinho. Chegou lá tarde da noite, com o
de granizo, os blocos caindo no telhado de zinco; refrigerante lampião a querosene chamado Petromax, que faz um barulho

96 97
característico... Na Igreja tinha um lampião desses... Sabíamos que
era ele chegando por causa do barulho do lampião... Papai, Papai...
— Foi forte demais o trauma...

— Era um frio... Quem havia de pensar que hoje íamos ter 33


graus em Brasília?

— Fomos dos primeiros trinta moradores de Sobradinho.

Deixa tua terra, tua parentela, e vai para uma terra que eu te
darei. (Atos dos Apóstolos, 7.3). [Isaac Ribeiro51. Depoimento
em MENDES, Filipe Sousa. Missão Cruz. 2007.]

Mas o Pai de Amélia trouxe a família toda para a Vila Amaury...

— Estava aqui o pastor Elias Brito, no Núcleo Bandeirante. Ele


tinha sido colega de seminário do Papai, e o convidou para vir para
cá. Papai veio em 1957 – comecinho da construção – e em 1959 foi
nos buscar em Firminópolis. Aí ele já tinha feito um barraquinho
de madeira. Os barracos da Vila Amaury eram feitos de madeira
de construção, telhado de zinco.

— Depois que eu me casei, em 1972, fomos morar no Guará.


Mas todo o pessoal continuou em Sobradinho. Estou querendo
voltar para lá...

— O Lago cheirava mal... Não tinha esgoto, eram fossas negras.


E vinha a água, espalhava... Eram buracos com umas madeiras
em cima...

98
Bibliografia e referências

A) LIVROS, ARTIGOS COSTA, Lucio. Brasília, cidade que


inventei. Relatório do Plano Piloto de
ABREU, Luís Alberto e CAFFÉ, Eliane. Brasília [1956] Brasília: GDF, 1991.
Narradores de Javé – roteiro final
comentado por seus autores. São Paulo: CRULS, Luiz. Relatório da Comissão
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Exploradora do Planalto Central do
Cultura – Fundação Padre Anchieta, 2004. Brasil [1892/1894]. Brasília: Senado
Federal, 2003.
ARRUDA, Leonardo. Memórias
emergentes: um resgate da história FACÓ, João. Nas asas de Brasília. Brasília:
da Vila Amaury. Projeto Experimental J.Facó, 2003. Apresentação do Fundo de
(Bacharelado em Comunicação Social, Apoio à Cultura do Distrito Federal/FAC DF.
habilitação em Jornalismo). Universidade
Católica de Brasília. Águas Claras, 2013. FONSECA, Fernando (org.) Olhares sobre o
Lago Paranoá. Brasília: Secretaria de Meio
BARATA, Beto. Brasília Submersa. Ambiente e Recursos Hídricos/GDF, 2001.
Brasília: 2010.
FRANÇA JUNIOR, Oswaldo. No fundo das
BENJAMIN, Walter. O Narrador [1936]. águas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
In: Magia e Técnica, arte e política –
ensaios sobre literatura e história da FREIRE, Danielle e LOPES, Fabiane.
cultura. Obras Escolhidas, vol.I. São Paulo: Revista Miragens. nº. 1 – Lago Paranoá.
Brasiliense, 1996. 7.ed., 10ª reimpressão. Projeto Experimental (Bacharelado em
Comunicação Social. Habilitação em
BERTRAN, Paulo. História da Terra e Jornalismo). Universidade Católica de
do Homem no Planalto Central. Eco- Brasília. Águas Claras, 2004.
História do Distrito Federal: do indígena ao
colonizador. Brasília: Verano, 2000. IMS – INSTITUTO MOREIRA SALLES. As
construções de Brasília. Rio de Janeiro:
BURKE, Peter. Testemunha Ocular – IMS, s/d, p.150. [exposição As construções
história e imagem. Bauru, SP: Edusc, 2004. de Brasília. Curadoria: Heloísa Espada. Rio
de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2010]
COSTA, Cléria Botelho da e MAGALHÃES,
Nancy Alessio (Orgs.). Contar história, LEMINSKI, Paulo. Toda Poesia. São Paulo:
fazer história – história, cultura e Companhia das Letras, 2013.
memória. Brasília: Paralelo 15, 2001.

101
LUZ, Clemente. Invenção da Cidade. dez.2005. IFITEG / SGC / UCG. ISSN: DC – Brasília. Edição Brasiliense do MARGARIDO, Silvio. Um mergulho na
Brasília: Ebrasa, 1967. 1414-9494. Diário Carioca. 1959, 1960. Acervo do memória. Vila Amaury. Brasília: 2011.
Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Disponível em <https://www.youtube.
MAGALHÃES, Nancy Alessio e SINOT, PORTELLI, Alessandro. “O momento da Federal; Acervo microfilmado do Centro com/watch?v=EtnLhOgd-xs>. Acesso em
Marta Litwinczik (Orgs.). Memórias e minha vida”: funções do tempo na história de Documentação e Informação da Câmara 03.09.2016.
direitos: moradas e abrigos em Brasília. oral. In: FENELON, Déa et al. (Org.). dos Deputados. Brasília / DF.
Brasília: UnB / NECOIM, 2001. Muitas memórias, outras histórias. São CAZARRÉ, Marieta, direção. Paranoá,
Paulo: Olho d’ Água, 2004. FREITAS, Conceição. Notas de uma espelho do céu. Realização TV Brasília.
MENDES, Filipe Sousa. Missão Cruz. inauguração inesquecível. Crônica da 2015. Disponível em <http://tvbrasil.ebc.
Documentário. Projeto Experimental RAMBELLI, Gilson. Arqueologia até Cidade. Brasília: Correio Braziliense – com.br/docespecial/episodio/paranoa-
(Bacharelado em Comunicação Social. debaixo d’água. São Paulo: Maranta, 2004. 10.04.2004. Cidades, p. 24. espelho-do-ceu>. Acesso em 02.03.2016.
Habilitação em Publicidade e Propaganda).
Universidade Católica de Brasília. Águas RODRIGUES, Lucimar. Eu e meus nós em LAMBACH, Fernanda e DUARTE, Flávia. KOMLJEN, Dane e LATTIMER, James,
Claras, 2007. verso e prosa. Brasília: Edição do Autor, O que essas águas escondem? Revista D, direção. All Still Orbit. Croácia/Sérvia/
2011. Correio Braziliense, 06.04.2003. Alemanha/Brasil: Restart Production;
MENEZES JÚNIOR, Antônio et al. A coprodução Dart Film e Flvmina Creative
Missão Cruls. In: FONSECA, Fernando SANTOS, Marcos Antonio. Brasília, o PAIXÃO, Ana Helena. Eles recontam a Production, 2016. 45º International Film
(org.) Olhares sobre o Lago Paranoá. lago Paranoá e o tombamento: natureza História. Correio Braziliense, 24.10.2004. Festival of Rotterdan / IFFR 2016.
Brasília: Secretaria de Meio Ambiente e e especulação na cidade modernista.
Recursos Hídricos/GDF, 2001. Dissertação. (Mestrado). Escola de REVISTA BRASÍLIA – Brasília: Companhia MAGALHÃES, Nancy Alessio, direção
Engenharia de São Carlos. São Carlos, Urbanizadora da Nova Capital do Brasil – geral. Memórias de cá e de lá – Paranoá.
MONTENEGRO, Antônio Torres. História 2008. Novacap. Arquivo Público do DF. 1957, 1958, Brasília: UnB/Ceam/Necoim; DePHA/
Oral, caminhos e descaminhos. In Revista 1959, 1960. GDF, 1998.
Brasileira de História. São Paulo: SARAMAGO, José. Levantado do chão.
ANPUH/Marco Zero, vol. 13, nº. 25/26, set. 3.ed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand MURAT, Júlia, direção. Histórias que só
1992/ago. 1993. Brasil, 1989. C) VÍDEOS–DOCUMENTÁRIOS existem quando lembradas. 2012.

E FILMES
NEIVA, Ivany Câmara. Brasília em 51 SILVA, Dácia Ibiapina da. História oral, QUARESMA, Tânia, direção. Série Os
Cartas. Brasília: Editora da Autora, 2011. oralidade e audiovisual na construção de Pioneiros. Radiobrás. 1983/1984.
BARATA, Beto. Brasília Submersa –
Apresentação do FAC DF / Fundo de Apoio relatos de memórias traumáticas. In História
vídeo oficial. Brasília, 2012. Disponível
à Cultura do Distrito Federal. Oral. Revista da Associação Brasileira de
em <https://www.youtube.com/
História Oral nº6, São Paulo, 2003.
watch?v=k0n3EhmbRU4>. Acesso em
______. Imaginando a capital: cartas D) SITES
03.09.2016.
a JK (1956-1961). Brasília, 2008. Tese. VICH, Victor y ZAVALA, Virginia.
(Doutorado em História Cultural). Oralidade y poder: herramientas FERREIRA, Climério. Velhas
CAFFÉ, Eliane, direção. Narradores de
Universidade de Brasília. metodológicas. Buenos Aires: Grupo questões. Disponível em <https://
Javé. 2003.
Editorial Norma, 2004. www.facebook.com/climerio.
______. “Você era minha”: gestão de ferreira.5?fref=nf&pnref=story>.
CARDOSO, Liliane. Reportagem. Vila
memórias da Vila. Gestão Cultural. Curso 24 02 2017, 17h12. Acesso em 25.02.2017.
Amauri. Uma vila submersa. Brasília,
para Formação de Agentes Culturais. Caixa
2013. Disponível em <https://www.
Cultural. Brasília, 2011. B) PERIÓDICOS VILA Amaury por Beto Barata. In <http://
youtube.com/watch?v=JRuZeieiYUE>.
fotojornaliana.blogspot.com.br/2011/11/
Acesso em 03.09.2016.
______, FREIRE, Danielle e LOPES, CARVALHO, Mário César. Arqueologia de vila-amaury-por-beto-barata.html>.
Fabiane. Narradores da Vila Amaury. Brasília. Caderno Mais! Folha de São Paulo, Acesso em 23.03.2016.
Revista Fragmentos de Cultura 17.04.2005.
(História e Fotografia) v.15, n.12,

102 103
Notas

1 Depois de terminadas as sete entrevistas 8 O jornalista e fotógrafo Paulo Manhães


previstas, encontramos outros narradores, participou de várias pesquisas sobre a Vila
como a professora Maria Ozanette de Amaury. É dele a foto tirada da marina
Medeiros. Lembramos de conversas e de do Iate Clube de Brasília, em 1959, tendo
e-mails do pesquisador Juremir Machado como tema a Vila, ainda não submersa.
da Silva, em 2004, quando ele, falando de Um dos trabalhos em que Paulo Manhães
procedimentos de pesquisa, comentava: foi personagem é o de Leonardo Arruda,
“[...] e se vai somando tudo, pedindo mais, em 2013.
arriscando aqui e ali, encontrando coisas e
pessoas inesperadas ...” . 9 DC-Brasília, Ano I, n° 65. 27/11/1959.
Acervo do Instituto Histórico e Geográfico
2 Alguns depoimentos iniciais, de Brasília.
reproduzidos neste livro, constam da
Revista Miragens, produzida em 2004 por 10 Antônio Sousa, antigo morador da Vila
Danielle Freire e Fabiane Lopes. Amaury. Depoimento em Sobradinho, 1974.

3 Walter Benjamin. O Narrador. 1996. pp. 11 ”Não há referências sobre a data precisa
205 e 198. da inauguração da barragem. Alguns
trabalhadores indicam que a inauguração
4 Crônica Notas de uma inauguração da usina só veio a acontecer no governo
inesquecível. Correio Braziliense, João Goulart”. FONSECA, op. cit. p.36.
10.04.2004. Cidades, p. 24.
12 Também variam as informações sobre
5 FONSECA, Fernando (org.) Olhares a dimensão do Lago Paranoá. Adotamos,
sobre o Lago Paranoá. Brasília: Secretaria aqui, a dimensão mencionada em
de Meio Ambiente e Recursos Hídricos/ FONSECA, 2001.
GDF, 2001. p.193.
13 No Relatório Cruls o Rio Paranoá consta
6 Idem, p.36. como Paranauá. O artigo “A Missão Cruls”
(em Fonseca, 2001, p.25) esclarece: “Várias
7 Alcy Pereira de Carvalho, presidente denominações são registradas para o Rio
da Associação dos Moradores do Paranoá, Paranoá. Os bandeirantes paulistas que
1983. Anotações durante a gravação primeiro visitaram a região do Planalto
do episódio VIII da série televisiva “Os Central, no século XVII, chamavam-
Pioneiros”, dirigido por Tânia Quaresma. no em nhengatú (língua falada pelos
bandeirantes, resultante do português
caipira, de uso geral no sertão, e do tupi

105
paulista) de Parnaguá. Em Tupi-Guarani, 23 DC-Brasília, Ano I, n° 78. 12/12/1959. 36 DC-Brasília, Ano I, n° 37. 24/10/1959. 44 O nome do Clube Cota Mil, localizado
Paranoá é o mesmo que Paranaguá, que Acervo do Instituto Histórico e Geográfico Acervo do Instituto Histórico e Geográfico na orla do Lago, deve-se a isso.
quer dizer rio largo, rio espraiado”. de Brasília. de Brasília.
45 DC-Brasília, 08/01/1960. Centro de
14 A. Glaziou. Relatório da Comissão 24 DC-Brasília, Ano I, n° 80. 15/12/1959. 37 DC-Brasília, Ano I, n° 89. 25/12/1959. Documentação e Informação. Câmara dos
Cruls, 1892 / 1894. Acervo do Instituto Histórico e Geográfico Acervo do Instituto Histórico e Geográfico Deputados.
de Brasília. de Brasília.
15 Entrevista em outubro de 2004, no 46 DC-Brasília, 01/06/1960. Centro de
.Museu das Idades da Terra. O Museu 25 Na trama do romance No fundo das 38 “nome que designa [ ...] os operários Documentação e Informação. Câmara dos
localiza-se próximo ao Lago Paranoá, e águas, de Oswaldo França Junior, à medida que trabalharam nas grandes construções Deputados.
dali se tem uma vista privilegiada de suas que a represa vai inundando a cidade e da cidade de Brasília (DF); extensivo
margens e da cidade. Paulo Bertran viveu ficando mais funda, mais se detalha e a quem nasce em Brasília.. Disponível 47 DC-Brasília, 25/04/1960. Centro de
de 1948 a 2005. aprofunda o perfil dos personagens. em <http://houaiss.uol.com.br/ Documentação e Informação. Câmara dos
busca?palavra=candango>. Acesso em Deputados.
16 Há depoimentos que questionam a 26 Há referências a esse fato em Fonseca, 31.08.2016.
“veracidade” e a importância dessa história 2001. p.36. 48 Walter Benjamin. O Narrador. 1996.
e a localização dessa “terra prometida”. Por 39 Preços de capa do jornal em maio de p. 213.
exemplo, TAMANINI, Lourenço Fernando. 27 Palácio do Governo no Rio de Janeiro, 1960. A propósito de valores dessa época,
Memória da Construção. Brasília: Royal antiga capital, até 1960. em cruzeiros, no dia 30 de setembro de 49 Jardineira, no Brasil, é um meio de
Court, 1994. p.101. Mas João Bosco continua 1960 o DC-Brasília se refere a que o salário transporte (parecido com o “lotação” –
sendo padroeiro da cidade de Brasília. 28 Arquivo Público do Distrito Federal, mínimo naquele mês era de Cr$9.600,00. ônibus pequeno), usado principalmente no
Fundo Novacap, caixa 20. Nordeste. Eunice faz referência a seu tio
17 SANTOS, M.A., 2008. 40 DC-Brasília, 07/01/1960. Centro de ter sido cobrador de jardineira em Brasília
29 Esse telegrama aparece em vários Documentação e Informação. Câmara dos (p.67), e Toninho de Souza conta que uma
18 “Não há referências sobre a data precisa documentos, inclusive em depoimento Deputados. das brincadeiras na Vila Amaury era fazer
da inauguração da barragem. Alguns do cineasta Pedro Jorge de Castro no jardineira de lata (p.83).
trabalhadores indicam que a inauguração documentário “Paranoá, espelho do céu”, 41 DC-Brasília, 10/01/1960. Centro de
da usina só veio a acontecer no governo dirigido em 2015 por Marieta Cazarré. Documentação e Informação. Câmara dos 50 SAPS: Serviço de Alimentação da
João Goulart”. Fonseca, 2001. p.36. Deputados. Previdência Social.
30 Antônio Sousa, cit. Depoimento em
19 Celso de Martin Serqueira. Um 1974. 42 DC-Brasília, 09/01/1960. Centro de 51 Isaac Ribeiro era médico e
conservador de vanguarda. Diário Documentação e Informação. Câmara dos evangelizador batista na Cidade Livre,
Carioca.com.br. Site < http://www. 31 Arquivo Público do Distrito Federal, Deputados. atual Núcleo Bandeirante.
serqueira.com.br/dc/>. Acesso em Fundo Novacap, caixa 21.
19.09.2016. 43 DC-Brasília, 09/01/1960. Centro de
32 Depoimento em Miragens, 2004. Documentação e Informação. Câmara dos
20 DC-Brasília, Ano I, n° 41. 29/10/1959. Deputados.
Acervo do Instituto Histórico e Geográfico 33 Minas Tênis Clube, situado na orla
de Brasília. norte do Lago Paranoá.

21 Primeiro Presidente da Companhia 34 Entrevista em junho de 2006.


Urbanizadora da Nova Capital / NOVACAP,
1956. 35 Trata-se da eleição do sucessor do
Presidente Juscelino Kubitschek. Venceu
22 DC-Brasília, Ano I, n° 75. 09/12/1959. Jânio Quadros.
Acervo do Instituto Histórico e Geográfico
de Brasília.

106 107
Osanette enviou um documento em que relata
e “autoriza” a publicação de sua história.

Maria Osanette de Medeiros

Expulsos da seca de 1958 que assolou o Nordeste, meu pai, Go-


dofredo, pegou um pau de arara e veio para o Sul, como se dizia
no Nordeste, em busca de sobrevivência. Vários conterrâneos já
estavam em Goiás. Uns vinham e se instalavam e logo depois o pau
de arara voltava para buscar mais gente, que já ficava esperando
o sonhado dia. Triste partida e sonhado dia.
Logo que meu pai arranjou trabalho mandou buscar a família
– a mulher e os filhos. Mamãe com os seis filhos, o caçula recém
nascido, pegamos o pau de arara e rumamos ao Sul – exatamente
Goiás, 1958, uma viagem que durou oito dias.
Em 1959 meu pai vem para Brasília com a promessa de mandar
buscar a família assim que arranjasse emprego e tivesse condições
de acomodação. Foi assim que em 1959, final do ano, chegamos a
Brasília e fomos morar na Vila Amaury.
Ao chegar nos instalamos na casa de um conhecido dos colegas
do meu pai, enquanto faziam o barraco. Logo fizeram o barraco em
mutirão, com sobras de material de construção, alguns comprados,
como telhas (Eternit de papelão). O chão era batido. Quem podia
cimentava, que não era o nosso caso. Não tinha instalação elétrica.
Era luz de lamparina. Na época da chuva dava muita tempestade
e era comum destelhar os barracos. Lá iam os mutirões cobri-los.
Naquela época chovia muito em Brasília. As chuvas eram fortes
e perigosas, como diziam os adultos. Muita tempestade.

109
Tinha comércio: padaria, restaurante, loja de roupas, merce- Eu vi o lago nascer.
aria. Lembro-me que certa vez minha mãe estava sem dinheiro Surge o lago. Muitos comentários que a Vila seria invadida
e empenhou uma toalha de mesa, linda, em troca de alimentos, por um lago, o “Lago Paranoá”. A palavra era essa mesma: inva-
mas o dono da mercearia não aceitou e disse que ela poderia levar dida. Avistava-se longe uma mata, um córrego (acho que era um
o que precisasse porque era pessoa de confiança. Ela ficou muito córrego). Aos poucos essa água foi chegando, depois veio aos
sem jeito, mas levou assim mesmo. (Essa era uma prática comum muitos. A gente lavava roupa na beira do lago. Banho somente
da época, pelo menos no interior). ali na beirinha e acompanhada da mãe. A ordem era não nadar
Frequentemente fazíamos compra na Cidade Livre. Meu irmão no lago porque tinha muita cisterna e era perigoso, poderia
mais velho e eu pegávamos o expresso e íamos com uma lista que causar afogamento. Além das cisternas, os barracos. Os mais
minha mãe nos dava. Lembro-me bem das galinhas vivas, principal afoitos nadavam. Às vezes não acontecia nada; às vezes, muitas
motivo de irmos à Cidade Livre. vezes aconteceram mortes. Eu vi o corpo de um rapaz que se
Não havia escola. Minha mãe nas horas livres reunia a gente afogou. A cada corpo retirado era um choque, mas os afoitos
para ler alguma coisa, relembrar a tabuada, comigo e meu irmão não se continham.
mais velho, que já havíamos frequentado escola antes. Ela dizia À medida que as comportas do lago iam se abrindo, a Vila ia
que era para a gente não esquecer. Mandava também a gente sendo removida. Uma vez começada a remoção, as famílias já se
escrever, copiar textos de livros. Para os mais novos ela ensinava preparavam, ou seja, sabiam que chegaria a sua vez, não tinha
o alfabeto e os números. opção. Não me lembro de como chegou o aviso, mas as famílias
Eu trabalhei como balconista na padaria, mas minha mãe eram notificadas do dia da remoção. No dia marcado chegavam os
me tirou do trabalho porque eu frequentemente tinha dor de caminhões, levavam o que dava para levar, botavam a família em
cabeça, que só na idade adulta descobri tratar-se de sinusite e cima junto com a mudança e seguiam para Sobradinho. Lá existia
rinite. Depois fui trabalhar num restaurante, como garçonete, um loteamento destinado aos moradores da Vila.
mas também ela me tirou porque eu estava ficando mocinha e ela Meus pais não quiseram ir para Sobradinho e fomos, então,
achava que aquele não era um local adequado para mim. Eu era para um acampamento (R1 Estação de Tratamento de Água). Como
uma garçonete exemplar, todos queriam ser atendidos por mim conseguiram isso não me lembro. Provavelmente o caminhão nos
porque era ágil, simpática e educada, assim diziam os fregueses. levou até ao acampamento do R1.
(Isso certamente desagradou a minha mãe, que algumas vezes Ano de 1960 – inauguração de Brasília
ficava por perto observando). Também quando eu chegava em Muitos caminhões foram até a Vila buscar os candangos e seus
casa tinha que dar o relatório de tudo. familiares para a tão esperada inauguração de Brasília. Era noite

110 111
e lá estávamos naquela Praça - aquela quantidade de caminhões,
muita gente na praça, nós ficamos em cima do caminhão assistindo.
Só me lembro dos fogos. Lindos! Até hoje na minha memória.
Depois voltamos para o escuro da Vila e da casa. Da inauguração
não soubemos mais nada.
Nossa remoção me lembro quando ocorreu. Fomos para o
acampamento R1 deixando para trás o barraco e as lembranças de
um tempo da infância de que não me lembro, se um ano ou mais
ou menos. Só me lembro que foi um tempo de infância início da
adolescência, mas fortemente com sabor e marcas de infância.

Autorizo publicação deste texto.


Maria Osanette de Medeiros
rg 133.269 ssp-df

112

Você também pode gostar