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CONFERÊNCIA DE ABERTURA: QUARENTA ANOS

DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

Antonio Manoel dos Santos Silva (IBILCE-UNESP)

Quando fui convidado para proferir a conferência de abertura deste simpósio


acadêmico, relutei um pouco. O simpósio, de natureza dupla, serviria para se comemorar o
quadragésimo aniversário da criação do Programa de Pós-Graduação em Letras. Fui
convencido, aos poucos, pela Professora Gisele, ex-coordenadora do Programa, a aceitar o
convite e até a colaborar com a Comissão Organizadora do evento. Fiz o que me foi possível
e cheguei a imaginar um formato diferente daquele que se depreende pela leitura da
programação das atividades.
A ambivalência deste simpósio está na chamada dupla: “Políticas da literatura” e “40
anos do PPG-Letras”. Tentarei articular ambos os conteúdos, com ênfase no aniversário. Um
aniversário feliz? Acho que sim. Não tenho certeza, por causa do bordão: “A vida começa aos
quarenta”. Se a vida começa aos quarenta, o que foram os quarenta anos do PPG-Letras?
Uma gestação teratológica que dá à luz um ente novo? Que ente será esse? Mas também não
tenho certeza da qualidade feliz deste aniversário, por outra razão, ou seja, por causa da
leitura de um conto de autoria da Clarice Lispector, uma das autoras mais estudadas pelos
mestrandos e doutorandos em Letras deste programa que faz aniversário agora. Comento um
pouco essa narrativa, cujo conteúdo parece contrastar com o bordão.
Todos se lembram e os que não se lembram do conto é porque não o leram. Uma
senhora participa a contragosto da comemoração de seu aniversário de 89 anos,
comemoração organizada pela nora com quem vive, comemoração à qual comparecem,
também a contragosto as demais noras, acompanhadas dos maridos, que elas vigiam com
constrangimento e até rancor, e dos filhos, portanto netos da velha senhora. Ela é posta à
cabeceira da mesa enorme com os quitutes e docinhos de praxe e o enorme bolo. Chegam os
parentes aos poucos, e a velha em silêncio, as crianças inquietas começam sua algazarra. E a
velha em silêncio. Uma mosca voeja sobre todos, e a velha em silêncio. Chega a hora de
cantar os parabéns e cantam desencontrando as frases em inglês e em português. E a velha em
silêncio. Na hora de cortar o bolo, entregam a faca para a velha. A velha empunha a faca e
assassina o bolo, isto é, corta o bolo como se o assassinasse. Em silêncio. Este silêncio
contrasta com o mundo interior da velha. Destaco o trecho em que esse mundo revolto está
exposto:

Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca-cola, o bolo desabado, ela era a


mãe. A aniversariante piscou.
Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de
repente não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a
aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos. E como a
presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-os
piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu

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joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser
carne de seu coração, Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada. Cadê Rodrigo?
Rodrigo com olhar sonolento e intumescido naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria
um homem. Mas, piscando, ela olhava os outros, a aniversariante. Oh o desprezo pela vida
que falhava. Como?! Como tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos, com
braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um
bom homem a quem, obediente e independente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe
fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera
aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera
ela dar à luz aqueles seres risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito
vazio. Uns comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha.
Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força
insuspeita cuspiu no chão. (Laços de Família, 1960, p. 56).

Esse mundo interior agitado por rajadas de ódio e murado pelo silêncio da
aniversariante que mal suporta os cumprimentos pelo aniversário de oitenta e nove anos, sob
a falsa euforia circunstante que perdura até as despedidas e felicitações de fim de festa, se
descreve por meio da ironia que nega o adjetivo “feliz” aplicado ao “aniversário”. Lá fica a
velha sozinha, no apartamento de predinho sem elevador, fadado à demolição. E em silêncio:

Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas e contingências, estava a aniversariante


sentada à cabeceira da mesa, erecta, definitiva, maior do que ela mesma. Será que hoje não
vai ter jantar, meditava ela. A morte era seu mistério. (p. 63)

Volto ao adágio popular de que a vida começa aos quarenta para me consolar com o
fato de que nosso PPG em Letras não está comemorando 89 anos e que, neste caso, tudo
indica que a morte não é o mistério. Assim sendo quase se impõe tratar-se, esta
comemoração, de um aniversário feliz. Será mesmo? Falemos um pouco de sua história.
Essa história começa com a criação da UNESP em janeiro de 1976, que reverberou de
modo dramático em alguns Institutos Isolados de Ensino Superior sustentados pelo Estado de
São Paulo. Não nos escapou a muitos de nós (provavelmente a todos nós) que a nova
universidade foi uma imposição modernizadora feita pela cúpula governamental, de modo a
atender, de um lado, as tendências ideológicas de centralização do poder, considerada
necessária para o desenvolvimento regional politicamente controlado e, de outro, à eficiência
administrativa do Estado. Ato político, essa imposição de cima para baixo teve, como
consequências imediatas, a extinção de cursos existentes há anos em algumas instituições, o
deslocamento de outros, a criação de novos cursos. Tais reformas implicaram transferências
de docentes, remodelagens estruturais, tentativas de preservação, resistências às mudanças. A
grande área de Humanas foi, como sempre acontece, a mais atingida.
O atual IBILCE-UNESP denominava-se Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
São José do Rio Preto. Conhecida como FAFI, havia passado, desde sua fundação em 1957,
por conflitos que culminaram, em 1964, pela intervenção externa e atos violentos de prisão e
tortura de estudantes e docentes alguns dos quais expulsos ou exonerados. Essa intervenção
externa durou até 1967, mas suas consequências perduraram até depois de criada a UNESP,
sentindo-se muito na divisão que se estabeleceu no corpo docente entre os herdeiros da antiga
ordem e os novos professores que chegavam.

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Na FAFI se ministravam, antes da Fundação da UNESP, os Cursos de História
Natural, de Matemática, de Letras e de Pedagogia. No ato da criação da nova universidade foi
abolido o Curso de Pedagogia, alguns de cujos docentes foram aproveitados pela Faculdade
de Ciências de Marília, por sua vez, resultado da eliminação dos Cursos de Letras e de
História, da criação do curso de Biblioteconomia e da Biblioteca Central e da incorporação
do Curso de Filosofia, trazido de Assis.
Mantiveram-se em Rio Preto o Curso de Biologia, que houvera sido cogitado para ser
absorvido pelo Instituto de Biociências de Rio Claro, e o recém-criado Curso de Matemática.
O Curso de Letras esteve prestes a ser extinto, pois havia a pretensão, por parte da cúpula
administrativa, de ter apenas dois “polos de excelência” em Letras, um em Assis e outro em
Araraquara, que aproveitariam os docentes de Marília e de Franca, que não pudessem ser
dispensados ou demitidos, e, de igual modo, os docentes de São José do Rio Preto.
Em 1976, três excelentes professores do Curso de Letras aceitaram transferir-se para o
ILCSE de Araraquara: Professor Ignácio de Assis Silva, de Linguística, Professor Alceu Dias
Lima, de Latim, e Professora Maria Cecília Pires Barbosa de Lima, de Língua Inglesa.
Os professores de Letras que permaneceram em Rio Preto uniram-se no esforço de
municiar o então Diretor do IBILCE, Fahad Moisés Arid, de documentos e provas que
justificassem a manutenção do curso de Letras em Rio Preto. Coube à direção o papel
importante de compor os discursos de defesa com base em quatro argumentos: a qualificação
dos docentes, o impacto regional sobre a qualidade do ensino fundamental e médio, a
produção científica e as perspectivas que se abriam ou descortinavam com a manutenção do
curso dentro de uma nova universidade. O Diretor, graças a uma boa retórica, ancorada no
prestígio que obtivera junto ao primeiro reitor e aos colegas do Concelho Universitário,
obteve sucesso em seu objetivo. Começou então, o trabalho para a criação do Curso de Pós-
Graduação em Letras.
Com se podia prever, a passagem de Instituto Isolado para instituto universitário não
se concluiu com a nova denominação (IBILCE-UNESP) e sua presença nos documentos
legais. Houve, sim, um relativamente longo processo de adaptações ou mudanças em termos
de gestão e de organização administrativa, de ações políticas, de projetos acadêmicos,
inclusive o grande projeto, paulatinamente percebido, de construção da nova universidade.
Para meu controle pessoal, chamo a esse processo de “processo de transição”, que durou de
1976 a 1989.
Entre 1976 e 1978, alguns professores dos Departamentos de Letras Modernas e de
Letras Vernácula e Clássicas estiveram empenhados na realização de dois projetos: a criação
do Bacharelado em Tradução e a criação do Curso de Pós-Graduação em Letras. O primeiro
projeto teve como resultado o Curso de Tradutor (Bacharelado), que se instalaria em 1978. O
segundo, que hoje se conhece como Programa de Pós-Graduação em Letras, foi aprovado no
primeiro semestre de 1979, em nível de Mestrado.
Narrar que assim aconteceu é tirar da história o que aconteceu, como aconteceu, quais
os participantes reais, as vicissitudes, os trabalhos e os dias. Não posso esconder os nomes
das pessoas que agiram, que retroagiram, que enfrentaram o desânimo, inclusive os próprios
momentos de abatimento. Dou os nomes dos que se puseram à frente, movidos pela ideia de
que os dois cursos possibilitariam o fortalecimento da área de Letras no contexto da nova
Universidade. O chefe do Departamento de Letras Modernas, Valdemar Munhoz Rodrigues,
foi quem, ajudado por mim, exerceu a liderança que levou avante o trabalho para que fosse
aprovado o Bacharelado em Tradução. Este que vos fala foi quem, ajudado pelos professores

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Carlos Daghlian e Guillermo de la Cruz Coronado, com a colaboração do professor Alfredo
Leme Coelho de Carvalho, liderou a montagem do processo para a criação do Programa de
Pós-Graduação em Letras. Tanto num caso quanto noutro se verificaram oposições internas e
externas. Internas porque os cursos implicariam o aumento da carga horária didática dos
poucos professores, já que não se vislumbrava a possibilidade de abertura de vagas para
novas contratações. Externas, porque pairava no ar uma desconfiança sobre Letras de Rio
Preto ter competência para se definir como polo de formação de professores de ensino
superior e de pesquisadores. Prognósticos negativos a respeito de ambos os projetos se
espalhavam solertes entre nós mesmos.
As resistências no âmbito departamental foram vencidas pouco a pouco. As existentes
em nível da administração superior foram mais fortes e demoradas. Aprendemos, então, a nos
valer de um recurso importante, o chamado pedido de reconsideração diante dos pareceres
contrários (e foram vários) emitidos pelos órgãos colegiados centrais. A reconsideração
consistia de dois movimentos estratégicos: uma vigorosa contestação às decisões superiores
que nos garantisse perseverarmos em nossos objetivos e, ao mesmo tempo, uma aceitações de
diretrizes, mudanças ou correções que não afetassem o cerne de nossas propostas. Para
prosseguir, restrinjo-me ao Curso (hoje Programa) de Pós-Graduação em Letras.
Originalmente, o curso foi proposto com três áreas de concentração: Literatura
Brasileira, Teoria da Literatura, Estudos Anglo-Americanos. Elaborada e encaminhada em
1976, a proposta foi recusada, sob a alegação de que a Universidade tinha como política não
duplicar cursos de mesma natureza ou de natureza semelhante e também porque a massa
crítica não era condizente para um curso que se propunha a formação de pesquisadores e de
professores de ensino superior. Um tom de sarcasmo se podia observar no último parecer
negativo, pois se fixava em alguns títulos de livros e ensaios dos docentes, especialmente
daqueles que nos pareciam os mais qualificados. Nossa resposta foi, originalmente, mais
demolidora e também sarcástica por tocar em “reserva de mercado”, posse intelectual de
territórios críticos e até mesmo erros de português; os professores Alfredo Leme Coelho de
Carvalho e Carlos Daghlian vararam uma noite inteira para excluir, dessa resposta original,
aquilo que parecia ofensivo. Devolvida a contestação, foi aceita pela Câmara Central de Pós-
Graduação e Pesquisa. Desse modo o Conselho Universitário aprovou, no primeiro semestre
de 1979, o Curso com duas áreas de concentração: Teoria da Literatura e Literatura
Brasileira. Cabe-me agora lembrar, pela indicação de seus nomes, os professores que foram
os primeiros a constituir o corpo docente do curso: Alfredo Leme Coelho de Carvalho (que
foi o primeiro coordenador), Carlos Daghlian, Valdemar Munhoz Rodrigues e Guillermo de
la Cruz Coronado, todos do Departamento de Letras Modernas; Tieko Yamaguchi Miyazaki,
Salvatore d’Onofrio, Ermínio Rodrigues e Antonio Manoel dos Santos Silva, todos do
Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas. Dois outros professores formavam uma
espécie de reserva técnica, pois eram recém titulados ou estavam para receber o título de
doutor: Professora Maria José Castagnetti Sombra e Professor José Perozim. Nos anos
seguintes, até a criação do nível de Doutorado, outros professores foram incorporados. Mas
aqueles primeiros podem ser identificados como os fundadores do Programa.
O curso foi estruturado em duas áreas de concentração: Literatura Brasileira e Teoria
da Literatura. As disciplinas de uma área ajudavam a compor o domínio conexo da outra,
funcionando aí como optativas. As disciplinas de área de concentração se dividiam em
obrigatórias e eletivas. Fato relevante foi na fase inicial a ênfase no comparatismo tanto em
Teoria Literária quanto em Literatura Brasileira. Outro fato relevante, responsável, no meu

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entender, por muitas evasões, foi a exigência para se concluir o Mestrado (e, depois, o
Doutorado). Ela consistia na tradicional frequência de 75% às aulas, nota mínima 7 em cada
disciplina cursada, avaliada por meio de um trabalho escrito de crítica literária. A defesa da
dissertação só se realizava depois de um exame de qualificação, que consistia na avaliação de
um relatório circunstanciado sobre todas as disciplinas cursadas e, de novo, sobre os
trabalhos e sobre a qualidade das aulas ministradas. Não se apreciava a qualidade da
dissertação ou da tese escrita; desse modo o aluno ou a aluna chegava meio perdido para a
defesa. Esta se concluía com aprovação ou reprovação. A aprovação era por notas e menções:
7, 8, 9 e 10. As dissertações aprovadas com nota máxima podiam receber as menções “com
louvor” e “com sumo louvor”. As que obtinham nota 9, podiam receber a menção “com
louvor”. As demais notas, um “plenamente” inglório.
Não se impunha aos alunos de Mestrado e, depois, de Doutorado, tempo mínimo ou
máximo para conclusão com defesa. Como não havia essa imposição, alguns mestrados
demoraram entre seis e sete anos para serem concluídos. As limitações começaram a surgir
durante o governo Collor. Também não havia a preocupação com a determinação de linhas de
pesquisa em que se enquadrassem os projetos. Estes se pautavam pelas disciplinas oferecidas
e também pela metodologia estabelecida com clareza, pela discussão e esclarecimento dos
conceitos operatórios, exposição de problemas e hipóteses e sua devida articulação com os
objetivos a serem alcançados. Foi com essa estrutura que o PPG-Letras se desenvolveu. Não
se desenvolveu, porém, de forma isolada.
Desde 1979, o Curso se valeu de Seminários e Simpósios que organizou, com a visita
de professores de outras universidades e escritores de algum prestígio nacional, com o
estabelecimento de vínculos interinstitucionais, com a participação ativa na fundação da
ANPOLL, sendo um dos protagonistas na criação da ABRALIC. Para não me deter nas
generalizações, nomeio algumas dessas atividades que nos permitiram a abertura para fora de
nosso espaço por assim dizer doméstico.
Dentre os professores e professoras que nos visitaram na primeira década do curso
proferindo conferências, participando de colóquios, opinando sobre projetos conjuntos,
destacam-se Antonio Cândido, João Luiz Lafetá, João Alexandre Barbosa, Roberto Schwarz,
David Arrigucci Jr., Modesto Carone, Idelette Muzart Fonseca dos Santos, Maximilien
Laroche, Regina Zilberman, Ana Lúcia Gazolla e, mais à frente, Eduardo Coutinho, Letízia
Zini Antunes, Nelson Werneck Sodré e Antonio de Almeida Prado. Escritores foram diversos,
alguns impactantes como Paulo Colina, Oswaldo de Camargo, Gerardo Mello Mourão, Plínio
Marcos, Ignácio de Loyola Brandão e Roberto Gomes. No mesmo período, os professores do
Curso organizaram, a cada ano, o Seminário Regional de Literatura, que perduraria com
denominação e amplitude diferentes até hoje.
Alguns desses seminários tinham caráter temático, como, por exemplo, literatura para
crianças e jovens, criação e representação do negro na literatura brasileira, propostas para
uma associação brasileira de literatura comparada, a crítica sociológica. Para completar, o
curso chegou a fundar duas revistas para publicação de trabalhos de alunos e docentes:
Rhithmus e Stylos que duraram até seis números a primeira e, vinte números, a segunda.
Como já mencionei, o Curso de Pós-Graduação em Letras foi aprovado apenas para
oferta de Mestrado e foi assim que começou em 1979. A primeira defesa de dissertação
ocorreu no dia 02 de fevereiro de 1983: título dela “Crime e Castigo: uma abordagem
estrutural e semântica”. Seu autor, Elzo Aparecido Velani hoje um bem sucedido empresário
no ramo da indústria e comercialização de fitoterápicos. Foram 24 dissertações, passados os

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dez primeiros anos. No fim da primeira década, foi defendida a primeira tese de doutorado,
por Thomas Bonnici, que era professor na Universidade Estadual de Maringá. Esses dois
trabalhos tiveram como orientador o Professor Carlos Daghlian, aquele mesmo que
participou ativamente da criação do Programa.
De um modo geral, as linhas de pensamento crítico (análise e interpretação) que se
podem perceber na elaboração desses estudos se voltavam para temas e estruturações de
obras literárias ou conjunto de obras literárias, segundo os filtros da nova crítica, da
estilística, do estruturalismo e da estética filosófica. Desde esses primeiros anos, já surgiam
as abordagens comparatistas e a preferência, mas não exclusividade, por Machado de Assis,
Clarice Lispector e João Guimarães Rosa. A tendência comparatista era o binarismo autor/
autor ou obra/obra, enfatizando mais as influências do que a intertextualidade.
Depois de 1989, quando a Universidade estabeleceu as diretrizes políticas e
administrativas para o desenvolvimento e a consolidação de um sistema de pós-graduação, o
Curso de Pós-Graduação em Letras, hoje Programa de Pós-Graduação em Letras, teve um
crescimento exponencial em termos quantitativos, com uma organização estrita em termos de
linhas de pesquisa, um processo rigoroso de seleção de alunos e uma exigência imposta e até
coercitiva de produção de artigos, de teses e de dissertações, além da limitação do tempo.
Esse crescimento dá-se também em termos de incorporação ou apropriação de temas e
formas.
Assim, à medida que o tempo foi passando , o programa foi introduzindo entre seus
objetivos: a) os estudos sobre letras de música popular, tanto as dos ritmos socializados
quanto as individuais de aceitação popular; b) os estudos de correspondências ou homologias
entre a literatura (prosa de ficção ou poesia) e as diferentes artes, especialmente o cinema; c)
os estudos de fronteiras e de hibridismos; d) os que se voltam para as identidades das
minorias ou dos marginalizados; e) os que se voltam para teorias recentes ancoradas em
movimentos filosóficos; f) os que enfrentam as complexas relações entre ciência histórica e
narrativa de ficção; g) os que tratam do memorialismo e da metaficção historiográfica, etc.
Esta amplitude e variação de objetivos corresponderá ao aumento das perspectivas e dos
fundamentos analíticos e interpretativos. Os frankfurtianos, principalmente Walter Benjamin,
começam a frequentar cada vez mais as teses, do mesmo modo que Bakhtin, Linda Hutcheon,
Northrop Frye, os neo-marxistas ingleses e norte-americanos.
Se volto aos dez primeiros anos do Programa e passo a contar o número de docentes e
orientadores e o comparo com hoje, vejo uma diferença enorme; antes, eram oito, hoje são,
sem contar visitantes e convidados, 25 docentes. O número de dissertações e teses defendidas
na primeira década hoje se conta para um ano de atividades. Só para ilustrar: neste ano, foram
defendidos até agora 7 mestrados e 12 doutorados. No total, a produção de teses e
dissertações está perto de 700 obras. Esta quantidade enorme justifica que no dia de hoje
possamos comemorar os quarenta anos. Entretanto, e a qualidade dessa produção? Há algum
Rodrigo no meio de tantas obras? As circunstâncias permitem essa festa?
Geralmente as histórias que se voltam para o sucesso costumam velar, senão ocultar,
as dificuldades de percurso, os erros, as mortes, as deserções, as rixas e os rachas. Daqueles
oito professores, estão mortos Alfredo Leme Coelho de Carvalho, Carlos Daghlian,
Guillermo de la Cruz Coronado, Ermínio Rodrigues; gozam de justa e merecida
aposentadoria, os professores Valdemar Munhoz Rodrigues, Salvatore d’Onofrio (o ateu
mais cristão que conheço), Tieko Yamaguchi (que, me disseram, presta seus serviços em
universidade do Mato Grosso), e o Antonio Manoel, que agora importuna vocês com esta

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conferência que vai chegando, graças a Deus, ao final. Dos docentes que vieram após os
pioneiros, ainda vivem, aposentados, Rogério Elpídio Chociay, Romildo Antônio Sant’Anna,
Ismael Ângelo Cintra e Gentil Luiz de Faria (que colabora ativamente com o Programa) e o
Aguinaldo José Gonçalves. O poeta Marcos Siscar, que foi embora pra UNICAMP, ajudou e
muito a redimensionar o programa. Nem tudo foi paz entre eles ou entre eles e os demais que
compõem agora o corpo docente. Houve, sim, dissensões, atritos passageiros ou prolongados,
seja por razões pessoais seja por incompreensão das medidas que deveriam ser tomadas em
virtude de normas superiores. Tudo passou. E agora comemoramos os quarenta anos, um
tanto e bastante preocupados com as circunstâncias que nos envolvem; mas seria bom
lembrarmos que as circunstâncias adversas de hoje não são tão diferentes daquelas de nosso
começo, que politicamente era fim de um processo que parece voltar ao início agora.
Sobreviverá o Programa? Do ponto de vista de seu volume quantitativo, nossa resposta será
sim. E sua qualidade mostra saúde, ou força, e possibilidade de resistência? Nossa tendência
é dizer que não, conforme se pode depreender da leitura de um trecho de conto de Michilim
Filho, que narra um dia de vida de um professor que está sozinho em sua casa e se recusa a
atender qualquer visita:

Falta alguém no interior da casa. Todos debandaram e desde cedo me ocupo com fazer coisa
alguma. Quis ficar só e dei as desculpas de que me faltava reler uma tese e ordenar a minha
arguição. Menti, a arguição está pronta e serei o último a examinar, antes do orientador. Não
gosto desse orientador, não gosto do tema, não gosto da tese, que nem é tese. Sua única
originalidade é estar bem escrita, ou seja, sem erros de língua portuguesa. Falando a verdade,
o volume de quase quatrocentas páginas repete coisas conhecidas em estrutura de
dissertação. Amanhã, uma hora dessas teremos mais um doutor no Brasil, um doutor sem
tese. Acho que banalizei meu dia (A Invasão de Mariana, p. 28-29).

Está claro que tal desencanto, não cabe aqui, pois durante minha experiência como
examinador ou simplesmente leitor de teses de doutorado me deparei com verdadeiras teses.
Cito algumas delas: Modalizações de gaucherie em autores portugueses e brasileiros
contemporâneos (Olinda Cristina Martins Aleixo); Escritas indeterminadas e sujeitos
fragmentados em contos pós-modernos de João Gilberto Noll e Sam Shepard (Ricardo da
Silva Sobreira); O livro por trás dos livros: incorporação do objeto livro em Grande Sertão:
Veredas, Macunaíma e Memórias Póstumas de Brás Cubas (Daniela Soares Portela); O
percurso da indianidade na literatura brasileira: matizes da figuração (Luzia Aparecida
Oliva dos Santos); A face velada: Estudo sobre a poesia religiosa no Modernismo (Rosana
Rodrigues da Silva); e a excepcional tese Uma estética do paradoxo e outras drogas:
aspectos do modernismo no romance latino-americano do pós-boom (Wanderlan da Silva
Alves).
Também não cabe aqui o desânimo, bastando para isso se dar conta dos braços que o
Programa estendeu para a formação de docentes e pesquisadores de outras universidades, a
saber, a Universidade Católica de Goiás e a Universidade Federal de Rondônia. Nem
menciono a presença de doutores e doutoras aqui formados que trabalham hoje em
Universidades Federais e Estaduais do Paraná, de Minas Gerais, do Mato Grosso, do Mato
Grosso do Sul, da Paraíba, da Bahia, de Goiás e do Distrito Federal, afora os que labutam
como verdadeiros operários (e operários mal pagos) em instituições privadas.

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Este Programa de Pós-Graduação em Letras pode, portanto, comemorar sua
maturidade cantando um feliz aniversário e projetando um futuro ancorado na firmeza de seu
passado de resistência, de inventividade, de capacidade de adaptação às mudanças geradas
pelas cegueiras políticas e pelas crises econômicas. Pode hoje assoprar as quarentas velas,
sabendo que logo em seguida deverá acender novas luzes.

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