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PAULO MENDES CAMPOS

RUBEM BRAGA
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
FERNANDO SABINO
PARA GOSTAR DE LER
Volume 3

editora Ática

Entrevista com os autores São

Paulo, maio 78 P.G.L.- Por que você escolheu ser escritor? (Silvia

Cordeiro Mendonça-Escola Estadual de 1.0 e 2.0 Graus Prof.


Thomaz Galhardo-São Paulo) Paulo Mendes Campos-Não escolhi.
Quando dei por mim, no 1.º ano ginasial, estava a escrever um
romance" de aventuras.

Durante anos fui pensando: eu não sou um escritor, mas gosto de


escrever, e vou escrevendo. Rubem Braga-Não escolhi, aconteceu.
A lei do menor esforço, com certeza. Devo dizer que a minha
carreira não é propriamente de escritor, é de jornalista. Até hoje só

escrevi para a imprensa. Carlos Drummond de Andrade - Desde


garoto senti inclinação pelos livros e vontade de

escrever alguma coisa. Fernando Sabino-Quando eu era menino,


algumas histórias que eu não me satisfaziam: imaginava para elas
outros episódios e um fim diferente. Então passei a escrever
histórias como eu gostaria que elas fossem. P.G.L.- Em que você se

baseia para escrever suas histórias? (Sandra Alves Gomes - Escola

Estadual de 1.0 e 2.0 Graus Prof. Thomaz Galhardo-São Paulo) C.


D.

A. - Nas coisas que escrevo, nas que me contam, nas que os


jornais publicam e nas que imagino.

F. S.- Em casos acontecidos na vida real, comigo ou com outros,


mas modificados pela imaginação. Muitas vezes as histórias,
embora partindo da realidade, passam a ser aquilo que poderia ter
acontecido e não o que realmente aconteceu.

P. M. C.- Sempre nas coisas que aconteceram, dentro e fora de


mim. As coisas mais fantasiosas também de certo modo acontecem.
R.B. - nas coisas que acontecem comigo e em volta de mim. No que
vem no jornal, ou se diz no rádio e na TV. No sonho, na lembrança,
em nada... P.G.L. - se não fosse escritor, o que você desejaria ser?
(César Reinaldo e Silva -

Escola Estadual de 1o. e 2o. graus Prof. Thomaz Galhardo-São


Paulo) R.B. - Desenhista, pintor. É claro que acharia maravilhoso ser
músico, mas isso fica tão fora de meu campo que nem chego a
desejar. P. M. C.-

Pesquisador, pesquisador de qualquer coisa viva: Medicina,


Botânica.

Tenho um gosto paciente pela procura, pela comparação, pela

classificação, pela pequena vitória e pelo fracasso instrutivo.

F. S.- Gostaria de ser músico de jazz. Pelo fato de ser uma criação
coletiva, à base da improvisação, o jazz sempre exerceu sobre mim
uma atração especial. E o instrumento para o qual eu teria mais jeito
é a bateria. C. D. A.- Gostaria de ser caricaturista. P.G.L-Como foi a
Sua infância? (Miriam Terezinha Camarotto-Escola Estadual de 1.0
Grau de Vila Izabel - Osasco) P. M. C.- Boa: pais, irmãos, comida,
escola, futebol, leituras. E meio perigosa: gostava das

brincadeiras arriscadas. F. S.- Embora fazendo parte de uma familia


de seis irmãos e muito unida, contando sempre com a
compreensão e carinho de meus pais, o fato de eu ser o caçula fez
com que na minha infância as distrações em geral fossem

solitárias. R. B.- Boa, normal. Sem luxos nem necessidades, sem


dengues nem rigor. Numa cidade do interior, passando as férias de
verão na praia, e as de junho numa

fazenda. C. D. A.- Foi a infância passada num meio entre cidade


pequena e fazenda, no começo do século. Tive coisas boas, ou que

ficaram boas na lembrança, porque eu não soube curti-las bastante,


na ocasião. Mas agora eu curto. P.G.L.- Na escola, você era bom
aluno?

(Miriam Terezinha Camarotto-Escola Estadual de 1.0 Grau de Vila


Izabel-Osasco) F. S.- Por espirito competitivo, sempre procurei ser
dos melhores da classe, e em geral conseguia estar entre os 6

primeiros. Menos em Matemática, para a qual nunca tive jeito e que


por pouco não me proporcionou a única reprovaçao.

R. B. - Era bem comportado, mas não muito aplicado. Distraído


demais.

Duas vezes precisei de fazer exames de segunda época para poder


passar de ano.

C. D. A.- Na escola primária, acho que dei bem o recado. Meu curso
médio foi irregular.

P. M. C. - Redação: bom. Gramática: ruim. Línguas: regular.


Matemática: péssimo. Ciências: muito bom. Comportamento: abaixo
do sofrível.

P.G.L.-Quando você estava na escola já escrevia melhor que seus


colegas? (Stela Narchi-Colégio Rainha da Paz-São Paulo) R. B.-
Sim.
Mais de uma vez um professor desconfiou de que alguém escrevia
para mim, ou que eu copiava a composição de algum livro. P.M.C.

-Já. F. S.- Na escola revelei inclinação para o estudo do português e


as provas de redação. Não sei se escrevia melhor que meus

colegas, mas gostava de escrever histórias para o jornalzinho do


colégio. C. D. A. - Não sei. Entrevista com os escritores - 7

P.G.L.- Seus professores o ajudaram para que você se tornasse


escritor?

Como? (Paulo Rogério Menna-Escola Estadual de 1,0 Grau Prof.


José

Liberatti - Osasco) C. D. A.- Minhas professoras do primário

ajudaram, me estimulando. R. B.- Sim, elogiando o que eu escrevia-


e mesmo desconfiando que não fosse eu. Pena que nunca tive um
bom professor de literatura. F. S. - Alguns diziam que eu tinha

jeito para escrever, mas não passavam disso. Houve um a quem dei
meus contos para ler e que teve o bom gosto de gúardá-los sem
dizer o que achava; quando publiquei meu primeiro livro, anos mais
tarde, me disse que os contos do livro eram muito melhores do que
os que ele havia lido antes. P. M. C.- No terceiro ano de ginásio, o
professor Gilberto Luís de Barros escreveu no meu

caderno que eu ainda seria um escritor: isso me ajudou muito.


P.G.L.-

Você escreve de novo, corrige muito seus trabalhos? (Heloísa


RamalhoColégio Rainha da Paz-São Paulo) C. D. A.- Corrijo muito.
F. S.- Para mim, o ato de escrever é muito difícil e penoso, tenho
sempre de corrigir e reescrever várias vezes. Basta dizer, como
exemplo, que escrevi 1100 páginas datilografadas para fazer um
romance no qual aproveitei pouco mais de
300. P. M. C.- Quando escrevo sob encomenda, não Quando
escrevo para mim mesmo, costumo ficar corrigindo dias e dias-uma
curtiçao. Corrigir é estar vivo. 8 R. B.- A vida inteira escrevi para a
imprensa, e nunca houve muito tempo para corrigir. Mas corrigir
sempre melhora. E corrigir quer dizer mudar uma palavra ou outra, e
cortar muitas. P.G.L-Você gosta de futebol? Para que time você
torce? (Armando de Souza Pinheiro Júnior-Colégio Rainha da Paz-
São Paulo) R. B.- Fui mau jogador,

enquanto meu irmão Newton chegou a jogar no segundo time do

América, de Belo Horizonte, e depois no primeiro do Estrela do


Norte, em Cachoeiro. Sou Flamengo. P. M. C.- Amo o

futebol desde menino. Minha paixão era jogar futebol. Fui um


medíocre aplicado, cheguei a quase craque. Depois de velho, voltei
a jogar futebol. Sonho ainda com futebol. Ainda tenho vontade de
jogar

futebol. Sou bota foguense no Rio e atleticano em Minas. C. D.

A.- Não entendo nada de futebol, mas tenho simpatia pelo Vasco da
Gama, no Rio; pelo Cruzeiro, em Belo Horizonte, e pelo Corinthians,
em São Paulo. F. S. - Gosto de futebol, pela mesma razão que gosto
de jazz: porque é um ato de criação coletiva no qual entra muito de

improvisação. Como todo mineiro residente no Rio de Janeiro, sou


um eterno sof redor pelo Botafogo. P.G.L.- Além de escrever, o que
você gosta de fazer? (Elza Maria Abrantes-Escola Estadual de 1.o
Grau de Vila Izabel - Osasco) F. S.- Escrever, para mim, em geral é
uma

obrigação, da qual tiro o meu sustento. O que eu gosto mesmo é de


já ter escrito. E de ler, ouvir música de jazz, ficar vadiando pelo
bairro onde moro e principalmente de conversar fiado com meus
amigos. P. M. C.- De ler poesia e ensaio e de reler alguns romances.
De comer bacalhau. De beber vinho no frio. De ver desenhos
antigos. De ouvir samba de morro. De viajar de trem e de avião. De
conversar com amigos. De ficar olhando as

árvores. De não fazer nada. R. B.- Viajar, pescar, ler, bater papo, ver
gente bonita e inteligente, andar à toa, encontrar velhos amigos.
Gosto de muita coisa. C. D. A.- Gosto de andar a pé, de comer
chocolate, de folhear livros ilustrados, de cultivar meus

amigos, de decifrar o jogo dos oito erros, de brincar com crianças


pequenas, de desenhar (mal), de ver filmes na televisão depois de
meia-noite. 11 Confusões Assalto (C.D.A.) - 12 O homem nu (F.S.) -

15 Salvo pelo Flamengo (P.M.C.) - 18 Nascer no Cairo, ser fêmea


de cupim (R.B.) - 22 25 Discussões e soluções Negócios de ocasião
(F.S.)

- 26 Marido e mulher (P.M.C.) - 28 Recenseamento (R.B.) - 32

Esparadrapo (C.D.A.) - 34 37 Compreensões e incompreensões O

canarinho (P.M.C.) - 38 "Como se fora um coração postiço..." (R.B.)


-

41 A cabra e Francisco (C.D.A.) - 44 O agrônomo suiço (F.S.) - 47

51 Ações e intenções Meu ideal seria escrever... (R.B.) - 52 A


menininha e o gerente (C.D.A.) - 54 Na escuridão miserável (F.S.) -

57 Gente bpoa e gente inútil (P.M.C.) - 60 63 Solicitações

Telefone (C.D.A.) - 64 Menino de cidade (P.M.C.) - 67 A minha glória


literária (R.B.) - 70 Cem cruzeiros a mais (F.S.) - 73 11

Confusões Assalto (C.D.A.) O homem nu (F.S.) Salvo pelo

Flamengo (P.M.C.) Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim (R.B.)


Assalto Na feira, a gorda senhora protestou a altos brados contra o
preço do chuchu: - Isto é um assalto! Houve um rebuliço. Os que
estavam perto fugiram. Alguém, correndo, foi chamar o guarda.
Um minuto depois, a rua inteira, atravancada, mas provida de

admirável serviço de comunicação espontânea, sabia que se estava

perpetrando um assalto ao banco. Mas que banco? Havia banco


naquela rua? Evidente que sim, pois do contrário como poderia ser

assaltado? - Um assalto! Um assalto!- a senhora continuava a


exclamar, e quem não tinha escutado escutou, multiplicando a
notícia.

Aquela voz subindo do mar de barracas Confusões. 13 e legumes


era como a própria sirena policial, documentando, por seu uivo, a
ocorrência grave, que fatalmente se estaria consumando ali, na
claridade do dia, sem que ninguém pudesse evitá-la. Moleques de
carrinho

corriam em todas as direções, atropelando-se uns aos

outros. Queriam salvar as mercadorias que transportavam. Não era


o instinto de propriedade que os impelia. Sentiam-se responsáveis
pelo transporte. E no atropelo da fuga, pacotes rasgavam-se,
melancias rolavam, tomates esborrachavam-se no asfalto. Se a fruta
cai no chão, já não é de ninguém; é de qualquer um, inclusive do
transportador. Em

ocasiões de assalto, quem é que vai reclamar uma penca de


bananas meio amassadas? - Olha o assalto! Tem um assalto ali
adiante!

O ônibus na rua transversal parou para assuntar. Passageiros

ergueram-se, puseram o nariz para fora. Não se via nada. O


motorista desceu, desceu o trocador, um passageiro advertiu: - No
que você vai a fim de ver o assalto, eles assaltam sua caixa. Ele
nem escutou. Então os passageiros também acharam de bom alvitre
abandonar o veículo, na ânsia de saber, que vem movendo o
homem, desde a idade da pedra até a idade do módulo lunar.
Outros ônibus

pararam, a rua entupiu. - Melhor. Todas as ruas estão

bloqueadas. Assim eles não podem dar no pé. - É uma mulher que
chefia o bando! - Já sei. A tal dondoca loura. - A loura assalta em
São Paulo. Aqui é a morena. - Uma gorda. Está de metralhadora. Eu
vi. - Minha Nossa Senhora, o mundo está virado!

- Vai ver que está caçando é marido. Não brinca numa hora

dessas. Olha aí sangue escorrendo! 14 - Sangue nada, tomate.

Na confusão, circularam notícias diversas. O assalto fora a uma

joalheria, as vitrinas tinham sido esmigalhadas a bala. E havia jóias


pelo chão, braceletes, relógios. O que os bandidos não levaram, na
pressa, era agora objeto de saque popular. Morreram no mínimo
duas pessoas, e três estavam gravemente feridas. Barracas
derrubadas assinalavam o ímpeto da convulsão coletiva. Era preciso
abrir caminho a todo custo. No rumo do assalto, para ver, e no rumo
contrário, para escapar. Os grupos divergentes chocavam-se, e às
vezes trocavam de

direção: quem fugia dava marcha à ré, quem queria espiar era

arrastado pela massa oposta. Os edifícios de apartamentos tinham


fechado suas portas, logo que o primeiro foi invadido por pessoas
que pretendiam, ao mesmo tempo, salvar o pêlo e contemplar lá de
cima.

Janelas e balcões apinhados de moradores, que gritavam: - Pega!

Pega! Correu pra lá! - Olha ela ali! - Eles entraram na kombi ali
adiante! - É um mascarado! Não, são dois mascarados!

Ouviu-se nitidamente o pipocar de uma metralhadora, a pequena


distância. Foi um deitar-no-chão geral, e como não havia espaço,
uns caíam por cima de outros. Cessou o ruído. Voltou. Que assalto
era esse, dilatado no tempo, repetido, confuso? - Olha o diabo
daquele escurinho tocando matraca! E a gente com dor-de-barriga,
pensando que era metralhadora! Caíram em cima do garoto, que
soverteu na multidão. A senhora gorda apareceu, muito vermelha,
protestando sempre:

- É um assalto! Chuchu por aquele preço é um verdadeiro assalto!

(C.D.A.) Confusões-15 O homem nu Ao acordar, disse para a

mulher: - Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a

prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas


acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a
nenhum.

- Explique isso ao homem-ponderou a mulher. - Não gosto dessas


coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as
minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui
dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém.
Deixa ele bater até cansar-amanhã eu pago. Pouco depois, tendo
despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas
a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer
um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para
apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com
cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois
passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do
parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal
seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se
com estrondo, impulsionada pelo vento.

Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de

tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá


dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas
ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito
da televisão.

Bateu com o nó dos dedos: 16 - Maria! Abre aí, Maria. Sou eu-
chamou, em voz baixa. Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá
dentro. Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-
se, viu o ponteiro subir lentamente os andares. Desta vez, era o
homem da televisão! Não era. Refugiado no lanço de escada entre
os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta
de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o
embrulho de pão: - Maria, por favor! Sou eu! Desta vez não teve
tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos
lá de baixo.. . Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma

pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um


ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se
aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador,
apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a
empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um
lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa
com o embrulho do pão. Mas eis que a porta interna do elevador se
fecha e ele começa a descer. - Ah, isso é que não!- fez o homem nu,
sobressaltado. E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do
elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum
vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo
levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a
viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se

naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror.

- Isso é que não-repetiu, furioso. Agarrou-se à porta do

elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar.

Respirou fundo, Confusões - 17 fechando os olhos, para ter a


momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o
botão do seu
andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais
nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou
descer?

Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta,

enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu. -

Maria! Abre esta porta!- gritava, desta vez esmurrando a porta, já


sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.

Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando


inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do
apartamento vizinho: - Bom-dia, minha senhora-disse ele, confuso. -

Imagine que eu... A velha, estarrecida, atirou os braços para cima,


soltou um grito: - Valha-me Deus! O padeiro está nu!

E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha: - Tem um homem


pelado aqui na porta! Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver
o que se passava: - É um tarado! - Olha, que horror! - Não olha não!
Já pra dentro, minha filha!

Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que


era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem
nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a
calma lá fora, bateram na porta. - Deve ser a polícia-disse ele, ainda
ofegante, indo abrir. Não era: era o cobrador da televisão. (F.

S.) 18 Salvo pelo Flamengo Desde garotinho que não sou flamengo,
mas tenho pelo clube da Gávea uma dívida séria, que torno pública
neste escrito. Em 1956, passei uma semana em Estocolmo,
hospedado em um hotel chamado Aston. Era primavera, pelo menos
teoricamente, havia um congresso internacional na cidade, os hotéis
estavam lotados,

criando contratempos para turistas do interior ou estrangeiros. A


recepção do Aston, por exemplo, vivia sempre cheia de gente implo

Confusões. 19 rando por um quarto ou discutindo a respeito de uma

reserva feita por telegrama ou telefone. Estava há dois ou três dias


na cidade, quando me pediram para receber um brasileiro e
encaminhá-lo ao hotel, onde lhe fora reservado de fato um
apartamento.

Era uma hora da madrugada quando entramos no hotel e me


encaminhei até o empregado do balcão, dando-lhe o nome do meu
amigo e lembrando-lhe a reserva. O funcionário, homem de uns
sessenta anos e de uma honesta cara escandinava, tomou uma
atitude estranha e difusa, que a

princípio me surpreendeu e ia acabando por me indignar: ele não

confirmava a existência da reserva, nem deixava de confirmar.


Como começasse a protestar, vi que seu rosto tomava uma
expressão aflita; eu entendendo cada vez menos. Quando passei a
exigir o apartamento com alguma energia, o homem, trêmulo,
nervoso, pediu-me desculpas e trouxe afinal a ficha de identificação.
Foi aí que vi levantar-se da penumbra de uma saleta contígua o
gigante. Se o leitor conhece um homem forte, mas muito forte
mesmo, imagine uma pessoa duas vezes mais forte, e terá uma
vaga idéia desse gigante que veio andando até nós, botando ódio
pelos olhos e

espetacularmente bêbado. O monstro passou por mim com


desprezo e, agarrando o empregado pela gola do uniforme, entrou a
sacudi-lo e in-sultá-lo em sueco. Às vezes, éramos arrolados nessa
invectiva, pois o gigante nos apontava enquanto dizia coisas. O
empregado, demonstrando possuir um bom instinto de conservação,
deixava-se sacolejar à vontade.

Rosnando assustadoramente, o ciclope foi sentar-se de novo na


saleta, onde só então dei pela presença de outro sujeito, também
bêbado, mas sinistramente silencioso. É hoje, pensei. Sair do meu

Brasilzinho tão bom, fazer uma viagem imensa, para ser trucidado
sem explicação por um bêbado. O fato de ser na Suécia, onde
arbitrários atos 20 de violência não são comuns, ainda tornava mais
absurdo, um absurdo existencialista, o meu triste fim. Indaguei do
empregado o que se passava. Ficou mudo. Insisti na pergunta, e
ele, sussurrando desamparadamente, explicou-me que o gigante
estava a pensar: primeiro, que não conseguira vaga no hotel por ser
sueco e estar

embriagado; segundo, que nós conseguíramos por ser americanos,


norte-americanos. Ora, se meu amigo de fato era meio ruivo, seu
jeitão era mineiro; quanto a mim, se fosse americano, só poderia ser
filho de portugueses. Por outro lado, o meu inglês amarrado não
deixava a menor dúvida sobre a questão de ser ou não ser
americano. Só mesmo um sueco bêbado em uma madrugada de
neve e vento iria supor que fôssemos

americanos. Mas agora era o próprio gigante que bradava para nós
com sarcasmo e ira: - American! American! Fiquei um pouco mais
esperançoso, acreditando que ele falasse inglês, e disse-lhe,
exagerando minha alegria e meu orgulho por isso, que não éramos

americanos coisa nenhuma, éramos brasileiros. Não entendeu ou


talvez pensou que estivéssemos covardemente a renegar a nossa
pátria, voltando a vociferar, em um esforço lingüístico que contraía
todos os músculos de seu rosto: - American! Dollar! No like! As
palavras em si significavam pouco, mas a maneira de exprimi-las
era de uma eloqüência que teria destruído Catilina muito mais

depressa que os discursos de Cícero. Durante alguns minutos

mantivemos os dois uma polêmica oratória nestes termos: -

American! - No, brazilian! - American! - Brazilian!


Confusões - 21 Essa versátil discussão ia levar-me ao abismo,
quando de súbito me pareceu que a palavra "brazilian" havia
penetrado por fim em sua testa granítica. Descontraindo os
músculos, o gigante me perguntou: - Brazil?! No american? Brazil?
Não tinha

certeza se ele estava me gozando, mas sua expressão era tão

estranhamente deslumbrada e infantil, que afirmei cheio de

entusiasmo:- Yes, Brazil! Ele se levantou, cambaleou,

aproximou-se, apontou meu amigo: - Brazil?- Brazii, Brazil.

Veio chegando, sorrindo, em pleno estado de graça, e gritou com


alma, como se saudasse o nascimento de um mundo novo: -
Flamengo!!

Flamengo!! Imediatamente, o gigante entrou em transe e

começou a fazer problemáticas firulas com uma bola imaginária,


mas dando a entender cabalmente o quanto ele admirava (admirava
é pouco: o quanto ele amava) o malabarismo dos nossos jogadores.
O gigante se desencantara, virando menino. A certa altura, depois
de fazer um

passe de letra, parou e confessou-me com um orgulho caloroso:

- 1 Flamengo! 1 Rubens! Ele não era sueco, não era gigante, não
era bêbado, não era um ex-campeão de hóquei (conforme soube
depois), era Flamengo, era Rubens. Depois cutucou-me o peito,
tomado de perigosa dúvida: - You! Flamengo? Que o Botafogo me
perdoe, mas era um caso de vida ou de morte, e também gritei
descaradamente:- Flamengo!

Yes! Flamengo! The greatest one! (P. M. C.) 22 Nascer no Cairo, ser
fêmea de cupim Conhece o vocábulo escardichar? Qual o feminino
de cupim? Qual o antônimo de póstumo? Como se chama o natural
do Cairo?

O leitor que responder "não sei" a todas estas perguntas não


passará provavelmente em nenhuma prova de Português de
nenhum concurso

oficial. Mas, se isso pode Confusões . 23 servir de algum consolo à


sua ignorância, receberá um abraço de felicitações deste modesto
cronista, seu semelhante e seu irmão. Porque a verdade é que eu
também não sei. Você dirá, meu caro professor de Português, que
eu não deveria confessar isso; que é uma vergonha para mim, que
vivo de escrever, não conhecer o meu instrumento de trabalho, que
é a língua.

Concordo. Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas


tocam piano de ouvido. De vez em quando um leitor culto se irrita
comigo e me manda um recorte de crônica anotado, apontando
erros de Português. Um deles chegou a me passar um telegrama,
felicitando-me porque não encontrara, na minha crônica daquele dia,
um só erro de Português; acrescentava que eu produzira uma
"pagina de bom vernáculo, exemplar".

Tive vontade de responder: "Mera coincidência"- mas não o fiz para


não entristecer o homem. Espero que uma velhice tranqüila-no

hospital ou na cadeia, com seus longos ócios-me permita um dia


estudar com toda calma a nossa língua, e me penitenciar dos
abusos que tenho praticado contra a sua pulcritude. (Sabem qual o
superlativo de

pulcro? Isto eu sei por acaso: pulquérrimo! Mas não é desanimador


saber uma coisa dessas? Que me aconteceria se eu dissesse a
uma bela dama: a senhora é pulquérrima? Eu poderia me queixar se
o seu marido me descesse a mão?) Alguém já me escreveu também
- que eu sou um escoteiro ao contrário. "Cada dia você parece que
temde praticar a sua má ação - contra a língua." Mas acho que iSSo
é exagero. Como também é exagero saber o que quer dizer

escardichar. Já estou mais perto dos cinqüenta que dos qua-24


renta; vivo de meu trabalho quase sempre honrado, gozo de boa
saúde e estou até gordo demais, pensando em meter um regime no
organismo - e nunca soube o que fosse escardichar. Espero que
nunca, na minha vida, tenha escardichado ninguém; se o fiz, mereço
desculpas, pois nunca tive essa intenção. Vários problemas e
algumas mulheres já me tiraram o sono, mas não o feminino de
cupim. Morrerei sem saber isso. E o pior é que não quero saber;
nego-me terminantemente a saber, e, se o senhor é um desses
cavalheiros que sabem qual é o feminino de cupim, tenha a
bondade de não me cumprimentar. Por que exigir essas coisas dos
candidatos aos nossos cargos públicos? Por que fazer do estudo da
língua portuguesa uma série de alçapões e adivinhas, como essas
histórias que uma pessoa conta para "pegar" as outras? O habitante
do Cairo pode ser cairense, cairei, caireta, cairota ou cairiri-e a única
utilidade de saber qual a palavra certa será para decifrar um
problema de palavras cruzadas. Vocês não acham que nossos

funcionários públicos já gastam uma parte excessiva do expediente

matando palavras cruzadas? No fundo o que esse tipo de gramático


deseja é tornar a língua portuguesa odiosa; não alguma coisa
através da qual as pessoas se entendam, mas um instrumento de
suplício e de opressão que ele, gramático, aplica sobre nós, os
ignaros.

Mas a mim é que não me escardicham assim, sem mais nem


menos: não sou fêmea de cupim nem antônimo do póstumo
nenhum; e sou cachoeirense, de Cachoeiro, honradamente-de
Cachoeiro de Itapemirim!

(R. B.) 25 Discussões e soluções Negócios de ocasião (F.S.) Marido


e mulher (P.M.C.) Recenseamento (R.B.) Esparadrapo (C.D.A.) 26
Negócio de ocasião Quando mandou colocar mármore no chão de
seu
apartamento, o vizinho de baixo veio reclamar: às oito horas da

manhã os operários começavam a quebrar mármore mesmo em


cima de sua cabeça. Durma-se com um barulho desses! - Está bem,
está bem-concordou ele, acalmando o vizinho:- Vou mandar
começar mais tarde.

Mandou que os operários só começassem a trabalhar a partir das


nove horas. Dois dias depois tornava o vizinho: - Assim não é

possível. Já reclamei, o senhor prometeu, e o barulho continua!

- Mas é só por uns dias-argumentou ele:- O senhor vai ter

paciência... E mandou que os trabalhos só se iniciassem a partir de


dez horas. Com isso pensava haver contentado o vizinho. Para
surpresa sua, todavia, o homem voltou ainda para protestar e desta
vez furibundo, armado de revólver: - Ou o senhor pára com esse
barulho ou eu faço um estrago louco. Olhou espantado para a arma
e, cordato, convidou-o a entrar: Discussões e Soluções-27 - Não
precisa se exaltar, que diabo. Vamos resolver a coisa como gente

civilizada. Eu disse que era só por uns dias... Se o senhor quiser


que eu pare, eu paro. Cuidado com esse negócio, costuma disparar.
Qual é o calibre? - Trinta e dois. - Prefiro trinta e oito. Mas esse
parece ser muito bom... Que marca? - Smith-Wesson.

- Ah! Então deve ser muito bom. Cabo de madrepérola.. . Quanto o


senhor pagou por ele? - Cinqüenta. - Não foi caro. Sempre tive
vontade de ter um revólver desses. Quem sabe o senhor me
venderia?

- Não vim aqui para vender revólver-explodiu o outro - mas para lhe
avisar que esse barulho... - Não haverá mais barulho, esteja
tranqüilo. Agora, quanto ao revólver... Quer vender? - O

senhor está brincando... - Não estou não: pela vida de minha


mãezinha. Quer saber de uma coisa? Dou cem por ele. Sempre tive
vontade. . . Vamos, aceite! Cem, ali na bucha, pago na hora. O

homem começou a titubear. Olhou o revólver, pensativo: cem era


um bom preço. Já pensara mesmo em vendê-lo... Olhou o dono da
casa, tornou a olhar o revólver: - Toma: é seu-decidiu-se. Antes de
entrar na posse da arma, o comprador foi lá dentro buscar o

dinheiro e estendeu-o ao vizinho. Depois empunhou o revólver e

chegou-lhe aos peitos: - Bem, agora ponha-se daqui para fora. E

fique sabendo que eu faço o barulho que quiser e quando quiser,

entendeu? Venha aqui outra vez reclamar e vai ver quem é que
acaba fazendo um estrago louco. (F.S.) 28 Marido e mulher -
Arnaldo, você é o fino: aqui em casa não tem uma gota d'água há
cinco dias e você está uma pilha. Acho perfeitamente normal, meu
bem, que você estej a nervoso. . Mas você está com raiva é de mim,
você está agindo como se fosse eu a responsável pelo fato de não
ter água no Rio de Janeiro.

Discussões e Soluções - 29 - Teresa, vou ser franco com você: você


é a responsável pelo fato de não ter água no Rio de Janeiro, tá
bem? - Não morei na piada. - Não tem piada nenhuma.

Estou falando português claro: você é a culpada pela falta d'água


aqui em casa. - Essa, não! - Mas é claro que você é a

culpada: toda mulher é culpada quando falta água em casa. - Essa é


a maior! - Pois fique sabendo dum princípio banal: a mulher é a
responsável pelas coisas que acontecem dentro de casa. Ela é a
secretária administrativa, a gerente do lar! -

Mas o caso é que a água não acontece dentro de casa: a água vem
lá de fora dentro dum cano. tá? - Teresa: quando um marido chega e
as torneiras estão secas, a culpa é exclusivamente da mulher. Você
não tenha sobre isso a menor dúvida. - Mas isso é uma injustiça que
clama aos céus: o que que eu posso fazer? - Não sei: o problema é
seu. - Você hoje está muito engraçadinho. -

Escute, minha filha: a humanidade é dividida em homens e


mulheres, é ou não é? Tanto numa tribo do Araguaia como no Rio,
os homens cuidam dumas tantas coisas, as mulheres de outras. Na
civilização

cristã, a mulher toma conta da casa, o homem em geral trabalha


fora.

Estou certo ou errado? Logo... - Mas espera ai... -

Logo, as mulheres são as responsáveis pela falta d'água. -

Francamente, você como sociólogo não fazia nem para o café. Que
culpa tenho eu, a pobre Teresa, pelo fato dos prefeitos do Rio terem

politicado o tempo todo? - Que culpa? Uma parte da culpa, claro.

- Que parte? 30 - A parte que afeta a vida de casa. Os homens têm


a outra parte. Morou? Falta d'água: culpa das mulheres; bagunça
dos transportes: culpa dos homens. - Estou começando a entender
seu ponto de vista. - Não é ponto de vista nenhum: é um fato

trivial. - Só não admito que as mulheres sejam culpadas pela falta


d'água. Eu não entendo de água! Como é que eu, tomando conta de
casa o dia inteiro, vou saber se o Governo fez ou não fez a adutora
do Sandu? - Do Guandu... Já disse que o problema é seu. Por que
você não saiu em praça pública, não protestou, não botou fogo na

Prefeitura ou no prefeito? O que você devia ter feito eu não sei.

- Venha cá: não seria mais lógico que os homens ficassem

encarregados dessa parte do abastecimento d'água? O que eu não


me conformo é com a água... - Seria se os homens é que ficassem
em casa. Aliás, nisso você tem inteira razão: sempre achei que os
homens deviam tomar conta de casa e que as mulheres deveriam
sair para

trabalhar. Perfeito. - Eu não estou dizendo isto... -

Mas eu estou. Não estou brincando, não. A mulher tem muito mais

capacidade de trabalhar do que o homem. Sempre admirei a ordem


e a eficiência com que trabalham. Mulher exatamente só não tem
vocação é para tomar conta de casa. São umas caóticas totais.
Você vê um homem no escritório ou na repartição: trabalha
chateado, reclamando, esquece as coisas, confunde tudo. E vê a
mulher: mulher trabalha de bom humor!

Agora, voce quer ver um homem feliz: manda, por exemplo, ele
organizar um almoço. Como é que ele faz tudo direitinho, muito
satisfeito, não se esquece de nada, sai tudo uma beleza! Olhe aqui:
um homem dentro duma cozinha é a imagem da felicidade! Mas a
mulher vai para a cozinha como se fosse para o inferno. Discussões
e Soluções-31 - Você está ficando biruta. - Biruta é a minha querida
sogra. Estou

dizendo uma coisa simples, uma coisa que a gente pode ver a toda
hora.

Primeiro: mulher se realiza no emprego; o homem uiva para ganhar


a vida.

Segundo: o homem é um frustrado porque gosta e tem jeito para


cuidar de casa; mulher não sabe cuidar de casa, mulher detesta
cuidar de casa!

Isso ninguém me tira da cabeça. - Pois para mim esta sua idéia é
novidade. - Novidade ou não, é a pura verdade. Você já olhou bem a
cara dum homem quando ele lá um dia resolve encerar a casa? É
uma cara de absoluta plenitude. E como os homens enceram bem!
Agora, você reparou na cara duma mulher que vai trocar uma
lâmpada? É a cara da vítima! A cara do casamento fracassado! Ela
destorce a lâmpada queimada como se estivesse na cadeira
elétrica! - Ah, não, meu filho, isso é porque mulher tem medo de
choque. - Pois é: medo de choque... Mulher tem medo de choque
mesmo com a eletricidade

desligada... Não, minha filha, as coisas estão erradas, mas um


ponto é indiscutível: o homem é um animal doméstico e a mulher é
um animal social; o homem gostaria de organizar a casa e a mulher
gostaria de organizar as coisas públicas; trabalho em casa devia ser
para os homens; trabalho fora, para as mulheres. É claro. - Queria
ver você lavando as fraldas do Antônio Henrique... - Lavaria, por que
não? Lavar fralda é uma coisa chata para qualquer sexo, é um
ônus... Mas isso não tem nada a ver com a história. - Eu ficaria
convencida se você fosse lá dentro e me preparasse uma laranjada
bem geladinha, com pouco açúcar. - Com o maior prazer! (P. M. C.)
32 Recenseamento São Paulo vai se recensear. O governo quer
saber quantas pessoas governa. A indagação atingirá a fauna e a
flora domesticadas. Bois, mulheres e algodoeiros serão reduzidos a

números e invertidos em estatísticas. O homem do censo

entrará pelos bangalôs, pelas pensões, pelas casas de barro e de


cimento armado, pelo sobradinho e pelo apartamento, pelo cortiço e
pelo hotel, perguntando: - Quantos são aqui? Pergunta triste, de
resto. Um homem dirá: - Aqui havia mulheres e criancinhas.

Agora, felizmente, só há pulgas e ratos. E outro: -

Amigo, tenho aqui esta mulher, este papagaio, esta sogra e algumas
baratas. Tome nota de seus nomes, se quiser. Querendo levar
todos, é favor. E outro: - Eu? Tinha um amigo e um cachorro. O

amigo se foi, levando minhas gravatas e deixando a conta da


lavadeira. O cachorro está aí, chama-se Lord, tem três anos e meio
e morde como um funcionário público. Discussões e Soluções-33 E
outro:

- Oh! sede bem-vindo. Aqui somos eu e ela, só nós dois. Mas nós
dois somos apenas um. Breve, seremos três. Oh! E outro: - Dois,

cidadão, somos dois. Naturalmente o sr. não a vê. Mas ela está
aqui, está, está! A sua saudade jamais sairá de meu quarto e de
meu peito! E

outro: - Aqui moro eu. Quer saber o meu nome? Procure uma
senhorita loura que mora na terceira casa da segunda esquina, à

direita. O meu nome está escrito na palma de sua mão. E outro:

- Hoje não é possível, não há dinheiro nenhum. Volte amanhã.


Hein?

Ah, o sr. é do recenseamento? Uff! Quantos somos? Somos vinte,


somos mil. Tenho oito filhos e cinco filhas. Total: quinze pestes. Mas
todos os parentes de minha mulher se instalaram aqui. Meu nome?
Ahn... João Lourenço, seu criado. Jesus Cristo João Lourenço. A
minha idade? Oh!

pergunte à minha filha, pergunte. É aquela jovem sirigaita que está


dando murros naquele piano. Ontem quis ir não sei onde com um
patife que ela chama de "meu pequeno". Não deixei, está claro. Ela
disse que eu sou da idade da pedra lascada. Escreva isso,
cavalheiro, escreva. Nome: João Lourenço; profissão: idiota; idade:
da pedra lascada. Está satisfeito?

Não, não faça caretas, cavalheiro. Creia que eu o aprecio muito. O


sr.

pelo menos não é parente da mulher. Isso é uma grande qualidade,


cavalheiro! É a virtude que eu mais admiro! O sr. é divino,
cavalheiro, o sr. é meu amigo íntimo desde já, para a vida e para a
morte!

(R . B.) 34 Esparadrapo Aquele restaurante de bairro é do tipo


simpatia/classe média. Fica em rua sossegada, é pequeno, limpo,
cores repousantes, comida razoável, preços idem, não tem música
de triturar os ouvidos. O dono senta-se à mesa da gente, para bater
um papo leve, sem intimidades. Meu relógio parou. Pergunto-lhe
quantas horas são. - Estou sem relógio. - Então vou perguntar ao
garçom. Ele também está sem relógio. - E o colega dele, que serve
aquela mesa? - Ninguém está com relógio nesta casa. - Curioso. É
moda nova? - Antes de

responder, e se o senhor permite, vou lhe fazer, não propriamente


um pedido, mas uma sugestão. Discussões e Soluções . 35 - Pois
não.

- Não precisa trazer relógio, quando vier jantar. - Não entendo.

- Estamos sugerindo aos nossos fregueses que façam este pequeno

sacrifício. - Mas o senhor podia explicar... - Sem

querer meter o nariz no que não é da minha conta, gostaria também


que trouxesse pouco dinheiro, ou antes, nenhum. - Agora é que não
estou pegando mesmo nada. - Coma o que quiser, depois
mandamos receber em sua casa. - Bem, eu moro ali adiante, mas e
outros, os que nem se sabe onde moram, ou estão de passagem na
cidade?

- Dá-se um jeito. - Quer dizer que nem relógio nem dinheiro?

- Nem jóias. Estamos pedindo às senhoras que nao venham de jóia.


É o mais difícil, mas algumas estão atendendo. - Hum, agora já sei.

- Pois é. Isso mesmo. O amigo compreende... - Compreendo

perfeitamente. Desculpa ter custado um pouco a entrar na jogada.


Sou meio obtuso quando estou com fome. - Absolutamente. Até que
o amigo compreendeu sem que eu precisasse dizer tudo. Muito
bem. - Mas me diga uma coisa. Quando foi isso? -

Quarta-feira passada. - E como foi, pode-se saber? -

Como podia ser? Como nos outros lugares, no mesmo figurino. Só


que em ponto menor. - Lógico, sua casa é pequena. Mas levaram o
quê?

- O que havia na caixa, pouquinha coisa. Eram 9 da noite, dia meio


parado. 36 - Que mais? - Umas coisinhas, liquidificador, relógio de
pulso, meu, dos empregados e dos fregueses. - An.

(Passei a mão no pulso, instintivamente.) - O pior foi o cofre.

- Abriram o cofre? - Reviraram tudo, à procura do cofre.

Ameaçaram, pintaram e bordaram. Foi muito desagradável. - E

afinal? - Cansei de explicar a eles que não havia cofre, nunca


houve, como é que eu podia inventar cofre naquela hora? -

Ficaram decepcionados, imagino. - Não senhor. Disseram que tinha


de haver cofre. Eram cinco, inclusive a moça de bota e revólver,
querendo me convencer que tinha cofre escondido na parede, no
teto, embaixo do piso, sei lá. - E o resultado? - Este-e baixou a
cabeça, onde, no cocuruto, alvejava a estrela de esparadrapo.

- Oh! Sinto muito. Não tinha notado. Felizmente escapou, é o que


vale.

Dê graças a Deus por estar vivo. - Já sei. Sabe que mais? Na


polícia me perguntaram se eu tinha seguro contra roubo. E eu
pensando que meu seguro fosse a polícia. Agora estou me
segurando à minha

maneira, deixando as coisas lá em casa e convidando os fregueses


a fazer o mesmo. E vou comprar um cofre. Cofre pequeno, mas
cofre.

- Para que, se não vai guardar dinheiro nele? - Para mostrar minha
boa-fé, se eles voltarem. Abro imediatamente o cofre, e verão que
não estou escondendo nada. Que lhe parece? - Que talvez o senhor
precise manter um estoque de esparadrapo em

seu restaurante. (C. D. A.) 37

Compreensões e incompreensões O canarinho (P.M.C.) "Como se


fora um coração postiço..." (R.B.) A cabra e Francisco (C.D.A.) O
agrônomo suiço (F.S.) 38 O canarinho Atacado de senso de
responsabilidade num momento de descrença de si mesmo, Rubem
Braga liquidou entre amigoS, há um ano, a sua passarinhada. Às
crianças aqui de casa tocaram um bicudo e um canário. O primeiro
não agüentou a crise da puberdadC morrendo logo uns dias depois.
O menino se consolou,

forjando a teoria da imortalidade dos passarinhoS: não morrera,


afirmou-nos, com um fanatismo que impunha respeito ou piedade,
apenas a sua alma voara para Pirapora, de onde viera. O garoto
Compreensões e Incompreensões - 39 ficou firme, com a sua fé. A
menina manteve a possessão do canário, desses comuns,
chamados chapinha ou da-terra, e que mais cantam por boa
vontade que vocação. Não importa, conseguiu depressa um lugar
em nossa afeição, que o tratávamos com alpiste, vitaminas e folhas
de alface, procurando ainda arranjar-lhe um recanto mais cálido
neste apartamento batido por umas raras réstias de sol, pois é
quase de todo virado para o Sul. Era um canário ordinário, nunca
lera Bilac, e parecia feliz em sua gaiola. Nós o amávamos desse
amor vagaroso e distraído com que enquadramos um bichinho em
nossa órbita afetiva. Creio mesmo que se ama com mais força um
animal sem raça, um pássaro comum, um cachorro vira-lata, o gato
popular que anda pelos telhados. Com os animais de raça, há uma
afetação que envenena um pouco o sentimento; com os bichos
comuns, pelo contrário, o afeto é de uma gratuidade que nos faz
bem. Aos poucos surpreendi a mim, que nunca fui de bichos, e na
infância não os tive, a programá-lo em minhas preocupações.
Verificava o seu pequeno cocho de alpiste, renovava-lhe a água
fresca, telefonava da rua quando chovia, meio encabulado perante
mim mesmo com essa sentimentalidade serôdia, mas que havia de
fazer! Como nas

fábulas infantis, um dia chegou o inverno, um inverno carioca, é

verdade, perfeitamente suportável. Entretanto, como já disse, a


posição do edifício não deixa o sol bater aqui, principalmente nesta
época do ano. É a gente ficar algumas horas dentro de casa e sentir
logo uma saudade física dos raios solares. Que seria então do
canarinho, relegado agora à área, onde pelo menos ficava ao abrigo
da viração marinha. Às vezes, quando sinto frio, vou à esquina,
compro um jornal e o leio ali mesmo, ao sol, ao mesmo tempo que
compreendo o mistério e a inquietação dos escandinavos,
mergulhados em friagens e brumas durante uma boa temporada de
suas vidas. 40 E o canarinho, pois? Levá-Lo comigo dentro da
gaiola, isso não, eu não tinha coragem. Não devo ter reputação de
muito sensato, e lá se iria (como diz Mário Quintana) o resto do
prestígio que no meu bairro eu inda possa ter. Assim, vendo o
passarinho encorujado a um canto, decidimos doá-lo a um amigo
comum, nosso e dos passarinhos, dono de um sítio. A comunicação
foi feita às crianças depois do café. Pareciam estar de acordo, mas
o menino, sem dar um pio, dirigiu-se até a área e soltou o canarinho.
A empregada viu e veio contar-nos. Mas, cadê o menino? Voado?
Foi um

susto que demorou alguns minutos, pois não o achávamos em seus

esconderijos habituais, enrolado na cortina, debaixo da cama, atrás


da porta. Restava um armário muito estreito a ser investigado, e lá
estava ele, quieto e encolhido no escuro como no útero materno,
com uma cara de expressão tão dividida, que o choro da menina se
desfez em uma gargalhada cheia de lágrimas. O canário também
tinha sumido e, embôra fosse quase certa a sua impossibilidade de
ganhar a vida por conta própria, melhor assim, não voltasse nunca
mais.
Mas voltou. Na hora do almoço, a empregada veio dizer-nos que ele
estava na janela do edifício que se constrói ao lado, muito triste. É

verdade. Lá está o canarinho, sem saber de onde veio, sem saber


aonde ir, sem saber ao certo se gostamos dele, triste, arrepiado e
com fome.

Um ponto amarelo no paredão esbranquiçado, lá está o nosso


canário-da-terra, a doer em nossos olhos. Vai-te embora,

canarinho, que não te quero mais. Mas ele fica, brincando de corvo,
dizendo never more. Este refrão (never more) me deixa meio

esquisito. Estou triste. Todo mundo aqui de casa está triste,

ridiculamente triste, nesta manhã luminosa de junho.

(P. M. C.) Compreensões e Incompreensões - 41 Como se fora um


coração postiço... Nasceu, na doce Budapest, um menino com o
coração fora do peito. Porém-diz um dr. Mereje-não foi o primeiro.
Em São Paulo, há 7 anos, nasceu também uma criança assim.
"Tinha o coração fora do peito, como se fora um coração postiço."
Como se fora um coração postiço. . . O menino paulista viveu quatro
horas. Vamos supor que tenha nascido às cinco horas. Cinco horas!
Um meu amigo, por nome Carlos, diria: a hora em que os bares se
fecham e todas as virtudes se negam. . Madrugada paulistana.
Boceja na rua o último cidadão que passou a noite inteira fazendo
esforço para ser boêmio. Há uma esperança de bonde em todos os
postes. Os sinais das esquinas -

vermelhos, amarelos, verdes 42 - verdes, amarelos, vermelhos-


borram o ar de amarelo, de verde, de vermelho. Olhos inquietos da
madrugada.

Frio. Um homem qualquer, parado por acaso no Viaduto do Chá,


contempla lá embaixo umas pobres árvores que ninguém nunca
jamais contemplou.
Humildes pés de manacá, lá embaixo. Pouquinhas flores roxas e
brancas.

Humildes manacás, em fila, pequenos, tristes, artificiais. As


esquinas piscam. O olho vermelho do sinal sonolento, tonto na
cerração, pede um poema que ninguém faz. Apitos lá longe.
Passam homens de cara

lavada, pobres com embrulhos de jornais debaixo do braço. Esta


velha mulher que vai andando pensa em outras madrugadas.
Nasceu, em uma casa distante, em um subúrbio adormecido, um
menino com o coração fora do peito. Ainda é noite dentro do quarto
fechado, abafado, com a lâmpada acesa, gente suada. Menino do
coração fora do peito, você devia vir cá fora receber o beijo da
madrugada. Vamos andar pelas praças desertas, onde as estátuas
molhadas cabeceiam de sono. Menino do coração fora do peito, os
primeiros bondes estrondam. Vamos ouvir de perto esses barulhos
da madrugada. 6 horas. O coração fora do peito bate docemente. 7
horas - o coração bate... 8 horas-que sol claro, que barulho na rua!-
o coração bate... 9 horas-morreu o menino do coração fora do peito.
Fez bem morrer, menino. O dr.

Mereje resmunga: "Filho de pais alcoólatras e sifilíticos. . ."

Deixe falar o dr. Mereje. Ele é um médico, você é o menino do


coração fora do peito. Está morto. Os "pais alcoólatras e sifilíticos"
fazem o enterro banal do anjinho suburbano. Mas que anjinho
engraçado!- diz Nossa Senhora da Penha. O anjinho está no céu.
Está no limbo, com o coração fora do peito. Os outros anjinhos
olham espantados. O que é isso, "seu paulista? Mas o menino do
coração fora do peito está se rindo. Não responde nada. Podia
contar a Compreensões e Incompreensões -

43 sua história: "o dr. Mereje disse que. . ."- mas não conta. Está
rindo, mas está triste. Os anjinhos todos querem saber. " Então o
menino diz: - Ora, pinhões! Eu nasci com o coração fora do peito.
Queria que ele batesse ao ar livre, ao sol, à chuva. Queria que ele
batesse livre, bem na vista de toda a gente, dos homens, das
moças.

Queria que ele vivesse à luz, ao vênto, que batesse a descoberto,


fora da prisão, da escuridão do peito. Que batesse como uma rosa
que o vento balança... Os anjinhos todos do limbo perguntaram:

- Mas então, paulistinha do coração fora do peito, pra que é que


você foi morrer? O anjinho respondeu: - Eu vi que não tinha jeito. Lá
embaixo todo mundo carrega o coração dentro do peito. Bem
escondido, no escuro, com paletó, colete, camisa, pele, ossos,
carne cobrindo. O coração trabalha sem ninguém ver. Se ele ficar
fora do peito é logo ferido e morto, não tem defesa. Os anjinhos
todos do limbo estavam com os olhos espantados. O paulistinha foi
falando:

- E às vezes, minha gente, tem paletó, colete, camisa, pele, ossos,


carne, e no fim disso tudo, lá no fundo do peito, no escuro, não tem
nada, não tem coração nenhum... E quando eu nasci, o dr. Mereje
olhou meu coração livre, batendo, feito uma rosa que balança ao
vento, e disse, sem saber o que dizia: "parece um coração postiço".
Os homens todos, minha gente, são assim como o dr. Mereje. Os
anjinhos estavam cada vez mais espantados. Pouco depois
começaram a brincar de bandido e mocinho de cinema, e aí, foi,
acabou a história. Porém o menino estava aborrecido, foi dormir. Até
agora, ele está dormindo.

Deixa o anjinho dormir sono sossegado, dr. Mereje! (R.B.) 44 A


cabra e Francisco Madrugada. O hospital, como o Rio de Janeiro,
dorme. O

porteiro vê diante de si uma cabrinha malhada, pensa que está


sonhando.

- Bom palpite. Veio mesmo na hora. Ando com tanta prestação


atrasada, meu Deus. A cabra olha-o fixamente. - Está bem, filhinha.
Agora pode ir passear. Depois você volta, sim?

Ela não se mexe, séria. - Vai, cabrinha, vai. Seja camarada.

Preciso sonhar outras coisas. É a única hora em que sou dono de


tudo, entende? Compreensões e Incompreensões - 45 O animal
chega-se mais para perto dele, roça-lhe o braço. Sentindo-lhe o
cheiro, o homem percebe que é de verdade, e recua. - Essa não!
Que é que você veio fazer aqui, criatura? Dê o fora, vamos. Repele-
a com jeito manso, porém a cabra não se mexe, encarando-o
sempre. -

Aiaiai! Bonito. Desculpe, mas a senhora tem de sair com urgência,


isto aqui é um estabelecimento público. (Achando pouco

satisfatória a razão.) Bem, se é público devia ser para todos, mas


você compreende.. . (Empurra-a docemente para fora, e volta à
cadeira.) - O

quê? Voltou? Mas isso é hora de me visitar, filha? Está sem sono?
Que é que há? Gosto muito de criação, mas aqui no hospital, antes
do dia clarear... (Acaricia-lhe o pescoço.) Que é isso! Você está
molhada? Essa coisa pegajosa... O que: sangue?! Por que não me
disse logo, cabrinha de Deus? Por que ficou me olhando assim feito
boba? Tem razão: eu é que não entendi, devia ter morado logo. E
como vai ser? Os doutores daqui são um estouro, mas cabra é
diferente, não sei se eles topam. Sabe de uma coisa? Eu mesmo
vou te operar! Corre à sala de cirurgia, toma um bisturi, uma pinça; à
farmácia, pega mercúrio-cromo, sulf a e gaze; e num canto do
hospital, assistido por dois serventes,

enquanto o dia vai nascendo, extrai do pescoço da cabra uma bala


de calibre 22, ali cravada quando o bichinho, ignorando os costumes

cariocas da noite, passava perto de uns homens que conversavam à


porta de um bar. O animal deixa-se operar, com a maior serenidade.
Seus olhos envolvem o porteiro numa carícia agradecida. -

Marcolina. Dou-lhe este nome em lembrança de uma cabra que tive


quando garoto, no Icó. Está satisfeita, Marcolina? 46 - Muito,
Francisco. Sem reparar que a cabra aceitara o diálogo, e sabia o
seu nome, Francisco continuou: - Como foi que você teve idéia de
vir ao Miguel Couto? O Hospital Veterinário é na Lapa. -

Eu sei, Francisco. Mas você não trabalha na Lapa, trabalha no


Miguel Couto. - E daí? - Daí, preferi ficar por aqui mesmo e me
entregar a seus cuidados. - Você me conhecia? -

Não posso explicar mais do que isso, Francisco. As cabras não


sabem muito sobre essas coisas. Sei que estou bem a seu lado, que
você me salvou. Obrigada, Francisco. E lambendo-lhe
afetuosamente a mão, correu os olhos para dormir. Bem que
precisava. Aí Francisco levou um susto, saltou para o lado: - Que
negócio é esse: cabra falando?! Nunca vi coisa igual na minha vida.
E logo comigo, meu pai do céu! A cabra descerrou um olho
sonolento, e por cima das barbas parecia esboçar um sorriso: - Pois
você não se chama Francisco, não tem o nome do santo que mais
gostava de animais

neste mundo? Que tem isso, trocar umas palavrinhas com você?
Olhe, amanhã vou pedir ao Ariano Suassuna que escreva um auto
da cabra, em que você vai para o céu, ouviu? Que um dia Francis
Jammes abra lá no alto seu azul aprisco. Mande entrar Marcolina, a
cabra, e

seu bom amigo Francisco. (C.D.A.) Compreensões e


Incompreensões - 47 O agrônomo suíço O poeta estava
calmamente no bar, tomando um aperitivo, quando lhe telefonaram.
Quem o chamava era eu. O poeta não tem telefone em casa e há
dias que eu o vinha procurando: a menos que me tivesse enganado,
ele sabia de um amigo seu que conhecia um agrônomo suíço,
interessado em administrar fazendas. Ora, outro amigo meu, a
quem dei conhecimento 48 da existência desse suíço, me disse que
estava precisando exatamente de uma pessoa assim. E me pediu
que conseguisse maiores informações com o poeta.

No bar, àquela hora, fazia um barulho infernal. O poeta veio ao

telefone e mal conseguiu ouvir o meu nome: - Quem? - Eu, rapaz!


Então não está conhecendo a minha voz? - Eu quem?

Levou uns bons cinco minutos para descobrir com quem estava

falando. Talvez já tivesse tomado mais de um aperitivo, é possível.

- Que houve? Aconteceu alguma coisa? Eu mal conseguia escutá-lo


e ele não me ouvia de todo: - Você se lembra daquele agrônomo
que um conhecido seu... - Daquele o quê? - Daquele

AGRÓNOMO! - Você está enganado, não conheço ninguém com


esse nome. - Eu nem falei ainda o nome dele! É um suíço. -

Luís? - SUÍÇO! Você um dia me falou... Compreensões e

Incompreensões - 49 - Não conheço nenhum Luís. Eu estava

pensando que ... - Fale mais alto! Sua voz está sumindo.

- Não, estou por aí mesmo... Você é que anda sumido. Respirei


fundo e voltei à carga: - Eu sei que você não conhece o suíço.

Um conhecido seu é que conhece. - Escuta, que brincadeira é


essa? Eu estava aqui tomando o meu uísque... - Desculpe

incomodá-lo no bar, mas você não tem telefone em casa... -

Não tem importância. Só que está parecendo brincadeira. Entendi


você falar num suíço... - Isso! - Isso? Ah, eu tinha entendido suíço,
imagine. - Pois é isso mesmo, quer dizer: é suíço mesmo. O homem
está em cima de mim para arranjar... - Que homem? Não estou
entendendo nada, muito barulho aqui. - Um amigo meu, você não
conhece. Está precisando de um agrônomo para a fazenda dele. -
Fazendo o quê? Perdi a paciência: -

Olha, telefona para minha casa amanhã de manhã, está bem? 50


Mas o poeta agora estava interessado: - Não precisa se zangar!
Aconteceu alguma coisa com você? - Conversar com bêbado dá é
nisso.

- Você está bêbado? - Bêbado está você, essa é boa! -

Espera! Entendi direitinho você falar que estava bêbado. Deve ser o
barulho. Espera um pouco. Ouvi pelo fone sua voz para os que o

rodeavam: - Vocês aí, querem fazer o favor de falar um pouco mais


baixo? Um amigo meu está em dificuldades, e eu não escuto nada.
De novo para mim: - Alô! Pode falar agora que estou ouvindo

perfeitamente. Você está precisando de alguma coisa? - Estou: que


você me telefone amanhã de manhã. E desliguei. No dia seguinte
era ele quem me procurava: - Você talvez não se lembre, mas
ontem eu estava calmamente no bar, tomando um aperitivo, quando
você me

telefonou no maior pileque para me contar que estava sendo


perseguido por um sujeito chamado Luís. Que você quis dizer com
isso? -

Isso, não: suíço-arrematei. (F.S.) 51 Ações e intenções Meu ideal


seria escrever... (R.B.) A menininha e o gerente (C.D.A.) Na
escuridão miserável (F.S.) Gente bpoa e gente inútil (P.M.C.) 52 Meu
ideal seria escrever... Meu ideal seria escrever uma história tão
engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta
quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que
chegasse a chorar e dissesse- ôai meu Deus, que história mais
engraçada!" E então a contasse para a cozinheira e telefonasse
para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela
contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la
tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol,
irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa,
enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o
próprio riso, e depois repetisse para si própria-

"mas essa história é mesmo muito engraçada!" Que um casal que


estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido
com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse
casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e

começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois


que esta, apesar de sua má-vontade, tomasse conhecimento da
história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder
olhar um para o outro sem rir mais; e que um,

ouvindoaquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de


namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem
juntos. Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera
a minha

história chegasse-e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão


colorida e tão pura que todos lim-Ações e Intenções - 53 passem
seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito,
depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e
também aquelas pobres mulheres colhidas na calçada e lhes
dissesse - "por favor, se comportem, que diabo! eu não gosto de
prender ninguém!" E que assim todos tratassem melhor seus
empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e
espontânea homenagem à minha história. E

que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de


mil

maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um


australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago-mas que em
todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu
encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um
chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi
uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida;
valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode
ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo
tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que
ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do
céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina". E
quando todos me perguntassem- "mas de onde é que você tirou
essa história?"- eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi
por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro
desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem
ouvi um sujeito contar uma história.. ." E eu esconderia
completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha
história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela
moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de
luto e sozinha

naquela pequena casa cinzenta de meu bairro. (R. B.) 54 A


menininha e o gerente - Não, paizinho, não! Quero ir com você! -
Mas meu bem, não posso levar você lá. O lugar não é próprio. Não
vou

demorar nada, só dez minutos. Seja boazinha, fique me esperando


aqui.

- Não, não!- a garotinha soluçava. Agarrou-se a calça do pai como


quem se agarra a uma prancha no mar. Ele insistia: - Que

bobagem, uma menina de sua idade fazendo um papelão desses.

- Você não volta! - Volto, ora essa, juro que volto, meu amor.

Prometendo, ele passeava o olhar pela rua, impaciente. Ela baixara


a cabeça, chorando. Estavam diante da papelaria. O gerente
assistia à cena. O homem aproximou-se dele: - Faz-me o obséquio
de tomar conta de minha filha por alguns instantes? Vou a um lugar

desagradável, não posso levá-la comigo. - Mas... -


Quinze minutos no máximo. É ali adiante. Muito obrigado, bem?
Ações e Intenções - 55 E sumiu. A garotinha continuava de olhos
baixos, imóvel, o dorso da mão esquerda junto à boca. O gerente
passou-lhe a mão nos cabelos, de leve. - Vem cá. Ela não se
mexeu.

- Como é que você se chama? Carmen? Luísa? Marlene? Como


não respondesse, o gerente foi desfiando nomes, sem esperança de

acertar. Mas ao dizer "Estela", a cabecinha moveu-se, confirmando.

- Estela, você sabe que está com um vestido muito bonito? Estela
tirou a mão dos olhos, examinou o próprio vestido e não disse nada.

Mas o gelo fora rompido. Daí a pouco o gerente mostrava-lhe a


caixa registradora e autorizava-a a marcar uma venda de 200
cruzeiros.

- Olha um gatinho. Ele mora aqui? - Mora. - E que é que ele come? -
Papel. - Mentiroso! - Então pergunte a ele. O gato acordou, deixou-
se afagar e tornou a dormir, desta vez nos braços de Estela. O
gerente olhou o relógio; tinham se passado quinze minutos, o
homem não aparecia. "Bonito se ele não vier mais. Que vou fazer
com esta garotinha, na hora de fechar?"

Tentou lembrar o rosto do desconhecido; impossível. Já pensava em

telefonar para a polícia, quando Estela o puxou pela perna: -

Além da máquina e do gatinho, você não tem mais nada para me


mostrar?

56 Ele abarcou com a vista a loja toda e sentiu-a mal

sortida, pobre. "Eu devia ter aberto uma loja de brinquedos, pelo
menos um bazar." Experimentou com Estela o apontador de lápis, o
grampeador. E o homem não vinha. É, não vem mais. Estela andava
de um lado para outro, dona do negócio. Ele, inquieto. - Não mexa
nas gavetas, filhinha. - Não sou sua filhinha. -

Desculpe. - Desculpo se você deixar eu abrir. - Então deixo. Dentro


havia balões, estrelinhas, saldo do último Natal.

E ele que não se lembrava daquilo. Estela riu de sua ignorância, e o


homem não vinha. O movimento de fregueses declinava. Na
calçada, as filas de lotação iam crescendo. Daí a pouco, a noite.
Estela soprou um balão, outro, quis soprar dois ao mesmo tempo.
Um estourou.

Ela assustou-se. Ele riu. "Se o homem não aparecesse mais, que
bom! Aliás a cara dele era de calhorda. Ainda bem que me
escolheu."

Levaria Estela para casa, a mulher não ia estranhar, fariam dela


uma filha - a filha que praticamente não tinham mais, pois casara e
morava longe, no Peru. E se o pai reclamasse depois? Ora, quem
entrega sua filha a um estranho, diz que vai demorar quinze
minutos, passa uma hora e não volta, merece ter filha? O
empregado arniava a cortina de aço quando apareceram duas
pernas, um tronco inclinado, uma cabeça. - Dá licença? Demorei
mais do que

pensava, desculpe. Muito obrigado ao senhor. Vamos, filhinha. O

gerente virou o rosto, para não ver, mas chegou até ele a despedida
de Estela: - Até-logo, homem do balão! E a filha ficou mais longe
ainda, no Peru. (C . D. A.) Ações e Intenções -57 Na

escuridão miserável Eram sete horas da noite quando entrei no


carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava,
enquanto punha o motor em movimento. Voltei-me e dei com uns
olhos grandes e parados como os de um bicho, a me espiar, através
do vidro da janela, junto ao meio-fio. Eram de uma negrinha mirrada,
raquítica, um fiapo de gente encostado ao poste como um
animalzinho, não teria mais que uns sete anos. Inclinei-me sobre o
banco, abaixando o vidro: 58 - O

que foi, minha filha?- perguntei, naturalmente, pensando tratar-se de


esmola. - Nada não senhor - respondeu-me, a medo, um fio de voz
infantil. - O que é que você está me olhando aí?

- Nada não senhor-repetiu.- Tou esperando o ônibus... - Onde é que


você mora? - Na Praia do Pinto. - Vou para aquele lado. Quer uma
carona? Ela vacilou, intimidada. Insisti, abrindo a porta: - Entra aí,
que eu te levo. Acabou entrando, sentou-se na pontinha do banco, e
enquanto o carro ganhava

velocidade, ia olhando duro para a frente, não ousava fazer o menor


movimento. Tentei puxar conversa: - Como é o seu nome? -

Teresa. - Quantos anos você tem, Teresa? - Dez.

- E o que estava fazendo ali, tão longe de casa? - A casa da minha


patroa é ali. - Patroa? Que patroa? Pela sua

resposta, pude entender que trabalhava na casa de uma família no

Jardim Botânico: lavava roupa, varria a casa, servia a mesa. Entrava


às sete da manhã, saía às oito da noite. - Hoje saí mais cedo. Foi
jantarado. - Você já jantou? - Não. Eu almocei.

- Você não almoça todo dia? Ações e Intenções - 59 - Quando tem


comida pra levar, eu almoço: mamãe faz um embrulho de comida
pra mim.

- E quando não tem? - Quando não tem, não tem-e ela até parecia
sorrir, me olhando pela primeira vez. Na penumbra do carro, suas
feições de criança, esquálidas, encardidas de pobreza, podiam ser
as de uma velha. Eu não me continha mais de aflição, pensando
nos meus filhos bem nutridos - um engasgo na garganta me afogava
no que os homens experimentados chamam de sentimentalismo
burguês: - Mas não te dão comida lá?- perguntei, revoltado. -
Quando eu peço eles dão. Mas descontam no ordenado, mamãe
disse pra eu não pedir.

- E quanto é que você ganha? Diminuí a marcha, assombrado,


quase parei o carro. Ela mencionara uma importância ridícula, uma
ninharia, não mais que alguns trocados. Meu impulso era voltar,

bater na porta da tal mulher e meter-lhe a mão na cara. -

Como é que você foi parar na casa dessa... foi parar nessa casa?-

perguntei ainda, enquanto o carro, ao fim de uma rua do Leblon, se


aproximava das vielas da Praia do Pinto. Ela disparou a falar: -

Eu estava na feira com mamãe e então a madame pediu para eu


carregar as compras e aí noutro dia pediu a mamãe pra eu trabalhar
na casa dela, então mamãe deixou porque mamãe não pode deixar
os filhos todos sozinhos e lá em casa é sete meninos fora dois
grandes que já são soldados pode parar que é aqui moço, obrigado.
Mal detive o carro, ela abriu a porta e saltou, saiu correndo, perdeu-
se logo na escuridão miserável da Praia do Pinto. (FS.) 60 Gente
boa e gente

inútil Conheci um rapaz que, há uns vinte anos, ganhou uma

bolsa para estudar anatomia patológica nos Estados Unidos, e


nunca mais voltou. Americanizou-se? Encantou-se? Ficou rico?
Não, nada disso, mora numa cidadezinha gelada quase na fronteira
do Canadá, tem um

ordenado que lhe basta apenas para as despesas fundamentais,


não se diverte, gasta os dias e boas horas da noite metido num
laboratório.

Ações e Intenções-61 Foi incorporado aos pesquisadores de câncer.

Notaram-lhe o talento, pediram-lhe que ficasse, ele ficou. Brilhante


entre os mais brilhantes alunos que passaram pela Faculdade de
Medicina de Belo Horizonte, desistiu do futuro, largou tudo, fez-se
anônimo e pobre, ingressou num claustro leigo, só deixando o seu

trabalho para gemer um pouco de frio e saudade do Brasil, antes de

dormir. Homens como o Doutor Albert Schweitzer, capazes de trocar


um destino artístico ou literário por um devotamento

humanitário, são os santos de nosso tempo. A frieza de um


laboratório, no entanto, ainda me parece um mundo mais estranho,
e árido do que a África Equatorial Francesa. Amar os h'omens por
detrás de um

microscópio, sem sentir nunca a reciprocidade do gesto generoso, é

fantástico e humilhante para mim, tíbio comodista. Os fatos são


duros. Aperta-se o cerco contra o câncer nos Estados Unidos e em
outros países. A conquista do espaço interplanetário não é tão

emocionante quanto essa luta contra a morte. Antigamente, as


epidemias chegavam de repente e dizimavam povos inteiros. As
pestes modernas tomam aspecto moderno. As estatísticas sabem
que 450 mil

americanos serão vítimas do câncer este ano; destes, 260 mil estão
condenados à morte. Sabe-se ainda, por exemplo, que no Norte dos
Estados Unidos diminui a mortalidade por leucemia, mas no Sul
aincidência mortal vem sendo acrescida. O mal é misterioso e
aterroriza. Só não aterroriza o cientista escondido entre paredes
assépticas, a isolar vírus, a traçar esquemas táticos, a vislumbrar
esperanças, a chocar-se contra desilusões, a repetir, com o poeta,
que cada nova tentativa é um fracasso diferente. É preciso usaí
nesta guerra - fala agora um cientista famoso-de todas as coisas
que conquistaram mundos.

Admiro gente assim com a mais pura e selvagem simpatia de meu


espírito.
62 Visitei há alguns anos o Instituto Pavlov, perto de

Leningrado. Lá, em uma sala modesta e também fria, fui


apresentado a um homem muito magro, desleixado no vestir,
cabelos despenteados e de uma timidez de quem não tem o hábito
de falar muito. Era um cientista famoso, chamava-se Victor Fiodorov.
Pacientemente, ele me explicou a natureza das experiências que
vinha realizando há longos anos, no

sentido de tentar obter uma informação mais precisa sobre o câncer


e a transmissão dos caracteres adquiridos. Contou-me com certa
ternura a vida dos ratinhos assustados, que eu via dentro de um
aparelho cheio de labirintos, detalhou-me suas idas e vindas,
indutivas e dedutivas, pistas falsas, equívocos, surpresas
repentinas, observações novas para a ciência, fez-me enfim um
relatório completo daquilo que era a sua própria existência. Depois
calou-se. Nesse ponto,

naturalmente, ocorreu-me perguntar-lhe a que conclusão final


chegara. O

homem magro sorriu um sorriso decepcionado de criança que não


ganhou presente, e respondeu-me: "Ainda não cheguei a qualquer
conclusão; não há nada que me diga que eu haja contribuído para a
cura do câncer. Quando cheguei lá fora, num silêncio agravado pela
neve e pelo grito estrídulo das gralhas no alto dos abetos,

compreendi que não poderia esquecer aquele sorriso nunca mais.


Não faço nada pelo bem de ninguém e, decerto, faço mal a algumas

pessoas. Mas o sorriso do cientista Fiodorov, ao revelar-me a sua


frustração ao longo de tantos anos de trabalho, pelo menos me
acusa e não me deixa esquecer de que vim ao mundo causando
dores e sem procurar diminuir a dor de ninguém. Um inútil. Resta-
me a vaidade vulgar de saber que não presto para nada, pois o
bonito entre os intelectuais de hoje é não ter compaixão da
humanidade. Azar meu, que tenho, e nada faço. (P. M. C.) 63
Solicitações Telefone (C.D.A.) Menino de cidade (P.M.C.) A minha
glória literária (R.B.) Cem cruzeiros a mais (F.S.) 64 Telefone - O
senhor é que é o senhor mesmo? - Como?

- Estou perguntando quem é o senhor, afinal. - Evaristo Pestana de


Matos, seu criado. - Isso estou vendo na carteira de identidade. Mas
o talão de inscrição diz Abel Setembrino de Matos.

Solicitações - 65 - É meu avô paterno. - Então fala pra seu avô vir
ele mesmo, trazendo a carteira. - Isto eu não posso falar não
senhor. - Não pode por quê? - Porque ele já é falecido desde 1952. -
Se já é falecido, nada feito. A inscrição está cancelada. - Cancelada
como, se ele foi chamado pela

Companhia no jornal de hoje? - Olha, moço, a Companhia chamou


na suposição dele estar vivo. Não estando, fica sem efeito a
chamada.

Compreendeu? - Compreendi não. A Companhia chamou, tá


chamado.

Eu vim em nome de meu saudoso avô pagar a primeira cota do


telefone que ele pediu há 24 anos, quando eu era menino de colo,
aliás afilhado dele. - O senhor está é brincando. Seu avô não
precisa mais de telefone. - Mas preciso eu, que sou neto dele, será
que o senhor também não mora? Este talão aqui foi conservado
pela famiia durante um quarto de século. Meu avô, sentindo uma dor
do lado

esquerdo, chamou meu pai e disse: "Etelberto, tira da gavetinha do


criado-mudo minha inscrição de telefone e guarda ela com cuidado.
Não pude deixar um aparelho para você, mas deixo essa
esperança. Não vende a inscrição por dinheiro nenhum, meu filho.
Satisfaz minha última vontade". Disse e morreu. - É comovente,
mas... -

Espera aí. Tem mais. Meu pai guardou o papel 13 anos e também
embarcou, coitado. Na hora de despedida, me fez a mesma
recomendação. Estou
cumprindo 66 um mandado de família, uma coisa sagrada para mim.
Já lhe dei o talão. Me dá meu telefone, cidadão. - Esse talão é de
Abel Setembrino de Matos, homem! - Eu sei. Meu avô, pai de meu
pai. Me tocou como bem de família. - Tocou como? Por acaso

entrou em inventário, o senhor tem formal de partilha provando


isso? - Formal eu não tenho, mas tenho o talão. Quem mais

senão eu podia ficar com o talão, se sou filho único de filho único de
meu avô? - Eu sei lá se o senhor é único ou se faz parte de
escadinha. Nem interessa à Companhia saber quem é filho único de
quem.

Sabe que mais? A conversa já esticou demais. Vou chamar o


próximo.

- Me atenda antes, por favor. Não vai me obrigar a ir para a

televisão reclamar o direito de meu avô, nem contratar advogado.


Pois eu vou, eu contrato. - Faça o que quiser. - O que eu quero é o
telefone de meu avô, pedido em 1943! - Retire-se, o senhor está
enchendo! - Hein?! - Está enchendo, já disse!

- Estou é me sentindo mal... Uma coisa do lado esquerdo.., uma


nuvem

.. . uma vertigem. -. A gente esperando desde a Segunda Guerra

Mundial, e na hora de receber o telefone, ah meu Deus, o Senhor


me chama para o seu seio... Não faz isso comigo, deixa pelo menos
eu tomar um táxi, ir em casa entregar a meu filho Tonico este talão...
Quem sabe se ele um dia... Cai. (C.D.A.) Solicitações - 67 Menino
de cidade Papai, você deixa eu ter um cabrito no meu sítio? Deixo.

E porquinho-da-índia? E ariranha? E macaco? E quatro cachorros?


E
duzentas pombas? E um boi? Um rinoceronte? Rinoceronte não
pode.

Tá bem, mas cavalo pode, não pode? 68 O sítio é apenas um

terreno do Estado do Rio, sem maiores perspectivas imediatas. Mas


o garoto precisa acreditar no sítio como outras pessoas precisam

acreditar no céu. O céu dele é exatamente o da festa folclórica, a


bicharada toda, e ele, que nasceu no Rio e, de má-vontade, vive
nesta cidade sem animais. Aliás, ele mesmo desmente que o Rio
seja uma cidade sem bichos, possuindo o dom de descobri-los nos
lugares mais inesperados. Se entra na casa de alguém, desaparece
ao transpor a porta, para voltar depois de três segundos com um
gato ou cachorro na mão. A gente vai andando por uma rua de
Copacabana, ele some e

ressurge com um pinto em flor. É chegar na Barra da Tijuca, e daí a


cinco minutos, já apanhou um siri vivo. Localiza

eletronicamente todos os animais da redondeza, anda pela rua em

disparada, cumprimentando aqui um papagaio, ali um ganso, mais

adiante um gato, incansável e frustrado. Não distingue marcas de


automóvel, em futebol não vai além de Garrincha e Nilton Santos,
mas sabe perfeitamente o que é um mastif 1, um boxer, um
doberman. Dá

informações sobre as pessoas de acordo com os bichos que


possuam:

aquele é o dono do Malhado, aquela é a dona do... Ao telefone,

pergunta por patos, gatos, e outros cachorros, centenas, milhares


de cachorros, cachorros que prefere aos companheiros, cachorros
que o absorvem na rua, na escola, na hora das refeições, cachorros
que costumam latir e pular em seus sonhos, cachorros mil. Sua
literatura é rigorosamente especializada: livros coloridos sobre

bichos. Engatinha mal e mal na leitura, mas fala com uma

proficiência um pouco alarmante a respeito de répteis, batráquios,


etc.

Filho de mãe inglesa confunde fork e knife, mas sabe o que é seal e
walrus. Se pede um pedaço de papel é para desenhar a zebra ou a
baleia.

Solicitações - 69 É claro que sua frustração causa pena. Por isso


mesmo, há algum tempo ganhou como consolo um canarinho-da-
terra.

Um dia, como lhe dissessem que iam dar o passarinho, caso

continuasse a comportar-se mal, correu para a área e abriu a porta


da gaiola. Deram-lhe um bicudo, mas o bicudo morreu de tanto
alpiste. Ganhou mais tarde uma tartaruga, pequenina e estúpida,
que recebeu na pia do banheiro o nome de Henriqueta. Nunca
qualquer outro quelônio deu tanto serviço. Foi ao dentista na cidade,
e, ao voltar, disse ao pai pela primeira vez uma palavra horrível:
estou desesperado.

Tinha perdido a tartaruguinha no lotação. Ficou o vazio em sua vida.


O alívio era ligar o telefone interurbano para a avó e

indagar pelos patos que "possuía" em outra cidade. Ou fazer uma


visita à futura mãe de Poppy, este é um poodle que deverá nascer
daqui a meio ano, prometido de pedra e cal para ele. Outro
expediente: caçar borboletas, mariposas, grilos, alojar
carinhosamente os insetos nas gaiolas vazias, chamar-lhes pelos
nomes dos antigos bichos mortos ou desaparecidos. Um tio deu-lhe
outra vez um canário, o

carinho foi demais, o passarinho morreu. Não há nada a fazer, por


enquanto, e ele dedicou-se à arte de desenhar bichos. De vez em
quando ainda se anima e entra em casa afogueado, mostrando
alguma coisa quase invisível nas mãos: "Olha que estouro de grilo!"
Mas os grilos e as borboletas "legais" morrem ou saem
tranquilamente das gaiolas, e ei-lo novamente de mãos e alma
vazias. Deu um jeito: arranjou alguns pires sem uso e plantou
sementes de feijão. O

banheiro está cheio de brotos verdes, tímjdos. E ele já sabe que


possui uma fazenda. (P. M. C.) 70 A minha glória literária

"Quando a alma vibra, atormentada..." Tremi de emoção ao ver


essas palavras impressas. E lá estava o meu nome, que pela
primeira vez eu via em letras de forma. O jornal era O Itapemirim,
órgão oficial do Grêmio Domingos Martins, dos alunos do Colégio
Pedro Palácios, de Cachoeiro de Itapemirim, Estado do Espírito
Santo. O professor de Português passara uma composição: "A
lágrima". Não tive dúvidas: peguei a pena e me pus a dizer coisas
sublimes. Ganhei 10, e ainda por cima a composição foi publicada
no jornalzinho do colégio. Não era para menos: Solicitações - 71
"Quando a alma vibra, atormentada, às pulsações de um coração
amargurado pelo peso da desgraça, este, numa explosão
irremediável, num desabafo sincero de infortúnios angústias e
mágoas indefiníveis, externa-se, oprimido, por uma gota de água
ardente como o desejo e COnsoladora como a esperança; e esta
pérola de amargura arrebatada pela dor ao oceano tumultuoso da
alma dilacerada é a própria essência do sofrimento: é a lágrima".

É claro que eu não parava aí. Vêm, depois, outras belezas; eu


chamo a lágrima de "traidora Inconsciente dos segredos d'alma",
descubro que ela

"amolece os corações mais duros" e também (o que é mais


estranho) "endurece os corações mais moles". E acabo com certo
exagero dizendo que ela foi "sempre, através da História, a
realizadora dos maiores empreendimentos, a salvadora miraculosa
de cidades e nações, talismã encantado de vingança e crime, de
brandura e perdão".
Sim, eu era um pouco exagerado; hoje não me arriscaria a afirmar
tantas coisas. Mas o importante é que minha composição abafara, e
tanto que não faltou um colega despeitado que pusesse em dúvida
a sua

autoria: eu devia ter Copiado aquilo de algum almanaque. A

Suspeita tinha seus motivos: tímido e mal falante, meio emburrado


na conversa, eu não parecia capaz de tamanha eloqüência. O fato é
que a suspeita não me feriu, antes me orgulhou; e a recebi com
desdém, sem querer desmentir a acusação. Veriam, eu sabia
escrever coisas loucas; dispunha secretamente de um imenso
estoque de "corações amargurados",

"pérolas da amargura" e "talismãs encantados" para embasbacar os


incréus; veriam. Uma semana depois o professor mandou que nós
todos escrevêssemos sobre a Bandeira Nacional. Foi então que-dá-
lhe, Braga! - meti uma bossa que deixou todos mara-72 ravilhados.
Minha composição tinha poucas linhas, mas era nada menos que
uma paráfrase do Padre-nosso, que começava assim: "Bandeira
nossa, que estais no céu..."

Não me lembro do resto, mas era divino. Ganhei novamente 10, o


professor fez questão de ler, ele mesmo, a minha obrinha para a
classe

estupefata. Essa composição não foi publicada porque O Itapemirim


deixara de sair, mas duas meninas-glória suave-tiraram cópias
porque acharam uma beleza. Foi logo depois das férias de junho
que o professor passou nova composição: "Amanhecer na fazenda".
Ora, eu tinha passado uns quinze dias na Boa Esperança, fazenda
de meu tio Cristóvão, e estava muito bem informado sobre os
amanheceres da mesma.

Peguei da pena e fui contando com a maior facilidade. Passarinhos,


galinhas, patos, uma negra jogando milho para as galinhas e os
patos, um menino tirando leite da vaca, vaca mugindo . . . e no fim
achei que ficava bonito, para fazer pendant com essa vaca mugindo
(assim como "consoladora como a esperança" combinara com
"ardente como o desejo"), um "burro zurrando". Depois fiz parágrafo,
e repeti o mesmo zurro com um advérbio de modo, para fecho de
ouro: "Um burro zurrando escandalosamente". Foi minha desgraça.
O

professor disse que daquela vez o senhor Braga o havia


decepcionado, não tinha levado a sério seu dever e não merecia
uma nota maior do que 5; e para mostrar como era ruim minha
composição leu aquele final: "Um burro zurrando
escandalosamente". Foi uma gargalhada geral dos alunos, uma
gargalhada que era uma grande vaia cruel. Sorri amarelo. Minha
glória literária fora por água abaixo. (R. B.)

Solicitações - 73 Cem cruzeiros amais Ao receber certa quantia num


guichê do Ministério, verificou que o funcionário lhe havia dado cem
cruzeiros a mais. Quis voltar para devolver, mas outras pessoas
protestaram: entrasse na fila. Esperou pacientemente a vez, para
que o funcionário lhe fechasse na cara a janelinha de vidro: 74

- Tenham paciência, mas está na hora do meu café. Agora era uma
questão de teimosia. Voltou à tarde, para encontrar fila

maior-não conseguiu sequer aproximar-se do guichê antes de

encerrar-se o expediente. No dia seguinte era o primeiro da fila: -


Olha aqui: o senhor ontem me deu cem cruzeiros a mais.

-Eu? Só então reparou que o funcionário era outro. - Seu colega,


então. Um de bigodinho. - O Mafra. - Se o nome dele é Mafra, não
sei dizer. - Só pode ter sido o Mafra. Aqui só trabalhamos eu e o
Mafra. Não fui eu. Logo... Ele coçou a cabeça, aborrecido: - Está
bem, foi o Mafra. E daí? O

funcionário lhe explicou com toda urbanidade que não podia


responder pela distração do Mafra: - Isto aqui é uma pagadoria, meu
chapa.
Não posso receber, só posso pagar. Receber, só na recebedoria. O

próximo! O próximo da fila, já impaciente, empurrou-o com o


cotovelo. Amar o próximo como a ti mesmo! Procurou conter-se e se
afastou, indeciso. Num súbito impulso de indignação-agora iria até o
fim - dirigiu-se à recebedoria. - O Mafra? Não trabalha aqui, meu
amigo, nem nunca trabalhou. - Eu sei. Ele é da pagadoria.

Mas foi quem me deu os cem cruzeiros a mais. Solicitações - 75

Informaram-lhe que não podiam receber: tratava-se de uma

devolução, não era isso mesmo? e não de pagamento. Tinha trazido


a guia?

Pois então? Onde já se viu pagamento sem guia? Receber mil


cruzeiros a troco de quê? - Mil não: cem. A troco de devolução. -

Troco de devolução. Entenda-se. - Pois devolvo e acabou-se.

- Só com o chefe. O próximo! O chefe da seção já tinha saído: só no


dia seguinte. No dia seguinte, depois de fazê-lo esperar mais de
meia hora, o chefe informou-lhe que deveria redigir um

ofício historiando o fato e devolvendo o dinheiro. - Já que o senhor


faz tanta questão de devolver. - Questão absoluta.

- Louvo o seu escrúpulo. - Mas o nosso amigo ali do guichê disse


que era só entregar ao senhor-suspirou ele. - Quem disse isso? -
Um homem de óculos naquela seção do lado de lá.

Recebedoria, parece. - O Araújo. Ele disse isso, é? Pois olhe: volte


lá e diga-lhe para deixar de ser besta. Pode dizer que fui eu que
falei. O Araújo sempre se metendo a entendido! - Mas e o ofício?
Não tenho nada com essa briga, vamos fazer logo o ofício.

- Impossível: tem de dar entrada no protocolo. Saindo dali, em vez


de ir ao protocolo, ou ao Araújo para dizer-lhe que deixasse de ser
besta, o honesto cidadão dirigiu-se ao guichê onde recebera o
dinheiro, fez da nota de cem cruzeiros uma bolinha, atirou-a lá
dentro por cima do vidro e foi-se embora.

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